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PUCHEU - Do - Comeco Ao Fim Do Poema PDF

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BOLETIM DE PESQUISA NELIC 
BOLETIM DE PESQUISA NELIC
V° 9 ‐ N° 14  
V° 9 - N° 14
 
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DO COMEÇO AO FIM DO POEMA


DO COMEÇO AO FIM DO POEMA 
 
Alberto Pucheu
Alberto Pucheu 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

Por esta razão, talvez, nem a poesia nem a filosofia,


nem o verso nem a prosa possa jamais levar a cabo
por si a própria empresa milenar. Talvez apenas
uma palavra na qual a pura prosa da filosofia
interviesse, a certa altura, rompendo o verso da
palavra poética e na qual o verso da poesia
interviesse, por sua vez, dobrando em anel a prosa
da filosofia seria a verdadeira palavra humana.
(Giorgio Agamben)

Realizando uma abordagem diretamente a partir do


poema, o pensamento de Giorgio Agamben consegue iluminar,
como poucos, um aspecto da inteligência material poemática
inerente à dinâmica rítmico-semântico-sintática, tal qual um dia,
entre nós, foi requisitado, entre outros, por Haroldo de Campos,
Augusto de Campos e, mais recentemente, Roberto Corrêa dos
Santos, que escreveu:

[1. Investimentos teóricos sobre o poema, apesar da


longevidade desse objeto, não chegam a formar
corpus relevante. 2. Predominaram estudos sobre
os processos de composição técnica e retórica,
exames pautados em modelos clássicos relativos
ao gênero e seus constituintes. 3. Investigações
diversas visaram a circunscrever certo número de
caracteres, por modos humanistas e abrangentes,
do fenômeno entendido por lírico, em diferença
àqueles formadores dos também homogeneizados
épico e dramático. 4. Bem pouco restou para o
esboço da possível corporeidade de uma, diga-se
assim, teoria do poema. 5. As mais valiosas

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Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

propostas situam-se ainda no âmbito do chamado evidenciando-as, quando possível, como uma dinâmica do
formalismo russo. 6. Nesse ambiente epistêmico
traçam-se parte das melhores proposições poema que, ela mesma pensada, dá o que pensar.
reflexivas, bem como das melhores análises,
ultrapassando-se aspectos concebidos. 7. A partir do século XIX, uma das maiores dificuldades da
Pesquisas quanto à inteligência do poema em seu
caráter rítmico-semântico-sintático e dedicadas à
teoria literária é conseguir estabelecer uma diferença entre
sua estratégia de leitura tornaram-se exceções. 8. poema e prosa, já que, em um movimento de mão dupla, tanto o
Movimento científico de igual porte vem a ser
reposto nos anos 60 por meio do empenho da primeiro incorporou a segunda, como esta, aquele, misturando-
semiologia e da semântica estrutural. 9. Conhecer o
poema descreve-se como uma vontade a levantar- se. Em muitos casos, através da radicalização do uso das
se e a tombar de tempos em tempos por razões
relacionadas ao resistente modo-de-existir disso a imagens, dos ritmos, dos metros, das invenções sintáticas, das
chamar-se poema. 10. Por sua singular
(im)permeabilidade ao factum e por sua condição
significações ou daquilo que Pound chamou de melopéia,
de manter-se firme historicamente em sua fanopéia e logopéia, ambos já assimilaram uma linguagem
radicalizante insistência formal e temática, suas
modificações mantêm-se quase imperceptíveis. 11. carregada de sentido ao máximo grau possível 2, conseguindo
Os hábitos fixados para quem dele se aproxime
acarretam processos receptivos duros.
1
uma maior condensação da forma verbal como requer, para o
poeta americano, as exigências da poesia.
Efetivar, portanto, um investimento teórico a partir do Transertões 3, um curioso ensaio de Augusto de
poema, que, diminuindo sua resistência, flagre, potencializando- Campos, oferece amostras sensíveis neste sentido. Nele, a
o, um dos atos pensantes a regê-lo em sua materialidade preocupação não é negar o caráter da prosa euclidiana em
através de procedimentos que a organizam, é uma tarefa nome da poesia ali presente, mas de demonstrar como
considerável para que possamos fruir as intensidades poéticas, estruturas poéticas demarcam a diferença de uma prosa que
incorpora diversos aspectos historicamente considerados
1 2
SANTOS, Roberto Corrêa dos. Poema – Proposições Medicinais. POUND, Ezra. How to read. In: Literary essays of Ezra Pound. New York:
In:Terceira Margem; poesia brasileira e seus entornos interventivos. Revista New Directions Book. S/d. p.23. 9ª edição.
3
do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, ano VIII, número CAMPOS, Augusto. Transertões. In: Os Sertões dos Campos – duas vezes
11, 2004. p. 11-16. Euclides. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997. p. 11-50.
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Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

poéticos, ajudando a criar a força desta escrita então híbrida em Visando prolongar uma reflexão que passa por
todos os aspectos. O poeta-crítico destaca a presença maciça Everardo, o Alemão, Niccolo Tibino, Brunetto Latini e Dante,
do controle do ritmo pela artesania métrica do verso embutido na chegando à frase de Valèry apropriada por Jackobson, que diz
prosa, exemplificando-a com centenas de frases metrificadas ser o poema a hesitação prolongada entre o som e o sentido, os
(pelo menos 500 decassílabos significativos, com predominância conceitos utilizados por Agamben para determinar o
dos sáficos e heróicos, acrescidos de mais de 200 enjambement e a cesura como as únicas possibilidades de
dodecassílabos, dentre os quais muitos alexandrinos, como, por distinção entre o verso e a prosa estão em inteira consonância
exemplo, estrídulo tropel de cascos sobre pedras, e versos com seus arquissemas gerais. Nos quatro textos que definem
livres) e padrões heterométricos que se irmanam a um completo institutos poéticos decisivos 4, todos ligados a limites e
domínio sonoro do encadeamento das palavras na frase. 4
AGAMBEN, Giorgio. Idée de la prose. IN: Idée de la prose. Traduit de
Fora isso, ainda acentua diversas passagens com l’italien par Gérar Macé. Paris: Christian Bourgois Éditeur, 1998. p. 21-24.
densas aliterações, sibilações, paranomásias, onomatopéias e Idée de la césure. IN: Idée de la prose. P. 25-27. The end of the poem. In:

figuras de linguagem como as metáforas, as metonímias e as The end of the poem. Translated by Daniel Heller-Roazen. Califórnia:
Stanford University Press, 1996. p. 109-115. Este texto foi traduzido para o
antíteses. Se uma prosa como, dentre outras, a de Euclides,
português por Sérgio Alcides e publicado na revista Cacto, número 1, em
absorve elementos poéticos, criando uma indiscernibilidade
agosto de 2002. p. 142-149. AGAMBEN, Giorgio. E O Cinema de Guy
entre os gêneros, e se os poetas inventaram tanto o verso livre Debord; imagem e memória. Texto acessado no sítio eletrônico “Blog
quanto o poema em prosa, como estabelecer a diferença entre Intermídias”, <http://www.intermidias.blogspot.com/2007/07/o-cinema-de-guy-

poesia e prosa? Essa pergunta não vela, obviamente, um desejo debord-de-giorgio.html>, no dia 18 de fevereiro de 2008. Este texto é a
transcrição – revista por Agamben – de uma conferência pronunciada em um
de refluxo que afaste a poesia da escrita de ficção, ensaística ou
seminário consagrado a Guy Debord, com uma retrospectiva de seus filmes,
outra prosaica de modo geral, mas expõe a tentativa de
durante a 6ª Semana Internacional de Vídeo, em Genebra, no ano de 1995.
conquista de mais um elemento de compreensão da escrita, que Com 3 outros artigos, este texto foi publicado no livro, no momento
nos leve a uma ampliação das possibilidades da própria escrita, indisponível para venda, intitulado Image e Mémoire, Éditions Hoëbeke, 1998

da leitura e do pensamento. (p.65-76). (Collection Arts & Esthétique)


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Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

terminações, como o enjambement, a versura, o fim do poema, prevista confunda o verso com a prosa em um ponto de
a cesura e a rima, tais termos são: hesitação, não-coincidência, coincidência ou em uma bodas mística do som e do sentido 6. O
deslocamento, cisma, disjunção, antagonismo, oposição, enjambement, então, estaria a serviço da penetração da prosa
contraste, não correspondência, desacordo, descolamento, no poema. Não que isto não seja passível de ocorrer nem que
divergência, tensão, pausa, intervalo, parada, interrupção. não seja até mesmo predominante em nosso tempo, mas a
A posição tomada pelo italiano não pode aceitar, como possibilidade agambeniana nos revela, com uma acurácia muito
elemento primordial para o pensamento do poema – e, maior, o ponto de força que singulariza tal instituto como a
conseqüentemente, do próprio pensamento –, uma diferença do poético: a hesitação e os arquissemas afins não
compreensão habitual para a qual, no enjambement, quando a podem acatar a resolução da unicidade prosaica, mas, sim,
pausa fônica que estaria ao fim de um verso passa a estar no manter os traços tensivos pelos quais, com o abismo do
seguinte, ou seja, quando o verso anterior, adentrando o silencioso burburinho do enjambement, ritmo e sentido, ou verso
próximo, ganha uma elasticidade que o estende para além de e sintaxe, entram em um antagonismo essencial a favor do
sua pausa métrica, esta se torna a rigor inoperante e até mostrar-se do poema em sua diferença.
5
inexistente se não está assinalada pela rima . Neste caso, há a O entendimento do verso provém de seu habitar, pelo
crença de que, sem a rima, a continuação fônica que estabelece menos virtualmente, em um cisma, de seu morar, ainda que
o enjambement elimina e neutraliza a pausa métrica em nome virtual, em uma incongruência. Para Agamben, o discurso
da unidade do ritmo – em nome, poderia ser dito, do eminentemente prosaico é o que em hipótese alguma acata tal
alongamento de um verso até a depressão da voz no interior do possibilidade do enjambement, enquanto poético é aquele que,
subseqüente, fazendo com que a exclusão da pausa final pelo menos potencialmente, reside neste traço distintivo. Visto,
ao lado da cesura, como a única garantia de uma diferença
5
MARTINS, Hélcio. A Rima na Poesia de Carlos Drummond de Andrade e
6
outros ensaios. Rio de Janeiro: Topbooks/Academia Brasileira de Letras, AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema. Traduzido para o português por
2005. Sérgio Alcides. Revista Cacto, número 1, agosto de 2002. p. 146.
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Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

entre o verso e a prosa, o enjambement é formulado como a


Um animal passeia nas montanhas.
disjunção entre o limite métrico e o sintático, como um íntimo Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o
fôlego
desacordo entre o ritmo sonoro e o sentido, como a oposição mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.
De tanto andar fazendo esforço se torna
entre a segmentação métrica e a semântica, como o contraste um organismo em movimento reagindo a passadas,
entre a série semiótica e a série semântica. Uma sobreposição e só. Não sente fome nem saudade nem sede,
confia apenas nos instintos que o destino conduz.
ou uma simultaneidade das duas segmentações em desencaixe, Puxado sempre para cima, o animal é um ímã,
numa escala de formiga, que as montanhas atraem.
das duas séries em derrapagem desigual, das duas intensidades Conhece alguma liberdade, quando chega ao cume.
Sente-se disperso entre as nuvens,
em curto-circuito, dos dois tônus em cisalhamento, dos dois acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,
7
ainda, que agora tem de aprender a descer.
fluxos em movimentações tortuosas compõe as linhas de fuga
do poema.
O poema começa (e se realiza quase todo ele) com um
O enjambement leva o fim do verso a governar a linha, a
verso sem enjambement, já que nele o limite métrico e o
gerir o sulco pelo qual o poema semeia sua beleza e
sintático coincidem plenamente, ou seja, o sentido que nele
pensamento desde seu princípio, provindo, daí, sua importância
começa e continua a ser esboçado finda ao término do verso,
decisiva. Tornando-se seu núcleo constitutivo e ponto
suas interrupções sonora e plástica combinam com a cessação
nevrálgico, o enjambement é o acontecimento que faz o verso
sintática:
nascer enquanto a singularidade que é. O verso só se torna o
que é em seu fim, quando, na interrupção, ganha seu distintivo.
Um animal passeia nas montanhas.
No fim do verso, flagra-se um tempo de parada sonora e um
lugar de interrupção plástica que podem condizer ou não com Ao fim deste verso, tem-se a totalidade do que ele está
uma cessação sintática da oração, que é passível de continuar. dizendo desde seu princípio; a pontuação lhe dá um limite,
Por exemplo, o poema Introdução à Arte das Montanhas, de
Leonardo Fróes: 7
FRÓES, Leonardo. Vertigens; obra reunida (1968-1998). Rio de Janeiro:
Editora Rocco, 1998. p. 243.
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Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

fazendo com que nenhum sentido reste para além dele. o enjambement. Se, ao fim do verso, a totalidade da frase não
Coincidindo, tanto a série semiótica quanto a segmentação foi concluída, é possível que, ao menos, uma oração então se
semântica são simultaneamente interrompidas. Todas as finalize, o que será comprovado pela conjunção adversativa com
possibilidades de sentido inauguradas pelo começo do verso e que se inicia o verso vindouro, excluindo o enjambement. O
continuadas pela linha estão presentes em Um animal passeia segundo verso possui, então, duas orações: [um animal] arranha
nas montanhas. Claro que várias indeterminações de sentido a cara nos espinhos do mato; e [um animal] perde o fôlego.
permanecem nele (que animal é esse, que tipo de passeio é Carecendo de novas informações que virão ao longo do poema,
esse, que montanha é essa, o que vai acontecer a esse animal a súbita parada indica que pelo menos dois sentidos das duas
que passeia nas montanhas, como ele passeia...?), mas todas orações foram ofertados em sua totalidade. Neste momento,
elas moram dentro do limite do verso, como potências dele. O sabe-se que um animal anda na montanha e que seu caminhar
enjambement está presente ali em um grau zero, como é árduo, requer muito do caminhante, levando seu corpo a
possibilidade (Um animal passeia/ nas montanhas ou Um extremos. Seu rosto é machucado pela atividade, seu pulmão
animal/ passeia nas montanhas, para dar dois exemplos) que o está no limite de seu trabalho. Pelo esforço, intuímos que ele
poeta preferiu não cumprir. deve estar passeando montanha acima, mas, até agora, isso
Com o verso seguinte, não havendo nenhuma permanece indeterminado, não é assegurado. Ao fim do
pontuação explícita, ocorre um fenômeno diferente: segundo verso, não é garantido tampouco o que ocorrerá com
todo esse esforço: entre muitas outras coisas, não sabemos se
Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o ele continuará seu passeio ou se, dado o esforço demandado,
fôlego
renunciará a ele.

Enquanto verso, apesar de não ter pontuação final, ele


Um animal passeia nas montanhas.
foi concluído; sua pausa final coincide com a possibilidade de Arranha a cara nos espinhos do mato, perde o
encerramento da estrutura sintática que, confirmando-se, afasta fôlego
mas não desiste de chegar ao ponto mais alto.

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Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

verso, à repetição de sua diferença, para ter seu sentido


Algumas repostas são, então, oferecidas: um animal complementado. A retomada insistente do andar e do esforço
está subindo a montanha; ele é persistente; se não mudar de leva o animal a uma transformação. O enjambement instaura
idéia, apesar do esforço, continuará até o ponto mais alto, ao uma interrupção entre o fato dele se modificar e o em que ele se
suposto extremo de seu esforço... Há um acirramento de uma altera. Não se trata apenas de ter de chegar logo ao em que ele
tensão entre a dor ou o cansaço do animal e sua perseverança. se transforma, mas de enfatizar o ato da transformação, o
Este mesmo estímulo ocorre nos dois versos seguintes, tornar-se. O animal se transforma. E, em uma possibilidade de
de modo ainda mais concentrado, já que aqui a pausa demarca leitura, isso basta. Se o que ele se torna é de grande
a existência do enjambement: importância, mais relevante ainda é o puro tornar-se, já que,
com ele, o poema findará.
De tanto andar fazendo esforço se torna Uma nova exigência de transformação indica que o
um organismo em movimento reagindo a passadas,
poema começou e acabará no meio de um acontecimento, pois
nem o começo nem o fim interessam ao poema do tornar-se. O
A súbita parada do verso indica que algum sentido do
tornar-se é sempre um meio e é a esse meio que o poema nos
sintagma foi ofertado, mas não em sua completude. Ele precisa
quer levar, introduzindo-nos nesta arte intermediária, a das
continuar, necessita buscar seu complemento no verso seguinte.
montanhas. Apesar de interrompido, o último verso escrito se
Acaba o fôlego da linha versejadora, não o do sentido do
lança a um futuro oculto que permanece no campo potencial do
sintagma, que, não decaindo, segue a plenos pulmões. A oração
poema enquanto a aprendizagem que ainda falta ao animal
precisa continuar. Mas ela pausa. Ainda que parcialmente
indefinido, induzindo-nos a imaginá-la. Começando com um
estabelecido (o tornar-se do animal), algo do sentido se mantém
indefinido [um animal – grifo meu], assim, indefinidamente, ele
suspenso (o em que ele se transforma). Apesar da interrupção
(aparentemente) termina, sem fim, na latência da nova
do verso, é necessário que ele retorne ao começo da margem
aprendizagem que tal animal ainda terá de fazer. O poema não
esquerda em uma nova possibilidade, ao começo de um outro
tem fim, não chega a um limite em que tudo nele estanca. A
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Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

sonoridade de seu último verso pára, mas seus sentidos saltam plantação, suspendendo temporariamente a relha para, em
no branco vazio de um futuro anunciado, em direção a um seguida, no início do novo sulco, devolvê-la à terra, o arado faz
campo de possibilidades que permanece insistentemente aberto meia-volta ao fim do verso recém-aberto, enquanto se prepara
à idéia do poema. Em Introdução à Arte das Montanhas ocorre o para, no retorno que o caracteriza, se lançar ao próximo.
que Agamben diz acerca do fim do poema: Na sobreposição ou simultaneidade em desencaixe
entre o limite métrico e o sintático, entre o limite semiótico e o
Como se o poema, enquanto estrutura formal, não semântico, a versura é um vazio repleto de possibilidades que
pudesse, não devesse findar, como se a
possibilidade do fim lhe fosse radicalmente eclode entre as séries, fazendo com que a mancha negra da
subtraída, já que implicaria esse impossível poético
que é a coincidência exata de som e sentido. No
página se misture, acatando-o, ao seu branco, que injeta uma
ponto em que o som está prestes a arruinar-se no interrupção qualquer na movimentação, um vazio qualquer nas
abismo do sentido, o poema procura uma saída
suspendendo, por assim dizer, o próprio fim, numa imagens, um silêncio qualquer nos ritmos, um negativo qualquer
declaração de estado de emergência poético. 8
nas significações. O poema reúne em sua unidade a tensão

Já que o que interessou não foi fazer uma leitura do entre o negro e o branco, entre o caminho e o abismo, entre os

poema, mas dar simplesmente uma primeira indicação do versos e a versura; sua unidade é, portanto, dupla. Negra e

funcionamento do enjambement, é hora de retornar à branca; mas também todos os tons possíveis entre os dois

compreensão de Agamben, que, para determiná-lo como o extremos. Se cada poeta instaura um modo de dizer, com a

distintivo do verso e da poesia, traz à tona outro conceito, versura do enjambement, ele introduz no poema um modo de

versura. Em latim, como versus, o termo versura tem sua origem não-dizer, que se confundem com um modo de dizer todos os

na agricultura. Demarcando o lugar e o momento exatos em possíveis então permitidos, uma maneira de fazer o verso

que, entre um sulco e outro, entre uma linha e outra da escapar do dado de si mesmo para um fora de si que o constitui,
produzindo um ato terrorista no que está sendo dito; colocando o
8
AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema. Traduzido para o português por dito em suspensão, a versura é a dicção do não-dito e de todos
Sérgio Alcides. Revista Cacto, número 1, agosto de 2002. p. 146. os dizeres possíveis.
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Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

Na respectiva teoria do poema, apropriada originalmente acolhimento das duas séries. Através do enjambement, o poema
nestes textos na mesma medida em que esquecida pelos revela o próprio ter lugar da linguagem enquanto linguagem.
tratados de métrica, a palavra versura é o abismo do A suspensão proporcionada pela versura do
enjambement, o momento decisivo em que, na tensão entre o enjambement é a dinâmica pela qual o verso se interrompe e
sintático (que, saltando, continua) e o sonoro ou plástico (que se salta (enjambe); nela, infinitas possibilidades pululam em um
interrompe), lançando-se simultaneamente para trás e para horizonte aberto, em um abismo, em um silêncio. Em tal ponto
frente, neste entre acolhedor de intensidades ainda suspensivo, em tal intervalo de sustentabilidade, em tal
desconhecidas, tudo está suspenso. A versura é o ponto de expectativa exclamativa, em tal paragem articuladora de
suspensão inerente ao enjambement. Na insistência do retorno diferenças tensivas, se realiza um dos maiores jogos de
do verso, com uma força de interrupção querendo se sobrepuser pensamento do poema, uma de suas grandes voltagens, seu
à força de continuidade e esta, àquela, ao mesmo tempo em que suspense, que flagra, mais do que a atualização da língua, a
encontra, no vácuo, o tensivo entre uma força de disjunção e potência da linguagem neste vazio silencioso com infinitos
outra de articulação, a versura do enjambement é a expectativa sentidos no qual o verso salta. Na versura, criar e descriar,
que instaura a possibilidade da diferença (do sentido) na compor e descompor fazem parte da mesma experiência do
repetição (do verso). A versura é o momento exato em que ela poema; nela, um termo não existe sem seu negativo. Seu
própria, enquanto disjunção, dá passagem e nascimento à acontecimento é similar ao modo inaugurado por Pelé de bater
articulação necessária dos versos. Assim, a versura do pênalti. O momento da paradinha inventado por Pelé é decisivo
enjambement, fazendo a palavra retornar à sua origem criadora, para, colocando as possibilidades da direção do chute em
manifesta a idéia do verso e, não menos, a idéia de linguagem: suspensão, preparar, no ínfimo congelamento do tempo em que
confundindo-se com ela, o poema, como um de seus lugares tudo é apreensão, o instante seguinte: o lugar de colocação da
privilegiados, se fende em duas movimentações vazadas, a bola e o para onde ocorre o salto do goleiro, ficando em
mostrar as duas forças intrínsecas a ele e a ela. Ele é o lugar de contrariedade, não podem jamais coincidir. Para Pelé, o goleiro
e a bola são duas séries às quais, aproveitando sempre o acaso
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Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

para com ele inventar acontecimentos inesperados e


inapreensíveis, ele retira a chance de unificação. A paradinha é [...] Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão. [...] 9
a interrupção desconcertante entre o momento anterior (o
primeiro verso, o da corrida em direção à bola, quando se indica
No momento em que tal poema foi composto, e ainda
uma trajetória que o goleiro segue) e o momento posterior (o
hoje, quem poderia esperar tal complemento, de um inusitado –
segundo verso, quando, no momento exato do chute, a trajetória
porque do mais cotidiano e rasteiro – romantismo? Escreve-se o
indicada é subitamente redirecionada, para o desespero do
nome da pessoa amada não com caneta, lápis, máquina de
goleiro). Imagino que, como para o leitor aparelhado, para o
escrever ou, mesmo, sangue, mas com letrinhas de macarrão
goleiro, a paradinha deva durar uma eternidade, pois nela está o
que bóiam ou afundam naquela sopa de nossa infância. Ou,
abismo da cobrança; em seu momento, diversas possibilidades
então, no poema Igreja:
devem passar tanto pela cabeça e corpo do goleiro quanto pela
cabeça e corpo do batedor. A versura é o instante intensivo
[...] O padre falou do inferno
pendente entre dois versos, duas segmentações, duas séries sem nunca ter ido lá. [...] 10

em enjambement. Fazendo uma analogia, é como se Pelé fosse


Como alguém pode acreditar saber alguma coisa de
o poeta maior do futebol, levando, entre outras coisas, o
uma experiência sem nunca ter sido capaz de experimentá-la?
enjambement para o esporte; o Pelé da poesia brasileira é
Em Lanterna Mágica, a cessação intensiva continua a agir com
Drummond, sendo nele que se mostram algumas das
força altamente transformadora:
paradinhas mais impressionantes de nossa poesia.
A existência de pausas intensivas ao fim de versos de
[...] Meus amigos todos estão satisfeitos
Drummond é freqüente. Alguns exemplos demonstram o modo
como o poeta faz com que o retorno do segundo verso, pelo 9
ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Ed. Nova
inesperado que traz à tona, nos surpreenda em relação ao Aguilar, 1992. p. 14.
10
primeiro. No poema Sentimental, é escrito: Id. Ibid. p. 15.
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Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

com a vida dos outros. [...] 11 próprios quarenta anos. O núcleo de tensão da frase estaria
demasiadamente encoberto para que fosse vislumbrado, mesmo
Nestes exemplos, poderia dizer que a ironia poética é de
por leitores aparelhados e acostumados com procedimentos
grande eficácia; em uma aporia também cara à poesia, ela
afins. Também para estes, seria demasiadamente difícil flagrar
desmonta o que vinha se consolidando, levando o verso anterior
os sentidos harmonicamente contrários embutidos na frase. A
a uma catástrofe de sentido, a um vazio de sentido, com a
tensão poética ficaria oculta por detrás do sentido da prosa, a
reversão que, em seguida, ocorre. Portadora do sentido em
voz, por detrás da voz. Assim, com a interrupção, o
catástrofe e da negatividade, tal ironia aporética aparece com
enjambement é um modo de trazer a complexidade para a
toda sua grandeza em outro poema de Drummond, A Flor e A
superfície, de tornar raro o que pode ser tido por comum. No
Náusea, realizando, agora, sim, um dos mais incríveis
enjambement exemplar e paradigmático de Drummond, no
enjambements da língua portuguesa:
momento suspensivo e irônico do salto sobre o abismo, a
reversão do sentido é total, fazendo com que, utilizando-se
[...] Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado. [...] 12
apenas de uma palavra, o retorno do segundo verso instaure
uma diferença ao complementar o anterior exatamente com o
Tudo nele é perfeito. Se a frase fosse escrita em prosa, contrário do que, neste, era afirmado. O leitor acha que o poeta
nada demais aconteceria com o sentido: Quarenta anos e chegou aos quarenta anos sem nenhum problema, estando com
nenhum problema resolvido, sequer colocado. A continuidade a vida, em todas as suas instâncias, resolvida, mas eis que vem
prosaica levaria os leitores a perceberem apenas o sentido a ironia e nos mostra o contrário, que ele está repleto tanto de
presente na superfície linear da frase, tornando-a comum, dita problemas insolúveis quanto de outros que, incomodando, nem
por qualquer pessoa que estivesse insatisfeita com seus conseguiram ganhar formulação.
Eventualmente, grandes prosadores também podem
11
Ibid. p. 9. realizar, senão o enjambement, de algum modo, seu efeito de
12
Ibid. p. 97. parada intensiva, em uma escrita para a qual não existe a
32
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

possibilidade da versura. Eles criam frases que, na linearidade momentos de não menos raros escritores, se não pode haver
contínua da prosa, conseguem obrigar o leitor comum a uma uma pausa cronológica, está lá, em pleno trabalho oculto, a
pausa do sentido rearticuladora do que vinha sendo dito na frase potência da paragem típica da poesia. Em gastei trinta dias para
que está lendo. Neste caso, o respectivo procedimento poético ir do Rocio Grande ao coração de Marcela, ou em Marcela
invade implicitamente o prosaico, tornando-se, de algum modo, amou-me durante quinze meses e onze contos de réis, ou,
legível, mesmo sem sua explicitação formal. O maior exemplo ainda, em ei-lo que [Marcela] me interroga, com um rosto
entre nós é Machado de Assis. Em Memórias Póstumas de Brás cortado de saudades e bexigas, como não ler a interrupção
Cubas, por exemplo, algumas de suas frases conseguem (des)articuladora característica dos versos? O mesmo ocorre em
formular magistralmente uma suspensão do pensamento com a Macedônio Fernández, em La oratoria del hombre confuso: ojos
reversão do sentido prévio na continuidade da prosa, obrigando negros como la pena del que no los ha visto [olhos negros como
o leitor a ler, nela, uma interrupção, não menos irônica do que as a mágoa daquele que não os viu] 14. Em tais casos, Machado e
mencionadas, possibilitadas pelo enjambement. Nesses casos, Macedônio oferecem ao leitor a possibilidade de ler tais frases,
o escritor realiza algo do efeito do enjambement na linearidade ainda que em prosa, em versos (farei o corte somente nos locais
de sua prosa, que passa implicitamente a conter possibilidades que interessam à exposição em curso):
do poema; deles, poderia ser dito o que Agamben fala do
cinema de Guy Debord: Não se trata de uma paragem no
sentido de uma pausa, cronológica, mas antes de uma potência consagrado a Guy Debord, com uma retrospectiva de seus filmes, durante a

de paragem que trabalha 13 a frase. Na prosa, em raros 6ª Semana Internacional de Vídeo, em Genebra, no ano de 1995. Com 3
outros artigos, este texto foi publicado no livro, no momento indisponível para
13
AGAMBEN, Giorgio. O Cinema de Guy Debord; imagem e memória. Texto venda, intitulado Image e Mémoire, Éditions Hoëbeke, 1998 (p.65-76).
acessado no sítio eletrônico “Blog Intermídias”, (Collection Arts & Esthétique)
14
<http://www.intermidias.blogspot.com/2007/07/o-cinema-de-guy-debord-de- FERNANDEZ, Macedônio. Brindis di recienvinido; la oratória del hombre
giorgio.html>, no dia 18 de fevereiro de 2008. Este texto é a transcrição – confuso. Acessado em fevereiro de 2008, no link
revista por Agamben – de uma conferência pronunciada em um seminário <http://www.elortiba.org/macedonio.html>.
33
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

gastei trinta dias para ir do Rocio Grande agregação e enlaçamento entre o rímico e o nível do significado.
ao coração de Marcela
Enquanto as interpretações habituais da rima privilegiam um
Marcela amou-me durante quinze meses
e onze contos de réis utilitarismo que coloca o rímico integralmente a serviço da

ei-lo que Marcela me interroga, com um rosto


expressão finalmente unificada, entendida como o objetivo
cortado de saudades primeiro e final do poeta, o italiano continua instaurando a
e de bexigas
necessidade de uma violência cismática ao flagrar, na
olhos negros como a mágoa
daquele que não os viu aproximação fonética das palavras rimadas, um distanciamento
do sentido; enquanto aquelas cultivam uma integração entre as
Em O fim do Poema, há outro instituto poético que séries significante e significada, este delimita a barreira entre
mantém a oposição, o cisma ou o contraste entre o campo elas como ingrediente fundamental do poético. Na consonância
prosódico e o semântico, entre o som e o sentido: a rima. da cadeia semiótica, a dissonância da corrente semântica.
Também ela ocorre no poema, majoritariamente, em um fim, o Se, na rima, está mantida a estrutura do duplo tal qual
do verso. O procedimento da rima, no qual a repetição semiótica trazida à tona por Valèry, que diz ser o poema a hesitação
do som se descola do evento semântico, induz a mente a prolongada entre o som e o sentido, o mesmo ocorre com outro
requerer uma analogia de sentido lá onde nada pode encontrar instituto poético trabalhado por Agamben em O Cinema de Guy
15
além de uma homofonia . Eis o corte inerente à rima: a Debord e em Idéia da Cesura: a cesura. Por ela necessitar do
semelhança do som / a diferença do sentido. A expectativa de fim do verso para demarcar sua parada, naquele texto, a cesura
que a semelhança da pronunciação entre as palavras leve a aparece ao lado do enjambement como a única coisa que se
uma identidade de significação é fantasiada e, simultaneamente, pode fazer na poesia e não na prosa 16. Em Idéia da Cesura 17,
quebrada. Mais uma vez, Agamben oferece outra leitura daquela também se presencia a disjunção ou a não-coincidência entre o
mais freqüente, que lê na rima o esforço de estranhamento,
15 16
AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema. Traduzido para o português por AGAMBEN, Giorgio. O Cinema de Guy Debord; imagem e memória.
17
Sérgio Alcides. Revista Cacto, número 1, agosto de 2002. p. 143. AGAMBEN, Giorgio. Idée de la cesure. IN: Idée de la prose. p. 25-27.
34
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

som e o sentido, que, na viagem, no que corre, no andamento,


Eu vou para o rio sobre um cavalo
no movimento, no transporte, na seqüência, no ritmo, instaura o que quando eu penso um pouco um pouco ele
detém-se
freio, o que corta, a pausa, o intervalo, o movimento suspenso, o
parar, a interrupção, o anti-rítmico, termos afins aos
Em italiano, a preposição verso (para, em direção a) se
arquissemas anteriormente mencionados e, por constituírem um
confunde com o substantivo verso. Poderia ser dito que o aonde
forte eixo estruturador do pensamento agambeniano,
o eu do poema vai sobre seu cavalo é o próprio verso, o rio que
constantemente retornantes. Na bela definição de Celso Cunha
deságua suas águas no poema. O verso é o leito cujo rio irriga o
e Lindley Cintra, a cesura é um descanso da voz no interior do
pensamento que nos conduz em suas águas. Começando no
18
verso ; se o trabalho da voz no verso ou no poema é torná-lo
princípio do verso que o assume em sua origem e destinação, o
dizível, a cesura, sendo a folga da voz que faz descansar o ritmo
eu cavalga na linha interrompida do verso desde o seu princípio.
do verso, é a presença do impronunciável que divide o verso
Filiando-se multiplamente à tradição exegética, Agamben
pelo silêncio vocal existente em um ou mais de seus momentos
menciona que o cavalo no qual o poeta viaja é o elemento vocal
pausadores. Assim, a cesura também contribui para uma dicção
e sonoro da linguagem 19. Assumido enquanto sujeito e objeto, o
poética do não-dito.
verso fala do verso, o elemento vocal e sonoro fala do elemento
O exemplo maior de execução de tal artifício dado por
vocal e sonoro – o poema se coloca como um se mostrar da
Giorgio Agamben provém de Sandro Penna, privilegiado como o
linguagem enquanto linguagem.
poeta que, no século XX, possui maior consciência da utilização
Como no enjambement, se, em seu ímpeto, o cavalo
de tal instituto poético:
quer saltar adiante no galope do metro, há também no correr do
verso uma rédea que o freia. Esta rédea é a cesura. No segundo
Io vado verso il fiume su un cavallo
che quando io penso un poco um poco egli si ferma
verso de Sandro Penna, tudo é simétrico: tem-se um alexandrino
clássico, com a cesura na sexta criando dois hemistíquios iguais
18
CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português
19
Contemporâneo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985. p. 658. AGAMBEN, Giorgio. Idée de la cesure. IN: Idée de la prose. p. 25.
35
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

e a repetição da mesma palavra de cada lado da cesura (um cesura? Buscando uma alternativa de resposta a estas
pouco) alongando ao máximo o intervalo silencioso entre o jogo indagações, Agamben cita Hölderlin:
de espelhamentos. O silêncio provocador da dilaceração do
verso, de sua interrupção anti-rítmica, faz com que as duas De fato, o transporte trágico é vazio e
verdadeiramente livre. Isto ocorre porque, na
metades apareçam com forças iguais, sem que uma seja seqüência rítmica das representações em que o
transporte se manifesta, torna-se necessário aquilo
arrastada pela outra ou para ela penda. Além de simétrico, o que que no interior do metro se chama de cesura, quer
nele é dito se mistura integralmente ao modo como é dito: mas dizer, a pura palavra, a interrupção anti-rítimica que,
no ponto culminante, se opõe à seqüência e ao
não nos apressemos – também aqui a tensão está mantida: encanto das representações a fim de tornar
manifesta, no lugar de sua alternância, a própria
como a cadeia significante do verso, o cavalo vai e se detém. representação.
20

Nessa dupla força, nessa dupla direção tensiva, o deter-se do


cavalo na cesura do verso se confunde explicitamente com o Tal qual ocorre na tradição à qual Agamben se filia, há

pensamento (que quando eu penso um pouco...). O pensamento em Hölderlin uma busca para propiciar à poesia moderna uma

surge para impor uma paragem ao sentido do verso que se quer


20
HÖLDERLIN. Citado por Agamben In: Idée de la cesure. IN: Idée de la
como pensamento. Como todos os outros, o exemplo do filósofo
prose. p. 26 e 27. Este texto de Höldernlin se intitula Observações sobre O
é perfeito para o que quer. Da mesma forma que ocorrera com o
Édipo, disponível em português no livro Reflexões. Tradução de Márcia C. de
enjambement, a cesura, suspendendo o movimento entre dois Sá Cavalcante e Antonio Abranches. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
instantes, se coloca como um elemento intemporal do p. 93-100. Nesta tradução, o texto se apresenta assim:

pensamento. A reviravolta do verso se dá na pausa que quebra O transporte trágico é, propriamente, vazio e o mais desprendido.
Por isso, na consecução rítmica das representações em que se apresenta o
a continuidade.
transporte, faz-se necessário aquilo que, na dimensão silábica, se costuma
Mas o que se pensa na cesura do verso? Para quê
chamar de cesura, a pura palavra, a interrupção anti-rítmica a fim de se
sua existência tensiva com a parada do pensamento no ímpeto encontrar a alternância capaz de arrancar as representações numa tal
de galope do verso? Para quê, mais uma vez, o foco neste culminância que o que aparece não é mais a alternância das representações

vazio, nesta negatividade do pensamento, desta vez, através da e sim a própria representação. p. 94.
36
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

percepção pensada de sua artesania que, estabelecendo os linguagem, o pensamento enquanto pensamento, o pensamento
limites, princípios e fins mais distintivos de sua composição, enquanto linguagem, e é por isso que, na compreensão da obra
estabelecendo as forças concretas que atuam no de arte como um meio puro 21 (como uma mídia que, no lugar de
comportamento do objeto artístico, deixe os procedimentos desaparecer no que nos dá a ver, se mostra a si mesma
materiais da construção do poema serem apreendidos, enquanto um meio sem fim), Agamben pode terminar seu breve
transmitidos e praticados. Também neste sentido, que nem é o Idéia da Cesura dizendo: Adormecido em seu cavalo, o poeta
principal, a necessidade de mapeamento dos institutos poéticos, acorda e contempla por um instante a inspiração que o conduz –
incluindo a cesura. Freando, em sua interrupção anti-rítimica, a ele não pensa em nada mais do que em sua própria voz 22.
seqüência das representações, ela, mostrando o constante O Cinema de Guy Debord apareceu algumas vezes
reinício da palavra, ou seja, a retomada da linguagem desde o como referência deste ensaio baseado em um grupo de textos
vazio por ela mesma instaurado, não aponta para nenhum que partem, sobretudo, além dele, do Idéia da Prosa, do Idéia da
elemento previamente existente fora de si que pudesse Cesura e de O Fim do Poema. Buscando pensar o cinema
assinalar: o que a parada da cesura manifesta é a liberdade de o realizado por Guy Debord, ele acaba trazendo à tona dois
transporte ser puro transporte de si (e não transporte de ou para institutos poéticos estudados: como explicitado, a cesura
algo alheio a si), de a representação representar apenas a aparece, então, ao lado do enjambement como a única coisa
representação (e não um dado fora de si), de a palavra ser pura que se pode fazer na poesia e não na prosa 23. Por que falar de
palavra (e não um substituto de qualquer outro ente),
21
mostrando-se, ao homem, enquanto origem, pressuposto. No AGAMBEN, Giorgio. O Cinema de Guy Debord; imagem e memória. Em
Observações sobre O Édipo, Hölderlin afirma: Entre os homens, só é possível
estabelecimento da hesitação prolongada entre o som e o
ver as coisas na medida em que são um algo, ou seja, em que se deixam
sentido, a cesura é livre e vazia: livre para ser o si mesmo da
reconhecer por um meio (moyen) de seu aparecimento e que se pode
linguagem enquanto pura palavra e vazia de qualquer referência determinar e aprender o modo de seu condicionamento. p. 93.
exterior a ela para se exibir enquanto tal. Tanto no enjambement 22
AGAMBEN, Giorgio. Idée de la cesure. IN: Idée de la prose. p. 27.
23
quanto na cesura, o poema pensa a linguagem enquanto AGAMBEN, Giorgio. O Cinema de Guy Debord; imagem e memória.
37
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

tais institutos poéticos, quando o texto tem por objetivo a que o romance faz isso melhor. As novelas
radiofônicas, os dramas e as soap operas
demarcação de algo próprio ao cinema? Contrariamente à televisivas fazem, neste sentido, um bom trabalho.
Ultimamente, tenho pensado em um outro tipo de
tendência predominante que associa o cinema à narrativa, cinema que me torne mais exigente e que se defina
como uma sétima arte. Neste cinema há música,
Agamben o leva a deslizar em direção à poesia, salientando que sonho, história, poesia. Mas, seja como for, acho
o cinema está muito mais próximo da poesia que da prosa 24. Um que o cinema continua a ser uma forma de arte
menor. Questiono-me, por exemplo, por que motivo
dos cineastas mais importantes das últimas décadas, Abbas ler uma poesia excita a nossa imaginação e nos
convida a participar de sua realização. Sem dúvida,
Kiarostami, revela um pensamento similar, que busca afastar o a poesia, não obstante seu caráter de incompletude,
é criada para alcançar uma unidade. Quando minha
cinema da literatura, da narrativa ou do contar histórias, imaginação se mistura com ela, a poesia torna-se
minha. A poesia nunca conta histórias. Oferece uma
aproximando-o radicalmente da poesia. Pela beleza, vale a série de imagens. Representando-as em minha
longa citação: memória, apoderando-me de seu código, posso
elevar-me ao seu mistério. Raramente encontrei
alguém que, ao ler uma poesia, dissesse: “Não a
compreendi”. Porém, de um filme, se alguém não
Não há nenhuma razão especial pela qual eu tenha capta uma relação, uma conexão, geralmente diz
me tornado um realizador cinematográfico. Meu pai que não o entendeu. Ao contrário, a incompreensão
era caiador de paredes e não me lembro de faz parte da essência da poesia. Aceita-se tal como
nenhum sinal de vida cultural em minha família. Não ela é. O mesmo vale para a música. O cinema é
vejo, no meio em que vivi, nenhum sinal particular diferente. Nos aproximamos da poesia pelos nossos
que me houvesse encaminhado para a carreira sentimentos, e do cinema por nosso pensamento,
artística, e em especial para o cinema. Talvez seja ou por nosso intelecto. Não se imagina que alguém
por isso que até agora não tenha conseguido possa contar uma poesia, mas é normal contar, ao
encontrar uma definição de cinema. Mas posso telefone, um bom filme a um amigo. Penso que, se
dizer do que não gosto nele. Não gosto quando se queremos que o cinema seja considerado uma
limita a contar uma história ou quando se torna um forma de arte maior, é preciso garantir-lhe a
substituto da literatura. Não aceito que subestime possibilidade de não ser entendido.
ou exalte o espectador. Não quero estimular a Como dizia, não suporto o cinema narrativo.
consciência do espectador nem criar nele Abandono a sala. Quanto mais se esforça por
sentimentos de culpa. No mínimo, creio que se contar, e quanto mais sucesso tem nisso, maior é
deveriam narrar os fatos de modo que ele não seja minha resistência. A única maneira de prefigurar um
levado a sentir-se culpado. Se considerarmos que o cinema novo reside em um maior respeito pelo
cinema tem o dever de contar histórias, parece-me papel desempenhado pelo espectador. É preciso
antecipar um cinema “in-finito” e incompleto, de
24 modo que o espectador possa intervir para
AGAMBEN, Giorgio. O Cinema de Guy Debord; imagem e memória.
preencher os vazios, as lacunas. A estrutura do
38
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

filme, em vez de sólida e impecável, deveria ser apelo contemporâneo que tem, chegando ao ponto de filmes,
enfraquecida, tendo em conta que não se deve
deixar escapar os espectadores! Talvez a solução como os de Debord e Histoire(s) du cinéma, de Godard, lidando
adequada consista em estimular os espectadores a
uma presença ativa e construtiva. Por isso, estou com imagens já existentes da história do cinema ou das mídias,
meditando a respeito de um cinema que não faça
ver. Estou tentando entender o quanto se pode
não terem nem mesmo a necessidade da filmagem, mas apenas
fazer ver sem mostrar. Neste tipo de filme, o a da montagem, que também aparece enquanto um meio puro.
espectador pode criar as coisas de acordo com a
sua própria experiência, coisas que não vemos, que Caracterizando a técnica composicional cinematográfica,
não são visíveis. 25
o instituto da montagem segue conceitualizações afins às dos

Como para Kiarostami, para Agamben, antes de ser institutos poéticos na medida em que suas condições de

narrativo, o cinema é poético, o que, para o filósofo, significa possibilidade se estabelecem no duplo tensivo da repetição e da

dizer que seu instituto fundamental funciona do mesmo modo paragem, sendo tais elementos que, expondo-se, emergem no

que os institutos poéticos vistos até aqui, mostrando que a primeiro plano de um cinema contemporâneo privilegiado pelo

incompreensão faz parte da essência da poesia. Se o italiano: Já não temos necessidade de filmar, basta-nos repetir e

enjambement e a cesura aparecem em um texto sobre o parar 26. O que são a repetição e a paragem em suas

cinema, é porque a técnica composicional deste último tem, capacidades de levar a própria filmagem a um segundo plano do

desde o princípio histórico até nossos dias, a montagem por cinema? Repetir uma imagem previamente existente é repeti-la

paradigma, com a diferença radicalizadora de que, atualmente, em sua diferença, ou seja, ainda que o retorno diga respeito a

evidenciando-se ainda mais, ela passa para o primeiro plano, um suposto mesmo, pelo corte que o força à paragem e pela

mostrando-se enquanto tal. Sendo um dos procedimentos mais montagem, o que dele aparece é sempre um outro. Nesta

necessários ao homem do século XX, a montagem é a repetição dinâmica, recortada e deslizante, a imagem não está

característica principal que dá ao cinema sua singularidade e o acabada, fechada, concluída, impotente, mas, recolocando-a em
novas situações, a repetição e a paragem restituem a imagem
25
KIAROSTAMI, Abbas. Abbas Kiarostami. Tradução de Álvaro Machado.
26
São Paulo: Cosac Naify, 2004. p. 181-183. AGAMBEN, Giorgio. O Cinema de Guy Debord; imagem e memória.
39
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

existida a um campo de renovação, a um campo ainda não dizer: o que é possível [potente, dunata] segundo a
verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não
realizado de possibilidades, a uma zona imagética potencial. Se diferem o historiador e o poeta por escreverem em
verso ou prosa (pois bem poderiam ser postos em
o cinema de Debord não faz concessões ao público, é por não verso as obras de Heródoto, e nem por isso
deixariam de ser história, se fossem em verso o que
fazer concessões aos poderes dominantes de sua época, eram em prosa) – diferem, sim, em que diz um as
preferindo apostar na criação de uma saída do enquadramento coisas que sucederam, e outro as que poderiam
suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico
dos poderes estabelecidos. Certamente por isso, em seus e mais sério do que a história, pois refere aquela
27
principalmente o universal, e esta o particular.
filmes, enquanto lê em off textos teóricos ou ensaísticos –
repletos de citações e saques –, inéditos ou existentes, Debord Salientando o fato de, diferentemente de Aristóteles,
pode se utilizar de imagens de filmes russos ou hollywoodianos, Agamben, pelo menos neste momento da abordagem, querer
comerciais de TV, cenas eróticas, jornais, documentários etc., marcar a diferença entre escrever em verso e prosa, na
recortados, com a força da repetição e da paragem, da passagem citada, poético e filosófico, o cinema é o pólo oposto
ambiência original e juntados na montagem que lhes outorga um das mídias televisivas com seus telejornais e manipulações da
novo valor. publicidade, que ajudam a estabelecer, no lugar do filosófico e
Transformando o real em possível e o possível em real, do artístico, o homem do ressentimento: As mídias dão-nos
o acabado em inacabado e o inacabado em acabado, o sempre o fato, o que foi, sem a sua possibilidade, sem a sua
sucedido em potente e o potente em sucedido, e criando um potência, dão-nos, portanto, um fato sobre o qual somos
indiscernível ou uma zona de indecibilidade entre estes termos impotentes. As mídias adoram o cidadão indignado, mas
tidos como contraditórios, se escutarmos Aristóteles, a repetição impotente. É o mesmo objetivo do telejornal 28. A potência do
cinematográfica se aproximaria tanto da poesia quanto da cinema de Guy Debord é que:
filosofia:
27
ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Ars
Pelas precedentes considerações se manifesta que Poética, 1992. Edição bilíngüe. p. 52-55.
não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é, 28
AGAMBEN, Giorgio. O Cinema de Guy Debord; imagem e memória.
sim, o de representar o que poderia acontecer, quer
40
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

quanto a repetição de diversas técnicas métricas e semânticas


Quando mostra um trecho do telejornal, a força da específicas, previamente asseguradas para este momento,
repetição é tal que deixa de ser um fato consumado
e volta a ser, por assim dizer, possível. Nos garantiriam uma dificuldade dos poetas em lidarem com o fim do
perguntamos: “Como isto foi possível?” – primeira
reação –, mas, ao mesmo tempo, compreendemos
poema. Assumir a derrocada do verso para a prosa ao fim do
que, sim, tudo é possível, mesmo o horror que nos poema seria um problema para o pensamento agambeniano, na
fazem ver. 29
medida em que quebraria com o específico do poema, tão caro
Trazer a potência enquanto potência ao campo da a ele. O que o escritor filosófico busca como alternativa à
atualização é, para Agamben, a tarefa maior da arte e, questão por ele mesmo levantada é uma possibilidade de,
conseqüentemente, o encaminhamento a que servem os contrariamente à primeira impressão, manter, igualmente no
institutos poéticos valorizados. Entre os mencionados, que nos último verso, a obsessão do distintivo do poético: a
ensinam estruturas formais ou materiais do poema que incongruência entre o rítmico e o sonoro, a ponto de, agora, no
invariavelmente fazem eclodir o informal ou o imaterial, o último fim do poema, eles se descobrirem para sempre separados, sem
que falta ver é o fim do poema. Como os outros, também ele possibilidade de conciliação. Como isso é possível?
terá de abrir e manter aberta a infinita zona de possibilidades – Para responder a este problema, Agamben parte do que
ou a idéia – do poema. A questão colocada é, de fato, de grande na lírica provençal e stilnovística é chamado de rima não-
pertinência: se o distintivo do poema se realiza no enjambement, relacionada (estrampa), ou seja, o que chamamos de rimas
o que ocorre no último verso, quando tal instituto já não é dissolutas, separadas ou isoladas. Ela é aquela que, por não ter
possível? O último verso seria um abandono do poema em seu par homofônico – e com sentido diferenciado – em sua
direção à prosa, já que nele a corrente semiótica e a semântica estrofe, faltando onde era esperada 30, dá, por sua suposta
finalmente se fundiriam num ponto de coincidência ou em uma solidão, a ilusão de coincidência entre o som e o sentido, como
bodas mística? Tanto a fragilidade de inúmeros fins de poemas
30
AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema. Traduzido para o português por
29
AGAMBEN, Giorgio. O Cinema de Guy Debord; imagem e memória. Sérgio Alcides. Revista Cacto, número 1, agosto de 2002. p. 144.
41
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

se, no lugar de uma oposição, um se dissolvesse no outro. O faz dos poemas, assim trabalhados, construções
31
perfeitas e inesquecíveis.
que acontece, entretanto, é a manutenção do desacordo das
duas séries através da permanência da rima, deslocada, No mesmo ensaio, fazendo um levantamento das rimas
entretanto, para uma situação metaestrófica: a palavra que lhe dissolutas ou não-relacionadas nas dezoito canções de Arnaut
faz par (sua rhyme-fellow) está na estrofe seguinte, assegurando Daniel, Augusto de Campos realiza um mapeamento que inclui
a tensão entre o mesmo da homofonia e a diferença do sentido, as semi-dissolutas. Estas (em número de cinco canções)
sem os deixar, mais uma vez, coincidir. Uma passagem de mesclam rimas intra-estróficas com rimas interestróficas,
Augusto de Campos testemunha uma perícia técnica e material podendo ser visualizadas no exemplo abaixo, em que o primeiro
de extrema relevância em tal polifonia provençal: verso rima com o quarto, o segundo com o terceiro, enquanto
que o quinto, o sexto e o sétimo só vão rimar com os localizados
O conceito de “rima polifônica” tem a ver com as nas respectivas posições nas estrofes seguintes, do começo até
chamadas rimas separadas ou isoladas (rimas
dissolutas ou estrampas) e com as estrofes (coblas) o fim do poema:
correspondentes, a saber, rimas que não se
repetem no interior da estrofe, mas que
comparecem na mesma posição em todas as
demais. Muito menos comuns do que as já difíceis De outro modo e de outra razão
estrofes unissonans (as que, mantendo o mesmo me vem um cantar sem igual,
esquema rímico, rimam internamente), as que e não pensem que do meu mal
Pound denomina de “polifônicas” exigem quero extrair boa canção,
extraordinária perícia. A partir de uma sonoridade mas é mister que eu faça demandar
livre dentro de cada estrofe, sem rimas internas, aquela que ao direito julga torto,
constrói-se aqui um encadeamento fônico através e por muitos, não três, devo fazê-lo.
da repercussão posicional das rimas, que entre-
ecoam à distância, de uma estrofe para a outra. As Devo pedir paz e perdão,
bizarras sonoridades das rimas escolhidas, rimas se esse direito natural
raras (escarsas ou caras rimas), o recorte rítmico não me tolhem, por ilegal.
menos comum, chegando à assimetria, e a própria piedade salvou o ladrão
linha melódica (tudo isso era para ser cantado!)
contribuem para a mnemotécnica virtuosística, que 31
CAMPOS, Augusto de. mais provençais. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987. P. 32-33.
42
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

ao qual virtude alguma quis salvar, E a flama é suave, onde mais arde;
e eu dela não pretendo outro conforto Que Amor requer de mim que eu seja tanto:
salvo rogar que atenda ao meu apelo. Franco, veraz, fiel e cumpridor,
E em sua corte um rei não vale um flandres.
[...] 32
[...] 33

Em número de nove, as canções com dissolutas ou


Augusto de Campos ainda salienta a existência de, entre
estrampas, rimando meta-estroficamente (e não dentro da
as nove canções com rimas não-relacionadas, a existência da
mesma estrofe), podem ser flagradas no exemplo a seguir, em
“Sextina”, o único caso de palavras-rimas (intra, ongla, arma,
que o primeiro verso da primeira estrofe rima com o primeiro das
verga, oncle, cambra) reiteradas em ordem permutativa nas
seguintes, o segundo, com o segundo das subseqüentes e
estrofes seguintes, de tal sorte que o acréscimo de uma nova
assim por diante, salvo na última estrofe, uma tornada, ou seja,
estrofe operaria o retorno à seqüência inicial 34:
no caso, uma estrofe de três versos, quer dizer, com menos da
metade dos sete versos das estrofes anteriores, que repete as
O firme intento que em mim entra
rimas dos três últimos versos de todas estrofes que a língua não pode estraçalhar, nem unha
de falador, que fala e perde a alma;
precederam: e se não lhe sei dar com ramo ou verga,
lá onde ninguém pode conter meu sonho,
irei fruí-lo em vergel ou em câmara.
Vermelho e verde e branco e blau,
Vergel, vau, monte e vale eu vejo, Quando me lembro de sua câmara
A voz das aves voa e soa, onde eu bem sei que nenhum homem entra,
Em doce acordo, dia e tarde; por mais que irmão ou tio danem meu sonho,
Então meu ser quer que eu colora o canto eu tremo – membro a membro – até a unha,
De uma flor cujo fruto seja amor, como faz um menino em frente à verga:
Grão, alegria, e olor de noigandres. tanto é o temor de que me falte a alma.

Amor me leva em sua nau


E põe seu fogo em meu desejo,
Mas tal viagem, sei que é boa,
33
Ibid. p. 111.
32 34
Id. Ibid. p. 75. Ibid. p. 34.
43
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

[...] 35 stilnovística, com a estrofe seguinte, aonde, de sua frenagem,


salta. Como, neste caso, se trata do final do poema, ou seja, não
Levando o instituto poético da rima não-relacionada para
há estrofe seguinte, a não-relacionada se lança no abismo do
o fim do poema (no caso, uma semi-dissoluta ou uma semi-não-
silêncio, numa queda sem fim 37. O som do poema finda, mas, de
relacionada), a partir da estrofe final de um dos poemas do que
algum modo, como no poema de Leonardo Fróes, ainda que na
ficou conhecido como as Rimas Pedrosas de Dante (Quisera no
indeterminação absoluta provocada pelo vazio, a potência do
meu canto ser tão áspero...), Agamben oferece um exemplo
sonoro, aqui, na expectativa da rima, se apresenta radicalmente,
para o seu achado. Ei-lo, na tradução de Haroldo de Campos:
como se o poema não quisesse, nem pudesse, findar. Seu
suposto fim é um se lançar nas possibilidades que nunca
Canção, parte certeira àquela dama
que me feriu no peito e que me anula
cessam do poema e, desta maneira, suspendê-lo no sem fundo
onde eu ponho mais gula, da pura potência, na idéia do poema.
vara-lhe o coração feito uma lança:
alto prêmio se colhe na vingança. 36 Se o abismo trazido à tona não apenas pelo fim do
poema, mas por todos os institutos poéticos privilegiados por
Os quatro últimos versos se relacionam, dois a dois, por
Agamben, é silencioso, é porque o silêncio se confunde
rimas emparelhadas. O primeiro verso finda com uma não-
integralmente com a linguagem em sua idéia, ou seja, com a
relacionada, nomeadora do investimento maior da poesia de
idéia da linguagem. A idéia da linguagem, abertura para as
Dante (donna), dando a impressão de antecipar as bodas
infinitas possibilidades do dizer, é o caminho de nascimento da
místicas entre o som e o sentido. A conclusão original de
tensão entre todo e qualquer sentido e toda e qualquer
Agamben é que essa rima não-relacionada se relaciona, como é
sonoridade, a passagem para as infinitas possibilidades do
de praxe na utilização de tal instituto na poesia provençal e

35
Ibid. p. 130.
36 37
CAMPOS, Haroldo de. Pedra e Luz na Poesia de Dante. Rio de Janeiro: AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema. Traduzido para o português por
Imago, Col. Lazuli, 1998. P. 61. Sérgio Alcides. Revista Cacto, número 1, agosto de 2002. p. 148.
44
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

dizer, o devir visível da palavra 38. Nenhum fundamento cabe ao poéticos mostram o poema como um gago a repetir, a cada
poema, senão este abismo, chamado idéia da linguagem ou momento, a origem de sua proveniência, com um tipo de fala
poesia, através do qual, nascendo, o poema passa. O poema que, não querendo de modo algum se afastar de sua origem (da
não é nada mais do que um excesso que traz em si a abertura poesia), lembra-se, a cada instante, dela, criando procedimentos
sem fundo da poesia enquanto o ter lugar – a passagem – de para mostrar isto que é o mais memorável, o próprio poético, a
seu próprio nascimento, enquanto o ter lugar – a passagem – da passagem da poesia. Nenhum conteúdo importa à poesia – ela
própria palavra. Enquanto o poema é o excesso a manifestar o é justamente o eclodir possível de todo e qualquer conteúdo.
caminho da poesia, esta é a derrocada de todo e qualquer Todo e qualquer conteúdo é apto à poesia; pelo menos, desde
poema, na medida em que o obriga a um eterno retorno a ela um dos primeiros (senão o primeiro ou segundo) diálogo de
mesma, desejando revelar a importância maior do fato de o Platão, já se sabe que o poema pode ter qualquer assunto, pode
poema precisar se colocar enquanto pura criação a se repetir falar sobre qualquer tema. Dizer que a poesia acata todo e
infinitamente por sua diferença através da passagem poética. qualquer tema é o mesmo que dizer que ela, sem ter
Em um procedimento artístico que, ironicamente, se especificamente o que dizer, é necessariamente vazia de
autonega, estando sempre por se fazer, o sentido do poema é conteúdos, ou seja, sua demasia se confunde com sua
precisar, a cada instante, renegando-se, se refazer em uma vacuidade. Qualquer que seja o conteúdo do poema, o que os
nova diferença. Recomeçar, sempre mais uma vez. Daí, institutos poéticos querem manifestar é a poesia, a linguagem
também, a importância do verso, como retorno constante à em sua idéia ou o plano desde o qual o poema, nascendo, se
passagem da criação. É isso que, com suas interrupções e realiza. Esta é a verdade da poesia (e, conseqüentemente, da
recomeços, todos os institutos poéticos mostram: a proximidade linguagem): logo ao criar o poema, matá-lo, em uma de suas
do poema com sua origem poética, à qual, com todos os seus possibilidades, fazendo-o divergir de si mesmo justamente por
procedimentos, ele constantemente retorna. Os institutos aquilo que o faz ser o que é – a poesia. Como origem e
proveniência da exposição filosófica, a exposição poética
38
AGAMBEN, Giorgio. Idée de la langage. In: Idée de la prose. p. 102. também é, então, a que, qualquer que seja a coisa da qual fala,
45
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

tem de levar em conta o fato de que fala; um discurso que, em que vê em qualquer fechamento definitivo ou objetivação
todo dito, diz antes de tudo a própria linguagem 39. específica que se queira como verdade um motivo de tristeza, a
A poesia não pode estar acorrentada ao poema poesia implica a descriação presente em toda a criação, a
enquanto gênero literário, ou melhor, ela não pode estar inoperância presente em toda operação, a inarticulação presente
confundida com nenhum modo de escrita ou de fala que a em toda articulação, o desimpedimento presente em qualquer
requeira exclusivamente. Enquanto idéia da linguagem, a poesia caminhar do sentido, a disposição de tudo o que é passível de
é o estabelecimento da dimensão porosa de todo e qualquer se dizer, o infinito que se atualiza na finitude dos poemas, o
poema, de toda e qualquer escrita, de toda e qualquer fala, de inestético presente em toda estética. Poética e filosófica, essa
toda e qualquer tensão entre o sentido e o som proferida pelos abertura, que nos leva a tocar a matéria da linguagem fazendo
seres falantes, definindo-se apenas a partir deste não-lugar de com que quem não a tenha atingido permaneça prisioneiro de
todos os lugares. A poesia é a possibilidade de criação de todo e suas representações mesmo quando se cala 40, é
qualquer modo de escrita, de todo e qualquer modo de dizer. constantemente elogiada no pensamento em questão:
Enquanto a poesia é passagem, o poema é sempre passageiro:
ele passa, sendo levado pela passagem da poesia. Ele é É justamente a ausência de um objeto último do
conhecimento que nos salva da tristeza sem
sempre passado, e, mesmo que permaneça (como, de fato, remédio das coisas. Toda verdade última que se
satisfaz com uma formulação objetivante – mesmo
permanece) enquanto presente e futuro, perdura exatamente por que aparentemente feliz – terá sempre o caráter
trazer em seus significantes a força maior de aniquilar seus destinal de uma condenação, de um julgamento que
nos fecharia para sempre em uma verdade de fato.
sentidos estabelecidos em nome de outros que, sempre por se A deriva em direção a este fechamento definitivo da
verdade, onde se enraíza tanto o poder de
fazerem, se renovam. Clamando por essa abertura dos sentidos significação das línguas quanto sua morte
inelutável, é uma tendência em obra em todas as
línguas históricas, à qual a poesia e a filosofia
ensaiam, em vão, se contrapor. A verdade, a
39
AGAMBEN, Giorgio. L’idée de langage. In : La puissance de la pensée ; abertura que, segundo uma definição platônica, é o
essais e conférences. Traduit de l’italien para Joël Gayraud et Martin Rueff.
40
Paris : Éditions Payot&Rivages, 2006. p. 27. AGAMBEN, Giorgio. Idée de la matière. In: Idée de la prose. p. 19.
46
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

próprio da alma, se condensa então na linguagem e poéticos são uma maneira de lembrar que a abertura ou o
pela linguagem em um estado de coisas imutável,
em um destino. 41 infinito da passagem a todo e qualquer escrito ou dito é
memorizado no poema, à revelia da necessidade de uma
Afim a Giorgio Agamben e ao que acima ele menciona palavra que o diga. Não cabe ao poeta a obrigação de
de Platão, Jean-Luc Nancy, em um texto em que, inclusive, o denominar o silêncio – a passagem da poesia, o devir visível da
menciona, escreve que a poesia é o acesso absoluto e palavra, a idéia da linguagem –, pois é ele que os procedimentos
exclusivo, imediatamente presente, concreto, e enquanto tal poéticos estão sempre a manifestar, sem a necessidade da
42
imutável , acrescentando, logo em seguida: denominação ou de tomá-lo como tema. A fidelidade do poema
não é ao que pode ser tematizado, mas à passagem poética que
Assim, a história da poesia é a história da renúncia permite a existência de qualquer assunto. Como disse, não é o
persistente em deixar a poesia identificar-se com
qualquer género ou modo poético – não, todavia, assunto que determina o poema, nem mesmo quando o tema é
para inventar um outro mais preciso do que os
outros, nem para dissolvê-los na prosa como na o silêncio ou a linguagem. Da mesma maneira, uma
verdade que lhes cabe, mas para determinar
incessantemente uma outra, uma nova exactidão. metalinguagem não dá conta, tampouco, da compreensão de
Esta última é sempre de novo necessária, pois o
infinito é actual um número infinito de vezes. 43
linguagem do poema, visto que ela, falando da linguagem, a
aborda enquanto assunto ou tema. Enquanto a metalinguagem
Independente dos gêneros, modalidades, temas ou toma a linguagem como o para onde do que está sendo dito, o
conteúdos, independente das atualizações que presentificam o pensamento aqui em jogo privilegia o desde onde se dá todo e
infinito na escrita finita infinitamente retomada, os institutos qualquer dizer, ou a linguagem já enquanto este desde onde.

41
O poema leva a palavra ao limite da linguagem, ao seu
AGAMBEN, Giorgio. Idée de la verité. In: Idée de la prose. p. 102
42 ponto cego, ao seu nascimento, ao silêncio inerente a ela. Mais
NANCY, Jean-Luc. Resistência da Poesia. Tradução de Bruno Duarte.
Lisboa: Edições Vendaval (s/d). p. 13. uma vez, na passagem mencionada, Kiarostami estava certo ao
43
NANCY, Jean-Luc. Resistência da Poesia. Tradução de Bruno Duarte. dizer que a incompreensão faz parte da essência da poesia.
Lisboa: Edições Vendaval (s/d). p. 13-14. Dizer que a linguagem se confunde com o silêncio é dizer que a
47
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

linguagem é o pressuposto do homem, o que já está na origem quatro monges faziam zazen.
Eles haviam decidido fazer uma sessão
e, portanto, seu próprio fundamento é indizível, anônimo, de meditação em silêncio absoluto.

incompreensível, já que dizê-lo é dizê-lo obrigatoriamente na e a Na primeira noite, durante o zazen,


a vela se apagou, lançando o dojo
partir da linguagem. A poesia incorpora esse indizível, esse na obscuridade profunda.
anônimo, esse incompreensível... Ela, linguagem ou poesia, não
O monge mais novo disse, com voz baixa:
tem fundamento, pois é ela que é a origem, ainda que abissal. É “A vela acabou de se apagar!”

do silêncio da linguagem, de seu abismo, que o poema, sem O segundo respondeu:


“Você não deve falar, esta é uma sessão
precisar nomeá-lo, jamais se afasta, relembrando-o a cada de silêncio total.”
instante, na cesura, no fim do verso, no enjambement, na O terceiro acrescentou:
versura, nas rimas dissolutas ou não-relacionadas, no fim do “Por que você fala? Nós devemos nos
calar e ficar silenciosos!”
poema... Ele é o indizível de todo poema, que todo poema,
O quarto, que era o responsável
enquanto poema, manifesta em si, como um belo rosto é o único pela sessão, concluiu:
“Vocês são todos uns tolos e idiotas,
lugar onde haveria verdadeiramente o silêncio 44. O poema é um apenas eu não falei!”
45

belo rosto que, com seus institutos poéticos, se abre ao silêncio


da linguagem ou à linguagem enquanto silêncio que mostra a Em Idéia do Silêncio, Agamben reproduz uma anedota
abertura para o ter lugar da linguagem enquanto linguagem, em similar, só que, desta vez, grega, da antiguidade tardia,
que o homem habita. mostrando que a filosofia, de algum modo, realiza o mesmo que
Talvez por isso, uma anedota zen nos faz rir da o poema:
necessidade de nomear o silêncio, de torná-lo uma referência:
“Os atenienses tinham o costume de chicotear
copiosamente todo candidato a filósofo, e se ele
Em um pequeno templo perdido
na montanha, 45
Paroles zen. Textes recueillis para Marc de Smedt. Paris : Albin Michel,
44
AGAMBEN, Giorgio. Idée de la prose. p.24. 1994. p. 27. (collection Carnets de Sagesse).
48
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

suportasse pacientemente os golpes, então, ele momento em que, há muitos anos, eu passava por ele, dando a
poderia ser considerado filósofo. Um dia, um destes
que foram submetidos à prova, após ter suportado entender que a força repentina que o faz falar apenas quando
os golpes em silêncio, exclamou: ‘Sou muito digno,
no momento, de ser chamado de filósofo!’ Mas lhe desde o esquecimento, quando já se perdeu de si, quando já
responderam, com razão: ‘Tu terias sido, somente
se não tivesses falado’”. 46
não pode, enquanto sujeito, manipular a palavra, é o que, entre
os gregos, se chamou de Musa.
A lição que o italiano tira deste apólogo, desta fábula, é Nosso tempo, entretanto, é determinado pelo fato de
que, tendo algo a ver com a experiência do silêncio, exposta a que a linguagem, estando na origem de tudo para os seres
ela, não encontrando, a partir dela, nenhum nome para sua falantes, é. Sabemos ser através dela que vemos o mundo,
própria identidade, não entendendo no silêncio o lugar em que entendemos a linguagem como o único pressuposto absoluto
sua suposta palavra secreta se resguardaria para depois ser legítimo, ou seja, hoje, nós não nos ocupamos apenas com isso
revelada, a filosofia silencia seu próprio silêncio 47. O silêncio é ou aquilo que é revelado pela linguagem (o assunto do poema),
anônimo porque já é a linguagem, que está na origem enquanto mas, sobretudo, com a revelação da própria linguagem
ocupação maior do homem. Se um dos belos rostos que enquanto linguagem. Nosso tempo submeteu as Musas, os
revelam a proximidade com este indizível foi chamado de Musa, deuses, Deus, a natureza, o ser, o inconsciente e todo absoluto
se a Musa entusiasmou e inspirou o homem lhe concedendo a à linguagem:
palavra e o pensamento, é porque sempre há a simultaneidade
tensiva entre esquecimento e memória, entre velamento e Para terminar, é assim que nós nos reencontramos
a sós com nossas palavras, pela primeira vez, a sós
desvelamento. Assim, na bucha, eu não falo não, mas deixa eu com a linguagem, abandonados sem qualquer
fundamento superior. Essa é a revolução
me esquecer que, de repente, eu falo, disse um transeunte copernicana que o pensamento de nosso tempo
qualquer a seu companheiro na Marina da Glória justo no herdou do niilismo: nós somos os primeiros homens
a termos nos tornado plenamente conscientes da
linguagem. Acerca de todos esses nomes que as
gerações passadas puderam pensar, como Deus,
46
AGAMBEN, Giorgio. Idée de la prose. p.101. ser ou inconsciente, nós somos os primeiros a vê-
47 los limpidamente pelo que são: nomes da
AGAMBEN, Giorgio. Idée de la prose. p.101.
linguagem. Por isso, toda filosofia, toda religião e
49
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

todo saber que não tomam consciência desta sem obra 49; aqui, ser inspirado se dá no momento em que se é
virada, pertencem para nós irremediavelmente ao
passado. Os véus que a teologia, a ontologia e a colocado no puro sopro sem rosto, na pura passagem, antes de
psicologia estenderam sobre o humano, agora,
tombaram e, um a um, nós os reenviamos a seu qualquer configuração do poema ou do pensamento ou do
lugar próprio na linguagem. Doravante, nós olhamos
a linguagem sem véu: ela expulsou de si todo divino
significado da palavra que ocupe o lugar da passagem com
e todo indizível: ela se revelou integralmente, alguma possibilidade. A inspiração, insufladora do dar-se conta
absolutamente no princípio. 48
da passagem da poesia enquanto abertura da linguagem, é
Falar, portanto, fazendo uma experiência que não seja anterior à Musa, é, na verdade, a condição de possibilidade de
desde o lembrado, mas de dentro do esquecimento, de dentro sua figuração. Se o lugar da passagem se torna mais perceptível
da própria latência do pensamento, de dentro de seu começo, ou pensado pelo próprio poema que a cada instante o rememora
de dentro de seu não-dito, de dentro de seu não-exposto, de em seus procedimentos, é a eternidade da passagem enquanto
dentro de sua insuficiência, de dentro de sua incapacidade, de passagem que a inspiração, mesmo e sobretudo através do
dentro de seu leito de nascimento e morte, de dentro da poema, quer manter aberta. É ela, a passagem, a idéia da
ausência de qualquer rosto, de dentro da página ou tela em linguagem, o puro acontecimento da linguagem, o ter lugar da
branco, é poder fazer a experiência da linguagem. linguagem, a poesia, que, pura abertura de possibilidades, não
Sendo a exposição do rosto da Musa construído pela pode ser fechada, e não este ou aquele poema nem esta ou
linguagem um sufocar da inspiração que tira o pensamento de aquela palavra nem esta ou aquela significação nem, portanto,
seu esquecimento ou de seu velamento, Agamben pode, esta ou aquela figuração de alguma divindade. A idéia da
verdadeira e inesperadamente, afirmar que o poeta inspirado é linguagem, a língua da poesia, é ontologicamente anterior à
multiplicidade das palavras significantes, e o poema é o modo
em que o indizível da linguagem se manifesta pelo dito nomeado
48
AGAMBEN, Giorgio. L’idée de langage. In : La puissance de la pensée ;
essais e conférences. Traduit de l’italien para Joël Gayraud et Martin Rueff.
49
Paris : Éditions Payot&Rivages, 2006. p. 30. AGAMBEN, Giorgio. Idée de la Muse. IN :Idée de la prose. p.42.
50
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

do poema ou o modo como, nos ditos do poema, em seus Em outro ensaio, já mencionei a belíssima e, a esse respeito,
nomes, ele procura e exibe a idéia: elucidativa passagem de um livro de Agamben:

Há, de fato, uma experiência da língua que, desde O confronto que se prolonga desde sempre entre
sempre, pressupõe as palavras – uma língua na poesia e filosofia é, portanto, bem diverso de uma
qual nós falamos como se já tivéssemos sempre as simples rivalidade; ambas tentam apreender aquele
palavras para a fala, como se tivéssemos sempre inacessível lugar original da palavra, em relação ao
uma língua antes mesmo de tê-la (a língua que, qual se vêem ameaçados, no homem falante, seu
então, falamos, não é jamais única, mas dupla, próprio fundamento e sua própria salvação. Mas
tripla, apreendida na seqüência infinita das ambas, e nisto fiéis à própria inspiração “musical”,
metalinguagens); em compensação, há uma outra mostram enfim este lugar como inencontrável
experiência, na qual o homem está absolutamente [introvabile]. A filosofia, que nasce exatamente
desprovido das palavras face à linguagem. Esta como tentativa de liberar a poesia de sua
língua, para a qual as palavras nos faltam e que, “inspiração”, consegue, afinal, reter a própria Musa,
como a “língua gramatical” segundo Dante, não para fazer dela, como “espírito”, o seu próprio
pode dissimular o fato de estar aí antes das sujeito; mas este espírito (Geist) é, precisamente, o
palavras, sendo “só e primeira no espírito”, é a negativo (das Negative), e a “voz mais bela”
nossa língua, dito de outra maneira, é a língua da (kallísten phonén, Phr. 259d), que, segundo Platão,
50
poesia. compete à Musa dos filósofos, é uma voz sem
51
som.

É curioso o fato de o texto intitulado por Agamben de


É curioso também que o primeiro texto em que
Idéia da Musa não falar de um poeta, no sentido restrito de
Agamben se propõe iluminar um dos institutos poéticos de maior
quem realiza o poema enquanto gênero literário ou mesmo
importância, o enjambement, não se intitular Idéia do Verso nem
enquanto o criador de versos com possíveis enjambements, mas
Idéia do Poema, mas Idéia da Prosa, como se, ao pensar o
de um filósofo, Heidegger, mostrando, neste procedimento em
verso poético, estivesse pensando igualmente a prosa filosófica,
que a tensão entre o título e o texto vincula a Musa a um
como se, escrevendo sobre a poesia, quisesse estar falando
filósofo, mais uma indistinção possível entre poesia e filosofia.
51
AGAMBEN, Giorgio. A Linguagem e A Morte; um seminário sobre o lugar
50
AGAMBEN, Giorgio. Idée de l’unique. IN: Idée de la prose. Traduit de da negatividade. Traduzido por Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora
l’italien par Gérar Macé. Paris: Christian Bourgois Éditeur, 1998. p. 31. UFMG, 2006. p. 108.
51
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

também da filosofia, como se, oferecendo a possibilidade da pausas obrigatórias entre uma fala e outra dos diálogos, seja
idéia do poema, ofertasse, simultaneamente, a da idéia da pelos mitos, pelos diversos personagens conceituais que
filosofia. Já na tensão entre o título e o majoritário do texto, a apresentam diferentes possibilidades do pensamento que se
indicação de indiscernibilidade entre o verso poético e a prosa entrechocam, da ironia e de diversos outros procedimentos, tudo
filosófica, como o que de fato lhe interessa, está assumida em Platão quer suspender os sentidos unívocos em nome do
enquanto uma tomada de posição: nem um nem outra, mas que, abrindo novos e múltiplos sentidos, dê o que pensar 53.
ambos, de algum modo, fusionados, confundidos. Se tais Enquanto, logo depois de ressaltar que
institutos poéticos trabalhados são próprios do poema, dando-
lhe uma dimensão de pensamento requisitador de pensamento o enjambement coloca assim em jogo a marcha
original, nem poética nem prosaica, mas,
que lhe é particular, a suspensão que, atravessando-os, os propriamente falando, bustrofédica da poesia e o
caráter híbrido de todo discurso humano. A aparição
fundamenta requer, com não menos força, a prosa, que deve precoce do prosimetron, mistura de prosa e de
igualmente incorporá-la: este suspense, esta sublime hesitação verso, nas Gatha, de Avesta, ou nas satura latina,
atesta o caráter não aleatório da Vita Nuova no
entre o som e o sentido, é a herança poética que o pensamento pórtico da idade moderna. 54,

deve assumir até o fim 52.


é com o exemplo platônico que Agamben termina o Idéia
Cabe, portanto, ao pensamento filosófico tomar para si o
da Prosa 55, O Fim do Poema, que chama atenção para a
que é próprio do poema, em um desguarnecimento de fronteiras
em busca de unificar a palavra cindida pela metafísica ocidental. 53
Para este fim, ver A Poesia e seus Entornos Interventivos (uma tetralogia

Seguindo Aristóteles, o grande exemplo dado dessa assunção para o Íon, de Platão). PUCHEU, ALBERTO. IN:Pelo Colorido, para além do
Cinzento (a literatura e seus entornos interventivos). Rio de Janeiro: Azougue
capaz de misturar poema e prosa, poesia e filosofia, é Platão,
Editorial/FAPERJ, 2007. P. 138-201.
cuja escrita, ultrapassando as formas tradicionais, se instaura 54
AGAMBEN, Giorgio. Idée du language I. In:Idée de la prose. p.102.
como o meio termo entre poesia e prosa. Seja através das 55
Vale citar toda a passagem imediatamente anterior, na qual Agamben diz:
Assim, o enjambement, traz à luz o andamento original, nem poético nem
52
AGAMBEN, Giorgio. Idée de la prose. p.24. prosaico, mas, falando propriamente, bustrofédico, da poesia e o caráter
52
Artigo – Do começo ao fim do poema – Alberto Pucheu Boletim de Pesquisa NELIC v. 9, nº 14. 2009.2

novidade do No sai que s’es de Raimbaut d’Aurenga (Aqui o fim em sua oposição entre o som e o sentido, que está se dizendo,
de cada estrofe – e sobretudo o desse inclassificável poema, ou seja, a poesia, enquanto passagem da própria linguagem. O
como um todo – é diferente da inesperada irrupção da prosa – poema se coloca, então, como uma espécie de hipersemia da
marcando, in extremis, a epifania não contingente de uma linguagem; nele, ela se realiza com maior evidência, sendo a
indeterminação entre prosa e poesia 56), chega ao seu fim com poesia, por isso, necessária à filosofia, como herança que esta
uma frase exemplar de Wittgenstein: A poesia deve-se apenas deve assumir, pois suas finalidades são as mesmas, ou seja,
propriamente filosofá-la 57. A palavra fim, do texto mencionado, pensar a linguagem enquanto não coincidência entre a série
se estabelece também como finalidade: a finalidade da poesia é semiótica e a seqüência semântica, para que a abertura ao
um direcionar-se para a filosofia em um devir que não apague sentido, preservada na estância do pensamento, nunca se
(nem diminua a força de) suas intensidades, preservando o feche.
poético no filosófico. Isto porque o poema desvela o escopo da
sua orgulhosa estratégia: que a língua consiga no fim comunicar
ela própria, sem restar não dita naquilo que diz 58. Na
indiscernibilidade entre o material e o imaterial ou entre o formal
e o informal, o que quer que esteja sendo dito em qualquer
poema – eis sua estratégia – é a linguagem, em seu ter lugar,

híbrido de todo discurso humano. A aparição precoce do prosimetron, mistura


de prosa e verso, na Gatha de Avesta ou na satura latina, atesta o caráter
não aleatório da Vita Nuova no pórtico da idade moderna. AGAMBEN,
Giorgio. Idée de la prose. p. 24.
56
AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema. p. 145.
57
AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema. p. 148.
58
AGAMBEN, Giorgio. O fim do poema. p. 148.
53

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