0% acharam este documento útil (0 voto)
146 visualizações21 páginas

Nietzsche, A Honestidade e o

Este artigo analisa o projeto não concluído de Nietzsche para um livro chamado "O Novo Iluminismo", explorando o significado deste projeto e a relação de Nietzsche com o movimento Iluminista. Discute como a honestidade foi central para o pensamento de Nietzsche desde seus elogios iniciais ao Iluminismo até sua posterior crítica, à medida que reconfigurou os conceitos de "razão" e "verdade".
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
146 visualizações21 páginas

Nietzsche, A Honestidade e o

Este artigo analisa o projeto não concluído de Nietzsche para um livro chamado "O Novo Iluminismo", explorando o significado deste projeto e a relação de Nietzsche com o movimento Iluminista. Discute como a honestidade foi central para o pensamento de Nietzsche desde seus elogios iniciais ao Iluminismo até sua posterior crítica, à medida que reconfigurou os conceitos de "razão" e "verdade".
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 21

ARTIGO ORIGINAL DOI

PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011


247
NIETZSCHE, A HONESTIDADE E O
PROJETO NATIMORTO DO NOVO
AUFKLRUNG
1

Danilo Bilate (UFRJ)
2

[email protected]
Resumo: Analisaremos o sentido implcito no projeto nietzschiano do livro
que teria como ttulo O novo Aufklrung, esboado nos pstumos e nunca
publicado, como sintoma da importante e enigmtica relao de seu pensa-
mento com os conceitos de razo e de verdade. Nesse intento, ser
questionada a tentativa de diviso cronolgica da obra de Nietzsche, na me-
dida em que se mostrar que a honestidade a marca central de seu
pensamento desde os elogios abertos aoAufklrung feitos na dcada de 1870
at a crtica e a completa omisso do nome do movimento cultural das Luzes
nos escritos da dcada de 1880, que acompanham a reconceitualizao da
razo e da verdade realizada pela perspectiva axiolgica da genealogia
presente no pensamento de Nietzsche apenas no final de sua vida produtiva.
Palavras-chave: Aufklrung; Razo; Verdade; Honestidade.

Durante o perodo da primavera de 1884 at o incio de
1885, Nietzsche esboou vrias vezes um projeto de livro
que teria como ttulo Die neue Aufklrung
3
ou O novo Ilumi-

1
Recebido: 30-06-2010/Aprovado em 04-02-2011/Publicado on-line: 30-12-2011.
2
Danilo Bilate Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Brasil.
3
O ttulo pode ser encontrado, por exemplo, no fragmento pstumo 25[296] da primavera de
1884. Alm dele, conferir o fragmento pstumo 26[293] do vero-outono de 1884, que apresenta
como esboo de subttulo: Uma propedutica Filosofia do eterno retorno. Ver tambm o
fragmento pstumo 26[298] do vero-outono de 1884, que tem como subttulo: Um prefcio e
um voto a favor da filosofia do eterno retorno e algumas anotaes que parecem ser de ttulos
para captulos, donde se destaca: Alm do bem e do mal, o que pode significar que o projeto do
Cont.


Danilo Bilate
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011 248
nismo.
4
Projeto intensamente zelado nesta poca por seu au-
tor, nunca foi levado a cabo e despareceu dos escritos
nietzschianos no publicados em menos de um ano, nunca
tendo sido sequer mencionado nos textos selecionados para
publicao. Sabe-se que a relao de Nietzsche com o
Aufklrung foi de extrema admirao durante o perodo da
redao dos dois volumes de Humano, demasiado humano,
bem como de Aurora e de A gaia cincia, isto , aproxima-
damente entre 1878 e 1882. Esta fase marcada pelos
elogios francos s cincias, pela inquestionabilidade do
conceito de verdade e de razo, tanto quanto pela ad-
mirao ao esprito livre, motivos pelos quais Charles
Andler (1958) a denominou de positivismo ctico. Que
dois anos aps essa fase j aps a publicao dos trs pri-
meiros livros de Zaratustra e contemporaneamente
redao do seu quarto livro e do quinto de A gaia cincia
haja o renascimento, ainda que fugaz, das referncias ni-
etzschianas ao Aufklrung, um interessante enigma a ser
desvendado. Qual o significado que essa ressurreio fugi-
dia pode representar? Em que medida, por um lado, o
movimento cultural das Luzes ainda aceito e, por outro,
em que medida para tal movimento seja proposta uma re-
formulao?
Como lembra Michel Foucault (1990), o chamado I-

livro Die neue Aufklrung tenha sido substitudo pelo livro publicado em 1886. O ttulo ainda apa-
rece no fragmento pstumo 27[79] do vero-outono de 1884 e no fragmento pstumo 29[40] do
outono de 1884 / incio de 1885, este ltimo novamente com um subttulo Uma preparao pa-
ra a filosofia do eterno retorno.
4
O termo Aufklrung controverso entre os seus tradutores. O movimento cultural francs que
nomeado por esse nome na Alemanha traduzido para o portugus como Iluminismo ou Luzes
ou, menos frequentemente, Ilustrao. O termo Esclarecimento, muito menos usado ainda, ,
no entanto, o que se encontra mais prximo da palavra alem. Dada a polmica, opto por usar o
termo original, mas as tradues de Nietzsche utilizam na maioria das vezes Iluminismo.


ARTIGO ORIGINAL NIETZSCHE, A HONESTIDADE E O PROJETO NATIMORTO DO NOVO
AUFKLRUNG
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011
249
luminismo teve muito menos ressonncia poltica na
Frana, seu bero geogrfico, do que na Alemanha. O mo-
do como as Lumires foram experimentadas pelos alemes
foi, sem dvida alguma, peculiar e fez surgir todo um ques-
tionamento do papel e dos limites da razo, presente desde
a crtica kantiana at, posteriormente, em Nietzsche e na
Escola de Frankfurt. Descontadas as diferenas entre as
Lumires e o Aufklrung, entretanto, h algo de central no
debate filosfico que gira sobretudo em torno do sculo
XVIII; como resume Torres Filho, com a metfora da cla-
ridade (Lumires, Iluminismo, Enlightenment, Ilustracin,
Aufklrung), o pensamento europeu do sculo XVIII for-
mou sua auto-imagem, caracterizada pela confiana no
poder da luz natural, da razo, contra todas as formas de
obscurantismo (TORRES FILHO 1983, p.101). Se a mar-
ca desse movimento cultural a confiana na iluminao
racional contra o obscurantismo, ou seja, no conheci-
mento racional contra a ignorncia, essa confiana pde, na
Alemanha e unicamente nela, fornecer as condies para
um curioso estgio do pensamento que coloca em questo a
prpria razo. Poderamos ento falar com Nietzsche em
uma razo que angariaria foras na luta contra a ignorn-
cia, ou o projeto epistemolgico de um novo Aufklrung
seria possvel somente na estrita medida em que o adjetivo
novo permita a ressignificao da palavra razo? Mais
do que isso, como mostra Nietzsche, a metfora da clari-
dade implicava por pressuposto necessrio a crena numa
verdade absoluta e eterna; em uma palavra, nossa f na ci-
ncia repousa ainda numa crena metafsica, qual seja,
aquela crena crist, que era tambm de Plato, de que
Deus a verdade, de que a verdade divina...
(NIETZSCHE 2001, 236 [GC, 344]). Poderamos ento


Danilo Bilate
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011 250
falar com Nietzsche em uma verdade que sustentaria a
possibilidade de um conhecimento seguro ou o adjetivo
novo tambm aqui exigiria a ressignificao da palavra
verdade?
O VELHO AUFKLRUNG: CONTRA O FANATISMO DO
CREDO
No 3 do prlogo de Aurora, escrito em 1886, Nietzsche
classifica de absurdo o intento ntimo da proposta kanti-
ana de que o intelecto pudesse conhecer seus prprios
limites e de fanatismo o fato de prop-lo como nico
meio para estabelecer um mundo indemonstrvel, um A-
lm lgico (NIETZSCHE 2004, 12). Tantas vezes crtico
ferrenho do pensamento kantiano, Nietzsche, entretanto,
provavelmente concordaria com Kant, quando este afirma-
ra que o Aufklrung
a sada do homem de sua minoridade, pela qual ele mesmo responsvel.
A minoridade a incapacidade de servir-se de seu entendimento sem
a conduo de outrem [...] Sapere aude! [Ousa saber!]. Tenha coragem
de servir-se de seu prprio entendimento! , portanto, o lema do
Aufklrung (KANT 1784).
O lema dado ao Aufklrung por Kant, retirado de Hor-
cio e reconfigurado,
5
o imperativo sapere aude! que

5
O verso 40 da Epistulae, livro 1, carta 2, diz textualmente Dimidium facti qui coepit habet: sa-
pere aude: incipe, isto , Aquele que comeou j est na metade: ouse saber! Comece!. A
propsito, o recorte operado por Kant valoriza um sentido secundrio ou mesmo inexistente em
Horcio. De fato, o verso 41 diz: Qui recte vivendi prorogat horam, rusticus exspectat dum de-
fluat amnis, isto , Quem adia o momento de viver bem, espera, como o campons, que o rio
pare de passar (HORCIO 1888). A questo central a coragem de comear uma obra qualquer
que vena a covardia que impele passividade. O saber pode ento ser entendido como o mero
conhecer a obra a ser realizada, donde o que se ousa a sua realizao mesma. O crucial, aqui, a
relao do afeto com a ao e com o tempo. Assim, para o sentido do verso, o imperativo incipe
(comece!) muito mais importante que o sapere aude, que deve ser interpretado luz do inci-
pe.


ARTIGO ORIGINAL NIETZSCHE, A HONESTIDADE E O PROJETO NATIMORTO DO NOVO
AUFKLRUNG
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011
251
reclama a ousadia ou a coragem para o conhecimento, tal
lema est muito de acordo com o que pensa Nietzsche. Afi-
nal, ele afirmou de modo muito transparente, em 1888:
Cada conquista, cada passo adiante no conhecimento
conseqncia da coragem, da dureza consigo, da limpeza con-
sigo... (NIETZSCHE 1995, 18 [EH, Prlogo, 3]). O sapere
aude! de Horcio aqui substitudo pelo Nitimur in vetitum
ou o lanamo-nos ao proibido de Ovdio na relao es-
treita com o Vitam impendere vero ou o consagrar a vida
verdade de Juvenal
6
: Nitimur in vetitum: com este signo
vencer um dia minha filosofia, pois at agora proibiu-se
sempre, em princpio, somente a verdade (Ibidem). Profe-
tizada por Nietzsche, a vitria de sua filosofia a conquista
corajosa daquilo que at ento sempre se proibiu: a verda-
de.
Nietzsche provavelmente concordaria tambm com
Horkheimer e Adorno a respeito do Aufklrung. Para eles,
embora a proposta esclarecedora ou iluminista fosse justa-
mente a de fazer o entendimento vencer a superstio para
imperar sobre a natureza desencantada (HORKHEIMER
& ADORNO 1986, 20), a superstio mesma permaneceria
escondida nas diretrizes tericas do Aufklrung, como, por
exemplo, na confiana mtica na razo. Ora, tambm Ni-
etzsche, embora tenha escrito no 150 de Humano,
demasiado humano que o crescente Iluminismo abalou os

6
Nitimur in vetitum (lanamo-nos ao proibido), um recorte do verso 17 do poema IV do livro 3
de Amores de Ovdio. O verso completo : Nitimur in vetitum semper cupimusque negata (lan-
amo-nos sempre para o proibido e desejamos o que se nos nega). Posto como signo por
Nietzsche, ganha conotao imperativa que no existe em Ovdio. Este parece querer designar
uma caracterstica humana geral, a vontade de contradizer o poder que se lhe impe, donde a se-
gunda orao do verso cupimusque negata ocupa importncia maior para o contexto do
poema. A segunda expresso latina, Vitam impendere vero (consagrar a vida verdade), passagem
de Juvenal (Stira IV, verso 91).


Danilo Bilate
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011 252
dogmas da religio e instilou uma radical desconfiana
(NIETZSCHE 2005, 109), distingue f e superstio e, por
isso, escreveu em A gaia cincia que a ltima um sintoma
do Iluminismo, pois seria um livre-pensar de segunda or-
dem que surge como um progresso em relao f e como
um indcio de que o intelecto se torna mais independente e
reivindica seus direitos (Idem 2001, 73 [GC, 23]). Se, por
um lado, os dois pensadores da Escola de Frankfurt se es-
foram para salientar o carter mtico da razo, como se isso
fosse um contra-senso de tal ordem que abalasse as bases do
Aufklrung e impossibilitasse seu sucesso, por outro lado,
para Nietzsche, a superstio, como sintoma desse movi-
mento cultural e como livre-pensar pois quem se rende
superstio se permite algum direito de escolha repre-
senta a assuno do sapere aude e, portanto, da vivncia da
coragem no campo do conhecimento. Mais do que isso, tal
ousadia faz nascer a independncia do indivduo supersti-
cioso: Comparado com o homem religioso, o supersticioso
sempre muito mais pessoa do que este, e numa socieda-
de supersticiosa j haver muitos indivduos e muito prazer
na individualidade (Ibidem). Para alm do sapere aude de
Horcio, o imperativo kantiano que exclama: Tenha cora-
gem de servir-se de seu prprio entendimento! e que,
assim, reconfigura as palavras do poeta, encerra em si uma
proposta que muito agrada a Nietzsche o prazer da indi-
vidualidade e do livre-pensar do indivduo.
Nesse sentido, considerado como o movimento cultural
que cria as condies para o livre-pensar, o Aufklrung um
projeto que Nietzsche afirma diversas vezes, entre 1878 e
1882, dever ser retomado: Levar adiante a bandeira do I-
luminismo (Idem 2005, 34 [HH, 26]). Mas essa retomada
deve limpar as marcas da Revoluo Francesa, sobretudo de


ARTIGO ORIGINAL NIETZSCHE, A HONESTIDADE E O PROJETO NATIMORTO DO NOVO
AUFKLRUNG
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011
253
Rousseau, que ficaram incrustadas no movimento original
as marcas da violncia, da loucura e da voluptuosidade
revolucionrias: Quem isso compreende, tambm saber
de qual mistura preciso extra-lo, de qual turvao preci-
so filtr-lo: para prosseguir a obra do Iluminismo em si mesma
e sufocar no bero a revoluo a posteriori, fazer com que
no tenha sido (Idem 2008, 266 [AS, 221]). A re-tomada
do projeto das Luzes , portanto, a tomada pela segunda
vez, a re-conquista de um projeto que se perdeu de si mes-
mo na Revoluo. O projeto de fortalecimento do
indivduo que, racionalmente ousado e ousadamente racio-
nal, se torna livre na medida em que atinge a maioridade
esclarecida, esse projeto combatido pela proposta massifi-
cadora rousseauniana (Idem 2005, 225 [HH, 463]). Por
esse motivo
esse Iluminismo temos agora de levar adiante sem nos preocupar-
mos de que tenha havido uma grande Revoluo e tambm uma
grande Reao contra ele, mesmo de que as duas ainda aconteam:
pois so apenas ondas, em comparao grande mar em que ns
andamos e queremos andar (Idem 2004, 142 [A,197]).
A grande mar a emancipao do pensamento ad-
vinda da coragem de ousar pensar livremente, fruto do
fortalecimento da racionalidade do e no indivduo, que se
reflete no entusiasmo pelas cincias e pela verdade. Segun-
do Nietzsche, o Aufklrung, oposto Revoluo, est por
isso mesmo prximo do Renascimento, este movimento
que se caracteriza pela emancipao do pensamento, des-
prezo das autoridades, triunfo da educao sobre a
arrogncia da linhagem, entusiasmo pela cincia e pelo pas-
sado cientfico da humanidade, desgrilhoamento do
indivduo, flama da veracidade [Wahrhaftigkeit] (Idem
2005, 151 [HH, 237]). Assim como o Renascimento, o


Danilo Bilate
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011 254
Aufklrung uma tentativa de retorno da cultura moderna
europia cultura da antiguidade greco-romana. Como essa
tentativa de retorno, a bandeira das Luzes e da indepen-
dncia intelectual, mantida pelos livre-pensadores judeus
durante os tempos mais sombrios da Idade Mdia, fez
triunfar uma explicao do mundo mais natural, mais con-
forme razo e certamente no mtica (Ibidem, 234 [HH,
475]). O triunfo das Luzes seria o fato de o homem voltar
a explicar o mundo de forma mais natural, isto , explicar o
real fazendo referncia apenas ao real mesmo, explicar a
physis pela physis. Ao mesmo tempo, defensor da coerncia
lgica, o Aufklrung recusava o absurdo que est na base
de qualquer fanatismo, como o kantiano, que visa esta-
belecer um mundo indemonstrvel, um Alm lgico (j
citado; NIETZSCHE 2004, 12 [A, Prlogo, 3]). Esta recusa
a mesma de Nietzsche, portanto, que dizia tambm ser
uma perigosssima concluso e um pecado contra o esp-
rito o credo quia absurdum est ou creio porque absurdo
(Ibidem) essa postura tertuliana,
7
que no sculo XIX pare-
ce ter como seu principal representante Kierkegaard (1974)
e seu elogio a Abrao ou ao cavaleiro da f. Contra essa
postura, Nietzsche asseverou: f significa no querer saber
o que verdadeiro (NIETZSCHE 2007, 63 [AC, 52]). Fa-
zer a f tomar o lugar do conhecimento no possuir a
coragem de saber e, por isso, se prender s convices do
extremado fanatismo do credo que difama a razo (Idem,
2005, p.266 [HH, 630]) e que a oferece mesmo em sacrif-

7
A frase sintetiza o pensamento de Tertuliano, que afirmara no cap. V do De Carne Christi: Na-
tus est Dei Filius, non pudet, quia pudendum est; et mortuus est Dei Filius, prorsus credibile est,
quia ineptum est; et sepultus resurrexit, certum est, quia impossibile [O filho de Deus nasceu:
no h vergonha porque vergonhoso; e o filho de Deus morreu: totalmente crvel, porque
infundado; e, enterrado, ressuscitou: certo, porque impossvel].


ARTIGO ORIGINAL NIETZSCHE, A HONESTIDADE E O PROJETO NATIMORTO DO NOVO
AUFKLRUNG
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011
255
cio (Idem 2004, p.218 [A, 417]).
O NOVO AUFKLRUNG: CONTRA A MENDACIDADE
Se at 1882 Nietzsche fala diversas vezes da necessidade de
se retomar o projeto das Luzes, a partir de 1884 ele passa a
esboar essa retomada e cogita por diversas vezes escrever
um livro que levasse o ttulo sugestivo de novo
Aufklrung. A distino de um perodo de positivismo c-
tico no pensamento nietzschiano de que falava Andler
seria um mero engano? Acreditamos que no ttulo esboado
por Nietzsche, o adjetivo novo no pode ser entendido
como signo de oposio ou confronto ou nem mesmo de
uma originalidade nascida da repulsa a todo o antigo. Ao
dizer die neue Aufklrung, ele no pretende dissolver a
espinha dorsal do projeto das Luzes, mas apenas limp-lo de
suas cicatrizes franco-revolucionrias, germano-romnticas
8

e luterano-reformistas,
9
e essa pretenso se insere vigorosa-
mente com o claro intuito de auto-efetivao prtica,
indicado explicitamente pela incluso marcante do adjetivo
neue. O fragmento pstumo 27[80] do vero-outono de
1884 nos ajuda a entender esse movimento:
O novo Aufklrung o antigo foi no sentido do rebanho democr-
tico. Igualao de todos. O novo quer mostrar o caminho para as
naturezas dominadoras na medida em que lhes permitido tudo o
que no est liberado para o ente de rebanho:
1. Aufklrung em relao verdade e mentira no ente vivo
2. Aufklrung em relao bem e mal
3. Aufklrung em relao s foras constitutivas reformuladas (os

8
Ver, a esse respeito, o 110 de Humano, demasiado humano.
9
Ver o 237 de Humano, demasiado humano.


Danilo Bilate
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011 256
artistas disfarados)
4. A auto-superao do ser humano (a formao do ser humano
superior)
O ensinamento do eterno retorno como um martelo na mo do ho-
mem mais poderoso
No incio deste fragmento, Nietzsche utiliza o adjetivo
antigo para significar a totalidade do movimento cultural
do sculo XVIII, nela includas as transformaes operadas
pela Revoluo Francesa. Isolado do adjetivo neue, a par-
tir de 1884 o substantivo s pode ser interpretado no
sentido do velho movimento distorcido pela bandeira da
igualdade. A ojeriza nietzscheana pelo ideal rousseauniano
de democracia faz com que ele sinta a necessidade de adje-
tivar Aufklrung para, acima de tudo, ressaltar a modificao
operada pelo novo movimento, sem se preocupar em evi-
denciar que os primeiros passos do antigo so ainda
queridos, o que fica subentendido apenas pela permanncia
do substantivo, apesar de sua adjetivao polemizadora.
10

Ora, a repulsa nietzschiana ao rebanho democrtico a
confirmao do sapere aude, no sentido da valorizao da
independncia intelectual do indivduo. Se Nietzsche recu-
sa o velho Aufklrung, no o faz por se opor a seu elemento
fundamental, mas, justamente ao contrrio, por lamentar

10
Por isso, as passagens em que Nietzsche fala do Aufklrung com tom pejorativo devem ser lidas
com cuidado. Assim, por exemplo, no fragmento pstumo 40[70] de agosto-setembro de 1885, o
substantivo colocado entre aspas e acompanhado da conjuno aditiva que o liga, ao que tudo
indica, Revoluo Francesa: O Aufklrung e as idias modernas. Do mesmo modo, no Pr-
logo de Alm do bem e do mal a ligao explcita: die demokratische Aufklrung. No fragmento
pstumo 5[43] de setembro de 1870 / janeiro de 1871, o superar do Aufklrung entendido
como o superar do Romantiker. No fragmento pstumo 32[72] do incio / primavera de 1874,
a destruio do Aufklrung entendida como o ir contra a idia da Revoluo. No fragmento
pstumo 35[76] de maio-julho de 1885, o nojo pelo Aufklrung o nojo confiana plebia e
a crtica ao die geistige Aufklrung como crtica ao Volks-Aufklrerische no fragmento pstu-
mo 36[48] de junho-julho de 1885.


ARTIGO ORIGINAL NIETZSCHE, A HONESTIDADE E O PROJETO NATIMORTO DO NOVO
AUFKLRUNG
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011
257
que os efeitos histricos do movimento cultural tenham
servido de pretexto para a crena na igualdade entre os ho-
mens e para a deciso poltica de definir direitos universais,
o que, em ltima instncia, se contrape experincia indi-
vidual de resistncia governamentalidade para usar o
conceito de Foucault (1990) , ou seja, experincia da in-
dependncia intelectual do indivduo.
Alm disso, esse precioso fragmento nos mostra que
muitos dos principais temas que acompanharam o interesse
de Nietzsche at o final de sua vida j esto enumerados sob
a rubrica do novo Aufklrung. Os conceitos de interpreta-
o e perspectivismo (1), a crtica aos valores morais (2),
a valorizao do tipo criativo (3), o bermensch ou alm-do-
homem (4) e o eterno retorno (5). Portanto, se Nietzsche
supunha estar alm do Aufklrung como afirmara no
fragmento pstumo 36[49] de junho-julho de 1885 no
porque destri o projeto das Luzes, mas sim porque o leva
s ltimas consequncias. A busca pela verdade ou, ao me-
nos, a luta contra a mentira e a tartufaria, seria ainda o fio
condutor do projeto iluminista renovado. Nas palavras do
fragmento pstumo 25[296] da primavera de 1884, o novo
Aufklrung significa, em suma, contra a tartufaria ou,
como explica mais detalhadamente o fragmento 25[294] da
mesma poca:
preciso perceber na Igreja a mentira, e no apenas a inverdade: le-
var to longe o Aufklrung ao povo que todos os padres e pastores se
tornem padres e pastores com m conscincia
preciso fazer o mesmo com o Estado. Isso tarefa do Aufklrung:
traduzir em todas as atitudes dos prncipes e dos homens de Estado a
mentira intencional.
A confiana na razo e na verdade, pedras de toque


Danilo Bilate
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011 258
do velho Aufklrung, tambm seria fundamental no no-
vo movimento? Para Nietzsche, segundo seus escritos
posteriores hipottica fase do positivismo ctico, a pala-
vra razo s pode ser concebida de modo completamente
distinto da tradio. Para ele, no h uma unidade psquica-
metafsica como o entendimento puro
11
de Kant e nem
mesmo uma res cogitans maneira de Descartes.
12
Com efei-
to, Nietzsche projeta repensar o impulso intelectual
(intellektuellen Trieb) como afeto (fragmento 4[140] de no-
vembro de 1882 / fevereiro de 1883); e este impulso, que
o conhecimento, o senhor de todos os afetos (fragmen-
to 7[4] do final de 1886 / primavera de 1887). Os
pensamentos, portanto, no so resultados de uma ratio, de-
limitada em si mesma como unidade, mas sim resultados de
um processo fisiopsicolgico complexo: os pensamentos
so um sinal de um jogo e uma luta de afetos (fragmento
1[75] do outono de 1885 / primavera de 1886). Como pro-
cesso, esse movimento psicofisiolgico que a tradio
erroneamente concebia como unidade espiritual razo ou
intelecto ou entendimento, etc. no pode ser localizado
ou delimitado. Como substantivo, a palavra razo se mos-
tra inadequada para nomear o processo do pensamento
portanto, nenhum tomo anmico! (fragmento 25[96] da
primavera de 1884). Que o conhecimento intelectual,
como afeto, possa se originar desse processo algo que de-

11
Ou o entendimento e sua forma a priori (Verstnde und seiner Form a priori") ou a pura
capacidade do entendimento (reine Verstandesvermgen) (KANT 1922, 134 [Analtica trans-
cendental, 26]) j que o entendimento [Verstande] , falando de modo geral, o poder de
conhecimentos (Ibidem, 117 [17]).
12
Eu no sou essa reunio de membros que se chama o corpo humano; no sou um ar tnue e
penetrante, disseminado por todos esses membros; no sou um vento, um sopro, um vapor, nem
algo que posso fingir e imaginar [...] Mas o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa [Sed quid
igitur fum? Res cogitans] (DESCARTES 1973, 102/103 [Meditao segunda, fim do 7 e incio
do 9]).


ARTIGO ORIGINAL NIETZSCHE, A HONESTIDADE E O PROJETO NATIMORTO DO NOVO
AUFKLRUNG
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011
259
finitivamente Nietzsche no nega mesmo depois de 1882.
Resta nos perguntarmos em que medida pode-se delimitar
um conhecimento oposto tartufaria ou mentira in-
tencional, isto , em outras palavras: resta nos
perguntarmos se esse conhecimento pode ser classificado
como verdadeiro ou falso. Se a resposta for afirmativa, a
metfora da claridade (o conhecimento) contra o obscuran-
tismo (a falta de conhecimento) permanecer vivel e a
hiptese de que um ceticismo positivista nietzschiano se
extinga completamente em 1882 passa a ser tornar muito
questionvel.
O (NO) PARADOXO DA HONESTIDADE CONTRA
A VONTADE DE VERDADE
sabido que aps 1882 Nietzsche realiza o questionamento
genealgico do valor da verdade, ao centrar sua reflexo no
desejo humano pelo conhecimento seguro, a chamada
vontade de verdade:
A verdade foi entronizada como Ser, como Deus, como instncia
suprema [...] A partir do momento em que a f no Deus do ideal as-
ctico negada, passa a existir um novo problema: o problema do valor
da verdade. A Vontade de verdade requer uma crtica com isso
determinamos nossa tarefa , o valor da verdade ser experimental-
mente posto em questo... (NIETZSCHE 1998, 139 [GM, III, 24]).
O que conclui Nietzsche? Que, como busca por segu-
rana e estabilidade, a vontade de verdade a f no prprio
ideal asctico, ou seja, a f em um valor metafsico, um va-
lor em si da verdade, tal como somente esse ideal garante e
avaliza (Ibidem). Ela essa crena metafsica na verdade
como divina sobre a qual repousa nossa f na cincia (j
citado; Idem 2001, 236 [GC, 344]). Devido falta de


Danilo Bilate
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011 260
conscincia do aspecto metafrico da verdade, o homem
passa a crer em verdades e valores absolutos, eternos, exis-
tentes a priori e independentemente da cultura. Contra essa
postura que o pensamento nietzschiano se insurge. A
grande luta da filosofia de Nietzsche contra a decadncia
vital em todas as suas manifestaes. Quando h uma defi-
nio de verdade decadente, a sim preciso que se trave
luta e guerra, em nome da vida. Ora, esse o caso da defi-
nio de verdade como absoluta que permaneceu
vitoriosa na histria da filosofia ocidental ps-platnica
pois ela se sustenta na iluso da existncia de uma realidade
eterna e imutvel, transcendente ao real, real que devir, is-
to , mudana constante.
Nesse caso, a vontade de verdade, decadente, uma
busca por segurana e estabilidade que impossvel e essa
busca s se alimenta da mentira, da tartufaria, do engano
que a crena em outros mundos. Por isso diz Nietzsche:
A verdade em si: isto significa, onde quer que seja ouvi-
do: o sacerdote mente... (Idem 2005, 68 [AC, 55]). A
mendacidade do sacerdote, entretanto, uma espcie de
covardia; , pois, ausncia da coragem de saber definidora
do Aufklrung. Escreve Nietzsche: Chamo de mentira no
querer ver algo que se v, no querer v-lo tal como se v: se
a mentira ocorre na presena de testemunhas ou no, algo
que no importa. A mentira habitual aquela com que se
mente a si mesmo (Ibidem, 67). Se a vontade de verdade
a f no valor metafsico da verdade, ao mesmo tempo ela
esse desejo ntimo de no querer ser enganado: Por conse-
guinte, vontade de verdade no significa No quero me
deixar enganar, mas no h alternativa No quero en-
ganar, nem sequer a mim mesmo (Idem 2001, 236 [GC,
344]). Temos aqui uma dupla sequncia de contradies,


ARTIGO ORIGINAL NIETZSCHE, A HONESTIDADE E O PROJETO NATIMORTO DO NOVO
AUFKLRUNG
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011
261
onde a exigncia de veracidade corta a sua prpria carne. A
vontade de verdade como busca por estabilidade e seguran-
a fez com que os homens acreditassem na falsa existncia
de uma verdade eterna e metafsica, mas essa mesma vonta-
de de verdade, como desejo do indivduo de no se deixar
enganar, abandonada pela covardia de no querer ver o
real como ele de fato. Dessa contradio, segue-se outra,
da qual se fez possvel a genealogia do valor da verdade ope-
rada justamente por Nietzsche, pois ele esse pensador de
que fala o 110 de A gaia cincia:
O pensador: eis agora o ser no qual o impulso para a verdade e os
erros conservadores da vida travam sua primeira luta, depois que
tambm o impulso verdade provou ser um poder conservador da
vida. Ante a importncia dessa luta, todo o resto indiferente: a der-
radeira questo sobre as condies da vida colocada, e faz-se a
primeira tentativa de responder a essa questo com o experimento.
At que ponto a verdade suporta ser incorporada? eis a questo, eis
o experimento (Ibidem, 137-138).
A vontade de verdade, vivenciada tambm por Nietzs-
che, fez com que ele travasse essa luta contraditria de, ao
buscar a veracidade a todo custo, ter de questionar sua pr-
pria busca e o objeto mesmo dessa procura. Nas palavras de
Oswaldo Giacoia Jr., assim como a moral negada por mo-
ralidade, a catstrofe da vontade de verdade ocorre pela
exigncia de veracidade (GIACOIA 2008, 248). Mesmo a-
ps 1882, j na fase de maturidade plena de seu
pensamento, Nietzsche ainda persegue os ideais do
Aufklrung; a coragem do sapere aude marcada pelo casamen-
to do Nitimur in vetitum com o Vitam impendere vero. Como
bem explica Giacoia:
porque queremos conhecer a verdade sobre a vontade de verdade
(e, portanto, sobre ns mesmos, j que somos ns, ou algo em ns,


Danilo Bilate
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011 262
que quer a verdade) que somos compelidos a formular a pergunta
pelo valor, a pergunta crtico-genealgica por excelncia, posto que
ela que libera a perspectiva da origem. (Ibidem, 249).
Longe de recusar a vontade de verdade e, por conse-
guinte, longe de negar a possibilidade de se classificar o
conhecimento como verdadeiro ou falso, Nietzsche escreve,
j em 1886, que a honestidade (Redlichkeit) a virtude da
qual no podemos escapar, ns, espritos livres e deseja
que ela possa um dia pairar, como uma dourada, azul, sar-
cstica luz de entardecer, sobre essa cultura minguante e sua
seriedade opaca e sombria! (NIETZSCHE 1992, 132 [BM,
227]). Aps essas elogiosas palavras, ele adverte para que
cuidemos de que, por honestidade, no nos tornemos san-
tos e enfadonhos! (Ibidem 133), abominando, sutil e
ironicamente, o fanatismo do credo e de toda a metafsica.
Como que para se precaver da contradio que causa da
mendacidade do sacerdote, ele mais uma vez atenta para a
importncia da coragem em saber:
E se no entanto nossa honestidade vier a se cansar e suspirar e esmo-
recer e nos achar duros demais, desejando vida melhor, mais fcil e
gentil, como um vcio agradvel: permaneamos duros, ns, os lti-
mos esticos!, e enviemos em sua ajuda o que possumos em ns de
demonaco nosso nojo ao que grosseiro e aproximado, nosso ni-
timur in vetitum, nosso nimo de aventura, nossa curiosidade aguda e
requintada, nossa mais sutil, mais encoberta, mais espiritual vontade
de poder e superao do mundo, que adeja e anseia cobiosa pelos
reinos do futuro (Ibidem, 132-133).
A honestidade, portanto, aliada coragem, a garantia
mais forte e a efetiva mantenedora do ideal de veracidade
do Aufklrung contra todo tipo de covardia ou fanatismo.
Por esse motivo, Zaratustra afirmara: Alm do ponto em
que termina a minha honestidade, sou cego e, tambm,
quero ser cego. Naquilo que quero saber, porm, quero,


ARTIGO ORIGINAL NIETZSCHE, A HONESTIDADE E O PROJETO NATIMORTO DO NOVO
AUFKLRUNG
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011
263
tambm, ser honesto [redlich], ou seja, duro, severo, escru-
puloso, preciso, cruel, implacvel (Idem 2006, 296 [ZA,
IV, A sanguessuga]). No por acaso, a etimologia do termo
nas lnguas latinas nos faz ver que, diferentemente de fide-
lidade que, oriunda do latim fides, f, remete crena
religiosa, ao fanatismo e irracionalidade do credo a palavra
honestidade, do latim honestatem, originado de honor,
honra, dignidade, tem um significado que originariamente
remete a essa qualidade nobre e, embora tenha tambm
uma conotao moral, no segue pelo vis da irracionalida-
de do credo e se afasta da relao metafsica com Deus (fides)
para uma relao de reconhecimento sociopoltico (honor).
Nietzsche sabe que a honestidade caracterstica da mora-
lidade. No entanto, ela no por ele recusada e , inclusive,
uma das virtudes que, ao lado da piedade (Frmmigkeit), o
objeto do tu deves que o define como um dos homens da
conscincia (Menschen des Gewissens) (Idem 2004, 13 [A,
Prlogo, 4]). Nesse sentido, analogamente contradio
da vontade de verdade que se ataca a si mesma, a marca ca-
racterstica da moralidade do Aufklrung, qual seja, a
honestidade, representa uma contradio ao fazer com que
seja retirada a confiana na moral e por qu? Por morali-
dade! (Ibidem). Em suma, a honestidade e a coragem levam
a bandeira do Aufklrung at suas ltimas consequncias e
obedecem exigncia de veracidade mesmo quando, para
isso, seja preciso negar a verso covarde da vontade de ver-
dade e seus efeitos ilusrios.
CONCLUSO: DA PERMEABILIDADE DAS
DELIMITAES FRONTEIRIAS
O projeto efmero e natimorto do novo Aufklrung , em


Danilo Bilate
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011 264
todo caso, o sintoma mais visvel da permanncia da ligao
entre Nietzsche e os ideais das Luzes, ao menos no que se
refere valorizao do conhecimento racional e verdadeiro
em detrimento da ignorncia e do fanatismo do credo. i-
negvel que h uma reconceitualizao profunda da ideia
de razo e da de verdade, operada por Nietzsche aps
1882. A despeito disso, muito difcil precisar em que me-
dida isso significa um abandono das ideias bsicas do
positivismo ctico que existiria antes daquele ano. No se
pretende, com essa concluso, colocar em xeque a classifi-
cao de Andler, mas mostrar como qualquer tentativa de
delimitao cronolgica da obra de Nietzsche representa
uma aberrao que fora separaes temticas que no exis-
tem no texto nietzschiano. As delimitaes de fronteiras
cronolgicas sero sempre permeveis, o dilogo entre elas
poder ser sempre possvel e frutfero.
Consequncia grave dessas opes metodolgicas de
cristalizao de um pensamento que est em constante
transformao a leitura de uma crtica ilimitada verdade
e razo por parte de um hipottico ltimo Nietzsche
que poderia vir a ser considerado como relativista, irra-
cionalista e imoralista ao extremo, donde paradoxal e
no-filsofo. Este nosso artigo pretende ser uma tentativa
de mostrar a dificuldade do estabelecimento de tais adjeti-
vaes e de mostrar que elas precisam ser ainda muito
discutidas antes de serem tomadas por convices que
como Nietzsche escreveu em 1878, mas retomou em 1888
so inimigas da verdade mais perigosas que as mentiras
(Idem 2005, 239 [HH, 483] / Idem 2007, 66-67 [AC,
55]). Evitar-se-ia assim o fanatismo do credo entre os leito-
res de Nietzsche.
Abstract:

We will analyze the meaning implicit in Nietzsche's book project


ARTIGO ORIGINAL NIETZSCHE, A HONESTIDADE E O PROJETO NATIMORTO DO NOVO
AUFKLRUNG
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011
265
that would title "The new Aufklrung", outlined in posthumous and never
published, as a symptom of the important and enigmatic relationship of his
thought to the concepts of "reason" and "verity". We will question the at-
tempt to make a chronological division of Nietzsche's work, insofar as it
shows that honesty is the brand's central thought since his compliments to
Aufklrung - that are made in the 1870s - to the criticism and the complete
omission of the name of the cultural movement of the Enlightenment in the
writings of the 1880s, accompanying the reconceptualization of "reason" and
"verity" held by the axiological perspective of genealogy in Nietzsche's
thought just at the end of his productive life.
Keywords: Aufklrung; reason; verity; honesty.
REFERNCIAS
ANDLER, Charles. Nietzsche, sa vie et sa pense. Paris: Gal-
limard, 1958.
DESCARTES, Ren. Meditaes. Trad. de J. Guinsburg e
Bento Prado Jnior. In: Coleo Os Pensadores. Vol. XV
So Paulo: Abril Cultural, 1973.
FOUCAULT, Michel. Qu'est-ce que la critique? Critique
et Aufklrung. Bulletin de la Socit franaise de philosophie.
Paris, v.82, n.2, pp.35-63, abril/junho, 1990.
GIACOIA JR, Oswaldo. Esclarecimento (per) verso: Ni-
etzsche sombra da ilustrao. Revista de Filosofia Aurora.
Curitiba, v.20, n.27, pp.243-259, julho/dezembro, 2008.
KANT, Immanuel. Beantwortung der Frage: Was ist
Aufklrung? Berlinische Monatsschrift. Dezember-Heft
1784. Disponvel em: http://www.uni-
potsdam.de/u/philosophie/texte/kant/aufklaer.htm Acessa-
do em 05 de abril de 2010.
_____. Kritik der reinen Vernunft. In: _____. Kants
Werke, Band III. Berlin: 1922.


Danilo Bilate
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011 266
KIERKEGAARD, Soren. Temor e tremor. Trad. de Maria
Jos Marinho. In: Coleo Os Pensadores. Vol. XXXI So
Paulo: Abril Cultural, 1974.
HORATIUS, Quintus Flaccus. Epistulae. London: Mac-
millan and Co., 1888.
HORKHEIMER, Max & ADORNO, Theodor. Dialtica
do Esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
IUVENALIS, Decimus Iunius. Stira IV. Satirae. Dispon-
vel em: http://ttt.frath.net/html/Source:Satura_4 Acessado
em 20 de dezembro de 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Smtliche Werke. Kristische
Studienausgabe in 15 Bnden, Hrg. von Giorgio Colli und
Mazzino Montinari, Munchen, Berlin und New York:
Deutscher Taschenbuch Verlag und Walter de Gruyter,
1980.
_____. Alm do bem e do mal: preldio a uma filosofia do fu-
turo. Trad. de Paulo Csar de Souza. So Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
_____. Ecce homo: como algum se torna o que . Trad. de
Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras,
1995.
_____. Genealogia da moral: uma polmica. Trad. de Paulo
Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_____. A gaia cincia. Trad. de Paulo Csar de Souza. So
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
_____. Aurora: reflexes sobre os preconceitos morais. Trad.
de Paulo Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Le-


ARTIGO ORIGINAL NIETZSCHE, A HONESTIDADE E O PROJETO NATIMORTO DO NOVO
AUFKLRUNG
PHILSOPHOS, GOINIA, V.16, N. 2, P. 247-267, JUL./DEZ. 2011
267
tras, 2004.
_____. Humano, demasiado humano: um livro para espritos
livres. Trad. de Paulo Csar de Souza. So Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2005.
_____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para
ningum. Trad. de Mrio da Silva. Rio de Janeiro: Civiliza-
o Brasileira, 2006.
_____. O anticristo: maldio ao cristianismo. Trad. de Paulo
Csar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2007.
_____. Humano, demasiado humano: um livro para espritos
livres volume II. Trad. de Paulo Csar de Souza. So Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
OVIDIUS Naso, Publius. Poema IV. Livro 3. Amores. Dis-
ponvel em:
http://quadranteomega.wordpress.com/2009/08/12/poema-
iv-do-livro-3-da-obra-amores-do-poeta-latino-ovidio/ A-
cessado em 14 de dezembro de 2009.
TERTULLIANI, Quinti Septimii Florentins. De carne
Christi. Disponvel em: www.dcoi.org/1003/1001/0160-
0220,_Tertullianus,_De_Carne_Christi,_MLT.html Aces-
sado em 02 de dezembro de 2009.
TORRES FILHO, Rubens Rodrigues. Respondendo per-
gunta: quem a Ilustrao? Revista Discurso. So Paulo,
n.14, pp.101-112, 1983.

Você também pode gostar