PATRIMÔNIO: AS VÁRIAS DIMENSÕES
DE UM CONCEITO
*
Maria Letícia Mazzucchi Ferreira
Ao se falar de patrimônio é fundamental observar a
impossibilidade de aplicar uma definição única, totalizadora, a algo
que, tal como afirma José Reginaldo Gonçalves (2003), é uma
categoria de pensamento, com sentidos e significados diferenciados
conforme o suporte social sobre o qual é abordada. É preciso
também pensar que, na origem do termo patrimônio, tal como
utilizado nas sociedades ocidentais, está um termo de natureza
jurídica, atinente àquilo que é transmissível dentro de uma linha
sucessória, motivo pelo qual é necessário ser classificado,
inventariado, resguardado (LENIAUD, 2002).
Nessa busca pelas origens do conceito ocidental moderno
de patrimônio, o século XVIII é um marco fundamental pois será ali,
dentro de um contexto revolucionário francês, que as atribuições do
Estado frente ao patrimônio da Nação serão demarcadas. E, nesse
momento, o termo contradição se aplica também a patrimônio,
quando se observa, de um lado, a fúria revolucionária contra os
emblemas da Igreja e da nobreza, que deixou rastros de destruição
por todo o território nacional, e, de outro, a criação, por exemplo, do
primeiro Museu público, o Louvre. Essa fúria destrutiva e iconoclasta
pode ser compreendida também como um reconhecimento de algo
deixado à memória (logo a ser obliterado e esquecido) e traz em si
significados e atores diversos, tal como pode ser observado ao se
analisar determinados locais alvos do vandalismo, como as Igrejas,
por exemplo. Sabe-se que, paralelo ou mais importante que o
ímpeto jacobino, estavam os representantes da construção civil do
momento, que agiram desde a destruição pura e simples, visando a
uma possível reconstrução, até o saque de elementos arquiteturais
e decorativos, para serem explorados posteriormente. Patrimônio,
contradições, diferentes sujeitos e memórias.
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Professora Doutora Adjunta do Departamento de História e Antropologia/UFPel
E-mail: [email protected]
História em Revista, Pelotas, volume 10, 29-39, dezembro/2004
2 Maria Letícia Mazzucchi Ferreira
Patrimônio evoca também o sentido de vínculo com a
identidade social de um sujeito, de uma comunidade. As várias
identidades que se articulam aos diferentes patrimônios se
representam pelos diferentes sentidos que atribuem e as várias
possibilidades de reconhecimento que articulam. Aqui é importante
lembrar a tendência contemporânea de transformar em patrimônio a
memória que originalmente pertenceu a setores dominados, às
identidades fragmentadas. Pode-se pensar, por exemplo, numa
Alemanha que musealiza os lugares do horror, que monumentaliza a
memória das vítimas do nazismo; ou numa Inglaterra que reconhece
os templos hindus, memória imigrante, como patrimônio inglês.
Estaríamos aqui falando dessa capacidade redentora que parece ter
a memória, essência mesma do patrimônio?
Falar de patrimônio é também falar de identidade, ou de
afirmação de identidades, e o desaparecimento do signo patrimonial
pode colocar em risco ou reforçar esses vínculos identitários. Dentre
tantos exemplos, o caso da Catedral da cidade de Reims, na
França, tomo como paradigmático. Essa igreja, magnífico exemplar
da arte gótica do século XIII, foi dedicada à Virgem Maria, sendo,
portanto, uma Notre Dame. Lugar simbólico da nação francesa, nela
teria sido batizado Clóvis, inaugurando a realeza cristã, tornando-se
a catedral o lugar por excelência para a sagração e coroação dos
reis franceses. Como muitos símbolos medievais, a igreja foi
perdendo sua importância até ser bombardeada durante a Primeira
Guerra, e ter seu telhado totalmente destruído e o interior queimado.
Os anos que se seguiram ao término da guerra assistiram a um
grande e massivo empenho da comunidade por recuperar a igreja.
No material de divulgação das várias ações propostas por um grupo
encabeçado por leigos, aparecem as diferentes atividades que eram
levadas a termo para angariar fundos para a reforma do templo com
o apelo fundamental de que a memória da França teria sido
queimada, arrasada. A associação da catedral, lugar da realeza,
com uma memória nacional, é feita diretamente, podendo-se
observar como o prédio passa a identificar a história não apenas dos
remoisianos, mas a nação francesa de uma maneira globalizadora.
É possível pensar aqui que a iminência da perda confere visibilidade
ao monumento, reafirmando-o, portanto como patrimônio.
A dimensão afetiva do patrimônio é também um de seus
elementos constituintes, manifesta sob diferentes formas que
revelam diferentes apropriações e, portanto, sentidos que se tem do
Patrimônio: as várias dimensões de um conceito 3
passado. Patrimônio aqui se aproxima do conceito de lugares de
memória, que para Nora são esses espaços de condensação de
uma memória coletiva, parecem reter o que na verdade comprovam
não mais existir. Ao mesmo tempo, é na experiência, no jogo social,
que são investidos de sentido os lugares de patrimônio, ou o
patrimônio em si. Dos tantos exemplos que se possa dar aqui sobre
essas vivências coletivas de apropriação de um lugar de memória,
parece-nos ilustrativo um relato sobre um desses espaços de
sociabilidade na cidade de Buenos Aires, mas que bem poderia ser
em qualquer outro lugar, nos caminhos urbanos dos antigos bairros,
antigos armazéns e bares, dos cafés. Um desses cafés, Los
Angelitos, experimentou um processo interessante de experiência
coletiva de patrimônio vivenciado. Los Angelitos foi por várias
décadas o lugar de referência no bairro, conjugando funções de
café, confeitaria e local de sociabilidade densa, passando de
geração a geração até ser vendido e posteriormente destruído. Até
esse ponto, nada de inovador aparece no relato, ao contrário, é
aparentemente mais um dos inúmeros registros de espaços como
esse que vão perdendo lugar no cenário das cidades. O interessante
fica por conta da reação da comunidade local do bairro frente ao
desaparecimento do café: apropriando-se de uma memória coletiva,
ocupam o espaço na frente do novo prédio, colocam cadeiras e
mesas na rua, reconstroem simbolicamente o lugar-patrimônio.
Importante ressaltar que uma grande parte dessa comunidade já
não havia freqüentado o Los Angelitos, pois pertenciam a gerações
mais recentes. Entretanto, essa memória reproduzida é na verdade
aquela que mais se poderia aproximar do conceito de coletiva,
construção imaginada, representação do passado.
São os significados investidos ao lugar (entendendo-se aqui
mais do que a dimensão física de lugar) que o transformam em
patrimônio, afirmação já gasta quando se pensa nas mais recentes
abordagens de patrimônio que ultrapassam o sentido material do
mesmo. Entretanto, são ainda poucos os registros formais de
patrimônio que não estejam dentro de um inventário oficial, daí
porque nos surpreende encontrar uma placa, disposta na frente de
um campo de futebol no bairro popular, na cidade de Lima, na qual
se lê: “patrimônio cultural da municipalidade de Callao”. O campo de
futebol, que em nada se diferenciava dos campos de bairro que se
observa em qualquer cidade brasileira, por exemplo, passou a ter
naquele contexto o significado de patrimônio cultural, institucionali-
4 Maria Letícia Mazzucchi Ferreira
zado pelo reconhecimento da municipalidade.
Nas diversas considerações que podem ser feitas sobre
patrimônio, o aspecto documental do mesmo não pode ser omitido
pois é também esse caráter de informar sobre a tradição, sobre uma
outra temporalidade, que o faz patrimônio. Nesse sentido, assume um
caráter didático, elemento importante de uma formação contínua dos
sujeitos. Ao se considerar a existência de um patrimônio imaterial,
intangível, não edificado, abre-se espaço para aquilo que a memória
registra para além “da pedra e cal”, na expressão utilizada por Maria
Cecília Fonseca no artigo de mesmo título (FONSECA, 2003). Essa
imaterialidade, entretanto, pode estar ancorada em signos visuais, e
nesse sentido é fundamental considerar que o objeto e o visível são
elementos de uma leitura do patrimônio, são paisagem no sentido
mais social que assume esse termo. Paisagem como entorno, mas
também e fundamentalmente como um conjunto de elementos que
constituem o cenário da memória, o patrimônio em si.
Patrimônio industrial
Dentre as várias tipologias de patrimônio, uma em específico
vem assumindo um espaço importante nas sociedades
contemporâneas: o patrimônio industrial. A preocupação em proteger
e estudar o patrimônio industrial é uma atitude muito recente. Aliás,
todo o patrimônio datado de períodos cronológicos mais atuais e
com cunho marcadamente funcional e menos artístico, tem uma
menor aceitação, a não ser que constitua em um exemplar
arquitetônico excepcional. Como olhar então, no inicio do século
XXI, para vestígios materiais que até tão pouco tempo
desempenharam uma função na moldura urbana ou na estrutura
econômica da sociedade?
O movimento de defesa do legado industrial teve a sua
gênese na Inglaterra, na década de 50, devido à destruição de
muitas fábricas, durante a segunda guerra mundial. Não foi por
acaso que esse movimento iniciou na Inglaterra, uma vez que lá foi
o berço da Revolução Industrial.
Note-se que é precisamente nos países onde a industrialização
foi fortemente marcada nos séculos XIX e XX que as ações de
reconhecimento desse patrimônio se fizeram sentir primeiramente,
como na Alemanha, por exemplo.
A industrialização do século XIX modificou profundamente
paisagens, cenários urbanos e estilos de vida. As construções industriais
Patrimônio: as várias dimensões de um conceito 5
desse período são, via de regra, marcadas pela grandiosidade física,
pelos detalhes arquitetônicos, numa composição que combina elementos
de funcionalidade com outros decorativos, numa estética bastante
singular que se pode observar, por exemplo, nos prédios industriais
do final do século XIX e começo do século XX no Brasil. Os avanços
tecnológicos em determinados setores da produção industrial tornaram
muitos desses estabelecimentos obsoletos, ocorrendo seu
esvaziamento e, por via de regra, abandono. No amplo espectro
latinoamericano, esse é o caso não apenas das fábricas oitocentistas,
mas de setores da mineração, das manufaturas, e, mais
recentemente, das vias férreas e alguns setores da comunicação.
Numa terminologia utilizada para abordar esse patrimônio, diz-se que
todos esses exemplos constituem uma herança industrial, visto o
passado como herança, ou o patrimônio no seu sentido mais
profundo. Esses remanescentes industriais são testemunhos de um
conjunto de elementos que caracterizam a história de um lugar, de
tecnologias, de relações de trabalho, de concepção de espaço e,
sobretudo, de memórias que ali se depositam.
Em uma perspectiva, sobretudo européia, os últimos trinta
anos marcaram o avanço do reconhecimento e da importância
conferida à herança industrial, o que se pode verificar pelo
desenvolvimento de uma arqueologia industrial que busca recuperar
artefatos industriais e elementos arquiteturais dos vestígios
industriais, reveladores não apenas de formas de produção, mas de
avanços da engenharia, quando se aborda, por exemplo, as
estradas de ferro, as pontes, os elementos de infra-estrutura
gerados a partir da indústria e ao seu redor.
O objeto de estudo do patrimônio industrial é amplo e
múltiplo, como bem se pode observar, considerando-se as várias
áreas produtivas. Entretanto, ao se falar desse tipo de patrimônio, a
vinculação parece direta aos setores têxtil, metalúrgico, químico,
mineiro, ou qualquer outro que represente essa indústria de meados
de século XX. O conceito, no entanto, inclui as obras públicas nos
setores de transporte e infra-estrutura comercial e portuária, bem
como habitações operárias, etc. Cada universo industrial guarda sua
especificidade: o maquinário utilizado é peculiar a cada área de
produção, observando-se, entretanto, similitudes nas diversas
forças-motrizes empregadas ao longo do tempo.
Os edifícios industriais são os testemunhos mais próximos
das comunidades, impondo-se pela utilização de uma linguagem,
6 Maria Letícia Mazzucchi Ferreira
sobretudo arquitetônica, que pode ser bastante diferenciada do
conjunto urbano em si, e o exemplo das Estações ferroviárias
construídas em estilo que lembra as edificações inglesas, com tijolo
vermelho e uso do ferro, são bem exemplares disso. Mas entende-
se como herança industrial não apenas esse patrimônio edificado,
mas também e fundamentalmente, os equipamentos utilizados, as
técnicas e tecnologias do momento que representam, os documentos
de arquivo, os contornos urbanos desses estabelecimentos, as
narrativas orais, e todos os demais vestígios que possam revelar
esse contexto social e histórico no qual se enquadra esse patrimônio
industrial. Como características gerais do que se entende por
patrimônio industrial, se poderia afirmar que ele não é
contemplativo, como é, por exemplo, a arte. O repertório cultural do
qual se lança mão para observar e admirar um edifício industrial é
diferente daquele que se utiliza para admirar e compreender uma obra
de arte, um exemplar de algum estilo arquitetônico reconhecido, etc.
Além disso, o próprio reconhecimento do patrimônio industrial é por si
bastante difícil, pois sobretudo estabelecimentos fabris, usinas, minas,
e outros, guardam em si uma dimensão profunda do sofrimento que o
trabalho físico, as condições ambientais e a disciplina fabril trazem à
consciência do observador. A utilização desses espaços não pode
deixar, portanto, de levar em consideração esses aspectos, o que
bem pode se observar nos projetos atuais de revitalização das
antigas minas no México. As experiências atuais desse país no setor
da mineração, vem revelando novas abordagens e concepções do
que é objeto museológico, e lançam o país como referência nesse
domínio.
Ao mesmo tempo, em que pese esses sentidos de sofrimento
que são atribuídos aos vestígios industriais, os mesmos são de mais
fácil compreensão e reconhecimento, pois falam da vida cotidiana, de
pessoas comuns, de ritmos modulados pela fábrica, do trabalho em si.
Antes de passar para exemplos concretos desse patrimônio
industrial, duas considerações devem ser feitas. A primeira diz
respeito àquilo que é considerado elemento constitutivo desse
patrimônio, e nesse sentido temos os elementos tangíveis, como os
registros imóveis (edifícios industriais, minas, vias férreas, meios de
comunicação, obras de engenharia, etc...) e os registros móveis
(arquivos, artefatos industriais, ferramentas, fornos, usinas, motores,
máquinas, etc). Tem-se ainda aquilo que se considera como
elementos intangíveis como a cultura operária, as formas de
Patrimônio: as várias dimensões de um conceito 7
sociabilidade, as maneiras de morar e viver, a dinâmica do trabalho,
etc...
A outra consideração a ser registrada é aquela referente ao
surgimento na década de 70 (1978), na Suécia, do The International
Commitee for the Conservation of Industrial Heritage (TICCH),
organização não-governamental que vem promovendo a cooperação
internacional pelo estudo, pesquisa, documentação, preservação e
valorização do patrimônio industrial, buscando sensibilizar os vários
setores das sociedades, sobretudo aqueles responsáveis por
implementar políticas públicas de salvaguarda e proteção, para a
importância desses sítios industriais, não apenas como testemunhos
da história de uma cidade, de um país, como pelo potencial de
desenvolvimento econômico que trazem em si, ao se pensar, por
exemplo, no turismo industrial, largamente desenvolvido em países
europeus como Alemanha, França e Espanha. Reconhecimento,
proteção e investigação sobre patrimônio industrial é, portanto, o tripé
sobre o qual se afirma o TICCH, que ensaia uma representação no
Brasil, a exemplo do que já ocorre na Argentina, Peru, Chile, Cuba e
México, no âmbito da América Latina.
Exemplos de patrimônio industrial no Rio Grande do Sul
Exemplos concretos do patrimônio industrial na Zona Sul do
Rio Grande do Sul são a Fábrica Rheingantz, na cidade de Rio
Grande, e o Museu de Telecomunicações, em fase de implantação
na cidade de Pelotas.
O primeiro caso foi objeto de estudo de minha tese de
doutorado, ”Quando o apito da fábrica de tecidos”: memória pública
e memória coletiva, a Fábrica Rheingantz, 1950-1970 (2002). Trata-
se de um empreendimento têxtil, inaugurado nos finais do século
XIX na cidade de Rio Grande, como iniciativa de um sujeito de
descendência e tradição alemã, cuja personalidade e trajetória
empresarial revela um dinamismo e um modelo bastante
reconhecido nas grandes personalidades empresariais brasileiras
desses finais dos anos 1800, momento importante na expansão da
indústria no país. A Fábrica Rheingantz, desde sua fundação em
1873, foi se consolidando como um elemento fundamental na
economia regional, na expansão da malha urbana de Rio Grande,
na ocupação de mão-de-obra qualificada, sendo evocada como um
dos ícones de uma Rio Grande histórica, testemunho de um tempo
de crescimento e riqueza, acompanhada de outros empreendimentos,
8 Maria Letícia Mazzucchi Ferreira
o que configurava a cidade como possuidora de um parque
industrial.
Essa cidade do passado contrasta com a do presente, na
qual o esvaziamento e sucateamento do setor industrial é visível no
empobrecimento e na desocupação de mão-de-obra, bem como na
deterioração crescente de prédios que outrora abrigaram atividades
industriais importantes, como é o caso da Fábrica Rheingantz ou
União Fabril, como também é conhecida. Minha pesquisa foi
motivada justamente pela observação de incongruências entre
aquilo que uma memória pública (compreendida aqui como aquela
construída e repassada pela mídia) dizia da cidade, através do
slogan “Rio Grande cidade histórica”, e a indiferença marcada pela
ausência de políticas públicas para preservação patrimonial.
Busquei então um lugar onde memória e patrimônio estivessem
conjugados pela experiência, pela vivência coletiva, e nesse sentido,
a Rheingantz foi esse lugar de memória, portador de tempo como
afirma Daniel Sibony (1997).
Os últimos vinte anos de existência da empresa familiar
Rheingantz (1950-70) foram então tema de pesquisa: documentos,
objetos, prédio, casas, somados aos inúmeros depoimentos que
obtive de ex-funcionários e gerentes, possibilitaram-me revelar uma
outra fábrica, para além dos muros e das estratégias pura e simples
de dominação fabril e disciplinarização do trabalho. As leituras, a
observação e a escuta dos depoimentos, foram compondo cenários
de processos de trabalho, de aportes tecnológicos e técnicas de
produção, de usos de maquinários, bem como uma organização
interna do trabalho, redes de sociabilidades geradas a partir dele,
formas de convivência com a multiplicidade étnica de uma empresa
na qual a presença alemã, polonesa, italiana, portuguesa e de
outras etnias, se dava ao lado da presença de brasileiros. A vida
dentro e fora da fábrica foi sendo tramada nessas urdições que a
memória compõe, e a ocupação do bairro Cidade Nova, a ampliação
da rede ferroviária, as novas composições arquitetônicas evocadoras
da origem germânica, foram tomando forma e importância ao lado da
proximidade com a Viação Férrea, das demais fábricas do entorno
como o cotonifício Ítalo-Brasileiro, configurando assim um cenário de
manifestações de luta operária e de sociabilidade intensa.
A Vila Operária e as Casas da Fábrica foram também
espaços fundamentais onde a memória se alojava, trazendo à cena
espaços domésticos e de vizinhança, estratégias de disciplina
Patrimônio: as várias dimensões de um conceito 9
empreendidas pela empresa, formas diferenciadas de ocupação do
espaço, hierarquizações do mesmo através dos níveis de
importância, conforto e estilo nos quais as casas foram construídas.
A Fábrica Rheingantz é, portanto, um forte emblema de uma
cidade que cresceu, se desenvolveu industrialmente, sendo
representada nas falas dos ex-operários como um registro de uma
Rio Grande próspera, e, “caso ainda existisse”, a realidade da cidade
seria outra. A memória ressignifica o passado, ameniza sofrimentos e
traz ao presente aquilo que no presente é importante lembrar.
O complexo industrial e o conjunto arquitetônico composto
pelas Casas da fábrica, a Escola Comendador Rheingantz, o antigo
Cassino dos Mestres e depois Cooperativa, bem como o prédio da
Mutualidade, são protegidos por lei municipal, mas a situação de
deterioração se agrava, em cada um desses lugares, à medida que
passam os dias. Essa deterioração vem em decorrência da ação
predatória do tempo, mas também e fundamentalmente pela ação
predatória humana, conferindo ao conjunto um aspecto fantasmagórico
de ruínas, um cenário de luto evocado pelos que compõem essa
espécie de comunidade de destino que se formou a partir dos ex-
operários, muitos dos quais ainda habitando na mesma casa cedida
pela empresa quando ingressaram no trabalho. É importante
salientar o reconhecimento que essa comunidade confere à fábrica
e seu entorno, um profundo significado atribuído à palavra
patrimônio, que nesse caso se confunde com as trajetórias de vida
desses sujeitos.
Nesse sentido, formas de apropriação desse patrimônio
foram sendo engendradas no correr do tempo, como o caso das
mulheres ex-operárias, que se encontravam uma vez por semana na
fábrica, já quase que inteiramente desativada no ano de 1998,
quando comecei a pesquisa. Essa mulheres, ex-fiandeiras, tecelãs,
tapeceiras, costureiras, no encontro semanal no interior do prédio
com alguns pavilhões já em ruínas, falavam da vida enquanto
ensaiavam tecer algum pano, e vez por outra riam ou comentavam
fatos do passado, acontecidos ali. Outro exemplo é Seu Hilso, o
chefe de uma guarda já desaparecida faz décadas, guardião de uma
fábrica que não morre porque, segundo ele, os ex-funcionários ficam
recordando, ficam querendo que ela reabra e não a deixam
descansar em paz. Até o momento que dei por encerrada a
pesquisa empírica, no ano de 2001, Seu Hilso ainda praticava o
ritual cotidiano de abrir a fábrica às 7:30 da manhã, fechar às 11:30,
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reabrir às 13:30 e fechar às 17:00. Nenhum movimento real de
entrada e saída de mercadoria, nenhuma atividade industrial ainda
vigente, apenas Seu Hilso, guardião da memória, parte viva desse
patrimônio industrial.
Outro exemplo é o do Museu de Telecomunicações, que
professores e alunos do Departamento de História e Antropologia da
Universidade Federal de Pelotas e do Centro de Educação
Tecnológica de Pelotas – CEFET-RS vêm experienciando como um
espaço de aprendizagem e experiência no campo tanto museológico
como de patrimônio industrial (FERREIRA, 2004: 27-41). O acervo
básico é composto por objetos, mobiliário, documentos, fotografias,
pertencentes ao antigo Museu da CTMR, desativado por ocasião da
privatização da Companhia em 1999. A história da consolidação
desse projeto de Museu de Telecomunicações é bastante extensa,
envolvendo todo um conjunto de ações e significados importantes
investidos nesse acervo de 190 peças.
O acesso, que no começo parecia ser tão-somente composto
por objetos, aparelhos telefônicos, centrais, equipamentos técnicos,
mobiliário, demonstrou, no entanto, ser muito mais que isso.
Na medida em que a equipe de pesquisa se envolvia com a
exposição de parte do acervo ao público (como o que foi feito em
junho de 2003 no salão da Biblioteca Pública Pelotense), esses
objetos aparentemente frios e desprovidos de uma estética
sedutora, foram revelando um conjunto imenso de significados, de
vivências, de histórias múltiplas compondo a história de uma
empresa. Ao verem seus objetos de trabalho expostos, vários foram
aqueles que deles se aproximaram, tocando, observando,
relembrando momentos de suas vidas na empresa. Em relação às
telefonistas, algumas pediam permissão para sentar na cadeira
diante da central, e lá reproduziam os gestos repetidos por tantos
dias, tantas noites de trabalho, durante tanto tempo de suas vidas.
Isso tudo nos levou a implementar o que denominamos Museu de
Vozes, com depoimentos desses ex-funcionários e registro dessas
narrativas. A tecnologia das comunicações aparece como um
elemento de importância fundamental, recuperada muitas vezes
pelo savoir faire que os ex-funcionários dão a conhecer através de
suas falas e do envolvimento que passaram a ter com o Museu. No
momento, um antigo funcionário coopera na desmontagem de uma
grande central AGF, de origem sueca, e que introduziu a telefonia
automática na década de 50. Seu Pedro, tendo trabalhado toda seu
Patrimônio: as várias dimensões de um conceito 11
tempo na manutenção dessa central, recolocou o uniforme já em
desuso desde sua aposentadoria nos finais dos anos 80, e
minuciosamente foi desmontando cada engrenagem dessa central
de mais de 400 quilos, com cinco metros de extensão e quatro
metros de altura.
É fundamental, para nosso grupo, a compreensão de que
nenhum projeto museológico pode deixar à margem essas vivências
concretas no campo das telecomunicações, e que essas narrativas
devem compor o acervo, pois sem dúvida dele fazem parte. Assim
como a Rheingantz, nenhum projeto de restauração ou nenhum
projeto museológico pode ter repercussão se não integrar suas
comunidades, pois patrimônio deve se conjugar com memória, e
essa é matéria da vida.
Referências bibliográficas
FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi. “Quando o apito da fábrica de
tecidos”: memória pública e memória coletiva, a Fábrica Rheingantz,
1950-1970. Tese de doutoramento em História. Porto Alegre: PUCRS,
2002.
FERREIRA, Maria Letícia Mazzucchi & LOPES, André Luís Borges.
História, Memória e Tecnologia: Museu de Telecomunicações de
Pelotas. Cadernos do LEPAARQ. Textos de Antropologia, Arqueologia
e Patrimônio. V.1, n.2. Pelotas: Editora e Gráfica Universitária/UFPel,
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FONSECA, Maria Cecilia Londres. Para além da pedra e cal: por
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CHAGAS, Mario (Orgs.) Memória e Patrimônio, ensaios
contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2003: 56-76.
GONÇALVES, José Reginaldo. O patrimônio como categoria de
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LENIAUD, Jean-Michel. Les archipels du passé. Paris: Fayard, 2002.
SIBONY, Daniel. Le patrimoine, un lieu d’être autrement. In: LE
GOFF, Jacques (sous la présidence de) Patrimoine et passions
identitaires. Paris: Fayard, 1997, pp.32-41.
12 Maria Letícia Mazzucchi Ferreira