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Marques Rebelo - Caso de Mentira

O documento conta a história de Aluísio, uma criança que inventa uma história fantasiosa para explicar como quebrou um vaso chinês, escapando de uma punição do pai. O pai acha graça da imaginação da criança e perdoa o acidente. Anos depois, o irmão tenta usar o mesmo estratagema, mas não consegue.

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Marques Rebelo - Caso de Mentira

O documento conta a história de Aluísio, uma criança que inventa uma história fantasiosa para explicar como quebrou um vaso chinês, escapando de uma punição do pai. O pai acha graça da imaginação da criança e perdoa o acidente. Anos depois, o irmão tenta usar o mesmo estratagema, mas não consegue.

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CASO DE MENTIRA

Marques Rebelo
Morvamos ns em So Francisco Xavier, perto da estao,
numa boa casa de dois pavimentos, jardinzinho com repuxo na
frente e fresca varanda do lado onde nascia o sol, se bem que por
essa poca no andasse ainda meu pai muito certo da sua vida
para arrastar, sem alguma dificuldade, o luxo de residncia to
ampla e confortvel, mas temos que perdoar a ele, entre outras
fraquezas, esta da ostentao, j que a perfeio foi negada por
Deus alma das criaturas. Eis, seno quando, meu irmo Alusio,
o demnio em figura de gente, ao praticar certa travessura
arriscada na sala de visitas, alis sempre fechada a chave e que, a
no ser aos sbados para a limpeza, raras vezes se abria para
receber gente de fora, pois poucas eram as nossas amizades, caiu
e deitou por terra a elegante peanha de canela, que ficava por trs
do sof de palhinha.
Isso, convenhamos, pouca importncia teria se, sobre a
peanha, no estivesse, como em precioso nicho, o rico vaso da
China, um legtimo S-Tchun, que papai freqentemente gabava isto que a verdadeira arte, meninos! - e que mame admirava
por seu outro valor: ser das nicas coisas que escaparam
voracidade de tio Alarico, um desmiolado, quando foi feita a
partilha dos bens do seu av, que era baro e morrera na Europa.
De tarde, papai chegando, ainda nem tinha tirado o chapu de
lebre, que usava desabado, e j mame o punha ao corrente, com
meticulosa exposio, do desgraado acidente.
- Alusio!
A voz de meu pai foi to estranha, diversa e violenta, que
minha me, coitada, ficou branca, arrependida imediatamente de
ter nomeado, precipitada, o santo do milagre.
Alusio, que se eclipsara, mal praticado o ato, apareceu,
lembro-me como se fosse hoje, sem fazer barulho, de p no cho,
cabea baixa, com aquela cara que tia Alzira classificava de "cara
de boi sonso"; chegando perto de papai, levantou o rosto de

fuinha, encarou-o de revs, cravando nele os olhos pequenos e


irrequietos, o instante suficiente para sond-lo com profunda
sagacidade; abaixou novamente a cabea, o cabelo nunca
penteado, que mame ameaava mandar cortar escovinha, a
cair-lhe em farripas pela testa enrugada e suja.
Todos ns teramos a bom tremer pela sua sorte, que papai,
de ordinrio calmo, sossegado, muito brincalho, sabia ser
violentssimo quando para tal lhe davam fortes motivos, e na fria
de que se enchia era fugir-lhe da frente, pois at a pancada fazia
parte da sua maneira de ser severo. A preta Paulina, que ns
chamvamos de Lal, e que trouxera o nosso heri ao colo desde
o seu primeiro dia, chorava e rezava no corredor, espiando.
- Como foi isso? - meu pai o interpelou com o cenho
carregado.
Alusio era muito imaginativo e, sem titubear, inventou-lhe
ali mesmo no sei que histria fantstica em que entrava um
bandido, verdadeiramente o autor do lamentvel desastre, fugindo
logo aps pratic-lo, sem que ningum visse, pois ele, Alusio,
tinha sido a nica pessoa que presenciara to misteriosos fatos,
por acaso, acrescentava com razovel dose de modstia, quando
fora buscar na sala o lbum de retratos para folhear, o que,
inexplicvel dado o seu gnio incapaz de ficar parado um
segundo, era inegavelmente uma das suas maiores distraes.
- Nada pude fazer - continuou num tom diferente, porque um
medo, para que mentir?, um medo terrvel tinha-o invadido,
paralisando-lhe os movimentos, tirando-lhe a fala, tornando-o
mudo, incapaz de gritar por socorro, como seria natural, no
mesmo?
Meu pai ouvia de boca aberta, numa admirao indisfarvel
pela inteligncia fantasiosa do pequeno. Eu e mame estvamos
bestificados, Paulina, arregalando medonhamente os olhos, nem
podia acreditar.
Alusio descreveu ainda, com brilhante colorido e absoluta
segurana de nimo, o aspecto do sujeito: trazia compridas suas,
cor de fogo, frisava, com aquele sutil amor pelo detalhe, um dos
seus mais brilhantes caractersticos e uma meia mscara roxa nos
olhos; as botas vinham at os joelhos, parece que estava armado,

mas isso no garantia porque uma imensa capa preta envolvia-o


todo.
Depois, quando percebeu que poderia, sem receio, terminar,
fez um silncio brusco deixando cair os braos, que agitara
adequadamente no correr da sensacional narrativa.
Papai no se conteve - soltou uma tremenda gargalhada.
Sentou-se na cadeira mais prxima a se estorcer, chamou-o para
junto de si, passou-lhe a mo pela cabea: Voc ainda h de dar
coisa na vida! - sentenciou com legtimo orgulho paternal. Em
frases truncadas, sem continuidade, para o restrito e ainda
boquiaberto auditrio, traou-lhe um esplendoroso porvir, e
mandou-o passear.
Pegando na palavra paterna, durante umas tantas semanas,
Alusio ps os livros de banda e no parou em casa, soltando
papagaios no morro, jogando gude na rua, no meio de molecada.
Chegou dia, porm, em que tanta liberdade precisava ter um freio;
papai ralhou - vagabundo! - e mame passou o cadeado no porto
de ferro. O acidente que jamais foi esquecido, ficando
conhecido na famlia, e contado s visitas entre gargalhadas,
como o caso do bandido, ao invs do vaso da China, como seria
mais justo, dada a sua origem.
Mas, origens e transformaes, tudo so injustias neste
mundo, rtulos de ouro e mercadorias baratas, tanto assim que
falhei, redondamente, na primeira ocasio que tentei empregar o
mesmo mtodo do mano Alusio, hoje advogado, e se,
incontestavelmente bem colocado, com uma bonita carreira na sua
frente, nem por sombra tem aquele portentoso futuro que
profetizara meu pai, posto para sempre distante do nosso afeto,
bom pai, quando naquele ano, to doloroso para a minha gente,
chegavam os primeiros rigores do vero.
Havia uma moringa em nossa casa, da qual somente papai lhe
bebia a gua. Ficava dia e noite, cheia, na varandinha da copa,
sombra plcida da mangueira, para a gua ficar mais fresca e se
impregnar do leve sabor a barro que papai tanto prezava. Em
domingos de vero, se no era infalvel, freqentemente aparecia
Seu Sousa para palestrar algumas horas; mame achava-o
extremamente cacete, mas atendia-o com especiais finezas,

porque o marido, que ela colocava pouco abaixo das coisas


celestes, elogiava-o, com sincero ardor, como sendo um homem
de peso e medida! Seu Sousa no escondia, como poderia fazer
usando colarinhos mais altos, uma velha cicatriz no pescoo e era
bastante enjoado, no variando nunca de conversas questes de
terrenos para vender - e de graas: Voc tem gua gelada com
gelo, compadre?
Papai respondia logo:
- Gelo um perigo, seu burro! Mas tenho a minha bilha
fresquinha e gritava para dentro: - Onde est a moringa? Olhem
que o Sousa tambm quer.
Como se acabou de ver, este privilegiado senhor era o nico
mortal com quem meu pai dividia o precioso contedo da sua
moringa. Este clebre objeto, externamente, no correspondia em
absoluto a to sbitas distines, comunssima moringa, dessas
que se encontram nas menos sortidas das quitandas. Talvez
custasse poucos tostes mais, no duvido, por ser pintada, porque
l isso era ela, com casinhas e beija-flores, dentro de um oval que
era uma espcie de grinalda de florezinhas rseas e azuis. - No
mais uma banalssima moringa, como j se disse.
J que falamos de moringa, falemos tambm de peteca, o que
primeira vista parecendo extravagante, seno absurdo, tem
memorvel relao nos acontecimentos da minha existncia.
Fora uma das minhas grandes ambies, ideal de criana,
bem se nota, mas, pela vida adiante, no creio que, das
muitssimas que me vieram, todas tivessem sido maiores ou
melhores que a da ingnua posse duma peteca.
Numa loja de brinquedos meus olhos ansiosos tudo punham
de parte, trens e velocpedes, jogos e rema-remas, para busc-la
humilde e escondida. Como, quando ia cidade, voltava sempre
com as mos abanando e sofria horrivelmente no bonde o fato de
ter, mais uma vez, deixado na sua vitrine o objeto dos meus caros
sonhos, o ir cidade era motivo para mim de secretos
padecimentos, e, infelizmente, isso acontecia com certa
regularidade semanal, pois mame, no gostando de sair sozinha,
e como eu era o filho mais velho, preferia-me para acompanh-la.
Tem mais juzo! - falava. Talvez por isso mesmo fizesse o Alusio

tanta diabrura - no gostava de ir cidade. Preferia ficar em casa,


longe dos ralhos da me, a fazer o que lhe desse na cabea pedras
nos quintais vizinhos, estripulias no alto do muro, maldades at,
como no dia em que cortou, com o machado, o rabo da gata
malhada que Lal tinha criado com papinhas.
Uma tragdia os meus passeios, porque mame no chamava
de outra maneira as minhas sadas. Voltava sucumbido. noite
sonhava com ela, a peteca querida, via-a minha, pular no ar, ao
bater das palmadas estrepitosas, lept, lept, com as penas
vermelhas, lindssima peteca! Interessante que no ousava pedila aos meus pais, sabendo perfeitamente que pouco seria o seu
preo para que eles ma negassem. Idiota, podero dizer, ilgico,
podero argumentar, levando em conta a facilidade de pedir que
prpria das crianas. Nada me far mudar: pura verdade o que
conto e a mim quanto me basta.
Vivi assim, longo tempo, sonhando com petecas e
ambicionando-as nas montras, quando um belo dia, um dos
domingos do Seu Sousa - parece incrvel - ele me presenteou com
uma.
Nessa tarde excepcional eu compreendi o segredo difcil das
simpatias. Olhei de frente o velho amigo de meu pai e, se
continuei a ach-lo feio, impossvel esconder que achei-o
infinitamente agradvel. A grosseira cicatriz do pescoo, longe de
qualquer piedade pela m aparncia que causava, infundia-me,
pelo seu dono, uma notvel admirao, tentando lig-la
heroicamente a um episdio desconhecido da sua vida, um ataque
inopinado que sofrera, de inimigos covardes, ficando aquele
ferimento por lembrana, amarga e sempre viva, da sua coragem
reagindo. Cheguei a rir das suas eternas piadas, corria a buscar a
moringa quando era hora, ficava perto dele, ouvindo-o conversar
(soube a ser proprietrio de no sei quantos terrenos em
Botafogo), esperava por ele no porto, levava-o at o bonde
quando se ia, largos passos, que eu mal acompanhava, o chapuchile de abas para cima.
Pois da moringa e da peteca nasceu uma desgraa: minha
mo inexperiente impeliu a ltima contra a primeira e esta ficou
em cacos. Ningum se alarmou: "moringas h milhes por este

mundo, iguais como as formigas" - serenou-me minha me, que


fazia comparaes engraadas.
Tnhamos j acendido a luz quando papai chegou, atrasado,
para jantar, e como fizera demasiado calor durante o dia, entrando
suado, com sede, gritou logo:
- Vejam a minha moringa!
Contaram que se quebrara e eu fora o culpado por andar
jogando peteca dentro de casa. Chamou-me. Dirigi-me a ele
serenamente e tratei de inventar a aventura de um gato que
perseguindo um rato...
Eu era, porm, pouco imaginativo e at a meio da minha
histria, trivialssima, no conseguira encaixar nenhuma
passagem de extraordinrio realce. Verdade seja dita, no passei
alm do meio: papai deu-me um tabefe na boca:
- Mentiroso!
Puxou-me pelas orelhas, levou-me para o quarto, sem jantar,
disse-me, com dureza, "que um homem que mentia no era um
homem", ps-me de castigo uma semana, preso em casa, sem pr
os ps fora, na varanda que fosse. Alusio, insensvel minha
priso, folgava, no parecendo sentir a falta do companheiro. Era
de v-la a facilidade indiferente com que supria, nos seus
brinquedos, a minha pessoa ausente. Da janela do meu quarto,
enquanto descansava as mos doloridas de copiar, com boa letra e
sem nenhum erro, as trinta pginas da minha geografia, que papai,
pela manh, antes de sair, inflexivelmente, me marcava, ficava
vendo-o correr, subir s rvores, com desembarao e agilidade. E
invejava-o surdamente. Tinha dez anos.

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