0 notas0% acharam este documento útil (0 voto) 230 visualizações14 páginasFrancine Mazière - O Enunciado Definidor
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pacionais de Catalogagio na Publicagae (CIP)
Guimaraes, Lduardo (ors.
Hist an. ineluindo texto de Michel Breal --
Eduardo Guimaraes (org.) : Campinas. 2 edigao aumentada, Uditora RG, 2008
ae sentide na fin
Bibliogratia.
ISBN 978-R5-61622-02-2
1. Analise do diseurso : Comunicagdo : Linguagem 2. Li
ilisticn ~ Teoria
lingitistica 3. Linguagem ¢ Historia 1 Litulo 1. Guimaraes, dare, 1948-
cbp 40141
= 410
~ BOLI
indices para catilogo sistematico:
Aniilise do discurso > Comunieagao : Linguagem 40141
Lingitistica ~ Teoria lingitistica 410
me Historia 301.2
Lingus© ENUNCIADO DEFINIDOR:
DISCURSO E SINTAXE
Francine Maziére
Procurarei dar conta brevemente, neste trabalho, de andlises do
enunciado definidor, tal como ele se apresenta nos primeiros diciona-
rios da lingua francesa,
Por que colocar o enunciado definidor como objeto da Anilise
do Discurso?
(1) O ptiblico, qualquer que seja, tem uma representagdo ainda
ingénua do diciondrio. Pelo fato deste ser, antes de tudo, um
instrumento de consulta, a defini
Ao goza de um estatuto parti-
cular: ela é sempre mais ou menos considerada como “boa”,
“sem restrigdes de uso”, intercambidvel de um dicionario a outro.
Nos sempre temos wm dicionario, ¢ isto apesar das diferencia-
ces tedricas importantes reivindicadas pelos lexicégrafos desde
ha duas décadas.
(2) Alguns especialistas em terminologia procuram, em suas
atuais pesquisas, viabilizar a idéia de uma possivel definigdo uni-
versal do termo téenico ou cientifico. Isso é possivel? Um estudo
como este tenderia a colocar em dtvida a separagéo entre 0s
termos ¢ o restante do [éxico.
(3) Se o discurso nao é jamais transparente, se a gramatica par-
ticular de uma lingua impde escolhas significativas ao escritor,
entdo a sintaxe da definigéo, em sua materi lidade, tem algo a
nos mostrar sobre as representagdes © as posigdes realmente assu-
midas pelo lexicégrafo no interior da ordem do saber e da ins-
tituigaoCom André Collinot, temos uma andlise discursiva do enunciado
definidor concebido como o lugar em que se consirdi e se pode mos
trar o “como se diz” de uma sociedade. Ao colocar em evidéncia
esse verdadeiro “pronto para dizer” [“prét a parler” (cf. um artigo
em Lexicographica 3 que tem esse titulo) deveriamos ser conduzidos
& idégia de que, no interior da definigao, se pode estudar de maneira
privilegiada 0 que M. Pécheux denominou “pré-construido” *.
Noés dispomos de um corpus bastante incomum, constitufdo ja a
primeira vista. No século XVII os lexicégrafos franceses estéo a ser-
vigo de uma politica lingtiistica. Richelieu cria a Academia Francesa
em 1634 e Ihe atribui uma dupla tarefa: escrever uma gramatica e¢
redigir um diciondrio. O Dictionnaire de l’Académie surge em 1694
mas quatro anos antes, em 1690, Antoine Furetitre, antigo académi-
co, termina seu Dictionnaire Universcl.
1
Obra fundamental.
— £0 dicionario que muitas di
definigdes atuais ainda reco-
piam. A. Rey, autor do Petit Robert, assegurou a sua reedicio nas
edigdes Le Robert, com a inclusao de um importante prefacio.
— Fo primeiro diciondrio da lingua francesa com tendéncia
enciclopédica.
— E 0 dicionario que Pierre Bayle edita em La Haye, no come-
co do século XVII, © que & seis vezes reeditado pelos jesuitas du-
rante o século, com acré
cimos © transformagées, sob o nome de Dic-
tionnaire de Trévoux. Foi um século de repetigdes ¢ retomadas feitas
por um grupo de autores institucionalmente definidos, empenhades
ndo em recopiar o texto, mas engajados nas polémicas ideoldgicas do
século.
Podemos, portanto, esperar observar a cadeia de formulacdes e&
reformulacdes de sintagmas “c
talizados” [“obligés”] no interior de
1. Cf. Pécheux, M., Les Verités de la Palice, p. 88-89, F. Maspero, Paris,
1975, traduzido para o portugués pela Editora da UNICAMP com titulo
Semdntica ¢ Discurso, 1988 (N. do T.).
48um duplo funcionamento: (1) normativo, j4 que regrado pelo objeto
diciondrio, (2) politico, ja que ESSE diciondrio encontra-se direta-
mente engajado na luta com as Luzes.
ENUNCIADO DEFINIDOR E DETERMINACGAO RELATIVA
Ha um trabalho em andamento, com Jacqueline Léon (LISH),
para estabelecer uma analise informatizada desses enunciados. Feita a
descrig¢do hierarquizada, esperamos chegar a uma certa previsibilidade
dos enunciados, em fungdo da palavra-entrada.
Especificando esse trabalho jé iniciado ¢ sem me antecipar sobre
os resultados que surgirao, vou me ater aqui a descricdo, no Furetiére,
de uma forma particular da determinagdo, encontrada em certos enun-
ciados definidores: a Relativa.
Consideremos que a definigdo “cla
da seguinte mancir:
ica” pode ser esquematizada
N-Entrada: N-Cabega (adj.) (Participio) (S. Prep.) (Rel.) (Cir-
cunstancial) ou. para falar claro,
Galinha: ave de quintal que se cria por causa de seus ovos.
Se o papel do anstancial & considerdvel, particularmente
quando o N-Entrada € uma nominalizagéo cf. FIANCAILLES (noi-
vado)) *, em todos os casos a relativa aparece como uma determinacdo
inteiramente privilegiada. Em primeiro lugar, por razées discursivas
que nao ha necessidade de retomar (cf. os trabalhos de M. Pécheux
e P. Henry) *. Além disso, e particularmente no caso deste trabalho,
razOes sintaticas simples: a relativa € uma frase, com estrutura de
ou seja, um SN ¢ um SV. Ora, seu SN nos interessa. De que
sujeitos, para inscrever na determinacdo, pode ter necessidade o lexi-
cégrafo?
2. Veremos, mais a frente, que os exemplos escolhidos pela autora fazem
parte do recorte FA FIN, mas como na tradugao perde-se a idéia desse
recorte, manteremos a palavra francesa (N. do T.).
3. Henry. P., Le Mauvais Outil, Klincksieck, Paris, 1977. Pécheux, M., Les
Verités de La Palice (vide nota 1.) (N. do
49O Furetiére, que registra, ao contrario do Dictionnaire de l’Aca-
démie, os falares regionais e artesanais (Furetitre se coloca sob a
autoridade dos “mestres em cada profisséo”), € particularmente apro-
priado para o nosso questionamento. Com efeito, ele traz a tona, pela
especificagao dos dominios e pela designagéo dos grupos de enuncia-
dores ligados por uma pratica discursiva, uma espécie de polifonia
lexicoldgica, Pela expressdo em termos de e¢ pelos circunstanciais (no
Palacio, em filosofia, no povo) ele designa os espagos culturais que
validam a definicéo. E com expressdes tais como se diz de (em, quan-
do) ele restringe o grupo de enunciadores suscetiveis de significar tal
cl ao empregar tal palavra: os fildsofos antigos, os padres, os
maridos, 0 rei, os soldados. . .
Mas isso nao ocorre com todas as palavras! Em muitos casos,
o lexicégrafo ocupa uma posi¢do interna a seu enunciado: Se diz tal
palavra para constituir tal sentido. ao, o enunciador de um
dizer que significa através de normas nao seto
de evidén
ob, Ot
zadas, em um discurso
, onde coincidiriam todos os enunciadores.
A natureza do sujeito da relativa — universal, especializado vu
ausente — é, assim, um componente importante do enunciado defini-
dor. Esses sujeitos constituem um lugar para observar os desniveis no
interior da determinagao do ‘sentido’.
Uma palavra ainda sobre a sintaxe da relativa. Sabe-se que o
pronome relativo coloca problemas. Ele &, ao mesmo tempo, intro-
dutor de uma frase (conector), substituto ou representante de um
nome (pronome), marca de fungao sintdtica (sujcito, objeto, comple-
mento nominal ou verbal...). timulo, bastante raro, explica
os numerosos ‘erros’ sobre as relativas em gue [qui] e em cujo
[‘dont’] *. Utilizaremos essa dupla propriedade de representante e de
marcador sintatico para distinguir entre diversos modelos e, em par-
jo observar que 0 pronome ‘que’ nao tem, no portugues a espe-
cificidade de ocupar sempre a posigio de sujeito da relativa, como ¢ 0 caso
de ‘qui’ no francés. Por esse motivo, faremos a referéncia ao pronome
francés quando entendermos gue essa especificidade pode ficar comprometida.
Também o pronome ‘cujo’ no cobre todas as possibilidades de tradu-
gio de ‘dont’, Em alguns exemplos, a tradugdo sera feita por “do qual’.
‘o qual’ ou ‘que’ (N. do T.).
50ticular, entre as relativas em que [qui'], onde o sujeito esta inscrito
Ho pronome, ¢ as outras relativas que deixam lugar para a realizagdo
de um sujeito.
OS MODELOS
Podemos propor trés:
() N (adj.) que [qui] V...; (hd ...): (se 2.)
Ex.: FIGUE (figo): fruto tenro e doce que vem em forma de pera;
ha os figos brancos e os figos roxos. Colhe-se-os no outono ¢ coloca-
se-os sobre estacas.
(2) N (adj.) que/ cujo /o qual SE (ou x) V (para...)
Ex.: FICHE (prego): pedago de ferro que se faz entrar na madeira
para prender ou fazer outras jungGes de marcenaria.
(3) Nominalizagao que SE (ou x) V (a alguém) (circ.)
Ex.: FIANCAILLES (noivado): promessa de casamento que se faz
perante a igreja.
No quadro dessa breve apresentagao, sé me aterei aos modelos
|e 2. A grande oposicae entre cles esta na fungdo do pronome.
—- na forma N que (modelo 1) o relativo que ocupa a posicaéo
de sujeito ¢, como pronome, cle posiciona o N-cabeca, e portanto, de
certa mancira, o N-entrada, do qual N-cabega é muitas vezes apenas
um hiperdnimo, como sujeito da caracterizacao.
Ex.: FAGOTEUR (lenhador): homem que trabalha nas florestas
cortando Ienha.
O lenhador é€ um homem que
O lenhador trabalha ...
Ha uma aparente transparéncia semantico-sintatica do N-entrada pela
relagao de equivaléncia.
51== em todes os outr
s casos, que, Cujo, 0 qual, nao ecupam oO
lugar do sujeito eo relative deixa esse lugar pura un oulre sujeito.
Eis ai, portanto, um jugar a ser vcupado pelo que & convencional-
mente chamiado de sujeito universal (alguns dizem sujeito ideoldgico),
ou seja, SE, assim como por sujeitos especificados.
Ex.: FANEUR (diarista): pessoa diarista que se contrat para
(Os dois esquema
denados na defini
N que [qui'] / N que, cujo ... podem ser coor
Ex.: FANTOME (fantasma); aparigao vaga que cremos ver, imagem
que [qui]... mas nao tratarei deste caso aqui.
Para que a divisao entre os dois modelos seja correta, ¢ necessa
rio ainda levar em conta as propricdades do verbo da relativa ¢ as
propriedades do pronome relativo, Esse segundo problema concerne
essencialmente a cujo [‘dont”].
-—- Propriedade sintatica:
A um verbo na forma passiva no interior da relativa em que [‘qui']
pode corresponder um verbo na forma ativa no interior de uma rela-
tiva do 2.° modelo:
N que € empregado (por x) / N que SE (ou x) emprega
—- Propriedade sintatico-semantica:
O semantismo de certos verbos permite uma manipulagao do tipo:
N que serve (a x) (para) / N do qual sc (ou x) (se) serve (para)
Assim, nem todos os exemplos sao estdveis. Certas definigGes do mo-
delo 1 (N que serve, que & empregado...) devem ser assimiladas
ao modelo 2, enquanto que os cnunciados onde o verbo mar
de pertencer a (N que vem, provém de ) constituem as formas.
estdveis do modelo 1.
o fato
As propricdades referentes a cuje [‘dont'] encontram-se em es-
tudo. Diremos sumente que quando cujo & complemento do N-cabeca
52© sujeito é um atributo ou uma parte desse N-cabeca eo a assimil
pode ser feita com o modelo 1 (nenhum sujeito novo; ex.:
cujo bico }. Se eujo & complemento do verbo, a defin
no modelo 2 (introducdo de um sujeito auténomo; ex.: objeto do
qual se diz ...).
Colocados esses dois modelos, como se dividem as entradas com
relagdo aos modelos retides?
O MODELO 1
Consideremos 0 corpus abaixo, extrafdo do recorte Fa/Fin, arbi-
trariamente selecionado,
FAGOTEUR (lenhador) : homem que trabalha,
FAIM (fome) : desejo natural do animal que o leva a...
FAITIERE (telha curva) : telha,.. que serve para... e que...
para. .
FANFARON (fanf:
FANTOME (fantasma) : imagem que se forma...
rio) : homem leviano que incita a...
FIC (tumor) : espécie de saliéncia ou de verruga que
vem que faz...
FIBRE (fibra) : ...filamentos... que servem...
FIEL (fel) : humor amarelado...; que tem... e que
é.
FIEVRE (ebre) : doencga que vem de...
FIFRE (pifaro) ic de flauta... que produz um
som... ¢ que &...
PIGUE (figo) : fruto tenro ¢ doce que vem...
FIGUIER (figueira) vore que da...
FILON (fildo) : filetes de metal que compdem a veia de
uma mina e que...
FILS/FILLE (filho/a) —: crianca do sexo masculino ou feminino
que descende de...
53A 9 classilicatéria nes mostra, dominando o modelo, a
série dos ‘objetos naturais’: frutos (FIGUE (figo)), arvores (FIGUIER
(figueira}), doencas (FIC (tumor)), objetos bioldgicos (FIEL (el), ©
geoldgicos (FILON filao)), desejos FAIM (fome)), mas também vemos
os nomes de profissdes (FAGOTEUR (lenhador)) ov de objetos fa-
bricados (FAITIFRE (telha curva), (FIFRE: (pifaro)).
Duas questies se colocam:
—- Teria Furetidre intuitivamente definido todos os objctos sen-
tidos como ‘naturais’
sem atualizacdo do sujeito idevldgico, dando
assim uma traducdo sintdtica ao conceito?
— Ha heterogencidade ou inconseqiiéncia na interioriza
sa classificacao cultural do mundo ou, ao contrario, homugencidade
€, portanto, pertinéncia e valor informative, no plano cultural, desde
que aparegam esses enunciados para objetos semanticamente hetero-
géneos, como é aqui o
so das profissdes ou instrumentos?
As respostas podem ser claras. Todos os frutos seguem o modelo
N (adj.) que [‘qui']: (pequenos) frutos (vermelhos) (agraddveis) (com
sementes) que sao/vém a/crescem... Que haja uso doméstico do
objeto nao afeta a definigdo. Furetitre introduz o depois de forte
pontuacdo (ponte ou ponto e virgula). Ex.: ‘coloca-se-os. . .”
deles para. ..°. A mesma construi
sem exce
“serve-se
Jo para as docngas e para os frutos,
O problema se coloca, entao, pa
que se tornam pertinentes sobre esse fundo de estabilidade.
A as extensdes ¢ as excecdes
SERIES FE FXTENSOES
Na série de nomes de animais, as entradas derivam, quase exclu-
sivamente, do modelo 1. Assim, LAPIN (coclho) & um “pequeno
animal que se abriga Mas LIE debre) € um “pequeno
animal que se cag (modelo 2). Er cio
oO se faz essa separ
entre animal doméstico, que mantém uma relagao com o home c¢,
portanto, ¢ mais proximo do modelo 2, ¢ o animal selvagem, que
54a do modelo ‘natural’! No século XVII, pouco importa a do-
mesticagao do animal: ¢ um assunto para os camponeses. No en-
tanto, a sociedade. aquela que ¢ levada em conta, esta interessada
ha caga ena comida, estando as duas ligadas! Logo, torna-se signifi-
cative, numa ivitura do mundo social, o fato de que LIEVRE (lebre)
(animal cagado) ¢ GERFAUD (gerifalte) (animal preparado_ p:
) sejam do modelo 2, assim como o FAISAN (fai
ido ¢ apreciado)
Uma outra
aicgoria animal deriva do modele 2; os animais que
o saber nao permiie pensar no interior da ordem da natureza. Assim
ea mitica GIRA
GIRAFE (girafa); animal feroz do qual muitos autores fazem
mengao mas que ninguém jamais viu.
Acabamos de interpretar objetos que escapam a unidade sinid-
tica de sua série. Emi sentido contrario, alguns objetos As vezes ines-
perados alinham-se entre os produtes naturais do modelo 1:
FILS/FILLE (filho/a) inga do sexo masculino ou feminino
que descende de um pai e de uma mae pela via da geracdo.
O paralelo que se pode estabelecer com o FIGU
FRAISE (morange) leva mais longe na descri¢
(figo) e o
“Ha os figos branc
familia, adotivos, de prime’
-voxos..."/“H& os filhos legitimos, de
‘0 matriménio,
Enfim, algumas séries so totalmente homogéneas. Por exemplo,
sentimentos alinham-se no modelo 1: HAINE
(ddio), HONTE (vergonha), HORREUR (horror)... Temos aqui uma
tradugao, que se mostra pela escolha sintdtica, do cartesianismo de
todas as paixoes ¢
Furetitre sobre as paixdcs, que se dé a ler na evi
déncia da definicado.
Tradugdo © disposigao, de um anterior ndo nomeado, em um objeto
de grande consume.
55OS INTRUSOS
Para expulsar os intrusos do corpus, como FAITIERE (telha cur-
va), objeto fabricado ¢ nao objeto natural, ¢ remeté-los ao modelo 2
basta fazer valer as propricdades verbais anteriormenie mencionadas.
FAITIERE (telha curva): telha que serve para.../ da qual se
serve para...
O caso de FAGOTEUR Uenhador), nome de profisséo, é mais
interessante. Pelo fato de nao podermos exclui-lo por uma equivalén
cia de ordem sintatica, temos que conservé-lo na sua primeira forma e
analisd-lo como inclufdo por Furetitre entre as definigdes de objetos
naturais. Mas & necessdrio, entdéo, relaciondé-lv com os outros nomes
de profissto. Nao podemos, no entanto, tratar dessa sériv, dividida
entado os objetos cujas
segundo os dois modelos, sem ter antes apre
definigdes se incluem no modelo 2.
O MODELO 2
Os objetos definidos segundo esse modelo nao séo mais, na rela-
tiva, sujeito do verbo por interposigao do pronome que [‘qui'], mas
sim objeto. Trata-se, no corpus selecionado, entre outros, de FAU-
CHEUX (aranha), FAULX (falso), FAGOT (feixe de lenha), FA-
LOT (ridiculo), FANAL (farol), FANION (bandeirola), FARD (dis-
farce)... O lexicégrafo atualizou, pois, um sujcito para o verbo da
relativa. Muitos casos de figura podem apresentar-se: 0 sujcito pode
ser especificado segundo as profissdvs (ex.: FACTURE (fatura): rela-
¢ao de mercadorias que um faturista envia a...) ou segundo os ato-
res no interior de um dominio (FACULTE (faculdade) termo de as-
trologia, nome que Schneider deu a...). O cnunciador autorizado 6,
assim, designado em scu lugar, no seu grupo.
Mas para todos os termos anteriormente enumerados, 0 sujeito
nao € especificado; trata-se do se universal. Nada nesse conjunto
parece destoar, ja que ai reconhecemos, majoritariamente, a série de
objetos fabricados,
56A escolha do modelo torna-se mais interessante quando o N-En-
trada designa um ser humano, Como, entao, vai se dar a relagdo entre
esse “humano” na posigdéo de objeto © o sujcito humano universal?
Vimes, anteriormente, que as entradas de nomes de profisséo
aparecem no modelo 1:
FAGOTEUR (lenhador): homem que [quil.. .
Os artesdos sao assim tratados por Fureti¢re. Lembremos sua
abertura aos “mestres em cada profissio”, dos quais ele nao rejeita
o vocabulério. Mas, a esses homens com profissdo, vio se opor os
criados, os “homens empregados”. Temos:
FANEUR (diarista): pessoa diarista que se contrata para...
PAGE (pajem): crianga (de honra) que se coloca perto de...
para...
Vemos que a divisao de uma sociedade se enuncia na transparéncia
sintatica! Independéncia do artesao que [‘qui’]...; dependéncia uni-
versalizada do criado-objeto: contrata-se-o, coloca-se-o. . .
Outra série signi
os termos de lingiiist
ativa desse modelo: as entradas designando
a ou instrumentos gramaticais e retéricos.
Assim, FABLE (fabula), FACETIE (facécia), FARCE (farsa)...,
todas as interjeigdes (FI! (Fora!) HO! (Oh!, Ah!, Ola!)) e todas as
“palavras das quais se serve para...” sao do modelo 2.
Como no cartesianismo do modelo 1, podemos ler aqui a escolha
da forma sintatica como tradugdo de um saber gramatical interiori-
zado, vindo principalmente da “Gramatica” de Port-Royal, segundo
a qual se da “a inteligéncia de seu pensamento” através (“servindo-
se”) de palavras enquanto marcas institucionais desse pensamento.
Para fechar o circuito, tratemos de um falso intruso ja mencio-
nado no modelo 1; FILS/FILLE (filho/a). Enquanto correspondente
feminino de FILHO, FILHA &, como o masculino, um objeto natu-
ral, Mas € um segundo sentido de FILHA que entra de direito no
modelo 2:
57FILLE (moca): se diz do estado daquela que nunca foi casada.
Modelo 1 em que [‘qui']? Nao, pois o verbo da relativa & um passivo
incompleto, em que a forma ativa seria: aqucla que nunca se casou.
Desnecessario insistir sobre essa tradugao sintdtica pega do mo-
delo cultural: criados, mogas ¢ instrumentos alinham-se no mesmo
modelo 2!
CONCLUSAO
Trata-se, aqui, apenas de resultados parciais, obtidos a partir de
um corpus limitado. Mas jd podemos vislumbrar dois prolongamentos.
(1) Construido ¢ validado a partir de séries de entradas comuns,
o modelo pode ser usado para a leitura de entradas ditas “ideoldgi-
cas”, Tomemos 0 artigo DIEU (Deus). Furetitre diz da impossibili-
dade de ter um enunciado definidor sobre Deus. “Nao pode haver a
verdadeira definicéo porque & um ser infinito e incompreensivel.. .”
Mas ele define TERRE (Terra) segundo 0 modelo 2. aquele dos obje-
tos fabricados:
TERRE (Terra): globo que Deus criou para...
“Deus” especifica aqui o sujeito SE ¢ aparece, assim, definido, bem
antes de Voltaire, como artesao-criador
(2) Construido a partir das definigdes do Furetiére, 0 modelo
foi colocado & prova no Trévoux, mas continua pertinente até nos
trabalhos mais recentes. Se 0 Petit Robert ou o Grand Larousse de la
Langue Francaise preferem 0 emprego do participio passado ou pre-
sente ao da relativa, é facil mostrar que o funcionamento nao é por
isso alterado. Em um diciondério de consulta (¢ nado em uma termino-
logia), o lexicégrafo privilegia a definig&o de uso com relagdo 4 defi-
nicio de conceito ¢, portanto, define o FAISAN (faisao) como “um
passaro... apreciado por sua carne“ (= que se aprecia). define o
fruto (Figue (figo)) ou a drvore (Giroflier (goiveiro)) pelo modelo 1,
juntamente com as doengas, mas define a flor (giroflée (goiveiro))
ou o condimento (girofle (cravo)), ambos ‘empregados’ pelo homem,
58segundo o modelo 2. Seria interessante notar as diferengas entre as
definigdes que se cré terem necessariamente que ser referidas & bota-
nica (frutos) e¢ as outras (condimentos, ligados a alimentacdo), Mas
também, comparando a sucessio de definigoes, opor, no Grand La-
rousse de la Langue Francaise, no que se refere a FAGOTEUR (lenha-
dor), duas primeiras entradas, fitis a Furetitre (modelo 1) € a ter-
‘a, do modelo 2:
FAGOTEUR 3 — velho © pejorativo. Pessoa pouco recomenda-
vel (= que nao se pode recomendar).
© modelo 2 segue, a
im, sua diregdo; ele introduz, no enuncia-
do definidor, a traducdo da hierarquia dos sujeitos, repertoriando os
possiveis e¢ os caminhos do dizer no interior de uma sociedade
‘contida’,
Levando das palavras as coisas pela interiorizagao ideolégica de
saberes supostamente partilhados ou pelo registro das relagdes sociais
de forea, © lexicégrafo produz um trabalho que, através de um dis-
curso muitas vezes pereebido como transparente, diz seu assujeita-
mento cultural até pela forma sintética de sua escrita.
(Tradugdo: Suzy Lagazzi)
59