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Educação Medieval PDF

Este documento discute a literatura medieval como uma fonte reveladora da educação e da vida na sociedade feudal. A literatura dos diferentes estratos sociais reflete os valores cristãos dominantes e a educação estava centrada na Igreja. A nobreza recebia educação privada de prestigiados preceptores, como mostrado no diálogo entre Pepino e Alcuíno.
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Este documento discute a literatura medieval como uma fonte reveladora da educação e da vida na sociedade feudal. A literatura dos diferentes estratos sociais reflete os valores cristãos dominantes e a educação estava centrada na Igreja. A nobreza recebia educação privada de prestigiados preceptores, como mostrado no diálogo entre Pepino e Alcuíno.
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Literatura e Histria na Educao Medieval

Literature and History in the Medieval Education


Ana Aparecida Arguelho de SOUZA 1

Recebido no dia 12-05-2011

Resumo: Trata este artigo de uma anlise da literatura medieval como


linguagens que, expressando um perodo da histria, so extremamente
reveladoras da vida e da educao dos homens, em uma sociedade marcada
pelo sinete da Igreja Catlica. por todas as formas e modalidades de
linguagem que apreendemos o longo caminhar da Humanidade na construo
da Histria. Neste caso, trataremos de textos da literatura medieval oriundos de
diversos extratos da sociedade feudal como expresses das possibilidades
pedaggicas de formao do homem nessa sociedade.

Abstract: The current article presents an analysis of medieval literature, as


languages that express a period in the history and thus reveal real life and
education in a society characterized by the Catholic church seal. Through all
forms and modalities of language that we learnt the long development of
humanity in the history construction and in this case, we will deal with texts of
medieval literature from several extracts of feudal society as expressions of
pedagogical possibilities of human development in such a society.

Palavras-chave: Literatura Histria Educao Linguagens Sociedade.

Keywords: Literature History Education Languages Society.

***

I. Introduo

O tema aqui discutido objeto de pesquisa realizada no interior da


Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, registrada na Pr-Reitoria de
Pesquisa e Ps-Graduao. A pesquisa desenvolve-se por demanda de
contedos ministrados nas disciplinas Itinerrios Culturais e Educao e

1
Professora da UEMS. Doutora em Literatura pela UNESP/Assis-SP. E-mail:
[email protected]
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
As relaes entre Histria e Literatura no Mundo Antigo e Medieval
Las relaciones entre Historia y Literatura en el Mundo Antiguo y Medieval
Relations between History and Literature in Ancient and Medieval World
Jun-Dez 2011/ISSN 1676-5818

Sociedade, no curso de Pedagogia da unidade de Campo Grande/UEMS. A


metodologia fundamental do curso a leitura dos clssicos, como
possibilidade de compreender a natureza histrica do homem, suas aes e
sua educao. Essa metodologia demandou de nossa parte uma intensa busca
sobre textos clssicos da literatura antiga, medieval e moderna que revelassem,
em seu contedo, componentes pedaggicos capazes de provocar um salto
qualitativo na ao docente.

Nesse sentido, temos realizado levantamentos e sistematizado fontes que


revelam como e por quais instrumentos se processou a formao dos homens
ao longo da histria e como a literatura foi imprescindvel nesse processo.
Este artigo constitui um esforo de indicar e analisar historicamente, parte
dessa literatura que, ao longo da Idade Mdia, contribuiu para a formao do
homem medieval e permitiu aos modernos a recuperao de uma histria da
educao assentada em textos clssicos.

Delineamos a guisa de introduo um rpido painel do que foi a Idade Mdia


como o perodo compreendido entre, mais ou menos, a segunda metade do
sculo V at a primeira metade do sculo XV. Tal designao trazida pela
historiografia indica a civilizao que se ergueu na Europa sob o comando dos
telogos e de uma nobreza nascida da miscigenao entre o ocidente e o
oriente, no processo que assinalou o declnio do Imprio Romano, marcado
pelas invases de povos que ainda no haviam entrado no processo
civilizatrio, por isso denominados brbaros.

A desagregao da escravido foi sucedida pela afirmao de uma nova forma


do trabalho, a servido. Do ponto de vista da base material, o modo de
produo feudal caracterizou-se por uma economia essencialmente agrria,
assentada no trabalho do servo, que retirava da terra seu sustento e o do
senhor feudal. Este constitui o elemento fundamental da nobreza por deter a
posse das terras e dos instrumentos essenciais produo. Em torno da
propriedade da terra e dos privilgios que ela encerrava formou-se a classe dos
senhores feudais. Da mesma forma que na sociedade escravista, a classe
proprietria feudal contava com a guerra para engrossar o peclio
proporcionado pela explorao do trabalho servil.

A arquitetura social desse perodo , pois, constituda pelos servos, pelo clero
e pela nobreza, essas duas ltimas classes exercendo um domnio hegemnico
sobre a Europa crist, visto que do interior da nobreza que saem os
dirigentes da Igreja Catlica e, tambm, uma das instituies mais expressivas
do perodo, que a Cavalaria, da qual as Cruzadas so a melhor expresso.
6
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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Tratam de empreendimentos coletivos de carter econmico e poltico, que


vo sofrendo um processo de cristianizao.

No feudalismo, o conhecimento e a prpria diviso do trabalho so fundados


na vontade divina, de sorte que, revoltar-se contra a ordem estabelecida se
colocar diretamente contra Deus. o primado da F sobre a Razo,
sustentado pela concepo geocntrica de universo e justificado pelas
verdades bblicas, que colocam Deus na origem de todas as coisas e o homem,
seu semelhante, no centro do Universo. A populao medieval partilhava de
um lao comum e transcendente: a f crist. A Europa medieval acabou se
tornando uma federao quase ideal sob a suserania do Papa de Roma. O
oponente constante traduzia-se nas foras de outra poderosa f, o Isl.
Durante sculos, a lei de Maom controlou a Espanha, por exemplo, s
devolvendo a pennsula reconquista crist pelo fim da Idade Mdia.

No prprio interior da sociedade feudal comea surgir a negao do modo


feudal de produzir a vida, o aparecimento dos burgos, pequenas cidades nas
quais se desenvolve o comrcio, em decorrncia da produo de excedentes
possibilitada por certo grau de desenvolvimento tecnolgico, ainda que
incipiente, e a conseqente ampliao da produo agrcola. A essas
inovaes tcnicas, que tornou possvel a produo de excedentes destinados
a trocas comerciais, soma-se o crescimento demogrfico, que acarretou o
aumento numrico da fora de trabalho. Tais fatores combinados permitiram
a liberao de parte da populao para ocupar-se com atividades econmicas
no vinculadas diretamente a terra como o artesanato, cuja produo
mercantil (para fins de troca) constitui forte elemento de desagregao das
formas feudais de produo e comea a dar a forma do novo modo de
produo, o capitalismo.

II. A educao do homem medieval

Os produtos culturais dos tempos medievais, especialmente sua literatura so


extremamente reveladores da sua formao social e de sua educao. Sendo o
universo medieval composto por estratos distintos, nada mais natural que
distintas modalidades de educao se delineassem no interior desse tipo de
sociedade. Assim, vamos encontrar elementos prprios da educao de cada
um dos estratos que compem o painel da sociedade medieval, entrevistos
nos seus mais significativos textos. Todos esses elementos giram em torno de
um centro irradiador dos valores e comportamentos do homem feudal: esse
centro Deus, tal como a Igreja Catlica Feudal como fora soberana o
concebeu e delineou, ao longo dos sculos em que ela dominou a Europa
7
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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nascente, aps a derrocada do Imprio Romano do Ocidente. Diferentemente


do que ocorreu no Mundo Antigo, que cultuava vrios deuses, na Idade
Mdia, um nico deus foi considerado o princpio e o fim de todas as coisas.
O homem foi concebido sua imagem e semelhana e todo o seu
comportamento deveria conduzi-lo a uma s finalidade: a de amar e servir a
Deus em vida para desfrutar da sua glria, no Paraso, aps a morte. A
desobedincia s leis divinas o faria purgar no Inferno para toda a eternidade.
Essas leis foram todas definidas pela Igreja Catlica, com base nas tradies
judaica e grega, adaptadas s necessidades de domnio da Igreja sobre a
sociedade como um todo. De modo que, observa-se em todos os textos
medievais, qualquer que seja a faco da sociedade que o tenha produzido,
eles estaro sempre contagiados por esse iderio religioso.

III. A literatura reveladora da preceptoria

Em relao educao da nobreza, parte significativa dela era realizada por


meio de preceptoria. Os preceptores eram sbios de grande prestgio,
contratados para irem ao palcio e ministrarem aulas individuais s crianas e
jovens da nobreza. Uma importante noo de educao desse estrato social,
que constitui mesmo o seu fundamento e que confirma as afirmaes
anteriores, nos chega atravs do Dilogo entre Pepino e Alcuno.2 Trata-se de uma
aula na qual Alcuno, mestre de grande prestgio e preceptor de Pepino, filho
de Carlos Magno, trava com este um dilogo acerca de inmeros temas, por
onde se pode vislumbrar, nitidamente, a concepo de homem e de mundo da
Idade Mdia. Perguntado pelo aluno sobre o que o corpo, o mestre
responde que a morada da alma; a vida a expectao da morte e o homem
servo da morte. Isso porque a verdadeira vida dos homens ele a viver no
cu.

Entretanto, Anbal Ponce, historiador da educao que trabalha na perspectiva


de apontar as contradies entre as classes antagnicas que compe a Idade
Mdia, isto , nobreza e servido, v essa questo de outro modo: Enquanto
o servo sofria sob seu senhor, o cristianismo proclamava que eles eram iguais
diante de Deus. Descoberta maravilhosa que respeitava o status quo terreno,
enquanto no chegava o dia de alter-lo, mas no cu.3

2
LAUAND, Luiz Jean. (org. e trad.) Educao, teatro e matemtica medievais. So Paulo:
Perspectiva, 1986, p. 79-88.
3
PONCE, Anbal. Educao e luta de classes. So Paulo: Cortez, 1985, p. 87.
8
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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Outro texto que elucida como deveria ser o comportamento do nobre, na


infncia, o Manual para o meu filho4, escrito por Dhuoda, me de Guilherme e
esposa de Bernardo, duque de Septimnia, entre os anos 841 e 843. Pelo
Estudo Introdutrio do seu tradutor, sabe-se que o mais antigo tratado
francs sobre educao. Os manuais eram considerados espelhos, gnero
literrio que traa o retrato de um ideal moral: Encontrars, filho, neste livro
um espelho em que poders contemplar a sade de tua alma. A autora
mulher e leiga e o manual no se reduz apenas a um tratado de moral ou
espiritualidade, mas vai alm, visando formao de um gentleman. Como de
se esperar, todas as lies esto voltadas para Deus.

Sobre o contedo do manual, Dhuoda fala do amor e da busca de Deus, da


sua grandeza e sublimidade, do mistrio da Trindade e das virtudes teologais,
dando nfase caridade. Aponta deveres, vcios, virtudes e tribulaes que
ameaam o homem e de como estas no devem impedi-lo de dar glria a
Deus. Ensina o caminho para se atingir a perfeio e aponta o duplo
nascimento (carnal e espiritual) e a dupla morte (temporal e terrena) que
atestam a natureza humano-divina do homem. Nesse sentido, a tradio
grego-latina do heri, meio homem e meio deus, que produto de sua filiao
aos deuses, substituda pela filiao do homem a um s deus. O trecho a
seguir, extrado do livro de Dhuoda, ilustrativo da concepo de moralidade
e virtudes do homem medieval. Diz respeito ao captulo VI do livro e retrata o
Salmo 14, recolhido pela autora para ilustrar ao filho a perfeio humana, cuja
transcrio se segue:

Eu te mostro como tu podes ser esse homem perfeito com a ajuda de Deus.

A resposta : Tal homem aquele que: anda sem mancha; pratica a justia; fala
a verdade; em cuja lngua no h dolo nem engano; no faz mal ao prximo;
no jura para o enganar; no empresta dinheiro com usura; no recebe presente
para condenar um inocente; suporta com pacincia as injustias que lhe so
feitas; mantm suas mos inocentes.5

Por esses preceitos, podem-se vislumbrar, igualmente, as virtudes desejadas


para a nobreza feudal, temente a Deus, cujos princpios aliceram a sua
educao.

IV. A literatura reveladora da educao do cavaleiro

4
LAUAND, Luiz Jean. (trad.) Manual para o meu filho. So Paulo: Perspectiva, 1986, p. 127-
136.
5
Ibid., p. 132.
9
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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Outra expressiva literatura que serve de fonte para compreendemos a


educao dos medievos diz respeito aos textos que tratam da Cavalaria,
escritos pelos prprios cavaleiros, como o caso de Raimundo Llio,
proprietrio de terras e prximo nobreza. Ele define a cavalaria, cujo ofcio
manter e defender a santa f catlica6 e explica, no Livro de Ordem de
Cavalaria, escrito entre 1279-1283, o ritual de iniciao ao qual os filhos da
nobreza eram submetidos, como condio de pertena condio de
cavaleiro. O livro compe-se de prlogo e sete captulos que tratam da
instituio cavalaria, desde sua origem, em que o cavaleiro surge como um
enviado de Deus para colocar ordem no mundo; o cavalo teria sido escolhido
para servir ao homem por ser o mais veloz e o que suporta maior carga de
trabalho; e as armas escolhidas seriam as mais nobres e mais convenientes
para o combate e para defender o homem das feridas e da morte. Do oficio
do cavaleiro, o texto ensina:

Tanto nobre coisa o ofcio de cavaleiro que cada cavaleiro deveria ser senhor
e regedor de terra; mas, para os cavaleiros, que so muitos, no bastam as
terras. E, para significar que um s Deus senhor de todas as coisas, o
imperador deve ser cavaleiro e senhor de todos os cavaleiros; mas, porque o
imperador no poderia por si manter e reger todos os cavaleiros, convm que
tenha abaixo de si reis que sejam cavaleiros, para que o ajudem a manter a
ordem de cavalaria. E os reis devem haver abaixo de si condes...7

Do texto deduz-se a importncia dessa Ordem para a Idade Mdia, pois


cavaleiro era, ao mesmo tempo, o imperador, que tinha sob seu comando reis
cavaleiros e outros graus de nobreza e cavalaria, at o ltimo grau que era o
cavaleiro de um s escudo, ou seja, aquele menos possuidor de bens, mas
ainda assim, nobre. Ser nobre era a condio para pertencer Cavalaria. O
filho de um campons, se armado cavaleiro, seria desonroso para a Ordem.

Cada cavaleiro possua seu escudeiro que, em momento oportuno, passava


por um exame para ser considerado apto ou no ao ofcio de cavaleiro. O
exame constava de exigncias para pertencer ordem, que se iniciava pelo
temor a Deus, honra, coragem. Outra exigncia dizia respeito idade para se
fazer cavaleiro. O ideal que o escudeiro fosse jovem porque, se criana,
corria-se o risco de esquecer os ensinamentos; se idoso seria fraco, o corpo
dbil e, portanto, imprprio para as grandes batalhas.

6
RAMON LLULL O Livro da Ordem de Cavalaria (apres. e trad. de Ricardo da Costa). So
Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Cincia Raimundo Llio, 2010, p. 23. Internet,
http://www.ricardocosta.com/textos/livrocav.htm
7
Ibid., p. 25-26.
10
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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Em funo da instituio cavalheiresca, a educao do corpo muito


valorizada. Segundo o professor Janio Costa8, uma vez admitido como
escudeiro de um senhor, o jovem aristocrata passava por sucessivas iniciaes
at ser armado cavaleiro. A arte da cavalaria continha basicamente tudo o que
a nobreza considerava necessrio aprender para o bom exerccio de suas
atividades. A fora fsica, a habilidade com o arco e com a flecha, a boa
empunhadura da espada e do escudo e a preciso na conduo do cavalo,
desde o modo correto de mont-lo, espore-lo, at a composio da
armadura, foram algumas das qualidades requeridas pela cavalaria e, como tais,
compuseram a cultura corporal do homem feudal.

Complementava a formao do cavaleiro o aprendizado do xadrez e da


poesia, como formas de adorno. Distantes do apelo esttico caracterstico da
cultura pag antiga, os senhores feudais exercitaro o corpo apenas e na
medida da habilitao exigida pelo bom combate. Coerentes com a doutrina
crist condenaro a exposio demasiada do corpo, bem como a exercitao
pela exercitao. ilustrativo dessa educao corporal que incide sobre os
cuidados fsicos, obrigaes e tarefas prticas do cavaleiro, o seguinte excerto:

A cincia e a escola da Ordem da Cavalaria que cavaleiro faa que se ensine


cavalgar seu filho j em sua juventude; pois, se o infante em sua juventude no
aprender a cavalgar no poder aprender em sua velhice. E ao filho do
cavaleiro convm que enquanto escudeiro, saiba cuidar do cavalo. E ao filho
de cavaleiro convm que antes seja sdito que senhor, e que saiba servir ao
senhor, pois de outra maneira no conheceria a nobreza de seu senhorio
quando fosse cavaleiro. E por isso o cavaleiro deve submeter seu filho a outro
cavaleiro para que aprenda a cortar9 e a se guarnecer10 e as outras coisas que
pertencem honra da cavalaria.11

Todavia, dada a distino dessa classe social de que se origina a instituio


cavalheiresca, imprescindvel, alm da educao do corpo, a da mente, como
ilustra esta passagem, tambm, do Livro da Ordem de Cavalaria:

Assim como os juristas e os mdicos e os clrigos ouvem nas cincias e livros a


lio e aprendem seu ofcio por doutrina de letras, to honrada e alta a
Ordem de Cavalaria que no to somente basta que ao escudeiro seja ensinada
a Ordem de Cavalaria para cuidar do cavalo, nem para servir senhor, nem para

8
COSTA, Jnio. A educao do corpo. In: SOUZA, Ana A. Arguelho de (org.). Referencial
Curricular para o Ensino Mdio de Mato Grosso do Sul SED/MS. Campo Grande MS, 2004.
p. 131.
9
No sentido de esgrimir (nota do trad.).
10
No sentido de ser aparelhado, dotado de guarnio (nota do trad.).
11
RAMON LLULL. Ibid, p. 19.
11
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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ir com ele aos feitos de armas nem para outras coisas semelhantes a estas;
como ainda seria coisa conveniente que o homem da Ordem de Cavalaria
fizesse escola, e que houvesse cincia da Cavalaria escrita em livros e que fosse
arte ensinada, assim como so ensinadas as outras cincias; e que os infantes
filhos dos cavaleiros, em seus princpios, que aprendessem a cincia que
pertence Cavalaria, e s depois fossem escudeiros e andassem pelas terras
com os cavaleiros.12

Ramon Llull escreveu tambm a Doutrina pueril por volta de 1274, e dedicou-a
a seu filho.13 Trata-se de um testemunho pedaggico de inestimvel valor.
Atravs dele podemos ter uma noo de como as crianas eram educadas
antes de serem encaminhadas na vida, no caso, para a cavalaria ou para o
monacato. O livro compe-se de um Prlogo e treze captulos, ao longo dos
quais todos os ensinamentos giram em torno de Deus e dos preceitos da igreja
catlica. A seguir, um extrato da obra elucidativo do seu carter pedaggico:

Deus deseja que trabalhemos e pensemos em servi-Lo, pois a vida breve e a


morte se aproxima de ns todos os dias. Por isso a perda de tempo deve ser
muito odiosa. Logo, no princpio o homem deve mostrar a seu filho as coisas
que so gerais no mundo para que ele saiba descer at as especiais, e que o
homem faa seu filho soletrar, em lngua vulgar, o princpio que aprendeu, de
tal modo que ele entenda o que soletrou. E depois convm que lhe seja
ensinada a construo gramatical naquele mesmo livro, que deve ser trasladado
depois para o latim porque ele no entenderia o latim antes. [...] No princpio
convm que o homem faa seu filho aprender os 14 artigos da Santa f
catlica, os 10 mandamentos que Nosso Senhor Deus deu a Moiss no
deserto, os 7 sacramentos da Igreja e os outros captulos seguintes. [...]
conveniente que o homem mostre a seu filho a forma de cogitar a glria do
Paraso e as penas infernais e os captulos que esto contidos neste livro, pois
atravs de tais cogitaes, a criana se acostumar a amar e temer a Deus,
conforme os bons ensinamentos.14

12
Ibid, p. 21.
13
Para o tema, ver COSTA, Ricardo da. Reordenando o conhecimento: a Educao na
Idade Mdia e o conceito de Cincia expresso na obra Doutrina para Crianas (c. 1274-1276)
de Ramon Llull. In: OLIVEIRA, Terezinha (coord.). Anais Completos da II Jornada de
Estudos Antigos e Medievais: Transformao Social e Educao. Universidade Estadual de Maring,
2002, p. 17-28. Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/reordenando.htm; COSTA,
Ricardo da. A Morte e as Representaes do Alm na Idade Mdia: Inferno e Paraso na
Doutrina para crianas (c. 1275) de Ramon Llull. In: SANTOS, Franklin Santana (org.). A
Arte de Morrer - Vises Plurais - Volume 3. Bragana Paulista, SP: Editora Comenius, 2010, p.
118-134. Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/morte.htm.
14
RAMON LLULL. Doutrina para crianas (c. 1274-1276). Alicante, Espanha:
Marfil/IVITRA, 2009 (Ricardo da Costa e Grupo de Pesquisas Medievais da UFES III). Internet,
http://www.ivitra.ua.es/RicardoCosta/Llull2.pdf.
12
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Significativas manifestaes culturais que tambm devem ser consideradas na


compreenso da educao do cavaleiro so as Novelas de Cavalaria, relatos
oriundos das canes de gesta, isto , narrativas annimas, de tradio oral,
que contavam aventuras de guerra vividas nos sculos VIII e IX, durante o
Imprio Carolngio e que, posteriormente foram transcritas para a prosa.
Dentro de um esprito mstico e simblico, prprio da poca, as Novelas de
Cavalaria exprimem as virtudes e valores dos cavaleiros, seus compromissos
sociais, a concepo de mulher prpria da poca e a forma do amor corts.

Do ponto de vista educativo, ilustram esse esprito e virtudes, especialmente,


as novelas que compem o ciclo arturiano. Tratam da corte do Rei Artur e os
Cavaleiros da Tvola Redonda, verdadeiros cdigos de conduta medieval e
cavalheiresca. Segundo as tradies clticas da Idade Mdia, Artur, o
personagem lendrio e rei de Gales, instituiu no sculo V, seguindo os
conselhos do feiticeiro Merlin, uma ordem de cavalaria chamada de Tvola
Redonda, porque seus cavalheiros se reuniam em volta de uma tvola (mesa)
redonda, para tomar decises polticas.

Os feitos desses cavaleiros esto contados em cinco novelas, das quais faz
parte a Demanda do Santo Graal, de cunho mstico e simblico, oriunda de
lenda de remotas origens celtas, que gira em torno da procura, pelos
cavaleiros da tvola redonda, do santo graal (clice sagrado), smbolo da
consagrao de uma vida inteira dedicada ao culto de virtudes morais,
espirituais e fsicas.

Novela de alto rigor narrativo e de elevada inteno, acabou por ser o retrato
definido da Idade Mdia mstica, e o maior monumento literrio que a poca
nos legou no campo da fico, porquanto traduz um soberbo ideal de vida,
expresso de forma artisticamente superior, a ponto de alcanar um grau de
aperfeioamento esttico no muito freqente na prosa do tempo.15

A Demanda representa a reao da Igreja Catlica contra o desvirtuamento da


Cavalaria, pois que, com o passar do tempo, muitos cavaleiros vo se
degradando e se transformando em bandoleiros armados e sem nenhuma
ocupao. Segundo Moiss, isso tenta ser corrigido no Conclio de Clermont,
em 1095, por meio da organizao da primeira Cruzada, que corresponde
formao da cavalaria genuinamente crist. Diz o autor que a novela, no
interior desse movimento renovador do esprito cavalheiresco, coloca a
cavalaria, no mais a servio do senhor feudal, mas da salvao sobrenatural
do cavaleiro; e que uma brisa de teologismo varre-a de ponta a ponta.

15
MOISS, Massaud. A literatura portuguesa. So Paulo, Cultrix, 1966, p. 38.
13
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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V. O texto teatral como instrumento pedaggico

Em relao ao teatro da Idade Mdia, o professor Julio Feliz16 mostra que o


espao cnico o da Igreja e os temas contemplam motivos religiosos. As
encenaes tm carter pedaggico, no sentido que ensinam normas morais e
informam sobre a doutrina bblica. Em Portugal e Espanha os dramas
religiosos eram denominados de autos, e tinham a tarefa de oferecer diverso
ao povo, mas principalmente, ensinar os preceitos da religio, falando da vida
de Cristo e dos santos. Gil Vicente, dramaturgo portugus autor de vrios
autos de f.

Um exemplo bem visvel, tanto da oratria a servio da pedagogia, como da


recorrncia da Igreja filosofia grega, o teatro da monja Rosvita de
Gandersheim, beneditina do sculo X. Trata-se da pea teatral, Sabedoria,
extremamente educativa, pois discute as virtudes teologais da f, esperana e
caridade, simbolizadas na figura de trs jovens. Esse tipo de drama sagrado
teve sua origem nos conventos beneditinos e os atores eram os prprios
padres e clrigos, como atesta a pea de Rosvita.

Um misto de supersties e crenas ingnuas, extremamente reveladoras do


mundo diferente e inesperado da Idade Mdia, a pea , no entanto,
desconhecida do pblico. O tradutor, Jean Lauand, inclusive, no Estudo
Introdutrio, atribui esse desconhecimento mais ao preconceito da academia
com a Idade Mdia, do que inacessibilidade do latim ou ingenuidade do
enredo. Afirma o tradutor, que a pea de extrema importncia para a histria
do teatro, pois trata-se de nada menos do que o restabelecimento da
composio teatral no Ocidente.17

O precioso estudo introdutrio de Lauand revela importantes elementos para


a compreenso de como se processou a educao medieval. Primeiramente, a
confirmao de como a Igreja adaptou a cultura dos antigos aos seus prprios
interesses. Rosvita afirma que no se furtar a compor um teatro novo
baseado em Terncio, mas assentando em valores da igreja. Tambm, na
composio das personagens, ntida a articulao da cultura medieval crist
com a filosofia grega. A personagem principal Sabedoria, uma ntida
referncia sophia (sabedoria) dos gregos. As trs filhas de Sabedoria so
respectivamente, a F, a Esperana e a Caridade, ou seja, as trs virtudes

16
FELIZ, Julio. Teatro e Msica. In: SOUZA, Ana A. Arguelho de (org.). Referencial
Curricular para o Ensino Mdio de Mato Grosso do Sul SED/MS. Campo Grande MS, 2004,
p. 125.
17
LAUAND, Luiz Jean, Ibid.
14
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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Las relaciones entre Historia y Literatura en el Mundo Antiguo y Medieval
Relations between History and Literature in Ancient and Medieval World
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teologais, clara demonstrao da filiao da Igreja filosofia grega. Todavia,


Rosvita no pretende seguir a tradio profana seno recomp-la numa
perspectiva crist, adaptando o teatro a uma pedagogia ilustrativa da histria
dos mrtires do cristianismo. Eis aqui um excerto demonstrativo do teor da
pea (com as personagens, Antoco, acusador das mulheres; o imperador
Adriano e Sabedoria):
Cena II

AANT.: Como te chamas, estrangeira!


SAB.: Sabedoria.
ANT.: O Imperador Adriano ordena que compareas ao palcio em sua
presena.
SAB.: No tenho receio de, na nobre companhia de minhas filhas, ir ao palcio
e no tremo ante a ameaa de defrontar-me cara a cara com o Imperador.
ANT.: A odiosa raa dos cristos est sempre pronta a resistir s autoridades.
SAB.: Aquele que governa todas as coisas, Aquele que no conhece derrota
no permite que os seus sejam vencidos pelo inimigo.
[...]
ADR.: Ilustre matrona, com bons modos convido-te a dar culto aos deuses,
para que possas gozar de nosso favor.
SAB.: No pretendo de modo algum prestar culto a teus deuses, nem morro de
vontade de ganhar o teu favor.
[...]
ADR.: Pareces ser de alta estirpe, mas quero saber com mais exatido tua
ptria, tua famlia e teu nome.
SAB.: Embora a altivez do sangue seja entre ns de pouca importncia, no
entanto, no nego ter uma origem ilustre.
ADR.: O que no me surpreende.
SAB.: Pois, de fato, foram meus pais os mais eminentes gregos e meu nome
Sabedoria.18

A pea prossegue com o martrio at a morte das trs jovens, que no se


rendem ao culto do imperador romano, e com o desejo de Sabedoria de ver-se
livre do seu prprio corpo para ir ao encontro das filhas na glria do cu, que
recebe a todos os que morrem por no negar a Cristo. Do ponto de vista da
pedagogia, o texto uma metfora singela da luta travada pelos primeiros
cristos para fazer valer a doutrina de Cristo e, nesse sentido, e a grande lio
que a pea de Rosvita nos d que ela permite perceber que toda nova
civilizao no se impe, seno pela luta, que tem nesses casos alto teor
pedaggico.

18
Ibid, p. 47-49.
15
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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VI. A pedagogia das cantigas trovadorescas

As cantigas trovadorescas constituem importante testemunho histrico da


vida dos medievais, representativas do povo, de sua forma de conceber a vida,
o amor e seus vcios. Nesse sentido, algumas carregavam em si uma
pedagogia, na medida em que reproduziam e sedimentavam valores e
comportamentos da sociedade medieval. Trata-se de canes singelas cantadas
com acompanhamento de instrumentos (alade, flauta, viola, gaita etc.). Quem
escrevia e cantava essas poesias musicadas eram os jograis e os trovadores.
Mais tarde, as cantigas foram compiladas em Cancioneiros. Os mais
importantes Cancioneiros portugueses dessa poca so o da Ajuda, o da
Biblioteca Nacional e o da Vaticana.

Sobre a natureza dessas Cantigas, elas so expresses coletivas que vieram


atravessando geraes at constituir valioso patrimnio que, por sua forma e
seus temas, atestam a singularidade e o encanto do perodo medieval. Em
Portugal, o marco inicial do chamado trovadorismo data da primeira cantiga
feita por Paio Soares Taveirs, provavelmente em 1198, intitulada Cantiga da
Ribeirinha.

As cantigas eram cantadas no idioma galego-portugus e dividem-se em dois


tipos: lricas (de amor e de amigo) e satricas (de escrnio e mal-dizer). As do
primeiro grupo eram cantadas no Pao e nas praas. As do segundo grupo,
utilizadas nas ruas e prostbulos, por soldados e gente de muito baixo calo.

As Cantigas de amor tiveram origem em Provena, regio da Frana, e foram


veiculadas nos eventos religiosos e nos contatos entre as cortes. Tratam,
geralmente, de um relacionamento amoroso, em que o trovador canta seu
amor a uma dama, normalmente de posio social superior, inatingvel.
Refletindo a relao social de servido, o trovador roga a dama que aceite sua
dedicao e submisso.

As Cantigas de amigo eram escritas do ponto de vista feminino. Quem falava era
a mulher e no o homem. O trovador procurava mostrar o outro lado do
relacionamento amoroso o sofrimento da mulher espera do namorado
(chamado amigo), a dor do amor no correspondido, as saudades, os
cimes, as confisses da mulher a suas amigas, etc. Os elementos da natureza
esto sempre presentes, alm de pessoas do ambiente familiar, evidenciando o
carter popular da cantiga de amigo.

16
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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Nas Cantigas satricas, os trovadores preocupavam-se em denunciar os falsos


valores morais vigentes, atingindo todas as classes sociais: senhores feudais,
clrigos, povo e at eles prprios. Geralmente, tratavam de personalidades da
poca, numa linguagem popular e muitas vezes obscena. Nas Cantigas de
escrnio, a crtica era indireta e irnica; e nas Cantigas de maldizer a crtica era
direta e mais grosseira. Muito da alma do povo se apreende nessas cantigas.

VII. As hagiografias como modelos de virtude

A vida dos santos, na Idade Mdia ensejou outro tipo de literatura conhecida
como hagiografia. Ensina Frazo19 que o termo hagiografia utilizado, desde o
sculo XVII, momento em que se iniciou o estudo sistemtico e crtico sobre
os santos, sua histria e culto, para designar esse novo ramo do conhecimento
como o conjunto de textos que tratam de santos com objetivos religiosos.

So considerados textos de natureza hagiogrfica os martirolgios,


necrolgios, legendrios, revelaes (vises, sonhos, aparies, escritos
inspirados, etc.); paixes, vidas, calendrios, tratados de milagres, processos de
canonizao, relatos de trasladao e elevaes, j que possuem como
temtica central a biografia, os feitos ou qualquer elemento relacionado ao
culto de um indivduo considerado santo, seja um mrtir, uma virgem, um
abade, um monge, um pregador, um rei, um bispo ou at um pecador
arrependido.

A literatura hagiogrfica crist iniciou-se ainda na Igreja Primitiva quando, a


partir de documentos oficiais romanos ou do relato de testemunhas oculares,
eram registrados os suplcios dos mrtires. Porm, a hagiografia desenvolveu-
se e consolidou-se na Idade Mdia, com a expanso do cristianismo e a
difuso do culto aos santos. Durante o Medievo, ainda segundo Frazo, foi
produzida uma grande quantidade de hagiografias, que possuam carter
privado, sendo redigidas principalmente pelos eclesisticos.

Do ponto de vista da educao, as hagiografias difundiam as aes dos santos


enquanto eles ainda estavam na terra, como exemplos de vida virtuosa. Isso
acarretava para os mosteiros que os tinham como patrono, ofertas e doaes,
diz Frazo. As hagiografias eram utilizadas tanto para uso litrgico como para
leitura privada; ou como textos de escola com o fito de instruir e edificar os
cristos na f e divulgar os ensinamentos oficiais da Igreja. Desta forma, tais

19
Todas as informaes aqui contidas sobre hagiografia so da Prof DrAndria Cristina
Lopes Frazo da Silva. Internet, http://www.ifcs.ufrj.br/~frazao/hagiografia.htm
17
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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textos eram importantes veculos para a propagao de concepes teolgicas,


modelos de comportamento, padres morais e valores.

VIII. A literatura e a educao monstica

No obstante a cavalaria ser uma instituio das mais expressivas da Idade


Mdia, a Igreja a instituio que nesse perodo deteve o poder poltico e o
monoplio de toda a cultura ocidental. Nada mais natural, ento, que as
primeiras escolas medievais se desenvolvessem nessas instituies.
Desaparecidas as escolas pags, a Igreja se apressou em tomar em suas mos a
instruo pblica.

As escolas monsticas e os monastrios catlicos cumpriram uma importante


funo civilizatria no interior da sociedade medieval. Segundo Janio Costa
foram os mosteiros que, uma vez reunidos e organizados de modo
centralizado, deram origem s ordens e congregaes catlicas.20 Expressiva
igualmente da dura vida monacal e que nos d a medida da austeridade que
norteava a vida e a educao do clero nessas instituies so as Regras
Monsticas21, conjunto de normas que conferia direo e sentido vida
religiosa. Ao regrar o comportamento de seus membros, por meio de um
cdigo que era menos a prescrio da conduta correta do que daquela que
deve ser evitada, as regras dos monges se propunham a refinar as atitudes civis
do homem feudal:

Os mosteiros garantem a transmisso da cultura, a educao dos jovens que


lhes so confiados (oblati) e garantem tambm a passagem para alm daqueles
que faro profisso tardia (professio ad sacurrendum). Outros, plantados na solido
das florestas ou pntanos, traaro estradas, guiaro os viajantes, semearo,
arrotearo terrenos, extrairo o sal do mar e a riqueza de toda a criao, de
toda a criatura.22

Nessas escolas, a gramtica, a retrica e a dialtica eram as colunas mestras do


ensino, com contedos voltados aprendizagem de discursos e rplicas, alm
da redao de cartas, documentos e escritos de carter mercantil. Todavia,
prestado o exame de gramtica, geralmente, os alunos abandonavam a escola
para continuar a educao cavalheiresca, pois esta era, de longe, o que
empolgava os jovens.

20
COSTA, Jnio. A educao do corpo. In: SOUZA, Ana A. Arguelho de (org.).
Referencial Curricular para o Ensino Mdio de Mato Grosso do Sul SED/MS. Campo Grande
MS, 2004, p. 132.
21
MAGNO, So Baslio. As regras monsticas. Petrpolis: Ed. Vozes, 1983, p. 21-183.
22
LAPIERRE, apud COSTA, Jnio. Ibid, p. 132.
18
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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Convencionou-se categorizar as escolas monsticas em dois tipos: uma


destinada formao dos monges, as escolas para oblatas, em que se
ministrava a instruo religiosa necessria para a poca; e outra destinada
instruo das massas. Nessas escolas destinadas ao aldeo, no se ensinava a
ler nem a escrever. Sua finalidade no era instruir, mas familiarizar as pessoas
com as doutrinas crists. O tom do ensino ministrado era menos instruo e
mais pregao, pois o que importava era afastar do homem tudo o que
impedisse sua salvao. Isso inclua o conhecimento.

A propsito do cultivo de livros e do conhecimento, ilustrativo o Philobiblon,


escrito em 1344 pelo reverendo Richard de Bury, bispo de Durhan e chanceler
do rei Eduardo III. A obra riqussima para se compreender as contradies
do clero na sua relao entre a educao e a lngua. O autor, amante dos
livros, critica duramente os clrigos que no cultivam a leitura, chamando-os
de raa de vboras, ignorantes, grosseiros, ociosos e degenerados. Afirma,
personificando os livros, que se dirigem aos novos clrigos:

Da mesma forma, como estavam nus, semelhantes a uma tela que aguarda ser
pintada, os cobrimos com as mais belas vestes da filosofia a dialtica e a
retrica, que guardvamos zelosamente e com todo o cuidado [...] para
ocultar a nudez e a rudeza de sua inteligncia...23

A obra de Bury ilustra como as antigas geraes de clrigos se dedicavam aos


livros religiosos, como gastavam suas horas de cio dedicando-se a compor
manuscritos de textos sagrados, enquanto as novas geraes passam a se
entregar aos prazeres da bebida em vez de se dedicarem a reproduzir
manuscritos.

Ponce, por sua vez, mostra a rudeza das escolas destinadas ao clrigo seculares
e a alguns nobres que queriam estudar, mas no pretendiam tomar o hbito. O
exemplo tirado do Dirio, de Walafried Strabo, aluno da escola do
Monastrio de Reichenau, de 815 a 823, no qual o autor explica seus mtodos
de aprendizagem. No sabendo uma palavra de latim, Strabo aprendeu a ler
nessa lngua, sem compreender, portanto, uma s palavra do que lia. No de
espantar, portanto, que ele tenha achado muito estranho que se pudesse ler e,
ao mesmo tempo, compreender o que se lia, coisa que descobriu quando, um
dia, caiu-lhe nas mos um livro escrito nos seu idioma materno...24

23
BURY, Richard. Philobiblon. Traduo, apresentao e glossrio de Marcello Rollemberg.
Cotia, SP: Ateli Editorial, 2004, p. 44.
24
MESSER, apud PONCE, Anbal. Educao e luta de classes. So Paulo: Cortez, 1985, p. 92.
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COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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Se, todavia, possvel apreender em determinados autores esses aspectos


acima descritos, por outro lado, a historiografia nos d conta de apontar que a
educao do perodo medieval deriva de duas grandes correntes, a Patrstica e
a Escolstica, cujos representantes exemplares so Agostinho e Toms de
Aquino, respectivamente e suas obras monumentais. Nesse sentido, dos
textos teolgicos que se vai haurir os fundamentos, os preceitos e valores que
nortearam a educao do homem medieval, especialmente nesses dois
telogos.

A Patrstica a corrente educacional que cobre os primeiros sculos da Igreja


Medieval e corresponde ao perodo em que comeam os trabalhos dos
primeiros padres, quase todos eles educadores que procuraram conciliar a
cultura grego-romana com o cristianismo. O longo perodo em que se
desenvolve a cultura dos monastrios precede ao surgimento da escolstica,
movimento intelectual que cobre o sculo XII at a Renascena.

Santo Agostinho, filiado a Patrstica, escreveu a obra De Magistro25 em Cartago,


no ano 389. Segundo Rosa, o objetivo era a formao de Adeodato, seu filho
de 16 anos, dentro de slidos princpios religiosos, mas sem abrir mo da
cultura profana, que um vvido trao da Patrstica. Como a de Dhuoda e
Llullo, a obra procura educar, tendo como fim ltimo a salvao da alma.

Ainda segundo Rosa, o texto revela uma preocupao com a linguagem, seus
propsitos e intenes. Dentro da tarefa a que a Igreja Feudal se props, de
orientar os cristos, o tom do De Magistro o de que a palavra serve para
ensinar a verdade. Agostinho estabelece a diferena entre a palavra, as coisas e
o sentido das coisas. As palavras so sinais das coisas e esto carregados de
um sentido inspirado por Deus; por isso, s se aprende quando se reconhece a
verdade e esta interior; Deus confere mente a possibilidade de reconhecer
uma proposio como verdadeira. A concepo de linguagem de Agostinho
inscreve-se numa tradio platnica, em que a idia vem primeiro que as
coisas e sua nomeao. Atente-se, entretanto, para o fato de que Agostinho
ensina o filho a partir de um texto da Eneida, do profano Virglio e inmeras
so, igualmente, as menes filosofia grega.

Diferentemente de Agostinho, Abelardo, que viveu entre 1079-1142,


reescreveu a teoria da significao, entendendo que as palavras significam,
primeiro, as inteleces e, depois, as coisas. E que as primeiras sobrevivem s

25
AGOSTINHO. De magistro. In: ROSA, Maria da Glria. A histria da educao atravs dos
textos. So Paulo: Cultrix, 1993 p. 101-106.
20
COSTA, Ricardo da (coord.). Mirabilia 13
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ultimas.26 O significar inscreve-se em uma tradio aristotlica. Para


Aristteles, as palavras esto ligadas s coisas e remetem s inteleces. Todas
essas preocupaes com a linguagem decorrem de um nico fator: a palavra,
na forma de uma oratria cristianizada, instrumento por excelncia de
persuaso e submisso das massas ao iderio da Igreja.

O ideal pedaggico j no o orador leigo, o cidado dirigente, mas sim, o


orador sacro, que do plpito, pela pregao a todos os segmentos da sociedade,
o intelectual que ajuda a construir uma nova sociedade baseada nos
princpios do cristianismo.27

Abelardo, inclusive, tem a preocupao de tornar digervel a pregao,


substituindo palavras eruditas, de difcil entendimento por outras mais ao
alcance da compreenso dos fiis: Se queremos nos dirigir a eles, a fim de
doutrin-los, devemos ento procurar mais o uso que fazem das palavras que
a preciso delas....28 Como se pode observar, os textos dos telogos aqui
trazidos, de uma ou outra forma, revelam que a Igreja nunca abandonou de
fato a filosofia profana da Grcia. Apenas adaptou-a a seus interesses,
suprimindo alguns textos e mutilando outros, de forma a servir aos seus
propsitos.

A Escolstica representa o ltimo perodo do pensamento cristo, isto , da


constituio do sacro romano imprio brbaro, ao fim da Idade Mdia,
assinalado na historiografia com a descoberta da Amrica (1492). Este perodo
do pensamento cristo se designa com o nome de escolstica, porquanto era a
filosofia ensinada nas escolas da poca, pelos mestres, chamados, por isso,
escolsticos. As matrias ensinadas nas escolas medievais eram representadas
pelas chamadas artes liberais, divididas em Trivium Gramtica, Retrica,
Dialtica e Quadrivium Aritmtica, Geometria, Astronomia, Msica.29

So Toms de Aquino o ltimo grande representante da escolstica e da


prpria Igreja, antes que inicie a derrocada da Europa Medieval, e sem a

26
NEF, Frdric. A linguagem: uma abordagem filosfica. Rio de Janeiro: Zahar, 1995, p. 58.
27
ALVES, Gilberto Luis. A relao entre plano de estudos e sociedade a propsito de
uma abordagem histrica de currculo. In: Intermeio. Revista do Mestrado em Educao da
UFMS, Campo Grande, MS: Ed. da UFMS, n. 1, 1995, p. 46.
28
DE BONI, Luis Alberto. Filosofia Medieval: textos. Porto Alegre: EIPUCRS, 2000, p. 123.
29
MONGELLI, Lnia Mrcia. Trivium e Quadrivium - as Artes Liberais na Idade Mdia. So
Paulo: bis, 1999; COSTA, Ricardo da. Las definiciones de las siete artes liberales y mecnicas
en la obra de Ramon Llull. In: Revista Anales del Seminario de Historia de la Filosofa. Madrid:
Publicaciones Universidad Complutense de Madrid (UCM), vol. 23 (2006), p. 131-164.
Internet, http://www.ricardocosta.com/pub/ASHF0606110131A.pdf
21
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leitura do qual impossvel compreender, em seus fundamentos e em toda a


sua plenitude, esse perodo da histria comandado pelos telogos. Toms
pertenceu ordem dos Dominicanos, estudou em Paris, onde obteve o ttulo
de doutor em Teologia, em 1259. Produziu vrias obras, nas quais, mesmo
sem conhecer o grego, fundamentou-se na filosofia dos antigos, especialmente
em Aristteles, o qual foi, engenhosamente, cristianizado por ele.

A Smula contra os gentios (1996) exprime suas idias acerca da educao, pois
define o que entende ser o ofcio do sbio, isto , aquele que, na Idade Mdia
tem o papel de professor. Por meio da utilizao de uma habilidosa retrica,
Aquino converte a causa primeira, de Aristteles, em Deus; e define que em
Deus h duas espcies de verdades, algumas das quais so acessveis
inteligncia do homem e outras no. Por isso, a Igreja tomou para si a tarefa
de transmitir essas verdades por via da inspirao sobrenatural, cabendo ao
homem coloc-las como objetos de f. O fato de a Igreja tomar para si a
tarefa de ensinar, ou seja, de que a Igreja no deixe a busca do conhecimento
abandonada exclusivamente s foras da razo humana assim justificada:

Pois para se chegar a tal conhecimento exige-se uma longa e laboriosa busca, o
que impossvel para a maior parte dos homens, por trs motivos.

Primeiramente, certas pessoas so afastadas desta busca por ms disposies


de seu prprio temperamento, que as desviam do saber. [...] Para outros, o
obstculo constitudo pelos afazeres materiais. [...] Para outros, enfim, o
obstculo a preguia.30

A est colocada claramente a posio da Igreja Feudal como guardi da


verdade, que a levaria, sculos depois, j na sua decadncia, a deflagrar o
movimento da Inquisio levando fogueira os seus opositores.

Anteriormente, Toms de Aquino escrevera o seu De magistro, no qual ele j


procurava definir o papel do mestre em relao ao ato de ensinar. Entendia o
mestre como apenas um instrumento por meio do qual Deus veicula a
verdade ao homem. Por meio da argumentao assentada em Agostinho e
Bocio, vai definir que um homem no produz conhecimento em outro
homem, em razo de que a doutrina veiculada ao homem apenas estimula sua
mente para o conhecimento, ou seja, a torna receptvel a Deus, o verdadeiro
autor do homem e do conhecimento necessrio a ele.

30
SO TOMS DE AQUINO. Smula contra os gentios. So Paulo: Nova Cultural, 1996. p.
136.
22
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[...] se o homem fosse verdadeiramente mestre, necessariamente ensinaria a


verdade. Ora, quem ensina a verdade ilumina a mente, sendo ela o lume do
intelecto. Logo, o homem pelo ensino iluminar o intelecto; o que falso, pois
Deus quem ilumina todo homem que vem a este mundo (Joo, I, 9). Logo,
o homem no pode, na verdade, ensinar algum.31

Finalmente, com os ltimos tempos da escolstica, comea a ser revelada a


decadncia da teologia e da oratria e o endurecimento da Igreja perante o
novo momento que est sendo engendrado no interior dos burgos, que vir a
ser o novo modo de produo da vida, o capitalismo. O professor Gilberto
Luiz Alves afirma que, no perodo em que se desenvolveu a escolstica, a
Igreja centrava-se basicamente sobre a necessidade de reproduzir sua prpria
dominao e a educao catlica reduzira-se a um mero jogo verbal incuo,
propcio s mais disparatadas questes. A prpria verdade divina depositada
nos livros sagrados, diz, subtrada aos fiis e, na medida em que a burguesia
avana, os discursos dos telogos vo mergulhando no obscurantismo e no
apelo ao misticismo e fantasias que aterrorizam os fiis.

Nessa fase de decomposio da sociedade feudal, da mesma forma que nos


estertores do Imprio Romano, a verdade deixara de ter importncia em face
da necessidade, posta para os intelectuais catlicos, de justificar a manuteno
do poder econmico e poltico da igreja feudal.32

No seu esforo de conservao da sociedade, a igreja acionou a Inquisio; as


corporaes de ofcio engessaram, de forma monoplica, a economia da
Europa; e a aristocracia improdutiva tornou-se feroz na defesa de seus
privilgios. Tudo isso no foi suficiente para deter a marcha da histria, em
razo da natureza histrica de todas as questes humanas.

No tempo que antecede o surgimento de uma nova sociedade, tudo se torna


diludo, sem uma forma precisa: as instituies que representam a velha
sociedade, os valores que a sustentam, as leis que a regem. Isso acontece
porque as instituies, as leis, os valores, qualquer coisa que seja, so
construes humanas e, portanto, sociais.33

31
ROSA, Maria da Glria. A histria da educao atravs dos textos. So Paulo: Cultrix, 1993 p.
111.
32
ALVES, Gilberto Luiz. Ibid, p. 47.
33
SOUZA, Ana A. Arguelho de, e outros. Sobre(o)Viver de crianas e do adolescentes:
uma reflexo sobre o mtodo de pesquisa. In: Intermeio: revista do Mestrado em Educao da
UFMS. Campo Grande, MS: Ed. da UFMS, v.9, n.18, 2003, p. 113.
23
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IX. Consideraes Finais

Espera-se ter demonstrado quo contributiva foi a literatura medieval na


formao do homem nesse perodo histrico. Todavia, os infindveis
conflitos provocados pela ascenso da burguesia demonstram que o tipo de
conhecimento formulado pela sociedade feudal no atenderam mais s
necessidades advindas das profundas transformaes por que passou a
sociedade em sua base material. A ampliao do comrcio, o advento das
manufaturas, as invenes que revolucionam as relaes sociais, tudo o que a
burguesia definiu como necessrio para modificar o mundo e coloc-lo a seu
servio relegou essa literatura e o conhecimento nela contido ao
esquecimento, razo porque realizamos esse esforo de recuperar por meio da
anlise de textos medievais a compreenso desse perodo.

As manufaturas colocaram em marcha uma nova organizao do trabalho,


para o qual a teologia no mais foi suficiente para dar as respostas. Toda a
sociedade cristianizada pelos telogos foi posta em questo e a burguesia
definiu a cincia experimental como a nova forma de conhecimento advinda
da observao e transformao da natureza, que permitia fazer avanar o
trabalho manufatureiro. Este representou, nesse perodo, a possibilidade de
tirar da misria as massas famintas e depauperadas pela improdutividade das
terras e pelo empobrecimento da nobreza, entre outros fatores contribuintes
para a superao do feudalismo enquanto forma de vida possvel, porquanto
as relaes feudais de produo tornaram invivel o avano das foras
produtivas modernas.

Na pea Galileu Galilei, Bertolt Brecht registra, com engenho e arte, o que foi
de significativo esse perodo em que todas as verdades da Igreja medieval
foram, gradativamente, substitudas por um novo conhecimento, advindo de
um novo modo de produzir a vida.

Pois onde a f teve mil anos de assento, sentou-se agora a dvida. Todo
mundo diz: , est nos livros, mas agora ns queremos ver com nossos olhos.
As verdades mais consagradas so tratadas sem-cerimnia; o que era
indubitvel, agora posto em dvida. Em conseqncia, formou-se um vento
que levanta as batinas brocadas dos prncipes e dos prelados, e pe mostra
pernas gordas e pernas de palito, pernas como as nossas pernas. Mostrou-se
que os cus estavam vazios, o que causou uma alegre gargalhada. Mas as guas
da Terra fazem girar as novas rocas, e nos estaleiros, nas casas de cordame e de
velame, quinhentas mos se movem em conjunto, organizadas de maneira
nova.
[...]

24
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E a Terra rola alegremente em volta do Sol, e as mercadoras de peixe, os


comerciantes, os prncipes e os cardeais, e mesmo o papa, rolam com ela.34

No obstante a superao da Idade Mdia pela Moderna, com seus


experimentos, sua cincia, novos mtodos de investigao e de compreenso
da verdade, por meio da literatura de uma poca que se d vida histria
dos homens. Por meio da literatura recuperamos com quais instrumentos o
homem saiu da sua condio de habitante das cavernas para alcanar a
condio de humano e construir civilizaes. Nesse sentido, julga-se que
imperioso recuperar essa literatura clssica como forma de compreenso da
natureza histrica do homem e dos instrumentos que os tornaram humanos,
um dos mais significativos e pedaggicos, a literatura.

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