CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10ª Ed.
– Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. ISBN 978-85-200-0565-1
José Murilo de Carvalho é um sociólogo e cientista político graduado na UFMG, com
mestrado e doutorado nos Estados Unidos (Stanford University), além de pós-doutorado
em História da América Latina na University of London. Também lecionou como
professor visitante em diversas universidades europeias e é professor titular de História
do Brasil no Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Políticas da
UFRJ. Esta sólida formação acadêmica permitiu a José Murilo de Carvalho, por ora
chamado aqui apenas de Murilo, teve como marca a pesquisa da cidadania no Brasil e a
abordagem de diversos aspectos da história do Brasil. O livro em questão é uma
publicação de linguagem simples, que alcança o grande público, sem perder o seu
conteúdo acadêmico. Propõe-se a uma reflexão sobre o significado da cidadania, sua
evolução histórica e as perspectivas para ela. Baseando-se em profundo conhecimento
histórico e perpassando 178 anos da história do país (1822 a 1985), o autor deixa claro
que não há cidadania plena em nosso país, mas ocorre com frequência o que se
convencionou chamar de “Estadania”, uma cidadania incompleta, baseada no
paternalismo e na exacerbação do papel do poder executivo. Já na introdução do livro faz
uso dos conceitos de T. H. Marshall, que descrevia a cidadania como um fenômeno
composto complexo e historicamente definido composto por três eixos: os direitos civis,
os direitos políticos e os direitos sociais, sendo cidadão pleno aquele que fosse titular dos
três direitos. Usa-se para efeito de comparação por contraste, o desenvolvimento da
cidadania na Inglaterra, tendo surgido lentamente a partir da conquista dos direitos civis
no século XVIII, dos direitos políticos no século XIX e dos direitos civis no século XX.
Essa sequência, de acordo com Marshall não seria apenas cronológica, mas lógica, pois
um direito leva a outro, culminando na conquista da cidadania plena. A educação popular
é tida como direito social, mas historicamente é uma condição para expansão dos demais
direitos, a ausência dela é obstáculo para conquista da cidadania civil e política. Os
caminhos para esta conquista são feitos de avanços e retrocessos, não previstos por
Marshall, além de não serem’ lineares, nem iguais para diversos países ocidentais, como
França e Alemanha. No Brasil ocorreu a ênfase nos direitos sociais em relação aos outros
direitos e a alteração na sequência dos eventos da aquisição deles. A mudança na
sequência lógica alteraria o tipo de cidadania que surgiria por aqui. O processo de
formação do Estado interferiu decisivamente na formação da cidadania. Ao autor convida
o leitor a enfrentar a complexidade dos problemas nos caminhos da construção
democrática e a viajar nestes caminhos tortuosos da cidadania no Brasil. Ao acompanhá-
lo nesta viagem, o leitor estará também exercendo sua cidadania. Nota-se que Murilo
toma partido de uma abordagem clássica do que é cidadania, mas o faz com cuidado de
ressaltar as diferenças do caso brasileiro, de suas peculiaridades históricas. Para Murilo,
a cronologia e a sequência da lógica descrita por Marshall foi inversa no Brasil, o que traz
dificuldades para a descrição do percurso percorrido. Para fundamentar essa conclusão,
o autor divide o livro em quatro capítulos, dividindo-os em períodos históricos que vão
de 1822 a 1930 (capítulo I), de 1930 a 1964 (capítulo II), de 1964 a 1985 (capitulo III) e
após 1985. No primeiro capítulo é feito um relato do passado anterior à proclamação da
independência (1500-1822), tratando-o como um peso que seria determinante para o
estabelecimento do tipo de Estado-nação que o Brasil se tornou, devido à escravidão e à
grande propriedade rural. Ao final do período colonial, a grande maioria da população
estava excluída dos direitos civis e políticos e sem haver um sentido de nacionalidade,
apenas um ou outro centro urbano com povo mais aguerrido e sentimento de identidade
regional. Murilo afirma taxativamente que a escravidão foi o fator mais negativo para
formação da cidadania. A escravidão não constituiu ambiente favorável à formação de
futuros cidadãos. A constituição outorgada de 1824 foi bastante liberal com a implantação
de direitos políticos de votar e ser votado. O voto masculino obrigatório para os maiores
de 25 anos, com renda mínima de cem mil réis, excluindo mulheres e escravos. Em 1881
houve retrocesso nesses direitos, com o aumento da renda mínima, o fim do voto dos
analfabetos e o voto facultativo, o que levou a grande redução do número de eleitores. Os
direitos civis existiam apenas na lei, com a manutenção da escravidão e da grande
propriedade rural. A partir de O surgimento da classe operária urbana trouxe uma chance
de formação de cidadãos mais ativos, a partir do crescimento industrial em São Paulo e
no Rio de Janeiro, já no período da primeira república. O movimento operário de então
foi um grande avanço sob o ponto de vista da cidadania. Apesar disso, os poucos direitos
civis conquistados não puderam ser utilizados a favor dos direitos políticos devido à
política de oligarquias vigentes na época. O que predominou foi a tradição de aliança com
o Estado em busca de melhorias, num contato direto com os poderes públicos, o que se
convencionou chamar de “estadania”. A precariedade dos direitos civis e políticos
refletia-se nos direitos sociais. A assistência social era quase toda de associações
particulares e o governo não se interessava pelos direitos trabalhistas. A constituição de
1891 retirou do Estado a obrigação de oferecer educação primária, evidente retrocesso.
Seguindo a cronologia, o período de 1930-1964, teve alternações entre ditaduras e
regimes democráticos, com o golpe de Vargas e 1937 e eleições diretas em 1945, com
grandes críticas ao sistema oligárquico até então vigente. Houve multiplicação de
sindicatos e associações de classe, com surgimento de partidos políticos e movimento de
massas. Nesse período os direitos sociais ficaram na dianteira, mas os direitos políticos
foram ampliados a partir de 1945, inclusive com eleições direitas para presidente. A
democracia direta e representativa teve um curto período de destaque que findou com o
golpe militar de 1964. Os direitos civis e políticos foram refreados pela violência do
aparato militar, o que incluía a polícia, no entanto, houve avanço nos direitos sociais,
como a inclusão dos trabalhadores rurais na previdência social, com aposentadoria e
pensão, além de assistência médica. O passo atrás foi a supressão dos direitos políticos e
o passo adiante foi a retomada desses direitos. A redemocratização gradual, com
renascimento da oposição, desembocou no movimento das Diretas já, que demandava
eleições direitas para presidente da república. Apesar das grandes manifestações em todo
país, a eleição foi indireta e, após votação no congresso nacional, a presidência voltou a
ser ocupada por um civil. O período militar foi semelhante à ditadura varguista no que
concerne à ampliação de direitos sociais, o que lhe angariava simpatia popular, mas
retrocedeu nos direitos políticos e civis. A diferença é que os efeitos dos benefícios à
população tiveram um ganho muito menor para os governos militares, com apoio
passageiro das classes médias, do que tivera para Getúlio Vargas. A redemocratização
ampliou significativamente os direitos políticos e civis através da chamada “Constituição
Cidadã” de 1988. Apesar disso, as desigualdades sociais persistiam e se agravam, com
profunda crise econômica e precarização dos direitos civis na dura realidade cotidiana
devido à marginalização de grande parte da população, a qual era privada dos serviços
urbanos, de segurança e de justiça. Essa precariedade dos direitos civis tornou-se uma
sombra sobre o futuro da cidadania, que parecia promissor com o fim da ditadura militar.
Apesar da ampliação, também, dos direitos sociais com a Constituição Cidadã, as imensas
desigualdades sociais persistem, desigualdades que são de natureza majoritariamente
regional e racial. Dessa forma, com a apresentação desse histórico, Murilo demonstra que
a inversão da ordem cronológica da cidadania no Brasil, com a inversão da pirâmide dos
direitos, ficou prejudicada a lógica que reforçava a convicção democrática. As liberdades
civis são a base de tudo e a participação política busca garantir essas liberdades. O autor
afirma que não há um só caminho para a cidadania, mas que é razoável supor que o
caminho afete o resultado final. A cultura brasileira segue orientada para o Estado mais
do que para a representação, a “estadania”, em contraste com a cidadania. A espera por
um “salvador da pátria”, num sebastianismo atualizado, segue ligada à preferência pelo
executivo, com a consequente desvalorização do legislativo, vereadores, deputados e
senadores. Os interesses corporativos são dominantes pela ausência de uma ampla
organização autônoma da sociedade. Uma esquizofrenia se forma, pois os eleitores não
confiam nos políticos, mas votam neles na esperança de obter vantagens pessoais. A
democracia brasileira é frágil e precisa de tempo para amadurecer. A sobrevivência
aumenta as chances de reformas e correções nos mecanismos políticos que possibilitem
a consolidação da democracia. O renascimento liberal tem trazido perturbações com
mudanças como o desenvolvimento da cultura do consumo. A população passa a se
reconhecer como cidadã apenas se consumir, mesmo a mais excluída se percebe assim.
Todos reivindicam o direito a consumir. Esse direito consegue silenciar ou prevenir a
militância política, o direito político, entre os excluídos. Assim, o avanço democrático se
vê diminuído em importância. Murilo finaliza o livro com a afirmação de José Bonifácio
de que a escravidão era um câncer que corroía a nossa vida cívica e impedia a construção
da nação. O autor declara que a desigualdade é a escravidão de hoje, o novo câncer que
impede a constituição de uma sociedade democrática. A nossa democracia atual é precária
e sobreviveria a uma tão longa espera pelo fim da desigualdade. Este livro é fundamental
para quem quer entender os conceitos de cidadania e compreendê-los à luz da história e
da realidade brasileira. A obra é de agradável leitura. Informa e esclarece sem ser pedante.
O convite à construção da cidadania no início e denúncia da atual escravidão pela
desigualdade são fortes e impactam o leitor.
José Ricardo Medeiros da Silva
Bacharelado em Ciências Sociais. SR-1. UFRPE 2017.1
Disciplina: Formação Econômica do Brasil
Professor: Victor Hugo