A LITERATURA DE SERTANEJAS (1935)
Adriano Menezes (UNEB)
A Literatura no serto da Bahia, regio da encosta ou Piemonte da Chapada
Diamantina, nas primeiras dcadas do sculo XX, de maneira geral o composto de
uma iniciativa de homens que tinham necessidade de ver os seus escritos lidos por
seus familiares ou membros das comunidades em que viviam: vilas ou pequenos
municpios formados a partir do final do sculo XIX no interior. Os seus escritores
no tinham unanimidade na busca por novas formas de escrita, mas tambm no
estavam totalmente presos aos padres dominantes da escrita, se considerar que o
estilo dominante era o Parnasiano. Tinham, portanto, uma mistura de estmulos
ocorridos em sua formao escolar ou autodidata que influenciaram o seu gosto
literrio, aliados cultura popular da qual faziam parte. Por isso, se utilizaram de
padres diversos nas composies poticas para, a partir da, divulgar o que at
ento seria inusitado: uma poesia popular.
A poesia popular no Nordeste, tambm de modo genrico, foi formada a partir
de cantos advindos da mtrica simplificada dos trovadores medievais ou dos
clssicos portugueses e brasileiros e foi-se expandindo quando o Romantismo tomou
corpo e iniciou no Brasil uma busca de identidade cultural, mostrando ao pas um
serto que ele mesmo ignorava; cabe-se levar em conta que a interiorizao dos
estudos sobre o serto brasileiro ganhou corpo atravs dos estudos ou obras
ficcionais de Jos de Alencar, com o seu romance Sertanejo (1875), ou o sertanista
Capistrano de Abreu, em seus Captulos de Histria Colonial (1954), por exemplo. A
idia original de um serto como um lugar remoto, rude e grosseiro ganhou sentidos
depreciativos, mas que depois de grandes escritores e estudiosos do final do sculo
XIX como Euclides da Cunha, por exemplo ou do sculo XX como o historiador
Srgio Buarque de Holanda e o antroplogo Darcy Ribeiro, entre outros voltaram a
ganhar valorizao.
partindo desta premissa de uma busca de identidade cultural na dcada de
1930 em todo o pas que se pode iniciar o estudo do livro, Sertanejas (1935), de
Eurycles Barretto. Dizer qual teria sido a inteno do autor ao intitul-lo seria
absolutamente impossvel porque o sentido no estava apenas naquele que o fez,
mas relativamente naqueles que o leram ou lem. Tentar compreend-lo por sua
importncia cultural seria um aspecto mais curioso em uma inveno histrica sobre
um livro publicado em 1935, na cidade de Jacobina, regio da Chapada Diamantina,
serto da Bahia, e escrito na cidade de Morro do Chapu por um escritor
desconhecido do cnone literrio baiano. Ter como ttulo uma referncia ao seu
povo, ou sua cultura Sertanejas , traz em um de seus significados a idia de
busca de identidade cultural, subentendendo-se sua poesia como poesias
sertanejas, tal qual o seu prefaciador, Oswaldo Dourado, induz o leitor a assim
pensar: (...) leitores que gostam das coisas simples, espontneas, naturais (...),
porque, em verdade, as coisas do serto so assim: simples e naturais
(BARRETTO, 1935, p. 5).
No ano de publicao do seu livro, Eurycles Barretto1 residia na cidade de
Morro do Chapu, onde trabalhou na empresa comercial Grassi & Cia., passou a
trabalhar como fotgrafo, tornou-se escrivo e at professor na cidade, embora s
tivesse cursado at o 5. ano primrio; dedicou boa parte de seu tempo para a escrita
tanto em jornais locais, como o Correio do Serto (1917 ) ou de outras localidades
como Jacobina no jornal O Lidador (1933-1943), por exemplo. Sua destreza com as
palavras no estava em rupturas com os padres literrios, como faziam os
modernistas do seu tempo, mas em trat-las de modo simplificado, aproximando-se
mais de seu pblico leitor, seja em poemas nos jornais de Jacobina (O Lidador) e
Morro do Chapu (Correio do Serto), seja atravs de colunas como Sombras do
meu caminho ou Palestrando especficas do jornal morrense a partir de 1932, em
que trabalhou o memorialismo, a crnica e dissertaes sobre assuntos diversos.
Entretanto no se pode considerar completamente que sua poesia estivesse
alheia s transformaes formais por quais passava a literatura brasileira na primeira
metade do sculo XX. Claro que trazia em seu mago uma maior influncia dos
romnticos no tratamento dos versos, na busca de metforas e rimas prontas, alm
de temas melanclicos relacionados paixo e s intempries climticas do serto.
Porm pode-se entender tambm como sua referncia identidade cultural sertaneja
est de certo modo ligada literatura que comeava a ganhar fora no Brasil todo
atravs de grandes romancistas que tambm desenharam uma inveno do
Nordeste (Cf. ALBUQUERQUE JR., 2001) e hoje esto no cnone literrio nacional:
Raquel de Queiroz, Jos Lins do Rego e Graciliano Ramos, entre outros. O belo e o
feio vistos pelo estranhamento dado por alguns destes autores poderia ser visto
como novos traos da literariedade da poca, mas temos a melancolia trgica de As
lgrimas do boi na poesia de Eurycles Barretto (1935, p. 60) como sua proximidade,
embora no fosse apenas este o foco de sua obra como um todo.
Quando se pensa em literatura sertaneja hoje no Nordeste, h uma tendncia
em se pensar ser a literatura composta por repentistas ou cordelistas, sem levar em
conta o seu passado histrico que em parte se distancia e, paradoxalmente, se
aproxima tambm desta. Querer atribuir a existncia de um modernismo, ou
movimento desta natureza, seria difcil argumentar porque tambm h uma tendncia
a interpret-lo de modo mimtico, tendo como referncia o que ocorria no Sudeste do
pas ou mesmo nas grandes cidades nas primeiras dcadas do sculo XX. Todavia,
ao serem analisadas as obras que fazem parte de uma histria cultural no
inventada percebe-se que, lentamente, distorcidos ou no pela mdia impressa
formadora de opinies ou gostos literrios, algumas transformaes estavam sendo
interiorizadas no pas, tanto pela co-relao entre a produo de livros como
exemplo de progresso quanto pela auto-afirmao de um povo que ficara alheio
quilo que se chamava de tempo moderno.
Com uma diagramao seqenciada pelas estaes do ano, baseada no
padro climtico europeu primeira parte primavera e ltima parte inverno, diferente
do clima tropical brasileiro , no livro Sertanejas (1935), o poeta mundonovense
Eurycles Barretto ousou, no como a maioria dos modernistas em seu princpio
com experimentalismos e rupturas dos padres poticos dominantes at o sculo
XIX , mas ao desenvolver o uso do verso livre em alguns poemas componentes de
sua obra. Em cada uma de suas partes pode-se encontrar um poema com versos
livres, embora s naqueles escritos a partir da terceira parte podemos perceber mais
uma relativa aproximao do modernismo baiano e brasileiro da dcada de 1930.
Os poemas O Poeta (BARRETTO, 1935, p. 22-23) e Clia (p. 24-29)
servem como ponto de partida deste processo, porm sua forma ainda estava
atrelada aos padres clssicos dominantes, sem tanta preocupao formal, como se
pode ver em todo o livro. O Poeta, neste caso, demonstra apenas irregularidades
se forem levados em conta os padres mtricos da poca, no fundamentando haver
necessariamente o uso de um poema com versos livres: sua composio formal
um conjunto maior de versos em decasslabos, cuja subdiviso permite supor ser
mais intencional a colocao de refres variados atravs de versos em tri, tetra e
hexasslabos; denotando serem priorizados, em seu todo, versos metrificados
hericos e sficos.
Ao conectar a representao do que seria o poeta para Eurycles Barretto,
atravs da epgrafe com verso de Gonalves de Magalhes, do livro Suspiros
Poticos e Saudades (1836) Um vate mais que um rei deduz-se, de maneira
mais objetiva, ser a influncia dos moldes romnticos, no modernistas, neste
poema. Depois, por meio de caracterizao metafrica do poeta como um pintor, um
ser que pode representar em suas cores e formas alm do poder, um artista-rei
maior do que aquele aclamado e reverenciado por seus sditos; seu maior poder
seria pintar os quadros da existncia (p. 22), cantar o amor, um negro cncer que
nos causa dor, / Fonte de horrores e de todo mal! (p. 23) e por isso caracterizado
como um mortal bem longe dos mortais! (Id). Portanto, em seu mago, o que se
releva mais ainda uma relao forte, desde a epgrafe at o seu texto, com o
romantismo brasileiro, possibilitando concluir relaes intertextuais com O Vate, de
Gonalves de Magalhes.
Por sua vez e por sua simplicidade, no poema inicial, Clia (p. 24-29), pode-
se deduzir uma possvel sincronia com o modernismo em seu aspecto formal. No
entanto, por ter como tema uma atrao infanto-juvenil pela musa inspiradora aos
doze anos de idade, doze primaveras, onde o eu-lrico um menino, acompanhado
de uma menina, a cantar e voltando para casa aps um dia de pescaria no serto da
Chapada Diamantina nos leva a rever ser este tambm sua maior relao com os
romnticos.
Tomando por base o que escreveu Carvalho Filho e outros (SANTANA (org.),
1986, p. 21-33) sobre as relaes entre os modernistas paulistas e baianos na
dcada de 1930, e ainda sobre a escolaridade do poeta em estudo, cabe tambm
considerar que tanto ele quanto o pblico leitor do interior da Bahia provavelmente
no tivessem grande contato com as transformaes propostas pela revoluo
modernista propriamente dita. notrio que o romantismo at hoje ainda exerce por
seu sentimentalismo e melancolia grande influncia no gosto de grande parte do
pblico leitor no to assduo pelas novidades temticas e formais; e ainda por
relevar que os primeiros romnticos europeus, franceses, ingleses ou alemes,
tambm pregavam o uso da liberdade mtrica em sua composio, deve-se extrair
ainda mais sua influncia romntica, retratada com a chegada em casa do eu-lrico,
sua musa e o cume da proposta infantil de casamento para quando crescessem,
ficando a resposta para a singeleza e doura de duas crianas em incio de
puberdade: (...) na face / Um beijo morno, de calor estranho (BARRETTO, 1935, p.
25). De todo modo, para um plausvel ajuntamento com o modernismo brasileiro, na
busca de uma identidade cultural, a descrio da vida do povo da regio, da cidade
de Mundo Novo, que pode atestar.
As epgrafes de poetas romnticos franceses e brasileiros, A. de Lamartine, J.
Petit de Senn e Castro Alves representam, de certo modo, algumas das possveis
leituras do poeta na dcada de 1930, na cidade de Mundo Novo, em sua infncia, ou
Morro do Chapu, sua juventude, refletidos no tema dos trs poetas citados: uma
desiluso amorosa e sua memria permanente. O poema Clia ganha mais em
peculiaridade por sua forma de abordar a vida rural da regio, quando o poeta
descreve sua paisagem ao pr-do-sol ou a noite, quando as duas crianas se
sentavam para observar o brilho das estrelas, cantando versos delicados, doces, /
Recostados no banco do terreiro (Ibid., p. 28). So momentos pensativos, desde a
afirmao da musa de que o menino era o seu noivo, at em sua oitava estrofe,
quando a deciso daquele que se considerou um febricitante de quatorze anos, um
msero retalho de homem foi partir do campo para a cidade. So instantes emotivos,
saudade de sua mocidade, dvida sobre o que novamente sentiria ao tornar a v-la,
incerteza sobre a prpria deciso aps os anos passados, e pessimismo quando diz
que o que lhe resta apenas um pouco de poeira (Ibid., p. 29).
no poema O Adjunto (Ibid., p. 44-48) que se tem a primeira aproximao
de Eurycles Barretto ao modernismo, no livro Sertanejas. Por trabalhar o o verso
livre, pela com a associao e superposio de idias e de imagens (...), com o uso
de coloquialismos vocabulares ou sintticos (BRITO, In: COUTINHO, 2006, p. 46),
nele, tem-se rimas misturadas e uma seqncia de imagens que retratam o costume
do povo da regio o adjunto , ou seja, uma atitude que consistia em se juntarem
todos os roceiros vizinhos, amigos para a empreitada de preparar a terra para o seu
dono e cuja filha, Moema, estava para se casar com um jovem, Jonas, tambm filho
de outro roceiro, ao lado do grupo. Depois do feito, a festa, com a chula, a sanfona e
o fazendeiro, j chumbado, danando e pulando. (BARRETTO, 1935, p. 46)
Um trao caracterstico de busca de uma identidade cultural sertaneja
tambm pode ser observado no final do poema quando se l a aclamao do poeta
ao povo da regio: Heris estremecidos do trabalho! / Em vossos coraes encontra
a Ptria / O mais doce agasalho! (Ibid., p. 48). Neste, pode-se interpretar no
apenas como uma nomenclatura, mas tambm como uma relao com o parmetro
do homem sertanejo, de Jos de Alencar como o destemido vaqueiro cearense,
que unha de cavalo acossa o touro indmito no cerrado mais espesso, e o derriba
pela cauda com admirvel destreza (ALENCAR, 1875, p. 3) ou de Euclides da
Cunha, no final do sculo XIX: O sertanejo , antes de tudo, um forte (CUNHA,
2002, p. 77). claro que, dessemelhante s obras referidas, O Sertanejo (1875) e
Os Sertes (1905), a preocupao de Eurycles no poema no estava centrada em
descrever as intempries de secas passadas pelos sertanejos da regio o que far
em outros poemas , mas fazer-lhes uma ovao, tudo atravs da descrio e
narrao de um mutiro (Adjunto) para preparar a terra de um companheiro para o
casamento de sua filha com um dos integrantes do grupo.
De modo semelhante ao que fizera no poema O Serto (BARRETTO, 1935,
p. 40), datado como outubro de 1926, o poeta utiliza o serto como sua terra, um
lugar que, a singeleza / Engastada na jia da Poesia; tem a Natureza como sua
noiva, a flor colhida / Por mo calosa e cuja mulher fogo ardente, / (...) formosura
que enlouquece a gente / Com seus arcanos de simplicidade (Id.). Em suma, na
simplicidade do povo sertanejo que Eurycles Barretto busca sua identidade cultural
numa nova nao, construda a partir e fora da modernidade, tendo como fronteira o
encontro com o novo e auto-afirmao de suas tradies culturais nativas e
interculturais (cf. BHABHA, 2001, p. 19-29). Destarte, no caso de Eurycles Barretto,
ao criar imagens de seu povo neste e no poema O Adjuncto, est trabalhando algo
em sincronia com o que se fazia nos meios intelectuais diversos em todo o territrio
nacional, mesmo se ponderar que nem sempre havia fcil comunicao entre eles.
Carvalho Filho (op. cit.) afirmou que os jornais e revistas levavam cerca de
um ms para chegarem do Rio e de So Paulo na dcada de 20, durante o
movimento modernista na Bahia. E no interior do pas, por conseqncia, o que
ocorria primordialmente era um padro literrio dominante, de acordo ao seu pblico
leitor, onde caso o escritor exacerbasse em rupturas formais poderiam deixar suas
obras pouco, ou no, lidas. Portanto, o poeta deveria trabalhar a tradio literria,
como na maior parte da obra Sertanejas, junto ruptura formal em alguns poemas
com versos livres, em geral com temtica voltada para o povo da terra.
Ainda seguindo este foco analtico, pode-se ver que outro poema que destoa
dos padres literrios dominantes em relao forma Primeiras guas (Ibid., p.
50-51). Continuando a maneira romntica de ver a vida, com sentimentalismo ou
melancolia, neste poema v-se retratada a f do povo sertanejo diante do clima
semi-rido em que vive. um quadro visto e descrito pelo poeta em que um pobre
fazendeiro, sofrendo com a seca, suplica a Deus para que este ajude o seu povo
mandando chuva. Em lamento diante de sua prpria existncia, o vizinho afirma que
tem fome e s lhe resta solicitar a Deus a esmola em benefcio da pobreza, numa
regio onde a trovoada por todos to esperada j o tinha deixado cansado de
esperar. Enfim, o que se tem ou representado mais uma orao que ratifica a
religiosidade de um povo.
De modo diferente do sertanejo de primeiras guas, o ser representado no
poema Ponto Final (Ibid., p. 53) uma grande alegoria para demonstrar mais uma
vez a singeleza e o bom humor de um povo. Neste, no mais um homem em
lamentos diante de sua rdua condio de vida, mas um trabalhador alegre que
chega em casa aps um dia de trabalho na roa, v sua companheira preparando a
cama para ele em seguida repousar: Ela tambm, coitada, precisava / Descansar, /
Porque, do mesmo modo, trabalhou / No plantio do milho e do feijo... (Id.)
Concluda a preparao do leito do casal, tem-se ainda mais um retrato de f
do povo sertanejo, quando ele fuma um cigarro, esperando que ela / Toda rolia,
acabe de rezar e com sua sutileza humorstica, Eurycles Barretto finaliza o poema
com a elptica descrio da relao a dois dos sertanejos pobres: aps a orao,
eles se embrulham, fecham os olhos e... finalmente... ento... que sono bom!...
(Id.). Considerando seu provvel pblico leitor, faz-se bvio crer que o poeta no
penetraria em descrio ou narrativa de uma cena ertica, mas atravs da argcia
com que leva o leitor a subentender uma possvel expectativa sexual j demonstrada
pelo olhar do roceiro ao fumar o seu cigarro espera de sua amada rolia, deitando-
se devagarinho e junto com ela se embrulhando-se para a concluso do dia, e do
poema, como um ponto final.
Em Outono (Ibid., p. 57-58) pode-se enxergar uma analogia entre as
estaes do ano e a vida humana: de uma vida primaveril levada com sua musa, ele
parte para seu auto-retrato como um outono, aludindo para isso os seus cabelos
brancos quando poca do poema tinha 39 anos de idade e os provveis 25 anos
passados se for estabelecida uma relao intertextual com o poema Clia (Ibid., p.
24-29), do mesmo livro. Como j foi dito acima, na primeira parte do livro,
Primavera, o poema Clia contava a histria de dois seres humanos em estado de
puberdade, descobrindo o amor chamado primaveril pelo poeta. Iniciado com
epgrafes romnticas, sua musa foi vista como o seu primeiro amor (Id.). O tempo
passou em sua mocidade primaveril, a desiluso amorosa tinha se concretizado
quando o eu-lrico foi-se embora como um msero retalho de um homem, deixando
ali o seu primeiro amor (p. 28) e, ento, a possvel mgoa ou arrependimento que
veio na maturidade outonal ao afirmar: Eu no sou mais aquele: Estou mudado / Em
um trapo de sonhos do passado / Tenho sulcos na face (...) (Ibid., p. 57)
Porm no s diante de si que aparece a realidade, mas da surpresa que o
desilude diante do tempo passado que tambm modificou o rosto de sua musa: ela
agora tinha a face macilenta, a velhice precoce e os traos dceis da vida primaveril
deixaram espao para o outono em sua mltipla significao, posto que esta estao
do ano, para o poeta, estava metaforizada por flores amarelas, cabelos branqueando
e uma vida prisioneira aos tormentos da realidade. Enfim, plausvel deduzir tanto a
relao intertextual entre Outono e Clia, mesmo que no fique absolutamente
objetivo, quanto relao analgica entre as partes do poema (estaes do ano) e
sua trajetria de vida.
Assim, metaforizado como uma carcia do passado... / Velhice da iluso que
vive ao nosso lado (Ibid., p. 75), a seguir tem-se o poema Inverno tambm a
peculiarizar o clima da regio da encosta da Chapada Diamantina, ao descrever a
formao das chuvas, o frio e a descida das guas pelos rochedos, formando uma
nvoa que se espelha pela serra. Entretanto, por ser desenhada a formao das
nuvens e o cair da chuva, o poeta no cristaliza a metfora do inverno apenas como
uma velhice desiludida, precoce, mas tambm como uma renovao provocada a
cada ano pelas guas e sua efemeridade temporal: Vai, pela serra, aos poucos se
espalhando... / Nesse momento, a alma enclausurada / a saudade
personificada!... (Id.)
O inverno no era tambm o fim do seu livro. Era mais do que isso porque o
poeta o via de modo simblico, como uma transformao da vida, deixando a
saudade que no se descreve... / Um amor que se foi, to alvo como a neve! (Id.),
mas tambm como o momento em que todos se envolvem para comemorar num
perene abrao a chegada das guas pelo povo sertanejo; tambm um poema
liberto da dominncia formal de sua obra como um todo, trabalhado em versos livres
(mesmo que ainda traga alguns esteretipos), em que o poeta busca aliar o velho, o
passado, com o novo, sinonimizado pelas guas e, conseqentemente, a natureza.
Destarte pode-se notar que experimentalismos em excesso como faziam os
modernistas sitiados em So Paulo e Rio de Janeiro no poderiam ser encontrados
na poesia deste e outros jovens poetas tanto do interior quanto da capital da Bahia,
conforme disse Carvalho Filho sobre a revista Arco & Flexa (op. cit.): ela tinha um
contedo heterogneo e no estava claro para seus prprios escritores o que seria
modernismo. O que acontecia em Salvador e de modo similar em cidades ou regies
da Bahia era basicamente constitudo pela produo de revistas ou jornais onde
intelectuais com novas idias podiam expor seus escritos e at publicar livros que,
at aquele momento, s eram publicados na capital, e, por conseguinte, aparentar
uma idia de progresso e desenvolvimento, conseqncia da compra de velhas
grficas vendidas ao interior do pas, aps a ocorrncia da renovao de seus
equipamentos nos grandes centros urbanos (cf. SODR, 1999, p. 275-306).
Por conseguinte, para o povo sertanejo da encosta ou Piemonte da Chapada
Diamantina na dcada de 1930, o modernismo s poderia ser visto com base nos
moldes do que seria a modernidade, isto , novas tecnologias que chegavam ao
Brasil, possibilidade de trfego ferrovirio, automveis, cinema e, claro, elementos
que ajudavam a criar a imagem do homem moderno, em seu conjunto, como um
intelectual ou, quando no, pelo menos um cidado bem informado do que acontecia
no pas e no mundo, como foi o caso de Eurycles Barretto. Sertanejas (1935), enfim,
pode ser visto como uma obra modernista tanto por sua relao sincronizada com a
produo livresca no Brasil na dcada de 1930 quanto principalmente pela
linguagem simples utilizada por seu autor, em busca de uma identidade cultural
brasileira.
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SODR, Nelson Werneck. Histria da Imprensa no Brasil. 4. Ed. Rio de Janeiro:
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1
Eurycles Barretto nasceu em 1896, na cidade de Mundo Novo, Bahia. Em 1917, mudou-se para a
cidade de Morro do Chapu, residiu at 1937 e foi escrivo de paz, escrivo do jri e escrivo da
Coletoria Federal. Em seguida, mudou-se novamente para a cidade de Campo Formoso, onde trabalhou
tambm como Coletor Federal at sua aposentadoria, em 1957. Em julho de 1974, aos 78 anos
incompletos, faleceu na cidade de So Paulo. Livros publicados: Flores Incultas (1927), Apologia dos
Meses (1933) e Sertanejas (1935); postumamente, teve publicado por seus familiares o livro Fim de
safra (1990).