Auto da Compadecida (Adriano Suassuna) O ESTILO DO AUTOR Entende-se por estilo do Autor a modalidade de manipulao criadora atravs da qual
o escritor cria sua obra. O estilo do Autor, portanto, a linguagem atravs da qual o texto alcana sua forma final e definitiva. Quando se faz a interpretao de uma pea teatral, o estilo do Autor deve ser analisado dentro de uma perspectiva totalmente diferente daquela que adotaramos para a interpretao do romance, do conto, da novela, do poemas da Literatura, enfim. Isso acontece porque a concepo do texto teatral baseia-se na finalidade do mesmo: a representao por atores. J o texto literrio concebido para ser lido e meditado pelo leitor, assumindo, portanto, outra feio. Feita essa observao, vamos reparar que Ariano Suassuna procura definir a forma final de seu texto atravs dos seguintes elementos: 1- O Autor no prope, nas indicaes que servem de base para a representao, nenhuma atitude de linguagem oral que seja regionalista. 2- O Autor busca encontrar uma expresso uniforme para todas a personagens, na presuno de que a diferena entre os atores estabelea a diferena nos chamados registros da fala. 3- A composio da linguagem a mais prxima possvel da oralizao, isto, , o texto serve de caminho para uma via oral de expresso. 4- Os nicos registros diferentes correm, com indicados no prprio texto, por conta: a) do Bispo, "personagem medocre, profundamente enfatuado" (p.72), como se nota nesta passagem: "Deixemos isso, passons, como dizem os franceses" (p.74). b) de Manuel (Jesus Cristo) e da Compadecida (Nossa Senhora), figuras desataviadas, embora divinas, porque so concebidas como encarnadas em pessoas comuns, como o prprio Joo Grilo: "MANUEL: Foi isso mesmo, Joo. Esse um dos meus nomes, mas voc pode me chamar de Jesus, de Senhor, de Deus... Ele / isto , o Encourado, o Diabo / `gosta de me chamar Manuel ou Emanuel, porque pensa pode persuadir de que sou somente homem. Mas voc, se quiser, pode me chamar de Jesus". (p.147) A COMPADECIDA: No, Joo, por que iria eu me zangar? Aquele o versinho que Canrio Pardo escreveu para mim e que eu agradeo. No deixa de ser uma orao, um invocao. Tem umas graas, mas isso at a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei. Quem gosta de tristeza o diabo (p.171).
5- Quatro denominaes de personagens referem-se a determinados condicionamentos regionais: Joo Grilo, Severino do Aracaju, o Encourado (o Diabo) e Chic. Quanto ao Encourado, o Autor d a seguinte explicao: Este o diabo, que, segundo uma crena do serto do Nordeste, um homem muito moreno, que se veste como um vaqueiro. (p.140) 6- Na estrutura da pea, isto , na forma final do texto que se revela o estilo do Autor, concebido com o a linguagem atravs da qual ele cria e comunica sua mensagem fundamental. A ESTRUTURA DO AUTO DA COMPADECIDA O estudo do Auto da Compadecida pode ser feito de dois ngulos que se completam: a) a tcnica de composio teatral b) a estrutura propriamente dita, ou a forma final do texto. 1- TCNICA DE COMPOSIO. Aqui faremos as seguintes observaes: A- A pea no se apresenta dividida em atos. Como o autor d plena liberdade ao encenador e ao diretor para definirem o estilo da representao, convm anotar que so por ele sugeridos trs atos, cuja diviso ou no por conta dos responsveis pela encenao: Aqui o espetculo pode ser interrompido, a critrio do ensaiador, marcando-se o fim do primeiro ato. E pode-se continu-lo, com a entrada do Palhao (p.71). Se se montar a pea em trs atos ou houver mudana de cenrio, comear a aqui a cena do Julgamento, com o pano abrindo e os mortos despertando(p.137). B- Do ponto de vista tcnico, o Autor concebe a pea como uma representao dentro de outra representao. /.../ o Autor gostaria de deixar claro que seu teatro mais aproximado dos espetculos de circo e da tradio popular do que do teatro moderno (p.22). A representao dentro da representao caracteriza-se: a) pela apresentao do Auto da Compadecida como parte de um espetculo circense, espetculo esse simbolizado no Palhao, que faz a apresentao da pea e dos atores. b) pela apresentao do Auto propriamente dito, com sua personagens. Como a representao ocorre num circo, o Palhao marca as situaes tcnicas e estabelece a ligao entre o circo e a representao no circo.
C- Ariano Suassuna d plena liberdade ao diretor, no que respeita definio do cenrio, que poder "apresentar uma entrada de igreja direita, com um apequena balaustrada ao funda /../. Mas tudo isso fica a critrio do ensaiador e do cengrafo, que podem montar a pea com dois cenrio /.../" (p.21). D- Percebe-se, portanto, que a tcnica de composio da pea segue uma linha simplista, solicitada pelo prprio Autor, o que faz residir a importncia da mesma apenas na proposio dos dilogos e no decurso da ao conseqente. 2- A ESTRUTURA propriamente dita, isto , a forma final do texto o elemento fundamental par a compreenso da pea. A Personagens. A pea apresenta quinze personagens de cena e uma personagem de ligao e comando do espetculo. PRINCIPAL: Joo Grilo OUTRAS: Chic, Padre Joo, Sacristo, Padeiro, Mulher do Padeiro, Bispo, Cangaceiro, o Encourado, Manuel, A Compadecida, Antnio Morais, Frade, Severino do Aracaju, Demnio. LIGAO: Palhao As personagens so colocadas em primeiro lugar na anlise da estrutura da pea porque ela assumem uma posio simblica, e desse simbolismo que deriva a importncia do texto. Joo Grilo a personagem principal porque atua como criador de tosa as situaes da pea. As demais personagens compem o quadro de cada situao. O Palhao, representando o Autor, liga o circo representao do Auto da Compadecida. Organizado o quadro desses personagens, vejamos agora as caractersticas de cada uma delas. a) JOO GRILO. A dimenso de sua importncia surge logo no incio da pea quando as personagens so apresentadas ao pblico pelo Palhao. Apenas duas personagens se dirigem ao pblico. Uma, a chamado do Palhao, a atriz que vai representar a Compadecida, e Joo Grilo. "PALHAO: Auto da Compadecia! Umas histria altamente moral e um apelo misericrdia. JOO GRILO: Ele diz " misericrdia", porque sabe que, se fssemos julgados pela justia, toda a nao seria condenada" (p.24). Mas a importncia inequvoca de Joo Grilo na estrutura da pea define-se a partir do fato de que as situaes do Auto da Compadecida so todas desenvolvidas por essa personagem:
1) a beno do cachorro, e o expediente utilizado: o Major Antnio Morais. JOO GRILO: "Era o nico jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do major que se pla. No viu a diferena? Antes era " Que maluquice, que besteira!", agora "No veja mal nenhum em se abenoar as criatura de Deus!" (p.33). 2) a loucura do Padre Joo, como justifica para o Major Antnio Morais. JOO GRILO: /.../ " que eu queria avisar para Vossa Senhoria no ficar espantado: o padre est meio doido".(p.40). "No sei, a mania dele agora. Benzer tudo e chama a gente de cachorro"(p.41). 3) o testamento do cachorro. JOO GRILO: "Esse era um cachorro inteligente. Antes de morrer, olhava para a torre da igreja toda vez que o sino batia. Nesses ltimos tempos, j doente para morrer, botava uns olhos bem compridos para os lados daqui, latindo na maior tristeza. At que meu patro entendeu, coma a minha patroa, claro, que ele queria ser abenoada e morrer como cristo. Mas nem assim ele sossegou. Foi preciso que o patro prometesse que vinha encomendar a beno e que, no caso de ele morrer, teria um enterro em latim. Que em troca do enterro acrescentaria no testamento dele dez contos de ris para o padre e trs para o sacristo" (p.63-64). 4) o gato que "descome dinheiro". JOO GRILO: "Pois vou vender a ela, para tomar lugar do cachorro, um gato maravilhoso, eu descome dinheiro" (p.38). "Ento tiro. (Passa a mo no traseiro do gato e tira uma prata de cinco tostes). Esta a, cinco tostes que o gato lhe d de presente"(p.96). 5) a gaita que fecha o corpo e ressuscita. JOO GRILO: "Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Ccero, pouco antes de morrer" (p.122). 6) a "visita" ao Padre Ccero. JOO GRILO: "Seu cabra lhe d um tiro de rifle, voc vai visit-lo. Ento eu toco na gaita e voc volta" (p.127). Essa situao decorre da anterior, mas pode ser considerada com o independente. 7) o julgamento pelo Diabo (o Encourado). JOO GRILO: "Sai da, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida!"(p.144). 8) o apelo misericrdia ( Virgem Maria). JOO GRILO: "Ah, isso comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem ver?" (p.169). Observemos agora a distribuio das personagens nas situaes acima definidas, situaes essas todas elas deflagradas por Joo Grilo, como j foi observado: SITUAO/ PERSONAGENS/ CONTEDO DA SITUAO 1 Joo Grilo Chic Padre Joo: a bno do cachorro da mulher do padeiro.Expediente de Joo Grilo: o cachorro pertence ao Major Antnio Morais.
2 Joo Grilo Chic Antnio Morais Padre: chega o Major Antnio Morais.Expediente de Joo Grilo: o Padre Joo est maluco, benze a todos e chama todo mundo de cachorro. 3 Joo Grilo Padre MulherPadeiro Chic Sacristo Bispo: o testamento do cachorro morto.Expediente de Joo Grilo: o cachorro morto, encomendado em latim e tudo mais, deixa no seu testamento dinheiro para o Sacristo, para o Padre e para o Bispo.Fonte do dinheiro: o Padeiro e sua mulher. 4 Joo Grilo Chic Mulher: a mulher do Padeiro lamenta a perda de seu cachorro.Expediente de Joo Grilo: arranja-lhe um gato que descome dinheiro. Vende-o e afaz seu lucro. 5 Joo Grilo Chic Bispo Padre Padeiro Frade Sacristo Mulher Severino (do Aracaju) Cangaceiro: o assalto do cangaceiro Severino do Aracaju.Expediente de Joo Grilo: a gaita que fecha o corpo e ressuscita. A bexiga cheia de sangue.Evento especial: todas as personagens morrem, inclusive Joo Grilo. Salva-se Chic 6 Palhao Joo Grilo Chic Todas as demais personagens Demnio O Encourado Manuel: ressurreio no picadeiro do circo. O Julgamento pelo Demnio, pelo Encourado e por Manuel (Cristo).Expediente de Joo Grilo: forar o julgamento, ouvindo os pecadores. 7 Todas as personagens A Compadecida: condenao dos pecadores, Expediente de Joo Grilo: apelo misericrdia da Virgem Maria. Pela composio do quadro acima, nota-se que em todas as seqncias a presena de Joo Grilo fundamental. Da a afirmao de que a pea gira em torno dessa personagem, do ponto de vista estrutural. Que Joo Grilo? Joo Grilo uma figura tpica do nordestino sabido, analfabeto e amarelo. Habituado a sobreviver e a viver a partir e expedientes, trabalha na padaria, vive em desconforto e a misria sua companheira. Sua f nas artimanhas que cria, reflete, no fundo, uma forma de crena arraigada na proteo que recebe, embora sem saber, da Compadecida. essa convico que o salva. E ele recebe nova oportunidade de Manuel (Cristo), retornando- vida e companhia de Chic. uma oportunidade inusitada de ressurreio e retorno existncia. Caber a ele provar que essa oportunidade foi ou no bem aproveitada. b) CHIC. Companheiro constante de Joo Grilo e, especialmente, seu dilogo. Chic envolve-se nos expedientes de Joo Grilo e seu parceiro, mais por solidariedade do que por convico ntima. Mas um amigo leal. c) PADRE JOO, O BISPO e o SACRISTO. Essas personagens, embora de atuao diversa, esto concentradas em torno de simonia e da cobia, relacionada com a situao contida no testamento do cachorro.
d) ANTNIO MORAIS. a autoridade decorrente do poder econmico, resqucio do coronelismo nordestino, a quem se curvam a poltica, os sacerdotes e a gente mida. e) PADEIRO e sua MULHER. Encarnam, um lado, a explorao do homem pelo homem e, de outro, o adultrio. f) SEVERINO DO ARACAJU e o CANGACEIRO. Representam a crueldade sdica, e desempenham um papel importante na seqncia de nmero cinco, porque nessa seqncia matam e so mortos. Com isso propicia-se a ressurreio e o julgamento. g) O ENCOURADO e o DEMNIO. Julgam, aguardando seu benefcio, isto , o aumento da clientela do inferno. importante verificar que representam, de alguma forma, um instrumento da Justia, encarnado em Manuel (O Cristo). h) MANUEL. o Cristo negro, justo e onisciente, encarnao do verbo e da lei. Atua como julgador final dos da prudncia mundana, do preconceito, do falso testemunho, da velhacaria, da arrogncia, da simonia, da preguia. Personagem a personagem tm seu pecado definido e analisado, com sabedoria e com prudncia. i) A COMPADECIDA. Nossa Senhora, invocada por Joo Grilo, o ser que lhe dar a Segunda oportunidade da vida. Funciona efetivamente como medianeira, plena de misericrdia, intervindo a favor de quem nela cr, Joo Grilo. B- Estrato metafsico. Pela atuao das personagens, pelo sentido global que encima a pea, percebemos claramente que nela existe uma proposio metafsica, vinculada Igreja Catlica e idia da salvao. Ao lado da significao global do texto, como estrutura, o Palhao define essa proposio claramente. O Palhao realiza, nessa pea, o papel do Corifeu, no teatro clssico, e sua interveno corresponde parbase da comdia clssica trecho fora do enredo dramtico em que as idias e as intenes ficam claramente expressas: PALHAO: "Ao escreve esta pea, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhao, para indicar que sabe, mais do que ningum, que sua lama um velho catre, cheio de insensatez e de solrcia. Ele no tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou faz-lo, baseado no esprito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, um povo e tem direito a certas intimidades" (p.23-24). "/.../ Espero que todos os presente aproveitem os ensinamentos desta pea e reformem suas vidas, se bem que eu tenho certeza de que todos os que esto aqui so uns verdadeiros santos, praticantes da virtude, do amor a Deus e ao prximo, sem maldade, sem mesquinhez, incapazes de julgar e de falar mal dos outros, generosos, sem avareza, timos patres, excelentes empregados, sbrios, castos e pacientes" (p.137). A inteno moral, ou moralidade da pea, fica muito clara, desde que se torne claro, tambm, que essa inteno vincula-se a uma linha de pensamento religioso, e da Igreja Catlica. PROBLEMTICA DA OBRA
Pela estrutura da pea, pudemos notar que: 1- sua inteno clara e expressa de natureza moral, e de moral catlica; 2- os componentes estruturais do texto revelam personagens que simbolizam pecados (maiores ou menores), que recebem o direito ao julgamento, que gozam do livre-arbtrio e que so ou no condenados. Percebe-se, de outro lado, que a preocupao maior reside em compor um auto de moralidade, ao estilo quinhentista portugus (modelo Gil Vicente), mas seguindo alinha do teatro dirigido aos catecmenos, do Padre Anchieta. Para tanto, a pea se embasa em determinadas tradies localistas e regionalistas do folclore, com vistas sua sublimao como instrumento pitoresco de comunicao com o pblico (que, no caso, seriam os catecmenos). Com isso, nota-se que a realidade regional brasileira, especificamente a realidade nordestina, est presente atravs de seus instrumentos culturais mais significativos, as crenas e a literatura de cordel. O autor no pretende analisar essa realidade brasileira, mas a partir dela moralizar os homens, isto , dinamizar nas usas conscincias a noo do dever humano e da responsabilidade de cada um em relao a seus semelhantes e em relao a Deus, onisciente e onipresente. CONCLUSO SNTESE Como proposio esttica, o Auto da Compadecida procura corporificar as seguintes noes: 1- a criao artstica, o teatro em particular, devem levar o povo, a cultura desse povo a ele mesmo. Da o circo, seu picadeiro e a representao dentro da representao. 2- menos do que essa realidade regional e cultural de um povo, o que importa criar um projeto que defina idias e concepes universais (as da Igreja, no caso) com o fim de consciencializar o pblico. Por esse motivo a realidade regional nordestina , no caso, instrumento de uma idia e no fim em si nessa; 3- criar um texto teatral , antes de tudo, cri-lo para uma encenao, da a absoluta liberdade que o Autor da para qualquer modalidade de encenao. O prprio texto final da pea, como editado, o resultado da experincia colhida a representao pblica. NOTA: As pginas indicadas se refere ao Auto da Compadecida, 10 ed., Agir Editora, 1973.