Adriano Duarte Rodrigues - Experiência, Modernidade e Campo Dos Media
Adriano Duarte Rodrigues - Experiência, Modernidade e Campo Dos Media
MEDIA
LISBOA, 1999
INTRODUÇÃO
Tornou-se um lugar comum dizer que vivemos hoje numa sociedade mediática, que a
realidade se tornou para nós, em grande medida, naquilo que os media seleccionam, tratam e
difundem. Alguns autores falam de sociedade da informação para designar este mundo mediatizado
em que hoje vivemos. De facto, a percepção que temos hoje do mundo tornou-se dependente de
complexos e permanentes dispositivos de mediatização que marcam o ritmo da nossa vida
quotidiana, sobrepondo-se cada vez mais não à nossa percepção imediata do mundo, mas também
aos ritmos do funcionamento das instituições que formam os quadros da nossa experiência
individual e colectiva.
São cada vez mais os complexos dispositivos técnicos de mediação que ajustam a nossa
percepção do mundo às suas capacidades de simulação. Os governos programam as suas tomadas
de decisão, os exércitos realizam as suas operações e os altos comandos militares fazem os seus
briefings em função dos horários televisivos de maior audiência. As famílias organizam as suas
refeições e as suas saídas de maneira a não perderem os seus programas televisivos favoritos. As
editoras fazem depender as suas agendas editoriais da publicação de romances que serviram de
roteiro às telenovelas e às séries difundidas nos horários de grande audiência. Os manifestantes
escolhem os momentos e os locais de exibição dos seus protestos em função da presença e da
localização de câmaras de televisão.
A omnipresença dos media acentuou-se ainda mais, durante os anos 90, com a rápida
generalização da telemática e dos multimédias. Tanto a administração pública e as empresas como
as famílias e os indivíduos passaram a depender do funcionamento de todo um conjunto de
dispositivos que os põem em contacto permanente e quase instantâneo com o mundo dos negócios e
da cultura, que organizam as actividades de lazer, o comércio e as relações sociais.
Desde que, no final dos anos 60, Daniel Bell utilizou a expressão “sociedade pós-industrial”,
várias outras expressões têm sido propostas para designar a nossa época. 1[1] Cada uma destas
designações sublinha um aspecto particular das transformações que têm marcado o nosso tempo e
depende, por conseguinte, da perspectiva adoptada por cada autor para as entender. Mas a utilização
das designações sociedade pós-industrial, pós-moderna, pós-racional, pós-iluminista, tal como a
expressão fim da história, proposta por Fukuyama2[2], possuem como lugar comum o facto de serem
expressões negativas, de sublinharem o fim ou a perca das características da experiência do
passado.
A única excepção que eu conheça a esta concepção negativa das designações epocais é a de
“sociedade da informação”, que surgiu sobretudo a partir do final dos anos 80. Ao contrário das
designações anteriormente evocadas, esta última expressão está associada a uma visão positiva e
optimista das mudanças do nosso tempo.
Este optimismo é, no entanto, fundado numa crença de difícil aceitação, na crença no
determinismo tecnológico, segundo o qual, graças aos novos dispositivos técnicos, conseguiremos
finalmente ultrapassar as contradições económicas, culturais e políticas herdadas do passado e
instaurar uma sociedade finalmente democrática, em que todos acabariam finalmente por ter acesso
aos bens económicos, políticos e culturais. Segundo os autores que propõem designar o nosso
tempo como a época da sociedade da informação, é graças às novas tecnologias da informação
(NTI) que a nova sociedade emergente conseguirá não só resolver os problemas endémicos do sub-
desenvolvimento, das disparidades económicas e sociais, mas propiciar as condições da
transparência indispensável à democratização da vida cívica e à participação dos cidadãos na vida
pública.
Esta visão eufórica é, no entanto, fundamentada na crença num futuro pelo menos
problemático, crença que é infelizmente de difícil demonstração. Os indicadores disponíveis acerca
dos primeiros resultados da informatização da sociedade não parecem justificar esta visão optimista.
Pelo contrário. O fosso entre países ricos e países pobres não pára de se acentuar. As desigualdades,
em vez de se atenuarem, agravam-se cada vez mais. A par de inegáveis processos democratizantes
no acesso às decisões e à fruição dos produtos culturais, novas formas de dependência e de
totalitarismo não cessam de se gerar. Às inegáveis libertações criadas pelas NTI, correspondem
novas modalidades de escravização, condições de vida precárias, porventura mais subtis e
sofisticadas, mas nem por isso menos dolorosas e eficazes.
1[1]
Cfr. Daniel Bell, The Coming of Pós-Industrial Society: a Venture in Social Forecasting, Nova Iorque,
Basic Books, 1973; The Cultural Contradictions of Capitalism, Nova Iorque, Basic Books, 1976.
2[2]
Ver Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, Lisboa, ed. Gradiva, 1992.
A minha proposta tem sido a de caracterizar o nosso tempo como a época da autonomização
do campo dos media. Esta expressão tem, pelo menos, a vantagem de relacionar o actual domínio
da informação mediática com as transformações que ocorreram no âmbito da experiência moderna
do mundo.
Com esta designação pretendo dar conta, ao mesmo tempo, das continuidades e das rupturas
do nosso tempo em relação ao projecto da modernidade. A fim de melhor fazer compreender esta
relação, considero hoje imprescindível inseri-la numa reflexão sobre a experiência do mundo,
domínio que começarei portanto por tentar compreender.
PARA UMA TEORIA DA EXPERIÊNCIA
A experiência compreende um conjunto de saberes formados de crenças firmes,
fundamentadas no hábito, ao contrário do saber científico que é fundamentado numa indagação
racional metodicamente conduzida. Parto da hipótese de que os saberes da experiência são
inalienáveis, uma vez que não podemos prescindir deles, embora não possam ser fundamentados
racionalmente por proposições científicas de natureza apodíctica.
Deverei começar por esclarecer que o domínio da experiência não se confunde com o
domínio da experimentação. Enquanto a experiência capacita o seu possuidor para compreender
sempre novas situações, ainda não experimentadas, a partir de uma sabedoria adquirida que fornece
modelos e esquemas de comportamento razoáveis adequados às diferentes situações da vida, a
experimentação incide sobre fenómenos novos ainda não compreendidos ou, pelo menos,
insuficientemente compreendidos. Através da experimentação poderá evidentemente adquirir-se
uma nova experiência, mas a experiência é independente da experimentação que está eventualmente
na sua origem.
É a experiência que produz aquilo a que Pierre Bourdieu dá o nome de habitus, «sistemas de
disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturadas predispostas para funcionarem como
estruturas estruturantes, isto é, enquanto princípios geradores e organizadores de práticas e de
representações que podem ser objectivamente adaptadas à sua finalidade sem suporem que sejam
visados, de maneira consciente, fins e o domínio expresso das operações necessárias para os
atingir.»3[3]
3[3]
Pierre Bourdieu, Le Sens Pratique, Paris, ed. de Minuit, 1980, página 88.
natural.4[4] Sabemos que é uma das estruturas gramaticais que a criança descobre mais tarde no
processo de apropriação da linguagem.
Em cada um destes domínios, a experiência consiste na posse de um conjunto de saberes,
não fundamentados racionalmente, mas que têm a característica de serem razoáveis por serem
fundamentados em crenças firmes, enraizadas no hábito. De facto, a experiência diz-me, antes de
mais, um conjunto de coisas indiscutíveis, tais como a certeza da minha existência, da existência
dos outros e da existência dos objectos e dos fenómenos do mundo natural.
Haverá alguma razão apodíctica, indiscutível, para aceitar estas evidências? Não. A razão
diz-me que tudo o que me rodeia poderia não passar de uma ilusão enganadora. E, no entanto, não
posso dar um passo se não aceitar como indiscutível a existência das coisas que me rodeiam, em
nome do bom senso, de uma sabedoria constitutiva do senso comum. Por isso, Descartes, até no
momento em que procurava pôr em dúvida todas as certezas não fundadas racionalmente, teve de as
aceitar provisoriamente (par provision) simplesmente para poder continuar a submetê-la à dúvida
metódica.5[5]
O mesmo tenho de admitir acerca da existência de mim próprio e dos outros. Que garantias
racionais tenho para aceitar como indiscutível a minha existência e a existência dos outros seres
humanos? Não há nenhuma razão apodíctica que me diga que a minha existência e a dos outros não
passa de um efeito enganador da minha percepção provocado por qualquer espírito maligno
apostado em me enganar. E, no entanto, até para poder considerá-las como evidências enganadoras,
tenho de partir da crença na sua existência.
Este conjunto de saberes que tenho de aceitar como seguros, pelo hábito, e não porque a
razão me dê provas categóricas da sua verdade, e que tem a ver com a existência de mim próprio,
dos outros e do mundo natural, constitui aquilo a que dou o nome de dimensão ontológica da
experiência.
Mas a experiência não me leva apenas a ter de aceitar a existência de mim próprio, dos
outros e do mundo natural. Leva-me igualmente a pressupor que, até prova em contrário, aquilo que
ocorre no mundo, aquilo que os outros dizem e fazem, aquilo que experiencio em mim próprio não
visa a minha destruição nem a minha desagregação, não atenta contra a minha integridade nem
contra a integridade dos outros seres. Este conjunto de saberes que, tal como os primeiros, tenho de
aceitar por hábito como seguros e que têm a ver com a crença na precedência do bem sobre o mal,
4[4]
Ver nomeadamente Jean-Marc Ferry, Les Puissances de l’Expérience, vol. 1. Le Sujet et le Verbe, Paris, ed.
du Cerf, 1991.
5[5]
René Descartes, Discours de la Méthode pour bien conduire sa Raison, in Oeuvres et Lettres, Paris, Bibl. de
la Pléiade, ed. Gallimard, 1953, páginas 125-179 (or.: 1637).
do que respeita a integridade dos seres sobre o que a viola, constitui a dimensão ética da
experiência.
A experiência leva-me, enfim, a aceitar que as configurações que dão forma às coisas, aos
discursos e às acções não se equivalem, mas se distinguem por me causarem ora prazer ora
desprazer, segundo critérios que não têm outro fundamento a não ser o da interiorização de regras
interiorizadas pelo hábito. Ao conjunto dos saberes que me permitem distinguir entre as formas
agradáveis e as desagradáveis, entre as que me dão prazer e as que me dão desprazer, constitui
aquilo a que dou o nome de dimensão estética da experiência.
6[6]
Ver Marcel Détienne e Jean-Pierre Vernant, Les Ruses de l’Intelligence. La Métis des Grecs, col. Champs,
Paris, ed. Flammarion, 1974.
1.4 Processos e objectos da experiência
Até agora falámos indiscriminadamente de objectos, factos, coisas para designarmos os
objectos da experiência. Chegou o momento de distinguir esses objectos e esses factos.
O objecto primeiro da experiência é a sensação, a percepção sensorial que partilhamos com
os outros seres vivos. Já os escolásticos diziam que nada pode existir no intelecto que não esteja
primeiro nos sentidos, a não ser o próprio intelecto: «nihil in intelectu quin prius in sensu, nisi
intelectus ipse.» É com base na sensação que distinguimos a rugosidade, a lisura ou a moleza, o
frio ou o calor, a luminosidade, a espessura, o odor, o som estridente ou suave dos objectos.
Sabemos que, pelo menos, algumas das características dos objectos de que temos a sensação não
correspondem às que eles possuem, na medida em que dependem da constituição dos nossos
sentidos. A razão contraria a sensação de que o Sol gira em torno da Terra e um pau direito
mergulhado na água aparece-me como se estivesse quebrado. Apesar disso, a experiência diz-me
que tenho de confiar nos meus sentidos para poder sobreviver, não só enquanto indivíduo, mas
também enquanto membro da espécie humana. É a sensação que me leva a evitar os objectos
nocivos e a procurar aqueles que me aparecem como benéficos para a minha integridade individual
e para a sobrevivência da minha espécie.
O segundo objecto da experiência é a sensibilidade, que percepciona as qualidades sensíveis
e constrói um espaço ou um meio e um tempo ou uma memória corporal sensível, relacionando
entre si as sensações e distinguindo-as segundo graus diferentes, segundo as categorias da
quantidade e da qualidade.
O terceiro objecto da experiência é o sentimento, que avalia as sensações de acordo com o
prazer e o desprazer que me proporcionam, em função daquilo a que Jean-Luc Ferry chama «a
dialéctica do desejo, que nasce do encontro da sensação e do sentimento.».7[7]
O quarto objecto da experiência é o conceito, constructum formado a partir da abstracção
das propriedades comuns que a razão encontra nos objectos da sensação, da sensibilidade e do
sentimento.
7[7]
Op. cit., vol. 1, página 43.
ao mundo apetrechados com eles. Os dispositivos naturais constituem o primeiro sistema mediático,
são os mecanismos originários da nossa relação ou mediação ao mundo. Dão-nos a sentir os
objectos do mundo, ora como agradáveis ora como desagradáveis, provocando aquilo que
designamos por sentimentos de prazer e desprazer.
Todos os seres vivos vêm ao mundo apetrechados com dispositivos naturais, mas no homem
eles não se encontram completamente determinados à nascença. Para poderem desencadear as
respostas aos estímulos do mundo envolvente, necessitam da aprendizagem de modalidades de
mediação inventadas, do enxerto, da interiorização ou da incorporação de dispositivos mediáticos
artificiais, inventados pelas sucessivas gerações, que constituem aquilo a que damos o nome de
cultura do povo em que os indivíduos nascem e a que pertencem.
Mas os dispositivos mediáticos artificiais, embora complementam os dispositivos naturais,
estabelecem com eles relações de descontinuidade. É a este hiato ou a este fosso entre os
dispositivos naturais e os dispositivos artificiais que damos o nome de pulsão, processo gerador ou
desencadeador de um domínio específico da experiência do homem a que damos o nome de desejo.
O desejo é, deste ponto de vista, o resultado da falta ou da ausência do objecto para que tendem, no
homem, os dispositivos naturais.
8[8]
Ver a este propósito a obra de Erving Gofman, Frame Analysis, 1974 (trad. francesa: Les Cadres de
l’Expérience, Paris, ed. de Minuit, 1991).
aceito como verosímil e me deixo emocionar, por exemplo, com a história de Romeu e Julieta,
história completamente insensata se acontecesse numa das ruas da cidade onde moro.
A experiência é assim o resultado da intervenção de um quadro que está lá para
desempenhar uma função de fronteira, de separador de mundos. Os Gregos davam a esta fronteira o
nome de parergon e os literários chamam-lhe paratexto. É uma espécie de porta que serve tanto
para abrir como para fechar o mundo do sentido. A sua natureza não é significante como as
materialidades que encerra, mas simbólica. As materialidades em que se investe a experiência são
significantes, na medida em que as posso traduzir sempre por outras materialidades, mas as marcas
que delimitam essas materialidade significantes e lhes conferem razoabilidade ou sentido possuem a
ambivalência que podemos atribuir às funções de uma porta, que tanto serve para abrir como para
fechar, ou de uma ponte, que tanto liga como separa as duas margens de um rio. É precisamente
esta ambivalência que caracteriza a natureza simbólica dos quadros do sentido, da experiência.9[9]
Normalmente, respeitamos os quadros do sentido, apesar de não nos darmos habitualmente
conta e enquanto não nos dermos conta da sua presença nem dos seus efeitos. No momento em que
nos apercebemos deles, o sentido desloca-se e tende a desmoronar-se ou, pelo menos, a ser posto
em crise. É a partir dessa deslocação que se constitui um novo quadro de sentido que compreende
ou abarca o primeiro no interior das suas fronteiras.
É a este processo que damos o nome de desconstrução do sentido. Pode ser
propositadamente desencadeado, como no caso das vanguardas estéticas, que procuram romper com
os quadros habituais da percepção das formas significantes e do sentido por ela constituídos. Assim,
por exemplo, o chamado apropriadamente teatro do absurdo rompe sistematicamente as fronteiras
do palco dentro das quais é suposto desenrolar-se a acção dramatúrgica, dentro das quais se
constitui a identidade das personagens, distinta da identidade dos actores, assim como a
verosimilhança da narrativa. Mas há também inúmeros exemplos espontâneos destes processos de
desconstrução dos quadros do sentido no decurso da nossa vida quotidiana. É o caso, por exemplo,
do discurso do apresentador do telejornal, que rompe com o quadro delimitador do espaço próprio
ao sentido do telejornal, no momento em que se dirige directamente ao telespectador, por ocasião de
uma avaria, ou para abrir um diálogo com um correspondente ou um convidado.10[10]
Para sentirmos a natureza violadora do frame destas práticas desconstrutoras, imaginemos o
caso em que, no momento em que abraço um amigo, lhe explicito o sentido do meu gesto, dizendo
que é dessa maneira as pessoas amigas costumam cumprimentar-se. O sentido do meu abraço
9[9]
Recorde-se que símbolo vem do grego synbolon. Na origem, um synbalon é um objecto que se parte de
modo a que pela junção das duas partes se possa estabelecer o reconhecimento de um mensageiro.
10[10]
Desenvolvi este exemplo no meu livro Comunicação e Cultura, Lisboa, ed. Presença, 1999, 2ª ed.,
página.
deslocar-se-ia para dar origem a um outro sentido em que o primeiro seria enquadrado. Pelo mesmo
facto, o sentido do meu abraço presente tenderia a desmoronar-se. É também por essa razão que o
meu comportamento presente pode denunciar ou trair sentidos diferentes e eventualmente
antagónicos em relação ao sentido daquilo que dizem os meus enunciados.
11[11]
Recorde-se que traditio vem do verbo latino tradere que significa transmitir, entregar, dar, deixar por
herança, confiar, ceder, abandonar, trair, atraiçoar, contar, narrar, ensinar, transmitir aos discípulos.
12[12]
Esta ruptura está inscrita na própria etimologia do termo que aparece tardiamente no século VI. Da raiz
indo-europeia de modernus, mod- ou med-, derivaram os termos gregos medomai (tomar conta de ou meditar),
1.7.2.1 A autonomização das dimensões da experiência
A experiência bíblica de Job e o aparecimento da tragédia grega dão conta, de maneiras
diferentes, do mesmo processo de autonomização das diferentes dimensões da experiência.
Traduzem, de maneira dramática, a tomada de consciência, escandalosa para a modalidade
tradicional da experiência, de que não há homologia, mas autonomia entre a verdade, a bondade e a
beleza dos seres, de que nem sempre a verdade é bela e boa, de que nem sempre a beleza é
verdadeira e boa, de que nem sempre a bondade é verdadeira e bela. Como é possível, para o
homem da tradição, aceitar que Job, justo e bom, seja feio, esteja coberto de chagas, desprezado de
todos, ao passo que os maus sejam ricos, belos e adulados de todos? Por seu lado, a tragédia grega
põe em cena a impossibilidade de conciliar a realização pessoal dos desejos com os imperativos do
dever impostos pelos deuses.
Esta autonomização das dimensões da experiência é fundamentalmente um processo de
secularização ou de dessacralização da experiência, processo a que Max Weber daria o nome de
“desencantamento” (Entzauberung).14[14] De facto, a experiência passou a ser desencantada, na
medida em que o homem moderno sabe que o seu destino depende de si próprio e não é governado
de maneira transcendente, como num jogo de fantoches, por forças divinas. A esta dessacralização
corresponde por isso uma imanentização da experiência do mundo.
Mas a modernidade é também um processo emancipador em relação às coacções da
tradição, a partir do momento em que o homem toma consciência de que a tradição exerce uma
força coerciva que trava o processo de autonomização individual, impedindo a realização de
projectos autónomos em relação à sabedoria herdada do passado. Esta emancipação está
intimamente associada ao projectualismo e ao individualismo, características da modernidade.
O traço dominante da experiência moderna é, no entanto, o da natureza específica da
fundamentação legitimadora da acção e do discurso. Em vez do apelo à tradição, traduzida na
transmissão do conjunto dos valores e das crenças herdados do passado, a modernidade apela para
um tipo diferente de racionalidade, para uma indagação racional, metodicamente conduzida, dos
fenómenos inerentes tanto ao domínio da experiência de si, como aos domínios do mundo natural e
medimnos (medida), medo (proteger ou governar), e os termos latinos modus (medida), modestus (comedido), medeor
(cuidar de, tratar, medicar), medicus, medicina, medicamentum, remedium, moderatio, moderari. Como diz Emile
Benveniste, por modernus entende-se uma medida de coacção, supondo reflexão, premeditação, e que é aplicada a uma
situação desordenada.» (E. Benveniste, Vocabulaire des Institutuions Indo-européennnes, Paris, ed. de Minuit, 2º
volume, 1969, página 128.
13[13]
Prefiro utilizar o termo autonomização para me demarcar das ressonâncias funcionalistas associadas aos
termos fragmentação e diferenciação, habitualmente utilizados por alguns autores, para falar da modernidade.
14[14]
Ver Max Weber, L’Ethique Protestante et l’Esprit du Capitalisme, Paris, ed. Plon, 1964 )or.: 1920),
páginas 121, 143, 191, 194.
dos outros. É este ideal de racionalidade metódica que está na origem da diferenciação moderna dos
domínios e das dimensões da experiência, diferenciação que, como veremos na segunda parte, vai
conduzir à autonomização e institucionalização progressiva dos diferentes campos sociais.
Uma das características decorrentes desta autonomização moderna em relação às coacções
da tradição, é a deslocalização da experiência. Os quadros e os contextos situacionais que
delimitam a experiência tradicional são geograficamente delimitados e formam aquilo a que
podemos dar o nome de fronteiras culturais concretamente enraizadas em territórios de pertença.
Estas fronteiras concretas correspondem ao lugar em que os indivíduos nascem, crescem, são
socializados, casam, trabalham e morrem. As relações de sociabilidade são sobretudo marcadas pela
instituição familiar e manifestam-se nomeadamente pela coabitação, no mesmo lugar, da família
alargada. Mas, com a modernidade, os quadros da experiência deixam de estar concretamente
delimitados pelas fronteiras locais, abrindo-se a interacções que ultrapassam essas fronteiras para se
tornarem progressivamente independentes da partilha do mesmo lugar.
Este processo de deslocação das relações de sociabilidade não tem sempre a mesma
natureza. Assim, nos séculos XVII e XVIII, deu lugar à experiência das viagens, à descoberta de
outros continentes, de outros povos, de outras culturas, de outras visões do mundo. No século XIX,
traduziu-se pelo desenraizamento das comunidades rurais emigradas para os centros industriais. No
nosso tempo, dá lugar ao desenvolvimento das interacções, instantâneas e em todos os sentidos,
através das redes telemáticas, factor daquilo a que hoje damos o nome de globalização da
experiência do mundo.
Mas, através de todas estas realizações diferenciadas, encontramos sempre um processo de
deslocalização, característica dos quadros modernos da experiência. A família alargada deixa de
fixar os quadros da experiência total do mundo, abrindo-se a experiência a novos quadros de
sociabilidade, mais ténues, menos fixos, mais aleatórios, mas nem por isso necessariamente menos
intensos e mobilizadores.
Em vez de definida por quadros estáveis, em torno dos laços familiares, da propriedade da
terra, da partilha de uma história comum, do reconhecimento recíproco e mútuo da identidade do
lugar ocupado por cada um, num sistema de interacções herdado do passado, a experiência moderna
passa a depender da capacidade de cada um a construir e delimitar o seu próprio quadro de vida, das
suas escolhas e dos seus gostos, assim como da pretensão de cada um construir a sua própria
identidade e a fazê-la reconhecer e respeitar pelos outros.
A intensidade e a natureza da sociabilidade deixam de depender dos quadros concretos das
fronteiras do local e passam a variar de acordo com os projectos de investimento individual.
Deste modo, a emergência da paixão amorosa como critério de realização da experiência de
si equivale a uma autonomização e a uma valorização das relações de intimidade em detrimento da
forma contratual do casamento e da família, correspondendo ao surgimento da família nuclear, com
a consequente institucionalização e autonomização de classes de idade, da infância, da
adolescência, da idade activa e da velhice. A intensidade e a natureza da sociabilidade deixam por
isso de depender dos quadros concretos das fronteiras do local e passam a variar de acordo com os
projectos de investimento individual.
Prefiro falar de processo de autonomização, em vez de libertação, a propósito destas
transformações individualizantes ao nível da experiência, porque este processo não equivale
necessariamente a um aumento de liberdade. Podemos de facto considerar este processo mais como
a imposição de novas formas e de novas estratégias de coacção do que de uma autêntica libertação.
Como a propósito mostrou Michel Foucault, as estratégias modernas de coacção, correspondentes a
este processo de autonomização, fazem mais apelo a modalidades morais do que físicas de coacção,
jogando com a interiorização individual das normas da autonomia, contando, deste modo, mais com
a cumplicidade dos indivíduos na sua imposição, em nome da eficácia dessa imposição, do que com
as modalidades dolorosas da coacção física.15[15]
15[15]
Ver Michel Foucault, Surveiller et Punir, Paris, ed. Gallimard, 1975.
16[16]
Ver sobre este ponto Anthony Giddens, Modernidade e Identidade Pessoal, Oeiras, ed. Celta, 1997.
das expectativas dos outros interiorizadas pelos indivíduos. Este processo pode inclusivamente dar
hoje origem a um processo de esquizofrenização da experiência. Assim, os discursos que
acompanham as rupturas, as emigrações, os divórcios, o alijamento dos idosos por parte dos
familiares e a sua instalação em lares da terceira idade podem oferecer eloquentes exemplos deste
processo esquizofrenizante de racionalização.
Estes processos de culpabilização e de racionalização contribuem para a instauração das
novas modalidades de coacção que caracterizam a experiência moderna.
17[17]
Ver Ferdinand Tönnies, Communauté et Société, Paris, Presses Universitaires de France, (or.:
Gemeinschaft und Gesellschaft, 1887).
A EMERGÊNCIA DOS CAMPOS SOCIAIS
1.8 Introdução
Ao autonomizar a experiência subjectiva em relação à experiência do outro e ao constituir-
se, deste modo, a esfera da experiência intersubjectiva, a modernidade desencadeia um processo de
progressiva autonomização dos diferentes campos sociais, correspondendo cada um a um dos
domínios autónomos da experiência intersubjectiva. Para este processo contribuem factores
históricos que têm como denominador comum uma nova maneira de fundamentar racionalmente a
experiência.
Em vez de apelar para a maneira habitual herdada do passado de fundamentar a crença e a
confiança na apreensão sensorial do mundo natural, nas regularidades constitutivas da legitimidade
das experiências subjectiva e intersubjectiva, a modernidade pretende apelar para a indagação
crítica metodicamente conduzida.
O processo de indagação crítica metodicamente conduzida nunca será, no entanto,
completamente realizado, e há domínios da experiência tradicional irredutíveis a qualquer projecto
de indagação racional, que escapam, por conseguinte, total ou parcialmente, ao controlo da razão
moderna. É o caso da experiência da lingua e da experiência afectiva, acerca das quais qualquer
empreendimento racional as desconstrói à nascença. De uma maneira geral, o domínio da
afectividade é, por natureza, resistente aos procedimentos de fundamentação racional, tal como os
quadros do sentido dependem da natureza indiscutível da lingua que os fundamenta. Mas muitos
outros domínios da experiência quotidiana apresentam idêntica característica, a de se destruirem
sempre que pretendemos compreendê-los racionalmente. É por isso que a modernidade é um
projecto sempre inacabado, permanecendo inevitavelmente amplas franjas da experiência de fora
das fronteiras do seu espaço de intervenção.
A fundamentação racional da experiência moderna está intimamente associada às novas
modalidades do saber, distintas da sabedoria tradicional. O saber moderno visa a explicação dos
fenómenos, a formulação das regras do seu funcionamento e a compreensão da sua organização, em
vez das explicações herdadas da tradição. O resultado é, como vimos, o aparecimento da figura do
especialista que substitui a do sábio.
Sabemos que o aparecimento das Universidades esteve, na Europa do fim da Idade Média,
intimamente associado a este processo. É impossível compreender a autonomização dos campos
sociais sem o desenvolvimento das ciências modernas e o aparecimento das especializações
científicas. Deter uma licenciatura corresponderá doravante a possuir a competência legítima para
intervir eficazmente num determinado domínio da experiência e para formular as regras de conduta
a seguir nesse domínio.
Ao contrário do sábio que, nas sociedades tradicionais, possui uma competência não
especializada sobre o conjunto da experiência, o licenciado é perito num dos domínios da
experiência. Enquanto a competência do sábio é esotérica, não só porque é válida apenas junto da
sua comunidade de pertença, mas porque foi adquirida através do convívio com um mestre, a
validade da competência do licenciado é exotérica, porque não está restrita ao espaço de uma
comunidade concreta, é universalmente reconhecida e é adquirida, no espaço aberto da Escola, pela
aplicação metodicamente conduzida da razão.
Com a autonomização dos campos sociais, autonomiza-se igualmente a competência para a
formulação discursiva das regras da competência para intervir eficazmente em cada um dos campos
sociais. Autonomiza-se assim, para os campos sociais, a função discursiva da função pragmática.
O desempenho da função simbólica de um campo social equivale à formulação discursiva da
ciência e as suas diferentes etapas de formalização correspondem àquilo a que Michel Foucault deu
o nome de formação discursiva.18[18]
Por seu lado, o desempenho da função pragmática equivale à tecnicidade de um determinado
campo social. A maneira de desempenhar historicamente esta função não depende apenas do nível
de formalização discursiva, mas pressupõe um determinado estádio da evolução da invenção
técnica.
Ao contrário da modalidade tradicional da experiência, a modalidade moderna fundamenta-
se, portanto, na distinção entre função discursiva e função pragmática, entre os valores de
adequação do discurso e os valores de eficácia técnica, entre a esfera da palavra e a esfera da acção.
Os detentores da legitimidade simbólica e pragmática num determinado domínio da
experiência formam um corpo social. A sua legitimidade adquire-se, não através da transmissão de
uma sabedoria, mas pela aquisição de uma disciplina, no duplo sentido do termo, o do saber
discursivamente formulado, e o de uma hexis ou um ethos, espécie de hábito adquirido, ao longo da
formação, que habilita os seus detentores para o exercício competente de uma profissão, das
decisões, dos gestos e das atitudes adequados à intervenção num determinado domínio da
experiência. É a este processo que damos o nome de disciplinarização moderna da experiência.
Podemos distinguir facilmente, ao longo do processo de constituição da modernidade,
algumas viragens fundamentais, a partir da invenção e da adopção dos dispositivos técnicos
utilizados pelos campos sociais na sua intervenção nos domínios da experiência de que detêm a
competência legítima.
A autonomização moderna dos diferentes domínios e das diferentes dimensões da
experiência é um processo eminentemente secularizante, na medida em que a religião deixa de ser o
quadro unificador e homogeneizador da totalidade da experiência. Cada um dos domínios
18[18]
Cfr. Michel Foucault, Archéologie du Savoir, Paris, ed. Gallimard, 1969, páginas 44 e ss.
autonomizados da experiência passa a ser constituído como um campo autónomo, dotado de
legitimidade para criar, impor, manter, sancionar e restabelecer os valores e as regras, tanto
constitutivas como normativas, que regulam um domínio autonomizado da experiência. Abordarei,
por isso, neste capítulo, a génese, a natureza, as funções, a legimidade, o processo de inculcação, o
sistema de sanções, o regime de funcionamento, a simbólica e o corpo dos campos sociais.
Antes, porém, convém esclarecer o sentido da expressão campo social. Não devemos
entender aqui o termo campo num sentido espacial, mas energético, à maneira da física, que fala de
campo de forças para designar a tensão gerada pelo confronto entre pólos de sentido oposto. É
portanto num sentido tensional que utilizo a expressão campo social. Com esta metáfora física
pretendo sublinhar o efeito tensional sobre a experiência que resulta do confronto entre campos
autónomos, cada um deles com a pretensão de regular um determinado domínio da experiência, a
partir da delimitação de um determinado quadro do sentido.
É na fronteira entre campos de legitimidade que esta tensão se gera e se manifesta. A luta
pela mobilização do conjunto da experiência por cada um dos campos traduz esta natureza tensional
da racionalidade moderna dos campos sociais. Veja-se, a propósito, o debate interminável entre o
político, o médico, o económico, o jurídico, o religioso acerca das questões da droga ou da
despenalização do aborto, cada um dos campos sociais procurando impor os seus quadros próprios
de sentido em ordem à regulação da experiência destas questões.
Mas devemos notar que um dos aspectos interessantes desta tensão é o surgimento moderno
de novas questões, a partir do momento em que se consuma esta autonomização dos campos. A
sexualidade, o aborto, tal como a infância, as mulheres, a droga, a velhice não são evidentemente
experiências modernas, mas autonomizam-se como questões modernas, a partir de perspectivações
estabelecidas autonomamente pelos campos sociais modernos, que se encarregam de as tematizar.
Para designar um campo social utilizo a forma masculina de um adjectivo substantivado: o
político, o económico, o jurídico, o médico, o científico. É uma convenção destinada a distinguir
um campo social das suas materializações e manifestações políticas, económicas, jurídicas,
médicas, científicas. Assim, o político não se confunde com a política, que tem a ver com a sua
materialização conjuntural no jogo partidário. O económico não se confunde com a economia nem
o religioso com a religião, o médico com a medicina, o científico com a ciência. Como veremos, o
económico não se limita às manifestações económicas, mas intervém também em práticas que
escapam ao domínio da economia, tal como o religioso não se esgota na prática das Igrejas, mas
intervém também noutras esferas de actividade.
1.9 A génese dos campos sociais
Um campo social é o resultado ou o efeito de uma génese, de um processo de
autonomização secularizante bem sucedido, graças à aquisição da capacidade de impor, com
legitimidade, regras que devem ser respeitadas num determinado domínio da experiência, baseadas
numa indagação racional metodicamente conduzida.
Este processo está intimamente associado à constituição do sujeito e à sua progressiva
emancipação das coacções que impedem a sua autonomização no seio da tradição. Entre os factores
desta coacção, contam-se os determinismos herdados da tradição e legitimados de maneira
transcendente assim como a ausência de controlo dos fenómenos da natureza.
Apesar de não ser exclusivo de nenhuma época nem de nenhuma sociedade em particular,
este processo tornou-se explicitamente mobilizador da civilização ocidental, a partir do século XIII,
tendo-se acelerado a partir do século XVII e acabando por se alastrar aos outros continentes, na
sequência da intensificação do contacto entre os povos e as culturas.
Lewis Mumford considera a invenção do vidro, da imprensa e do relógio mecânico as
invenções mais importantes do processo de viragem da modernidade. 19[19] «A invenção e o
aperfeiçoamento do relógio constituiram o passo decisivo em direcção da automação; porque
fornece o protótipo a muitas outras máquinas automáticas; e acaba por atingir um grau de perfeição,
no cronómetro do século XVIII, que estabelece um critério para outros refinamentos
tecnológicos.»20[20] De facto, é com a invenção deste dispositivo técnico de medição do tempo que
assistimos a um processo de naturalização de uma experiência artificial da temporalidade,
independente dos ritmos naturais da experiência: «A máquina que mecanizou o tempo fez mais do
que regular as actividades do dia: sincronizou as reacções humanas, não com o nascer e o pôr do
Sol, mas com os movimentos das agulhas do relógio; introduziu assim em todas as actividades a
mensuração exacta e o controlo temporal estabelecendo um critério independente permitindo figurar
e subdividir a totalidade do dia.»21[21]
Mas já desde a Antiguidade encontramos inúmeros inventos técnicos que prenunciam este
esforço de emancipação. A invenção da escrita alfabética deverá ter desempenhado
indiscutivelmente um papel fundamental no desencadeamento deste processo.
O domínio da saúde, da gestão dos valores da vida, e o domínio do direito, da gestão dos
valores da justiça, contam-se entre os primeiros domínios a conquistar, já nos finais do século XIII,
19[19]
Ver nomeadamente Lewis Mumford, Le Mythe de la Machine, vol. 1. La Technologie et le
Développement Humain, Paris, ed. Fayard, 1973, páginas 382-383, vol. 2, Le Pentagone de la Puissance, Paris, ed.
Fayard, 1974, páginas 236-237.
20[20]
Op. cit., vol. 2, 1974, página 236.
21[21]
Op. cit., vol. 1, 1973, páginas 382-383.
a sua autonomia, instituindo-se como campos sociais dotados de autonomia em relação ao
religioso.22[22]
22[22]
A institucionalização do campo médico esteve associada à prática da dissecação dos cadáveres e é já nos
finais do século XIII que esta prática é atestada na Universidade Montpellier. A criação do direito civil, no século XIV,
na Universidade de Bolonha pode ser considerada uma etapa fundamental da autonomização do campo jurídico.
23[23]
Tomo esta distinção de John Rawls, Teoria da Justiça, Lisboa, ed. Presença, 1993.
1.11 As funções dos campos sociais
Como já dissémos, um campo social desempenha dois tipos de funções dentro do seu
domínio específico de competência: funções expressivas ou discursivas e funções pragmáticas ou
técnicas.
As funções expressivas ou discursivas consistem no exercício da competência legítima por
parte de um campo social para enunciar os princípios, os valores e as regras que têm curso dentro
do domínio da experiência sobre o qual tem competência.
Por seu lado, as funções pragmáticas ou técnicas consistem no exercício da competência
legítima por parte de um campo social para intervir, com eficácia, com vista à criação, à inculcação,
à manutenção, ao sancionamento e ao restabelecimento da sua ordem de valores. As funções
pragmáticas de um campo social são, por conseguinte, de natureza pedagógica e terapêutica. As
funções de natureza pedagógica têm a ver com a inculcação da sua legitimidade ao conjunto da
sociedade, ao passo que as funções terapêuticas têm a ver com a intervenção destinada ao
restabelecimento da sua ordem de valores própria.
As funções terapêuticas dividem-se, por seu lado, em ortésicas e em protésicas. Enquanto as
primeiras visam o restabelecimento do bom funcionamento de um órgão, as segundas visam a
substituição de um órgão estragado ou perdido por dispositivos técnicos. Foi sobretudo esta
natureza protésica das funções técnicas dos campos sociais que esteve na origem da visão eufórica
da modernidade, expressa, no século XVIII, pelos enciclopedistas que consideravam o progresso
técnico moderno como um prolongamento da obra criadora de Deus.24[24]
24[24]
Ver nomeadamente
tais como os domínios escolar, científico, político, económico. Como veremos, nem sempre esta
delegação de competências por parte de outros campos sociais é isenta de tensões e de conflitos.
25[25]
Ver a este propósito a obra fundamental de Jürgen Habermas, L’Espace Public. Archéologie de la
Publicité comme Dimension Constitutive de la Société Bourgeoise, Paris, ed. Payot, 1978.
A AUTONOMIZAÇÃO DO CAMPO DOS MEDIA
1.18 Introdução
Como vimos, logo na primeira parte, são os dispositivos de mediação que delimitam os
objectos da percepção e da sensação que integram o Mundo vivido. No entanto, só na modernidade
tardia esses dispositivos se problematizam, autonomizando-se num campo próprio. Enquanto a
experiência tradicional se alimenta da amnésia da arbitrariedade ou do esquecimento naturalizante
dos quadros da experiência formados pelos dispositivos de percepção do mundo, a experiência
moderna procede da autonomização desses dispositivos e da instituição de um campo dotado de
legitimidade para superintender à experiência de mediação, instituição a que dou o nome de campo
dos media. O processo de autonomização do campo dos media dá-se, por conseguinte, na sequência
do acesso à consciência reflexiva moderna que está na origem da instauração do projecto de
desconstrução e de problematização dos quadros do sentido da experiência.
Podemos já antever no Método de Descartes uma das manifestações deste processo reflexivo
e problematizande de desconstrução, a partir da crítica da experiencia espontânea, objecto da
suspeita de fundar uma relação enganadora e falaciosa ao mundo. É por isso que o Método deriva
de uma vontade, profundamente moderna, de fundar uma experiência universalmente válida,
independente não só do enraizamento na experiência tradicional de uma cultura particular, mas
sobretudo dos mecanismos enganadores da percepção sensorial. Encetado no século XVII, este
processo desconstrutor da experiência nunca mais cessaria de ser aprofundado pela reflexão
filosófica dos últimos três séculos, cavando-se, por conseguinte, cada vez mais profundamente o
hiato intransponível entre a realidade em si e a experiência fenomenal.
A consumação da autonomização do campo dos media só virá, no entanto, a ocorrer com o
advento da modernidade tardia, no termo da fragmentação dos campos sociais que surgiram com a
primeira modernidade. É só na segunda metade do século XX que se coloca a questão da
compatibilização da legitimidade de cada um dos campos sociais com a dos restantes campos.
O campo dos media não se limita, no entanto, a superintender à mediação dos diferentes
domínios da experiência e dos diferentes campos sociais. Faz também emergir, nas fronteiras dos
campos sociais instituídos, novas questões, como a droga, o sexismo, o aborto, a ecologia, para as
quais nenhum dos campos detém legitimidade indiscutível nem consegue encontrar soluções
consensuais e impô-las ao conjunto da sociedade. São doravante estas novas questões que irão
mobilizar o debate público que o campo dos media se encarrega de promover e publicitar. Fazendo
intervir, ao mesmo tempo, problemas de natureza científica, política, económica, religiosa, médica,
estas novas questões mostram os limites da legitimidade de cada um dos campos sociais instituídos
ao longo da modernidade para a formulação e a imposição de valores consensuais e de regras
susceptíveis de regular os comportamentos adequados. É no campo dos media que estas novas
questões se irão reflectir e problematizar.
As particularidades do campo dos media reflectem-se na natureza da sua génese, das
funções que desempenha, da sua legitimidade, do seu sistema de sanções, do seu regime de
funcionamento, da sua simbólica, do seu corpo social e do seu sistema de acreditação.
26[26]
Acerca desta relação do campo dos media com a emergência do paradigma cibernético ver o meu livro
Estratégias da Comunicação, Lisboa, ed. Presença, 1997, 2ª ed., páginas 74-95. Ver também a obra fundamental sobre
a história da tecnicidade de Gilbert Simondon, Du Mode d’Existence des Objets Techniques, Paris, ed. Aubier-
Montaigne, 1990, 2ª. ed.
informação mediática. É a partir dessa altura que assistimos efectivamente à autonomização de um
domínio específico destinado à criação e à gestão dos dispositivos da informação mediática.
27[27]
Sobre os actos de linguagem ver sobretudo John Langshaw Austin, How to Do Things with Words,
Oxford, Clarenton Press, 1962, e John R. Searle, Speech Acts, Cambridge Univ. Press, 1969.
de mediação, encarregado sobretudo de redigir releases ou comunicados destinados ao público.
Assistimos assim ao aparecimento de gabinetes de imprensa, de serviços de relações públicas, de
profissionais em marketing, que se encarregam desta função de publicidade.
1.27 Conclusão
Gostaria de concluir este trabalho, mostrando a estreita relação da autonomização do campo
dos media com a experiência, na era da modernidade tardia. Como tive ocasião de mostrar, o campo
dos media desempenha funções predominantemente simbólicas: assegura, ao mesmo tempo, o
funcionamento dos dispositivos de representação e reflecte, como num espelho, os diferentes
domínios da experiência.
É a natureza especular e representativa do seu funcionamento que confere ao campo dos
media a especificidade da seu domínio próprio de competência, o da mediação entre os diferentes
campos sociais, religando entre si o mundo fragmentado moderno.
É porque depende sobretudo da enunciação de um discurso próprio, o discurso mediático,
que o desempenho desta função simbólica, especular e representativa, que é a experiência
discursiva, que acaba por ser o domínio de competência específico da campo dos media.
O discurso mediático possui, além das características de qualquer outra modalidade de
discurso, um conjunto de traços distintivos que definem a sua natureza e o seu modo de
funcionamento e o distinguem dos outros discursos. Vou apenas referir dois conjuntos de
características do discurso mediático.
O primeiro conjunto tem a ver com as regras da enunciação. Ao contrário dos outros
discursos, o discurso mediático é antes um discurso de natureza exotérico, isto é, compreensível
independentemente da situação interlocutiva particular. É este primeiro traço que assegura a relação
de mediação entre todos os domínios da experiência e entre todos os campos sociais. Do ponto de
vista formal, esta característica resulta da aplicação por parte do corpo social próprio do campo dos
media de todo um conjunto de regras discursivas. De entre essas regras, merece particular referência
à da supressão ou, pelo menos, ou do uso reduzido ao mínimo das marcas dícticas, isto é, do jogo
pronominal que refere os interlocutores, assim como o tempo e o lugar da enunciação mediática. A
esta regra de eliminação das marcas dícticas dou o nome de processo de objectivação do discurso
ou, se preferirmos, de apagamento das marcas da subjectividade. Trata-se evidentemente de um
processo estratégico que visa criar as condições simbólicas de representação exotérica da
experiência do mundo, na medida em que não é pelo facto de o locutor não dizer “eu” que deixa de
estar presente na enunciação do seu discurso.
O segundo conjunto de regras tem a ver com o jogo retórico ou de figuração do discurso. Ao
contrário dos outros campos sociais, que procuram na autonomização conceptual e terminológica a
eficacidade simbólica da sua própria autonomização, o discurso mediático procura na transposição
conceptual e na metaforização terminológica o exercício da sua relação especular com os diferentes
domínios da experiência e a eficacidade simbólica da sua função de mediação entre os outros
campos sociais. Os exemplos mais notáveis destes processos de metaforização encontram-se nos
títulos da imprensa e nos discursos jornalísticos, mas atingem um alto nível de criatividade nos
discursos publicitários, feitos de aproximações ousadas e, por vezes, brilhantes de terminologias
originárias de campos sociais distintos. «Guerrilha na bolsa», «Empate nas sondagens», «Portugal
abre guerra da língua», «Ministro chamuscado» são alguns exemplos de processos de metaforização
do discurso dos media.
Estas características enunciativas e retóricas não dão conta obviamente de todas as
diferenças que o discurso mediático apresenta em relação aos discursos dos outros campos sociais.
Faltam ainda estudos minuciosos que permitam averiguar, de maneira sistemática e ponderada, as
suas características tanto lexicais, sintáxicas e semânticas como enunciativas, retóricas e
pragmáticas. Mas a evocação breve e resumida de algumas regras que o discurso mediático
apresenta apenas nos domínios enunciativo e retórico é suficiente para mostrar que as relações que
o campo dos media estabelece com a experiência são de natureza predominantemente simbólica.
A natureza simbólica das relações do campo dos media com a experiência são
particularmente paradoxais. Por um lado, é graças à natureza discursiva ou simbólica das suas
relações com a experiência que o campo dos media assegura as funções de publicitação ou de
visibilidade pública do mundo e dos diferentes campos sociais. Mas, por outro lado, estas funções
só podem ser asseguradas se o discurso mediático resultar de um processo de naturalização
objectivante, pela opacificação ou pelo apagamento sistemático das marcas enunciativas. A eficácia
do funcionamento do campo dos media resulta por isso daquilo a que dou o nome de processo de
naturalização das regras de representação especular da realidade.
Não admira, por conseguinte, que o campo dos media estabeleça relações de natureza
tensional com os outros campos sociais. Enquanto a representação da experiência produzida pelo
discurso do campo dos media procede da naturalização dos dispositivos de percepção espontânea do
mundo, a representação da experiência resultante dos discursos dos restantes campos sociais
depende do respeito das disciplinas que visam a desnaturalização desconstrutora e de crítica dos
quadros expontâneos que ditam o sentido da experiência quotidiana.
Esta tensão é particularmente visível nas atitudes ambivalentes dos corpos sociais dos
restantes campos em relação ao corpo social do campo dos media. Embora aqueles não possam
prescindir do contributo deste para a imposição da sua visibilidade pública, não podem deixar de
considerar o discurso medático com suspeição, acusando-o de atraiçoar os seus valores e de não
respeitar a autenticidade e o rigor dos seus discursos especializados.
Ao longo do processo de implementação da modernidade, a autonomização de cada um dos
diferentes campos sociais resultou da luta bem sucedida pela imposição da sua competência num
dos doínios da experiência. Como vimos, a autonomização do campo dos media coloca o mundo
actual perante novas lutas que se situam nas fronteiras dos domínios da experiência que escapam ao
domínio dos campos sociais instituídos. O papel mais importante do campo dos media será
provavelmente cada vez mais a sua capacidade de tematização pública e de publicização do
confronto entre os discursos especializados em torno das questões suscitadas por estes domínios.
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