Filosofia e a Natureza do Pensamento Histórico
Filosofia e a Natureza do Pensamento Histórico
A IMAGINAO HISTRICA
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ma concretas, no universais mas singulares, no indiferentes
ao espao e ao tempo mas possuidoras dum onde e dum quando
prprios, embora o onde no se identifique com o aqui nem o
quando com o agora. A histria, portanto, no pode coadunar-se
com teorias, segundo as quais o objecto do conhecimento
abstracto e imutvel, uma entidade lgica, em relao qual o
espirito pode assumir vrias atitudes.
Nem 6 possvel explicar o conhecimento, combinando teorias
destes dois tipos. A filosofia corrente est cheia de tais combina
es. Conhecimento por entendimento e conhecimento por des
crio; objectos eternos e as situaes transitrias de que so ingre
dientes; reino da essncia e reino da matria com estas e com
outras dicotomias do mesmo gnero (tal como nas dicotomias,
mais velhas, dos factos e das relaes entre as ideias ou ver
dades de facto e verdades da razo), tomam-se providncias
quanto s particularidades, quer duma percepo que apreende
o aqui e o agora, quer do pensamento abstracto que apreende o
sempre e o em-toda-parte: taQw;* e da tradio filo
sfica. Mas, do mesmo modo que a histria no tcrOw; nem
vow;, tambm no uma combinao das duas. H uma ter
ceira coisa, com algumas das caractersticas das outras duas,
combinando-as, porm, de maneira impossivel para ambas.
No , em parte, entendimento de situaes transitrias e, em
parte, conhecimento dedutivo de entidades abstractas. , no
total, um conhecimento dedutivo daquilo que transitrio e
concreto.
O meu objectivo, aqui, apresentar uma breve exposio
desta terceira coisa, que a histria. Comearei por apresentar
aquilo a que pode chamar-se a teoria do senso comum acerca da
histria a teoria em que a maior parte das pessoas acreditam,
ou julgam que acreditam, quando reflectem sobre o assunto,
pela primeira vez.
Segundo esta teoria, as coisas essenciais, na histria, so a
memria e a autoridade das fontes. Se um acontecimento ou
um estado de coisas se destina a ser conhecido histricamente,
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preciso ante de mais nada, que algum tome conhecimento dele;
depois, tem de record-lo; a seguir, tem de expor a sua recor
dao, cm termos inteligveis por outrem; e finalmente, indis
pensvel que uma outra pessoa aceite, como verdadeira, a expo
sio feita. Deste modo, a histria consiste era acreditar em
algum, quando afirma que se recorda de alguma coisa. Aquele
que acredita o historiador; a pessoa que merece o crdito do
historiador a sua fonte autorizada.
Est implcito nesta teoria que a verdade histrica na
medida em que efectivamente acessvel ao historiador -lhe
acessvel apenas porque j existe pr-fabricada nas exposies
tambm pr-fabricadas das suas fontes autorizadas. Estas exposi
es so para si um texto sagrado, cujo valor depende totalmente
do facto de no destrurem a tradio que representam. Conso-
quentemente, o historiador no deve, dc modo algum, falsific-las.
No deve mutil-las, nem deve acrescentar-lhes nada. Sobretudo,
no deve contradiz-las. Isto porque, se ele se pe a seleccionar
cuidadosamente, chegando concluso de que algumas das afir
maes da sua fonte so importantes e outras no, sem dar por
isso, comea a recorrer a um outro critrio. Ora, segundo esta
teoria, isto exactamente o que ele no pode fazer. Se lhes acres
centa alguma coisa, interpolando-lhes construes da sua autoria
e aceitando estas construes como achegas ao seu conhecimento,
o historiador passa a acreditar nalguma coisa, por outra razo
e no pelo facto de a sua fonte o ter afirmado. Tambm no
tem o direito dc fazer isto. Pior que tudo, se o historiador as
contradiz, atrevendo-se a decidir que a sua fonte deu uma viso
falsa dos factos, c rejeitando, como incrveis, as suas afirmaes,
ele acreditar no oposto daquilo que lhe foi dito, fazendo a pior
ofensa possvel s regras da sua profisso. A fonte pode ser taga
rela, discursiva, m-lngua ou difamadora; pode ter despre
zado, esquecido ou omitido factos; pode t-los, por ignorncia
ou por deliberao, exposto erradamente. Todavia, para estes
defeitos, o historiador no tem remdio. De acordo com esta
teoria, aquilo que as fontes autorizadas dizem ao historiador
a verdade, toda a verdade acessvel, e nada mais que a verdade.
S interessa expor estas consequncias da teoria do senso
comum, com o objectivo de repudi-las. Todo o historiador tem
a conscincia de que, quando necessrio, deve alterar segundo
estas trs possibilidades aquilo que encontra nas suas fontes.
Selecciona delas o que lhe parece importante, omitindo o resto;
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interpola nelas coisas que elas no dizem explicitamente; e criti
ca-as, rejeitando ou emendando aquilo que considera devido a
informaes erradas ou a falsidades. Contudo no estou certo
de que ns, os historiadores, nos apercebamos sempre das conse
quncias daquilo que fazemos. De modo geral, quando reflectimos
sobre o nosso trabalho, damos a impresso de aceitar aquilo a
que chamei a teoria do senso comum, embora reivindicando os
nossos direitos de seleco, interpretao e crtica. Estes direitos
so, sem dvida, inconsistentes com a teoria. Todavia, procura
mos atenuar a contradio, minimizando a extenso com que so
exercidos, considerando-os como medidas de emergncia, uma
espcie de revolta a que pode ser levado o historiador, de
tempos a tempos, pela excepcional incompetncia das suas fontes
autorizadas embora no perturbando fundamentalmente o
regime normal e tranquilo, em que ele acredita plcidamente
no que lhe dizem, porque lhe dizem que acredite. Estas coisas,
porm ainda que raramente aconteam representam ou
crimes histricos ou factos fatais para a teoria, porque segundo
a teoria no deveriam acontecer raramente, mas nunca. A ver
dade que no constituem crimes nem excepes. No decurso
do seu trabalho, o historiador vai seleccionando, interpretando
e criticando; s assim que mantm o seu pensamento no sichere
Gang einer Wissenschaft. Reconhecendo explicitamente este
facto, possvel realizar aquilo a que se poder chamar usando
movamente uma expresso de Kant uma revoluo copr-
nica longe de se fundamentar noutra fonte autorizada que
no ele prprio, e a cujas declaraes o seu pensamento teria
de sujeitar-se a sua prpria fonte autorizada, sendo aut
nomo o seu pensamento, dotado dum critrio a que tm de sujei
tar-se as chamadas fontes autorizadas, e pelo qual elas so cri
ticadas.
A autonomia do pensamento histrico pode ser vista, sob
a sua forma mais simples, no trabalho de seleco. O historia
dor que procura trabalhar de acordo com a teoria do senso
comum, reproduzindo cuidadosamente o que encontra nas
suas fontes, faz lembrar um paisagista que se dispe a seguir
aquela teoria esttica que incita o artista a copiar a natureza.
Pode imaginar que reproduz, pelos seus prprios meios, as for
mas e as cores autnticas das coisas naturais; todavia, por muito
que se esforce por atingir tal objectivo, est constantemente
a seleccionar, a simplificar, a esquematizar, a pr de lado o que
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lhe parece insignificante e a aproveitar o que lhe parece essencial.
o artista, e no a natureza, que responsvel por aquilo que
surge na tela. Do mesmo modo, nenhum historiador, nem mesmo
o pior de todos, se limita a copiar as suas fontes; mesmo que no
acrescente nada de seu (o que realmente nunca possvel), deixa
sempre de fora coisas que por uma razo ou outra entende
que no so necessrias para o seu trabalho ou que as no pode
usar, nesse mesmo trabalho. Consequentemente, ele e no
as suas fontes que responsvel pelo que se passa. Quanto a
este problema, o historiador senhor de si mesmo: o seu pensa
mento , nessa medida, autnomo.
Pode encontrar-se uma demonstrao ainda mais clara deita
autonomia, naquilo a que chamei interpretao histrica. As
fontes do historiador falam-lhe desta ou daquela fase dura pro
cesso, cujos estdios intermdios ficam por descrever. o histo
riador que procede interpolao desses estdios. A imagem
que ele d do seu objecto embora possa consistir, em parte,
em afirmaes extradas directamente das suas fontes con
siste tambm (crescentemente com cada aumento produzido
na sua competncia de historiador) em afirmaes atingidas
dedutivamente, a partir das que esto de acordo com os seus
critrios, as suas regras metodolgicas e os seus cnones de
importncia. Nesta parte do seu trabalho, no depende nunca
das suas fontes, no sentido de repetir o que elas lhe dizem; firma-se
na sua capacidade pessoal, constituindo-se a si prprio fonte de
si mesmo, enquanto as chamadas fontes deixam de ser fontes
para serem apenas provas.
A mais clara demonstrao da autonomia do historiador
fornecida, porm, pela critica histrica. Tal como as cincias
da natureza descobrem o seu mtodo prprio, quando o cientista
segundo a metfora de Bacon interroga a Natureza, a tor
tura com a experimentao, a fim de extrair dela respostas s
suas perguntas, tambm a histria descobre o seu mtodo pr
prio, quando o historiador pe as suas fontes no banco das
testemunhas, fazendo-lhes um interrogatrio cerrado e con
seguindo assim obter delas informaes que, nas suas declaraes
originais, elas tinham escondido, ou porque no queriam d-las
ou porque no as possuam. Desta forma, as mensagens do coman
dante dum exrcito podem proclamar uraa vitria; mas o histo
riador, ao l-las com esprito crtico, perguntar: Se foi uma
vitria, porque que no foi seguida de perto, desta ou daquela
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maneira?, podendo provar assim que o escritor escondeu a
verdade. Ou ento, usando o mesmo mtodo, pode condenar a
ignorncia dum predecessor menos dado crtica, que aceitou
a verso da batalha, dada pelas mesmas mensagens.
A autonomia do historiador manifesta-se aqui, na sua forma
extrema, porque evidente que, de certo modo, em consequncia
da sua actividade de historiador, tem o poder de rejeitar algo
que lhe explicitamente dito pelas suas fontes, substituindo-o
por outra coisa. Se tal possvel, o critrio da verdade histrica
no pode ser o facto de uma afirmao ser feita por uma fonte.
So a veracidade e a informao das chamadas fontes que esto
em questo. este o problema que o historiador tem de resolver ,
por si prprio, com a sua autoridade. Mesmo que aceite o que as
fontes lhe indicam, aceita-o ento com base na sua prpria
autoridade e no na das fontes; f-Io porque o seu critrio da
verdade histrica lhe diz que o faa e no porque lho dizem
essas fontes.
A teoria do senso comum que fundamenta a histria na
memria e na autoridade das fontes no necessita de qualquer
outra refutao. A sua falncia evidente. Para o historiador,
no pode haver nunca fontes autorizadas, porque estas proferem
um veredicto que s ele pode lanar. Contudo, a teoria do senso
comum pode reivindicar uma verdade qualificada e relativa.
O historiador, de modo gerl, trabalha num assunto que outros,
antes dele, j estudaram. Proporcionalmente, na medida em
que for um principiante em relao a um dado assunto par
ticular ou histria, no seu conjunto os seus antecessores
possuem, relativamente sua incompetncia, autoridade; e, no
caso-limite de a sua incompetncia e a sua ignorncia serem
absolutas, eles poderiam ser considerados como autoridades
incontestveis. medida que se vai tornando cada vez mais
senhor do seu ofcio, eles vo-se tornando cada vez menos as suas
fontes autorizadas e cada vez mais colegas de estudo que devem
ser tratados com respeito ou com desprezo, segundo os seus
mritos.
E do mesmo modo que a histria no depende do critrio
da autoridade, tambm no depende da memria. O historiador
pode redescobrir o que foi esquecido por completo, no sentido
de que no chegou at ele qualquer relato disso, atravs duma
tradio continua, elaborada a partir de testemunhas oculares.
Pode mesmo descobrir o que, at ento, ningum tinha conhe
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cimento de que tivesse acontecido. Consegue fazer isto, em parte,
por meio do tratamento crtico das afirmaes contidas nas
suas fontes, e em parte, utilizando aquilo a que se chama fontes
no escritas, que se empregam cada vez mais, medida que a
histria se torna cada vez mais segura dos seus mtodos e do seu
critrio prprios.
Referi-me ao critrio da verdade histrica. Em que consiste
esse critrio? De acordo com a teoria do senso comum, o acordo
entre as afirmaes expressas pelo historiador e as que ele encontra
nas suas fontes. Sabemos agora que esta resposta falsa, sendo
necessrio procurar uma outra. No podemos, contudo, renunciar
a tal pesquisa. Tem de haver alguma resposta a essa pergunta,
porque, sem critrio, no pode haver qualquer crtica. Foi dada
uma resposta a tal pergunta, pelo maior filsofo ingls do nosso
tempo, no seu folheto sobre Os Pressupostos da Histria Crtica.
O ensaio de Bradley uma obra dos seus primeiros tempos,
em relao qual veio a mostrar desacordo, na sua maturidade.
De qualquer modo, essa obra tem impresso o seu gnio. Nela,
Bradley encara o problema de como possvel ao historiador,
desafiando a teoria do senso comum, virar o feitio contra o feiti
ceiro, isto , contra as chamadas autoridades, dizendo: Isto
o que as nossas fontes autorizadas registam, mas o que real
mente aconteceu no deve ter sido isto e sim aquilo.
A sua resposta quela interrogao significava que a nossa
experincia do mundo nos ensina que alguns tipos de coisas
acontecem e outros no. Esta experincia, ento, o critrio
que o historiador aplica s declaraes das suas fontes. Se lhe
dizem que ocorreram coisas duma espcie que, segundo a sua
experincia, no ocorrem, o historiador obrigado a no acre
ditar nelas; se as coisas que relatam pertencem a uma espcie que,
segundo a sua experincia, acontecem, o historiador tem a liber
dade de aceitar esses relatos.
H muitas objeces evidentes, a respeito desta ideia, em
que no insistirei. Est profundamente afectada pela filosofia
empirista, contra a qual Bradley iria, dentro em pouco, rebelar-se
to nitidamente. Todavia, para alm disso, h certos pontos
particulares, em que a argumentao me parece defeituosa.
Em primeiro lugar, o critrio proposto um critrio no
daquilo que aconteceu mas daquilo que podia acontecer. Efec
tivamente, no outra coisa se no o critrio de Aristteles
referente ao que admissvel na poesia. Por tal motivo, no
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serve para distinguir a histria da fico. Satisfazer-se-ia, sem
dvida, com as afirmaes dum historiador, mas podia tambm
satisfazer-se com as afirmaes dum romancista histrico. No
pode ser, portanto, um critrio de histria crtica.
Em segundo lugar, visto que no pode dizer-nos nunca o
que aconteceu, ficamos, a tal respeito, dependentes apenas da
autoridade do nosso informador. Quando empregamos um
tal critrio, pomo-nos a acreditar em tudo quando o nosso infor
mador nos comunica, contanto que satisfaa o critrio mera
mente negativo do possvel. Isto no voltar o feitio contra o
feiticeiro, ou seja contra as nossas fontes autorizadas; aceitar
cegamente o que elas nos dizem. No se atingiu uma atitude
crtica.
Em terceiro lugar, a experincia que o historiador tem do
mundo em que vive s pode ajud-lo a conferir, mesmo nega
tivamente, as afirmaes das suas fontes, na medida em que no
digam respeito histria mas natureza, que no tem histria.
As leis da natureza tm sido sempre as mesmas; o que agora
contra a natureza, j era contra a natureza, h dois mil anos.
Mas as condies histricas distintas das condies naturais
da vida humana diferem tanto, em pocas diferentes, que no
pode sustentar-se qualquer argumento com base numa analogia.
Que os gregos e os romanos abandonavam os recm-nascidos,
com a finalidade de limitarem a populao, isso no menos ver
dade pelo facto de ser algo de diferente em relao a tudo o que
pertence experincia dos colaboradores da Cambridge Ancient
History1. Com efeito, o tratamento que Bradley faz do assunto
resultou no do curso normal dos estudos histricos mas sim
do seu interesse na credibilidade das narrativas do Novo Testa
mento, particularmente o seu elemento miraculoso. Simplesmente,
um critrio que serve apenas em caso de milagre possui um
valor extremamente diminuto para o historiador de todos os dias.
O ensaio de Bradley, por inconsequente que seja, continua a
marcar uma data, pelo facto de se ter realizado nele, em princ
pio, a revoluo coprnica da teoria do conhecimento histrico.
Para a teoria do senso comum, a verdade histrica consiste nas
convices do historiador, harmonizadas com as suas fontes.
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a priori; c, embora tenha mais que dizer a tal respeito, limi
tar-me-ei, para j, a observar que ainda que no tenhamos
conscincia da sua manifestao esta aco que, preenchendo
as lacunas entre os elementos que nos so fornecidos pelas fontes,
d continuidade narrativa ou descrio histrica. Que o histo
riador deve servir-se da imaginao, isso um lugar-comum.
Para citar o Essay on H i s t o r y de Macauly, um historiador
perfeito deve possuir uma imaginao suficientemente poderosa,
para tornar emocionante e pitoresca a sua narrativa; mas isso
subestimar o papel desempenhado peia imaginao histrica,
que no prpriamente ornamental mas estrutural. Sem ela,
o historiador no disporia de qualquer narrativa para adornar.
A imaginao essa faculdade cega mas indispensvel,
sem a qual (como Kant mostrou) no poderamos perceber
o mundo nossa volta indispensvel, da mesma maneira,
para a histria. ela que, actuando no caprichosamente, como
fantasia, mas sob a sua forma apriorstica, executa todo o trabalho
de construo histrica.
preciso evitar dois equvocos. Primeiramente, pode pensar-se
que, por meio da imaginao, s conseguimos tomar contacto
com aquilo que imaginrio, no sentido de fictcio ou irreal.
Menciona-se este preconceito apenas com o objectivo de ser
banido. Se imagino que o amigo que saiu h pouco da minha casa
vai agora a entrar na dele, o facto de eu imaginar este evento nao
me d qualquer razo para o considerar irreal. O imaginrio,
simplesmente como tal, no irreal nem real.
Depois, falar duma imaginao a priori pode parecer um
paradoxo, pois pode pensar-se que a imaginao essencialmente
caprichosa, arbitrria, meramente fantasista. No entanto, em
acrscimo sua funo histrica, h duas outras funes duma
imaginao a priori, que so ou devem ser conhecidas de
todos. Uma a imaginao pura ou livre mas no arbitrria,
de modo algum do artista. O homem que escreve um romance
compe uma narrativa, em que os papis so desempenhados por
vrias personagens. As personagens e os incidentes so todos
igualmente imaginrios; contudo, o grande objectivo do roman
cista mostrar as personagens em aco e os incidentes em desen
volvimento de maneira determinada por uma necessidade interna
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deles prprios. A narrativa, se boa, no pode evoluir de outro
modo, a no ser do modo como evolui; o romancista, ao imagin-la
no pode imaginar de outra maneira o seu desenvolvimento,
excepto do mesmo modo por que evolui. Aqui, assim como em
todas as outras formas de arte, a imaginao a priori entra em
aco. A sua outra funo vulgar aquilo a que pode chamar-sc
imaginao perceptiva, completando e consolidando os dados
da percepo, segundo o modo to bem analisado por Kant,
ao apresentar-nos objectos de possvel percepo que no so
realmente percebidos: o lado de baixo desta mesa, o interior dum
ovo, para abrir, a face escondida da Lua. Tambm aqui, a ima
ginao apriorstica: s podemos imaginar aquilo que s pode
estar presente. A imaginao histrica difere destas, no por ser
apriorstica, mas por ter como tarefa especial imaginar o passado:
no um objecto de possvel percepo, uma vez que j no existe,
mas um objecto susceptvel de se tornar, atravs da imaginao
histrica, um objecto do nosso pensamento.
A imagem que o historiador d ao seu objecto, quer seja
uma sequncia de acontecimentos quer um estado de coisas
passado, surge desta forma como uma teia de construo ima
ginativa, estendida entre certos pontos fixos, fornecidos pelas
declaraes das fontes. E se estes pontos forem suficientemente
numerosos e os fios ligados uns aos outros estiverem cons
trudos com o cuidado devido, sempre por meio da imaginao
a priori e nunca por fantasia meramente arbitrria, todo o qua
dro constantemente verificado em correspondncia com estes
dados, havendo pouco perigo de perder o contacto com a reali
dade que representa.
Na verdade, precisamente assim que ns concebemos o
trabalho histrico, a partir do momento em que a teoria do
senso comum deixa de satisfazer-nos e ganhamos conscincia
do papel nele desempenhado pela imaginao construtiva. Toda
via, uma tal concepo incorre, em certo sentido, num erro grave:
ignora o papel no menos importante desempenhado pela crtica.
Concebemos a nossa teia de construo como estando presa,
por assim dizer, aos factos, pelas afirmaes das fontes autori
zadas, que consideramos como dados ou pontos fixos para o
trabalho de construo. Pensando assim, escorregamos para a
teoria hoje reconhecida como falsa de que a verdade
obtida, no absorvendo o que as fontes nos indicam, mas criti
cando-as. Desta maneira, os pontos supostamente fixos, entre os
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quais a imaginao elabora a sua teia, no nos sao dados, j
prontos, tm de ser produzidos pelo pensamento crtico.
No h nada mais do que pensamento histrico, em relao
ao qual se podem provar as suas concluses. O heri dum romance
policial pensa exactamente como um historiador, quando, a
partir de indicaes dos mais diversos tipos, constri um quadro
imaginrio, acerca do modo como foi praticado o crime, e por
quem. A princpio, isto apenas uma simples teoria, espera de
verificao, que tem de vir de fora. Felizmente para o detective,
as convenes desse gnero literrio impem que, quando a sua
construo est completa, ela fique nitidamente consolidada pela
confisso do criminoso, feita em circunstncias tais que a sua
autenticidade no seja posta em dvida. O historiador menos
afortunado. Se, depois de ficar convencido atravs do estudo
das provas j conseguidas de que Bacon escreveu as peas
de Shakespeare ou de que Henrique VII assassinou os Prncipes
na Torre de Londres, ficasse espera de encontrar um documento,
longe de encerrar a investigao, s a teria complicado, levan
tando um novo problema o problema da sua autenticidade.
Comecei por tomar em considerao uma teoria, segundo
a qual tudo dado segundo a qual toda a verdade acess
vel ao historiador, -Ihe fornecida, j pronta, pelas afirmaes
terminantes das fontes autorizadas. Vi ento que muito daquilo
que ele toma por verdadeiro no dado assim, mas construdo
pela sua imaginao a priori. No entanto, ainda julgava que
esta imaginao actuava por deduo, a partir de pontos fixos,
fornecidos da mesma maneira. Vejo-me obrigado a confessar
agora, que no h, para o pensamento histrico, quaisquer pontos
fixos assim fornecidos. Por outras palavras: na histria, preci
samente do mesmo modo que no h propriamente quaisquer
autoridades, tambm no h prpriamente quaisquer dados.
Certamente que os historiadores julgam que trabalham a
partir de dados entendendo por dados os factos histricos,
pr-fabricados, de que dispem no princpio duma certa poro
de investigao histrica. Um dado deste gnero no caso,
por exemplo, de a investigao se debruar sobre a Guerra do
Peloponeso seria uma certa afirmao de Tucdides, considerada
substancialmente verdadeira. Mas quando perguntamos o que
que d ao pensamento histrico este dado, a resposta bvia:
o pensamento histrico d-o a si mesmo; por isso, no um
dado mas um resultado ou uma realizao, que est em relao
com o pensamento histrico, em gera]. S o nosso conhecimento
histrico que nos diz que estes curiosos sinais sobre o papel so
letras gregas; que as palavras por eles constitudas possuem
certos significados, no dialecto tico; que esta passagem per
tence efectivamente a Tucdides, no se tratando duma interpo
lao ou duma corrupo; e que, naquela ocasio, Tucdides
sabia de que falava, procurando dizer a verdade. Pondo de lado
tudo isto, a passagem meramente uma mancha e sinais pretos
sobre o papel branco: no um facto histrico, mas algo que
existe aqui e agora, e percebido pelo historiador. Tudo o que o
historiador quer dizer, quando descreve certos factos histricos
como os seus dados, que no que respeita a uma certa por
o de trabalho h certos problemas histricos relevantes
para esse trabalho, que se prope considerar, para j, como
estando resolvidos; contudo, se esto resolvidos, isso deve-se
apenas ao facto de o pensamento histrico os ter resolvido, no
passado, permanecendo eles nessa situao s at que o historia
dor ou outra pessoa decida reexamin-los.
A sua teia de construo imaginativa, portanto, no pode
extrair a sua validade do facto de estar como a descrevi, pri
meiramente presa a certos factos. Essa descrio constitui
uma tentativa de aiivi-lo da sua responsabilidade em relao
aos pontos nodais da sua construo, embora reconhecendo
a sua responsabilidade em relao ao que constri entre eles.
Com efeito, to responsvel quanto a uns como quanto aos
outros. Quer aceite quer rejeite, modifique ou reinterprete aquilo
que lhe comunicam as chamadas autoridades, ele que res
ponsvel pelas afirmaes que depois de critic-las devida
mente faz. O critrio que lhe d justificao para fazer essas
afirmaes no pode ser nunca o facto de as ter recebido de uma
fonte autorizada.
Isto leva-me, outra vez, ao problema de saber o que este
critrio. Neste ponto, pode dar-se uma resposta parcial e provis
ria. A teia de construo imaginativa uma coisa incompar-
velmente mais slida e poderosa do que eu tinha pensado. Longe
de fundamentar a sua validade no apoio dos factos dados, cons
titui realmente a pedra de toque de autenticidade os factos supos
tos. Suetnio diz-me que Nero, em certa ocasio, tencionava
evacuar a Bretanha. Rejeito a sua afirmao, no porque o con
tradiga abertamente qualquer fonte mais autorizada o que
no acontece, sem dvida mas porque a minha reconstituio
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da poltica de Nero (feita com base em Tcito) no me permite
pensar que Suetnio tenha razo. E se me disserem que isto
significa apenas que prefiro Tcito a Suetnio, confesso que sim;
mas fao-o s porque me considero apto a incorporar num qua
dro coerente e contnuo, construdo por mim, aquilo que Tcito
me di2 coisa que nilo posso fazer, em relao a Suetnio.
Deste modo, a imagem que o historiador elabora acerca do
passado um produto da sua imaginao a priori, tendo de justi
ficar as fontes usadas na sua construo. Estas fontes s merecem
crdito, na medida em que so assim justificadas. Isto porque
qualquer fonte pode estar contaminada; este escritor deixou-se
dominar por preconceitos, aquele deu informaes erradas;
esta inscrio foi lida erradamente por um mau epigrafista,
aquela foi mal escrita por um canteiro descuidado; este frag
mento de loua de barro foi colocado fora do seu contexto por
um escavador incompetente, aquele por um coelho irresponsvel.
O historiador crtico tem de descobrir e corrigir todas estas e
muitas outras espcies de falsificao. F-Io e s o pode fazer
verificando se o quadro do passado para que a evidncia o con
duz constitui um quadro coerente e contnuo, dotado de sentido.
A imaginao a priori%que executa o trabalho de construo
histrica, fornece igualmente os meios necessrios crtica his
trica.
Livre da sua dependncia em relao aos pontos fixos for
necidos do exterior, o quadro que o historiador d do passado
assim, em todos os pormenores, um quadro imaginrio, sendo
a sua necessidade, em todos os pontos, a necessidade da imagi
nao a priori. O que passa a fazer parte desse quadro, seja o
que for, no aceite passivamente pela imaginao do historiador
mas exigido activamente por ela.
A semelhana entre o historiador e o romancista, a que j
me referi, atinge aqui o seu cume. Ambos procuram construir
um quadro que, em parte, uma narrao de eventos e, em parte,
uma descrio de situaes, uma revelao de mbeis, uma anlise
de personagens. Ambos desejam fazer do respectivo quadro um
todo coerente, em que cada personagem e cada situao est
to ligada ao resto que esta personagem nesta situao s pode
agir desta maneira, mas podendo ns imagin-la a actuar de
maneira diferente. O romance e a histria, ambos tm de fazer
sentido. Nada admissvel em qualquer deles, excepto o que
necessrio, sendo a imaginao o juiz desta necessidade, em
ambos os casos. Quer o romance quer a histria slo dotados de
evidencia e de autojustificaSo, sendo produtos duma actividade
autnoma e autorizada. Em ambos os casos, essa actividade a
imaginao a priorL
Como obras da imaginao, o trabalho do historiador c o
do romancista no diferem. S divergem neste ponto: o quadro
do historiador deve ter veracidade. O romancista s tem uma
tarefa: construir um quadro coerente, dotado de sentido. 0 his
toriador tem uma dupla tarefa: tem de fazer isto e tem de cons
truir tambm um quadro das coisas, tal como elas eram realmente,
e dos acontecimentos, tal como eles ocorreram realmente. Esta
outra necessidade obriga-o a obedecer a trs regras de mtodo
das quais est livre o romancista ou o artista, em geral.
Em primeiro lugar, o seu quadro tem de estar situado no
espao e no tempo. O do artista no precisa disso; no essencial,
as coisas que imagina so imaginadas como correndo em nenhum
lugar e em nenhum momento. A propsito de Wuthcring
Heights tem-se dito e com razo, que a aco se passa no Inferno,
embora os nomes dos locais sejam ingleses; e foi um instinto
acertado que levou um outro grande romancista a substituir
Oxford por Christminster, Wantage por Alfredston, e Fawley
por Marychurch, mantendo a disparidade topogrfica num
mundo que devia ser puramente imaginrio.
Em segundo lugar, toda a histria deve ser coerente em rela
o a si mesma. Os mundos puramente imaginrios no podem
colidir e no preciso que se harmonizem; cada um deles um
mundo para si prprio. H, porm, um s mundo histrico;
nele, tudo tem de estar em relao com tudo o mais, mesmo se
essa relao apenas topogrfica e cronolgica.
Em terceiro lugar, e o mais importante, o quadro do his
toriador est relacionado especialmente com aquilo a que se
chama provas. A nica maneira de o historiador ou qualquer
outra pessoa poder ajuizar mesmo experimentalmente da
verdade desse quadro tomando cm considerao esta relao.
E, na prtica, o que ns entendemos por saber se uma afirmao
histrica verdadeira saber se pode ser confirmada, recor
rendo s provas, pois uma verdade que no possa ser confirmada
deste modo no possui qualquer interesse para o historiador.
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pode nunca ser percebido e, ainda menos, interpretado na
sua totalidade. O processo infinito do tempo passado nlo pode
nunca ser encarado como um todo. Contudo, esta separao
entre o que tentado, tericamente, e o que realizado, prti-
camente, o fado da humanidade, no uma particularidade do
pensamento histrico. O facto de se encontrar a s prova que,
nisto, a histria se parece com a arte, a cincia, a filosofia, a procura
da virtude e da felicidade.
pela mesma razo que, na histria como em todos os
problemas srios nenhuma realizao final. As provas dispo
nveis para a resoluo dum dado problema modificam-se, com
todas as variaes de competncia dos historiadores. Os prin
cpios, segundo os quais estas provas so interpretadas, tambm
se modificam, visto que a interpretao das provas uma tarefa
em que preciso utilizar tudo o que se conhece conhecimento
histrico, conhecimento da natureza e do homem, conhecimento
matemtico, conhecimento filosfico; e no s conhecimento,
mas tambm hbitos e faculdades mentais de toda a espcie.
Ora nada disto imutvel. Devido a estas modificaes, que
nunca cessam, por muito lentas que possam parecer a observa
dores superficiais, cada nova gerao tem de reescrever a histria,
segundo o modo que lhe prprio. Cada novo historiador, no
se limitando a dar novas respostas a antigas interrogaes, tem
de rever essas mesmas interrogaes. E dado que o pensamento
histrico um rio em que ningum se pode banhar duas vezes
mesmo um simples historiador, que trabalha num simples
assunto, durante um certo perodo de tempo, descobre quando
tenta reexaminar um antigo, problema que o problema se modi
ficou.
No se trata de um argumento favorvel ao cepticismo his
trico. apenas a descoberta duma segunda dimenso do pen
samento histrico, a histria da histria; a descoberta de que o
prprio historiador juntamente com o aqui-e-agora que cons
titui o corpo total das provas de que ele dispe faz parte do
processo que estuda, possui lugar prprio nesse processo, e s
consegue v-lo a partir do ponto de vista, em que se coloca,
dentro dele, no momento presente.
Mas nem a matria-prima do conhecimento histrico as
circunstncias do aqui-e-agora, tal como se apresentam per
cepo do historiador nem os vrios dons que o ajudama
interpretar as provas podem fornecer ao historiador o seu critroi
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da verdade histrica. Este critrio a prpria ideia de histria:
a ideia dura quadro imaginrio do passado. Esta ideia , em
linguagem cartesiana, inata; em linguagem kantiana, aprio
rstica. No um produto acidental de causas psicolgicas;
uma ideia que toda a gente possui, como parte integrante do
equipamento do seu esprito e que toda a gente verifica que
possui, na medida em que toma conscincia do significado de
ter um esprito. Tai como outras ideias da mesma espcie, no
tem correspondncia exacta com nenhum facto da experincia.
O historiador, ainda que trabalhe muito tempo e com rigor, no
pode nunca dizer que o seu trabalho mesmo sob a forma de
simples esboo, ou neste ou naquele mnimo pormenor defi
nitivo. No pode nunca dizer que o seu quadro do passado se
adequa, em qualquer ponto, sua ideia daquilo que ele devia ter
sido. Todavia, ainda que os resultados do seu trabalho possam
ser fragmentrios e defeituosos, a ideia que regeu o curso desse
trabalho clara, racional e universal. a ideia de imaginao
histrica, como forma de pensamento autnoma, autodeter
minada e autojustificada.
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