67% acharam este documento útil (3 votos)
10K visualizações100 páginas

O Caminho Das Borboletas

O documento descreve a reação de Adriane Galisteu ao acidente e morte do piloto Ayrton Senna durante o Grande Prêmio de San Marino de 1994. Ela passa por uma série de emoções como choque, negação e desespero ao tomar conhecimento da gravidade do acidente e posteriormente da morte de Senna.

Enviado por

drumondemail
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato TXT, PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
67% acharam este documento útil (3 votos)
10K visualizações100 páginas

O Caminho Das Borboletas

O documento descreve a reação de Adriane Galisteu ao acidente e morte do piloto Ayrton Senna durante o Grande Prêmio de San Marino de 1994. Ela passa por uma série de emoções como choque, negação e desespero ao tomar conhecimento da gravidade do acidente e posteriormente da morte de Senna.

Enviado por

drumondemail
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato TXT, PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 100

-Ai, que bom! Ele vai voltar mais cedo para casa.

Foi
um relmpago na minha cabea - um pensamento egosta,
com certeza estpido, talvez inconseqente. Mas, por um
segundo, tive este flash de esperana: ele arrancaria luvas e
capacete, sairia do carro carregando aquela cara de garoto
ofendido to familiar por ocasio das derrotas, se
recomporia, fugiria s carreiras do autdromo e das entrevistas, j encontraria o comandante Mahonney esperando
por ele no aeroporto, com a turbina ligada, e em questo de
horas estaria se jogando nos meus braos, em outro pas,
em nossa casa, no Algarve, em Portugal.
O impacto do carro no muro ganhava bis e mais bis na
tev. Curva Tamburello, o nome do lugar, repisavam os
comentaristas. Era uma tomada a distncia - e a distncia o
que dava para ver era a lateral direita do Williams azul
9
ADRIANE GALISTEU
razoavelmente amassada, uma roda perdida, nada que
sugerisse alguma coisa mais grave do que batidas parecidas com aquelas das quais ele j tinha se livrado, so e
salvo. Outra imagem da tev mostrava com clareza o
momento em que o Williams se desgarrou da pista, em alta
velocidade, e sumiu do campo de viso da cmera acoplada ao carro que o seguia, o do alemo Schumacher.
Dei um salto do sof, ainda segurando o prato do
almoo na mo - franguinho diet, legumes, para manter a
forma. Minha nica companhia, naquele casaro enorme,
era Juraci, a caseira. Expectativa: mas por que demorava
tanto o socorro? Bandeiras amarelas agitavam-se nas
proximidades, mas ningum acudia o piloto acidentado.
As cmeras da televiso italiana, mal localizadas, tambm
pareciam manter um distante desinteresse pelo que tinha
acontecido.
Minutos de espera - na verdade, me pareceram horas.
Minha taxa de adrenalina foi subindo, mas confesso que
no me desesperei de cara. Tinha certeza de v-lo, de
repente, desatando o cinto de segurana e saltando, lpido,
para fora daquela carcaa meio estropiada, capacete verdeamarelo debaixo do brao, enfezado, a caminho dos boxes.
Nada. O primeiro carro de socorro enfim se aproxima.
Nada. A narrativa do locutor da televiso inglesa comea a
dar sinais de ansiedade. Nada. Eu s gritava:
- Mas o que eles esto esperando?
Perdi a fome. Colei os olhos no telo, enquanto o helicptero com um cinegrafista a bordo tentava, enfim,
buscar uma imagem mais prxima. A coisa tinha sido pior
do que eu imaginara. Mas eu nunca teria imaginado o pior
- e ainda me recusava a imaginar.
10
CAMINHO DAS BORBOLETAS
- Deve ter quebrado os braos, ou uma perna comentei, no sei mais se para mim mesma ou em voz
alta. Buscava a nica explicao possvel, um consolo,
para a cena inesperada. O Bco que eu conhecia tinha
pavor de
se machucar. Era cair de um jet-ski, em Angra, ou escor-

regar na quadra de tnis, em Sintra, para ele parar tudo,


checar msculos e articulaes, pedir uma massagem
rapidinha - meticuloso em seu preparo invejvel, ele no
tinha a menor vontade ou vocao para entrar em contato
fsico com a dor.
- Sai do carro, sai - tinha mpetos de gritar, e gritava.
Ele no saa. Pensei: desmaiou. Mas o ligeiro movi
mento de cabea, meio para a esquerda, que a cmera
captou, deu fora a minha teoria: ele pedia ajuda, implo
rava para que o retirassem dali. O amontoado de gente
sobre ele, as frestas de imagem mostradas em meio ao
atendimento, a aflitiva movimentao dos paramdicos,
os comentrios nervosos dos locutores foram desenhan
do na minha alma, lenta, lentssima, muito lentamente, o
painel do pnico. Eu continuava de p, na sala de tev,
imvel, em silncio, quando comeou a me subir do
estmago, ou de um lugar qualquer situado entre o estmago e o esfago, uma coisa esquisita, entre um grito e
um soluo.
Vi os ps dele. Sem movimento. Era a revelao fatal.
Sou expert na linguagem dos ps. Eles me dizem tudo. O
que os ps dele me diziam, naquela hora, era a mais terr
vel de todas as coisas. Soltei meu desespero, pranto,
berro, medo, inconformidade - mas ainda um qu de
esperana,
por que no? A, pela reao em torno, que percebi que
j no estava sozinha naquela sala, que a Juraci berrava,
ADRIANE GALISTEU
que os vizinhos tinham acorrido, que ces latiam
assustados, que o telefone tocava. Uma sinfonia fnebre
se instalava na casa em que eu, na minha santa
ingenuidade, pensava v-lo chegar aquela noite, mais
cedo, com aquele sorriso lindo, pronto para um
reencontro que j demorava quase um ms.
Jamais passou pela minha cabea a idia de que o
palco onde ele foi trs vezes rei poderia ser mesmo de
sua morte. Nunca se pensou que Ayrton Sena morreria
numa pista de corrida. Nem eu nem ningum. Ele vivia
do risco da velocidade extrema, mas o seu talento
incomparvel parecia ter eliminado, da cabea de todos
os seus adeptos do mundo inteiro, essa sinistra
possibilidade. Ele at que talvez pudesse pensar. Mas
essa era a natureza de seu trabalho -- que ele conhecia
melhor do que ningum.
Depositaram o corpo dele, inerte, sobre a pista de
mola - e eu continuava ignorando a hiptese do pior.
Uma mancha vermelha no cho, da cor do sangue, me
apavorou. Mas uma alma piedosa me enganou:
- No nada, no. uma espuma nova que esto
usando, contra incndio.
Acreditei. Mas um telefonema me chamava razo.
De Sintra, da quinta onde mora com seu marido, o
banqueiro Antnio Carlos de Almeida Braga, e com
Joana e Maria, suas duas filhas adolescentes, minha
amiga Luiza exibia uma voz preocupada:
- Braga ligou de mola. grave. gravssimo. Voc
tem de ir pra l imediatamente.
- Luiza, vem comigo, por favor. No me deixe

sozinha. Ela, ento, alugaria um jatinho em Lisboa. At


o Faro, meia hora. De l, direto para Bolonha. Pedi para
a Clara,
12
CAMINHO DAS BORBOLETAS
uma amiga de l e decoradora da casa, que me fizesse uma
maleta de mo, imaginando dois, trs dias de estada ao lado
dele, num hospital qualquer. Esqueci a televiso, as
imagens repetidas, apaguei da memria o rosto assustado
daquela improvisada platia que apareceu na casa da Quinta
do Lago e tentei me fixar na idia do encontro prximo,
ainda que doloroso. Machucado que estivesse, eu queria
peg-lo. Tocar seu peito. Acariciar seus ps. Sonhava com
o contato fsico, pele na pele. Queria sussurrar-lhe ao
ouvido coisas bonitas e encorajadoras.
Notcias entram e saem, desencontradas, assim como os
visitantes. Lus, amigo da casa, vem dizer que, no rdio,
informam que Senna recobrou a conscincia. No to
desesperador assim. Agora, minha me ao telefone, do
Brasil:
- Filha, que coisa que aconteceu!?
Ela est chorando. Tento consolar:
- No, me. Acabou de dar uma notcia de que ele
voltou...
- Dri, cai na real - disse minha me. - S um milagre.
Senti algum me dar um copo de gua e colocar uma plula
na minha boca. Com certeza um calmante. Esparramada
sobre o sof, chorando muito, os intestinos em ebulio,
tive a idia de ligar para a me dele, que estava na fazenda
de Tatu:
- Zaza, Zaza... - Eu no tinha muito o que dizer. Fala, menina.
- Acabou de dar aqui uma notcia de que ele recobrou os
sentidos, ele vai ficar bom.
- Estou pegando um avio s 14h30 para Bolonha - ela
me avisou.
13
ADRIANE GALISTEU
- Ento a gente se encontra l.
No aeroporto do Algarve, a tarde comeava a cair.
Teramos trs horas at Bolonha, anunciou o piloto, to
logo desembarcou. Luiza estava muito nervosa, mas
argumentava:
- Ele forte, Adriane, ele um touro.
- Mais notcias do Braga? - eu quis
saber. - Nada - disse ela. - Mas muito
grave.
Aquele ombro maternal, ou fraterno, sei l, ajudava
a tornar as coisas menos difceis. O comandante levou o
jatinho at a cabeceira da pista e pediu autorizao para
decolagem. Demorou um, dois minutos. Estranho.
Desacelerou e comeou a refazer o caminho de volta:
- No tenho autorizao da torre. H um chamado
para dona Luiza, ou para dona Adriane.
Quando a porta do jatinho se abriu e Luiza e eu
descemos, senti que toda e qualquer palavra tinha

perdido a razo de ser. Os funcionrios do aeroporto, os


carregadores de bagagem, os turistas, os amigos que
tinham me dado carona, os visitantes de cara fechada eu diria at as pedras, os bichos vadios, as primeiras
estrelas do cu, o claro da lua nascente, as fachadas das
casas, os estalos da noite, tudo, rigorosamente tudo, e
todos, rigorosamente todos, me davam, em seu silncio
aterrador, a notcia definitiva. Eu tremia dos ps
cabea.
Luiza voltou plida. Sentou do meu lado. Pegou na
minha mo:
- Adriane... - quis se controlar.
- Luiza, s no me fala que ele
morreu. - Ele morreu.
Abraou-me soluando. De outra sala do aeroporto,
14
CAMINHO DAS BORBOLETAS
veio a musiquinha: ttt... Aquela da Globo, que a SIC,
em Portugal, tinha adotado. O fundo musical de tantas
vitrias dele. Seria uma alucinao ou eu ouvi mesmo?
Eu estava surda, muda, cega, prostrada. Na sala de
comando do aeroporto, fiquei paralisada como uma
esttua. Chorava sem parar - chorvamos sem parar, a Lu
e eu. Algum me contou depois que vivemos ali uns
quarenta minutos de absoluto desespero.
- Vamos pra casa - me abraou, enfim, a Luiza. - No
h mais nada a fazer.
-Vou preparar o jantar para ele. O combinado busc-lo
s 20h30 no aeroporto, no foi isso, Lus?
Lus, amigo da casa e do Bco, no respondia. Juraci,
a caseira do Algarve, entrou em delrio. Lgrimas grossas
rolavam do seu rosto, palavras confusas enrolavam-se na
lngua spera de quem tinha tomado algum medicamento
forte, mas seu desespero no batia com o que ela falava,
meio desconjuntado:
- Sei que o Bco vem pro jantar, no vem? Tnhamos
combinado aquela galinha grelhada, com legumes no
vapor... Voc fez a sobremesa de nata, no fez, Dri? O meu
menino, o meu menino...
Eu, logo eu, fraquinha como estava, me irritei com
aquilo:
- Ele no vem, no, Juraci. O Bco est morto.
- Lus, fala a verdade pra mim - ela o sacudia. - Ele no
morreu, morreu?
Sei l o que o Lus fez para convencer a Juraci. Como
15
ADRIANE GALISTEU
todas as pessoas que trabalhavam para o Ayrton, a caseira do
Algarve tambm o tratava como um filho. Aquilo que ela
exprimia era uma autntica aflio de me. De minha parte,
entreguei os pontos: estiquei-me na cama e fiquei horas ali,
entorpecida, sem nenhuma reao. Luiza achava melhor
desistir de Bolonha, irmos juntas para a casa dela em Sintra.
Entre um telefonema e outro para o Braga, que velava o
heri morto, ela me deu um tempinho para me refazer. Pedi
ajuda a Clara, uma amiga da famlia, a decoradora daquela

bela casa do Algarve que eu no veria mais - e o que eu


pedia a Clara, naquele momento, j tinha o som de um
adeus.
- Junta o que eu trouxe do Brasil. A malona, tudo.
Os trs volumes que eu tinha acabado de desfazer
menos de 24 horas antes, com toda uma equipagem para
passar cinco meses de temporada europia ao lado dele. A
temporada acabou antes de comear.
Mais um favorzinho, pedi: atrs da porta do banheiro
nosso, tem l um short e uma sweat shirt dele, que eu tinha
usado naquela manh, enquanto corria. Naqueles dias em
So Paulo, percebi que seria capaz de acompanhar o Bco na
sua corrida matinal em torno do condomnio do Algarve.
Um progresso e tanto. Calo e ~ater ainda estavam
suarentos. Queria lev-los comigo.
A Clara sentiu que a hora era de
despedida: - Mais nada de lembrana? perguntou.
Tinha, sim: uma visita solitria ao gramado, piscina,
Lua, ao silncio da rua, ao escritrio onde o fax emudecera,
s fotos dele, aos trofus de uma carreira brusca e
incompreensivelmente interrompida. Vi o som, tremendo
aparelho que ele trouxe da Sua. Por curiosidade, quis
16
CAMINHO DAS BORBOLETAS
saber qual teria sido o ltimo CD que ele ouviu na vida.
Phil Collins - tudo a ver. Isso, eu tinha direito de partilhar
com ele. Guardei o CD. Caminhei, com minhas lgrimas,
em torno da casa.
Uma escurido baixou sobre mim. Senti que
minhas pernas no reagiam ao comando do meu crebro.
Meus braos, meu corpo - estava tudo amortecido. Fui
despejada, por assim dizer, dentro de um automvel e da
noite que se seguiu,eu s me lembro de que a Luiza guiava,
e chorava, que o carro trepidava por uma estrada que
tanto podia dar no infinito quanto na Lua, que os rudos
calaram, que o mundo parou, que meus pensamentos
chegaram prximo daquilo que os budistas devem chamar
de grau zero de percepo. Era como se estivesse dopada.
No sei quanto durou a viagem do Algarve a Sintra.
Passava da meianoite. Despertei vista daquela que todos
chamavam de "Casa do Ayrton".
Bati de cara na realidade:
- No posso acreditar, Luiza. Ele no me deixou. Ele
no fez isso comigo. Ele sabe que no pode fazer. Sabe
que no tem por que me deixar aqui sozinha. Sabe que
muito especial para mim.
- Eu sei, eu sei - ela chorava e me consolava. Ento, no me pe naquele quarto.
O nosso quarto, eu queria dizer. Luiza, solcita:
- No, Adriane, voc vai dormir na casa grande, aqui
em cima, bem ao meu lado.
Mas nem assim: tudo me fazia lembr-lo. Ainda outro
17
ADRIANE GALISTEU
dia, tnhamos jantado naquela sala. Tnhamos rido, con-

versado, feito planos com nossos adorveis anfitries.


Minha cabea rodava. Agora que eu topava de frente
com a tragdia, fazia questo de encar-la. Ayrton me
disse, uma vez: "Dri, o fraco no vai a lugar nenhum". A
propsito de no sei o qu, qualquer bobagem. Mas o
pensamento me voltou exatamente quela hora e eu me
sentia era fraca, completamente fraca. Tomei uma
deciso:
- Luiza, quero assistir a tudo sobre o acidente,
tudo. - Tem certeza?
- Absoluta. Me d o telefone da SIC, da televiso.
Vou ligar e pedir para que eles me mandem os vdeos da
corrida.
- Fao isso por voc.
O telefone no parava, quela hora da madrugada.
Luiza ia dispensando, um por um:
- Respeitem a menina. Por favor.
A tev repetia e repetia a carnificina que tinha sido
mola. Vi e revi o acidente do Ayrton. Tentava
compreender o incompreensvel, explicar o inexplicvel.
Passei a noite em claro, feito assombrao. A Luiza
velou minha dor. Tentou me acomodar para um ligeiro
descanso, umas horinhas de sono. Foi intil. Como eu
estava absolutamente fora de controle, passo a narrar o
que escreveu uma gentil reprter de um jornal brasileiro,
por conta prpria, claro:
- Ela (no caso, eu) vagava de camisola pela casa
sombria, como um zumbi, e gritava, amparando a cabea
com as mos: "Ayrton, Ayrton".
Camisola? Casa sombria? Berros na madrugada?
Nem foras para isso eu tinha.
18
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Pela tela de uma tev, eu experimentei a irrealidade
da perda brusca de meu prncipe encantado, de meu amor,
da razo de minha vida. Dos abismos de minha precria
conscincia, eu tentava me apegar a qualquer coisa que
fosse, para escapar impresso de estar vivendo um pesadelo. Insisti: queria ir a Bolonha. Aquilo mesmo que eu
buscava em vida, queria agora na morte: o toque nos
plos do peito, os ps, o rosto, a mscara fria da morte.
S vendo, para acreditar. Essa idia de pluft, tchau, no
me conformava.
- Estou indo, Braga - eu implorava quele que tinha
sido o paizo do Ayrton e, agora, tinha de manter a frieza
para zelar da triste realidade da burocracia, da papelada,
da autpsia, do embarque do corpo.
- No vem. Ningum entra na morgue - ele desconversava. = Tem cinco mil pessoas se acotovelando l
fora. Soube depois que Joseph, o fiel massagista do
Ayrton, entrou. Que Gerhard Berger, o parceiro
definitivo, tambm. Celso, diretor do escritrio em So
Paulo, assinou o reconhecimento. Leonardo, no - algum
lhe sugeriu que o rosto do irmo estava deformado
demais pela batida. De fato, num telefonema posterior, o
Syd Walkins, mdico de planto da Frmula 1, contou
que Senna no tinha como sobreviver quando ele lhe
retirou o capacete, ainda na pista de mola. O sangue

esguichou. Perdeu quatro litros de sangue na pista. A


traqueotomia feita ainda no asfalto era uma desesperada
tantativa de faz-lo respirar, engasgado em sua prpria
massa enceflica. Massagem cardaca, tudo isso era jogo
de cena. S um idiota poderia acreditar na chance de ele
estar vivo. Senna morreu na pista. Mas o circo no podia
parar.
19
ADRIANE GALISTEU
Pode parecer mrbido, mas fiquei sabendo que um
fotgrafo da revista italiana AutoSprint estava na curva do
acidente e fizera a foto do campeo em seu frio repouso.
Liguei de Portugal para a revista. Apresentei-me: era a namorada do Ayrton, queria uma cpia da foto. Na minha afli
o extrema, exigia o nico atestado concreto de sua morte.
O resto era a fumaa de um pesadelo que me perseguia.
Estava s portas da loucura. No acreditava em nada, no
via nada, no sentia nada. Devo a Luiza o meu prec
rio mas salvador vnculo com a lucidez, naquele acolhi
mento amoroso e solidrio de Sintra.
Hoje, dispenso o testemunho medonho da foto. Tenho
ao meu redor, ainda em Sintra, o rosto puro, inteiro e singelo do meu heri, reproduzido em dezenas de fotos e psteres. Tenho meus sonhos cotidianos, em que a viso do
meu amado. ntida e, talvez confirmando o meu fetiche,
os ps quase sempre aparecem. Sonhei com ele todos os
dias seguintes - em Portugal, na fazenda de Campinas,
em So Paulo, no Rio. Nunca eram sonhos apavorantes,
mas nem sempre eu conseguia roubar daquele personagem
fugidio, como da natureza dos personagens dos sonhos,
um beijo e um abrao.
Tenho hoje a companhia impiedosa dos meus fantas
mas, dos meus medos, da minha solido, das minhas lgrimas - mas recompensa-me, de manh, a chegada do carteiro, com todas aquelas cartas, remetidas dos mais remotos
cantos do mundo, que vm, s vezes muito cerimonio
sas, pedir licena a mim, a namorada, la fiance, la nobia, o
direito de compartilhar a enorme saudade dele. Teve dias
em que chegaram duzentas cartas, at mais. Ora, que o
amor de vocs seja um blsamo para a minha alma ferida.
20
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Uma noite dessas, eu me detive numa frase, escrita por
uma dessas amigas que nem conheo: "A eternidade no
cabe em nossas frgeis concepes de espao e
tempo".
Poderia ser um salmo da Bblia, a palavra anotada pela
mo divina no livro sagrado que, assim como ele fazia, s
vsperas de corrida, leio hoje todas as noites, em busca de
uma compreenso que ultrapasse o meu desespero. Estou
fraca. Mas sinto que no estou sozinha.
`A
viva vai se dirigir imprensa." Entendam como
quiserem entender essa frase, com direito ao sarcasmo que
ela possa ter. Pois imprensa e sarcasmo costumam - que
me desculpem alguns jornalistas de respeito e compaixo -

andar de mos dadas. Eu ia dar uma coletiva, na casa dos


Braga, sobre aquilo em que eu me recusava a acreditar.
No tinha jeito. Era segunda-feira, eu no dormira um
minuto, mas a Quinta da Penalva corria o risco de ser
invadida por um enxame de reprteres, fotgrafos e
cinegrafistas de todo o mundo. No domingo, Ayrton tinha
sido a vtima. Agora, era minha vez.
Pedi a Luiza:
- No tenho nem condies de escolher uma roupa para
vestir.
Ela foi ao armrio dela e me emprestou uma. A coletiva
saiu meio aos solavancos, eu ligada no automtico, mas
como no me lembrar da senhora que me aoitava com
uma nica e insistente pergunta:
- Voc tem bilhete de volta para o Brasil? Quem vai lhe
pagar a passagem?
21
ADRIANE GALISTEU
No estava em condies de captar o sentido do drama
lho mexicano que ela queria promover, minha custa. Na
verdade, no sei de onde tirei tanta fora e tanta serenida
de. No me esqueci, ao final, de fazer um pedido a Miriam
Dutra, correspondente da TV Globo:
- Me mande todas as fitas, todos os vdeos que voc
tiver sobre o acidente.
Mandou na tera-feira, depois de mais uma noite em
que s tive insnia, pnico e recordaes. Eu me debrucei
no sof e vi, revi, parei quadro a quadro, fiz slow motion,
usei todos os recursos do telo em busca de uma nica
expresso do rosto do Ayrton, naquela frao de segundo
da escapada e do choque. Fita por fita, detalhe por detalhe.
Quinhentas vezes, e nada para explicar.
Ele teve tempo de pensar? De incio, minha impresso era
de que ele tinha virado contra a curva - como se fosse
bater de propsito. No podia ser. Luiza e Joana, a filha
dela, eventualmente me acompanhavam na minha investigao obcecada. No via sinal de breque, nem de derrapagem (a resposta estava na caixa preta do Williams, analisa
da depois: ele tirou completamente o p do acelerador, a
direo estava virada no sentido contrrio, de quem
tentava
desesperadamente desviar do muro, e ele pisou no freio no
ponto mximo, 4G, como dizem os experts). Queria saber,
naqueles quatro dias posteriores que pareceram quatro
anos: foi falha do carro ou o piloto forou a barra? Queria
me conscientizar, embora no houvesse nada a fazer.
Flashback de uma conversa nossa, antiga e eu diria
mesmo rara, a respeito do perigo numa corrida:
- Dri, quando eu vou bater o carro, eu sei que vou bater
- Bco me disse uma vez. - No fico cego. Tem piloto
22
CAMINHO DAS BORBOLETAS
que diz que apaga tudo, mas eu sinto o que vai acontecer.
Ele deve ter assistido, portanto, com aquela sua clareza de
mente, cena final. Pensei: queria ser um neurnio dele
para compartilhar esse fio de conscincia, sentir o que se

passou, na cabea dele naquele minsculo momento.


Queria estar com ele no apenas naquela hora, queria estar
com ele - s isso. Pensei em morrer. Queria que me
matassem. Perdi completamente o medo da morte.
Aproximava-me daquelas ameias que separam o gramado
da quinta do Braga das pedras do abismo, l embaixo, e
pensava em me atirar. No me conformava: no, ele no.
Ele tinha 34 anos, era inteligente, vitorioso, um corao
desse tamanho, um ser humano daquele jeito... Por que
no eu? Passaram-se quatro meses, daquele dia a este aqui,
em que registro minhas memrias, e no me sinto bem em
lugar algum. Disfaro, tento reagir. Mas tudo foi por gua
abaixo. No quero tirar de ningum, da famlia, dos amigos, dos fs, o direito dor. Mas o que perdi era o que eu
tinha de mais importante na minha vida. No pouco.
Eutive 405 dias de Ayrton Senna para mim. Os pais
dele o tiveram por 34 anos. Se eu estava daquele jeito,
imagina eles. No era uma questo de aritmtica, mas de
justia e de piedade. Todos aqueles dias tentei
desesperadamente estar junto da Zaza, me, do seu Milton,
o pai, dos irmos, Viviane e Lo. Ligava para a famlia. A
empregada da fazenda atendia:
- Dona Neide, como est? - perguntava eu, com certa
formalidade.
23
ADRIANE GALISTEU
- Ela foi medicada, est deitada - resumia a Ednia.
- E o senhor Milton?
- Tambm medicado e dormindo.
Liguei vrias vezes, sempre era a mesma coisa.
Queria estar prxima, fosse como fosse. Impossvel. At
que um dia perguntei:
- E quem mais est
a? - O Cristiano e o
Jacir.
Dois amigos do Ayrton (Jacir era o Gordinho,
como o chamavam; Cristiano tinha o apelido de
Criminoso, por causa de um acidente em Angra,
brincadeira deles). Dois amigos nossos, pensei.
- Deixa eu falar com eles - pedi.
- Eles no esto aqui agora.
- Pede ento para eles me ligarem, no Braga, em
Portugal - falei, com naturalidade.
Nada, nenhum telefonema, silncio total. Comecei
a estranhar: talvez eu seja uma lembrana muito viva do
Ayrton, uma imagem fortemente ligada dele, eles queiram evitar.
Luiza me desencorajava:
- Pra de ligar pra l, Adrian.
No dia seguinte, ainda tentei o Lalli (Flvio Lalli,
marido da Viviane). Deixei recado. Ele me ligou.
- Como est todo mundo, Lalli? - perguntei,
inocentemente.
- P, Adriane, como est todo mundo?! Todo
mundo est um horror!
Ele estava nervoso, agitado, mas eu insisti:
- Fala qualquer coisa. Da Zaza, do senhor Milton,
da Viviane... Qualquer coisa...

24
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Ele me contou que a situao estava difcil, mesmo para
ele, impossvel estabelecer qualquer conversa com os pais.
Totalmente por impulso, eu me decidi:
- J sei. Vou para a, j, ficar com eles.
Lalli foi reticente:
- A gente no sabe ainda o que fazer. Talvez leve a
Zaza e o senhor Milton de volta para a fazenda, talvez
no...
No dia seguinte, quarta-feira, passei a ligar para a
fazenda de Tatu. Estavam todos l. E a mesma histria:
medicados, sedados, ningum podia atender. Braga, sim,
l
de Bolonha, dava notcias de cinco em cinco minutos. 0
corpo s seria liberado aps a autpsia. Norma italiana.
Parece que a Viviane, em nome da famlia, tinha tentado
evitar, com o argumento "J mataram uma vez, querem
matar duas". Pacincia. Percebendo que eu estava ansiosa
e meio xarope, Luiza soube que a Juraci estava voltando
para o Brasil, aquela noite, e me perguntou se eu no que
ria acompanh-la:
- De jeito nenhum, eu vim com ele, vou com ele. E
com vocs.
Minha sorte foi que o Braga apareceu, finalmente.
Sorte minha, azar dele - que, modo, exausto, arrebenta
do em mil caquinhos fsica e emocionalmente, ainda teve
de se submeter ao meu detalhado interrogatrio:
- Qual era o estado de nimo do Bco antes da prova? Excelente, timo humor. Fomos juntos para a pista.
Conversou muito com o Nick Lauda. At com o Prost ele
brincou. E me falou de voc.
- Mas, os outros, como estava todo mundo?
O
cli
m
a
da
F
r
m
ul
a
1
na
qu
el
e
di
a
es
ta
va
pe
sa
do
25

ADRIANE GALISTEU
admitiu o Braga, do alto de seus anos e anos de janela. Mas voc sabe como : o piloto est l, o que ele tem de
fazer correr.
Comentei com o Braga a longa conversa que o Bco e
eu tnhamos tido, na madrugada de sbado, depois da
morte do austraco Roland Ratzenbergen De seu desnimo,
de seu choro convulsivo:
- Sei de tudo, garotinha.
E de muito mais. Senna tinha no Braga um amigo do
peito. Os dois estiveram juntos, poucos dias antes, 20 de
abril, em Paris, noite em que a Seleo Brasileira disputou
uma partida com o Paris Saint-Germain, o time do Ra.
Senna foi convidado a dar o chute inicial. Em pleno Parc
des Princes. Os franceses aplaudiram em delrio. Tanto que
ele, com o Braga, esticou depois do jogo - coisa rara na
vida dele - at o La Coupole, feliz de ter sido festejado por
um pblico que em princpio ele julgava pertencer, de
corpo e alma, ao seu rival Alain Prost.
Braga conhecia o Bco e sabia o que se passava no
fundo de seu corao. O dolo um alvo fcil para a intri
ga, o veneno, a inveja, o medo dos que gravitam em torno
dele, a insegurana de quem tenta inutilmente control-lo.
Braga sabia que Ayrton estava sob presso - e que a
Benetton e Michael Schumacher no eram as nicas coisas
do mundo a atormentarem seu sono. Mas sabia da integridade do amigo, da fora de sua determinao e da sinceri
dade de seus sentimentos.
Posto o que, encerrado o interrogatrio, ele me botou
sob sua generosa asa:
- Vamos nos arrumar para viajar amanh para o Brasil
-e voc vai desembarcar conosco, garotinha.
26
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Voc pode aprender muitas coisas, de uma hora para
outra - para o bem ou para o mal. At nunca mais ver,
inocncia! Naquele momento, eu gostaria de j ter em
mos a frase que uma amiga desconhecida, porm
amiga, me mandou depois, numa carta afetuosa:
"Sossega, meu corao: j enfrentaste coisa pior do que
isso".
Citao de um poeta grego, no me lembro mais quem.
Se esta frase atravessou tantos sculos, porque ela traz
a essncia de uma sabedoria. Isso mesmo: o pior, para
mim, tinha sido a perda definitiva do meu amado. Os
tormentos posteriores, o enterro, a despedida, at mesmo
as incompreenses, eu cheguei disposta a enfrentar sem
o menor medo.
Morte. A ironia cruel que ele estava, mais do
que nunca, comprometido com a vida. A lenta cena da
preparao de Ayrton Senna, em mola, repisada pela
televiso ao som de uma msica suave, como se ele
prenunciasse o desastre, no nada disso. Eu vi, revi,
aposto com vocs. A cena representava reflexo, sim;
temor, talvez; responsabilidade, com certeza. Mas est a
o Nuno Cobra para me lembrar aquele ltimo momento

em que estivemos os trs juntos, maro de 1994, na pista


da Universidade de So Paulo.
- A vida est passando a sua frente - disse-lhe Nuno,
filosfico. - Pega ela, pega ela.
Nuno tinha sido testemunha de um momento em que
Senna esteve por um fio: a espetacular seqncia de
capotagens no GP do Mxico, na perigosssima curva da
27
ADRIANE GALISTEU
admitiu o Braga, do alto de seus anos e anos de janela. Mas voc sabe como : o piloto est l, o que ele tem de
fazer correr.
Comentei com o Braga a longa conversa que o Bco e eu tnhamos tido, na madrugada de
sbado, depois da
morte do austraco Roland Ratzenberger. De seu desnimo,
de seu choro convulsivo:
- Sei de tudo, garotinha.
E de muito mais. Senna tinha no Braga um amigo do
peito. Os dois estiveram juntos, poucos dias antes, 20 de
abril, em Paris, noite em que a Seleo Brasileira disputou
uma partida com o Paris Saint-Germain, o time do Ra.
Senna foi convidado a dar o chute inicial. Em pleno Parc des Princes. Os frances
es aplaudiram em delrio. Tanto que
ele, com o Braga, esticou depois do jogo - coisa rara na
vida dele - at o La Coupole, feliz de ter sido festejado por um pblico que em prin
cpio ele julgava pertencer, de
corpo e alma, ao seu rival Alain Prost.
Braga conhecia o Bco e sabia o que se passava no fundo de seu corao. O dolo um alvo
fcil para a intriga, o veneno, a inveja, o medo dos que gravitam em torno
dele, a insegurana de quem tenta inutilmente control-lo.
Braga sabia que Ayrton estava sob presso - e que a
Benetton e Michael Schumacher no eram as nicas coisas
do mundo a atormentarem seu sono. Mas sabia da integri
dade do amigo, da fora de sua determinao e da sinceri
dade de seus sentimentos.
Posto o que, encerrado o interrogatrio, ele me botou
sob sua generosa asa:
- Vamos nos arrumar para viajar amanh para o Brasil
e voc vai desembarcar conosco, garotinha.
26
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Voc pode aprender muitas coisas, de uma hora para outra - para o bem ou para o ma
l. At nunca mais ver, inocncia! Naquele momento, eu gostaria de j ter em mos
a frase que uma amiga desconhecida, porm amiga, me mandou depois, numa carta afet
uosa: "Sossega, meu corao: j enfrentaste coisa pior do que isso".
Citao de um poeta grego, no me lembro mais quem. Se esta frase atravessou tantos scu
los, porque ela traz a essncia de uma sabedoria. Isso mesmo: o pior, para
mim, tinha sido a perda definitiva do meu amado. Os tormentos posteriores, o ent
erro, a despedida, at mesmo as incompreenses, eu cheguei disposta a enfrentar sem
o menor medo.
Morte. A ironia cruel que ele estava, mais do que nunca, comprometido com a vi
da. A lenta cena da preparao de Ayrton Senna, em mola, repisada pela televiso
ao som de uma msica suave, como se ele prenunciasse o desastre, no nada disso. Eu
vi, revi, aposto com vocs. A cena representava reflexo, sim; temor, talvez;
responsabilidade, com certeza. Mas est a o Nuno Cobra para me lembrar aquele ltimo
momento em que estivemos os trs juntos, maro de 1994, na pista da Universidade
de So Paulo.
- A vida est passando a sua frente - disse-lhe Nuno, filosfico. - Pega ela, p
ega ela.

Nuno tinha sido testemunha de um momento em que Senna esteve por um fio: a espet
acular seqncia de capotagens no GP do Mxico, na perigosssima curva da
27
ADRIANE GALISTEU
Peraltada, em que o McLaren acabou emborcado na prote
o de brita, Ayrton tambm de cabea para baixo.
Levantou-se, tirou a poeira do macaco e fingiu que nada tinha acontecido. O intel
ectual disfarado em preparador
fsico, que em dez anos fez de um Ayrton Senna menino raqutico um homem de msculo e
postura rijos, ouviu
Nigel Mansell, que vinha na cola de Ayrton naquele dia,
comentar:
- O cara deu cinco piruetas no ar, mais cinco na terra.
S um milagre explica.
Lembre-se de que Mansell no era dos espritos mais
esclarecidos da terra. Mas, por tudo e por todas, se havia
algum por perto que conhecia as fronteiras do perigo, esse
algum era o prprio Ayrton. O assunto, alis, tirava seu
humor. Certa noite, no restaurante Rodeio, contrariando o
seu hbito de no comer carne vermelha e de dormir cedo,
ele, eu e um grande amigo, o Marquinhos Magalhes Pinto,
camos na armadilha de sentar perto de uma daquelas mesas s de homens j devidamente
alterados pela bebida. O ritual do reconhecimento era ameno: olhares tmidos,
sussurros,
de vez em quando a ousadia de um aceno de cabea e s
depois o autgrafo. Mas, nessa noite, um deles exagerou:
- P, cara, trezentos quilmetros por hora! Voc no
sabe que pode morrer?
Sorriso amarelo o dele. Mas o sujeito estava naquele
meio-termo entre o alma-de-ouro e o chato-meloso:
- Pra com isso, Ayrton! A gente o adora. Voc um
cara maravilhoso, um triatleta. Pra de se expor, pra...
Frmula 1 uma mquina mortfera.
O maitre previu o desfecho, mas foi tarde. Bco, de p,
se indignava:
28
CAMINHO DAS BORBOLETAS
- Mas isso assunto para falar aqui? Me respeite, por favor. Estou jantan
do...
A morte era um assunto que ele guardava no segredo de seu cofre ntimo. A mor
te era a fatalidade, o erro, o acidente, o gratuito - estou hoje convencida de
que, na cabea dele, no tinha nada a ver, por exemplo, com o desempenho e a velocid
ade. Passamos por poucas e boas, em Angra, naquele helicptero que ele guiava
meio amalucado. Uma vez, foi a porta do meu lado, co-piloto, que abriu, bem na h
ora em que passvamos entre os dois cocorutos dos morros que formam a cidade. Vent
ou,
o helicptero deu de banda, ele gritava "fecha, fecha", eu puxava, mas a porta res
istia ao vento. Ele me ajudou e pousamos em Portogallo empapados de suor. Pior
ainda foi aquele sbado em que ele absolutamente tinha de voltar a So Paulo e as nu
vens negras desceram sobre o litoral como naquelas tardes de outras tragdias
ilustres.
Soube depois que ele consultou seu piloto em So Paulo:
- No vem que no d - aconselhou nosso bom Nelson.
- Mas tenho de ir.
E foi. Pior: comigo. No se enxergavam cinco metros frente da perigosa serra do
Mar, entre Parati, Ubatuba e Caraguatatuba. Nuvens espessas e negras. Ele por
assim
dizer engatou uma primeira - jogou tudo. Se passasse, timo: se no passasse, a ver.

O helicptero ganhou altitude, ganhou altitude, foi subindo at que clac, um


estranho barulho e um mergulho para baixo. Ele ficou lvido.
Agarrou-se no controle e trouxe o aparelho at muito perto do mar, enquanto eu, se
m tempo sequer de invocar minha
29
ADRIANE GALISTEU
santa padroeira, s lembrava, em silncio, daquele acidente recente:
- Ulysses, no. Ulysses, no.
Ele disfarou bem. Voando baixo, explorou as brechas desenhadas entre as nuve
ns e acabou atravessando, sem sobressalto, em direo a So Paulo, porto seguro.
Desligou as hlices e teve a reao mais natural de quem tinha passado por um aperto d
aqueles:
- Me espera aqui que vou fazer pipi.
Na verdade, o campeo quase tinha feito nas calas. Eu tambm.
30
CAMINHO DAS BORBOLETAS
l u me chamo Adriane Galisteu, tenho 21 anos e sou modelo - sou? Era? Ainda vou s
er? S o futuro dir. Nasci e cresci na Lapa, um bairro de classe mdia para baixa
de So Paulo, estudei em escola pblica, tenho me, irmo casado, um adorvel av materno de
80 anos, um Fiat Uno 1993 e uma histria que gostaria de contar. H
de parecer, a alguns, um conto de fadas - e a mim mesma me ocorre muitas vezes,
depois que tudo aconteceu, a pergunta persistente se este mundo em que ns vivemos
no s um sonho, se o que chamamos de realidade no uma sombra projetada numa parede.
Disseram-me que algum muito importante j pensou assim, mas acho que faltei
aula, naquele dia. No sou mstica, no vejo duendes, mas posso passar horas de noites
de insnia - insnia uma das novidades que os vertiginosos ltimos meses
de minha
31
ADRIANE GALISTEU
vida me introduziram - lendo a Bblia. J disputei concursos de beleza, mas nunca li
O Pequeno Prncipe. Gosto de Paulo Coelho e, no momento em que remexo nos arqui
vos de minha memria, aqui e agora, enevoada pela bruma da serra de Sintra, em Por
tugal, planejo refazer o caminho
de Santiago de Compostela - aquele do dirio do mago.
Perdi aos 15 anos meu pai, um espanhol da Castela,
mal entrado nos 50, numa noite em que eu disse que ia
com uma amiga para o Guaruj e fui com um namorado
para Aruj. Freud explica, talvez - mas no consola o meu arrependimento boboca e in
fantil. Fiquei sabendo que
meu pai, que j tivera um problema cardaco, chegou andando ao hospital e saiu no di
a seguinte num caixo
lacrado, com toda a famlia desesperadamente minha
procura. Imaginem meu trauma. Desde ento, minha me
sabe rigorosamente tudo o que se passa em minha vida.
No sei mentir. Meu relato pode ser emoldurado de dureza, tristeza, decepo, alegria,
iluso, arrependimento, franqueza, imprecises, rancor, exagero, mas a verdade,
fiquem certos, ser preservada como um tesouro to pre
cioso como aquele de que vai falar esta histria: o amor.
Mes contam coisas exageradas dos filhos, mas desta eu me recordo: aos 9 anos, me
descobri bonita. Ganhei um biquni novo dela e to apetitosa me senti - ser apetitosa
palavra do vocabulrio de uma menina de 9 anos? - que
vesti a pea de baixo, fiquei me apreciando no espelho,
horas a fio. De repente, simulei um mergulho. Queria apreciar a perfeio do meu cor
po em todos os ngulos. O espelho se espatifou em mil pedaos e as escoriaes
generali
zadas tiveram de adiar meu show aqutico por alguns dias.

Encanei:
32
CAMINHO DAS BORBOLETAS
- Me, quero aparecer na televiso.
(Imaginem, aps a morte do Ayrton, tive de dizer no a pessoas gentis e influente
s que me convidaram para ser atriz numa das novelas da Globo. Mas agradeo seu
gesto de amizade, Roberto Irineu.)
Minha me argumentou que no seria fcil, mas, como sempre, foi luta. Por intermdio de
uma vizinha que tinha uma filha adolescente no teatro, juntou endereos
de agncias e me produziu um book. Ainda me lembro do nome da fotgrafa: Teresa Pinh
eiro. Fotos sem muita produo nem maquiagem, em preto-e-branco. Dali, procuramos
uma agncia especializada em crianas, a Pritty, que ainda existe, em So Caetano. Meu
pai tinha sido dono de uma grfica que chegou a ter duzentos empregados. Passara
sua parte e se aposentara. Tnhamos uma vida normal, sem carncias e sem luxos. No er
a tanto o dinheiro que me movia. Era o sonho de ficar famosa.
Casting para o primeiro comercial. Aprovada. Vocs vo perceber uma predestinao a. Sabe
m quem era o anunciante? O McDonald's. Que abria sua loja da Avenida Rebouas
com Henrique Schaumann. Eu tinha de dizer aquilo:
- Dois hambrgueres, alface, queijo, molho especial, cebola, picles e po com g
ergelim.
A frmula do Big Mac. A campanha era essa: quem cantasse rapidinho, sem errar,
no balco da nova loja, levava de graa. O sanduche era timo, mas a vida de artista
uma dureza, eu percebi. Filmamos e refilmamos um milho de vezes. Praticamente pas
samos, mame e eu, dois dias e duas noites no McDonald's.
Minha me, sempre ao lado - mas sem aquela atitude chata de me de miss. Entregav
a o cach para ela, ela o
33
ADRIANE GALISTEU
administrava. A eu deslanchei: outros filmes, passarela, desfiles - com a ajuda d
e um coregrafo amigo, Joacir
Dallas, eu praticamente reaprendi a andar. Teatro, nem pensar - supus que no tinh
a talento. Mas teria, por vrios anos, uma outra inesperada experincia de palco.
Via msica. Ateno, Chacrinha, Gugu, Trapalhes, Silvio Santos, Xou da Xuxa, Srgio Malla
ndro, Bolinha - aqui vou eu.
Um sucesso, a novela Chispita, na TVS. S que era mexicana. Marco Antnio Glvo, um pro
dutor que trabalhava l, percebeu a chance de um LP do tipo trilha, em portugus.
Fez o casting, a msica estava pronta - era s dublar. Tinha de ter cara e ginga, vo
z era o de menos. Acabou a novela, acabou o conjunto. Estava com 11 anos. Aos
12, dei um estiro - virei uma mulher. Meu primeiro suti foi da Monizac, uma campan
ha que foi um estouro e bem sugestiva do que se passava comigo. "Menina ou mulhe
r?",
dizia o anncio. Continuava o trabalho de modelo, logo iria para a Jet-Set, enfim
uma agncia de porte. Mas a msica me chamou de volta: um conjunto de quatro garotas
- Dbora, Kalu, Cinthia e eu -, com melodias aucaradas que lembravam os anos 60. O
nome, escolhido pela empresria Amlia Romo, no poderia ser mais adequado:
Meia Soquete. Tem muita gente da minha idade que ainda se lembra do nosso estilo
Lolita.
Dos 13 anos em diante, vivi um turbilho de muito trabalho, muita viagem, muita ex
perincia inesperada - como cantar ao ar livre para milhares e milhares de pessoas
em Tucuru, no Par. A msica no era meu barato, assim como as drogas, o lcool e a badal
ao nunca foram. Mas tnhamos gravadora de prestgio - primeiro a RGE,
depois a Som Livre. Chegamos a ganhar mais de um disco de ouro
34
CAMINHO DAS BORBOLETAS
e isso d orgulho a qualquer um. Era dona de uma voz afinadinha, mas no palco vivi

situaes de desastre, como o show em que desabei como uma abbora, quando a gente
se dava as mos numa roda. As viagens constantes disputavam com as aulas, nas quai
s eu dormia de cansao, e com o ano letivo. No terceiro colegial, finalmente, a
escola perdeu. Alis, eu perdi - o ano. Antes, j havia perdido meu pai e minha vont
ade de cantar.
Uma sndrome de pnico, ou pelo menos um srio sintoma disso, quase me enlouqueceu,
pouco tempo antes de conhecer o Ayrton. Estava num lugar qualquer e, de repente
,
o corao disparava, as mos comeavam a suar, perdia o equilbrio, chegava a desmaiar. Fi
z exames, tomei tudo o que me indicaram, de antidepressivos a simpatias,
conversei com outras pessoas - nada. Um dia, a caminho de casa,, dirigindo o car
ro, meus joelhos tremiam como chocalhos. Vi uma igreja e entrei. No meu pnico, re
zei
por mais de meia hora - em voz alta, quase aos gritos:
- Meu Deus, me d foras.
Eu no freqentava igreja, no era mstica, menos ainda esotrica, mas mantinha em mim
uma reserva de f. Ela me ajudaria naquilo - e depois. Nesta idade de 21
anos em que muitos mal comeam a vida,j passei por quase tudo. Tive o sucesso mas p
rovei da parte dura da realidade. Aprendi muito - inclusive no curto tempo em
que tive de ensinar. Sim, isso mesmo: tambm dei aula, para o 1 Grau, naquele ano e
m que fui reprovada. Queria o diploma e passei para o curso de magistrio - o
normal. Entrava na sala e havia um menino sempre dormindo. Tentava mant-lo acorda
do e nada. Um dia, chamei-o para conversar.
35
ADRIANE GALISTEU
- Sabe o que , tia? - explicou. - Lavo carro quan
do saio da escola e noite entrego pizza.
Era um garoto de 10 anos e levava para casa o po de cada dia. Que ele dormisse o
quanto quisesse. Depois, foi
uma menina cujos cabelos tinham sido tomados por pio
lhos. Quis ajud-la:
- Vou avisar a sua me.
- Que me? - respondeu, candidamente.
Para a missa de trinta dias da morte do Ayrton, que
assisti no Rio, no aconchego da famlia Magalhes Pinto,
ganhei de dona Maria Jos uma consoladora Bblia. Pouco
antes, recebera um livro e uma dedicatria encorajante,
presentes das irms Marilda, Marecilda e Marilene, de Curitiba. O ttulo me deixou c
uriosa - Quando Coisas
Ruins Acontecem s Pessoas Boas. Obra de um judeu americano chamado Harold S. Kush
ner, com prefcio do rabino Henry Sobel. Traz toda uma reflexo filosfica profun
da, a partir da perplexidade de Kushner, na poca um jovem estudante de teologia,
com a mensagem do Livro de
J e a essncia do sofrimento humano.
Evidente que tinha tudo ver com o momento que eu vivia e o resultado foi que mer
gulhei no livro. Eu tinha me perguntado muitas vezes: por que Deus tirou o Bco
de mim? Por que ele haveria de morrer fazendo aquilo que mais sabia fazer? Por q
ue naquele momento to especial para ns dois? Por que Deus permite que uma criana
contraia um cncer? Por que Deus deixa imperar o mal? O livro prope a idia de que De
us um mistrio que a mente humana no pode alcanar. A divindade, como Ela
for chamada: Jeov, Buda, Maom, Oxal, qualquer que seja o nome de seu Deus. Portanto
, Deus no culpado
36
CAMINHO DAS BORBOLETAS
dos males do mundo, assim como no tem a ver com a nossa felicidade. O que acontec
e sobre a Terra resultado das leis da natureza: nascer, crescer, morrer.
O senhor Kushner est a uma distncia enorme do meu invencvel sentimento de perda,
mas me ajudou, sem saber, a dar um pouco de ordem aos meus desesperados porqus,

porqus e porqus. Sem fatalismo, mas tambm sem resignao. Amm.


Vida de modelo assim - testes, aerbica, testes, musculao, testes, alguns convi
tes que podem ser aceitos, mais testes, propostas que devem ser recusadas,
testes... Eis que, l, perdida numa pgina qualquer de minha agenda, escondida no em
aranhado de coisas a fazer, contas a pagar, telefonemas a dar, est rabiscada,
sem destaque, aquela anotao que iria mudar o rumo de minha vida:
"15 de maro - Teste na Elite. Quatro da tarde".
Pode ser que vocs no acreditem em destino. Mas vo perceber que eu tenho de acr
editar - ainda que esse destino possa vir a ser, de repente, cruel, muito cruel.
Na verdade, eu quase no fui ao encontro dele, o destino. Quando Karen, a boo
ker da minha agncia, me ligou, alguns dias antes, eu quis recusar. Ela me explico
u:
recepcionista no Grande Prmio Brasil, "uma grana bem legal". Mas, sinceramente, a
quela palavra - recepcionista - no me soou bem. No que eu j no tivesse feito
trabalho desse tipo, no isso. Nada de preconceito. que eu estava vivendo um timo m
omento profissional - e me sentia em condies de escolher o meu trabalho.
De mais a mais,
37
ADRIANE GALISTEU
no tinha a menor intimidade com a Frmula 1. Achava
que era um mundo fechado, masculino demais. Jamais tro
caria o cheiro de meu perfume Roma, da Laura Biaggiot,
pelo da gasolina.
Automobilismo, at aquele dia, era to distante de mim
quanto rgbi ou beisebol. Tinha visto uma nica prova, ao
vivo - em 1989, no Estoril, em Portugal, mais por farra, com um grupo de amigos,
aproveitando a folga numa bateria de fotos de moda. Na televiso, no tinha muita
pacin
cia: via a largada, as primeiras voltas e, dependendo do
resultado, as ltimas. Eu estaria mentindo se dissesse que
era uma fa de Ayrton Senna. Nunca fui f de ningum. As meninas da minha rua lambiam
o asfalto pelos Menudos, por exemplo. Eu, no - ao contrrio de minha av hnga
ra, que torcia pelo Ayrton e no perdia jogo do Palmeiras na
tev, nunca entrei nessa de ter dolo. Na Frmula 1, confes
so que no mximo tinha certa simpatia pelo Nigel Mansell - quer dizer, por ele ser
um cara engraado, meio maluco e
trapalho. Adorava quando ele se metia em alguma briga
com aquele nosso garoto Senna. Alis, Mansell ganhou em
Estoril naquele ano e eu vibrei.
Voltando a maro de 1993. Karen insistiu muito para
que eu aceitasse o convite da Shell. Seriam s dez mode
los, meninas bonitas e conhecidas, para ficarem na sala
vip, sem essa de desfilar pelas arquibancadas, sem confraternizao com a galera, co
isa sria. Citou o nome de duas
ou trs que eu conhecia - a Nara Pinto, a Patrcia
Teixeira, a Laura Gutierrez... Tudo bem, vamos ver como
. Nem perguntei pelo dinheiro.
Na hora marcada, mais uma tramia do destino: tinha
de vestir mai. Ameacei uma meia-volta: "Estou fora".
38
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Mas os trs diretores da Shell que estavam l imploraram: "No o que voc est pensando..:
" O uniforme da prova
era curtinho, s isso. Perguntei sobre o que teria de fazer
no Autdromo de Interlagos, eles me perguntaram sobre
minha carreira - e, sem mais, um deles me- surpreendeu:
- Voc est aprovada.
Mil dlares por quatro dias de trabalho, de quinta a domingo, era tudo o que eu es

perava ganhar, naquele fim


de semana de GP Brasil. Jamais passou pela minha cabea
que eu iria ganhar o amor de minha vida.
Quinta-feira, 18 de maro, coletiva de imprensa com os
pilotos da McLaren, que a Shell patrocinava. Eu fora tinha agendado um trabalho anterior. Mas, s seis da manh
de sexta, l estava eu, a bordo de um txi e de muitos boce
jos, a caminho da Elite, ponto de encontro para Interlagos. No autdromo, tivemos
um mobral rapidinho de Frmula 1.
Para que ns, modelos, no ficssemos ali apenas com nos
sos rostinhos - e corpinhos - bonitos, eles nos introduzi
ram na linguagem do circo: cockpit, pitwalk, pitlane...
Sbado, de novo. Madrugada, segundo treino oficial. Os motores voltam a roncar. O
Dudu, da Shell, vem, de repente,
com a bomba: dali a alguns minutos, sabe quem que iria
visitar, em pessoa, o hospitality center da Shell? Isso mesmo
- ele, Ayrton Senna. Frenesi nas meninas, disparada para o banheiro - cada uma d
elas, descabeladas, correndo em
busca do espelho e de um providencial retoque na maquiagem. Todas, menos eu - tu
do bem, no era o caso de esno
bar nosso tricampeo do mundo. Simplesmente, eu no o
conhecia. At aquele dia, ele no era meu dolo. Passaria a
ser - para toda a eternidade.
Ele chegou. Uma cena que iria rever infinitas vezes:
39
ADRIANE GALISTEU
uma multido compacta, ansiosa, e, navegando no meio daquele mar, o solitrio bonezi
nho do Banco Nacional, anunciando a aproximao do dolo. Empurra-empurra, confuso,
quase histeria - e ele, sem perder a calma, o timing e o comando da situao, saa cum
primentando as pessoas, enquanto saciava seus olhinhos curiosos e vivos com
a busca de alguma novidade. Eu no sa do lugar. Observava, apenas - afinal, estava
ali a trabalho, no a passeio. Ele subiu num pequeno palanque e comeou a dizer
algumas palavras. Senti que ele me olhou. Mas era para mim ou para a Nara, que e
stava atrs de mim? Ou teria sido um olhar vago, para um ponto indefinido e qualqu
er
que acolhesse a timidez dele?
Novo alvoroo: caminhada pelos boxes. A cada uma das meninas correspondiam de
z convidados. Todas querendo se
escalar para a McLaren. Eu, me fazendo de modesta: "Para mim, tanto faz". Knockd
own: ganho exatamente a McLaren. A caminhada me provoca um sentimento de compaixo
para com aquele moo, cara de menino, que fica zanzando pelo boxe, visivelmente te
nso pela responsabilidade de disputar um Grand Prix em casa - e ele, ali, indefe
so
em meio ao assdio dos fs e dos pedidos de autgrafo, sem desfrutar da mais remota pr
ivacidade. Dura a vida de um Ayrton Senna, pensei comigo mesma. Sua expresso
carregada confirmava minha apreenso.
- Olhou pra voc - provocou a Nara. - Foi pra voc - devolvi.
Pra mim, pra voc.
Era o domingo da corrida e houve esse novo passeio pelos boxes, com os convidado
s, entre o warm up e a largada. Dia comprido para mim. s cinco da manh j estava
40
I
CAMINHO DAS BORBOLETAS
acordada, s 6h30 desembarcava no autdromo. Trabalho difcil: muita gente, muita corr
eria. Mas houve o tal pitwalk, como de praxe, e, nas vizinhanas do boxe da
McLaren, um gordinho simptico, de cara bonitinha, me abordou:
- Sou o assessor para assuntos particulares do Ayrton Senna- apresentou-se. - El

e me pediu pra pegar o seu telefone.


Achei que era gaiatice, mas dei. O da minha casa, o do trabalho. Incrdula, v
i aproximar-se um senhor, que repetiu: - D o fax tambm.
Eu, silenciosa.
- isso mesmo, garotinha. O cara est parado em voc.
(Guardo no ba de minhas melhores lembranas a primeira vez em que o ouvi pronunciar
a palavra garotinha. Eu amo o Braga, doutor Braga, o Braguinha, o Bragota; eu
amo ouvi-lo dizer garotinha, eu amo a Luiza, mulher dele, eu amo a Joana e a Mar
ia, as duas filhas do casal, tenho uma gratido que jamais poderei exprimir em pal
avras.
O outro, o tal "assessor para assuntos particulares" do Ayrton, era, eu logo fic
aria sabendo, o Jacir, ou Jaa, amigo de longa data do Bco, que tinha, e s ele
tinha, autoridade para cham-lo, sem represlia, pelo apelido de Baleia.)
Logo notei que "o assessor" se encarregou eficientemente de colher outros telefo
nes das meninas da Elite e desencanei. Ficou apenas a expectativa de uma nova vi
sita
do piloto, anunciada pelos diretores da Shell - e uma nova, aflita, corrida ao b
anheiro, batom, maquiagem, uma geral nas meninas. Eu apenas esperei. Nara ainda
brincou
comigo:
- Est se fazendo de difcil, boneca?
- Olha, ele at que me atrai - respondi, moleque. 41
ADRIANE GALISTEU
Voc reparou naquela bundinha?
Estvamos nos divertindo. E olha l de novo aquele bonezinho azul do Banco Naci
onal aproximando-se, engolfado no mar de tietes. Dessa vez, ele ficou um pouco
mais. Meio encabulado, subiu ao palco e falou sobre o que esperava da corrida. D
pra vencer, disse, sem aparentar muita convico. "No posso garantir que vou ganhar,
mas o que eu mais quero", despistou. Ns, as dez meninas da Elite, com nossos maca
cezinhos que deixavam boa parte das pernas de fora, ficamos bem diante do palco,
como se formssemos um cordo de segurana entre ele e a platia de convidados. Estacion
ei na frente dele, olhando para cima, fila do gargarejo. Ele falou pausadamente,
remoendo cada palavra que pronunciava. Falava e olhava para baixo. Quer dizer: o
lhava para mim. Ser? Coincidncia. sada, entre cotoveladas e pedidos de autgrafo,
a, sim, uma olhada ntida e um largo e lindo sorriso para mim. Para mim? Olho para
trs e eis que vejo, de novo, a Nara - aquele um metro e setenta e muitos centmetro
s
de pura beleza morena. Ento isso: o negcio dele, definitivamente, a Nara.
- com voc - eu entrego os pontos. - Ele gosta de louras - brinca Nara.
Mas alguma coisa tinha tocado em mim. Meu desinteresse pela corrida transfo
rmou-se, de repente, numa enorme ansiedade. Sinal de largada e eu, como todo mun
do,
passo a me revezar entre a televiso e a amurada do hospitality center. S tenho olh
os para o carro vermelho e branco da McLaren. Descubro-me torcendo freneticament
e
por ele. Alain Prost na frente. Um milagre: uma nuvem negra, nica em todo o cu de
So Paulo, sobrevoa o autdromo. Caa a chuvarada. Prost roda e sai da corrida.
A torcida vem abaixo.
42
CAMINHO DAS BORBOLETAS
A chuva pra. Ayrton Senna o vencedor.
Tempo de comemorao: os diretores da Shell anunciam uma festa-surpresa em homena
gem ao campeo. Depois das dez da noite, no Limelight, uma boate da moda em So
Paulo. Todas as modelos esto convidadas, alis, convocadas a comparecer. Arrastando
-me de cansao, sonho com minha caminha, para retemperar as energias gastas no
trabalho e na surpreendente ansiedade que tomou conta de mim durante a prova.
No gosto de boate, nem tenho sado noite. Mas ligo no automtico: tenho de ir. No i

ria me arrepender. A noite ainda me traria muitas surpresas - ou, pelo


menos, uma. Aquela pela qual, ainda que meio inconscientemente, eu comeava a me i
nteressar.
Ele deu uma de Cinderela s avessas: ao som das doze badaladas, apareceu. O Limel
ight regurgitava de
gente, msica e dana, espera da estrela da tarde e do convidado da noite - o campeo.
O sorriso dos garons
abria a passagem que o empurra-empurra dos tietes insistia
em bloquear. Medi minha impacincia, senti o drama e consultei o staff da Shell: i
ria cumprimentar o Ayrton e me
retirar estrategicamente. Eu vestia jeans, miniblusa preta
- o calor estava diablico -, usava um sapato de plata
forma preto, nenhum trao de maquiagem. Era a prpria
working girl. Uma bandana vermelha no pescoo foi o
mximo de futilidade que me permiti.
No que busquei, de novo, com o olhar, nosso convidado, eis que j o vejo muito bem
instalado num camarote,
43
ADRIANE GALISTEU
sendo abraado por outroheri nacional - Pel. Mais o tal gordinho da corrida e o irmo
dele, Leonardo, que eu conhecia de fotografia e de histrias, muitas contadas
pelas modelos da Elite. E todo esse belo quadro emoldurado por pelo menos duas d
ezenas de mulheres bem bonitas e aparentemente bem disponveis. Suspirei de alvio:
diante daquilo, estava dispensada de qualquer figurao.
Antes de sair, quis apenas cumprir o protocolo. Abri caminho com os cotovel
os at o camarote e fui dar meu al. Mas o prprio Ayrton pediu ao segurana para
dar passagem. Segurei na mo dele para um rpido parabns. Senti que ele estava eufrico
com tudo aquilo - a vitria, a comemorao, o paparico. Ele manteve a minha
mo na dele. Eu desconversei:
- Voc foi o mximo. Estou aqui em nome da Shell... Nada de soltar minha mo. S pa
ra, de repente, pegar uma taa de champanhe e me oferecer:
- Comemore comigo.
- Obrigada, mas no bebo - disse.
- Mas um dia especial. Eu ganhei. No bebe nadinha? - Nadinha, desculpa.
- Ento, fica aqui com a gente.
- Mais uma vez, desculpa. Mas eu no estou gostando desse clima de camarote nm
ero 1.
Senti uma certa decepo no rosto dele, mas fiquei firme. S me permiti um escorr
ego mais pessoal, antes de virar as costas:
- De qualquer modo, voc tem meu telefone...
O gordinho amigo do Ayrton, o tal "assessor", ainda quis me segurar pelo br
ao:
- Espera a, a gente vai dar um churrasco em Angra,
44
CAMINHO DAS BORBOLETAS
no fim de semana, no quer ir?
Escapei com o clssico "a gente se fala".
Levei comigo aquela mistura de sentimento que vai desde "p, ele me tocou" at
o "isso tudo um grande absurdo". Mas absurdo mesmo foi quando, s nove da manh
do dia seguinte, a empregada veio me chamar, para o desespero de quem odeia ser
despertada cedinho:
- Telefone. um tal de Ayrton.
Aquele gordinho folgado - pensei, imaginando ouvir a voz do tal "assessor".
Fui malcriada:
- E a?
A voz serena e doce que ouvi foi uma ducha na minha irritao:
- A gente vai dar uma churrascada em Angra. Voc no quer ir?
Vacilei. Disse que tinha muito trabalho pela frente, precisava de um tempo

para responder. Pela primeira vez tomei contato com o estilo daquele que, no por
acaso, era o rei da velocidade.
- Agora... O que voc vai fazer agora?
- Agora? Tenho um teste para um comercial.
Teste para um comercial. a desculpa mais manjada no mundo das modelos. S que
, no caso, era a mais pura verdade. Eu diria at: uma irnica verdade. Teste
para um comercial da Arisco - para figurar ao lado de ningum menos do que Nelson
Piquet. At eu, at as pedras sabiam que Piquet era o maior inimigo de Ayrton Senna.
Preferi guardar esse segredo dele.
Ele no desistiu:
- Ento, depois do teste, me liga.
E me deu aquele telefone direto que faria o fascnio de
45
ADRIANE GALISTEU
tantas fs e de tantos jornalistas. Celebrei, l no estdio, as virtudes do molho Tara
ntella, senti que agradei e no resis
ti idia do prometido telefonema. No sei bem qual era a
minha inteno, mas, por via das dvidas, comprei quinze
fichas de telefone e me dirigi para o orelho mais prximo. Nervosa, porque no sabia
nem com que nome cham-lo.
Ayrton? Ayrton Senna? Quase desliguei quando a secret
ria sacou do "quem gostaria?"
- Adriane... - respondi, desenxabida, me culpando
pela certeza de que ele jamais viria ao telefone.
Veio, interessado:
- E o teste, como foi?
- Legal, fui bem, eu acho.
- Mas que teste esse?
Pensei: me pegou. Ou quase:
- Sou modelo da Elite... um comercial de tev... desviei.
Cara minucioso, esse:
- Mas que comercial?
- Com seu amigo Nelson Piquet - entreguei (se o conhecesse naquele momento como
vim a conhec-lo
depois, nem por brincadeira mencionaria o tal nome).
Ele engoliu seco, silenciou por um minuto e mudou de
assunto:
- Mas e a churrascada em Angra, voc vem?
Senti que no daria para despistar mais. No nervosis
mo, escapei para o horscopo:
- Escuta, de que signo voc ?
- Do nada - ele brincou. - Sou de ries.
- Eu tambm - comemorei.
- Sou meio tmido, voc me entende, no ?
46
CAMINHO DAS BORBOLETAS
- Tmida e confusa, eu...
- Meio difcil dizer as coisas... Mas queria convid-la... - Entendo... Mas, me desc
ulpa: no o conheo.
- Como no me conhece?! - ele reagiu, com mpeto ariano. - Todo mundo me conhec
e.
- De matria de jornal, de entrevista na tev... Mas, como homem, como pessoa, no o c
onheo. No tenho a menor idia de quem voc .
Cabea dura de ariano:
- Ento, vai ter hoje uma boa chance de conhecer. Estou dando um jantar s nove
da noite no The Place. Voc est convidada.

Sei l, nem registrei. Chovia em So Paulo, deu aquela preguia, ainda estava cansada
das emoes do GP - enfim, no apareci. Na manh seguinte, j estava estacionada
no meu lugar habitual na Elite, ali na regio da Avenida Faria Lima, quando olhei
para a janela e tive um sobressalto:
- T alucinando! - pensei comigo mesma.
O que eu via, na porta da agncia, era um Honda negro, reluzente de to novinho
, e dentro dele, pilotando, quem, quem? Ayrton Senna. Como eu jamais bebo, menos
ainda quela hora da manh, me assustei: delrio, loucura. Aquele cara estava me fazen
do mal.
Logo, logo, notei que tinha domnio perfeito de minhas faculdades mentais. A acele
rao que fez o carro - zzzuuuummmmmmmm - sumir na esquina reforava a idia de
que era mesmo ele, em pessoa, e no um fantasma. De mais a mais, era inconfundivel
mente de felicidade o sorriso que exibia no rosto a Daniela, uma das meninas da
Elite - que eu acabarade ver desembarcando do carro.
47
ADRIANE GALISTEU
Daniela estava radiante:
- Vocs viram quem acabou de me deixar aqui na porta?
- No, no. Quem? - a mulherada, curiosa, aglomerou.
- O Ayrton Senna. Meu novo namorado.
- Hummm... (dvida, cime e jeito de pedir "conta mais!")
- Pode acreditar. Ele o mximo. Estou apaixonada. Eu, com os meus botes: ela foi ao
jantar que eu no fui.
A moa no era das mais discretas. Diante daquela platia alvoroada, contou detalh
es da noite ntima. Massagens nos ps, nas mos, no pescoo. E por a vai.
Mincias das quais eu gravei, sei l por que, um detalhezinho:
- Gente, ele at botou pasta de dente na minha escova. (No nosso primeiro encon
tro, quis fazer a mesma coisa comigo. Reagi na base do "essa eu j manjo, cara".)
Loira de olho azul. Mulherao lindo. Gacha, a Daniela. O carinha tinha bom gosto.
E, de repente, estava todo mundo comentando que ia haver uma churrascada em
Angra. Relaxei: ento, uma festa. O convite geral. Peguei o telefone e disquei par
a ele.
- P, garotinha, voc no apareceu - repreendeu, carinhosamente. - E a Angra, voc ve
m ou vai furar outra vez? Tentei desconversar, louca, porm, para dizer sim:
- No deu pra ir. Sobre Angra, eu j disse que preciso conhec-lo melhor.
Contra-ataque arisco, o dele:
- Estou querendo ir amanh. Por que, antes disso, voc no passa pelo meu apartamen
to e a gente conversa?
48
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Fiquei de posse daquele valioso tesouro. Escrito num pedacinho de papel, o ender
eo - Rua Paraguai, 64, dcimo stimo andar. Prdio de tijolinho, ele me explicou.
O nico da rua. Disse como chegar l.
A aventura me atraa e me repelia. Eu, que durmo como uma teenager, tive sobressal
tos aquela noite, remoendo as idias mais estapafrdias e regressando sempre para
o mesmo ponto de interrogao:
- Mas por que eu?
(Agora que tudo passou, a mesma pergunta que volta, impiedosa.)
No sabia aonde aquilo ia chegar. Mas foi alguma coisa alm de curiosidade feminina
que me empurrou at o apartamento dele, no final da manh seguinte, quinta-feira,
10 de abril - foi alguma coisa que no sei bem o que . Ele me esperava com naturali
dade e aquela carinha de menino indefeso. Cala creme social, de preguinhas.
Sem camisa - trax rijo. Os ps descalos deslizando pelo carpete alto, daqueles em qu
e fica impossvel encontrar a tarracha de um brinco. Tudo muito respeitoso:
ele se sentou numa poltrona a uma distncia razovel - bem razovel, eu me recordo - d
o sof de couro onde me instalei. Na sua mo, um copo de vitamina C efervescente.
Meu olhar de mulher passeou rapidamente pelo apartamento, que ele dividia com o

irmo, Lo - flat tpico de solteiro, mas com mveis de qualidade e um toque de muito
bom gosto na decorao.
a?
Ele se sentia to inibido quanto eu. Dava para cortar o ar com uma faca. Ele tomou
a tmida iniciativa de quebrar o gelo:
E
49
ADRIANE GALISTEU
- Muito prazer. Eu me chamo Ayrton Senna da Silva. Tenho 33 anos, no tenho
namorada...
- Como no? Eu conheo sua namorada! A perplexidade dele parecia sincera:
- Eu?
- Voc, sim.
- Mas quem ela?
- A Daniela (dei o nome completo). - Como ela , hein?
Por uma frao de segundo, achei que estava diante de um cafajeste clssico. Desc
revi: loira, olho azul, alta...
- Ento esse o nome dela?
Ah, os efeitos perversos da bebida. Logo eu que no bebo, penitenciava-se ele
. Mas de vez em quando acontece, de pura euforia. Ele foi enumerando: ao final
do GP do Japo, em 1990, quando se sagrou bicampeo do mundo, um porre dos diabos; a
gora, naquelas comemoraes do GP do Brasil, dias atrs... Ele podia contar nos
dedos as situaes em que perdera o controle.
Conversamos uma hora e meia. Em nenhum momento, eu enxergava naquele ser huma
no descalo, que tomava vitamina C, o mitolgico personagem de macaco e capacete
que enfeitiava os fs do automobilismo do mundo inteiro. Para mim, era um momento e
special e imprevisto. Falamos de tudo. De corrida, um pouquinho. De vida, trabal
ho
e sentimento, muito. Eu queria saber dele, mas ele tambm queria saber de mim - e
ouviu, com a maior pacincia. At reparou na minha blusa, "linda" - rosashocking,
de manga comprida, embora fizesse um calor africano l fora. Voltou, enfim, ao ass
unto Angra: iam muitas pessoas, seria uma festa, nada de formalidades.
50
CAMINHO DAS BORBOLETAS
- No sou do tipo de arrancar pedao - brincou.
Na verdade, eu j estava decidida. Deixara a mala, prontinha, prontinha, no m
eu carro. Guardei o carro na garagem do prdio, entrei no Honda negro que eu tanto
tinha invejado a distncia, antes, e segui em frente. Naquele fim de semana prolon
gado, eu, Adriane Galisteu, modelo, 19 aninhos, iria experimentar o doce prazer
ambicionado por milhares e milhares de mulheres de todo o planeta. O Ayrton Senn
a homem ia se apresentar, por inteiro, a mim. Numa noite de cu estrelado, como re
comendaria
um conto de fadas.
Tive quatro namorados em meus 21 anos. Sinto muito decepcionar aqueles que
imaginam a vida de modelo como uma fatigante liquidao de cama e mesa. Se h conselho
que j posso dar a algum, em minha pouca idade, o de no se deixar levar pelas aparnci
as. Por exemplo: beleza e glamour podem servir de fachada a uma inconsolvel
solido.
Quando conheci o Ayrton, estava vivendo os ltimos momentos de uma relao em cri
se. No voc quem determina quando a paixo se vai - a coisa simplesmente
acontece. Tive poucos amores, mas de cada um deles guardo um sentimento bom, de
calor e respeito - e isso vale especialmente para o Csar, com quem dividi por um
ano inteiro casa e o dia-a-dia at que as tais incompatibilidades de gnio se manife
staram. Foi bom enquanto durou. E foi timo que a vida tenha me dado o alento
de trocar os espinhos de uma separao pelo buqu de um novo amor 51

ADRIANE GALISTEU
amor que, acontea o que vier a acontecer na minha vida, estar gravado como aqueles
coraes trespassados por setas que voc v nos troncos das rvores dos parques
municipais.
Angra, l vou eu. Pela primeira vez, eu saa de casa a passeio, no a trabalho. Na min
ha confuso momentnea, embaralhava-se a crise conjugal com delrios profissionais
- ir para Hong Kong, por exemplo, de onde um amigo meu, tambm modelo, Srgio Finett
o, me acenava com perspectivas de um mercado em expanso. Dei at um passo concreto:
indicada pela Elite, posei para a Playboy. No Guaruj - uma marina e um barco mara
vilhosos. O cach pagaria a passagem e os primeiros tempos de adaptao no Oriente.
Cheguei a comentar com o Ayrton, a caminho do heliporto. A reviravolta que aquel
a viagem nem bem iniciada produziria na minha vida impediu que as fotos de Playb
oy
fossem publicadas.
O helicptero esperava por ns no heliporto do prdio de escritrios dos Senna, no ba
irro de Santana. Como eu sinceramente queria desanuviar, na viagem, sem nenhuma
outra inteno alm disso, foi um alvio perceber que j esperavam por ns Norio Koike, um i
ncansvel japons freqentador do circo da Frmula 1 mas que acabou fotgrafo
particular do Ayrton, e duas meninas da Elite, duas outras Danielas, ou congneres
- a Daniela Carvalho e a Danielle Aguiar. Alvio para mim, choque para elas, que
no esperavam me ver ali, chegando com o dolo.
Primeira viagem de helicptero, e logo com quem. Ele levava ao p da letra a pa
lavra piloto. Carro, helicptero, avio, lancha, jet-ski - tinha a mania de estar
sempre no comando das operaes. Norio, ao lado dele. Ns trs atrs.
52
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Eu, sem graa, me contorcendo para no roer as unhas de ansiedade e condenada a serv
ir de Cristo dele:
- No se preocupe, no. Eu tive uma aulinha de direo antes de a gente vir pra c.
Tentei me distrair dividindo minha ateno com a paisagem e minha curiosidade c
om o Norio. Como modelo, eu estava acostumada a filmes e a equipamento fotogrfico
,
mas o japons extrapolava. Pendurava-se de incontveis mquinas e lentes, pequenas, mdi
as, grandes, zooms, teleobjetivas, grandes-angulares, etc. Carregava uma
caixa com quinhentos filmes - isso mesmo, quinhentos. Fiquei sabendo que, com aq
uela desconfiana que tinha da imprensa, Ayrton s se deixava fotografar
pelo Norio.
Sob o sol magnfico de Angra, um oriental da cor do tomate era visto, clique, cliq
ue, perseguindo, empapado de suor, o seu cobiado alvo. Depois, revelava pessoalme
nte
os filmes, colocava cromo por cromo nas cartelas e destinava todo o material ao
patro - o qual, minucioso, cauteloso com sua imagem, selecionava dali meia dzia
de fotos, nunca mais do que isso. Norio tinha no sangue aquela elegante discrio qu
e caracteriza sua gente. S falava ingls - pouco e, penso eu, propositalmente
mal. Tenho certeza de que ele entendia tudo o que ns dizamos em portugus. De vez em
quando, eu surpreendia um
brilho maroto em seus olhinhos vivos e inteligentes. Ele
tratava de despistar.
Ali no helicptero, entre nervosa e ansiosa, observando o japons Norio, eu comeava a
tomar contato com uma parte
importante da vida de Ayrton Senna: aquele clubinho fecha
do, o Clube dos Amigos do Bco. Uma dezena de pessoas,
53
ADRIANE GALISTEU
por a, que tinha acesso resguardada senha dessa intimidade: o apelido de famlia. G
ente como o Gordinho, que eu tinha conhecido na pista, o Cristiano, o Jnior,
companheiros de rua da Zona Norte de So Paulo.

Aquela coisa: diga com quem andas e eu te direi quem s. Se aqueles dias em Angra
foram a chance de conhecer a intimidade do maravilhoso ser humano Ayrton Senna,
muito desse conhecimento foi revelado pelo contato travado com os amigos dele. P
ois a vitria do GP do Brasil abriu a temporada de festas. Maria e Mateus, os enca
ntadores
caseiros, paixo do Bco (que eu acabaria por assumir tambm como minha paixo), estavam
eufricos. Mas recepo barulhenta mesmo, com direito a muito rabinho balanado
e pulinhos de alegria, quem propiciou ao helicptero foi a Quinda. Alegria logo tr
ansformada em agressiva ciumeira, ao notar que seu heri chegava acompanhado de
trs mocinhas bonitinhas:
- Liga no - tranqilizou o piloto, enquanto descia o helicptero sobre o gramado d
aquele condomnio na praia de Portogallo. - Ela muito possessiva.
Despudorada, a Quinda se jogou nos braos do Bco. Agarrei minha mala e fui me re
fugiar dentro de casa, deixando atrs de mim o som de rosnados ameaadores. Pensei
comigo mesma:
- Concorrer com essa a, no vai ser fcil.
uem no conhece Angra num dia de sol no tem idia o que a experincia mais prxim
a do paraso na Terra. Bco e eu teramos, mais tarde, a oportunidade
de
54
CAMINHO DAS BORBOLETAS
uma inesquecvel viagem a Bora-Bora, com clima de luade-mel e cenografia pintada p
elo Gauguin, mas Angra continuar tendo a precedncia sobre todos os lugares no
meu lbum ntimo.
Em noites atribuladas, reproduzo mentalmente a arquitetura sbria do casaro, o baru
lho das ondas que vinham morrer aos ps de nossa janela, a exploso das estrelas
no cu, as gargalhadas dos convidados, o ronco dos motores dos jet-skis e das lanc
has, -o vo nervoso do helicptero, os latidos apaixonados da Quinda - e, na contral
uz
do luar que banhava nosso ninho de amor, aquele rosto esculpido por um artista,
as feies delicadas, os olhos midos de carinho, a boca sempre ameaando um sorriso
lindamente tmido ou, sei l, timidamente lindo.
Ele recrutou todos os elementos, e mais alguns, para compor o cenrio de nossa
primeira noite de amor - que, na verdade, foi a ltima noite de todas as que passe
i
naquele meu maravilhoso fim de semana em Angra. Sou capaz de jurar que Bco chamou
os grilos, encomendou o pio das aves noturnas, solicitou a presena das ondas,
convidou a Lua e todas as estrelas do zodaco para servirem de testemunha daquele
momento mgico. Orquestra e iluminao, som e luz - a natureza de Angra, em festa,
colheu os primeiros sussurros de dois enamorados.
No estava nos meus planos, mas aconteceu, na pureza de um encontro no programado.
Senti, claro, que ele me dedicou, desde nossa chegada, as suas melhores atenes.
Eu o observava. Vi que ele tambm me observava. Nem bem tnhamos chegado, mal refeit
os de um almoo principesco - a portuguesa Maria uma cozinheira de mo cheia
-, ele foi me buscar na praia onde eu tinha esticado
55
ADRIANE GALISTEU
minha canga para tomar sol, a uma estratgica distncia da
indcil e ainda rancorosa Quinda - uma schnauzer preta
I fantica por calcanh
ares e que, soube depois, deixara uma
irm, a Mouse, na casa em que nasceu, no Algarve, em Portugal. Ayrton tomou-me pel
as mos e me convidou para o mar.
r - Acabei de comer - hesitei.
Sempre ouvi histrias ttricas de congesto, essas coisas. Ele me gozou:
- Est com medo de morrer, ? - Sei l.
Sem prestar muita ateno, foi l dentro buscar um enorme colcho de ar, to grande q
ue cabiam nele as duas Danielas, ele, eu - e a Quinda. Todos para o mar.
Mas, desconfiada de ter como companheira de viagem a melindrada cachorrinha, eu
no tirei os olhos dela. De repente, sinto um safano e caio n'gua, tchbum. Meus

olhos abrem-se, aps o mergulho sem querer, sobre duas expresses de genuna felicidad
e: a da Quinda, que abana o rabo, radiante em sua silenciosa vingana, e a
do meu anfitrio, que gargalha:
- Morreu? No morreu.
E, de repente, tambm se joga: - Vou morrer com voc!
Da praia, Norio disparava seus cliques incansveis. Uma multido aportou por l, noite
. Gente para ficar, gente s de passagem. O proverbial estilo recatado de
Ayrton no economizava gentileza quando se tratava de receber os amigos. O QG da a
nimao era o salo de jogos, que ficava num plano um pouco mais alto em relao
ao casaro principal. Sinuca, pebolim, pingue-pongue,
56

CAMINHO DAS BORBOLETAS


um telo magnfico, com videolaser, sofs to aconchegantes como colo de me, mesas para a
gente escorar o p muito conforto numa atmosfera de descontrao praiana.
Eu cheguei num vestidinho branco, tnis branco, cabelo
molhado do banho, cara limpa. Estava queimada de sol.
Estava feliz e me sentia bonita. Fazia tempo que eu no me
dava o direito de viver impunemente, de um jeito to leve,
to gostoso, esse sentimento.
- Voc toma o qu? - ele se achegou, gentil. - No bebo nada. Coca-Cola, talvez.
- Eu a acompanho.
No s na bebida. Foi me conduzindo pelo salo, apre
sentando-me a um a um de seus amigos. "Meu irmo, Leonardo" - e ele me estendeu a
mo. "Esse aqui o Jaa"
- e eu, meio sem graa, "j conheo". Galera animadinha,
divertida. Jogamos pebolim, eu e ele. Vi que no era meu
esporte. Ele se divertia minha custa. Vamos danar, vamos danar. Danamos. Horas a fi
o. Carinho nos gestos e nas
palavras. Beijinho de tchau. At amanh.
Tnhamos um passeio de lancha programado para o
Saco do Cu. gua calma, cu azul, montanha verde - s de olhar e de sentir voc j abenoa
pelo criador dessas
maravilhas. Ayrton, todo speedy. Desamarra a lancha, entra
na lancha, acelera a lancha. A, pra. Mergulha. Volta lan
cha. Desembarca o jet-ski. Monta no jet-ski. Acelera o jetski. Some na linha do
horizonte, ou atrs de uma,ha prxi
ma. Regressa a mil por hora. Convida-me para uma volta:
- Quer pilotar?
- No, no sou do ramo.
Ele dirige, eu sinto o contato do corpo dele. Piloto, ele
. Acelera o jet-ski, faz uma curva fechada e levanta na
57
ADRIANE GALISTEu
crista do mar uma onda inesperada. Medrosa, eu: - Vai devagar, por favor!
Intil apelo, quando voc est falando com um Ayrton Senna.
O tempo ali no significava jamais um desperdcio - era uma soma. Sol, mar, carinho.
Eu senti que a cada minuto a temperatura entre ns crescia. Entre ns, quer
dizer: confesso que tambm comeava a gostar daquilo. Desceu a noite, comemos rapida
mente e mais um sarau de dana, vdeo e jogos ia comear. Eu, toda relax, me
vi sentada num sof, tomando a invarivel Coca-Cola e vendo e ouvindo o Genesis no t
elo. O Genesis era uma das bandas favoritas dele; a Coca-Cola era o meu hit
do corao. Ele acabaria por me converter, mais tarde, ao credo musical dele; eu no c
onsegui convert-lo a minha bebidinha.
(Naquela poca, eu era do tipo connaisseur. Degustava Coca-Cola como se fosse um v
inho raro e precioso, ao natural, s vezes sem gelo, para no comprometer o paladar.
Coca coca, coca clssica - nada de diet, essas coisas. No almoo, um litro; noite, o

utro; e mais uma latinha aqui, no lanche, outra antes de deitar... Ele conseguiu
curar essa minha obsesso. Um dia, me perguntou, meio enciumado: " disso que voc mai
s gosta na vida, no ?" Eu lhe confessei que tinha outra coisa da qual eu
gostava mais. E desde ento passei a cham-lo de Big Coke.)
Eu ali, com minha Coca-Cola, e ele se achegando. "Gosto muito do Genesis" como quem puxa conversa. Em tudo da vida, em msica tambm, ele gostava de umas
poucas coisas. Mas de todo corao. Genesis, Phil Collins, Roxette, Tina Turner, Fre
d Mercury. "E voc?" - perguntou. Eu estava embevecida com o telo e com a msica.
58
Ig
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Nunca tinha visto um videolaser. "Bonito, bonito", repetia eu, meio idiota. Muit
os dos convidados estavam fora da sala - ou passeando, ou na piscina -, o que pe
rmitia
uma certa intimidade, com aquela msica ao fundo.
Ele se sentou a meu lado. Um brilho iluminava seu rosto bronzeado e seu sorri
so adolescente. Senti pela primeira vez o calor de uma aproximao - real, espontnea.
Ele tinha a bvia dificuldade em dar o primeiro passo. Eu, mesmo querendo muito, n
unca dou o primeiro passo. Mas entre ns havia algo mais: uma conversa longa, um
olhar, um toque. Ele tentou me beijar. Eu me esquivei - bateu na trave. Fomos sa
lvos, os dois, em nossa timidez, pela chegada da galera ruidosa e alvoroada.
- E a, Nono, vamos jogar? Era o Criminoso, azucrinando.
Escapei para o banheiro, mas ouvi, atravs da porta, uma conversa do Gordinho c
om o Ayrton:
- Nada?
- Nada - a entonao do Ayrton era chocha.
- Mas voc no pode se queixar. Sua agenda est lotada, no est?
Antes que eu ouvisse a resposta dele, abri a porta e passei entre os dois. Um
sinal de alerta piscou na minha cabea: tudo contra, nada a favor. Afinal, ele er
a
o Ayrton Senna. E quem era eu?
Ainda com um sorriso amarelo, ele me seguiu. No esperou que eu me sentasse de
novo. De p, ele me beijou. O primeiro beijo. Um beijo de verdade. E mais um, outr
o,
outro mais. Beijos, beijos e beijos. Parece que a noite estacionara em cima de n
ossas cabeas - tudo parou: a noite, o tempo, os rudos, o mar, o vento. Beijos e
carcias. No
59
ADRIANE GALISTEU
mais do que isso. "Fique sabendo que isso, para mim, muito srio", interrompi. "Pr
a mim tambm", disse ele. Os convidados e o sono puseram um ponto final no nosso
primeiro momento de paixo explcita.
Constrangimento absoluto na manh seguinte - constrangimento e dvida. Aquela histria
de agenda lotada me incomodava. No estava a fim de ser apenas mais uma aventura
de vero. L mesmo, ele tinha outras meninas disponveis, pensei comigo. Tomei uma dis
tncia proposital. Junteime moada. Mas no tinha como no observ-lo, de
esguelha. E, toda vez que eu olhava, l estavam os olhos dele, mais meigos do que
gulosos, cravados em mim.
Desconcertada, eu no sabia nem como me dirigir a ele. Ayrton? Soava estranho, nen
hum de seus amigos o chamava assim (minha me, quando me chamava de "Adriane"
porque vinha bronca certa). Senna? Institucional demais. Senna era o piloto camp
eo, no aquele menino lindo que pouco a pouco se revelava para mim. Bco? Era o
apelido da famlia, dos amigos de infncia. Eu ainda no me sentia assim to ntima. Ficou
meio ridculo, mas o que fiz, aquele dia, e continuei fazendo, nos seguintes,
era ir at ele e pux-lo pela camisa, ou pelo brao, assim sem jeito:
- 0, olha aqui...

O sol e o calor nos brindaram, naquele sbado, com um dia apotetico, desses re
comendados a coraes de repente enamorados. O que me lembro dele so imagens,
gestos, sons que nem sempre se encaixam coerentemente. Vejo-o ainda agora aceler
ando a lancha Joanna II (comprada, como a casa de Angra, do Braguinha, que a bat
izou
com o nome de uma de suas filhas, hoje minha amiga),
60
CAMINHO DAS BORBOLETAS
com Tina Turner esgoelando furiosamente no toca-fitas, enquanto a Quinda, esbafo
rida, tenta estabelecer, com seus latidos, uma competio. Cabelos ao vento, sol
de rachar, cu sem uma nica nuvem. Um dia de encomenda - aquele que seria o meu ltim
o dia ali. Domingo -j tinha avisado a todos - eu teria de embarcar de volta
para So Paulo, onde um compromisso profissional me esperava.
Eu passava por um perodo de grande confuso na minha vida. Aquele dia magnfico
em Angra, o sol, o mar, o cenrio, as pessoas, tudo aquilo me fazia esquecer
passado, presente, futuro. Vivia o momento - era o que importava. Escorrendo de
suor, branquelo que s ele, de short e carregado de mquinas, Norio fotografava sem
parar. Ouvi um clique quando, no final da tarde, na lancha, voltando do Saco do
Cu, Ayrton me surpreendeu com uma prolongada carcia no cabelo - e, logo, um beijo.
possvel que, sensvel que , Norio tenha retratado tambm a felicidade que minha alma b
uscava inutilmente esconder.
A temida Quinda nos esperava no per, abanando o rabo. Aproximou-se de mim, q
uase rebolando, e lambeu minha mo, carinhosa. Foi a primeira a entender.
Sabe quando ele arriscava tudo, numa daquelas ultrapassagens impossveis? Pois fo
i assim comigo:
- Voc est num quarto sozinha, com duas camas - comeou. - Vou ter de mud-la.
Despistei:
- Tudo bem, durmo na sala.
- Probleminha: a sala tambm est ocupada - conti
61
ADRIANE GALISTEu
nuou. - Alis, no sei se um problema ou uma soluo. - Onde que eu fico? - me fiz de bo
ba.
- Eu lhe mostro.
Subiu comigo at meu quarto - eu envergonhadssima daquela baguna de praia, roupa
jogada aqui e ali - e pegou as malas. Abriu uma porta e apresentou:
- o meu quarto. Agora tambm o seu. Fique vontade.
Tentei prestar ateno em alguma coisa, alm da minha prpria estranheza, e me detive
no closet, onde brilhavam, branquinhos, uns quarenta, cinqenta pares de
tnis. Sapatos. Cintos - centenas. E roupa, muita roupa. Arrumadinha, passadinha,
dobradinha. Ele tinha o suficiente para morar naquela casa o ano inteiro.
- Sou meio manaco - disse ele, sem graa diante do meu espanto.
Reparei at num duende, pousado numa mesinha. Eu o peguei e observei. Fantico
por arrumao, ele me tomou das mos e o colocou no lugar (tempos depois, a me
dele me pediu para jogar fora o duende; joguei; sei l, talvez no devesse ter jogad
o).
- Tambm tenho minhas manias - disse eu. - Quais?
- Cremes e perfumes.
- Pois ento venha c ver uma coisa - ele me puxou pela mo at o seu banheiro.
S em Angra, ele tinha mais creminhos e perfumes que eu jamais tinha tido em
toda a minha vida. Bom, pelo menos j havia entre ns alguma coisa em comum, alm
do Genesis e da Quinda. Dali a poucas horas, estaramos repartindo algo muito mais
importante.
62
CAMINHO DAS BORBOLETAS
O amor fluiu natural - sem pressa, gostoso e espontneo. Sem falso moralismo: d

ormir no quarto dele no significava, para mim, obrigatoriamente, uma noite de


sexo e intimidade. Havia um clima, uma aproximao, um desejo. Mas eu teria pudor de
embarcar numa aventura pela aventura - e, no dia seguinte, literalmente, tchau
e at mais. Dormir com um mito, um dolo, uma celebridade internacional. Um homem qu
e produzia manchetes no mundo inteiro. De mais a mais, eu tinha adorado aquele
paraso equeria voltar l, namorada ou amiga, o que fosse.
Televiso ligada. Eu, metida num pijamo quase blindado. Cama king-size - chance
de rolar para o lado, em fuga estratgica. Beijinhos, carinhos, "at amanh".
No tive tempo de contar at cinco - com aquele meu sono juvenil, despenquei. Sei l q
uanto tempo depois - a vaga recordao de uma claridade me vem aos olhos -,
levei um cutuco.
- No estou entendendo nada - disse ele, acendendo a luz e se apoiando no travesse
iro. - O que voc quer? Quer casar comigo? Tem uma igrejinha aqui na praia da Jipia
,
s juntar as testemunhas e ir l.
Continuou a falar: a dizer que era tudo muito especial, que existia uma magia en
tre ns, que isso no era sentimento que ele tivesse assim, assim, em qualquer momen
to,
que ele, por muitas razes, tinha sido uma muralha emocional, mas que eu, em apena
s dois dias, tinha feito um furo nessa muralha.
Falava e acariciava o meu p.
- Ah, o p no! - eu pensava. Chegou ao ponto fraco, ao calcanhar-de-aquiles.
De repente, me beijou os ps, com enorme delicadeza.
63
ADRIANE GALISTEu
- Voc a primeira mulher, de trs anos pra c, que me provoca esse desejo. De beijar o
s ps, no s. De beijar o corpo inteiro.
Queria guardar esse momento s para mim - e para ele. As estrelas piscavam, em que
nte cumplicidade. Quando acordei, j sol alto, depois que tudo aconteceu, eu estiq
uei
meu brao para o lado, tateando onde ele deveria estar, e no havia ningum. Pnico. Par
ania do tipo "t vendo? Ele j se encheu". Corri procura dele. Descobri-o
no per, sem camisa, descalo, olhando para o infinito, assobiando uns acordezinhos
que nem chegavam a compor uma msica. Um tralal, s isso. Ele parecia feliz.
Eu estava feliz, imensamente feliz.
Sa dali, no comeo da tarde, no helicptero dele at o aeroporto de Angra. De l, pe
guei o avio. Tinha um desfile em So Paulo. No importava o que aconteceria
a partir dali. Importava o que tinha acontecido.
Angra passou a ser minha casa - nossa casa. Compartilhei com ele vrios lares. Mo
ramos juntos no apartamento da Rua Paraguai, em So Paulo. Dividimos, certas noite
s,
quarto e cama na casa dos pais dele, no Pacaembu, onde a Zaza me acolhia como um
a filha e dava colo a muitas das minhas ingnuas confidncias de menina de 20 anos.
Estivemos juntos no apartamento de Mnaco, antes do GP de 1993. Viajamos pela Euro
pa e pelo Oriente. Freqentamos por longos perodos a fazenda Dois Lagos, em Tatu,
no interior de So Paulo, com toda a famlia, senhor Milton, a Zaza - ela j no me perd
oaria a forma
64
CAMINHO DAS BORBOLETAS
lidade de um "dona Neide" -, o Leozinho, a Viviane, o marido dela, Lalli, os sob
rinhos Bia, Paulinha e Bruno, o Fbio Machado, primo como se fosse um irmo, com
a mulher, Nice, e os filhos Fbio, Fabiana e Fbia. Em Portugal, vivemos na casa do
Algarve assim como passamos momentos inesquecveis nesta quinta de Sintra, neste
anexo que passar posteridade como "Casa do Ayrton" - aqui onde hoje cada detalhe
me d conta de sua ausncia, no silncio de nosso quarto fechado, isso mesmo,
trancado a sete chaves, j que eu, covarde, nunca mais quis olhar o cenrio de to dol
oridas recordaes.
Confesso: dia desses, entrei, no por valentia e sim por pura emoo. Na noite da f

inal da Copa, o Brasil vencendo mas nos fazendo sofrer at o ltimo momento
naquela agonia dos pnaltis. Uma amiga me trouxe um vdeo em que os craques brasilei
ros dedicavam a vitria ao Ayrton. Cumpriram com a palavra. Abri a porta e desabei
num choro incontrolvel. Era o melhor lugar para comemorar um tetracampeonato que,
afinal, era tambm dele.
Ayrton era um cigano caseiro. Pode parecer uma contradio, mas digo cigano por ofcio
, caseiro por opo. Obrigado a ser cigano pela vida profissional, no perdia
o hbito de ser metdico, deixando mo, em cada lugar onde pousava, suas roupas arruma
dinhas, seus pares de tnis, suas camisas impecveis, seus cintos - centenas
de cintos -, suas restritas predilees musicais, seus hbitos alimentares, suas mania
s.
Mas se algum pede para eu contar qual era a nossa casa, o nosso lugar, o que
me vem automaticamente cabea aquele deck de Angra, a varanda, a piscina,
os jet-skis (eram seis, pelas minhas contas), a zoeira dos camaradas, as
65
ADRIANE GALISTEU
visitas dos amigos, as confidncias com minha amiga Maria, as caminhadas com a Xan
a, filha dela, a comida deslumbrante que punha em risco meu regime, a simpatia
e o cuidado extremo do Mateus, arteso de mo cheia, as duas lanchas, o sol, o calor
, a impenitente Quinda mergulhando na gua atrs de algum desavisado que se aproxima
sse,
o pr-do-sol de, aquarela, a Lua, as estrelas, a mais perfeita configurao do paraso.
Angra, sim - porque era ali que eu tinha um Bco s meu, a milhas e milhas de distnci
a da instituio mitolgica Ayrton Senna da Silva. Sem egosmo: era ali tambm
que ele se tinha s para si mesmo, homem, amigo, moleque, palhao, inquieto, preguios
o, esperto, bobo, frgil, mas forte naquilo em que era verdadeiramente fundamental
para um ser humano ser forte. Imaginem um tricampeo do mundo, reverenciado como u
m semideus, descendo para o caf da manh com aquela cara amarfanhada de sono,
s de calo e chinelo, sem camisa, barba por fazer, brigando com o amigo que lhe roub
a a torrada com requeijo, ou, depois, no almoo, com o cotovelo esquerdo apoiado
na mesa enquanto a mo direita, armada de um garfo e operando como se fosse uma p,
escavava um prato de talharim com muito molho de tomate - al dente, exigia ele.
Ele era, tambm na hora de comer, o rei da massa.
- O Nuno manda comer pasta, para recuperar energia - tentava desculpar ele a sua
voracidade, convocando o distante testemunho de seu histrico amigo e preparador
fsico.
(Fiquei sabendo que, de fato, um piloto como ele perde de trs a quatro quilo
s numa prova. Tagliatelle nele!)
Angra era isso: ele brincando, ele rindo, ele correndo, ele danando, ele jog
ando, ele ouvindo msica, ele amando
66
CAMINHO DAS BORBOLETAS
- ele, todo sentimento, afetuoso, relax, terno, brando, to vontade que conseguia
at dormir um sono juvenil, com uma aurola de paz emoldurando seu rosto, coisa
impensvel nos dias em que vestia o macaco do Senna piloto ou nos ambientes em que
botava, a contragosto, o figurino do Senna businessman.
Um refgio, um exlio - de repente, ele me catava em So Paulo, acionava as hlices do h
elicptero e l amos ns, a ss, para uma escapadela que podia durar apenas
um dia, ou mesmo algumas horas. A magia do paraso soprava para longe quando a pre
sso das provas, dos resultados e das decepes subia o termmetro de nossa ansiedade.
Angra tinha um poder curativo sobre ele. Angra, grau zero de adrenalina.
Numa dessas fugas estratgicas, a dois, fomos de jetski at a praia dos Macacos.
Caminhamos de mos dadas, acobertados pela natureza selvagem. Foi sempre assim
o nosso amor: algumas palavras essenciais e muito silncio. Os gestos, os toques,
os olhares tinham a equivalncia carinhosa de um dicionrio de verbetes romnticos.
Ele continuou a caminhar, enquanto eu me esticava numa canga preta, com estampas

de Bali. Ele parou e veio deitar-se a meu lado. Espremidinhos naquele pedao de
pano, sem trocar palavras, adormecemos. Se algum passasse por perto no haveria de
acreditar que um sono plcido embalava, numa tarde de sol, o tricampeo de velocidad
e
- um homem sobressaltado pela obrigao do desempenho e da vitria. Ele dormiu, eu dor
mi - duas, trs horas. Quando despertamos, Vnus j brilhava e a noite comeava
a dominar o cu.
Ele abriu o olho:
67
ADRIANE GALISTEU
- Viajei... Voc me fez viajar, com seu peso-pena em cima de mim.
Pode haver imagem mais bonita para guardar na memria? Dias atrs, fui praia no E
storil, com minha me. Levei comigo, por acaso, a canga indonsia. No tive
coragem de estic-la na areia. Enrolei-a como se fosse um travesseiro, recostei mi
nha cabea e torci, de olhos fechados, para que o sono viesse - trazendo de volta
aquele momento encantado de Angra, a esperana de que a realidade fosse o pesadelo
e que o sonho virasse verdade. Em vo. Chorei. Minha me chorou comigo.
Houve outra vez em que ele me mostrou um poema em forma de orao, guardado, dobradi
nho, na sua carteira. Tinha o ttulo Pegadas na Areia. E tinha uma histria.
Contou que passava por um momento difcil da vida - pessoal, emocional, profission
al. Estava em Angra e saiu sozinho para correr numa praia deserta, pilotando o
helicptero. Sozinho, no - a Quinda o acompanhava. Desceram, ele calou o tnis e foi c
orrer. Quinda, discretssima, ficou sentada na areia, observando o mar. O
silncio era absoluto - ele s ouvia os seus prprios passos no piso duro da praia. Fo
i correndo at o canto da praia e voltou. Viu as marcas de seus ps na areia
- nada mais do que aquilo indicava a presena de algum tipo de vida naquela imensi
do. Foi um momento mgico - de revelao. Ele refletiu sobre sua solido. Ela
lhe doa no peito, lhe parecia enorme. Mas, pensou, aquelas suas pegadas na praia
eram uma migalha na amplido do universo. Ele se sentiu vivo, e minsculo, diante
do mistrio da criao. Levantou vo no helicptero e ficou sobrevoando a trilha na areia.
Infinitas so as maneiras de Deus se revelar aos
68
CAMINHO DAS BORBOLETAS
homens. Para o Bco, bastaram umas marcas de areia, num dia de sol, na vasta solido
de Angra dos Reis.
PEGADAS NA AREIA
Uma noite eu tive um sonho...
Sonhei que estava na praia com o Senhor e, atravs do cu, passavam cenas da minha v
ida! Para cada cena que passava, percebi que eram deixados dois pares de pegadas
na areia.
Quando a ltima cena da minha vida passou diante de ns, olhei para trs, para as pega
das na areia, e notei que, muitas vezes, no caminho da minha vida, havia apenas
um par de pegadas na areia. Notei, tambm, que isso aconteceu nos momentos mais di
fceis e angustiantes da minha vida.
Isso aborreceu-me, deveras. Perguntei, ento, ao Senhor.
"Senhor, tu me disseste que, uma vez que eu resolvi te andarias sempre comigo, t
odo o caminho, mas
notei que, durante as maiores tribulaes do meu viver, havia, na areia dos caminhos
da minha vida, apenas um
par de pegadas. No compreendo por que, nas horas em que eu mais precisava de ti,
tu me deixaste ".
seguir, tu
O Senhor me respondeu:
"Meu precioso filho: eu te amo e jamais te deixaria nas horas de tua prova e do
teu sofrimento!
Quando viste na areia apenas um par de pegadas, foi exatamente a que eu te carreg
uei nos braos".

69
ADRIANE GALISTEU
Ao deixar Angra, naquele domingo de vero e do primeiro encontro, minha alma era
um gro de areia. Depois daqueles quatro dias de idlio, ia voltar a minha praia.
Trampo duro. Duas da tarde, desfile da griffe Australian Downsound, no AeroAnta
- que eu tinha de coordenar. Estilo som reggae, moada parafinada, meninas de penu
gens
douradas nas pernas, cales rasgadinhos de lado, camisetas estampadas, pranchas que
sonhavam com os tubos do Hawaii (pronunciava-se, na tribo, Rauai). At o dia
em que voei para Angra, essa era, de certo modo, a minha tribo. Agora que eu voa
va de volta, sentia que no pertencia mais a ela.
Os quarenta e pouco minutos de viagem no King Air dele, um avio azul e branc
o que ficava permanentemente estacionado no aeroporto de Angra, me pareceram mil
hares
de horas. Olhava da janela, aflita:
- Ser que verei isso de novo? Numa traduo mais verdadeira: - Ser que verei ele de no
vo?
A tal histria da agenda lotada me atormentava. Mas outros pensamentos vinham
em meu socorro, esperanosos, e eu me apegava a eles: a insistncia dele para
que eu ficasse at quarta-feira; os momentos de carinho vividos intensamente; ele
me levando de helicptero at o aeroporto e se despedindo com um prolongado beijo.
As certezas brigavam, porm, com as dvidas e eu me debatia com aquele burocrtico "a
gente se v" que ele me disse, como despedida. "A gente se v", eu remoa.
"Ele no teria uma frase menos bvia para dizer?" O avio rompia a serra do Mar e eu j
no olhava para nada, tomada pelo pnico de ter vivido apenas o sonho de
uma noite de vero. Mas, a,
70
CAMINHO DAS BORBOLETAS
me lembrava daquela tarde em que ele me seqestrou para
um passeio de jet-ski e foi se distanciando de todos, da lan
cha, dos convidados, at que a gente aportou numa praia
deserta e ele, depois de me roubar um beijo, avanou:
- Tem duas coisas que eu ainda quero na vida. Uma
delas fazer amor na praia. A outra...
(pensei assim: correr na Ferrari, ser dono de uma escu
deria, morar em Portugal)
... a outra - continuou ele - fazer amor na praia
com voc.
No rolou naquele dia. Mas, se eram as duas coisas que
queria mesmo fazer na vida, ns as realizamos juntos.
No me arrependo de nada que fiz. Arrependo-me de coisas que no fiz. Como no ter me
jogado ao pescoo dele, depois da primeira madrugada de amor, cobrir seu rosto
de beijos e dizer, com todas as letras, o que se passava no meu corao:
- Voc me acendeu. Voc o homem da minha vida. Por pudor, por medo do ridculo, rec
eosa de desmoronar o encanto, eu me contive. Mas nem preciso dizer como So
Paulo e o trabalho me encontraram. A cabea era uma massaroca. "Se eu pudesse volt
ar atras, no faria de novo" - era a culpa que chegava. "Foi lindo, por que me
culpar?"- eu me absolvia no tribunal de minha conscincia. Felizmente, tenho uma p
essoa de absoluta confiana, a quem nunca tive vergonha de consultar sobre meus
segredos, todos eles. Liguei para minha me - isso mesmo, minha me, scia de todas as
agruras e felicidades de
71
ADRIANE GALISTEU
minha vida, desde sempre, desde criancinha. Ela quase
teve um chilique. Perguntei:
- Ele vai me ligar?
- Vai, minha filha. Vai.

A voz dela, ainda que surpresa, no era de quem consolava uma filha ansiosa e conf
usa. Era a voz do conheci
mento e da razo.
Passei a segunda-feira em planto telefnico. Nada.
Corri para pedir colo a minha me. Ela insistiu: "Vai tele
fonar". Tera-feira - espera. Telefonou. Meio tmido:
- Perdeu um festo.
- Ah, ? - eu, travadona.
- Tem mais: voc esqueceu seu relgio.
Pensei comigo: Freud explica.
- Aqui pra ns, relgio horrvel, hein? Pesado,
meio masculino... Achei que era de algum amigo meu provocou.
Modelito surfista: relgio de mergulho. Mas eu gostava. Sugeri que ele entregasse p
ara a dupla Daniela-Danielle,
com quem eu acabaria me encontrando na agncia.
Encontrei-as, na quarta-feira, mas nada de relgio.
- Ele quer entregar pessoalmente - disseram as
duas. - E olha, no falou de outra coisa a no ser de voc.
Tive que me conter para no sair, em plena Elite, dando socos no ar, como um jogad
or de futebol aps o gol. Mas
meus olhos devem ter me denunciado quando elas contaram
a reao dele, quando o Gordinho sacaneou:
- Voc ficou amarrado na loura, cara! Eu tambm.
Ayrton fechou a cara:
- No brinca com isso, no.
Meu entusiasmo me fez jogar para o alto todos os com
72
CAMINHO DAS BORBOLETAS
promissos do dia. Sa para comprar roupa - queria ficar bonitinha para ele. Corri
para o colo da mame - para saborear com ela as novidades. Voltei para casa, irreq
uieta
- e o telefone tocou, com um convite: jantar com ele, aquela noite, para poder m
e devolver o que eu tinha esque
cido. Lembro-me de ter devorado, heresia suprema para
uma modelo, um beirute daqueles gigantes do Frevinho.
Fast food, sei l quais eram as intenes dele. As minhas
eram claras: s pensava em estar ao lado dele. Levou-me
logo para sua casa. Papo vai, papo vem, queria porque que
ria que eu passasse a noite l. No fiquei. Ele relutou, mas
compreendeu. No escondi dele um detalhe da minha vida
pessoal - fao questo de ser leal em tudo, em termos de
relacionamento. Mas uma urgncia me pressionava. Com
ou sem Ayrton Senna (essa mstica ainda me apavorava),
era hora de pr um ponto final nos dramas e vaivns do
meu passado amoroso.
Fiz minha trouxa e comecei a me mudar - gradual
mente, de forma a no produzir feridas e mgoas, mas com
convico, a cada momento que se seguia a uma daquelas
tpicas discusses que no levam a nada. Estiquei um col
cho na casa de minha madrinha - ela e meu tio me acolheram com enorme carinho. Pa
ra agravar, os imprevistos
externos: notinhas da imprensa, falando da "amiga secreta
de Ayrton Senna" e ilustradas com fotos de Angra.
Fomos ns, meninas da Elite, distribuir ovinhos de Pscoa na Avenida Paulista, uma p
romoo pr-Pscoa da
Amor aos Pedaos. Fotgrafos e reprteres nos cercam. De
repente, uma jornalista mais atilada d o alarme:
- Mas voc no a namorada do Ayrton?

No dia seguinte, esta coelhinha que vos fala estava na


73
ADRIANE GALisTEu
primeira pgina de todos os jornais. Fato consumado, captulo novo na histria de minh
a vida.
Pra os jornais, eu era a nova "loira misteriosa" na vida de Ayrton Senna. No tin
ha a menor idia do que vinha a ser diferencial e achava que suspenso era quando
o diretor da escola proibia um aluno mais atrevidinho de assistir s aulas por alg
uns dias. Mas me importava saber daquela adorvel criana de 33 anos que, ao me
ver lev-la at a escada do avio, para a viagem at Donington, o GP da Inglaterra, a se
r disputado no domingo seguinte, ainda tinha olhos para meu vestido branco,
de flores pretas:
- Nossa, como voc est bonita! - ele me cortejou, antes do beijo de despedida.
Eu no me ligava no s das pistas - perdo, no tinha me ligado at aquele dia. Pois, n
o domingo de Pscoa, 11 de abril, eis-me colada na telinha, unindo minha
torcida da minha av fanzoca, roendo as unhas, chutando a mesinha de centro - e, d
epois, festejando aos berros, com o Brasil inteiro, a vitria do meu Ayrton,
depois de arriscadssimas ultrapassagens na chuva. Senti que era o Bco, no pdio, bri
ncalho como nunca, abraando aquele que eu descobri semanas depois ser o J
Ramirez, chefe da escuderia McLaren, dando um banho de champanhe no Giorgio Asca
nelli, engenheiro-projetista, que seria rival no ano seguinte mas no deixou de se
r
amigo at os ltimos dias. Cheguei a pensar, com egosmo:
- Quem sabe eu no tenho a ver tambm com um
74
CAMINHO DAS BORBOLETAS
pouco da felicidade dele?
Giorgio Ascanelli era o irmo de Senna no mundo da graxa e dos parafusos. Tinha
m uma enorme confiana recproca. Com ele cometi uma gafe enorme. s vsperas do
GP da Austrlia, o ltimo da temporada 1993, fomos jantar - Bco, ele e eu. Restaurant
e italiano, clima mediterrneo. Bco foi gentil:
- Voc prefere que a gente fale ingls ou italiano? - Ingls, disse eu.
- Mas voc s sabe "I am". Italiano voc adivinha. Ayrton falava um italiano perfei
to e a conversa fluiu, enquanto eu saa na captura de uns raros sons que me
botassem dentro da conversa. Mas era uma conversa tcnica e eu desencanei. Percebi
a repetio da palavra "Domenica", "Domenica", e arrisquei:
- Domenica a sua mulher, Giorgio?
Giorgio gargalhou, Ayrton coou a cabea. Mas eu no deixei cair:
- T vendo? Se fosse em ingls, eu saberia que sunday domingo e no sorvete.
O domingo seguinte ao do encontro em Angra, 18 de abril, seria meu aniversri
o, 20 anos, data redonda. No tinha a menor idia de onde andaria, naquela dia,
o homem que preenchia os meus pensamentos, os meus minutos, os meus sonhos. Mas,
naquela mesma noite do GP da Inglaterra, uma voz triunfante me encontrava na ca
sa
de minha me:
- Gostou?
- Maravilha - respondi, surpresa.
- Estou ligando para desejar boa Pscoa.
Se at aquele momento eu no sabia se a vitria dele
75
ADRIANE GALISTEU
tinha a ver comigo, agora no podia duvidar. Eu me soltei: - Estou morrendo de sau
dade.
- Volto amanh pra v-la. Tambm estou com muita saudade.
Dia seguinte da corrida, final da tarde, nova ligao: - Desculpa, no deu para ir.
S pensava no domingo, no meu aniversrio, mas no quis adiantar nenhuma pergunta
:

- Pena...
Silncio- do outro lado da linha. E uma gargalhada:
- Sua boba. Estou aqui no escritrio. Trabalhando. Mas com uma enorme vontade
de
v-la. Vamos para Angra amanh?
Meu primeiro contato com o clssico conflito entre prazer e dever. Tinha uma
vida profissional a zelar e contas a pagar. Tinha um homem maravilhoso me convid
ando
para um mergulho no paraso. Pedi um tempo at quarta, para acertar minha agenda. Vi
brei ao saber que o tal comercial da Arisco, com Nelson Piquet, tinha danado
- a agncia queria uma morena. Discreto que era, Ayrton vibrou do seu jeito. Mas h
avia um teste para um anncio do drope Halls, bom dinheiro, trs mil dlares, locao
no Caribe, o tipo da esbrnia que faria a cobia de uma modelo. Mas eu no sabia mais
se era uma. As pginas de minha agenda esto cobertas de balezinhos vazios,
pensamentos sem palavras, como nos gibis - representando tanto minhas dvidas quan
to coisas que, por mais que pensasse, eu deveria calar. A nica certeza se chamava
amor.
O prazer triunfou. Angra, a Quinda, as guloseimas da Maria, litros e litros
de Coca-Cola e o afeto do dono da
76
CAMINHO DAS BORBOLETAS
casa. No banco traseiro do carro que nos levou ao helicoptero, notei um pacotinh
o quadrado, embrulhado para presente. O pacotinho sumiu, para reaparecer, um dia
,
em cima do meu travesseiro - um perfume Samsara. Ele acertou. O travesseiro, dig
a-se, ficava na cama dele - agora, j sem nenhum subterfgio, na nossa cama. De surp
resa,
ele preparou uma linda festa de aniversrio para mim, de sbado para domingo. Os ami
gos foram, apareceu o Leonardo com sua nova namorada, a Sonaly, uma meninona
de 1,80 metro tambm da Elite, os ilhus de Angra aportaram seus barcos, elegantssimo
s. Bco me apresentou, um a um. Era meu namorado. Embora tenha hoje 21 anos,
sou da poca em que se dizia assim: meu namorado.
O melhor presente que recebi, naquele dia, naquela noite, alm do perfume francs
, alm do relgio Tag Heuer que ele me deu, com uma picada de ironia, alm do
bolo com velas da Maria, alm do banho de piscina de roupa e tudo, provocado pelos
amigos - passaporte oficial de meu ingresso na turma -, foi a certeza de um amo
r
que desabrochava, sem medo e sem limite. Ns dois tnhamos futuro, pensei. A festa e
nluarada em Angra atropelou minha cautela. Estava to eufrica que pensava: nada,
mas nada mesmo, iria interromper nossa felicidade.
AAdriane Galisteu modelo, profissional da beleza, andava meio avoada, esqueci
a os compromissos, a cabea no ar. Tomava grandes broncas da Ina, diretora da Elit
e
e grande amiga. Mas eu no deixava de ter meus lampejos de responsabilidade. O com
ercial do Halls tinha sado:
77
ADRIANE GALISTEU
cinco dias no Caribe, embarque j naquela tera-feira, 20 de abril, dois dias depois
do meu aniversrio. Sabe como faz um namorado tpico? Ele pergunta: como o
filme? Quem vai com voc? Onde vo ficar todos? Pois : o Bco perguntou, igualzinho. E
decretou:
- Levo voc no aeroporto. Odeio aeroporto, mas vou com voc.
No queria deixar dvida. No tinha mais o menor receio em se expor numa situao daq
uelas. E imaginem vocs a cena de um atleta consagrado mundialmente, reconhecido
e saudado por uma a uma das pessoas ali no saguo de Cumbica, carregando pessoalme
nte a mala da mocinha ao lado. Dirigiu-se ao balco da companhia e fez o check
in, diante do olhar embevecido dos funcionrios.

Mas um deles estranhou:


- Aruba? O vo s sai daqui uma da manh.
A booker da Elite tinha me falado dez horas. Outra coisa no combinava: era u
m vo da Transbrasil, tinham me informado. O balco da Transbrasil desconhecia
qualquer vo para Aruba. Bco era descoladssimo em situaes. enroladas: despachou a mala
e props um jantar de despedida. Chamou um txi e, para pasmo do motorista,
perguntou se ele conhecia um restaurante simptico ali por perto. O pasmo do motor
ista no era nada diante da reao do dono do restaurante e da mulher dele. No
era possvel acreditar que, quela hora da noite, numa insossa tera-feira, sem aviso
e sem fanfarras, alojasse ali numa de suas mesinhas de madeira e toalhas quadric
uladas
-o legendrio campeo.
Ele adora essas situaes. como se se visse de novo, menino da Vila Maria, sonh
ando com o magnnimo fil
78
CAMINHO DAS BORBOLETAS
com batata frita do boteco da esquina. Fizemos nosso pedido: fil com batata frita
. Mesmo descontando a circunstncia, o puro encanto que envolvia aquele encontro
romntico num cantinho obscuro de Guarulhos, juro que foi dos melhores que eu comi
na vida.
Voltamos sem pressa, mas o alto-falante do aeroporto estava ligeiramente histr
ico:
- Ateno, senhorita Adriane Galisteu. A senhora est sendo aguardada no balco da co
mpanhia... (No me lembro bem, s sei que no era a Transbrasil.) Esta
a ltima chamada.
Como naqueles filmes de aeroporto, um homem e uma mulher saram em disparada at
a outra ala. A equipe de filmagens, nervosa, arquitetava as mais maliciosas inte
rpretaes
para nosso ingnuo atraso. Pura distrao minha, tpica daqueles dias de emoes nada branda
s. Quem disse que era Aruba? Era: Bahamas.
Mas cad a mala? Estar, a essa hora, a caminho de Aruba?
- Esquece a mala, que eu me viro - acalmou-me Ayrton, senhor da situao.
Novo check in, em velocidade de Frmula l. Nova trombada: Bahamas com escala em
Miami. Falta o visto de entrada nos Estados Unidos. O diretor do comercial se
descabelou: meteu-se no tubo do avio, na base do "deu, deu, no deu, no deu". Mas, c
omo aqueles reis que curavam tudo, Ayrton Senna me ps no vo e recomendou
produtora, que, essa sim, ainda me esperara:
- Cuida dela, t? Por mim.
No teve um gesto de impacincia diante daquela namorada trapalhona. Demos um bei
jo amoroso e ele foi
79
ADRIANE GALISTEU
tragado pelo mundaru que j se formava, indcil, em torno - implorando um toque no br
ao, um autgrafo para o filhinho, uma palavrinha de ateno em troca da invarivel
introduo "desculpa, mas sou seu f..." Ayrton Senna um rapaz reservado, s vezes at "ma
cambzio" - era essa a expresso com que Nuno Cobra, seu treinador, pegava
no seu p. Mas, justia se faa: eu jamais o vi economizar simpatia e gentileza com se
us nem sempre recatados fs. Por essas e por outras que ele um ser humano
to especial.
Fiquei de castigo no avio, na escala em Miami. Mas a chegada me impressionou. Bah
amas um lugar lindo, de guas cristalinas, pessoas charmosssimas, hotis deslumbrante
s,
como o Cristal Palace, em que nos hospedamos, e restaurantes divinos, como o Pic
cadilly, que virou nosso point. Mas estvamos ali a trabalho, no a passeio - e trab
alho
que exigia a mais infinita pacincia. Subamos num veleiro e samos sacudindo pelo mar
. Eu, escolada, prevendo o inevitvel enjo, sabia do truque de pregar um esparadrap
o

especial atrs da orelha. Mas faltava vento e passvamos horas deriva. No posso, porm,
me queixar do resultado - o filme saiu deslumbrante.
Difcil foi, no domingo, descobrir uma televiso nas Bahamas que pegasse a corrida d
e Frmula 1, a segunda da temporada europia - GP de San Marino, em mola (ah,
a dor que esse nome me traz hoje, a vontade de risc-lo do meu mapa). Nas Bahamas,
s se quer saber de Frmula Indy. Depois de muito peregrinar, instalei-me diante
de uma parablica, com a Piera e a Juliana Soares - que ficavam me atazanando:
- Ttt... (O fundo musical da Globo.)
80
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Ele no terminou a prova, como no terminaria a do
ano seguinte. At ento, as nossas conversas sobre automo
bilismo eram igual a zero. Mas eu podia sentir o que ele
sentia. Disposta a lhe dar um consolo, liguei para a secret
ria dele, em So Paulo, e avisei que queria falar com ele.
Era uma hora da manh quando o telefone tocou. A
Piera, que dormia comigo no quarto, atendeu:
- Alfredo? voc, Alfredo?
Pela resposta, ela deu um pulo da cama:
- Ah, desculpa. voc, Ayrton?
E me passou o telefone:
- Mas que diabo de Alfredo esse? - ele queria
saber, com aquele tom brincalho de quem esconde um
ciumezinho.
- Alfredo? o caseiro da Piera. Ela est esperando
uma chamada.
Falamos uma hora e meia. No disse uma palavra sobre a prova. Disse mil palavras s
obre saudade, pressa
de voltar, planos de me encontrar. Imaginem : eu estava
num paraso mas s pensava no meu amor. Vontade de
voltar rpido, rpido. E, de fato, dois dias depois nos encontramos no apartamento d
ele, da Paraguai, dispostos a recuperar o tempo perdido naquela semana de separa
o. Estvamos em clima total de namorados e, para isso,
nada melhor do que o escurinho de um cinema. Ele esco
lheu: Dustin Hoffman, paixo total do meu moo. Filme:
Heri por Acidente.
Meia dzia de espectadores, no Cal Center - maravilha para um filme a dois. A sada,
esperava por ns o infer
no. Ayrton dono de uma pacincia oriental para com os fs mais ansiosos. Mas no toler
a o jeito trfego e inso
81
ADRIANE GALISTEU
lente de uma certa imprensa. Fomos, de repente, sitiados. Ouvimos o primeiro cli
que - e ele segurou com fora minha mo. Outro flash. Ele quis dialogar:
- Olha, eu vim aqui em busca de tranqilidade. Podemos ir todos embora agora,
no podemos?
Enquanto ele argumentava, novo flash. E a perigosa aproximao de um rapazinho, de b
loco e Bic na mo, trazendo na ponta da lngua aquele veneno que s as cascavis
e alguns jornalistas conseguem destilar:
- Essa histria da gravidez da Marcella Prado... Afinal, a filha sua ou no ?
Tipo da pergunta elegante para um sujeito que tinha uma namorada ao lado. Pela p
rimeira vez, pressenti que ele ia dar vazo ao seu pedao Incrvel Hulk:
- Pergunte ao seu pai. - E, antes que o reprter puxasse o argumento " meu trabalho
", j levou um safano que o derrubou. Ao fotgrafo, ele lascou um tapa na orelha
que at hoje deve lhe soar como um telefone ocupado. Arrancou-lhe a mquina e a arre
messou contra o vidro do cinema. Juntou gente e eu no sabia o que fazer. Segureilhe
na mo, gelada, que tremia, e tentei arrastlo. Mas ele estava transtornado. Voltou

atrs sobre seus passos:


- Me d o filme.
Fotgrafo e reprter gaguejavam. Passaram-lhe um rolo, que ele puxou e exps clar
idade. Arremessou contra uma cesta de lixo. Caminhamos para a porta e ele
ameaou voltar:
- Cachorro! Tenho certeza de que o filme outro. Era outro.
Um homem capaz de percorrer uma pista tortuosa a
82
CAMINHO DAS BORBOLETAS
350 quilmetros por hora caminhou at o carro com o rosto respingado de lgrimas, e el
e chorava, chorava, at seu apartamento - chorava de raiva, chorava pela impossibi
lidade
de ser um mero mortal como os outros, chorava com a indelicadeza daqueles que fa
zem de uma profisso bonita um ofcio de abutres, chorava por ser indefeso, chorava
por me expor, chorava pelo controle perdido, arrependido de entrar no jogo dos a
chacadores de novidades. Mais de uma vez eu o vi chorar. Nunca de medo. Sempre d
e
raiva. Ele se metia nas brigas e, depois, se envergonhava. Mas, num mundo de m-f,
a lei dos punhos acaba tendo de se impor, s vezes. Chorei com ele. Percebi,
ali, que j vivia plenamente a vida dele.
Hoje entendo mais do que nunca. No dia seguinte ao tetra do Brasil, fui feste
jar com um grupo de amigos na Praa Lus de Cames, em Cascais, aqui pertinho de
onde me hospedei. Ningum tanto como eu torceu e se contorceu pela vitria. Num vdeo
gravado pela Globo, os futuros tetracampees dedicavam a Copa a Senna. Eu festejei
.
Uma jornalista rancorosa, com quem eu j tinha tido um bate-boca, me chamou de "viv
a alegre". Um jornal carioca que j foi srio reproduziu, sem me ouvir. Enfim,
mais uma lio de bom jornalismo e de integridade de carter. s tantas, dizia a reporta
gem que eu usava um short cavado e mostrava uma felicidade excessiva.
A abaixo-assinada "viva alegre" usava jeans e casaco de moletom. Era tarde da
noite e o vero de Sintra tem seus momentos de Alasca. E, aos 21 anos, sinto-me
dona do direito de me vestir como quiser. As aparncias nem sempre exprimem o que
se passa nas profundezas do esprito. Se tem coisa que exijo, hoje, que respeitem
a minha dor.
83
ADRIANE GALISTEU
Ele escolheu a dedo o lugar para me introduzir nos bastidores da Frmula 1. Um
principado. Onde ele era, fazia tempo, o verdadeiro prncipe. Convidava-me para
ser,
por uma semana, sua princesa. Pode parecer engraado que
eu, aos 20 anos, surpresa com aquela homenagem carrega
da do mais nobre simbolismo, tenha pedido um tempo para
"consultar a mame".
- Pedir licena a sua me? - ele ficou perplexo.
- No moralismo, no - tive de explicar. - que
sempre conto tudo a ela. E confio no seu sexto sentido:
quando diz no, sei que melhor no.
Viagem inesquecvel: regada a sangue, glamour e amor,
muito amor. Deixa que eu conto.
17 de maio, uma segunda-feira, l estava eu, no aeroporto, malas prontas - obrigad
a, me, pela ajuda -,
razoavelmente ansiosa com a perspectiva de competir
com as prolas, as tiaras, os diamantes, os vestidos assi
nados com que eu haveria de cruzar, nos priplos de
Mnaco e Monte Carlo. Tinha dado um reforo no figurino, para a ocasio. Mas meu estil
o era Forum, Zoomp,
Viva a Vida, Bicho da Seda - compatvel com minha
idade, identificado com meu gosto. Relaxei: vou ser o

que eu sou. Por via das dvidas, pensei: j que me faltam


jias, vou compensar nos creminhos. E embalei todos.
Pois foi sentar no avio e pedir aeromoa uma CocaCola para o Bco me adular com aquel
e empurro de
segurana que poderia me faltar:
- Voc sabe do que eu mais gosto em voc? desse
seu jeito garoto de quem est sempre curtindo a novidade.
Ele odiava a rotina das viagens areas. Cumpria um
ritual automtico, meio blas: retirava da pasta um mole
CAMINHO DAS BORBOLETAS
tom azul-beb, clarinho, uma t-shirt branca, trocava-se
no toalete, j voltava com os ouvidos protegidos por um
ear-plug, recostava a cadeira e tentava pegar no sono.
No se interessava pela comida, muito menos pela bebi
da ou pelo filme - a viagem de avio ele queria que fosse a distncia mais rpida e im
perceptvel entre dois
pontos. A tenso de vez em quando se transformava em
insnia. Mas a minha companhia, daquele dia em diante,
o acalmava.
Aos 5 anos de idade, eu tanto infernizei minha me que
ela conseguiu que minha tia me levasse para conhecer aquilo que eu cobrava, dia
aps dia. Queria porque queria subir at o pico do Jaragu, o ponto culminante da
minha
cidade de So Paulo. Pico do Jaragu pra c, pico do
Jaragu pra l. At que um dia eu fui. Cheguei no alto,
depois de uma subida longa e atribulada, e reclamei:
- Que pocaria de pito!
No sei porque essa histria de infncia, contada com afeto especial por minha madrinh
a, me veio cabea
quando, depois do longo vo at Nice, via Paris, mais o
trajeto de helicptero at o principado, eu me dei de cara
com aquela cidadezinha acanhada cuj- lenda e cujo fasc
nio no transpareciam primeira vista. Ao longo dos
dias, e especialmente das noites, quando via senhoras vestidas de Dior e com sap
atos Gucci pelas elegantes alamedas, conduzindo seus poodles para um ltimo pipi,
como quem se dirigisse para uma ceia com o sulto de Brunei, percebi que se tratav
a de um gueto - de privil
gio, bom gosto, preos astronmicos, acesso fechado,
narizes empinados. Tem sua graa. Sobretudo se a pessoa
que voc ama vai ser a estrela principal daquela festa.
85
ADRIANE GALISTEU
Ele tinha um apartamento em Mnaco - pequeno, muito bem decorado, na medida par
a quem passava ali apenas uma semana por ano, a semana do GR Diferente de outros
tempos, em que chegou a ser proprietrio de um apartamento enorme, praticamente se
u QG europeu at o dia em que se converteu s delcias de Portugal, de Sintra e
do Algarve; passou-o nos dlares e partiu em direo ao sol. De uma coisa, porm, ele fa
zia questo, fosse o lugar grande ou pequeno, freqentasse-o ele muito ou
pouco tempo. A casa tinha de estar funcionando, sua chegada. E, em Mnaco, a perfe
io tinha um nome: Isabel, a cozinheira-arrumadeira-faz-tudo portuguesa. Ela
me conquistou de cara:
- Bem que a Maria (caseira de Angra) me disse que voc linda.
Naquele momento, tomei contato com o circuito casamenteiro que operava aos
sussuros entre as vrias casas do Ayrton, a Isabel, a Maria (de Sintra), a Maria
(de Angra), a Juraci (do Algarve), todas mobilizadas em sua misso de Santo Antnio:
uma mulher faria muito bem ao campeo. Percebi que as alegres alcoviteiras comeava
m

a botar suas fichas - e, desconfio, at suas rezas - em mim.


- Voc faz bem ao garoto - diria, na despedida, a Isabel. Quantas vezes mais
eu no ouviria essa mesma frase, dita pelas pessoas mais diferentes, dita at por
ele mesmo? Bom que tenha sido assim; pena que no seja mais.
_ Paredes com
cheiro de tinta nova e o carpete imaculado sugeriam o capricho para a recepo
anual ao prncipe Ayrton. Para mim, marinheira de primeira viagem, tudo significav
a uma descoberta - menos o que eu lhe ofere
86
CAMINHO DAS BORBOLETAS
cer. Retirei-me para uma ducha quente. Liguei a torneira, lambuzei-me de sabo, ca
ntarolava alegremente quando
ouvi um insistente tac, tac - como se um pedreiro martelasse do outro lado da pa
rede. Tac, tac, tac, tac... De repen
te, o boxe desabou - o boxe, no, os azulejos, todos eles,
um aps outro, espatifando-se no cho, riscando na queda
as minhas costas, cortando meus ps com seus caquinhos.
Enrolei-me numa toalha e corri para nosso quarto, em
pnico. O sangue descrevia uma trilha no carpete branquinho, branquinho. Ayrton es
tava ao telefone. Desligou,
assustado, e correu para me acudir.
S tive tempo de balbuciar:
- que tenho um probleminha... No posso ver san
gue que...
Desabei do alto do meu 1,74 metro. Menos mal: nos
braos dele. Quando despertei, ele tinha me colocado na
cama e enrolava um carinhoso Band-Aid no meu dedinho.
Nos dias seguintes, brincava comigo diante dos mais che
gados: "Sua pamonha!" Estvamos no principado de Mnaco, era minha primeira viagem i
nternacional com ele
e logo aquele vexame!
- Achei lindo - me acalmou. - Nunca mulher
nenhuma desmaiou nos meus braos.
Se no estivesse deitada, eu desmaiaria outra vez.
Naquele mesmo dia, ao tentar fazer um furo extra num
cinto novo - sempre s voltas com cintos, vocs j repara
ram, n? -, ele espetou o dedo. Senti que tratou de escon
der de mim.
A primavera na Riviera, com suas noites lmpidas e o vento aconchegante que o Medi
terrneo traz da frica,
para ser passada a dois, agarradinhos. Foi assim naquela
87
ADRIANE GALISTEU
noite de chegada - e em todas as outras. Ele me pegou pela mo e disse:
- Quero mostrar-lhe uma coisa.
Caminhamos at a entrada da pista - na verdade, at um porto onde guardas velavam
para que nenhum veculo trafegasse naquele circuito de rua, j ento fechado,
por onde voam as mquinas da Frmula 1. Ayrton Senna - apresentou-se ele. As portas
se abriram para ns e ele foi me mostrando, a p, calmamente, minuciosamente,
cada um dos ziguezagues daquela pista onde ele era o professor. Uma aula, para u
ma - no me envergonho de confessar - leiga no assunto:
- Aqui, eu freio (e deitava-se no asfalto, em busca de alguma marca de pneu).
A velocidade vai para 80... Nessa reta, piso embaixo... Agora, repara bem no tr
aado:
voc
entraria nessa curva de que lado?,Pois , eu entro do outro lado. mais seguro e ga
nho tempo.
Senti seu orgulho em dividir comigo os valiosos segredos de sua mestria. Sent
i seu desejo de me ter a seu lado, naquele mundo que era sua vocao e seu business.

Tanto que, raro freqentador da noite, ele, terminada a caminhada, se animou:


- Quero mostrar-lhe o cassino.
- Mas como? Voc no joga, eu no jogo. - S hoje, s hoje.
Fiquei nas moedinhas e no jackpot. Fracasso total. Ele props um sete e meio. T
rocou 300 dlares em fichas, s para brincar, e o dinheiro foi escorrendo rapidament
e
pelo ralo. Um amigo dele, que jogava na mesa ao lado, veio se juntar a ns. Perdeu
tudo. Brincou com Ayrton:
- L, eu estava ganhando uma fortuna. Vim pra perto
88
CAMINHO DAS BORBOLETAS
de vocs, naufraguei. Acho que esse no mesmo seu esporte.
A felicidade estava estampada no rosto do Bco. Garons, croupiers, recepcionista
s, convidados inclinavam-se nossa, passagem como se ele fosse o mais ilustre
membro da casa dos Grimaldi. Mas se permitiam a intimidade plebia da saudao alegre
"Senn, Senn". O amigo mandou vir um presente: uma caixa de trufas suas.
As mais deliciosas trufas que jamais saboreei na vida. De volta ao apartamento,
no restava uma nica trufa para contar a histria.
OGP de Mnaco, em Monte Carlo, no s era uma prova do calendrio automobilstico. Era t
ambm um tremendo acontecimento social. Atrizes, modelos, colunveis, arrivistas
acorriam para ganhar uma foto ao lado das cabeas coroadas do principado e dos dolo
s da velocidade. Vocs vo se surpreender quando, logo, logo, eu contar quem
que apareceu numa dessas badalaes - felizmente, e aqui eu j dou uma pista, com a de
vida roupa de baixo.
Compromisso obrigatrio, ns teramos um - jantar de gala para os pilotos da Marlbo
ro. Talvez dois - a festa da vitria, desde que, claro, fosse ele o vencedor.
Como Senna e o circuito de Mnaco mantinham desde 1987 uma trrida relao de amor (pent
acampeo, nada menos do que isso), achei melhor me preparar para a segunda
eventualidade. Tinha mo trs vestidos de noite - quatro se contasse outro, curtssimo
, da Forum, vermelho e preto,
89
ADRIANE GALISTEU
fechado por um zper na frente, figurino um tanto ousado se voc vai se sentar ao la
do do prncipe Rainier.
Na carona de sua Ducati 900 (ele tinha uma igual, descobri depois, na sua faz
enda Dois-Lagos_no interior de So Paulo), com o capacete de reserva dele, as mesm
as
cores, verde-amarelo, o nome Nacional em destaque, tomei meu primeiro contato co
m o nervoso burburinho dos boxes e dos motor homes - aquele aflito mundo que as
cmeras
de tev no captam, durante os treinos ou nas provas da Frmula 1. Era vspera do primei
ro treino oficial e ele tinha todo um dia de trabalho pela frente - reunies
com os mecnicos, checagem do motor, encontros de negcio com patrocinadores. Mas qu
is me deixar vontade: conduziu-me pela mo at o motor home da Tag Heuer e
me apresentou a um por um, do mais graduado tcnico da McLaren ao mecnico que troca
os pneus. Depois, troquei o primeiro al com aquele que, viria eu a descobrir
depois, era, entre todos os malucos do volante, aquele de quem Ayrton se podia d
izer amigo - amigo, incondicional, com todas as letras.
Seu ex-parceiro de escuderia, Gerhard Berger. Se esse austraco moleco e de alma de
manteiga ainda tinha at hoje dvida sobre esse sentimento muito especial do
Ayrton, que fique sabendo por mim, agora, que comemore, ou que chore - mas posso
dar o testemunho de dez, vinte, cem vezes que o Ayrton me disse isso.
Eu me dava conta de outras pessoas que emprestavam brilho ao lado oculto da f
esta. No bastasse nada, conheci, enfim, de verdade, o Bragota - o banqueiro Antnio
Carlos de Almeida Braga, aquele senhor que, no GP do Brasil, me dera o toque mei
o brincalho sobre o Ayrton. Era uma delcia:

90
CAMINHO DAS BORBOLETAS
- No lhe falei, garotinha? - brincou aquele gozador e esportista full time,
capaz de sair de uma final de Wimbledon no sbado para assistir a um torneio de
golfe no Hava no domingo. - Disse que ia rolar namoro, ppum. Agora digo que vai pi
ntar casamento.
Os protagonistas da Frmula 1 iam se revelando, assim como os figurantes. Com
o Braguinha, fui ser apresentada ao Rubinho Barrichello. A apareceu a Betise
Assumpo, assessora de imprensa do Ayrton. Sensacional, muito divertida, depois ami
cssima - de quem guardo tanta saudade. Chegaram Oscar Guerra e Marquinhos Magalhes
Pinto, amigos de velha data e patrocinadores, via Banco Nacional. De cinco em ci
nco minutos, um preocupado Ayrton botava a cara para fora do motor home. Queria
me
ver:
- Tudo bem?
- Tudo bem - eu tambm estava louca para v-lo a cada segundo.
Fiquei ali quatro horas, me pareceram quatro minutos. Ao lado ele, o tempo pa
rava. No dia seguinte, ele quis me poupar: treino oficial, levantar s sete da man
h,
era melhor que eu ficasse em casa, descansando. Algum se encarregaria de me levar
ao circuito. Mas era como se o circuito de rua atravessasse a minha cama. Pulei
fora. Vivi aquela eterna dvida das mulheres sobre que roupa usar. Fui ao quarto d
o Marquinhos consult-lo.
- T boa a roupa?
Ia acender a luz, mas ele: - S no acende a luz. Acendi. Ele, desesperado, cortando
a conversa: - T bem, t bem. Agora apaga.
Fui acompanhar os treinos. Encontrei o Bco animado,
91
ADRIANE GALISTEU
otimista. E, como ele, o risonho Braga. Incorporara-se trupe o Papagaio - tio Pa
pagaio, eu preferi m sinal de respeito. Na vida civil, Galvo Bueno. Locutor da
Globo para a temporada de Frmula l, assim como para os outros triunfos canarinhos
no futebol, no vlei, no basquete, no tnis, etc, etc. Simpatia primeira vista:
ele me convidou para assistir prova da cabine da emissora.
Em Mnaco, estreei tambm o lado speed das pistas. Perseguio implacvel dos paparaz
zi. Era desfilar de mos dadas com o Ayrton diante das arquibancadas e
a galera ia literalmente loucura. Gritava elogios para ns. Curiosamente, para mim
em italiano. Penso em Marcello Mastroianni e me conveno de que o italiano talvez
seja a lngua da seduo. Ayrton apertava ainda mais minha mo. Era o ensimo atestado de
amor. sempre gratificante para uma mulher ser admirada. Em especial se,
de repente, o elogio traz o nome Giorgio Armani e uma pergunta meio exploratria s
obre se uma moa to bonita no estaria interessada em desfilar tal coleo. Uma
pergunta dessas na Elite teria o efeito de um maremoto.
Conheci, em Mnaco, um outro mundo. Descobri, em Mnaco, um outro Ayrton.
O que eu tinha em mos e sob os olhos at ento era o namorado de Angra, o provoc
ador da Quinda, o apressadinho do jet-ski, o maluquinho do helicptero, o companhe
iro
das noites de So Paulo, o amante carinhoso, o amigo de todas as horas e de todas
as brincadeiras. Percebi a metamorfose - lenta, gradual, inconsciente talvez.
medida
92
CAMINHO DAS BORBOLETAS
que a hora do desafio nas pistas se aproximava, quando ele se defrontava com o d
ilema do vamos-ver e do tudo-ounada, sua personalidade ia se reconstituindo, em

nome
do dever e da performance: S-E-N-N-A. Assim, letra a letra, no ritmo lento de um
soletrar infantil. SENNA, o astro - convicto, pronto para extrapolar todos os l
imites.
Sumiu o Bco de ps descalos e riso franco. Surgiu o Senna de uniforme e rosto dur
o. Era uma surpresa para mim - mas eu tinha um corao transbordante de ternura
para entender o que se passava.
Seria sempre assim: sexta, sbado, vspera de GP, estivesse ele com o carro na ponta
dos cascos ou vivesse ele um enorme pessimismo, Ayrton ia botando o capacete
e vestindo o macaco de Senna.
"Fechar o zper", foi a expresso que eu usei, mais de uma vez. Ele concordava,
cabisbaixo:
- No tem outro jeito.
Ele era uma usina de carinhos. No troco seus toques afetivos nem por uma vit
rine inteira do Amor Aos Pedaos. Seus beijos deixam na boca o sabor de mil queija
dinhas
de Sintra, um milho de toicinhos do cu, um milho de cheese-cakes como os da Bebel,
de Portugal. Mas quem capaz de se derreter de doura s vsperas de entrar
no asfalto esfolando uma mquina a 350 quilmetros por hora e tendo na sua cola um f
rancs rabugento e um chatssimo alemo?
Tenso, concentrao, reflexo - mas nunca, e eu passo declarao em cartrio, com firma
reconhecida, nunca senti naqueles momentos o mais remoto sinal de estrelismo.
Naquele sbado que antecedeu o GP de Mnaco, 23 de maio de 1993, ele vestiu o pijama
- dormia de pijama, curto ou
93
longo, dependendo da estao -, recolheu-se cedo, abriu a Bblia que carregava na past
a de mo - ler a Bblia era outro de seus hbitos pr-corrida -, botou a mo
sobre um
determinado captulo, fechou os olhos. Orava em silncio.
Olhou-me com uma expresso estranha:
- Preciso ganhar... Tenho de ganhar...
Freud de novo me denunciou. Eu tambm estava tensa.
Tive um tal acesso de tosse, escandaloso, incontrolvel, que me refugiei na sala,
para dar um tempo, mas esse tempo foi, sei l, meia hora, parecia uma eternidade,
e quando voltei
ele me esperava, carinhoso, querendo saber como eu estava
- e novo acesso explodiu, sintomaticamente. Quando me
refiz, ele me deu um terno "boa-noite" e apagou a luz.
Tive o mpeto de rezar. Do meu jeito, com as falas de
meu prprio catecismo - eu que nunca fui de freqentar muito igreja, j que meu pai no
ligava, minha me tinha
sido batizada numa igreja protestante hngara, minha av
paterna era catlica e eu, no mximo, ia a uma igreja batista da Lapa, para as farra
s da escola dominical. Mas, naque
la noite, eu me apeguei a todos os santos e expressei um
desejo, do fundo do corao. Pedi muito para que ele
ganhasse. E, para mim, um desejo especial:
- Por favor, no tirem esse homem da minha vida,
jamais!
Nem ali nem nunca eu cogitei que a morte pudesse
busc-lo. Tinha medo de perd-lo para a vida.
94
ADRIANE GALISTEU
- OAyrton teve um acidente.
A notcia me recebeu na porta do autdromo. Eu tinha
CAMINHO DAS BORBOLETAS
sido despertada pelo vrum-vrum das mquinas, o warm up j rolando, meti uma roupa, r
apidinha, peguei carona com o Marquinhos Magalhes Pinto e cheguei descabelada.

Mais descabelada ainda fiquei ao saber dele.


Corri para o boxe da McLaren, nada. Tentei o motor home. Olha l ele, bem ao lado,
j dentro do carro reserva, uniformizado dos ps cabea, pronto para voltar
pista. Alvio. E o acidente?
- Nada, nada - despistou.
Um mecnico me socorreu: machucou a mo, mordeu a lngua, saiu um pouco de sangue da b
oca.
- Ainda bem que voc no estava aqui, pra desmaiar - brincou ele, mostrando que esta
va com o astral l em cima.
Entre os preparativos e a largada, ele ficou entregue a outro de seus anjos da g
uarda, que eu vim a conhecer tambm naquele dia: o Joseph, um austraco que trabalha
va
na infra da McLaren e que, alm de servir como uma espcie de escudeiro dos pilotos,
um expert em massagens curativas e em poes mgicas.
Os sessenta minutos que precedem a largada so aquele corre-corre entre os boxes e
os motor homes, no h quem no tenha mpetos de comer as unhas ou arrancar os
cabelos. Posso dizer que conheci, naqueles minutos, o verdadeiro sentido da pala
vra nervosismo. Curiosamente, minha melhor terapia era quem mais devia estar ans
ioso:
Bco surgiu sei l de onde, faltando vinte minutos para a bandeirada, pegou-me pela
mo e me convidou a ir para o boxe da McLaren com ele.
- Pro boxe? - estranhei.
Nem respondeu. Saiu me arrastando diante da arqui
95
ADRIANE GALISTEU
bancada, que explodia de entusiasmo. O boxe da McLaren era um ovo, onde mal cabi
am meia dzia de mecnicos e os pilotos. Como se fosse um ato proibido de dois menin
os,
ele me fez esconder com ele atrs de um tapume de papelo e me sapecou um beijo:
- hoje!
- hoje! - eu no conseguia encontrar nada seno o bvio para empurr-lo para a vitria.
Com o polegar direito do tamanho de uma bola de tnis, mas devidamente enfaix
ado, Ayrton entrou na pista para vencer. Joseph, o massagista, ajudou; o carro,
tambm; mas eu gostaria de reivindicar o meu modesto mrito. Na minha estria na Frmula
1 como namorada dele, dei sorte. Eu e o Oscar Guerra rezamos mais do que
o papa. Mas, a, ao final, corri da cabine da Globo para o pdio, disparada mesmo, s
em flego. Ouvi ainda ao longe os acordes do Hino Nacional Brasileiro, lgrimas
rolavam pelo meu rosto enquanto eu continuava tentando me aproximar do pdio, mas
s pude v-lo depois, na reproduo daquela cena tpica da vida dele, a multido
compacta que caminha e empurra, l no meio, o impvido bon azul. Ao me ver, ele abriu
passagem com os cotovelos e me confidenciou ao ouvido coisas muito mais doces
do que aquelas trufas suas:
- Foi muito bom... Voc sabe que foi pra voc, no sabe?
Diante do Club Sporting, a passadeira vermelha, o pblico igual ao do Oscar e
as cmeras fotogrficas esperavam pelos prncipes de Mnaco. Os que do expediente
o ano todo. E o que pontifica no dia do GP - nesse, acompanhado da sua princesa,
"a misteriosa loira brasi
96
CAMINHO DAS BORBOLETAS
leira". Claro que, na correria do banho e da escolha da roupa, sofri a tpica doena
feminina: achei que no tinha roupa. Ele, elegante com seu smoking, mostrou
como uma vitria produz homens pacientes e tolerantes. Pois ele se encarregou:
- Eu decido.
E decidiu-se por aquele tal vestido bem pouco protocolar, com salto alto e me
ia preta grossa.
- Mas... - ainda tentei argumentar. - Est linda.
O auditrio estava apinhado. Ficamos bem no centro da mesa principal. Eu olhava
para o lado e via o prncipe Albert. Virava para o outro, Michael Douglas. E aque

la
menina bonita? Ah, a Cindy Crawford, com seu namorado grisalho e charmosrrimo, Ric
hard Gere. De repente, quem est olhando para mim, quase em frente? A princesa
Carolina. Fao um aceno protocolar com a cabea e abaixo os olhos, morta de inibio. Nu
nca se viu tanta concentrao per capita de beleza e fama. que, naquele
ano, o GP de Mnaco coincidiu com o Festival de Cinema de Cannes e todo mundo acor
reu para a boca-livre. Sem falar das estrelas do prprio circo: Nick Lauda, Jackie
Stewart, Ron Dennis.
O garom veio nos servir:
- Champagne, mademoiselle? - Merci, Coca-Col.
Outro homem teria me dado um belisco por baixo da mesa, mas o meu Bco foi solidr
io com a minha criancice: - Ento, duas Coca-Cols.
Galvo Bueno, subitamente, ameaou um piripaque. Afrouxou a gravata, botou a mo
no corao, saiu para
97
ADRIANE GALISTEU
tomar ar fresco. Ayrton se preocupou, assim como ns, da turma dos brasileiros. Ma
s logo se percebeu que ia passar. Por isso mesmo, Bco se permitiu uma molecagem.
Chamou uma ambulncia e obrigou o constrangido Galvo a entrar, com suas prprias pern
as, na barulhenta ambulncia. Jurou vingana. Menos de uma hora depois, estava
de volta, inteiro, na boate onde a festa se estendeu.
Depois da entrega de prmios, a esticada foi no Jimmy's, o night club da moda.
Novas homenagens - e uma platia bem mais informal e ecltica. Muitos dos pilotos
- Prost, l do outro lado, na reta oposta, Berger, Patrese -, figures do big busine
ss do automobilismo, como o Mansour Ojjeh, scio majoritrio da McLaren, e algumas
roadies do circuito, como a Sylvia Piquet, ex-mulher do Nelson.
Tnhamos uma mesa de pista e senti que o Ayrton, que no fazia exatamente o tipo
rei da noite, comeou a se remexer, inquieto, e a afrouxar o lao da gravata-borbole
ta
medida que um elenco de mulheres muito desinibidas veio exibir suas, digamos ass
im, virtudes, sem o menor constrangimento, bem diante dele. Eu no hei de me esque
cer
especialmente de uma mulher lindssima, que tinha corpo e ritmo de bailarina mas c
ujo vestido de noite consistia numa pecinha menor do que uma blusa. Ela olhava
para o Ayrton e lanava vigorosamente as pernas at a altura da cabea. Detalhezinho:
a moa estava exatamente como Llian Ramos no Carnaval carioca de 1994.
- Estou fingindo que no vejo - me cutucou ele, rindo.
A noitada foi ficando para os que tinham bebido demais e para os que tinham s
e vestido de menos. No era o
98
CAMINHO DAS BORBOLETAS
nosso caso. Felizes como duas crianas, Bco e eu ainda resolvemos pregar uma ltima p
ea. Os amigos diziam que ele era um irremedivel po-duro. Naquela boate onde
a dose do scotch custava quase 100 dlares e onde litros e litros de champanhe tin
ham enchido os copos na nossa mesa, o suposto mo fechada Ayrton tomou a iniciativ
a
de ir sorrateiramente at o caixa, acertar a conta, mas combinar com o garom um sus
to no Marquinhos Magalhes Pinto, banqueiro, filho de mineiro e outro que no
por acaso carregava a mesma reputao. Galvo e Oscar eram nossos cmplices na cilada:
- Estamos indo. Tchau.
O garom fingiria que a conta no tinha sido paga. Mais do que isso: multiplica
ria por cinco as despesas. Assim foi feito: quarenta minutos depois, Marquinhos,
que era nosso hspede no apartamento, apareceu lvido, com uma expresso de puro deses
pero. Alguns milhares de dlares por uma noite - at um banqueiro capaz de
baquear.
- Acho que vou ter de trabalhar o resto da vida.

Uma gargalhada, a ensima daquele dia de vitrias e alegrias, acompanhou o hexa


campeo de Mnaco at a cama, abraado a mim. Sou dona de um sono adolescente:
entrar nos lenis, fechar os olhos e apagar. Ele, ao contrrio, do tipo que custa a p
egar no sono. Naquela noite, depois de tudo, eu tinha o corpo moda mas
a cabea ligada:
- um sonho? verdade?
J no me importava fazer essa distino. Queria viver aquilo, em que esfera se pas
sasse. Realidade e iluso valem a pena, quando uma ou outra coisa aquece
o corao.
99
ADRIANE GALISTEU
aqueles homens de fibra e de ao chorarem como criancinhas. Alguns deles
recostavam seu rosto no meu ombro - pediam socorro logo a quem? A morte do compa
nheiro
de pista expunha a fragilidade deles. Poderia ter acontecido comigo - o que com
certeza passava pela cabea de cada um. Pois bem, naquele dia de luto e de dor,
ficou provado que circula vida nas veias dos super-herisda quilometragem. Eles vi
bram, amam, choram. Tm outros sentimentos, alm da nsia da velocidade, com cara
de quem no est nem a para o perigo. Esto, sim.
Em Mnaco, em maio de 1993, comecei a travar contato com esses moos e com suas
histrias arriscadas e atrapalhadas. Ayrton, que adorava atazanar os amigos,
era um coroinha diante de outros pilotos. Dizia, por exemplo, com toda a serieda
de:
- Eu tenho um amigo louco (pronunciava a palavra louco como a pronunciaria um mdi
co psiquiatra). - O nome dele Gerhard Berger.
Companheiro de escuderia na McLaren, o grandalho austraco conviveu com Senna, numa
certa poca, mais do que os outros pilotos. Senna o conhecia bem. Gostava um
bocado dele. O sentimento era recproco. Quando tudo aconteceu, Berger tomou um av
io na Europa, desembarcou em So Paulo para o velrio e o enterro, voltou na mesma
noite para a Europa porque no queria perder o velrio e o enterro de seu compatriot
a Roland Ratzenberger, a outra vtima do massacre de mola. Nessa, acabou esquecendo
a mala no hotel.
Bco tinha pnico das brincadeiras de Berger. Sistemtico que s ele, Ayrton no larg
ava uma pasta tipo 00^ em que guardava suas pequenas preciosidades, tipo
agen
100
ADRIANE GALisTEU
da, passaporte, caneta, uma minincessaire, um suter e um exemplar da Bblia. A f de A
yrton era uma crena ntima, no uma exibio pblica, mas a leitura dos
salmos e dos versculos sagrados era um hbito de todas as noites, um relax espiritu
al para facilitar um sono que, antes das corridas, quase sempre custava a chegar
.
melhor histria com Berger, eu no assisti. Mas conheo bem. Os dois deixavam, de h
elicptero, o Hotel Villa d'Este, s margens do deslumbrante lago de Como,
antes de um GP em Monza. O Ayrton com sua indefectvel pastinha, o Berger simuland
o um certo interesse pela paisagem. Ayrton se distraiu, o austraco lhe arrancou
a pasta da mo, abriu a porta do helicptero j em movimento e arremessou o precioso o
bjeto para as guas do lago. Errou por pouco: a pasta 007 esborrachou no gramado,
quase no lago.
Ayrton guardou a vingana na geladeira. Esperou at o GP da Austrlia. Nesse dia, q
uem dividia o quarto com ele era seu primo Fbio Machado. A dupla surrupiou
da camareira uma chave mestra, invadiu o quarto de Berger e de Ana, a simptica po
rtuguesinha que namorada dele h muito tempo, derrubou na banheira as roupas
dos dois, encheu de gua at em cima, entornou xampu, enfeitou o ventilador de ps com
peas ntimas do casal e sumiu, antes que Ana e Berger reaparecessem.
Berger pode ser louco mas no idiota. E Ayrton e Fbio no duvidavam de que vinha troc
o a caminho. Aparentemente, no veio. Os quatro tinham combinado de jantar

naquela noite. Ayrton e Fbio trocaram um olhar cmplice quando viram que tanto Berg
er quanto Ana, no por acaso, vestiam as mesmas roupas da tarde. Ficaram fir
CAMINHO DAS BORBOLETAS
mes. O jantar transcorreu sem uma queixa, um pio sobre
roupa, banheira, quarto - nada, nada. Ficaram elas por
elas, imaginou Ayrton.
Dias depois, passada a prova, Ayrton desembarca a negcios em Buenos Aires. No havi
a lugar no mundo em
que um porteiro, um motorista, um policial no o reconhe
cesse e no lhe manifestasse seu entusiasmo - alm do
tradicional pedido de autgrafo, claro. Surpresa: o guarda da imigrao argentina fech
a a cara, irritado, pede licena
e tranca-se numa sala, com outros oficiais. Demorada con
ferncia. Volta um senhor severo, visivelmente mais gra
duado:
- Temos todo o respeito pelo senor Ayrton Senna comeou o oficial. - Pero hay un problemita.
O passaporte. Constrangimento. Passou-lhe o documen
to. No lugar em que deveria estar aquela foto 5 x 7, colorida e, se possvel, sorr
idente, estava uma donzela nua, sem um
s trapinho a vesti-la e, pior, em posio ginecolgica.
- Berger... Berger... - espumou Senna.
Desfazendo-se em desculpas, o piloto brasileiro expli
ou s autoridades argentinas que aquela grosseira cola
gem era vingana de "um austraco maluco".
Nssa convivncia com Berger era ntima e social. Alis, se havia alguma coisa que
Ayrton sabia separar era a
relao gostosa que rolava num jantar, numa viagem ou
num passeio e uma conversa embebida em gasolina e cheia
de palavres tcnicos que o Senna - a, sim, o Senna tinha de ter, s vezes, com um ou outro parceiro de pista.
102
ADRIANE GALISTEu
Trabalho e prazer - nada a ver.
Do Rubinho Barrichello, por exemplo, ele dizia coisas timas:
- Com um carro melhor, vai longe - previa.
Na verdade, ele se sentia padrinho dos nossos calouros, da jovem guarda brasi
leira do volante, o prprio Rubinho, Christian Fittipaldi, mas tambm do portugus
Pedro Lamy e do escocs David Coulthard, que por ironia viria substitu-lo na Willia
ms. Eles lhe davam uma espcie de flashback de sua prpria iniciao. E a eles
dedicava a torcida de um agora experiente veterano.
Thierry e Patricia Boutsen tambm eram do time dos nossos amigos do peito. Sem
esquecer o Kevin, filho deles, que deve ter hoje uns 5 anos. Uns encantos - fora
m
hspedes nossos em Angra e no Algarve. Marido e mulher tinham um preparo excepcion
al, a ponto de acompanharem o Ayrton naquela sua corrida diria em volta do condomn
io
da Quinta do Lago, em Portugal. Uma hora e meia, duas horas - os dois pilotos e
ela. Eu, sob vaias gerais, os acompanhava. De bicicleta.
Um dia, prometi ao Bco que ainda iria cumprir com ele todo aquele longo e cans
ativo percurso. Treinei como uma louca, s sete da manh, todos os dias, no Ibirapue
ra,
entre maro e abril de 1993. Nuno Cobra, preparador do Ayrton, me assessorava. Eu
ia lhe fazer uma surpresa, no dia em que ele voltasse de mola para a casa do Alga
rve.
Fiquei lhe devendo essa.
Damon Hill, Michael Andretti - que durou pouco na
Frmula 1. Para eles tambm Ayrton tinha palavras de amizade. At onde eu saiba, pelo

alemo Michael Schu


macher ele mantinha, de incio, s indiferena. Por uma
103
CAMINHO DAS BORBOLETAS
nica vez, recordo-me, estivemos lado a lado, Ayrton, eu, Schumacher e a mulher de
le, uma alem loira e bonita. Num show da Tina Turner - outra paixo do Bco -,
na Austrlia, logo depois do GP de Adelaide, em 1993. Trocamos uma apresentao rpida e
meia dzia de palavras. No havia intimidade possvel com um sujeito que
passou um show trepidante como quem estivesse assistindo a um concerto de cmera e
m Salzburgo. Na temporada de 1994, quando o Benetton de Schumacher comeou a dar
um suor no Williams de Senna, nem assim Ayrton falava dele. Preocupava-o apenas
o desempenho de sua prpria mquina, e ponto final. Jamais se importou com aquele
que chamava, secamente, de "o alemo" ou, ao p da letra, "o sapateiro".
Alain Prost, sim, era uma pedra no sapato, ou na sapatilha. A crnica de seus duel
os com Ayrton nas pistas vai permanecer na histria do automobilismo. De parte
a parte, ficaram ressentimentos, queixas, acusaes de jogo sujo - e Senna, que odia
va perder, teve de amargar o tetracampeonato do rival logo naquela temporada
em que vivi intensamente ao seu lado. Com Prost, chegou a ser uma relao de tipo mu
dar de calada, quando um via o outro. Mesas distantes em restaurantes, nos anos
negros da hostilidade. At os garons tremiam. Mas o tempo foi curando as feridas. N
um magnfico restaurante em que jantvamos em Milo, setembro de 1993, antes
do GP de Monza, com o Braga, o tio Papagaio, alis, Galvo Bueno, e esposa, a tenist
a Monica Selles e a me, o Julian Jakobi e sua adorvel mulher, Fiona, de repente
Prost em pessoa veio a nossa mesa. Ayrton gelou, mas o pior j tinha passado. Pros
t
104
ADRIANE GALISTEU
estava, isso sim, mais vontade: afinal, naquele ano o campeo foi ele, no o seu ete
rno rival.
Meu sexto sentido indica, porm, que a rivalidade dos dois tinha o tempero de u
m enorme respeito. Haviam dividido, no sem algumas farpas, o mesmo boxe, o mesmo
team, o mesmo staff da McLaren por dois anos. Alain Prost era algum - quando "o f
rancs" vinha baila, numa conversa entre amigos, uma certa cerimonia se impunha,
a no ser quando Ayrton queria gozar a incompatibilidade dele com as chuvas e pist
as molhadas. Prost desafiava Senna, Senna desafiava Prost, e foi essa estimulant
e
competio, interrompida na temporada de 1994 com a aposentadoria do francs, que prod
uziu aquele dilogo entre os dois, incrvel, s vsperas do desastre de Imola.
Quem assistiu ao abrao, como o Braguinha, custou a acreditar. Senna foi alm:
- Estou sentindo a sua falta - disse ele a Prost, em ingls.
A parte francesa dessa linda reconciliao entre as duas feras se traduziu no cho
ro sincero de Alain Prost, diante do esquife do ex-rival. Falou-me, aps o funeral
,
que ele tambm tinha morrido um pouco, junto com Ayrton Senna. Parecia meio desloc
ado naquele ambiente soturno e distante do Cemitrio do Morumbi. Com a mo no meu
brao, disse um comovido "conte comigo".
Houve um adversrio de verdade na vida e na carreira de Ayrton Senna. No se po
de esperar palavras de rancor e dio de quem lia a Bblia como ele, mas acontecem
situaes de saia-justa que dizem tudo. s vsperas do Grande Prmio no Estoril, fomos num
grupo grande experimentar aquela maravilha da cozinha portuguesa que
o restauran
105
CAMINHO DAS BORBOLETAS
te Porto Santa Maria, na praia do Guincho, diante daquelas escarpas do cabo da R
oca, o ponto mais ocidental da Europa. Coisa dos deuses. Encomendado com antecedn
cia
pelo nosso anfitrio, o Braga, um linguado ao forno, cozido dentro de uma casca de

sal grosso.
Chegamos e o maitre nos levou a uma mesa voltada para aquele mar e para aquel
e horizonte de onde, sculos atrs, uns malucos portugueses, a bordo de casquinhas
to frgeis quanto os carros de Frmula 1, foram descobrir novos mundos. De repente, o
Ayrton, sempre ligadssimo, parou:
- Aqui, no. Vamos para outra mesa, bem longe. Fincou p, os outros convidados pe
rplexos. Mas me sussurrou ao ouvido:
- O indivduo est a.
A palavra, aqui entre ns, no foi propriamente indivduo. Imaginei que era o Prost
. Nada disso: o indivduo atendia pelo nome de Nelson Piquet. A a coisa ficava
de fato feia. intil voltar a esse assunto, depois do que se passou. Mas o silncio
de Piquet, no dia do enterro, foi significativo - por mais que amigos seus
tentem me convencer de que a melhor manifestao de dignidade dele seria a ausncia. U
m dia, quem sabe, eu me convena disso. Hoje, no.
Tenho, a propsito, uma bela lembrana gravada na memria. Conheci, no circuito da
Frmula 1, um garotinho lindo, de uns 5 anos, acredito, que tinha uma especial
venerao pelo Ayrton - e a amizade era recproca. Circulava pelos boxes, antes das pr
ovas, levado pelas mos de sua me, Sylvia, uma holandesa habitue dos pitlanes.
O garoto se chama Nelsinho. Nelson Piquet Jnior.
106
ADRIANE GALISTEU
Mulheres so figurantes. J na minha primeira viagem aos bastidores do circuito, em
Mnaco, a Frmula 1 me ensinou essa lio. Sem meias palavras. O jogo viril,
o combustvel fede e as estrelas fazem xixi em p. Mulheres, namoradas, amantes enfe
itam o cenrio com seus rostinhos bonitinhos e corpinhos apetitosos. Se quiserem
um papel menos subalterno, que tratem bem de seus companheiros - em casa:
Digo sem ressentimento, porque do meu namorado eu tinha o que queria: amor, ateno,
carinho, mos dadas, acesso a setores proibidos, beijos roubados atrs dos boxes.
ramos o casal in love por excelncia. Mas que diferente da Frmula Indy, por exemplo
- pelo menos da Frmula Indy como se v na TV -, no h a menor dvida. Na
Indy, mulheres permanecem nos boxes, cronometram o tempo, torcem, vibram e pulam
no pescoo de seus heris vitoriosos. Vo vestidas para a festa, naquele estilo
faroeste: botas, chapeles e cabelos de mechas.
Na Frmula l, o figurino jeans, camiseta e tnis. E os primeiros roncos dos motores
espaventam as companheiras. Elas se metem nos motor homes, para assistirem
pelos monitores, somem nos camarotes dos patrocinadores, recolhem-se ao decorati
vo dever de coadjuvantes, como aqueles gr-finos falsos das novelas do Gilberto Br
aga.
Algumas, cansadas de fazer a bonequinha de luxo, nem comparecem aos autdromos.
Vi o chefo da McLaren, Ron Dennis, cortar um dia as asinhas da mulher de Micha
el Andretti, a Sandy, por sinal bela figura. Acostumada aos hbitos da Indy, ela
achou que poderia extravasar sua emoo perto da pista. Em compensao, a Frmula 1, quand
o as mquinas se calam, um dos
107
CAMINHO DAS BORBOLETAS
lugares de maior densidade ertica do planeta - paqueras e tietagens explcitas. No p
or acaso, alguns pilotos de GP trocam de mulheres como trocam de pneus. Eu
disse: alguns.
Mnaco um principado. Nada combina melhor com um conto de fadas. E, para no perde
r a atmosfera de sonho e nobreza, ainda demos, depois, ele e eu, uma rpida
esticada em Londres, para compras e business. Braga, que conhece tudo, me jurara
:
- Voc vai amar. uma cidade adorvel.
. S que pegamos Londres naqueles seus dias mais caractersticos: frio e chuvinh
a mida. Achei os ingleses com uma cara amarga. Era s uma primeira e enganosa
impresso, pude descobrir depois. Ficamos no Berkeley, bem no centro, perto de Kni
ghtsbridge. Tentamos assistir ao Fantasma da pera - era o som ambiente de todos
os vos, no nosso avio. Estava esgotado. Esgotadssimo. Nem um piloto da McLaren cons

eguiria ingresso. Nem um Ayrton Senna. Comprar, com meu namorado, era uma maravi
lha.
Rpido e rasteiro. Sabia o que comprar e onde comprar. Cintos e sapatos. No Bruno
Magli. Programa gastronmico, com Adriane Galisteu, era uma maravilha. Rpido e
rasteiro. Sabia o que comer e onde comer. Resultado que acabamos arrastando a re
signada Betise at o McDonald's, para que ela pudesse escrever uma matria com
ele. Ayrton falava e comia. O gerente o reconheceu: "Mr. Senna, one more". Ofert
a da casa. Ele agradeceu e esticou rapidinho para mim.
Nossa primeira viagem internacional incluiu uma vit
108
ADRIANE GALisTEu
ria, muita alegria e muito amor. Era hora de voltar realidade - e, por mais que
eu tivesse certeza de meu amor, no tinha a menor certeza de que realidade seria
essa. Mas o prprio Bco - eu j podia cham-lo assim, sem medo de parecer abusadamente n
tima - me deu uma dica e uma lustrada na vaidade:
- Quero voc sempre assim como voc .
- O que voc quer dizer com isso? - vacilei.
- Por favor, no mude jamais. Se eu tivesse que lhe pedir alguma coisa, seria
ser exatamente o que voc . S no precisa tomar tanta Coca-Cola, freqentar
tanto McDonald's e, agora, falando srio, acho que voc deveria estudar ingls.
Senti que estava implcito, ali, o convite para acompanh-lo no circuito intern
acional. Foi o avio tocar o cho em Cumbica, dia 26 de maio, e eu corri para
festejar com a minha melhor e mais incondicional confidente, minha me: - Foi um s
onho!
Olhando com os olhos de hoje, entendo que houve uma conjuno favorvel: meu prim
eiro giro no exterior com ele seria o mais gostoso de todos. Porque depois
as coisas se complicaram na pista, surgiram problemas na McLaren, as vitrias esca
ssearam, a tenso cresceu e por mais que ele me pedisse, me implorasse, "me ajuda
a separar minha vida profissional da minha vida pessoal", voc sabe que nem sempre
isso possvel.
- Quando estou com voc, eu me esqueo dos problemas - recostava-se ele em mim.
Da mesma forma, com ele eu me esquecia de meus problemas.
Minha carreira de modelo eu no tinha como abandonar. Contas a pagar, um refo
rcinho aqui e ali no oramento
109
CAMINHO DAS BORBOLETAS
domstico da mame... Reapresentei-me na Elite e voltei ciranda dos testes. Mas uma
transformao tinha acontecido na minha vida. Definitivamente, mudei de turma.
Mesmo quando o Bco viajava sozinho, a negcio ou para correr, como aconteceu l
ogo depois, no GP do Canad, dia 13 de junho, era com o Leozinho Senna que eu
ia jantar, com a patota de Angra, sob a estrita vigilncia dos amigos dele, da vel
ha camaradagem de Santana e da Vila Maria. Ao Lo, por exemplo, quantas vezes eu
no emprestei meu ombro, para ele chorar suas dvidas. Gosto ou no gosto da Luciana?
(Luciana Sargologos, uma morenona imponente, tinha sido namorada dele por muitos
anos.) Sentia-o completamente diferente do irmo. Mas gostava dele. E da Sonaly, o
utra modelo da Elite, um metro e oitenta de mulher que passou a acompanh-lo em
nossas jornadas de Angra. Era eu que fazia o supermercado, que ia ao r
Santa Luzia fazer as compras do apartamento da Paraguai. Lo e eu ramos confidentes
. Para mim, nada melhor para definir uma genuna amizade. Aos 21 anos, Ja aprendi
da vida que amizade um produto muito mais raro do que parece ser.
Para ns, o que Angra era no Brasil, o Algarve era na Europa. H dois anos e meio
Ayrton fazia daquele cantinho ensolarado do sul de Portugal o seu mix de refgio
e escritrio ao longo de toda a temporada europia - que, com uma ou outra alterao de
calendrio, coincidia com o perodo mais agradvel de final de primavera,
vero e comecinho de outono. De mais a mais, as frias escolares
CAMINHO DAS BORBOLETAS

brasileiras, em julho, sempre davam chance para que a famlia, ou parte dela, se a
chegasse - como aconteceu em 1993. Pude curtir meus primeiros momentos de verdad
eira
intimidade com a Zaza, me dele - a quem eu ainda tratava pelo cerimonioso "dona N
eide". Intimidade isso: caf da manh juntas, preparar na cozinha uma comidinha
especial para o filho, sair s compras com ela e a Juraci, a caseira. Viver essas
coisas banais do cotidiano. Viviane, a irm mais velha de Ayrton, apareceu com
as meninas, Bia e Paulinha. Bruno ficou com o av na fazenda de Tatu, treinando no
seu kart.
Pude sentir, nas palavras trocadas mesa ou beira da piscina, o que o Bco signi
ficava para eles: o xod, o filho vitorioso, o arrimo, o eixo, quase a motivao
de cada uma daquelas vidas. Uma mulher a mais, uma namorada, seria sempre uma am
eaa ordem natural da rotina familiar, um perigo. Namoradinha, que fosse - mas
que no passasse da. Isso eu vejo agora. No pela cabea naqueles dias, naquelas semana
s. Eu s sabia repartir com eles, o Bco e a famlia, coisas boas.
Por exemplo, a vontade sbita de fazer umas comprinhas em outras cidades da Europa
. O jato do Bco estava quase sempre disponvel, nos intervalos entre as provas
e l fomos ns, a me, a irm e as crianas para uma temporada de aquisies em Londres. Send
que, uma tarde, saindo s ns duas, Bia e eu, ela simplesmente evaporou,
dentro da Harrods. Eu, desesperada, descabelada, procurando. Nada. Perguntei por
ela, no meu ingls estropiado. Nada. Fui at a porta. Nada. Meu desespero me obrigo
u
a uma ltima sada:
- Biiiiaaaaaa!
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Dei um berro que toda a gigantesca loja de departamentos ouviu.
Inclusive ela, ainda bem. Calmamente, experimentava roupa num daqueles provadore
s.
Prxima escala: Paris. Desembarcamos no hotel e samos em disparada, procura de
um txi. Estava tudo estranhamente calmo. O porteiro nos deteve:
- Mesdames, vocs sabem que dia hoje?
14 de julho, feriado nacional. Tudo fechado. E s tnhamos mais um dia. Samos as
sim mesmo, lambendo as vitrines. Conseguimos descobrir duas lojinhas antipatritic
as:
uma de perfumes, outra de cristais.
Bco foi nos encontrar l, j a caminho dos testes do GP da Alemanha. Abriu nossos qua
rtos e quase desmaiou: - Vocs esto malucas?
Teve a pachorra de contar: 38 malas, para quatro mulheres. O paciente Mahon
ney conseguiu acomod-las, todas, no avio. Posou, antes, para uma foto que mostrass
e
toda aquela bagagem. Simpaticssimo personagem, do qual sentirei falta, o Mahonney
. Lembro-me de que ele reclamava apenas de uma coisa: de to prximo do Bco, nunca
ningum se lembrara de fotograf-los juntos, piloto e piloto. Soube, aliviada, que s
vsperas do acidente fatal em mola a foto foi feita.
Mas o convvio em Mnaco, a ss, tinha feito to bem que no nos cansvamos de planejar nov
as viagens, apenas os dois. Dentro da temporada de Frmula 1, eu tinha
um sonho pessoal: Hungria. Ptria dos meus avs
ADRIANE GALISTEU
maternos, Alexander e Agnes, emigrados para o Brasil durante a guerra - uma terr
a de referncias reais e mitolgicas cujas histrias e cuja lngua freqentavam os
almoos domingueiros em nossa casa. Minha me, minhas tias, todas falavam hngaro mesa
, mas no me dei ao trabalho de aprender aquela lngua arrevezada, to diferente
de qualquer outra falada na Europa. S de molecagem, extra de meu av dois ou trs pala
vres horrveis. Lembro-me tambm de minha av, atrapalhada ao me ver queimar
a lngua numa daquelas sopas tpicas e escaldantes, gritando para mim "fujjal, fujja
l" (soava como fui, fui). Traduo: "sopra, sopra".
Devo com certeza a essas domingueiras hngaras na Lapa minha paixo por doces,
que at hoje tenho de compensar com quatro horas dirias de ginstica e no me

deixam tirar o olho da balana.. Mas tambm quem haveria de resistir quelas panquecas
folheadas de ma que aterrissavam mesa aps o gulash? Pelas minhas melhores
lembranas familiares, por minha av, especialmente por minha me que acabei desembarc
ando em 12 de agosto de 1993, uma quinta-feira, no aeroporto de Budapeste,
tendo a meu lado um homem a quem todos se dirigiam com um afetuoso sorriso e pal
avras incompreensveis.
- Por favor, o que eles esto dizendo? - implorava Ayrton.
- No tenho a menor idia.
- Mas nem muito obrigado voc fala? - Nada, nadinha.
No Hotel Kempinski, uma magnfica construo ainda com cheiro de novo, confesseilhe meu verdadeiro conhecimento de hngaro. As tais palavras. No que ele
passou
CAMINHO DAS BORBOLETAS
horas treinando, para o caso de ter de us-las?
- Se o Prost me aprontar uma, eu tasco o palavro nele - brincou.
Quem estava em Budapeste era o Senna, a trabalho, s voltas com as dificuldades de
seu carro e a fora de seus rivais. Mas, ainda assim, tive comigo, em vrios moment
os,
o doce Bco, comportando-se de forma a deixar claro que aquela viagem era uma home
nagem a mim - alis, ao nosso amor. Desdobrou-se.para passear a meu lado, mos
dadas como dois namorados, s margens do Danbio, que separa o pedao Buda da parte Pe
ste da capital. Depois, deixou-me entregue aos cuidados de dois amigos extraordi
nrios,
Christian Schues e a mulher dele, Birgit, filha do ex-presidente da Volkswagen b
rasileira, Wolfgang Sauer. Os dois levavam com eles os filhos Patrick e Oliver,
bem
pequenininhos.
Budapeste foi uma temporada de alegria, mas foi essa mesma Birgit quem me acudir
ia no pior momento de minha infelicidade, menos de um ano depois. Sua mo forte,
agarrada minha, evitou que, por muitas, muitas vezes, eu desabasse por terra, nu
ma sinistra quinta-feira de maio de 1994, diante de uma cova rasa do Cemitrio
do Morumbi.
Christian e Birgit me mostraram Budapeste, lindssima, e arredores, enquanto Senna
sujava suas mos de graxa em Hungaroring. O casal tinha, na verdade, uma concepo
to generosa de hospitalidade que aceitou revirar a cidade dos ps cabea at que eu enc
ontrasse, finalmente, numa pequena feira livre de rua, as sementes de papoula
- mak - que minha me havia encomendado, para seus confeitos. Juntas, Birgit e eu
conseguimos achar um McDonald's
ADRIANE GALISTEU
em Budapeste. Com Chicken McNuggets no cardpio, batata frita e torta de ma. Christi
an, o marido de Birgit, me olhava com aquela pacincia que sugere "meu Deus,
um dia isso passa". Compensei o McDonald's, que seria uma decepo para minha me, na
noite de sbado, vspera do GP: fomos todos jantar num restaurante tpico,
uma casinha simptica, amarela, cuja dona era uma velhinha, conhecida do Bco. sobre
mesa, um palacinta (pronuncia-se plotchint), uma panqueca de cereja, deu
ao meu paladar um sabor de saudade.
A McLaren do Ayrton quebrou, no domingo, eu tive o ensejo de extravasar meu l
imitado vocabulrio hngaro, aquele, em voz alta, mas, se o Senna era o tipo do cara
que odiava perder, o Bco at que estava bem descontrado no jantar solene oferecido p
elas autoridades do GP aps a prova. E a melhor testemunha aquela foto nossa,
juntinhos, ele com seu sorriso lindo, ouvindo, os dois, embevecidos, o violino c
igano entrada de um restaurante. Foto de dois namorados. ramos dois namorados.
Ele era um viajante capaz de ganhar em milhagem do executivo de uma grande mult
inacional. No entanto, chegou a me dizer, certa vez, com alguma amargura, que no
conhecia nada do mundo:
- No fundo, sou um homem caseiro.
Conhecia pouco de Londres. Mas sabia de cada curva de Silverstone e Brands

Hatch. Frankfurt, s de passagem. Hockenheim, em detalhes. Era capaz de se perder


em Milo, mesmo se o deixassem ali perto do Duomo. Mas de
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Monza tinha um mapa completssimo em sua cabea.
Seu universo era circunscrito dentro das milhas onde mquinas voavam desafian
do os limites da velocidade. Ayrton Senna, desde pequenininho, no veio ao mundo
a passeio. Sua rotina era chegar sempre quatro ou cinco dias antes da prova, mer
gulhar numa saraivada de reunies, meter-se debaixo do carro, como se fosse um mecn
ico
iniciante e no uma estrela, e buscar, nos testes, na pista, sua prpria superao. Por
isso, ele foi o melhor. Mas, a, de repente, ele era capaz de surpreender:
- Que lugar voc gostaria de conhecer agora? - me perguntou ele, de volta da
Hungria.
Tive uma certa vergonha de confessar: - A Disneyworld.
- Puxa, voc sabe que eu tambm?
Que uma meninona de 20 anos que se amarrava em Coca-Cola e Big Mac tivesse
uma fantasia juvenil, era compreensvel. Mas no pude deixar de rir da imagem de
um tricampeo do mundo de automobilismo caindo nos braos da Minnie e do Pateta. Com
binamos de ir, este ano de 1994. Infelizmente, a Minnie e o Pateta no tero
a chance de conhecer o homem mais adorvel do mundo.
- V que voc ganhou dele ningum mais vai ganhar: seu amor.
Assim me tenta dar coragem, em suas cartas e bilhetes, a Bebel, amiga nova
dessa fase ps-trauma, mas como se fosse amiga desde criancinha. - Levanta a cabea,
menina.
o que me bastaria. Mas, no inventrio dos bens me
ADRIANE GALISTEU
deixado por ele, eu declaro aqui, publicamente, que ganhei muito mais. Um monto d
e coisas subjetivas, impalpveis e adorveis. Um dia, ele me surpreendeu com um
presente. Tem gente que vai rir. Eu chorei - de felicidade.
Voltei da Hungria para a casa de minha tia. As coisas na minha vida ainda andava
m desorganizadas: casa, trabalho, planos para o futuro imediato, tudo meio embar
alhado.
Um plano, eu tinha, bem banal: comprar um carro. Tenho anotado na minha agenda,
dia 17 de agosto de 1993, um elenco de nomes de concessionrias. Fui luta. Vi um
Uno Mille prata, 1991, usado portanto, mas bonitinho, inteirinho. Tinha dinheiro
para pagar. Coisa de macho: Ayrton achava que eu no tinha competncia para saber
se o carro estava mesmo no ponto. Eu batia p: est tudo em cima. Ele despistou:
- O Alfredo, que trabalha aqui comigo, tambm andou vendo um carro, d um tempi
nho.
No podia dar tempo algum. Tinha nsia de sair dali j no meu carro. S que, vendo que h
avia um Ayrton Senna nas proximidades, o dono do Uno fez a gentileza: eu
dava uma parte do preo, ele me dava dois dias de prazo. S ento a gente fechava defi
nitivamente o negcio. Olhe s o que dizia o meu horscopo do ms de agosto,
recortado de uma dessas revistas: "A vontade de independncia ser to grande que vai
se irritar com as pessoas que tm maior poder de deciso sobre sua vida. Aproveite
este ms para baixar a cabea de vez em quando, mesmo que seja para fazer valer sua
vontade. Voc pode perder uma batalha mas pode ganhar a guerra".
Dia 19, prazo vencido. Ayrton me convida para passar no escritrio. s seis e m
eia da tarde. Subi direto para a
CAMINHO DAS BORBOLETAS
sala dele, o Alfredo no estava. Ele, "calma, calma". Alfredo, enfim, aparece, dec
epcionado:
- Desculpa, Adriane, mas no deu certo. Trouxe um outro, mais velhinho, mas gar
anto que est bom de motor. - Bela proposta - ironizei.
Descemos. Esperava por mim um Uno Mille Electronic zero, prata, igualzinho ao
que eu queria comprar. Com um buqu de rosas no cap e o detalhe da chapa: DRI 7770

.
S faltava laarote e papel celofane.
- Isso um presente de agosto.
- Mas por que agosto? - estranhei. - No Dia dos Namorados, no nada...
- Por isso mesmo: no tem data nenhuma. um presente de agosto.
Enchi o Bco de beijos. Fiquei sem palavras. Entrei como louca no carro e corri pa
ra mostrar a minha me. Liguei tambm para a me dele:
- Ganhei um carro novinho.
- Ele me contou - disse a Zaza. - Vem c que eu quero dar uma volta.
Zaza, Bia, a sobrinha mais velha, e eu, l fomos ns - depois, jantamos todos no apa
rtamento do Pacaembu. Nosso convvio na Europa me dava a idia de fazer parte
da famlia. A Bia - Bix, eu a chamava - era como uma irm mais novinha. Passamos aqu
ele fim de semana na fazenda de Tatu e, na volta, acompanhei a Zaza ao shopping.
ramos confidentes de copa e cozinha, do tipo de ficar conversando enquanto se faz
em as unhas. Tanto que, depois de levar o Beco ao aeroporto, no Mercedes dele,
naquela noite de tera-feira, 24 de agosto, para Frankfurt e, de l, para o GP da Blg
ica, fiz o que achei mais natural:
ADRIANE GALIsTEu
fui dormir na casa dos pais dele, na cama dele.
Ayrton voltou do circuito de Spa-Francorchamps
bufando com o seu quarto lugar, sentindo o campeonato
escorrer-lhe por entre os dedos. No aeroporto, me, pergun
tou meio brusco:
- E a chave da lata de sardinha, onde est? - Lata de sardinha a v - respondi.
Ele literalmente fugiu da imprensa, no meu Fiat. Uma dessas reprteres ainda quis
persegui-lo na Marginal, mas
algum se esqueceu de que o nome dele era Ayrton Senna.
Meu carro padecia nas mos dele. Ele tomou gosto em
pilot-lo na cidade. Acelerava fundo, s para me provocar.
Na verdade, ele no era Ayrton Senna no trnsito, no sen
tido de que respeitava os sinais e sabia onde dava para correr e onde definitiva
mente no dava. S de vez em
quando tinha a tentao de entrar por aquela pista exclusi
va para nibus, vazia, duas da manh, na Avenida 9 de
Julho, e pisar como se estivesse na sua McLaren. Era
vrrummmmmmmm - sumia.
De vez em quando, a booker da Elite ainda saa
minha captura, em desalentados DDI. Mas at que, um dia,
deu certo. Surgiu uma campanha da Idice, uma griffe de
jeans. S outdoors, quatro fotos diferentes, com a garantia
do padro Cludio Elizabetsky. De uma das fotos, eu me
lembro: a mulher, no caso eu, com cara de tdio, dizendo:
"Homens, eu no tenho saco". Ao primeiro outdoor que vi,
at parei o carro: eu estava irreconhecvel.
Era apenas uma pausa para o comercial. Dia 3 de
setembro de 1993, uma sexta-feira, o vo 702 da Varig, rota
So Paulo-Lisboa, esperava pelo casal Ayrton Senna
Adriane Galisteu, outra vez. S que a escala em Portugal ia
CAMINHO DAS BORBOLETAS
me preencher uma saudvel curiosidade, reforada pelas caronas que eu costumava pega
r nos longos telefonemas trocados pelo Bco com seu paizo de adoo, o Braguinha.
- Luiza est louca pra conhec-la, garotinha - dizia o Braga.
Ele, eu vivia vendo, nas curvas e retas dos curcuitos. Mas, conhecendo-o como o
conhecia, sabia que a Luiza s podia ser o amor que . Desembarcamos em Lisboa e
seguimos para esse meu esperado encontro na Quinta da Penalva, onde mais uma vez
nos instalamos, escala estratgica e afetiva antes de mais um GP, o de Monza. Na
"Casa do Ayrton", como a apelidara o Braga, ficamos ele e eu, e Galvo Bueno e mul
her, a Lcia. Meu tchans com a Luiza foi imediato. Enquanto isso, os homens discut

iam
coisas serissimas, como o desejo de Ayrton Senna, j declarado entre quatro paredes
, de deixar a McLaren. Como ainda era vero e mesmo ali no alto da aldeia de
So Pedro de Sintra o sol costuma dar o ar de sua graa, as conversaes podiam prossegu
ir, de repente, num relaxante mergulho e numa hilariante sucesso de piadas,
sempre puxadas pelo tio Papagaio.
Luiza no nos acompanhou a Monza, prova, mas a Milo, sim - assim como no nos acompan
hara antes e assim como no tinha a menor inteno de nos acompanhar em qualquer
outra corrida, nem ao Estoril, a seis quilmetros de sua quinta, to perto que d para
ouvir de l os roncos dos motores. Explicava:
- Fico nervosa demais. Pela televiso mais tranqilo. Sabia o que ela estava fa
lando. Eu tinha assistido ao que se pode chamar de stress de corrida em Hockenhe
im,
em agosto. A me do Bco assistiu a toda a prova de p 120
ADRIANE GALISTEU
no auge de sua tenso, no se sentou um minuto sequer. Murmurava rezas sem parar. Vi
viane se segurou numa cadeira. Fechava os olhos e tambm orava. Respeitava a
f de ambas, embora evitasse participar das cerimnias de bnos, que podiam demorar vint
e, trinta minutos, a que a irm submetia o Bco, s vsperas de algumas
provas. Uma coisa de culto, meio xtase, meio orao. Parecido com o que o pai do Lall
i, pastor evanglico, ministrou na manh do velrio - de novo, sem minha presena.
Foi aquele GP da Alemanha de 1993, alis, que o Ayrton perdeu porque calculou
mal o abastecimento de combustvel. Frustrao e nervosismo to grandes para a
famlia que, a partir da, a Zaza e a Viviane aderiram tambm totalmente telinha.
Do GP em Monza ficaram coisas para no se esquecer. O magnfico hotel s margens do la
go Como. A torcida inesperada da Monica Selles, isso a, a tenista, uma gracinha,
ainda traumatizada com a violncia que tinha sofrido na quadra, uma punhalada pela
s costas. Ela e a me foram dar uma fora ao Ayrton no motor home - encontro de
f com f, diga-se, j que o Ayrton, que batia um bolo no tnis, admirava o estilo desabu
sado dela. Lembro-me tambm da nuvem negra que o Ayrton saiu carregando
sobre a cabea, ao final de uma prova que abandonou. Olhem que eu conhecia o mau h
umor do moo, hein?! Mas naquele dia, j noite, ele se superou. Foi do autdromo
ao hotel sem dizer uma nica palavra. Subiu direto para o quarto. Requisitou o roo
m service. No me perguntou nada - simplesmente escolheu um jantar para ns dois.
Mas o hotel estava em festa e, apesar de tudo, l de baixo gritavam: "Senna, Senna
".
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Ele se derreteu como um sorvete fora da geladeira: - Mas eu perdi! Como so loucos
esses italianos. - Loucos por voc, disse.
Uma histria posterior, de Ferrari, aposentadoria, sei l, pode ter se consolidado n
aquele momento contraditrio de raiva e paixo.
- T difcil de me agentar? - ele finalmente quebrou o gelo. - Prometo que assim que
sairmos da Itlia eu deixo a tromba aqui no quarto.
Involuntariamente, ele me dava uma bela idia para um presente: um elefante d
e pelcia. Um dia, eu o encontraria. Ele adorou a brincadeira. Naquela noite, leva
ntei-me
p ante p quando ele j dormia, fui ao banheiro e escrevi no espelho, com batom:
- Bom-dia! Sorria!
Desenhei uma boca sorridente, cheia de dentes. Assim como ele fazia campanh
a junto a mim contra a Coca-Cola e o McDonald's, eu tambm tinha meus palanques.
Convenc-lo de que, rindo, ele ficava mais bonito. De que cabelo um pouco mais com
pridinho lhe caa bem. De que de quando em quando valia a pena comprar uma roupa
diferente daquelas que ele recebia no automtico, por mais bonitas que fossem, pre
sentes da Hugo Boss, sua patrocinadora.
O que eu no suspeitava de que havia mais coisas entre o cu e a terra do que poderi
a ser solucionado com uma carinha risonha. Ayrton Senna, o piloto, estava numa
encruzilhada profissional. As duas semanas de intervalo entre o GP da Itlia e o G
P de Portugal, dia 26 de setembro, significavam dias de agradvel convivncia com

os amigos de Sintra, do Algarve e os camaradas brasileiros


122
ADRIANE GALISTEU
desgarrados por l, mas sempre fiis. Marquinhos Magalhes Pinto, que cuidava do patro
cnio do Banco Nacional, iria aparecer. Braga prometia tambm o tenista Cssio
Motta. Nuno Cobra apareceria, para dar um suporte de corpo e alma. A temporada e
uropia chegava ao final. Mas, ansioso porque decises importantes estavam sendo
ruminadas na sua cabea, Ayrton entregava-se a exerccios como o de ficar pendurado
trs minutos seguidos, pelos braos, no galho de uma rvore na casa do Algarve.
Ele, aquela fortaleza, gemia e tremia. Apertava o passo nas suas corridas. Mas a
s idias estavam distantes.
Imaginem o clima em casa depois da prova em Portugal - Ayrton fora, decepo tota
l. O jornalista portugus Francisco Santos, habitu das pistas e amigo de longa
data do Ayrton, me recordou que, ao chegar ao autdromo do Estoril, naquele 26 de
setembro, Senna trazia a tiracolo sua 007. Aquela maleta escondia o resultado de
duas negociaes que iriam abalar a Frmula 1. Primeiro, o contrato j acertado do pilot
o brasileiro com a Williams. Segundo, e quase como conseqncia, a despedida
de Alain Prost - que saa das pistas com as honras de um tetracampeonato.
San Marino, Canad, Magny-Cours, Hockenheim, Hungaroring, Spa-Francorchamps, Monz
a, Estoril... A temporada 1993 foi uma frustrao para mim e para meu namorado,
j que ele se acostumara a andar sempre na frente. Ayrton, que saboreava no incio a
iluso de que estaria no preo, foi vendo o campeonato escapar-lhe das mos.
A era a tal histria. Percorria vrios verbetes daque
123
CAMINHO DAS BORBOLETAS
le que poderia ser um dicionrio do mau humor: ranzinza, rabugento, cara amarrada,
ele chegava a ficar horas sem dizer a algum que estivesse por perto nada que
no fosse um implicante sim ou no. Nuno Cobra, que conviveu com ele dez anos e apar
eceu no Algarve em setembro de 1993, com aquele sexto sentido de quem sentiu
a tempestade e queria ajudar, foi quem me consolou, didtico:
- J foi muito pior. Acho que voc est fazendo bem a ele.
Se era assim, que fosse. E era v-lo voltar de sua corrida diria de uma hora e m
eia, s vezes mais - uma rotina religiosa que ele, naquele momento, parecia pratic
ar
por dever e no por prazer -, que eu brincava com o Nuno:
- Ataca de l que eu ataco de c.
Batata: o rosto dele desanuviava e no era raro a gente encerrar a brincadeira
rolando pelo gramado ou jogando-se na piscina (at a Zaza, a me dele, o Ayrton
teve coragem de empurrar para dentro d'gua, num dia glorioso de vero).
Olho para trs e entendo que no podia ser diferente: ele tinha um problemao pela
frente. Ficar na McLaren, ele no podia. Tanto ele quanto o patro, Ron Dennis,
em seu silncio enigmtico, sabiam que no dava mais. Seu timing l estava esgotado. E o
futuro? Benetton? Ferrari? (No incio da temporada de 1994, ele me disse
que as duas escuderias lhe dariam trabalho e a histria confirmou suas previses.) Fr
mula Indy? Ele odiava aqueles circuitos ovais, embora tivesse recebido um convit
e
de Roger Penske e pilotado, com a devida licena de Dennis, um prottipo em Phoenix,
Arizona. Confessou ao Braga que era uma besteira. Parar por um ano, dar um temp
o?
Na verdade, correu o risco concreto, objetivo do desemprego.
124
ADRIANE GAL1sTEu
Imaginem: tricampeo do mundo encostado no INPS da
Frmula 1.
Lembro-me bem: foram seis dias e cinco noites dificlimas, de tenses quase permanen
tes que concediam, s

vezes, um ou outro intervalo de relax. Nssos adversrios


principais eram o fax, que no parava de vomitar uma
papelada que ele lia e relia com a expresso carregada; o
telefone, que sempre cobrava conversas de uma hora, duas
horas, s vezes com seu pai, o senhor Milton, e com o Fbio Machado, no escritrio de
So Paulo, mas quase
sempre com o Julian Jakobi, que cuidava dos interesses
profissionais dele na Inglaterra; e o tempo - a dvida, a espera, a indefinio o exas
peravam mais at do que as
derrotas que lhe surrupiavam o tetracampeonto.
Marquei no relgio um desses telefonemas DDI. Cinco horas e quarenta minutos. Ele
estava tenso e o que eu
ouvia, de passagem, era:
- Mas, Frank... Veja bem, Frank...
Ele no comia. Tentava beliscar uma saladinha, mas
batia com o garfo na mesa, com fria inexplicvel:
- Deve ser o francs... O francs...
Nem perguntava nada - sozinha ali com ele, no que
ria botar lenha na fogueira. Dormir, ento, nem pensar. Ele vestia o pijama e, sem
mais delongas, comeava a distri
buir as cartas para um jogo de tranca que, pressentia eu,
iria varar a madrugada. Quando a famlia estava no
Algarve, costumvamos jogar, ele e eu em dupla, contra a
Zaza e a Bia, a sobrinha mais velha. Adorvamos trapa
cear. Agora, s os dois, ele casmurro, sem dizer nada, eu
tentava desanuviar o clima - roubava pra valer. Ele estava
to entretido em suas prprias encucaes que no perce
125

CAMINHO DAS BORBOLETAS


bia. amos dormir com o canto dos primeiros galos.
Mas tnhamos um aliado nessa briga contra o profissional que no tirava o uniforme,
um nico e solitrio aliado, que, por estranho que parea, era ele mesmo - ele
em seus doces momentos de Bco, acordado subitamente do ronco dos motores para os
sons da vida que desfilava, convidativa, sua frente, comigo, diante daquele paras
o
que era a casa do Algarve.
- No liga, no - pedia-me ele, como gentil penitncia. - Espera por mim, fica po
r perto, me serve de travesseiro, que eu preciso de voc.
- Ento me d um nico sorriso - pedia eu.
Ele ria da crianona que eu no conseguia disfarar. Aquele sorriso me bastava. Eu tin
ha a pacincia do mundo para esperar que o Bco triunfasse sobre o Senna. Nunca
fui daquelas mulheres impertinentes que, ao ver o marido amuado, perguntam: "Ben
h, em que que voc t pensando?" O amor que prevalece aquele em que h uma troca
desinteressada e espontnea. Se houve, alis, segredo numa relao que durou catorze mes
es e duraria a eternidade - eu no estou brincando com isso - foi que eu
pude lhe emprestar muito da minha jovialidade molecona e ele me ensinou virtudes
como o respeito privacidade, a dedicao incondicional e o silncio providencial,
coisas que s a maturidade conhece.
Bom, tudo isso a uma teoria, mas no passaria de uma linda explicao se tambm no r
lasse entre ns roar de pele, toques, beijos, plos, msculos rijos,
teso, amor e sexo - desculpem o sbito e indiscreto entusiasmo dessa revelao, mas ramo
s um casal de qualidade e de quantidade, vocs me entendem, no entendem?
126
ADRIANE GAL1sTEu
Ento, merecamos uma lua-de-mel, no merecamos? No conheo caso de mulher nenhuma que te
nha dormido tanto, antes de uma lua-de-mel. Mas, o durante, fora um pequeno
incidente gstrico do noivo, foi daquelas coisas para no se esquecer nunca mais. Do
lugar conta do hotel - esta, tambm, literalmente inesquecvel.

Para culminar, tiramos nossas frias s de amor entre o GP do Japo, em Suzuka, e o GP


da Austrlia, a ltima corrida da temporada de 1993. Tudo, ou quase tudo,
at ento, dera errado para o Ayrton. Pois no que, no embalo da lua-de-mel, antes e d
epois, a mar virou? Lua-de-mel em dose dupla. Vitria em Suzuka, apesar
de um probleminha com um iniciante que logo vou contar. E, em Adelaide, ltimo GP
em que Ayrton vestiu as cores vermelha e branca da McLaren, ele foi de novo o pr
imeiro
do pdio. Fim de temporada, vice-campeo do mundo, 73 pontos. Cinco vitrias. Para meu
namorado, era pouco.
Em outubro, porm, ele j parecia estar de novo de bem com a vida. So Paulo, amigos,
festas, fazenda. Props at que eu tirasse meu visto para os Estados Unidos,
porque, quem sabe, um dia, aquela histria da Disneyworld... Estvamos to prximos que
fui levando gradativamente minhas coisas, da casa de minha tia para o apartament
o
da Rua Paraguai. Tipo mudana mesmo. Levei-o e o busquei de uma rpida viagem de negc
ios a Miami. Eu o recebi com um brinquedo-papagaio, desses que repetem o que
voc diz. Presente do Dia das Crianas.
Prxima parada, Japo. Sa de So Paulo sozinha, via Los Angeles, no sbado, 22 de ou
tubro. Desembarquei em Tquio na manh de segunda, 24, horrio local. Botei
a, de propsito, a palavra sozinha porque o Japo j tinha
127
CAMINHO DAS BORBOLETAS
ameaado entrar na minha vida aos 14 anos. Modelo, um convite, aquelas coisas. Min
ha me foi decidida: "Muito menina. No vai, e ponto final".
Enquanto eu voava, agora nas asas da Varig, ele voava dentro de seu McLaren.
Ficaria mais alguns dias, por compromissos de negcios e para saborear a repercusso
da vitria. Sua carreira no automobilismo sempre fora salpicada de griffes japones
as e pontuada por profissionais japoneses. S um exemplo: a Honda. De 1987, na
Lotus, a 1992, na McLaren, os motores Honda foram seus parceiros nas inmeras veze
s em que subiu ao pdio - sem falar de seus trs campeonatos mundiais, em 1988,
1990 e 1991. Osamu Goto, inspirador do vitorioso projeto Honda F 1, ganhara do d
ifcil Senna um total respeito por sua competncia. Soichiro Honda, o boss da compan
hia,
gostava de marcar presena nos eventos sociais da Frmula 1. Quando Akimasa Yasuoka
anunciou ao final da temporada de 1992 que a Honda no queria mais gastar milhes
de dlares na Frmula 1 - Ayrton me contou que foi um dos que choraram, junto com ta
ntos mecnicos japoneses.
Continuou em 1993 recebendo toneladas de cartas de fs japoneses - tinha uma enorm
e legio de adeptos, torcedores, amigos no pas. Escrevia uma coluna no Tokyo Chunic
hi
Sports, o jornal esportivo de maior tiragem. Sem se esquecer de que a admirao semp
re foi recproca. Muitas vezes, quando nos aventurvamos por ilhas desconhecidas
da baa de Angra, trilhvamos caminhos arborizados quase selvagens, atravessvamos ine
sperados riachos, Bco gostava de dizer:
- Bonito, n? Pois , me lembra o Japo.
Angra um dos poucos santurios da mata atlntica.
128
ADRIANE GALISTEU
Um botnico diria que no tem nada a ver, absolutamente nada, com qualquer paisagem
do Japo, talvez apenas um ou outro lugar bem ao sul do arquiplago japons.
Ainda assim, Ayrton gostava de comparar. Depois de minha viagem, consegui entend
er por qu, para ele, uma coisa lembrava a outra. Ele no comparava cenrios. que
beleza chama beleza. Assim era o Japo para ele.
Ao se antecipar a mim, em Tquio, em outubro, ele me poupava de formalssimos jantar
es de negcio, mas eu ainda cheguei a tempo de recolher o calor humano que o
Japo lhe dedicava.
Ainda em Cumbica, mal tinha embarcado, a aeromoa me ofereceu uma taa de champanhe

- escolhi um copo d'gua -, comecei a ouvir, j entorpecida, aqueles avisos de


afivelar os cintos, esperei apenas que a aeronave se estabilizasse na sua altura
de cruzeiro, inclinei a poltrona para trs, fechei os olhos e despertei com o annc
io
de que, em poucas horas, estaramos pousando em nossa escala em Los Angeles. Desci
a contragosto. Encostei numa daquelas cadeiras de aeroporto e voltei a ferrar
no sono - to profundamente que uma comissria veio me despertar. Novo embarque, nov
o desmaio. A bem da verdade, em 28 horas de viagem, devo ter aberto os olhos
e trocado o travesseiro de lado uma meia dzia de vezes, mas foi um sono s, impregn
ado de imagens, um entorpecimento de drogado. Ou talvez eu apenas estivesse muit
o
bem com a vida.
A realidade, a rigor, s bateu no meu rosto quando, j na confuso do aeroporto d
e Narita, sem perder de vista aquele chapeuzinho do cantor Fagner, que eu vira
no vo, um guarda da alfndega resolveu pegar no meu p. Eu j estava nervosa. Minhas ma
las, cheias de creminhos, custa
129
CAMINHO DAS BORBOLETAS
ram a aparecer. Agora, o guarda queria ver tudo. Falou em japons - eu, nada. "Spe
ak English?" "No, no." Abriu um livro, enorme, com vrias perguntas em espanhol:
- Voc tem drogas? Tem roupas para vender?
Pediu para abrir minha bolsa - aquela Louis Vuitton, enorme, que o Ayrton me
deu e que depois foi roubada em Lisboa. Ah, o guarda tinha o pretexto: uma caixa
de bombons de cereja, da Kopenhagen, que Bco adorava. Criada a confuso: pode, no po
de. Um brasileiro veio me ajudar da forma mais objetiva possvel, em portugus
mesmo:
- Namorada do Ayrton Senna. Senna, Senna. Williams, Williams.
O implicante me devolveu logo a caixa de bombons e saiu correndo para comenta
r com os outros coisas incompreensveis, das quais eu entendia apenas "Senna" ou
"Brasil". A definitiva salvaguarda estava assegurada por um sorriso familiar e u
m cabelinho espetado que me aguardava do lado de fora. Norio, o fotgrafo particul
ar
do Ayrton, fora me esperar. Animado, sacudia uns jornais japoneses que para mim
eram grego. Mas deu para sacar que Ayrton tinha vencido. Cumprimentei o Norio co
m
um abrao e com a meia dzia de palavras em ingls que ele e eu podamos trocar. Entrei
no txi, senti o acalanto daquela pista sem trepidaes e dormi mais uma
horinha. Era manh de segunda-feira quando o Norio me deixou no hotel Hilton Tokyo
Bay. Bem diante da Disneylndia de Tquio. Era maravilhoso, dava para ver o castelo
.
O manager do hotel chamou dois valeis para me conduzirem sute, o que me levou
a crer que, em vez de encontrar o Ayrton, encontraria no mximo um bilhetinho
carinhoso dele, "tive compromissos, me espere", por a.
130
ADRIANE GALISTEU
Abri a porta e meu corao veio garganta. Essa coisa de adolescente. Ele correu para
mim, me apertou num abrao e me deu um beijo escandaloso. Ficamos conversando
na cama, gigantesca e convidativa, at que, quando percebi, estava sendo despertad
a por ele:
- Ei, Dri, pedi uma comidinha pra ns dois... Acreditem: eu tinha apagado de novo.
J no sabia se era dia ou se era noite, recordo-me apenas de umas pessoas que
subiram sute para levar uns presentes para o Ayrton. Percebi que todos estavam
sorridentes, ele especialmente, com a vitria. Quando saram, ele me surpreendeu:
- P, fiz uma besteira. - Besteira?
- , discuti com um irlands louco.
Em qualquer lugar do mundo, ser sempre uma besteira discutir com um irlands l
ouco.

- Esse, quem ?
- Um novato, um moleque. Sem cabea, no sabe o que faz.
Pedi, excitada: - Me conta, vai! Ele desconversou: - Lindo esse seu sapato.
Era apenas um dockside, comprado no Brasil, na Side Walk. Ele definitivamen
te no estava a fim de voltar a falar da corrida. Foi timo porque pudemos nos entre
gar
aos assuntos do amor.
Dormimos, dormimos - quando acordei, ele j estava de p, ao telefone. Comentou d
o meu sono:
- Nunca vi, um milagre. Voc no tem fuso horrio?
131
ADRIANE GALISTEU
- No, meu fuso horrio voc - respondi.
Pena que o meu Japo, fora aquelas interminveis horas de sono, tenha durado ap
enas um dia. Abri as janelas, vi a paisagem, linda, imaginei as cenas tpicas
de cidades que eu s tinha visto em cartes-postais e me fiz a promessa solene, naqu
ele momento, de voltar. Ayrton ainda tinha um encontro de negcios, do qual ele
voltou com uma lata de biscoitos de morango, com estampa do Mickey e a inscrio "Di
sneyworld de Tquio". Redobrei minha promessa de voltar ali, um dia.
Passamos o resto do dia juntos, preparando-nos para um jantar formal e important
e que teramos aquela noite. Eu me preocupei porque sabia que teria de enfrentar
o desafio dos hashi - ou seja, comer com pauzinhos. Rosa, minha cabeleireira de
So Paulo, a nica pessoa que mexe nos meus cabelos, nissei e vrias vezes tentou
me doutrinar em favor do sushi e do sashimi e me ensinar a comer com pauzinhos.
Intil. Houve uma poca em que cheguei a pensar em trabalhar profissionalmente em
Tquio, ela teve a gentileza de me dar uma agenda cheia de endereos, inclusive de u
m irmo dela: "Fica hospedada l, vai ser mais fcil para voc".
Acabei me saindo razoavelmente com os hashi, naquele restaurante maravilhoso, do
prprio hotel, mas ao ar livre, perfumado pelos aromas de jardim japons, com acess
o
entre pontezinhas charmosas e tortuosos caminhos de pedra. No tive coragem de exp
erimentar peixe cru, mas me deliciei com um camaro feito na chapa - capturado
vivo, enorme, ali mesmo num aqurio. Eu pensava: "Coitadinhos dos bichinhos". Mas
foi a refeio mais deliciosa de que me lembro em toda a minha vida - disparada
132
ADRIANE GALISTEU
na frente at dos meus manacos Big Macs, posso confessar. Nossos quatro anfitries, t
odos homens, curvando-se e recurvando-se em gentilezas, trouxeram de presente
uma cmera fotogrfica. Estavam todos muito formais, de terno escuro e gravata. Todo
s, inclusive o Ayrton. Quando nos despedimos e subimos para nossa ltima noite
japonesa, a primeira coisa que Bco fez foi arrancar a gravata, com fora:
- Tenho dio de terno e gravata - disse.
No esse, com certeza, em meio a um cenrio de sutilezas japonesas e lembranas b
onitas, o melhor momento para protestar contra um pequeno detalhe do triste
dia do enterro de meu Bco. Mas v l: achei um absurdo, fiquei horrorizada, quando so
ube que o vestiram com terno e gravata. Quem sou eu para conhecer - e mesmo
para acreditar - alguns mistrios do universo, mas pensei, com ternura, comigo mes
ma:
- Se daqui do esquife ele tiver que se apresentar em algum outro lugar, alg
uma outra dimenso, outra esfera, vai ficar furioso em se ver nesses trajes.
Por favor, que me venham agora s as boas imagens de uma inesquecvel lua-de-me
l. A bem da verdade, a Frmula 1 tem a esperteza de deixar para o final da tempora
da
dois grandes prmios no Oriente e, entre eles, duas semanas que acabam virando uma
espcie de deliciosas frias antecipadas para aqueles pobres-diabos que passam
o.ano inteiro se ralando no asfalto das pistas. At l, o campeonato costuma j estar
mais ou menos decidido - como foi
133

ADRIANE GALISTEU
o caso do de 1993, com a vitria do Alain Prost. A, escolher no mapa um daqueles pe
dacinhos do paraso sobre a terra, relaxar e desfrutar.
Antes, Ayrton preferia Bali, na Indonsia - point escolhido pelos pilotos e p
or alguns descolados do jet set internacional. Sei at que houve vezes em que no
foi desacompanhado. A conselho de Luiza e Braga e em homenagem a mim, mudou de r
ota. Bora-Bora, um recanto delicioso no Taiti. Iramos com o Christian Fittipaldi
e a Mariana, namorada dele, mas ltima hora eles seguiram a trilha mais prxima para
Bali. Quando digo homenagem a mim, para valer. Bco odeia esse entra-e-sai
de aroportos e era o que esperava por ns. Tquio-Wellington, na Nova Zelndia. Wellin
gton-Papetee, no Taiti. Dali, num aviozinho at Bora-Bora. Enfim, um barco
at o hotel que tnhamos reservado e que ficava numa ilhota isolada. Milhas e milhas
de vo. Bota sacrifcio nisso. Mas estvamos felizes:
- Ns dois sozinhos. uma loucura.
A sada dele de Tquio indicava tambm que se refugiaria, por alguns dias, de um
problema. Aquele "discuti com um irlands louco" ao qual ele tinha se referido,
rapidamente, na verdade foi bem alm daquilo. Irritado porque o Eddie Irvine, da J
ordan, lhe fechava a porta para ultrapassagem, em Suzuka, contrariando o acordo
de cavalheiros de que quem est muito atrs deve deixar passar os primeiros. Mais do
que isso, com a arriscada manobra que o prprio Irvine fez, depois da ultrapassag
em
de Senna, de retomar a dianteira, o nosso conhecido esquentadinho s esperou o fin
al da prova para ir ao boxe da Jordan e encher a cara do irlands de pancada. "Voc
no um piloto, um
134
ADRIANE GALIsTEu
idiota", disse Senna, depois de engolir algumas provocaes de pssimo gosto do prprio
idiota.
Eu conseguia imaginar a cena direitinho, to familiar ela era para mim - a fria, o
direto de direita e as lgrimas posteriores, misturando raiva e arrependimento.
Quando Ayrton me contou em detalhes, muito depois, calminho, ele acrescentou uma
nica novidade, a que mostrava como era verdadeiro o que ele dizia de Irvine.
- Ele bateu em mim... O Senna me agrediu... O Senna - repetia o pateta da Jor
dan, como se o soco fosse um valioso trofu para ele.
O problema que a FIA resolveu punir "o agressor" e at no Taiti; nossa chegada
- enquanto ramos festivamente recepcionados com aqueles tpicos colares de
flores, mulheres a carter, com seus vestidos estampados e ibiscos nos cabelos, e
uma orquestra de ctaras e atabaques -, jornalistas esperavam por ele para falar
do assunto. No sei se por causa dos jornalistas, do colar de flores ou do problem
inha com o passaporte dele - ele mostrou o do principado de Mnaco, vermelho, que
eventualmente usava, e achou que no precisava de visto -, o fato que deu uma cris
e de espirros nele, de pura alergia. Pediu desculpas para retirar o colar, pediu
desculpas por desconhecer o tema Irvine-FIA e foi se explicar sobre o passaporte
- mas no h burocracia que no se resolva imediatamente simples meno do nome
Serena.
Entramos no clima. Sarongues, homens e mulheres descalos e uma delas, lindssi
ma, s para nos recepcionar e levar ao hotel. Mais um colar, s que desta vez
de conchas. chegada, mais msica, a surpresa de encontrar, do outro lado do mundo,
um gerente brasileiro, o Bernard, e o
135
CAMINHO DAS BORBOLETAS
deslumbramento de um quarto tipo bangal falsamente rstico, na verdade uma palafita
fincada no mar, cho de madeira, mveis de vime, varanda e, bem no meio do quarto,
um enorme quadrado de vidro mostrando que voc dormia sobre a gua do mar. Um sonho.
Bingo: Luiza e Braga acertaram de novo.
Quando acordamos no dia seguinte, ele j tinha virado e revirado a programao do h

otel, mas, claro, elegeu de cara uma. Foi eu acordar e ele j estava preparado:
- Tem a um jet-ski pra ns. Vamos?
Sumimos naquela imensido dos mares do sul. Estacionamos numa ilha de areia bra
nqussima, estranha, com a gua que mudava de tom - azul-claro, azul-turquesa,
turmalina. Dava para ver o fundo do mar. Peixinhos e estrelas-do-mar. De volta a
o jet-ski, escutamos, de repente, um barulho esquisito, de impacto - e ele parou
,
assustado: - Meu Deus, que ser?
Conseguimos parar numa pedra. Simplesmente a gente estava no meio de uma barr
eira de coral. No tinha como tirar o jet-ski dali. Ele achou melhor ir em frente:
- Vamos tentar passar a barreira de coral. - Mas e depois? Pra voltar?
- Se a gente passar, a gente volta.
Fomos indo devagar, explorando minuciosamente as brechas, a gua j no era to crist
alina, o cu comeava a fechar, com uma garoinha chata. Resumindo: estvamos
em alto-mar. Vocs tm idia do tamanho do oceano Pacfico? Bom, era do tamanho do meu pn
ico. O jet-ski seguia em alguma direo, mas novas emoes teriam de haver,
como aquela mancha negra, enorme, que de repente escureceu todo o mar, abaixo de
ns. Ele me tranqilizou: era uma
136
ADRIANE GALISTEU
arraia gigante, como jamais eu podia imaginar existir, mas bichinho inofensivo.
Com o jet-ski, comeou a perseguir a arraia, que, nervosa, dava rabadas na gua.
Aquela mania dele de acelerar. Rodamos, rodamos, rodamos, e alguma mo invisvel e m
isteriosa nos fez voltar direitinho para nosso hotel, sem antes a repetio daquela
experincia raspa-aqui, engancha-ali da barreira de coral. A mesma mo invisvel e mis
teriosa nos poupou de outro probleminha: a cinco metros do per, acabou a gasolina
do jet-ski. Felizmente, estvamos em casa. Em alto-mar, no tnhamos cruzado com vival
ma. Talvez estivssemos at hoje, nufragos, em andrajos, cabeludos, vivendo
em alguma ilhota da Polinsia - o que, para mim, seria o mximo.
Praia, piscina, vlei, quadra de tnis, restaurante tpico com deliciosos pratos
de frutos do mar e outro, de fast
food, butiques de roupas carsimas - o hotel tinha muitas
atraes para os hspedes, quase todos japoneses, e, naqueles dias, a julgar pela quan
tidade de flashes e pelos pedidos de autgrafo, um forte chamariz a mais: Ayrton
Senna. Como estava ali a passeio e no a negcios, Bc, arisco, me puxou pelo brao e nos
exilamos no nosso delicioso quarto. Encomendamos uma montanha de vdeos.
A pedido dele, fzoca do Dustin Hoffman, vimos Hook (no Brasil, A Volta do Capito G
ancho). Por capricho -meu, botei Thelma & Louise. Digo capricho porque j tinha
visto e agora queria ver a reao dele. Senti-o revirar demais na cama:
- Voc est gostando? - me perguntou. - Adorando.
Volta e meia, ele deixava escapar:
- Mulherzinha safada... Que mulher...
137
CAMINHO DAS BORBOLETAS
E eu me fazendo de desentendida.
O programa do dia seguinte era imperdvel: dar comida aos tubares. Era o hit d
o hotel. Quem acordou primeiro, excitadssima, fui eu:
- Vamos?
- No estou muito bem - queixou-se ele.
Armei-me de um leo de coco especial, que queima legal, de tom avermelhado, b
ronze mesmo, da mquina fotogrfica ganha no Japo, e nos metemos num barco, com
outros hspedes. S falar em dar de comer a tubares j era uma descarga de adrenalina t
otal, mas senti que o Ayrton estava num outro clima. Trs nativos, com aqueles
cales da linha fio-dental, amarraram o barco numa pedra, com uma corda que ficava
boiando na superfcie da gua. Cada um de ns ganhou um snorkel e mscara e a
idia era que ficssemos ali, agarrados na corda, mas com a cabea mergulhada na gua. A
emoo ia comear.

Os nativos mergulham e jogam um determinado tipo de lquido na gua. Junta um m


onte de peixes - de cores, tipos e tamanhos diferentes. A, nos do um pouco
de carne
e o que acontece que os peixes vm comer, na nossa mo. O Ayrton tinha comprado uma
mquina para fotos submarinas e se esbaldava. Mas perguntava a toda hora:
- Cad o bicho? Cad o bicho?
Logo, o bicho apareceu. Foram os nativos acenarem com uns naces de carne crua
, como aquelas picanhas malpassadas de restaurante, que alguns espectros enormes
,
escuros, despontaram na gua. Quem que disse que os hspedes ficaram l, segurando na
Gordinha? Subiu todo mundo s pressas no barco. Mas dava para ver os tubares
arrancando das mos dos nativos os nacos de carne pingan
138
ADRIANE GALISTEU
do sangue. Os nativos no demonstravam medo. Chegavam a afagar aquelas feras. Um d
eles pegou um bicho pela barbatana, montou nele e saiu navegando, como se fosse
um golfinho. O tubaro no estava feliz, visivelmente, mas o nativo nos confessou se
u truque: agarrando s uma das barbatanas laterais, ele tem como virar a boca
e morder; mas, prendendo-o tanto pela barbatana do lado como pela de cima, ele f
ica seguro e voc consegue at dirigi-lo para onde quiser. Coisa do tipo festa do
peo de boiadeiro num mar de tubares.
Mais frente, paramos para dar de comer s arraias. Monstros enormes, de mais
de um metro de dimetro. Mansinhas, inofensivas. O Ayrton passava a mo no peito
delas, elas ficavam quase na vertical, como se curtissem aquele carinho. Ele tev
e uma recada:
- Se soubesse que elas so assim, eu no teria assustado aquela, ontem.
S de palhaada, um dos nativos surrupiou meu precioso leo e se lambuzou, ele qu
e j tinha aquela cor de polinsio do Gauguin. O Ayrton riu, mas senti que
ele fraque
java. Crise mesmo foi a que teve, ao chegar. Vmitos, corridas de dois em dois min
utos ao banheiro. Chamei o Bernard, que chamou o mdico. Ele veio no figurino loca
l:
roupa branca, mas ps descalos. Ayrton tentou amenizar:
- Deve ter sido o sol e mais alguma coisa que comi.
O fato que, nos dois dias seguintes, tomamos um ch de cama - eu, no duplo papel d
e enfermeira e de mulher carinhosa, cuidadosa, preocupada - o tempo todo cuidand
o
dele. Intuio feminina: disse a ele para tomar CocaCola. Ele me contrariou na hora:
- Coca-Cola?
139
CAb11NHO DAS BORBOLETAS
Bem, antes de sair, o mdico ministrou, alm dos remdios, um conselho:
-... e tome uma Coca-Cola.
Ele ainda muito fraco, tomamos o caminho para a Austrlia, onde o circo da Frmul
a 1 ia fazer as despedidas da temporada de 1993. E onde Ayrton ia dar adeus a
seus proveitosos e emocionantes seis anos de McLaren. Percebi que tinha voltado
a ser ele na escala na Nova Zelndia. Enquanto espervamos pela conexo, entrou numa
loja do free shop. E comprou o qu? Chegou perto de mim com um cinto de couro. "Go
stou?" "Gostei." Mandou embrulhar uma dzia.
Uma bela massagem do Joseph, em Adelaide, colocouo de vez no prumo. Uma hora
e meia daquilo que parecia ser uma pura tortura. Mas era um craque, o Joseph. Eu
bem que, certas vezes, tentei aliviar o Ayrton de uma ou outra dor, especialment
e de torcicolo - seqela de tantos anos de tenso e corrida, dizia ele, e argumento
definitivo para jamais se imaginar naqueles circuitos ovais da Indy, em que seu
pescoo fica sempre inclinado para o mesmo lado. Mas ele pedia:
- Aperta mais!
At tive algumas aulas com o Joseph, mas senti que jamais chegaria l.

chover no molhado dizer que, naquele ltimo dia de temporada, na Austrlia, os ol


hares todos se convergiam para a McLaren. Um enxame. Acordei cedo, excepcionalme
nte,
ainda passei para pegar as fotos reveladas de nossa viagem ao Taiti, mas cheguei
a tempo de romper a barreira dos reprteres e entrar no boxe.
- E a, o carro?
140
ADRIANE GALISTEU
- Est bom, mas, de repente...
Ele era o pole-position. O seu futuro na Williams j estava acertado, em segred
o. Mas, para a imprensa, ficava
a dvida: seria aquela a ltima corrida de Ayrton Senna? Nos bastidores da F 1, nem
sempre se sabe das coisas mais
banais. Por exemplo, do regimental pipi dos pilotos. Por
ansiedade mas tambm por cautela, quando faltam ali uns
dez minutos para a largada, saem todos correndo para se
aliviar. Duas horas de priso no cockpit, melhor se preve
nir. Bco viu aquele rio de reprteres de uma janelinha do
motor home, desistiu:
- No vou.
- Como no vai? Est maluco?
- Eu no vou, mas voc vai me ajudar. Pega uns copi
nhos, quantos voc encontrar.
Copinhos de plstico, sa eu gritando. J todo vestido,
com o macaco, ajeita aqui, ajeita ali, ele encheu trs copinhos. Sa sorrateira, para
dar o destino conveniente, quan
do o Joseph me flagrou:
- Beer?
- , cerveja - brinquei.
Ele bem que ia atacar os copinhos. Arranquei-os da
mo dele. Voltei para dar um beijo de boa sorte no Bco
e me vi, meio ridcula, fazendo a linha daqueles adesivos
de carro, tipo "no corra, papai". Sei l o que foi, que todos aqueles dias tinham s
ido to magnficos que no
queria v-lo correr muitos riscos. Eu mesma me senti mais nervosa do que nunca. As
sisti da cabine da TV
Globo, ao lado da Daniela, namorada do Rubinho Bar
richello. Ele, na frente, lindo, tranqilo. Nunca tinha visto uma cena de pdio de p
erto. Faltavam ainda algumas
CAMINHO DAS BORBOLETAS
voltas. Chamei a Daniela e me armei de coragem: - Vamos?
Eu estava no boxe da McLaren quando ele recebeu a bandeirada de chegada. emocion
ante perceber no rosto daquela equipe cansada o sinal de um trabalho recompensad
o.
Foi a primeira e a ltima vez que pude sentir isso de to perto. O J Ramirez, chefe d
a equipe, me levantou nos braos. Ficamos na fila do gargarejo. Ele chegou
ao pdio cansado mas feliz. Deu a mo ao Prost, segundo na corrida, primeiro no camp
eonato. E o puxou para o lado dele. Abraou-o e levantou a mo do tetracampeo
do mundo. Homenagem de craque para craque. Depois, os hinos, as fotos, o champan
he - que, alis, sobrou para ns, pois ele nos reconheceu, l embaixo. J Ramirez,
"o Espanhol", como Ayrton o chamava, chorava, ensopado de Mot & Chandon.
- Obrigado, esta corrida era muito importante para mim e para minha equipe foi a primeira coisa que ele disse ao Ayrton, de volta ao boxe.
Prost era o campeo do mundo. Mas, na soma dos pontos do campeonato, a McLaren con
seguiu chegar em primeiro, entre as escuderias.
As despedidas haviam comeado trs dias antes - com um barbecue oferecido pela
McLaren, na quinta-feira, ali mesmo perto da pista. Ao passarmos diante do boxe
da Williams, Ayrton pediu para parar o carro. Desceu, cumprimentou o Frank Willi

ams, conversaram por dois minutos. De novo, encontrou Prost e o cumprimentou. Na


festa, o Ramirez fez um discurso comovido. Pediu que o Ayrton subisse ao palco.
Entregou-lhe um quadro enorme, uma colagem de fotos pequenas com os melhores mom
entos
142
ADRIANE GALISTBU
dele na McLaren. Ayrton agradeceu, emocionado. Na verdade, todos ns chorvamos.
- Minha vida de aventuras e lutas - disse ele. - Estou de mudana. Mas meu co
rao fica na McLaren. Quando parecia terminado, um videolaser com cenas da carreira
dele, vitrias, sustos, a intimidade dos boxes, flagrantes, ultrapassagens, derrap
agens, bandeiradas, pdio, bandeiras do Brasil, tudo - e a musiquinha-tema da Glob
o
no fundo.
- Chega, vou ter um enfarte - ele implorava. Choradeira geral e irrestrita.
Para mudar o humor, Ayrton avisou:
- Depois da corrida, o jantar ser por minha conta. Para todos os que esto aqu
i.
Assim como eu continuava com minha mania de McDonald's - e em Adelaide cons
egui arrast-lo at um -, ele era do mundo da massa. Domingo, no restaurante italian
o
La Trattora, em que todos comeram e beberam at de madrugada, J Ramirez, sempre o Es
panhol, deu-lhe um ltimo presente: um volante da McLaren.
Enquanto seguamos para o hotel, a p, ele segurando aquele volante como se fos
se um fetiche de criana, eu o sentia dividido ao meio:
- difcil para mim... Muito difcil.
O GP da Austrlia foi no dia 7 de novembro. Demos a ns dois dias de descanso e
m Sydney, para um passeio de lancha no lago e uma bateria de fotos que eu guardo
com amor. E j aquela aflio de encher as malas com presentes para o Natal. Adivinha
que tipo de restaurante ele procurou, at cansar, para me levar? Um italiano,
claro. Adivinha para onde eu escapei, um dia, na hora do almoo?
143
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Bem, nem preciso falar, para no ficar parecendo um comercial.
A caminho do Brasil, ele me avisou que ainda tinha um compromisso beneficen
te a cumprir, em prol de uma fundao de crianas carentes, em Bercy, na Frana incio de dezembro. amos juntos. Uma prova de kart. Sabem contra quem? Alm das feras
da Frmula 1 e de outras modalidades profissionais ou semiprofissionais, uma
fera especial: Alain Prost. Ayrton comportou-se como quando tinha 14 anos e se m
elecava com a graxa de seu kart. Mexeu e remexeu em tudo, deixando o mecnico enlo
uquecido.
Aquela coisa competitiva dele. um barato a barulheira do kart, mas tive de pedir
emprestado um protetor de ouvidos especial, do cineasta e nosso amigo Waltinho
Moreira Salles - ex-corredor e um dos raros torcedores canarinhos ali presente.
No final da brincadeira, Bco se queixou de dores nas costas:
- Acho que t ficando velho...
(Dias depois, teramos uma grata surpresa em Angra: um protetor de costas par
a kartistas. Presente do Waltinho.)
Claro que as duas baterias da corrida viraram um duelo Senna versus Prost.
Mas aquele era, decididamente, o ano do francs. Talvez sirva de relativo consolo:
1993 foi o ano em que ele me ganhou.
Sentada displicentemente sobre um pneu esquecido por ali, num canto, enregelada
pelo frio do inverno ingls,
144

ADRIANE GALISTEU
eu fui a nica testemunha, no incio de dezembro de 1993, do mais bem guardado segre
do da Frmula 1. O cenrio era um galpo enorme que servia de oficina para a
escuderia Williams/Renault, a algumas centenas de milhas de Londres. Um silencio
so mas atento Frank Williams, o dono da casa, recepcionava, ao lado de no mais do
que trs ou quatro projetistas e engenheiros do mais alto escalo e da mais absoluta
confiana, aquele que ele jamais escondera ser o seu filho dileto nas pistas.
Nada assinado, no papel, aparentemente - embora a imprensa j pressentisse a
espetacular notcia e farejasse a novidade, em tocaia permanente. Depois de seis
anos de McLaren, Ayrton Senna ia trocar de veculo, ia mudar de camisa. Ele me con
fidenciava, mas em doses de contagotas, os convites que recebera (Benetton, Ferr
ari,
Williams, a prpria McLaren) e comentava por alto o drama que vivia com a escolha
provvel - de trocar o certo da McLaren pelo desconhecido da Williams. De mais
a mais, as ms-lnguas faziam esparramar o veneno de que a transferncia perigava. Por
ironia do destino, Ayrton estava nas mos do "francs". Se ele decidisse continuar
a correr, tchau Williams. Mas Alain Prost estava de sada da Williams e das pistas
, parecia certo; supostamente, por uma clusula contratual qualquer ou ento por
sua influncia junto aos compatriotas da Renault, o fato que o francs aceitaria a i
dia de entregar sua mquina voadora a no importa que piloto, com exceo
de seu arquirrival brasileiro. Por um momento, at o prprio Ayrton chegou a acredit
ar na verso venenosa.
A realidade, porm, que, cercado de todo o sigilo possvel, l estava Ayrton, em pe
ssoa, na fbrica da
145
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Williams, pronto para cumprir o primeiro e mais elementar dos ritos de iniciao de
um novo piloto numa nova escuderia. Meticuloso que s ele, vestiu macaco, luva,
capacete, sapatilha - e se meteu dentro do cockpit do seu futuro carro como se j
fosse acelerar para a largada. Cockpit, ou em outras palavras, a carcaa, s aquela
parte externa, com o banco mas sem motor, sem nada que pudesse botar em moviment
o o Williams por meio metro, que fosse. A partir do prottipo, a sim, os engenheiro
s
tratariam de construir o motor, a suspenso, os aeroflios, todos os componentes da
aerodinmica. Era s um teste, por assim dizer, ergomtrico - se bem que de alto
significado psicolgico. Saber se Senna se sentia vontade l dentro.
Eu tremia de frio, e ele cumpriu, por quarenta minutos siberianos, os pr-requi
sitos com a pacincia de um profissional do detalhe.
- Est me apertando aqui - reclamava ele, e vinha um projetista assinalar com g
izo lugar onde a carcaa tinha de ser modificada.
- Isso aqui no est confortvel - ressentia ele - e mais uma marca de giz.
Ao final, o cockpit estava todo riscado, enquanto Frank Williams, sempre em silnc
io, em sua cadeira de rodas, s confirmava com a cabea, dizendo sim ao que poderia
parecer mero capricho de um menino mimado. Quando a sesso acabou, o Ayrton meio o
bcecado pde se dar ao direito de uma piadinha tpica de Bco, sussurrando em portugus
ao meu ouvido:
- Acho que esto acostumados com um cara mais baixinho - brincou, puxando-me pe
la mo. A vtima da perfdia vocs sabem quem , no sabem?
146
ADRIANE GALISTEU
Fizemos um tour pela nova casa: o galpo gigantesco, os laboratrios onde engenheiro
s simulavam exerccios de aerodinmica e desempenho em seus mapas de computao
grfica, fomos at o escritrio do chefo, Frank, para umas boas-vindas calorosas, ainda
que extra-oficiais. Estava l uma filha dele, lindssima, a quem me apresentaram.
Tive a melhor impresso do novo patro. No seu jeito observador e reservado, sabia se
r cordial como ningum. Um genfeman inglesa.
Irrecusvel a vontade de compar-lo com Ron Dennis, o chefe da McLaren, com aquela s

ua ciclotimia, sua postura imprevisvel, seu temperamento irritadio alternando-se,


sem qu nem por qu, com sbitas gargalhadas. Ayrton e Ron tiveram muito tempo juntos
para descobrirem uma forma de convivncia entre eles. Eu, que o vi meia dzia
de vezes, por pouco mais de um ano, no conseguia entender, por exemplo, que Ron c
ontinuasse a sorrir em ocasies em que o carro do Bco abandonava uma ou outra
prova. Era demais para minha cabea.
Quem fazia a diferena, porm, era um homem chamado Ayrton Senna. Isso eu pude senti
r de perto - como ningum. A diferena tinha um nome: talento. E o talento tinha
uma conseqncia: respeito. Campeo do mundo, uma, duas, trs vezes, ele se metia debaix
o do carro para discutir com o menos graduado mecnico a posio correta
da porca. Ia loucura com os designers em debates do tipo "isso aqui tem de ser r
eto", e o outro dizendo "no, ondulado" - e no havia Cristo que fizesse Ayrton
mudar de idia. Quantas vezes ele no implicou com a textura dos pneus? Como um gnio,
quase nunca errava. Com o temperamental Ron Dennis, at 1993, ou com o plcido
Frank
147
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Williams, em 1994, ele impunha o conhecimento de anos e anos de mos metidas na gr
axa e de dedos calejados pelas trepidaes dos volantes.
Um documentrio exibido pela televiso italiana, mostrando uma reunio de Frank,
engenheiros e seu piloto nmero 1, s vsperas da tragdia de mola, ressaltava
o estilo Senna. Ele batia p firme, a propsito do que poderia parecer uma besteirin
ha qualquer, coisa de pneus, por a: - Faam como ele quer - decretou o velho
Frank. Posso testemunhar, porm, que a admirao e o respeito eram recprocos:
- Frank um verdadeiro chefe de equipe - disse-me ele, certa vez, dando toda
nfase palavra chefe e suas implicaes sobre toda a equipe.
Meu conhecimento sobre automobilismo ia pouco alm da minha capacidade de tro
car as marchas de meu carro, mas, nos bastidores dos GPs, assisti a muitas cenas
como esta, assim como me surpreendi com o teor da adrenalina que circulava pelas
artrias de protagonistas e coadjuvantes do grande show. Vi, certa vez, Ayrton qu
ase
pulando no pescoo do Giorgio Ascanelli, o projetista da McLaren a quem ele admira
va profundamente e costumava chamar de gnio. No calor da prova, ou dos testes,
podia acontecer de Ayrton querer pegar Giorgio a tapas, ou vice-versa, em meio a
palavres em italiano que faziam corar at a Cicciolina. No GP da Alemanha, em Hock
enheim,
Senna teimou que iria entrar na pista com menos gasolina do que sugeria Ascanell
i. Vou. No vai. Testemunhei mais um daqueles episdios de comdia napolitana. Ayrton
insistiu e, a duas voltas do final, correndo na frente, o combustvel acabou. Reco
nheceu, com humildade: ponto para o engenheiro. Pois bem, uma vez ter
148
ADRIANE GALISTEU
minado o circuito, saam ambos dali aos beijos e abraos. Preciso contar a vocs uma f
ofoca de bastidores: minha amiga Betise, conversando com Giorgio, certo dia,
ouviu dele:
- Vou mandar flores para a Adriane. Depois que ela apareceu na vida dele, a conv
ersa com nosso gnio est bem mais fcil.
A Betise ria, ao me contar isso.
A McLaren deu trs ttulos mundiais a Ayrton Senna. Ayrton Senna deu trs ttulos mun
diais McLaren. Impossvel desvincular uma coisa da outra. Campeo, sim,
estrela jamais, Ayrton reconhecia que a vitria era uma estrada de mo dupla. Devia
tanto a Ascanelli que queria porque queria levar para a Williams o homem que
construiu com ele o carro vencedor da McLaren. Lamentou muito que no fosse possvel
. Nas poucas pravas de que participou em 1994, sempre foi levar seu abrao, no
boxe "inimigo", ao seu craque de parceria.
Poucas semanas antes da welcome visit Williams, Ayrton tinha chorado com a co
movida despedida que o staff da McLaren preparou para ele, logo aps o GP da Austrl

ia
- o ltimo da temporada de 1993, sua ltima vitria nas pistas. Agora, ele se ligava i
nteiramente no novo desafio. Do primeiro encontro secreto AyrtonWilliams, no
inverno horroroso da Inglaterra, a mais ntida impresso que ficou na minha cabea, po
rm, foi uma frase meio banal, solta ao vento, que ele me disse to logo tomamos
o caminho de Londres e, de l, para a temporada tropical de frias e fim de ano no B
rasil:
- Sei l, Dri. Achei esse carro meio esquisito: mais fino e mais baixo.
149
CAMINHO DAS BORBOLETAS
No primeiro teste pblico, a j em 1994, ele repetiria um sentimento ruim:
- Sinto que cheguei aqui com dois anos de atraso. O carro est virando o fio.
Traduo: aquela histria do superpiloto com a supermquina no seria bem assim como es
tavam falando. Mas, enfim, adeus fria Londres. O avio embicou para o
sul, o sol matinal do Rio veio nos receber, o Natal se aproximava e Angra estava
espera, para uma longa temporada em que eu tinha planos de arrombar o zper do
macaco do piloto Senna, arrancar-lhe a carranca do cenho franzido e testa enrugad
a, para lhe fazer uns afagos nos ps e mergulhar nas mars do amor do Big Coke,
do Beco, do meu garoto de praia - com a devida licena da ciumenta Quinda, tenho de
admitir.
Natal, para mim, um convite tristeza. Desde que meu pai morreu, em 1989, era
como se a festa no existisse. Ele faleceu em outubro, como eu j contei, numa
situao inesperada, de repente - e nossa casa nunca mais foi a mesma. Minha av mater
na, Agnes, que morava ao lado, tipo da mulher determinada, uma fortaleza, ainda
tentava levantar nosso astral, naquele dia de m memria, recorrendo a velhas receit
as de rabanadas e pes hngaros rabiscadas em cadernos antiqussimos - e, num
ano do qual no me lembro, mame, que sempre foi mais desanimada que vov, bem que pre
parou um peru recheado com farofa e ameixas. Mas a gente no cultivava o ritual
da ceia. Era um jantar comum, quem quisesse se servir que se servisse
150
CAMINHO DAS BORBOLETAS
- e nada de rvore enfeitada, os presentes ficando esparramados por aqui e por ali
. Cada um de ns buscava, no
Natal, um certo recolhimento para cicatrizar a nossa gran
de ferida na alma que era a ausncia prematura de papai.
Agora, porm, era diferente. Bco e eu voltamos da Europa, vivamos sob o mesmo teto n
o apartamento da
Rua Paraguai, compartilhvamos os mesmos amigos, saa
mos para jantar invariavelmente juntos, ramos dois namo
rados na plena acepo da palavra - se no havia aliana de noivado, sobravam intimidade
s do tipo dormir na
mesma cama na casa da me e do pai dele, no Pacaembu.
Sentia, no ntimo, que ele at gostava de me mostrar um
pouquinho. Meu Natal, portanto, seria com ele. Zaza, pes
soalmente, reiterou o convite. Quatro ou cinco dias antes,
toda a famlia se deslocaria para a fazenda de Tatu, e a
festa teria o duplo sentido de celebrar a ceia com filhos,
sobrinhos, genros, noras e de inaugurar o casaro novo,
todo restaurado.
Arvore de Natal, presentes que se acumulavam ao pe
do pinheiro, a expectativa da crianada, os passeios a cava
lo por aquele paraso, as nossas pescarias, as competies
de kart na pista particular construda segundo o traado de quem comeara sua carreira
ali, a torcida pelo sobrinho
Bruno, filho da Viviane e promessa de campeo - naquela
preguia dos compridos cafs da manh, de almoos deli
ciosos e cheios de falatrio e de tardes iluminadas como
aquela em que um fotgrafo italiano, conhecido do Ayrton,

fez nosso ensaio amoroso que correu o mundo, resgatei um


pouco da alegria da data do nascimento de Cristo.
Eu me sentia absolutamente em famlia, com a prima
zia do lugar de honra ao lado do prncipe da casa. Nem
ADRIANE GALISTEU
mesmo quelas eventuais alfinetadas que cheguei a ouvir, em relao a antigas namorada
s de Ayrton, especialmente a mais famosa delas, eu quis atribuir alguma inteno
malvola. Iludia-me coma idia de que, no fundo, o que eles - elas, seria mais corre
to dizer - queriam era me agradar.
O casaro tinha cheiro de novo, entulho das ltimas obras e um quarto feito sob m
edida para ns. Nosso quarto tinha espao suficiente para resguardar a intimidade
recproca tanto quanto para atulhar os armrios' de creminhos, loes e lavandas. Como s
empre, no estranhei cama ou ambiente, mas fui despertada de madrugada por
uma algazarra monumental e pela ausncia dele, a meu lado, na cama. Corri para a j
anela e assisti a uma cena que faria a delcia daquelas cmeras indiscretas de
programas como o do Fausto - que, todo domingo, era tambm, de uma certa maneira, u
m bem-vindo hspede nosso.
Resumo rpido: de pijama, o piloto mais carismtico e mais circunspecto do mundo
perseguia um bando de paves alvoroados que, aparentemente (meu sono profundo
no me deixou ouvir nada), tinham transferido seu footing e seus papos noturnos pa
ra debaixo de nossa janela. Botando fogo pelas narinas, Ayrton os atacava, arrem
essandolhes
seus chinelos. Em seguida, armou-se de uma vassoura. De um golpe, conseguiu derr
ubar um bicho, que se refugiara numa rvore. Os outros, pressentindo a arremetida,
trataram de bater em retirada. No sei, sinceramente, se a zoologia me confirma is
so, mas a impresso que me ficou, vendo tudo da janela, s gargalhadas, de que
o QI das citadas aves no dos mais privilegiados. Elas ficavam rodeando a piscina
e Ayrton, cada vez mais nervoso, perse
152
CAMINHO DAS BORBOLETAS
guindo-as. Agora, de moto. Ligou o motor e partiu para cima delas, mas os bichos
espaventados s produziam
ainda maior berreiro. Quando o dia clareou, o surpreendeu
naquela intil e frustrante batalha.
- Vou matar esses desgraados! - prometeu, voltan
do para a cama.
Ele tinha o sono leve, levssimo, e muitas vezes me
olhava com o olhar suplicante como o daqueles penitentes
que vo a Ftima ou a Aparecida do Norte:
- Me conta sua frmula. Me empresta um pouquinho
de seu sono.
- Se pudesse, eu trocava com voc - dizia eu, e olha
que a instabilidade das noites mal dormidas dele me preocupava tanto, de fato, q
ue eu faria de verdade a troca. Ele,
sim, precisava de descanso. Foi t-lo, quem sabe, em outro
lugar por mim desconhecido.
Ningum idiota de imaginar, porm, que um homem
cujo trabalho um risco pior do que o de um trapezista e
que trafega pela vida a mais de 300 quilmetros por hora
seria do tipo de recostar na cama, fechar os olhos e em dois
segundos j estar embalado pelos anjinhos.
Podre de sono, ele implorou ao seu Milton, no caf da
manh do dia seguinte, vspera de Natal:
- Pai, d um jeito nesses paves. Sei l: d de presen
te, manda embora.
O senhor Milton me dava a impresso de um homem
seco, muito discreto, s vezes impenetrvel, mas que no

se deixava convencer com muita facilidade. Assim como


foi ele quem fez de Ayrton um automobilista, era ele agora
quem tentava manter a tradio dinstica da famlia, depo
sitando todas as esperanas no neto Bruno. Aos 12 anos,
153
ADRIANE GALISTEU
Bruno corria de kart e j tinha alguns ttulos no seu currculo. Assim como tinha tambm
- e me confidenciou, a meia voz, naqueles dias por l - certas dvidas se
sua vocao era de fato aquela. Mas, se for o av a decidir que ele vai ser piloto ou,
digamos, jogador de squash, eu no teria dvidas em apostar que daqui a alguns
anos Bruno Senna estar percorrendo, com seu nome poderoso, as pistas ou competind
o nas quadras.
Fiquei com peninha dos paves, mas, salvo um casal, que sobrou para contar a histri
a, foram todos despachados para outra freguesia, especialmente depois que o Ayrt
on
descobriu mais uma deles. Ficava num galpo uma motinha normal, 250 cilindradas. O
s bichos entravam l, viamse refletidos no reservatrio de gasolina e, de to assustad
os,
passavam a atacar. Resultado: as bicadas furaram o reservatrio. At o senhor Milton
se deixou convencer. Hoje eu sou capaz de imaginar que, se no fosse por sua
beleza, os paves teriam ficado do lado de fora da arca do bom No.
Aquele agito todo na casa, dia 24, Zaza animadssima com o jantar, que, por causa
das crianas, seria mais cedo, mas o Bco teve a sutil percepo de que a nuvem
negra voltava a se formar em cima da minha cabea:
- Dri, voc no prefere passar a meia-noite com sua me?
Meu corao balanava entre estar ali, ao lado do meu amado, e estar em So Paulo,
junto ao leito de minha av. Pedi um tempo para pensar. De repente, me deu
um estalo: - Vou sim. Acho que devo ir.
Troquei de roupa, Zaza me emprestou seu carro, uma Quantum, e, de uma genti
leza que s vendo, ainda man
154
CAMINHO DAS BORBOLETAS
dou umas lembrancinhas para minha famlia. Ayrton me acompanhou, preocupado, at o c
arro. Pediu para eu ligar to logo chegasse. Corri para o quarto de minha av.
Eu a amava intensamente. Vivia me cobrando casamento. "Quero ver tudo preto no b
ranco", divertia-se. Vizinha de parede, sempre soube muito de minha vida e de me
us
amores - que foram poucos, diga-se. Encontrei-a inerte, no leito, incapaz de diz
er palavras com os lbios, mas apta a expressar grandes sentimentos com os olhos.
Foi assim meu Natal de 1993, na cabeceira de minha v, nos seus 80 anos de idade.
No me arrependo. No dia 26 de janeiro, um ms e dois dias depois, vov descansou
para sempre.
Perdi em 1994 duas pessoas que amo muito. O que refora minha tristeza de Nat
al. Vou passar o prximo com a cabea enfiada num travesseiro.
Nunca fui a terreiro de babala, no conheo meus orixs, no fiz despacho em encruzilh
ada e jamais sobrecarreguei Iemanj, a me das guas, com muitos pedidos
de fim de ano, mas, brasileira que sou, gosto de usar branco no rveillon, deposit
o uma rosa no mar, fao um desejo de corao e adoro aquela hora dos beijos, abraos
e espoucar de fogos. A tristeza que me invade no Natal explode em pura euforia n
a virada do ano e, de 1993 para 1994, em especial, eu tinha tudo o que comemorar
.
Tudo quer dizer: estava com o Ayrton em Angra. O resto era acessrio.
At mesmo o tempo, oscilando entre a chuva e o cu
155
ADRIANE GALISTEU
estrelado, no me importava. Sentia-me, mais do que em qualquer outro lugar, em ca
sa. Viviane, o Lalli (Flvio o primeiro nome do marido dela) e os filhos foram.

O Leonardo. Os amigos da velha-guarda e de sempre: Israel Klabin, Luiza e o Brag


a, muitos outros. O Clube dos Anugos do Bco: Criminoso, com sua namorada, Magali,
Jnior, Gordinho e a mulher, Gisela, Alfredo... Angra era um social s: muita gente
se conhecia, os convites se entrecruzavam, as lanchas circulavam entre aquelas
ilhas como as pessoas circulam entre as mesas dos bares da moda. O Ayrton sugeri
u que fssemos festa do Alexandre (a gente o chamava de Xande Campineiro), depois
que me viu arrumada. Queimada do sol dos dias anteriores, eu carreguei no branco
: minissaia, meia, blusa tipo rede de pescador, tnis. O contraste, sem pretenso,
me deixou bonita. Bco foi generoso:
- um desperdcio deix-la em casa assim. Agarrei-me no pescoo dele, naquele horri
o da Cinderela. Lembrei-me de um casal amigo dele que nos visitou em casa,
muitos meses atrs, com uma filhinha que devia ter seus 5, 6 anos no mximo. Na hora
de se despedir do seu dolo, ela cobriu-lhe o pescoo de beijos, mil, milhares
- a menininha. Ainda desconcertado, Bco comentou to logo eles partiram:
- Tanto beijo que eu casava com ela, agora, no ato. Meia-noite, e a beijoqu
eira agora era uma meninona de 20 anos; mil, milhares de beijos no pescoo, sem me
do
de repetir "eu te amo, eu te amo..." Uma rosa branca ao mar e um pedido em segre
do. Segredo, j no mais. Pedia que meu amor por ele no morresse, que ele continuasse
sempre a meu lado. Quem sou eu para dizer que o pedido no se cumpriu?
156
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Ainda no consigo acreditar no que aconteceu. Tudo to repentino, to horroroso, to
sem nexo. Olho as fotos dele, que me perseguem ao redor, e tudo perde o sentido.
Mas, quando a noite cai, a solido aperta e algumas pginas da Bblia atenuam minha am
argura. Eu me curvo ao destino da rosa branca arremessada ao mar de Angra.
Seja como for, o amor por ele no morrer. Seja como for, ele continuar perpetuamente
a meu lado.
- Voc sabe mergulhar?
Bem, convite que no poderia ser, quelas dez e tanto da noite. Talvez uma curi
osidade saudvel de quem, muito saudvel aos seus 89 anos de idade, no se
arriscava a pilotar um veculo a 300 quilmetros por hora mas era conhecido nas redo
ndezas por se meter no mar at 15 ps de profundidade.
- Nunca tentei de verdade, doutor Roberto. Tive um problema no ouvido, no me sint
o bem muito tempo debaixo d'gua.
Como o doutor Roberto repetisse pelo menos mais umas cinco vezes a mesma pergunt
a ao Bco, naquela noite, das duas, uma: ou era de fato um desafio, quase uma inco
nformidade
dele ao ver um jovem to rijo de msculo e to esbelto de postura no se maravilhar com
um esporte que o pe em contato com os grandes mistrios e maravilhas do
mar; ou ento era o doutor Roberto que, por distrao mesmo, estava repetindo a mesma
pergunta.
Por via das dvidas, Ayrton sempre foi delicado, declinando suas outras prefe
rncias esportivas. O vero de
157
ADRIANE GALISTEU
Angra era assim, uma espcie de open house para os que tinham conduo prpria - leia-se
, iates, lanchas, barcos -, uma festa permanente sobre as guas e beira
dos pers. O doutor Roberto em questo tem o sobrenome Marinho, uma adorvel mulher ch
amada Lily e um inegvel prestgio dentro e alm da baa de Angra. Ele era
o anfitrio de um daqueles jantares tardios da alta temporada, em que a Lua quase
dispensa os candelabros e os vagalumes competem em agilidade com a rapidez dos
garons.
Esportista, famoso, com boas histrias para contar, Ayrton era um convidado f
reqente, e naquela noite mais uma vez fomos, tendo cometido o erro, eu e ele,

de nos atrasarmos numa cena de amor numa praia quase deserta, propositalmente ex
agerada quando percebemos que um par de senhores idosos nos olhavam, saudosos e
enlevados.
Perdemos, desse modo, o almoo da Maria, trocamos de roupa em velocidade recorde e
embarcamos em disparada, sem botar um nico sanduichinho na boca, no Joanna II,
em direo casa de dona Lily do doutor Roberto.
Chegamos varados de fome. Havia um pequeno grupo
de notveis, mas foi a presena de Sylvia e Paulo Maluf que nos fez trocar um olhar
de cmplice interrogao.
Mais ou menos, o que eu dizia a ele, e o que ele dizia a mim, era o seguinte: do
utor Paulo, para ns, um amigo adorvel, assim como dona Sylvia, duas pessoas que
nos tratam como se fssemos filhos delas, porm, ao mesmo tempo, a presena do prefeit
o de So Paulo era a quase garantia de que a conversa ia escorrer por horas
e horas. E como ia ficar nosso condodo estmago?
A bisque de homard demorou, no entanto, estava uma delcia. Havia mariscos em prof
uso. No provei os
158
CAMINHO DAS BORBOLETAS
vinhos, mas a fisionomia dos convivas sugeria um nctar
dos deuses. Despedimo-nos s pressas, cansados mas homenageados, quando ainda ouvi
o doutor Roberto tocar,
por uma derradeira vez, junto ao Ayrton, no assunto do
mergulho submarino. O jantar foi superior, porm Ayrton
era heavy metal em matria de comida. Quando chegamos em casa, tenho a impresso de
ter ouvido algum fuando
alguma coisa na geladeira.
O mundo de Ayrton Senna era a casa de Ayrton Senna.
Angra andava a mil, naquele ms de janeiro de 1994, com exposies nuticas e a ilha de
Caras, mas o que ele queria
era sol e gua fresca. Explorvamos ilhas distantes e enros
cvamos em praias desertas. Recordo-me, em xtase, do
dia em que os beijos ardentes que ns tnhamos s ensaiado sobre a areia prosseguiriam
no sacolejo das ondas, den
tro da lancha, ns dois sozinhos. Dos beijos e dos sacolejos
nasceu a nsia do amor. Lembro-me tambm daquela
urgncia de peas de roupas arrancadas, braos entrelaa
dos, unhas cravadas, leme abandonado, nau sem rumo.
Brotou um amor selvagem, irresistvel, incontrolvel - ta, eu digo com todo o orgulho
de mulher amada, um
Ayrton que ningum experimentou.
Um dia, um susto. Da praia, cochilando sobre minha canga, no aconchego daquele
vero a mil, eu me esquecia da vida, enquanto ele dava vazo a sua inesgotvel energi
a.
Era um daqueles seus dias de speedy Bco - pensando bem, qual que no era? Sempre no
mar, sempre em busca de emoo e velocidade. Lancha, ski, o
159
ADRIANE GALISTEU
que fosse. Cauteloso, porm, com um colete salva-vidas, ele se divertia no slalom,
saltando sobre as ondas, fazendo manobras radicais, enquanto era puxado pelo je
t-ski.
De repente, uma curva mais fechada, um rodopio forado e vrias piruetas no ar. A Qu
inda, ao meu lado, deu o alarme.
Socorrido, voltou para o per com o trax encurvado e uma expresso de muita dor
no rosto:
- Ai, ai - gritava, enquanto se recostava na areia.
O impacto na gua fora to forte que lhe faltava ar. Eu corri para ele. Corre-c
orre para lhe trazer gua, um suco, sei l. No exagero meu: foi uma semana
inteira de ais e quase total inatividade. Mandou buscar de helicptero, em So Paulo

, sua fisioterapeuta, a Elaine. Instalou-a no Clube Med, ali pertinho, e a parti


r
da no houve um dia em que ele dispensasse seis horas, marcadas no relgio, de massag
ens, exerccios abdominais, ginsticas especficas para as costas e os ombros,
choques frios e quentes. Parou com tudo, exceto com as corridas matinais, no per
da Petrobrs - mas, ainda assim, diminuiu o ritmo. Nos bons tempos, ele corria
20 quilmetros naquela pista improvisada, com a desvantagem posterior de que a notc
ia se espalhou por Angra e arredores e muito candidato a atleta passou a aparece
r
para compartilhar daquele exerccio matinal com o dolo. Sorte dele que ningum, mesmo
os mais fortes, conseguia acompanh-lo.
- J estou achando um pouco demais - comentou Maria, mesmo sabendo do seu con
hecido medo de se machucar.
Eu tentava anim-lo:
- E a, Bco, est melhor?
160
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Senti que o susto tinha tido uma funo teraputica. O que aconteceu foi que, naq
uele paraso tropical em que a gente se esbaldava, pleno janeiro, frias totais,
o Senna piloto tinha subitamente acordado para as responsabilidades que o estari
am esperando dali a algumas semanas.
- Preciso estar preparado - me disse. - Tem um carro a a minha frente, espera
ndo por mim.
A temporada de Frmula 1, que s se abriria no final de maro, j se impregnara na su
a cabea. Por feliz coincidncia, a abertura seria no Brasil - com tudo de
bom que isso poderia trazer para o astro Senna. Mas, para azar do Bco, pessoa fsic
a, que ainda estava de frias, o Brasil significava antecipar a expectativa da
responsabilidade da estria em casa.
Aquilo que eu poderia chamar de nosso rveillon se estendeu gloriosamente at 17
de janeiro, num tal clima de paixo e confidncias mtuas que meu reservado namorado
se permitiu a liberdade de comentar alguns de seus antigos romances - tipo do prrequisito, imaginei eu, para que o passado ficasse definitivamente arquivado com
o
passado e o presente pudesse ser plenamente vivido como presente.
Eu, que me sentia premiada pelos deuses, jamais quis perfurar aquela carcaa de
silncio e no perguntava nada. Ele no era pessoa de falar nem mesmo de sua infncia
- tudo o que soube do garoto Ayrton me foi contado por sua me. A rigor, uma nica v
ez antes de Angra, ele comentou comigo, naquele seu vocabulrio de sim ou no,
uma notcia que os jornais divulgavam (senti que ele pretendia me tranqilizar): aqu
ela histria de uma suposta filha dele com a modelo Marcella Prado, menina a
quem a me botou o
ADRIANE GALISTEU
expressivo nome de Vitria.
- Passamos um rveifon juntos - me confirmou. - Mas no h hiptese de a filha ser
minha.
Naquelas noites aconchegantes de Angra, em que o mar vinha praticamente bei
jar os nossos ps e os murmrios dos bichos se calavam, ele me falou da Xuxa, do
tchans que ela chegou a provocar nele, trs anos atrs, da sensao de que o mesmo teria
acontecido com ela, e o desfecho muito rpido, meio frustrante. Nunca mais
se viram - da a surpresa quando ela passou, de mos dadas com a Viviane, diante do
tmulo do Sena. Mas Bco me falou dela com carinho, e por isso que eu me atrevo
a reproduzir, aqui, sem a riqueza de detalhes que eu conheci, uma histria de amor
que no me pertence. Se for uma inconfidncia indevida, eu me desculpo.
Ele tambm me perguntara de meus namorados e eu tinha visto fotos de outras n
amoradas dele na casa da Luiza e do Braga, em Sintra - algumas duradouras, outra
s
quase sempre passageiras. No contamos vantagem nem fizemos tabu do passado. Nuno
brincava comigo, na frente dele: - Esse a um grande mulherengo.

Do tipo quietinho: parece que no , mas . Eram ocasies descontradas, em que um am


igo dele de dez anos visivelmente prestava uma homenagem a mim. Como se
dissesse "agora ele s seu". Disse, uma vez, literalmente, ao fim de uma sesso de g
instica no campus da Universidade de So Paulo, debaixo de uma rvore torta
aonde ele gostava de nos levar. "Essa menina d equilbrio para voc", comentou com o
Ayrton, para minha surpresa e acanhamento dele. Percebendo a timidez do discpulo,
Nuno brincou:
162
CAMINHO DAS BORBOLETAS
- Olha s o biotipo dela. Vocs tero filhos esculturais.
O preparador fsico de Ayrton uma figuraa, um filsofo do corpo e da mente, que te
m gente que chama de louco, mas que compreendeu que a vida s pode ser vivida
com equilbrio. Entendo todo o desespero dele diante do caixo, naquele sombrio dia
de maio. Quando voltei a falar com o Nuno, um dos poucos amigos do Ayrton que
continuaram me procurando, ele me contou que passou dez dias sem comer, cinco di
as sem dormir e que s voltou vida normal porque a mulher e os filhos cobraram-lhe
a responsabilidade com a famlia. Nuno disse mais: que a reao dele era a de um escul
tor, um Donatello, que de repente visse seu David despedaado.
- O Ayrton foi minha obra-prima.
Aquele menino raqutico que, em 1984, no agentava 25 minutos de exerccio, mas que
precisava de repente se sentar ao volante de um Toleman e resistir a duas
horas de prova, que desmaiou ao final de uma corrida na frica do Sul, que passou
mal em Hockenheim, transformou-se num homem rijo, forte mas elstico, peitoral,
bceps, trceps flexveis, o que faz a diferena desses mastodontes de academia. "O mscul
o tem de ser inteligente", resumia Nuno.
Privilgio meu sentir isso de perto, juntinha, agarradinha. Concordo com Nuno:
um corpo que era uma escultura. Se era assim, por que ter cime? Um dolo mundial,
com milhes de mulheres sonhando em estar no meu lugar. E, no entanto, por alguma
misteriosa razo, era eu. Seria impossvel viver perseguida por um cime desse
tamanho. Em janeiro de 1994, eu escrevi a ele: "Bco, no me
163
t
importo de ser a sombra, quando voc a figura; ser a situao quando voc o assunto".
No meu, isso. do marido da Glria Pires, Orlando Moraes, que comps esta msica pa
ra ela.
Toda vez que o Ayrton viajava, eu escondia um bilhetinho na sua carteira, o
u em algum canto de sua mala. Esse, foi com ele numa daquelas viagens rpidas que
ele fez no incio do ano, para testes com o Williams novo, na Europa. Tenho anotad
o na minha agenda: 24 de janeiro, segunda-feira, 18h30, vo 901 da Varig. Bco
chega ao Rio. Dali, direto para Angra. No pude esper-lo, dessa vez. Minha av fora o
perada cinco dias antes. Tinha um tumor cerebral do tamanho de uma laranja.
Estava no hospital, em So Paulo. Fui visit-la. Ela j no respondia a nenhum estmulo. U
ma das pessoas mais vitais que eu conhecera - e, agora, jazia num quarto
de hospital, inerte. Eu tinha trazido para ela, de Portugal, um tero de Nossa Sen
hora de Ftima, feito de ptalas de rosas. Pendurei-o acima da cama dela. Olhei
mais uma vez para seu rosto e pensei: ela viveu, sofreu, foi feliz. Chorava e or
ava. Rezei a Deus, rezei muito. Com todas as minhas foras, pedia pela sua morte.
- Prece... sei l... uma qualquer! Como que voc deixou que fizessem uma coisa
dessas?
Era comigo - o mnimo que ele dizia. Gritava coisas horrorosas. Estava transt
ornado. Uma fera. Enrolou a revista e a atirou com raiva contra a parede de noss
o
apartamento na Rua Paraguai. Sentia-me pssima. Muda, parali
164
ADRIANE GALiSTEu

CAMINHO DAS BORBOLETAS


sada. Tentava resmungar alguma desculpa, mas no saa do "mas... olha aqui..."
Seria intil qualquer argumento. Calei.
Por uma dezena de vezes eu tomara contato com esse lado desgovernado do Ayr
ton, mas nunca na condio de vtima ou de piv da tragdia. As coisas que o tiravam
do srio eram adversrios nas pistas, carros que quebravam, jornalistas inconvenient
es, fas sem desconfimetro. Nunca pensei que ia chegar o meu dia.
E dia pior no poderia haver. Bem na semana em que ele ia comear tudo de novo
na sua carreira - a semana do GP do Brasil em Interlagos. A revista que ele folh
eava
raivosamente, dez, vinte vezes, at arremessar na parede, era a edio de Caras, que s
aiu na quarta-feira. Eu era a capa. Um longo ensaio fotogrfico de doze pginas,
fotos grandes, belssimas, feitas pelo Fbio Cabral - eu j tinha
tomado a cautela de trabalhar com um profissional da mais absoluta confiana. s vspe
ras do GP do Brasil, Caras apresentava, em grande estilo, a namorada do maior
de
todos os dolos nacionais.
Um ano antes, no dia em que fui pela primeira vez me
encontrar com ele naquele mesmo apartamento dos
Jardins e dali seguimos juntos para Angra, eu levara debaixo do brao o exemplar d
e uma revista espanhola
chamada Man - ao contrrio do que sugere o nome,
nada a ver com Playboy . Era uma revista de muitas
fotos, viagens, aventuras. A agncia Elite selecionou um time de dez meninas e pas
samos um par de dias na praia de Camburi, de mai, ilustrando aquela que seria
uma
reportagem sobre o litoral brasileiro. Para minha surpre
sa, fui capa - eu, sozinha. Diante de todo aquele escrete
165
ADRIANE GALISTEU
de beldades, entendi a escolha como uma homenagem ao meu sobrenome espanhol. Ess
as coisas envaidecem uma modelo, claro, enriquecem seu book e do um empurrozinho
em sua carreira. Foi por isso que levei a revista at a casa do Ayrton e, orgulhos
a, mostrei-a a ele, quando veio a inevitvel pergunta: "Como seu trabalho de
modelo?"
Ele adorou. Agora, odiava.
Em um ano de convivncia, alguma coisa tinha mudado - e talvez eu no tivesse d
ado a devida conta. Aquela briga, a primeira que tnhamos, de verdade, me punha
diante de um problema de identidade dupla: namorada e modelo.
Esperei que ele serenasse - se e que era possvel. Falei calmamente:
- Minha vida inteira, eu trabalhei assim. No nenhum mistrio, para mim, chegar d
iante de um fotgrafo e posar, fazer caras e bocas. Trato meu trabalho de uma
forma absolutamente profissional. Preciso de dinheiro e preciso trabalhar.
Mas ele voltava a revirar pgina por pgina de Caras, apontava aqui e ali, volt
ava a se sacudir de irritao, berrava: - Voc precisa entender que no mais
a mesma, Adriane (a coisa estava feia, ele jamais me chamava de Adriane, s de Dri
, Drica). - Voc hoje a minha namorada.
- Sei disso. Abri mo de minha vida para isso e no estou aqui lhe cobrando; qu
eria, ao contrrio, que voc entendesse que estou muito feliz pela escolha que
fiz.
Ele no se conformava, no ouvia, ou no queria ouvir. Ainda tentei ser razovel:
166
CAMINHO DAS BORBOLETAS
- Mas o que lhe desagradou? As fotos? O texto? - A merda toda. As fotos, especia
lmente.
Ayrton no era do tipo de ter crises de cime. Recordo
me que, uma vez, na fazenda, ao me ver descer do quarto
com uma minissaia nova, perguntou:

- Ganhou quando tinha 13 anos?


Dos 9 anos at aquela noite em que achei que tudo
estava acabado, eu sobrevivi como modelo, arcando com
os preconceitos que a profisso provoca e administrando a
maior dificuldade de um trabalho em que a beleza o elemento primordial. Uma mode
lo parece ser muitas coisas
que ela de fato no . Mas para quanta gente a nica coisa
que vale no mundo no so as aparncias? Pensando bem,
isso ali na hora valia tambm para ele. Ayrton.
Minha lealdade para com aquele admirvel ser huma
no que eu amo e conheo to de perto era absoluta. Minha convico e minha sinceridade m
e davam fora para
enfrentar o desafio. Mesmo que eu tivesse, naquela hora,
de recuar taticamente. Em respeito ao momento que ele pssava, a agonia que j invad
ia sua alma, a ansiedade que prenunciava o dia seguinte, o outro, o outro, at
o domin
go da corrida.
Dei um passo atrs:
- T bem, eu errei. No precisava ter me exposto. Se
eu estivesse no seu lugar, talvez reagisse do mesmo modo.
Peo desculpas. Mas, se voc quiser terminar nossa relao
por causa desse episdio, aproveita sua raiva e vai em fren
te. Termina...
Tinha um travo de choro na garganta, porm fiquei
firme para no chorar. Propunha um fim no nosso namoro,
mas meu corao estava do tamanho de uma ervilha, gri
167
ADRIANE GALISTEU
tando "no, no". Sair dali seria mergulhar num abismo sem fundo, eu sabia disso. De
repente, vi que caam lgrimas dos olhos dele. Entendi aquilo como o seu constrangi
do
jeito de dizer "sim, acabou, at mais..."
- Tivemos um relacionamento maravilhoso - continuei. - Nunca chegamos a uma d
iscusso nesses termos. Fiquei chocada com o que se passou aqui., Voc me mostrou
um Ayrton que eu no conhecia.
Longe de mim irrit-lo. Eu j me lamentava previamente pelo desfecho esperado. A dis
cusso havia avanado madrugada adentro. Ele apagava a luz, a raiva o vencia,
acendia de novo, falava, falava. Quatro horas seguidas. Pensei no pior: "Amanh, e
u me levanto e vou embora". No seria a reao de uma mulher vingativa ou ofendida.
Seria a atitude correta de uma mulher vencida. A, foi ele quem interrompeu:
- Nunca duvidei do seu carter, no isso. Disse que no gostei e no gostei, s isso.
Trocamos um olhar em que senti a fasca de um amor que, na verdade, nenhum de ns
queria perder. As feridas estavam expostas, mas, em silncio, com uma cumplicidad
e
sem palavras, nos demos um tempo. Fomos deitar. Engraado que naquela noite, sem n
ada combinado, trocamos de papel. Quem subiu o zper do uniforme fui eu. Ele, que
no dormia, dormiu; eu no preguei olhos. Eu o vi acordar cedo, pois a quinta-feira
j era dia de muitos compromissos, e fazer a barba. Ele se aproximou da cama,
me deu um beijo de tchau e disse:
- A gente se fala depois.
Foi ele pisar fora de casa para eu me dar, enfim, o direito de um choro franc
o, forte, sacudido. Desabei, lite
168
CAMINHO DAS BORBOLETAS
ralmente. Chorar pode ser o melhor atalho para a compreenso das coisas. De repent
e, tudo se organizou na minha cabea, tudo ficou muito simples:
- Acho que tenho razo; mas a minha razo que v pro inferno!
Caras era a revista mais disputada nos fins de semana na fazenda. O senhor Mi

lton comprava - ele chegava abraado de jornais e revistas. O prprio Bco lia e
gostava. Quando surgiu o convite para eu ser a capa, em fevereiro, nem cheguei a
cogitar, mas, pouco a pouco, fui comeando a gostar da idia. Naturalmente, consult
ei-o.
S fiz porque ele disse sim. Na sua condio de empresrio que aumentava seu portfolio d
e negcios, ele passou dez dias entre a Alemanha e a Inglaterra, no incio
de maro - e foi l, num dos vrios telefonemas que trocvamos, dia aps dia, que toquei n
o assunto. Eu faria do meu jeito, tranqilizei-o. Com um fotgrafo de confiana.
- Quem? - ele quis logo saber. - Estou pensando no Fbio Cabral.
Cabral andava me rondando com a proposta de uma exposio de fotos s minhas. Gosto
do trabalho dele.
- Confia? - ele insistiu. - O estilo dele brbaro. - E voc? Est a fim de fazer?
- De repente, at estou. Faz tempo que no tiro foto posada.
- Ento, vai - disse ele, sem meias palavras. Comentei que pensava em fotografar n
uma praia, trs
169
ADRIANE GALISTEU
dias, com reprter, produtora, maquiador juntos. - Que praia? - quis saber, meticu
loso.
- Camburi.
_ - Mas por que Camburi?
- Porque aqui perto, uma praia bonita, qual faz muito tempo que eu no vou. No
tem sentido ir a Angra fazer isso. L o nosso canto. Tenho milhes de
maravilhosas fotos minhas, com voc, em Angra.
Ele quis saber mais: onde ficar, qual seria o esquema. Resumi:
- Aquele mesmo esquema de modelo, fica tranqilo. Fiz as fotos com o maior pr
azer e o maior cuidado. Mas foi uma trabalheira para todos. Saiu do jeito que eu
queria. To logo as fotos foram reveladas, Cabral me ligou:
- Est o mximo.
Eu queria ver tudo antes mesmo de chegar revista, mas ele argumentou:
- Da minha parte, seria antitico. Eles esto agindo com correo, no d para preocupa
r.
Ainda assim, insisti: um cromo s, de cada srie, aquele que estivesse pior, pa
ra eu ver como tinha ficado. Ele concordou. Peguei na portaria do ateli dele
e aquilo s me confirmou o que eu, modelo com mais de dez anos de janela, desconfi
ava: perfeito.
Guardei o pacote para fazer uma surpresa pro Bco, que estava de volta. Deixe
i para mostrar a ele no fim de semana, na fazenda, quando estivssemos, s os dois,
na cama. Dia 21 de maro, a segunda-feira da semana do GP, era aniversrio dele: 34
anos. No domingo, teve bolo, doce, parabns, sob a batuta da Zaza. Descobri,
naquela noite, na fazenda,
170
CAMINHO DAS BORBOLETAS
que ele tinha vocao de editor de fotografia. Olhou os cromos um a um, contra a luz
, com rigor e ateno.
- Gostou? - eu estava ansiosa.
- Gostei. De uma em especial. Esta da bicicleta.
A minha predileta. Pensei de novo: se a Photo soubesse que um cara com esse o
lhar existe, quem sabe no ia lhe propor mudar de ramo? Fiquei to encorajada que
desci com o mao de fotos para o caf da manh. Queria que a Zaza compartilhasse de no
sso segredo. A me viu:
- Lindo.
O Lo, os amigos que estavam na fazenda - enfim, os cromos passaram pelas mos de
todos. Comentrios sempre elogiosos. E no se falou mais nisso. Como a reportagem
de Caras sairia na semana do GP do Brasil, o jeito de eu descarregar minha adren
alina era esperar pela revista. A do Bco, ele aliviava correndo diariamente na US
P
- seu treino para aquela que, alm de impor a incgnita de estria de uma temporada co

m escuderia nova, carregava a responsabilidade de ser em So Paulo, sua terra.


Eu o acompanhava na USP e ficava impressionada. Onde quer que ele fosse, paravam
-no para a pergunta fatal: "E o carro, como est?" Ele era vago, mas a conversa se
mpre
escorregava para o otimismo. "J ganhou, voc vai ser tetra", diziam todos. O GP do
Brasil era o cardpio da semana. Pior para o j ansioso Ayrton. "Estou corrodo
por dentro" - confessou a mim naquela tera-feira, 22 de maro. - "As pessoas esto en
ganadas: no vai ser esse passeio que elas imaginam."
O primeiro contato dele com a pista de Interlagos, na quarta, ainda s para a
gravao de um comercial da Nacional Seguros, coincidiu com o primeiro contato
dele
40RIAN-F GALISTEU
com a minha Caras, j impressa. Um assessor dele, Charles, sem maldade, fez a gent
ileza. Ele s deu uma folheada e foi trabalhar. Por coincidncia, quem produzia
o comercial da Nacional era Tina Krugg, a mesma que me acompanhou com Caras a Ca
mburi. Ela pediu-lhe um autgrafo e, em troca, deu-lhe de presente uma cartela com
sobras das minhas fotos. Mais fotos. Ele brincou:
- Ento, voc a famosa Tina!
Tudo muito ameno, tudo muito cordial. Ainda me ligou para dizer que, noite, jant
aramos na casa dos pais dele. L, ficou mais quieto do que nunca, mas vi no seu
silncio a expectativa do GP que chegava. Engano meu. Foi a gente se despedir dos
pais, abrir a porta do elevador e apertar o boto 2S da garagem para ele fechar
de vez a cara:
- Voc viu a Caras?
Claro: durante o almoo, no McDonald's da Avenida Rebouas, eu tinha passado e repas
sado as pginas. Confesso que, no final, me veio pela primeira vez um friozinho
na barriga. Estava linda, a reportagem. O texto, corretssimo. Mas, no fundo, no f
undo, eu me perguntava: era preciso ter feito?
- Voc gostou? - prosseguiu ele. - No sei, voc no gostou?
- No.
S isso: no. O elevador chegara garagem, cada um de ns tinha ido com seu prprio ca
rro, o que me condenava a uns dez minutos de angstia at nos reencontrarmos
no nosso apartamento da Paraguai.
- Me fala, me fala - implorei. - Voc estava muito sexy.
172
CAMINHO DAS BORBOLETAS
F em casa que aconteceu toda a exploso que narrei. Eu j o tinha visto emburrado,
cabisbaixo - era o jeito dele de mostrar sua contrariedade. Conhecera e aprender
a
a conviver com isso, respeitando o timing da crise dele, sem entrar na parania de
que era eu a culpada, ou que era de mim que ele tinha se enchido. Mas, discutir
daquela forma, nunca. Ainda assim, eu pensava primeiro nele:
- Meu Deus, ele vai ter corrida, no pode ficar assim. Foi uma experincia dramtic
a mas muito educativa, como podem ser instrutivas algumas brigas entre casais
que verdadeiramente se amam. No dia do enterro do dolo Senna, pessoas do povo abr
iam as pginas de Caras, no s a do casal feliz, de uma edio seguinte, mas tambm
aquelas mesmas que geraram tanto dio. Elas me acenavam com a revista, no para me a
dular, eu sei, mas como uma forma de espontnea solidariedade com a mulher que
ele tinha.
Digo isso nunca por vaidade, e sim com o corao to partido como naquela noite difc
il e em outras que se seguiram. Olho para trs e vejo que muitas coisas se
juntaram ali naquelas pginas de revista. Tirem fora a tenso da semana, muito compr
eensvel. Mas havia a surpresa de ele me ver, de novo, como modelo - depois de
uma sumida legal que eu tinha dado das pginas e dos outdoors. Talvez, inconscient
emente, eu quisesse lembrar: tenho um trabalho, tenho uma profisso. O Bco, de
repente, j no se conformava.

- Voc no precisa mostrar ao mundo que tem um corpo bonito, que tem esse outro l
ado Adriane Galisteu - foi uma de suas frases mais esclarecedoras.
Esse outro lado Adriane Galisteu quer dizer: a modelo,
173
; "10
aquela que continuava, bem ou mal, no book da Elite. Ele,
jamais disse com clareza, mas devia sonhar com outros
rumos profissionais para mim. E tinha mais, aquilo que ele
no escondeu mesmo diante dos meus argumentos do-tipo "mas voc sabia tudo", ou "voc
viu os negativos antes". Um sentimento bem humano chamado cime.
- Seu corpo bonito para mostrar s pra mim.
Eu sou ciumenta, embora disfarce. Ele ciumento, pensei. "Cime de namorado, isso p
assa", me acalmou mame, sempre discreta, quando liguei na manh posterior
tempestade. "Normal, coisa de quem gosta da gente", reforou Ndia, amiga do Rio, mu
lher do Oscar Guerra - outra a quem recorri, por telefone, pedindo colo e luz.
O que ele prprio, de certo modo, me reconfirmou, antes de sair para o primeiro tr
eino oficial, na sexta-feira, 25 de maro, j aplacada a onda de fria:
- Me faz s um favorzinho sobre aquilo. Vai na revista e pede os cromos. Todos. Qu
ero guardar pra mim. Nenhum problema. Ele ainda teve tempo de reconhecer, dias
mais tarde, que ao promover todo o furaco o que mais o incomodava era o fotgrafo.
At onde tinha ido a ousadia dele? Exatamente at o ponto que as fotos revelavam.
Mas h outro desconto que dou hoje ao descontrole do Bco, e uma lio que ele sempre qu
is me incutir, eu reconheo: o perigo que a celebridade acarreta. No tem
nada a ver com a revista, ou com a imprensa, mas tem a ver com a vida.
- Eu j estou calejado - dizia ele, alertando para as cascas de banana que invejos
os e futriqueiros gostam de botar no caminho dos que ganham fama e respeito. Mas voc, que menina, preste ateno para no se machucar.
174
ADRIANE GALISTEU
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Foi um maravilhoso cidado, que eu amo, de nome Ayrton, quem me falou essas coi
sas.
Mlhor tempo na sexta, pole-position naquele sbado em que fomos, de manhzinha, ele
, eu, o Fbio, primo dele, e a esposa, Nice, alm do piloto Nelson, os cinco
no mesmo helicptero, para Interlagos - ele ia chegando l, segundo a segundo conqui
stado na pista, e eu, gemendo dentro de meu sentimento de culpa, silenciosa,
com meu zper lacrado. Jeito besta de comemorar um ano de convivncia. Mas teve de s
er assim. Muita gente queria falar comigo, eu fui avisando: nada de entrevista.
Me escondi o mais que pude. At os amigos estranharam. Braga, sempre o Braga, me a
lertou:
- O homem est uma fera, garotinha.
S com o Cristiano eu me abri um pouco. Contei sobre a briga, o medo de tudo ac
abar ali. Ele no me socorreu nem um pouquinho:
- Gosto de voc, mas, se fosse minha namorada, eu terminava.
A veio o domingo do GP e aquela realidade prevista por ele deu-lhe uma raste
ira, a poucas voltas do final. Se que eu o conheo, a rodopiada do Williams num
ponto meio bobo foi at melhor. Seria um castigo subir ao pdio, no Brasil, em posio d
e inferioridade ante "o alemo". Cheguei em casa antes dele - Ayrton esperou
horas para o autdromo esvaziar e sair em relativa liberdade. Na sala, triste com
o resultado, estava tambm o Gordinho, reclamando:
175
ADRIANE GALISTEU
- Mas o que que o Bco tem? Ele no falou comigo. - No est falando com ningum - disse e
u.
- Vou conversar com ele - disse o Gordinho, com ares de ofendido.
- Fica quieto - pedi. - Seno vai estragar tudo. No nada com voc.
Chega o Ayrton, ainda cansado, vem para junto do sof e senta no meu colo. Me

u corao esguichava de alegria. Ficou assim uns vinte minutos, conversando demorada
mente
com o Gordinho, falando da prova, de motores, da derrapagem. J estava pensando em
outra coisa: o lanamento, na tera-feira, da marca Audi, que passaria a representa
r
no Brasil. Fomos para o quarto. Ele estava exausto. Como fazia em noite de corri
da, tomava uma Coca-Cola e procurava descansar. Foi horrvel dormir sem falar com
ele. Pelo sim, pelo no, estava louca para acertar os nossos ponteiros.
- Me, preciso falar - l estava eu, de novo, no dia seguinte, alugando os ouvido
s de dona Emma.
- Seja forte, filha. Espera o que for preciso esperar. O momento todo dele.
A frustrao da derrota no tirou a animao de um nico dos dois mil convidados da festa
na da Audi, num hangar do Aeroporto de Congonhas. Com direito a J Soares
de mestre de cerimnias e a muita gente, entre os convidados, que eu no via havia sc
ulos. Antes de me pegar em nossa casa, ele queria saber de minha roupa:
- Linda - eu quis ser vaga. - Linda como? Quero ver.
Era um vestido preto, de veludo alemo, totalmente fechado. Quando ele me deixo
u na mesa, para circular e
176
CAMINHO DAS BORBOLETAS
cumprir seus deveres de anfitrio, a Bianca, sobrinha dele, me alertou:
- Dri, tem uma irm gmea sua aqui. Naquela mesa, com o mesmo vestido.
Olho de mulher. O meu era, supostamente, um vestido exclusivo. Esperei apagar
a luz e fui ver quem era. Birgit, a fiel amiga. Saia-justa total. Mas ela, soli
dria:
- Fica tranqila, no vou me levantar daqui um minu
to.
No levantou. Eu levantei, eufrica, ao final do discurso do Ayrton. Ele subiu ao
palco com a surpreendente tranqilidade de um locutor. O meu timidozinho me
espantava. O fato que j fazia algum tempo que eu o sentia curtindo uma coisa nova
: ver crescer o seu lado empresrio. Ele, que sempre delegou o assunto dinheiro
e investimento para o pai, para o primo Fbio, para o Lo, para o Julian, agora comea
va a tomar gosto. Mais um sinal de maturidade - e de sintonia com um futuro
mais cedo ou mais tarde distante da Frmula l.
A ltima viagem antes de Interlagos, por exemplo, tinha sido de business puro
: o acerto final com a Audi, uma conversa coin a direo da Montblanc, a das canetas
,
a representao das motos Ducati e de uma excepcional bicicleta de fibra de carbono
- Carraro, italiana - que custaria uns trs mil dlares, por a, cada uma. Preparava
o lanamento de seu gibi: Senninha. Pelo roteiro, ele tinha uma namorada loira e d
e olhos verdes. O nome seria revelado no nmero 2: Dri. No foi, mas ainda assim
fico satisfeita em saber que a revista, sonho dele, continua a circular - com ti
ragem recorde.
Sem falar de seu empenho, eu diria mergulho pessoal na hora de acertar o co
ntrato com a Williams. Ayrton era
177
ADRIANE GALISTEU
senhor de si mesmo. Isso devia incomodar a quem o queria sempre menino tmido e su
bmisso.
Procurei, naquela semana, a me do Bco. Queria uma conversa a ss - sabia que o se
nhor Milton estava na fazenda. O assunto com dona Neide ainda era a revista
Caras. Acabei dormindo l, no quarto dele - que, s vezes, sem esconder de ningum, er
a tambm quarto nosso. Tinha, com a Zaza, intimidade at para fazer aquilo
que eu fui fazer:
- Posso pedir desculpas?
Sabia que a famlia, muito religiosa, poderia ter se chocado. Ela meio que desv
iou:
- Voc no tem de pedir desculpas a mim. S acho que voc no foi nada elegante.

- Me fala sinceramente o que a senhora achou.


- No sei, acho que voc caiu em contradies no texto. Disse, por exemplo, que no a
dmitia que a chamassem de lraburra e, logo depois, admite que no fala
ingls.
No podia ser por um curso de ingls que eu perderia uma afeio quase maternal. El
a, na realidade, no estava disposta a aceitar a minha verdade.
- E, depois, se h algum a quem voc tem de pedir desculpas ao Bco.
O que ela no sabia que, assim como o ingls, assim como entre o Ayrton e eu, t
udo estava acertado - zerinho em folha.
Naquela noite do lanamento do Audi, depois de nos trocarmos, depois daquela
formalidade toda do "que tal a
178
CAMINHO DAS BORBOLETAS
festa?", essas coisas, achei que era hora de falar srio. Ele
apagou a luz, eu lhe pedi para acender.
- Tive pensando em tudo e preciso falar com voc, de
novo - iniciei, ponderada. - Vi onde errei e reconheci
meu erro. Mas e voc? Voc perdeu a razo. Por que voc
fez aquilo?
- Desculpa - ele, pela primeira vez, usou a palavrachave. - Eu no precisava falar
daquele jeito. Estava cha
teado, nervoso.
- Fui muito correta at agora - continuei. - Nosso
relacionamento ainda pode ser normal, daqui para a frente?
Voc coloca uma pedra em cima disso a?
- Uma pedra, no. Coloco uma montanha. Esquece...
Adoro voc.
E me sapecou um daqueles beijos que me levavam Lua.
Senti-me em famlia, como sempre, no fim de semana que passamos na fazenda de Tatu
- aquela que seria sua
ltima visita Dois Lagos. Dia 3 de abril, a roda-viva do
circo entraria de novo em movimento: ele ia para o Japo,
levando suas preocupaes tcnicas com o VVilliams e a
incerteza sobre um circuito que jamais entrara na temporada de Frmula 1, Aida. Co
mbinamos ali nossos prximos
passos: eu ficaria, evitando uma viagem desgastante e um lugar incerto, e, a sim,
a partir de mola, 1 de maio, e para
toda a temporada europia, at o Estoril, em setembro, ele
queria ter-me por perto.
Seria uma separao de quase um ms - nunca tinha
acontecido isso conosco. Por uma boa razo: em So
Paulo, eu ia cair de cabea num curso de ingls, gnero
imerso total, no Berlitz. Era um prmio e uma responsabi
lidade. Ayrton visivelmente investia em mim, em meu
179
ADRIANE GALISTEU
futuro, em minha companhia. L do Japo, ele me ligava todos os dias, com a mesma pe
rgunta: "E o ingls, como est?" Um fax meu diria mais do que minhas palavras.
Dizia: "Minha vida est dura sem voc, mas estou tentando canalizar todas as foras pa
ra meu curso de ingls. Por enquanto, entendo mais do que falo, mas com certeza
eu chego l". Em ingls, tudinho.
Conversvamos todos os dias - sem exceo. Nos horrios mais incrveis, culpa do fuso
horrio, mas tambm da nossa ansiedade em nos falar. Um dia, o telefone
me despertou s seis da manh - e ele tinha uma surpresa para mim:
- Voc j foi banca? - P, a essa hora, Bco? - Ento, vai.
Era o sinal definitivo do sacode-a-poeira-e-d-volta-porcima: na capa de Cara

s, ns dois, ele e eu, fotografados numa de nossas ltimas temporadas na fazenda


de Tatu. Muitas fotos, os dois abraadinhos ao pr-do-sol, a cavalo, passeando de mos
dadas. Ele havia liberado as fotos para a mesma revista que tinha sido nosso
drama. A mensagem era, no mnimo, mais um aceno de desculpas. Ele assumia, de pblic
o, sem nenhum constrangimento, seu idlio. Detalhe: o cenrio do romance era
a fazenda, propositalmente o lugar mais familiar de todos em que convivamos. Tinh
a alguma coisa de simblico a, no tinha?
Aquele 3 de abril em que o vi pela ltima vez me encheu da certeza de que um
relacionamento novo, maduro e feliz se instalara entre ns dois, depois daquele
terremoto. Estvamos de bem com a vida. Fiz a mala dele e a deixei pronta, para a
volta da fazenda. Tivemos a tarde toda para,
180
CAMINHO DAS BORBOLETAS
no apartamento da Paraguai, falar, rir, relaxar, amar - como talvez nunca tivssem
os nos amado. Foi um dia especial - e nem ele nem eu haveramos de desconfiar por
qu. Levei-o a Cumbica no meu Fiat e ainda tnhamos meia hora para gastar. No carro.
Papo delicioso. Abraos e beijos. Ele se despediu com aquele sorriso gostoso:
- Estou de olho em voc, garota.
- Eu tambm estou de olho em voc, garotinho. J estou com saudade.
-Estou de olho em voc, garotinha. Tambm com saudade.
Ele ainda repetiu, cheio de carinho. A despedida, mais os suspiros da longa tard
e de amor que tivemos no dia de sua partida para o Japo, e mais aquele beijo de
partida, caliente, de novela mexicana, aquele beijo que trocamos ainda dentro do
carro, tudo aquilo me rodopiava na memria como uma mensagem enigmtica que eu prec
isava
decifrar - um quebra-cabeas cujas peas, justapostas, me indicariam a rota da minha
futura relao com ele.
Este era o seu estilo de se relacionar com a vida e com a pessoas. Discreto p
or natureza, dizia o mnimo necessrio; mas, determinado em tudo o que fosse do seu
interesse, agia no sentido do fundamental.
Surpreendi-me, uma vez, com uma inconfidncia, feita na cumplicidade dorminhoca
do sol de Angra, ao final de urra entardecer de pura alegria:
- Um dia, vou me casar com voc - (e eu me vi imediatamente, sei l por que, de vu
e grinalda, naquela cape
ADRIANE GALISTEU
linha na Jipia, ali pertinho, aquela mesma a que ele se referiu na nossa primeira
noite de amor). - E um dia vou correr na Ferrari.
Sinceramente, fiquei honrada de estar em to ilustre companhia. Ele acabara d
e assinar contrato com a Williams, por aqueles dias. Pensava em disputar duas te
mporadas
na escuderia de seu querido Frank, a de 1994 e a de 1995. Era o melhor carro nas
mos do melhor piloto - ainda me lembro, como se fosse hoje, de ter lido isso num
jornal ingls insuspeito, o Sunday Times. Era o que todo mundo dizia: Senna-Willia
ms, dupla invencvel. puro palpite meu, mas desconfio que ele sonhava em repetir,
graas Williams, o feito de seu dolo Juan Manuel Fangio - o argentino cinco vezes c
ampeo naqueles tempos pioneiros do automobilismo, em que o talento do homem
valia mais do que o desempenho da mquina. Repeti-lo, jamais super-lo. Ayrton dizia
que Fangio insupervel. Mais duas temporadas l, na Williams, e o obcecado
Ayrton se daria por satisfeito, como trs e dois so cinco.
Da a inesperada histria da Ferrari.
- Encerro minha carreira l - me garantiu.
Dois anos mais, calculava ele, a escuderia do cavalinho rampante teria um c
arro mais competitivo (onde quer que ele esteja, deve ter vibrado com a primeira
vitria da Ferrari, neste ano de 1994, no GP da Alemanha, ainda mais sabendo que o
vencedor foi seu amigo Berger). Mas o fantico por resultados no queria o vermelho
de Maranello para exibir sua performance tcnica.

- Mesmo que o carro da Ferrari ande tanto quanto um fusquinha, eu quero estar
l na minha ltima largada, na minha ltima volta, na minha ltima bandeirada sonha
182

CAMINHO DAS BORBOLETAS


va. - A Ferrari a mstica da Frmula 1. A griffe, a histria, a tradio, a alma, a paixo.
Alm de tudo, ele tinha adorao pela torcida italiana. E vice-versa. Este o Ayrton
Senna que eu conheo: um homem capaz de fazer de sua aposentadoria uma gentileza.
J comeava a pensar no futuro - e o futuro no comportava cofres de dinheiro abarrota
dos na Sua, e sim o prazer de pequenas e significativas atitudes. So exemplos
assim que fizeram dele uma figura excepcional - e que especialmente as pessoas q
ue privaram com ele tm o dever de respeitar, para sempre.
S que todos sabem que a infalvel dobradinha Williams-Senna foi atropelada pelo in
esperado. No GP do Brasil, por Michael Schumacher e uma derrapada meio esquisita
.
No GP de Aida, no-Japo, no qual ele tinha tudo para vencer, por uma situao que fao q
uesto de abrir aspas, para mostrar o grau de irritao dele quando me ligou:
- Vc no sabe, Adriane, o que fazer uma viagem longussima como esta, trabalhar fei
to louco em cima do carro, para vir um debilide e bater na traseira de
seu carro, antes mesmo de completar a primeira volta. Voc no tem idia de como eu fi
quei.
Tinha sim. Eu sabia o que significava para ele perder. Sabia o que signific
ava perder daquela forma - sem ter sequer a chance de se pr prova. Eu ficara acor
dada
de madrugada, sofrendo com o fuso horrio, porque sabia quanto aquela prova em Aid
a significava para ele. Minha
183
ADRIANE GALISTEU
me estava a meu lado, solidria, no apartamento da Rua Paraguai. Houve a cassetada
do Mika Hakkinen. Desliguei a tev. Respirei um pouco, liguei de novo. Ayrton
estava to louco de raiva que nem cumpriu aquele seu ritual de sempre - foi embora
de capacete e tudo na cabea.
A prova foi dia 17 de abril. Eu tinha um motivo a mais para torcer por uma vitria
dele: queria-a de presente de aniversrio. Dia 18, eu atingiria a minha maioridad
e.
Pela primeira vez, o melhor motivo de minha alegria estava a milhares de quilmetr
os de distncia. Distra-me com as lembranas dos amigos. Recebi telegramas, os
meus colegas do curso de ingls apareceram com um bolo de 21 velinhas e me cantara
m o Happy Birthday, mas eu pedi para sair mais cedo, meio sem graa. Busquei o
colo de mame, corri ao shopping para me dar presentes a mim mesma, fui para o apa
rtamento na expectativa daquele telefonema.
Dez, onze horas, meia-noite - nada. Eu tinha aula no Berlitz de manhzinha. Revira
va na cama. Esquecer, ele no esqueceu: se no ligou porque alguma coisa est
errada. Foi o aniversrio mais triste de minha vida.
Por algumas horas, quero dizer. s seis da madrugada, o telefone da cabeceira toco
u e aquela voz conhecida, a j totalmente Bco, sem nenhum sinal de ressentimento
do Senna, gritou:
-Parabns! Como foi seu aniversrio?
- Como voc acha que foi, se a pessoa mais importante da minha vida no me ligo
u, no me deu notcia? - rebati. Ele se desculpou: trabalho, preocupaes, reunies,
fuso horrio.
- No pensa que esqueci. Vou te dar todos os presentes do mundo.
184
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Quis saber como ele se sentia com os resultados adversos:
- Vinte pontos atrs, no h de ser nada. A prxima minha.

Na prxima, na Europa, eu estaria com ele. Bco haveria de encontrar na Europa um


a nova Adriane Galisteu. Seguindo as orientaes do Nuno Cobra, seu preparador,
aproveitei aquelas semanas de ausncia dele para correr no Ibirapuera. Aos pouquin
hos, gradativamente - at o pulsmetro o sempre gentil Nuno me emprestava.
Seria uma surpresa para ele: acompanh-lo, j no mais numa envergonhada bicicleta, ma
s no pique dele, uma hora e dez, uma hora e meia de corrida, o giro que ele
dava em volta do condomnio do Algarve. Dali do Ibirapuera, um banho rapidinho e i
merso total no ingls. Berlitz - sala de aula, almoo, caminhada, voc s podia
falar ingls. Eu era minoria na hora de votar no almoo no McDonald's. Mas tinha o T
atou ali perto e passei literalmente dias e dias comendo um delicioso sanduche
de camaro.
Ansiosa, j que a viagem se aproximava, ainda pedi Gabi, uma das professoras, aula
extra em casa, noite e at aos sbados. No dia 21 de abril, ele j em Portugal,
feriado no Brasil, testei com ele meu progresso no ingls. Passei um fax pra l de nt
imo, com declarao explcita, eu diria mesmo apimentada, de amor. Confesso
que a Gabi deu uma olhada, para corrigir - e ficou corada. Ele tambm, a julgar pe
lo que me disse ao telefone no dia seguinte. Estava to empenhada que tive aula
de ingls at a tarde de sexta, 29. O vo Varig com destino a Lisboa partia s 22h10 daq
uela sexta-feira.
Olhando hoje para trs, sinto que havia uma sintonia inconsciente, ele e eu,
eu e ele.
185
- No vejo a hora de voc chegar aqui - me dizia, ao telefone.
Na verdade, muitas outras coisas estavam sendo ditas e estavam para ser ditas
, percebo agora. A distncia tinha reforado uma relao que chegava a seu turning
point. Dali, seria impossvel recuar. Perguntava eu para mim mesma, perguntava ele
para si mesmo - com certeza -, ns nos queramos perguntar a ns mesmos: por que
essa atrao? O que significavam, de fato, aqueles catorze, quinze meses de namoro?
O que esperar do futuro? Podamos nos considerar pessoas felizes? J tnhamos
vivido o idlio e o conflito. Nossa conscincia apontava para a frente. Com os braos
estendidos e o peito aberto, corri para a felicidade:
- Estou feliz, feliz - repetia para ele, ao telefone. Tinha perdido meu ltimo
medo. O de namorar um mito, uma instituio - e de ter de reparti-lo com o mundo.
Na verdade, meu namorado era um homem; e esse eu o tinha s para mim.
Voc pode imaginar o que receber um telefonema do Ayrton Senna e, de repente,
ele desabar a chorar? Soluava, chorava - suas palavras, embora ntidas e claras,
eram interrompidas por longos silncios que prenunciavam lgrimas e desespero. Assus
tei: tinha-o visto chorar de raiva, como daquela vez em que voou no pescoo de
um fotgrafo. Seu choro tinha sempre a ver com o sentimento de injustia: um maluco
que lhe atravessasse o caminho na pista, como o irlands Eddie Irvine, um jorna
186
ADRIANE GALISTEU
CAMINHO DAS BORBOLETAS
lista que ultrapassasse as boas maneiras da elegncia e da privacidade.
Mas aquele era um choro convulsivo, infantil, que me deixava em pnico.
- Que que houve? Que que houve? - eu tentava entender.
Era sbado, 31 de abril de 1994. Tinha chegado quinta da Luiza e do Braga em Si
ntra pouco depois do almoo. Nem me incomodei de desfazer as malas, porque meu
destino era o Algarve. Naquela mesma noite, pegaria um avio para Faro e iria para
a nossa casa do Condomnio da Quinta do Lago. Era uma bagagem e tanto. A idia
era essa: acompanhar com ele todos os cinco meses da temporada europia. Do GP de
San Marino, aquele 1 de maio, at o GP de Portugal, 25 de setembro. Primavera
e vero - de mais a mais, a casa do Algarve estava reformadinha, uma lindeza, havi
a aquele cu azul do Mediterrneo contrastando com as paredes caiadas de branco
e, quando era hora de trabalhar, bastava convocar o comandante Mahonney, um ingls
engraadssimo, tirar o avio do hangar e nos deslocarmos para o local da prxima
corrida.
Eu sonhava com a hora de envolv-lo nos meus braos na noite de domingo, em nossa

casa - depois da prova de mola. Cinco meses de ensolarada lua-de-mel. Na nossa


relao, toques, olhares, expresses, at mesmo o silncio sempre foram muito mais valioso
s do que palavras. Mas que era isso mesmo que nos esperava, cinco meses
de efervescente amor, era. Eu mal podia esperar.
Mas a ele me surpreende com aquele seu profundo abatimento, na vspera, assim qu
e eu cheguei a Sintra:
187
ADRIANE GALISTEU
- Que bom escutar sua voz - ele tentou se consolar. - Mas me conta: como esto as
coisas a?
- Est tudo uma merda!
S ento fiquei sabendo do acidente do Rubinho Barrichello (ele tinha acompanha
do o companheiro ao hospital, ainda se sentia chocado, embora soubesse que o
piloto brasileiro estava fora de perigo).
- Uma merda! Uma merda! - repetia e soluava. - O caso do Rubinho?
- No, no, um austraco. Menino. Segunda corrida dele. Bateu e morreu... Eu vi:
morreu na minha frente... (o choro entrecortava a histria...) E o pior que
esto dizendo que ele morreu no hospital. Ele morreu aqui... Eu vi...
De repente, de dentro de seu sincero descontrole, brota a maior de todas as
surpresas:
- Sabe de uma coisa? Eu no vou correr. Demorei a entender:
- O qu? No vai ter corrida? - Voc no conhece eles?
Eu j tinha um razovel conhecimento para compreender aquilo que ele me dizia d
e modo meio enigmtico. Quando ele desligou, corri para a televiso. Haviam sido
quinze minutos de soluos, queixas, dvidas, raivas de um homem que nunca se deixava
levar na sua carreira seno por pensamentos positivos. Ele estava baqueado,
de verdade. Comentei com Luiza, a minha anfitri:
- Ele est ansioso, muito nervoso. No vai correr. Estvamos todos ansiosos, nerv
osos. Fazia doze anos que a Frmula 1 no provocava uma morte em plena pista.
Nos telejornais, as entrevistas deixavam entrever a surpresa, a tenso e a possibi
lidade do cancelamento da prova. Mas
188
CAMINHO DAS BORBOLETAS
na minha cabea ecoava aquela frase foral do Ayrton, aque
la: "Voc no conhece eles?" O show tinha de prosseguir.
Aapaziguante presena da Luiza me fez cochilar no
quarto, o nosso, do anexo, da "Casa do Ayrton" - cansada que eu estava da viagem
de So Paulo para Lisboa. Tambm
me acalmava, definitivamente, saber que estava em San
Marino, com o Ayrton, aquele que por dez anos, com o jeito meio brincalho de quem
est s se divertindo, na verdade
deu a ele a fora espiritual e afetiva de um paizo como daqueles que no se fazem mai
s no mundo. O Braga estava l, com ele, como sempre esteve. Se o desespero
ou a desilu
so grudasse na alma daquele campeo da fibra e da cora
gem chamado Ayrton Senna, sempre haveria aquele paizo
mo para traz-lo de volta ao bom senso e realidade.
Segundo pai, conselheiro - a amizade de Braga che
gava a detalhes como o de ter de deixar na garagem da
quinta de So Pedro de Sintra, para as espordicas visitas
de Ayrton, um Honda NSX metlico igualzinho ao que ele teve em So Paulo (depois de
tudo o que aconteceu, o Honda continua na garagem, silencioso, de luto, coberto
de
p, pois o doutor Braga avisou aos criados que no quer
que ningum toque o dedo nele).
Peguei ao avio para o Algarve s 20h30 com a alma
bem mais leve. Juraci, a caseira, me buscou, cordial como
sempre, quis me cobrir daqueles agrados tipicamente portu

gueses que desafiam os ponteiros da balana, conversamos demoradamente, fizemos pl


anos para a recepo do dia
seguinte e s ento me recolhi. Sentia tanta falta fsica dele,
189
ADRIANE GALISTEU
depois desse ms de distncia, que abri os armrios do nosso quarto, o closet dele e a
faguei-lhe as roupas, em busca de seu cheiro masculino. Sua presena se sentia
tambm na mesa com o fax, os papis arrumadinhos, na revista deixada no canto - sim,
aquele Nova Gente que trazia ns dois na capa, mesma reportagem de Caras. Conside
rei
aquilo uma homenagem proposital dele.
Ao sair do banho, o telefone voltou a tocar. Atendi no banheiro, espreguiand
o sobre o tapete branco e alto, fofo como o plo de um gato angor:
- Beco, est se sentindo melhor?
Ele no chorava, mas sua voz era um fiapinho:
- Olha, minha cuca est no p. O Braga, o Lo e o Galvo (Bueno, da TV Globo) esto aqu
i, graas a Deus. Samos para jantar, conversamos, estou melhor.
Traduo: ele ia correr, e ia correr para vencer.
- Estou preparado para sentar no carro e acelerar fundo - disse.
Seu generoso corao preparava, em segredo, uma surpresa. Em vez da bandeira do
Brasil que ele costumava acenar nos dias de vitria, j tinha encarregado um
amigo de conseguir uma bandeira da ustria. Seria sua homenagem ao infeliz Ratzenb
erger. Um iniciante na Frmula l. Mas, para Ayrton, no existem hierarquias nem
na vida nem na morte. Ele me confidenciou seu gesto. Juro que a quem teve vontade
de soluar fui eu.
Disfarcei com uma certa irritao:
- P, quando morre algum da famlia, pra tudo, no pra? As pessoas pem luto...
Soube depois, pelos amigos, pela imprensa, que a prova de mola esteve por um
fio. Ayrton deu declaraes
190
ADRIANE GALISTEU
depois desse ms de distncia, que abri os armrios do nosso quarto, o closet dele e a
faguei-lhe as roupas, em busca de seu cheiro masculino. Sua presena se sentia
tambm na mesa com o fax, os papis arrumadinhos, na revista deixada no canto - sim,
aquele Nova Gente que trazia ns dois na capa, mesma reportagem de Caras. Conside
rei
aquilo uma homenagem proposital dele.
Ao sair do banho, o telefone voltou a tocar. Atendi no banheiro, espreguiand
o sobre o tapete branco e alto, fofo como o plo de um gato angor:
- Beco, est se sentindo melhor?
Ele no chorava, mas sua voz era um fiapinho:
- Olha, minha cuca est no p. O Braga, o Lo e o Galvo (Bueno, da TV Globo) esto a
qui, graas a Deus. Samos para jantar, conversamos, estou melhor.
Traduo: ele ia correr, e ia correr para vencer.
- Estou preparado para sentar no carro e acelerar fundo - disse.
Seu generoso corao preparava, em segredo, uma surpresa. Em vez da bandeira do
Brasil que ele costumava acenar nos dias de vitria, j tinha encarregado um
amigo de conseguir uma bandeira da ustria. Seria sua homenagem ao infeliz Ratzenb
erger. Um iniciante na Frmula 1. Mas, para Ayrton, no existem hierarquias nem
na vida nem na morte. Ele me confidenciou seu gesto. Juro que a quem teve vontade
de soluar fui eu.
Disfarcei com uma certa irritao:
- P, quando morre algum da famlia, pra tudo, no pra? As pessoas pem luto...
Soube depois, pelos amigos, pela imprensa, que a prova de mola esteve por um
fio. Ayrton deu declaraes
190
CAMINHO DAS BORBOLETAS

pblicas denunciando a insegurana do circuito e lamentando os acidentes. Mas ele er


a a ltima pessoa do mundo a poder comandar uma operao-boicote. Tinha perdido
as duas primeiras provas, estava atrs de resultados, qualquer atitude sua poderia
ser entendida como um pretexto para ganhar tempo, para no competir. E, se havia
coisa no mundo que Ayrton no era, era frgil e covarde. Comigo, naquela noite, s vspe
ras da tragdia, ele s repetiu seu constrangimento sintomtico:
- assim mesmo, esse pessoal assim mesmo - para logo mudar de assunto.
A caseira interrompeu para anim-lo com o cardpio que ela preparava para a che
gada. Tpico da simplicidade dele: galinha grelhada e legumes no vapor. Peguei
de novo o telefone. Falamos de ns. De saudade e de amor. Trocamos juras apaixonad
as.
- Preciso lhe dar umas palmadas - disse ele. - Palmadas? Por qu?
- Tenho muito a lhe dizer. A lhe propor. A lhe oferecer - prosseguiu. - Devo
estar a s 20h30, por a. Quero passar a noite em claro. Vamos conversar at o amanhece
r.
Quero convenc-la de que sou, disparado, o melhor homem de sua vida.
Ri, com aquele comentrio inesperado.
- Voc no conhece os outros... - brinquei. - Vou provar-lhe que sou o melhor.
Meu Deus, ele o melhor homem de minha vida. O nico. Ser que eu ainda no deixara
isso claro para ele? Ele era uma ddiva, um presente, um paraso. Na nossa
conversa noturna e meio bobalhona de dois enamorados, nem de longe imaginei que
houvesse espao para a intriga
ou o veneno. De nossa parte, no havia. A paixo era nosso nico alimento..,
- Tenho novidades para voc - anunciei, ao me despedir.
Queria contar pessoalmente. Besteirinha toa, mas que para mim significava suo
r e progresso. Ia desafi-lo para uma corrida, to logo ele estivesse recuperado
da canseira de mola.
CAMINHO DAS BORBOLETAS
- Se for preciso, eu entro na fila, como qualquer f. Na minha catatonia, as
idias se embaralhavam. Mas nessa idia eu tentava me apegar, com todas as foras:
a de estar preparada psicologicamente na chegada ao Brasil. Para o que desse e v
iesse.
Eu no falava, no comia, no reagia - simplesmente tinha me deixado ficar, na polt
rona do avio, junto Luiza e ao Braga. Uma das comissrias, preocupada, chegou
a me aconselhar:
- V pra cabine de comando. Talvez l voc se sinta melhor.
Menos de uma semana atrs, eu tinha ido a Portugal, carregada de planos e de fe
licidade, para me encontrar com ele. Agora, voltava a So Paulo para enterr-lo.
Ser um exagero dizer que foi a mais longa, a mais angustian
193
ADRIANE GALISTEU
te, a pior viagem de minha vida?
De Lisboa, escala no Rio. Um tempinho a mais de agonia. Os comissrios permit
em, porm, que Luiza, Braga e eu fiquemos dentro do avio, enquanto ele limpado
e reabastecido. Aproveito para ir ao banheiro e me trocar. Aquele conjunto negro
com que me fotografaram no dia. No tinha tempo a perder, queria ir direto para
o velrio. O sentido oculto da minha pressa continuava sendo a agonia da irrealida
de. No entendia, no acreditava, no me conformava.
O avio com o corpo do tricampeo - para mim, apenas meu namorado - chegou vint
e minutos antes do nosso. Imaginava que o caixo tivesse um vidro, uma tampa,
qualquer coisa, que me fizesse v-lo e senti-lo pela ltima vez. Estava completament
e lacrado. Senti uma decepo, um frio na espinha. A bandeira do Brasil em cima.
Solenidades marciais no aeroporto. Uma multido enlouquecida. Para mim, a questo co
ntinuava a ser uma s: como tomar contato com a verdade de sua morte? O esquife
partiu, eu fui seqestrada, sem reao, pela Erica, funcionria do escritrio do Ayrton. E
la passou pela casa dela, pegou o crach que me dava acesso ao velrio
- verde, com a letra F, de famlia, em branco - e fomos para a Assemblia Legislativ

a.
Nunca houve nada comparvel no Brasil. No h de acontecer, to cedo, nada parecido
no mundo. O luto nas ruas. Os carros estacionados sobre parques e gramados.
A cidade parda. As pessoas em pranto - garotos, adolescentes, velhos, todos entre
gues a um choro sem inibio, todos improvisando qualquer emblema que expressasse
o luto coletivo: bandeiras nos ombros, cartazes de papelo
194
CAMINHO DAS BORBOLETAS
com fotos do dolo, faixas pretas em torno da testa, e por a seguia a imaginao popula
r.
No houve um nico assalto, um nico furto de automvel, mvel, um nico assassinato naqu
ela que uma das metrpoles mais sangrentas do mundo. A ltima homenagem
ao heri irmanava o bem e o mal, pacificava os inimigos, impunha a unanimidade da
tristeza. Quem dera ele soubesse disso! Comigo, era primeiro o espanto do reconh
ecimento,
depois a gritaria desenfreada: " ela, a namorada, a Adriane". Quando, escoltada p
or cinco seguranas, entrei no salo do velrio, por onde desfilavam oito mil pessoas
por hora, a minha dor mudou de qualidade. Percebi o tamanho que Ayrton tinha par
a toda aquela gente. Sabia que ele era amado, mas desconhecia o quant. Ele era me
u,
mas era tambm de todos os outros.
Cumprimentei a me, o pai, a irm. Fiquei a distncia, com a minha dor. Vi Nuno Cobra,
sempre calmo, agora dilacerado. Vi o prefeito Paulo Maluf. Vi quando Hebe
Camargo depositou sobre o caixo o tero verdeamarelo que ela mandara fazer - e que,
me contaram depois, e custo a crer, foi arremessado no cho pelo ato impensado
de fanatismo de outra pessoa que no comunga da mesma f. Hebe, chorosa, veio ao meu
encontro para me abraar: ", menina, Adriane, que absurdo, que tragdia!"
Coroas de flores, soldados enfileirados, a bandeira sobre o caixo, o batalho de fo
tgrafos - eu no conseguia fazer uma ligao entre meu namorado e o homem que
recebia aquelas homenagens. Talvez meu estado cataltico tenha me salvado de dores
maiores. Imvel, acompanhada apenas de minhas lgrimas ou de uma ou outra
195
ADRIANE GALISTEU
amiga que me vinha dar a mo, eu me mantive no mesmo lugar dia e noite. O pouco qu
e sa foi para ver, l fora, o espetculo doloroso da multido. Quando voltei,
o capacete dele estava pousado no caixo. Olhava, e aquilo me machucava. Dias ante
s, o Celso, que trabalhava com ele, tinha me avisado: "Ele quer lhe fazer uma su
rpresa.
Encomendou um, igualzinho, pra voc". Ainda espero por ele. Ou ser que no devo esper
ar?
O F, de famlia, me dava acesso ao - digamos assim - mais privilegiado de todos
os lugares do velrio, mas imaginei a dor que todos ali sentiam, avalio a sensao
deles de dar de cara com aquela que era a imagem mais ntima do Bco dos ltimos tempo
s. Zaza estava muito abalada. Viviane, mais ainda. O pai, senhor Milton, no
vi derramar nenhuma lgrima, aproximar-se do caixo uma nica vez, mas essa era sua fo
rma de experimentar sua terrvel dor. Lo vagava, meio a esmo. Identifiquei
o Dito, um parente do senhor Milton com quem a gente costumava pescar na fazenda
de Tatu. Ele no tinha como me consolar, a no ser com aquela conversa meio estranha
:
- Sei l, se lhe der vontade vai ser um prazer receb-la na minha fazenda para
uma pescaria.
Luiza e Braga estavam no salo ao lado, o dos amigos. Senti que ali encontrar
ia meu ponto de apoio. Eles conversavam com o Emerson Fittipaldi, experimentadssi
mo,
mas abaladssimo. Passei pela outra sala, a dos convidados - tudo tinha sido organ
izado segundo um proto
196

CAMINHO DAS BORBOLETAS


colo profissional. Circulei um pouco. Eu me sentia olhada, vigiada. Por sorte, e
stava muito desligada. Tinha muita conversa em volta, eu no ouvia nada. Foi duro
mi conter: diante do caixo, quantas vezes no senti vontade de perder a compostura,
de me arremessar sobre ele, de gritar, berrar, espernear? Mas havia uma outra
Adriane que me puxava para trs: aquela que, mesmo com uma enorme chaga latejando
no corao, assistia a um teatro, da qual ela no fazia parte, no queria fazer,
no tinha foras para fazer. Uma Adriane que no estava ali encenando a viva. E que nem
estava disposta a entrar num intil campeonatinho de viuvez.
Mendigos, milionrios, crianas, adolescentes, velhos, mulheres, deficientes, gar
otes, polticos, artistas, socialites - a fila era um democrtico mostrurio
de um pas chamado Brasil que se recusava a admitir a idia de perder uma das poucas
figuras que lhe passavam um sentimento positivo de vitria. Outros enterros
picos houve. Mas Ayrton Senna era o filho, o irmo, o namorado, o amigo que todo o
Brasil queria ter. Era, talvez, o sentimento daqueles bilhetes arremessados sobr
e
o caixo, pelos que passavam na vertiginosa fila. Com todas as letras, era pelo me
nos o que diziam os meus bilhetes - aqueles que as pessoas apressadas, pressiona
das
pelos guardas, ainda tinham tempo de me lanar.
Se fosse resumir todos eles num s, seria mais ou menos assim, um consolo osciland
o entre o futuro e o passado:
- F, Adriane. Ns sofremos com voc. E torcemos por voc.
Identifiquei um aleijado que passou uma vez diante do
197
ADRIANE GALISTEU
caixo e fez o sinal-da-cruz. Passou uma segunda vez, a
mesma coisa. Terceira vez - o mesmo. Fiquei pensando
quando tempo ele ficou na fila, arrastando-se no cho. J
era noite e a famlia Senna se retirara, para descansar.
Algum se aproximou de mim e props:
- Vai voc tambm. Ser um dia duro, amanh.
- Descansar, hoje? Tenho o resto de meus dias para
descansar.
Demadrugada, no tenho idia da hora (1h30?
2h00?), algum tocou no meu ombro, cerimoniosamente.
"Tem um senhor chamando voc l fora?" Um senhor? Sim, Frank Williams. Imvel no meu c
anto, eu tinha visto
quando, sempre amparado em sua cadeira de rodas, aque
le que havia sido o ltimo patro de Ayrton chegou diante do caixo, guardou um silncio
comovido, alheio a tudo
que se passava ao lado, como se estivesse numa comuni
cao muito direta com a vtima de um infeliz acidente de
trabalho - o seu trabalho. Afastou-se assim como che
gou, sempre muito discreto, como se seu status pudesse
ficar invisvel diante da curiosidade dos que ali estavam.
Agora, Frank me mandava chamar l fora. J se instalara
no seu carro. Aproximei-me e ele me disse, como se sua
alma falasse, no a sua boca:
- I'm very sorry, Adriane.
Repetiu, com sentimento. Na surpresa, no esbocei nenhuma resposta, a no ser um ges
to qualquer de cabea. O chefo de uma das usinas da Frmula 1 pedindo desculpas
a mim? S no dia seguinte, ao v-lo de novo, no enterro, que
198
CAMINHO DAS BORBOLETAS
fui at ele e o beijei no rosto, com um obrigado, obrigado. Ainda de madrugada, re
costei num sof escondido por um dos tapumes, atrs do caixo, enquanto a multido
continuava seguindo sua romaria. Entorpecida, depois de cinco noites insones, eu

saboreei a primeira sensao de algum alvio espiritual. No era sequer sono. Mas
as imagens que rodopiavam pela minha cabea, na minha viglia sonolenta, evocavam um
Ayrton vivo e emoes bonitas que tnhamos vivido. Um trailer de todos os sonhos
que eu viria a ter com ele, nos dias seguintes - e que at hoje enchem de ternura
as noites em que eu rolo na cama, estendo o brao para alcan-lo e no o alcano.
Quando, de madrugada, algum me arrastou para o Maksoud Plaza, onde estavam h
ospedados a Luiza e o Braga, com o argumento de um banho e recuperar as energias
para o pior de todos os momentos, o do enterro, eu me deixei levar. Na portaria,
rabiscado em papel timbrado do hotel, eu recebi essa mensagem. Leiam comigo, po
r
favor, porque muito importante:
"Filha querida: sei que a sua dor muito grande, mas voc tambm forte.
Eu daria tudo, um pedao de mim, para no v-la nesse estado.
Mas lembre-se de que eu a amo muito. Pode contar comigo para tudo.
Cuide-se, que Deus bom e est sempre com voc. Lembre-se tambm de que voc foi mui
to feliz ao lado dele.
Agora, est doendo muito. Esta dor vai passar, mas a doce lembrana do amor voc
nunca vai esquecer.
199
ADRIANE GALISTEU
Beijos de sua me que a adora. Emma
5-5-94"
Quando eu estudava num ginsio pblico da Lapa, mal e porcamente freqentando aul
a nas horas vagas de meus shows de msica e de minha vida de modelo, os professore
s
de portugus e de literatura gostavam de indicar livros complicados e cheios de sa
bedoria sobre a escrita, sobre a humanidade e sobre a vida. Duvido que, numa hor
a
daquelas, algum pudessse escrever algo to forte, to direto, to verdadeiro como o que
escreveu uma pessoa que teve de fazer da vida um trabalho e no um lazer
intelectual. Guardei o bilhetinho de minha me como se fosse uma orao de bolso. Ela
entendia tudo - ela me entende. Por isso nunca escondi nada de meus sentimentos
para ela. Por isso pedi sua mo e seu colo quando, aqui, distante do Brasil, ainda
que em pas hospitaleiro, comecei a escarafunchar essas minhas lembranas.
Por pudor e por reserva, minha me jamais esteve pessoalmente com Ayrton, ao
longo de nosso namoro de mais de um ano. Falaram-se ao telefone, trocaram notcias
- mas a doce Emma sentia-se intimidada diante de uma celebridade. No entanto, es
t escrito, testemunhado, juramentado: ningum conhecia mais de ns dois, Bco e
eu, do que ela. E, assim como deixou a mensagem, assim se foi, sem querer me inc
omodar, antes que eu chegasse e antes
200
CAMINHO DAS BORBOLETAS
que eu sasse para o funeral do heri que, por acaso, tinha
sido meu namorado.
O funeral, ento, seria para mim ainda mais chocante.
Do ponto de vista da encenao e do cerimonial, a namo
rada poderia estar ali como poderia no estar. O que eu
tinha, alm daquele crach F, de famlia, que me fazia ter
uma importncia a qual eu nem ligava, era o amparo dos
amigos verdadeiros e a vontade de acompanhar o Bco
em sua ltima viagem. Sem pretenso, acho que ele, se tivesse como, gostaria muito,
mas muito mesmo, de me
ver por perto.
Minha sorte foi sentir, de volta ao velrio, j espera do enterro, o calor de uma mo
firme e resoluta. Eu estava
mais catatnica do que nunca e se no fosse a Birgit, aque

la minha amiga de perambulaes europias, talvez no


conseguisse distinguir um p do outro. Birgit tomou conta, literalmente. No atrope
lo da sada do cortejo, com helicp
teros, nibus, carros, bandas militares, honras marciais, ela
me puxou resolutamente para dentro de um dos microni
bus especiais, onde pude distinguir o rosto amarfanhado de um ou outro piloto: B
erger, Prost, me parece, talvez o Christian. Com a Birgit e o marido, sentei ao
fundo,
ref
gio tranqilo. Mas o nibus se ps em movimento e no
resisti a entreabrir a cortina e olhar para fora.
Pessoas choravam, gritavam, acenavam. Sentia, no
movimento dos lbios de alguns, a identificao imediata:
"Adriane... namorada..: " As fotos que tinham sido o pretex
to de nossa briga eram exibidas a mim - que ironia como sinal de algo de que ele haveria de se orgulhar. A outra reportagem, do cas
al ao pr-do-sol na fazenda de Tatu, o atestado pblico do amor dele por mim, tramado
201
ADRIANE GALISTEU
por ele, presente-surpresa para o reencontro que no houve, virou pster, virou smbol
o, virou sei l o qu - as pessoas queriam, passagem do funeral, compensar
o luto com a imagem de um homem feliz, bonito e vitorioso. Ele me reconhecia, el
es me reconheciam, eu chorava.
Lento o cortejo, e no meio da massa uma figura da qual no vou me esquecer: um
pretinho, adolescente, comeou a correr ao lado do nibus, bem abaixo de minha
janela. Acenava para mim e chorava. Acenava, chorava e corria, no ritmo do nibus.
Tenho a impresso de t-lo visto a primeira vez ali no final da Avenida Rebouas,
quase na ponte que atravessa a Marginal de Pinheiros. Ao chegarmos ao ponto de d
esembarque no Cemitrio do Morumbi, ele continuava ali, embaixo da janela, acenand
o,
correndo e chorando. Tento adivinhar quantos quilmetros so: oito? Dez? A entrada q
ue levava tumba era restrita - mais uma vez, Leonardo tinha acionado um impecvel
cerimonial. Vi o crioulinho e pedi para que ele viesse tambm, em homenagem a seu
esforo. Mas foi ele quem dispensou:
- Vim at aqui porque amava o Ayrton. Daqui pra frente, no tenho mais nada a faz
er, no senhora.
Sbias palavras. No era ele o nico que estava dispensado de participar - me descu
lpem a sinceridade - da festa.
Comigo, muito respeito. E a mo da Birgit pousada no meu ombro, servindo de ret
aguarda. Lugares marcados, e l estava para a Adriane Galisteu reservada uma cadei
ra
na segunda fila, atrs da me, do pai, do irmo, da irm, dos sobrinhos. Por um momento,
recordo-me de ter acariciado o ombro do senhor Milton, de p, bem a minha
frente. Calado em seu sofrimento, ele cedeu a um leve tremor de
202
CAMINHO DAS BORBOLETAS
susto, quem sabe de reconhecimento. Ao me aproximar do meu lugar, vi, ao lado, a
Xuxa. O cerimonial achou por bem botar uma ao lado da outra. Ela estava muito b
onita
- bonita como ela sempre . Desde menina, eu a admirava. Cheguei a me apresentar n
o programa dela, com o Meia Soquete, anos atrs. Era como se fosse uma figura fami
liar
para mim.
No meu torpor, no senti um milmetro de estranheza ao reencontrar ali uma ex-namora
da de Ayrton Senna. Estranhei, isso sim, quando a minha chegada provocou nela
o imediato efeito gangorra. Foi eu sentar, ela se levantou. Buscou lugar do outr
o lado, num outro conjunto lateral de cadeiras.
Reconheo: talvez eu nem me desse conta de nada, absolutamente nada, se a imprensa

no tivesse, nos dias seguintes, insistido na falsa questo da competio. Naquela


histria de ela chegar de helicptero, eu de nibus - ou a verso maluca de que um segur
ana me impediu de entrar no carro da famlia, na hora de ir embora. E de
ela ter se hospedado com a Viviane, irm do Ayrton, enquanto a famlia me ignorava.
Sabem o que penso? Eu no estava ali para disputar o papel de viva. Eu estava
ali porque a nica coisa que realmente me interessava eu perdera. Queixas, rancore
s, cime eram sentimentos que no cabiam no meu corao, onde s transbordava a
melancolia e a dor.
Vluem sou eu para julgar? A correspondncia que desabou sobre mim, nos dias e
nas semanas seguintes, os
203
ADRIANE GALISTEU
telefonemas recebidos, as manifestaes espontneas, tudo, ou quase tudo, parecia traz
er, alm da marca do consolo pela perda, o sentido de uma solidariedade explita
- coisa que eu nem entendia bem, na minha cabea vazia' de toda e qualquer noo de re
alidade. Detive-me, a princpio, num texto ditado pela prpria mo de Deus
e por Sua sabedoria. O salmo 81 veio sublinhado, num papel avulso da Bblia:
Deus se levanta no conselho divino. Em meio aos deuses, ele julga:
"At quando julgareis injustamente, sustentando a causa dos mpios? Protejei o fraco
e o rfo,
Fazei justia ao pobre e ao necessitado. Libertai o fraco e o indigente Livrai-os
da mo dos mpios.
Eles no sabem, no entendem, Vagueiam em trevas:
Todos os fundamentos da Terra se abalam. Eu declarei: Vs sois deuses,
Todos vs sois filhos do Altssimo. Contudo, morrereis como homem qualquer, Cairei
s como qualquer dos prncipes ". Levanta-te, Deus, julga a Terra.
Pois as naes todas pertencem a ti.
Salmo 81. Coincidncia? O dele, predileto.
O ba com os milhares de cartas que me chegaram, pelos caminhos mais transversa
is do mundo, so hoje o meu mais genuno tesouro. Algumas nem cartas eram, so
204
CAMINHO DAS BORBOLETAS
recortes de jornais, com rpidas anotaes sobre fotos minhas e de outras figuras do a
deus ao Bco. "Sempre s", escreveram a meu respeito sobre uma das fotos de
jornal. Sobre outra, em que, frente do Prost, eu olhava para cima, a mo tapando a
boca, rabiscaram: "Linda! O Ayrton te olhar do cu". A atitude em meu favor
dos deserdados de Senna - todo aquele mundo subitamente rfo - me aliviava. A atitud
e contra algum, eventualmente, me era indiferente.
"Silncio para injria. Olvido para o mal. Perdo s ofensas (...). No te voltes contra n
ingum. E assim vencers."
Poema em forma de orao. Como em outros casos, com amor mas sem assinatura. Si
nceramente, no entendia por que tantos se preocupavam em falar em perdo e em
inimigos. Eu nunca os tive, nunca os cultivei. Mas havia tambm cartas de pura dor
e desespero, como a da francesinha de 15 anos, Julia, de um lugarejo da Provenc
e,
que, num cansativo esforo de se comunicar em ingls, me dizia que compartilhava com
igo o amor por Ayrton Senna e que naquele 1 de maio tambm teve mpetos de se
matar.
Da Inglaterra, de Portugal, do Japo, da Itlia, da Sua - e especialmente do Bras
il, as pginas que eu ia lendo e catalogando, com pacincia, revelavam s
vezes histrias tenebrosas, na identificao com o meu sofrimento e na v tentativa de d
izer que, um dia, isso pode passar. Da Alemanha, uma linda carta enfeitada
com trevos de quatro
205
ADRIANE GALISTEU
folhas e palavras de nimo. Dentro de um envelope, flores secas colhidas dos buqus
que, numa romaria que no pra nem h de parar, os fs depositam no tmulo dele

(antes de viajar para Portugal, tentei passar despercebida, bem cedinho, de manh,
com a amiga Isabel, no cemitrio, para lhe prestar uma homenagem silenciosa, mas
impressionante a peregrinao diria dos fs inconsolveis). Uma mocinha do Rio insistia n
o tema de "esquecer as mgoas" (que mgoas, me perguntava?) e "ser superior":
"PS: que voc seja a eterna primeira-dama da Frmula 1. Como Jacqueline Kennedy a et
erna primeira-dama dos Estados Unidos".
Adolescentes, velhos, homens, mulheres, empresrios, amigas que tinham sumido d
e vista.. Poetas que jamais tinham escrito poesia revelavam uma sbita vocao,
como o Sandro, do Limelight - onde Bco e eu nos conhecemos. Msticos me acenavam co
m frmulas de alvio rpido. Um nmero surpreendente de cartas psicografadas,
assinadas Ayrton Senna da Silva, ou at A. S. da Silva, passavam, de algum lugar p
ara outro lugar, a idia de que o destino fora traado, que o repouso do guerreiro
era resultado de vontade superior e quanto ele sentia os efeitos da separao fsica.
Gostaria de acreditar nessa possibilidade da comunicao com ele. De v-lo,
nem que fosse por um segundo.
Ao amarrar no brao a correntinha mgica que minha amiga carioca Bebel me deu, an
tes da viagem para Sintra, eu tinha trs desejos a fazer e este, de v-lo de
novo, onde quer que seja, foi o terceiro, pela ordem, mas o mais importante, o m
ais aguardado e talvez o mais improvvel deles.
206
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Uma dessas cartas que recebi trazia o recorte de jornal anunciando que Senn
a ia virar nome de uma estrela. Homenagem de astrnomos da Europa. Estrela para se
mpre
- nada mais perfeito. Assim ser, remoa eu, recolhida pelos braos sempre estendidos
da Luiza e do Braga, nos dias seguintes ao enterro, na fazenda Guariroba, a
poucos quilmetros de Campinas.
Ayrton Senna da Silva, no h quem duvide, foi o mais valente, o mais genial, o mais
perfeito de todos os pilotos. Isso, a posteridade se encarregar de guardar.
Para mim, quero ficar com a memria do Bco, um campeo da vida. A imagem que me fica,
das ltimas semanas, das conversas s vsperas da despedida, era a de um ser
humano integral e completo. Ainda muito cauteloso no que dizia, ao contrrio da ou
sadia que ele exibia nas pistas - medindo cada palavra com fita mtrica, no havia
outro jeito. Mas ele se abriu comigo como jamais. Eu mudei, com ele. Ele mudou,
comigo. A carapaa tinha derretido. Ele era um homem, com as virtudes, as contradies
,
a firmeza e, me permitam, as dvidas que fzem dessa nossa espcie uma coisa to especia
l na ordem da natureza.
Na nossa ltima viagem a Angra, na semana anterior ao GP do Brasil, ele assisti
u, no telo, transmisso completa da primeira prova da Frmula Indy - na Austrlia,
eu acho. Porque a diferena de horrio era tremenda e a prova comeava de madrugada no
Brasil. Ele via tudo o que tinha a ver com corrida em quatro rodas - s vezes,
tambm em duas. Havia os amigos brasileiros na briga, Emerson, Raul Boesel e, clar
o, Maurcio Gugelmin, com quem ele dividiu casa quando os dois chegaram, com
a cara e a coragem, Inglaterra, no incio dos anos 80,
207
ADRIANE GALISTEU
sonhando com a glria no automobilismo. Mas, no caso dele, acompanhar a Indy era p
aixo pura pelo esporte em si - e o risco da velocidade.
Devastada por um dia de muito calor e esporte, eu me aninhei no colo dele, re
signada em saber que ele ia at o fim, e tentei manter os olhos e os ouvidos abert
os
enquanto ele me dizia uma ou outra coisa que, de repente, me izeram parar e pensa
r: espera a, isso uma confidncia. Ele no diz essas coisas pra ningum. Ainda
mais para algum que definitivamente no era do ramo.
- Est sendo difcil pra mim - dizia ele. - Como?
- A Williams est sendo difcil pra mim - repetia. Desde os primeiros testes ofic
iais no Estoril, em meados de janeiro, testes que o Braga acompanhou, j que

ele ficou hospedado em Sintra, Ayrton andava se queixando ao travesseiro. Sentia


-o cabisbaixo. Ele havia brigado muito por aquilo. A Williams era uma conquista.
.
- Lutei muito para sentar naquele carro, para estar ao lado do Frank Williams
. Mas estou sentindo que vai me dar trabalho. Ou eu no me adaptei ao carro ou
o carro que no foi com a minha cara.
Eu o ouvia: no fundo, ele achou que ia sentar no Williams, encontrar um carro
acertadinho, acelerar e partir para o abrao da galera. Mas vieram as mudanas no
regulamento da FIA, uma tentativa de nivelar por baixo. Eu o ouvia e vinha com m
inhas opinies de leiga:
- uma imbecilidade mudar a regra. A Frmula 1 vai andar para trs.
Palpite meu: se j existiam os computadores, a eletrnica em cima, o prprio sistem
a eletrnico garantindo uma
208
CAMINHO DAS BORBOLETAS
segurana muito maior, controlando a acelerao e a aderncia, por que voltar era da man
ivela? Ele concordava e pegava especialmente num ponto: o reabastecimento
em plena corrida.
- Quero ver s como vai ser - disse, com uma ponta de ironia e, como se viu dep
ois, uma sabedoria proftica. Design atualssimo, motores poderosssimos, modernidade
absoluta na questo da aerodinmica - e, do ponto de vista da segurana, muitos passos
para trs. Vejam bem: isso a gente dizia bem antes de tudo acontecer. Naquele
primeiro dia que eu vi o Williams, secretamente, na Inglaterra, achei o carro li
ndo e ainda brinquei com o Bco:
- P, de azul voc vai estraalhar coraes.
Mas, na minha intuio meio bobona, tambm achei a frente do carro fina demais um palmo de bico, se tanto, enquanto a McLaren era mais parrudinha. Dava idia
de fragilidade. Ele estava convencido, porm, de que as mudanas na estrutura do vecu
lo seriam compensadas por pneus mais largos. Comentou comigo. No aconteceu
nada daquilo e ele, s vsperas da estria, se debatia com a dificuldade de um inician
te:
- Estou praticamente comeando do zero - confes= sou, enquanto eu cabeceava n
o colo dele, esparramada no sof. Ele se dividia entre olhar uma prova em Surfer's
Paradise, Austrlia ( o que penso, vagamente) - "olha s esse Mansell", gritava ele,
de repente, "devia estar num circo" - e pensar na corrida que esperava por
ele, dali a pouco mais de uma semana.
(As quatro da madrugada, ele me despertou com um beijo e me levou nos braos a
t a cama, ironizando: "Que bela companhia, eu arrumei".)
209
ADRIANE GALISTEU
Feliz ele estava. Era um desafio. Mas a decepo inicial ele j no escondia.
- Vou pegar leve. uma equipe nova, caras novas, quero ir mudando as coisas gradu
almente. Melhor carro, melhor piloto? Sei no - ele me afirmou, com todas as letra
s,
em Angra.
Interpretem vocs como quiserem essa frase do Ayrton, o determinado, o fantico, o o
bstinado, contestando o que, de boca em boca, s se proclamava nos bastidores
do automobilismo mundial. Vou me dar o direito de interpret-la assim: finalmente,
o homem se colocava num plano superior mquina. Espiritual e moralmente, ele
a sobrepujava. Chamasse Williams, McLaren, Ferrari, Benetton, no importa o nome Ayrton descobria que o material que o fazia ser humano era bem mais consistente
do que o dos carros, que lhe davam ttulos, dinheiro e glria.
Altima vez que vi seu rosto, eu tive de repartir esse privilgio com milhes de es
pectadores. Vi e revi por uma centena de vezes aquele longo, longussimo momento
de meditao e concentrao no boxe da Williams antes da largada em imola. A tev repisou

insistentemente, eu acionei inmeras vezes o replay, porque em tudo aquilo


havia a indisfarvel expresso de um mistrio. A cena acentuava o sentimento que ele me
deixou, por telefone, na vspera: se pudesse, no corria. Ayrton Senna ia
sair na frente, como pela 65' vez em sua carreira - pole position, sempre motivo
de orgulho. Mas aquele choro infantil (me contaram, depois, que ele se escondeu
no boxe, no sbado, para
210
CAMINHO DAS BORBOLETAS
chorar em paz) me acendeu uma luz de alerta. E a veio a imagem da tev.
Dia de corrida, para ele, era pura adrenalina. Chegava sempre muito cedo ao b
oxe, energia a mil, brincando com os mecnicos. Braga no sentiu muita diferena
chegada, mas, depois do warm up, depois daquela sumida tradicional no motor home
, ele voltou sisudo e circunspecto. Apoiou, meio desligado, as duas mos no aerofli
o
traseiro. Ficou muito tempo concentrado, com o olhar vazando o que havia na fren
te. A, sim, demorou-se numa lentssima inspeo do carro. Aquilo me chocou, porque
percebia que havia um Ayrton que olhava atentamente e outro Ayrton que parecia t
otalmente alheio. Ficou assim, imvel, um tempo intolervel. Idias tinham tempo
suficiente para se suceder em sua cabea. Patrick Head, o diretor tcnico, aproximou
-se, como que para despert-lo daquele momento de absoluta intimidade. S ento
ele botou mscara, capacete e se meteu no cockpit, sem dizer uma s palavra. Apertou
o cinto. Pela brecha da viseira, eu vi meu homem triste.
O circo no pode parar. As provas prosseguem, outros campees viro, as geraes de home
ns de ao se sucedero. Certo dia, aqui em Portugal, enquanto botava em
ordem minhas idias, uma amiga ligou do Brasil contando o encontro dela com uma ci
gana. Sem mais nem menos, sem saber de qualquer ligao dela comigo, a cigana desven
dou
na sua mo uma curiosa mensagem. Dizia assim:
- Estranho, estou vendo aqui algum muito parecido
ADRIANE GALISTEU
com aquela namorada do Ayrton Senna, aquela loirinha. - Adriane, aquela? - ela s
e fez de desentendida.
- . Estou vendo ela se casando. Com um outro piloto. Um grandalho.
Com todo o respeito secular sabedoria das quiromantes, mas de gargalhar.
Estou fora. Depois de depositar flores naquela maldita curva Tamburello, que
ele no concluiu, fao minha despedida. No perteno mais a esse mundo da velocidade
e do big business. A vertigem dos bilhes de dlares pode cegar as pessoas. Aprendi
essa lio cedo, ao ver meu pai morto, aos 54 anos. Sejam dois mil dlares, sejam
dois milhes, ou sejam trinta dinheiros, nada disso ter o valor de uma vida vivida
com dignidade e coerncia com voc mesma.
Naquele telefonema arrepiante que Bco me deu, no sbado, ainda em Sintra, depois da
morte do Ratzenberger, eu toquei nesse assunto:
- Mas, Bco, quanto vale continuar com tudo isso? Milhes de dlares? Bilhes de dlare
s?
Eu me referia aos senhores da Frmula 1. Ser que no peito deles no h espao para o s
entimento da compaixo? Eu insistia:
- Se a prova for adiada por uma semana, tenho certeza de que todo mundo que p
agou ingresso paga de novo. As pessoas ho de entender...
Tchau Rubinho Barrichello, amigo fraternal. Tchau Christian Fittipaldi. Tch
au outros pilotos que choraram seu amigo Senna. Boa sorte! Que as prximas tempora
das
no sejam marcadas, como a de 1994, pelo sombrio estigma da morte. No me peam para b
otar o p num autdromo - nunca mais. At na tev, mudei definitivamente de
canal.
212
CAMINHO DAS BORBOLETAS

Zaza me disse que, naquele ltimo instante do filho no boxe, aquela longa prepar
ao antes da tragdia, foi uma forma de orao. Ela me disse isso e outras coisas
no dia seguinte ao enterro, quando foi fazenda do Braga para conversar. Na vspera
, depois do ltimo adeus, eu tambm entrei na fila dos cumprimentos. A famlia
enfileirada. Abracei a Viviane, que guardava o capacete do Bco debaixo do brao. Mu
itas vezes ela tinha repetido,
em voz alta, abraada quele objeto que tanto lembrava o irmo chorado: "Valeu, Beco! V
aleu!" Com o Leonardo, foi um abrao forte, muito forte, e um beijo. "Nada
do que
a gente fez foi por acaso" - lembro de ele me dizer. O
pai se retirou, mas Zaza estava firme, beijei-a e ouvi dela:
"Quero muito falar com voc". Respondi: "Eu tambm".
Mas no imaginei que no dia seguinte ela j batesse
minha porta. Depois, achei que nunca mais nos veramos.
Estava enganada.
Quando olhei pela ltima vez para a cova do Bco, eu
lhe disse em silncio:
- Eu o amo, mas voc me deixou, voc me faz falta.
Daqui para a frente, minha vida ser um tormento.
No dia em que tomei coragem, enfim, de ir a nossa
casa, na Rua Paraguai, para retirar as minhas coisas de l,
reencontrei a Zaza. Na fazenda do Braga, em Campinas, recebi o apoio de muitos a
migos, uma longa e afetuosa visita da Betise, a Birgit, muitas amigas inesperada
s
e minha me, mas eu estava to sem eixo, sem rumo, havia perdido to completamente o f
io da meada que me abaixei no carro quando fui a So Paulo pela primeira vez,
com o motorista do Braga, depois do enterro. S ver a cidade j me apavorava.
213
ADRIANE GALISTEu
Fui direto ao apartamento, sem buscar minha me, como eu tinha prometido. Dona Nei
de me esperava. Dez dias depois de toda aquela tragdia. Respirei fundo para enfre
ntar
os fantasmas da memria. Subi de elevador. A porta, entreaberta. Tudo igual - e ao
mesmo tempo tudo to diferente! No havia nem sinal daquela baguncinha que ns
dois produzamos ali. Tudo no lugar. No havia mais vida ali. Sentamos, a me do Bco e
eu, no sof e conversamos uns quarenta minutos. Ela me falou da Bblia e,
por coincidncia, do salmo 81 - aquele que o Bco lia e relia. Ela no se conformava.
Senti que ia desabar. Tratei de entrar no quarto. Atirava minhas coisas na
mala de qualquer maneira, para poupar sofrimento. Quatro malas cheias, no final.
Entrei no banheiro, estava do mesmo jeitinho: a escova de dentes dele no mesmo
lugar.
No resisti: pedi a Zaza para guard-la. Beijei-a e guardei.
O armrio dele, presentes que eu tinha dado, a gaveta com seu pijama predileto, o
mais velhinho, tipo bermuda e camiseta de meia manga, azul-claro. Tinha tudo a
ver com a nossa vida. Fiquei com ele tambm. Mas o carto que eu lhe tinha dado de a
niversrio e que ele pregou na porta, eu fiz questo de dar a dona Neide:
- seu, fica com voc - insistiu ela.
- No, dele, portanto fica com a senhora.
Dei as costas a um pedao grande do meu mundo - e sabia que essa despedida se
ria tambm para sempre. Dona Neide me levou at a sada do prdio, ns nos abraamos,
eu chorei tanto, ela chorou tanto, uma no ombro da outra, que os dois porteiros
que assistiam cena tambm se emocionaram. Quis desanuviar:
214
CAMINHO DAS BORBOLETAS
- Se me pegarem na estrada, vo achar que sou uma sacoleira - disse eu.
Ela ainda falou srio:
- Adriane, obrigada por ter sido mulher dele e t-lo deixado feliz. Ele foi m
uito feliz com voc.

- Eu tambm fui muito feliz com ele.


- Vou rezar por voc, vou torcer por voc, gosto muito de voc.
Peguei-lhe pela mo e disse:
- A senhora ainda vai me ver bem, pode ter certeza disso. De uma forma muit
o real, sincera, coerente, vou dar um jeito na minha vida.
Chovia muito, me recordo. Cada uma de ns entrou no seu carro. At nunca mais.
Uma pgina estava virada em minha vida.
Mas, que a Zaza me permita, eu conhecia seu filho e sabia quando que ele tinha
seus momentos de orao. Aquela cena que a tev mostrou, pouco antes do desastre,
no foi um deles. Bco rezava em casa, noite, longe das pessoas - era dono de uma f r
ecatada e ntima, no fazia o estardalhao de um militante de plpito.
Para mim, naquela hora de rosto tenso e mos cravadas no carro, ele apenas pe
nsava. Pela primeira vez na sua carreira de piloto vitorioso, para quem o triunf
o
vinha primeiro que tudo, sentiu a fragilidade da mquina e a fragilidade do ser hu
mano. Um homem tinha morrido sua frente. Um amigo se estourara contra um muro.
At ento, o piloto Ayrton Senna sentava no carro e andava no limite.
215
ADRIANE GALISTEU
De repente, outros sentimentos tinham se intrometido na sua vida: susto, surpres
a, medo. Medo - que palavra cruelmente realista! Em tantos meses de conhecimento
ntimo e profundo, nunca o vi demonstrar qualquer coisa parecida. Ele passou por s
ituaes incrveis, bem diante do meu nariz. Nunca se inquietou. Ao contrrio,
buscava o perigo. Mas eu falo agora com a sinceridade de quem ouviu, sentiu, viu
- e de quem no tem nenhum compromisso a no ser com aquilo em que verdadeiramente
acredita. Hoje, assisto de camarote aos que tentam dar a suas prprias mentiras um
ar piedoso, quase religioso. Teorias e mais teorias, todas atribuindo a Ayrton
coisas que detestava fazer e negando-lhe aquilo que mais buscava, ou seja, a lib
erdade.
mola era a prova de fogo dele. O tudo-ou-nada da temporada 1994. Ele sabia que ti
nha de ultrapassar todos os limites, a comear pelos de sua mquina frgil e difcil
de dominar. A minha verdade a de que se viu, enfim, como uma criatura de carne e
osso. Os super-heris no tm medo. As pessoas tm. No dia em que Ayrton Senna
pde experimentar o mais humano dos sentimentos, no dia em que ele definitivamente
se completou como ser, a insanidade dos mercdores do perigo veio golpe-lo na
cabea. Meu Bco, amado e inesquecvel, pagou com a vida a escolha de ser aquilo que e
le era.
216
CAMINHO DAS BORBOLETAS
4
Era azul, todo azul, o meu quarto na fazenda Guariroba, para onde a Luiza e o
Braga me levaram, quase pela mo, como se eu fosse uma criancinha desvalida. Azul
- a
cor preferida dele. Bateu, de cara, a desesperadora com
preenso do que me esperava da para a frente: viver plena
mente Ayrton Senna sem ter Ayrton Senna. Tudo ia me fazer
lembrar dele; nada eu iria ter em troca de sua ausncia.
Um senhor que no me conhecia havia me colocado, na
vspera, depois do enterro, num gesto de simples generosidade, diante do meu day a
fter. Almovamos - a Betise,
Birgit e o marido, Christian, e eu - no Maksoud, quando
esse senhor me reconheceu, levantou-se de sua mesa e,
pedindo mil desculpas, me deu uma coisinha embrulhada
num pacotinho.
- No nada, s um smbolo - ele me disse.
217

ADRIANE GALISTEU
Era um chaveiro em forma de corao, dourado.
- Voc perdeu isso. Mas voc vai se refazer - despediu-se.
O coraozinho ingnuo, o quarto azul da fazenda, a cama de casal e os sonhos de
todos os dias - ah, os sonhos! Ele sempre vivo; muitas vezes em lugares que
lembravam um quarto de hotel, malas empilhadas; ou naquela cena tpica dele de fal
ar ao telefone. De repente, ele ia sumindo e ia ficando difcil alcan-lo. Ou
ele se atrasava. Sempre ns dois muito prximos, s que eu no conseguia nunca tocar nel
e. Ou ento ns dois numa lagoa linda, com muito peixe, ele me chamando a
ateno para as cores de um, a beleza de outro, e, sem mais nem menos, a gua virava u
ma escada, que descia para um poro, onde ele me esperava, encostado nessa
escada. E quando eu, eufrica, corria para mergulhar nos braos dele, despertei.
Acordava sempre com um travo de frustrao e uma dor de saudade. Mas mesmo um s
onho que eu no podia agarrar, ou parar no tempo, me trazia o consolo de sua
imagem
e de lembranas de coisas vividas por ns. O sonho da. lagoa, por exemplo, me fez vo
ltar a uma noite nossa no Algarve. Madrugada alta, desperto com uns gritos dele:
- Pega o peixe... Olha l... Ali na frente... Pega o peixe!
Ele estava sentado na cama, berrando, mas com os olhos de um sonmbulo. Tente
i acalm-lo. Abracei-o e disse:
- T bom, peguei o peixe.
Sempre de olho fechado, ele relaxou: - Ento, guarda o peixe.
E voltou a dormir.
218
CAMINHO DAS BORBOLETAS
Na fazenda, passei a ter medo das noites e dos sonhos.
Trouxe minha me para perto de mim. Queria que ela ficas
se acordada a meu lado, vendo um vdeo atrs do outro, at
que as minhas foras cedessem. De dia, voltei a correr.
Quarenta e cinco minutos. Falava em voz alta, enquanto
corria:
- T vendo? Fica aqui do meu lado. Era isso que eu
queria mostrar para voc: que podia correr com voc...
Descobri um caminho que eu chamava de trilha das bor
boletas. Antes de ir embora, Braga fez um giro por toda a
fazenda comigo e fiquei deslumbrada com aquele lugar,
perto de uma cachoeira, muitas rvores serpenteando por
um caminho natural e uma quantidade incrvel de borboletas, de todas as cores, de
todos os tamanhos, de desenhos
diferentes, tantas que voc corria e elas vinham de encontro
a voc. No caminho das borboletas tinha uma pedra.
Grande e lisa. No sei por que a escolhi entre tantos lugares
to bonitos da fazenda, mas era passar ali e me vinha
cabea aquela idia do reencontro: "Bco, voc podia vir
me ver um dia, aparecer por aqui".
Outra coincidncia dava relevo quela pedra. Toda vez
que eu entrava no carro, para uma volta em Campinas ou
nas redondezas, tinha alguns CDs mo. Simone, Phil
Collins. Tambm deles eu tinha pnico - com certeza, iam
me remeter para algumas situaes muito especiais passa
das com ele. Mas tinha um Milton Nascimento, velhssimo,
ou tipo os melhores momentos, no sei - s sei que era
Milton direto, Milton, no, s aquela msica dele, muito
antiga, que me disseram chamar Travessia, que dizia coisas como "solto a voz nas

estradas, eu no posso parar; meu caminho de pedra..." Outro trecho impressionant


e:
"Eu
219
ADRIANE GALISTEU
no quero mais a morte". Como aquilo me tocava. No querer a morte era manter a memri
a dele viva - foi nesse exato momento que eu decidi deixar para a posteridade
as coisas que eu conto agora.
No dia da despedida da Guariroba, antes de seguir para o Rio e, depois, para Lis
boa, voltei l na pedra. Eram cinco da tarde, mais ou menos, de um dia muito frio;
o sol j quase no se manifestava e eu quis passear, dar um adeus quele lugar que tin
ha me dado um abrigo to reconfortante. Com minha Bblia na mo, me encaminhei
quase automaticamente em direo pedra. Abri o livro sagrado para ler, mas o fechei.
Por mais de uma hora, eu falei. Sem parar, em voz alta - a minha prpria e
desesperada orao. Pedia para sair dali purificada de corpo e alma. Deixar para trs
as mgoas, os maus sentimentos, revolta, dor, decepo, injustia. Que a tempestade
me fortalecesse. A, sim, abri a Bblia. Por acaso, juro, no Salmo do Perdo.
Bco no apareceu naquela pedra. Mas, no sei por qu, eu o sentia perto, muito perto. C
ontinua pertinho, aqui, do meu lado. E do lado de todos os que o amaram verdadei
ramente.
FIM
220
POSFCIO
Ele me chamava de "Emmo" - meu apelido no mundo do automobilismo. Era o seu je
ito meio tmido de mostrar respeito e afeto por mim. De fato, no mnimo uma dcada
e vrios milhares de quilmetros rodados separaram a minha gerao da dele. Quando Ayrto
n ainda se sujava com a graxa dos karts, eu j era campeo do mundo. De algum
modo, acredito ter ajudado a inspir-lo a seguir adiante. Digo isso sem a menor pr
etenso, mesmo porque apenas repito o que, certa vez, ele prprio me disse. Se
assim foi, sinto-me orgulhoso de ter participado de uma carreira to recheada de p
ole positions, pdios e vitrias.
Lembro-me de vrias conversas, longas e proveitosas, com Ayrton. Ele, vivendo
intensamente a Frmula 1; eu, idem, idem, a Indy. Nossas pistas nunca se cruzavam
,
a no ser ocasionalmente. Mas nossa amizade vinha de longe. Sinto uma ponta de org
ulho ao me lembrar daquele dia em Zeltweg, antes do GP da Astria de 1981, quando
peguei pela mo aquele garoto que corria no campeonato europeu de Frmula Ford, prel
iminar da prova de Frmula 1, e o levei de boxe em boxe. Apresentei-o a um por
um dos grandes chefes de escuderia: Ken Tyrell, Ron Dennis, todos (isso mesmo: f
ui eu que apresentei Senna a seu futuro patro Dennis). Nunca havia feito o mesmo
com
nenhum outro jovem piloto brasileiro -- muitos deles igualmente promissores. Mas
eu tinha certeza de estar diante de um piloto excepcional. Apresentei-o assim:
"Este
Ayrton Senna. Ele vai ser campeo do mundo". Conhecendo-me e sabendo do meu estilo
reservado, era compreensvel que aqueles senhores da Frmula 1 fizessem um ar
de espanto. Ele, por sua vez, reagia com um sorriso encabulado.
No GP de Portugal, em setembro de 1993, tive a felicidade de um convvio de quatro
dias com ele, na casa de nosso amigo Braga. Percebi que Ayrton andava muito ten
so,
pressionado pela dvida que iria mudar sua vida: ir ou no ir para a Williams. Era u
m pesadelo na vida dele. Mas, com os amigos, se mostrava sempre tranqilo e cordia
l.
Falamos muito sobre isso - concentrao, preparao mental, relaxamento. Busquei-o, dias
depois, no Brasil. No jatinho de nosso amigo Gito Chammas, seguimos para
Miami e, de l, no meu Learjet, para Phoenix, Arizona. A meu convite, foi testar o

carro que meu big boss Roger Penske botou disposio dele, para o caso de resolver
mudar de turma no automobilismo. Ayrton testou o carro - o meu carro - ao seu es
tilo: meticuloso, detalhista. Parou no boxe e mudou a posio do banco. Virou rapidss
imo.
Voltou radiante. "Gostou?" - perguntei. Ele nem precisava responder: seus olhos
brilhavam como os de um garotinho que acabou de ganhar um presente.
Acho que j hora de contar um segredo que guardamos conosco. Mesmo depois de acert
ar os ponteiros com a Williams, Ayrton ligou para o Roger para fazer um agradeci
mento
e um pedido. Sonhava em correr em Indianpolis na temporada de 1994. O calendrio da
Indy e o da Frmula 1 no iam trombar naquela data. Ayrton queria se juntara
Paul Tracy e a mim na equipe Penske.
Nosso ltimo encontro, cara a cara, foi em Interlagos, a um ou dois minutos do inci
o do GP do Brasil de 1994. O suficiente para um rpido "Al, tudo bem?" e um
"boa sorte", de mim para ele. No a teve, naquela tarde, na pista. Mas eu sentia q
ue, ao lado de Adriane Galisteu, Ayrton estava tendo sorte na vida. Havia encont
rado
sua
metade. Sua maturidade como ser humano era visvel. Conseguia, enfim, conciliar tr
abalho e sentimento.
No me considero um homem supersticioso e at estranho, ao reler o pargrafo acima, a
repetio da palavra sorte. Bem, talvez sorte seja, por mais que a reneguemos,
um instrumento indispensvel a quem, como Ayrton, como eu, construiu a vida nos pe
rcursos arriscados do asfalto. Sorte tambm o que desejo a Adriane, a quem a
vida pregou um susto cruel, mas que ainda tem muito pela frente para superar a i
nsupervel ausncia de seu namorado.
Emerson Fittipaldi
So Paulo, I1-10-94
Impresso na Diviso Grfica da Editora Abril S.A. Av. Otaviano Alves de Lima, 4400,
SP, tel.: (011) 877-1150. Distribudo no Brasil por Dinap S.A. Estrada Velha
de Osasco, 132, SP, tel.: (011) 810-5001.

Você também pode gostar