DISCUTINDO O CONCEITO DE
RELATIVISMO CULTURAL:
ABRANGNCIAS E LIMITES
DISCUTER LE CONCEPT DU RELATIVISME CULTUREL:
LES PORTEES ET LES LIMITES
Ldia Maria Pires Soares Cardel1
Universidade Federal da Bahia - UFBA
RESUMO:
Neste artigo, propomos discutir a instrumentalizao conceitual do relativismo cultural no
mbito do pensamento antropolgico contemporneo. No sentido epistemolgico,
objetivamos estabelecer as balizas e as abrangncias deste instrumento terico-analtico na
produo etnogrfica, tendo como questo de fundo o papel tico do trabalho do campo e da
escrita etnogrfica enquanto produes cientficas.
Palavras-chave: relativismo cultural; tica; etnografia.
RSUM:
Dans cet article, nous nous proposons de discuter l'instrumentalisation conceptuelle du
relativisme culturel au sein de la pense contemporaine anthropologique. Dans le sens
pistmologique, le but principal c'est tablir les objectifs et les champs de cet instrument
thorique et analytique dans la production ethnographique ayant comme toile de fond la
question du rle thique du travail de terrain et de l'criture ethnographique alors que une
production scientifique.
Mots-cls: relativisme culturel, thique, ethnographie.
. Professora Associada do departamento de Sociologia (UFBA), membro permanente da Ps-Graduao em Cincias Sociais
(UFBA) e da Ps-Graduao Multidisciplinar em Cultura e Sociedade (UFBA), pesquisadora convidada da Universit de
Strasbourg (Frana) e Coordenadora do Ncleo de Estudos Ambientais e Rurais (NUCLEAR-UFBA). E-mail:
[email protected]
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Discutindo o Conceito de Relativismo Cultural: abrangncias e limites
At meados da dcada de 90 do sculo
consolidao do que eles mesmos chamaram
XX, convencionou-se que a Antropologia, em
de uma nova rea de conhecimento. As
contraposio s Cincias Sociais como um
Cincias Sociais nasceram jovens pelas mos
todo, vinha passando por um perodo de
destes
calmaria e sem grandes crises que abalassem
envelhecem nas nossas, sem que possamos
suas estruturas empricas e tericas, nas quais
acelerar
estava
teorias
transformao e amadurecimento. Parece-nos
clssicas e o trabalho etnogrfico, mitificados e
que esquecemos o recado dado pelos criadores.
personalizados nos nomes fundadores que
Eles esperavam que seus seguidores ajudassem
compunham, e ainda compem, a histria
a consolidar uma Cincia com o mesmo mpeto
desta modalidade de pensamento cientfico.
criativo e inovador com que eles a criaram; e
solidamente
alicerada:
as
Sendo considerada ainda uma cincia do
grandes
a
pensadores,
contento
seu
agora
processo
de
ns, ao l-los e interpret-los, ainda nos
extico no mbito das cincias sociais, a
debatemos
Antropologia, mesmo passando por diversas
principalmente no que concerne s questes
crticas internas, advindas principalmente da
terico-metodolgicas e suas aplicabilidades
linhagem dos antroplogos considerados ps-
em uma prxis cientfica.
modernos, no conseguiu at o presente
momento
construir
uma
reflexo
com
reas
obscuras,
No h dvida de que os clssicos
tica 2
pensadores e fundadores das Cincias Sociais
aprofundada sobre um dos paradigmas mais
permanecero no nosso imaginrio e nas
centrais que lhe servem de alicerce para a
nossas produes cientficas, pois suas obras
compreenso da alteridade.
so
fonte
permanente
de
dilogo
Ao identificarmos as estruturas tericas
epistemolgico. Penso que esta realidade a
da cincia antropolgica, observamos que esta
distintividade das Cincias Humanas, mas, por
permanece
com
outro lado, o que devemos mudar, inovar,
considerada
clssica
sua
quase
transformar, ou melhor, quais paradigmas
inaltervel, calcada numa discusso inequvoca
podem ser abandonados ou transformados sem
da unidade biolgica e da diversidade cultural
causar prejuzo nossa identidade cientfica?
da humanidade. Estamos em pleno sculo XXI,
Entendo que esta busca est intrinsecamente
e nossa cincia ainda se baseia totalmente nas
ligada ao processo histrico das Cincias
descobertas feitas pelos nossos antepassados.
Sociais, que, no momento da sua consolidao
Impossvel
e,
epistemologia
de
enquanto um campo acadmico, dividiu-se em
Marx,
subreas disciplinares, como a Sociologia, a
Malinowski e tantos outros clssicos para a
Antropologia e as Cincias Polticas. E, dentro
Durkheim,
negar
portanto,
Mauss,
Boas,
importncia
Weber,
dessa subdiviso, a Antropologia aferrou-se na
2
. Seguirei aqui a concepo Kantiana sobre a concepo
de tica. Segundo Kant, ns somos seres naturais e
morais ao mesmo tempo, e a nossa verdadeira liberdade
s poder ser construda por meio do dever intrassocial.
Nesta concepo, Kant afirma que, no reino da natureza,
impera a razo terica ou especulativa e, no reino
sociocultural (do humano), prevalece a razo prtica,
onde a liberdade construda tendo como parmetro, no
a volio individual, mas a liberdade coletiva
estabelecida por normas e fins morais. (Ver Chau, 2000)
busca pela compreenso do outro, ou seja, na
investigao das culturas distantes, no apenas
e necessariamente sob a tica espacial, mas
principalmente
sob
ponto
de
vista
cosmolgico. E, ao pensar este outro, forjou
um paradigma que lhe permitiria compreender
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a lgica simblica deste diferente sem encaix-
Entretanto, no apenas dessa forma
lo em estruturas sociais preexistentes e
que este conceito est sendo apropriado nesse
preconcebidas. Todavia, esse movimento s foi
nosso mundo Contemporneo. A linguagem
possvel quando o Homem comeou a olhar
miditica estabelecida pela mundializao do
para si mesmo num perodo especfico da
capital real e simblico adaptou-se forma
histria ocidental.
mais rasteira e cruel de relativismo, criando
Aps o perodo Renascentista, quando o
regras politicamente corretas, tanto para o
pensamento ocidental iniciou o seu processo
mundo cotidiano como para o universo
de secularizao, a Filosofia Social, matriz do
cientfico, que nada mais so do que o mais
pensamento das cincias humanas, promoveu
perverso desrespeito pelas reais diferenas e
o Homem como o objeto sine qua non da
similitudes
socioculturais
dvida metdica e da observao laica e
existentes.
Esta
criativa. Tornar-se objeto do seu prprio
pensamento cientificamente slido, criada pela
pensamento racional e cientfico foi uma das
banalizao e pela incompreenso com relao
maiores revolues efetuada pelo Homem da
epistemologia cunhada pelo historicismo
sociedade
alemo
ocidental;
Antropologia
pelo
individuais
vulgarizao
de
funcionalismo
um
francs
alimentou-se do produto desta revoluo para
apresenta-se hoje, para a cincia culturalista,
se consolidar e se firmar dentro deste
como o mais profundo abismo entre um saber
pensamento cientfico. No entanto, quando no
cientfico e uma tica humanista.
perodo Moderno este pensamento foi taxado
Neste
universo
ps-paradigmtico,
negativamente de positivista, a Antropologia
marcado pela crise de representao e de
passou a questionar a lgica cientfica 3 atravs
fragmentao
de um conceito amplo e inovador, qual seja, o
Antropologia apega-se cada vez mais sua
Relativismo Cultural, que a fez saltar do
base
paradigma evolucionista e biologicista para o
etnogrfico, uma das fontes de distino frente
paradigma funcionalista e culturalista.
s suas cincias-irms. H um certo consenso
do
metodolgica
objeto
em
arraigada
estudo,
ao
trabalho
Relativizar foi a maneira encontrada por
atual de que a viso de mundo de um ourives
ns (uma categoria ampla, que engloba todos
urgentemente necessria: e precisamente
que se consideram herdeiros de uma forma
neste ponto que residem no momento a fora e
ocidental
de
viver
de
pensar),
para
atratividade
da
Antropologia
construirmos o outro (tambm uma categoria
cultural(MARCUS; FISCHER, 1986, p. 6).
ampla, que reifica qualquer ser humano
Como tambm que
estranho s normas e regras ocidentais), e nos
separarmos dele definitivamente, como faz
qualquer cientista-sujeito com seu objeto de
pesquisa.
3. O pensamento estruturalista de Claude Lvi-Strauss foi
o mais incisivo. Para uma viso mais pertinente, ver as
seguintes obras deste autor: Antropologia Estrutural,
vol.1 e vol.2 (2008).
[...] as inovaes contemporneas no
texto da antropologia, ocasionada
pela mesma crise de representao
que afeta outras disciplinas, a esto
levando
em
direo
a
uma
sensibilidade histrica e poltica de
um refinamento sem precedentes, que
est transformando a maneira como a
diversidade cultural retratada
(idem, 1986).
Esta viso otimista que marca o incio do
movimento ps-moderno na Antropologia deu,
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Discutindo o Conceito de Relativismo Cultural: abrangncias e limites
sem sombra de dvida, um novo lan para esta
abusiva deste princpio pela Antropologia,
disciplina. Juntamente com esse movimento
vaticina:
interno, a Antropologia alcanou nos ltimos
Que as crenas culturais sejam
representacionais quase tautolgico;
que sejam semiproposicionais est
implcito, s vezes, mesmo explcito
na maneira como os crentes as
exprimem e comentam. Uma tal
concepo
acerca
das
crenas
culturais rica em implicaes;
apenas uma destas implicaes nos
interessa aqui: o relativismo
suprfluo [...] So os escritos dos
antroplogos que alimentam o
relativismo e, contudo nada revela
melhor o seu carter errneo que a
prpria
atividade
antropolgica
(idem, p. 92-95).
anos uma popularidade considervel entre a
mdia de um modo geral, exatamente pela
capacidade de relativizar e de contextualizar o
diferente.
Porm, esta imagem construda para e
pela Antropologia, de uma cincia que reifica e
normatiza o diferente, por meio de um
processo
de
intensa
fragmentao,
preocupante. Vivemos numa ausncia de
autoridade paradigmtica que pode, em algum
momento, transformar-se numa ausncia de
legitimidade
do
compreender
saber
cientfico.
Tentar
Esta afirmao inquietante. como se
Sperber estivesse cometendo um infanticdio.
um
Como abrir mo do relativismo sem destruir as
produto da diversidade cultural o objetivo
bases constitutivas da moderna Antropologia?
fundante
antropolgica.
Por outro lado, como manter um conceito que
Entretanto, fragmentar-se enquanto cincia
em si mesmo carrega tantas contradies
identificando-se com o universo emprico do
lgico-cientficas e tico-humanistas?
da
fragmentao
dmarche
como
objeto estudado pode significar um retorno s
amarras
conservadoras
que
impedem
Uma das questes que mais incomodam
no relativismo o fato dele negar, a princpio, a
possibilidade cientfica da compreenso das
surgimento de novos paradigmas cientficos.
Nesse momento, vale a pena ser feito o
diferenas. Se cada universo cultural tem os
seguinte questionamento: at que ponto o
seus prprios critrios de explicao racional e
relativismo
o seu prprio leque de metforas possveis,
sem nenhum vnculo com leis universais, na
cultural
Antropologia
pode
ajudar
compreender
desenvolvimento do Homem e da Humanidade
prtica, o estudo etnogrfico torna-se incuo.
Esta a ideia lanada por Rouanet (1993)
enquanto um todo?
Toda forma de pensamento cientfico traz
em seu pertinente dilogo com Cardoso (1990)
no seu bojo uma relao de assimetria e
sobre a tica e o saber cientfico no mbito da
hierarquia com o elemento desejado, enquanto
Antropologia. O mal-estar causado pelo uso
um
acriterioso
objeto
de
anlise.
Sobrevm
desta
do
relativismo
incentivou
um
imponderabilidade as complicaes tericas e
frutfero debate entre ambos e produziu
ticas que as cincias humanas encontram ao
algumas propostas pertinentes sobre o papel
construrem
do antroplogo frente ao seu objeto de
seus
paradigmas
suas
epistemologias.
pesquisa.
Dan Sperber (1992), em sua discusso
Tendo como ponto central o problema da
sobre as proposies lgicas que do base ao
moralidade na Antropologia, frente a sua
princpio do relativismo e dos problemas de
conhecida
ordem epistemolgica advindos da utilizao
estabelece esta discusso criando espaos
tradio
epistemolgicos
relativista,
diferenciados
Cardoso
entre
Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.
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Ldia Maria Pires Soares Cardel
Antropologia e a Filosofia. Desta forma, sente-
primeiro do estudo antropolgico?5 Porm, o
se confortvel para afirmar que se para a
que Cardoso no leva em conta que estes
Filosofia
espaos
questo
fundamentar
so
realmente
permeveis
racionalmente uma tica universal, para o
intercambiveis.
antroplogo ou cientista social como agir
argumentativa, prope uma fragmentao da
eticamente (1990, p. 28). Este jogo entre uma
ao humana em espaos sociais relativistas e
cincia que pensa e uma cincia que faz, um
espaos sociais universalistas, como se essa
estratagema legtimo de uma cultura que
falha diviso terica pudesse resolver o
privilegia o fazer, estabelece um vcuo no
paradoxo terico-emprico da Antropologia
dialgico com a pretenso de colocar a filosofia
e seu interlocutor no seu devido lugar.
Ferindo
lgica
neste ponto que Rouanet contraargumenta. Na sua perspectiva, obvio que as
Pra corroborar a sua viso de que a tica
aes humanas tm que ser respeitadas e
para a Filosofia possui um foco diferente do da
relativizadas.
Antropologia, Cardoso lana mo da hiptese
estabelecido por uma tica argumentativa
de H.
Groenewold4,
humanas
em
microsfera,
trs
o
Contudo,
existe
um
limite
que separa as aes
que permeia todo o universo das aes
espaos
humanas, sejam elas da micro, meso ou
espao
da
distintos:
famlia,
a
do
macrosfera.
matrimnio e da vizinhana; a mesosfera, o
Segundo sua viso crtica, nem mesmo a
espao da poltica nacional; e a macrosfera, o
Antropologia ps-moderna consegue se livrar
espao dos interesses vitais de toda a
do mais antigo dos fetiches da Antropologia
humanidade. Cada espao regulado por um
(ROUANET, 1993, p. 257), mesmo lanando
nvel de interesses. Na microsfera, as regras e
mo dos paradigmas da intersubjetividade, da
normas estabelecem a conduta entre os
polifonia e do enfoque dialgico. O que
indivduos e os sexos distintos; na mesosfera,
Rouanet observa de forma pertinente que os
os interesses grupais estabelecem os princpios
autores ps-modernos reificam o paradigma
comunitrios; e na macrosfera, os princpios
do relativismo atravs da aceitao tcita da
ticos
existncia de uma incomensurabilidade entre o
por
eu e o outro. Seguindo uma linha que exclui a
exemplo, a proteo dos ecossistemas e a
moldura argumentativa da razo cientfica, o
regulamentao do uso da energia nuclear.
antroplogo ps-moderno
universalistas
preservao
Apenas
da
se
impem
humanidade,
para
como,
nesta esfera, as aes no so
passveis de relativizao.
Tomando
como
referncia
esta
desarticulao das aes humanas em espaos
sociais diferenciados, Cardoso encontra uma
sada para a ao do antroplogo ao se apoiar
jamais problematiza o que dito pelo
informante, o que resulta numa
atitude
de
extraordinria
condescendncia... [e] est to
ansioso em mostrar que no
colonialista que se esquece de que a
melhor maneira de tratar os homens
na seguinte questo: No exatamente na
micro e mesosfera que se encontra o objeto
4. Especificamente a obra Science and Macro-ethicson a
Finite Earth, comunicao feita no colquio
internacional realizado na Pennsylvania State University,
1971.
5. Pois bem: se tomarmos como referncia essa
separao das aes humanas em espaos distintos, ainda
que articulados e articulveis, verificamos que
precisamente na micro e mesosfera que a postura
relativista, exercitada pelos antroplogos (naturalmente
que mais na primeira esfera do que na segunda), mais se
aplica e ganha consistncia terica na lgica da
disciplina (CARDOSO, 1990, p. 28).
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Discutindo o Conceito de Relativismo Cultural: abrangncias e limites
como iguais argumentar com eles
[...] (ROUANET, 1993, p. 258).
Com estes argumentos, Rouanet est
perguntando
Cardoso
como
ns,
um
antroplogos,
interlocutor,
tendo
onde
A proposta de Rouanet, para que a
Antropologia alcance um conhecimento vlido
e objetivo, no pode ser considerada apenas
como uma retrica de um representante de
uma cincia que busca de forma obsessiva
Antropologia se encaixa e como ela quer ser
fundamentar
configurada no rol das Cincias Humanas. As
universal,
ambiguidades que ele observa nas bases
Antropologia
tericas
pensamento
reafirmar como um pensamento cientfico, o
antropolgico contemporneo fazem parte, a
que no significa que tenha que se curvar a
meu ver, das razes da Antropologia. A nossa
dogmas preestabelecidos.
metodolgicas
do
racionalmente
como
afirma
necessita
uma
tica
Cardoso.
urgentemente
se
cincia sempre teve um certo desprezo pelos
O pensamento cientfico, por ser uma
limites explicativos da lgica racional, e esta
inveno e um produto histrico do Homem
viso
problemas
ocidental, impe uma forma especial de viso
relacionados s suas bases epistemolgicas.
sobre a realidade que visa aumentar um tipo
Por
especfico de conhecimento e/ou melhorar a
crtica
resultou
exemplo,
em
simples
existncia
da
Antropologia enquanto um estudo do outro
compreenso
pressupe
pressuposto
conhecidos. Assim, a Antropologia, sendo parte
relativista, j que este pressuposto cria uma
integrante da lgica cientfica, possui um corpo
incomensurabilidade
epistemolgico
falibilidade
do
entre
seres
acerca
dos
uma
fenmenos
estrutura
terico-
biologicamente (geneticamente) idnticos. Se a
metodolgica falvel e mutvel como qualquer
Antropologia se curvar
conhecimento cientfico, e que no se coaduna
apenas sobre as
diferenas culturais e ignorar os avanos
com
contemporneos dos estudos na rea da
impingidas
Gentica
cultural.
da
Etologia,
sua
existncia
enquanto cincia ser legitimamente colocada
verdades
preestabelecidas
pelo
princpio
do
como
as
relativismo
Se como antroplogos invertermos o
nosso foco de interesses e nos voltarmos para a
em xeque.
Entretanto, o que ainda mantm a
Antropologia enquanto um conjunto de regras
validade da Antropologia enquanto um ramo
a serem analisadas, nos deparamos no
do pensamento cientfico que, apesar dos
somente com o problema do fazer cientfico,
antroplogos acreditarem na singularidade
mas principalmente nos damos conta da
incondicional de cada cultura, todos, sem
dimenso tica, pouco discutida, embutida em
exceo, partem do princpio de que existem
uma cincia positivamente ambiciosa que se
traos invariantes entre os homens. Um
prope pensar qualquer grupamento humano.
exemplo
universalidade da
Neste movimento inverso, perguntas bsicas e
das
simples de serem respondidas transformam-se
linguagem e a capacidade de comunicao so
em teoremas prontos a nos devorarem. O que
aspectos natos do Homo sapiens sapiens, e
significa para a Antropologia o direito de vida e
atravs desta capacidade que a Antropologia
de morte? O respeito e a equivalncia entre os
prope, sem ainda muita convico, um
gneros? A opo sexual dos indivduos? At
processo dialgico de conhecimento.
onde vai sua tolerncia com a violncia social,
estrutura
mximo
comunicativa
culturas.
sexual
moral
embutidas
em
culturas
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Ldia Maria Pires Soares Cardel
teologicamente
fundamentalistas?
Deve
reao6 como mtodo de cura. Como vemos, o
antroplogo, como um ser humano envolto em
arcabouo terico sofre um descompasso com
uma histria de vida, marcado pelo seu gnero,
as prticas investigativas em vrios campos das
por sua classe e experincia sociocultural,
cincias contemporneas. Qui, porque as
expor seu ponto de vista outsider ao grupo que
teorias fragmentam e as metodologias tratam
lhe serve de objeto de estudo?
de organizar estes fragmentos atravs de um
O estudo cientfico estabelece entre o
todo interligado7. Assim sendo, visto que a
sujeito detentor de um conhecimento e o
Antropologia
objeto-sujeito deste conhecimento uma relao
estabelecer um processo dialgico entre grupos
assimtrica.
Cincias
distintos, o relativismo apresenta-se como uma
Humanas, onde o objeto o prprio homem, e
ferramenta empobrecedora do ponto de vista
para a Antropologia em particular, onde o
epistemolgico. Neste sentido, no
homem-objeto possui um conhecimento a ser
compreender as estruturas sociais, as formas
decifrado
mentais e as teias de significado de um
Mesmo
pelo
para
conhecimento
as
maior,
assimetria de forma alguma superada.
contempornea
pretende
basta
determinado grupo social, como nos aponta
A crise de representao que atinge h
Geertz. necessrio que a Antropologia avance
algum tempo a Antropologia, atravs das vozes
e busque compreender at que ponto as
polifnicas dos ps-modernos, faz parte, como
estruturas hierrquicas so convenientes para
aponta Monteiro (1991), de uma ordem maior
os indivduos que a elas esto submetidos; que
que atinge o modo de ser ocidental desde o
visualize
final da dcada de 1960. A Cincia, como um
desestruturantes das culturas estudadas, e
produto desta ordem, no pde passar ao largo
como e de que forma os indivduos que as
deste processo de desencantamento tpico de
compem
incio de sculo; de um ciclo que procura se
questione, pela via argumentativa como sugere
fechar para a razo positivista, mas sem
Rouanet, utilizando-se de valores eticamente
sucesso.
universais, o direito e o poder das estruturas
A fragmentao em campos de saber
estabelecida pelo formalismo positivista o seu
prprio paradoxo e o seu ocaso. Disciplinas to
onde
esto
pensam
as
os
pontos
mudanas;
que
tradicionais sobre os indivduos e sobre as
liberdades coletivas8.
Em sntese, se o objeto de estudo da
prximas, como a Antropologia, a Psicologia, a
Antropologia
so
as
vrias
formas
de
Psicanlise e a Filosofia se afastaram, como
organizao do gnero humano, tendo como
aponta Sperber, muito mais por problemas
objetivo ltimo a compreenso do Homem
ligados ao mtodo do que por problemas de
como uma categoria universal, nos deparamos
ordem terica. A Etnografia, a base pulsante da
com uma premissa maior, vlida para todo o
Antropologia, permanece inquestionvel como
pensamento cientfico: a defesa da vida
uma disciplina, viva e agitada (SPERBER,
1992:25), justamente por ser a nica forma
conhecida e legtima de conhecer os grupos
culturais. Da mesma forma, o ato psicanaltico
permanece inabalvel atravs da eficcia da ab-
6. Mtodo, alis, utilizado por vrias prticas religiosas.
7. Por exemplo, para a Psicanlise, a prxis se volta para
o indivduo, e para a Antropologia, a prxis foca-se na
compreenso da organizao social de um determinado
grupo.
8. Como as estabelecidas pela Declarao Universal dos
Direitos Humanos, adotadas pela Assembleia Geral das
Naes Unidas, em 10 de dezembro de 1948.
Opar - Etnicidades, Movimentos Sociais e Educao, Paulo Afonso, ano 1, vol. 1, jan./jun. 2013.
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Discutindo o Conceito de Relativismo Cultural: abrangncias e limites
humana e da sua liberdade o limite para
elaborar um contradiscurso violncia, este
qualquer racionalidade lgico-cientfica.
etngrafo ousou adentrar este espao atravs
para a Antropologia, este o limite para o
da participao efetiva nos rituais de cura e da
exerccio do relativismo.
ingesto do yag. O resultado desta experincia
Segato (1992), em sua instigante anlise
foi o encontro com um novo modo de
sobre a racionalidade da Antropologia frente
representao retratado com maestria em sua
ao sagrado, aponta um outro limite no menos
obra Xamanismo, Colonialismo e o Homem
importante da prxis relativista: ela promove
Selvagem(1993).
um
perene
desencantamento
reais
No desmerecendo a importncia deste
diferenas existentes entre os grupos e os
processo de humanizao do antroplogo
indivduos, e ainda retira do antroplogo a
atravs de uma nova postura como etngrafo e
possibilidade
como escritor, o que transparece na realidade
descoberta do inexplicvel, do que no
que a corrente ps-moderna, ao potencializar a
passvel de ser analisado somente por uma
prxis relativista prpria forma do fazer
lgica e est fora do universo cientfico, mas
cientfico,
que parte integrante do universo humano,
antroplogos,
pois que est envolto mais do que nunca em
Antropologia. O que ela conseguiu demonstrar
uma tica humanista9.
do
das
encantamento
frente
que
fez
ns
um
mas
grande
pouco
somos
bem
aos
acrescentou
falveis,
no
temos
Neste ponto especfico, a Antropologia ps-
neutralidade e possumos crenas, defeitos e
moderna, apesar de manter a crena no
mritos, como qualquer ser humano e como
relativismo,
qualquer cientista, seja ele fsico, bilogo,
apresenta
um
enfoque
mais
confortvel para o antroplogo que se sente
socilogo
ou
antroplogo.
comprometido com seu objeto de estudo.
Caldeira (1988),
Como
afirma
Michael Taussig (1993), ao juntar em um
a maioria das alternativas psmodernas antropologia no se refere
a discusses sobre o contexto poltico
em
que
ela
ocorre,
ou
s
possibilidades crticas da antropologia
em relao s culturas das sociedades
do antroplogo ou s culturas do
Terceiro Mundo que ela continua a
estudar.
As
alternativas
so
basicamente textuais: refere-se a
como encontrar uma nova maneira de
escrever sobre culturas, uma maneira
que
incorpore
no
texto
um
pensamento e uma conscincia sobre
seus procedimentos [grifos meus]
(1988, p.140-141).
mesmo momento etnogrfico o terror do ciclo
da borracha e o processo de cura entre a
populao da regio da Amaznia Colombiana,
viveu
intensamente
suas
experincias
alucingenas durante seu perodo de trabalho
de campo. Visando compreender o imaginrio
desta populao sobre o espao da morte e
9. Do meu ponto de vista, a compartimentalizao do
campo simblico, esta anomalia humana universal, o
que permite que sem renegar das nossas adeses, sejamos
capazes de negociar e casar com o povo vizinho, ou de
tornar-se antroplogo. So precisamente as brechas de
inconsistncia entre os nossos mundos internos, pareceme, as portas e janelas que nos do acesso aos outros
mundos, sejam eles tnicos ou histricos. Contudo, tanto
o relativismo como os historicismos em voga soem
projetar sobre as sociedades que abordam a mesma
determinao monoltica que caracteriza a viso de
mundo da qual partem. O resultado um antropologismo
irrespirvel, descries inconcebveis [...] (SEGATO,
1992, p. 129).
Em
suma,
desconstroem
postura
do
antroplogo e o seu objeto, mas no discutem a
essncia
da
Antropologia
sua
diretriz
cientfica.
George
Marcus
(1994),
um
dos
fundadores desta linha, ao fazer uma reviso
crtica do movimento, afirma que o ceticismo
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Ldia Maria Pires Soares Cardel
excessivo
relativismo
paralisante
poder, como, por exemplo, a mdia escrita e os
aprisionaram a Antropologia em um campo de
meios
contnua fragmentao e produziram, como
Antropologia
sintoma, uma confuso epistemolgica. E, mais
estruturar
ainda, na concepo de Geertz, produziram um
Academia, mas sem deixar de separar o joio do
conjunto de obras que falam muito mais dos
trigo.
seus autores do que dos objetos estudados.
micos
possibilidade
culturas
alternativos,
de
ticos
traduo
formulao
visando
como
uma
de
massa.
contempornea tem que se
tambm
fora
dos
muros
da
Antropologia acusam-na de ser uma cincia
uma
conformista, avessa s transformaes sociais e
de
ideologicamente passiva. O que existe nestas
epistemes
consideraes uma confuso sobre aqueles
simultnea
de
comunicao
De uma forma geral, os crticos da
Apesar da proposta de uma fuso de
modelos
de
postura
tica
que
personificam
Antropologia
progressista, o que se observa que esta meta
Antropologia em si. Uma cincia capaz de
no foi alcanada em funo da recusa dos ps-
expor suas prprias mazelas no pode ser
modernos em pensarem a dinmica social e os
considerada
anseios dos grupos
estudados10.
Contudo,
fruto
de
um
pensamento
homogneo. E mais. Uma cincia que tem
estabelecer uma relao equilibrada entre o
como
saber, o tico e o poltico no uma tarefa fcil.
diferenas est alm do que o positivismo da
Um dos caminhos a ser tomado tentar ir alm
objetividade cientfica pode proporcionar. Ela
da quebra do mito da neutralidade do
nunca ir produzir equaes universalmente
investigador, desconstruindo tambm o mito
aceitas
da
paradoxalmente, algum dia esta utopia se
Antropologia deve comear a tomar posturas
concretizar, ser o seu ocaso. A Antropologia
mais explcitas quanto ao objetivo de seus
a cincia da incompletude humana. Os dados
estudos, assumindo publicamente, para o meio
etnogrficos, coletados de forma metdica,
acadmico e para os
vrios setores da
como pedaos espalhados de algo valioso,
sociedade civil, as consequncias polticas,
juntamente com a vocao da Antropologia
ticas, econmicas e socioculturais causadas
para
pelos estudos etnogrficos. Seus fundamentos
transdisciplinaridade,
tericos e epistemolgicos fazem parte do seu
capacidade de interligar-se com qualquer rea
arcabouo cientfico e exercem pouco ou
do pensamento cientfico sem perder sua
nenhum interesse em outros meios que no o
identidade, so suas molas mestras.
neutralidade
acadmico.
etnogrfica.
Entretanto,
Ou
sua
seja,
prtica
estabelecida pelo trabalho etnogrfico bem
visvel, e hoje est na mira de vrios grupos de
10
. O conceito de etnodesenvolvimento, sistematizado por
Rodolfo Stavenhagem, defendido por Cardoso e
retomado criticamente por Rouanet, parece ser uma sada
digna para a Antropologia, quando esta se volta para uma
anlise socioeconmica, por exemplo. Porm, devemos
ter cuidado com o prefixo etno para que este no se torne
um elemento vazio, utilizado to somente em discursos
pseudopolitizados.
principal
sobre
objetivo
ao
compreender
humana.
as
se,
interdisciplinaridade
efetivadas
pela
e
sua
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