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Adeus Con To de Fadas

adeus contos

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João Loureiro
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O conto de fadas da menina feia Das irmas, a Zinha era a mais feia, como também ¢era.a mais feia da escola, da rua, do bairro... Nas festas, nio ficava com ninguém. Uma vezaté arrumou namo- rado, mas ai a familia do rapaz.o levou ao oculista e, no dia seguinte, a Zinha jé era sé Zinha. As velhas fofoqueiras diziam “pobre marido’ Elas nao sabiam, mas o destino da Zinha foo inha, nunca vai arranjar mais lindo de todos: virou uma estrela e brilha até hoje no céu. Nao é muito facil de enxergar... a nao ser para as meninas feias que acreditam em contos de fadas. O que eu vou ser Minha mae diz que quando era pequeno eu queria ser veterinario, por causa do Sansio, nosso cachorro ‘na época, com quem eu brincava o dia inteiro. Depois, la pelos sete, quis ser piloto de Formula 1. Disso eume Jembro bem: vivia com um carrinho na mao, montava pistas e acelerava como se estivesse dentro. E teve tam- bem a fase do basquete: passava as tardes jogando com a turma e tinha esperanga de crescer e ficar mais alto que a média da familia. Agora, nao sei, mas acho isso tudo meio bobo. Vejo a NBA na TV € me canso. Troco de canal, vejo programa de bichinho, e acho infantil demais. Férmula 1, entao, um tédio, € troco de canal, troco de canal, troco de canal... Banho de chuva s primos foram andar de bicicleta no parque. Era domingo de tarde, e eles tinham doze anos, com- panheiros desde que nasceram. Quando comegou a chover, as coisas comegaram a mudar. Ao invés de fazerem cavalinho de pau nas pogas dgua, como era © costume, desta vez-foram sentar no gramado. Pela primeira vez, preferiam conversar. A chuva escorria pelos longos cabelos lisos dela e deixava encharcada a penugem de bigode dele. Falavam olhando-se mais nos labios que nos olhos, o que nunca tinham feito antes. Voltaram para casa a pé, empurrando as bicicletas, ambos com uma nova e inesperada timidez. Grandes mudangas Nao sou nenhuma ignorante. Sabia que ia acon- tecer. Sé nao esperava que fosse tao cedo, Nem ima- ginava que assim jé na primeira vez a coisa pudesse ser tao intensa, Agora sou uma mulher, uma mulher de verdade. Posso engravidar, ser mae... De uma hora para outra deixei de ser menina e tenho que encarar grandes responsabilidades... Mas antes de tudo, pelo amor de Deus, um absorvente. a O mais lento Estévamos a poucas quadras do shopping, atra- sados pro cinema. A galera me apressava. Sempre fui © mais lento, mais pesado. Nem sei por que ainda me levavam junto, eu sempre atrasando. A velha atravessava a rua na nossa frente. Um caquinho, de bengala, passinho curto. Na correria, bati na sua bolsa, sem querer. A bolsa caiu, Me virei pra juntar, a velha jé ia se abaixando. O pessoal jé na outra calgada, me apressando, Entao pensei rapido, porque nao tinha tempo, ¢ ao menos pra pensar eu podia ser rapido: ela se vira. Quando alcango 05 outros, ougo a freada da moto, ‘© estrondo da batida, o clic da bengala se quebrando, € demoro, lento como sempre fui, demoro uma eter- nidade pra me virar e ver o que aconteceu. Arrasando Fle tinha 17, entéo eu menti que tinha 16, apesar dos13 anos bem vividos. Me aproveitei do tamanho, da maquiagem e do copo de vodca na mio. Isso sempre funciona, Esses babacdes sao todos iguais, uns burros que no fundo sé fazem pose, se fingem de homens quando na verdade sio uns menininhos medrosos. Casa limpa Era um gato de rua, fedorento, pulguento. Me olhava bem nos olhos e rogava os bigodes no poste. ‘Aquilo me doeu Mas nem perguntei pra minha mac se podia... Nosso apartamento é tao limpinho. Devia ao menos ter perguntado. Mesmo sabendo antes a resposta. Porque agora déi mais. Amizade © meu amigo Robertdo é 0 cara. Traga todas, € tem o respeito de todos. Andando com ele, fico garantido. Os pids nao se metem comigo, e de vez em quando sobra uma gatinha. Roberto é um amigio. Nao precisava era ter me batido daquele jeito sé pra se exibir pras minas da oitava série. O médico disse que o meu olho esquerdo nao vai funcionar nunca ‘mais. Po, Roberto, na préxima pega leve. A Finalmente... 4 ~- depois de anos sem notar que eu existia, ele vem sorrindo na minha diregao. E o intervalo entre a aula de matematica e a de portugués, e que ninguém me pergunte quanto é2 + 2 nem se paixao écom x ouch, porque agora eu nao saberia mesmo dizer. A Flavinha vive me criticando porque eu dou muito na vista, que eu nao devo parecer facil, tenho que esconder meus verdadeiros sentimentos... Mas a prova de que ela est errada vem vindo na minha diregao e me encarando esorrindo e tirando um papelzinho do bolso: ~ Entrega pra Flavinha, faz favor. Pobre da Marcia Esta tiltima bolsa que a Marcia comprou é feia que d6i, Haja mau gosto, Eo ténis novo, entao! Pobrezinha, precisa de umas dicas. Pior é 0 Palm: onde fica 0 romantismo da velha e feminina agenda? Se bem que pior, pior mesmo, é aquele pai horroroso que ela tem € que pode bancar tudo isso. Grande coisa! Nao que eu repare na desgraca alheia, mas o cara tem uma ver- ruga bem na ponta do nariz, J4 pensou, uma verruga enorme... Diario da Flavinha 25/07/05: Hoje faz uma semana que a Claudia no fala comigo. Eu bem que avisei: nao da mole, homem nao gosta de moleza. Mas era s6 o mané chegar perto e ela se derretia. Eu ficava na minha, Nao aguentava ver aquilo, parecia humilhagao. E quanto mais ela se atirava, mais cara de vontrariada eu fazia, masa boba nao entendeu. Nem ela nem o brutamontes, que pen- sou que eu estivesse me fazendo de dificil e agora fica ai me mandando bilhetinhos. Olha como esta vida é complicada: pra reatar a amizade, eu tenho que pedir desculpas pra Claudia! Eu, que estava certa! Se bem que o carinha nao é de se jogar fora... Ai, Didrio meu, * ‘0 que é que eu fago? Fugindo Ele evitava as pessoas. Respondia com gestos ou monossilabos. Tinha vergonha. Enfim, calou-se por meses. E quando a voz finalmente engrossou, nao sabia mais conversar. Sabado de tarde Attilio, 16, encheu o saco do pai dele pra pegar carro, embora, obviamente, nao tivesse carteira de motorista. Marquinhos, 12, fez chantagem emocional com o dele pra ganhar uma bicicleta. Os dois tanto insistiram que conseguiram. Moravam no mesmo bairro, e era sébado de tarde quando sairam pra inaugurar os brinquedos novos. O encontrao entre eles provou que neste mundo nem todos podem ter © que querem. Descoberto “Que olhos bonitos vocé tem’; ela me disse quando tirei os éculos. E naquele instante, seu rosto era 0 borrio mais lindo que eu ja vi. OCacée eu © Cacé ¢ eu, desde a “escolinha’, sempre com- petindo, Primeiro era pra ver quem agradava mais a “tia” Ele sempre foi melhor no desenho; eu, no dengo. Depois a gente cresceu um pouco e ai era pra ser 0 melhor artilheiro em campo. O chato que jogivamos ‘no mesmo time e as vezes a gente levava bronca por- ‘que mais se atrapalhava do que ajudava. Entao vieram os games, e deu empate, pra variar. Mas a coisa se complicou mesmo quando apareceu a Andréia. Ele vacilou; eu ganhei ¢, pra garantir a vit6ria, teve que virar namoro. E agora, como é que eu vou explicar pra ela que o Cacé eeu, desde. “escolinha’,sabe?... Porque cle conheceu uma menina, 0 nome dela ¢ Silvi Havia um gesso no meio do caminho Enquanto estava no hospital, todo mundo escre- ‘veu no gesso. Deixaram-Ihe recadinhos, desenharam caretas, assinaram com nomes e datas. Ao tirar 0 gesso, os médicos deram a mé noticia: © 080 calcificou torto, ¢ assim a perna ficard, para sempre, torta, Seu consolo é que tem muitos amigos, embora eles andem todos, e sempre, uns metros adiante. Fim de semana na praia fim de semana estava étimo. A turma foi pra casa do Luca, na praia. S6 a galera, sem nenhum, velho pra atrapalhar, A Vanessa ficou com o Daniel, com 0 Carlinhos e com 0 Luca, é claro. A Morgana, 86 com 0 Daniel, Rolou de tudo, principalmente cer- veja, uma montanha de latinha amassada dentro da churrasqueira. A noite era dia ¢ 0 dia era noite, E que praia que nada! Quem se interessava por sol e areia? Foi um fim de semana “de arromba”, como diriam ‘0s meus pais, porque na época deles jé era assim... e acho que foi por isso que me fizeram ficar em casa, Politica Os adultos vivem dizendo que adolescente nao gosta de politica. Sera que é questao de gosto? A gente aqui cheio de problemas, tentando levar a vida apesar do corpo que muda a cada dia, dos horménios que ‘nos empurram pra essa coisa complicada que 0 sexo, desta porra de indefinicao que nao nos deixa vontade em nenhuma tribo, que nos faz sentir deslocados até dentro de casa... ¢ eles ainda querem que se pense no futuro do pais! Sera que sio tdo incompetentes que nao dao conta do recado sozinhos? final, estudaram tanto e “amadureceram” tanto pra qué? BV A boca tinha gosto de cinzeiro. O bafo era sinis- tro. A barba mal feita me deixou asada. E 0 cara, pensando bem, era um panaca. Mas foi o primeiro que chegou em mim na rave. Entdo beijei, beijei com gosto (ruim), com vontade. Todo mundo viu. Foi um horror. Mas aquele apelido, nunca mais. Ai, de novo... “Quando eu tinha a tua idade..” Blablablé... Lé4 vema mie de novo. £ sempre a mesma conversa: por- ‘que naquela época era assim, era assado, era diferente por isso, por aquilo, era melhor e nio sei o que mais. eu tendo que aguentar, fingindo que ougo. O pior: desta ver té demorando. Té bom, vou dar uma afas- tadinha nos fones pra ver a quantas anda o discurso... “Aieu tive que pular da moto em movimento bem em cima da ponte”, O qué?! Pra descontrair No banheiro da casa dele, os dois olham fixamente para o teste de gravidez. ~ Mas tem que ficar rosa ou azul? —Calma. Ainda nao deu o tempo. Passa um minuto. Passam dois. E nada. Ela comega a chorar, e gagueja: ~ Ainda nao aconteceu nada. Ele pega a “caneta’, trémulo que mal consegue seguré-la: ~ Sera que nao funciona? / = Tu comprou onde essa porcaria? Ele também ja chora, e rindo ao mesmo tempo: — Na mesma farmacia da camisinha. 4 Bombons No fora que levou da primeira paixdo, cada ligrima era consolada com uma caixa de bombom, Depois foram muitos outros foras e muitas, muitas caixas de bombom. Da primeira paixao ela jé nem se lembra, ¢ passado. A primeira paixdo sempre passa. A obesidade ficou. Constrangida O atendente da farmacia viu que eu entrei meio sem graca. Sorriu, malicioso, Eram dez da noite, e eu no tinha cara de doente. Ble até olhou para a porta, como procurando mais alguém. Quando cheguei perto da gondola das camisinhas, o bobalhao desviou © olhar de mim, disfargando muito mal. Fingiu que arrumava uns folderes em cima do balcdo, mas sempre com 0 sorrisinho idiota, que s6 parou, sé se fechou quando pus na sua frente o pacote de fraldas. HIV “Como este mundo é pequeno”, Ja ouvi a velha- rada falar isso mil vezes. E sé encontrarem um conhe- cido de um conhecido, ej tascam: “Mas que mundo pequeno’, E eu achava que era bobagem essa historia do “conhecido do conhecide’, ¢ achava que o mundo era grande o bastarite para algumas coisas ficarem para sempre longe de mim. Desencanto Eu era apaixonada pelo meu professor de edu- cagio fisica até o dia em que ele entrou no vestidrio feminino quando eu estava sozinha ld e me pegou com 0 dedo no nariz tirando 0 maior tatu. Todos iguais No dia vintee ito de julho de 2005, as setee trinta € cinco da manhé, indo para a escola, Jilio Benites da Silva, 13 anos, caiu vitima de uma bala perdida. As sete e vinte, tinha saido de casa sem dizer pra sua mae © quanto gostava dela (porque nao costumava fazé-lo ‘mesmo e também porque andavam meio brigados). As trés e quarenta da madrugada, sonhava com a Maria Alice, igualzinho aos que tém futuro. Questdo de dose Naprimeira, me senti menos timido. Na segunda jd estava bem mais esperto, ena quinta me achava até bonitdo. Daf na oitava dose conheci o amor verda- deiro: maior gata: superdesinibida, papo inteligente linda, linda de morrer... Familia Olhasé: Natal e Ano-Novo, pra mim, sio momen- tos bem “familia” entende? Passo o ano todo zoando, curtindo as baladas. No Carnaval, entao! Mas nao sei bem o que me da no Natal e no Ano-Novo. A galera insiste convidando pra sair, que sempre rola o maior festeré aqui ou ali. Mas eu sinto que so momentos em que precis6 me sentir numa familia, por mais que a gente se desentenda no dia a dia. ‘Tenho até um “roteiro” fixo: ¢ Natal na casa da minha mae, e Ano- Novo na do meu pai. O tapinha “Um tapinhan 10 déi’, foi o que disseram quando me ofereceram, de graca, no banheiro do colégio. Como eu nunca tinha feito aquilo, tive um acesso de tosse, e tiveram que me dar uns tapinhas nas costas mesmo. Mas nao doeu. Bem diferente do que me fizeram um ano depois, quando eu nao tinha mais de onde tirar dinheiro e apareci com o reldgio do meu pai, que, segundo eles, nao valia nada. Super normal © Tavinho disse que achava super normal um menino gostar de outro menino. Disse que 0 que importa € ser feliz, Que na adolescéncia as coisas ainda nao estdo bem definidas (isso ele leu em algum ugar), que éa época de experimentar de tudo. Que ja viu a irma dele beijando outra menina na bocaenem deu bola. Que a nossa sociedade evoluiu muito, mas continua hipécrita. Disse tudo isso me olhando bem nos olhos, com uma voz suave, sem afetacao e, assim, nessa tranquilidade, me pediu pra tirar a mao da sua coxa antes que ele me quebrasse a cara na porrada. Ultimo bilhete Antes, voce ¢ eu nos perguntavamos se era cora- ‘gem demais ou covardia demais. Engracado como as coisas sao diferentes quando a gente discute na sala de aula, num papo “cabeca” com os amigos ou quando so tema de programa na Tv. Assim de longe, a gente Pensava em covardia ou coragem. Agora que est acontecendo comigo, vejo que a questo nao é essa. ‘O que acontece de verdade é que eu nao tenho esco- tha. Escolha nenhuma. $6 existe um caminho, uma. solugdo, e ela esté acima da coragem, da covardia, ou mesmo do ridiculo. E aqui esta a prova: se vocé leu este bilhete, é porque eu nao tinha como fazer outra coisa, 0 que nao me torna nem corajoso, nem covarde. Destino ‘Quando o pai do Joao se deu conta de que o reld- gio tinha parado, saiu de casa voando e esbravejando pelo atraso, Estava num emprego novo e nao podia deixar mé impressao logo no inicio. Quando viu que o filho mais velho amanheceu com febre, a mae da Patricia pediu que ela desse 0 passeio matinal coma cachorrinha Kelly. A pobrezinha ja estava ansiada e ndo podia esperar. relégio do pai do Joao e a febre do irmao da Patricia nao tinham nada a ver um com 0 outro, Joao ¢ Patricia também nem se conheciam. Jé o fato que os fezchorar, ela a morte da cadelinha, e ele ado pai, foio ‘mesmo, antecedido por um descuido no volante e por ‘um defeito na fivela da coleira que também, mais uma vez, ndo tinham nada a ver um com 0 outro. Adeus, Barbie. E nao é que na lancheria da escola, com toda a galera em volta, eu abro minha mochila pra pegar a agenda (ia guardar nela a foto que 0 Marco Aurélio me deu),¢ 0 que’salta de dentro? A minha Barbie. Foi ‘uma gargalhada geral. A galera ria eapontava pra mim epraboneca. © Marco Aurélio inclusive. Eu nao sabia onde me meter, Devo ter ficado como um pimentio de vermelha. $6 pensava no peste do meu irmao, que cu ia matar quando chegasse em casa. Ai que raiva, Que raiva do meu irmao, que raiva dessa vida. Que raiva de vocé, Barbie, que vai sair pra sempre da minha penteadeira...que raiva, que raiva.. mas eu vou sentir saudades... minha amiga.

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