1983
AEscrita de Si
“Resa deo, Cops cert 05: Liatporat ever de 1983, ps. 8.2.
Como ese ll ft conserado pra una nora astute dos ements de
{ordae prnoren ena prea pia Bh Seu aa te de x
‘rei ea eobre a inersamentaidade, como ito Le eacerment de
Estas paginas fazem parte de uma série de estudos sobre
‘as artes de si mesmo", ou seja. sobre a estética da existéncia
0 dominio de ste dos outros na cultura greco-romana, nos
dois primeiros séculos do imperio,
‘A Vita Antoni de Atanasto apresenta a anotacio eserita das|
acdes e dos pensamentos como um elemento indispensavel &
vida ascétiea: “Eis uma coisa a ser observada para nos asse
‘gurarmos de nao pecar. Consideremos ¢ eserevamos, cada
tum, a8 agoes ¢ 0s movimentos de nossa alma, como para n0s
fazer mutuamente conhect-os, e estejamos certos de que, por
‘vergona de sermos conhecidos, detxaremvos de pocar, e nada
teremos de perverso no coracao, Pols quem, quando peca,
consente em ser visto e, quando pecou, nao prefere mentir
para esconder sua falta? Ninguém fornicaria diante de teste~
‘unas, Da mesma forma, escrevendo nossos pensamentos
‘como se devéssemos comuntca-los mutuamente, estaremos
‘mais protegidos dos pensamentos impuros, por vergonha de
‘e-los conhecidos. Que a escrita substitua o olhar dos compa
Inheiros de ascese: enrubescendo tanto por eserever quanto
por sermos vistos, abstenhamo-nos de qualquer mau pensa-
1069-ARsertade si 145;
‘mento. Disciplinando-nos dessa maneira, podemos fo
corpo & submissao e frustrar as armadilhas do inimigo
Aserita de i mesmo aparece aqui claramente em sua re
Jagao de complementaridade com a anacorese: cla atentia 0s
perigos da soldao:oferece aquilo que se fez se pensou a um
thar possivel: ofato de se obrigar a escrever desempenha 0
papel de um companheiro, suscitando o respeito humana e
‘vergonha: é possive entao fazer uma primetra analogla: 0 que
0s outros sao para o asceta em uma comunidade, 0 caderno
{de notas sera para osoltari. Mas, simultaneamente, ¢ levan:
{ada uma segunda analogia, que se refere a pratica da ascese
‘como trabalho nao somente sobre os atos, porém mais pre-
cisamente sobre © pensamento: 0 constrangimento que
presenca de outro exerce na ordem da conduta, a escrita 0
{exercera na ordem dos movimentos interiores da alma; nesse
Sento, ela tem uum papel muito proximo da confissdo ao dire:
{or espinitual sobre a qual Cassiano dita, na linha da espl
ritualldade evagriana,* que ela deve revelar, sem excegao,
{odos os movimentos da alma (omnes cogttationes}. Eatin,
eserita dos movimentos interiores aparece tambem, segundo
6 texto de Alanasio, como uma arma no combate espiritual:
tenquanto o deménto é uma potencia que engana efaz com que
sujelto se engane sobre si mesmo (toda uma grande parte da
Vita Antonite consagrada a essas astcias) a escrta constitul
uma experiéncia © uma especie de peda de toque: revelando
‘0s movimentos do pensamento, cla dissipa a sombra interior
fonde se tecem as tramas do inimigo. Esse texto um das mals
antigos que a literatura erista nos detxou sobre o tema da es:
rita espiritual ~ est longe de esgotar todas as significacoes ©
formas que esta assumira mals tarde. Mas € possive destacar
alguns dos seus aspectos que permitem analisar retrospect-
vamente a funcao da escrita na cultura filosofica de st pre-
cisamente antes do eristianismo: sua estreta ligagao com
1. BLA) Santo Atanas, Va Ant Ve conte dente Sant Rr Ant
es dente ct vesde aur snes habant on pay sone, pa Ne
‘Sint Poe Atwnase, eeque iAexacre ra. Liv, Pare Ed
(er col, Fo Vent’ 240, reediga 1865, 3" pare, § 55: "Conse sp
tuels du sottare ass ister ps 60-70
01) Baar santo mart146 cet Foueate Dios Eero
corporacio de companheiros, seu grau de aplicacao aos movi-
‘mentos do pensamento, seu papel de prova da verdade. Esses
‘diversos elementos ja se encontzam em Seneca, Plutarco,
Marco Aurélio, mas com valores extremamente diferentes ¢
segundo procedimentos totalmente diversos,
Nenhuma técnica, nenhuma habilidade profissional pode
ser adquirda sem exereieio: nao se pode mats aprender a arte
de viver, a techne tou bio sem tima askesis que deve ser com-
preendida como um treino de si por st mesmo: este era um dos
prineipios tradicionals aos quais, mutto tempo depois, os
pitagoricas, os soeraticos, os cinicos deram tanta importan-
fa Parece que. entre todas as formas tomadas por esse treino
(e que comportava abstinéncias, memorizacoes, exames de
conseiéncia, meditagies, silencio e escuta do outro), a eserita
=o fato de eserever para sie para outro tenha desempenha-
{do um papel eonsideravel por muito tempo. Em todo caso, 08
textos da epoca imperial que se relacionam com as praticas de
si constituem boa parte da eserta. E preciso ler, dia Seneca,
‘mas tambem escrever.” E Epleteto, que no entanto s6 deu um
fensino oral, insiste varias vezes sobre o papel da eserita como
fexercilo pessoal: deve-se “meditar” (meletan), escrever (gra
pphein), exereitar-se (gurmmazein}; “que possa a morte me apa
‘phar pensando, escrevendo, lendo™.’ Ou ainda: “Mantenha 0s
‘pensamentos noite e dia a disposicao [prokheironl:cologue-08
por escrito, faca sua letra; que eles sejam 0 objeto de tuas
‘onversagoes contigo mesmo, com um outro [..] se te ocorrer
algum desses acontecimentos chamados indesejavels, encon-
traras imer
‘S-Epitto, Eres (ead J Sul, Pa, Les Bebes Let
ole pour ralsons de san. 1. p23.
{tt op eI cap. XW: Nao €precan eemectonar com aque no
epee dene § 103, p10
1063 -A.sertade si 147
ce regularmente associada a “meditacao”, ao exercicio do pen:
samento sobre ele mesmo que reativa 0 que ele sabe, toma
presentes um prineipio, uma regra ou um exemplo, reflete so:
bre eles, assimila-os,e assim se prepara para encarar 0 real
‘Mas tambem se pereebe que a escrita esta associada ao exer
ciclo de pensamento de duas maneiras diferentes. Uma toma,
a forma de uma série “linear”; vai da meditaca a atividade da
eseritae desta a0 gummazein, quer dizer, ao adestramento na
Situagao real ea experiencia: trabalho de pensamento,traba-
Tho pela eserita, wabalho na realidade. A outra ¢ circular: a
rmeditacao precede as notas, que permitem a releitura, que,
por sta vez, revigora a meditacao. Em todo caso, seja qual for
ciclo de exercicio em que ela ocorre, a escrita constitut uma
ttapa essencial no processo para o qual tende toda a askesis:
0u Seja, a elaboragao dos discursos recebidos e reconhecidos
‘como verdadetros em prineipios racionais de ado. Como ele
mento de trinamento de si, a escrita tem, para wtizar uma
texpressdo que se encontra em Plutarco, tima functo etopoitt
feat ela 6a operadora da transformagao da verdade em thos.
Basa eserita etopotética, tal como aparece em documentos
‘dos séculos I I, parece estar localizada no exterior das duas
formas ja conhectdas e ulizadas para outros fins: 08 upon
nematae a eorrespondéncia.
Os hupomnemata
0s hupomnemata, no sentido tecnico, podiam ser Heros de
contabildade, registros publicos, cadernetas individuals que
serviam de lembrete, Sua utilizagao como livro de vida. guia de
conduta parece ter se tornado comum a todo urn pibico culo
All se anotavam citagdes, fragmentos de obras. exemplos ¢
agdes que foram testemunhadas ou cua narrativa havia sido
lida rellexses ou pensamentos ouvides ou que vieram a mente.
les constitulam tma memoria material das cotsas llas, ou.
ddas ou pensadas: assim, eram oferecidos como tm tsouro
acumulado para releitura e meditacao posteriores. Formavar
também uma matéria prima para a redacao de tratados mais,
sistematicos. nos quals eram dados os argumentos e meios
para lutar contra uma determinada falta (como acolera,ainve-
Ja a tagarelice, a lisonja) ou para superar alguma circunstin-148 nel Fosenle—DitoscEsrtos
la diel (am Tuto, um exiio, a ruina, a desgraca). Assim,
‘quando Fundanus pede consclhos para lutar contra as aga”
(bes da alma, Plutatco, naquele momento, quase nao tem tem
‘pode compor um tratado em boa e devia forma: ele vat entao
Ihe enviar toscamente os hupomnémata, que ele haviaredigido
sobre si mesmo a espeito do tema da tranguilidade da alma: €
‘pelo menos assim que ele apresenta o texto do Pert euthumias
Falsa modestia? Bra esta sem duivida uma maneira de justif-
‘car ocarater um tanto descoside do texto; mas também ¢ prec
‘0 ver nele uma indicacao do que eram aquelas cademetas de
‘anotagoes ~ assim como do uso a fazer do proprio tratado que
‘conservava tum poco da sua forma original
[Nao se deveria considerar esses hupomnémata como um
simples suporte de memoria, que se poderia consular de tem-
pos'em tempos, caso se apresentasse uma oeasiao. Eles m0
Se destinam a substituir as eventuais falas de memoria. Cons-
Lilsiem de prefereneia um material e um enguadire para exer
ios a serem frequentemente executados: ler, reer, meditar,
conversar consigo mesmo ¢ com outros ete. F isso para té-os,
de acordo com uma expresso que freqilentemente retorna,
proktheiron, ad manum, in promptu. “A mo", porém., no sim.
plesmente no sentido de que poderiam ser chamados a cons:
{lencia, mas no sentido de que devem poder ser ulizados, tao
logo seja necessrio, na ago. Trata-se de constitulr um logos
Dioethikas. um equipamento de discursos auxliares, capazes
“como diz Ptareo~ de levantar eles mesmos a vor e de fazer
cealar as paixbes coma um dono que, com uma palavra, aal
ma o rosnar dos cies." B, por isso, ¢ preciso que eles na este
jam simplesmente eolocados em urta especie de armario de
Jembrancas, mas profindamente implantados na alma, "pela
arquivados”, diz Seneca, e que assim fagam parte de ns mes-
‘mos: em stm, que a aima os faga nao somente seus, mas $1
‘mesmo, Aeserita das hupemnémataé um rel importante nes-
sa subjetivacao do discurso.
5.0.) Phtaee, De ranqe, 408, Dea vai de ame, J
‘Dumorier ed Deliada, n Ones mores Parte. Les ele tres “Cal
Seton des Universite Prange 1978 tM parte Ip. 98 NEL
OVA i. 485
1osa-Absertadesi 149
Por mais pessoais que sejam, esses hupomnémata nao de-
vem no entanto ser entendidas como diarios, ou come narra:
vas de experincia espinal tentacbes, tas, derrotase vita)
‘que poderao ser encontradas posteriormente na literatura
frist. Eles nao constituem uma “narrativa de st mesmo": nao
{ém come abjetivoesclarecer os arcana conscientiae, ja com-
fissio ~ oral ou escrta~ tem valor de purficagao. O movimen-
toque eles procuram realizar e oinverso daquele:trata-se no
de buscar o indiziel, nao de revelar 0 oculto, nao de dizer 0
‘iodo, mas de caplar, pelo contro, o a dito; reuntr o que
‘Se pode ouvir ou ler, e Iss0 com uma finalidade que nada mais
Eaiue a constitsigao de sh.
(Os hupomnémata devem estar também novamente inser\-
dos no contexto de uma tensao mutto evidente na époea: em
‘uma cullura mutt fortemente marcada pela tradicionalidade,
‘elo valor reconhecido do ja dito, pela ecorreneia do discurso,
pela pratica “da cltacao" sob a chancela da antighidade e da
utoridade se desenvolvia uma ética muito explictamente ort
fentada para 0 culdado de st na direcao de objetivos defnidos
‘como: Fecolher-se em si, atinglr a si mesmo, viver consigo
mesmo, bastar-se a stmesmo, aprovetare gozar de si mesmo.
‘Tal € oobjetiva dos hupomnemat: fazer do recolhimenta da lo
490s fragmentario e transmitido pelo ensino, pela escuta ou
pela eitura um meio para o estabelecimento de uma relacao
‘de si consigo mesmo tao adequadlae perfeita quanto possivel,
Para nés ha nisso alguma colsa paradoxal: como se confron-
‘ar consigo por melo da ajuda de discursos imemorias &
reeebidos de todo lado? Na verdade, se a redacao dos hupom
romata pode efetivamente contribuir para a formacao de si
através desses logot dlspersos ¢ principalmente por tr€s r-
oes prineipais: os ellos de lmiacao devidos & jancao da
eserita com a Teltura. a pratica regrada do disparate que de-
termina as escolhas ¢ a apropriagao que ela efetua,
1) Séneea insiste nisto: a pratica de si implica a leitura,
pols nao se poderia extrar tude do seu proprio amago nem se
prover por si mesmo de principios racionais indispensiveis,
para se conduzir: guia ou exemplo, a ajuda dos outros ¢ ne-
{eessaria. Mas nao @ preciso dissoctarleiturae escrita: deve-se
recorrer alternadamente” a essas duas ocupagoes.e "mode=
rar uma por intermédio da outra’. Se escrever muito esgota
(Seneca pensa aqui no trabalho do estilo) oexcesso de letra150 Mice Foust Dios Eset