Percepção e conhecimento
Uma das questões centrais da filosofia é: o que é o conhecimento e como se obtém?
John Locke e os seus sucessores na tradição empirista defenderam que o fundamento do
conhecimento contingente sobre o mundo se encontra na experiência sensorial ― o uso
dos cinco sentidos, ajudados quando necessário por telescópios e outros instrumentos
semelhantes. Russell está de acordo com isto. Mas o empirismo enfrenta o desafio dos
argumentos cépticos que visam mostrar que as nossas pretensões ao conhecimento
podem com frequência ― talvez sempre ― ser injustificadas. Há várias razões para
isto. Às vezes cometemos erros quando percepcionamos ou raciocinamos, às vezes
sonhamos sem saber que estamos a sonhar, às vezes somos enganados devido aos
efeitos da febre ou do álcool. Quando afirmamos conhecer algo, como podemos estar
certos de que esta afirmação não é posta em causa de nenhum destes modos?
Em Os Problemas da Filosofia (PF) em 1912 Russell fez a sua primeira tentativa
sistemática de tratar estas questões. 'Há algum conhecimento', pergunta, 'que seja tão
certo que nenhum homem razoável possa dele duvidar?' Ele responde afirmativamente,
mas a certeza, como se constata, está longe da certeza absoluta da prova.
Com base em observações simples acerca da experiência perceptiva ― o facto de que,
digamos, uma mesa parece ter diferentes cores, formas e texturas, dependendo de
variações no observador ou nas condições em que é percepcionada ― podemos ver que
há uma distinção a fazer entre as aparências das coisas e aquilo que elas são em si
mesmas. Como é que podemos ter a certeza de que a aparência representa fielmente a
realidade que supomos encontrar-se por trás dela? Pode-se mesmo perguntar, como
sugerem os argumentos cépticos sobre sonhos e ilusões, se podemos ter a certeza de que
existem de facto coisas reais 'por detrás' das nossas experiências sensoriais.
Para lidar com estas questões, Russell introduz o termo 'dado dos sentidos' para designar
as coisas que são imediatamente conhecidas na sensação: ocorrências particulares na
consciência perceptiva de cores, sons, gostos, cheiros e texturas, correspondendo cada
classe de dados a um dos cinco sentidos. Os dados dos sentidos distinguem-se dos actos
de os sentir: eles são aquilo de que temos imediatamente consciência nos actos de sentir.
Mas eles têm também, como as considerações do parágrafo anterior mostram, de ser
distinguidos das coisas no mundo fora de nós com que os supomos associados. A
questão crucial portanto é: qual a relação dos dados dos sentidos com os objectos
físicos?
Russell responde ao céptico que questiona o nosso direito a alegar que conhecemos o
que se encontra para além do véu dos dados dos sentidos ou até a pensar que os objectos
físicos existem de todo que, embora os argumentos cépticos sejam, estritamente
falando, irrefutáveis, não há contudo 'a menor razão' para os supor verdadeiros (PF
44[1]). A sua estratégia é coligir considerações persuasivas para suportar o seu ponto de
vista. Primeiro, podemos pegar em que as nossas experiências imediatas do dado dos
sentidos têm uma 'certeza primitiva'. Quando temos experiência de dados dos sentidos
que vemos naturalmente como estando associados com, digamos, uma mesa,
reconhecemos que não dissemos tudo o que há a dizer sobre a mesa. Pensamos, por
exemplo, que a mesa continua a existir quando não estamos na sala. Podemos comprá-
la, tapá-la com um pano, movê-la de um lado para o outro. Requeremos que
observadores diferentes sejam capazes de percepcionar a mesma mesa. Tudo isto sugere
que a mesa é algo além e acima dos dados dos sentidos que nos aparecem. Mas, se não
existisse qualquer mesa no mundo teríamos de formular uma hipótese complicada
acerca de existirem tantas mesas-aparentes diferentes quantos os observadores
existentes e explicar como, apesar disso, falamos todos como se estivéssemos a
percepcionar o mesmo objecto.
Mas repara que do ponto de vista céptico, como Russell indica, nem devemos sequer
pensar que existem outros observadores. Afinal de contas, se não podemos refutar o
cepticismo acerca dos objectos, como é que refutamos o cepticismo acerca da existência
de outras mentes?
Russell ultrapassa esta dificuldade aceitando uma versão daquilo a que se chama 'o
argumento da melhor explicação'. É certamente muito mais simples e mais poderoso,
argumenta ele, adoptar a hipótese de que, primeiro, há realmente objectos físicos que
existem independentemente da nossa experiência sensorial e, segundo, que eles causam
as nossas percepções e, portanto, lhes 'correspondem' de uma forma fiável. Seguindo
Hume, Russell vê a crença nesta hipótese como 'instintiva'.
A este, argumenta ele, podemos juntar outro género de conhecimento, a saber, o
conhecimento a priori das verdades da lógica e das matemáticas puras (e até talvez das
proposições fundamentais da ética). Tal conhecimento é totalmente independente da
experiência e depende completamente da auto-evidência das verdades conhecidas, como
'1 + 1 = 2' e 'A = A'. Quando o conhecimento perceptivo e o conhecimento a priori são
unidos permitem-nos adquirir conhecimento geral do mundo para além da nossa
experiência imediata, porque o primeiro género de conhecimento dá-nos os dados
empíricos e o segundo género permite-nos extrair deles inferências.
Cada um destes dois géneros de conhecimento pode ser ainda dividido em subgéneros,
descritos por Russell respectivamente como conhecimento imediato e conhecimento
derivado. Ele chama 'contacto' ao conhecimento imediato de coisas. Os objectos do
contacto são eles próprios de duas espécies: particulares, isto é, dados dos sentidos
individuais e ― talvez ― nós próprios; e universais. Os universais são de vários tipos.
Eles incluem qualidades sensíveis como vermelhidão e lisura, relações espaciais e
temporais como 'à direita de' e 'antes' e certas abstracções lógicas.
Ao conhecimento derivado de coisas Russell chama 'conhecimento por descrição', que é
conhecimento geral de factos tornado possível pela combinação de e a inferência de
aquilo com que temos contacto. O nosso conhecimento de que o Everest é a montanha
mais alta do mundo é um exemplo de conhecimento descritivo.
Ao conhecimento imediato de verdades Russell chama 'conhecimento intuitivo' e
descreve as verdades que são assim conhecidas como auto-evidentes. Estas são
proposições simplesmente 'luminosamente evidentes e não podem ser deduzidas de
nada mais evidente'. Por exemplo, simplesmente vemos que '1 + 1 = 2' é verdade. Entre
os itens do conhecimento intuitivo encontram-se os relatos da experiência imediata; se
afirmo simplesmente de que dados dos sentidos estou agora consciente, não posso (à
excepção de lapsos verbais triviais) estar enganado.
O conhecimento derivado de verdades consiste em tudo o que possa ser inferido de
verdades auto-evidentes por intermédio de princípios de dedução auto-evidentes.
Apesar da aparência de rigor que a nossa posse de conhecimento a priori introduz, diz
Russell, temos de aceitar que o nosso conhecimento quotidiano geral é apenas tão bom
quanto o seu fundamento na justificação pela 'melhor explicação' e nos instintos que o
tornam plausível. O conhecimento comum, portanto, equivale na melhor das hipóteses a
'opinião mais ou menos provável'. Mas quando observamos que as nossas opiniões
prováveis formam um sistema que é coerente e se suporta mutuamente ― quanto mais
coerente e estável for o sistema, maior a probabilidade das opiniões que o formam ―
vemos por que razão podemos confiar nelas.
Uma característica importante da teoria de Russell diz respeito ao espaço e, em
particular, à distinção entre o espaço público que tudo contém, assumido pela ciência, e
os espaços privados em que os dados dos sentidos dos observadores individuais
existem. O espaço privado é construído a partir de várias experiências visuais, tácteis e
outras que um observador coordena numa matriz com ele mesmo no centro. Mas porque
não temos contacto com o espaço público da ciência, a sua existência e natureza é
inteiramente uma questão de inferência.
Esta é a primeira versão de uma teoria do conhecimento e da percepção de Russell, tal
como é exposta nos PF. No primeiro encontro ficamos com uma refrescante sensação
de senso comum, mas está longe de não ser problemática. Por exemplo, Russell fala de
conhecimento 'primitivo' e descreve-o como intuitivo, mas não diz em que consiste esse
conhecimento, para além de dizer que não exige o suporte de nada mais auto-evidente
do que ele próprio. Mas esta definição é pouco adequada e ainda é mais obscurecida
quando ele acrescenta que há dois géneros de auto-evidência, dos quais apenas um é
básico. Faz esta distinção sentido? Em todo o caso o que significa 'auto-evidência'? Ele
também não tem em conta a possibilidade de duas proposições se poderem contradizer
mutuamente apesar de parecerem auto-evidentes quando consideradas separadamente.
Se isto acontecesse, qual escolher e com base em que princípios de auto-evidência
adicionais?
Outra crítica dirigida ao ponto de vista de Russell é a de que faz uma assunção
importante mas questionável acerca da natureza básica da experiência sensorial. É que
os dados dos sentidos, enquanto sensoriais mínimos como cores particulares, cheiros ou
sons, são simplesmente dados na experiência e são os seus elementos mais primitivos.
Mas a experiência sensorial não é de todo desta forma 'diminuta' e imediata. É antes
uma experiência rica e complexa de casas, árvores, pessoas, gatos e nuvens ― é
fenomenologicamente 'cheia' e chega-se apenas aos dados dos sentidos por um
complicado processo de esvaziamento da experiência perceptiva comum de tudo o que
normalmente significa para nós. Assim, não vemos um rectângulo e inferimos que é
uma mesa; vemos uma mesa e, quando nos concentramos na sua forma, vemos que é
um rectângulo.
Esta crítica é, até onde alcança, de certeza correcta, mas há formas de a ter em conta que
nos permitem ainda assim descrever os aspectos sensoriais da experiência
independentemente da carga usual de crenças e teorias que carrega. Uma vez que o
objectivo é tentar justificar a posse daquelas crenças, mostrando que a experiência
perceptiva nos dá o direito a tê-las, precisamos obviamente de uma descrição da
experiência perceptiva considerada puramente como tal, de modo a podermos avaliar a
sua adequação para a tarefa. O objectivo de Russell ao falar de dados dos sentidos é
fazer precisamente isso. Além disso, Russell reconheceu que os dados dos sentidos não
são o que é imediatamente dado na percepção; em escritos da década após os PF ele
refere repetidamente que as especificações dos dados dos sentidos são obtidas em
último lugar na análise e não primeiro na experiência.
Outra crítica é que Russell assume que a experiência imediata pode ser expressa em
proposições que, apesar de descreverem apenas o que é subjectivamente 'dado', podem
ser usadas como base para o conhecimento do mundo. Mas como pode o que parece
aplicar-se apenas à experiência privada e não conter qualquer referência ao que está
para além da experiência ser a base para a teoria do conhecimento? Não serve de nada
dizer que Russell também admite conhecimento a priori dos princípios lógicos que
permitem fazer inferências a partir destas proposições, porque não haveria qualquer
motivação para as fazer a menos que, além dele, o sujeito possua algumas crenças
empíricas gerais para servir como premissas maiores em tais inferências e algumas
hipóteses empíricas que as inferências efectivamente testam ou suportam. Mas quer
umas quer outras não estão disponíveis a um experimentador dotado apenas, como
Russell o apresenta, com dados dos sentidos e verdades auto-evidentes da lógica.
Este problema era importante para o próprio Russell e muito mais tarde (em Human
Knowledge) tratou-o aceitando uma versão de algo que anteriormente tinha rejeitado na
filosofia de Kant, a saber, que têm de existir coisas (diferentes das verdades da lógica)
que conhecemos a priori para que o conhecimento seja de todo possível. Este ponto
altamente importante é discutido no lugar apropriado mais a baixo.
Outro problema avançado pelos críticos é que as considerações em que Russell se
baseia para mostrar que há uma distinção aparência-realidade, como ele as enuncia, não
persuadem. O facto de que um objecto parecer de uma cor ou forma para um observador
e de outra cor ou forma para outro observador, ou de diferentes cores ou formas para o
mesmo observador sob diferentes condições ― por exemplo, consoante o veja à luz do
dia ou no escuro, ou de um ponto de vista ou outro ― diz-nos que a questão de como os
objectos aparecem à percepção é uma questão complicada, mas por si só não nos diz
que estamos a perceber algo diferente do objecto em questão.
Esta crítica é válida, mas acontece que, como mostram trabalhos mais recentes na
filosofia da percepção, há outras formas perfeitamente adequadas de traçar uma
distinção aparência-realidade; assim, os argumentos de Russell podem aqui ser vistos ―
como ele próprio os via ― como heurísticos, isto é, como ilustrando apenas o ponto a
fim de começar a discussão.
Mas esta crítica sugere uma outra mais importante. É que Russell, como todos os seus
predecessores desde Descartes e como alguns dos seus sucessores como H. H. Price e
A. J. Ayer, aceitava uma suposição extremamente importante de Descartes. Esta
suposição é que o ponto de partida correcto para uma investigação sobre o
conhecimento é a experiência individual. O indivíduo começa com os dados privados da
consciência e descobre razões entre eles para apoiar as suas inferências para ― ou, de
forma mais geral, crenças sobre ― um mundo fora da sua cabeça. Uma das maiores
mudanças na filosofia do século XX foi a rejeição desta suposição cartesiana. Entre as
sérias dificuldades desta suposição encontra-se que se a aceitarmos o cepticismo torna-
se impossível de ignorar ou de refutar. Outra é que com uma base tão pequena não
estamos simplesmente autorizados a pensar no solipsístico pretenso conhecedor,
sozinho dentro da sua cabeça, como sendo capaz de nomear e pensar sobre as suas
sensações e experiências e ainda menos como sendo capaz de raciocinar a partir delas
para um mundo exterior. Ambos os pensamentos nos empurram firmemente para o
pensamento de que o lugar adequado para começar a epistemologia é, de certo modo, no
domínio público.
Tradução de Álvaro Nunes
[1] Da tradução portuguesa publicada pela editora Arménio Amado.
A. C. Grayling, Russell, Oxford University Press, Oxford, 1996, pp. 39-44.