O POEMA V I R G E M DE JOS D E ANCHIETA:
UMA BIOGRAFIA CONTEMPLATIVA
Dulce Maria Viana M I N D L I N
RESUMO: A estrutura narrativa do poema De Beata Virgine Dei Matre Maria,
de Jos de Anchieta. O bigrafo e o elemento biografado. As implicaes da
contemplao (Incio de Loyola) na representao do objeto focalizado (Mieke
Bal). A atitude religiosa do focalizador na construo idealizada da figura da Virgem
Maria. A ambigidade da focalizao: observao e interpretao. A sublimidade
da Virgem e a dupla face da biografia quanto visibilidade do objeto: aproximao
e distanciamento (Sarah Koffman).
PALAVRAS-CHAVE: Jos de Anchieta; biografia; Virgem Maria; narrativa; focalizao;
contemplao.
No matter how even-handed you are with your evidence, there are always
two stories being told: that of your subject, and that of your relationship
with your subject. The biographer can never eradicate that tone of voice
which reveals him as a participant in the narrative, nor should he. ... A
biographer is a storyteller who may not invent his facts but who is allowed
to imagine his form. ... Biography is, I believe, an art, and an art precisely
because it gains its effects by the imagination of its form.
(Martin Stannard)
Sem d v i d a alguma a imagem mais conhecida de J o s de Anchieta a que o
mostra a escrever versos sobre a areia. Se representada em forma narrativa,
possvel que tivssemos algo como: "Junho de 1563. U m homem caminha lentamente
pela praia de Iperoig, carregando um bordo, absorto em seus pensamentos. Caminha
grave, sentindo o peso da responsabilidade que tem sobre os ombros, a de artfice
de uma paz que se anuncia difcil porquanto inconciliveis interesses esto em jogo:
de um lado, os dos portugueses, que chegavam ao Brasil dispostos a c o l o n i z - l o a
qualquer p r e o ; de outro, os dos tamoios, que se sentem invadidos e lutam pela
afirmao de seus direitos. Entre os dois, Jos de Anchieta, que se oferecera para
ficar sozinho como refm na aldeia, enquanto as n e g o c i a e s prosseguiam em S o
Vicente".
A gravidade do caminhar de Anchieta no se devia, entretanto, apenas sua
temerria situao de prisioneiro, considerada pelo prisma poltico. O jovem religioso
de vinte e nove anos tinha terrveis problemas existenciais: exposto todas as horas do
dia s tentaes da carne, materializadas pelos incessantes apelos das ndias que a ele
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Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP/ Mariana.
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se ofereciam da maneira mais explcita, reedita com apaixonada veemncia uma
promessa que fizera bem aptes, quando ainda estudante do Liceu de Artes de Coimbra:
o voto de perptua castidade. Para socorr-lo neste dificlimo impasse, invoca os
favores da Virgem Maria, a quem promete solenemente um poema no qual ela ocuparia
o papel principal, e que fosse uma reafirmao de pureza, prerrogativa fundamental
para enfrentar o momento que vivia. Tem, assim, sua g n e s e o poema De Beata
Virgine Dei Matre Maria, que o j o v e m poeta c o m e a a escrever nas areias da praia
por onde caminhava, j de n i m o totalmente modificado - grave ainda, pela nova
responsabilidade que impusera a si mesmo; contemplativo, entretanto, e at arrebatado,
algumas vezes, pela interferncia do trabalho que executava na maneira como agora
passava os dias, dividido entre as atividades polticas e as novas exigncias intelectuais,
uma vez que a obra lhe ocupava quase todo o tempo, fosse o da c o n c e p o , fosse o
da escrita, fosse o da m e m o r i z a o , j que no dispunha de outro meio para reter os
versos que deixava sobre as areias.
Decide-se pela elaborao de uma biografia. Mas como relatar a vida da Virgem
Maria sem fazer consultas bibliogrficas, sem poder confirmar dados que a intuio
ou a m e m r i a lhe pudessem trazer, sem dispor sequer de algum com quem pudesse
elucidar alguma d v i d a ? Temerariamente o j o v e m Anchieta enfrenta mais esta
dificuldade, para o que conta unicamente com sua privilegiada m e m r i a e com seu
Brevirio. Assim, as fontes de sua composio se apresentam bastante simplificadas
at pela sua reduzida presena, consideradas as circunstncias da enunciao do
poema. N o geral, pode-se dizer que v m dos Evangelhos e da Tradio a maior parte
dos fatos que narra, no tocante ao contedo. Daqueles, retiram-se os momentos mais
significativos da vida da Virgem: "Anunciao, Visitao, Natal, Adorao dos Magos,
Apresentao [de Jesus] ao Templo, Fuga e volta do Egito, Perda e Encontro no
Templo, Paixo, Ressurreio, A s c e n s o e Pentecostes" (Cardoso, 1998-1, p.49);
desta, os momentos que pertencem vida da filha de Joaquim e A n a sem que tenham
sido contemplados pelos evangelistas - pelo menos os cannicos - , e que vo aparecer
no poema como produtos de uma necessidade toda prpria, qual seja a de preencher
as lacunas deixadas pelos textos mais autorizados e, com isso, colorir e humanizar a
figura central do poema pela narrao de episdios aparentemente prosaicos mas
que, no conjunto, contribuem - e muito - para a pintura do retrato que pouco a
pouco se torna mais ntido.
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Lugar parte merece a f i c o . A n c h i e t a e s t m u i t o c o n v i c t o de que a
biografia que escreve j a m a i s se p o d e r dar c o m o u m p u r o e simples registro
Vale lembrar que o Pe. Manuel da Nbrega, que inicialmente dividira com Anchieta a
situao de refm, j retornara ao Rio de Janeiro, principalmente por causa de seus problemas de sade. Anchieta permanecera sozinho. No total, ficou cinqenta e cinco dias
em cativeiro.
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O Poema Virgem de Jos de Anchieta: uma biografia contemplativa
factual, nem como u m d o c u m e n t r i o dramatizado. Na impossibilidade de narrar
eventos cujo registro desconhece, ele p r o v modelos para que a m a t r i a narrada
nada perca em v e r o s s i m i l h a n a , nem em s e q e n c i a o , nem em c o l o r i d o : n o
podendo conhecer todas as particularidades que de fato aconteceram na v i d a
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da V i r g e m M a r i a , ele descobre, ele i m a g i n a o que pode ter acontecido . Ele
sabe, e n o s porque d i s p e de poucas fontes, que para levar a cabo sua
tarefa s e r - l h e - o n e c e s s r i o s muitos apelos i m a g i n a o , a t mesmo para
cumprir os Exerccios
Espirituais,
que os previam explicitamente, como nestes
excertos do q u i n t o e x e r c c i o da p r i m e i r a semana:
El primer prembulo composicin, que es aqui ver com Ia vista de la
imaginacin la longura, anchura y profundidad dei inferno.... El primer puncto
ser ver com la vista de la imaginacin los grandes fuegos, y las animas como
en cuerpos gneos ... (Loyola, 1991, p.241).
Anchieta prepara-se pois para contar, para narrar. Prepara-se para uma verdadeira
aventura potica e existencial, da qual sair para sempre modificado. Ele sabe que,
pelo narrar, aproximar-se- de um conhecimento todo particular ; ele sabe que, pelo
narrar, pela necessidade de que suas palavras faam u m sentido, ele se tornar um
intrprete nico, privilegiado, que participar da construo de um mundo na medida
em que, decidido o contedo, ser-lhe- facultado acentuar, aumentar, suprimir, ignorar
ou diminuir a importncia dos fatos que comparecero ao poema . Como todo bigrafo,
Anchieta experimenta as delcias e as agruras da seleo que se impe at pelo respeito
s circunstncias da escrita do poema; ele sabe que vai precisar de muita disciplina
para pr ordem no caos. Porm, como mediador, no se furtar ao papel de intrprete
dos dados de que dispe e que tentar distribuir ao longo da obra que cria. Hesitante,
quase medroso, ele enfrenta de vez as duas grandes dificuldades de qualquer bigrafo:
a estrutura e a cronologia (Longford, 1996, p. 146). A soluo encontrada no poderia
ser mais simples: ordem cronolgica e diviso em Livros, cada qual comportando de
trs a nove ttulos . Para evitar a monotonia e para imprimir variedades de ritmo e de
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"All fiction emerges from the consciousness of the writer and is therefore shaped in the way that
consciousness perceives. Seen in this light, ...[fictionists] are the only people who tell the truth (Halperin,
1996, p. 162).
"... (the term narrative is related to the Latin gnarus - 'knowing', 'expert', 'acquainted with' - which
itself derives from the Indo-European root gn, 'to know') (Prince, 1990, p. 1).
"Facts are malleable and the way they are interpreted will evolve with changing contexts; any
aspect of a subject's life can be exaggerated out of proportion, ...depending on the biographer's
overt or covert agenda" (Ramsland, 1996, p.94).
verdade que essa ordem cronolgica no absolutamente rgida, pois que comporta alguma rasura, a
exemplo da insero do episdio da Circunciso antes da narrao do Nascimento.
Lembra o Padre Armando Cardoso a influncia de Ovdio em Tristes, e no s pela diviso em cinco
Livros, mas ainda pela subdiviso de cada um, correspondendo s Elegias e s Epstolas. (Cardoso,
1988-1, p.53). Curiosamente refere-se ainda a um "smile ao contrrio" ao evocar o paralelismo inverti-
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tonalidade, opta pelo encaixe de v r i o s tipos de d i g r e s s o , desde as mais
contemplativamente amorosas at aquelas em que o furor contra os detratores da
Virgem - Helvdio, Calvino - vai-se mostrar com toda a veemncia. As digresses
completam-se ainda com a elaborao de trs Alfabetos, deixando bem visvel para o
leitor a inteno expressa de cantar de A a Z as qualidades verdadeiramente mpares
da Virgem Maria, para o que n o era bastante uma vez e nem duas.
Estabelecidas as duas premissas, vai A n c h i e t a e n t o iniciar seu poema. O
e x r d i o com que o abre j anuncia vrios dos procedimentos que sero retomados
ao longo do mesmo, como a amorosa vassalagem V i r g e m , a c o n s c i n c i a de
uma pequenez que mais se evidencia quanto mais n t i d a se mostra a grandeza
da M e de Deus e, mais que tudo, a c o n f i a n a que o poeta nela deposita como
i n s t n c i a das mais privilegiadas para a l c a n a r a g r a a e a s a l v a o :
Cantar? Calar? me de Jesus toda santa,
cala-se minha boca ou teus louvores canta?
O teu piedoso amor, com que a mente aguilhoas,
manda cantar, senhora, estas modestas loas.
Mas teme em lngua impura exaltar-te as grandezas,
pois que manchada j de muitas vis torpezas.
Tu me obrigas ao canto e as palavras atentas
a quem tenta falar; tu minha mo sustentas.
S tu, com teu menino, o meu nico enleio
deste meu corao, nico amor e anseio!
(Anchieta, 1988-1, p.93)
A l m do mais, preciso perceber que essa mesma abertura vai conter ainda o
germe da forma que Anchieta escolhe para sua c o m p o s i o , at porque as solues
propriamente literrias necessariamente passam por estas escolhas. Assim, tem-se,
para este longo poema narrativo, no o convencional hexmetro, mas a " c o m b i n a o
elegaca, que se presta mais meditao e ao sentimento subjetivo, como O v d i o nos
poemas do A m o r e nas Epstolas" (Cardoso, 1988-11, p.10). De Beata... , pois, u m
poema que, nem por dar-se como uma biografia da Virgem e, portanto, como uma
do entre Anchieta e o poeta latino: "Ambos estiveram exilados, ambos cantaram o amor apaixonadamente, pela mesma lngua, pela mesma estrofe, com semelhante elegncia e facilidade, em longo poema. Entretanto, Ovdio o poeta do amor falso, do amor baixo que nos assemelha aos irracionais e a
eles nos inferioriza. Anchieta o cantor do amor verdadeiro, do amor virginal, do amor que une as almas
e nos assemelha a Deus e aos anjos. A irreverncia de Ovdio foi a causa do seu desterro.(...) O
desterro de Anchieta um surto desse amor casto, generosamente voluntrio (...). O desterrado de
Ponto Euxino com suas epstolas que ressumam arrependimento por demais tardio,(...) no conseguiu
mover a quem severamente o condenara. O desterrado de Iperoig ganhou o corao de sua Rainha
[como] verdadeiro Orfeu do Brasil" (Cardoso, 1940, p.xxix-xxx).
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O Poema Virgem de Jos de Anchieta: uma biografia contemplativa
narrativa sequenciada dos episdios de sua vida, renuncia a uma dico que se pode
chamar de lrica por seu carter de absoluta intimidade confessional, a ponto de ser
considerado "um p o e m a - m e d i t a o " (idem) pelo permanente dilogo do poeta com
sua maior interlocutora, no qual se e x p e como portador de uma alma ora abrasada
pelo amor, ora atormentada pela culpa, ora agasalhada pela confiana. E assim que
se vai poder observar o poema a partir de categorias narratolgicas que possam dar
conta dessa relao que se estabelece entre o sujeito a partir do qual o leitor toma
conhecimento daquilo que acontece, aqui chamado de focalizador, e o objeto de sua
narrao, o elemento focalizado.
Naturalmente que sendo o De Beata... u m poema lrico, mesmo que narrativo,
a grande maioria de seus elementos chega ao leitor atravs das lentes do poeta elemesmo, isto , quase tudo o que se vem a conhecer passa pelo filtro do olhar desse
poeta. Assim, o que se tem como informao o resultado de um certo modo de
perceber, de uma certa viso de mundo que, por princpio, n o jamais objetiva
porque depende de uma pliade de variveis, como o lugar onde se encontra o sujeito
que narra, a(s) finalidade(s) a que atende, a quais interesses serve, quais fantasias
projeta, que tipo de conhecimento prvio detm, por qual desejo comandado etc.
Tudo isso afeta aquilo que dito e leva concluso de que a matria narrada resulta
de uma interpretao dos elementos que o focalizador de certa forma manipula, ainda
que inconscientemente.
Acompanhando-se algumas seqncias do poema, no ser difcil observar como
se processa, em primeira instncia, a dinmica da focalizao pela qual o poeta faz
com que o leitor "veja" exatamente o que ele, poeta, v . A primeira cena que se
destaca a do nascimento da Virgem Maria, na qual o focalizador marca uma presena
insofismvel no interior da ao narrada:
Findou, ao seu nascer, a porfia doutrora,
dores de Joaquim, lgrimas que Ana chora.
Alegra-te, Joaquim! tua filha, tomada,
me de Deus, te far av de nomeada.
Alegra-te, Ana! em teu seio discreto,
dar-te- tua filha o prprio Deus por neto!
Louco, que turbao, que paixes me aguilhoam?
Para onde esses meus ps to apressados voam?
nome para mim de melfluas venturas!
nome de Maria, eco de mil douras!
Cantarei, qual presente, ante o bero, se o deixas,
Preso de teu amor, virgem, tais endechas:
(Anchieta 1988-1, p. 114-5)
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Como produto de uma focalizao que se pode chamar de interna, observa-se
que o fragmento contm uma dinmica toda prpria: primeiro, mostra o sujeito como
elemento estruturante da ao narrada - a partir de seu olhar que se tem a cena que
dada ao leitor. Segundo, que o objeto s aparece em funo da prpria experincia
desse sujeito que o aproxima para com ele se poder fundir numa perfeita simbiose,
ratificada pelo tom confessional que j e x p e uma reflexo e um propsito: o de
suprimir a distncia, tanto a eventual entre o objeto narrado e o leitor quanto principalmente - aquela entre o bigrafo, Anchieta, e a biografada, a Virgem Maria,
cuja visibilidade vai-se tornando cada vez maior uma vez que construda por u m
discurso que traduz uma atitude ao mesmo tempo religiosa e narcsica (Koffman,
1996, p.23-4) - a do poeta que, ao narrar, narra-se. Mesmo quando, aparentemente,
delega a enunciao para um outro focalizador, de quem se apresenta como portavoz em sofisticada estratgia locucional, quando o objeto focalizado passa a ocupar o
lugar de sujeito focalizador. Vejamos em dois momentos essa d i n m i c a enunciativa,
pela qual a cena apresentada chega ao leitor pelas lentes da prpria Virgem Maria,
sendo o primeiro o episdio do Nascimento e o outro o da Paixo:
Deus Onipotente, a amplitude mais alta
a ti, como Senhor e Criador, exalta.
Sado, meu petiz, deste lar que te encerra,
Jazes, minha luz, no escuro cho da terra!
Filho, glria do cu, que a teu Pai s igual,
Nascido do meu seio, s todo meu fanal!
Quo grande minha dor, filho que s meu enleio!
Tua aflio me aperta o angustiado seio.
Filho nico de Deus, a real majestade
Veda tocar-te o corpo minha indignidade.
Se eu porm te deixar a nu nesse frio,
Teu corpinho a jazer no duro cho sombrio,
Fora meu corao bem mais rijo que inverno
E penha mais cruel do que um penhasco eterno!
(Anchieta, 1988-11, p.48-9)
Filho, chaga cruel desta me padecente,
Que te v (ai de mim!) roto to duramente!
Que mo ousou ferir-te em baldes escarninhos?
Por que se enruga a fronte a to cruis espinhos?
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O Poema Virgem de Jos de Anchieta: uma biografia contemplativa
Quem te rompeu as mos com o rgido prego?
Quem te arrombou o peito ao golpear-te cego?
Consolavas benigno os bons pais que gemiam,
Restituindo s mes os filhos que perdiam.
Assim morres, Jesus, minha luz doce e forte?
Assim, para eu viver, te arrebatou a morte?
Oh! Feliz me era a vida ao viveres tambm,
Feliz me era morrer com tua morte, bem!
Guarda na tumba, filho, o meu peito materno,
E a me te esconder num peito mais que terno.
(Anchieta, 1988-11, p.175-81)
No difcil inferir que a atitude da Virgem Maria , em relao ao Filho, ora de
deslumbramento, ora de desolao. Alternando vassalagem, comiserao, protecionismo,
desejo de compartilhar o destino de Jesus, Maria aqui a focalizadora das duas cenas,
que s atravs de suas lentes que so passadas para o leitor, a fim de que ele t a m b m
possa compartilhar as emoes que a tomam. Alm do mais, preciso no esquecer
que tambm o poeta no deixa de experimentar todas essas emoes (deslumbramento,
desolao). Mas, consciente da necessidade de imprimir variedade sua enunciao,
at para no correr o risco da monotonia dada a extenso do poema, ele modifica o
ponto a partir do qual essas emoes so transmitidas ao leitor, mesmo que este no
deixe jamais de sentir sua presena nas falas que apresenta como de sua protagonista.
Vale dizer, nem pelo fato de existir um outro focalizador, a Virgem Maria, a enunciao
se torna heterodiegtica, uma vez que ela serve apenas para ratificar, como agente do
discurso, toda a atitude do poeta em relao ao universo da matria narrada.
O fato entretanto de, no caso deste poema, o focalizador primeiro ocupar quase
toda a cena potica vai levar necessidade de se explorar o seu campo de conscincia,
ainda que de maneira breve. Impossvel no mencionar a formulao retrica que ,
sem dvida alguma, a mais consumada manifestao desse campo. Conscientemente
o poeta imita seus modelos, aqueles que lia em Coimbra, e que forjaram em seu
esprito um repertrio de paradigmas em cuja excelncia desnecessrio insistir .
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Por exemplo, a construo formal: "O dstico, unio do hexmetro e do pentmetro clssico, a estrofe
empregada por Anchieta. No foi ao acaso que o autor escolheu esta combinao: alm da imitao
consciente de Ovdio, a que melhor traduz o paralelismo bblico que o poeta cristo quis importar em
larga escala para a sua obra, parafraseando inmeros salmos e cnticos hebreus. (...) O seu hexmetro
e pentmetro so moldados pela mais rigorosa mtrica de Ovdio, que elevou esta pequena estrofe
mais alta perfeio, pela observncia de algumas particularidades de medida e de quantidade: a maior
variedade na sucesso de dtilos e espondeus, emprego rarssimo do espondeu no quinto metro do
hexmetro, rigor no uso da cesura, emprego quase exclusivo do disslabo e do trisslabo no final do
hexmetro, e de disslabos nofinaldo pentmetro" (Cardoso, 1940, p.xxvi).
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Mas possvel estender a investigao no sentido de explorar outras facetas do campo
de conscincia, includo a o campo da inconscincia, j que u m implica necessariamente
o outro, nem que seja como espelho.
N o se pode esquecer que o mundo de Anchieta o do s c u l o X V I , do qual
a analogia u m paradigma dos mais perfeitos. Assim, pela necessidade de manter
a sintonia com o universo conceituai e filosfico que era o do seu momento, temse, em primeira instncia, no poema, u m sujeito de e n u n c i a o comprometido at
a raiz com o seu hic et nunc: o quinhentismo europeu, a r e a o contra-reformista,
a i n s e r o na Companhia de Jesus. A a o do poema vem, pois, a t r a v s de u m
certo olhar seletivo consciente ou inconsciente, pelo qual n o s o sujeito mas
todo o seu mundo fala e se exprime. A f o r m u l a o do De Beata... abriga portanto,
escolhas m u i t o e s p e c f i c a s que v o desde as r e t r i c a s , que mencionei, at a
quantidade das i n f o r m a e s que nele s o disseminadas e, principalmente, a
qualidade das mesmas e o t o m no qual s o apresentadas. Tudo isso vai permitir
que se depreenda muito mais do que o contido na a o narrada. Vai permitir que
se depreendam particularidades inerentes n o ao objeto focalizado mas ao sujeito
focalizador: sua p o s i o afetiva, i d e o l g i c a , m o r a l e tica (Reis, Lopes, 1988,
p.247).
Sendo o poema uma biografia, A n c h i e t a n o se poderia e x i m i r de relatar,
no e s p a o do texto, a v i d a da V i r g e m do seu nascimento a t sua morte. Mas
aqui retorna a q u e s t o das fontes, a p a r t i r de u m o u t r o prisma: ainda que
A n c h i e t a n o estivesse na s i t u a o de p r i s i o n e i r o , longe de seus l i v r o s e de
suas r e f e r n c i a s , o p r o b l e m a p e r s i s t i r i a , j que n o existem documentos
escritos, por e x e m p l o , sobre o nascimento da " M i r i a m de N a z a r " , para
continuarmos c o m o mesmo e p i s d i o j a l u d i d o . O que faz o poeta? Inventa,
imagina, e apresenta u m depoimento t o retoricamente perfeito e v e r o s s m i l
que se diria que l estava, na o c a s i o em que veio ao mundo a f i l h a de Joaquim
e Ana:
Que nova estrela o cu pontilhado colora?
Que novo brilho o tinge ao despontar da aurora?
Que nova luz espalha os seus raios na treva?
Que nova luz nascente o meu olhar enleva?
De novos raios eis que uma estrela se alinda,
que traz a luz do dia e a noite escura finda.
Estrela que nasceu de Jac e seu povo,
Nas trevas essa luz no tombar de novo!
(Anchieta, 1988-1, p. 112-3)
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Naturalmente que, faltando ao poeta o registro documental, ele opta por narrar
o nascimento da Virgem atravs de um torneio retrico: sem descer a pormenores que
comprometeriam a v e r o s s i m i l h a n a de sua n a r r a o , ele praticamente d o
acontecimento como um fait accompli, e desloca a objetiva para si mesmo, para suas
prprias reaes diante daquela que viria a ser a contraface de Eva e a possibilidade
de salvao para todos os homens. Diante da pouca quantidade de informaes
disponveis, neste caso pelo menos, ele opta pela qualidade das mesmas, oferecendo
ao leitor no s a interpretao atualizada no texto potico mas ainda a possibilidade
de inferir que essa interpretao a d v m unicamente da experincia do poeta, a partir
da contemplao que pe em prtica:
Como ainda, minh'alma, s coberta de sombra?
Ainda a negra noite o teu olhar ensombra?
Contempla essa menina, a nascer toda pura,
Cuja luz afugenta o caos da terra escura!
Nobre, ela te dar verdadeira nobreza,
Varrendo ela em pessoa a tua vil baixeza.
Esta, se ignoras, glria nova que encerra,
Glria grande do cu, glria maior da terra.
Esta aos primeiros pais a nobreza redime,
E entrega fama e bens perdidos pelo crime.
Retira a maldio dos primeiros malditos,
Destri toda a desonra a seus irmos aflitos.
(Anchieta, 1988-1, p.113)
Chega-se aqui a uma questo verdadeiramente fundamental. Para ela confluem
tanto especificidades narratolgicas quanto formulaes eminentemente religiosas,
jesuticas. A ela se devem praticamente todos os passos seguidos por Anchieta na
elaborao do seu poema, em perfeita consonncia com os Exerccios
Espirituais
que punha em prtica na vida e na obra. Refiro-me, evidentemente, contemplao.
Prerrogativa das mais insistentemente recomendadas por I n c i o de L o y o l a ,
ela que nos vai permitir, no caso deste estudo, articular tanto a atitude do poeta
J o s de Anchieta em r e l a o ao objeto de sua n a r r a o , a Virgem Maria, como
ainda q u e s t e s outras, desta vez referentes p r p r i a f o r m u l a o do poema
b i o g r f i c o . J tive oportunidade, em outra o c a s i o , de detalhar o funcionamento
de u m dos m t o d o s de que se serviu Anchieta para atualizar o p r i n c p i o da
c o n t e m p l a o . Refiro-me ao "das trs p o t n c i a s " - memria,
entendimento,
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vontade - , cuja s e q n c i a f r e q e n t e m e n t e o b s e r v v e l no poema, embora nele
predomine outra metodologia, bem mais simplificada, que sugere
histria,
observao
e pedido:
El primer prembulo es traer la historia de la cosa que tengo de contemplar
... . El 2 , composicin, vendo el lugar .... El 3 , demandar lo que quiero: ser
aqui demandar conoscimiento interno dei Senor, que por m se ha hecho
hombre, para que ms le ame y le siga (Loyola, 1991, p.248).
o
O que se pode observar sem muita dificuldade que h uma correspondncia
estrutural quase perfeita entre as duas metodologias. Desta forma, pode-se dizer que
a histria est para a memria assim como a observao (aqui no sentido de olhar
mais no que de simplesmente ver) est para o entendimento. Uma sutil diferena
entretanto se instaura no terceiro momento contemplativo: no mtodo das trs potncias,
ser este o momento de afirmar um propsito atravs de um seguro movimento de
vontade; nesta segunda metodologia, a afirmao deste propsito substituda por
um pedido que antecede uma finalizao das mais relevantes em relao arquitetura
discursiva de De Beata...: a explcita r e c o m e n d a o de um colquio. N o fica muito
difcil inferir que Anchieta se utilizou dos Exerccios Espirituais t a m b m como
paradigma formal da obra que construa nas areias de Iperoig. Tomemos, por exemplo,
o episdio do exlio aps a perseguio de Herodes. N u m primeiro momento, o poeta
recorre histria para situar a Virgem e seu Filho no cenrio onde se desenrola a
ao:
Tu sete anos no Egito espender como podes,
Enquanto teu petiz foge ao furor de Herodes?
Por sete anos tambm Cristo sai de seu lar,
Nem este stimo ano para repousar.
(Anchieta, 1988-H, p.140-1)
A seguir, observa a situao que posta em cena, envolvendo-se com a mesma,
compartilhando a experincia daquela famlia exilada, sofrendo as suas dores pela
ausncia do lar, regozijando-se com suas alegrias por ocasio da volta, afligindo-se
com os possveis perigos a que poderia estar sujeita:
Aqui, Jud cruel, sete muros em volta,
Sete chefes dispe para a feroz revolta.
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"memria: sendo o primeiro passo para o exerccio da contemplao, a memria tem uma funcionalidade insubstituvel - ela que vai permitir ao postulante entrar na sintonia do contexto a ser contemplado.
... entendimento: segundo passo representa um avano significativamente considervel: ele que
vai permitir ao contemplador a convico de seus pecados, sentindo-lhes verdadeiramente o peso
vontade: culminncia do processo, representa a manifestao do desejo de ordenar a vida e de
emendar-se, a partir do entendimento acionado pela memria" (Mindlin, 1997-b, p.8-10).
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O Poema Virgem de Jos de Anchieta: uma biografia contemplativa
Oh! Quanto oprbio, me, sofrer nosso mano,
Para os vcios tirar do corao humano!
Aps sete anos, eia! entra j felizmente!
E o filho de anos sete ptria enfim atente!
Retome longa estrada, em burrico fagueiro,
Quem imvel transporta o peso do orbe inteiro.
Mas cautela! no volte Sio infiel,
E ao sanguinoso teto evite o bom donzel!
O orculo divino advertiu a Jos,
Que ao menino e que a ti guarda fiel vos :
Reina do pai feroz um herdeiro em ofensas,
que no lar de Davi destri justia e crenas.
Mas onde ordenam ir? - Nazar, a singela,
Cantada pelos pais! - Mas como, Virgem bela?
Predisseram ento que, em seu corpo terreno,
Se havia de chamar Jesus, o Nazareno.
Pois Jesus Nazareno, esse rei dos Judeus,
Do lenho o crime, em lenho, h de pagar a Deus.
Sofrer morte atroz, como manso cordeiro,
Para dar com a morte o dom da vida inteiro.
Assim o teu Jesus, entre as mos de inimigos
Largado, arrostar os seus mortais castigos,
Para esconder o incesto ao adltero mundo
e vilezas quais quer cometer o imundo.
(Anchieta, 1988-11, p.141-7)
E para no deixar de seguir as recomendaes dos Exerccios, ele "fecha" o
movimento com um colquio no qual, como bom discpulo de Loyola, ele se aproxima
tanto quanto pode de seu objeto, levando o leitor a perceber que de fato existe entre
ambos uma perfeita integrao, uma sensvel intimidade, uma total c o m u n h o . E m
suma, a experincia compartilhada:
Portanto agora tem a flor da adolescncia
A santa Nazar, que paz em florescncia.
Aqui c'o doce filho, alta me toda bela,
Eu transcorra em silncio anos de paz singela,
Itinerrios, Araraquara, 15/16:245-260,2000
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Dulce Maria Viana Mindlin
E flores de virtude eu produza, crescido,
De que coroas tea o teu Jesus florido.
De minh'alma o jardim frutos d sem ressbios,
Cujo doce sabor deleite os tenros lbios.
Ao depois em Sio, ao vir para ser morto,
De espinhos na cerviz, na dor da cruz absorto,
Vencido pelo amor da me a interceder,
Me d nele viver e nele enfim morrer!
(Anchieta, 1988-11, p. 147-9)
Como em tantas outras passagens do poema, um colquio como este consolida de
fato a relao entre o poeta bigrafo e sua ilustre biografada na medida em que no apenas
se servir ele para pr em discurso o xtase da contemplao que oblitera todas as suas
demais vontades (cf. o ltimo dstico do fragmento supra citado) como ainda para estabelecer
paralelismos vrios entre as circunstncias narradas relativas vida da Virgem e sua
prpria. No caso presente, por exemplo: "Nazar significa em hebraico R r i d a . . . . em
seu significado que o poeta se inspira para o colquio que fecha aureamente este trecho.
Anch., ao falar da vida tranqila de Nazar, sedes florida pacis, da juventude florida de
virtudes, no pode deixar de recordar, no final de seu exlio, os dias de Piratininga, onde
dez anos antes comeara o Colgio de So Paulo, no silncio do campo e no trabalho da
vida religiosa, florido das mais hericas virtudes" (Cardoso, 1988-II, p.336). Outros
paralelismos podem ser mencionados: a passagem da Visitao a Santa Isabel interpretada
como uma verdadeira misso qual o poeta igualmente dissera sim, ao deslocar-se para o
Brasil ; a narrao da Paixo de Cristo d ao poeta o ensejo de expor seu prprio desejo
de martrio"; a Fuga para o Egito tem, na vida do poeta, a consonncia perfeita em sua
prpria situao de exilado . Ou seja, o poeta n o se limita jamais a narrar to somente
a vida da Virgem Maria. Ele participa, envolve-se, compartilha a experincia
que
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Visitas pois a me com a carga estimada
leve, sem te deter o longo dessa estrada.
Segue pois, peo-te eu! Seguir-te-ei, se me assumes,
Como servo senhora, aos altaneiros cumes! (Anchieta, 1988-11, p.23-5)
Eu rogo, mansa, a ti, pelas chagas sem brilho
que eufizno filho, e em ti fez teu amor ao filho,
Faze que, todo em sangue, eu mil chagas suporte,
E com Deus, por meu Deus, sofra terrvel morte!
(Anchieta, 1988-II,p. 185)
Acaso pode algum prometer-se no exlio,
consolao real,firmezaem seu edlio?
(Anchieta, 1988-11, p.97)
E a mim, do lar paterno exilado mendigo,
Nesta demora, d-me o alvio de teu trigo! (Anchieta, 1988-11, p. 127)
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O Poema Virgem de Jos de Anchieta: uma biografia contemplativa
passa, assim, de ao narrada a ao vivenciada, e justamente porque contemplada
em todos os tempos e modos. E j que contemplada, conhecida, mesmo que de um
ponto de vista religioso: "Contemplar olhar religiosamente (com-templum)" (Chau,
1988, p.75). E j que conhecida, experimentada. E portanto a experincia a instncia
que d o tom mais expressivo para a relao bigrafo-biografado(a). Foi por esta
razo que a uma certa altura deste trabalho afirmei que o poeta, ao narrar, narra-se. A
apreenso do real a ser narrado d-se atravs de um eu que percebe, que interpreta,
que enuncia.
V - s e assim que a experincia
acaba por manifestar-se com exemplar
circularidade: o poeta, ao aproximar-se de seu objeto para melhor narr-lo, j evidencia
um seletivo envolvimento com esse objeto; ao narr-lo, a experincia do envolvimento
se alarga, porquanto o saber sobre o objeto se amplia com a descrio escrita em
clave de e m o o conjunta; ao enunciar o colquio, a experincia como que retorna
ao primeiro aproximar-se, desta vez em tom mais ntimo e confessional, ratificando a
circularidade do percurso que d sentido, pela narrao, s originrias vivncias que
em seu desdobramento se d o como escrita potica.
A experincia pode assim ser considerada um processo, porquanto capaz de
transformar o saber, a partir mesmo da presuno de que este n o algo esttico,
algo que se adquire e se observa, mas algo que se faz na vivncia, no dinamismo
relacional entre o que se percebe e o que percebido. E por isso que a narrao da
vida da Virgem Maria jamais poderia ser para Jos de Anchieta alguma coisa menos
do que uma experincia radical, definitiva, fundadora, e n o apenas de seus saberes
sobre a m e de Jesus mas especialmente da possibilidade de construo de um saber
muito mais produtivo acerca de si prprio, como um sujeito que se projeta, se espelha
e se reconhece no outro. Reconhecendo o tu, forja-se para ele a possibilidade de
c o m p r e e n s o desse tu e, por conseqncia, da c o m p r e e n s o de seu prprio eu, cuja
biografia foi t o enunciada quanto a do explcito objeto de sua narrao. O poeta, ao
biografar, autobiografa-se.
A experincia da autobiografia, embora n o se apresente no De Beata... de
maneira consciente entretanto uma evidncia das mais claras para qualquer leitor do
poema, e n o apenas porque o poeta estabelea paralelismos entre os episdios da
vida da Virgem e da sua, mas principalmente porque se faz participante da ao
narrada mesmo quando n o existe esse paralelismo. A autobiografia portanto
construda n o no texto que se oferece leitura, mas em seus aquns, na escolha do
elemento a biografar, nas motivaes que determinam o modo de focalizao, na
atitude do focalizador diante da matria focalizada, nos comentrios com que sublinha
certas passagens, na viso de mundo que deixa passar com suas palavras, na
interpretao em que se revela como mstico e contemplativo, nas simpatias, antipatias,
reverncias e averses com que pontua o texto, na manipulao das informaes de
que dispe, na maneira com que se aproxima ou se distancia de certos episdios, no
Itinerrios, Araraquara, 15/16:245-260,2000
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Dulce Maria Viana Mindlin
esforo para enfatizar certos detalhes e at na estruturao formal pela atualizao de
paradigmas denotadores de uma slida formao humanstica, clssica, conimbricense.
Falando da Virgem, o poeta fala de si. Enfatizando a castidade da me de Jesus, ele
reafirma a sua. Elaborando uma narrativa de exaltao da virtude, ele exalta a sua prpria
vida virtuosa. Narrando a vida de Maria, ele abre a possibilidade de melhor conhec-la e,
ao mesmo tempo, de conhecer-se, e de fazer-se conhecido. A (auto)biografia que escreve
, portanto, o resultado de uma busca que Anchieta realiza num movimento de exaltada
nsia de perfeio, para o que a funo documental acaba por se revelar de importncia
mnima, j que a recuperao do objeto se faz muito mais pelo afeto do que pela pesquisa.
Exacerbando o seu mundo interior, ele coloca no horizonte a prpria visibilidade desse
objeto. A maneira como encerra o poema d-nos bem essa dimenso do poeta satisfeito
pela conscincia do dever cumprido, tanto no que se refere sua misso poltica quanto
potica, sem descuidar de seus desejos de martrio para mais merecer as graas da Virgem,
a quem se oferece quase em holocausto:
Eis, me toda santa, o que outrora eu em verso
Te prometi com voto, entre o gentio adverso.
Enquanto ao cru Tamoio abrandei com a presena,
E tratei, qual refm, a obra da paz suspensa,
Teu favor me acolheu com afeto to caro
Que alma e corpo guardou, sem culpa, teu amparo.
A inspiraes de Deus, almejei mil cansaos;
Cruelmente expirar, preso por duros laos.
Mas minh'nsia sofreu a repulsa irrisria,
Porque s aos heris compete tanta glria!
Bela me de Jesus, com um dom to rasteiro,
D-te o amor deste pobre o corao inteiro!
(Anchieta, 1988-11, p.253)
Seria preciso mais, para concluirmos que o poema escrito nas areias de Iperoig
tanto pode ser lido como uma biografia da Virgem quanto como uma autobiografia
de Jos de Anchieta?
MINDLIN, D. M . V. Jos de Anchieta's The Blessed Virgin Mary: a contemplative biography.
Itinerrios, Araraquara, n. 15/16, p. 245-260, 2000.
ABSTRACT:
The narrative structure ofthe poem De Beata Virgine Dei Matre
Maria, by Jos de Anchieta. The biographer
and the biographee.
The
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Itinerrios, Araraquara, 15/16:245-260,2000
O Poema Virgem de Jos de Anchieta: uma biografia contemplativa
implications of contemplation (Ignatius of Loyola) in the representation of the
focused object (Mieke Bal). The focuser's religious attitude in the idealized
construction of the Virgin Mary. The ambiguity of focusing: observation and
interpretation. The sublimity of the Virgin and the twofold face of biography,
with respect to the visibility ofthe object: approximation and distancing.
KEYWORDS:
Jos de Anchieta;
biography;
Virgin Mary; narrative;
focusing;
contemplation.
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