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mídia, ética

e esfera
pública

Ângela Cristina Salgueiro Marques


Luis Mauro Sá Martino

{ olhares
transversais

05/12/2016 23:50:22
Ângela Cristina Salgueiro Marques
Luís Mauro Sá Martino

MÍDIA, ÉTICA
E EFERA
PÚBLICA

1a edição
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitor: Jaime Ramirez
Vice-Reitora: Sandra Regina Goulart Almeida

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


Diretor: Orestes Diniz Neto
Vice-Diretor: Bruno Pinheiro Wanderley Reis

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO


Coordenador: Carlos Magno Camargos Mendonça
Sub-Coordenadora: Geane Alzamora

SELO EDITORIAL PPGCOM


Ângela Cristina Salgueiro Marques
Bruno Guimarães Martins

CONSELHO CIENTÍFICO

Ana Carolina Escosteguy (PUC-RS) Kati Caetano (UTP)


Benjamim Picado (UFF) Luis Mauro Sá Martino (Casper Líbero)
Cezar Migliorin (UFF) Marcel Vieira (UFPB)
Elisabeth Duarte (UFSM) Mariana Baltar (UFF)
Eneus Trindade (USP) Mônica Ferrari Nunes (ESPM)
Fátima Regis (UERJ) Mozahir Salomão (PUC-MG)
Fernando Gonçalves (UERJ) Nilda Jacks (UFRGS)
Frederico Tavares (UFOP) Renato Pucci (UAM)
Iluska Coutinho (UFJF) Rosana Soares (USP)
Itania Gomes (UFBA) Rudimar Baldissera (UFRGS)
Jorge Cardoso (UFRB | UFBA)

www.seloppgcom.fafich.ufmg.br
Avenida Presidente Antônio Carlos, 6627, sala 4234, 4º andar
Pampulha, Belo Horizonte - MG. CEP: 31270-901
Telefone: (31) 3409-5072
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

M357m Marques, Ângela Cristina Salgueiro.


Mídia, ética e esfera pública [recurso eletrônico] /
Ângela Cristina Salgueiro, Luís Mauro Sá Martino. –
Belo Horizonte: PPGCOM UFMG, 2016.
304p.

Ebook formato pdf.


Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader.
Modo de acesso: World Wide Web.
<www.seloppgcom.fafich.ufmg.br>
Inclui Bibliografia.
ISBN: 978-85-62707-84-1

1. Mídia. 2. Ética. 3. Habermas, Jurgen 1929-.


4. Experiência. 5. Comunicação. 6. Política.
7. Jornalismo. 8. Resistência.
I. Universidade Federal de Minas Gerais. II. Título.

CDD - 174.9097
CDU - 070.11
Elaborada pela Biblioteca Professor Manoel Lopes de Siqueira da UFMG.

CRÉDITOS DO E-BOOK © PPGCOM UFMG, 2016.

PROJETO GRÁFICO
Bruno Menezes A. Guimarães
Bruno Guimarães Martins

DIAGRAMAÇÃO
Bruno Menezes A. Guimarães

CAPA
Olívia Binotto
Ana Cláudia Maiolini
Aos nossos filhos: Lucas, Fernando e Cristiano.
SUMÁRIO

PREFÁCIO 8
Introdução 24

PARTE I
ÉTICA, MORAL E COMUNICAÇÃO

1. AS RELAÇÕES ENTRE ÉTICA, MORAL


E COMUNICAÇÃO NA EXPERIÊNCIA INTERSUBJETIVA 31

2. A ÉTICA DOS PROCESSOS COMUNICATIVOS:


DISCURSO, ESFERA PÚBLICA E AUTONOMIA 42

3. PROMESSAS E LIMITES DA ÉTICA DO DISCURSO


NAS INTERAÇÕES COMUNICATIVAS 90

4. ASPECTOS ÉTICOS E POLÍTICOS DA


CONVERSAÇÃO ONLINE 117

5. O INTERLOCUTOR COMO AGENTE ÉTICO-MORAL


E O DIREITO À COMUNICAÇÃO NA PARTICIPAÇÃO
POLÍTICA 130
PARTE II
ÉTICA, PRODUÇÃO DE INFORMAÇÕES E ESFERA PÚBLICA

6. PASSAGENS ENTRE OS CONCEITOS DE “CAMPO


DA COMUNICAÇÃO” E “ESFERA PÚBLICA” 143

7. O DISCURSO DA ÉTICA NO CAMPO JORNALÍSTICO 159

8. RECONFIGURAÇÕES DA NOÇÃO DE OBJETIVIDADE


NO JORNALISMO 177

9. FICÇÃO E POLÍTICA:
ÉTICA E MORAL NO MELODRAMA 193

PARTE III
ÉTICA, ESTÉTICA E POLÍTICA

10. CENAS DE DISSENSO E ESTÉTICA DA POLÍTICA 214

11. POLÍTICAS NAS IMAGENS, IMAGENS POLÍTICAS:


UMA ÉTICA DO OLHAR 232

12. PRÁTICAS DE RESISTÊNCIA E CÓDIGOS OCULTOS 246

13. SEIS DESAFIOS ÉTICOS NA COMUNICAÇÃO 257

REFERÊNCIAS 271
prefácio
— João Pissarra Esteves —

Para arrumar algumas ideias sobre a melhor forma de


pensar nos dias de hoje as questões da ética e moral da comunicação,
dificilmente poderíamos imaginar melhor motivo inspirador do que
aquele que temos à nossa frente: uma obra de Ângela Marques e Luís
Martino. Esta apresentação será, ao mesmo tempo, um ótimo pretexto
para começar a abrir caminho a um conjunto de raciocínios que,
depois, terão desenvolvimento ao longo da própria obra. Aí, porém,
já com um outro nível de elaboração teórica e detalhe de exposição –
atributos, do meu ponto de vista, que por si só são garantia de que o
presente trabalho está aí para se afirmar como uma referência maior
neste domínio de estudos da comunicação.
É hoje muito comum a discussão da ética da comunicação fixar-se
nos media. Não é já tão óbvio o enfoque que essa discussão habitual-
mente assume. Os media (e não só os “novos”) transportam consigo,
desde há muito tempo, uma aura de novidade que é fortemente pola-
rizadora de atenção social. Por outro lado, a esta situação acresce um
efeito amplificador como resultado de um registo autorreferencial (e
autopromocional) assumido pelos próprios media.
PREFÁCIO 9

Mas quanto ao enfoque referido, qual então o problema? É uma


certa ideia (equívoca) sobre o lugar dos media na sociedade – ideia
veiculada pelos media, mas que depois se propaga muito para além
deles. Resumidamente, essa ideia aproveita a crescente presença e
importância social dos media, mas acaba por exacerbar o papel destes
muito para além do razoável. O pensamento dos autores deste livro
sobre o assunto é precioso quanto a uma clarificação epistemológica
do estatuto (comunicacional) dos media: se na sua discussão eles
atribuem a estes dispositivos uma primazia, esta não põe em causa a
compreensão desses mesmos dispositivos a partir de quadros simbólicos
de ordem geral, que abrangem tanto a comunicação dos media como
a conversação comum. Falamos de quadros de sentido que dizem
respeito, pois, à intercompreensão linguística, no âmbito da qual se
dá a constituição tanto do indivíduo (enquanto self e mind) como da
sociedade – parafraseando o título de uma obra célebre da área. O perigo
espreita num olhar sobre a ética e moral tão cingidas aos media, ou seja, o
esquecimento da comunicação. Dito de outro modo, uma perspetiva que
ignora a própria gênese e fundamento último dos media: a comunicação
pública, enquanto trama forte de simbolicidade e discurso, sobre a qual
se tece (e entretece) toda a nossa vida coletiva.
O ponto amarração do trabalho que aqui nos é oferecido e que,
ao mesmo tempo, serve de sua linha de orientação consiste numa
associação estreita da ética e moral com a comunicação – e a observação
do funcionamento dos media segundo este mesmo prisma. De onde
se pode extrair, de imediato, um sentido primordial (e crítico) para
a malaise do nosso tempo a este nível: um mal-estar que é resultado
de uma certa descontinuidade entre, por um lado, as mediatizações
simbólicas oferecidas pelos media e, por outro, uma comunicação
propriamente intercompreensiva (forma que continua a assumir, de
um modo geral, a expectativa social associada ao uso da linguagem). A
polarização do debate ético em torno dos media, por excessiva que seja
no que respeita a uma delimitação do universo da comunicação, serve
como espécie de prova de credibilidade para a hipótese explicativa
enunciada sobre a malaise comunicacional dos nossos dias. Ao mesmo
tempo, a dessincronização pressentida entre informação mediática e
10 mídia, ética e esfera pública

comunicação pública vem pôr em relevo duas premissas epistemológicas


basilares da realidade social: 1. a comunicação como fundamento
primeiro da vida em sociedade e 2. uma experiência simbólica cada
vez mais polarizada nos media. Merece também ser realçado, de modo
especial, o significado sociológico que possui a percepção destas
premissas ser hoje bastante intuitiva e generalizada (não se restringindo
a qualquer círculo interno aos media, por exemplo, ou a alguma outra
elite de especialistas).

Deontologia (e Ideologia)
Os media, além de enquadrarem de certo modo a ética da comu-
nicação, assumem-se hoje também como uma fonte importante do
próprio discurso ético, num registo, porém, essencialmente deontolo-
gizante: no seu horizonte está, antes de mais, a fixação de um corpo de
regras e preceitos de ordem profissional (no âmbito do jornalismo, mas
não só). Em função desta premissa, a deontologia não pode ser con-
siderada uma base satisfatória para construção de um raciocínio ético
propriamente dito: o estudo (e conhecimento) do dever, que atende
ao interesse geral, ao trilhar este caminho, logo se dispersa em con-
siderações de ordem corporativa, ditadas por interesses mais ou me-
nos particularistas (dos vários grupos profissionais dos media). Este
é o domínio do “discurso estratégico” por excelência, que os autores
desta obra analisam a partir do caso mais específico do jornalismo,
precisamente;e evidenciando, também, como no seu âmbito as fronteiras
entre deontologia e ideologia se tornam normalmente imprecisas. Sem
negligenciar um compromisso com a democracia que é habitualmente
assumido por este discurso, cabe também aqui reconhecer que a mera
proclamação dos valores axiais do jornalismo acaba por gerar a ilusão
de um poder de facto inexistente: a influência dos jornalistas e o con-
trole do seu próprio trabalho vem diminuindo à medida que os media
se complexificam – e incorporam no seu próprio funcionamento prin-
cípios que não são propriamente de ordem democrática.
A deontologia jornalística, comparada com outras deontologias
profissionais, não se distingue por uma grande robustez, o que torna
PREFÁCIO 11

mais notável ainda o seu caráter ideológico: cria a ilusão de uma


mudança dos media que não requer o envolvimento da sociedade, como
se os jornalistas, só por si, tivessem o poder de ordenar em termos
democráticos a sua atividade (e os meios onde ela é exercida), a qual cada
vez menos se rege por princípios democráticos. Por conseguinte, o que
normalmente falta cumprir na deontologia jornalística enquanto discurso
ético sobre os media (e a comunicação) é, em primeiro lugar, a condição
de um verdadeiro debate (aberto e plural) sobre o papel democrático
dos media. Reduzir a ética e a moral à deontologia, neste sentido, é não
só um crasso erro (epistemológico) de análise, mas também um perigo
social: uma promessa de mais democracia que afinal só contribui para
uma concepção (e construção) muito pouco democrática dessa mesma
democracia.

Media (e Ambivalências)
Ética e moral da comunicação dizem respeito, acima detudo, à
comunicação pública. Este é outro motivo pelo qual a sua discussão
dispensa tanta atenção aos media. As capacidades técnicas notáveis destes
meios são notáveis (armazenamento e processamento de informação,
reprodução das formas simbólicas, capacitação dos seus utilizadores,
etc.), mas para o que aqui nos importa é a estrutura espaço-temporal dos
media e, sobretudo, o seu aparato institucional.
As reconfigurações do universo simbólico resultantes dos media
não são homogêneas (nem ao longo do tempo, nem pela ação dos
diferentes meios), à exceção de um único aspecto: a força implacável
que essas mesmas mudanças, precisamente, hoje assumem. Os planos
da produção e da receção ora se afastam, ora se aproximam; a relação
comunicacional pode apresentar geometrias variáveis (maior ou menor
assimetria); a palavra falada e a palavra escrita tanto convergem como
divergem; e outros aspectos poderiam ainda ser referidos, mas todos
eles agora quase sempre em função de um mesmo comando: a lei dos
media (as suas lógicas de funcionamento) – que a todos se impõe, aos
mais diferentes níveis das nossas vidas. A discussão normativa sobre
a comunicação pública está necessariamente associada ao poder dos
12 mídia, ética e esfera pública

media, mas de uma forma nem sempre seguida pela discussão acadê-
mica deste assunto (mais fixada na questão dos conteúdos). Alguns as-
pectos relevantes que importa considerar dizem respeito, em primeiro
lugar, à própria organização dos processos de comunicação. Os media
nos nossos dias fazem valer um poder de gestão e controle sobre o
universo global da comunicação pública; planificação, racionalização e
cálculo implacáveis, a que nem as novas tecnologias (ditas redentoras)
parecem eximir-se –bem pelo contrário, pelo menos quanto a certos
aspetos (ou situações).
A extensão (no tempo e no espaço) e a aceleração dos fluxos comu-
nicacionais são atributos prioritários desta tendência: delas depende
em larga medida a eficácia de um poder disciplinar dos media (sobre a
comunicação pública). Mas também, como é bastante habitual em tudo
o que se relaciona com os media, essas características podem assumir um
significado ético-moral perfeitamente distinto: a perpetuação e ubi-
quação praticamente ilimitadas das formas simbólicas tornam possível
o seu escrutínio mais cuidadoso. São em muito maior número aqueles
que hoje podem realizar avaliações, emitir juízos sobre os conteúdos
produzidos e em circulação, ou sobre os processo de comunicação de
forma mais geral.
Na obra que aqui nos é oferecida, esta ambivalência está muito bem
explorada quer no que se refere aos media mais tradicionais (ditos de
massa, mas nem sempre tão massificados assim), quer aos chamados
novos media (que não deixam de ser também mais ou menos de massa).
As novas tecnologias de informação e comunicação têm também o
seu momentum de grandiloquentes proclamações éticas e morais,
mas felizmente que o tempo está a trazer mais alguma clarividência
aos espíritos quanto a estas matérias (e a que a evolução das próprias
tecnologias, cada vez menos novas, também ajuda). Sobre a internet, por
exemplo, vai-se desvanecendo cada vez mais no horizonte um primeiro
referencial libertário muito associada à Rede, à medida que esta se vê
mais e mais emaranhada numa gigantesca teia de outras redes ainda
mais poderosas – de controles econômicos e político-administrativos.
Não apenas no nível da pesquisa, mas também da própria expe-
riência social, a apreensão que hoje existe dos novos media assume
PREFÁCIO 13

um sentido já mais crítico – bom sinal, certamente. Por um lado, isto


significa que a ideia de um ordenamento normativo se mantém como
inquestionável no que diz respeito à comunicação pública; por outro,
e além disso, que a possibilidade de construção de uma comunicação
pública em função de valores e regras sociais é algo mesmo muito
valorizado socialmente. O interesse pelo tema do digital divide (nas
suas diferentes dimensões) é de tudo isto um eloquente exemplo: desde
logo, enquanto denúncia de uma promessa de emancipação frustrada,
em consequência do assalto a que as novas tecnologias também estão
sujeitas por parte das grandes corporações econômicas, por exemplo,
além de outros poderes fáticos deste nosso novo mundo globalizado.
Como explicam os autores na presente obra, é a rede ainda restrita
a poucos; e, também, uma rede mais ou menos democrática (mas me-
nos do que mais) quanto aos media tradicionais. Nela é administrado
um complexo sistema de “desigualdades digitais”, através do qual se
estende de forma criteriosa um poder disciplinar sobre o conjunto dos
indivíduos (discriminando quem tem e não tem acesso a certos meios
e a certos usos desses meios): é assim que uma “cidadania” é modelada
pelas condiçõesde consumidor e de utente – figuras congeminadas em
formas cada vez mais imaginativas (e sedutoras), de que hoje a versão
edulcorada dos chamados “prosumers” é talvez o melhor exemplo.

Mais Ambivalências (dos Media)


A questão ético-moral que abraça a comunicação pública é especial-
mente marcada pela ambivalência que caracteriza esta. Nela se juntam
problemas e deceções, mas também uma força e energia capazes de
resistir a estas contrariedades e que buscam a sua superação. Em bom
rigor, há que pensar esta ambivalência no plural: forjada no complexo
jogo de forças que envolve os media (com múltiplos intervenientes), e
de que o singular formato institucional da comunicação pública dos
nossos dias é também ele resultado. Logo na sequência da gênese dos
media modernos, no seu desenvolvimento marcaram presença dos
dois grandes polos institucionais, à volta dos quais se estabeleceu todo
o processo das sociedades ocidentais: o Estado e o Mercado. O percurso
14 mídia, ética e esfera pública

dos media modernos é indissociável, desde há muito (e ainda hoje),


quer da economia capitalista, quer da democracia de massa (e do Esta-
do-Nação). A imprensa européia no século XVII nasceu a par do flo-
rescimento da economia mercantil e financeira, desenvolveu-se depois
(a partir de finais do século XIX) como imprensa comercial de massa e,
hoje, os megamedia moguls situam-se bem no coração do capitalismo
globalizado. Mas a par desta formatação dos media por uma raciona-
lidade econômica, também esteve (e continua) presente a influência
exercida pelo Estado; neste caso, talvez seguindo uma trajetória mais
sinuosa (ela própria com as suas ambivalências): práticas de controle
que podem assumir formas díspares (no passado e ainda hoje), que vão
de uma censura perfeitamente explícita às filosofias mais rebuscadas de
um serviço público de radiofusão.
Tudo isto pesa sobre os media também em termos éticos e morais.
Da ação destes dois polos institucionais resulta um certo ordenamento
normativo da comunicação pública. Mas dado que a sua ação não é
coordenada nem constante, o ordenamento produzido é variável e re-
pleto de ambivalências – como a situação presente muito sumariamen-
te ilustra, em resultado do novo equilíbrio de forças que se começou
a definir nas décadas finais do século passado. O reforço do dinheiro
como medium funcional de regulação (em detrimento do poder admi-
nistrativo) impõe, hoje, um aparelhamento econômico mais apertado
sobre os media e, também, um certo (des)ordenamento normativo do
setor: a desregulação enquanto oleitmotiv por excelência dos maiores
problemas éticos e morais da comunicação pública. Toda esta discus-
são se encontra profusamente documentada na presente obra, sob o
prisma de uma análise da “comunicação vertical” (tanto dos media tra-
dicionais/comunicação de massa, como dos chamados novos media);
a que talvez apenas falte alguma maior atenção ao serviço público de
radiodifusão – o seu papel mais específico e desafios –, mas por um
motivo bastante previsível, se assim podemos dizer: a presença discreta
que este mesmo setor dos media (e modelo de comunicação pública)
tem na tradição brasileira – no contexto de uma democracia hesitante (e
pontuada inclusive, como sabemos, ainda por momentos muito pouco
democráticos de grande truculência …).
PREFÁCIO 15

Mas há ainda mais a dizer sobre ambivalências dos media (e da co-


municação pública). A par do Mercado e do Estado, neles também se
inscreve a aspiração a uma comunicação pública livre e autônoma, que
se recorta sobre um horizonte utópico de emancipação – o que na pre-
sente obra é identificado por campo da “comunicação horizontal”.
A tensão criada por esta orientação põe em cena a vontade coletiva,
em oposição aos interesses particulares: a insurgência da intercompre-
ensão linguística face às exigências performativas (dos media funcio-
nais poder e dinheiro). Como já antes apontado, esta tensão é por as-
sim dizer o âmago dos problemas éticos-morais do nosso tempo: um
bem público que se torna objeto de apropriação privada e, mais ainda,
que ganha um caráter ideológico – quando a comunicação deixa de ser
ordenada cognitivamente, ao serviço do esclarecimento, e se torna um
instrumento de mistificação das consciências.
A ideologização da comunicação pública é o resultado de um labo-
rioso trabalho de construção de sentido que coube às teorias justifica-
tivas do Mercado e do Estado – quanto ao seu intervencionismo sobre
os media. Aqui revela-se um outro aspecto extremamente curioso dos
problemas ético-morais da comunicação pública: o facto de estes serem
problemas que assumem a forma de uma deceção, em face de ideias e
teorias cuja constituição, supostamente, se destinava a preveni-los. É
o caso da teoria liberal dos media (de Bentham, Mill ou Tocqueville),
firmada em nome de um público esclarecido e ao serviço da vontade
coletiva, que tinha como seu meio de realização a possibilidade de de-
núncia dos abusos do poder e a mais livre expressão de ideias e opini-
ões por parte dos cidadãos. A consagração institucional dos princípios
liberais nas nossas democracias (Estados de Direito) deve ser enten-
dida como o reconhecimento do superior valor utópico (ético-moral)
concedido a tais princípios, em termos de relação media-público: o
público é, ao mesmo tempo, uma entidade pressuposta, que os media
invocam e que os próprios devem reforçar –assim se afirmando, ao
mesmo tempo, como a base a partir da qual uma série de funções polí-
ticas (democráticas) fundamentais são atribuídas aos media nas nossas
sociedades. Mas o que faz a ideologia desta utopia? Esse é o lado dos
problemas éticos e morais –o assunto por excelência tratado com a
16 mídia, ética e esfera pública

maior competência por Ângela Marques e Luís Marino nesta obra, nas
páginas que se seguem.
Uma outra narrativa mais ou menos semelhante pode ser explanada
no que diz respeito à filosofia do serviço público de comunicação. Esta
alcançou as luzes da ribalta, também, em nome de valores e normas
sociais,que supostamente deveriam servir para devolver aos media uma
reputação social propriamente dita (entretanto perdida ou ameaçada):
contra a mercantilização do jornalismo e do entretenimento, pela
defesa da qualidade da programação, da cultura, de uma verdadeira
universalização destes bens e serviços, etc. Sabemos, porém, comoa
realidade do serviço público de radiodifusão acabaria, depois, por se
afastar mais e mais deste ideal – ao cair nas malhas da burocratização,
numa relação de certa promiscuidade com os poderes de serviço, em
hesitações quanto aos seus próprios critérios de qualidade, etc. Em suma,
a partir daqui se definindo um outro desenvolvimento paradoxal dos
media,de que resultaram novas ambivalências,que hoje recaem sobre a
comunicação pública.

Comunicação (e Linguagem)
Além destas movimentações de ordem mais institucional, perma-
nece na esfera dos media a exigência de uma comunicação livre e autô-
noma. Foi sob sua inspiração, aliás, que se tem construído não apenas
um conhecimento sobre a comunicação pública (a nível acadêmico e
de pesquisa), mas igualmente práticas comunicacionais alternativas –
o motivo inspirador comum é a intenção crítica (da comunicação pú-
blica como ideologia). As questões cognitivas relacionadas com o conteúdo
da comunicação dos media e as questões normativas que regulam essa
mesma comunicação são realidades entrelaçadas; o que significa que
será a mesma exigência radical de comunicação feita valer em termos
cognitivos que, ao mesmo tempo, mantém viva a aspiração de uma co-
municação bem ordenada em termos éticos e morais, enquanto meio
de esclarecimento do Público e base de sustentação da consciência co-
letiva – mesmo nos dias de hoje, perante a vaga tecnológica que per-
corre este domínio da existência humana.
PREFÁCIO 17

Retomando uma premissa primordial já enunciada: se a ética da co-


municação nos leva hoje inexoravelmente até aos media, isso nãodeve
fazer esquecer a prioridade da linguagem em termos de comunicação
pública. E o grande desafio que daqui resulta, a resposta à questão:
como poderá, então, ser estabelecidaessa relação media-linguagem?
A mais-valia dos media em termos de cultura depende desta relação;
ou dito de outro modo, só em função de uma relação com a lingua-
gem enquanto discurso (que implica, em termos pragmáticos, a ação
e a vida propriamente ditas), os media se poderão afirmar plenamente
como um bem para a humanidade, como elementos enriquecedores da
nossa experiência e capacidade de conhecimento.
Não perder de vista os quadros convencionais da comunicação – eis
a chave para levar a ética e a moral à esfera dos media. Estes não ao
lado da interação (e muito menos como alternativa), mas o mais pos-
sível com ela entretecidos: e a comunicação como o elo desta ligação,
aquilo que pode dar à vida – à nossa vida – uma espessura moral (seja
a nível de conversação quotidiana, seja do mundo dos media). Mas
como sabemos, este encaixe dos media com a linguagem não é fácil
(nem está garantido a priori); e o próprio domínio da interação não
está incólume ao novo ambiente tecnologizado de mediações. O facto
de a “quase-interação mediatizada” assumir uma assimetria estrutural
entre os seus participantes não pode ser ignorado, se queremos pen-
sar a comunicação realmente em termos ético-morais. A unidirecio-
nalidade dos media (mais reinventada do que contrariada pelas novas
tecnologias) significa relações de poder, marcas de dominação que se
inscrevem no espaço e nos corpos, a que os indivíduos não podem es-
capar – seja por via das suas trajetórias sociais, seja do estatuto moral
a cada um consignado.
Os media (e tudo o mais que gira à sua volta) ganharam tal impor-
tância, que hoje a sua observação por um prisma de direitos humanos é
não só justificável mas quase obrigatória: eles não são meros recursos,
mas em si mesmos já um bem essencial da própria existência e dig-
nidade humanas. Este estatuto resulta diretamente das funções exer-
cidas pelos media: a mediação da realidade é já um trabalho imenso,
mas o que hoje salta mais à vista é o extraordinário poder dos media
18 mídia, ética e esfera pública

de construção da própria realidade. As implicações sociais inerentes a


este reajustamento justificam, em última análise, a ribalta dos media na
ética da comunicação: esse é oefeito do extraordinário poder social que
representa a sua capacidade (e daqueles que a eles têm acesso privile-
giado) de impor determinadas visões do mundo (a “realidade”) a toda
a sociedade, em nome de determinados valores e interesses próprios.

Crítica (e Malaise)
O anterior apontamento crítico desenvolvido sobre os media, em-
bora essencial, recobre apenas uma parte da narrativa que diz respeito
às questões éticas e morais da comunicação. O poder social dos media
é hoje extraordinário, mas não ilimitado, nem incondicional. Trata-se
de um poder que, pelo menos nas sociedades democráticas, está sujeito
ao escrutínio público. Em termos ético-morais, relativamente a estes
dispositivos, mais do que uma accountability social, importa ter em
atenção a capacidade de resposta que o lado da receção sempre pode
fazer valer, com implicações na própria produção de sentido. O univer-
so dos media, como é sabido, não tem parado de se expandir enorme-
mente, sobretudo pelo lado dos seus destinatários, o que traz um maior
grau de imprevisibilidade aos processos comunicacionais. Os “ma-
pas de sentido” (sempre ideologicamente marcados) recobrem, deste
modo, territórios cada vez mais extensos, mas há a considerar que se
trata aqui de sentidos dominantes, e não de sentidos determinados: a
possibilidade de ordenar, classificar, descodificar – um acontecimento,
um tema, um comportamento, etc. – em sentido diferente do previsto
está sempre em aberto, recorrendo a outros mapeamentos do mundo.
Mesmo sabendo que a possibilidade de variações no espaço dos media
(sobretudo nos media mainstream) se foi estreitando, a criação deno-
vos mapas da realidade social pôde ser preservada. Esta condição dos
media, mais precisamente, é responsável pelo caráter reparador que o
discurso ético e moral da comunicação pública normalmente assume
(e de que a presente obra é exemplar): um ponto de vista sobre os media
na base de valores e normas sociais que tem por objetivo, mais do que
o fazer o diagnóstico de uma situação, contribuir realmente para uma
PREFÁCIO 19

mudança da própria realidade existente – dos media e da comunicação


pública.
A figura do deus Janus é a alegoria perfeitada situação dos media em
termos éticos e morais. A malaise é, nos dias de hoje, a sua face mais
exposta – as perturbações, os perigos e as ameaças que recaem sobre
a comunicação pública; mas colada a esta face está uma outra que tem
os olhos dirigidos para o futuro, fita a promessa (e a possibilidade) de
uma alteração da situação presente: o resgate comunicacional dos media,
servindo a intercompreensão e um enriquecimento da experiência co-
letiva. A dupla face da divindade das decisões e das escolhas, que olha
ao mesmo tempo para um passado e para o futuro, entidade soberana
de um conhecimento feito de mudanças e transições, términos e come-
ços. Esta dualidade encerra em si mesma um caráter crítico: por muito
fortes que sejam as cores utilizadas para dar forma aos problemas, a
reversão destes está sempre em aberto. O entendimento comum conti-
nua a reconhecer como indiscutível (válida) a possibilidade de uma re-
organização mais favorável do universo da comunicação humana (com
os media incluídos): numabase de maior liberdade e justiça – mais de-
mocrática, portanto. Se considerarmos a presente estrutura dos media,
só pelo lado da receção esta possibilidade se mostra sustentável: em re-
sultado de uma certa margem de liberdade preservadaa este nível pelos
dispositivos de mediação, e não obstante a performatividade funcional
cada vez mais implacável que sobre eles se abate.
Para alguns, esta formulação poderá parecersimplesmente a voz de
um wishful thinking. Mas por outro lado, talvez caiba também questio-
nar o cinismo de certas visões apriorísticas dos media: como se nada
mais já fosse possível imaginar (e reconhecer mesmo) para além de
uma certa dimensão da realidade perfeitamente constituída e, sobre-
tudo, de certas formas hegemônicas consagradas (dos media mains-
tream). Dito de forma mais incisiva, as visões conformistas não são
inocentes (em termos éticos e morais): assumem o partido dos emisso-
res (institucionais), desconsideram o papel dos recetores e não levam
muito a sério a quase-interação dos media – na parte, pelo menos, em
que esta se abre de uma forma mais imprevisível à interação social da
vida quotidiana.
20 mídia, ética e esfera pública

Um juízo sobre os media em termos de valores e normas sociais não


pode passar ao lado dos processos de sentido, que resultam de uma
relação complexa que envolve emissores e recetores. A representação
construída dos media foi em diversos momentos dominada pela ideia
de uma recepção passiva, mas os estudos comunicacionais encarrega-
ram-se entretanto de corrigir tal situação: não que na comunicação dos
media a recepção passiva não seja uma possibilidade da produção de
sentido, mas essa é apenas uma das hipóteses possíveis. Os receptores
têm também ao seu alcance, em última a instância, o poder de rejeição
dos sentidos intentados (nas mensagens); e, também, a possibilidade
de procederem a negociações do sentido: criação de articulações va-
riáveis de interpretações induzidas (como codificação) e de interpre-
tações retificadas (do lado da descodificação) – sendo estas, talvez, as
situações comunicacionais mesmo mais comuns a nível de media.
A ética e a moral que vale a pena considerar são aquelas que preveem
este leque mais amplo de possibilidades de construção do sentido. E que
consideram, portanto, os vários equilíbrios possíveis de funcionamento
dos media em termos de intercompreensão linguística: a linguagem dos
media entre o entendimento humano e o exercício de poder – a criação de
sentido (novos sentidos) contra a imposição de sentidos (dominantes). A
ética e a moral dos media questionam um sentido cuja construção aconte-
ce sempre no contexto de políticas de significação, ou seja, que é resulta-
do de lutas discursivas; mas por muito desiguais que estas sejam (e assim
acontece habitualmente), elas nunca são de resultado definido à partida.
Por outro lado, estas lutas ocorrem no interior dos media, mas não desli-
gadas da comunicação convencional e da interação comum. Os equilíbrios
variáveis entre estes diferentes planos de comunicação definem um en-
quadramento importante para o entendimento das questões ético-morais.
Ver os media como um mundo de comunicação em si (e só por si) é uma
ficção. O que, mais uma vez, nos aproxima do ponto de vista dos autores
da presente obra: à ética e moral (da comunicação pública) interessa tan-
to a compreensão das condições que tornam os media um fermento dos
processos simbólicos em geral, bem assim como, pela negativa, daquelas
condições que se constituem como potencialmente inibidoras da lingua-
gem (e que limitam tanto as capacidades expressivas dos media, como o
seu potencial cognitivo).
PREFÁCIO 21

O Público (Sempre) – e o Privado


Não é dizer pouco atribuir à obra aqui apresentada o desenvolvimento
de uma discussão perfeitamente focada nos media, mas que ao mesmo
tempo nos leva de volta à comunicação quotidiana e às formas comuns
da interação social – considerando que só este rebatimento pode dar ao
debate ético-moral sobre a comunicação pública o seu pleno sentido.
A delimitação das esferas do Público e Privado é uma das operações
mais importantes que se processa no âmbito desta confluência de pro-
cessos de comunicação – e um desafio a que as tecnologias nos dias de
hoje trazem novos desenvolvimentos (e desafios). A interação comum,
muito provavelmente, terá sido ainda o ponto de partida de uma estru-
tura da experiência deste tipo (tendo por base estas categorias), mas a
que logo a seguir os dispositivos técnicos de mediação (com a imprensa
em primeiro lugar) vieram trazer uma mais sólida base de sustentação;
um processo não mais interrompido até ao presente, seguindo o desen-
volvimento imparável registado pelas tecnologias de informação e co-
municação. Hoje, as tradicionais fronteiras de público e privado estão
em redefinição (e como que se diluem), à medida que os processos de
publicização expandem não apenas os limites (físicos) do que é publici-
zado, mas também aquilo que é objeto de publicização; isto enquanto a
publicidade vem assumindo um cunho cada mais “privado” (subjetiva e
individualista) – como uma experiência doméstica, solitária e fragmen-
tada. A par destas categorias convencionais alteradas, assistimos entre-
tanto à afirmação de uma nova categoria: aquilo que se poderá designar
por “mundo media”, uma nova dimensão da realidade (e da experiência)
que se define já não como público ou privado, mas que é o resultado da
reciclagem, por assim dizer, de materiais/recursos anteriormente per-
tencentes a uma ou outra dessas anteriores esferas da experiência.
É também na articulação complexa de todas estas categorias que a
ética e a moral da comunicação pública hoje se jogam. E, sobretudo,
como o desafio de preservar essas mesmas categorias, de defender o
significado próprio de cada uma delas, de modo a que um universo
da experiência aberto e pluralista possa continuar a ser possível. Ou
de forma mais clara (e voltando a falar de perigos): a ética e moral em
oposição a uma experiência submergida em acontecimentos mediáticos,
que deixa cada vez menos espaço para o público e o privado.
22 mídia, ética e esfera pública

Há muitas concatenações possíveis destas diferentes dimensões da


experiência, sendo que cada uma delas define um recorte normativo de
mundo próprio. Para dar a isto mesmo uma maior evidência, podemos
contrastar dois casos extremos (ideais-tipo): de um lado, uma comu-
nicação dos media perfeitamente autossuficiente, do outro, a comuni-
cação dos media bem entretecida com as demais formas de linguagem.
Cada um destes casos é, de facto, uma abstração prática, no entanto
eles servem como referenciais para dar uma maior legibilidade à reali-
dade concreta dos media; nomeadamente, no que diz respeito à forma
como nos relacionamos com estes dispositivos de mediação simbólica
e sobre como eles se instalam nas nossas vidas. O primeiro caso corres-
ponde a uma receção híper individualizada, dado que resulta de uma
desconexão dos media das demais formas simbólicas presentes nas
nossas vidas –o “mundo media” em versão reificada. No segundo caso,
os conteúdos dos media acabam sempre por desaguar numa reapro-
priação a nível de interação quotidiana, sendo por esse motivo objeto
de reelaboração no discurso público. A diferente intensidade axiológica
de cada uma destas situações é facilmente apreensível, assim como se
torna também fácil imaginar uma série de outros possíveis recortes
intermédios, por assim dizer, resultantes de combinatórias variáveis
entre as duas situações-limite referidas. Num extremo teríamos o que
se pode considerar um colapso em termos ético-morais do discurso
público: vidas ocas, sujeitos genéricos, existências desenraizadas, uma
ação heterônoma. No outro estaria uma perfeita fluidez da comunica-
ção pública, observando-se o respeito pelo lugar próprio das diferentes
esferas da experiência e um relacionamento destas dinâmico e flexível,
em condições perfeitas de realização ética do indivíduo e ordenamento
moral da sociedade.
Hoje, o uso e abuso de expressões como “ciber”, “virtual”, “e.”, etc.
(servindo de prefixações para realidade, política, cultura, comunidades)
são a renovação deuma versão hiperbolizada dos media. Estes, porém,
não estão para além da vida ou do “real” – como uma qualquer espécie
de realidade paralela ou alternativa. Mas também não se confundem
com a vida, no sentido de se limitarem a ser desta uma pura mimesis. É
esta relação tensional (dos media) com a vida que torna a ética e moral
da comunicação realmente interessantes no quadro de uma ecologia
PREFÁCIO 23

da existência: a sua perspetiva permite,a qualquer momento,uma


observação das diferentes esferas da experiência (e sua evolução),
sobre as suas combinatórias variáveis, articulações flexíveis, constantes
redefinições das suas fronteiras. Assumindo Público e Privado como
dimensões constitutivas da experiência humana (de uma experiência
moderna do mundo pelo menos), mas sem impor delas qualquer
definição substancialista. Não são os temas, os agentes ou as práticas
sociais que determinam a priori as fronteiras de cada uma destas
esferas, mas sim as suas próprias condições de comunicação: num caso
assegurando a intimidade, no outro a publicidade. Sem que entre as
duas, porém, se crie propriamente um abismo: caracteriza estas esferas
uma certa porosidade, que define a própria dinâmica da comunicação
pública (possibilidade de permanente renovação) e o seu ordenamento
em termos éticos e morais – em referência a valores (de enraizamento
mais subjetivo) e a normas (de ordem social).
Os media são uma parte deste grande moinho de comunicações.
Por eles passa a elaboração de problemas sociais, cujas primeiras
manifestações são muitas vezes de ordem privada. E cabe-lhes,
sobretudo, garantir uma ressonância realmente significativa a esses
problemas, aproveitando a facilidade dos media expandirem e
ramificaremos fluxos de comunicação a uma escala sem igual.
Imagens simplistas dos media criam impacto e podem motivar
narrativas bastante coloridas, mas são em geral uma fraca ajuda para
entender a comunicação pública em termos éticos e morais. O mundo
dos media é (ainda) o nosso mundo, absoluta e radicalmente humano:
não um mundo de anjos e demônios, nada que se pareça com um paraíso
ou o pior dos infernos na Terra. Para uns, será um mundo que está além
destas abstrações, para outros estará aquém, mas isso é já matéria de
domínio dos juízos de fé – de uma ética e moral da comunicação que
não aquelas (pós-convencionais) que Ângela Marques e Luís Martino
aqui nos desafiam a pensar nas páginas que se seguem.

LISBOA
14 de junho de 2016
Introdução

Grande parte da reflexão teórica sobre a ética no campo da Comu-


nicação concentra-se em estudos a respeito de princípios deontológicos
que regem as práticas dos profissionais de comunicação. São constantes
objetos de investigação o funcionamento estratégico dos dispositivos
midiáticos e a performance desempenhada por seus profissionais diante
do constrangimento imposto pelos poderes associados ao Mercado e ao
Estado.
Ao abordarmos a ética e a moral no contexto da comunicação, não
podemos negligenciar o fato de que os atuais meios de comunicação
constituem-se em torno de estruturas amplamente centralizadas, ba-
seadas em formas hierárquicas e assimétricas de comunicação. A des-
continuidade entre os mecanismos de produção e as práticas de inter-
pretação enraizadas nas práticas concretas dos indivíduos faz com que
a reflexão ético-moral sobre a ação dos meios se aglomere unicamente
no pólo da produção (Stevenson, 1997).
Se de um lado os media agem estrategicamente para manter uma
performance industrial competitiva, alimentando formas de vida apri-
INTRODUÇÃO 25

sionadas pelas lógicas do consumo e do mercado, de outro lado eles


permitem que discursos e perspectivas antes enclausurados se tor-
nem amplamente disponíveis no tempo e no espaço. Nesse sentido,
desempenham um papel dúbio e ambivalente na constituição de esfe-
ras públicas contemporâneas: ao mesmo tempo em que selecionam e
hierarquizam vozes e discursos, democratizam (tornam visíveis e dis-
poníveis) visões e perspectivas sociais e políticas.
Embora tenhamos que levar em conta as várias assimetrias e desi-
gualdades presentes nos modos operatórios dos meios de comunicação
e de seus profissionais, é preciso considerar também que uma ética da
comunicação envolve as regras, normas e valores que regulam as práti-
cas de interação da vida cotidiana.
Assim, e sem desconsiderarmos a importância dos códigos que di-
rigem a ação e os interesses desses profissionais, é possível afirmar que
a ética da comunicação diz respeito, em grande medida, aos modos
como as relações intersubjetivas são construídas – criando tensões en-
tre as determinações que regem as trocas comunicativas e a constante
reformulação de seus contextos e modos expressivos. A nosso ver, a
ética da comunicação não se restringe às práticas que implementam e
renovam os imperativos de performatividade e eficácia dos media, mas
deve levar em conta “a intercompreensão linguística: a comunicação
organizada a partir da linguagem, pela qual os indivíduos se consti-
tuem socialmente enquanto sujeitos e a vida comum se torna possível”
(Esteves, 2003, p.146).
Compreender a ética dos processos comunicacionais relaciona-se
também “a uma coletividade, a práticas comuns que os sujeitos efetu-
am, uns em relação aos outros e em relação ao mundo, sujeitos esses
pertencentes a uma mesma comunidade de linguagem e de ação, e dis-
pondo de mediações simbólicas compartilhadas (conceitos, jogos de
linguagem, formas instituídas)” (Quéré, 1991, p.70).
O debate ético-moral acerca dos processos comunicativos perpassa
toda a diversidade dos processos de interação mediáticos e cotidianos,
procurando destacar as diferentes formas de sua articulação. Uma ética
associada aos processos comunicativos atuais não deve ser relacionada
somente aos modos operatórios dos meios de comunicação de massa,
26 mídia, ética e esfera pública

nem ao processo de midiatização que, segundo Sodré (2006), implica


uma influência exagerada da mídia na configuração de modos de vida e
na modelagem de percepções, afetos, costumes e efeitos políticos. Para
além da midiatização1 e da consciência de que os modos operatórios da
tecnologia nos impõem um novo modo de organização social, de cog-
nição e de construção de vínculos, temos que ter em mente o fato de
que a ética ligada às interações comunicacionais que se desenvolvem
em um determinado contexto social considera as tensões e interseções
entre os conceitos de discurso (linguagem como mediação das relações
interindividuais), alteridade (aproximações e distanciamentos entre os
sujeitos no processo de construção de identidade e de busca por reco-
nhecimento) e esfera pública (situação de interação, justificação recí-
proca e cena de elaboração e troca de pontos de vista).
Acreditamos que uma articulação entre a presença dos meios de co-
municação nas experiências particulares e coletivas e o desenvolvimen-
to moral das sociedades e dos sujeitos deve levar em conta a construção
de um comum e de esferas públicas articuladas em rede (organizadas
em torno da busca pelo entendimento mútuo e da reflexão em torno
das regras morais que nos vinculam coletivamente) nas quais as opini-
ões e identidades podem ser construídas, reveladas e negociadas. Sob
esse aspecto, a ética diz respeito também aos modos como princípios
e valores se configuram nos textos e contextos midiáticos e à maneira
como os media atuam e influem nas relações intersubjetivas, configu-
rando situações interativas e fornecendo insumos simbólicos não só

1. Segundo José Luiz Braga (2012, p.50), a midiatização pode ser compreendida
como “uma criação e recriação contínua de circuitos, nos quais, articulados com
processos de oralidade e processos do mundo da escrita, os processos que exigem
ou exercem intermediação tecnológica se tornam particularmente caracterizadores
da interação. (...) Isso corresponde a dizer que, na sociedade em midiatização, não
são os meios, as tecnologias ou as indústrias culturais que produzem os processos,
mas sim todos os participantes sociais, grupos, sujeitos e instituições que acionam
tais processos e conforme os acionam. (...) Assim, a midiatização se apresenta hoje
como principal mediação de todos os processos sociais”, não correspondendo ape-
nas ao aprimoramento do aparato tecnológico, mas a matrizes sociais, interacionais
e culturais que vão sendo tentativamente elaboradas para assegurar interações e
circuitos comunicativos.
INTRODUÇÃO 27

para a construção das identidades subjetivas e coletivas, mas também


para a representação imagética dos “outros”. E aqui é preciso pensar
em uma imagem que não roube a existência e a palavra do outro, que
não o classifique segundo moldes de apreensão e enquadramento que
domestificam (e mesmo apagam) sua diferença, mas uma imagem que
efetivamente acolha e hospede o outro em sua singularidade, apresen-
tando, ao mesmo tempo, um lugar reflexivo ao espectador.
Além disso, é preciso pensar nos modos por meio dos quais, nas
sociedades complexas atuais, torna-se possível conectar demandas de
natureza subjetiva, ligadas a diferentes concepções de bem-viver, a de-
mandas morais que dizem respeito a como nos relacionamos com os
outros na busca de reconhecimento social. Se a ética da comunicação
está fundada na ampliação dos horizontes éticos individuais tendo em
vista a consideração de questões que dizem respeito ao que é bom para
todos, faz-se necessário buscar maneiras de conciliar interesses e ne-
cessidades particulares, que emergem em esferas públicas parciais de
interação de grupos e indivíduos, com preocupações inerentes a todos
aqueles que integram as sociedades atuais altamente complexas, plura-
listas e diferenciadas.
Nesse sentido, uma ética associada aos processos comunicativos
atuais não pode deixar de considerar, em um primeiro momento, a)
os modos operatórios da produção de informações nos media; b) os
modos de difusão e apropriação crítica das mensagens midiáticas; c) os
processos intersubjetivos que tentam descortinar a perspectiva de cada
ator envolvido em uma ação comunicativa, articulando-a ou não com
a perspectiva de todos; d) as situações comunicativas e os contextos re-
lacionais que são criados quando sujeitos acionam elementos comuns
de linguagem para buscarem o entendimento recíproco; e e) o interesse
próprio, que pauta não só ações estratégicas, vistas como contrárias ao
bem coletivo, mas sobretudo direciona o engajamento discursivo dos
atores com seus pares e que, por isso mesmo, precisa ser considerado
como elemento central de uma interação comunicativa.
Além dessas dimensões, é preciso mencionar que uma ética da co-
municação que se proponha a avaliar o papel desempenhado pelos
interesses e pela linguagem na relação prática entre os sujeitos deve
28 mídia, ética e esfera pública

abordar os quadros de sentido e as formas de linguagem que definem


tanto a interlocução quanto seu contexto - e ao modo como os sujei-
tos procuram associar sua liberdade de ação e seus próprios interes-
ses ao respeito pelas identidades e interesses alheios (Marques, 2009;
Marques; Martino, 2011; Martino; Marques, 2012). É importante ainda
considerar as condições nas quais, por meio da interação discursiva
na esfera pública, os indivíduos poderiam chegar a um entendimento
acerca de seus interesses e necessidades. O desenvolvimento ético e
moral das sociedades contemporâneas deve levar em conta o modo
como os sujeitos debatem dialogam e negociam suas diferenças, inte-
resses, pontos de vista e necessidades, consitituindo esferas públicas
cada vez mais entrelaçadas.
As questões éticas e morais estão associadas, entre outras dimensões,
ao modo como os indivíduos utilizam o discurso para empreeder,
em esferas públicas de discussão, uma busca intersubjetiva pelo
entendimento e por normas que contemplem os interesses e o bem
coletivo. Nessa busca, os indivíduos são instados a se colocar no lugar
dos outros e, ao fazer isso, a demonstrarem reconhecimento pelo valor
moral de seus interlocutores, entendendo-os como sujeitos capazes de
produzir e sustentar os próprios pontos de vista, como portadores de
direitos e como detentores de habilidades singulares passíveis de trazer
contribuições ao todo social. Somado a esse processo, a presença dos
meios de comunicação nas experiências particulares e coletivas pode
contribuir para o desenvolvimento moral das sociedades e dos sujeitos
a partir da construção discursiva de representações que circulam tanto
nos âmbitos rotineiros e informais da vida cotidiana quanto em uma
esfera pública articulada em rede, na qual as opiniões e identidades
podem ser reveladas, testadas e escrutinizadas.
Diante desse quadro, é possível dizer que a ideia de Mídia, Ética e
Esfera Pública nasceu justamente a partir do diálogo entre os autores
que, na prática pedagógica em vários níveis, da graduação ao
doutorado, viam-se diante da ausência de um texto a respeito de uma
ética da comunicação em suas relações com a política, a democracia e
os processos de constituição de sujeitos a partir de suas experiências e
práticas comunicativas. Os capítulos aqui reunidos buscam revelar os
INTRODUÇÃO 29

fundamentos da ética no espaço da comunicação, e não a aplicação de


teorias e normas às práticas da mídia. Nesse sentido, o livro se concentra
no estudo da comunicação, em seus diversos aspectos, na perspectiva de
uma ética própria da área – o que não impede o diálogo com a Filosofia
e a Sociologia, mas voltadas para pensar a comunicação. Alguns dos
capítulos que integram essa obra foram originalmente publicados em
periódicos da área e encontram-se aqui revistos e ampliados.
O livro é dirigido a estudantes, professores e pesquisadores da Co-
municação em suas várias instâncias, podendo ser usado desde a gra-
duação, nas disciplinas de Ética e/ou Legislação, até como fonte de pes-
quisa para trabalhos acadêmicos de pós-graduação na medida em que
não está pautado na defesa deste ou daquele ponto de vista, mas pensa
a ética como um tema interdisciplinar, pautado não pela autoridade,
mas pelo diálogo.
PARTE I

Ética, Moral e Comunicação


capítulo 1

As relações entre ética,


moral e comunicação
na experiência intersubjetiva

De modo a delinearmos melhor as relações que se estabele-


cem entre ética e comunicação, é importante, em um primeiro momen-
to, explicitar algumas particularidades dos conceitos de ética e moral.
Percebemos que é bastante comum o uso do conceito de “moral”
como sinônimo de “ética”. Não raro, a ética é definida como o conjun-
to das práticas morais de uma sociedade, ou dos princípios que nor-
teiam essas práticas (Herrero, 2002). A relação entre ética e filosofia
da moral pode levar a um entendimento equivocado de que as duas
noções tenham o mesmo significado. Trataremos brevemente a seguir
de algumas das distinções mais significativas para as reflexões a serem
desenvolvidas nesta obra.
A palavra moral vem do latim mos/mores, que significa costumes
(adequação do indivíduo ao seu grupo social). Por isso muitos utilizam
a expressão “bons costumes” para se referir à moral.
32 mídia, ética e esfera pública

Em um sentido amplo, a moral é o conjunto de regras de conduta


admitidas em determinada época ou por um grupo de pessoas (Vásquez,
2001). Sabemos que é por meio das normas sociais que os valores de uma
sociedade são expressos e adquirem um caráter normativo e raramente
questionável. Nesse sentido, agir moralmente significa obedecer às
exigências e prescrições que reconhecemos como válidas para orientar
nossas escolhas quando enfrantamos problemas que possuem uma
dimensão que ultrapassa a subjetividade. Tomamos decisões, agimos e
avaliamos essas decisões e atos de acordo com o que é definido como
justo e bom para todos.

A moral é um sistema de normas, princípios e valores, segundo o


qual são regulamentadas as relações mútuas entre os indivíduos ou
entre estes e a comunidade, de tal maneira que estas normas, do-
tadas de um caráter histórico e social, sejam acatadas livre e cons-
cientemente, por uma convicção íntima, e não de uma maneira
mecânica, externa ou impessoal (Vázquez, 2001, p.84).

A função social da moral é fazer com que, sem usar a coerção, os in-
divíduos aceitem livre e conscientemente a ordem social estabelecida.
As razões morais que alimentam nossas crenças acerca do que é bom
nos impelem a rejeitar as injustiças (âmbito coletivo), sejam elas liga-
das à nossa cultura ou não (Vázquez, 2001). É importante ter em mente
que as regras de conduta que fundamentam a moral sempre correm o
risco de se transformarem em instrumentos de poder para oprimir e
controlar a vida das pessoas. Ao mesmo tempo, as normas inflexíveis
não se adaptam às mudanças culturais e históricas e entram em contra-
dição com as novas formas de vida.
A análise dos fatos morais nos coloca diante de dois pólos
contraditórios: de um lado, o caráter social e coletivo da moral (ligada à
avaliação do efeito que uma conduta possui na coletividade), de outro,
a intimidade do sujeito. Quando criamos e seguimos valores, não o
fazemos para nós mesmos, mas enquanto seres sociais que se relacionam
com os outros. Por isso, agimos moralmente. Nas sociedades plurais há
múltiplas expressões de moralidade e é preciso evitar o moralismo, que
consiste na tentação de impor nosso ponto de vista aos outros.
relações entre ética,
moral e comunicação
na experiência intersubjetiva 33

Mas, ao mesmo tempo, agimos eticamente, ou seja, nos pautamos


pelos valores que consideramos ser corretos para a conduta de nossa
existência, tendo em consideração o que denominamos como “bem
viver”. Agimos moral e éticamente ao mesmo tempo. Contudo, a natu-
reza dos dilemas colocados por essas duas formas de ação é diferente:
enquando a ação moral nos lança desafios ligados à justiça e ao bem, a
ação ética nos impele ao bom, ao bem-viver.
Em nossas atividades e relações cotidianas estamos sempre fazendo
juízos de valor, ou seja, estamos sempre julgando ou avaliando nossos
atos.
Formulamos juízos de aprovação ou reprovação e nos sujeitamos
conscientemente a certas normas ou regras de ação. Quando nos per-
guntamos “Que devo fazer”, isso mostra que não nascemos pré-progra-
mados, mas devemos construir nosso ser e nossas relações grupais. O
fato de sermos livres, ainda que não de forma absoluta, nos coloca o
problema da responsabilidade: a forma como organizamos nossa vida e
como solucionamos problemas que surgem na relação com outras pes-
soas é de nossa responsabilidade (Sung e Silva, 2004, p.16). Uma socie-
dade é tanto mais rica moralmente quanto mais possibilidades oferece
a seus membros de assumirem a responsabilidade coletiva ou pessoal
de seus atos; isto é, “quanto mais ampla for a margem proporcionada
para aceitar consciente e livremente as normas que regulam as suas
relações com os demais” (Vázquez, 2001, p. 58).
Por sua vez, investigar o modo pelo qual a responsabilidade moral
se relaciona com a liberdade e com o determinismo ao qual nossos atos
estão sujeitos é um problema teórico, cujo estudo é de competência da
ética. Ética vem do grego (ethos), que se relaciona a modo de ser, caráter.
Sob essa acepção, a ética se refere à visão particular de um grupo ou
indivíduo (caráter). Em certo sentido, ética refere-se a um caráter ad-
mirável e a atos e julgamentos considerados moralmente corretos. Isso
se aplica quando dizemos que um amigo agiu eticamente ou quando
afirmamos que um determinado político é antiético e age de maneira
imoral.
Mas, de forma mais específica, o conceito de ética se refere à teoria
sobre a prática moral. A ética, nesse sentido, é percebida como campo de
34 mídia, ética e esfera pública

investigação: ela trata dos dilemas que enfrentamos para justificarmos


ou não nossas ações quando as crenças e valores morais não mais
dão conta de oferecer uma resposta isenta de conflitos e dilemas.
O estudo da justificação dos juízos morais busca examinar se é possível
apresentar razões ou argumentos (e de que tipo) para demonstrar a
validade de um juízo moral e, particularmente, das normas morais
(Vázquez, 2001, p.19). A ética se relaciona à investigação dos tipos de
razões ou de argumentos que são utilizados para demonstrar a validade
de um juízo moral e, particularmente, das normas morais (âmbito dos
direitos). A ética nos aponta o que é um comportamento considerado
bom: podemos resolver impasses de maneira individual baseando-
nos em nossas convicções internas. Mas é inútil recorrer à ética para
encontrar nela uma normas de ação para cada situação concreta.
É sob esse ângulo que a ética se desenha como campo de investigação
das crenças, valores e condutas dos indivíduos e culturas, buscando
explicar como aparecem, como se perpetuam (ou são questionadas) e
como articulam modos de legitimar e deslegitimar ações e práticas de
alcance coletivo. A ética nos fornece então um conjunto de razões des-
tinadas a julgar princípios coletivos de conduta, tais como respeitar as
pessoas (incluindo nós mesmos) e preocupar-se com as necessidades
dos outros.
Quando se diferencia a ética da moral, geralmente (sobretudo no
âmbito filosófico) visa-se distinguir o conjunto das práticas morais
cristalizadas pelo costume e a convenção social dos princípios teóricos
que as fundamentam ou criticam.
Dito de outro modo, Quando todos aceitam os costumes e valo-
res morais estabelecidos para a ação coletiva não precisa se discutir
sobre eles. Mas quando há discordâncias sobre sua validade, surge a
necessidade de fundamentá-los de forma prática. Aqui aparece o con-
ceito de ética, que se configura como prática reflexiva e produção de
justificativas racionais acerca de ações que tomam forma a partir dos
códigos coletivos de conduta. “Se a norma se revela incapaz de redimir
conflitos ou quando a sua própria aplicação é geradora de conflitos é
necessário apelar para a sensibilidade em relação às situações particu-
lares, as quais apenas a ética domina.” (Esteves, 1998, p.266).
relações entre ética,
moral e comunicação
na experiência intersubjetiva 35

Enquanto a ética distingue o Bom e o Mau, a moral distingue o Bem


e o Mal. Se a ética persegue o bem-estar (bem-viver), a moral persegue
a justiça e a integração. Se a ética vem do eu, do interior de cada um, a
moral vem dos outros. Se a ética é individual, a moral é compartilhada.
Se a ética supõe julgamentos e valores, a moral supõe máximas e prin-
cípios (Costa, 2009, p. 20).
Os problemas enfrentados pela moral prática constituem-se em ma-
téria de reflexão, fazendo da ética uma teoria do modo efetivo de com-
portamento do homem. Assim, a ética se refere ao processo de reflexão
instaurado em torno de questões para as quais não temos respostas
prontas. Por isso, o intuito é elaborar as perguntas certas1, zelando pela
qualidade do processo de busca e construção argumentativa das justi-
ficativas que explicam nossos atos diante dos outros (Plaisance, 2011).
O conceito de ética se refere, em suma, à teoria sobre a prática moral.
Ética seria um campo de investigação e reflexão teórico-filosófica que
“analisa, critica ou legitima os fundamentos e princípios que regem um
determinado sistema moral em sua dimensão prática” (Sung e Silva,
2004, p.13). Ela está voltada ao estudo da natureza, função e justificação
dos juízos morais. A ética, enquanto ciência (que tem como objeto uma
forma específica do comportamento humano), trabalha com conceitos
como: responsabilidade, liberdade, autonomia, solidariedade, valor,
consciência, sociabilidade, justiça, igualdade. Tais conceitos serão
explorados com mais vagar nos capítulos que se seguem e são o cerne
de uma reflexão crítica e aprofundada acerca das interfaces entre ética
e comunicação.

A ética e as ciências da comunicação


A ética se relaciona com outras ciências que, sob ângulos diversos,
estudam as relações e o comportamento dos homens em sociedade e
proporcionam dados e conclusões que contribuem para esclarecer seus

1. Segundo Plaisance (2011, p.27), “esperar que a ética forneça as respostas certas
normalmente leva apenas à moralização, à elaboração de afirmações amplas, muitas
vezes infundadas quanto à correção de um curso de ação que as outras pessoas po-
derão ou não aceitar como reflexos de suas próprias convicções morais”.
36 mídia, ética e esfera pública

comportamentos e práticas. Especificamente, podemos dizer que as


questões morais possuem um caráter comunicacional ligado à linguagem
e ao discurso, os quais colocam em primeiro plano o delineamento ético-
moral da prática dialógica.
Ética e comunicação se entrelaçam quando o que está em jogo são
decisões relativas à vida em comunidade, ao modo de compatibilização
e satisfação de desejos individuais, que devem encontrar pontos de in-
terseção a fim de alcançar o bem coletivo. “Estão fora do domínio ético
questões relativas apenas à satisfação e ao bem-estar de cada um e que,
nessa medida, possuem uma relação apenas facultativa com a comuni-
cação e a discussão pública” (Esteves, 1998, p.259).
O fato de a ética da comunicação estar voltada para o encontro de
alternativas de entendimento e solução para problemas de ordem cole-
tiva (ligados à justiça) não implica que ela deixa de ter uma dimensão
individual. Ao mesmo tempo que estabelece diretrizes e regras para a
vida em comunidade, á ética define também critérios e valores para
a afirmação pessoal do indivíduo e de sua transformação em sujeito
político autônomo.
Assim, ela tem uma dimensão subjetiva e, ao mesmo tempo, per-
tence ao domínio da inter-relação: das relações sociais no interior das
instituições, da interação com o outro e da relação consigo mesmo no
processo relacional de subjetivação e construção da autonomia.
O enfoque por nós conferido à ética da comunicação está voltado
para a prática argumentativa, para a conversação cívica e para um
processo público de comunicação que requerem dos indivíduos
que se reconheçam como parceiros de interlocução, dotados de
responsabilidade e reciprocidade. É necessário ainda o envolvimento
de todos para o entendimento e busca de soluções para problemas de
interesse coletivo. As questões envolvidas em um reflexão centrada
na ética da comunicação revelam sobretudo aspectos da busca por
reconhecimento social e justiça. Afinal, colocar-se no lugar do outro não
é só uma exigência moral, mas ajuda na construção e reconhecimento
das identidades e diferenças.
Diante disso, é interessante notar como o conteúdo dos discursos
midiáticos passa a fundamentar os discursos práticos nos quais
relações entre ética,
moral e comunicação
na experiência intersubjetiva 37

aprendemos a perceber e interpretar o “mundo do outro”, a adotar o


ponto de vista dos outros e a buscar um maior comprometimento com a
resolução coletiva de problemas. Sabemos que a mídia amplia o espaço
público: além de reproduzirem e disseminarem valores morais, os
media transforma-se em espaços de entrecruzamento de perspectivas
(criação de um amplo espaço de argumentação). Os discursos que
perpassam os ambientes mediáticos e sociais configuram-se, então,
como uma forma relevante de mostrar que a renovação do vínculo
social e normativo que mantemos uns com os outros nas práticas
comunicativas cotidianas é relevante não só para o fortalecimento
dos mecanismos de validação e legitimação de regras, mas também
para o estabelecimento da solidariedade entre indivíduos que buscam
reconhecer-se mutuamente como parceiros dialógicos capazes de
justificar racionalmente suas ações, suas necessidades e seus desejos.
Assim, discursos midiáticos podem promover um processo refle-
xivo de debate coletivo e de busca de compreensão e entendimento,
aproximando diferentes esferas públicas de discussão. Tal processo é
essencial para a ética e para a construção de uma perspectiva colabora-
tiva a partir da qual podemos pensar sobre a questão da democracia e
da responsabilidade solidária no mundo contemporâneo.

Ética e mídia
Certamente a mídia desempenha um importante papel na interco-
nexão de públicos e discursos dispersos, garantindo possibilidades de
renovação e atualização de modos de sociabilidade e da rede de deba-
tes coletivos, assim como de dar continuidade aos discursos sobre o
bem-comum. Esses últimos necessitam da constante revisão e aprimo-
ramento das bases e quadros de sentido compartilhados os quais nos
permitem julgar o que é “bom” para todos. Argumentamos que a mídia
é atualmente uma das grandes responsáveis pelo contato reflexivo dos
sujeitos com os “outros” e com a sociedade.
A reflexão sobre uma ética da comunicação nos leva a indagar sobre
quais condições de intervenção dos media seriam capazes de enriquecer
processos simbólicos presentes na experiência concreta dos indivíduos.
38 mídia, ética e esfera pública

Afinal, os media tanto podem construir e difundir representações


problematizantes quanto podem esvaziar e empobrecer formas de
expressão e de sociabilidade. Sob esse aspecto, o sentido assumido hoje
pela questão ético-moral não pode confinar-se aos media em si (ou a
princípios de deontologia profissional ligados a constrangimentos
originados de pressões de poder). Pensar uma ética da comunicação
exige considerar os pontos de conexão entre os meios e a prática concreta
e situada de interação dos cidadãos através da linguagem. Estes, ao
interpretarem e reelaborarem os discursos mediáticos, e ao se engajarem
em dinâmicas de negociação na esfera pública, são instados a assumir a
responsabilidade de seus atos e juízos diante de seus pares. Mais do que
isso: são constantemente convidados a refletir sobre como os meios de
comunicação alteram os ambientes sociais e culturais que os sustentam,
assim como as relações que os indivíduos e instituições tecem entre si em
situações marcadas pelo conflito, pela ordenação discursiva do mundo e
pela auto-descoberta.
Diante disso, é interessante notar como o conteúdo dos discursos
mediáticos configura-se atualmente como uma forma relevante de
mostrar que as representações podem estimular sentimentos morais e
interesse pela experiência dos outros. E, apesar de muitas vezes essas
representações não desencaderem processos de reflexão prático-moral
(que vâo além da empatia e da solidarização com a dor dos outros), elas
atestam a possibilidadede de que a difusão de informações e imagens
por meio da mídia pode “ajudar a estimular e a aprofundar um sen-
timento de responsabilidade pelo mundo não-humano da natureza e
pelo universo dos outros distantes que não compartilham das mesmas
condições de vida que as nossas” (Thompson, 1998, p.227).
A promoção de solidariedade, além de ser um processo de aprendi-
zagem social é, no contexto mediático, um potencializador de deman-
das por inclusão de identidades e pela maior pluralidade de atores e
lugares de fala em espaços de visibilidade. Vários são os temas aborda-
dos em programas mediáticos com potencial para despertar um envol-
vimento da audiência para além da mera empatia. Não raro, é possível
constatar a emergência de uma solidariedade com os “não-iguais”.
Porém, muitas vezes a superficialidade do tratamento narrativo impede
relações entre ética,
moral e comunicação
na experiência intersubjetiva 39

um maior grau de envolvimento e responsabilidade dos indivíduos que


ultrapassem a fina película do entretenimento individualista. Somado
a isso, imagens dramáticas podem ser manipuladas e exploradas com
a finalidade de mobilizar a simpatia ou a antipatia, a perpetuação ou
o questionamento de estigmas por meio da desconstrução de repre-
sentações criatalizadas. A dor de consciência é fugaz, pois “as práticas
profissionais da mídia buscam representar as tragédias humanas glo-
bais mantendo uma distância segura entre nós e os outros (Stevenson,
1997, p.80). Isso mostra que o sentido de responsabilidade é diferente
da capacidade e da disponibilidade efetivas de agir em prol da integri-
dade do outro. Como ressalta Thompson,

Os indivíduos podem ter uma profunda preocupação pela infelici-


dade de outros distantes ou pela destruição do meio-ambiente glo-
bal, mas dada a enorme complexidade dos processos que produzi-
ram as crises e situações perigosas que enfrentamos hoje, e dada
a dificuldade de intervir objetivamente nos processos que muitas
vezes são pobremente entendidos, muitas pessoas podem se sen-
tir incapazes de traduzir na prática esse sentido de preocupação
(1998, p.228).

Contudo, podemos pensar nos recursos discursivos dos media


como elementos integrantes de uma espécie de reabilitação da experi-
ência ordinária, na medida em que “auxiliam a fazer com que questões
éticas se ampliem para abranger outros distantes que, embora remotos
no espaço e no tempo, podem fazer parte de uma sequência interligada
de ações e suas consequências (Thompson, 1998, p.226).
As representações mediáticas, enquanto resultado de processos con-
tínuos de interpretação do mundo concreto, solicitam aos indivíduos
uma constante revisão do modo como avaliam, modificam e recriam
seus parâmetros de avaliação e julgamento de si mesmos e dos outros.
Representações são signos sempre limitados, uma vez que não conse-
guem apreender a pluralidade do referente. Os elementos simbólicos
contidos nas narrativas mediáticas, contudo, além de difundirem códi-
gos de conveniência, podem contribuir para que cada vez mais os indi-
víduos revejam suas posições frente ao julgamento alheio. Isso depen-
40 mídia, ética e esfera pública

de sobretudo do modo como as operações de enquadramento atuam


sobre a construção de representações. Pensar no contexto dos media
como espaços de luta simbólica “vinda de baixo” oferece uma ética da
resistência contra a incorporação das pessoas à estratégias ideológicas
dominantes (Stevenson, 1997). Essa abordagem não prevê uma ética
meramente descritiva, mas questionadora das representações que con-
ferem visibilidade a uma pluralidade de vozes em um local onde tinha-se
por pressuposto que existia somente uma.
Desta maneira, produções culturais que reúnem conhecimentos
e saberes partilhados incorporam também aspectos de experiências
identificadas como injustas, ou seja, práticas percebidas como geradoras
de infortúnio ou desrespeito. Assim, a visibilidade proporcionada pelos
media a narrativas e representações associadas à modos de opressão
simbólica tem a capacidade de deflagrar debates e discussões que
evidenciam questões relativas a demandas de grupos marginalizados
por reconhecimento.
A construção de uma dimensão comunicacional ético-moral precisa
de um leque diverso de perspectivas que nos lembram nossa condição
humana compartilhada.
Igualmente essencial é a existência de “domínios públicos nos quais
nossas vozes e as dos outros possam insistentemente interrogar-se de
maneira recíproca” (Stevenson, 1997, p.84). Uma ética da comunicação
deve contemplar o desejo e a necessidade de estar com o outro, de
acolhê-lo, de respeitá-lo, de aceitar o desafio que o outro nos lança
por meio de sua singularidade, de sua diferença. O encontro com o
outro, seja na comunidade ou pela via das representações mediáticas,
deveria expressar sempre de forma agonística (e não meramente
antagônica), na qual um indivíduo incita o outro por meio da dúvida
e do estranhamento. Nesse sentido, o conceito de solidariedade requer
menos a empatia ou a semelhança com o outro, e mais uma habilidade
de se deixar afetar pelo “não-idêntico”, ao mesmo tempo em que requer
uma igualdade normativa. Ou seja, “envolve a aceitação do outro como
outro, o qual precisa ter a mesma chance de articular necessidades
e argumentos” (Cohen; Arato, 1992, p.383) a fim de chegar ao
entendimento comum.
relações entre ética,
moral e comunicação
na experiência intersubjetiva 41

Essa abordagem marca a busca da co-responsabilidade de todos,


cada um a partir de suas próprias experiências, pelas consequências
das ações que asseguram um “ser com os outros” e um contexto de vida
partilhado (Herrero, 2002). Representações do mundo do outro ou
da dor do outro ativam constantemente sentimentos morais, os quais
podem nos responsabilizar pelo bem-estar de outros, estejam eles ou
não distantes no espaço e no tempo.
O encontro, mediado ou face a face, entre diferentes identidades
marca a importância adquirida pela dimensão do reconhecimento social
e de um processo de discussão coletiva capaz de apontar alternativas de
solução para conflitos e modos de opressão e desrespeito. Este desafio
requer uma percepção sensível das diferenças de opinião e de gostos,
pois a ética, enquanto reflexão crítica acerca de preceitos morais, diz
justamente de um questionamento, reformulação e justificação das
condutas por nós adotadas em busca do bem-viver. Tal busca não
se refere à uma posição unicamente individual, mas já pressupõe o
encontro com o outro. A vida que cada um projeta para si tem considerar
necessariamente os outros e os contextos institucionais de afirmação
e delineamento de nossas relações. O processo ético-moral associado
à comunicação depende de que esses indivíduos façam avançar a
tradição por meio da criação e recriação de relações intersubjetivas
pautadas pelo respeito mútuo e voltadas para a promoção dos interesses
coletivos, sem desconsiderar as singularidades e as demandas éticas
das existências particulares.
capítulo 2

A ética dos processos


comunicativos: discurso,
esfera pública e autonomia

Uma abordagem que pretende estudar as relações entre processos


ético-morais e a comunicação deve considerar os modos operatórios
dos meios de comunicação de massa, mas também aos modos de
difusão e apropriação crítica das mensagens mediáticas. Tal abordagem
deve considerar também os modos como os indivíduos buscam
entendimento e solução para as questões morais que suscitam não só
reflexões ligadas ao auto-entendimento dos sujeitos mas que, a partir
delas, almejam formas de negociação capazes de garantir soluções que
contemplem as demandas da coletividade. No contexto das sociedades
atuais, a busca pelo diálogo, pelo debate e pela consideração dos pontos
de vista de todos coloca-se como desafio e necessidade, pois revelam
as dificuldades de conectar demandas éticas de natureza subjetiva,
ligadas a diferentes concepções de bem-viver, a demandas morais que
A ética dos processos
comunicativos 43

dizem respeito a como nos relacionamos com os outros na busca de


solidariedade e reconhecimento social. Nesse sentido, as interseções
entre ética, moral e comunicação podem ser examindas a partir de três
âmbitos distintos e intrinsecamente articulados.
O primeiro envolve a ética do discurso (ou da discussão), formu-
lada por Habermas (1995, 1987) na tentativa de apontar um modo de
comunicação intersubjetiva para a solução de conflitos e impasses nor-
mativos que seja livre de coerções e violências de toda sorte, fundada
na igualdade entre parceiros de interlocução que se atribuem recipro-
camente o status de parceiros moralmente dignos de serem ouvidos e
considerados em debates sobre questões de interesse coletivo. A ética
do discurso visa a ampliação dos horizontes éticos individuais (e não
a sua supressão, como contestam muitos dos críticos de Habermas)
tendo em vista a consideração de questões que dizem respeito ao que é
bom e justo para todos. Para tanto, faz-se necessário buscar maneiras
de conciliar interesses e necessidades particulares, que emergem em
esferas de interação de grupos e indivíduos, com preocupações ineren-
tes a todos aqueles que integram as sociedades atuais altamente com-
plexas, pluralistas e diferenciadas.
Um segundo âmbito abrange as formas como os indivíduos bus-
cam, no contexto de suas relações com os outros, uma auto-realização
que não depende apenas de uma reflexão interna ou do cumprimento
de princípios éticos internalizados e construídos como parâmetros de
avaliação das condutas individuais. Tal auto-realização não é possível,
segundo Axel Honneth (2003), sem o reconhecimento social, ou seja,
sem o apoio, o incentivo e a validação dos outros. No contexto da ética
do discurso, o reconhecimento designa o tipo de respeito mútuo que
envolve, ao mesmo tempo, a singularidade e a igualdade de todos os
interlocutores. Apresentar-se diante do outro e expor argumentos e
pontos de vista ao escrutínio público exige respeito, reciprocidade e
uma disposição em se “colocar no lugar do outro”. Contudo, o reconhe-
cimento proposto por Honneth parte do pressuposto de que a moral
não está ligada somente a situações que julgamos boas, mas ao respeito
das aspirações sustentadas pelos indivíduos de modo a garantir sua
integridade e o florescimento de sua identidade.
44 mídia, ética e esfera pública

As atitudes morais devem, portanto, instaurar condições para que


os indivíduos possam ser reconhecidos em seus relacionamentos de
amor e amizade, em suas buscas pela conquista de direitos, e em ativi-
dades nas quais suas habilidades são avaliadas pelo valor que possuem
ou que podem oferecer a projetos coletivos. A legitimidade de catego-
rias sociais de percepção e julgamento dos sujeitos é posta em causa
quando indivíduos e grupos tematizam experiências de injustiça nas
quais se sentem lesados em suas expectativas de reconhecimento. Mas
a alteração e revisão das estruturas socias e cognitivas (dos esquemas
de pensamento) que utilizamos para classificar e interpretar os sujeitos
depende da desnaturalização de suas práticas.
Esse trabalho de tematização e crítica dos esquemas de percepção
e rotulação do mundo dos outros pode contar, às vezes, com as nar-
rativas mediáticas que, ao conferir visibilidade a “outros distantes” e
às suas condições de vida, alimentam sentimentos morais de respon-
sabilidade e de solidariedade. Estes, em momentos críticos que sus-
citam amplos e continuados debates, podem, por sua vez, alimentar
julgamentos morais voltados para a busca de processos de solução de
problemas que unam sem apagar as diferenças, que indiquem aquilo
que é compartilhado entre estranhos, sem privar o outro da condição
de outro, que aproximem avaliações individuais de avaliações coletivas
conferindo à ética “o caráter de projeto democrático, fundado no diá-
logo, na discussão e na compreensão do outro” (Esteves, 2003, p.304).
Nesse sentido, o terceiro âmbito de relação entre ética, moral
e comunicação é o espaço mediático. Entretanto, para uma efetiva
avaliação de seus entrecruzamentos, não só suas lógicas operatórias
devem ser observadas, mas sobretudo, o diálogo entre textos e audiências
e as complexas relações entre os enunciados mediáticos e questões de
atribuição de valor aos sujeitos.
Ao refletirmos sobre a ética e a moral no contexto da comunicação,
não podemos deixar de fazer duas considerações principais. A primeira
delas ressalta que processos ético-morais (que unem a auto-realização
dos indivíduos e a realização da sociedade) dizem respeito aos modos
como os media atuam e influem nas relações intersubjetivas, fornecendo
insumos simbólicos não só para a construção das identidades subjetivas,
A ética dos processos
comunicativos 45

mas também para a ativação constante de sentimentos morais a partir da


representação imagética dos “outros”. A segunda consideração ressalta
o fato de, se de um lado os media agem estrategicamente para manter
uma performance industrial competitiva, de outro eles permitem que
discursos e perspectivas antes enclausurados se tornem amplamente
disponíveis no tempo e no espaço. Sob esse aspecto, desempenham
um papel dúbio e ambivalente: ao mesmo tempo em que selecionam
e hierarquizam vozes e discursos, democratizam (tornam visíveis e
disponíveis) visões e perspectivas sociais e políticas (Thompson, 1998;
Stevenson, 1997).
Tendo em vista essas considerações, acreditamos que uma articu-
lação entre questões ético-morais e comunicacionais pode ser melhor
entendida a partir de uma reflexão que leve em conta: i) a ética do dis-
curso; ii) as demandas por reconhecimento social e iii) a construção do
sujeito político autônomo. Essas três dimensões (tratadas a seguir de
modo mais detido) privilegiam, a partir de uma ótica político-filosófi-
ca, a comunicação intersubjetiva (seja ela face a face ou mediada) como
aspecto central da elaboração e constante transformação dos princí-
pios ético-morais que regem os conflitos e as negociações agonísticas
nas sociedades contemporâneas.

A ética do discurso e a busca intersubjetiva pelo entendimento:


aproximações entre ética e moral
Na concepção de Habermas (1987, 1995, 2004), a ética da
comunicação (ou do agir comunicativo) está fundada na ampliação dos
horizontes éticos individuais tendo em vista a consideração de questões
que dizem respeito ao que é bom e justo para todos. De modo a revelar
como, por meio da interação discursiva na esfera pública, os indivíduos
poderiam chegar a um entendimento ou consenso1 acerca de seus

1. “O consenso sobre algo mede-se pelo reconhecimento intersubjetivo da validade


de um proferimento fundamentalmente aberto à crítica. Existe certamente uma di-
ferença entre compreender o significado de uma expressão linguística e entender-se
com alguém sobre algo com o auxílio de uma expressão tida como válida”. (Haber-
mas, 2002, p.77).
46 mídia, ética e esfera pública

interesses e necessidades, ele procurou esboçar uma teoria, a ética do


discurso, capaz de evidenciar como o uso racional da linguagem é capaz
de promover o entendimento mútuo e um acordo provisório entre os
participantes de discussões práticas, as quais originam a esfera pública.
Assim, nessa esfera, sujeitos capazes de fala e ação usam a linguagem e
o conhecimento intuitivo de como proceder em determinadas situações
(adquirido no processo de socialização), de forma racional (o que não
significa isenta de elementos estético-emocionais) para que possam
chegar ao entendimento, intersubjetivamente, sobre algo no mundo.
A compreensão do que é a ética do discurso depende, portanto, da
compreensão de como se articulam, na teoria habermasiana, as noções
de esfera pública, ação comunicativa e deliberação. Acerca da noção de
esfera pública, não podemos deixar de mencionar as reflexões elaboradas
por Habermas na década de 1960. Alimentado pelas considerações feitas
por Adorno e Horkheimer em Dialética do Esclarecimento, ele defendeu
um argumento fatalista na década de 1960, ao escrever Transformações
Estruturais da Esfera Pública ([1962] 1984). Segundo ele, a rede
comunicativa formada por um público composto de cidadãos privados
que debatem racionalmente e publicamente (alimentados pela imprensa
de opinião) um problema entrou em colapso. A esfera pública, acrescenta,
havia se convertido em veículo de propaganda que, refeudalizada2, passa
a assumir “traços feudais, pois os ofertantes ostentam roupagens e gestos
de representação perante clientes dispostos a segui-los” (1992, p. 229).
Depois de receber várias críticas e de observar os desdobramentos
de pesquisas norte-americanas ao longo das décadas de 1960 e 1980,
Habermas faz várias revisões acerca do significado de esfera pública,
chegando a apresentar, em Direito e Democracia, uma formulação hoje
amplamente conhecida e que salienta a ideia de rede. Nesse sentido,
a esfera pública não deve ser compreendida no singular (uma única
esfera, exclusiva e homogênea), mas sim como uma “rede pública e

2. A noção de “refeudalização da esfera pública” é explicada por Habermas da


seguinte maneira: a mídia elabora uma representação dramática e estereotipada de
fatos, promovendo mais assentimento e aclamação, do que propriamente discussão.
Assim, “a esfera pública se torna uma corte, perante cujo público o prestígio é
encenado – ao invés de nele desenvolver-se a crítica” (1992, p.235).
A ética dos processos
comunicativos 47

inclusiva de esferas que se sobrepõem umas às outras, cujas fronteiras


reais, sociais e temporais são fluidas” (1997, p. 33). E ainda: “uma rede
de discursos e de negociações, a qual deve possibilitar a solução racio-
nal de questões pragmáticas, morais e éticas” (1997, p. 47).
Ao longo de suas obras (1984, 1992, 1996, 2006), Habermas vem
reelaborando o conceito de esfera pública política ou mesmo ressal-
tando alguns de seus aspectos que antes pareciam confusos ou opacos.
Em seus textos mais atuais, ele a define geralmente como “uma rede
adequada para a comunicação de informações e pontos de vista; nela
os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se
condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos”
(1996, p.360).
Segundo Habermas, tal esfera não se define pelos conteúdos temáti-
cos em discussão, mas “constitui principalmente uma estrutura comu-
nicacional do agir orientado pelo entendimento, a qual tem a ver com
o espaço social gerado no agir comunicativo, não com as funções nem
com os conteúdos da comunicação cotidiana” (1996, p.360).
Discursos de diferentes naturezas fundamentam o agir comunica-
tivo, entre os quais podem ser citados: as conversações cotidianas na
sociedade civil, o discurso público, os fluxos de comunicação media-
da e os discursos institucionalizados no centro do sistema político
(Habermas, 2006, p.415). Quando Habermas privilegia as circunstân-
cias sociais de comunicação nas quais os agentes buscam, cooperativa-
mente e sem qualquer forma de coerção ou constrangimento, chegar
a um entendimento, parece que nenhuma forma estratégica de ação
pode fazer parte dessa esfera. Contudo, é um erro excluir da esfera pú-
blica política a dimensão estratégica das ações, ou seja, aquela baseada
na disposição de um sujeito em alcançar o sucesso de seus intentos
influenciando coercitivamente os outros e percebendo-os como meros
meios que limitam ou facilitam sua busca por objetivos particulares
(Habermas, 1991, p.241-242).
Assim, na esfera pública política, sujeitos capazes de fala e ação usam a
linguagem e o conhecimento intuitivo de como proceder em determinadas
situações (adquirido no processo de socialização) de forma racional
para que possam chegar ao entendimento, intersubjetivamente, sobre
48 mídia, ética e esfera pública

algo no mundo. A importância da linguagem na teoria habermasiana


não se encontra somente nas características semânticas que ela adquire
quando toma a forma de um proferimento, ou expressão. Além de
entender o que o outro diz, os parceiros precisam empenhar-se em
um confronto discursivo que exige “que os indivíduos escutem uns aos
outros, respondam à críticas e justifiquem suas posições reciprocamente,
colocando-se sempre no lugar do outro” (Chambers, 1996, p.100).
Sob um viés pragmático, do uso da linguagem como forma de ação
prática para a busca do entendimento recíproco, a Teoria da Ação Comu-
nicativa, de Habermas (1987), pode ser apontada como uma importante
contribuição para pensarmos como indivíduos e grupos questionam, em
uma postura ética (que busca a justificação recíproca para atos e nor-
mas), os valores e as bases que ancoram as regras morais que os vincu-
lam coletivamente. Primeiro, para que a linguagem seja o medium capaz
de conduzir sujeitos plurais ao entendimento, ele afirma que é preciso
distinguir entre duas formas de ação discursiva:
Existe uma diferença entre a ação comunicativa e a estratégica. En-
quanto na ação estratégica um ator procura influenciar o compor-
tamento de outro ameaçando-o com sanções ou seduzindo-o com
gratificações, a fim de fazer com que a interação prossiga de acordo
com os desejos do primeiro ator; na ação comunicativa um ator
procura motivar racionalmente o outro apoiando-se em um efeito
ilocucionário do tipo binding/bonding derivado da oferta contida
em seu ato de fala (Habermas, 1995, p.63).

A ação comunicativa é uma maneira ideal de se deliberar sobre


interesses e necessidades, exigindo que os participantes percebam seus
interlocutores não como obstáculos a serem driblados para a conquista
de objetivos particulares (ação estratégica), mas como parceiros dignos
de respeito e agentes autônomos com capacidade moral para elaborar e
defender publicamente as próprias posições com base em argumentos
e razões (Chambers, 1996).
Em sua obra, Habermas procurou construir uma ética do discurso
capaz de evidenciar como o uso da linguagem é capaz de promover o
entendimento mútuo e um acordo provisório entre os participantes de
discussões práticas, a partir da avaliação coletiva de questões comuns e
A ética dos processos
comunicativos 49

interesses particulares. Para esse autor, a ética associa-se ao horizonte


pessoal de interesses, escolhas, valores e visões de mundo, enquanto o
ponto de vista moral – adotado pelos participantes em uma discussão -
remete-se ao alargamento do horizonte subjetivo rumo à solução de
conflitos e problemas de ordem coletiva.
A ação comunicativa, voltada para o entendimento recíproco dos
sujeitos acerca de algo que pertence aos mundos objetivo, social e
subjetivo, remete-se ao modo como o discurso se transforma em
elemento central da construção de decisões capazes de, a partir da
consideração pública de argumentos particulares, constituir uma base
comum para acordos firmados em torno de elementos generalizáveis,
identificados a partir da avaliação coletiva de necessidades e interesses
particulares. Apesar de as ações estratégicas e comunicativas serem
apresentadas por Habermas como dois tipos genuínos de interação,
somente uma delas é apontada como capaz de produzir acordos
racionalmente motivados.

Utilizo o termo ação comunicativa para a forma de interação social


na qual os planos de ação de diferentes atores são coordenados por
meio de uma troca de atos comunicativos, ou seja, por meio do uso
da linguagem orientada para o alcançe do entendimento. Na medi-
da em que essa comunicação serve ao entendimento mútuo (e não
à mera influência mútua), ela assume na interação o papel de um
mecanismo de coordenação da ação (HABERMAS, 1982, p.234).

Quando Habermas privilegia as circunstâncias sociais de comuni-


cação nas quais os agentes buscam, cooperativamente e sem qualquer
forma de coerção ou constrangimento (ideais que desconsideram as
desigualdades sociais, econômicas e políticas existentes entre os inter-
locutores), chegar a um entendimento, parece que nenhuma forma es-
tratégica de ação ou qualquer perspectiva egocêntrica pode fazer parte
dessa esfera. Contudo, e como ele mesmo admite, é um erro excluir
a dimensão estratégica das ações dos sujeitos, pois influenciar nossos
interlocutores em uma interação é parte do processo de negociação
ou de produção de justificativas para nossos argumentos (Marques,
2008). O que seria desastroso para interações discursivas que almejam
50 mídia, ética e esfera pública

compreender melhor problemas coletivos, é o fato de os interlocutores


ocultarem suas intenções e se recusarem a justificar as razões que estão
por trás de seus interesses, tornando a interação um jogo em que o
princípio da publicidade (no sentido de dar a ver) é desconsiderado em
prol de regras e objetivos ocultos.
O uso da linguagem em uma situação argumentativa, segundo
Habermas, confere igualmente aos sujeitos a capacidade de agir
racionalmente e de, a partir de seus interesses particulares, escolher
as alternativas de ação que privilegiem o bem comum. Dito de outro
modo, a ação dos sujeitos não estaria prevista ou constrangida por
normas prévias, mas seria fruto de decisões moralmente construídas
através do debate e do diálogo.

A teoria do discurso introduz a distinção entre questões éticas e


morais de maneira que a lógica das questões relativas à justiça pas-
sem a exigir a dinâmica de uma ampliação progressiva do hori-
zonte de interpretação. A partir do horizonte de suas respectivas
auto-compreensões e compreensões de mundo, as diferentes partes
em diálogo referem-se a um ponto de vista moral pretensamente
partilhado, que induz a uma descentralização sempre crescente das
diversas perspectivas, sob as condições simétricas do discurso
(Habermas, 2004, p.316).

A citação acima reforça o fato de que ações comunicativas não estão


descoladas dos interesses particulares dos sujeitos em interlocução.
Pelo contrário: é a partir do universo de compreensões e interesses
singulares desses sujeitos que se configura um horizonte ampliado e
partilhado de sentidos. Pode-se, contudo, questionar até que ponto
a discussão fornece mesmo condições paritárias de expressão e
enunciação, dificultando a construção de estratégias voltadas para o
alcance de fins particulares.
A importância da linguagem na teoria habermasiana não se encontra
somente nas características semânticas que ela adquire quando toma
a forma de um proferimento, ou expressão. Além de entender o que
o outro diz, os parceiros precisam empenhar-se em um confronto
discursivo que exige “que os indivíduos escutem uns aos outros,
A ética dos processos
comunicativos 51

respondam à críticas e justifiquem suas posições reciprocamente,


colocando-se sempre no lugar do outro” (Chambers, 1996, p.100).
Mas como fazer com que diferentes grupos e invíduos – os quais
sustentam diferentes visões éticas e concepções de bem-viver – se colo-
quem de acordo a respeito do que é considerado justo para todos? Sob
esse aspecto, a ética do discurso (ou da discussão) exige a mediação
argumentativa e deliberativa concreta dos conflitos, por meio da qual
aprendemos a providenciar razões para sustentar nossos argumentos e
a adotar a perspectiva do outro, buscando posições que permitam um
acordo racionalmente motivado e aberto à futuras revisões (Habermas,
1987, 1982).
O ideal clássico de deliberação, geralmente assentado sobre a pers-
pectiva habermasiana (1997), prevê que os indivíduos entram no pro-
cesso de debate com opiniões divergentes acerca de um dado problema
ou norma a ser aprovada, mas depois de apresentarem e ouvirem dife-
rentes pontos de vista e de justificarem-se mutuamente, todos chegam
a um acordo baseado no bem comum (Bohman, 2009). Essa formu-
lação tende a excluir qualquer ação que tenha como objetivo a defesa
de um interesse particular, uma vez que este tipode interesse requer
um tipo de ação que visa o convencimento e não a busca recíproca de
entendimento, ou seja, implica uma ação estratégica e não uma ação
comunicativa (Chambers, 1996).
Nesse sentido, no processo deliberativo, ao invés de partir de um
ponto de vista estratégico e maximizador dos objetivos privados,
os sujeitos transformam, por meio da justificação pública, suas
preferências e interesses, refletindo de modo cooperativo acerca
de uma questão que afeta a todos os participantes (Bohman, 2009).
Em um processo deliberativo, os participantes buscam esclarecer e
justificar seus interesses, buscando entendimento através do respeito
mútuo. Esse requisito não rejeita a presença de interesses particulares
e de sua defesa no âmbito de uma deliberação. O que ele define é
que as pessoas, ao esclarecerem e justificarem os pressupostos de
seus interesses na arena deliberativa – em uma situação ideal de troca
argumentativa -, reflitam sobre eles de modo a revê-los e, se necessário,
alterá-los (Marques, 2009, 2010).
52 mídia, ética e esfera pública

Alguns críticos de Habermas, sobretudo Thompson (1998), argu-


mentam que tais condições ideais da discussão não configuram um
modelo de solução de conflitos que possa ser adaptado às circuns-
tâncias concretas em que sujeitos plurais e fisicamente distanciados
buscam negociar e solucionar dilemas morais. Soma-se a isso o enten-
dimento de que, ao supostamente separar questões éticas de questões
morais, Habermas estaria negando as preocupações individuais dos
sujeitos para universalizar aquilo que dificilmente pode ser generaliza-
do: parâmetros de percepção do mundo constituídos por meio de ex-
periências subjetivas, sejam elas positivas ou negativas (danos morais
como desrespeito, violência, negação de direitos, humilhação, etc.).
Acreditamos que esse tipo de interpretação esteja ligado a afirmações
ambíguas de Habermas a respeito de sua distinção entre ética e moral
no contexto das interações práticas dos sujeitos que negociam sobre a
validade de normas que os vinculam coletivamente.

Os envolvidos nessas interações precisam deixar de lado a pergunta


sobre que regulamentação é ‘melhor para nós’, a partir da respectiva
visão que consideram ‘nossa’; e só então checar, sob o ponto de
vista moral, que regulamentação ‘é igualmente boa para todos’ em
vista da reivindicação moral prioritária da coexistência sob igual-
dade de direitos. (Habermas, 2004, p.319 e 322, grifos nossos)

Três considerações podem ser feitas a partir dessa citação. A


primeira é a constatação de que, para Habermas, a ação comunicativa
sublinha a importância da criação e manutenção de uma dinâmica
argumentativa na sociedade, pois é somente por meio dela, segundo ele,
que passamos a dialogar, debater e negociar continuamente normas,
valores e necessidades. O discurso (discussão) nos possibilita expressar
nossos desejos, sentimentos e necessidades de modo a reconhecer
quais são aqueles que pertencem ao domínio do julgamento pessoal e
quais são aqueles que deveriam ser compartilhados e entendidos como
pertencentes ao âmbito coletivo da justiça, das normas e dos direitos.
Nesse sentido, a segunda consideração aponta para a afirmação de
Habermas de que questões éticas e morais possuem naturezas diferen-
tes. Segundo ele, questões éticas são aquelas que se colocam do ponto
A ética dos processos
comunicativos 53

de vista da primeira pessoa (do singular ou do plural). Elas dizem res-


peito a indagações que buscam dar respostas a “quem sou eu e quem
gostaria de ser, ou como deveria levar minha vida” 3, ou ainda como
os membros de uma comunidade “se entendem, quais os critérios se-
gundo os quais deveriam orientar suas vidas, o que seria melhor para
todos a longo prazo, etc.” (Habermas, 2004, p.40). Já as questões morais
referem-se à busca de normas e regras capazes de permitir a coexistên-
cia em sociedades pluralistas, pautada pela busca do interesse de todos
e não pelo que é melhor para todos. Assim, enquanto as questões éti-
cas estão voltadas para o auto-entendimento e para o que é “bom para
mim ou para nós”, as questões morais se destinam a descobrir “qual
a regulamentação mais adequada ao interesse equânime de todos os
atingidos (sobre o que é bom, em igual medida, para todos)” (Habermas,
2004, p.313).
A distinção entre ética e moral não pode ser concebida como uma
tentativa de isolamento ou apagamento da subjetividade em prol da
coletividade. Habermas reafirma constantemente em seus textos que
julgamentos morais só se concretizam a partir da perspectiva subjetiva
dos concernidos que, ao buscarem um acordo, devem avaliar as dife-
rentes dimensões do problema buscando ampliar suas perspectivas e
não mantê-las herméticas às considerações dos outros.
A ética do discurso reúne, então, princípios que tentam direcionar
os indivíduos para a resolução cooperativa de problemas que atingem
a todos. Para Habermas, as normas e regras que guiam as relações
humanas em sociedades altamente complexas e plurais não podem
ser mais definidas por princípios tradicionais reunidos nas narrativas
religiosas e institucionais. Assim, a ética do discurso determina que
uma norma só pode ser considerada válida ou justa se ela for discutida
abertamente por todos os concernidos, sob condições livres de
quaisquer constrangimetos (Herrero, 2002). Pautada pela equidade e
paridade entre os participantes de uma discussão, a ética do discurso

3. “Aqui, a perspectiva da primeira pessoa não significa a limitação egocêntrica às


preferências individuais, mas garante a referência a uma história de vida que está
sempre ligada a tradições e formas de vida intersubjetivamente compartilhadas”
(Habermas, 2004, p.40).
54 mídia, ética e esfera pública

é um procedimento que demanda “aos participantes que reflitam e


avaliem suas necessidades e interesses racionalmente do ponto de vista
de sua generalidade” (Chambers, 1996, p.103). Eles devem estar aptos a
formular razões próprias e passíveis de serem compreendidas e aceitas;
de iniciar debates e interpretar suas necessidades de maneira reflexiva,
expondo seus interesses sob uma perspectiva generalizante (Maia,
2001; Cohen e Arato, 1992).
Todavia, os procedimentos de generalização de perspectivas e ne-
cessidades não impõem a supressão de particularidades ou o esqueci-
mento de dimensões do bem-viver, mas apontam a situação discursiva
como um processo moral transformativo que nos permite uma apro-
ximação do universo do “outro”, possibilitando a emergência de novos
vínculos e de novos interesses. Como afirma Habermas, “se os atores
não trouxerem consigo, dentro de seu discurso, suas histórias de vida
individuais, suas identidades, suas necessidades e desejos, tradições e
pertencimentos, o discurso prático será esvaziado de todo o seu conte-
údo” (1982, p.255)
Nesse sentido, os discursos não devem ser entendidos como ativi-
dades destinadas a encontrar regras que conectem diferenças isoladas,
mas como práticas necessárias à compreensão de como as diferenças se
sobrepõem e se interpenetram (Benhabib, 1996).
O diálogo, a prática concreta do discurso, envolve uma troca mútua
de perspectivas na qual todos devem ser estimulados a adotar a pers-
pectiva de seus interlocutores “a fim de que possam examinar a aceita-
bilidade de uma solução de acordo com o modo como todos os outros
entendem a si mesmos e o mundo” (Habermas, 1990, p.98). Sob esse
aspecto, o ponto de vista moral constituído pela ética do discurso não
demanda um anulamento de necessidades, interesses e desejos subje-
tivos (como se o que fosse da ordem particular fosse egoisticamente
ruim e só o que remete ao coletivo fosse bom), mas sim requer o exer-
cício de “não olhar para nosso próprio entendimento de nós mesmos
e do mundo como o padrão por meio do qual podemos universalizar
um modo de ação” (Habermas, 1990, p.112). Se os sujeitos avaliam
determinados problemas coletivos unicamente à luz de sua própria
experiência particular, correm o risco de se tornarem moralistas, de
A ética dos processos
comunicativos 55

querer impor seu próprio ponto de vista aos outros desconsiderando


condições de comunicação capazes de proporcionar o exame público e
coletivo das perspectivas de cada um.
A ética do discurso proposta por Habermas, ao estabelecer conexões
entre o ponto de vista particular (das experiências e sentimentos) e o
ponto de vista moral (da universalização e do coletivo) fornece as bases
para a construção da teoria da ação comunicativa e da constituição
do espaço público. A ação comunicativa, voltada para o entendimento
recíproco dos sujeitos acerca de algo que pertence aos mundos objetivo,
social e subjetivo, aponta para o modo como o discurso se transforma
em elemento central da construção de decisões capazes de, a partir
da consideração pública de argumentos particulares, constituir não
só uma base comum para acordos firmados em torno de elementos
generalizáveis identificados, interpretativamente, a partir da avaliação
coletiva de necessidades e interesses particulares. Dito de outro modo,
sob um viés pragmático, do uso da linguagem como forma de ação
prática para a busca do entendimento recíproco, a teoria da ação
comunicativa de Habermas (1987) pode ser apontada como uma
importante contribuição para pensarmos como indivíduos e grupos
questionam, em uma postura ética, os valores e as bases que ancoram
as regras morais que os vinculam, aliando interesses particulares a
interesses coletivos.4

4. É importante mencionar aqui que o conceito de interesses em Habermas possui


variadas acepções. Em “Conhecimento e Interesse” (1983), por exemplo, o interesse
é entendido como algo que orienta o conhecimento e o aprimoramento da vida em
sociedade. O interesse nesta obra não se vincula à busca da realização estratégica
de fins particulares, mas à busca de melhores condições para o progresso social e
democrático via produção do conhecimento. “Chamo de interesses as orientações
básicas que aderem a certas condições fundamentais da reprodução e da autocons-
tituição possíveis da espécie humana: trabalho e interação. E por isso que cada uma
destas orientações fundamentais não visam à satisfação de necessidades empíricas e
imediatas, mas à solução de problemas sistêmicos propriamente ditos” (Habermas,
1983, p.217).
56 mídia, ética e esfera pública

A busca por um ponto de vista moral para a avaliação


e solução dos conflitos sociais
A ética do discurso (ou da discussão), como visto acima, visa pro-
mover procedimentos discursivos inclusivos para que todos aqueles
potencialmente atingidos por um problema possam expressar suas ne-
cessidades e interesses de modo a alcançar um ponto de vista comum.
Ela está fundada na máxima (inspirada pelo princípio categórico de
Kant) de que leis e normas só podem ser válidas, no sentido moral,
quando forem livremente aceitas por todos os participantes do discur-
so de modo a refletirem um interesse generalizável (Habermas, 2004).
Este último pode ser identificado em desejos que todos nós possuímos,
mas que só podem ser alcançados em cooperação com os outros, pro-
curando sempre respeitar as diferenças e trabalhar através delas.

Nas sociedades modernas surge um descompasso entre, de um


lado, as diferenças rapidamente crescentes que os cidadãos consta-
tam em suas interações cotidianas e, de outro, as exigências impos-
tas a esses mesmos cidadãos por um sistema jurídico igualitário,
a saber: a exigência de que ignorem essas diferenças constatadas
de maneira sempre mais penetrante. O espectro de diferenças que
precisam ser trabalhadas pelos indivíduos no plano de simples in-
terações cresce na dimensão temporal, social e objetiva. (Haber-
mas, 2004, p.319)

O ponto de vista moral contido na ética do discurso requer que


consideremos nossos interlocutores como indivíduos autônomos
que merecem igual consideração e que são moralmente capazes de
elaborar, defender e revisar seus pontos de vista em público (Maia,
2001). Tais condições de simetria e reciprocidade exigem “uma
suspensão de situações de desconfiança, duplicidade, desigualdade e
subordinação” (Benhabib, 1986, p.285). Para que todos sejam vistos
como iguais e considerados como parceiros do diálogo, o discurso
prático se configura como um procedimento que, ao mesmo tempo,
leva em consideração os entendimentos individuais da situação em
causa e estimula “os participantes a perceberem que pertencem a uma
comunidade ilimitada de comunicação” (Habermas, 1990, p.98). Tal
A ética dos processos
comunicativos 57

comunidade asseguraria redes de reconhecimento recíproco derivadas


do esforço de perceber os problemas pelo olhar dos outros. O igual
tratamento exigido nessa relação tende a procurar formas de inclusão
no debate que não sejam niveladoras de diferenças, permitindo que
o “outro” seja respeitado em sua alteridade. Tal determinação está no
centro da ética do discurso e perpassa toda a obra de Habermas:

“Aos 16 anos, quando soube da amplidão das atrocidades cometi-


das pelos alemães durante a guerra, tenho buscado, ora aqui, ora
ali, vestígios de uma razão que una sem apagar a separação, que
ligue sem negar as diferenças, que indique o comum e o que é com-
partilhado entre estranhos, sem privar o outro da condição de ou-
tro” (Habermas apud Anderson, 2001, p.7)

O objetivo ao qual o autor se propõe é extremamente difícil: encon-


trar, na argumentação livre de constrangimentos de poder e opressão,
uma forma de racionalidade (comunicativa) que preserve as diferenças
e, ao mesmo tempo, construa (com base em princípios procedimen-
tais) padrões morais de resolução de conflitos. A auto-realização dos
sujeitos e a evolução moral da sociedade se entrelaçam neste projeto de
modo a evidenciar que, de um lado, a realização de si não pode se res-
tringir à interpretação de certos ideais de vida particulares e, de outro
lado, que a sociedade deve alimentar padrões simbólicos de julgamen-
to que, ao invés de depreciar e estigmatizar, apontem caminhos para a
construção positiva de identidades individuais e coletivas.
O papel da linguagem nesse processo é o de transformar um
argumento que é subjetivo em um argumento que possa ser
compreendido universalmente. A racionalidade dos atores (adquirida
intersubjetivamente), portanto, “não tem tanto a ver com a posse do
saber do que com o modo como os sujeitos capazes de falar e de agir
empregam o saber” (Habermas, 2002, p.69). Muitas das críticas feitas
contra Habermas levarão em conta esse desequilíbrio que existe em
sua proposta: de um lado, a busca pela universalidade requer um certo
apagamento das especificidades dos desejos e vontades subjetivas;
de outro, a racionalidade deriva justamente dos modos subjetivos de
utilização dos saberes na formulação de demandas e necessidades.
58 mídia, ética e esfera pública

Como as histórias de vida diferenciadas podem ser contempladas por


uma teoria universalista da moral?
A ética do discurso está assentada sobre a capacidade racional e
reflexiva de um indivíduo de se distanciar de si mesmo e de sua biografia
individual, mas sempre tendo em vista que elas estão entrelaçadas a
formas de vida coletivas. Por isso, Habermas destaca que o bem de uma
coletividade depende de que um indivíduo mantenha sua biografia
como fonte de seus pontos de vista, mas não a utilize como parâmetro
para avaliar conflitos de âmbito coletivo. A presença da empatia, dos
sentimentos morais e da solidariedade é central para mostrar como
indivíduos e grupos, partindo dos princípios éticos ligados a seu auto-
entendimento e concepções de bem-viver, podem se engajar em debates
para entender e/ou solucionar questões e problemas que abrangem um
horizonte de interesse coletivamente partilhado.

Não iremos perseguir certos conflitos de ação como moralmente


relevantes se não percebermos que a integridade de uma pessoa
está sendo ameaçada ou violada. Os sentimentos formam a base
de nossa própria percepção de que algo é moral. Aquele que é cego
para o fenômeno moral não possui o sensor para o sofrimento de
uma criatura vulnerável que tem o direito de proteção para a sua
integridade física e sua identidade. E esse sensor está claramente
relacionado com a simpatia e a empatia (Habermas, 1990, p.112).

Nossa habilidade de sermos capazes de criar empatia com os proble-


mas de nossos vizinhos também depende de recursos emocionais com-
partilhados que não se restringem a problemas do discurso racional.
Certamente, os sujeitos não alcançam sua auto-realização somen-
te por meio do desenvolvimento de suas capacidades dialógicas para
que possam trocar razões com os outros. A realização ético-moral
dos sujeitos e das sociedades nas quais se inserem também dependem
“de nossa habilidade para experimentar a dor dos outros” (Stevenson,
1997, p.81).
Segundo Habermas, ao buscarem o entendimento recíproco de forma,
ao mesmo tempo, conflitual e cooperativa, os atores tomam contato com
a história de vida e com o mundo dos “outros”, ou seja, seus parceiros de
interação. Esse contato permite que os atores reproduzam e renovem suas
A ética dos processos
comunicativos 59

tradições e modelos culturais de entendimento e interpretação. Permite


ainda que desenvolvam e afirmem suas identidades pessoais e coletivas.
Portanto, quando em interação dialógica, os atores podem desenvolver
suas identidades por meio da troca argumentativa que realizam uns com
outros. Mas nem só argumentos racionais são trocados na interação co-
municativa voltada para a busca de entendimento. Constantemente, as
pessoas oferecem a seus interlocutores testemunhos e narrativas rela-
cionados aos eventos marcantes de sua história de vida. Assim, a prática
narrativa supre não só as necessidades triviais que levam ao entendimen-
to mútuo entre os participantes da interação (os quais coordenam suas
ações em direção a objetivos comuns), mas desempenha também um im-
portante papel no processo de construção das identidades.

A prática narrativa não serve somente a necessidades triviais para


o mútuo entendimento entre membros que tentam coordenar seus
interesses comuns; ela também funciona no auto-entendimento
das pessoas. As pessoas têm que objetivar seu pertencimento ao
mundo da vida ao qual, em seus papéis atuais como participantes
em comunicação, elas fazem parte. Somente podem desenvolver
identidades pessoais se reconhecerem que as seqüências de suas
próprias ações formam histórias de vida apresentáveis narrati-
vamente; elas podem desenvolver identidades sociais somente se
reconhecerem que mantêm seu pertencimento em grupos sociais
através da participação em interações, e que essas pessoas estão
presas em histórias de coletividades apresentadas por meio da nar-
rativa. (Habermas, 1987, p.136).

Sob esse viés, uma das preocupações centrais de Habermas consiste em


encontrar “um princípio formal para a legitimidade das normas em uma
sociedade que é plural e composta por indivíduos com distintas concep-
ções de bem-viver” (Cohen e Arato, 1992, p.357). Na tentativa de articular
uma resposta a esse dilema, Habermas elabora a ética do discurso.
Mas como fazer com que diferentes grupos e invíduos – os quais
sustentam diferentes visões éticas e concepções de bem-viver – se
coloquem de acordo a respeito do que é considerado justo para todos?
A resposta de Habermas a esse dilema (inspirada em Karl-Otto Apel,
2002) consite em encontrar um princípio moral do respeito indistinto
60 mídia, ética e esfera pública

por toda e qualquer pessoa e da co-responsabilidade pelas consequências


de ações e julgamentos. Segundo tal princípio, leis e normas só podem
ser válidas, no sentido moral, quando forem livremente aceitas por
todos os participantes do discurso de modo a refletirem um interesse
generalizável (Herrero, 2002). Sob esse aspecto, a ética do discurso (ou
da discussão) exige a mediação argumentativa concreta dos conflitos,
na qual “aprendemos a providenciar razões para sustentar nossos
argumentos e a adotar a perspectiva do outro, buscando posições que
permitam um acordo racionalmente motivado e aberto à futuras revisões
(Habermas, 1987, 1996). Mas tal acordo só pode ser alcançado por meio
de uma discussão prática e real.
O discurso prático refere-se, assim, a uma forma de comunicação
ideal para validar normas morais de modo reflexivo. Ele está aberto à
tematização e discussão de todos os problemas e conflitos sociais e ins-
titucionais da sociedade. Seu objetivo é resolver uma disputa normativa
abrindo espaço para a manifestação e consideração de todos (Chambers,
1996). Ele é tido por Habermas como um processo responsável por “tes-
tar a validade das normas que estão sendo propostas e consideradas para
adoção” (1995, p.100). Dito de outro modo, o discurso prático reflete o
modo como os interlocutores definem e avaliam o conteúdo das normas
que têm por função regular as chances de verem seus desejos satisfeitos
e às quais irão se submeter (Habermas, 1996). Isso requer que atuem
como “avaliadores críticos” de possibilidades, elegendo autonomamente
caminhos e alternativas de atuação e de solução de problemas de modo
a construírem argumentos próprios e passíveis de serem endereçados ao
e defendidos no espaço público ampliado.
Nesse sentido, os discursos, em sua dimensão prática, são formas
normativamente aceitáveis de resolução de conflitos por meio do teste
público de demandas de validade5, sendo que uma de suas funções é

5. “As demandas de validade estão conceitualmente ligadas à idéia de que todos de-
veriam concordar que aquela norma que está posta em debate, buscando validade,
deve ser válida para todos” (Cooke, 1994:32). As demandas de validade são três:
a) verdade (quando o ato de fala se refere a algo que existe no mundo objetivo); b)
correção (quando o ato de fala dirige-se a normas que sustentam as relações sociais)
e c) veracidade (quando o ato de fala expressa algo que é de domínio subjetivo, ao
qual o sujeito tem acesso privilegiado).
A ética dos processos
comunicativos 61

interpretar e testar quais interesses e necessidades podem ser comu-


nicativamente compartilhados e generalizados e quais não podem.
Sob esse viés, os discursos não devem ser entendidos como atividades
destinadas a encontrar regras que conectem diferenças isoladas, mas
como práticas necessárias à compreensão de como as diferenças se so-
brepõem e se interpenetram.
Quando envolvidos no discurso prático, os interlocutores buscam
tornar o que é particular em algo público e reconhecido por todos.
Como sugere Chambers (1996), ao nos engajarmos na prática discur-
siva, acreditamos que nossas posições morais possam estar corretas e
que podemos demonstrá-las e sustentá-las por meio de argumentos.
Paralelamente, devemos estar envolvidos em uma revisão contínua e
reinterpretação de nossos desejos e necessidades, pois o discurso prá-
tico não se refere à descoberta de nossos verdadeiros interesses, mas
é um procedimento que demanda a avaliação dos interesses em sua
potencial generalidade.
É importante salientar que os procedimentos de generalização de
perspectivas e necessidades não impõem a supressão de particularida-
des ou o esquecimento do problema do bem-viver, mas apontam o dis-
curso como um processo moral transformativo que nos permite uma
aproximação do universo do “outro”, possibilitando a emergência de
novos vínculos e de novos interesses. Como afirma Habermas, “se os
atores não trouxerem consigo, dentro de seu discurso, suas histórias de
vida individuais, suas identidades, suas necessidades e desejos, tradi-
ções e pertencimentos, o discurso prático será esvaziado de todo o seu
conteúdo” (1982, p.255)
Nesse sentido, os discursos não devem ser entendidos como ativi-
dades destinadas a encontrar regras que conectem diferenças isoladas,
mas como práticas necessárias à compreensão de como as diferenças se
sobrepõem e se interpenetram (Benhabib, 1996).

O discurso envolve mais do que um tratamento igual àqueles afe-


tados. O ponto de partida analítico da ética do discurso não é uma
concepção de soberania desconectada e isenta da individualidade,
mas a infra-estrutura comunicativa e intersubjetiva da vida social
cotidiana. Os indivíduos agem em relações de reconhecimento
62 mídia, ética e esfera pública

mútuo nas quais adquirem e afirmam sua individualidade e liber-


dade de forma intersubjetiva. No processo do diálogo, cada partici-
pante articula seus pontos de vista e interpretações de necessidades
e desempenha papéis ideais em uma discussão prática e pública.
Isso promove o quadro analítico no qual o entendimento da inter-
pretação das necessidades dos outros se dá por meio de um insight
moral e não da empatia. (Cohen e Arato, 1992, p.376)

A ética do discurso, como vimos, requer que consideremos nossos


interlocutores como pares e suas proposições como igualmente legí-
timas. Para que todos tenham chance de participar desse processo, é
preciso que, em situações de discurso prático, as pessoas formulem ra-
zões próprias e passíveis de serem compreendidas e aceitas; de iniciar
debates e interpretar suas necessidades de maneira reflexiva, expondo
seus interesses sob uma perspectiva generalizante. O igual tratamento
exigido nessa relação tende a procurar formas de inclusão no debate
que não sejam niveladoras de diferenças, permitindo que o “outro” seja
respeitado e reconhecido.
Se considerarmos que a construção de estratégias para solucionar
problemas que nos afligem, juntamente com a habilidade de selecionar
as melhores opções de ação, são o resultado de nossas interações
comunicativas - e não só de nossa reflexão interna -, podemos perceber
que as conversações desenvolvidas em espaços de convivência cotidiana
auxiliam os indivíduos não só a testarem suas escolhas, comunicando-as
aos outros, comparando-as e defendendo-as diante de questionamentos,
mas também os ajuda a se construírem como sujeitos políticos
autônomos.

A constituição comunicacional do sujeito político autônomo


Habermas (1987, 2010) afirma que o indivíduo se constitui na ação
discursiva e, nessa mesma prática produz, molda e modifica o contexto
social. A constituição do sujeito na teoria habermasiana implica que,
de um lado, ele deve buscar sua emancipação e autonomia através da
prática do discurso e da justificação pública e, ao fazer isso, ele passa a
contribuir para o progresso moral coletivo. Entretanto, de outro lado,
A ética dos processos
comunicativos 63

críticos de Habermas apontam que a busca da autonomia política via


justificação pública nos leva a pressupor a existência de atores moral e
linguisticamente competentes sem nos revelar o delicado e demorado
processo de desenvolvimento de habilidades comunicativas, expressi-
vas e cognitivas que leva o sujeito a posicionar-se diante de outros, a
elaborar e proferir argumentos com segurança e desenvoltura, a justi-
ficar e defender tais argumentos quando questionado. Além disso, as
estruturas institucionais, políticas e culturais, que deveriam oferecer
oportunidades de desenvolvimento e aprimoramento dessas habilida-
des são perpassadas por assimetrias de poder e coerções pouco temati-
zadas por Habermas (Kohn, 2000).
O sujeito habermasiano é resultado de um duplo movimento de
auto-realização: o primeiro é o da busca de uma autocompreensão
ética, que coloca o sujeito constantemente em relação a uma segunda
pessoa, uma vez que o sujeito (e seu projeto de vida) necessidade
da confirmação por parte de outros, sejam elas parceiros concretos
concretos ou possíveis em uma interação. O segundo movimento
abrange a emancipação alcançada pelo desenvolvimento da autonomia
política e de habilidades comunicativas de exposição argumentativa e
justificação públicas. Habermas não trata a autonomia como algo dado
aos indivíduos, nem como um pressuposto lógico ou uma pré-condição
empírica para a democracia. Ele a vê como uma possibilidade de
desenvolvimento do sujeito que está associada às relações sociais vistas
sob o aspecto das capacidades humanas para a auto-reflexão. O sujeito
auto-reflexivo é capaz de, primeiro, olhar para a sua trajetória de vida
como algo que possui continuidade, permitindo-o projetar objetivos
futuros e organizar o presente tendo em vista tais objetivos. E, segundo,
ele é capaz de fazer “um exame crítico de si mesmo e dos outros, de se
engajar em processos de troca de razões e chegar a julgamentos que
defende através de argumentos” (Warren, 1995, p.172).
De modo a melhor entender a noção de sujeito autônomo em
Habermas, consideramos importante fazer uma reflexão mais
detalhada acerca do conceito de autonomia. Além disso, a autonomia
é um princípio democrático e um processo de emancipação que se
configura a partir de dilemas éticos e morais.
64 mídia, ética e esfera pública

Um entendimento muito difundido do conceito de autonomia en-


fatiza sua conquista como fruto das ações empreendidas por um in-
divíduo para tomar suas decisões sem ser influenciado pelos outros.
Essa concepção, entretanto, leva à percepção da autonomia como sinô-
nimo de individualismo ou auto-suficiência, submetendo-a a critérios
liberais de ação. Na concepção liberal, o princípio da autonomia prevê
que “os indivíduos deveriam ser livres e iguais na determinação das
condições de suas próprias vidas” (Held, 1987, p.244)6. Uma freqüente
interpretação desse princípio entrelaça-se fortemente com as noções
liberais de autodesenvolvimento, autodeterminação e autogoverno.
Focaliza-se a capacidade independente de ação e construção do pró-
prio self que um indivíduo apresenta, e se tal capacidade encontra-se
livre de forças manipuladoras externas ou internas. Nesse sentido, a
autonomia, entendida como autogoverno, preza a habilidade que um
indivíduo possui de agir de acordo com desejos, valores e condições
que lhe são próprios.7
De acordo com essa vertente liberal, a autonomia necessária para
selecionar objetivos, preferências e desejos na base de uma avaliação
crítica exigiria, em primeiro lugar, que as desigualdades de riqueza
fossem remediadas, e que o indivíduo tivesse à sua disposição bens
materiais básicos como alimentação, vestuário, saúde, educação, etc.,

6. Para David Held, a autonomia envolve “a capacidade de deliberar, julgar, escolher


e agir de acordo com diferentes linhas de ação, tanto na vida privada quanto na
pública” (1987, p.244).

7. Tal visão se aproxima da idéia de que os indivíduos autônomos são aqueles que
dependem minimamente dos outros, uma vez que os caracteriza como aqueles que
devem agir sem constrangimento às suas escolhas e razões, e mesmo sobre o valor
que os outros conferem a elas. Assim, a autonomia teria como pressuposto um self
estável e transparente, cuja identidade e preferências não seriam formados na rela-
ção com os outros, mas através de uma ação reflexiva intra-subjetiva. Para Gerald
Dworkin, “a autonomia é concebida como uma capacidade de segunda-ordem das
pessoas para refletirem criticamente sobre suas preferências de primeira ordem,
desejos, vontades, etc. e a capacidade de aceitar ou preocupar-se em mudá-las à
luz de preferências e valores de uma ordem mais alta. É através do exercício dessa
capacidade que as pessoas definem sua natureza, dão significado e coerência às suas
vidas e adquirem responsabilidade pelo tipo de pessoas que são” (1988, p.20).
A ética dos processos
comunicativos 65

os quais irão permitir o desenvolvimento das capacidades requisita-


das pela vida pública. “Sem um mínimo de recursos as pessoas per-
maneceriam altamente vulneráveis e dependentes de outras, incapazes
de exercer plenamente uma escolha independente ou de se dedicar a
diferentes oportunidades colocadas formalmente diante delas” (Held,
1987, p.265).
Ao contrário das concepções liberais acima apontadas, argumenta-
mos que a capacidade de construir e conduzir a própria história não é
algo que se conquista isoladamente. A autonomia não está relacionada
ao individualismo ou à auto-suficiência, nem pode ser pensada de ma-
neira descolada de aspectos culturais e de socialização. Ao invés disso,
sua construção é intersubjetiva e exige que pensemos sobre: a) relações
de poder8; b) elementos ligados a valores, práticas e modos de subje-
tivação; c) experiência9 (Biroli, 2013); d) competências comunicativas
originadas nas redes interativas que as pessoas estabelecem umas com
as outras (Benhabib, 1986; Christman, 1988; Anderson, 2003; Esteves,
2003)10.
Com relação ao domínio da experiência, Biroli (2013) argumenta
que mesmo considerando as limitações impostas às escolhas dos su-
jeitos, é possível sustentar que as opções de ação que a eles se dispõem
valorizam sua experiência. As possibilidades de ressignificação da ex-
periência vivida, sem desconsiderar relações de poder, trazem para

8. “O foco nas hierarquias e relações de poder assimétricas faz com que as escolhas
sejam vistas não apenas como um fator de interação entre o indivíduo e as alternati-
vas socialmente disponíveis, mas como um desdobramento complexo dos padrões
de socialização, das relações nas quais os indivíduos estão posicionados e de como,
dados esses padrões e essa posição, configuram-se suas ambições, o horizonte das
possibilidades de ação e, de modo mais geral, sua capacidade de autodeterminação”
(Biroli, 2012, p.16).

9. É preciso, segundo Biroli, “reconhecer e valorizar experiências que não estão con-
tidas na dominação e que poderiam ser, assim, reveladoras da agência de indivíduos
dominados – naquilo que escapa justamente aos padrões e moldes socialmente es-
tabelecidos, com seus efeitos restritivos” (2013, p.102).

10. O indivíduo autônomo é tido, geralmente, como autodirigido e autocriador, isto


é, “ele deve ser capaz de se ver como autor de sua própria história e de suas constru-
ções da identidade pessoal”(Cooke, 1999, p.25).
66 mídia, ética e esfera pública

o centro da reflexão a capacidade de experimentar o próprio corpo11


como objeto de leis e regras, mas também como protagonista na defi-
nição da posição da mulher no mundo. A tensão entre discursos, ide-
ologias e representações hegemônicas e, de outro lado, a singularidade
das experiências vividas, corporificadas e narradas dão a ver que não se
pode reduzir a zero o poder de agência dos sujeitos. Nesse sentido, pro-
jetos identitários combinam singularidades e condições comuns, in-
vestimento pessoal e contribuições oriundas das relações, revelando uma
fronteira entre “as determinações estruturais e as diferentes formas de
deslocamento que se impõem sem anulá-las” (Biroli, 2013, p.89). Posi-
cionamentos e localizações sociais são diversas e permitem fissuras nos
modos de reprodução da opressão.12
Seguindo essa perspectiva, adotamos uma concepção de autonomia
individual que ressalta as habilidades que os indivíduos possuem de
tomar parte em um exame crítico de si e dos outros - avaliando racio-
nalmente suas posições – de participar em processos de troca de razões,
de sustentar seus interesses e justificá-los reciprocamente com razões e
argumentos próprios e públicos (Warren, 2001, p.63). A formação da au-
tonomia individual envolve, portanto, a adoção de uma atitude reflexiva

11. “O corpo é o que as relações concretas e o ambiente social permitem que seja,
mas ganha existência também à luz dos projetos e formas de atuação dos indivíduos
(em relações de engajamento com os outros)” (Biroli, 2013, p.88). “As marcas de
gênero não podem ser evitadas, mas o modo como o gênero marca uma vida indi-
vidual é específico e variável” (Biroli, 2013, p.89).

12. “As críticas à valorização da singularidade feminina jogam luz sobre o fato de que
a vivência específica das mulheres, em papéis convencionais de gênero, corresponde
ao fortalecimento de determinadas características que não são em si negativas, mas
que implicam a negação ou enfraquecimento de características e de projetos de
vida alternativos” (Biroli, 2013, p.93). Ocorre algo como “a vivência singular dos
padrões de opressão – que organizam representações do feminino e potencializam
formas de autoidentificação, de identificação dos outros e pelos outros. A diferença
corresponde, portanto, a padrões que caracterizam e identificam na mesma medida
em que constrangem e hierarquizam.” (Biroli, 2013, p.93). A relação entre identi-
dades, preferências aprendidas e opressão enfrenta um dilema: “Como distinguir
entre as experiências e perspectivas específicas e a vocalização de preferências que
expressam padrões socialmente reproduzidos e desvantajosos, mas moldam com-
portamentos e formas eficazes de autoidentificação?” (Biroli, 2013, p.94)
A ética dos processos
comunicativos 67

em relação às próprias necessidades e desejos que não se restringe a um


exercício interno, mas que só se concretiza em processos de trocas de
razões em que os indivíduos devem: a) expressar publicamente suas ne-
cessidades aos outros; b) elaborar justificativas aceitáveis para suas pró-
prias ações cotidianas; e c) reconhecer seus interlocutores como dignos
de valorização e consideração (Cooke,1999, p.26).
Se os julgamentos são considerados autônomos quando derivados
não só da atividade crítica internalizada dos sujeitos, mas, sobretudo,
quando justificados na troca de razões com os outros, podemos
dizer que há uma relação de complementaridade entre a autonomia
individual e a autonomia política (ou pública). A autonomia individual
requer que os indivíduos desenvolvam a habilidade de fazer distinções
entre o bom e o ruim, entre o que é digno de valor ou não, o que é
principal e o que é secundário, o que é justo ou injusto (Pateman,
2004). No âmbito da autonomia pessoal, diferentes autores (Oshana,
2003; Buss, 2002; Santiago, 2005; May, 1994; Baynes, 1996) destacam as
capacidades e habilidades de avaliação crítica dos indivíduos diante do
leque de escolhas consideradas desejáveis de que dispõem para seguir
um projeto de vida próprio a partir daquilo que entendem por “bem-
viver”. Para Warren, a construção desse tipo de autonomia exige que
os sujeitos “denominem, interpretem, transformem e censurem suas
necessidades, impulsos e desejos, expressando-os aos outros sob a forma
de interesses e compromissos” (cf. 2001, p.63). Ele revela o quanto a
construção da autonomia individual está ligada ao plano relacional
baseado na linguagem, isto é, na troca lingüística que permite produzir
novas definições das situações, reatar os laços sociais e de desenvolver,
de maneira consciente e reflexiva, as “capacidades dos indivíduos de
participarem de um exame crítico de si mesmos e dos outros e de tomar
parte em processos argumentativos” (Warren, 2001, p.62).
Maeve Cooke (1999) e Charles Taylor (1997) também salientam que
o indivíduo autônomo deve ser capaz de encontrar e definir soluções
para seus problemas, transformando meios (ainda que escassos) em
fins e comportando-se como um avaliador crítico. A ação dos sujeitos
“falha em ser autônoma se as preferências sob as quais alguém age
estão enfaticamente dadas pelas circunstâncias e não determinadas
pelo próprio agente” (Cohen, 1997, p.77).
68 mídia, ética e esfera pública

Já a autonomia política é definida por Warren como a “capacidade


de produzir julgamentos coletivos e dar razões para sustentar compro-
missos recíprocos” (2001, p.65). A autonomia política envolve, por-
tanto, a proteção e a manutenção do status de participante que cada
um possui na atividade coletiva de justificação pública; a capacidade
que cada indivíduo possui de se ver como moralmente responsável por
seus julgamentos, ações e auto-entendimentos, no sentido de ser capaz
de explicá-los aos outros se houver necessidade (Cohen, 1997).
Existem vários pontos de vista acerca da natureza da relação
estabelecida entre os dois tipos de autonomia. Na concepção liberal, a
autonomia política seria uma conseqüência da autonomia individual,
ou seja, para alcançá-la, primeiro deveriam ser garantidos direitos
de inclusão, igualdade e reconhecimento e, só então, os indivíduos
se tornariam aptos a participar de processos políticos deliberativos
(Cohen, 1999). Deriva daí o entendimento de que os direitos não seriam
o fruto do livre debate entre os indivíduos, mas condições apriorísticas
de inclusão pública. Na concepção republicana, a autonomia privada
torna-se dependente das decisões democráticas coletivas, submetendo
a liberdade ao julgamento popular sobre os melhores meios de alcançar
fins coletivos.
Habermas (1996a, 1997) rejeita a idéia de que a autonomia privada
seja mais básica ou menos dependente de processos relacionais que a
autonomia política. Em sua abordagem da co-originalidade, ele ressalta
que cada tipo de autonomia é requerido para explicar o outro e ambos
são igualmente fundamentais. Segundo ele, cidadãos autônomos
precisam determinar quais as políticas sociais são mais consistentes
e respondem mais adequadamente às suas demandas, levando-se em
conta o contexto cultural, econômico e social em que produzem suas
relações e seu auto-entendimento. Ou seja, “os indivíduos, enquanto
sujeitos do direito, só conseguirão autonomia se entenderem-se e
agirem como autores dos direitos aos quais desejam submeter-se como
destinatários” (1997, p.163).
Cohen (1999) e Rummens (2006) criticam a visão de Habermas de
que a co-originalidade seria possível, porque, segundo ele, aos cidadãos
são asseguradas legalmente liberdades iguais que, ao mesmo tempo, os
A ética dos processos
comunicativos 69

protegem em sua integridade e os facultam a capacidade de participar


paritariamente de processos políticos deliberativos. Para esses auto-
res, Habermas apresenta uma visão que requer grande imparcialidade
no reconhecimento legal de todos como pessoas livres e iguais. Mas
a igualdade requerida pelos processos de troca de razões em público
depende de que os participantes concebam-se uns aos outros como
formal e substantivamente iguais. O reconhecimento dos interlocuto-
res como “parceiros potenciais” de debate, moralmente responsáveis e
capazes, é algo que, para Cohen (1999), não pode ser definido unica-
mente pela lei, pois depende do modo como os interlocutores atendem
aos princípios que formam as condições favoráveis ao desenvolvimento
da deliberação.
Ao contrário do que defende a concepção liberal, os direitos resul-
tam das tensões relacionais e conflitivas entre diferentes atores que
buscam o reconhecimento da validade de suas demandas. Eles se ori-
ginam na relação intersubjetiva, não podendo, portanto, precedê-la.
Nesse sentido, a autonomia política precisa da autonomia individual,
porque requer uma ordem legal que é legitimada somente se assegura
liberdades iguais. Por sua vez, a autonomia individual requer a auto-
nomia política, porque a regulação legal da autonomia individual só
é legitimada se emerge de um processo discursivo que assegura os direitos
políticos (Cohen, 1999; Rummens, 2006)13. Como propõe Warren, “a
autonomia individual requer a autonomia política, mas, do mesmo
modo, a autonomia política depende completamente da proteção dos
indivíduos como pessoas privadas, permitindo, assim, a independên-
cia necessária para que eles se engajem como iguais no processo de jul-
gamento público” (2001, p.68). A relação de complementaridade que
existe entre a autonomia individual e a autonomia política revela que

13. “O reconhecimento da autonomia pública dos cidadãos pressupõe sua autono-


mia privada, pois engajar-se na deliberação é um exercício significativo somente se
descartamos fontes tradicionais de autoridade e reconhecemos que cada um tem o
direito de construir o próprio projeto de bem-viver. De modo semelhante, o reconheci-
mento adequado da autonomia privada implica a necessidade de processos de de-
liberação nos quais as pessoas afetadas, os outros concretos dão forma ao conteúdo
específico dos direitos que acordam uns aos outros” (Rummens, 2006, p.478).
70 mídia, ética e esfera pública

uma não precede a outra, mas se desenvolvem paralelamente com o


auxílio do sistema dos direitos (Habermas,1997; Baynes, 1996).14
É importante destcar que a conquista da autonomia, tanto in-
dividual quanto pública, depende de componentes externas aos sujei-
tos, ou seja, de dimensões comunicativas, sociais e institucionais que
os permitam participar da vida pública, sendo respeitados, ouvidos e
considerados. Existem vários pontos de vista acerca da natureza da re-
lação estabelecida entre esses dois tipos de autonomia. Não se deve es-
tabelecer fronteiras rígidas entre eles, mesmo porque a construção da
autonomia individual e política depende do reconhecimento recíproco
conferido ao status moral de cada indivíduo. Quando nos referimos à
autonomia, temos em mente um processo que abrange tanto o exercí-
cio das capacidades avaliadoras críticas individuais, quanto o exercício
público e político da troca de razões e justificativas essenciais à for-
mação do cidadão. Como enfatiza Mark Warren (2001), a autonomia
depende da e requer a participação em processos intersubjetivos de
troca de razões baseados no emprego e aperfeiçoamento de competên-
cias comunicativas que não existem como propriedades individuais,
mas como parte de nossas relações de reconhecimento recíproco. As
relações capazes de contribuir para a construção da autonomia devem
estar baseadas em um tipo de igualdade moral que conceda às identi-
dades e aos julgamentos produzidos pelos indivíduos a devida consi-
deração alheia.
Para Habermas (1996), a autonomia necessária para a participação
de discussões no espaço público está vinculada ao caráter intersubjetivo
e conflitivo da construção de direitos, os quais estariam baseados no
reconhecimento recíproco de indivíduos que cooperam entre si para
a produção das normas que os vinculam. A construção da autonomia

14. Considerar a possibilidade de uma co-originalidade das autonomias individual


e política implica assumir, como assinala Rummens, que uma delas constitui-se
como “condição ou pressuposição pragmática transcendental para o reconheci-
mento e a possibilidade da outra” (2006, p.478). Entretanto, o reconhecimento da
co-originalidade é muito vago para explicar os obstáculos que se interpõem à cons-
trução de cidadãos autônomos em sociedades marcadas por profundas desigualda-
des econômicas como a brasileira.
A ética dos processos
comunicativos 71

exige, portanto, o respeito mútuo e uma igual consideração pelos inte-


resses de todos.
Sob esse aspecto, a autonomia pode ser concebida como um bem
político e não inerente aos cidadãos, ou seja, um bem que é construído
nas relações intersubjetivas e que exigem que os sujeitos sejam respei-
tados e percebidos como cidadãos para que recebam a devida conside-
ração de seus julgamentos e interesses, sendo capazes de sustentá-los,
tanto individual quanto publicamente, por meio de razões resultantes
da investigação conjunta dos interesses de cada participante (Warren,
2001). Um sujeito político autônomo desenvolve as seguintes capaci-
dades: a) adoção de uma atitude reflexiva com relação às próprias ne-
cessidades e aos desejos; b) tomada de decisão entre alternativas de
expressão de suas necessidades frente aos outros, mediante a troca de
pontos de vista; c) elaboração dos próprios meios e estratégias de en-
contrar e propor soluções para suas próprias ações cotidianas; d) elei-
ção de objetivos e sua sustentação pública.
A construção da autonomia demanda o envolvimento e a participa-
ção dos cidadãos em redes de relações comunicativas com os outros,
quando se trata, por exemplo, de compreender problemas conjunta-
mente, de discutir prioridades e necessidades, de justificar as próprias
opções e concepções de bem-viver (Cooke, 1999, Habermas, 1997;
Warren, 2001). Nesse sentido, a deliberação pública e as conversaões
cívicas podem fortalecer a autonomia.
A questão da formação do sujeito político em Habermas envolve,
de um lado, a busca pelo autoconhecimento e pela autorealização via
constituição da identidade e autonomia política e, de outro, a tensão
que se estabelece entre o desenvolvimento de capacidades comunica-
tivas e os constrangimentos (institucionais, simbólicos, políticos, eco-
nômicos, etc.) que minam as possibilidades de transformação do su-
jeito em interlocutor paritário, moralmente digno de ser considerado
e reconhecido como cidadão. O fato de esses constrangimentos serem
capazes de impedir que as pessoas se tornem interlocutores em pé de
igualdade deriva não apenas da dependência econômica e da domina-
ção política, mas também da “internalização do direito que se tem de
falar ou de não falar, da desvalorização do estilo de discurso de alguns
72 mídia, ética e esfera pública

indivíduos e da elevação de outros” (Young, 2001, p.370). Nesse senti-


do, o que talvez não esteja claro na abordagem habermasiana é o pro-
cesso através do qual um sujeito ordinário se torna “interlocutor”, se
sente capaz de tomar a palavra e de integrar uma deliberação pública.
Uma última observação diz respeito ao fato de que a construção
da autonomia depende tanto da participação na interação linguística
quanto do reconhecimento recíproco entre os interlocutores. Não po-
demos deixar de salientar que a conquista da autonomia política, em
seu viés relacional, depende de componentes externas aos sujeitos, ou
seja, de dimensões comunicativas, sociais e institucionais que, consi-
deradas as assimetrias de poder e de discurso, os permitam participar
da vida pública, sendo respeitados, ouvidos e considerados. Assim,
para ser autônomo, é preciso ser reconhecido como parceiro do de-
bate e como indivíduo amparado por um sistema de direitos funda-
mentais que protege os indivíduos em sua integridade, provendo-lhes
as condições necessárias para que entrem como iguais no processo de
julgamento público (Warren, 2001).15 Ao mesmo tempo em que esse
sistema abstrato de direitos reflete as condições morais imprescindíveis
à dinâmica deliberativa (o reconhecimento da igualdade moral dos ci-
dadãos), ele precisa ser atualizado através do processo democrático
e deliberativo no qual os indivíduos reconhecem-se reciprocamente
como dignos de respeito e valor (Rummens, 2006). Para ser autônomo
é preciso também ser reconhecido.

Reconhecimento social e experiência moral


Todas as nossas práticas, sejam de ordem discursiva, gestuais, senti-
mentais, ético-políticas, se processam nos espaços de nossa convivên-
cia diária. A multiplicidade de contatos que travamos com os outros
(nossos pares) está intrinsecamente ligada à nossa ação referenciada

15. Rummens (2006) ressalta que os participantes do processo deliberativo não se


vêem vinculados por um sistema existente de direitos, embora reconheçam que
esse sistema estabelece o quadro para uma deliberação livre entre iguais. Ao mesmo
tempo em que pressupõem a existência das leis, elas são um objeto potencial de
julgamento deliberativo.
A ética dos processos
comunicativos 73

em quadros de sentido compartilhados. Construímos posicionamentos


e interagimos no mundo sempre levando em consideração, de um lado,
nossas intenções primeiras16 e, de outro lado, a receptividade e o en-
tendimento de nossas ações perante os outros. É na vida cotidiana que
percebemos a força das interações comunicativas, como elo vinculante
de sujeitos que agem reciprocamente e que devem aceitar o outro como
parceiro fundante das relações sociais. A construção destas últimas só
é possível porque existe um fluxo de crenças e idéias compartilhadas
que se renova constantemente nas relações intersubjetivas.
É no cotidiano que a comunicação com o outro se fortalece, se redefine
e redimensiona os sujeitos e o meio no qual se inserem. Contudo, devemos
pensar que os sujeitos que se inserem nas práticas comunicativas do
cotidiano desejam ter sua singularidade reconhecida, suas habilidades
devidamente respeitadas e seu modo de viver incluído na “gramática”
dos estilos de vida aprovados pela sociedade. Nesse sentido, os sujeitos
elaboram demandas e reivindicações de reconhecimento social por meio
das trocas discursivas e da linguagem. Por isso, nos realizamos através
da linguagem e do uso que dela fazemos para nos vermos inseridos
dentro de uma comunidade de sentidos, na qual negociamos pontos de
vista para além de nossas diferenças. Nessa troca, um parceiro “deve ser
capaz de dar seu apoio ao mundo do outro (embora suas experiências
interiores sejam altamente individuais”(Bauman, 1990, p.212).
A individualidade dos sujeitos, suas experiências próprias, crenças
e ações só fazem sentido quando expostas ao outro, quando reforçadas
pelo apoio solidário vindo da alteridade. O reconhecimento do mundo
do outro deve envolver, além de laços afetivos, éticos e políticos, uma
comunicação ligada ao engajamento dos sujeitos sociais na produção
de um mundo comum. Nesse mundo partilhado, eu me apresento diante
do outro e espero dele compreensão, uma certa abertura ao diálogo,
pois é através dessa relação que as narrativas identitárias se moldam e
se expressam, relações se estreitam ou são cortadas.

16. Lembrando que muitas de nossas intenções surgem ou se modificam no decurso


das interações das quais participamos.
74 mídia, ética e esfera pública

Aqui podemos nos lembrar da noção de “outro generalizado”17 ou


“outro significante” proposta por Mead. Esta noção foi também consi-
derada por Axel Honneth (1995), em seus estudos acerca do reconhe-
cimento. Honneth acredita que na medida em que a consciência da
individualidade dos sujeitos cresce, eles se tornam mais vulneráveis à
experiência do desrespeito, a qual pode causar sérios danos ao rela-
cionamento que cada indivíduo mantém com seu respectivo projeto
de identidade e com a coletividade. Nessa imagem normativa do self –
algo que Mead chamou de Mim – todo indivíduo depende da constante
influência e reconhecimento vindos do Outro. A relação de reconheci-
mento recíproco nos ensina que um indivíduo deve aprender a se ver
sob a perspectiva dos outros parceiros da interação.
O que devemos observar, então, é que a maneira pela qual nos
posicionamos frente ao outro, oferecendo nossa individualidade ao
perscrutamento alheio, obedece muito menos a regras explícitas, ins-
titucionalizadas, do que a conveniências implícitas, acordos tácitos
de comportamento subentendidos e tidos como moralmente certos e
“bons”. Tais acordos de conveniência não se separam do mundano, do
rotineiro, dos significados compartilhados cotidianamente no mundo
da vida18, mas fazem parte do processo de socialização humana.
Habermas conceitua o mundo da vida como sendo um conjunto

17. Cohen e Seyla Benhabib (1986) afirmam que o princípio discursivo é excessi-
vamente imparcial, uma vez que exige que os sujeitos assumam a perspectiva do
“outro generalizado” (ideal role taking), buscando entender a perspectiva dos outros
ultrapassando as suas próprias. Benhabib afirma que, ao invés do outro generaliza-
do, os participantes da deliberação deveriam se preocupar com o “outro concreto”,
ou seja, aquele que não precisa anular suas características individuais para construir
o bem comum (1986, p.341).

18. “O mundo da vida é estruturado por tradições culturais e ordens institucionais


assim como pelas identidades que originam-se dos processos de socialização. Por
esta razão, ele não se constitui como uma organização à qual os indivíduos perten-
cem como membros, nem uma associação na qual eles se encontram, nem um cole-
tivo composto por participantes individuais. Ao invés disso, práticas comunicativas
cotidianas nas quais o mundo da vida está centrado são nutridas pelos modos de in-
teração da reprodução cultural, da integração social e da socialização. Tais práticas,
por sua vez, estão enraizadas nesses modos de interação” (Habermas, 1998, p.251).
A ética dos processos
comunicativos 75

de “tradições, embebidas em formas de vida culturais, entrelaçadas


com histórias de vida individuais” (1982, p.250). E ainda, como “um
estoque de modelos interpretativos culturalmente transmitidos, lin-
güisticamente organizados e intersubjetivamente compartilhados”
(1987, p.124). O mundo da vida aparece como “um conhecimento de
fundo culturalmente transmitido, pré-reflexivamente garantido, intui-
tivamente disponível a partir do qual os participantes da comunicação
elaboram suas interpretações” (1982, p.271). Assim, o mundo da vida
proporciona elementos que auxiliam a construir formas de convivên-
cia, a demarcar a posição dos agentes, bem como os auxiliam a definir
as questões em debate.
E, se num primeiro momento as regras de conveniência são aprendi-
das, posteriormente elas se tornam inconscientes, aflorando em nossas
interrelações despercebidamente. O que é “bom” para um indivíduo
ou comunidade está presente nesse código de conveniências e valores
constituídos por um “nós” na prática cotidiana. Mas, “quando a norma
se revela incapaz de redimir conflitos ou quando a sua própria aplica-
ção gera conflitos, é necessário apelar para a sensibilidade em relação
às situações particulares, ou seja, ao domínio da ética” (Esteves, 1998,
p.166).
Códigos de desvalorização e categorização inferiorizada do “outro”
muitas vezes são reafirmados por essas regras de conveniência que
raramente são questionadas em espaços públicos de discussão.
Aqueles que insistem em manter identidades e códigos tidos como
inconvenientes ou impróprios tendem a ser excluídos de todos
os âmbitos legais, estéticos, políticos e afetivos da comunidade.
São os “estranhos”, ou seja, aqueles que, de acordo com Bauman19,
lançam dúvida sobre as certezas e abalam os códigos critalizados na
comunidade. Deste modo, o “estranho”, nos impõe um desafio: o de

19. “O estranho (...) traz para o círculo íntimo da proximidade o tipo de diferença
e alteridade que são previstas e toleradas apenas à distância – onde podem ser des-
prezadas como irrelevantes ou repelidas como hostis. O estranho representa uma
‘síntese’ incongruente e portanto ressentida ‘da proximidade e da distância.’ Sua
presença é um desafio à confiabilidade dos limites ortodoxos e dos instrumentos
universais de ordenação.” (Bauman, 1990, p.69).
76 mídia, ética e esfera pública

sacudir formas fixas de sociabilidade, principalmente aquelas que os


consideram como inimigos, como geradores da desordem e do medo.
O encontro, mediado ou face a face, entre diferentes identidades
marca a importância adquirida pela dimensão do reconhecimento
social e de um processo de discussão coletiva capaz de apontar
alternativas de solução para conflitos e modos de opressão e desrespeito.
Aqueles que sofrem injustiças simbólicas anseiam não só por novas
formas de representação, mas pelo reconhecimento de suas diferenças.
No entanto, a comunidade resiste em admitir e (re)conhecer aqueles
indivíduos que não se adeqüam às regras implícitas de conveniência que
regem a gramática dos estilos de vida sociais. Este desafio requer uma
percepção sensível das diferenças de opinião e de gostos, pois a ética,
enquanto reflexão crítica acerca de preceitos morais, diz justamente de
um questionamento, reformulação e justificação das condutas por nós
adotadas em busca do bem-viver. Tal busca não se refere à uma posição
unicamente individual, mas já pressupõe o encontro com o outro. A
vida que cada um projeta para si tem considerar necessariamente os
outros e os contextos institucionais de afirmação e delineamento de
nossas relações.
A obrigação social de apresentar e representar o “eu” para o “ou-
tro” na vida cotidiana, de rastrear todas as ofensas que lhe são feitas e
zelar pela reparação das ofensas inflingidas ao “eu e ao “outro” requer
uma forma de comunicação na qual os interlocutores se posicionam
a partir de esquemas cognitivos e sociais para atribuir ou negar valor
aos outros. Na relação comunicativa de reconhecimento mútuo preva-
lece o conflito, uma tensão que busca negociar quais são os parâmetros
que são utilizados para atribuir um valor aos sujeitos, seja no plano
das relações privadas, jurídicas ou sociais. O reconhecimento social
recíproco reflete o momento partilhado da experiência moral, na qual
os indivíduos se colocam como portadores de necessidades e buscam
compreensão e aprovação/valorização junto aos outros.

O vínculo entre a experiência de reconhecimento e a atitude do


sujeito em relação a ele mesmo resulta da estrutura intersubjetiva
da identidade pessoal: os indivíduos só se constituem como pessoas
quando aprendem a se ver a partir do um ponto de vista de um
A ética dos processos
comunicativos 77

outro aprovador ou encorajador, como seres dotados de qualidades


e capacidades positivas (Honneth, 2003, p.273).

Honneth (2003) e Fraser (1997) salientam que a busca por reconhe-


cimento envolve o questionamento e o exame desses padrões e códigos
nos quais nos baseamos para atribuir valor aos outros. Nesse sentido, o
reconhecimento está diretamente relacionado ao status social atribuí-
do aos indivíduos, ou seja, se eles são reconhecidos como parceiros de
debate moralmente capazes de formularem e sustentarem pontos de
vista e posições na esfera pública, ou se eles são vistos como incapazes
de contribuírem para o progresso coletivo, sendo tratados como infe-
riores e dignos de desprezo:

Quando esses padrões constituem atores como pares, capazes de


participarem em condições de igualdade um com o outro na vida
social, então podemos falar de reconhecimento recíproco e igual-
dade de status. Quando padrões institucionalizados de valor cultu-
ral constituem alguns atores como inferiores, excluídos, totalmen-
te outros, simplesmente invisíveis, isto é, menos que um parceiro
completo na interação social, então nós falaremos de falso reco-
nhecimento e status subordinado (Fraser, 1997, p.29).

Quando formas de desrespeito causam danos morais nos sujeitos,


não só o seu auto-entendimento fica comprometido, mas suas possibi-
lidades de uma inserção social marcada pela confiança recíproca, pelo
respeito moral e pela estima social. Honneth ressalta que a vulnerabi-
lidade dos sujeitos, ligada à implicação moral do reconhecimento mú-
tuo, torna-se especialmente evidente quando ganhamos clareza acerca
dos danos morais que “ferem as pessoas em uma compreensão positiva
de si mesmas” (2003, p.213). Assim, a integridade e a identidade dos
indivíduos depende do estabelecimento de padrões de relacionamento
intersubjetivo capazes de assegurar assentimento, aprovação e valori-
zação do outro.
Mas, tanto para Habermas quanto para Honneth, é a violação do
reconhecimento que nos permite perceber a qualidade moral de uma
situação que nos atinge. É quando a integridade física e moral de
nosso próximo está em risco que sentimentos morais de solidariedade
78 mídia, ética e esfera pública

e responsabilidade podem dar origem a questionamentos e lutas por


respeito e estima social.
O reconhecimento social recíproco reflete o momento partilhado da
experiência moral, na qual os indivíduos se colocam como portadores
de necessidades e buscam compreensão e aprovação junto aos outros.
A auto-realização dos sujeitos e a evolução moral da sociedade se
entrelaçam de modo a evidenciar que, de um lado, a realização de si não
pode se restringir à interpretação de certos ideais de vida particulares
e, de outro lado, que a sociedade deve alimentar padrões simbólicos de
julgamento que, ao invés de depreciar e estigmatizar, apontem caminhos
para a construção positiva de identidades individuais e coletivas.

O vínculo entre a experiência de reconhecimento e a atitude do


sujeito em relação a ele mesmo resulta da estrutura intersubjetiva
da identidade pessoal: os indivíduos só se constituem como pesso-
as quando aprendem a se ver a partir do um ponto de vista de um
outro aprovador ou encorajador, como seres dotados de qualidades
e capacidades positivas (Honneth, 2003, p.273).

Quando formas de desrespeito causam danos morais nos sujeitos,


não só o seu auto-entendimento fica comprometido, mas suas possibi-
lidades de uma inserção social marcada pela confiança recíproca, pelo
respeito moral e pela estima social.

Ética ou Moral?
Uma questão que se alia à discussão sobre o reconhecimento diz
respeito aos contrastes e divisões estabelecidos entre problemas re-
lativos à ética e problemas relativos à moral. Para Habermas (2004),
como vimos, a dimensão ética abrange todas as questões relacionadas
a concepções da “boa vida”, ou “bem viver” (formuladas a partir de
auto-avaliações e do auto-entendimento de indivíduos e grupos parti-
culares), enquanto questões morais dizem respeito ao que é igualmente
bom para todos.
Nesta divisão, o reconhecimento seria um processo pertencente tanto
ao campo da ética, quanto da moral. De um lado, o reconhecimento
A ética dos processos
comunicativos 79

está ligado ao florescimento do self em condições que assegurem auto-


confiança, auto-respeito e auto-estima. De outro, se pensarmos que
as demandas por reconhecimento envolvem, sobretudo, questões de
desrespeito, dominação cultural, violência e marginalização, podemos
perceber que se trata também de uma questão de justiça. Apesar de
existir uma separação entre questões entendidas como pertencentes à
“boa vida” (que não se submetem à sistema legislativo mas devem ser
consideradas em conexão com diversos modos e projetos de vida) e
questões de justiça, Habermas (2004) não descarta a possibilidade de
interseção entre esses dois domínios, principlamente se pensarmos
que as minorias existentes em sociedades democráticas plurais, lutam
pela revisão de normas e leis, a partir de suas próprias perspectivas e
concepções éticas. Ele salienta que decisões ético-políticas têm sua
regulação marcada pela identidade coletiva de um grupo de cidadãos e
podem alimentar lutas culturais nas quais minorias desrespeitadas lutam
contra uma cultura majoritária e insensível a seus problemas. Segundo
Habermas, o que inicia a luta não é a neutralidade ética da ordem legal,
mas o fato de que toda comunidade legal e todo processo democrático
para atualizar e rever direitos é inevitavelmente permeado pela ética.
De acordo com Iris Young, gestos, observações informais, hábitos,
sentimentos, reações inconscientes, julgamentos de beleza ou feiúra,
de simpatia ou antipatia são dificilmente considerados como argumen-
tos que justifiquem julgamentos normativos de ordem moral (1990,
p.149). Ela acentua ainda que, para o paradigma dominante da teoria
moral, as questões consideradas devem ter relação direta com a ação
deliberada (voluntária ou intencionada). Portanto, um dos principais
objetivos da teoria moral é descobrir princípios que justifiquem uma
ação ou que compõem obrigações. As alternativas possíveis para o de-
senrolar de uma ação estariam explícitas, bastando escolher qual seria
a mais conveniente. Young defende que uma concepção de justiça mais
abrangente não deveria descartar questões que conduzem a formas de
opressão capazes de desvalorizar, diminuir e estigmatizar grupos ou
indivíduos. Assim representações estigmatizantes que circulam ampla-
mente em conteúdos midiáticos e enquadramentos discursivos deve-
riam ser tematizadas e questionadas coletivamente.
80 mídia, ética e esfera pública

A mídia como espaço deliberativo via construção


de enquadramentos
Em sociedades plurais, vários grupos e indivíduos lutam pelo reco-
nhecimento de seu status enquanto sujeitos capazes de formular um
ponto de vista e de defendê-lo na esfera pública. Nesse sentido, o espa-
ço discursivo que se constitui e se desdobra nos discursos mediáticos
reúne e coloca em confronto perspectivas enquadramentos diversos,
elaboradas com base nas experiências subjetivas, dando origem a um
processo de esclarecimento recíproco. Tal processo é fundamental para
que as representações simbólicas culturalmente institucionalizadas
que norteiam as interações comunicativas sejam revistas e reformu-
ladas, trazendo questões morais de interesse coletivo para um amplo
debate público.
A concepção do espaço de visibilidade mediática como espaço de
debate e deliberação pode ser uma forma relevante de mostrar que a
renovação do vínculo social e normativo que mantemos uns com os ou-
tros nas práticas comunicativas cotidianas requer o fortalecimento dos
mecanismos de validação e legitimação de regras, em um processo no
qual os interlocutores se percebam mutuamente como parceiros dialógi-
cos capazes de interpretar enquadramentos em disputa e de apresentar/
justificar racionalmente suas ações, suas necessidades e seus desejos .
Os agentes mediáticos, ao mesmo tempo em que selecionam falas
e discursos a ganharem visibilidade, apresentam a capacidade de reu-
nir as “vozes” de atores diferenciados, articulando argumentos e ques-
tões em focos temáticos de modo coerente. Como acentua Habermas
(2006), o sistema dos media captura e relaciona opiniões produzidas
por vários tipos de atores, desde políticos até os cidadãos comuns. O
entrecruzamento de diferentes perspectivas no espaço discursivo de
visibilidade mediada nos oferece a oportunidade de avaliá-lo também
como arena discursiva de conflitos pontuais e/ou disputas de pontos de
vista a longo prazo.20

20. Considerar o espaço mediático como um âmbito de circulação de perspectivas


e pontos de vista variados implica também reconhecer que os media, ao praticarem
uma seleção de certas fontes e proposições, e ao conferirem visibilidade e destaque
A ética dos processos
comunicativos 81

Aplicada à tematização e enquadramento de questões políticas con-


temporâneas, a ética do discurso enfatiza a importância de se analisar
o modo como os indivíduos se acham representados nos discursos pú-
blicos; a necessidade de se conectar a experiência particular de um in-
divíduo ou grupo a um princípio ou ponto mais geral; e a centralidade
da consideração da experiência alheia.
Nesse sentido, a publicização de uma determinada questão no espaço
de visibilidade mediada não só permite sua generalização a um público
múltiplo, ampliado e capaz de interpretar criticamente as mensagens,
de expressar suas opiniões e contestar aquelas que já foram expressas,
mas, também, promove um intenso fluxo de discursos que se interpelam
e chamam por esclarecimentos recíprocos. Acreditamos ser possível,
então, perceber e avaliar o espaço de visibilidade mediada como um
contexto de entrecruzamento e enfrentamento de diferentes proposições
e pontos de vista (Wessler, 2008; Maia, 2008; Marques, 2007). Ainda que
saibamos que o espaço de visibilidade mediada seleciona e privilegia
discursos e pontos de vista de acordo com estratégias e diretrizes
pessoais e institucionais, ele se configura atualmente como espaço para
o qual convergem argumentos e fluxos de informação vitais para o
funcionamento das esferas públicas (Habermas, 2006).
Segundo Adam Simon e Michael Xenos (2000), no debate mediado,
vários atores competem entre si para definir a situação. Cada um dos
argumentos e demandas de validade feitos por esses atores são “abrigados”
em diferentes enquadramentos de modo que uma competição entre
diferentes argumentos ocasiona também uma competição entre
enquadramentos. Na verdade, isso nos revela que os enquadramentos não
podem ser reduzidos a tópicos singulares ou expressões cuja “saliência”
ativa a memória das audiências. Mais do que uma “idéia organizadora
central ou roteiro que provém sentido” (Gamson; Modigliani, 1989,
p.57), o enquadramento é um processo de desvelamento e construção
discursiva de uma questão política ou controvérsia pública (Entman,
1993; Porto, 2001, 2007).

a apenas certos aspectos dos acontecimentos, privilegia apenas alguns segmentos


sociais em detrimento de outros (Habermas, 1997, p.351).
82 mídia, ética e esfera pública

A presença dos enquadramentos no espaço discursivo mediático


enfatiza a importância da identificação dos “temas” e “enredos” (story
lines) delineados pelos meios de comunicação, os quais agrupam pon-
tos de vista, esboçam diferentes nuances do problema e orientam a jus-
tificação pública que se estabelece entre os participantes do processo
de debate. O enquadramento mediático, entendido como eixo orga-
nizador de diferentes atores e seus enunciados acerca de uma contro-
vérsia pública, dispõe também um roteiro21 de interpretação que pode
ser acionado a qualquer momento pelos atores interessados. O enqua-
dramento mediático envolve, portanto, uma atividade coletiva de de-
finição de um problema público, na qual eixos discursivos e temáticos
são responsáveis, ao mesmo tempo, por reunir argumentos afins, e por
organizar as tensões entre os diferentes conjuntos formados por esses
argumentos.
Todavia, os enquadramentos devem ser concebidos como um
dentre vários dos recursos estruturantes dos processos de organização
da deliberação pública mediada. Eles nos permitem ver como os
media lidam com diferentes fontes e seus proferimentos por meio da
construção de um enunciado próprio. Consideramos, contudo, que, para
evidenciar de modo claro como se estabelecem as trocas argumentativas
no espaço mediático, é preciso mais do que determinar os eixos
discursivos e temáticos nos quais diferentes atores são localizados. É
preciso avaliar o modo através do qual as negociações discursivas são
textualmente encadeadas no espaço de uma matéria e no também no
espaço configurado por um conjunto de matérias que, tomadas a longo
prazo, retomam e reavaliam perspectivas anteriormente publicadas.
Para captar e exprimir a dinâmica de contraposição dos discursos, das

21. A associação entre os enquadramentos e as noções de “roteiro” e “enredo” re-


metem ao entendimento de que os enquadramentos são formas narrativas que defi-
nem relações sociais em contextos temporais específicos. O enquadramento permi-
tiria, assim, o encadeamento causal de ações, dando a ver um processo coerente de
produção de significados socialmente compartilhados da realidade vivida (Simon
e Xenos, 2000; Gamson, 1992). Frank Durham acentua, contudo, que “as histórias
que contamos uns aos outros de modo a organizar nossa percepção do tempo e do
espaço não podem ser cristalizadas em enquadramentos estáticos” (1998, p.105).
A ética dos processos
comunicativos 83

tomadas de posição “pró” ou “contra” e da formulação de demandas de


validade, é preciso associar os enquadramentos a alguns dos princípios
normativos que norteiam a ética do discurso, criando uma abordagem
que permita a avaliação qualitativa de um processo mediado específico
de troca argumentativa.

Mídia, moral e ética:


(re)definindo as relações com os “outros”
Uma grande parte das formas simbólicas providas pelos media, ao
mesmo tempo em que descortina e revela realidades distantes ou não-
-familiares, pode também dar origem a representações estigmatizan-
tes, capazes de prejudicar a auto-realização moral dos indivíduos, seja
negando-lhes a estima devida, seja imputando-lhes um status subalter-
nizado e indigno.
Segundo Butler (2015, p.14), os enquadramentos são operações de
poder: “não decidem unilateralmente as condições de aparição dos su-
jeitos e acontecimentos, mas seu objetivo é delimitar a esfera da apa-
rição enquanto tal”. Para ela (p.22), “não há vida e morte sem relação
com um determinado enquadramento. Ambas nos são apresentadas
dentro de molduras específicas que não apenas estruturam a maneira
pela qual passamos a conhecê-las e a identificá-las, mas constituem
condições que lhes conferem suporte e legitimidade. Os enquadramen-
tos atuariam, assim, para diferenciar as vidas que podemos apreender
e valorizar daquelas que não podemos. Os termos, as categorias, as
convenções e as normas gerais que agem nos dispositivos de enqua-
dre moldam, por exemplo, um ser vivo em um sujeito reconhecível
por meio da apreensão, isto é, uma forma de conhecimento associada
ao sentir e ao perceber, sem utilizar conceitos. Os sujeitos são então
constituídos mediante normas que, quando repetidas, produzem e
deslocam os termos por meio dos quais os sujeitos são reconhecidos.
Trata-se de saber como essas normas operam para tornar certos sujei-
tos pessoas reconhecíveis e tornar outros decididamente mais difíceis
de reconhecer. O problema, segundo Bulter (2015, p.20) “não é apenas
saber como incluir mais pessoas nas normas existentes, mas sim con-
84 mídia, ética e esfera pública

siderar como as normas existentes atribuem reconhecimento de forma


diferenciada”. Para desmontar a lógica assimétrica de atribuição de re-
conhecimento seria necessário enquadrar o enquadramento, ou seja,
interpelá-lo em busca das fissuras que nos indicam que a moldura não
consegue determinar de forma precisa o que vemos, pensamos, reco-
nhecemos e apreendemos.
Butler afirma que “se o reconhecimento caracteriza um ato, uma
prática ou mesmo uma cena entre sujeitos, então a condição de ser re-
conhecido caracteriza as condições mais gerais que preparam ou mo-
delam um sujeito para o reconhecimento” (2015, p.19). Assim, é extre-
mamente importante conhecer os termos, as convenções e as normas
gerais que atuam na produção de enquadramentos de modo a moldar
um indivíduo em um sujeito reconhecível. Essas categorias e normas
que preparam ou estabelecem um sujeito para o reconhecimento, que
induzem um sujeito desse tipo, precedem e tornam passível o ato do
reconhecimento propriamente dito. Nesse sentido, como defende Butler,
a condição de ser reconhecido, moldada pelos enquadramentos, prece-
de o reconhecimento.
É sobre os meios de comunicação que recaem amplas expectativas
ligadas ao reconhecimento, pois suas mensagens são amplamente di-
fundidas e incorporadas à fala cotidiana, fornecendo assim, material
não só para a construção da identidade, mas também para alimentar
os conflitos simbólicos. A luta por reconhecimento, além de ser um
processo de aprendizagem social é, no contexto mediático, um poten-
cializador de demandas por inclusão de identidades desvalorizadas e
tidas como “desviadas” de um padrão normativo amplamente aceito.

Pelas imagens passa uma construção visual do social, na qual essa


visibilidade recolhe o deslocamento da luta pela representação à
demanda de reconhecimento. O que os novos movimentos sociais
e as minorias – como as mulheres, os jovens ou os homossexuais
– demandam não é serem representados, mas reconhecidos:
tornar-se visíveis socialmente em sua diferença. O que dá lugar a
um modo novo de exercer politicamente seus direitos. (Martín-
Barbero, 2000, p.45).
A ética dos processos
comunicativos 85

Os temas presentes nos conteúdos mediáticos suscitam questões


que não mais se deixam restringir a apelos de aparência e estilo. Vários
são os temas abordados capazes de suscitar um envolvimento da
audiência para além da mera empatia. Não raro, é possível constatar a
emergência de uma solidariedade com os “não-iguais”. Porém, muitas
vezes a superficialidade impede um maior grau de envolvimento e
responsabilidade dos indivíduos que ultrapassem a fina película do
entretenimento individualista. Contudo, podemos pensar nos recursos
discursivos dos media como elementos integrantes de uma espécie
de reabilitação da experiência ordinária, na medida em que solicitam
aos indivíduos um investimento maior em seus relacionamentos e, a
partir daí, uma constante revisão do modo como avaliam, modificam
e recriam seus parâmetros de avaliação e julgamento de si mesmos e
dos outros.
Desta maneira, produções culturais que reúnem conhecimentos
e saberes partilhados incorporam também aspectos de experiências
identificadas como injustas, ou seja, práticas percebidas como gerado-
ras de infortúnio ou desrespeito. Assim, a visibilidade proporcionada
pelos media a narrativas e representações associadas à modos de opres-
são simbólica tem a capacidade de deflagrar debates e discussões que
evidenciam questões relativas a demandas de grupos marginalizados
por reconhecimento.
Códigos mediáticos podem tanto perpetuar estigmas quanto ques-
tioná-los por meio da desconstrução de representações criatalizadas.
Em contrapartida, as pessoas precisam mudar as concepções interpre-
tativas que possuem acerca dos “diferentes”, seu modos de vê-los e de
conviver com eles. Somente essa dinâmica agonística (desafio e incitação
recíproca), essa disposição a nos deixarmos afetar em nossas crenças e
ideais, a modificarmos nossas opiniões através do relacionamento com
o outro, constituem a base de uma relação de reciprocidade, marcada
pela responsabilidade moral e pela tolerância.
Para Quéré (1997), a comunicação deve ser pensada como
uma prática direcionada para a modelagem mútua, processual e
intersubjetiva de um mundo comum. As subjetividades, juntamente
com suas identidades, disposições e sentimentos são reformuladas e
86 mídia, ética e esfera pública

construídas na interação, de modo que a construção de um mundo


comum considere sempre um campo de visibilidade e de significados
compartilhados. A importância da comunicação está em não permitir
a estagnação de práticas relacionais, ou seja, em impedir sua condução
pelos mesmos significados tradicionais e cristalizados. A comunicação
deve atualizar os códigos norteadores das práticas dos indivíduos em
comunidade. É por meio dela que posições são revistas, argumentos
são considerados e re-considerados, enfim, que a comunidade avança
em suas formas de representar, interpretar e significar o mundo tomado
em sua complexidade.
Assim, novas formas de sociabilidade e de construção dos discursos
mediáticos não devem desconsiderar o “diferente”, o “estranho”, e nem
tentar reduzi-los a representações esquematizantes e pouco complexas.
A indústria cultural, que trabalha com a reutilização incessantes
de fórmulas e padrões simbólicos (Morin, 1997), não se deve temer
o risco de investir na novidade, na reabilitação de um “estar-juntos”
movido pelo reconhecimento da pluralidade existente em todos os
âmbitos sociais. Essa “nova” forma de sociabilidade (no sentido de uma
reelaboração criativa) tem um papel muito importante para uma ética
das práticas comunicativas, pois os laços de solidariedade e cooperação
recíproca fazem ampliar as ligações entre indivíduos, mundo da vida
e alteridade.
Uma ética da comunicação deve contemplar o desejo e a necessida-
de de estar com o outro, de aceitar o desafio que o outro nos lança por
meio de sua singularidade, de sua diferença. O encontro com o outro,
seja na comunidade ou pela via das representações mediáticas, se ex-
pressa sempre de forma agonística, na qual um indivíduo incita o outro
por meio da dúvida e do estranhamento.
A circulação de recursos simbólicos mediáticos é um dos principais
fatores por meio dos quais grupos ou indivíduos recriam, paciente-
mente, suas próprias formas de representação, interpretação e comu-
nicação de modo a possibilitar seu reconhecimento diante dos outros.
As representações mediáticas têm o potencial de explorar o confronto
entre idéias já cristalizadas em nosso imaginário e as idéias “banidas”
do imaginário pelo alto risco de mudanças e rupturas que encerram.
A ética dos processos
comunicativos 87

Não é só na identificação que nos percebemos como comunidade, mas


sobretudo pela presença da diferença, da pluralidade. Reconhecer o
mundo do outro implica tomar contato com novos valores, significa-
dos e modos de conviver eticamente com as diferenças.

A interdependência entre o indivíduo e a comunidade proporcio-


na as bases para os direitos e para uma ética da responsabilidade
em um mundo cada vez mais frágil. É essencial para nossa sobre-
vivência que existam domínios públicos nos quais nossas vozes e
as dos outros possam gentilmente, mas insistentemente, interrogar-se
reciprocamente. Claro, em uma era globalmente mediada, isso
provavelmente ocorrerá em uma multitude de contextos incluindo
o local onde trabalhamos, onde cuidamos dos outros e onde des-
cansamos. Contudo, permanecemos dependentes de uma varieda-
de de esferas públicas que conectam o local e o global, oferecendo
continuamente diferentes perspectivas àquelas que nós sustenta-
mos habitualmente (Stevenson, 1997, p.86).

Como destaca Herrero (2002), o discurso prático possibilita a fun-


damentação de um conceito universal de responsabilidade solidária
direcionado para a resolução de problemas coletivos por meio de pro-
cessos públicos de entendimento discursivo entre todos aqueles poten-
cialmente concernidos, em todos os níveis e esferas públicas parciais
em que se colocam os problemas. A ética do discurso, e sua aplicação
via discussão prática, reúne os elementos capazes de possibilitar a
interconexão dessas diferentes esferas e níveis onde os problemas se
manifestam e demandam por soluções.
Vimos que questões éticas e morais se sobrepõem quando se trata
de estabelecer a solidariedade entre indivíduos que buscam reconhe-
cer-se mutuamente como parceiros capazes de justificar racionalmente
suas ações, falas e desejos (McCarthy, 1995; Maia, 2001).
Acreditamos que em sociedades plurais, ou seja, nas quais vários
grupos e indivíduos lutam pelo reconhecimento de suas singularidades
e argumentam com base em suas experiências subjetivas, esse processo
de esclarecimento recíproco é fundamental para a revisão e reformu-
lação dos enquadramentos e representações simbólicas que norteiam
as interações comunicativas, e para a integração de questões morais
88 mídia, ética e esfera pública

coletivas a um amplo debate público. Afinal, significados compartilhados


não são dados pela imposição de uma tradição, mas são implemen-
tados pelos discursos reflexivos dos indivíduos, pela linguagem e, até
mesmo, pelas reapropriações dos recursos simbólicos mediáticos.
A busca por uma forma ética de sociabilidade deve ser compreen-
dida não como um abandono total das tradições e uma revolução cul-
tural radical. A sociabilidade contemporânea deve incorporar os riscos
e os desafios impostos pelos “estranhos” em sua demanda por reco-
nhecimento. Nesse sentido, o fim do “medo” dos estranhos só se torna
possível por meio da incorporação de práticas relacionais mais abertas,
mais aptas a refletir sobre uma mudança das imagens que compõem o
imaginário coletivo e o sensus communis responsável por conduzir a
configuração ética e moral de nossas relações.
Nesse processo, gostaríamos de destacar a importância das men-
sagens mediáticas como fontes de novas imagens configuradoras de
sociabilidade, assim como de novos esquemas comportamentais que
podem até vir a ser incorporados às práticas comunicacionais e iden-
titárias das pessoas (Thompson, 1998). A interpretação e apropriação
crítica de recursos simbólicos mediáticos nos revelam “as lutas discur-
sivas que se estabelecem no âmbito da recepção e marcam o espaço
onde se encontra o desafio ético e moral da comunicação” (Esteves,
2003, p.164). O poder simbólico atribuído àqueles que detém um acesso
privilegiado aos media, ou seja, o poder de impor representações aos
outros desconsiderando valores e interesses coletivos, é desafiado no
âmbito da recepção:

Diuturnamente, o telespectador e o texto televisivo se encontram,


e o resultado é uma espécie de negociação entre os significados que
o texto propõe e os significados que o telespectador atribui ao texto
em função de sua própria competência, experiência e expectativa.
Trata-se de uma negociação que também deve levar em conta pro-
cessos sociais e culturais mais amplos, principalmente processos de
construção social do sentido que caracterizam essa relação. (Tes-
che, 2000, p. 59).

Diante das interações mediadas, os relacionamentos se encontram


agora em uma territorialidade de constantes mutações e desconstruções.
A ética dos processos
comunicativos 89

Por isso, uma ética dos processos comunicativos deve ser pensada
como resultado da experimentação de novas formas de sociabilidade,
solidariedade e cooperação constituídas em redes de esferas públicas
nas quais se constituem e se intersectam discursos práticos. Esta forma
de sociabilidade estaria apta a acolher os “estranhos” em seu processo de
luta por reconhecimento simbólico. Tal luta requer mudanças culturais
e políticas acompanhadas de uma renovação normativa derivada de
uma legitimidade constituída na esfera pública de reflexão e debate.
Assim, ela só pode ser alcançada por indivíduos que compartilham
um mundo comum e nele se comunicam, se interpelam e buscam
reconfigurar seus valores, princípios e normas morais.
capítulo 3

Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas

No capítulo anterior, vimos que a ética do discurso tem sido


considerada uma questão central para os estudos de mídia e comunica-
ção, particularmente para aqueles interessados na relação entre delibe-
ração pública, mídia e democracia. Exploramos também o modo como
a base teórica da ética do discurso parece estar na pressuposição de que
é possível que pessoas diferentes discutam, como iguais, uma questão
de interesse coletivo. Dito de outro modo, essa base teórica toma como
certo o fato de que cada pessoa é livre e capaz de formular, expressar
e negociar – em paridade de status – seus interesses e necessidades.
Contudo, devemos indagar até que ponto as desigualdades sociais, de
gênero, classe e etnia, por exemplo implicam constrangimentos à pos-
sibilidade de um debate inclusivo, igualitário e racional.
Neste capítulo, argumentamos que uma resposta a esse dilema pode
ser formulada ao contrapormos as idéias do sociólogo francês Pierre
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 91

Bourdieu àquelas elaboradas pelo filósofo alemão Jürgen Habermas no


que se refere às possibilidades e limites contidas na formulação de uma
ética do discurso. Bourdieu entende a ética como parte do habitus de
uma pessoa, estabelecido previamente por ações já performadas via
linguagem. Por sua vez, Habermas sustenta que a ética está relacionada
a um conjunto de normas e princípios respeitados pela coletividade e
que podem validar qualquer interação discursiva.
Na perspectiva de Bourdieu, a idéia de ética é constantemente desa-
fiada pelo que podemos chamar de “efeito de campo”, ou seja, a disposi-
ção que um sujeito possui para agir de acordo com regras providencia-
das pelo ambiente social, por exemplo a família, a escola e o trabalho.
Tais regras dizem antecipadamente ao indivíduo o que ele pode dizer
em um debate de acordo com sua posição nas hierarquias sociais. Essa
abordagem coloca inúmeros desafios à possibilidade de uma interação
ética nos moldes habermasianos.
Por sua vez, Habermas afirma que os indivíduos podem se engajar
em uma discussão racional se aceitarem um conjunto de normas como
universalmente válidas. Essas normas não só estabelecem as condições
da discussão, mas também a validade dos proferimentos e enunciados
construídos e negociados pelos participantes. Para que uma discussão
seja válida, ela deve estar livre de constrangimentos exógenos de força
e poder – o que pode ser facilmente apontado como utopia.
O propósito de nossa reflexão não é criticar Habermas a partir
de Bourdieu, mas, ao confrontá-los, almejamos esclarecer a seguinte
questão: em que medida podemos falar em igualdade discursiva nas
trocas comunicativas realizadas no espaço público? Será que as normas
que regem o debate racional são válidas para todas as pessoas que dele
desejam participar? Ou sera que as diferenças e hierarquias sociais
definem quem pode verdadeiramente se expressar?
Essas questões parecem nos apontar um caminho para identificar e
discutir os limites e promessas da ética do discurso nas interações co-
municativas, não só em termos interpessoais, mas também como ferra-
menta para negociações entre organizações cívicas e mesmo parceiros
internacionais.
92 mídia, ética e esfera pública

Ética, linguagem e discurso em Bourdieu

Os temas da deliberação pública e da ética do discurso não são fa-


miliares à paisagem teórica dos escritos de Pierre Bourdieu. De fato,
esses são conceitos mais associados às obras de Jürgen Habermas, e seu
uso pelo pensador francês é mínimo. Os trabalhos de Bourdieu sobre
as interações lingüísticas partem de pressupostos e chegam à conclu-
sões distantes dos estudos sobre a pragmática da linguagem efetuados
por Habermas: seria possível, ao se perguntar pelas preocupações de
Bourdieu sobre uma ética da linguagem, responder que ele simples-
mente não está falando disso.
Em seus livros e artigos sobre o tema, no entanto, parece haver uma
“ética do discurso” que não ousa dizer seu nome. Mas não se pode ir
longe nesse transplante de conceitos entre as duas margens do Reno:
uma aproximação entre Habermas e Bourdieu exigiria um espaço e um
fôlego consideravelmente maior do que os limites deste texto. Mesmo a
ausência mútua de citações pode ser tomada como um indício de que
as considerações de um estavam fora do mapa conceitual do outro.
Nesta parte, busca-se delinear algumas das condições de elaboração
da produção lingüística, em Bourdieu, procurando sublinhar os ele-
mentos éticos – entendido como uma razão prática – de formulação
da fala a ser confrontado, em um segundo momento, com as perspecti-
vas da “ética do discurso” de Habermas. A questão que orienta os dois
momentos, como explicada na introdução, é sobre a possibilidade e as
condições de uma ética da discussão quando se tem em conta os inter-
esses dos agentes sociais nela envolvidos.
Bourdieu dedicou vários escritos e pelo menos um livro, Ce que parleur
veut dire (1982), retrabalhado anos mais tarde sob o título Language et
pouvoir symbolique (2001), publicado no Brasil sob o título “A economia
das trocas lingüísticas” (1992), além de textos esparsos reunidos posterior-
mente em Questions de Sociologie (1980a) e Choses Dites (1987). Se, como
dito acima, as questões da ética do discurso e da deliberação parecem ser
alheias às reflexões do sociólogo francês, por outro lado ele mostrou inte-
resse, em seus estudos, pelas condições práticas de uso da linguagem na
sociedade – daí se sugerir uma preocupação com uma ética da linguagem.
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 93

Os elementos reguladores de uma ética do uso da linguagem, para


Bourdieu, localizam-se fora – seria melhor talvez dizer na interseção –
do discurso em si. As pretensões de validade de um discurso qualquer
são asseguradas, ao menos em uma importante dimensão, por elemen-
tos alheios ao próprio discurso, mas presentes nele por conta da incor-
poração, pelo falante, das regras legitimadoras pelo discurso. Assim, a
cada proferimento (utterance), a performance lingüística de um parti-
cipante de um determinado campo, em uma situação habitual, tende a
produzir um discurso legitimável, ao qual já estão incorporadas suas
possibilidades de ser reconhecido como válido.
Apenas um discurso produzido em situações para além do habitus
do locutor, que exigiria o cálculo de reconstrução desse mesmo habitus
para dar conta da nova circunstância, precisaria de uma nova avaliação
e estruturação das pretensões de validade desse mesmo discurso. Não
há, para o locutor familiarizado com o espaço social no qual colocará
seu discurso em circulação, como não usar os elementos que se apre-
sentam como regras de uso da linguagem, um ethos – poderiam aqui
ser ouvidos ecos de uma “ética do discurso”? – na medida em que esse
ethos está erigido em seu habitus o que possibilta, de antemão, o reco-
nhecimento e o cálculo não intencional dos elementos que conferem
legitimidade a uma determinada discussão.
Assim, qualquer uso do discurso contrário a esse ethos e, portanto,
que rompe com uma ética de uso da linguagem, tenderia a ser reconhe-
cido pelo locutor como algo exógeno ao próprio sistema de formulação
da ação lingüística. Entendendo, com Bourdieu (1980a) o ato de fala
como a objetivação de um habitus lingüístico adquirido ao longo da
trajetória social do indivíduo, apenas ao custo de um cálculo muito
avançado seria possível romper com as regras éticas do uso da lingua-
gem na medida em que elas estão incorporadas e tendem a definir o
reconhecimento, pelo próprio falante, das características cognitivas e
axiológicas de seu falar.
Nesse ponto, todo discurso é ético dentro dos limites do ethos con-
sagrado de um espaço social, mas as possibilidades de um discurso va-
lidado a partir de regras de uma razão prática – o que Bourdieu (1980a,
2001) compreende como “habitus lingüístico” – consensual como base
94 mídia, ética e esfera pública

de um processo deliberativo seriam objeto de um questionamento a


partir do exame da gênese dos critérios responsáveis por chamar uma
determinada ação argumentativa de “racional”, o que lhe confere uma
posição de status a partir da qual a validade das proposições é aferida.
Em outros termos, a pergunta seria no sentido de verificar quem
- evidentemente não se trata de um sujeito individual, mas um “agen-
te” social - definiu um determinado padrão de uso do discurso como
“racional” em detrimento dos outros “não-racionais” e, mais ainda, de
que maneira um discurso específico foi entendido como portador de
características que o enquadram como “racional” em oposição aos ou-
tros - uma oposição definida também em termos hierárquicos na cons-
tituição das formações sociais de campo (Martino, 2010).
Não se está afirmando, neste caso, que a validade de um discurso –
palavra que, nesta parte do texto, pode ser entendido como o “uso da
linguagem”, na acepção de Balsey (2002) – seja dada exclusivamente
por critérios exógenos a ele. O que se procura sublinhar é que a pre-
sença dos elementos, em um discurso, que garantem sua validade está
ligada às condições de sua formulação. Seria possível indicar uma certa
circularidade do argumento: um discurso é eticamente válido porque é
produzido de acordo com as regras que garantem sua validade. No en-
tanto, a característica dinâmica do habitus, elemento em permanente
reconstrução, “estrutura estruturante” ao mesmo tempo que “estrutura
estruturada” (Bourdieu, 1980b), leva, a nosso ver, a uma igual dinâmi-
ca na formulação do discurso que exige do participante, em qualquer
diálogo, a percepção dos dados imediatos de ação para a reciprocidade
argumentativa dentro dos padrões estabelecidos pelas circunstâncias
interlocutivas de maneira a garantir a manutenção da validade de seus
argumentos frente a um interlocutor dentro de uma situação real de
interação.
Definidos os elementos imediatamente constitutivos da razão prá-
tica de um determinado espaço social, as interações consideradas vá-
lidas tendem a ser produzidas pelos agentes a partir de uma regulari-
dade incorporada na forma do habitus dos agentes de um campo, que
impregna o discurso de suas próprias regras de validade, diminuindo a
possibilidade de performance dos atos de fala alheios a esse ethos, isto
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 95

é, desprovido dos elementos responsáveis pelo seu reconhecimento,


como válido, pelos outros participantes da interação (Martino, 2010).
Desse modo, a troca lingüística existe como ato de fala dentro de
um espaço social que vai encontrar ressonância nesses mesmos atos,
objetivadores, ainda que involuntários, das afirmações e princípios éti-
cos do campo no qual são proferidos.
Assim, acreditamos que uma perspectiva de elaboração de um crité-
rio de garantia da possibilidade de uma interação lingüística, reflexão
que seria feita a partir do ponto de vista de uma sociologia do uso da
linguagem, diz respeito à constituição da legitimidade de um discurso
dentro de um determinado espaço social. Trata-se de procurar objeti-
var as condições explícitas de uma “validade da discussão” a partir do
exame da constituição dessas condições – se é possível fazer um jogo
com as palavras, trata-se de perguntar quem validou as regras de vali-
dade de um discurso.
A resposta, na interpretação que se propõe aqui da perspectiva da
sociologia de Bourdieu, poderia ser delineada quando se leva em con-
ta que a produção dos critérios de legitimidade de um discurso estão
vinculadas aos espaços sociais de uso desse discurso bem como à tra-
jetória dos agentes desse espaço. Os espaços sociais, explica Bourdieu
(1980b) são dotados de uma história da qual fazem parte seus confli-
tos, disputas e confrontos entre os agentes pela imposição hegemôni-
ca dos elementos de validação cognitiva e axiologica das práticas con-
sideradas válidas. A dinâmica interna e externa dos campos permite
uma redefinição contínua desses elementos de acordo com condições
multifatoriais que se convertem na intersecção de trajetórias de agen-
tes, momentos de maior ortodoxia ou heterodoxia, o sucesso e incor-
poração na disputa principal de agentes até então marginais, enfim, de
uma dinâmica toda própria que, de certa maneira, torna-se parte da
dinâmica do campo.
As interações lingüísticas, para Bourdieu (2001), acontecem não
apenas como uma troca de significados e proposições entre interlo-
cutores; buscando resgatar o elemento sociológico na análise da lin-
guagem e não fazer uma análise lingüística das ações sociais, o autor
francês procura buscar os elementos sociais presentes no diálogo. A
96 mídia, ética e esfera pública

conversação é vista como uma ação social levada a efeito por sujeitos
históricos constituídos dentro de um campo.
Nesse cenário desempenha uma ação fundamental o que Bourdieu
(2000) denomina habitus, conjunto de práticas, percepções, gostos e
outras disposições internalizadas pelo sujeito ao longo de sua existência
social. De maneira geral, o habitus é um sistema de orientação para
que os indivídos façam suas escolhas. Faz com que os membros de
um mesmo grupo social compartilhem princípios e definições acerca
da realidade social. Dito de outro modo, o habitus refere-se a uma
série de disposições pré-reflexivas para o comportamento prático que
orientam as pessoas em um sentido peculiar em todas as esferas de sua
experiência (Bourdieu, 1980b).
Princípio gerador das práticas cotidianas, mas igualmente influen-
ciado por essas práticas e, portanto, em uma relação constante com
a sociedade, o habitus se apresenta como um “maestro invisível” res-
ponsável por permitir ao sujeito uma ação sem cálculo quando na pre-
sença de universos sociais reconhecíveis, assim como a reorganização
imediata das percepções para agir em espaços ainda não incorporados
nesse habitus.
Assim, ao falar, o indivíduo faz uso dos elementos constitutivos de
seu habitus lingüístico, decorrente também do “capital lingüístico” acu-
mulado até aquele momento (e representado não apenas por um voca-
bulário neste ou naquele registro, mas também a correção da linguagem)
que se objetivará como “discurso” dentro de um campo (Martino, 2003).
A esse discurso será atribuído um valor pelos pares, o que resultará na
classificação do falante dentro da taxonomia do campo e a partir do qual
ele sera reconhecido. Ao denominar as interações lingüísticas de “trocas
lingüísticas” ou mesmo de “mercado lingüístico”, Bourdieu (2001)
chama a atenção para essa dimensão de vínculo entre o discurso e o poder
que nele reside como resultado de seus vínculos sociais.
Dessa maneira, a nosso ver, a diacronia da gênese do campo conver-
te-se na sincronia estrutural das condições tais como propostas pelos
dominantes – o que não significa que sejam aceitas integralmente pelos
agentes em posições dominadas, mas servem, de qualquer maneira,
para o estabelecimento de uma imagem, tanto interna quanto reflexiva,
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 97

do campo. Assim, o que é validado sincronicamente no campo tende a


ser visto como “universalmente válido”.
Quais as possibilidades de uma deliberação a partir dessa perspec-
tiva? Uma primeira resposta poderia ser “nenhuma”, na medida em
que, como indicado no início deste texto, até onde se sabe a proposta
de uma “economia das trocas lingüísticas” de Bourdieu (1982; 2001)
simplesmente não está falando disso.
No entanto, a nosso ver, eliminar de saída a possibilidade de uma
discussão talvez não faça justiça às perspectivas do autor no sentido
de que a própria atividade lingüística é vista como um ato político de
interferência – e isso exige que não se faça uma leitura determinista
de suas concepções de “campo” e “habitus”, mas pensando nas pos-
sibilidades de constituição de contra-hegemonias e mesmo discursos
contra-hegemônicos ou marginais dentro de um determinado campo
na medida em que este, enquanto espaço social, não é impermeável às
mudanças e alterações da própria sociedade. Dessa maneira, a própria
atividade da linguagem dentro de um campo pode ser pensada como
elemento de desafio, não apenas de aceitação.
As noções de campo e habitus, assim como a de “mercado lingüístico”,
no entanto, ajudam a pensar as possibilidades de constituição das arenas
públicas de debate, bem como as chances de sucesso de cada um dos
participantes. A dúvida a respeito das possibilidades de uma “igualdade
lingüística” entre os participantes de um diálogo, na medida em que ele
não se desprende das hierarquias sociais nas quais é formulado, mas,
exatamente por isso, pode servir como auxiliar para a percepção dessas
hierarquias, sua objetivação e conseqüente transformação.
Seria talvez um desafio pensar em que medida essas condições de
igualdade se formariam, paradoxalmente, pela desconstrução do
discurso da igualdade a partir de um exame das lógicas de campo e, a
partir daí, permitiriam uma confrontação legítima de interesses em uma
arena pública constituída por agentes dotados de um olhar auto-reflexivo
que permitisse eventualmenete desfazer a illusio de um determinado
“comunismo lingüístico”.
Além disso, substituí-la por uma percepção de como as diferenças
de linguagem, vinculadas às diferenças sociais, podem – ou precisam,
98 mídia, ética e esfera pública

sob determinada perspectiva – ser confrontadas para o estabeleci-


mento das possibilidades mesmas de uma discussão entre “iguais” –
e, note-se, “iguais” porque cientes das condições em que se desenrola
o discurso, sem necessariamente se deixar prender especificamente a
esta ou àquela condição que, por pré-estabelecida sem o conhecimento
dos participantes, erige-se em condição “natural” na formulação de um
discurso.
Nesse ponto, seria possível sugerir que uma ética do uso da lingua-
gem só é possível quando se transcende as estruturas dinâmicas de
campo a partir de sua própria objetivação enquanto práticas incorpo-
radas e reconhecidas pelos sujeitos participantes, mas também delibe-
radas livremente – e, por “livremente”, não se entende uma liberdade
absoluta, mas realizada dentro dos parâmetros pensados em vários
momentos por Habermas (1987), que, como se propõe, podem ser ar-
ticulados aos problemas levantados até agora sob o signo de Bourdieu.

A tensão entre o interesse particular e o bem coletivo


Segundo Habermas (1997), para que a discussão racional funcione
segundo princípios de igualdade, é preciso que os interesses de cada
um dos participantes da discussão sejam acessíveis e inteligíveis à crítica
dos outros para que possam ser admitidos e considerados.
Ao nos engajarmos na prática discursiva, acreditamos que nossas
posições morais possam estar corretas e que podemos demonstrá-las
e sustentá-las por meio de argumentos. Paralelamente, devemos estar
envolvidos em uma revisão contínua e reinterpretação de nossos de-
sejos e necessidades, pois o discurso prático requer a produção de um
interesse geral e partilhável.
Todavia, a busca por uma unidade nas preferências pode acarretar
tanto a supressão de experiências singulares quanto a afirmação e a
prevalência de interesses dominantes (Fraser, 1990). E nenhuma dessas
consequências favorece a transformação de pontos de vista, pelo con-
trário, promovem sua reificação.

Quando os participantes da discussão visam alcançar uma unida-


de – o apelo a um bem comum para o qual todos devem deixar
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 99

para trás suas experiências e interesses particulares – as perspecti-


vas dos privilegiados dominarão, provavelmente, a definição desse
bem comum. Pede-se aos menos privilegiados que deixem de lado
a expressão de suas experiências, o que pode demandar um idioma
diferente, ou que suas reivindicações por direitos e interesses sejam
afastadas em prol de um bem público cuja definição contém um
viés que se estrutura contra eles (Young, 2001, p.376).

Como afirma Shapiro (1999), os modelos de democracia baseados


nos interesses parecem corresponder melhor à prática corrente e às
atitudes políticas típicas das sociedades ocidentais contemporâneas.
Tanto para ele quanto para Young, as democracias atuais desencorajam
processos deliberativos racionais e alimentam práticas orientadas para
o consumo privatizado da política por parte dos cidadãos. Mas e se
os problemas morais e políticos passassem a ser avaliados dentro de
um modelo democrático de discussão capaz de levar em consideração
tanto a busca pelo bem comum quanto pela avaliação de interesses par-
ticulares? Será que a consideração de interesses particulares impede a
construção de um interesse generalizável?
Os princípios normativos de igualdade, inclusividade, publicidade
e paridade que fundamentam a ética do discurso tende a supor que
se formas de poder, influência e opressão forem eliminadas das trocas
discursivas a maneira de se expressar e de compreender os proferimen-
tos alheios será idêntica para todos. Mas isso não ocorre, porque as
interações que ocorrem na esfera pública estão permeadas pelas di-
ferenças culturais e pelas assimetrias ligadas à posição social de cada
potencial interlocutor. Como sinalizou Fraser em sua crítica a extrema
exclusividade da esfera pública habermasiana, “declarar que a esfera
pública é uma arena deliberativa na qual não há distinções de status
não é suficiente para revelar como as desigualdades influem no debate”
(1990, p.60).
O modelo discursivo de Habermas tende a pressupor que o debate
sobre questões morais é culturalmente neutro e universal. E, além disso,
que os indivíduos são, desde sempre, considerados como interlocutores.

Essa pressuposição não leva em consideração o fato de que o poder


social capaz de impedir que as pessoas se tornem interlocutores
100 mídia, ética e esfera pública

em pé de igualdade deriva não apenas da dependência econômica


e da dominação política, mas também de um sentido internalizado
do direito que se tem ou não de falar, da desvalorização do estilo
do discurso de alguns indivíduos e da elevação de outros (Young,
2001, p.370).

Young salienta que em uma situação de discussão prático, na qual


os participantes se diferenciam com base em uma cultura de grupo e
na posição social que ocupam, grupos que têm privilégios materiais ou
simbólicos maiores que outros, tenderão a perpetuar tais privilégios
desconsiderando as singularidades e as demandas de seus pretensos
interlocutores.
Diante dessas considerações, podemos afirmar que, de modo geral,
enquanto a ética do discurso apaga as desigualdades em nome de uma
comunidade ideal de comunicação, os estudos de Bourdieu procuram
trazer para o centro da reflexão as diferenças sociais e as múltiplas ten-
sões que marcam a produção de discursos sociais. Se, para Habermas,
o que garante a validade dos discursos e proferimentos é a troca públi-
ca de razões entre indivíduos localizados diante de um mesmo pano
de fundo cultural e valorativo, para Bourdieu são as regras do campo,
previamente definidas e enraizadas nas ações dos indivíduos que de-
terminam de antemão essa validade.
Consideramos importante destacar que o ideal da universalidade
e da paridade de status reflete a tentativa da ética do discurso haber-
masiana de chegar a um ponto de vista moral, ou seja, um ponto de
vista que resulta da avaliação e discussão pública e igualitária de inte-
resses que compõem o horizonte individual dos sujeitos para alcançar
um horizonte ampliado. Mas, a partir da abordagem desenvolvida por
Bourdieu, é preciso ter em mente que o uso público da linguagem é
extremamente desigual e que dificilmente é possível estabelecer uma
discussão paritária como se todos fossem vistos como potenciais inter-
locutores e parceiros iguais em arenas discursivas (Martino; Marques,
2012). A ética da comunicação tem que levar em conta que as arenas
discursivas estão situadas em um amplo contexto social perpassado
por relações estruturais de dominação e subordinação (Esteves, 1998,
Bourdieu, 1980a).
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 101

Se a ética dos processos comunicativos está fundada na ampliação


dos horizontes éticos individuais tendo em vista a consideração de
questões que dizem respeito ao que é bom para todos, faz-se necessá-
rio buscar maneiras de conciliar e articular diferenças culturais entre
pontos de vista particulares, que emergem em esferas públicas parciais
de interação e discussão de grupos e indivíduos, com preocupações
inerentes a todos aqueles que integram as sociedades atuais altamente
complexas, pluralistas e diferenciadas.

A noção de interesses nas reflexões de Habermas e Bourdieu


A perspectiva de Habermas (1987, 2006) acerca dos meios de comu-
nicação sempre evidenciou (mas nunca explorou com profundidade)
a existência de forças de poder operando nos meios e processos comu-
nicativos. Em suas reflexões mais recentes, os meios de comunicação
articulam o conteúdo discursivo que circula nos diferentes espaços de
interação cotidiana, trazendo para a linha de frente os temas que os
profissionais julgam relevantes, que permitem a aproximação ou con-
traposição de perspectivas e que promovem a prestação de contas entre
vários interlocutores. Assim, a mídia parece ser descrita como suporte
material adequado para a circulação de visões privadas, configurando
redes de discursos e negociações tematicamente organizadas.
É importante notar que Habermas nunca abandonou o cerne
da crítica feita ao papel que a mídia possui sobre a configuração de
esferas públicas. As dinâmicas de poder internas ao funcionamento
dos meios de comunicação se tornam mais evidentes, sobretudo,
quando a produção de enquadramentos está associada ao trabalho
discursivo de agentes políticos e institucionais poderosos que estão
continuamente engajados em disputas para atribuir significados sobre
os eventos correntes. Essas estratégias ficam mais evidentes em um
artigo publicado por Habermas em 2006:

Existem dois tipos de atores sem os quais nenhuma esfera pública


política poderia funcionar: os profissionais do sistema dos media –
especialmente os jornalistas que editam as notícias, relatos e co-
mentários – e os políticos que ocupam o centro do sistema político,
102 mídia, ética e esfera pública

e são tanto coautores quanto destinatários das opiniões públicas.


A comunicação política mediada é conduzida por uma elite. (...)
Os jogadores que se encontram no palco virtual da esfera pública
podem ser classificados em termos do poder ou do “capital” que
possuem à sua disposição. A estratificação das oportunidades de
transformar o poder em influência pública através dos canais da
comunicação mediada revela, assim, uma estrutura de poder. Esse
poder é coagido, contudo, pela reflexividade peculiar de uma esfera
pública que permite a todos os participantes a chance de reconsi-
derar o que entendem por opinião pública. (2006, p. 415-416)

A atuação dos movimentos sociais e da sociedade civil entre os anos


1970 e 1980 leva Habermas a admitir a existência simultânea de um po-
tencial autoritário e de um potencial emancipatório presentes nas práti-
cas midiáticas1, sendo que o segundo depende da autonomia de sujeitos
aptos a buscar, na discussão pública, um ponto de vista moral capaz de
justificar o interesse coletivo, vencendo as imposições institucionais e
simbólicas que constrangem interpretações, opiniões e decisões.
Habermas (2006) destaca que nenhuma esfera pública política fun-
cionaria sem os profissionais do sistema midiático – principalmente os
jornalistas que editam notícias, relatos e comentários – e os políticos.
Além de ocupantes do centro do sistema político, estes últimos se com-
portam como coautores e destinatários das opiniões públicas, ou seja,
daqueles posicionamentos que se caracterizam como uma visão geral
da sociedade em relação às temáticas que ganham visibilidade e são
discutidas. Ele deixa claro que jogo entre atores políticos e midiáticos
envolve pressões e assimetrias de poder, mas pouco avança no sentido
de melhor esclarecer o modo como se desenham essas tensões.

1.“O meu diagnóstico do desenvolvimento linear de um público politicamente


ativo para o público recluso numa privacidade perversa, de um ‘público que
debate cultura para um consumidor de cultura’, é demasiadamente simplista. Neste
momento, eu era por demais pessimista diante do poder de resistência e sobretudo
do potencial crítico de um público de massa pluralista, internamente diferenciado.
Os determinismos presentes nas abordagens de classe estavam apenas começando
a ser desafiados pelos estudos dos usos culturais que tais públicos fazem das formas
simbólicas.” (Habermas, 1992, p. 438)
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 103

Acreditamos, assim, ser interessante aproximar a abordagem


habermasiana daquela desenvolvida por Bourdieu, uma vez que esse
autor francês ressalta as dinâmicas de poder que perpassam as relações
comunicativas e os modos de operação das práticas midiáticas e formas
de ação dos sujeitos que as mobilizam (Martino; Marques, 2011).
Vimos anteriormente que Bourdieu pode ser associado a uma “ética
do uso da linguagem” estritamente direcionada para o sucesso da ação
estratégica dos sujeitos. Para Bourdieu, o sujeito age e usa a linguagem
seguindo as diretrizes e lógicas de um determinado campo, visando
obter um ganho simbólico e reiterando os princípios que guiam suas
escolhas particulares. Neste capítulo, usa-se “campo” na acepção dada
em vários momentos por Bourdieu (1980a, 1980b), como espaço
social estruturado no qual agentes em disputa, que dispõem de um
capital simbólico limitado e acumulado no decorrer de sua trajetória
social, buscam oas melhores posições e o bônus a elas associado.
A reflexão feita por Bourdieu nos auxilia a ver como o auto-interesse
dos atores midiáticos está amplamente marcado pela necessidade de
atender aos interesses do campo, do veículo ao qual estão ligados e da
empresa na qual trabalham. Não podemos nos esquecer tampouco de
que os agentes midiáticos estão vinculados a estruturas de poder que
reproduzem e renovam, dando continuidade a um habitus específico.
Por sua vez, no que se refere aos processos intersubjetivos de apro-
ximação entre intresses privados e públicos, salientamos que o desen-
volvimento ético e moral das sociedades contemporâneas deve levar
em conta o modo como os sujeitos debatem, dialogam e negociam suas
diferenças, interesses, pontos de vista e necessidades.
Relembramos que o objetivo dessa aproximação entre Habermas e
Bourdieu não é apontar as dificuldades e impossibilidades de uma cons-
trução de condições igualitárias de acesso à racionalidade comunicativa
e de efetiva participação paritária em debates e diálogos públicos. Nosso
intuito é mostrar que as noções de interesses e de auto-interesse é uma
componente essencial ao processo de construção do entendimento entre
os sujeitos e, portanto, de uma ética da comunicação.
Se a ética existe na livre escolha das pessoas, qual a possibilidade de
uma escolha ser ética na medida em que os agentes sociais e midiáticos
104 mídia, ética e esfera pública

estão vinculados à estruturas objetivas e objetivantes de poder das


quais participam e que, uma vez incorporadas na forma de um habitus,
tendem a se reproduzir na ação cotidiana? Dito de outra maneira, quais
as possibilidades de haver uma ética no campo midiático? Não se trata
de discutir se tal ação é ou não ética, mas de perguntar pelas condições
de existência de uma ação ética.
É preciso lembrar que a autonomia de um campo social está ligada
diretamente à autonomia de sua prática em relação ao sujeito praticante,
de modo que a primeira ilusão de objetivação acontece diretamente
no distancimento entre a vontade individual e a prática coletiva. A
transformação de um conjunto de práticas em uma instituição, no
intuito de obter legitimidade, auto-referência e reconhecimento entre
os pares acontece a partir da objetivação das práticas, do momento
em que o ato de fazer se distancia do elemento que o faz. No campo
midiático, por sua própria dinâmica vinculada à tecnologia, o
espaço do tempo é estreito. A crítica da prática está vinculada ao
conhecimento da história própria do campo, o que significa dizer não
apenas a sucessão de eventos importantes, mas a relação dialética com
as condições sociais responsáveis por permitir a possibilidade de uma
prática específica.
Há uma compreensão da lógica de campo por Bourdieu. Sua per-
cepção mostra que em um espaço estruturado de relações, um campo
social com regras e estratégias definidas, não existe ação que não vise o
lucro, e o simples ingresso já pressupõe uma predisposição não só em
participar do jogo, mas vencê-lo.
A pergunta pelo caráter ético de uma ação, portanto, parece remeter
a um questionamento anterior a respeito das possibilidades de uma ação
autônoma. A partir dessa perspectiva filosófica, a especificidade do ato
ético pressupõe que a atitude não derive de uma normatização prévia que
implique sanções decorrentes de uma escolha ou outra. Como lembra
Chappell (2009), respeitar uma lei não se caracteriza como ato ético na
medida em que a existência de uma punição referente à desobediência
não permite ao indivíduo escolher livremente qual será sua ação.
Assim, como ressaltam Mel Thompson (2006) e Chappell (2009), o
que define o ato ético nessa perspectiva não é o que a Lei obriga a fazer,
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 105

mas, ao contrário, os atos que o indivíduo não precisa necessariamente


fazer na medida em que não há nenhum tipo de penalidade. Se a ação
é prevista em lei e tem valor de norma jurídica, seu potencial ético é
nulo; a especificidade da ética seria a possibilidade de escolha diante
de situações nas quais não se é obrigado a decidir entre uma ou outra
opção (Chappell, 2009, p.11).
Embora não se possa desvincular a ética da sociedade na qual existe,
é preciso reconhecer que a existência de “éticas”, no plural, não elimina
a pergunta pela ética de uma ação no contexto de uma determinada
sociedade. Dizer que na cultura A o assassinato ritual não é punido
não abre precedente para que essa máxima seja utilizada na cultura B.
Mesmo dentro do relativismo, lembra Lukes (2008), quando se pensa
que a norma ética tem validade limitada, não se pode esquecer que há
uma validade.
Cabe salientar que o sentido da ética é quase sempre coletivo. A
ética é relacional na medida em que funda-se em uma razão prática
dirigida para os outros. Não posso afirmar “É ético roubar na minha
perspectiva” na medida em que a fundamentação desse princípio eli-
mina, em primeiro lugar, a própria coerência da vida social – se há
ecos kantianos nesse argumento, por outro lado é preciso notar que
não se trata necessariamente de uma lei moral interior, mas de uma
perspectiva moral com vistas a um outro. Uma suposta máxima ética
“individual” que fosse frontalmente contra o ethos objetivado em Di-
reito da sociedade na qual esse indivíduo vive não seria julgada como
uma opção ética, mas como afronta (Thompson, 2006; Nuttall, 1993).
Cabe questionar, brevemente, por que a noção de interesse se opõe
à de ética. Toda ética pressupõe um ato desinteressado? Não pode um
ato ao mesmo tempo ser ético e representar o interesse de um indi-
víduo? O interesse coletivo não pode resultar em uma ação ética? O
interesse da ação elimina a ética dessa ação?

Ética e ação (des) interessada?


De modo geral, se consideramos que, na definição de Bourdieu
(1980) um campo é um espaço estruturado de relações nas quais agentes
106 mídia, ética e esfera pública

em disputa procuram obter a hegemonia e lucro simbólico, é possível


argumentar que há pouco espaço para a ética (Bourdieu, 1993; 2000).
Na perspectiva desse autor, o interesse, não a ética, é o fundamento das
ações e a ética seria, no máximo, um discurso possível para a obtenção
de um lucro simbólico no campo. A única maneira de escapar seria não
jogar o jogo. Em Bourdieu, como mencionamos anteriormente, a ética é
uma regra não escrita, procedimental, de um campo, e portanto nascida
do interesse de cada paticipante em se adaptar ao habitus desse campo.
Para esse autor, não existe ato desinteressado. Portanto, se entendemos
“ética” como ato desinteressado, tampouco existiria a possibilidade de
uma ética, apenas de interesse.
Esse interesse, por outro lado, é erigido/disfarçado (e essa ambigui-
dade é proposital) em norma de conduta dentro do campo jornalís-
tico por conta do lucro simbólico que proporciona aos participantes:
quanto mais se está provido do habitus que aproxima uma conduta do
ethos legitimado pelo campo, maior a possibilidade de reconhecimento
como participante dele. Nesta segunda perspectiva, ética e interesse são
uma e a mesma coisa (Barros Filho e Martino, 2003; Martino, 2010).
Em uma situação na qual a maxima ética da consciência individual
de um agente se opõe aos interesses do campo, qual é a possibilidade
do indivíduo confrontar os interesses do campo com alguma chance de
vitória? A rigor, apenas se houver uma coincidencia entre essa máxima
ética individual e algum outro valor altamente reconhecido dentro do
campo e que proporciona ao agente um capital simbólico igualmente
alto no trato entre os pares.
Por exemplo, um editor se demite por não obedecer a ordem da
empresa de adotar uma linha sensacionalista na cobertura jornalística.
Aparentemente derrotado ao perder o emprego, obtém o que se
poderia chamar de uma “vitória moral” – o lucro simbólico da ação
que, convertido em capital relacional, pode auxiliar na obtenção de um
novo posto. Mas note-se que, nesse caso, o editor agiu em conformidade
com as normas do campo ao tomar uma atitude valorada como “boa”:
sua ética é a ética do campo, e, portanto, reconhecida como digna de
nota e potencialmente geradora de um lucro simbólico – há variantes
do capital simbólico dentro de um campo.
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 107

Dessa maneira, chega-se a um paradoxo moral: o desinteresse do


agente revela-se motivado por outra modalidade dos mesmos interes-
ses. A escolha aparente, na verdade, se resume a escolher entre as pos-
sibilidades previamente estabelecidas dentro da estrutura de ação do
campo (Bourdieu, 1990; Barros Filho & Martino, 2003; Martino, 2010).
Mas por que existe a crença compartilhada nas possibilidades de
uma escolha – e, mais ainda, por que visto de dentro do campo essas
ações parecem, de fato, escolhas? Ao participar de um campo, o sujeito
interioriza os valores, práticas, percepções, gostos e valores do campo;
a vinculação e a prática no campo incorporam esses elementos como
um princípio gerador de suas práticas – o habitus, sem ser tautológico,
é autorregulador e autorreferente – o que o leva a desenvolver, sem
que ele mesmo tenha consciência disso, estratégias de ação para obter
o maior lucro possível nas atividades práticas. O habitus gera as estra-
tégias práticas do agente na medida em que também é formado pela
incorporação dos interesses do campo, interiorizados pelo sujeito sem
que ele se dê conta disso e, portanto, sem perceber que está agindo em
conformidade com isso (Bourdieu, 1980).
Isso torna possível, da perspectiva do agente, um ato desinteressado.
Participante do jogo, não vê paradoxo na escolha de uma determinada
ação que, em última instância, obedece aos interesses do campo na
medida em que esses interesses, incorporados como parte do habitus,
não se apresentam como tais. A estratégia não se revela como estratégia,
e o ato interessado não pode senão ser mostrado como desinteressado.
Diante desse quadro, é possível dizer que os espaços sociais, explica
Bourdieu (1980), são dotados de uma história da qual fazem parte
seus conflitos, disputas e confrontos entre os agentes pela imposição
hegemônica dos elementos de validação cognitiva e axiologica das
práticas consideradas válidas. A dinâmica interna e externa dos campos
permite uma redefinição contínua desses elementos de acordo com
condições multifatoriais que se convertem na intersecção de trajetórias
de agentes, momentos de maior ortodoxia ou heterodoxia, o sucesso e
incorporação na disputa principal de agentes até então marginais, enfim,
de uma dinâmica toda própria que, de certa maneira, torna-se parte da
dinâmica do campo. Contudo, acreditamos que não nos devemos agarrar
108 mídia, ética e esfera pública

a uma leitura determinista de suas concepções de “campo” e “habitus”,


mas considerar as possibilidades de constituição de contra-hegemonias
e mesmo discursos contra-hegemônicos ou marginais dentro de um
determinado campo na medida em que este, enquanto espaço social, não
é impermeável às mudanças e alterações da própria sociedade. Dessa
maneira, a própria atividade da linguagem dentro de um campo pode
ser pensada como elemento de desafio, não apenas de aceitação.
Uma espécie de contraponto à aparente endogenia do conceito de uma
ética para Bourdieu é a ética discursiva e intersubjetiva de Habermas.
Embora o autor alemão não tenha consagrado estudos à prática do
jornalista, é possível entender que a presença da noção de interesse na
comunicação intersubjetiva – portanto ligada ao fazer jornalístico –
delineia-se como um vínculo com a perspectiva de Bourdieu. É o que
passamos a observar em seguida.

O conceito de interesse em processos de deliberação pública


Uma reflexão a respeito da ética da comunicação deve considerar
que as práticas interativas e comunicativas voltadas para a revisão de
normas, regras e questões que não mais se adequam ao modo de vida e
às práticas sociais (ou que geram conflitos acerca do que é justo e bom
para diferentes indivíduos e grupos) são, em sua maioria, revestidas
pelo dissenso e pela discordância.
Vários autores (Gomes e Maia, 2008; Page, 1996; Gastil, 2008; Mar-
ques, 2008) destacam que a especificidade do ponto de vista da comu-
nicação sobre os processos deliberativos está centrada no interesse em
investigar como os indivíduos se implicam em trocas discursivas que
acontecem em situações problemáticas a fim de produzirem informa-
ções de maneira coletiva e recíproca, de confrontar seus argumentos e
de buscar alternativas apropriadas aos desafios e impasses que enfren-
tam em seu cotidiano.
O processo social, comunicativo e político da deliberação é, princi-
palmente, uma prática de intercompreensão por meio da qual indiví-
duos e grupos aprendem a definir problemas, a negociar seus interes-
ses, a buscar soluções capazes de se adequarem a uma coletividade, a
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 109

reivindicar direitos e a conquistar um status de cidadão valorizado e


politicamente autônomo.
Segundo Habermas (1982), o discurso, ou a discussão racional, é
capaz de conectar o privado e o público, a moral e a justiça, os inte-
resses particulares e os interesses coletivos. Ele seria, no contexto das
sociedades pluralistas, a única maneira de interpretar coletivamente e
simetricamente nossos interesses, “a fim de descobrir ou criar, apesar
de nossas diferenças, algo em comum” (Cohen e Arato, 1992, p.368).
O grande problema é que “a consideração simétrica dos interesses
de todos só acontece se cada um estiver disposto a convencer os outros
e a se deixar convencer por eles” (Habermas, 2004, p.32). Persudir os
outros é sempre mais fácil do que deixar-se envolver e mudar de idéia
por meio da abertura às considerações alheias.
O que deve estar em conflito são razões públicas, passíveis de serem
aceitas por todos os participantes, e não interesses formulados sob o
ponto de vista subjetivo de cada participante.
Habermas (2004) enfatiza que o procedimento deliberativo trans-
forma preferências subjetivas do interesse individual em opiniões mais
objetivas ou gerais quando os participantes estão interessados em solu-
cionar problemas coletivos. Segundo esse ponto de vista, os indivíduos
devem buscar ampliar seus horizontes de percepção das questões, bus-
cando o que entendem ser o melhor para todos.
É ao construir os fundamentos da ética do discurso que Habermas
explora, de maneira mais consistente, a questão dos interesses coletivos
e do auto-interesse, em particular. A dimensão ética da discussão,
como vimos no primeiro capítulo, encontra-se nos princípios de igual-
dade, cooperação, reciprocidade e não-coerção, os quais, nos debates
práticos, auxiliam os interlocutores a se colocarem no lugar do outro,
ultrapassando a dimensão individual e alcançando uma fusão de ho-
rizontes de interpretação (Habermas, 2004). Essa relação entre ética e
moral marca a busca da co-responsabilidade de todos, cada um a partir
de suas próprias experiências, pelas consequências das ações que asse-
guram um “ser com os outros” e um contexto de vida partilhado.
Sob esse viés, podemos ter em mente que o discurso é uma maneira
ideal de se debater sobre questões que interessam à coletividade,
110 mídia, ética e esfera pública

exigindo que os participantes percebam seus interlocutores não como


obstáculos a serem driblados para a conquista de objetivos particulares
(ação estratégica), mas como parceiros dignos de respeito, vistos como
agentes autônomos com capacidade moral para elaborar e defender
publicamente as próprias posições com base em argumentos e razões
(Chambers, 1996). Em outras palavras, para que a ética do discurso
funcione, é preciso que os interesses de cada um dos participantes
da discussão sejam acessíveis e inteligíveis à crítica dos outros para
que possam ser admitidos e considerados. Esse é, de maneira breve, o
modus operandi do processo deliberativo.
No processo deliberativo, os participantes deixariam de ser um con-
junto de indivíduos em busca da realização dos próprios interesses em
uma coletividade voltada para o alcance do bem comum – as perspec-
tivas, por exemplo, de se fazer um “bom jornalismo” (Gomes, 2002).
Segundo Mansbridge (2005), é ao conversar e debater com os outros,
com os quais possuímos divergências de interesses, que podemos entender
os custos para a obtenção do que é bom para eles, os constrangimentos
práticos aos seus desejos, as possíveis soluções para seus dilemas e o que
eles prezam de maneira mais profunda.
Para Habermas (2007), os indivíduos podem chegar a um enten-
dimento acerca de seus interesses e necessidades, desde que, em uma
discussão prática, sejam capazes de elaborar razões capazes de conven-
cer a todos igualmente, em um processo de justificação pública que se
desenvolva sem violar os princípios de publicidade, equidade, reflexi-
vidade, reciprocidade, autonomia e sinceridade.
É importante salientar novamente que os procedimentos de gene-
ralização de perspectivas e necessidades não impõem a supressão de
particularidades ou o esquecimento do problema ético do bem-viver,
mas apontam o discurso como um processo moral transformativo que
nos permite uma aproximação do universo do “outro”, possibilitando
a emergência de novos vínculos e de novos interesses. Sob esse viés, os
participantes de um diálogo não deixam de lado suas situações e dese-
jos particulares para adotarem um ponto de vista universal e partilhado.
Eles simplesmente se deslocam de uma posição que focaliza suas ne-
cessidades pessoais para uma postura de reconhecimento das demandas
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 111

dos outros. Nessa interpretação, essas demandas são generalizáveis no


sentido de que elas “podem ser reconhecidas sem violar os direitos de
outros ou submetê-los à dominação” (Young, 1990, p.107).
O grande problema é que, no geral, a busca por uma unidade nas
preferências pode acarretar tanto a supressão de experiências singula-
res quanto a afirmação e a prevalência de interesses dominantes (Fra-
ser, 1990). E nenhuma dessas consequências favorece a transformação
de pontos de vista, pelo contrário, promovem sua reificação.
Ao nos engajarmos na prática discursiva, acreditamos que nossas
posições morais possam estar corretas e que podemos demonstrá-las
e sustentá-las por meio de argumentos. Paralelamente, devemos estar
envolvidos em uma revisão contínua e reinterpretação de nossos dese-
jos e necessidades, pois o discurso prático não se refere à descoberta de
nossos verdadeiros interesses, mas é um procedimento que demanda
aos participantes que reflitam sobre suas demandas do ponto de vista
de sua generalidade.
Mansbridge et al. (2010) acreditam que a expressão pública de in-
teresses privados a serem negociados trazem contribuições positivas
ao processo deliberativo, ampliando as possibilidades de entendimento
entre os interlocutores. Em primeiro lugar, para que os participantes
de uma deliberação saibam o que deve ser bom para todos, eles preci-
sam considerar quais interesses cada um traz para o debate, refletindo
conjuntamente sobre suas preferências, valores e interesses. Por isso,
ainda que os interlocutores comecem a discussão desejando coisas di-
ferentes, eles procuram ampliar as bordas do problema, explorando o
conteúdo de seus interesses conflitantes até chegar a uma formulação
considerada justa por todos.
Assim, em situações deliberativas que misturam interesses comuns e
conflitos de interesse uma primeira providência a ser tomada seria fazer
com que os participantes conversassem entre si, buscando entender
os próprios interesses. Como afirma Mansbridge (2005), membros de
grupos subordinados precisam desenvolver idéias e entendimentos
contra-hegemônicos de seus interesses. Esse processo só ocorre quando
esses membros encontram um espaço de discussão que esteja livre
de sanções, e que os permita questionar e desafiar o ponto de vista
112 mídia, ética e esfera pública

dominante.2 De forma geral, as pessoas precisam desse tipo de interação


para examinarem mutuamente o que acreditam ser seus “reais” interesses.
Mesmo em um debate que almeja uma negociação paritária sobre o bem
comum, a exploração e o esclarecimento dos interesses pessoais precisam
ser levados em consideração.

As mulheres, por exemplo, têm sido socializadas de modo a co-


locar os interesses de outros sempre adiante de seus próprios in-
teresses, o que interfere no modo como interpretam os próprios
interesses. A articulação do próprio interesse tem um papel legí-
timo na deliberação democrática, particularmente em discussões
de justiça distributiva. Uma deliberação legítima deveria contem-
plar o critério de auxiliar os cidadãos a entenderem melhor seus
interesses, sejam eles forjados com vistas ao bem comum ou não
(Mansbridge, 2009, p.229).

A imparcialidade das opiniões se revela um critério extremamente


restritivo para processo deliberativos, impedindo a construção de um
entendimento nuançado das particularidades do contexto social e das
necessidades específicas que as pessoas desejam expressar. O ideal da
imparcialidade reflete a tentativa de ética do discurso habermasiana de
chegar a um ponto de vista moral, ou seja, um ponto de vista que par-
te dos horizontes individuais dos sujeitos para alcançar um horizonte
ampliado. Mas, é preciso ter em mente que o uso público da linguagem
é extremamente desigual e que dificilmente é possível estabelecer uma
deliberação paritária como se todos fossem vistos como potenciais in-
terlocutores e parceiros iguais em arenas discursivas. Como destaca
Young (1990, p.100), “a construção de um ponto de vista imparcial se
faz pela abstração da particularidade concreta do sujeito em situação”.
Banir o interesse privado ou o auto-interesse da deliberação pode difi-
cultar o envolvimento daqueles que têm suas preferências fortemente

2. “Se grupos oprimidos desafiam a suposta neutralidade de pressupostos e políticas


prevalescentes e expressam suas próprias experiências e perspectivas, suas deman-
das são vistas como enviesadas, como interesses egoístas e especiais que desviam
de um interesse geral e imparcial. O compromisso com um ideal de imparcialidade
torna difícil expressar a parcialidade do ponto de vista supostamente geral, e tam-
bém dificulta reclamar uma voz para os oprimidos” (Young, 1990, p.116).
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 113

ditadas ou condicionadas por condições hegemônicas e institucionais


externas (Marques, 2011; Marques; Martino, 2011). A ética da comuni-
cação tem que levar em conta que as arenas discursivas estão situadas
em um amplo contexto social perpassado por relações estruturais de
dominação e subordinação (Esteves, 1998).
A explicitação e exploração do interesse particular é, em muitos ca-
sos necessária para se construir uma negociação justa e cooperativa.
Se ao final de um processo deliberativo os participantes chegarem à
conclusão de que tanto o que cada um defende como sendo o bem
comum quanto os interesses particulares em causa não podem ser re-
conciliados, é preciso colocar em prática formas de negociação mais
estratégicas, mas nem por isso menos comunicacionais.

Em uma boa negociação, as partes em disputa se auxiliam mutua-


mente a explorar suas preferências e interesses mais caros de modo
a ver se soluções integradas podem se ajustar às realidades que os
constrangem. Em seus estágios mais avançados, essa negociação
requer a confiança recíproca de que o outro não irá explorar es-
trategicamente uma informação obtida na exploração comum do
problema. Processos de boa negociação criam a solidariedade que
necessitam para obter soluções integradas. Elas também promo-
vem o auto-entendimento e o entendimento mútuo, mais do que
uma simples barganha ou uma deliberação que se recusa a consi-
derar o interesse particular (Mansbridge, 2005, p. 11).

Sob esse viés, a inclusão do interesse pessoal no processo de deba-


te público introduz informações que facilitam a obtenção de soluções
razoáveis, envolve uma diversidade de objetivos e opiniões, gera opor-
tunidades de esclarecimento e de transformação de preferências, além
de poder revelar que diferenças aparentes podem esconder a defesa
de uma mesma preocupação com o bem comum. Nesse processo de
esclarecimento, os interlocutores precisam ser capazes de “explorar e
questionar o que realmente desejam e o que é bom e justo para eles,
assim como para os outros, de um modo que não suprima os interesses
particulares dessa reflexão” (Mansbridge et al., 2010, p.73). Por essa
via, o conflito e a reflexão coletiva sobre os interesses de cada um pode
produzir tanto o auto-entendimento quanto o entendimento mútuo.
114 mídia, ética e esfera pública

Sem ela, é possível que aquilo que é defindo como bem-comum, obje-
tivo de toda ação comunicativa, seja imposto pelos que detêm maior
poder de influência.
Vimos que, apesar de podermos falar em uma ética do uso da
linguagem em Bourdieu, o que se destaca nas reflexões desse autor é uma
investigação acerca das condições práticas de uso da linguagem dentro
das possibilidades estabelecidas de antemão pelo campo e pelo habitus
nos quais se situam os sujeitos em interação. Para Bourdieu, o sujeito
age e usa a linguagem de acordo com estratégias que não contrariem as
lógicas do campo, tendo sua ação voltada para a obtenção de maior lucro
simbólico, em uma tentativa de reafirmar os limites e princípios que
guiam suas escolhas. Assim, sujeitos constituídos dentro de um campo
agem movidos por um interesse (que não é pessoal, mas é apresentado
como se fosse) de acumular capital simbólico e de alcançar o sucesso.
Existem inúmeras diferenças entre as abordagens de Habermas e
Bourdieu. De acordo com Bourdieu (2001), o sujeito age e usa a lin-
guagem de acordo com estratégias que não contrariem as lógicas do
campo, tendo sua ação voltada para a obtenção de maior lucro simbó-
lico, em uma tentativa de reafirmar os limites e princípios que guiam
suas escolhas. Assim, sujeitos constituídos dentro de um campo agem
movidos por um interesse (que não é pessoal, mas é apresentado como
se fosse) de acumular capital simbólico e de alcançar o sucesso.
Para Habermas, a prática cotidiana objetivada na interação por
meio da linguagem adquire racionalidade quando é utilizada por inter-
locutores para alcançar um entendimento acerca de algo no mundo. O
uso racional e reflexivo da linguagem aparece quando os interlocutores
formulam proferimentos e buscam validá-los por meio de um processo
de justificação recíproca que, em um primeiro momento, parece não
considerar as condições sociais, políticas, cognitivas e culturais de for-
mulação dos argumentos e de constituição dos próprios sujeitos. Ao
mesmo tempo, Bourdieu procura trazer para o centro da reflexão as
diferenças sociais e as múltiplas assimetrias que marcam a produção da
ética nas práticas dos agentes comunicativos.
O quadro a seguir busca sintetizar as principais diferenças entre
essas duas abordagens:
Promessas e limites
da ética do discurso
nas interações comunicativas 115

Habermas Bourdieu
A ética está
A ética é parte do
presente na
habitus incorporado
Ética discussão racional
pelo agente em um
orientada para o
campo específico.
entendimento.
A ação comunicativa As possibilidades de
caracteriza-se uma ética ligam-se
Pragmática | Usos da como relação entre à posição de um
linguagem interlocutores agente no campo.
igualmente capazes Não há igualdade no
do uso da razão. uso da linguagem.

Os interesses dos
participantes estão
Interesses não são
claros no discurso e
explícitos. Às vezes,
colocados no debate
são desconhecidos
Interesses envolvidos racional com vistas
– porque não vistos
no discurso ao debate rumo
como “interesse”
ao entendimento
– dos próprios
e á formulação
participantes.
de um interesse
generalizável.

Uso livre e racional A validade de um


da linguagem com discurso é dada pela
vistas à validade sua legitimidade
de um discurso; inter pares. Cada
Validade do discurso a pretensão de campo, em sua
validade do discurso dinâmica, redefine
é estabelecida como contiuamente os
premissa pelos discursos “éticos” e
interlocutores. os “reprováveis”

A ética na produção
da comunicação
A ética do jornalista
jornalística (ver
é a adequação
Mudança Estrutural
das ações do
Ética da Comunicação | da Esfera Pública)
comunicador aos
Discussão | Discurso está vinculada à
procedimentos
igual possibilidade
definidos como
de participação dos
“éticos” pelo campo.
interessados na
discussão.
Fonte: elaboração dos autores
116 mídia, ética e esfera pública

Apesar dessas distinções apontadas, consideramos interessante


buscar maneiras de conciliar interesses e necessidades particulares,
que emergem em situações de interação de grupos e indivíduos, com
preocupações inerentes a todos aqueles que integram as sociedades
atuais altamente complexas, pluralistas e diferenciadas. Todas as
situações de interação se constituem em torno dos interesses dos
interlocutores, sejam elas estabelecidas em espaços sociais que sofrem
constrangimentos de regras pré-definidas, sejam situações nas quais as
regras não são definidas senão no momento da própria interação. O
interesse dos agentes não é incompatível com uma ética da discussão,
nem tampouco é algo unicamente relacionado à ação estratégica dos
parceiros de interação. Ele é parte integrante da construção de um
momento comunicativo e da condição de entendimento mútuo: se não
houver interesse não há sequer a participação no debate.
Uma ética da comunicação tem que levar em conta que as arenas
discursivas das quais participamos estão situadas em um amplo con-
texto social perpassado por relações estruturais de dominação e subor-
dinação. Além disso, tal ética não pode desconsiderar que os sujeitos
agem tanto em conformidade com regras que visam a equidade (e que
requerem uma breve suspensão das diferenças e das formas de domi-
nação) quanto de acordo com procedimentos tidos como legítimos e
valorizados por um determinado sistema de orientação.
Assim, é essencial termos em mente que a ética da comunicação
se constitui ao analisarmos a situação interlocutiva em todas as suas
dimensões: da troca discursiva à constituição da situação agonística
e desigual de produção do diálogo (articulada a um contexto cultural
e social específico), de acesso à linguagem e de distribuição de papéis
linguísticos entre os sujeitos.
capítulo 4

Aspectos éticos e políticos


da conversação online

As redes sociais se apresentam hoje como espaços de troca co-


municativa que podem alimentar processos deliberativos mais amplos
(que se desdobram em espaços administrativos, institucionais, do coti-
diano e da mídia) ao promoverem situações de conversação que levam
potencialmente à formação de esferas públicas e ao desenvolvimento
de capacidades argumentativas e reflexivas. A conversação online, ao
envolver formas menos normativizadas de comunicação associadas a
práticas criativas de apropriação e uso dos suportes técnicos (Graham,
2008; Witschge, 2008), pode incentivar os sujeitos a aprimorar formas
de pensar, de formular verbalmente, interpretar, argumentar e agir sobre
questões políticas que afetam diretamente suas próprias vidas e de ou-
tros. (Conover; Searing; Crewe, 2002)
A conversação informal é importante para a deliberação, mas dela
se distingue por não demandar dos participantes, em um primeiro
plano, a obediência a certos parâmetros e princípios normativos como,
118 mídia, ética e esfera pública

por exemplo, a formulação e troca de argumentos crítico-racionais


voltados para a busca de um entendimento recíproco e reflexivo. A
conversação informal é constituída, em um primeiro momento, pelo
prazer de estar junto, de compartilhar com o outro os momentos
vividos, sem a preocupação de atingir metas e objetivos a curto ou
longo prazo. Ela privilegia os processo de construção da empatia entre
os interlocutores, auxiliando-os a organizar e entender as demandas
práticas de sua existência, questionando hierarquias, preconceitos e
formas de subordinação (Kim e Kim, 2008; Marques e Maia, 2008).
De modo geral, muitos são os pesquisadores que afirmam que
pouca atenção teórica tem sido conferida à conversação realizada em
situações cotidianas e aos modos como os cidadãos constituem seus
contextos rotineiros de reflexão e discussão sobre problemas públicos
(Eliasoph, 1997; Mansbridge, 1999; Moy; Gastil, 2006; Eveland; Morey;
Hutchens, 2011). Eles também salientam que a conversação cotidia-
na pode trazer contribuições para a deliberação ao melhorar formas
de pensar, formular verbalmente, interpretar, argumentar e agir sobre
questões políticas que afetam diretamente a vida das pessoas.
Ao estabelecerem uma reflexão sobre as interseções entre conver-
sação cívica e deliberação, esses autores tomam a distinção feita por
Habermas (1987) entre dois níveis articulados de práticas discursivas.
Um primeiro nível, segundo Habermas, comporta o que ele chama de
“prática comunicativa ingênua”, que apresenta um grau de problema-
tização implícito ou latente. Um segundo nível corresponderia ao uso
reflexivo da linguagem, ou ao discurso orientado para a busca de um
entendimento mútuo e para a ação prática efetiva. Habermas caracte-
riza a inter-relação existente entre esses dois níveis conferindo grande
importância às conversações estabelecidas em contextos rotineiros de
descoberta de problemas comuns, de interpretação de necessidades e
de construção conjunta de entendimentos. Mas, para ele, a real dificul-
dade está na passagem de um nível ao outro – onde se coloca o papel da
esfera pública em prover mediações e conexões entre diferentes arenas
e modos de comunicação – e não em identificar qual deles produz, com
maior eficácia, ganhos democráticos, descartando automaticamente o
outro.
Aspectos éticos e políticos da conversação online 119

Contudo, consideramos não é profícuo assumir uma distinção hie-


rárquica entre, de um lado, conversações fluidas, pouco estruturadas e
de “baixa politicidade” e, de outro, processos deliberativos fortemente
argumentativos, politizados e normativamente organizados. Além dis-
so, não existe necessariamente uma relação de complementariedade
entre conversações e processos deliberativos. As esferas que compõem
um processo deliberativo ampliado (distendido no tempo e abrangen-
do diferentes arenas de discussão e conversação), podem se conectar
em vários momentos, mas isso nem sempre implica que elas encon-
tram modos satisfatórios de articulação e trânsito comunicativo.
Nesse sentido, é importante salientar que este capítulo não preten-
de avaliar as características deliberativas das conversações online. Ar-
gumentamos que não se deve relacionar deliberação e conversação a
partir do princípio de que a conversação precisa se adequar aos prin-
cípios normativos da deliberação para ser válida. A conversação e suas
contribuições para a construção de sujeitos e modos de agência politi-
camente autônomos precisam, primeiro, ser avaliadas em si mesmas,
sem a necessidade de tecer comparações entre seu modo de operar e
os princípios normativos que sustentam a deliberação (racionalidade,
publicidade, inclusividade, igualdade, publicidade, reciprocidade e re-
flexibilidade). Apesar de alguns autores (Mansbridge, 1999; Stromer-
-Galley, 2005) apontarem que conversações políticas informais são
capazes de se orientar de acordo com princípios deliberativos, como
a consideração racional de pontos de vista, a reciprocidade, a revisão
de argumentos, a explicitação de premissas e a justificação recíproca
baseada em razões publicamente aceitáveis (Conover e Searing, 2005),
acreditamos que um enquadramento deliberativo das conversações
políticas pode conduzir a expectativas pouco realistas sobre o modo
como a conversação funciona propriamente. Por isso, o efoque ana-
lítico das conversações pode ser mais interessante se procurar revelar
como os conflitos, dissensos e discordâncias são trabalhados na intera-
ção (Eveland; Morey; Hutchens, 2011).
Sob esse viés, as implicações que conversações e deliberações pos-
suem umas sobre as outras devem ser apreendidas com cautela, con-
siderando interseções criadas a partir de situações e acontecimentos
120 mídia, ética e esfera pública

específicos e não-generalizáveis. Há conversações, por exemplo, que


se configuram como experimentações e lutas em torno de linguagens,
formas de enunciação e expressão, configuração de mundos e formas
de ser e existir que a ordem vigente não alcança e não compreende.
E, além disso, tais experimentações podem mostrar como os sujeitos
criam performances nas redes sociais através do modo como expres-
sam e enunciam emoções, de modo a estabelecerem lugares discusivos
a serem ocupados por seus interlocutores.

Conversações políticas e esferas públicas online


Os estudos empíricos a respeito das conversações online têm cons-
tantemente apresentado propostas metodológicas de análise qualita-
tiva que busquem evidenciar a contribuição original de participantes
de fóruns, listas de discussão, blogs e redes sociais (Monnoyer-Smith,
2006, 2007; Marques, 2009; Stromer-Galley, 2002; George, 2002). Vá-
rios trabalhos focalizam, em geral, discussões políticas online e tentam
elaborar indicadores capazes de revelar se essas trocas poderiam, e de
que modo, trazer contribuições a um processo deliberativo mais am-
plo acerca de uma questão específica (Wilhelm, 2000; Wright e Street,
2007; Vergeer e Hermans, 2008; Marques, 2009, 2010). Grande parte
dessas pesquisas apresenta indicadores analíticos baseados nos prin-
cípios normativos que regem a troca argumentativa crítico-racional
em esferas públicas deliberativas, tais como formulados por Habermas
(1997, 2006). Esses indicadores têm como objetivo detectar, descrever
e mostrar como discussões políticas realizadas em determinados espaços
virtuais se configuram em torno de uma estrutura argumentativa e con-
flitual marcada pelo questionamento recíproco, pela inclusividade, pela
revisão de posições e pontos de vista e pela reciprocidade (Dahlberg,
2001; Janssen e Kies, 2005).
Todavia, não se pode partir do princípio de que os espaços conver-
sacionais da internet se estruturam da mesma forma que os espaços
públicos ideais habermasianos, ou seja, que se pautem pelos princípios
normativos acima destacados e que estimulem o entendimento racio-
nal entre os participantes na busca da prevalência do melhor argu-
Aspectos éticos e políticos da conversação online 121

mento, na intenção de se solucionar problemas. Alguns autores têm


salientado que ao invés de partir de um ideal de deliberação e tentar
ver como ele se reproduz online, é mais promissor evidenciar como as
conversações se definem em espaços virtuais, levando em consideração
os estímulos e constrangimentos impostos pela materialidade técnica
dos suportes e códigos informáticos; a relação entre as práticas conver-
sacionais online e offline (uma vez que as práticas comunicativas virtu-
ais dos sujeitos não se dissociam de sua inserção em contextos sociais,
políticos e culturais definidos)1; e as formas criativas de apropriação e
uso dos suportes técnicos (Chaput, 2007; Suraud, 2007 a e b; Graham,
2008; Witschge, 2008).
Nesse sentido, os autores afirmam que os princípios definidos por
Habermas para caracterizar processos deliberativos podem ser adapta-
dos às trocas online, desde que respeitem a especificidade dos dispo-
sitivos e dos tipos de diálogos que aí se estabelecem (Stromer-Galley,
2005; Janssen e Kies, 2005). É claro que o engajamento discursivo na
rede não depende apenas do design de ferramentas tecnológicas elabo-
radas para facilitar e promover o diálogo, ou do acesso à elas. Para estu-
darmos as trocas discursivas em espaços da rede devemos ter em mente
não só suas interpenetrações com as experiências vividas offline, mas
também as condições contextuais e históricas em que essas trocas se
delineiam. Por isso, de acordo com Witschge (2008), a abordagem me-
todológica dessas conversações deve explorar três eixos investigativos:
uma análise de conteúdo das mensagens e fios de discussão dispostos
e armazenados nos fóruns online2; uma análise crítica do ambiente so-
cial no qual essas mensagens são produzidas e consumidas; e uma ava-
liação do discurso social mais amplo ao qual elas se relacionam.
Como aponta Chaput (2007), as falas identificadas em fóruns de
discussão, por exemplo, nem sempre se apóiam sobre argumentos
logicamente válidos e um bom número de opiniões não é acompanhado

1. As trocas eletrônicas são sempre, e necessariamente, articuladas às situações de


co-presença às quais reenviam e fazem eco (Suraud, 2007b).

2. Ver Wilhelm (2000, p.90) para uma justificativa detalhada da adequação da aná-
lise de conteúdo para o estudo das trocas discursivas online.
122 mídia, ética e esfera pública

das justificações necessárias. A tolerância e o respeito frente a pontos de


vista diferenciados – os quais só se concretizam por meio da ação de se
colocar no lugar do outro (ideal role taking) - são dificilmente alcançados,
dada a predominância da tentativa de convencimento por meio da
retórica, da desvalorização e descrédito atribuídos ao ponto de vista alheio,
e da tendência ao reforço de opiniões em grupos homogêneos. Assim,
a transposição mecânica dos princípios normativos ideais que guiam e
estruturam o modelo deliberativo, além de frustrar os pesquisadores (que
não encontram nas conversações virtuais provas consistentes da existência
de um processo deliberativo), torna-se eficaz somente para apontar as
falhas e limitações das trocas comunicativas em rede.
Além disso, grande parte das pesquisas empíricas sobre as discussões
online tem como objeto as trocas comunicativas realizadas em espaços
explicitamente destinados às discussão de temas políticos (fóruns de
partidos, listas de discussão a respeito de questões políticas pontuais,
blogs de militantes, etc.). Pouca atenção é dada aos fóruns de discussão
não-políticos, como aqueles destinados a falar sobre hobbies, questões
de saúde, cuidados com as crianças, dependência química, trabalho,
sexualidade, etc. Esses tipos de fóruns são abundantes na rede e abrigam
vários participantes e tópicos de discussão, oferecendo uma ampla gama
de possibilidades de debates em torno de questões políticas, as quais
contribuem para a rede informal de conversações que alimenta um
processo deliberativo mais amplo. A inclusão de fóruns não-políticos
na agenda de pesquisa sobre as trocas comunicativas online necessita,
portanto de uma definição de política que não se atenha aos procedimentos
e espaços formais de resolução de problemas. Nesse sentido, Graham
(2008) destaca a importância da observação de conversações que
abrangem temas da vida pessoal e coletiva do cotidiano, nas quais um
ou mais participantes, ao conferirem atenção a um tema ou tópico que
acreditam merecedor de atenção e discussão pública, tendem a tornar
possível a emergência de uma discussão política.3

3. Para Stromer-Galley (2005), existem oito “ingredientes” essenciais para a discus-


são política: expressão da opinião fundada em razões, referências à fontes externas,
ausência de agressão, choque de perspectivas, níveis iguais de participação, coerên-
cia, reflexividade, interatividade e narratividade.
Aspectos éticos e políticos da conversação online 123

Os espaços da rede destinados à discussão são majoritariamente


utilizados para a prática da conversação informal, para trocar opiniões,
esclarecer entendimentos sobre questões de interesse comum e para
reafirmar discursos e quadros simbólicos compartilhados responsá-
veis pela união de grupos e indivíduos que se sentem vinculados por
determinadas afinidades (Doury e Marccocia, 2007). Na web (e tam-
bém fora dela), os cidadãos conversam a respeito de seus interesses e
necessidades, desenvolvendo assim não só laços afetivos de empatia e
proximidade, mas também retomando e reformulando constantemen-
te códigos de pertencimento e união.
Além disso, fóruns nos quais os internautas podem escolher, por
afinidade, os temas de seu interesse e entrecruzar questões privadas
com problemas atuais de ordem política são passíveis de mostrar que,
mesmo quando as intenções dos internautas são motivadas por ques-
tões de ordem pessoal, a associação intencional com indivíduos que
possuem interesses ou necessidades semelhantes pode revelar o quanto
esses interesses e necessidades são definidos e redefinidos via conver-
sação e justificação diante de posições divergentes (Lev-On & Manin,
2006). Assim, faz-se necessário conhecer melhor os espaços online de
conversação informal e seu potencial para conectar indivíduos plurais
e para produzir uma fala político-afetiva intersectada.

Afetos e incivilidade nas conversações online


A Internet apresenta atualmente alguns contextos nos quais os ci-
dadãos comuns podem expressar suas histórias pessoais e seus pontos
de vista sobre determinadas questões, estabelecendo diálogos e trocas
motivados tanto por fatores afetivos quanto políticos. Fóruns de dis-
cussão não-políticos, por exemplo, ao promoverem um contexto propí-
cio para conversações informais, abrem espaço para formas de comu-
nicação ligadas às experiências concretas dos sujeitos, às suas emoções
e às suas narrativas particulares.
Indivíduos e grupos marginalizados podem ser favorecidos pela
visibilidade digital, pois além de encontrarem nos espaços da rede a
proteção do anonimato para falarem sobre seus problemas, aproveitam
124 mídia, ética e esfera pública

para elaborar e dar visibilidade a contra-discursos que desafiam este-


reótipos e códigos simbólicos de opressão. Ao fazer isso, eles tendem
a inserir novas vozes no debate coletivo sobre determinadas questões
de injustiça e desigualdade (Dahlberg, 2007). Isso nos remete ao fato
de que os espaços conversacionais da rede abrigam vários públicos, ao
invés de uma esfera pública unificada e universal (Bohman, 2004).
A conversação informal, pautada pela empatia, pela afetividade e
pela narrativização das experiências vividas pode estimular um debate
político no qual os interlocutores são chamados a posicionar-se diante
dos outros, a formular argumentos convincentes e solicitar respostas e
justificações dos demais parceiros de interação a respeito de um pro-
blema que deixa, então, de pertencer ao pano de fundo das questões
problemáticas latentes. Para Wojcieszak e Mutz (2009), tópicos po-
líticos controversos podem surgir nessas discussões, nos oferecendo
a oportunidade de acompanhar a tematização de questões ligadas ao
âmbito político e ao interesse coletivo, expondo os participantes a pers-
pectivas diferentes (casual political talk on line).
Por isso, acreditamos que não se pode deslegitimar de antemão as
formas originais, estéticas e afetivas que emergem rotineiramente nos
espaços virtuais. Contudo, é preciso também encontrar, empiricamente,
modos de evidenciar como as conversações informais online podem
auxiliar no desenvolvimento de capacidades de argumentação, reflexão
e domínio cognitivo dos diferentes tipos de informação aos quais os
participantes estão expostos (Marques, 2009). Assim, é essencial
compreender as conversações cotidianas informais como ações que
produzem sentido não só para a vontade de “estar junto” com os outros,
mas também para a necessidade de transformar e construir com eles os
elementos que os permitem definir, compreender e alterar a realidade.
Afinal, uma conversação online pode se iniciar pela busca de valores
partilhados e abrir espaço para a negociação de entendimentos e para a
exploração dos pontos de discordância existentes entre os participantes.
Todavia, a proliferação e a diversidade de públicos e vozes no cibe-
respaço pode acarretar alguns problemas. Habermas (2006) destaca,
por exemplo, que a formação de uma multitude de mini-espaços públi-
cos especializados na web poderia levar a uma fragmentação maior dos
Aspectos éticos e políticos da conversação online 125

públicos que, reunidos em torno de um grande número de questões


pontuais, permaneceriam isolados em “ilhas diferenciadas de comuni-
cação” (Dahlgren, 2005, p.152). O fator da homogeneidade é mencio-
nado por Lev-On e Manin (2006) como o principal responsável pela
multiplicação de espaços virtuais semelhantes que, ligados por hiper-
links, orientam a navegação em direção a conteúdos que se afastam de
toda oposição, privilegiando a diversidade de opiniões entre iguais ao
invés do afrontamento entre opiniões adversas.
O fato de os participantes permanecerem no anonimato colabora
para esse tipo de atitude, mas é bom destacar que nem sempre a
agressividade inibe o debate – às vezes ela é até necessária para fazer
com que interlocutores que se sentem ameaçados ou acuados se sintam
compelidos a participar da cena de enunciação. Além disso, é correto
afirmar que as trocas comunicativas em espaços dialógicos da rede
nem sempre se apoiam sobre argumentos logicamente válidos e nem
sempre as opiniões são acompanhadas das justificações necessárias.
(Kies, 2010; Marques, 2009, 2010, 2011)
Nas conversações online acontece com frequência de as pessoas
falarem sem escutar, de atacarem pessoalmente os participantes ao
invés de questionarem seus argumentos, de confirmarem ao invés de
questionarem idéias pré-concebidas e reforçarem convicções ao invés
de evidenciarem as premissas que sustentam seus pontos de vista
diante daqueles que deles discordam (Wright e Street, 2007). Ocorre
também com frequência nas conversações online uma disputa retórica
e estratégica por convencimento. Tal disputa revela duas interessantes
particularidades das interações online. Primeiro, a argumentação
em torno de uma questão é construída em torno de um conjunto de
valores, regras, saberes e crenças que são compartilhados pela maioria
dos participantes. Assim, quando um participante se insurge contra uma
mesagem dominante (ou leitura preferencial de um discurso), ele assume
o risco de sofrer constrangimentos e de ser insistentemente forçado a
deixar a discussão (Witschge, 2008). Segundo, para além do argumento
racional, as trocas nos fóruns tendem a ser perpassadas por conflitos
que necessitam de um espectro ampliado de formas de comunicação
de modo a certificar aos participantes que seus pontos de vista foram
126 mídia, ética e esfera pública

compreendidos. Desse modo, eles precisam utilizar a retórica, narrativas


de vida, testemunhos, sinais gráficos de aprovação ou reprovação (ícones
de expressão, como smiles e gifs de emoticons), etc.
A tolerância e o respeito diante dos pontos de vista diferenciados
– os quais só se concretizam por meio da ação de se colocar no lugar
do outro – são dificilmente alcançados nas trocas online, dada a predo-
minância da tentativa de convencimento por meio da desconsideração,
da desvalorização e descrédito atribuídos ao ponto de vista alheio, e da
tendência ao reforço de opiniões em grupos homogêneos. Quando as
discussões e os interagentes ficam presos aos seus pré-conceitos, ten-
dem a reafirmar incessantemente suas razões e perspectivas. A pouca
tolerância e a incivilidade entre os interlocutores conduz a resultados
pouco reflexivos e muito mais articulados como uma disputa retórica
e estratégica por convencimento. Em situações como essa, a revisão
individual de um ponto de vista à luz das considerações dos outros
(reflexividade) fica enormemente comprometida.
Entretanto, trocas motivadas por temas que não são diretamente
associados à política podem expor os participantes a perspectivas dife-
rentes, o que requer um exercício de buscar fazer-se entender e tornar
inteligíveis as próprias proposições, auto-entendimentos e interpreta-
ções acerca dos outros e do mundo objetivo. Tal exercício pode resultar
na construção conjunta de mundos partilhados.
Reconhecer e/ou construir um lugar comum na internet significa
selecionar, por afinidade, não só um tema específico e parceiros deter-
minados, mas sobretudo um espaço planejado para a interação. Nesse
sentido, é importante considerar o aspecto técnico e o design da inter-
face (arquitetura discursiva) como um dos responsáveis pela arquite-
tura e pelo funcionamento do debate. Afinal, os cidadãos constituem
suas práticas nos interstícios dos dispositivos e, ao evidenciarmos as
suas possibilidades e constrangimentos sobre as formas de conversa-
ção, percebemos como elas podem influir na explicitação de divergên-
cias de opinião e no encadeamento de demandas, questionamentos
e réplicas (Wright e Street, 2007). Muitas intervenções são ignoradas
não por serem desinteressantes, mas porque os dispositivos técnicos
muitas vezes não permitem a retomada de perspectivas anteriormente
Aspectos éticos e políticos da conversação online 127

expressas, o que dificulta a percepção dos turnos de fala e compromete


a reciprocidade das justificações e tentativas de entendimento.

Momentos transformativos dissensuais na conversação


A conversação, como mencionamos, permite que os interlocutores
expressem e aprimorem os pontos comuns de idéias, hábitos e expe-
riências, numa troca que tende inicialmente ao consenso e à identi-
ficação de elementos de empatia. Mas, em um segundo momento, o
compartilhamento pode dar lugar à discordância. Quando isso ocorre,
é possível ver como o fluxo descontínuo e disperso da troca comunica-
tiva se converte em um movimento voltado para a tomada de posições
e para o início de uma negociação de argumentos que devem ser justi-
ficados diante dos outros (Kim & Kim, 2008).
Muitos conflitos potenciais encontram-se dissolvidos no curso de
uma conversação em que as frases e as idéias se sucedem sem serem
postas em conexão. Entretanto, há momentos em que os participantes
passam não só a expressar publicamente suas opiniões sobre um dado
tema político, mas, também, a defendê-las e a revisá-las diante do ques-
tionamento alheio. Esses momentos surgem quando os interlocutores
reconhecem a existência de pontos de vista divergentes acerca de uma
questão de interesse coletivo, devendo decidir se arriscam-se ou não
a dar corpo e prosseguimento às controvérsias. É preciso considerar,
assim, que as possíveis contribuições que a conversação cotidiana
informal pode oferecer à construção do sujeito autônomo dependem
intrinsecamente de sua abertura ao conflito.
Alguns pesquisadores não têm poupado esforços para estabelecer
contextos e criar procedimentos capazes de revelar os momentos em
que a conversação fluida e dispersa do cotidiano dá origem a uma dis-
cussão pública onde prevaleçam: posições conflitantes, apresentação
de argumentos claros e lógicos, esclarecimento e revisão de premissas,
respeito mútuo e esclarecimento recíproco entre as várias opiniões em
disputa (Mutz e Mondak, 2006; Duchesne e Haegel, 2004, 2006).
Em uma outra perspectiva, a conversação tem sido associada à pro-
dução reflexiva de narrativas de si, capazes de promover a invenção da
128 mídia, ética e esfera pública

cena de interlocução e interpelação na qual se inscreve a palavra do su-


jeito falante, e na qual esse próprio sujeito se constitui ao se pronunciar
em primeira pessoa e de identificar sua afirmação com a reconfigura-
ção de um universo de possibilidades e potências.
A conversação online não pode ser avaliada somente a partir do
encadeamento de mensagens postadas, desconsiderando o contexto
social mais amplo no qual se inserem os interlocutores, o contexto
virtual no qual as mensagens são produzidas e os consequentes
constrangimentos e “brechas criativas” à ele associados. Sob esse
aspecto, a narrativa biográfica faz da tarefa de interpretação da
realidade um ato no qual explicações racionais e justificações subjetivas
convergem para o tecido da trama textual: acontecimentos não são
necessariamente apreendidos em sua dimensão social e histórica, mas
como parte de uma história de vida na qual outras linhas também se
cruzam. Os estudos relacionados à história oral há muito indicam
essa possibilidade de entrecruzamento, alertando para a dimensão
de relações afetivas e racionais, objetivas e subjetivas, éticas e morais
presentes em qualquer relato.
O ato de falar de si mesmo, neste aspecto, borra algumas das fron-
teiras do pessoal e do público em prol do político: a narrativa biográ-
fica não está baseada no agrupamento aleatório de tomadas de decisão
estritamente pessoal, na mesma medida em que não se apoia em um
determinismo social que engessaria toda e qualquer possibilidade de
mudança: ao contrário, é por conta de uma interação entre essas duas
condições que o social se apresenta, em termos da experiência, como
uma indeterminação condicionada, isto é, como uma série de elemen-
tos que, embora escapem de qualquer perspectiva determinista – o que
epistemológicamente eliminaria qualquer possibilidade de apreensão –
por outro lado também não escapa aos elementos condicionantes da
ação. É nessa articulação tensional entre condições e possibilidades
que se vislumbra o direito à fala autônoma como possibilidade de par-
ticipação política.
A fala de si estabelece uma narrativa afetiva de identidade na qual
o “eu” é estabelecido como protagonista a partir do qual se realizará
a apropriação reflexiva da alteridade e do mundo. Daí a diferença
Aspectos éticos e políticos da conversação online 129

política básica entre narrar e ser narrado por outrem: a perspectiva


de narrar, a centralidade, ainda que momentânea, de quem conta a
própria história desloca as linhas de força constitutivas de qualquer
narrativa para o sujeito narrador, em condição tornada excêntrica em
relação às narrativas dominantes dentro de uma sociedade (Martino,
2015). É por conta disso que a condição de narrar a própria vida,
contar a própria história tornada uma ipseidade – em oposição às
normatizações narrativas que o constituem como uma alteridade em
uma história que igualmente não é a sua – parece ser uma condição
essencial da vida política que se constitui nas tramas conversacionais
do cotidiano.
capítulo 5

O interlocutor
como agente ético-moral
e o direito à comunicação
na participação política

Nos regimes democráticos contemporâneos, o Direito


regula as ações e instituições a partir das interações sociais baseadas
em complexos princípios de comunicação muitas vezes inconscientes,
invisíveis, distantes de toda e qualquer possibilidade de apreensão ime-
diata por parte do falante. Na relação entre Democracia, Direito e Co-
municação existem dois grandes tópicos que precisam ser discutidos
de antemão para uma correta aproximação do problema. Em primeiro
lugar, devemos abordar o problema em sua expressão mais simples, isto
é, na interação comunicativa cotidiana. Em seguida, devemos compre-
ender o problema em sua extensão macro, analisando as relações entre
a mídia e a esfera pública.
O interlocutor
como agente ético-moral 131

A autoridade do discurso
Há uma grande ilusão cotidiana no que diz respeito à igualdade de
condições para o exercício da comunicação. Quando um cliente fala
com o advogado, há uma desigualdade a priori entre ambos. A pala-
vra do advogado é revestida da autoridade de cátedra. Ela é outorga-
da socialmente pelo estabelecimento de uma fronteira simbólica entre
os detentores de um conhecimento – o jurídico, no caso – e aqueles
que pretendem dispor desse conhecimento sem ser proprietário dele.
Como explica Habermas,
o que torna a razão comunicativa possível é o medium linguístico,
através do qual as interações se interligam e as formas de vida se
estruturam. Tal racionalidade está inscrita no telos lingüístico do
entendimento, formando um ensemble de condições possibilitado-
res e, ao mesmo tempo, limitadoras (2000, p.20).

Suas palavras, portanto, são automaticamente revestidas de um


valor específico, adquirindo uma autoridade pelo simples fato de serem
provenientes de alguém investido da legitimidade para falar. Em outros
termos, falar é sobretudo um ato de troca simbólica, um jogo no qual
os participantes estão sempre em desigualdade de condições para jogar.
Seria como chamar, para um jogo de futebol, um time de primeira
divisão e um de segunda. Há um desnível permanente. Para Habermas,
“podemos ler a estrutura do pensamento observando a estrutura das
proposições” (2000, p.28).
Isso significa, entre outras coisas, que existem diferentes valores
atribuídos a cada falante, a cada elemento comunicador. Essa diferença
se revela na autoridade do discurso de cada parte e da obediência tácita
existente entre eles.

A desigualdade na produção do discurso


O direito a falar, da mesma maneira, está desigualmente distribuído
na sociedade. Estamos o tempo todo cercado pelos chamados “discur-
sos legítimos”, isto é, pela expressão das pessoas autorizadas a falar.
Não é aqui o lugar para expor uma teoria do discurso, mas algumas
considerações são necessárias para a compreensão da idéia do texto.
132 mídia, ética e esfera pública

O exemplo mais simples é o técnico de futebol entrevistado após


uma partida. O que ele fala é o seu discurso, a soma do que ele real-
mente disse com as condições que ele tem para dizer. Ao justificar uma
derrota, por exemplo, ele já tem em sua mente toda a argumentação
necessária para explicar ao público o que aconteceu. Na frente das câ-
meras ele explica com termos específicos e um vocabulário próprio.
A produção somada à expressão é chamada de “discurso”.
O “discurso”, esta maneira específica de pensar que gera, por
conseqüência, uma forma específica de expressão, existe de acordo com
suas condições de produção. Logo, no momento em que o advogado
fala, suas palavras vêm revestidas de um caráter quase cerimonial,
reforçado pelo ambiente em que esse discurso tem lugar – no escritório,
no Tribunal, entre seus pares, seu terno do advogado, compõe todo
um conjunto de representações sociais criadas pelos próprios meios
de comunicação sobre o profissional e inúmeras outras variáveis que
poderíamos apresentar aqui1.
Há, portanto, uma diferença fundamental entre o representante le-
gítimo de um campo e seu interlocutor. O valor simbólico de cada fala,
de cada discurso, é de tal maneira desigual que quando essa relação é
quebrada – um desafia, questiona ou desconfia do outro – o resultado
é a indignação do profissional, geralmente seguida do cancelamento de
todas as relações de trabalho. E o processo de decodificação da mensa-
gem reflete essa diferença entre a compreensão de ambos (Aranguren,
s.d., p.63).
Sendo a linguagem, entre outros elementos, um conjunto de hábitos,
o observador atento encontra uma série de revelações em uma conversa
cotidiana simples (Barthes, 2001). Da mesma maneira, há uma origem
social denunciada pela linguagem que pode ser utilizada como peça
importante no jogo simbólico em uma conversa. A origem do hábito
imediatamente posiciona o autor de uma frase em um espaço social par-
ticular, podendo ser reconhecido pelos seus interlocutores. A origem da

1. “As práticas judiciárias me parecem uma das formas pelas quais nossa sociedade
definiu tipos de subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, relações entre o
homem e a verdade que merecem ser estudadas” (Foucault, 2002, p. 11).
O interlocutor
como agente ético-moral 133

desigualdade lingüística entre pessoas com autoridades diferentes fica


estabelecida mesmo quando essa origem não está explícita.
Há, evidentemente, um princípio de cooperação entre os dois par-
ticipantes do diálogo, buscando um consenso de entendimento mútuo
e resultados satisfatórios para ambos, uma espécie de ponto de equilí-
brio formal que orienta a prática discursiva (Habermas, 2001, p.367).
A pessoa destituída da fala legítima tem dificuldades em erigir um
princípio de razão suficiente para reverter as regras simbólicas do meio
social As opções são participar do jogo ou retirar-se enquanto é tempo.
Há um princípio de cooperação tácita entre ambos2.
Um personifica a oferta qualificada, enquanto tudo o que sobra para
o outro é a aceitação do discurso legítimo e, na mesma proporção, as
possibilidades de compreensão do cotidiano. Ou, na proposição mais
clara e enfática de Wittgenstein, “os limites de minha linguagem são os
limites de meu mundo” (1993, p.245).
A ação comunicativa é determinante para o sucesso de outras ações
cotidianas, na medida em que racionaliza as intenções, as possibilida-
des de interação e mesmo a prática simbólica entre os indivíduos. A
sofística, essa retórica criticada desde a Grécia clássica, nada mais é do
que a elevação dessa prática à princípio moral – está certo quem tiver
os melhores argumentos, não quem tiver razão, ainda que a disputa
seja sobre a cor do céu3.
Esse tipo de sofisma, porém, não se manifesta apenas nas atribui-
ções linguísticas de valor na esfera privada. Ao contrário, está cada vez
mais presente na distribuição de espaços sociais na chamada “esfera
pública”. É o que passamos a ver.

2. “Falo em agir comunicativo quando os atores tratam de harmonizar internamente


seus planos de ação e só perseguir suas metas sob a condição de uma acordo
existente ou a negociar sobre a situação e as conseqüências esperadas” (Habermas,
1989, p. 165).

3. O melhor exemplo parece estar no diálogo Górgias, de Platão (1970), no qual


Sócrates, falando com um professor de retórica, ironiza: “Então o ignorante tem
mais poder de persuasão junto de ignorantes do que o sábio, se o orador for mais
convincente do que o médico?”. E Górgias, seu interlocutor, responde: “Assim é,
pelo menos neste caso” (p.309).
134 mídia, ética e esfera pública

A definição dos espaços e atores sociais


Há um segundo aspecto, provavelmente mais grave, que é a progres-
siva ampliação das prerrogativas auto-atribuídas da mídia invadindo o
campo politico. Se a doutrina democrática baseia-se em uma série de
práticas erigidas em regras e normatizadas, observamos hoje uma peri-
gosa estratégia de legitimação pelo procedimento e pela autoridade da
visibilidade adquirida por certos grupos e setores da sociedade que, de
alguma maneira, encontram trânsito livre para chegar à mídia.
A garantia de visibilidade da mídia, sua constante presença no coti-
diano e sua proximidade relativa das práticas diárias outorga-lhe, aos
olhos de certas parcelas da sociedade, essa visibilidade via de regra re-
vestida de uma falsa porém eficiente legitimidade.
Aliás, de alguma maneira, as possibilidades efetivas de transmissão
do discurso democrático encontram na mídia não apenas uma caixa
de ressonância, mas com efeitos possíveis de distorção, muitas vezes
praticada sem a intenção de prejudicar a outrem.
A ilusão de proximidade da mídia permite sua intervenção rápida
na constituição quase instantânea de práticas, regras e procedimen-
tos sociais erigidos, pela força retórica da exposição, em uma “norma”
cuja validade está condicionada à visibilidade na TV ou da internet.
No lugar da regra jurídica, uma espécie de simulacro da regra, atri-
buída unicamente pela prerrogativa que tem o profissional de mídia
de, pela amplitude de ressonância, transformar o que diz em verdade
legitimada pela câmera ou pela folha de papel. É uma dialética cruel
que reorganiza as estruturas de pensamento público transformando a
quantidade em qualidade, a parte no todo e a suspeita em evidência.
A falta de averiguação desse procedimento é inversamente pro-
porcional ao aparato técnico responsável pela correta avaliação dos
procedimentos em questão. Uma vez que existe, evidentemente, uma
diferença de propósito entre o discurso democrático e o discurso da
mídia, não se poderia esperar outro desenvolvimento. Nem sempre
isso acontece.
A avaliação superficial, feita pela mídia, de uma situação cujo julga-
mento cabe ao Direito, por exemplo, encontra um eco muito maior do
O interlocutor
como agente ético-moral 135

que a própria verdade jurídica devido à possibilidade de transmissão


direta, em linguagem simples, para um maior número de pessoas que
jamais teria – ou poderia ter – contato direto com as estruturas jurídi-
cas para compreender o que aconteceu.
Dessa maneira, a mídia ocasionalmente usurpa o lugar do Direito
no imaginário popular. A prerrogativa de definir os heróis e os vilões
do momento, bem como dos procedimentos corretos e incorretos de-
corre da capacidade que a mídia tem de criar a realidade objetiva na
medida em que fornece a um grande quociente de cidadãos o conheci-
mento dos fatos, pessoas e ações existentes.
Deve-se ressaltar, contudo, que não há um problema intrínseco na
divulgação de elementos particulares na esfera pública (Habermas,
1984, p.169). Ao contrário, grande parte das notícias são oriundas
de fontes particulares com o propósito explícito de se tornar público.
Conforme a caracteriza o autor do conceito, a “esfera pública constitui
principalmente uma estrutura comunicacional do agir orientado para
o entendimento, a qual tem a ver com o espaço social gerado no agir
comunicativo, nem com as funções nem com o conteúdo da ação coti-
diana” (2000, p.92).
A origem de grande parte das notícias, se não trata da economia
política – na qual sobram os temas gerados pelo Estado – está, de alguma
maneira, vinculada à esfera privada. Há dois aspectos que precisam ser
ressaltados. Em primeiro lugar (A), a estruturação da esfera pública a
partir da transformação nas formas de comunicação, o que influi na
criação das regras e normas que a regem; por outro lado, (B) os casos de
distorção desse sistema, as peripécias do chamado “jornalismo verdade”.

Comunicação e esfera pública


Em termos sociológicos, seria possível dizer que as pessoas existem na
medida em que estão vinculadas a algum tipo de relacionamento social.
A primeira forma de marginalidade é justamente não pertencer à lugar
nenhum. O protótipo do indivíduo que vive à margem da sociedade
é exatamente aquele desprovido de referências para identificação, isto
é, vínculos pessoais ou institucionais aos quais possa se reportar para
136 mídia, ética e esfera pública

garantir sua própria existência. Dessa maneira, as ações sociais se


distinguem de acordo com o tipo de relação existente em cada situação4.
A consciência das relações sociais é, todavia, limitada espaço e tem-
poralmente pelas condições imediatas de apreensão do mundo que nos
cerca. O conhecimento do cotidiano – entendido em seu sentido socio-
lógico, não filosófico – é em grande parte condicionado pelo acesso às
informações (Schutz, 1979). E isso, muitas vezes, significa estar atento
ao que é veiculado pela mídia. Aliás, em muitos casos, a única voz de
autoridade reconhecida é a própria mídia, revestida de um efeito de
realidade, um “efeito de real” obtido pela imagem5.
Um cidadão comum raramente tem acesso às instâncias de decisão
e poder. Todavia, ele será afetado, em maior ou menor escala, por tudo
o que é decidido nesses lugares. Para saber, por exemplo, sobre uma
nova restrição ao fumo ou uma nova lei sobre a colocação de carpetes
anti-alérgicos em veículos, a fonte de informação mais rápida é a mídia.
Ao conferir a mídia o estatuto de fonte confiável de informação, o
indivíduo outorga-lhe a disposição para compreender o que realmente
acontece e repassar isso de maneira correta, simples e confiável – o que
nem sempre acontece (Saperas, s.d.).
Quanto maior o contato entre o cidadão e a mídia, maior sua quan-
tidade aparente de informação. “Aparente” no sentido de que a mídia
efetua o tempo todo uma escolha do que efetivamente deve aparecer no
noticiário e do que fica para trás. Em outras palavras, de uma realidade
social composta de N fatos, a mídia necessariamente seleciona N1 para
divulgar, em um processo conhecido como newsmaking6.

4. A microssociologia de Ervin Goffman (1975) aborda exatamente esse tipo de padrão.

5. A expressão é de Roland Barthes. Dois de seus textos explicam esse fenômeno,


tanto na literal quanto pictorialmente. Cf. O efeito de real, in: VV.AA. Linguagem e
Comunicação, Petrópolis, Vozes, 1973, e A mensagem fotográfica, in LIMA, Luiz C.
Teoria da Cultura de Massa, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.

6. O uso da expressão em inglês é consagrado na doutrina da comunicação. Pode ser


traduzido como “produção de notícias”, e constitui uma área específica de estudos. Cf.
WOLF, M. Teorias da Comunicação, Lisboa, Presença, Sd., SANTOS, J. Comunicação,
Lisboa, Asa, S.d., MARTINO, L.M. Mídia e Poder Simbólico, São Paulo, Paulus, 2003
e KUNCZIK, M. Conceitos do Jornalismo, São Paulo, Edusp / ComArte, 1997.
O interlocutor
como agente ético-moral 137

Há uma confusão comum entre esse processo de seleção temática e a


distorção/ manipulação voluntária da informação. O trabalho jornalístico
é condicionado por algumas regras escritas – inclusas no chamado “Direito
da Comunicação” – e centenas de regras e princípios tácitos.
Mais do que as normas jurídicas, o campo jornalístico é estruturado
por essas práticas com força de lei (Barros Filho e Martino, 2003). A
noção de “verdade”, porém, está condicionada ao significado que lhe é
outorgado em cada campo7.
Um repórter, por exemplo, ao trabalhar em uma matéria, consegue
escrever um texto de 5 mil caracteres após entrevistar 4 pessoas e obter
vários pontos de vista sobre um assunto, falando com fontes legítimas e
obedecendo todos os critérios típicos da prática jornalística. Na hora de
publicar sua matéria, porém, o editor ou diretor de redação, alegando
problemas de espaço, corta o número de caracteres pela metade e
exclui, com isso, uma das pessoas entrevistadas8.
Evidentemente a distância entre a realidade e o trabalho do repórter,
já evidentes no primeiro texto, aumenta muito após essa intervenção
do editor, e aumentará mais ainda conforme a diagramação, isto é,
a disposição do texto, fotos e elementos gráficos, e a disposição da
matéria no site ou na publicação – uma reportagem com chamada de
capa está muito mais próxima do leitor do que uma reportagem em
uma página qualquer da publicação.
O efeito dessa seleção, em última análise, é condicionar as possibili-
dades de informação para o espectador. Quando, no Jornal Nacional,
vemos uma notícia de dois minutos, devemos ter em conta que pelo me-
nos o dobro foi deixado de fora na edição final. O resultado é a apresentação
de uma realidade, aos olhos do público, muito diferente do original9.

7. O assunto é suficientemente debatido nos livros normatizadores do da comuni-


cação. O leitor interessado encontrará farto material em KARAM, F. J. Jornalismo,
ética e liberdade, São Paulo, Summus, 1997 e BUCCI, E. Sobre ética e imprensa, São
Paulo, Cia. das Letras, 2001.

8. LIPMANN, W. Public Opinion, New York, Penguin, 1944.

9. Um estudo específico sobre o tema, acompanhado de excelente base teórica, está


em LIMA, Venício. Mídia – Teoria e Política, São Paulo, Perseu Abramo, 2001.
138 mídia, ética e esfera pública

O problema é que, nas práticas cotidianas, o individuo tende a se


basear nesse simulacro de informação apresentado para tirar suas con-
clusões10. Conforme explica Habermas, essa limitação da comunicação
evita “uma desestabilização provocada por dissenso fundamentado, na
medida em que os destinatários não podem questionar a validade das
normas a serem seguidas” (2000, p.59).
Quando se lê que determinado banqueiro é “ético”, que certa empre-
sa é “correta” ou, pelo contrário, assisto a uma reportagem sobre uma
fábrica que adultera seus produtos, temos um instantâneo da realida-
de transformado em retrato fixo. Todo o passado da personagem (ou
instituição) é comprimido naqueles minutos de louvor ou denúncia,
garantindo um julgamento social diferente, por vezes contrário, da re-
alidade. E nisso, é preciso insistir, não está nenhuma intenção ruim da
parte do jornalista ou do editor. É apenas a manifestação de um proce-
dimento profissional legítimo.
É claro que existem manipulações propositais, dignas de toda
a censura, mas o que está em jogo são as consequências seguras do
procedimento normal. A noção de que todos são iguais perante a
lei esbarra, quando se trata da mídia, no tratamento dado à cada
instituição ou ator. A ordem jurídica, no imaginário popular, sofre um
efeito de distorção originado nos julgamentos prévios de valor levados
à efeito pela mídia. Os meios de comunicação regulam as possibilidades
de discussão na esfera pública, estruturando-a de acordo com as
necessidades e condições específicas de ação (Habermas, 2000, p.43).
Apresentados ao público os heróis e os vilões, compete depois à Jus-
tiça legitimar ou não essa opinião. Em alguns casos, isso acontece tarde
demais. Na interpretação de Phillipe Guilhaume, esse tipo de procedi-
mento acaba por diluir as fronteiras entre o que é jornalismo, propa-
ganda ou simples ficção no imaginário do espectador (1991, p.18).
O chamado “caso da escola base” foi por demais exemplar para
deixar de ser citado, mas em porporções menores esse procedimento

10. Jean Baudrillard aponta que esse tipo de consumo não apenas é definidor das
práticas sociais como também garante uma espécie de satisfação para quem o con-
some, em uma espécie de “auto-engano” justificado pelo consumo do simulacro na
comunicação. Cf. BAUDRILLARD, J. A Sociedade do Consumo, Lisboa, Elfos, s.d.
O interlocutor
como agente ético-moral 139

acontece com muito mais freqüência. Por uma tendência oriunda de


suas origens e entrelaçamentos com a literatura, o campo da comuni-
cação costuma dividir os atores sociais em categorias fixas – o bem e
o mal, conforme o caso – e distribuir as ações conforme essa classifi-
cação. Todos são iguais perante a lei, mas ninguém é suficientemente
igual perante a mídia11.
Há todo um elenco de personagens do mal – alguns políticos, téc-
nicos de futebol, certas figuras do meio artístico – de algum modo já
julgados e culpados pelas instâncias da mídia. Nada é possível fazer
para modificar essa imagem, na mesma proporção em que outros são
cotidianamente canonizados como heróis públicos.
Em alguns casos, porém, esse tipo de julgamento não é fruto uni-
camente das condições de trabalho no campo da comunicação, mas de
uma estratégia para obtenção de audiência. Nessas condições, a mídia
se apresenta ao mesmo tempo como juíz e executor da sentença.

A mídia como simulacro do jurídico


A brevidade deste último ítem é inversamente proporcional ao estrago
feito pela mídia quando resolve tomar o lugar da justiça e oferecer ao
público o espetáculo do julgamento, condenação e execução de alguém.
Com efeito, há uma deturpação das atribuições do jornalista quando,
escondido sob a marca do “jornalismo verdade”, transforma o espaço
televisivo em um circo de horrores medieval. É o reino do fait divers,
como define Roland Barthes (1982).
Cientes da prerrogativa de estruturação imediata da esfera pública,
alguns profissionais aproveitam-se da situação para atuarem como me-
diadores, juízes, promotores e executores.
Sob a alegação de “defender o bem público”, geralmente acompanhada
de meia dúzia de acusações contra o Poder Judiciário (“a Justiça é lenta”,
“no Brasil justiça é só para ricos”) aparecem de tempos em tempos
profissionais aparentemente dispostos à expor os problemas do público

11. A persuasão, como observa Aristóteles, depende em grande parte das predis-
posições do ouvinte criadas por fatores sobretudo emocionais. Cf. ARISTÓTELES,
Arte Retórica, Imprensa Nacional, Lisboa, 2000, p. 49.
140 mídia, ética e esfera pública

e tomar partido em questões para as quais não estão habilitados a falar,


exceto em uma forma muito primitiva, quase bíblica, de justiça.
Há um sem número de exemplos para ilustrar a questão. Os programas
popularescos destinados a exibir o estranho, às vezes acompanhado
de notícias policiais, deliciam o público pelo insólito das notícias
apresentadas e pela sensação de proximidade entre os casos apresentados
e o cotidiano. De O povo na TV, passando pelo Programa do Ratinho até
o Cidade Alerta e o Linha Direta, programas desse tipo mantém grande
parte de seu apelo popular na tomada de posição no uso de estratégias
jurídicas para a encenação de situações peculiares.
De tempos em tempos o Fantástico, da Rede Globo, exibe sob di-
versos nomes um quadro no qual uma câmera escondida acompanha
um repórter, disfarçado de cliente, à procura de algum bem ou serviço.
Enquanto vemos procedimentos técnicos – alheios, portanto, ao resto
da sociedade, profissionais corruptos são desmascarados por um téc-
nico autorizado que explica os erros para o público. O resultado é a
caracterização imediata dos bons e dos maus, o julgamento sem direito
à defesa e diante de um juiz institucional infinitamente mais poderoso
do que qualquer cidadão. Os direitos de resposta, quando existem, ra-
ramente têm a mesma repercussão do material apresentado (Rivers e
Schramm, 1970, p.219).
A eficácia simbólica dessas práticas vai muito além da condenação
explícita de uma pessoa ou de uma empresa12. Ao tomar a iniciativa
de averiguar os fatos, a mídia eventualmente ocupa o terreno da in-
vestigação policial. Quando julga, ocupa o lugar do juíz no território
do Direito. Nos dois casos, uma vaga sensação de incompetência fica
patente, garantindo um espaço de destaque para os profissionais envol-
vidos. Isso acontece em um grau tão alto que não é raro que jornalistas
e profissionais do rádio procurem capitalizar politicamente o ganho
simbólico obtido em seus programas. Eleitos por apontarem os heróis
e vilões da esfera pública.

12. Essa predisposição para a definição de uma moral pública é tratada em um


artido de Colin Shaw datado de mais de trinta anos, mas ainda atual em sua argu-
mentação sobre a responsabilidade social da mídia. Cf. SHAW, C. Television and
popular morality, The Sociological Monograph Rewiew, Keele University, Jan. 1969.
O interlocutor
como agente ético-moral 141

As relações entre o Direito e a Comunicação acontecem em dois


momentos distintos. Seja na criação e avaliação de um discurso, no
qual a comunicação mostra a posição relativa do profissional do Direito,
seja na estruturação da esfera pública, as capacidades de trabalho são
rigorosamente as mesmas. Saber falar, compreender o que se fala e o
significado dessa própria fala, bem como os efeitos sociais de uma de-
terminada comunicação é fundamental para compreender o desenvol-
vimento das formas jurídicas de uma comunidade. Não é por acaso
que o primeiro livro de teoria da comunicação foi também um manual
prático de argumentação – a Arte Retórica, de Aristóteles.
PARTE II

Ética, produção de informações


e esfera pública
capítulo 6

Passagens entre os conceitos


de “campo da comunicação” e
“esfera pública”

O repertório conceitual dos estudos de Comunicação, por


conta das características relacionadas à indefinição de suas especifi-
cidades epistemológicas, é povoado por uma miríade de conceitos
oriundos de várias áreas do conhecimento, ora articulando-se com
objetos específicos a partir de recortes do midiático ou do social, ora
estabelecendo-se como operadores do próprio conceito de “comuni-
cação” (Martino, L.M. 2013, 2014; Martino, L. C., 2005). A discussão
a respeito da validade epistemológica desse tipo de apropriação, bem
como das possibilidades de se caracterizar essa pluralidade como com-
ponente da natureza “interdisciplinar” da área ou como um problema
de indefinição teórica, é objeto consagrado de reflexão, e sua proble-
matização ultrapassaria os limites deste texto (cf. Martino, L.C., 2001;
Braga, 2004; França, 2001).
144 mídia, ética e esfera pública

Nesse sentido, é necessário observar que à importação dos conceitos –


seria problemático falar em “diálogo” disciplinar – corresponde um
determinado uso desse aparato conceitual. Sem entrar no mérito da
discussão a respeito da interdisciplinaridade e das ambivalências exis-
tentes na área de Comunicação, observa-se, no cotidiano da pesquisa,
certas tensões na utilização de elementos de origens epistemológicas
distintas, aproximados, aparentemente, tendo em vista sua presença
como termos válidos, legítimos e legitimados dentro de uma área de
estudos.
Embora esta problemática venha rendendo inúmeras discussões
na área a respeito de sua constituição e limites por conta dessas apro-
priações, este texto procura trabalhar um caso específico, advindo de
inquietações experienciadas pelos autores no âmbito das atividades de
orientação de pesquisas na área coberta pela intersecção “Comunica-
ção”, “Mídia” e “Política”. Trata-se do uso, muitas vezes justaposto, das
noções de “Esfera Pública”, formulada por Habermas (1962,1984; 1997,
2006) e “Campo”, exposta por Bourdieu (1980a; 1980b; 1995) traba-
lhados em certas ocasiões, no discurso teórico, como elementos em
relação. O exemplo mais comum é a caracterização da mídia como ins-
tituição/ator central para a configuração de redes de esferas públicas,
mas que, ao mesmo tempo, opera como Campo específico (dotado de
um habitus) e que, por isso mesmo, é capaz de minar a construção de
mediações entre distintas esferas de debate, configurando uma relação
dialética: a mídia é essencial para a promoção de esferas públicas na
atualidade, mas pode miná-las por uma série de modos de operar (ins-
titucionais, simbólicos, éticos e poíticos) que perpetuam, assimetrias,
desigualdades, injustiças e desvalorizações. Nesse sentido, as reflexões
de Habermas e Bourdieu são aproximadas de modo muitas vezes equi-
vocado, visto que ambos estão tratando de diferentes dimensões das
práticas comunicativas e democráticas.
O objetivo deste capítulo é explorar algumas distinções conceituais
existentes entre duas noções correntes nos estudos de Comunicação
que, embora de difícil aproximação epistemológica, são por vezes
utilizadas como elementos contíguos. As noções de “campo da
comunicação” e “esfera pública”, embora tenham gênese, conceituação
Passagens entre os conceitos
de “campo da comunicação” e “esfera pública” 145

e desenvolvimento em tudo distintos, são por vezes objetos de certa


justaposição, sobretudo nas aproximações iniciais de pesquisadores
na Área de Comunicação. A partir de pesquisa bibliográfica e
conceitual, as duas noções são contrapostas no sentido de mostrar suas
peculiaridades.
Se é possível destacar brevemente a inquietação na origem deste
texto, vale uma referência a uma certa demanda de estabelecimento
de algumas questões terminológicas não com o objetivo de se chegar
a definições fechadas a respeito de nenhum dos dois conceitos, mas
problematizar eventuais aproximações a partir da indicação das oposi-
ções – mas também das eventuais possibilidades de articulação – entre
os dois conceitos.
Noções de ampla circulação nos meios acadêmicos, “esfera pública”
e “campo” parecem ter sido objeto de inúmeras discussões, apropria-
ções e críticas nos estudos de Comunicação, o que sugere certa maturi-
dade em sua vinculação à área que permite inferir a necessidade de se
construírem distinções que, sem se restringirem à clausura epistemo-
lógica à qual se condenam conceitos impermeáveis, podem sobretudo
indicar caminhos para que se pense o fenomênico a partir desses refe-
renciais, mas sem que o alcance elucidativo de ambos se converta em
um omnibus conceitual.
Certamente apropriações conceituais, ao seguirem trajetos diver-
sos, às vezes contrários a sua formulação original, indicam entre ou-
tras coisas a vitalidade do pensamento originário, mesmo quando isso
signifique articulações distantes do proposto. No entanto, a procura
de critérios para a articulação entre o plano de validade dos conceitos
para sua operacionalização como intérpretes ou mediadores de situa-
ções empíricas não prescinde certas distinções no sentido de definir, ao
menos, pontos de partida.
Entende-se que a liberdade no uso das noções, se por um lado é
amplamente bem-vinda como condição imprescindível para o desen-
volvimento epistemológico de uma área do saber, por outro lado está
parcialmente vinculado aos usos anteriores feitos dessa noção ou, em
outras palavras, sua vinculação a um “canon” que, mesmo em condi-
ções nas quais se aponta uma necessária ruptura, deve ser reconhecido
146 mídia, ética e esfera pública

como existente – a reformulação de um conceito pode questionar sua


validade na medida em que tal elemento é previamente reconhecido e
questionado; a ausência de reconhecimento impediria, de saída, qual-
quer reformulação.
O emprego corrente das noções de “Esfera Pública” e “Campo da
Comunicação” nos estudos de Comunicação, a exemplo de outros con-
ceitos, parece se pautar inicialmente – e destaque-se novamente a res-
trição pedagógico-espacial na origem deste texto – por certo uso con-
tíguo ou próximo no qual os dois elementos são conjugados em uma
relação próxima do causal, com pouca ou nenhuma problematização
da complexidade de cada um dos conceitos em sua apreensão.
Valeria, então, questionar preliminarmente algumas possíveis
razões dessa aproximação.
No âmbito de pesquisas vinculadas a diversas temáticas, a
constituição de uma “esfera pública”, com o uso do termo em sentido
bastante lato, é relacionada ao que acontece no “campo da comunicação”,
como se a primeira fosse uma espécie de produto dependente, ou ao
menos articulado, do segundo. Seria possível questionar, à primeira
vista, se essa articulação não poderia encontrar respaldo no empírico na
medida em que as clivagens de sua construção epistemológica, indica
Jenkins (2006) não elimina as contiguidades do real. Sob esse ponto
de vista, seria talvez lógico procurar na contiguidade conceitual os
operadores epistemológicos para uma contiguidade empírica. A busca
de uma distinção, no caso, se aproximaria de uma questão nominalista
destacada pela complexidade bizantina de suas definições.
No entanto, parece haver um risco implicado nesse tipo de aproxi-
mação responsável por justificar as inquietações aqui expostas. O “uso”
de um conceito não advém, ou poderia advir, da apropriação acríti-
ca de termos. O “trabalhar com conceitos”, atividade por excelência
do espaço acadêmico, parece implicar na apreensão de um repertório
conceitual que leve em consideração o caminho de suas genealogias no
próprio espaço do qual é um dos operadores.
Nesse momento, algumas das fragilidades de certas justaposições
tendem eventualmente a aparecer em diversas formas, mas especial-
mente como diferenças a respeito da trajetória de cada um dos conceitos,
Passagens entre os conceitos
de “campo da comunicação” e “esfera pública” 147

bem como da parcela do “campo da experiência” coberta por eles. As


contradições entre autores, comentaristas, usos e articulações dife-
rentes, ou, em outras palavras, a genealogia de cada conceito, tornam
problemáticas as apropriações embasadas em semelhanças de caráter
predominantemente empírico e/ou especulativo.
Operador epistemológico central no pensamento de seus respecti-
vos autores, os conceitos de “campo” e “esfera pública” encontram largo
trânsito nos estudos de Comunicação, por vezes apropriados como se
fossem parte de uma espécie de todo homogêneo. Em alguns casos, se-
ria possível mesmo encontrar seu uso vinculado a uma questão causal,
como se as dinâmicas específicas do chamado “campo da comunica-
ção” tivessem como resultado a presença de temas no âmbito da “esfera
pública”.
Certamente, tomando como referência o empírico, seria possível
talvez encontrar conexões entre todos esses elementos na medida em
que conceitos, ao formularem seus recortes interpretativos específicos
da realidade, operam seleções arbitrárias questionáveis. No entanto, é
preciso observar em certos momentos a atribuição de sentidos originá-
rios aos conceitos apresentados para representar uma realidade que, a
princípio, lhes é estranha ao menos na maneira como são apresentados.
Por conta disso, busca-se aqui desenvolver algumas das incompa-
tibilidades conceituais a partir da apreensão mútua e intercruzada das
regiões do real apreendidas em cada um dos conceitos. Assim, o texto
estrutura-se em três partes. Na primeira, (1) é discutido o conceito de
“campo” em sua apropriação como “campo da comunicação” e espaço
potencialmente produtor de elementos para a “esfera pública”, sugerin-
do que ligações diretas entre ambos enfrentariam consideráveis difi-
culdades epistemológicas; em seguida (2), a noção de “esfera pública” é
problematizada na sua relação com os meios de comunicação, indican-
do que as menções feitas por Habermas à mídia não permitem, por sua
vez, inferir a existência de um “campo”; finalmente (3), são pensadas
aproximações derivativas desses conceitos no sentido de compreender,
ou empreender, eventuais aberturas metodológicas.
Note-se, preliminarmente, que a intenção aqui não é fazer uma
comparação entre os conceitos de “esfera pública” e “campo da comu-
148 mídia, ética e esfera pública

nicação”, e menos ainda fazer uma aproximação entre ambos, trabalho


certamente difícil nos limites de um artigo. Trata-se apenas de buscar
algum esclarecimento conceitual derivado das perspectiva de uso dos
conceitos. A proposta é caminhar em trilhas existentes, não fechá-las
ou apontar outros caminhos.

O “campo da comunicação” e a visibilidade pública


O conceito de “campo” assume considerável relevância metodo-
lógica na obra de Pierre Bourdieu, sendo provavelmente um de seus
operadores epistemológicos mais bem-sucedidos em termos não só de
utilização em suas próprias pesquisas, mas também nas ramificações
encontradas em trabalhos de inúmeros outros pesquisadores. A gênese
do conceito de “campo”, bem como as discussões críticas, encontram
considerável espaço em trabalhos de Bourdieu (1980a, 1980b, 1995) e
de outros pesquisadores – cf. Alexander (2000), Barros Filho e Martino
(2003) e Girardi (2007), cabendo aqui a discussão a respeito do “campo
da comunicação”. Com o risco de certo truísmo, e procurando traba-
lhar dentro das referências conceituais oferecidas pelo autor, pode-se
iniciar a discussão a partir de algumas indagações.
Uma questão primeira pode ser pensada em termos relativamente
simples: existe um “campo da comunicação”? Ao se utilizar essa ex-
pressão, e supondo uma resposta afirmativa derivada de seu uso – na
legitimação pela incorporação do termo ao “canon” de uma área de
pesquisa, como indica Lopes (2003) – se pressuporia outra, parafrase-
ando França (2001): de que “campo da comunicação” estamos falando
quando se usa essa expressão? Alguma resposta tentativa implica cla-
rear o espectro do que se está dizendo.
A expressão “campo da comunicação” tem presença rara, para não
dizer nula, na obra de Pierre Bourdieu. Como assinala Miranda (2005),
o autor francês não chegava a considerar a comunicação um “campo”, e
isso pode ser creditado, ao menos em parte, à definição relativamente
diferente que a palavra “comunicação” encontra nas esferas euro-ame-
ricanas de pesquisa. Uma parte do que se abriga sob a ideia de “campo
da comunicação” nos estudos latino-americanos, e, em especial, nos
Passagens entre os conceitos
de “campo da comunicação” e “esfera pública” 149

brasileiros, é considerado como pesquisa em “meios de comunicação”


em estudos correlatos de outras partes, enquanto estudos propriamente
de “comunicação” são por vezes associados à pesquisas em áreas cor-
relatas – o que não significa assinalar, por outro lado, a inexistência
desse tipo de estudos, como em Mucchielli (1991) ou Wolton (1997).
Em linhas gerais, no entanto, seria possível indicar, cientes dos riscos
implicados, certa equivalência entre o que é chamado de “campo da
comunicação”, nas pesquisas latino-americanas, e “estudo dos meios
de comunicação” em outros espaços – cf., por exemplo, Felinto (2011).
Dessa maneira, a escassez de menções a um “campo da comunicação”
na obra de Bourdieu pode ser justificada, até certo ponto, pelo baixo
grau de incidência desse tipo de nomenclatura para se pensar esse tipo
de pesquisa.
Mesmo restringindo a questão para se pensar os “meios de comuni-
cação”, é necessário considerar igualmente o baixo grau de apropriação
do termo na obra do sociólogo francês. Bourdieu dedicou pouquís-
simos trabalhos ao estudo dos meios de comunicação, e nenhum de-
les costuma ser alocado entre suas principais pesquisas. Mais ainda,
trata-se de trabalhos dirigidos a questões específicas sobre jornalismo
(1996; 1998) e, um de seus trabalhos mais populares, sobre televisão
(1996).
Note-se, de saída, que não parece existir, nesse caso, uma preocupa-
ção do autor em caracterizar o “campo da comunicação” ou mesmo um
“campo da mídia”, mas de trabalhar as dinâmicas específicas de dois
“meios de comunicação” pensados, na trilha metodológica do autor,
em termos de suas características sociais e institucionais como parte de
um “mercado de bens simbólicos” muito mais do que por conta de sua
parte técnica – seria difícil, nesse sentido, indicar Bourdieu como for-
mulador de um estudo particular sobre as características tecnológicas
dos meios de comunicação na medida em que sua apropriação se dá
a partir da noção de “campo” articulada com espaços sociais bastante
determinados – a intersecção formada pelas empresas jornalísticas (ou
televisivas) e seus participantes, dentro de um espaço estruturado de
relações nos quais interesses diversos alinham-se em torno de repre-
sentações comuns eivadas de lutas, conflitos e processos diversos.
150 mídia, ética e esfera pública

Mais ainda, em seus trabalhos dedicados ao jornalismo e à televi-


são, Bourdieu parece adotar uma perspectiva bastante crítica sem, no
entanto, se dedicar ao estudo das minúcias da produção desse tipo de
espaço como ocorre, por exemplo, em seus estudos clássicos sobre edu-
cação (1964; 1970), arte (1970) e consumo cultural (1979). Ao contrá-
rio, talvez não seja impossível encontrar, com Ortiz (1991), afinidades
próximas entre a crítica de Bourdieu aos meios de comunicação e o
conceito de “indústria cultural” de Adorno e Horkheimer, na medida
em que parece se tratar muito mais de um exercício de denúncia e crí-
tica do espaço dominante ocupado pela mídia na sociedade contempo-
rânea do que propriamente um estudo pormenorizado das dinâmicas
desse espaço.
Em dois de seus textos dedicados ao tema, os artigos “Journalisme et
Ethique”, bem como em “L’influence du journalisme”, este último publi-
cado como apêndice à Sobre a Televisão, Bourdieu apresenta questões
relacionadas às contradições e possibilidades de ação existentes nas di-
nâmicas internas da produção jornalística, sobretudo localizando um
conflito de interesses entre os profissionais, os jornalistas, e os proprie-
tários dos jornais, empresários ocupantes de posições evidentemente
dominantes que, por relações de homologia, encontram-se igualmente
ligados aos dominantes do campo político e econômico.
Há, no que se afigura à apreensão como um “campo do jornalismo”, um
duplo conflito de interesses entre os profissionais, comprometidos com
uma ética específica de trabalho mas submetidos a condições regulares
que desafiam continuamente esses parâmetros, e os empresários,
vinculados a interesses outros que ultrapassam os limites de um campo
específico de atuação. Há uma perspectiva, nos dois casos, de se pensar,
de um lado, a prática jornalística como o resultado de uma assimetria
tensionada entre o polo dos profissionais, vinculados a um espaço com
valores específicos pautados na centralidade de um “modus operandi”
constitutivo de uma “ética”, e o pólo da empresa jornalística, que,
detentora dos meios de produção, encontra-se também em posição
de definir os prêmios legítimos da área a partir de sua prerrogativa
de dispor dos cargos, salários e espaços a ocupar – veja-se, para um
estudo prático dessas condições, o trabalho de Ribeiro (1995).
Passagens entre os conceitos
de “campo da comunicação” e “esfera pública” 151

Por conta disso, a dupla lógica desse espaço talvez implique uma
dificuldade inicial para se mencionar um “campo do jornalismo” em
que essas duas condições não fossem contempladas. Ao profissional
jornalista cabe a “resistência” e a tentativa de mudança diante de uma
lógica claramente comprometida com uma ética que não é a sua. Seria
possível, nesse aspecto, indicar mesmo uma aporia central nessa pers-
pectiva uma vez que tanto o profissional, encerrado em suas condições
específicas, quanto o empresário, aparentemente livre delas, estariam
igualmente subsumidos nessa lógica de apropriação dos resultados
desse espaço.
Em “Sobre a televisão”, seu trabalho comercialmente mais bem-su-
cedido, a análise igualmente não se fundamenta na apropriação das
particularidades específicas das “rotinas produtivas” e dos interesses
desse campo, mas na operacionalização imediata do conceito de “cam-
po” ao espaço empresarial da televisão. Não há, como se pode observar
nos trabalhos sobre jornalismo, sequer uma indicação de incongruên-
cias éticas entre os diferentes níveis de participantes em cada situação;
parece haver um certo entendimento subjacente de que as lógicas do
capital no espaço de produção da televisão indicam de modo claro o
bastante quais são os resultados esperados.
Vale notar, neste momento, que a questão do “interesse público”,
fundamental para que se pense alguma relação entre “campo do jor-
nalismo” e “esfera pública”, é praticamente ausente das cogitações de
Bourdieu sobre jornalismo e televisão. É possível indicar, como uma
das razões dessa ausência, certa desconfiança em relação a palavras
como “público” e “popular”, preteridas em relação à elaboração de
suas próprias categorias de análise para a delimitação do “social” em
suas regiões específicas, com carcterísticas particulares (embora até
certo ponto universalizáveis), dotadas de regras e regularidades – os
“campos”, portanto. Dessa maneira, categorias como “público”, “povo”,
“popular” e “interesse público” parecem estar metodologicamente au-
sentes por conta de sua dificuldade de operacionalização a partir dos
limites de um “campo”. E, no entanto, vale recordar o tensionamento
dessa perspectiva epistemológica com o poder, em certo sentido gene-
ralizado, atribuído aos meios de comunicação em suas análises.
152 mídia, ética e esfera pública

Em Bourdieu, o produto resultante das “condições e contradições”


do trabalho jornalístico não é objeto de problematização pela socieda-
de. As chamadas “rotinas produtivas” do “campo do jornalismo” não
são seu objeto de estudo, e, principalmente, as seleções temáticas ope-
radas no âmbito desse campo não são relacionadas, pelo autor, como
elemento de “visibilidade pública” de temáticas senão no interesse das
forças em jogo em sua produção. Dessa maneira, os temas divulgados
pelos jornais e pela televisão parecem se mostrar como resultado de
interesses internos a esses dois espaços – evidentemente, não se pode
excluir a toda complexa gama de seus elementos constitutivos, dos
quais não podem ser separados senão por conveniência metodológica
no âmbito de um artigo limitado – e dificilmente operacionalizáveis
como tendo “visibilidade pública” se não em uma lógica específica de
poderes a serem pensados.
Dessa maneira, embora existam tensionamentos na consideração de
um “campo do jornalismo” ou “campo da televisão”, sua “influência” é
indiscriminadamente pensada sobre uma espécie de generalização que não
caracteriza as principais elaborações teóricas de Bourdieu. Em seus traba-
lhos sobre mídia, em especial em Sobre a Televisão, a perspectiva adotada
parece ser a de uma reelaboração fina do conceito de “Indústria Cultural”
não necessariamente articulada em termos de uma lógica de “campo”, mas
aparentemente como um poder central na sociedade contemporânea a se
tornar alvo de crítica, desnaturalização e resistência possível.
Os produtos resultantes desse “campo do jornalismo” ou “da
televisão” não parecem ser vistos por Bourdieu em nenhuma dimensão
propriamente epistêmica; não se trata sequer de uma “informação” que
permita ao cidadão elaborar suas próprias considerações a respeito dos
fatos de seu interesse, mas de uma ordenação dos fatos pautada quase
exclusivamente por interesses comerciais e políticos. Embora, como
será visto a seguir, seja altamente questionável atribuir à Habermas
uma postura diferente no que tange aos meios de comunicação, a
perspectiva de uma dimensão epistêmica da democracia pressupõe,
em algum momento, o livre acesso à informação, algo que de algum
modo implica o diálogo e a deliberação, situação na qual os dados da
mídia podem ser, ainda que parcialmente, incluídos.
Passagens entre os conceitos
de “campo da comunicação” e “esfera pública” 153

Vale notar que há uma larga descendência da noção de “campo” no


chamado “pensamento comunicacional”, sobretudo por conta de suas
potencialidades interpretativas das dinâmicas multimodais existentes nas
intersecções entre as atividades práticas da área, como o jornalismo e a
publicidade e propaganda, e as contradições geradas em alguns momentos
pelos interesses de mercado aos quais esses sub-campos respondem.
Sem a intenção de rastrear os usos do conceito, valeria destacar o
uso feito por Rodrigues (1999) da expressão “campo dos media” para
designar um espaço social diverso daquele apontado por Bourdieu
constituído pelas empresas de comunicação, entendidas não só como
participantes de um espaço relativamente autônomo mas também
como agências de intersecção de produção simbólica em um contexto,
embora a expressão não seja dele, de mediatização da sociedade.
A afinidade inicial entre os dois autores, no que tange aos meios
de comunicação, é negativa: o poder de influência da televisão e do
jornalismo, para Bourdieu, é decorrente em parte de sua organização
empresarial e dos desarranjos de campo a ela vinculados. Nas refle-
xões de Habermas (sobretudo aquelas produzidas na década de 1960),
guardadas evidentemente todas as inúmeras diferenças, a perspectiva
da passagem de um “jornalismo político” para o predomínio do “jor-
nalismo comercial” parece ser igualmente danosa.
Se apontar essas afinidades negativas pode, a princípio, ser interes-
sante para identificar similaridades críticas entre os autores – o que
pode, por outro lado, ser frutífero em outros espaços – há um proble-
ma de ordem epistemológica na apreensão propositiva de seus concei-
tos no que tange à noção de “interesse público” e sua relação com os
meios de comunicação, associação praticamente inexistente em Bour-
dieu e, no entanto, central para o pensamento de Habermas.

 Formulação dos debates na “Esfera Pública”


e dimensão epistêmica da democracia
  A esfera pública, como vimos anteriormente, é o espaço de uma
situação de fala, de diálogo, na qual os participantes buscam tomar
uma posição perante as opiniões e observações dos outros. Por isso,
154 mídia, ética e esfera pública

ela é constituída através da linguagem, a partir do momento em que


atores ou grupo de atores tematizam e generalizam questões de modo
a despertar o interesse do público mais amplo e da esfera parlamentar.
(Maia, 2009; Marques, 2008).
A dimensão epistêmica da democracia, para Habermas, estaria
ligada a dois momentos: a busca de um entendimento mútuo que exige
o conhecimento dos diversos pontos de vista que cercam um problema
público, além do conhecimento das regras que conduzem os diálogos
e negociações (princípio da publicidade). O segundo momento é o que
exige dos interlocutores o conhecimento recíproco de seus interesses,
desejos e insatisfações, o que pode ser alcançado se cada um assumir
o “lugar do outro” (pricípio do ideal role taking) procurando, por meio
dos sentimentos morais (empatia e solidariedade) entender os motivos
e razões que sustentam suas demandas. O alcance desse “ponto de vista
moral”, base da ética do discurso, é, a nosso ver, a parte mais complicada
do modelo democrático habermasiano e, justamente por isso, alvo
principal de seus críticos e sucessores (sobretudo Axel Honneth).
Para Habermas, a discussão que forma e alimenta uma rede de
esferas públicas acerca de temas morais (ligados à justiça) tem pouca
relação direta com a mídia (entendida aqui a partir de seus modos de
funcionamento, práticas e rotinas) – e, portanto, com o “campo da
comunicação”. É claro que a mídia é apontada por ele em trabalhos
recentes como espaço central de circulação pública de discursos
oriundos de diferentes espaços sociais. Na parte final do segundo
volume da Teoria da Ação Comunicativa, por exemplo, Habermas
aborda a mídia como um elemento capaz de fazer a transposição de
discursos - e sua posterior conexão - formulados em contextos sociais
e institucionais “apartados” rotineiramente, promovendo uma pré-
estruturação da esfera pública:

[...] a mídia de massa liberta os processos comunicativos dos con-


textos restritos e permitem que esferas públicas apareçam através
do estabelecimento uma simultaneidade abstrata de uma rede vir-
tualmente presente de conteúdos da comunicação que pode se mo-
ver no espaço e tempo tornando válidas mensagens para inúmeros
contextos” (Habermas, 1987, p.389). 
Passagens entre os conceitos
de “campo da comunicação” e “esfera pública” 155

Os meios de comunicação articulam o conteúdo discursivo que


circula nos diferentes espaços de interação cotidiana, trazendo para
a linha de frente os temas que os profissionais julgam relevantes, per-
mitem a aproximação ou contraposição de perspectivas e promovem a
prestação de contas entre vários interlocutores. Assim, a mídia parece
ser descrita como suporte material adequado para a circulação de vi-
sões privadas, configurando redes de discursos e negociações temati-
camente organizados.
Desde a revisão que Habermas fez acerca de sua obra Transformações
Estruturais da Esfera Pública (1962), ele desenvolve o argumento
de que os meios de comunicação desempenham um papel dúbio na
configuração dos processos democráticos: se por um lado eles tornam
públicos os discursos de atores localizados em diferentes arenas
comunicativas, libertando as informações de seus contextos de origem
e tornando-as acessíveis a uma vasta maioria, por outro lado, os
profissionais da mídia produzem um discurso alimentado por atores
que lutam por acesso e por influência.

A esfera pública simultaneamente pré-estruturada e dominada


pelos meios de comunicação desenvolveu uma arena infiltrada
por poder, na qual, uma luta é travada, não apenas para exercer
influência (por meio da seleção tópica e da contribuição tópica),
mas também para controlar os fluxos de comunicação que afetam
o comportamento do público, ao passo que as suas intenções
estratégicas são mantidas escondidas o tanto quanto possível.
(HABERMAS, 1992, p.437)

  As dinâmicas de poder internas ao funcionamento dos meios de


comunicação se tornam mais evidentes sobretudo quando a produção
de enquadramentos está associada ao trabalho discursivo de agentes
institucionais poderosos que estão continuamente engajados em dis-
putas para atribuir significados sobre os eventos correntes. 
Mas não são somente os meios de comunicação que podem se cons-
tituir em obstáculos para a promoção de processos democráticos ao
hierarquizarem e priorizarem discursos e interesses de grupos e indi-
víduos. De modo geral, grande parte da sociedade civil (organizada ou
não tem sua fala excluída do espaço mediático de circulação de pontos
156 mídia, ética e esfera pública

vista e argumentos. É importante considerar que mesmo a linguagem


que as pessoas usam quando dialogam pode favorecer um modo de ver
as coisas e desencorajar outros, uma vez que “não existe uma só forma
de racionalidade, nem uma só forma de linguagem - e todas elas têm
relação intrínseca com o poder” (KOHN, 2000, p.408). Grupos subor-
dinados às vezes não encontram as palavras certas para expressar seus
pensamentos, e quando conseguem descobrem que não são ouvidos
(FRASER, 1990, p.64). Além disso, o poder social capaz de impedir que
as pessoas se tornem interlocutores deriva também de uma “internali-
zação do direito que se tem de falar ou de não falar, da desvalorização
do estilo de discurso de alguns indivíduos e da elevação de outros”
(YOUNG, 2001, p.370).
Sob esse aspecto, o que essas três autoras cobram de Habermas é
uma defesa mais explícita da aproximação entre interesses individuais
e coletivos, uma vez que, como vimos, para alcançar o ponto de vista
moral ensejado pela ética do discurso e colocar-se no lugar do outro
requer o conhecimento do sofrimento e da injúria vivenciadas pelos
sujeitos.
 Os filtros e constrangimentos impostos pelo “sistema dos media”,
ao hierarquizar conteúdos e fontes, por exemplo, geram vários pontos
de ruptura entre os diferentes contextos articulados em redes de esferas
públicas. Fluxos comunicativos que se estabelecem na periferia desse
processo sob a forma de conversações informais raramente perpassam
a arena dos media e, às vezes, nem mesmo demonstram ter sido gerados
com a intenção de fazê-lo. Não há como desconsiderar que existe no
espaço de visibilidade mediada um grande escopo de assimetrias no que
tange às chances de intervenção dos diferentes públicos na produção,
validação, regulação e apresentação de mensagens. E, ao mesmo tempo,
a própria teoria normativa habermasiana não nos oferece muitas
pistas para solucionar a questão da falta de empatia e de hospitalidade
nas trocas comunicativas, o que dificulta enormemente a realização
dos princípios éticos do discurso, o reconhecimento recíproco e,
consequentemente, a emancipação e a construção da cidadania.
Acreditamos que as precisões e distinções conceituais acima
estabelecidas não invalidam aproximações cuidadosas entre as noções
Passagens entre os conceitos
de “campo da comunicação” e “esfera pública” 157

de campo e esfera pública, que levem em conta a disparidade das


propostas reflexivas construídas por Bourdieu e Habermas. É possível
afirmar que a aproximação entre ambos pode ser traçada a partir da
perspectiva crítico-destrutiva em relação à mídia, fruto de uma herança
frankfurtiana comum. Ambos tentam evidenciar como a mídia opera
com regras próprias de funcionamento, muitas vezes baseando-se apenas
em um modo autopoiético de gerar entendimentos e interpretações,
impelindo a busca por lucro, maximização de resultados e garantia de
prestígio e auto-preservação.
Contudo, enquanto Bourdieu se dedica a evidenciar as formas de
violência simbólica que tornam opacos os conflitos de poder que per-
petuam as assimetrias presentes nos modos como a mídia opera na
sociedade, Habermas deixa de lado uma análise mais minuciosa das
tensões de poder, desigualdades e assimetrias discursivas para apontar
como a mídia, através de seus discursos e narrativas, pode contribuir
para um projeto democrático normativo pautado pela construção do
interesse comum, fruto da habilidade (que todos deveriam possuir e
desenvolver) de colocar-se no lugar do outro e por ele desenvolver em-
patia e solidariedade.
Assim, se ao tratar do “campo da comunicação” Bourdieu se interessa
em investigar os modos como domina e exerce poder sobre os demais,
Habermas não apresenta o “sistema dos media” como totalmente nocivo
à esfera pública, alterando sua abordagem de 1962. Talvez fosse possível
aventar uma possível aproximação entre as duas noções, sobretudo pela
similaridade de algumas das características que definem um campo e
um sistema (ligadas principalmente às máximas da Indústria Cultural).
Contudo, as relações entre o campo da comunicação e os demais cam-
pos, em Bourdieu, são pautadas por lógicas de dominação, enquanto que
as relações entre o sistema dos media, os demais sistemas e o mundo
da vida, em Habermas, são marcadas pela reciprocidade, pela busca do
entendimento e do acordo e por uma forma de uso da razão que não ad-
mite injustiças advindas das desigualdades. Habermas pressupõe sempre
que as esferas públicas se intersectam em rede de maneira cooperativa e
dialógica, deixando de tematizar os desajustes, os desengates e as inser-
ções sociais, econômicas e políticas daqueles que dialogam.
158 mídia, ética e esfera pública

Se Habermas privilegia a troca de razões em uma “comunicação


sem sujeito”, Bourdieu procura buscar os elementos sociais presentes
no diálogo, tratando a conversação como uma ação social levada a efeito
por sujeitos históricos constituídos dentro de um campo.
Em outro momento (Martino; Marques, 2012), apontamos que, a
despeito das inúmeras diferenças identificadas entre as abordagens
conceituais desses dois autores, é possível estabelecer passagens entre
elas de maneira a revelar que as arenas discursivas das quais partici-
pamos estão situadas em um amplo contexto social perpassado por
relações estruturais de dominação e subordinação. Além disso, não se
pode desconsiderar que os sujeitos agem tanto em conformidade com
regras que visam a equidade e a justiça, quanto de acordo com pro-
cedimentos tidos como legítimos e valorizados por uma determinada
estrutura de orientação. Dito de outro modo, o campo da comunicação
não gera espontaneamente esferas públicas, nem estas produzem in-
fluência direta sobre as práicas da mídia, mas a constituição de esferas
públicas se serve de procedimentos disponíveis no campo da comuni-
cação, enquanto este último equilibra-se entre a manutençãoo de sua
autonomia/hegemonia e o desejo de emancipação e soberania presente
nas trocas comunicativas que dê vida à esferas públicas e à dinâmica
social.
capítulo 7

O discurso da ética
no campo jornalístico

A ética está relacionada, desde Aristóteles, não necessaria-


mente a um conjunto prescritivo de regras, mas sobretudo como uma
teoria da prática, criada a partir da reflexão e da pesquisa vinculada à
vida diária. Está nesse contexto a discussão sobre ética jornalística – o
locus para crítica da prática. Sob esse viés, poderia a ética ser um ar-
gumento estratégico usado por jornalistas para resolver o dilema en-
tre o imperativo do ‘interesse público’ e as contingências da empresa
jornalística? A partir da análise de manuais e da fala de jornalistas e
especialistas, é possível perceber que o discurso dos agentes midiáticos
sobre ética nem sempre leva em consideração esse duplo vínculo, e
pode ser empregado como uma forma de capital simbólico no campo
profissional.
A reflexão que será desenvolvida a seguir tenta delinear algumas
questões relativas à ética profissional do jornalista em seu conflito com os
interesses pessoais e empresariais a partir de entrevistas com profissionais
160 mídia, ética e esfera pública

de diversos níveis hierárquicos. O objetivo é verificar em que medida


a ética é apresentada como um ideal em contrapartida às condições
efetivas de sua aplicação no cotidiano de trabalho do profissional. Sob
esse aspecto, algumas questões se configuram como ponto de partida
para reflexão: em que medida os interesses de um agente midiático
são fruto de sua escolha autônoma ou coincidem com os interesses do
campo no qual ele se insere? É possível pensar em uma conduta ética
sem considerar as condições e contextos de ação dos indivíduos?
O plano de análise do trabalho repousa sobre a noção de interesse,
espécie de antípoda da ética. Esse cenário, todavia, é desafiado a cada
momento pela objetivação dessa ética em ações práticas. As contin-
gências do cotidiano desafiam a cada minuto as soluções éticas pela
desigualdade fundamental entre cada ser humano. Conciliar esses dois
cenários é um desafio nas questões sobre ética (Plaisance e Skiwes,
2003, p.833).
Uma história profissional, talvez apócrifa, serve para introduzir o
tipo de discussão a que se refere este capítulo. Em uma ocasião, na
cobertura de um grave problema urbano em São Paulo, um repórter
de rádio viu-se em um dilema. Não era seu horário de trabalho – seu
turno só teria início na parte da tarde. Uma colega já havia sido desig-
nada e estava a caminho do lugar do incidente. No entando, ele morava
próximo ao local. Poderia estar lá em cinco minutos, antes dela. “Se eu
fosse, seria um canalha com ela. Se não fosse, ficaria mal com a emisso-
ra”, lembraria o rapaz, anos depois. A ética, entendida como norma de
conduta em relação à colega de trabalho, mandava esperar. O interesse
profissional, ir. O repórter foi. A colega foi admoestada pelo superior.
A ética jornalística é apresentada, por vezes, como uma espécie de
tábua de logaritmos morais aplicados a uma prática jornalística livre de
qualquer contingência externa, como se dependesse apenas da vontade
do profissional. A apresentação das normas de conduta do jornalista
parecem excluir alguns elementos contraditórios da profissão (Gui-
lhaume, 1991, p.11).
A insistência nas definições morais em lugar do estudo da aplica-
ção dessas normas na prática pode gerar uma insuficiência no código
de conduta profissional. Códigos de ética e a própria Lei de Imprensa
O discurso da ética
no campo jornalístico 161

funcionam depois da concretização do fato, ou seja, a publicação da


notícia:

No ethos do jornalismo, há dois tipos de código. Um tipo é escrito


por uma comissão, é tornado público e representa com bastante
honestidade como os jornalistas pensam que deveriam agir. O outro
tipo não é escrito, oculto às vezes da consciência dos próprios jor-
nalistas. Por ser frequentemente inconsciente, este último código
é mais difícil de descrever e analisar. Mas é o mais poderoso de
ambos (Meyer, 1989, p.38).

Nem sempre essa estrutura normativa de um ethos jornalístico, isto


é, de um padrão de conduta, tem como objeto a prática. Definir uma
ética parece se relacionar à elaboração de um critério valorativo para
a escolha entre duas ou mais ações possíveis, dentre as quais uma seria
recomendável ante as demais. Assim, a ética parece estar vinculada ao
processo de escolha de uma ação na prática (Herrscher, 2002, p.281).
De acordo com Sodré (2006, p.24), o ethos pode ser entendido como o
espaço disposto para a realização e para a ação humana. Ele configura
uma unidade dinâmica de indentificações de um dado grupo, orien-
tando o conhecimento, a sensibilidade e as ações dos indivíduos de tal
grupo. O ethos dá forma a um padrão de conduta que dará forma ao
modo como esses indivíduos se conduzem, agem ou produzem algo.

O ethos de um indivíduo ou de um grupo é a maneira ou o jeito de


agir, isto é, toda a ação rotineira ou costumeira, que implica con-
tongência, quer dizer, a vida definida pelo jogo aleatório de carên-
cias e interesses, em oposição ao que se apresenta como necessário,
como dever-ser (Sodré, 2006, p.25).

Conforme recorda Meyer (1989), conflitos de caráter ético como


aquele apresentado acima acontecem quando há uma colisão entre
as premissas da ação individual, em particular quando a ética entra
em conflito com o interesse. No entanto, é possível haver uma ques-
tão tangencial: existem situações nas quais o interesse se disfarça de
procedimento ético? Em que medida o comportamento ético pode ser
entendido como uma estratégia no campo jornalístico?
162 mídia, ética e esfera pública

A relação entre as possibilidades virtuais e reais de escolha nem


sempre é contemplada. O cotidiano do trabalho jornalístico envolve
constantemente um processo de tomadas de decisão, pautadas ao
mesmo tempo pela dupla vinculação do jornalista – ao mesmo tempo
uma espécie de servidor público da informação e funcionário de uma
empresa particular objetivando o lucro (Karam, 1996, p.29). Nesse
sentido, o ethos do trabalho jornalístico é por vezes definido como
uma relação entre as possibilidades da ética e as limitações da prática
(Goodwin, 1991, p.23). A ética está relacionada, desde Aristóteles, não
necessariamente a um conjunto prescritivo de regras, mas sobretudo
como uma teoria da prática, criada a partir da reflexão e da pesquisa
vinculada à vida diária. Está nesse contexto a discussão sobre ética
jornalística – o locus para crítica da prática.
Esses dois aspectos configuram a estrutura deste capítulo. Em pri-
meiro lugar, (I) veremos como a ética e o interesse fazem parte de uma
dialética da estratégia na ação social; em seguida, (II), como o duplo
vínculo do profissional, entre o interesse público e as condições de pro-
dução da notícia, implica contingências nas possibilidades de escolha
no cotidiano. Constituem o corpus de análise, além de livros sobre Ética
no jornalismo, depoimentos de profissionais da imprensa dados ao Site
de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero no período em que o autor
deste livro foi editor (2000/2003).

A ética como estratégia legítima


Em uma perspectiva pragmática, um princípio ético só teria valor
quando tendesse a um máximo de aplicações. Um ethos orientado
exclusivamente de acordo com as circunstâncias imediatas seria
casuístico e, sob certo ponto de vista, contraditório em si - exceto, é
claro, se for compreendido como princípio legítimo o agir de acordo
com os interesses do momento. Mas nesse instante aparece no horizonte
a noção de interesse e a conseqüente possibilidade de deslegitimação
do procedimento. Bourdieu (1991, p.34; 1999) salienta que uma das
categorias menos nobres para analisar uma situação social é a noção
de interesse na medida em que ela parece se afastar, segundo Spinoza
(s.d.), de um pressuposto fundamental da ética, a liberdade de escolha.
O discurso da ética
no campo jornalístico 163

Tendo em mente a noção de “campo”, tal como colocada por Bourdieu


(1980), isto é, um espaço estruturado de relações no qual agentes
em disputa procuram obter um máximo lucro simbólico objetivado
em melhores posições, seria possível especular, com Sodré (2002) se
há espaço para uma “consciência ética” no campo jornalístico. Uma
resposta possível seria, de saída, dizer que não, na medida em que
um campo pressupõe disputas, interesses e ações estratégicas, haveria
pouco lugar para uma ética que se fundasse na liberdade de escolha.
No entanto, é possível compreender o fato ainda de outra maneira.
A conduta aprovada como “ética” em um determinado cenário apre-
senta-se à apreensão sincrônica como a resultante de uma série de in-
teresses específicos voltados para um equilíbrio de interesses comuns.
O princípio da ação garante uma possível igualdade de condições nas
práticas cotidianas. A normatização de uma ética é a objetivação dessa
igualdade, ressaltada a cada momento pelas denúncias de quebra ou de
interesse.
Nesse sentido, destaca-se como a socialização de um princípio
orientador da ação social em toda uma comunidade, a partir dos quais
serão erigidas, em um segundo momento, códigos, normas e princípios
não escritos de regência da comunidade (Christian, 2005, p.433). Em
entrevista, o ex-ombudsman da Folha de S. Paulo, Bernardo Ajzemberg,
assim descreve as condições desse procedimento: “Ou a pessoa tem ética
ou não tem. E isso vale para qualquer profissão ou ofício. No caso do
jornalista, ainda mais, por causa de suas responsabilidades públicas”.
A ética de uma comunidade é a prioridade das chamadas agrafa
nomoi, isto é, das “leis não escritas”. Já na Grécia Antiga o princípio
ético de um determinado grupo nascia exatamente nesse tipo de prá-
tica aparentemente não orientada, oriunda da obediência às leis não
escritas mas respeitadas por todos. O interesse particular era contido
pelo limite dessa lei, objetivada na expressão “costume”, dimensão es-
tabelecida como elemento fundador de uma realidade social na forma
de um hábito (Weber, 2003, p.2).
O hábito, nessa concepção, é o elemento central da construção
social da realidade na medida em que garante a reciprocidade da ação
entre meu semelhante e eu – o que Boudieu (1980) denomina habitus,
164 mídia, ética e esfera pública

princípio estruturador de práticas, gostos e ações adquiridos pelo


indivíduo no decorrer de sua trajetória social. O habitus, elemento
de intermediação entre o individual e o social, está em permanente
transformação na garantia de manutenção de seus princípios práticos.
Nessa concepção, somos orientados basicamente pelos mesmos
princípios, pelos mesmos esquemas geradores de uma percepção mútua
da mesma realidade. Vemos as mesmas coisas, temos, a princípio, as
mesmas reações diante de situações semelhantes e podemos ter um
certo grau de certeza, assim como uma percepção da realidade por
conta do hábito e dos costumes. A ética de um grupo é um princípio
orientador, objetivada no que o sociólogo francês chama de habitus
(Barros Filho & Martino, 2003).
No caso do jornalismo, Bucci (2001, p.20) destaca que os dilemas
éticos são uma espécie de fronteira entre o hábito social e as situações
regidas pela Lei de Imprensa. Em entrevista, ele afirma que
A ética não é como a lei que diferencia o lícito do ilícito. A ética
cada vez mais se ocupa das decisões individuais entre o que é certo e
aquilo que também é certo; qual a melhor escolha a fazer.
Princípios éticos podem ser colocados em questão pelo interesse do
momento. A contradição entre ética e interesse é o ponto dinâmico na
dialética entre a ação interessada e o ato do dever. Note-se que é um
elemento regulador, não de coerção. É comum encontrar, no cotidiano,
contradições entre a ética e o interesse particular. Conforme sintetiza,
em entrevista, o repórter Ricardo Kotscho,

Não existe imprensa neutra, mas você deve sempre perseguir a


verdade. Quanto menos interferências houver, melhor. É claro que
cada um tem sua preferência política, mas quanto mais comprome-
tido se está, mais difícil fica perseguir a verdade.

A prescrição da norma garante a igualdade de disposições mas não


parece levar em consideração as divergências baseadas no interesse.
Diante do fato objetivo, a norma ética é colocada freqüentemente em
questão, julgada a partir princípios utilitários. No entanto, na medida
do possível isso é feito evitando o conhecimento por parte de outros –
agir de forma ética é uma estratégia para garantir a legitimidade perante
O discurso da ética
no campo jornalístico 165

o grupo. O reconhecimento é raramente é explícito, como nesta frase


obtida por meio de entrevista feita com Bernardo Ajzemberg: “Se deve
reconhecer, até segunda ordem, que o jornalismo hoje é de fato parte
de um mercado”.

O princípio da estratégia
A aparente contradição entre a ação ética e o interesse, no entanto,
pode ser interpretada quando se introduz a noção de estratégia como
princípio do critério de uma razão prática. A estratégia garante um
modo de ação coerente com os resultados esperados – sempre o melhor
para cada participante da ação, independente de ser o melhor para os
outros.
Na linha do pensamento de Bourdieu (1967; 1980; 1992), o exame
das possibilidades éticas em comparação com a lógica de campo parece
convergir em alguma medida para a noçõa de estratégia, desenvolvida
em vários momentos ao longo de sua obra – veja-se, por exemplo, o
Esboço de uma teoria da prática, O senso prático e Razões Práticas.
Podemos falar da ética como estratégia quando lembramos que em
cada campo as ações de um agente são, ainda que parcialmente, dire-
cionadas à percepção recíproca dos outros. Dessa maneira, ao assumir
uma postura reconhecida como ética à apreensão sincrônica do ato pe-
los outros agentes, um determinado indivíduo, participante do campo,
ajusta-se às percepções reconhecidas como legítimas.
Seria possível argumentar que o princípio da ação no campo jor-
nalístico funda-se sobre uma ética concorrencial que se dissimula sob
tipos de comportamentos tacitamente aceitos como “éticos”, sobretudo
no sentido de um “fair play” que crias as regras do próprio campo para
a própria manutenção do campo enquanto espaço estruturado (Bourdieu,
1980, p.143).
No entanto, aí reside um paradoxo que, de resto, se estende à várias
configurações de um sentido de “jogo” à qual a lógica de campo é
aparentada: como é possível falar em um “fair play” quando o objetivo de
cada participante é ganhar? A rigor, uma primeira resposta seria apontar
que o “fair play” é a vitória dentro das regras do próprio campo – o que,
166 mídia, ética e esfera pública

imediatamente, permite contraargumentar apontando-se que essas


regras, por sua vez, estão igualmente ligadas aos interesses do campo.
Uma vez que essas regras, em sua maioria, não estão escritas – no-
vamente os agrafa nomoi – a aplicação prática dessas regras, ou sua
eleição como razão prática, o que resulta mais ou menos no mesmo,
parece estar mais relacionada com a capacidade do agente perceber,
conforme seu espaço na disposição de um campo, quais são as regras
que lhe proporcionam maior lucro simbólico inter pares e aplicá-las na
medida de sua possibilidade. A ação orientada pela ética e a ação mo-
vida deliberadamente pelo interesse, nessa leitura, parecem se estru-
turar a partir da definição de uma estratégia de valorização do capital
simbólico estipulado em cada uma das situações em questão. Confirme
mencionou em entrevista o jornalista Leão Serva,

Estamos formando jornalistas para o mercado que existir, não? O


jornalismo não muda tanto de um meio para outro, seus principais
defeitos e qualidades vão se passando de um suporte para outro.

A aplicação desse princípio de reciprocidade à prática jornalística


também parce estar presente na afirmação extraída da entrevista de
Francisco Karam:

Jornalismo não é o que diz apenas um profissional, é uma profis-


são a qual aderem pessoas que, mediante determinados princípios
técnicos, éticos, teóricos e estéticos, vão exercê-la sabendo que as
vontades e paixões pessoais devem estar submetidas ao interesse
público.

Nesse sentido, aparentemente não há incompatibilidade entre o


discurso ético e a prática regida pelo interesse. A noção de estratégia
parece resolver a questão igualando-as como formas distintas de se
chegar a um resultado com formas de lucro diferentes. A normatização
ética garante o princípio de lucro de todos os envolvidos em uma
disputa. O interesse particular, por sua vez, garante um lucro maior,
mas também mais arriscado.
O então editor de Época, Paulo Moreira Leite, afimrou em entrevis-
ta que
O discurso da ética
no campo jornalístico 167

Está na hora de as pessoas pararem de dar crédito a quem não apu-


ra. O Brasil está se modernizando. Cada vez mais, o jornalismo é
feito não apenas de opiniões. Você precisa demonstrar, sustentar
o que está falando. Você não pode pegar uma declaraçãozinha ali,
uma impressão aqui e dizer que é isso que está acontecendo no
Brasil e no mundo.

Os limites da prática social – e, portanto, do lucro simbólico de


uma ação – estão garantidos pela ética e pela moral de cada sociedade
(Habermas, 2004). A adoção de estratégias mais ou menos de acordo
com esses princípios baseia-se no cálculo inconsciente de vantagens e
desvantagens de se afastar desse padrão. A matriz de ações sociais pos-
síveis, portanto, estrutura-se a partir de um princípio ético e um prin-
cípio de interesse, subordinado e ao mesmo tempo oposto (Bourdieu,
1997; Barros Filho & Martino, 2003). A nobreza da ação é verificada
sobretudo pela possibilidade de independencia frente aos interesses.
Na entrevista de Mino Carta ele destaca que: “Não vamos esmorecer na
nossa crença de que jornalismo é algo que se faz com espírito crítico,
fiscalizando o poder. Então nós continuaremos fiscalizando o poder.”
O grau de um determinado espaço em uma estrutura sugere a exis-
tência de um indivíduo tendencialmente próximo do tipo-ideal neces-
sário para utilizar esse espaço, e sua conseqüente apreensão em um
fluxo de poder.
No entanto, cabe notar aqui a necessidade de um exame de uma
condição na qual uma ação ética poderia ser normatizada em princípio
de ação coletiva explícita, não, como no caso do habitus, implícita.
Kant tenta elaborar tal princípio de ação coletiva explícita ao seguir
pelo caminho da objetividade e da razão fundada em regras e normas
que deveriam ser seguidas intependentemente da intenção de fazer um
bem ou de realizar um fim.
O imperativo categórico kantiano não é uma prescrição de dever,
mas uma estrutura formal de conduta aplicável a qualquer situação.
O indivíduo reconhece a existência de todos como princípio de ação:
“Age de maneira que a máxima de tua vontade possa valer sempre ao
mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (Kant, s.d.,
p.83). A ação é tomada em razão do dever, medidas suas conseqüências
168 mídia, ética e esfera pública

quando transformadas em um princípio de conduta universal. O que


eventualmente dificulte a transformação de todo padrão ético em lei
universal é a utilização do interesse imediato. Assim, como equilibrar a
objetividade e a subjetividade?
O trabalho jornalístico, construído às vezes sobre a ilusão da natu-
ralidade dos fatos, em certas ocasiões se exime da reflexão sobre sua
prática, refugiando-se em uma difusa exigência por ética nas instâncias
políticas e sociais (Bourdieu, 1980). O tipo mais conhecido desse modo
de ação é o chamado “duplo vínculo” – isto é, um duplo interesse, não
necessariamente oposto, entre ações (Bourdieu e Acquaint, 2004).

O vínculo duplo e a eficácia simbólica do discurso sobre


ética jornalística
No caso do jornalismo, esse duplo vínculo fica ainda mais visível pela
aparente transparência das fronteiras simbólicas entre o cidadão comum
e o jornalista. Na tarefa de codificar a realidade, o jornalista está exposto
a eventuais contradições entre suas condições objetivas de trabalho e os
princípios éticos de sua ação social. A ética específica da profissão não
prevê o vínculo do jornalista com nenhuma outra atividade exceto o
próprio jornalismo (Bourdieu, 1997, p.53; Bucci, 2001, p.45).
Na visao de Bucci,

Exatamente porque o jornalista é um ser humano como qualquer


outro, ele vive estes dilemas. É necessário, ao jornalista, conviver
com isso. Ele não pode tentar se despir das suas convicções, é como
se despir da sua condição de humano. Ele é um homem, ou uma
mulher, um gay, um cristão, um liberal, um comunista. O jornalista
deve decidir dentro disso. Ele não está acima das suas paixões, das
suas fraquezas, dos seus sonhos.

No caso do jornalismo, não há oposição entre os diversos vínculos


por conta da especificação de fronteiras simbólicas claras entre a ativi-
dade e o ócio. No caso do jornalista esses momentos não são discrimi-
nados. Ao contrário, a superposição é estimulada a partir da doutrina,
como no caso do Manual da Folha: “o jornalista está sempre investido
de sua posição”.
O discurso da ética
no campo jornalístico 169

Assim sendo, a “ética do marceneiro” proposta por Cláudio Abramo


(1999, p.123) tornaria-se a única possível para o jornalista. É evidente
que sua ética será a mesma do cidadão: não há opção – o que é visto
por Chapell (2009), por exemplo, como o princípio orientador de qual-
quer ética. Não existem fronteiras simbólicas claras, e o vínculo com
o jornalismo atua exatamente ao mesmo tempo dos outros. A ética
jornalística não traz em si nenhum princípio que também não possa
ser aplicado ao cidadão. E, da mesma maneira, ao ser entrevisto pelo
interesse, o jornalista poderá ter as mesmas reações de um indivíduo
qualquer (Harcup, 2003, p.113; Banaszynski, 2010).
Embora se pretenda quase uma figura “meta-social”, por conta de sua
permanente observação da sociedade, o jornalista é parte do mesmo
grupo observado – é como se o jornalismo fornecesse ao ser humano
uma “segunda natureza” proveniente do hábito. No jornalismo a relação
entre sujeito e objeto raramente é visto a partir de seu conteúdo ético
específico (Barros Filho, 1995).
A discussão sobre objetividade no jornalismo por vezes lembra uma
discussão metafísica. O método de produção da notícia é regido por
regras e práticas implícitas e explícitas (Ryan, 2001, p.3). A subjetivi-
dade é apenas uma questão de percepção, mas a percepção também é
determinada pela vontade. Quando a vontade é suprimida pela adoçaõ
de regras, é natural que essas regras condicionem a percepção (Meyer,
1989, p.81). Daí o reflexo de pauta, daí o “procedimento jornalístico”,
daí o “faro da notícia” daí as práticas repetitivas, poucas vezes explícita
na fala – no caso, indicado em entrevista pelo jornalista Flávio Dieguez:

As interpretações dos fatos não podem ser feitas por jornalistas.


Aliás, isso vale para todas as áreas do jornalismo porque em
nenhuma delas o jornalista pode interpretar fatos por si mesmo.

Tanto o estagiário quanto o editor são elementos de um mesmo


campo, regido pelos mesmos critérios, diferenciando-se por uma apro-
priação momentânea desigual do capital simbólico referente ao cargo
e necessário para a formação de redes de relações e capitalização de
contatos da mesma maneira mas em um nível diferente de qualquer
foca (Bourdieu, 1997). Em outras palavras, o “cinismo ético” bem iden-
170 mídia, ética e esfera pública

tificado por Karam (1996), é o fato de se criticar o procedimento para


aplicá-lo em seguida.
As condições do vínculo duplo no jornalismo armam-se em virtude
de sua própria existência. Não é à toa a preocupação constante com
os elementos éticos dentro do jornalismo: eles não existem como
categoria específica, mas reproduzem-se diretamente, quase como uma
cópia, dos parâmetros sociais. São, na expressão de Bucci, “duas éticas
em um só lugar” (2001, p.85).
Confundindo subjetividade com interesse pessoal, a ética do jorna-
lista poderia ser entendida como a desvinculação de outros elementos
do mundo e a adoção de uma postura crítica eivada de preconceitos
invisíveis dissimulados na prática profissional a partir da tendência a
ver na objetividade um “ritual estratégico” com vistas a esconder os in-
teresses em jogo (Tuchmann, 1972; 1979). A retomada dos argumentos
de Bourdieu (1980; 1983), neste momento, podem auxiliar na compre-
ensão do exposto.
A adequação do profissional à esse duplo vínculo – a ética jornalís-
tica e os interesses de campo – se dá através da estratégia de sustentar
um discurso ético que atende igualmente aos interesses do campo e
associar a pergunta de caráter ético ou moral (como “Que devo fazer?”)
às condições não explícitas de ação em um campo (como “O que posso
fazer?”). As estratégias estabelecem-se como elementos intermediários
de justificação entre as estruturas de campo e a prática do jornalista; ao
definir uma postura como “ética”, o campo – e também o profissional
a ele vinculado, portando dotado de um habitus que lhe prove a illusio
necessária para ver o que é preciso e interessante ver – de certa manei-
ra agrega a essa ética os valores do campo. O interesse estratégico de
obtenção de lucro simbólico torna-se ético na medida em que converge
com os interesses do campo, em uma justificação até de uma postura
éticamente questionável em si mas que corresponde às demandas de
movimentação simbólica no campo.
As questões relativas à uma razão prática que às vezes cruzam o
caminho do jornalista (“Devo cometer um crime para provar sua
possibilidade?”; “Devo usar câmera escondida em uma reportagem?” ou
“Devo fingir ser outra pessoa para obter uma informação?”) encontram
O discurso da ética
no campo jornalístico 171

sua resposta não em uma moral, mas em um discurso da ética do


campo. Um jornalista pode achar moralmente errado mentir, mas sua
ética jornalística, aliada inconscientemente aos interesses do campo e
justificada dessa maneira, pode mentir para obter uma informação; o
êxito dessa estratégia, de alguma forma, parece ser o elemento que vai
medir o caráter ético ou não da ação – uma “moral provisória”, como
menciona Costa (2009) ou o “relativismo contextual” dos princípios
éticos, na denominação de Audi (2007).
Se a ação resulta em uma reportagem de repercussão nacional,
encontra um alto grau de agendamento e, portanto, à valorização do
jornalista como defensor de um “interesse público”, o procedimento que
pode ser interpretado como moralmente condenável torna-se “ético”
em conformidade com uma das regras do campo jornalístico que diz
respeito ao “interesse público”. O apelo à um valor consagrado pelo
próprio campo legitima o procedimento eo torna “ético” por conta dos
elementos externos à ação que lhe garantem um lucro simbólico alto o
bastante para a conversão da ação em norma. O chamado “jornalismo
fiteiro”, criticado anos atrás, não era mais do que a exarcebação desse
princípio de lucro ético por parte dos agentes do campo – o que coloca
em jogo a possibilidade de uma ética entendida como algo distante do
interesse (Sodré, 2002, p.194).
A produção e difusão de idéias obedece a lógicas próprias e mesmo
sua ramificação por outros setores da sociedade está vinculada a uma
série de atitudes e ações de grupos responsáveis por sua expansão. Na
opinião de Karam:

O jornalismo hoje trata a informação das duas formas: como bem


social e como mercadoria. Se fosse só mercadoria, não podería-
mos ter acesso à infinidade de fatos e versões de grande relevância
social que acompanhamos diariamente, especialmente pela mídia
impressa. Se fosse só bem social, não teríamos fatos e versões em-
balados pelo marketing informativo, com maior rendimento de
acordo com as posições políticas, ideológicas e econômicas de se-
tores da mídia.
172 mídia, ética e esfera pública

O jornalismo como instrumento de poder político


e econômico
A emergência de uma esfera pública burguesa está intimamente
relacionada ao aparecimento e às condições de existência de um campo
da comunicação, responsável por produzir e difundir um gigantesco
mercado de bens simbólicos necessários à própria existência dialética
do capitalismo (Lima, 1978, p.7). Investidos do poder de controlar
o acesso à opinião pública e mesmo de decidir o que faria parte
desse debate, os meios de comunicação cedo notaram sua própria
importância como definidores do universo simbólico a partir dos
quais a sociedade poderia haurir seu conhecimento. Essa atividade,
desempenhada pelos meios de comunicação, está na origem do poder
dos media nas sociedades ocidentais a partir de meados do século XIX –
a “centralidade dos meios de comunicação” (Chaia, 2000, p.13).
A democracia da esfera pública torna-se mais e mais uma democracia
eletrônica vinculada ao mercado produtor de bens simbólicos,
vinculada às possibilidades de conhecimento e acesso reguladas pelos
procedimentos inerentes ao campo jornalístico. As mudanças na esfera
pública, explica Habermas (1984, p.189) estão ligadas à economia
política dos procedimentos no campo da comunicação, mantendo a
associação entre as áreas política e econômica na regulação, direta ou
indireta, da mídia. A existência social de uma pessoa, grupo ou idéia
está vinculado à sua exposição na mídia. Como caracteriza Habermas
(2000, p.487), “o aparelho estatal tornou-se dependente de um sistema
econômico controlado pelos media”.
O paradoxo: criada para ser o o centro de debate livre da esfera pú-
blica, a mídia seleciona o grupo pequeno dos temas e pessoas que par-
ticipam das discussões. O espaço de livre-debate é sulcado de interesses
diversos e, sobretudo, organizado a partir de uma condição econômica
de ingresso, o que limita por si só a pretensa liberdade da discussão, ex-
plica Eric Maigret (2003, p.212). Não raro, ocorre uma superposição dos
campos – a esfera pública, foco de existência da opinião pública, torna-se
um espaço abstrato de discussões previamente pautadas, de debates nos
quais os resultados são conhecidos. O debate, lembra Adriano Duarte
O discurso da ética
no campo jornalístico 173

Rodrigues (1994, p.76) já atrelado à questão econômica, é revestido de


uma possibilidade técnica de produção de dados.
Encontrando no campo da comunicação o elemento central de
transformação da esfera pública, a modernidade transferiu a uma
instância apenas relativamente autônoma a possibilidade de definir
a realidade social a partir da seleção de fatos, sua transformação em
produto e distribuição para uma ampla audiência (Habermas, s.d.,
141). E não custa nada lembrar o comentário de T. W. Adorno (2003,
p.41) em sua Dialética Negativa:

A construção da verdade em analogia com a vontade de todos, que


tem como consequência final a idéia de uma razão subjetiva, pode-
ria, em nome de todos os homens, privar o homem daquilo que ele
precisa. (…) A comunicação direta para todos não é um critério de
verdade. Devemos resistir à tentação de confundir a comunicação
do conhecimento com o conhecimento em si.

É nesse panorama que surge, ao lado da produção de bens concretos


nas fábricas, a produção em massa de bens simbólicos, a indústria
cultural. O jornal, seguido da fotografia, do cinema e, mais para frente,
da televisão, passa a determinar as fronteiras entre o legítimo e o
ilegítimo no terreno do pensamento (Marcondes, 1989, p.56).
O jornalismo está deixando de ser político no sentido mais amplo
da palavra, para se tornar mercadoria, mantendo-se como uma forma
de interferência nas instâncias de decisão política, logo seu poder
também se ramifica para outros elementos da trama social, garantindo
uma posição privilegiada na composição de políticas partidárias, mas
também culturais e estéticas.
Elemento definidor da esfera pública, o jornalismo parece guardar
um inesgotável fluxo de poderes esperando para o uso. No entanto,
não se trata de autonomia; o campo jornalístico tem as condições de
definir a esfera pública, mas não existe de maneira autônoma. O poder
simbólico é exercido diretamente em várias direções: as instâncias
econômicas e culturais pressionam o jornal de diversas maneiras –
da sedução à ameaça – a publicar o que é de seu interesse que figure
na esfera pública; ao mesmo tempo, os jornais vendem bem caro seu
174 mídia, ética e esfera pública

espaço, sobretudo porquanto é necessário manter a ilusão pública


de autonomia. Assim, a comunicação torna-se o instrumento para
a progressiva entrada de interesses particulares na esfera pública.
Conforme caracteriza Grossi (1985, p.147), trata-se de realçar “a
centralidade comunicativa da atividade política”.
Alcança o debate público quem conseguir pagar mais. Nesse senti-
do, o jornalismo se apresenta como um elemento responsável por agre-
gar tendências e colocá-las em circulação na esfera pública. De acordo
com o projeto da modernidade, a pluralidade de opiniões, bem como
os espaços plurais de mercado, constituem a base da escolha e da liber-
dade individual.
A partir do conhecimento das rotinas dinâmicas de produção do
campo jornalístico, suas regras e estratégias, é possível perguntar se a
opinião pública e o próprio conceito de público não é mais “uma pers-
pectiva imaginada do que um fato consumado” (Peters, 1995, p.13).
O poder de influência na esfera pública é proporcional ao número
de assinantes e à distribuição do jornal. Maior o alcance, maior o
poder. E isso se traduz na capacidade técnica de produzir jornais. O
controle das informações que chegarão à esfera pública começa já na
possibilidade econômica de ter uma prensa mais ou menos capaz de
produzi-las (MARCONDES Filho, 1992, p.104). O jornalismo mostra
atualmente sua força de impacto na esfera pública em um sentido
de criar o que Wilson Gomes (2004, p.357) denomina “política de
aparências” persistente nas formas políticas contemporâneas.

Ética e razão prática


No espaço social, a mídia apresenta-se como um elemento de mo-
dalidade dupla. É um produto-fim, resultado de um processo de cons-
trução de texto a partir de dados imediatos da realidade, no qual várias
escolhas são feitas, mas também é um produto-meio, capaz de produ-
zir modificações imediatas no ambiente onde se encontra. No espaço
intermediário entre as outras instituiçõe sociais, os meios de comuni-
cação parecem ser ao mesmo tempo causa e reflexo das ações de outros
campos, em uma dimensão temporal muito curta.
O discurso da ética
no campo jornalístico 175

O que leva, naturalmente, a uma crítica ao próprio modelo de jor-


nalismo pelos jornalistas. Para o jornalista Ricardo Noblat,

O modelo dos jornais já se esgotou. Ele data de uma época em que


os jornais eram fonte única de informações, para saber o que estava
acontecendo, você tinha que lê-lo. Hoje, mesmo com o desenvol-
vimento da TV, do rádio e da internet, os jornais se comportam
como se tivessem o monopólio dessa informação. A segunda razão
é que eles continuam ancorados nos noticiários do dia anterior,
como se essa fosse sua principal atribuição. Quando você abre o
jornal já conhece as noticias que estão ali. Por mais que jornalistas
e donos de jornal saibam que não deveria ser mais assim, eles têm
uma dificuldade brutal em romper com essa cultura.

Um dos princípios da ética jornalística parece estruturar-se na pre-


missa de uma ação desinteressada, de um ato comunicativo livre de
interferências voluntárias do produtor. O discurso resultante está ge-
ralmente articulado fora dos limites institucionais, em uma illusio de
autonomia reforçada no discurso mas pouco representada na prática.
A ética, nesse sentido, poderia ser considerada um esforço de resis-
tência do jornalista em relação ao ambiente institucional orientado por
uma lógica de mercado. Parece existir, porém, um equívoco em opor a
estratégia de ação do jornalista contrapondo-se à empresa quando esta
obedece aos imperativos de um mercado. Em ambos os casos, trata-se
de uma estratégia de lucro simbólico – o princípio da ética e do inte-
resse em uma aparente oposição quando de fato revelam-se estratégias.
Disso resulta o discurso ético do jornalista em contraponto ao mer-
cado representado, em primeira instância, pela empresa onde traba-
lha. Em alguns casos, isso leva o jornalista a encontrar elementos para
explicar a prática de racionalização da empresa a partir de critérios
jornalísticos.
A situação de equilíbrio regulador das estratégias só existe quan-
do há um conflito, um jogo de soma zero – um deles sairá ganhando,
o outro perdendo. Essa dualidade encontra sua resolução na própria
idéia da estratégia. É o que Philip Meyer chama de “efeito resfriador”
na atividade jornalística:
176 mídia, ética e esfera pública

Um efeito resfriador pode ser quase qualquer coisa que tenha um


efeito desfavorável sobre o sistema de recompensa para o jornalista
ou suas fontes. Ele aumenta o custo e diminui o prazer de descobrir
e proporcionar informação, e assim desencoraja o livre curso da
informação (Meyer, 1989, p.24).

É difícil inferir se um ato é ou não ético sem conhecer, portanto, a


disposição dos interesses, lucros e gratificações no espaço social. Os
efeitos de cada jogada podem ser compreendidos como a resultante
de variáveis. Algumas são determinadas e explícitas, outras indeter-
minadas ou invisíveis. A quantidade de variáveis da ação social pode
gerar, em última instância e paradoxalmente, a indeterminação última
da ação social. O princípio da ética jornalística como “ética do marce-
neiro”, portanto, não é a própria ética como princípio do agir tenden-
cialmente para o bem, mas como a estratégia de garantia de legitimi-
dade. O dilema desaparece nos meandros da prática. Entre a ética e o
interesse, a estratégia.
capítulo 8

reconfigurações da noção de
objetividade no jornalismo

Qualquer pesquisador ou aluno de jornalismo já se deparou,


de alguma maneira, com o tema da objetividade. Os enfoques variam
ao infinito: definido como um ideal a ser perseguido, criticado em sua
base epistemológica, recomendado por profissionais ou desqualificado
como impossível, o problema da objetividade liga-se, em geral, às dis-
cussões mais amplas sobre ética e qualidade.
De critério de excelência para a definição do “bom jornalismo”, a
objetividade jornalística passou a “mito” ou impossibilidade. No en-
tanto, observa-se nos últimos anos não só o reaparecimento da dis-
cussão sobre objetividade, mas uma busca por situá-la em um novo
patamar, incorporando as críticas anteriores e repensando a noção a
partir dessas considerações.
O tema da objetividade é frequentemente deixado de lado por estu-
dos que a consideram “impossível” ou “sem importância”. No entanto,
alguns pesquisadores brasileiros retornam à questão a partir de um
178 mídia, ética e esfera pública

novo ponto de vista. Este texto faz um delineamento crítico dos ar-
gumentos apresentados por esses livros, destacando os seguintes: (a)
há um paradoxo entre teoria e prática: jornalistas aprendem que “ob-
jetividade não existe” e, no entanto, são cobrados por rigor e precisão
na apuração dos fatos; (b) os livros não propõe uma volta ao conceito
clássico de objetividade; reconhecendo que o conhecimento completo
da realidade é impossível – toda narrativa é uma seleção – mas (c) isso
não quer dizer que um repórter não consiga fazer um relato objetivo
sobre um fato singular, a matéria-prima do jornalismo.
O objetivo deste capítulo é, então, examinar, a partir de pesquisa
bibliográfica, essa nova noção de “objetividade” no jornalismo tal como
é apresentada pelos autores que advogam essa perspectiva. Não se trata
de fazer uma crítica nem defesa da objetividade, mas de observar os
argumentos. Mais do que buscar uma resposta, procura-se delinear
uma pergunta.
O corpus é composto por três livros publicados nos últimos dois
anos, por autores de vários espaços acadêmicos. Agrupá-los aqui não
tem o sentido de procurar neles uma unidade, mas delinear argumen-
tos comuns. Trata-se de Jornalismo, conhecimento e objetividade, de Liriam
Sponholz, Esfera pública, jornalismo e democracia, de Messiluce Hansen,
O percurso interpretativo da produção da notícia, de Josenildo Guerra e
A fabricação do presente, de Carlos Franciscato. Não se busca fazer uma
análise crítica dos livros, mas usar seus argumentos como base para a
discussão dos temas propostos pelos autores.
No que se segue, em primeiro lugar busca-se situar brevemente o
tema da objetividade nas discussões sobre jornalismo; em seguida, a
partir das trilhas sugeridas pelo corpus, destacam-se uma dimensão
epistemológica, referente às possibilidades de um conhecimento obje-
tivo; de outro, uma dimensão ética, na discussão sobre a veracidade da
informação obtida a partir do trabalho do jornalista.

O espaço do problema da objetividade


Como nota Amaral (1996), o discurso sobre objetividade no jor-
nalismo está entre os temas que despertam as reações mais adversas,
reconfigurações da noção de objetividade no jornalismo 179

de uma simples desqualificação do assunto a partir de fórmulas en-


sinadas aos estudantes em início de curso (“objetividade não existe”)
até demonstrações de caráter epistemológico que buscarão recursos na
Teoria do Conhecimento para deixar patente a impossibilidade de um
conhecimento objetivo.
Abercrombie e Longhurst (2007, p.255) definem objetividade como
“uma visão de mundo livre de distorções, interesses e representa a ver-
dade” algo, afirmam, ontologicamente impossível, seja em nível cogni-
tivo ou textual, configurando-se, no máximo, como um processo, não
como conteúdo do texto. Em outras palavras, o problema da objetivi-
dade estrutura-se em torno de saber como, e se, é possível descrever
algo “tal como aconteceu”, na seleção e enquadramento dos fatos e seu
impacto na agenda pública (Barros Filho, 1995; Cohn-Almagor, 2008).
Em The sociology of journalism, Brian McNair (1998, p. 65-72)
mostra como a noção de “objetividade” foi construída e indica como ela
é associada à ideia de uma relação de confiança com o leitor. Vista como
um “ritual estratégico”, na perspectiva de Tuchman (1972; 1973; 1978),
ou ideal impossível de alcançar, para Meyer (1989), a objetividade,
destaca Hohlfeldt (2001, p.16), apesar de sua “desvalorização científica
e relativização”, se mantém, “mitificada” entre profissionais e na opinião
pública.
O discurso dominante nos últimos anos, como menciona Hackett
(1984) a respeito do “declínio de um paradigma”, é o da inexistência
ou impossibilidade da objetividade. Vários trabalhos de primeira linha
foram escritos mostrando, com fatos e argumentos, algo que historia-
dores já sabiam: é impossível criar um relato objetivo do que aconteceu
(Cf. Jenkins, 1998; Lowenthal, 2003).
Esse discurso, no ensino de jornalismo, geralmente é acompanhado
de outro. O mesmo aluno para quem se diz, com diferentes palavras,
que “objetividade não existe”, aprende também que as regras do jorna-
lismo exigem rigor de apuração, checagem das informações e investi-
gação dos fatos - uma “fidelidade canina à verdade factual”, no discurso
de um diretor de redação entrevistado anos atrás.
A associação entre esses dois discursos leva, na concepção de Guerra
(2008) e Sponholz (2009), a um paradoxo: se a objetividade não existe,
180 mídia, ética e esfera pública

qual o sentido de buscar rigor na apuração e checagem dos fatos? Se


não há objetividade possível, o próprio trabalho jornalístico perde
a razão de ser. Se tudo é construção subjetiva, e o jornalista nunca
consegue oferecer um retrato objetivo da realidade, não faz sentido o
investimento de tempo e esforço buscando apurar informações que,
em última análise, não serão mais do que uma reconstrução subjetiva
distante dos fatos que lhe deram origem.
Desse modo, o aluno ou o profissional inclinado a uma reflexão
sobre a prática aprende, de um lado, que objetividade não existe; de
outro, é cobrado em termos de rigor na apuração, verificação dos fatos,
balanceamento das fontes e checagem das informações – esforço que se
dilui diante do argumento da impossibilidade de se oferecer qualquer
conhecimento objetivo da realidade (Guerra, 2009).
Na visão de Guerra (2009), o impacto disso na vida cotidiana, na
medida em que indivíduos podem basear sua tomada de decisões
em informações da mídia, seria desastroso: as informações, de uma
previsão do tempo ao resultado de eleições, perderiam grande parte
de sua validade – seria possível alegar, por exemplo, que o Brasil não
é pentacampeão mundial de futebol ou Luís Inácio Lula da Silva não
governou o país por oito anos (exime-se, nesse particular, qualquer uso
metafórico dessas expressões). Isso não significa, para Guerra (2009)
e Sponholz (2008) advogar uma crença ingênua na objetividade e na
veracidade das notícias, mas questionam se a crítica à objetividade
autoriza-nos a negar, de uma vez, a realidade factual trazida pelos
veículos de informação.
Caio Túlio Costa (2009), ao contrário, faz uma distinção contra
essa argumentação: esses elementos são fatos, algo diferente do relato
jornalístico, fundado, segundo explica, em uma “representação da
representação”. Dito de outro modo, a capacidade que cada jornalista
possui de distanciamento e de entendimento do mundo deve estar
solidamente baseada em sua capacidade de conhecimento do que
significa representar o mundo que os outros representam. A discussão
sobre existência ou não de fatos objetivos é diferente da discussão sobre
a objetividade no relato jornalístico. A impossibilidade da objetividade,
neste último caso, está ligada aos procedimentos subjetivos do jornalista
reconfigurações da noção de objetividade no jornalismo 181

na verificação e posterior escrita dos fatos. Para esse autor, “não bastam
regras éticas e a boa vontade no ato da capacitação e da edição da
informação se o jornalista não tiver pleno conhecimento moral do
mecanismo no qual se insere e que reproduz” (2009, p.169).
No entanto, destaca Moretzsohn (2002), em que medida isso exclui
toda a possibilidade de um relato objetivo de qualquer fato ou recai
em um subjetivismo solipsista? O equilíbrio entre essas duas posições
é um dos focos de pesquisa sobre objetividade, sobretudo como um
problema ético-prático e epistemológico.

A dimensão ético-prática:
objetividade como interesse ou estratégia?
A discussão sobre objetividade deve ser pautada em termos de uma
ética profissional? A julgar pela apropriação do tema por esses livros, a
resposta seria positiva. O compromisso com um jornalismo “objetivo”
às vezes é colocado no mesmo patamar de um jornalismo de “qualida-
de”, e mesmo quando a objetividade é destacada como um discurso po-
tencialmente ideal-típico – veja-se, por exemplo, o classico estudo de
Clóvis de Barros Filho (1995) Ética na Comunicação – sua discussão
nesses livros indica sua presença como parte do dever-ser do jornalista.
Karam (1997, p.107) relaciona ética e objetividade na medida em
que “a busca da verdade envolve tanto a exatidão na apuração informa-
tiva quanto a objetividade no relato, sem esconder a humanidade que
se move neles”, o que implica, segundo o autor, em conceitos, valores
e morais:
Apesar das renovadas discussões sobre o conceito de objetividade,
considero que ela é defensável, existe e revela-se em dados, fatos, ma-
neiras de viver. (…) E o jornalismo, que tem entre suas regras básicas
a de um relato objetivo, apresenta na própria narrativa a dimensão
humana mais subjetiva de forma objetiva (Karam, 2004, p. 42).

A proposta clássica da objetividade, pensada como relato “neutro e


imparcial dos fatos” colocava-se como detentora de uma superioridade
moral no exercício da profissão por lidar com “fatos” que, por si só, se-
riam a realidade. Assim, o dever da objetividade conferia ao jornalista
182 mídia, ética e esfera pública

a superioridade de um olhar de lugar nenhum, em contraste com o


olhar “comprometido” de outras instâncias sociais. Ser ético, portanto,
era tender ao equilíbrio, a um jornalismo “descomprometido” – não
por acaso, Temer e Andrade (2010) incluem o questionamento da ob-
jetividade no “processo de desmontagem do jornalismo clássico”.
O problema ético, nesse caso, é antecedido por uma questão gno-
siológica específica: a objetividade do conhecimento jornalístico, assim
como o próprio conhecimento produzido pelo jornalismo, é da natu-
reza específica dessa atividade e, portanto, não poderia ser compreen-
dida com parâmetros de uma teoria geral do conhecimento (Sponholz,
2003; 2009).
Isso, vale assinalar, novamente de passagem, se liga a um problema
ético referente ao receptor. Em uma situação ideal, o público espera que
o jornalista dê informações corretas sobre os fatos do dia. A apuração
da notícia deve resultar em um texto que, seja no formato impresso,
digital, lido no rádio ou na TV, dê ao público uma ideia do que
aconteceu. Há uma espécie de “pacto ético” (Guerra, 2008): o público
garante credibilidade ao jornalista, mas espera que o profissional faça
o melhor possível para conseguir e transmitir as informações corretas.
Certamente, como recordam vários autores (Barros Filho, 1995;
Bucci, 2000; Martino, 2003; Borelli, 2002; Costa, 2009) o “fato jornalís-
tico” difere do acontecimento em si, embora estejam relacionados na
medida em que, destaca Rosengren (1974, p.146), há “pistas” para se
chegar a esse acontecimento. A “narração do fato”, para Sodré (2008),
é, em várias dimensões, uma “reconstrução” do fato, no qual fatores
objetivos, no sentido de não dependerem diretamente da livre-escolha
do jornalista, interagem com elementos subjetivos e institucionais na
construção da notícia.
Na perspectiva de Bourdieu (1998), discutida por Barros e Martino
(2003), a junção dessas duas dimensões se verifica no habitus intrinse-
camente vinculado a um campo jornalístico. No mesmo sentido, como
argumentam Sodré (2002, p.187) e Marques e Martino (2011), é preci-
so levar em conta em que medida a eleição do interesse como categoria
fundante da comunicação de alguma maneira, elimina a própria possi-
bilidade de ética ou objetividade.
reconfigurações da noção de objetividade no jornalismo 183

A nova concepção de objetividade, desenvolvida pelos autores do


corpus deste texto, incorpora essa diferença, enquanto o conceito de
objetividade, na outra versão, previa uma equivalência entre ambos,
pensando a notícia como reflexo da realidade. Reconhecer que há dife-
rença, mas não incompatibilidade, entre o fato e o evento não elimina
a possibilidade de se narrar corretamente o evento, dentro de limites
que, em vez de serem disfarçados ou encobertos, são levados em conta:
“Fragmentar eventos é parte do ato de construir o fato jornalístico”,
afirma Franciscato (2005, p.104).
Evidentemente isso leva em conta que a pessoa que conta a história
tenha o compromisso com o ouvinte/interlocutor de se ater aos fatos
na medida de sua condição humana. Portanto, isso não se aplica à
situações de explícita má-fé, na qual o fato é sistematicamente distorcido
pelo narrador – nesses casos, como resume Guerra (2008, p.33), “eis a
credibilidade e o imperativo ético fundante da instituição jornalística
indo para o ralo”.
Isso também não significa deixar de lado os interesses do jornalista
nem da empresa de comunicação. Wilson Gomes (2009) contrabalança
o interesse comercial e o interesse público na constituição da prática
jornalística. Mesmo pensando em termos estritamente comerciais,
sem a discussão sobre compromissos públicos do jornalismo, a busca
pela objetividade nessa nova concepção não se dilui. Há um público
consumidor de notícias que espera por informações, seja sobre os
atos do Congresso, seja sobre o último lance em um reality show. Nos
dois casos, os públicos esperam informações corretas, e acreditam no
profissional responsável por elas.
Romper esse pacto custa muito caro para a empresa de comunicação:
perder credibilidade significa que o público vai embora, e com ele
os anunciantes. Portanto, trabalhar de maneira ética pela melhor
informação atende tanto aos interesses do jornalista quanto do público
e da empresa. Quando alguém deliberadamente inventa uma notícia e
o fato vem a público, o que não é difícil, há uma imediata mobilização
da mídia para encontrar e punir os culpados. Isso indica o quanto
vale, para o jornalista e para a empresa, a credibilidade conquistada no
“imperativo ético”, que Guerra (2009: 30) menciona, em uma fórmula
184 mídia, ética e esfera pública

simples: “o jornalista deve se ater à ralidade dos fatos”. E explica porquê:


“Os jornalistas se comprometem a noticiar apenas fatos que sejam reais,
em função disso, o público acredita que tais fatos noticiados sejam,
efetivamente, realidade”.
O autor menciona, por exemplo, o caso de Janet Cooke, repórter
do New York Times que, em 1981, forjou uma reportagem e ganhou o
Prêmio Pulitzer por ela. Descoberta a trama, além da punição da res-
ponsável, o jornal publicou cinco páginas explicando o caso e pedindo
desculpas. Evidentemente nem todos os erros e distorções do jornalis-
mo tem um final como esse. Mas, por outro lado, segundo o autor, esse
tipo de distorção sistemático também não acontece todos os dias e em
todas as notícias.

A dimensão epistemológica: rumo à intersubjetividade?


Sempre haverá um ponto de vista, uma certa inclinação, um ângulo
específico, não só no jornalismo, mas em qualquer tentativa de contar
uma história: ainda que filme a realidade, e usando a força das imagens,
um documentário passa por vários processos de escolha, montagem,
seleção e edição. Os livros de Sponholz, Guerra e Hansen não querem
trazer de volta essa concepção de objetividade, geralmente ligada aos
conceitos de “imparcialidade” e “neutralidade”. Mas, por outro lado,
consideram a seguinte pergunta: se a objetividade é só um mito, por
que na prática jornalistas e produtores audiovisuais continuam escre-
vendo notícias e produzindo documentários como se fosse possível?
Não se espera que um repórter torcedor de uma agremiação rene-
gue sua condição para escrever “objetivamente” sobre um time adver-
sário. No entanto, não é por ser de um time rival que ele noticiaria
uma vitória do adversário, em um veículo sério, em termos chulos ou
sarcásticos, mas com o rigor e seriedade que seu trabalho exige.
Ao contrário, é reconhecer explicitamente as limitações do jorna-
lista, da empresa e das rotinas de trabalho e, ao mesmo tempo, vê-lo
como o profissional comprometido na busca por informações claras
e precisas. Afinal, “toda conduta eticamente pautada”, lembra Guerra
(2008, p.33), “se caracteriza por uma dramaticidade do indivíduo”. Em
reconfigurações da noção de objetividade no jornalismo 185

outras palavras, não é uma objetividade ideal a ser obtida por um jor-
nalista despojado de suas características humanas.
No mesmo sentido, Steven Berry (2005), acredita que quem valo-
riza a objetividade como um padrão essencial do jornalismo reconhe-
ce “nossa condição humana – nossa subjetividade. Precisamente por
conta de nossas fraquezas é que insistimos na busca por objetividade”.
Ward (2010, p.145) propõe igualmente que a objetividade não pode ser
abandonada em bloco, na medida em que a mera crítica do procedi-
mento, sem a indicação de outros critérios de valoração da prática jor-
nalística vem deixando um “vácuo” na perspectiva ética do jornalismo.
Ou, como sintetiza Hagen (2008, p.10), destacando a necessidade de
incorporar o subjetivo e o objetivo:

De forma alguma sou contra a objetividade. Continuo acreditando


que ela é norteadora do fazer jornalístico, e sem ela o profissional
ficaria tão enredado numa trama de opções de fatos e abordagens,
que não conseguiria produzir a notícia no tempo necessário. Isso
sem falar que ética e objetividade estão intimamente ligadas. No
entanto, postulo que alguns conceitos devem ser revisados e, se a
objetividade é o fator norteador, a emoção pode ser uma das formas
de melhor se chegar a esse intento.

A objetividade, nessa nova concepção, é a busca por fazer seu trabalho


corretamente, ciente de seus compromissos e limitações. Deixa de ser um
ideal e torna-se uma possibilidade. Nesse aspecto, Elhajji (2002, p. 119)
lembra que o olhar do jornalista precisa ser habituado para se tornar
“uma verdadeira faculdade cognitiva de apreensão do real de maneira
clara e esclarecida”. Toda interpretação, assinala Rodrigo Alsina (2005,
p.290), está vinculada a um universo limitado de interpretações legítimas
ou, ao menos, legitimáveis, para além do qual se pode compreendê-la
como um uso “malicioso” ou “sem propósito informativo”.
A última relação, feita por Guerra (2008) e Sponholz (2003; 2009),
entre a objetividade da informação e a do relato é enquadrada, nos
trabalhos sobre objetividade, a partir de uma proposta intersubjetiva.
Em sua crítica à objetividade, destaca Moretzsohn (2002) que “a neces-
sidade da interpretação (portanto, da subjetividade) na apreensão do
186 mídia, ética e esfera pública

fato não constitui argumento contra a existência da matéria factual”, e


não permite a manipulação dos fatos conforme a vontade do jornalista.
A perspectiva de Eugênio Bucci (2000, p. 91-95), nesse sentido,
aproxima-se da ideia de tecer uma relação entre a prática jornalística
e a objetividade a partir de uma noção de intersubjetividade. Assim
como Costa (2009) e Borelli (2002), distingue entre o “fato” e sua
representação no discurso jornalístico.
No entanto, Bucci indica a possibilidade intersubjetiva para resolver
o problema entre o objetivo e o subjetivo na prática jornalística. Se a
objetividade é definida como “redondamente impossível”, ele também
afirma que “há informações inteiramente objetivas”. Quando procura
ser objetivo, afirma, o jornalismo busca “estabelecer um campo inter-
subjetivo crítico entre os agentes que aí atuam”, em uma “justa, trans-
parente e equilibrada apresentação da subjetividade”.
O argumento da intersubjetividade é retomado, em diferentes pers-
pectivas, por Borelli (2002), Moretzsohn (2002), Karam (2004) e Conde
(2004). Como sintetiza Strelow (2009:02):

A verdade ontológica torna-se compreensível em sua versão feno-


menológica através dos discursos, partilháveis em patamares de
intersubjetividade sempre que o objeto, de alguma maneira, sobre-
põe-se aos diferentes sujeitos que o conhecem, ou seja, quando há
objetividade.

De qual objetividade se está falando?


O discurso da objetividade desfruta de um valor variável no campo
jornalístico. O exame da bibliografia a respeito indica a presença de
posições bastante distintas a respeito, sendo o único ponto em comum
o reconhecimento da necessidade de se debater a questão, mesmo
quando dada como encerrada.
O tema vem sendo relacionado com vários aspectos do jornalismo.
Um primeiro recorte destaca o percurso da informação jornalística,
desde os aspectos de produção da notícia, passando pelo texto jornalís-
tico e pelos efeitos potenciais no público. Outro recorte examina o pro-
blema a partir de dimensões éticas, de um lado, e epistemológicas, do
reconfigurações da noção de objetividade no jornalismo 187

outro. Um crítico apressado, diante dessa visão do estado da questão,


poderia perguntar se todos esses estudos falam de uma objetividade ou
várias concepções do tema.
Assim, o discurso sobre objetividade nos estudos sobre jornalismo
parece enfrentar um problema também no estabelecimento dos parâ-
metros dentro dos quais se busca discutir. Trabalhando com pontos de
partida diferentes, referenciais teóricos diversos e objetos nem sempre
plenamente definidos, é possível encontrar evidências para sustentar
os vários discursos formulados a respeito da objetividade.
É nesse sentido que este texto não se posiciona no debate, mas tenta
de alguma forma delinear suas linhas de força, procurando alguns dos
argumentos que sustentam as diversas posições.
O debate ocorre, em certas ocasiões, a partir de premissas diferen-
tes, em alguns casos que dificilmente se prestam à interlocução. Como
essas dimensões estão pulverizadas em várias obras, e mesmo no inte-
rior de alguns livros, seria temerário fazer uma vinculação entre cada
uma das questões e autores na medida em que isso poderia indicar
uma vinculação positiva que não corresponde necessariamente a uma
posição do autor. Feita essa ressalva, pode-se destacar, entre outras, as
seguintes dimensões:
• Epistemológica: a objetividade é tratada no âmbito de uma Teo-
ria do Conhecimento, em alguns casos extrapolando o problema
jornalístico.
• Ética: o problema da objetividade é vinculado às questões da cre-
dibilidade do jornalismo, construída a partir do compromisso de
levar os fatos ao público.
• Factual: a discussão apresenta-se paralela a uma Teoria do Conhe-
cimento, mas aplicada especificamente ao debate em relação à
construção/reprodução do fato.
• Textual: aborda o problema a partir da linguagem jornalística,
dando ênfase às congruências e discrepâncias verificadas no texto
jornalístico.
• Efeito de campo: examina a objetividade no espaço dos jogos de
força institucionais, comerciais e profissionais, bem como do
habitus do profissional constituído nesse espaço;
188 mídia, ética e esfera pública

• Estratégica: Pensa o problema da objetividade/subjetividade na


perspectiva de se verificar os usos do discurso como valorização
do profissional frente aos pares e ao público.
• Intersubjetiva ou relacional: Nessa dimensão a objetividade é
fruto do entrecruzamento entre múltiplas variáveis que interfe-
rem na apreensão do fato e em sua transformação em “aconte-
cimento” - variáveis relacionais que perpassam: as experiências
concretas (coletivas e pessoais) do jornalista; o contexto de sua
inserção profissional e como ele interage nos espaços institucio-
nais e lida com seus constrangimentos; e o contexto de sua relação
com os leitores/interlocutores.
O quadro abaixo, com as limitações que a estilização de posições
teóricas suscita, objetiva apenas facilitar a percepção das múltiplas di-
mensões do tema:

Crítica da Objetividade Nova Objetividade

O conhecimento do O conhecimento do
objeto não pode objeto é obtido a partir
ser separado do de seu exame com
conhecimento do rigor e precisão. Ter
observador. A notícia é um ponto de vista não
um produto do ponto elimina a possibilidade
Dimensão de vista do jornalista. de conhecer o fato;
epistemológica Não é possível sair da o reconhecimento da
primeira pessoa. dimensão subjetiva
A objetividade é o primeiro passo
apresenta-se, no para a busca de um
máximo, como um tipo conhecimento objetivo
ideal impossível de ser que transcenda o
atingido na prática. próprio ponto de vista.

A subjetividade está A objetividade é o


presente na prática antídoto contra excessos
jornalística; as escolhas da subjetividade.
Dimensão ética dos jornalistas no A objetividade deve ser
processo de produção o norte das escolhas na
são subjetivas. prática.
reconfigurações da noção de objetividade no jornalismo 189

Crítica da Objetividade Nova Objetividade

O relato jornalístico
Se não há objetividade,
é uma construção
não há sentido em
O problema subjetiva do
apurar o fato. Os fatos
do factual profissional. Os fatos
existem por si e devem
são transformados pelo
ser reportados.
relato jornalístico.

Não há texto objetivo: Há uma diferença entre


O texto
a escolha das palavras polissemia e distorção
jornalístico
indica posicionamentos. deliberada.

As dinâmcias do campo
A liberdade do jornalista
jornalístico impedem
O campo é condição para a
o relato objetivo; o
jornalístico objetividade de seu
jornalista não está
trabalho.
sozinho em sua prática.

A interpretação A interpretação do
subjetiva do fato não fato deve considerar a
impede a existência inserção do jornalista
A dimensão da matéria factual; o em um contexto
intersubjetiva | jornalista não manipula cultural e relacional,
relacional as informações suas experiências e suas
segundo sua vontade interações profissionais,
ou entendimento da pessoais e com os
realidade. leitores.

Ignorar a subjetividade A valorização da


A dimensão é uma manobra do subjetividade diminui
estratégica campo para esconder o compromisso do
seus limites e falhas. jornalista com o público.
Fonte: elaboração dos autores

Os autores dos livros analisados não deixam de lado situações nas


quais os alinhamentos políticos, a busca de escândalos, a criação de
fatos e os momentos nos quais os interesses econômicos da empresa se
sobrepõe aos compromissos profissionais do jornalismo – mas pergun-
tam se, nessas condições, o que se está fazendo é, de fato, “jornalismo”.
190 mídia, ética e esfera pública

Os livros se propõem a delimitar melhor o que é essa atividade que,


por ter um aspecto comercial, não precisa necessariamente deixar
de lado a ética. Em situações de distorção completa, o “jornalismo”
desaparece, e com ele as regras e compromissos do profissional. É de se
esperar que essas condições sejam a exceção, não a regra.
De certa forma, o fato que torna a mídia importante, e sua discussão
mais ainda, é que ela pode causar mudanças na realidade. O jornalismo,
como atividade social, responde a uma demanda das pessoas por
informações relacionadas a questões de interesse público e do bem-
estar coletivo. Demanda, aliás, que independe do jornalismo e existe
muito antes dele.
“Em suma, muitas vezes não questionamos as afirmações ou senten-
ças dos comunicadores de massa porque, de antemão, já as considera-
mos válidas”, diz Hansen (2006, p.59). Além disso, prossegue, como as
pessoas não podem checar diretamente o que é dito pelos jornais, resta
apelar para a credibilidade da instituição.
Essas alterações não se limitam à necessidade pessoal de informação,
se vai chover ou quem ganhou o jogo, mas também no que diz respeito
à dimensão pública desses fatos, por exemplo, quando a chuva se
transforma em enchente por descaso do poder público ou quando a
corrupção de cartolas prejudica o desempenho de um time.
A mudança provocada pela imprensa e, posteriormente, pelos
meios de comunicação eletrônicos, foi na velocidade dessas demandas,
alteração que transformou a própria concepção de tempo no ocidente.
É um dos pressupostos examinados por Franciscato (2006, p.15) “o jor-
nalismo é uma prática social voltada para a produção de relatos sobre
eventos do tempo presente. Ao fazer isso, o jornalismo atua de forma
privilegiada como reforço de uma temporalidade social, enquanto pro-
dutor de algumas formas específicas de sociabilidade”.
Mas é preciso, de saída, não levar muito longe essa afirmação nem
considerá-la uma regra: nem toda informação produz alterações, e a
relevância de um dado não pode ser calculada com precisão. “Pensar
em notícia”, explica Franciscato (2006, p.30), “implica em não obser-
varmos apenas o produto de um processo de produção jornalística,
mas um conteúdo inerente à condição humana. Devemos considerar
reconfigurações da noção de objetividade no jornalismo 191

que o ato de comunicar os eventos mais recentes para membros de uma


comunidade tem origem em tempos longínquos da história humana”.
O jornalismo deveria, nesse caso, cumprir a tarefa de suprir essa
demanda de maneira rigorosa e correta. Aparentemente, isso desloca o
foco do “bom jornalismo” de seu destino final, isto é, a leitura da notí-
cia, e o coloca na produção consciente da notícia: em outras palavras,
parece que o “bom jornalismo” estaria na realização ética da atividade,
não na determinação de seu conteúdo – apurar e escrever corretamen-
te sobre o momento afetivo de uma subcelebridade, nesse caso, seria
mais ético do que escrever levianamente sobre política?
Hansen, Guerra e Franciscato retomam, em caminhos e abordagens
diferentes e complementares, desafiam com muitas perguntas e poucas
respostas fechadas, o que talvez seja a característica de um bom livro.
Ao retomarem alguns temas nos estudos de comunicação, como objeti-
vidade, ética e interesse, oferecem posições sólidas, das quais é possível
discordar integralmente, mas não negar a relevância.
Em linhas gerais, os livros indicam um reposicionamento da discus-
são sobre objetividade na bibliografia recente sobre jornalismo. Não
se trata de uma volta ao conceito clássico, amplamente criticado na
literatura, mas de uma reapropriação do tema.
O exame das obras indica três elementos para se pensar a questão:
(a) a objetividade é pensada no interior de uma teoria do jornalismo,
não em uma teoria do conhecimento ou na busca filosófica pela verda-
de. Leva em conta as condições, possibilidades e contradições da prá-
tica jornalística, nas quais questões éticas e comerciais se encontram
em permanente tensão; (b) Uma narrativa “objetiva” não se pretende
“completa” ou “total”: ao contrário, não esconde os processos de sele-
ção dos elementos que a compõe – e, por isso mesmo, não é oposta mas
complementar à ideia de subjetividade; (c) Entende-se, dentro desse
referencial, que um relato objetivo dos fatos é possível dentro do co-
nhecimento das condições reais do fazer jornalístico.
Antes disso, porém, procura-se situar o que parece ser esse
reposicionamento do discurso sobre objetividade em contraste com o
pano de fundo de algumas das discussões sobre o tema. Não se trata de
uma investigação exaustiva sobre a história da apropriação do conceito
192 mídia, ética e esfera pública

de objetividade no campo do jornalismo, algo que extrapolaria os limites


deste texto, mas apenas de sublinhar a especificidade do discurso recente
contrastando-o com discussões anteriores.
capítulo 9

Ficção e política:
ética e moral no melodrama

O século XIX trouxe uma novidade para os leitores dos jornais


impressos na Europa. Com o aperfeiçoamento das máquinas de impressão
e, a partir de 1830, o espaço dos rodapés das páginas desses periódicos
passou a ser ocupado por histórias de apelo sentimental, uma ficção
que primava pela retórica do excesso e que era oferecida em capítulos
(cotidianos, hebdomadários ou mensais) aos leitores. O surgimento
do romance-folhetim tem suas origens na evolução da imprensa de
grande tiragem. O aumento da circulação dos jornais é acompanhado da
emergência de uma massa de leitores, recentemente alfabetizados1, que
têm origem entre as classes trabalhadoras. A necessidade dos jornais de
satisfazer um público cada vez mais amplo e diverso deu origem à um
tipo de democratização da cultura através do texto literário. Este último,
contudo, teve que adaptar-se às exigências de uma comercialização
massiva, submetendo-se a novas técnicas narrativas (Meyer, 1996).

1. No século XVII, a alfabetização progrediu na França na Inglaterra, na Alemanha,


na Rússia, na Itália e nos EUA (Aubry, 2006).
194 mídia, ética e esfera pública

Uma literatura voltada para o entretenimento passa a ter como re-


gras principais uma retórica fundada sobre a serialidade, ou seja, a
construção de uma narrativa condicionada pela difusão fragmentada
de textos. Cada capítulo publicado deveria manter em suspenso as pis-
tas fundamentais do desenrolar da trama, incitando a curiosidade dos
leitores e impelindo-os a consumir os próximos números dos jornais.
O romance-folhetim marca, portanto, a industrialização da literatura e
a constituição de um gênero estruturado sobre o melodrama.2
A fórmula melodramática que marcou a estrutura do romance-
folhetim, ao inspirar-se no cotidiano das grandes metrópoles européias,
colocou em destaque a potencialidade de identificação e de ordenação
social trazida pela narrativa. Os teóricos da Indústria Cultural
ignoraram não só o potencial crítico e reflexivo do público consumidor
da comunicação de massa, mas também, é principalmente, o fato de
que a potência desse tipo de comunicação está na disponibilização de
padrões narrativos que tendem a auxiliar os indivíduos e organizar os
fatos vivenciados como uma maneira de fugir do caos, do aleatório, e
das angústias trazidas por situações que não podem ser controladas.

Indústria Cultural e Reflexividade


A burguesia da segunda metade do século dezenove buscava na
ficção valores e expressões de desejo que correspondiam aos seus anseios
cotidianos: amor, realização pessoal e felicidade (Costa, 2000, p.33).
O melodrama se configurava como a possibilidade de viver sonhos
e fantasias que dificilmente se concretizam na imediata existência
humana. E mais: ele permitia que os indivíduos se lançassem em outras

2. O termo “melodrama” tem seu sentido original associado a um texto dramático


que é falado com um fundo musical. Esse sentido foi-se perdendo e, no final do sé-
culo passado, passou a denotar um enredo dramático, sentimental e artificial, com
apelos sensacionalistas à emoção da audiência. A dicotomia entre o bem e o mal,
com a conseqüente vitória do bem, levam sempre a um final feliz com a reafirmação
de princípios morais.
Ficção e política 195

temporalidades, outros espaços, outras territorialidades (cenários ou


horizontes) inexploradas no cotidiano, mas desveladas pela imaginação.3
Para Maria Cristina Costa, a estética do melodrama é a retórica do
excesso, da pieguice, dos “rios de lágrimas” que se derramam entre
momentos de equilíbrio, suspense e reviravoltas (2000). Na maioria dos
casos, tudo e todos giram em torno dos sofrimentos e agruras necessários
para se alcançar o grande e verdadeiro amor. Ou, para conquistar
o grau máximo da realização pessoal, seja ela amorosa, financeira ou
profissional. Geralmente, em torno do envolvimento amoroso principal
do enredo se desenvolvem tramas paralelas, as quais revelam outros
âmbitos das relações sociais, das temporalidades e espacialidades da
história. Os dramas íntimos e intersubjetivos, quando são dados a ver,
são freqüentemente apresentados de forma estereotipada pela telenovela.
Não raro, classes sociais, funções sociais, profissões, normas, valores,
costumes, entre outros, são “reduzidos” a dilemas binários entre forças
opostas. Clichês como “o bem sempre vence o mal”, “casamentos são
feitos por amor e não por dinheiro” e “o crime não compensa” revelam
um conjunto de valores sociais estereotipados e mitificados.
No melodrama, os dilemas da perda, da morte e da separação se
encontram expostos de modo a evocar toda a tensão e sofrimento que
impregnam as contingências a que estamos submetidos (Pallottini,
1998; Thiesse, 2000).4 Essa catharsis permite a revelação sem pudores

3. Mas nem só de água-com-açúcar se fazia um folhetim. Vários autores se inspi-


ravam nos fait-divers dos jornais para buscar referentes “reais” para suas histórias.
Madame Bovary, de Gustave Flaubert, por exemplo, teve sua temática principal tira-
da de um fait-divers da época (1856). Anne-Marie Thiesse (2000) e Danielle Aubry
destacam que muitos dos autores dos folhetins do século XIX optavam pelo “ro-
mance negro” ao invés do melodrama. A literatura gótica visava servir-se de acon-
tecimentos “macabros” (assassinatos, agressões, condenações, etc.) para produzir
medo e despertar “os monstros que vivem na zona cinza da consiciência, servindo-se
da imaginação que alimenta os fantasmas, as superstições e a religiosidade” (Aubry,
2006, p.60).

4. De acordo com Heitor Capuzzo (1999), o que evoca as lágrimas não é a dor da
perda, mas a esperança mágica ou a ilusão de que situações dolorosas não duram
para sempre, de que o amor e a felicidade sempre prevalecem sobre a angústia e
sobre toda mazela humana.
196 mídia, ética e esfera pública

de sentimentos julgados excessivos, perigosos (deixar-se dominar


pelas paixões) ou ingênuos na vida social. Importante destacar que o
momento catártico não conduz o público ao questionamento, mas o
mergulha no conforto seguro da simplificação e do desengajamento.
Eis o mote para que, nos anos 40, Theodor Adorno e Max Horkheimer
utilizassem, o termo “indústria cultural”5 para apontar a transformação
da cultura em mera mercadoria conduzindo à apatia das massas. Na
Dialética do Esclarecimento (1983 [1947]), a indústria cultural sintetiza
o processo de reificação ao qual estavam submetidos os indivíduos
e a cultura.
Em termos gerais, a indústria cultural expressa a supressão da capa-
cidade crítica dos públicos através de um tipo de entretenimento que
se caracteriza pela fuga do cotidiano através de uma cultura de massa
voltada para a própria imitação do mesmo. Afinal, como esses dois
autores sugerem, os produtos da indústria cultural nos devolvem a re-
alidade tal qual é, sem um suplemento de diversidade, sem uma novi-
dade sequer.6 Todas as reações dos espectadores (de teatro, cinema ou
televisão) já estão, de alguma forma, previstas (1983, p.119 e 133). Por
isso, “o espectador não deve ter necessidade de nenhum pensamento
próprio” (Adorno; Horkheimer,1983, p.128). Não haveria, então, espaço
para uma recepção crítica, pois se o indivíduo não seleciona, não inter-
preta e não reflete sobre as mensagens que recebe dos produtos cultu-
rais, ele não desenvolve a habilidade de formular entendimentos sobre
o mundo e sobre si mesmo:

O efeito total da indústria cultural (...) impede o desenvolvimen-


to de indivíduos autônomos e independentes, capazes de julgar e
decidir, conscientemente, por si mesmos. Esta, entretanto, seria

5. Adorno distingue os termos “indústria cultural” e “cultura de massa”, dizendo


que trocou a última pela primeira a fim de evidenciar que a cultura de massa pode
ser aasociada às produções que emergem “espontaneamente das próprias massas,
ou seja, uma forma contemporânea de arte popular.” (Cf. Adorno, 1990, p.275).

6. “Não somente os tipos das canções de sucesso, os astros, as novelas ressurgem


ciclicamente como invariantes fixos, mas o conteúdo específico do espetáculo é ele
próprio derivado deles e só varia na aparência. Os detalhes tornam-se fungíveis”
(Adorno;Horkheimer, 1983, p.117).
Ficção e política 197

a pré-condição para uma sociedade democrática, que precisa de


adultos responsáveis por sua auto-sustentação e evolução (Adorno,
1990, p.281).

A particularidade é reprimida pelo identificável, ou seja, só seria


aprovado o sujeito ou objeto que se enquadrasse numa categoria já tes-
tada e aprovada. “Para o consumidor, não há nada mais a classificar
que não tenha sido antecipado no esquematismo da produção” (Adorno;
Horkheimer, 1983, p. 117). Pessoas ou mercadorias tornam-se substi-
tuíveis, uma vez que seguem um padrão único de apresentação diante
do mundo e do outro.7 Como conseqüência, o espaço público se ca-
racteriza pela ausência de tensões, pois aquilo que está visível é seme-
lhante, o que não cria problemas de estranhamento, mas propaga as
identificações imediatas. “Tudo o que vem a público está tão profunda-
mente marcado que nada pode surgir sem exibir de antemão os traços
do jargão e sem se credenciar à aprovação ao primeiro olhar” (Adorno;
Horkheimer, 1983, p.120).
A passividade da recepção preconizada por Adorno e Horkheimer,
assim como a neutralização dos conflitos e controvérsias de ordem
política via entretenimento, é algo que leva o filósofo alemão Jürgen
Habermas, em Mudança Estrutural da Esfera Pública (1984 [1962]),
a afirmar que os meios de comunicação impossibilitariam a formação
de um espaço público de discussão e deliberação8, uma vez que seus
códigos simbólicos estariam estruturados segundo a lógica da mer-

7. A diferença identitária também é esmagada pela ditadura da homogeneização e


pela repetição do “mesmo”: “a indústria cultural realizou maldosamente o homem
como ser genérico. Cada um é tão somente aquilo mediante o que pode substituir
todos os outros: ele é fungível, um mero exemplar. Ele próprio, enquanto indivíduo,
é o absolutamente substituível, o puro nada, e é isso mesmo que ele vem a perceber
quando perde com o tempo a semelhança” (Adorno & Horkheimer, 1983: 136).

8. Lembramos que, nesta obra, publicada em 1962, o conceito de esfera pública


aparece ligado à ascensão da burguesia e aos espaços nos quais os integrantes dessa
classe se reuniam publicamente para argumentar e expressar razões e juízos acerca
de questões e problemas relativos à coletividade. A esfera pública burguesa consti-
tui-se, portanto, a partir do diálogo e do confronto argumentativo regulados pela
publicidade conferida às razões oferecidas por seus participantes.
198 mídia, ética e esfera pública

cadoria, ou seja, à publicidade destinada ao consumo acrítico. Nessa


obra, ele propõe que a mídia subverteu a concepção genuína de publi-
cidade – onde razões são elaboradas publicamente e todos têm acesso
às informações para que o sentido seja estabelecido em comum e, não,
imposto – transformando-a num elemento de despolitização e apatia.
Em suas obras posteriores (1987, 1992, 1996), Habermas assume
que tal visão da mídia estava equivocada, e atribui a ela um importante
papel na configuração de espaços públicos destinados ao debate plu-
ralista, à articulação do sentido, e à disputa pelo reconhecimento das
diferenças. Ele passa a admitir também que o consumo de produtos
ligados à esfera cultural não se faz sem uma reflexão e seleção crítica
dos sujeitos, que, guiados pelas normas e experiências que compõem o
“pano de fundo” das relações sociais, interpretam e atualizam critica-
mente os códigos e mensagens recebidos.
Sob essa perspectiva, Leonardo Avritzer, sustenta que os produtos
culturais, ao tornarem pública uma série de significados e represen-
tações, permitem que os indivíduos negociem, de forma reflexiva,
seus entendimentos através de suas diferenças. Ao fazer tal afirmação,
Avritzer propõe “a substituição da idéia de indústria cultural por uma
concepção de reflexividade provocada pela produção cultural em rela-
ção a concepções de vida herdadas ou transmitidas de forma tradicio-
nal” (1999, p.168). Na concepção desse autor, “a forma comercial dos
produtos culturais não é, em si, contraditória com a habilidade dos
atores sociais de refletir e criticar aquilo que eles recebem” (2000, p.72).
O conceito de reflexividade nos parece, portanto, essencial para perce-
bermos como a recepção passa a ser entendida não mais como passiva,
mas como processo interpretativo de seleção e apropriação.
Existem várias concepções de reflexividade9. Contudo, gostaríamos
de destacar algumas das características desse conceito que apresentam
relevância para este trabalho. A primeira delas relaciona-se às afirmações

9. Destacamos aqui a visão de três autores: 1) Para Habermas (1996), a reflexividade


consitui-se através da deliberação pública, e é o resultado da submissão da intera-
ção racional a pretensões de validade; 2) Para Giddens (1991), ela é o resultado da
constituição de mecanismos de reflexão no self; e 3) Para Thompson (1998), ela é o
resultado da reflexão pública sobre os diferentes conteúdos simbólicos absorvidos.
Ficção e política 199

de Thompson e Giddens a respeito das imbricações entre os elementos


simbólicos e narrativos disponibilizados pela mídia e o projeto de
construção do self.
Segundo Giddens, a construção do self é reflexiva, porque
relaciona-se à contínua reconstrução/desconstrução de um sentido
de identidade, uma vez que “somos o que fazemos de nós mesmos”
(1991, p.75). Eventos e situações que ocorrem em espaços que não
fazem parte do cotidiano dos sujeitos também podem ser apropriados
de modo a constituírem oferta gratificante de orientação identitária e
experimentação do self. Thompson (1998) aproxima-se das considera-
ções de Giddens (1991) e de Maia (1997) quando afirma que,

A crescente disponibilidade de experiência mediada cria, assim,


novas oportunidades, novas opções, novas arenas para a experi-
mentação do self. Um indivíduo que lê um romance ou assiste a
uma novela não está simplesmente consumindo uma fantasia; ele
está explorando possibilidades, imaginando alternativas, fazendo
experiências com o projeto do self (Thompson,1998, p.202).

Sob essa perspectiva, narrativa mediáticas nos possibilitam encon-


trar e compreender os sentidos que se revelam em nossas ações e nas
ações dos outros. Mesmo que estes outros nos sejam apresentados pela
ficção. A mídia fornece recursos simbólicos para que os indivíduos
possam implementar, repensar e articular o entendimento que têm de
si mesmos e dos outros. Nesse sentido, sua forma narrativa parece des-
pontar como ferramenta importante de auxílio na tarefa de articulação
dos eventos e “dramas” ligados à existência concreta.

O potencial reflexivo do melodrama


A estrutura narrativa dos folhetins melodramáticos é consituída,
frequentemente, em torno de um acordo pressuposto com o ideal mo-
ral dos leitores. Para a concretização desse acordo, as convenções nar-
rativas melodramáticas tinham a vantagem de permitir, à leitores de
todas as classes sociais, o reconhecimento dos valores, dos comporta-
mentos, dos fatos, dos distúrbios e das relações presentes na sociedade
200 mídia, ética e esfera pública

em que vivem. Assim, o melodrama concentra certos princípios que,


ao mesmo tempo em que suscitam o reconhecimento e a reafirmação
de regras de conduta, provocam a indignação e a crítica. Entre eles,
destacamos: os dilemas sentimentais; a crença em uma natureza essen-
cialmente boa; a virtude triunfante associada às pessoas simples e aos
pobres; o vício que se enraíza nas classes privilegiadas; o predimínio
da emoção sobre a razão; a perseguição dos inocentes e a soberania
da providência que se apresenta sob a máscara da sorte (Aubry, 2006;
Thiesse, 2000, Meyer, 1996).
Não é nosso intuito privilegiar perspectivas que apontam o melo-
drama como produto alienante da Indústria Cultural, cuja recepção
é vista como fruição não-reflexiva das cenas. Ao invés disso, estamos
preocupados em destacar o papel que o melodrama possui de reenviar
ao telespectador condutas, valores, idéias, fantasias e memórias que
não só estão presentes no imaginário social, mas que se manifestam no
cotidiano vivido de cada um de nós. Nossa preocupação é de eviden-
ciar os cruzamentos entre o melodrama e a vida social.
Segundo Mauro Porto (1994), o termo melodrama parece ter ori-
gem como designação para um texto dramático que é falado com um
fundo musical (melos é a palavra grega para música). Em um sentido
mais popular, originado no final do século XIX, melodrama é perce-
bido como um termo pejorativo, denotando um enredo dramático,
sentimental e artificial, com apelos sensacionalistas à emoção de sua
audiência. Termina geralmente com um final feliz ou, pelo menos, com
uma reafirmação de princípios morais. A dicotomia entre o bem e o
mal, onde o bem sempre ganha, é a norma de uma simplificação mo-
ral. Apesar de reconhecer que esse gênero tornou-se uma mercadoria,
aprisionada por fórmulas estereotipadas da indústria cultural, Porto
defende a necessidade de superar uma visão preconceituosa do melo-
drama, reconhecendo nele um encontro com materiais e temas capazes
de despertar debates, reflexões e revisões de valores.
De forma geral, o melodrama, para Porto, “organiza o mundo como
uma rede complexa de contradições apta a definir os limites do poder dos
homens sobre o seu destino, ao mesmo tempo que se recusa a poupá-los
de um incômodo reconhecimento de sua parcela de responsabilidade
Ficção e política 201

sobre ações que terminam por produzir efeitos contrários aos desejados”
(1994, p.81). O mundo do melodrama é um mundo simples, muitas
vezes enfatizando a ideologia meritocrática em que os projetos humanos
parecem ter a “vocação de chegar a termo e o sucesso é produto do
mérito e da ajuda da Providência, ao passo que o fracasso resulta de
uma conspiração exterior que isenta o sujeito de culpa e o transforma
em vítima radical.” (1994, p.81). Nesse sentido, Porto argumenta que
o melodrama, por sua estrutura simples e dicotômica, nos auxilia a
controlar e antecipar certos eventos na ficção dando-nos a ilusão de que
os eventos que se sucedem em nossa vida podem ser previstos.
É preciso, contudo, afirmar que o melodrama não está ligado apenas
à noção de romantização do cotidiano e camuflagem das estruturas de
poder (tal como condenado pela Teoria Crítica e o conceito de Indútria
Cultural). Ao estudar a força do gênero melodramático na América
Latina, Jésus Martín-Barbero (19970 nos chama a atenção para o fato de
que, no início do século XVII, o melodrama era visto como expressão
popular legítima, sobretudo na representação teatral. Mas cultura
burguesa o converte no controle dos sentimentos que, separados da cena
social, se interiorizam e configuram a cena privada.
Para Martín-Barbero, o melodrama guarda, em sua matriz original,
uma forte relação com práticas políticas de resistência. Ele lembra que,
no século XVII, os teatros oficiais na França eram reservados às classes
altas e o que se permitia ao povo eram representações sem diálogos, nem
falados nem cantados, sob o pretexto de que o verdadeiro teatro não
poderia corrompido. Assim, o melodrama de 1800 está ligado por vários
aspectos à Revolução Francesa: à transformação do populacho em povo
e à encenação dessa transformação. É a entrada do povo em cena. As
paixões políticas despertadas e as terríveis cenas vividas durante a Revo-
lução exaltaram a imaginação e exacerbaram a sensibilidade das massas
que podem, enfim, ter o gosto de colocar em cena suas emoções.

A pantomima que se desenvolve em cena foi ensaiada ao ar livre,


nas praças onde serviu de ridicularização da nobreza. E toda a ma-
quinaria que realiza o melodrama está em relação direta com o tipo
de espaço que o povo necessita para fazer-se visível: ruas e praças,
mares e montanhas, com vulcões e terremotos. O melodrama nasce
202 mídia, ética e esfera pública

como espetáculo total para um povo que pode já olhar-se de corpo in-
teiro. O público iletrado buscará em cena não palavras, mas ações
e grandes paixões. (Martín-Barbero, 1987, p.125)

Segundo Ismail Xavier, “o melodrama é mais do que um gênero dra-


mático de feição popular ou um receituário para roteiristas. É a forma
canônica de um tipo de imaginação que tem manifestações mais eleva-
das na literatura” (2000, p.84). A forma de imaginação proporcionada
pelo melodrama, defende ele, cumpre um papel regulador da moral
nas sociedades contemporâneas:

Flexível, capaz de rápidas adaptações, o melodrama formaliza um


imaginário que busca sempre dar corpo à moral, torná-la visível,
quando esta parece ter perdido os seus alicerces. Provê a sociedade
de uma pedagogia do certo e do errado que não exige uma expli-
cação racional do mundo, confiando na intuição e nos sentimentos
naturais do individual na lida com dramas que envolvem, quase
sempre, laços de família. (Xavier, 2000, p.85)

Xavier destaca que o melodrama, ao enfatizar conflitos entre bem


e mal, ao oferecer uma linguagem simples demais para os valores par-
tilhados, oferece “matrizes aparentemente sólidas de avaliação da ex-
periência em um mundo tremendamente instável” (2000, p.85). Nesse
sentido, o aspecto político e crítico do melodrama estaria ligado às po-
larizações morais que definem os termos do jogo apelando para fór-
mulas feitas. Ao simplificar as assimetrias de poder e injustiças, o me-
lodrama trabalha pouco a experiência dos injustiçados em termos de
uma crítica moral severa.“Na verdade, o melodrama tem sido o reduto
por excelência de cenários de vitimização.” (2000, p.86)
Assim, na visão de Porto, Martín-Barbero e Xavier, os momentos
lacrimosos promovidos pelo melodrama não eliminam o debate crí-
tico sobre as representações que balizam o cotidiano e a política, pois
o melodrama está na base de processos identitários e de debates e da
elaboração de representações sobre a vida social.
De modo geral, os produtos e recursos culturais podem auxiliar
de forma criativa no processo de construção identitária (Maia, 1997).
Contudo, não podemos nos esquecer de que o modo de produção,
Ficção e política 203

divulgação e apropriação desses recursos é desigual e acaba por estabe-


lecer fronteiras de exclusão entre grupos e indivíduos.
Ao entrarem em contato mediado, via ficção, com realidades e ex-
periências distintas, os sujeitos são instigados a reavaliarem eticamente
sua própria trajetória de vida. Para que isso ocorra, eles devem sair de
sua posição de consumidores acríticos dos bens simbólicos, e assumi-
rem uma postura reflexiva e autônoma de seleção desses bens.
Tais considerações apontam para uma segunda característica da re-
flexividade: a capacidade que os sujeitos têm de revisar posturas e in-
corporar essas revisões à suas ações. Ou seja, a auto-reflexão também
pode ser desencadeada sem que haja a co-presença de parceiros dialó-
gicos. A interpelação do outro à minha conduta passa a ser mediada,
mas minhas ações refletem a revisão crítica e constante de minha pos-
tura (Maia 1997; Avritzer,2000).
A telenovela, por exemplo, enquanto produto da Indústria Cultural,
não é uma obra de cunho político explícito. Todavia, as reflexões por
ela motivadas e também a revisão de valores, julgamentos, escolhas
e posicionamentos que ela pode desencadear são potencialmente
políticas. Acreditamos que elementos culturais e ficcionais podem
ser úteis aos processos políticos na medida em que proporcionam
entendimentos de regras, normas e valores que atuam em nossas
escolhas, julgamentos, ações e, sobretudo, em nossas maneiras de ver,
representar e reconhecer nossos semelhantes. Sob esse viés, retomamos
aqui as seguintes considerações de Giddens:

Sem dúvida, as telenovelas e outras formas de entretenimento


midiático são válvulas de escape – substitutos para satisfações reais
que não podem ser obtidas em condições sociais normais. Ainda
assim, talvez mais importante seja a própria forma narrativa que elas
oferecem, as quais sugerem modelos de construção de narrativas do
self. As telenovelas misturam o previsível e a contingência através
de uma fórmula que, por ser bem conhecida pela audiência, causa
estranhamentos ao mesmo tempo em que tranqüiliza ao reafirmar
o já sabido. (...) Através dessas histórias adquirimos um controle
reflexivo sobre as circunstâncias da vida, ou seja, um sentimento de
que existe uma narrativa coerente para nossas identidades, o que nos
assegura um contraponto para as dificuldades vividas (1991, p.199).
204 mídia, ética e esfera pública

Nesse sentido, a banalidade se torna complexa. A telenovela não é


tão simplória como nos parece num primeiro instante. Mas ela só reve-
la sua complexidade se considerarmos que sua narrativa, ao ser articu-
lada com as narrativas subjetivas e coletivas, pode revelar a pluralidade
de relações que estabelecemos com o mundo e com as outras pessoas.

A telenovela, como texto, é um diálogo no qual atores, audiências


e personagens trocam constantemente suas posições. Esta troca
refere-se à confusão entre o quê um personagem está experimen-
tando e o quê o telespectador sente, uma experiência estética da
identidade que conta com, e é aberta às expectativas e reações do
público (Martín-Barbero,1993, p.23).

Sob esse aspecto, a cultura não seria mais uma “mercadoria parado-
xal” (Adorno; Horkheimer,1983, p.151), oscilando entre a condição de
produto facilmente substituível e de objeto destituído de sentido. Um
entendimento mais amplo da cultura deve considerá-la como fonte de
recursos para a construção das identidades individuais e coletivas.
As narrativas ficcionais podem, portanto, ser consideradas como
elementos de problematização e estruturação de conflitos políticos,
a partir do momento em que apresentma a capacidade de conferir
visibilidade a injustiças, modos de desrespeito e violência simbólica
que atingem sujeitos ou coletividades. Estes últimos podem apresentar
publicamente via meios de comunicação, servindo-se commumente
de modos narrativos de comunicação (testemunhos, histórias de vida,
memórias, etc.) suas demandas, necessidades e insatisfações, os quais
são endereçados a uma ampla audiência.
É preciso também deixar claro que as narrativas não organizam
somente acontecimentos históricos, eventos marcantes ou ações
ficcionais. Nossa própria história de vida também precisa ganhar um
sentido estabelecido sob uma forma narrativa. Se narrar expressa não
só uma atividade de conexão entre presente, passado e futuro, mas
também, e principalmente, uma forma de “estar no mundo” junto com
os outros (França, 1996), torna-se de extrema relevância investigar como
a narrativa se intersecta com a vida social. Assim, os grupos se servem
das representações midiáticas para, constantemente, elaborarem a
Ficção e política 205

percepção que têm de si mesmos e dos outros. Produtos culturais passam


a vistos como fontes de narrativas capazes de conduzir à reflexividade,
contribuindo para a politização de questões anteriormente privadas
ou consideradas não-políticos (Habermas,1996; Avritzer,1999; Maia,
1998).
Tendo em vista tais considerações, a projeção de questões ligadas
às “biografias particulares” de grupos e indívíduos, uma vez transfor-
madas em narrativas coerentes e comunicadas através do uso da lin-
guagem (literária, jornalística musical, artística, etc.) nos oferece uma
visão da política enquanto rede complexa de processos comunicativos
em torno de questões que dizem respeito ao cotidiano e às experiências
que afetam os atores sociais em suas relações dialógicas com os outros.
Na seção seguinte, tentaremos esclarecer como a narrativa pode se
constituir em uma ferramenta de grande utilidade para estruturarmos
nossas identidades, assim como nossas experiências sociais e políticas
concretas.

Narrativa, ficção e identidade


Ao conferirem visibilidade a experiências e situações de sofrimento,
desentendimentos, reencontros, contingências, alegrias, etc., as narra-
tivas ficcionais propiciam o encontro entre dramas íntimos e coletivos,
proporcionando aos leitores ou espectadores, a oportunidade de loca-
lizar a própria experiência em relação ao conteúdo de uma situação fic-
cional. Podemos apontar como exemplo a dinâmica de articulação en-
tre experiências subjetivas e experiências compartilhadas possibilitada
pela telenovela, uma vez que esta forma narrativa possui a capacidade
de realizar passagens entre registros da “intimidade” e da “publicidade”.

Telenovelas fazem a crônica dos acontecimentos, captam e cons-


tróem experiências, interferem na definição dos termos através
dos quais assuntos provocativos são tratados na esfera pública.
Por sua capacidade de transformar imagens íntimas do amor, da
sensualidade, do casamento e da família em assunto público e por
sua insistência em abordar assuntos públicos nos termos do me-
lodrama, esses folhetins eletrônicos contribuíram para a diluição
206 mídia, ética e esfera pública

das fronteiras estabelecidas entre o que se convencionou delimitar


como domínio da notícia e da ficção, do masculino e do feminino,
do público e do privado. Como conseqüência, pode-se imaginar
que as telenovelas tenham contribuído para a consolidação de uma
esfera pública regida pelo registro da intimidade e da emoção que
estruturam o melodrama (Hamburger,1998, p.43).

É possível dizer, portanto, que as narrativas melodramáticas


apresentam o potencial de servir-se do senso comum10 para transfor-
mar a linguagem da experiência privada em uma linguagem capaz de
mobilizar o debate coletivo. A nosso ver, devemos dissociar o termo
“melodrama” das conotações pejorativas trazidas, principalmente, pe-
las reflexões ligadas à Indústria Cultural e reconhecer o seu papel con-
figurador de um fórum público peculiar – no qual ocorre uma discus-
são e uma elaboração recíproca de representações sobre a vida social
(Porto,1994).
Como apontado anteriormente, a organização das narrativas
ficcionais explora os dilemas morais que caracterizam nossas relações
e nossa percepção do mundo. Com relação aos modos de comunicação
e expressão disponíveis para a apresentação dos indivíduos no espaço
público, Habermas (1987) refere-se à narrativa como uma prática
essencial à construção de identidades individuais e coletivas, assim
como à formulação de entendimentos reciprocos acerca de questões de
interesse coletivo. Assim, em primeiro lugar, a narrativa se apresenta
como a forma que as pessoas tendem a utilisar para ordenar suas
histórias de modo expressá-las relacionalmente diante dos outros,
marcando assim, o pertencimento a uma dada coletividade. E, em
segundo lugar, a narrativa auxilia os participantes de um debate público

10. De acordo com José de Souza Martins, “o senso comum é comum não porque
seja banal ou mero e exterior conhecimento. Mas porque é conhecimento compar-
tilhado entre os sujeitos da relação social. (...) Sem significado compartilhado não
há interação. Além disso, não há possibilidade de renovação dos significados, já que
são reciprocamente experimentados e negociados pelos sujeitos. Mais do que uma
coleção de significados compartilhados, o senso comum decorre da partilha , entre
atores, de um mesmo método de produção de significados reinventados continua-
mente.” (1998, p.3 e 4).
Ficção e política 207

a alcançarem o entendimento mútuo sobre uma questão de interesse


coletivo ao possibilitar que as pessoas expressem seus pontos de vista
sob a forma de perspectivas coerentemente ordenadas.
Na gramática das narrativas nós podemos ver como identifica-
mos e descrevemos estados e eventos que aparecem num mundo
da vida; como interligamos e organizamos seqüencialmente em
complexas unidades as interações dos membros em espaços sociais
e tempos históricos; como explicamos as ações dos indivíduos e
os eventos em que estão envolvidos; os atos de coletividades e os
destinos que elas encontram, da perspectiva de gerenciar situações
(Habermas,1987, p.136).

A perspectiva delineada por Habermas se revela promissora para


percebermos como, em nosso cotidiano, organizamos de forma narra-
tiva nossos quadros de referência, nossas experiências, nossos encon-
tros com os outros e nossas participações em múltiplas redes de convi-
vência. Para ele, a forma narrativa apresenta-se como a mais adequada
para identificarmos, organizarmos e descrevermos o conhecimento
resultante de nossas relações intersubjetivas. Nesse sentido, se nossas
experiências individuais e intersubjetivas precisam da narrativa para
adquirir sentido, também a vida social é construída através do exercí-
cio comunicativo incessante de produção de um “enredo” que conecta
o privado ao público, o particular ao coletivo.
A narrativa também contribui para o entendimento entre pessoas
que possuem experiências e pontos de vista diferenciados sobre ques-
tões de interesse coletivo (Habermas, 1987). Ela permite que questões
que antes não eram consideradas dignas de receberem visibilidade ou
tratamento público passem a ser consideradas como relevantes. É sob
a forma narrativa que procuramos conhecer como “segmentos sociais
vêem mutuamente suas ações e quais são os efeitos das políticas e ações
para pessoas localizadas em diferentes posições sociais”(Young, 1996,
p.132). A narrativa provém, portanto, uma explicação do motivo de
uma questão particular constituir um problema de injustiça que deve
ser discutido por todos. E, em terceiro lugar, uma vez que um dado
problema foi caracterizado como uma injustiça, a narrativa auxilia os
sujeitos em comunicação a explicarem uns aos outros suas premissas
208 mídia, ética e esfera pública

de fundo de modo a facilitar o acordo e o entendimento (Young, 1996;


Whitebrooke, 1996). A utilização da narrativa em nossas conversações
e discussões cotidianas, nos auxilia a ver as coisas a partir da perspecti-
va do “outro”, o que contribui para o alargamento das formas de pensar
e entender as histórias individuais e coletivas.
É importante destacarmos que as narrativas disponíveis
publicamente (seja através da mídia, dos romances, dos discursos
políticos, etc.) não são incorporadas pelos indivíduos de maneira
direta, “mas são mediadas através de um enorme espectro de relações
políticas e sociais que constituem nosso mundo social”(Somers;
Gibson, 1994, p.67). E são as mensagens midiáticas, em grande parte
os textos ficcionais, que cumprem atualmente o papel de nos auxiliar
a compormos nossas identidades. Como mencionado anteriormente,
autores como Giddens (1991), Thompson (1998) e Whitebrook (1996),
afirmam que a narrativa ficcional proveniente de diferentes media é
particularmente útil aos sujeitos quando apresenta situações onde o que
está em jogo são: i) as necessidades de se fazer escolhas; ii) as pressões
psicológicas sobre indivíduos confrontados por estas situações;
iii) os dilemas morais envolvidos e as conseqüências da escolha; e,
finalmente, iv) os efeitos políticos das reações a estes problemas. Para
compor situações dessa natureza, a narrativa ficcional se alimenta
de temas capazes de repercutir nas conversações cotidianas, assim
como nas discussões morais e éticas que se processam na sociedade.
Uma ficção seriada tende, então, a se “apropriar seletivamente dos
acontecimentos do mundo social, organizá-los em alguma ordem,
e valorizar normativamente essas organizações”(Somers e Gibson,
1994, p.60).
A atuação da ficção no espaço público está também relacionada
ao estabelecimento de um vínculo de reciprocidade entre discursos,
representações e práticas sociais e contingências pessoais de cada in-
divíduo. Nessa perspectiva, a ficção alia-se às narrativas de demanda
política projetando-se em esferas públicas e alimentando debates que,
ao longo do tempo, podem propiciar modificações de hábitos, de prá-
ticas sócio-culturais e de formas de representação (Whitebrook, 1996;
Hamburger, 2005).
Ficção e política 209

A constituição de esferas públicas pode beneficiar-se das narrati-


vas, na medida em que elas se revelam como mecanismos capazes de
conectar dilemas concretos e subjetivos à questões sociais prementes
da ordem do dia. Dependendo do impacto social provocado pela abor-
dagem de determinadas temáticas, a telenovela, por exemplo, torna-se
objeto das conversações informais, propondo um amplo debate que
ultrapassa as esferas convencionais da narrativa ficcional, fornecendo
ao cidadão comum elementos para opinar sobre questões de interesse
coletivo (Tesche, 2002; Rondelli, 1992; Marques e Maia, 2003).

A popularidade das novelas não se mede somente pela cotação


do Ibope, mas exatamente pelo espaço que ocupam nas conversas
e debates de todos os dias, pelos boatos que alimentam, por seu
poder de catalisar uma discussão nacional, não somente em torno
dos meandros da intriga, mas também acerca de questões sociais. A
novela é, de certa forma, a caixa de ressonância de um debate público
que a ultrapassa (Armand & Michelle Mattelart,1989, p.111).

Atualmente, as lutas políticas relativas ao reconhecimento de identi-


dades e grupos podem também ser entendidas como disputas que envol-
vem narrativas. Tal constatação nos permite dizer que a política que se
processa na vida cotidiana (contestação de estereótipos e representações,
luta contra opressões simbólicas de todo tipo, constituição da cidadania,
etc.) diz respeito aos debates e às contestações originadas, em primeira
instância, da tessitura narrativa de experiências de injustiça vivenciada
no complexo processo de construção reflexiva das identidades.
Vários autores têm enfatizado o papel da narrativa na organização e
produção de sentido de nossas experiências subjetivas e coletivas (So-
mers e Gibson, 1994; Giddens, 1991; Habermas, 1987; Taylor, 1997;
Martino, 2010). O aspecto relacional das práticas sociais e comuni-
cativas marca o modo como entendemos o mundo e a nós mesmos,
pois é somente em relação ao outro que produzimos significados sobre
nossas vivências e identidades (Hall, 1997). Como apontam Margaret
Somers e Gloria Gibson, “é através da narratividade que conhecemos,
entendemos e damos sentido ao mundo social, e é também por meio
dela que constituímos nossas identidades sociais.”(1994, p.58). Quatro
210 mídia, ética e esfera pública

características da narrativa são apontadas por elas como aquelas capa-


zes de trazer contribuições para a observação dos fatos sociais, a saber,
a) a relacionalidade das partes; b) a construção de um enredo causal; c)
a apropriação seletiva dos acontecimentos, e d) a temporalidade, a es-
pacialidade e a seqüencialidade. A narrativa, portanto, nos leva ao en-
tendimento de uma realidade social por “conectar partes (mesmo que
instáveis) de modo a construir uma configuração ou uma rede social
(mesmo que incoerente ou irrealizável) composta de práticas simbóli-
cas, institucionais e materiais.”(Somers e Gibson,1994, p.59).
A comunicação, em sua vertente relacional, procura não só identi-
ficar as narrativas através dos parâmetros de gênero (formato), dispo-
sitivos técnicos e discursos, mas procura sobretudo estabelecer inter-
faces entre a estrutura disposta pela narrativa e os diferentes modos
de organização das práticas sociais e da construção de entendimentos
sobre o “eu” e sobre “o outro”; sobre o “nós” e o “eles” (Martino, 2010).
O estudo da narrativa transporta-nos assim à necessidade de investi-
garmos a dinâmica comunicacional de aproximação e de afastamento
que tensiona a descoberta do mundo objetivo, do mundo subjetivo e
do mundo do “outro”.
A ficção participa desse processo a partir do momento em que fornece
aos sujeitos em comunicação algumas representações que, ao serem
apreendidas, auxiliam na produção de novos sentidos e significados,
além de possibilitarem aos interlocutores maior conhecimento de si
mesmos e dos outros (Martín-Barbero, 1993; Berger & Luckmann,
1971).11 Assim, além de cumprir a tarefa essencial de entreter ao contar
uma história, a ficção, sobretudo a ficção seriada televisiva, torna-se
instrumento “de mediação cotidiana do conjunto das relações sociais,
da difusão das idéias e da formação das condutas que têm lugar na
sociedade” (Tesche, 2002, p.11). Tal perspectiva vincula-se intimamente
às considerações sobre a reflexividade presente na recepção. Como
apontado anteriormente, vários autores (Eco,1994; Whitebrook,1996;

11. Em contrapartida, o mundo real penetra nos mundos ficcionais aportando


modelos para sua organização interna e, em suma, subministrando materiais (pre-
viamente transformados) para a construção de tais mundos, ou seja, ele participa
ativamente na gênese dos mundos possíveis (Tesche, 2002).
Ficção e política 211

Barker, 2003; Hamburger, 2005) acreditam que as narrativas ficcionais


são instrumentos para a organização de nossas experiências.

Nossas histórias, nossas conversas estão presentes tanto nas narra-


tivas formais da mídia, na reportagem factual e na representação
ficcional como em nossos contos do dia a dia: a fofoca, os boatos e
interações casuais nos fornecem maneiras de nos fixar no espaço e
no tempo e, sobretudo, de nos fixar em nossas inter-relações, co-
nectando e separando, compartilhando e negando de modo indivi-
dual e coletivo. Nossas vidas são administráveis na medida em que
existe um mínimo de ordem. Tanto a estrutura como o conteúdo
das narrativas da mídia e das narrativas de nossos discursos coti-
dianos são interdependentes e, juntos, eles nos permitem moldar e
avaliar a experiência (Silverstone, 2002, p.30 e 31).

O modo como as diferentes audiências compreendem e interpretam


as narrativas ficcionais televisivas relaciona-se com diferentes
mediações tais como, sua inserção em uma comunidade que se estrutura
narrativamente; sua tradição cultural; suas redes de sociabilidade, enfim
suas múltiplas inserções as quais conferem sentido às suas experiências
existenciais. Ao mesmo tempo em que as audiências são desafiadas a
interpretar a história, as ações das personagens e as diversas tramas
que se cruzam (dialogando com sua própria experiência de vida e seus
valores), elas são também estimuladas a trocar com os outros a sua
experiência de leitura (Barker, 2003; Borelli, 1996). E é justamente essa
troca comunicativa acionada pela ficção que se encarrega de colocar
em contato as narrativas midiáticas e as narrativas que tecemos em
nosso cotidiano. Estas últimas nos conectam aos outros sujeitos,
constituindo laços de solidariedade que mantêm coesa a estrutura
relacional da vida social. As práticas sociais são práticas comunicativas
por natureza, e permeiam os “fazeres” e “saberes” rotineiros de modo
a permitir que os fios da existência originem uma trama marcada pela
dimensão relacional da palavra cotidiana (França, 1996).
A forma da narrativa nos revela uma estrutura capaz de articular as
práticas sociais, de instruir as pessoas no entendimento de situações
problemáticas, de antecipar as conseqüências de determinadas escolhas
(provendo modelos de motivações e de decisões) e de tematizar questões
212 mídia, ética e esfera pública

nas redes comunicativas da esfera pública. Assim, evidenciamos que


tanto a forma quanto o conteúdo (o tema dos enredos) das narrativas
proporcionadas pela ficção folhetinesca e televisiva nos permitem
refletir sobre o modo como organizamos nossas relações com os
outros, com a cultura, com um regime de valores, com a política e com
as regras morais e éticas que regem nossas condutas.
Com isso, as narrativas ficcionais articulam-se às narrativas sociais
e identitárias de modo a tecer saberes acerca do mundo, conferindo
densidade às experiência e alargando seus horizontes. Através do con-
teúdo das narrativas ficcionais tomamos contato com as experiências
dos “outros”, conferimos sentido às suas trajetórias e procuramos en-
xergá-los de modo diferenciado. Sob esse viés, ao invés de uma ação
despolitizante, evidenciamos que a narrativa ficcional auxilia nos pro-
cessos reflexivos de estruturação de nossas experiências pessoais, nos-
sas relações com os outros, com o mundo concreto e com a dimensão
política do cotidiano. Isso porque a linguagem narrativa traduz e envia
necessidades de ordem política para a esfera pública de modo a tornar
visíveis questões percebidas como aquelas que devem ser discutidas
por todos. Quando demandas políticas são articuladas através dos sig-
nificados culturais, ocorre uma mobilização que se destina a alterar o
espaço moral em que as identidades são negociadas.
As discussões que envolvem questões de ordem moral exigem
a instauração de um espaço público para a expressão de diferentes
argumentos e perspectivas. Esses últimos, muitas vezes aparecem no
contexto de narrativas biográficas ou mesmo ficcionais vistas como
as mais adequadas para alcançar a compreensão entre os diferentes
interlocutores. Nos debates travados na esfera pública, a narrativa não
só auxilia na explicitação de pontos de vista sustentados por diferentes
atores, como também funciona como maneira de justificar as posições
por eles ocupadas. A construção de um entendimento recíproco sobre
valores e normas é, portanto, auxiliado pelo uso que os atores sociais
fazem das narrativas culturais e identitárias publicamente disponíveis,
quando envolvidos em interações destinadas tanto à elaboração dos
recursos culturais e simbólicos que norteiam suas práticas cotidianas,
quanto à avaliação de seus modos de agir, julgar e solucionar problemas.
Parte III

Ética, estética e política


capítulo 10

Cenas de dissenso
e estética da política

A ética da comunicação envolve parceiros de diálogo, as ne-


gociações que definem a situação interativa, as articulações e tensões
entre os sujeitos e seus enunciados e desafio que o outro nos lança ao
nos interpelar por meio de sua diferença. O encontro com o outro, a
vida em comunidade e a definição daquilo que integra um comum e
quem dele deve fazer parte são questões que dizem respeito às relações
que ética estabelece com a estética e a política.
Com relação à política, a ética se configura a partir da comunicação,
da discussão pública e da autonomia dos agentes. Ela é domínio da inter-
relação: das relações sociais no interior das instituições, da interação
com o outro e da emancipação dos sujeitos. Compreender a ética dos
processos comunicacionais como resultado da reflexão sobre nossas
práticas coletivas e intersubjetivas requer uma reflexão acerca de como
nos posicionamos em relação aos outros, como definimos, através da
linguagem, vínculos de pertencimento e de exclusão, comunidades de
partilha e universos seccionados pela exclusão.
Cenas de dissenso e estética da política 215

Para Chantal Mouffe (1994), a dimensão interlocutiva e pragmática


da linguagem é evidenciada na situação agonística, na cena polêmica
da enunciação performática dos sujeitos, que ao lutarem para ter seus
discursos considerados e para constituírem-se como interlocutores que
desejam dizer e desejam se fazer ouvir, estabelecem uma comunidade
política que possui o mundo comum como pano de fundo pré-existente
para as interações e como fruto do processo de coexistência. Mas o
mundo comum por ela descrito é aquele marcado por constantes disputas
e dissensos acerca das camadas sensíveis de sentido e de dominação que
se escondem nas estruturas de formação de uma comunidade política.
Na perspectiva habermasiana, como vimos, a inserção de um su-
jeito em uma comunidade política é definida por sua capacidade de
colocar-se em um entendimento preliminar com seus parceiros de in-
terlocução e por sua capacidade de usar racionalmente a linguagem
para compreender um tema ou problema.

No contexto da ação comunicativa, contam somente aquelas pessoas


que são consideradas como responsáveis, que, enquanto membros
de uma comunidade de comunicação podem orientar suas ações
para a produção de demandas de validade intersubjetivamente re-
conhecidas (Habermas, 1984, p.14) (grifos nossos).

A igualdade de status entre os interlocutores parece ser pressuposta


e, assim, não haveria a necessidade de colocá-la à prova ou de verificá-la.
Habermas afirma que “aqueles que contam” para se tornar parte de uma
comunidade ideal de discurso são aqueles dotados de uma capacidade
de fala, identificados como potenciais interlocutores e previamente ca-
pazes de construir proferimentos passíveis de serem validados por seus
interlocutores. Ele nos apresenta, portanto, a figura de um interlocutor
formado, inserido na ordem do discurso e que, justamente por isso, não
coloca em questão o que significa falar diante do outro e para o outro.
Sabemos que sujeitos políticos são aqueles que consideramos como
interlocutores em uma determinada situação de interação, de criação
polêmica e/ou de dissenso. Mas o que transforma os sujeitos em in-
terlocutores? E ainda: por que alguns parceiros de interação não são
reconhecidos como interlocutores válidos pelos outros?
216 mídia, ética e esfera pública

A abordagem que Habermas constrói acerca do sujeito político


traz pistas interessantes acerca da construção de espaços de discussão
nos quais a opinião pública política é construída concomitantemente
ao sujeito autônomo, emancipado e igual a partir da perspectiva de
que ele possui capacidades e habilidades de apresentação e justifica-
ção recíproca de argumentos que traduzem seus interesses e desejos
em demandas passíveis de serem generalizadas. Contudo, Habermas
traz contribuições limitadas para refletirmos sobre o modo como os
sujeitos performam seus enunciados, apresentam seus universos sim-
bólicos, narram suas experiências e buscam conectar-se com as neces-
sidades alheias.
Uma proposta de pensar a política por outro ângulo vem nos
chamando a atenção: Jacques Rancière (1995, 2000) insiste em mostrar
que a discussão política não pode ficar restrita à racionalidade da troca
de argumentos voltada para a definição e esclarecimento acerca dos
interesses dos participantes. A política, para ele, precisa contemplar
também a relação que se estabelece entre os interlocutores, além da
configuração da própria situação de interlocução. Segundo esse autor
não é somente o conteúdo dos proferimentos e a atribuição de validade
que lhes é feita ou não que está em jogo na discussão política, mas
também a própria consideração dos interlocutores enquanto tais
(1995, p.79). Interessa-lhe, assim, uma “cena na qual se colocam em
jogo a igualdade ou a desigualdade dos parceiros de conflito enquanto
seres falantes” (1995, p.81).

A política existe porque o logos não é jamais simplesmente a palavra,


mas porque ele é sempre indiscutivelmente a conta que é feita a
partir dessa palavra: a contagem por meio da qual uma emissão
sonora é entendida como palavra, apta a enunciar o justo, enquanto
uma outra é percebida somente como ruído, demonstrando prazer
ou dor, consentimento ou revolta” (Rancière, 1995, p.45).

Rancière questiona a estrutura de um “mundo comum” sustentado


pela racionalidade, universalidade e consenso, para revelar que os
sujeitos não se apresentam prontos como interlocutores de um debate,
conscientes de sua fala e de seus posicionamentos em uma ordem
Cenas de dissenso e estética da política 217

discursiva. Slavoj Žižek (2004) menciona que, para Rancière, não


importam apenas as demandas e argumentos formulados pelos sujeitos,
mas o modo como são ouvidos e reconhecidos como parceiros iguais
no debate (e como eles mesmos se reconhecem como tais). E, nesse
sentido, Rancière não só se aproxima da teoria do reconhecimento
social desenvolvida por Axel Honneth (1995), como nos oferece
conceitualizações consistentes de como devemos continuar a resistir.
A política, segundo Rancière, se configuraria

[...] junto com a emergência de um grupo que, apesar de não ocu-


par nenhum lugar fixo no edifício social (ou de ocupar um espaço
subordinado), demanda ser incluído na esfera pública, ser ouvido
em pé de igualdade diante das regras impostas por uma oligarquia
ou aristocracia, isto é, reconhecidos como parceiros no diálogo
político e no exercício do poder. Como Rancière enfatiza, contra
Habermas, a luta política não é apenas um debate entre múltiplos
interesses, mas, simultaneamente, uma luta para que uma voz
seja ouvida e reconhecida como uma voz de um parceiro legítimo
(Žižek, 2004, p.69-70).

Diante desse quadro, a ética e a política dizem não apenas da afir-


mação de um sujeito como parceiro e interlocutor de debate, mas do
constante tensionamento entre duas ordens sensíveis1 distintas: um
mundo que parece ser o mundo comum partilhado pela maioria (e
expresso frequentemente nas narrativas da grande mídia) e um mundo
invisível, inaudível e imperceptível que se localiza dentro desse mundo
comum, mas dificilmente consegue fazer o seu aparecimento.
O argumento defendido por Rancière (1995, 2000) é o de que exis-
te, na base da política, uma experiência de natureza estética que só se

1. O termo sensível em Rancière pode ser definido como “uma outra forma de
montar a cena de enunciação e aparição, ao produzir diferentes relações entre pa-
lavras, os tipos de coisas que elas designam e os tipos de práticas que empode-
ram” (2010, p.54). O sensível relaciona-se às percepções e capacidades dos corpos,
cavando hiatos, abrindo derivações, modificando maneiras, velocidades e trajetos
segundo os quais os sujeitos aderem a uma condição, reagem à situações e reconhe-
cem suas imagens. O sensível pode ser percebido em momentos de dessarranjo da
funcionalidade dos gestos e dos ritmos adaptados aos ciclos naturais da produção,
da reprodução e da submissão.
218 mídia, ética e esfera pública

dá a ver porque o político sempre está presente em questões ligadas a


divisões e fronteiras, a uma partilha (que envolve, ao mesmo tempo,
divisão e compartilhamento) da realidade social em formas discursi-
vas de percepção que impõem limites à comunicabilidade da experi-
ência daqueles que têm sua palavra excluída das formas autorizadas
de discurso. Nesse sentido, Rancière afirma que a ideia de “partilha
do sensível” tem origem no pensamento de Foucault, especificamente
em suas considerações a respeito de como as coisas podem se tornar
visíveis, dizíveis e capazes de serem pensadas. As idéias de Foucault a
respeito das camadas do saber, da subjetivação e do poder presentem
na ordem do discurso2 inspiram Rancière a pensar em “um sistema de
evidências sensíveis que dá a ver, ao mesmo tempo, a existência de um
comum e as divisões que nele definem os lugares e partes respectivas”
(Rancière, 2000, p.12).
A partilha do sensível dá a ver quem pode tomar parte do comum
em função do que faz, do tempo e do espaço nas quais essa atividade é
exercida. Ter esta ou aquela ocupação define, assim, as competências
ou incompetências para o comum. Isso define o fato de ser ou não
visível em um espaço comum, dotado de palavra comum, etc. Existe,
portanto, na base da política, uma estética que a define como forma
de experiência (Rancière, 2000, p.13). O sensível é o âmbito em que
se reconfigura o “comum de uma comunidade”, isto é, em que se
questiona “as coisas que uma comunidade considera que deveriam ser
observadas, e os sujeitos adequados que deveriam observá-las, para
julgá-las e decidir acerca delas” (Rancière, 2000, p.12). O comum de
uma comunidade é menos aquilo que é “próprio” de um grupo ou de
uma cultura e mais o lugar de exposição e aparecimento dos intervalos
e das brechas que permitem “introduzir em uma comunidade sujeitos
e objetos novos, tornar visível aquilo que não o era e tornar audíveis,

2. “Ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências ou se


não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões
do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas
(diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a todos os
ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que fala” (Fou-
cault, 2009, p.37).
Cenas de dissenso e estética da política 219

como interlocutores, aqueles que eram percebidos somente como


animais em algazarra” (Rancière, 2004b, p.38). Eis aqui uma questão
central: a partilha do sensível opõe um espaço consensual a um espaço
polêmico, ela faz aparecer sujeitos que até então não eram contados ou
considerados como interlocutores, ela traz à experiência sensível vozes,
corpos e testemunhos que até então não eram vistos como dignos de
respeito e estima.

Sujeito político, cena de dissenso e subjetivação


Para entender a noção de sujeito político proposta por Rancière é
preciso compreender primeiro como ele caracteriza a democracia e a
política.3 Ambas, segundo ele, não se confundem com o exercício do
poder, mas são um modo específico de ação desempenhado por um
sujeito que não pré-existe ao ato enunciativo e que possui uma forma
de “fazer parte da comunidade” que influi no modo como se configura
ou não como cidadão. O modo como os sujeitos tomam parte na co-
munidade política está ligado, de acordo com Rancière, ao que Platão
definiu como poder da arkhé4, termo que remete à antecipação das
disposições para governar e sua forma de distribuição social: aqueles
que governam são destinados a isso por laços de sangue, herança ou
riqueza - uma lógica que pressupõe que uma superioridade é exercida
sobre uma inferioridade igualmente determinada. assim, o sujeito da
política deve romper com a ideia de que existem disposições específi-
cas para agir, que são atribuídas às posições ocupadas pelas pessoas.

3. O conceito de democracia é objeto de reflexão em algumas obras e textos espe-


cíficos de Jacques Rancière. Encontramos em Disagreement (1995) e em seu artigo
“Ten Theses on politics”(2001) algumas primeiras reflexões acerca do significado
da democracia, da política e do sujeito político retomadas e aprofundadas em obras
posteriores como Aux bords du politique (2004), Hatred of democracy (2009) e o
texto “Does Democracy means something ?” (2010).

4. A arkhé é um princípio teórico definindo uma clara distribuição de posições


e capacidades, embasando a distribuição do poder entre aqueles que governam
e os governados; e é também um “indício temporal de que o fato de governar é
antecipado na disposição para tal” (Rancière, 2010, p.51).
220 mídia, ética e esfera pública

A democracia, sob esse aspecto, não é uma forma de governo, nem


um regime político composto de um conjunto definido de instituições.
Estaria ligada, assim como a política, à ruptura com a lógica da arkhé,
com a ideia de que existem disposições específicas para quem exerce
o poder e quem se submete a ele. A política se define a partir de “uma
lógica de distribuição de partes e partilhas sociais que se opõe à polícia”
(Rancière, 2001, p.35). A relação entre política e polícia está no cerne
do pensamento democrático do filósofo e manifesta a singularidade
do agenciamento político, cuja principal tarefa é promover rupturas,
irrupções e fraturas na ordem normal e consensual das coisas imposta
pela “polícia”. Tal ordem indica que as comunidades humanas
deveriam se juntar sob a norma daqueles que são qualificados para
governar e cujas qualificações são evidentes. Nesse sentido, a polícia
opera pelo princípio de saturação: um modo de divisão do sensível
que não reconhece nem falta nem suplemento - cupações, modos de
ser e espaços sociais são preenchidos de forma a não deixar hiatos
(cada um tem sua ocupação, à qual corresponde um modo de ser e
um lugar na sociedade). Política e polícia são, segundo Rancière, duas
formas distintas de contar as partes de uma comunidade, duas formas
de partilha do sensível.5
A democracia é o regime da política, entendida como forma de relação
que define um sujeito específico (Rancière, 1995, 2001). Mas quem é
o sujeito da democracia para Rancière? Em um primeiro momento,
o sujeito da política é associado ao demos, ou seja, aqueles que não
são autorizados a exercer o poder. O termo não designa uma categoria
social inferior. Aquele que pertence ao demos, que fala quando não
deveria falar, é “aquele que toma parte naquilo que ele não tem parte”

5. “A instituição da democracia significa a invenção de uma nova topografia, a


criação de um espaço feito de espaços desconectados contra o espaço aristocrático
que conecta o privilégio material dos donos de terras com o poder simbólico da
tradição. Essa desconexão está no centro da oposição entre polícia e política. Assim
a questão do espaço deve ser pensada em termos de distribuição: distribuição de
lugares, limites, do que está dentro ou fora, do que é central ou periférico, visível ou
invisível. Ela está relacionada com o que chamo de partilha do sensível”.(Rancière,
2011, p.6)
Cenas de dissenso e estética da política 221

(Rancière, 2010, p.32). Assim, demos são aqueles que não contam,
que não possuem direito de exercer o poder da arkhé. O demos não
é a população, a maioria, o corpo político ou as classes baixas. É uma
comunidade suplementar feita daqueles que não possuem nenhuma
qualificação para governar, o que significa todos e qualquer um.
Sob esse aspecto, o conceito de demos está intimamente ligado à noção
de sem-parte: estes, de acordo com Rancière (2001, p.35), são menos
grupos sociais (ligados a raça, pobreza, trabalho (não são os negros,
pobres ou trabalhadores) e mais “formas de inscrição” que dão a perceber
uma conta dos que não são contados. Esses grupos e sujeitos inscrevem,
sob a forma de um suplemento a todas as contas das partes da sociedade,
uma figura específica da conta dos não contados ou da parte dos sem-
parte. A metáfora é bastante sugestiva: um sem-parte não é um pobre
ou um trabalhador propriamente dito, mas a forma como esse pobre
e esse trabalhador conseguem, por meio de uma operação enunciativa
(argumentativa e performática), marcar, traçar, fazer aparecer como
problema um hiato, uma ruptura onde a ordem consensual da arkhé
insiste em operar e manter a inclusão de todos e a adequação de cada
um a um lugar e a uma ocupação. Dito de outro modo, essas operações
enunciativas que constituem a agência do sujeito político, dão a ver um
suplemento onde parecia haver uma correspondência exata entre corpos
e lugares sociais.

As pessoas que compõem o sujeito da democracia não são nem


uma coleção de membros da comunidade, nem as classes trabalha-
doras da população. Elas são uma parte suplementar na relação da
contagem das partes da população, tornando possível identificar a
parte dos não contados no contexto do todo da comunidade (Ran-
cière, 2001, p.33).

De modo objetivo, o sujeito político em Rancière não se confunde


com um “grupo de interesses ou ideias”, mas surge como o operador de
um “dispositivo particular de subjetivação e de litígio por meio do qual
a política passa a existir” (2001, p.39). O sem-parte é a metáfora para
um sujeito político cujo poder e agência “não podem ser equiparados
ao poder de um grupo particular ou instituição e existe somente como
222 mídia, ética e esfera pública

forma de disjunção” (Rancière, 2010, p.53). A disjunção e a ruptura


são promovidas pelo sujeito político no plano da experiência sensível,
sendo que, para Rancière (2005), o sensível se refere a lugares e modos
de performance e de exposição, formas de circulação e de reprodução
dos enunciados -, mas também aos modos de percepção e dos regimes
de emoção, às categorias que os identificam, esquemas de pensamento
que os classificam e os interpretam.
Ao sujeito é dado um nome definido pela partilha (pelo tomar par-
te) de tempos e espaços, tanto na sua forma de ação quanto na passibi-
lidade correspondente a essa ação. Com isso, Rancière quer dizer que
quando um sujeito corresponde a apenas um nome, ele se dilui sob o
controle de uma ordem consensual. Mas quando um sujeito se percebe
entre vários nomes, atravessado por um excesso de palavras, fica mais
difícil controlá-lo, classificá-lo, atribuir-lhe apenas um lugar, uma visi-
bilidade e um rosto.
O sujeito político age, então, para retirar os corpos de seus lugares
assinalados, libertando-os de qualquer redução à sua funcionalidade.
Ele busca configurar e (re)criar uma cena polêmica sensível na qual se
inventam modos de ser, ver e dizer, promovendo novas subjetividades e
novas formas de enunciação coletiva. Essa cena possibilita a emergência
de sujeitos de enunciação, a elaboração e manejo dos enunciados, a
instauração de performances e embates aí travados, colocando em jogo
a igualdade ou a desigualdade dos parceiros de conflito enquanto seres
falantes (Lelo & Marques, 2013; Marques, 2014).

Subjetivação política e emancipação


É na “cena dissensual” que os atores criam atos enunciativos por
meio dos quais inauguram um tempo e um espaço capazes de permitir
novos recortes e territorializações do espaço material, legal e simbólico,
além de “construir espaços e relações a fim de reconfigurar material e
simbolicamente o território do comum» (Rancière, 2010, p.19). Nas
cenas polêmicas de dissenso são promovidas oportunidades de criação
de situações adequadas para modificar nossos olhares e nossas atitu-
des em relação a esse ambiente coletivo. Tais cenas são criadas para
Cenas de dissenso e estética da política 223

tratar um dano6 associado ao não cumprimento de um pressuposto de


igualdade (tal pressuposto estabelece uma conexão com a questão da
justiça, além de se vincular ao propósito de emancipação presente na
noção de literaridade) que pretensamente deveria fazer com que todos
os indivíduos fossem capazes de articular temporalidades e enunciados
para participar de ações e atividades políticas. No processo de subjeti-
vação política, o indivíduo se faz sujeito emancipado através do traba-
lho que realiza sobre sua própria linguagem e seus modos de expressão
e “aparição”/apresentação diante do outro.
A subjetivação em Rancière, nomeia tanto o processo de se tornar
sujeito quanto o processo político de nomear constrangimentos de
poder e injustiças: ela torna visível o hiato entre a identidade de alguém
dentro da ordem consensual dada (na distribuição de papéis, lugares
e status) e uma certa demanda se subjetividade por meio da ação da
política. Sob esse aspecto, Rancière ressalta que, por subjetivação
entende-se “a produção, por uma série de atos, de uma instância e de uma
capacidade de enunciação que não eram identificáveis em um campo
de experiência dado, cuja identificação está ligada à reconfiguração
do campo da experiência” (1995, p.59). A subjetivação política não é
o “reconhecimento de” ou o gesto de “assumir uma identidade”, mas
o desligamento com essa identidade, a produção de um hiato entre a
identidade da ordem vigente e uma nova subjetividade política.
A subjetivação política é sobretudo fruto de desidentificações: rup-
turas com uma ordem discursiva que oferece a cada pessoa seu lugar
na ordem das coisas, um lugar atrelado à uma identidade. A subjetiva-
ção não-identitária (ou desidentificatória) em Rancière concerne, além
disso, a uma figura política coletiva, não individualizada, problemati-

6. É importante destacar que o dano não pode ser confundido com uma injúria
cometida contra um sujeito específico, ou seja, algo que pode ser reparado ou
“consertado” pela aplicação de uma lei ou sanção. Não se repara o dano, no sentido
de fazer com que ele desapareça, mas se pode tratá-lo a partir do momento em
que se instaura o dissenso entre uma ordem policial (de saturação da equivalência
entre corpos e ocupações) e a irrupção da política. Interessa a Rancière, portanto,
uma “cena na qual se colocam em jogo a igualdade ou a desigualdade dos parceiros
de conflito enquanto seres falantes” (1995:81), uma cena de demonstração para o
tratamento do dano.
224 mídia, ética e esfera pública

zando o processo de universalização de atores particulares, em situ-


ações de luta particulares, sob a forma da constituição de um sujeito
plural, coletivo, não redutível à demanda de uma comunidade de sujei-
tos preidentificados (através das categorias de classe, raça, sexo, ou pe-
las categorias socioprofissionais). Como vimos, o sujeito político que
perturba a comunidade dos iguais é como a figura do anônimo: uma
oposição a qualquer forma de substanciação. O anônimo não é um cor-
po coletivo, nem uma substância, mas um processo de distanciamento
colocado em questão permanentemente, criando uma cena de dissenso
para expressar-se e promover mudanças na ordem consensual.
A desidentificação é uma das dimensões do processo de subjetiva-
ção política, consistindo no distanciamento da ordem policial que nos
designa uma posição no mundo e, assim, determina nossas possibili-
dades de ação e existência. Nos desidentificamos, segundo Rancière,
de uma identidade policial que encarna o conjunto de codificações im-
postas, instituições, leis, normas, regras e códigos que determinam as
maneiras consensuais de comportamento ligadas à posição social que
ocupamos. Sob esse aspecto, a desidentificação promove mudanças na
ordem consensual e nos retira do âmbito das classificações impostas,
operando uma partilha dissensual do sensível que reconfigura nosso
auto-entendimento por meio da reconfiguração de nossa relação com
o mundo e com os outros.
A desidentificação possui duas dimensões interligadas: uma indi-
vidual, que consiste na interrupção de uma dada ordem e estado de
coisas (pondo em movimento uma operação de distinção); e outra
coletiva, que busca tematizar universalmente um dano que fere os
gestos políticos de igualdade e emancipação. Não há oposição entre
essas duas dimensões, uma vez que suas articulações e fronteiras são
instáveis e deslizam continuamente. O sujeito político se orienta, ao
mesmo tempo, eticamente (por meio de seus pertencimentos, crenças
e experiências) e moralmente (por meio da busca de uma conexão com
os outros, da produção de relações e articulações políticas) O processo
de subjetivação política movido pela desidentificação consegue fazer
com que um ato individual seja percebido como um ato formador de
uma comunidade dissensual (que existe como excesso e suplemento à
Cenas de dissenso e estética da política 225

ordem policial), na qual as identidades designadas pela ordem policial


são traduzidas em singularidades politicamente manifestas e conecta-
das ao coletivo (Fjeld; Tassin, 2015).7
Mas como definir as fronteiras entre o individual e o coletivo no
processo de subjetivação política? Não se trata aqui de estabelecer
uma dicotomia entre, de um lado, a figura redutora e simplista de um
indivíduo atado e determinado por identificações oferecidas por uma
ordem policial que não considera a pluralidade; e, de outro, a figura de
um indivíduo emancipado, realizado e capaz de conectar-se com um
coletivo que o ultrapassa. Trata-se de nos indagarmos acerca de como
criar passagens entre a auto-realização dos sujeitos e as transformações
urgentes a serem feitas na ordem consensual que torna a desidentificação
uma necessidade constante.

Excesso de palavras
Tomar a palavra ou tomar posse dos recursos necessários à expres-
são de si é importante nesse processo, pois a centralidade da subjetiva-
ção está justamente no que Rancière chama de “literaridade”, ou seja,
“as formas novas de circulação das palavras, de exposição do visí-
vel e de produção de afetos determinam capacidades novas” (Rancière,
2012, p.65), as quais alimentam práticas de emancipação. Criatividade,
linguagem e materialidade da expressão (linguagem, poiesis, produ-
ção) compõem a tríade central à emancipação – cada um tem que des-
cobrir por si mesmo, em sua própria linguagem, a relação com um ob-
jeto. Sob esse aspecto, a literaridade pode ser definida como um modo
de circulação da palavra escrita que pertence à partilha democrática
do sensível. A emancipação está ligada ao acesso e à construção de um
mundo comum através do trabalho com a linguagem (assim como a

7. “Não nos desidentificamos para construir uma comunidade de desidentificados,


para estabelecer relações que só podem existir nesse espaço desidentificado. Nos
desidentificamos para nomear um problema, tratar um dano: gesto político que
deve conduzir a mudanças profundas na ordem policial, transformando a maneira
pela qual nossas possibilidades de vida são distribuídas pela partilha policial do
sensível”(FJELD; TASSIN, 2015, p.210-211)
226 mídia, ética e esfera pública

literatura). Segundo Rancière, todos devem trabalhar para emancipar


a si mesmos trabalhando sua própria linguagem. Toda forma de lin-
guagem deve estar aberta a todos e qualquer um pode tomar parte no
processo poético de construção do mundo comum via tradução/con-
tra-tradução sobre qualquer tópico. Isso seria a democracia, ou seja, o
desenraizamento das palavras de uma plataforma que separa aqueles
que podem e não podem ter acesso aos sentidos, promovendo uma
abertura de acesso a todos.
Esse excesso de palavras, ao qual chamo de literaridade, interrompe
a relação entre uma ordem do discurso e sua função social. Ou seja,
a literalidade refere-se, ao mesmo tempo, a um excesso de palavras
disponíveis em relação à coisa nomeada; ao excesso relacionado aos
requerimentos para a produção da vida; e finalmente, ao excesso de
palavras diante dos modos de comunicação que funcionam para
legitimar a própria ordem adequada. (Rancière/Panagia, 2000,
p.115)

Nesse sentido, Rancière define três facetas importantes do processo


de construção do sujeito político via subjetivação: a) a demonstração
argumentativa do dano (não atendimento ao pressuposto da
igualdade); b) a dramatização performática da condição do indivíduo e
a alteração das formas de enunciação; e c) a desidentificação com uma
identidade atribuída pela ordem policial. A segunda faceta tem relação
com a literaridade, uma vez que as formas e condições de enunciação
requerem alteração nos enunciados que dirigem a vida dos sujeitos
e o modo como nomeiam e legitimam formas de vida (revelando ou
escondendo sua potência).
Um importante ponto a ser observado aqui é o sentido que o termo
“ética” adquire nas reflexões de Rancière. Ao falar sobre uma guinada
ética da política, Rancière (2010b) aponta a ética responsável por afas-
tar o dissenso e estabelecer a identificação de todas as formas de dis-
cursos e de práticas sob o mesmo ponto de vista indistinto: o ponto de
vista consensual. O consenso, segundo ele, não deixa que surjam inter-
valos entre o vivido e a norma: ele força uma coincidência entre ambos.
Assim, para Rancière, “a ética significa a constituição de uma
esfera indistinta na qual não só a especificidade das práticas políticas
Cenas de dissenso e estética da política 227

e artísticas se dissolvem, mas também o que é formado no seio da


velha moralidade: a distinção entre fatos e leis, entre aquilo que é
e aquilo que deveria ser” (2010b, p.184). De modo geral, ele afirma
que a ética neutraliza e atrapalha a política e a emergência do sujeito
político ao reduzir a complexidade dos fatos e experiências às leis,
homogeneizando-os e racionalizando-os de modo a melhor adptá-los
ao controle e ao consenso. Nesse sentido, ele afirma que “a comunidade
política tende a ser transformada em uma comunidade ética, que junta
povos e partes singulares em um único povo que é supostamente
contado como igual” (2010b, p.189). Dito de outro modo, a comunidade
ética e consensual é aquela que partilha o comum de forma não
litigiosa, mas sim unificadora. Essa comunidade também é saturada,
um corpo coletivo com seus lugares e funções alocados de acordo com
competências específicas (e desiguais) de grupos e indivíduos, sem
espaço para excessos.

Estética da política e política da estética


A estética na obra de Rancière pode ser entendida sob duas formas
principais. A primeira revela que a estética é por ele associada à contrapo-
sição entre dois sistemas de produção e interpretação das obras de arte, a
uma teoria da arte que remeteria a seus efeitos sobre a sensibilidade. Por
isso, ele contrapõe um regime representativo das artes (fundado sobre a
mímese e sobre o direcionamento da interpretação) a um regime estético
das artes, pautado pelo livre jogo entre formas artísticas e percepções por
elas despertadas. O regime estético reflete também uma batalha sobre o
tecido da experiência sensível no seio do qual as obras artísticas são pro-
duzidas. “São as condições materiais, lugares de performance e de expo-
sição, formas de circulação e de reprodução -, mas também os modos de
percepção e dos regimes de emoção, das categorias que as identificam,
enfim, dos esquemas de pensamento que as classificam e as interpretam”
(2000, p.12). No regime estético,

as práticas artísticas não são instrumentos que proporcionam for-


mas de consciência nem energias mobilizadoras em benefício de
uma política que seria exterior a elas. Tais práticas não saem de si
228 mídia, ética e esfera pública

mesmas para se converterem em formas de ação política coletiva.


Elas contribuem para desenhar uma paisagem nova do dizível, do
visível e do factível. Elas forjam contra o consenso outras formas
de sentido comum, formas de um sentido comum polêmico (2012,
p.77).

O segundo sentido de estética visa considerá-la enquanto ação, des-


tacando a qualidade dos homens enquanto seres falantes, que tomam
a palavra para gerar intervenções na ordem do sensível que divide o
mundo comum entre regimes de visibilidade e invisibilidade, criando
pontos de resistência ao inaugurarem cenas dissensuais e polêmicas
nas quais os indivíduos se constituem como sujeitos políticos. Nesse
sentido ampliado, Rancière fala de

[...] uma estética da política para indicar que a política é, acima de


tudo, uma batalha sobre o material sensível/perceptível. Política e
polícia são dois modos diferentes de visibilidade concernentes às
coisas que uma comunidade considera que devem ser observadas
como importantes, e os indivíduos apropriados para observá-las,
julgá-las e decidir sobre elas. (2000b, p.11-12).

Uma dimensão estética da política pode ser delineada a partir, entre


outros, de atos e gestos de subjetivação capazes de desafiar a percepção
social dominante por meio de potências próprias do processo de cons-
tituição dos sujeitos enquanto interlocutores autônomos. A existência
de uma base estética para a política remete, além disso, à invenção da
cena polêmica de “aparência” e interlocução na qual se inscrevem as
ações, a palavra e o corpo do sujeito falante, e na qual esse próprio su-
jeito se constitui de maneira performática, poética e argumentativa a
partir da conexão e desconexão entre os múltiplos nomes e modos de
“apresentação de si” que o definem. Nas palavras de Rancière, “há uma
estética da política no sentido em que todos os atos de subjetivação po-
lítica redefinem o que é visível, o que se pode dizer disso e que sujeitos
são capazes de fazê-lo” (2010c, p.65).
É importante ressaltar que o trabalho de criação de dissenso, de
disjunção e ruptura constitui uma estética da política que, segundo
Rancière (2010a,b,c,d), pode ser descrita, de forma breve, como atividade
Cenas de dissenso e estética da política 229

de reconfiguração da experiência comum do que é dado no sensível


operada por um sujeito político dotado de capacidades enunciativas
e demonstrativas para alterar a relação entre o visível e o dizível,
entre palavras e corpos, entre a saturação e o suplemento. Não
se trata simplesmente de apontar formas ideológicas de camuflar
desigualdades, mas de nomear e tornar visíveis e verificáveis as
experiências singulares que tornam uma condição intolerável. “A
política para Rancière é fundamentalmente estética porque ela desafia
as percepções preconcebidas da realidade social, e oferece expressões
alternativas para uma nova percepção (reorganização de percepções
aceitas da realidade)” (Deranty, 2003, p.137).
Rancière revela uma dimensão estética da política quando trata
não só da ordem do dito, mas sobretudo daquilo que é pressuposto,
dos elementos extradiscursivos que apontam para diferentes níveis de
divisões entre aqueles que podem fazer parte da ordem do discurso e
aqueles que permanecem fora de um espaço previamente definido como
“comum”. Ele acentua que uma estética da política abrange a criação de
dissensos “ao tornar visível o que não é, transformando os ‘sem parte’
[aqueles que não contam em uma comunidade] em sujeitos capazes de
se pronunciar a respeito de questões comuns” (2000, p.19). Contida
nessa abordagem, a ética se associa ao questionamento do que significa
“falar” e do que significa ser interlocutor em um mundo comum, tendo
o poder de definir e redefinir aquilo que é considerado o comum de
uma comunidade. O mundo comum, visto como cenário e espaço de
“partilha” e resistência – ao mesmo tempo fratura e união dos sujeitos -,
que pode nos ajudar a perceber como os aspectos éticos e estéticos das
interações comunicativas e das experiências dos sujeitos configuram o
cerne de uma atividade política calcada em uma constante tensão entre
o dissenso e o consenso; a racionalidade normativa e a racionalidade
estético-expressiva.
A política da estética, por sua vez, guarda relação com a definição de
regime estético da arte, que busca promover uma distância em relação
aos regimes representativos da realidade ou mesmo se exime de ter que
retratar as mazelas do real, inaugurando um tempo e um espaço capa-
zes de permitir novos recortes e territorializações do espaço material e
230 mídia, ética e esfera pública

simbólico, além de “construir espaços e relações a fim de reconfigurar


material e simbolicamente o território do comum” (Rancière, 2010c,
p.19). Ele destaca que o que liga a prática da arte à questão do comum
é a constituição, tanto material quanto simbólica, “de certo tipo de es-
paço-tempo, de uma suspensão em relação às formas da experiência
sensível” (2010c, p.20).

Esta arte não é a instauração do mundo comum mediante a singu-


laridade absoluta da forma, mas a redisposição dos objetos e das
imagens que formam o mundo comum já dado, ou a criação de si-
tuações adequadas para modificar nossos olhares e nossas atitudes
em relação a esse ambiente coletivo (2010c, p.18).

Arte e política, na concepção de Rancière (2011) não podem ser


concebidas como esferas separadas da experiência e, sob esse aspecto,
a arte teria condições de promover uma metapolítica, ou seja, uma
maneira de fazer política diferente do que a política faz. As práticas
e criações estéticas promovem dissenso político de modos diferentes
dos processos argumentativos e procedimentais que regulam as
democracias liberais, alterando o quadro sensível em que se inscrevem
as vidas e as potências do ser.

A estética promove um projeto metapolítico de uma comunida-


de sensória, alcançando o que será sempre perdido pela revolu-
ção meramente política: liberdade e igualdade incorporadas nas
atitudes vividas, em uma nova relação entre pensamento e mundo
sensório, entre os corpos e seu ambiente. (Rancière, 2011, p.8)

A política da estética está ligada a uma esfera específica da experi-


ência, suspendendo as formas de dominação que governam as outras
esferas da experiência: as hierarquias da forma e do problema, do en-
tendimento e da sensibilidade, que predicam a dominação em oposi-
ção à política e à polícia, diferenciadas na constituição que promovem
de sua experiência sensória. “ Essa repartição de esferas da experiên-
cia é parte das possibilidades de reconfigurar a questão dos lugares e
partes em geral” (Rancière, 2011, p.8). Em A Partilha do sensível, fica
clara essa definição de como a estética promove um reordenamento do
Cenas de dissenso e estética da política 231

sensível, ou seja promove “ uma outra forma de montar a cena, ao pro-


duzir diferentes relações entre palavras, os tipos de coisas que elas de-
signam e os tipos de práticas que empoderam” (Rancière, 2010d, p.54).:

Os enunciados da arte “definem variações de intensidade sensíveis,


percepções e capacidades dos corpos. Eles tomam conta de sujei-
tos anônimos, cavam hiatos, abrem derivações, modificam manei-
ras, velocidades e trajetos segundo os quais esses sujeitos aderem
a uma condição, reagem à situações e reconhecem suas imagens.
Eles reconfiguram a carta do sensível ao dessarranjarem a funcio-
nalidade dos gestos e dos ritmos adaptados aos ciclos naturais da
produção, da reprodução e da submissão.” (2000, p.62)

A política da estética está intimamente ligada à noção de literari-


dade, uma vez que a política da estética abrange “as formas novas de
circulação da palavra, de exposição do visível e de produção de afe-
tos determinam capacidades novas” (Rancière, 2010c, p.65) e alimen-
tam práticas de emancipação. Como vimos, a literaridade (literarity)
nomeia um excesso de palavras, um princípio de desordem, o poder
do demos de alterar a distribuição de palavras.A questão da política
da literaridade não está ligada diretamente à fala ou escrita, mas a
acessibilidade e disponibilidade da escrita (ação de escrever) a todos.
O excesso de palavras. Mesmo aqueles que não têm acesso à ordem
do discurso, que são relegados a um status de não falantes, possuem
acesso à escrita. A escrita não pode ser controlada, ela vai para lugares
que não deveria ir, incluindo as mãos/olhos daqueles que não deve-
riam manejá-la. Um modo de alcançar a literaridade, de evidenciar sua
força e marcar seus efeitos é localizar e analisar aqueles espaço-tempos
nos quais um excesso de palavras interrompe o link entre a ordem do
discurso e a ordem dos corpos.
capítulo 11

Políticas nas imagens,


imagens políticas:
uma ética do olhar

Uma imagem sobrevivente é aquela que, segundo Didi-


Huberman (2008), se recusa a tudo revelar, resiste à pressão de uma
visibilidade total,ao desnudamento dos holofotes que, impondo um
imperativo radical de publicidade, imprimem uma violência sobre
os sujeitos/objetos retratados e também sobre o espectador. Para
sobreviverem, as imagens não devem ofuscar, mas sim saber guardar a
penunbra, como um convite acolhedor à contemplação demorada, que
desacelera o tempo em nome da emergência da relação, da experiência
afectiva. Só assim podem, por sua vez, nos permitir acolher. Marie-
José Mondzain (2012) acredita que essa afetação política é derivada de
uma luta, no trabalho da imagem, contra a temporalidade opressora do
regime de visibilidade alimentado pelas indústrias do entretenimento
capitalista. Tal temporalidade não permite que a imagem trabalhe em
prol da humanização, mas da reafirmação constante de uma exclusão,
Políticas nas imagens,
imagens políticas 233

de um enquadramento raso e pouco enigmático que torna tudo


facilmente compreensível e assustadoramente claro.
Mondzain (2012) define a imagem como uma operação ou opera-
dora de construção de relações entre os olhares de corpos que vêem
e que se mantêm disponíveis à troca e a mútua afetação. A potência
política de uma imagem, para ela, está na sua capacidade de produção
de um “olhar político”, ou seja, a capacidade da imagem de nos colocar
em contato com, de deslocar para as fronteiras da alteridade, do sofri-
mento e da alegria alheia. O gesto da imagem é aquele que promove
a multiplicidade de mundos e formas de experimentação que não são
as nossas e, por isso mesmo, nos habilitam a pensar, a dizer o mundo
e a refletir sobre ele. Esse olhar político que nos coloca em estado de
disponibilidade e escuta seria uma afronta às imagens produzidas pelo
capitalismo predatório que, segundo Mondzain, nos enfeitiçam com
fórmulas prontas e hábeis em produzir alternativas palatáveis à dita
crueza do real. Assim, não é o conteúdo político das imagens que as
torna políticas, mas as transformações sensíveis que produzem na ma-
neira de olhar, pensar e viver de quem as olha.
Também para Rancière (2010b), não é possível afirmar que imagens
são políticas apenas com referência ao tema de que tratam (injustiça,
movimentos sociais, conflitos, sofrimentos, etc.) e às mensagens que
desejariam transmitir, enfatizando estigmas de dominação, questio-
nando estereótipos, convocando os espectadores a assumirem uma
postura crítica, muitas vezes de indignação e revolta. Ele afirma que
a política não pode ser identificada a partir de uma instrução forneci-
da pelas imagens (e obras artísticas) para a indignação, o assombro, a
constestação da injustiça, o compadecimento ou mesmo o horror.
Um dos problemas em associar política e imagem, segundo ele,
está na crença em um roteiro previamente estabelecido de leitura,
interpretação e posicionamento diante das imagens. Rancière, contudo,
afirma que a política das imagens não está no conteúdo representativo
por elas expresso e nem se concretiza como uma instrução para olhar
para o mundo e transformá-lo através da tomada de consciência de
formas opressoras. A imagem não pode ser confundida com um guia
para a ação política e nem um instrumento de conscientização massiva,
234 mídia, ética e esfera pública

apesar de muitas vezes atuar alimentando a produção da consciência


crítica e modos de agência individual e coletiva. Nesse sentido,
Rancière propõe um modo de compreensão das imagens que escapa ao
pressuposto de que há uma relação necessária de causa-efeito entre o
que a obra mostra e a recepção do espectador, ou, ainda, que a intenção
do artista vai provocar uma mudança repentina e profunda nos quadros
de sentido que orientam a percepção de mundo do espectador. Por
isso, o lugar da política na arte, segundo Rancière, não é aquele que
pretende usar a representação para corrigir os costumes, valores e
ações. A política da arte, para ele, implica em um distanciamento e
uma suspensão de toda relação determinável entre a intenção de um
artista e o olhar de um espectador (Marques, 2014).
Sob esse prisma, Mondzain afirma que as imagens que contribuem
para a construção de um olhar político são aquelas que respeitam a
distância entre quem é visto e quem vê, preservando-os de uma rela-
ção de enquadramento que torna o contato uma fonte de separação,
de imposição de limites e não de acolhimento. Quem fotografa, quem
é fotografado e o espectador precisam se aproximar sem que essa re-
lação triádica seja de intrusão. A operação relacional posta em mar-
cha pelas imagens precisa demandar ao espectador de acolher a alte-
ridade, habilitando-nos a pensar, a ver e dizer o mundo outramente,
permitindo-nos fazer parte do(s) mundo(s) que elas deixam entrever,
permitindo-nos um tempo para encontrar um lugar em meio a essas
imagens. Nesse sentido, a política das imagens para Mondzain envolve
três elementos: distância, distinção e hospitalidade.

A boa distância ou o lugar do espectador é uma questão política. A


violência reside na violação sistemática da distância. Esta violação
resulta das estratégias espetaculares que misturam, voluntariamente,
ou não, a distinção dos espaços e dos corpos para produzir um
contínuo confuso onde se perde toda a probabilidade de alteridade
(Mondzain, 2009, p.43).

Um outro problema recorrente da aproximação entre política e


imagem consiste na percepção de que a imagem, para ser política, deve
retratar as injustiças e mazelas sociais. Contrariamente a esse argumento,
Políticas nas imagens,
imagens políticas 235

Rancière e Mondzain ressaltam que não basta retratar uma situação


social de penúria e sofrimento ou nutrir uma simpatia pelos explorados
e desamparados para tornar uma imagem política. Também não basta
evidenciar uma simpatia pelos subalternos e marginalizados. Para ele,
é equivocado pensar que a política da imagem deriva de “um modo
de representação que torne essa situação inteligível enquanto efeito de
certas causas e que a leve a produzir formas de consciência e afetos que a
modifiquem” (2009, p.53). A imagem não deve ser, segundo ele, reduzida
a um texto que busque esclarecer as causas e efeitos das injustiças. Ela não
pode se relacionar com o receptor em uma espécie de ligação contínua,
que associa as intenções do produtor com as interpretações do receptor
de maneira pacífica e imediata.
Uma imagem não pode ser considerada política por uma suposta
capacidade que possui de reconstituir os vínculos sociais, possibilitan-
do a “inclusão” de indivíduos subjugados ou a redenção daqueles que
sofrem, e, assim, uma erradicação de formas de opressão. “Trata-se de
fazer com que a riqueza sensível e o poder da palavra e de visão que
são subtraídos à vida e ao cenário das vidas precárias lhes possa ser
restituído, possa ser posto à sua disposição” (Rancière, 2009, p.60). Ele
aponta ainda que a política não deve ser situada fora das imagens - nas
pretensões dos artistas, nas adequações ou inadequações identificadas
para a representação de lutas de grupos minoritários, nas repercussões
e entelaçamentos de esferas públicas ou na construção de enquadra-
mentos interpretativos críticos (ainda que essas dimensões sejam im-
portantes). Se insistimos em atribuir politicidade à imagem tendo em
conta um pretenso caráter de incidir de modo concreto e prático so-
bre injustiças, corremos o risco de adotar a postura de nos colocarmos
diante das imagens julgando sua pertinência ou não a representações
mais justas e plurais, apontando erros ou distorções passíveis de ocor-
rerem. Análises que consideram que a imagem é apenas um gatilho
para que se encontre a política em outro lugar desconsideram vários de
seus elementos estéticos, narrativos e discursivos.
As imagens, de acordo com Rancière (2010a, 2012), são políticas
na medida em que podem devolver o dissenso e a ruptura a paisagens
homogênenas, de concordância geral e assujeitamento. A política das
236 mídia, ética e esfera pública

imagens associa-se, portanto, ao modo como a imagem pode desve-


lar potências, reconfigurar regimes de visibilidade e questionar ordens
discursivas opressoras. A política das imagens é “a atividade que re-
configura os quadros sensíveis no seio dos quais se dispõem os objetos
comuns, rompendo com a evidência de uma “ordem natural” que de-
fine os modos de fazer, os modos de dizer e os modos de visibilidade”
(Hussak, 2012, p.103).
Sob esse aspecto, uma imagem é política quando deixa entrever as
operações que influenciam na interpretação daquilo que vemos, ou
seja, a potência política está tanto nas imagens (materialidade sígni-
ca) quanto nas relações e operações que as definem. Essas operações
influenciam na caracterização política do que vemos, são as relações
que definem as imagens, isto é as relações que se estabelecem dentro e
fora do âmbito artístico, que pre-configuram enunciados, que montam
e desmontam relações entre o vísivel e o invisível, o dizível e o silenciá-
vel. Como afirma Rancière, “a imagem não é simplesmente o visível. É
o dispositivo por meio do qual esse visível é capturado” (2007, p.199) e
os modos de sua captura. “Ela é uma ação que coloca em cena o visível,
um nó entre o visível e o que ele diz, como também entre a palavra e
o que ela deixa ver” (Rancière, 2008, p.77). “Uma imagem nunca está
sozinha. Pertence a um dispositivo de visibilidade que regula o estatuto
dos corpos representados e o tipo de atenção que merecem. A questão
é saber o tipo de atenção que este ou aquele dispositivo provoca e con-
voca” (Rancière, 2012, p.96).
Assim, a política das imagens pode ser descrita como estratégia pró-
pria de uma operação estética e artística, “um modo de acelerar ou
retardar o tempo, de reduzir ou de ampliar o espaço, de fazer coincidir
ou não o olhar e a ação, de encadear ou não encadear o antes e o depois,
o dentro e o fora. Seria o caso de dizer: a relação entre uma questão de
justiça e uma prática de justeza” (Rancière, 2012, p. 121).
A política das imagens está intrinsecamente ligada ao modo como,
nas imagens, operações constituem regimes de visibilidade capazes de
regular e constranger o “aparecer” dos sujeitos. O interessante a destacar
aqui é que, ao “aparecerem”, os indivíduos produzem uma cena polêmica
de dissenso, desencadeiam um processo de subjetivação e de criação de
Políticas nas imagens,
imagens políticas 237

formas dissensuais de expressão e comunicação que, segundo Rancière


(2012), inventam modos de ser, ver e dizer, configurando novos sujeitos
e novas formas de enunciação coletiva. Isso remete à invenção de novas
visualidades e interlocuções nas quais se inscrevem o rosto e a palavra
e nas quais os próprios sujeitos políticos se constituem de maneira
performática, ressignificando elementos, como as selfies, que transitam
entre o popular e o político.
Os dispositivo1 que conferem visibilidade aos “seres” na imagem
requerem posicionamentos diferentes do leitor/receptor. Isso faz com
que nossas indagações muitas vezes se dirijam à reflexão acerca de
quais seriam as condições de enunciação em uma formação discur-
siva particular (o discurso da pobreza, por exemplo), em vez de nos
dedicarmos a avaliar modos específicos de localizar e analisar aqueles
espaço-tempos nos quais um “excesso de palavras” interrompe o link
entre a ordem do discurso e a ordem dos corpos como condição de
possibilidade para a existência do sujeito em narrativas imagéticas in-
tersectantes (Chambers, 2013).
É importante investigar como as operações de visibilidade conjugam
palavras e imagens de modo a fazer aparecer alguém em uma cena
polêmica, na qual o processo de criação de dissenso dá a ver um sujeito
múltiplo, portador de vários “nomes” e passível de ocupar lugares que,
a princípio, não lhe foram designados. Tais operações de visibilida-
de que configuram a imagem têm, portanto, sua dinâmica assegurada
pelo desenho singular de interfaces e tensionamentos entre palavra e
imagem. Assim, é importante destacar que, de acordo com Rancière,

1. Entende-se aqui o conceito de dispositivo tal como apresentado por Foucault


(Dits et écrits), ou seja, como um conjunto heterogêneo que comporta discursos,
instituições, configurações de arquitetura, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais filantrópi-
cas. Em suma : compreende o dito e o não dito, a rede que estabelecemos entre esses
elementos, sendo que o dispositivo está sempre inscrito em um jogo de poder. Já
para Agamben (2000), o dispositivo é um conjunto de praxis, de saberes, de medi-
das, de instituições cujo objetivo e de administrar, governar, controlar e orientar,
em um sentido em que se supoe util, os comportamentos, os gestos e os pensamen-
tos dos homens.
238 mídia, ética e esfera pública

[...] a imagem não é uma exclusividade do visível. Há um visível


que não produz imagem, há imagens que estão todas em palavras.
Mas o regime mais comum da imagem é aquele que põe em cena
uma relação do dizível com o visível, uma relação que joga ao mes-
mo tempo com sua analogia e sua dessemelhança. Essa relação não
exige de forma alguma que os dois termos estejam materialmente
presentes. O visível se deixa dispor em tropos significativos, a pala-
vra exibe uma visibilidade que pode cegar. (2012, p.15)

Diante das considerações acima feitas, é possível perceber que o es-


tudo da política das imagens deve envolver um modo de análise que
possa conjugar palavra e imagem e que seja capaz de permitir uma
nova forma de legibilidade dessas imagens. É importante salientar que
tal legibilidade não se confunde com sua descrição detalhada (apesar
de esta ser muito relevante), nem com um tipo de análise fragmentada
de seus signos, em busca do não dito. Ela se define, conforme assinala
Didi-Huberman, pela mútua indagação que as palavras lançam às ima-
gens e vice-versa, pelo constante atrito entre as potências de continui-
dade e ruptura.

Não se trata de submeter as imagens à decifração, mas de situar


as imagens e as palavras numa relação de mútua perturbação, de
questionamento que num vaivém se relança sempre. Uma relação
crítica. Quando não se constrói essa relação, quando as imagens
convocam naturalmente palavras coincidentes, ou quando as pa-
lavras convocam espontaneamente as imagens que lhes correspon-
deriam, então, podemos dizer que as imagens – como as próprias
palavras – foram reduzidas a quase nada que preste: a estereótipos
(Didi-Huberman, 2011, p.45).

Um exercício analítico de produção de modos de legibilidade das


imagens (e das operações de visibilidade e narratividade que configuram
essas imagens) deve considerar um triplo movimento: a) a produção de
descrições que avaliem marcas, sinais, gestos e modos de aparência dos
indivíduos retratados; b) a identificação das ausências de sutura entre
discurso e imagem (o encaixe perfeito entre ambos leva ao consenso e
ao estereótipo), evidenciando como as imagens também podem confe-
rir às palavras a sua legibilidade desapercebida; e c) as distâncias que a
Políticas nas imagens,
imagens políticas 239

imagem reserva entre o visível e o espectador, uma vez que o que se cola
aos nossos olhos não é visto. Tais dimensões de análise nos permitem
perceber que “uma imagem só pode expor o seu tema corretamente se
implicar a relação com a linguagem que a sua própria visualidade é capaz
de suscitar ao perturbá-la, exigindo sempre dela que se reformule, que se
ponha em causa” (Didi-Huberman, 2011, p.46).
Sob esse viés, acreditamos que a política das imagens se associa, em
uma de suas dimensões, ao gesto de “ler” nas imagens posturas e im-
posturas que se materializam no rosto e nas pistas gestuais que podem
ser capazes de “trair” a narrativa ou enunciados que a acompanham,
assim como seus enquadramentos.
Ao apontar para regimes de visibilidade sob os quais as imagens
são produzidas e através dos quais os sujeitos e corpos presentes na
imagem têm seu modo de aparecer influenciado por constrangimentos
próprios de um regime discursivo que as antecede, Rancière deixa cla-
ro que uma investigação acerca da política das imagens deve procurar
observar: a) o modo como os corpos representados indicam possibili-
dades de resistência, subversões e reinvenções dos modelos de captura
aos quais estão submetidos rotineiramente; b) o modo como as ima-
gens se oferecem ao espectador como imagens pensativas, que apon-
tam sobre o que refletir sem se dirigir ao pensamento em um único
sentido.
Assim, a politicidade de uma imagem é aquela que produz, a partir
de seus próprios meios expressivos, “reagenciamentos/rearranjos
materiais dos signos e das imagens, das relações entre o que vemos e o
que dizemos, entre o que fazemos e o que podemos fazer” (Rancière,
2000, p.62). E, com isso, pode “reconfigurar a carta do sensível ao
dessarranjar a funcionalidade dos gestos e dos ritmos adaptados aos
ciclos naturais da produção, da reprodução e da submissão.”(idem).
Dito de outro modo, é uma potência que permite uma recombinação
de signos capaz de desestabilizar as evidências dos registros discursivos
dominantes e se configura por meio do gesto de “jogar com a
ambiguidade das semelhanças e a instabilidade das dessemelhanças,
operar uma redisposição local, um rearranjo singular das imagens
circulantes” (Rancière, 2012, p.34).
240 mídia, ética e esfera pública

O rosto é algo que nos fornece uma importante chave para compre-
endermos o testemunho singular dos anônimos, ao mesmo tempo que
sua experiência nos revela ser inalcançável.

A fotografia tornou-se uma arte, fazendo falar duas vezes o rosto


dos anônimos: como testemunhas mudas de uma condição inscrita
diretamente em seus traços, suas roupas, seu modo de vida; e como
detentores de um segredo que nunca iremos saber, um segredo
roubado pela imagem mesma que nos traz esses rostos (Rancière,
2012, p.23).

A visão de um rosto fotografado carrega consigo uma intenção rela-


cional e conversacional, “já que nelas se efetiva o propósito de criar no
espectador a impressão de um tipo especial de actância, aquela da con-
versação direta (e, por que não dizê-lo, também a da dimensão política
da simpatia)” (Picado, 2009, p.289). Esse autor afirma que, no retrato
fotográfico, a convocação do espectador promovida pelo rosto quebra
modelos e padrões que já são reconhecidos, favorecendo um tipo de
relação com o espectador da ordem do inesperado. Ao ser rendido pelo
olhar do rosto fotografado, o espectador se transformaria numa espé-
cie de participante vicário da situação instaurada pelo arranjo da fisio-
nomia na imagem (Picado, 2014).2
Para Didi-Huberman (2008) a imagem exige de nós uma ação de
equilibristas, uma vez que nos posicionamos, por meio da mirada, en-
tre o espaço da implicação e da explicação (crítica, comparação, mon-
tagem). Tanto para ele quanto para Rancière não estamos diante das
imagens, mas entre elas, e isso requer uma posição: uma implicação na
imagem (movimento de apropriação, de conhecimento e, simultanea-
mente, de auto-constituição) para nos aproximarmos do Outro.
Segundo Picado, “no apelo humano das imagens que nos olham,
é especialmente agudo o sentido com o qual a imagem se exercita
enquanto gênero conversacional” (2009, p.290), dando a ver um rosto
que está sempre entre a singularidade e a comunidade. “Em sua própria

2. Não se trata aqui de buscar no rosto a expressão da pura vida interior que talvez
nunca se realize, buscar a expressão do indivíduo em seu corpo é uma reflexão vã
sobre o que o indivíduo fez e realizou.
Políticas nas imagens,
imagens políticas 241

imediaticidade, o rosto é sempre duplo: o olhar reflete uma visão, as


rugosidades dos lábios retêm um pensamento. É a partir desse núcleo
de alteridade primeira que a circulação das imagens faz comunidade
por círculos ampliados” (Rancière, 2007, p.201).

O rosto, o comum e o acolhimento do outro nas imagens


O rosto em Lévinas (2007), não se cofunde com a face humana e
é descrito como forma de “aparição”, exposição íntegra, sem defesa,
abrindo-se para a perspectiva da transcendência, sem deixar-se con-
fundir com aquele que está além. Lévinas aposta na definição do rosto
como expressão da vulnerabilidade do existente (como demanda ética
endereçada ao outro), descrevendo sua manifestação (aparição) como
experiência reveladora da presença viva e da pura comunicação de um
ente que se torna acessível, mas não se entrega. Assim, o rosto não se
configura só como o que nos é ofertado à visão, mas é, sobretudo, uma
voz, um clamor que permanece em devir no aparecer incapturável do
outro que se dirige a nós. Se somos interpelados pelo outro que nos
fala, o rosto surge como verbo, como evento de palavra, como a comu-
nicação possível que permite uma prática específica de configuração de
um mundo comum, um mundo polêmico, fruto do esforço de dar for-
ma às identidades e às alteridades. Por isso, o rosto pode ser pensado
como o vestígio de um lugar do outro que se transforma na promessa
do meu próprio lugar, assumindo caráter comunicacional e político,
num processo incesssante de subjetivação política em que ética, estéti-
ca e política se tangenciam.
O rosto é uma demanda ética feita pelo outro através da vocalização
de uma agonia que nos implica no reconhecimento da precariedade da
vida de todos nós. Nesse sentido, para que o rosto (semblante, face),
os lugares, paisagens, corpos e relatos operarem como rosto (demanda
ética), precisamos estar sempre à sua escuta, em ressonância com eles
e sendo superfície na qual ressoem, o que nos deixa “sujeitos a uma
perturbação, a uma afecção e a uma crise” (Nancy, 2014, p.42).
O rosto emerge de nossa precariedade e desamparo, ou seja, do fato
de que todos nós estamos submetidos à interpelação alheia sobre a
242 mídia, ética e esfera pública

qual não temos controle. De acordo com Butler, “a vida precária é a


condição de estar condicionado, na qual a vida de alguém está sempre,
de alguma forma, nas mãos do outro.” (2015, p.33). Segundo ela
(2004), há formas de distribuir a vulnerabilidade de modo que certas
populações sofrem com redes sociais e econômicas de apoio deficientes
e ficam expostas de forma diferenciada às violações, à violência e à
morte. Assim, a precariedade (que também está expressa nessas duas
imagens) é a condição generalizada, compartilhada e comum da vida
humana.
E é justamente no bojo dessa condição precária que o trabalho
da criação política do “nós” requer a modelagem de um comum. O
“comum” é, ao mesmo tempo, o que une e o que separa, o consenso
e o dissenso, a rendição e a resistência. Ele pode ser descrito como a
“dimensão intervalar na qual nos remetemos uns aos outros e a nós
mesmos”, configurando-se por meio da “instituição de intervalos que
ligam sujeitos e realidades, sem englobá-los nem integrá-los” (Tassin,
1992, p.33). Também Silva (2011) aponta o comum como resultado de
um intervalo, como um espaço vazio no qual damos forma ao “entre
nós” e à reciprocidade, um espaço de escuta e de acolhimento de
outras temporalidades, sem contudo estar isento das distinções e das
distâncias. Para ele, “comum é tudo aquilo que nos oferece os recursos
de uma livre busca de uma identificação que não está dada, que não
está constituída. Aquilo que o comum afirma é justamente esse espaço
da liberdade, esse vazio que é a possibilidade da comunidade” (Silva,
2011, p.20).
O comum é menos aquilo que é “próprio” de um grupo ou de uma
cultura e mais o lugar de exposição e aparecimento dos intervalos e
das brechas que permitem uma ação comum através da linguagem, de
modo a promover não apenas formas de “ser em comum” (que muitas
vezes apagam ou incorporam diferenças, suprimindo singularidades),
mas formas de “aparecer em comum”. Eis aqui uma questão central: o
“comum” de uma comunidade diz do “aparecer” dos sujeitos e de seus
rostos na esfera de visibilidade pública, ao mesmo tempo como inter-
locutores dignos de respeito e estima e como sujeitos poéticos, cuja
potência da vida é constantemente renovada.
Políticas nas imagens,
imagens políticas 243

A visibilidade sobre uma cena de aparição está intimamente ligada


à construção pragmática do espaço público, compreendido por Tassin
como “jogo de separações vinculantes e de vínculos separadores”
(1992, p.33). Para Rancière (2004), as comunidades não se constituem
em torno de um denominador comum, mas de um vazio, de um
intervalo, de uma lacuna de coexistência que pode ser transposta,
mas nunca preenchida ou eliminada. Formas de comunidade política
não têm como objetivo fazer coincidir semelhantes e desemelhantes,
mas revelar que a partilha de um mundo comum é feita, ao mesmo
tempo, da tentativa de estabelecer ligações entre universos fraturados
e da constante resistência à permanência desses vínculos (Guimarães,
2015).
Se uma imagem pertence a um “dispositivo de visibilidade que regula
o estatuto dos corpos e o tipo de apreensão e atenção que merecem”
(Rancière, 2012, p.96), é importante entender como os enquadramentos
são produzidos e como delimitam a esfera de aparição ao construírem
e enunciarem as “vidas precárias” (Butler, 2015, 2004). Isso implica
construir outras formas de senso comum (dados partilhados por
todos), outras comunidades de palavras, formas e significados. Outros
enunciados que possam fazer com que o “território visualmente
banalizado da miséria e da margem seja devolvido à sua potencialidade
de riqueza sensível e compartilhável” (Rancière, 2012, p.78).
Retomando a questão da singularidade e estereotipagem dos rostos
que emergem na imagem, consideramos interessante refletir acerca
das considerações que Didi-Huberman (2011, p.67) tece acerca dos
povos sem rosto, isto é, “a classe oprimida, exposta a desaparecer ou
a ser subexposta nas representações consensuais da história”. Para esse
autor, os povos ou estão subexpostos na sombra da censura a que são
sujeitos ou sobreexpostos na luz de sua espetacularização. Em ambos
os casos, estariam fadados a desaparecer.

A subexposição priva-nos dos meios para ver, pura e simplesmen-


te, aquilo que poderia estar em causa. (...) Mas a sobreexposição
vale pouco mais: demasiada luz cega. Os povos expostos à rumi-
nação estereotipada de imagens são, também eles, povos expos-
tos a desaparecer. (...) Se os povos estão expostos a desaparecer,
244 mídia, ética e esfera pública

deve-se isso também ao fato de se terem formado discursos para


que, já não vendo nada, possamos ainda crer que tudo se mantém
acessível, quetudo permanece visível e, como se costuma dizer, sob
controle. (Didi-Huberman, 2011, p.41 e 45)

Para esse autor, a melhor forma de lutar contra o apagamento do


rosto causado pelo excesso de luminosidade espetacular é reavivar o
exercício da contemplação, da mirada.

Mirar não é simplesmente ver, nem tampouco observar com maior


ou menor competência: uma mirada supõe a implicação, o ser
afetado que se reconhece, nessa mesma implicação, como sujeito.
Reciprocamente, uma mirada sem forma e sem fórmula não é mais
do que uma mirada muda. É necessário uma forma para que a
mirada aceda à linguagem e à elaboração, única maneira, para essa
mirada, de “entregar uma experiência e um ensinamento”, quer dizer,
uma possibilidade de explicação, de conhecimento, de relação ética:
nós devemos, então, nos implicar em, para ter uma oportunidade –
dando forma a nossa experiência, reformulando nossa linguagem –
de nos explicarmos com.” (Didi-Huberman, 2008, p. 41)

Contemplar o rosto numa imagem ou o rosto da imagem significa


estabelecer com ela uma relação ética, uma relação de implicação, de
afetação e de interpelação que nos torna disponíveis à escuta, ao diálogo
e à reciprocidade.
Mas que rosto é esse que nos interpela? O rosto fabricado pelos
dispositivos midiáticos, retocado, recriado e exposto à visibilidade dos
holofotes midiáticos; ou o rosto que transcende qualquer representação
e busca configurar uma via de acolhida do outro, sem reduzi-lo a si
mesmo, configurando a condição de possibilidade de toda e qualquer
forma de comunicação? Como o conceito-metáfora do Rosto pode nos
ajudar a pensar os processos comunicativos que permeiam estudos
ligados à subjetivação e ao encontro com outro?
Respostas a essas perguntas poderiam ser buscadas ao nos indagarmos
acerca dos dispositivos que definem qual “espécie de ser humano a
imagem nos mostra e a que espécie de ser humano ela é destinada, que
espécie de olhar e de consideração é criada por esta operação”(Rancière,
2012, p.100). Como destaca Butler (2011), esquemas normativos e
Políticas nas imagens,
imagens políticas 245

midiáticos de inteligibilidade estabelecem aquilo que será e não será


apreendido e reconhecido como digno de valor. Para ela (2015, p.14),
como vimos, os enquadramentos são operações de poder que atuariam
para diferenciar as vidas que podemos apreender e valorizar daquelas
que não podemos.
A rostificação descrita por Deleuze e Guattari (2004) nos revela que
há violência na moldura do que é mostrado. Esta violência encaixa
perfeitamente os rostos na moldura daquilo que pode ser dito e daquilo
que pode ser mostrado, sem hiatos, sem faltas ou sobras. Ela é o
mecanismo ou dispositivo por meio do qual certas vidas e certas mortes
permanecem não representadas ou são representadas de maneiras que
efetivam sua captura (mais uma vez) pelo maquínico.
Há aqui, dois movimentos implicados: olhar para os modos de “apa-
rência” performática dos sujeitos na imagem e identificar que tipo de
olhar e de implicações esse “aparecer” suscita junto àqueles que obser-
vam a imagem. E, nessas duas operações, é preciso enquadrar o enqua-
dramento, ou seja, interpelá-lo em busca das fissuras que nos indicam
que a moldura não consegue determinar de forma precisa o que ve-
mos, pensamos, reconhecemos e apreendemos. O enquadramento não
é capaz de conter completamente o que transmite e, por isso, se rom-
pe toda vez que tenta dar uma organização definitiva a seu conteúdo.
Como afirmamos antes, o rosto pode emergir justamente quando uma
representação expõe sua fatal incapacidade de capturar o referente.
capítulo 12

práticas de resistência
e códigos ocultos

A qualidade moral das relações sociais não pode ser medida


apenas segundo o critério da repartição justa ou injusta dos bens ma-
teriais. Nossa idéia de justiça engloba nossas concepções sobre a ma-
neira como os sujeitos se reconhecem uns aos outros ao mesmo tempo,
como iguais e particulares. Mas esse reconhecimento recíproco é cons-
tantemente minado por processos de dominação simbólica (Bourdieu,
1980) que se impõem através de atos coletivos de categorização que
dão margem a diferenças negativamente marcadas. A negação da exis-
tência pública, uma das mais fortes formas de dominaçção e opressão
simbólica leva ao ostracismo social e à construção, por parte do do-
minado, de uma imagem de si adequada ao ponto de vista dominante.
Ao falar sobre as diferentes formas de opressão presentes nas rela-
ções intersubjetivas contemporâneas Iris Young (1990) se preocupou
em distinguir cinco formas de inibição das capacidades dos indivídu-
práticas de resistência
e códigos ocultos 247

os1. Todas elas refletem um conceito de justiça ligado a “condições ins-


titucionais que tornam possível a todos aprender e usar capacidades de
modo satisfatório, participar de processos decisórios e expressar sen-
timentos, experiências e perspectivas sobre a vida social em contextos
nos quais possam ser ouvidos” (Young,1990, p.91). A opressão e a in-
justiça ocorrem quando um indivíduo é privado de exercer suas habi-
lidades e mostrar suas capacidades num contexto em que sua condição
de cidadão permite que ele seja reconhecido pelos demais.
Além disso, uma forma de opressão simbólica destacada por Young
diz respeito a como os significados dominantes numa dada sociedade
sufocam e tornam invisíveis a perspectiva particular de um grupo
específico. Não obstante, essa perspectiva subalterna encontra formas
alternativas de ganhar vida e circular, de modo camuflado, entre os
discursos legitimados e legitimantes.
De modo a ilustrar esse ponto de vista, gostaríamos de mencionar
o livro de James Scott, Domination and the Arts of Resistance – Hidden
Transcripts (1990), uma vez que ele nos ajuda a refletir sobre como a
dinâmica da ordem social é afetada por linguagens ou códigos que não
são públicos (não se fazem visíveis na esfera pública) e que se originam

1. Young identifica cinco formas de opressão (five faces of opression) contra gru-
pos subalternos. As três primeiras marcam injustiças materiais e as duas últimas,
injustiças simbólicas ou culturais: a) exploração: definida como uma relação estru-
tural ligada à injustiças de classe, através da qual algumas pessoas exercitam suas
capacidades sob o controle de outras (ex.: relação patrão x empregado); b) margi-
nalização: marginais são pessoas que o sistema de trabalho não pode ou não irá
utilizar (1990, p. 53). (ex.: negros, índios, velhos, mães solteiras, deficientes físicos
ou mentais, etc.) O dano causado por esta forma de opressão inclui não só a falta
de bens materiais, mas sobretudo uma “privação de condições culturais, práticas e
institucionais para exercerem suas capacidades em contextos de reconhecimento e
interação”(Young,1990, p.55); c) ausência de poder: essa forma de opressão atinge,
segundo Young, os trabalhadores não profissionais, os quais estão sujeitos a um
tratamento desrespeitoso por causa do status pouco respeitável de sua ocupação;
d) imperialismo cultural: diz respeito ao modo como os significados dominantes
numa dada sociedade sufocam e tornam invisíveis a perspectiva particular de um
grupo específico (1990, p.60); e) violência: dirigida a membros de certos grupos,
porque não são reconhecidos e, em muitos casos, nem tolerados (ex.: ataques físicos
a gays e lésbicas). Esses ataques visam provocar danos morais, humilhar, intimidar
e ridicularizar certos grupos (1990, p.61).
248 mídia, ética e esfera pública

das experiências de opressão de grupos subalternos. Assim, ele chama


de hidden transcripts as expressões ou códigos de linguagem produzi-
dos pelos dominados e que não podem vir à tona, sobretudo porque
são “impedidos” de os expô-los diante dos dominantes. Scott acredita
que esses códigos ocultos são capazes de refletir uma dinâmica da po-
lítica que muito pode nos ensinar sobre poder, hegemonia, resistência
e subordinação.
A motivação de Scott teve início quando, ao realizar uma pesquisa,
ele procurou estabelecer um sentido para as relações de classe num vi-
larejo da Malásia. Ele percebeu que diferentes habitantes tinham inte-
resses divergentes e, ocasionalmente, contradiziam a si mesmos, sobre-
tudo os habitantes mais pobres que ousavam expressar suas opiniões.
Ao refinar sua percepção, Scott viu que os pobres diziam uma deter-
minada coisa quando estavam na presença dos ricos e outra quando
estavam entre outros pobres. Certamente, ele estava atento para o fato
de que esta não é uma grande descoberta e por isso afirma não clamar
nenhuma originalidade para seu estudo. O que ele pretendia mostrar
é o quanto as relações de poder afetam os discursos de dominantes e
dominados de modo a fazer com que, cada vez que haja uma interação
entre esses dois grupos, cada um deve medir as próprias palavras e
atos, observando certas regras simbólicas que ditam o que é apropria-
do ou não dizer ou fazer.
A estratégia analítica escolhida por Scott para perceber tanto o
processo de formação e composição dos códigos ocultos quanto o
embate entre esses códigos e o código público é a análise comparativa.
Ao afirmar que existe algo de relevante a ser dito através da comparação
entre culturas e épocas históricas distintas quando o foco da pesquisa
é guiado pela busca de similaridades estruturais, ele mostra que sua
investigação metodológica começa com a premissa de que formas
de dominação estruturalmente similares guardam uma semelhança
entre si. Por isso, ele vai procurar esses traços de similaridade ao
comparar, ao longo de todo o seu texto, formas de escravidão, de
servidão, subordinação de castas, dominação patriarcal, colonialismo
e racismo em diferentes países ou nos mesmos países, mas em épocas
diferentes.
práticas de resistência
e códigos ocultos 249

Ao contrapor as lógicas de ação de dominantes e dominados, Scott


mostra que não só os grupos subalternos desenvolvem códigos ocultos
e formas de capital social2 que permancem silenciados diante dos do-
minantes, mas estes últimos também possuem seus códigos simbólicos
que não são dados a ver. Ao lado dessas duas formas de códigos ocultos
existe também um public transcript, ou código público que sustenta as
aparências das relações entre dominantes e dominados sendo quase
que completamente dominado pela lógica dos primeiros:

Cada grupo subordinado cria, fora de suas experiências desagra-


dáveis, um código oculto que representa uma crítica ao poder feita
longe do conhecimento do dominante. Os poderosos também de-
senvolvem um código oculto representando as práticas e deman-
das para suas regras que não podem ser abertamente confessadas.
Uma comparação entre o código oculto do fraco e aquele dos po-
derosos, e de ambos os códigos com o código público das relações
de poder oferece um novo modo de entender a resistência à domi-
nação (1990:xii).

No caso do estudo empreendido por Scott, os scripts que cada ator


social deve seguir estão definidos pelas determinações do que deve
compor os códigos ocultos e do que deve fazer parte dos códigos pú-
blicos. Isto é, cada ator tem uma definição de seu lugar, de sua forma
de inserção e participação a partir de como devem se comportar diante
do outro. Mas Scott faz questão de deixar claro que, apesar de possuí-
rem um grau de institucionalização, as relações entre atores assimétri-
cos podem ser desafiadas e mesmo alteradas. Discutiremos esse ponto
mais adiante.

2. Bourdieu (1986) afirma que o capital social descreve circunstâncias nas quais
os indivíduos podem se valer de sua participação em grupos e redes para atingir
metas e benefícios: “O capital social é o agregado de recursos atuais ou potenciais
que estão ligados à possessão de uma rede durável de relações mais ou menos insti-
tucionalizadas de pertencimento e reconhecimento mútuo. O pertencimento a um
grupo proporciona a cada um se seus membros uma credencial, que os dota de
um crédito. [...] O volume de capital social possuído por um indivíduo depende,
portanto, do tamanho da rede de conexões que ele pode efetivamente mobilizar e
do volume de capital (econômico, cultural ou simbólico) que possui” (1986, p. 51).
250 mídia, ética e esfera pública

É claro para Scott que “as práticas de dominação e exploração tipi-


camente geram insultos à dignidade humana o que alimenta o código
oculto de indignação”(1990, p.7). Mas o ponto importante de sua ex-
plicação consiste em mostrar que os códigos ocultos são o arcabouço
de formas concretas e públicas de luta e resistência contra a domina-
ção. Ou seja, o que ele chama de “etiqueta das relações de poder”(1990,
p.8) marca também o encontro entre os códigos públicos empregados
pelos dominantes e os códigos públicos de resistência elaborados pelos
subalternos. Contudo, Scott não restringe seus argumentos à descrição
dos códigos ocultos e públicos, mas procura desenvolver evidências
que comprovem a seguinte tese:

Falar de perda de dignidade é falar da perda da “publicidade”. (...)


Por isso, a chave para a emancipação dos subalternos consiste em
quebrar o silêncio, em tornar pública e visível a opressão simbólica
que os afeta, (...) pois é somente quando o código oculto é declara-
do abertamente que os subordinados podem reconhecer a exten-
são de quanto suas demandas, sonhos e raiva são compartilhados
com aqueles com quem não estiveram em contato direto (1990,
p.214,215 e 223).

Mas será que é possível desafiar estruturas institucionalizadas em


relação as quais medimos a extensão e o alcance de nossas ações? Para
Scott, a “infrapolítica” dos dominados é o que sustenta as ações políti-
cas mais visíveis de resistência à dominação. A infrapolítica seria, en-
tão, uma forma estratégica que a resistência assume sob condições de
grande perigo. Suas vantagens, segundo Scott, é que ela deixa poucos
vestígios ao pressionar os limites da contestação permitida constituin-
do-se como “a pedra fundamental para uma ação política instituciona-
lizada”(1990, p.201). O que ele parece afirmar é que a resistência, para
alcançar visibilidade na cena pública e, assim, alterar padrões de regras
e entendimentos, precisa de todo um background formado pelos senti-
mentos de injúria, injustiça, raiva, frustração ativados por experiências
coletivas e compartilhadas de desvalorização e desrespeito. É esse ba-
ckground que proporciona uma experiência de reciprocidade e mutua-
lidade entre aqueles que tiveram sua dignidade ferida por experiências
práticas de resistência
e códigos ocultos 251

de humilhação pública. E para que a humilhação seja definitivamente


vencida, é preciso que as formas de resitência também alcancem a
esfera pública.
Gostaríamos de registrar aqui o fato de que, atualmente, grande
parte das formas de resistência pública empreendidas por grupos e in-
divíduos que sofrem alguma forma de opressão simbólica tem a mí-
dia como cena de visibilidade e também como fórum pluralista para a
discussão de temas polêmicos. O “tornar-se visível” através da mídia é
hoje uma das principais estratégias de movimentos sociais que visam
tornar públicas suas experiências, demandas e, ao mesmo tempo, que
buscam alterar padrões normativos e de entendimento na sociedade
(Maia, 2004).
Para melhor compreendermos o que Scott denomina de formas pú-
blicas e formas “disfarçadas” de resistência (infrapolítica), reproduzi-
mos a seguir o quadro que se encontra na página 198 de seu livro:

Dominação Dominação Dominação


Material Material Ideológica

Justificação
Humilhação,
de grupos
falta de
Apropriação de dominantes
Práticas de privilégio,
grãos, taxas, para a
dominação insultos,
trabalho, etc. escravidão,
ataques à
servidão, castas
dignidade.
e privilégios.

Asserção Contra-
pública de valor ideologias
Petições, por gestos, públicas,
Formas de demonstrações, vestimenta, fala propagação
resistência boicotes, greves, e/ou execração da igualdade,
pública invasões de pública dos revolução,
terra e revoltas símbolos de ou negação
status dos da ideologia
dominantes. dominante.
252 mídia, ética e esfera pública

Dominação Dominação Dominação


Material Material Ideológica

Formas Códigos
Desenvolvimento
cotidianas de ocultos de
de subculturas
resistência, raiva, agressão,
dissidentes,
por exemplo, e discursos
por exemplo,
atividades disfarçados de
religiões
ilegais, dignidade, por
milenares,
deserção, exemplo, rituais
válvulas de
Formas de evasão, etc. de agressão,
escape dos
resistência Resistência fábulas de
escravos, religião
disfarçada direta feita vingança, uso
popular, mitos
(Infrapolítica) por resistentes do simbolismo
de bandidagem
disfarçados, do carnaval,
e heróis de
por exemplo, fofoca, rumor,
classe, imagens
apropriações criação de um
do mundo “de
disfarçadas, espaço social
pernas para o
ameaças, autônomo para
ar”, mitos do
ameaças a asserção da
bom rei, etc.
anônimas. dignidade.

Por meio da análise do quadro acima, podemos perceber que aquilo


que Scott chama de hidden transcripts, ou códigos ocultos dos grupos
subalternos são expressos, disfarçadamente, sob a forma de rumores,
fofocas, fábulas populares, mitos, piadas, teatros, etc, que atuam como
“veículos através dos quais os dominados insinuam uma crítica ao
poder, enquanto se escondem no anonimato” (1990, p.xiii)3. Os códi-

3. James Scott dá o exemplo das políticas de resistência dos habitantes pobres de um


vilarejo da Malásia às mudanças na produção de arroz, as quais eram desfavoráveis
à eles. Ao invés de adotarem uma rebelião aberta publicamente, eles adotaram o
modo seguro de ataques anônimos à propriedade privada, assassinato, saques, etc,
evitando atos de desafio público. Sobre mitos e fábulas de heróis incorporados pelos
hidden transcripts, Robert Moore cita em seu livro The Formation of a Persecuting
Society (1990), exemplos de como os hereges recolhiam casos de pessoas excepcio-
nais que desafiavam a ordem eclesiástica e acabavam tendo suas narrativas incor-
poradas à doutrinas populares. Ao mesmo tempo, Moore ressalta os estereótipos
agregados aos judeus, tidos como inimigos de Cristo, o que se sustentava através
de imagens bíblicas, lendas, anedotas que associavam os judeus à bruxaria, dando
origem a um discurso público de opressão simbólica.
práticas de resistência
e códigos ocultos 253

gos ocultos, ou ainda, discursos de bastidores, também são formas de


resistência que confirmam, contradizem ou alteram o que aparece no
código público. Este último, segundo Scott, “é o auto-retrato das elites
dominantes”(1990, p.18), isto é, revelam como essa elite gostaria de ser
vista, ao mesmo tempo em que esta última se serve de vários mecanis-
mos para afirmar e naturalizar seu poder. Esses mecanismos servem
para manter as aparências, a unanimidade entre os grupos dominan-
tes de um lado, e o consenso entre os subordinados do outro lado. O
public transcript envolve também performances públicas de deferên-
cia e lealdade capazes de obscurecer o uso da coerção e da violência
simbólica. “Rebeldes ou revolucionários são rotulados como bandidos,
criminosos, arruaceiros, de modo a desviar a atencão da sociedade de
suas verdadeiras demandas políticas”(1990, p.55). Esse é o papel do
código público: institucionalizar, através do uso rotineiro e constante
da simbologia dos dominantes, os espaços destinados à expressão e à
visibilidade dos demais grupos sociais.
Percebemos, então, esses códigos públicos transformam-se em me-
canismos capazes de desvalorizar os dominados através da imposição
de estigmas e estereótipos que minam suas tentativas de recuperar a
dignidade e o status de cidadãos e sujeitos moralmente capazes de se-
rem valorizados e respeitados pelos outros. Essa noção de valorização
do outro nos remete às considerações de March e Olsen a respeito do
delicado equilíbrio que existe entre papéis e situações sociais. Para eles,
são as instituições que determinam qual papel os sujeitos devem adotar
diante de uma determina situação (1989, p.160). Mas os papéis podem
ser reconfigurados e remodelados na constituição mesma da situação
interativa, pois é na enunciação que o status dos enunciatários é nego-
ciado. Além disso, “o papel não pode ser desempenhado se o ator não
aceitar colocar-se no lugar de outrem” (Boudon e Bourricaud, 1993,
p.305). O ato de “colocar-se no lugar de outrem”, tão bem desenvolvido
por Goffman através do conceito de “outro generalizado”, é um ato que
exige a consideração do outro, de sua situação e de seus argumentos. E
mais: exige que cada participante da interação comporte-se “como um
parceiro digno de confiança e capaz de assumir as responsabilidades
que lhe conferem os diversos papéis que é levado a desempenhar” (Bou-
254 mídia, ética e esfera pública

don e Bourricaud,1993, p.306). Esse exercício é a base do reconheci-


mento mútuo ou da valorização recíproca de parceiros que buscam
cooperar para a solução de problemas coletivos.
A nosso ver, o ponto crucial da análise desenvolvida por Scott rela-
ciona-se à fronteira existente entre os códigos ocultos e os códigos pú-
blicos, bem como o espaço no espectro do visível que lhes é destinado.
De acordo com o autor, entre esses dois códigos existe não uma sólida
parede, mas uma zona porosa de luta constante entre dominantes e
dominados. Essa luta não consiste numa mera luta por poder político,
mas trata-se de formas cotidianas de luta por aquilo que Axel Honneth
(1995) chama de “luta por reconhecimento”.
Ela é uma luta contra a opressão, a marginalização e o desprezo
que levam os indivíduos e grupos aos ostracismo social, à situações
de humilhação e invisibilidade, fazendo que que percam seu status
de agentes moralmente capazes de argumentarem em igualdade de
condições com os outros. Honneth afirma que formas de desrespeito
produzem também a necessidade de formas de reconhecimento
capazes de devolver aos indivíduos e grupos o devido respeito. Mas se
os sentimentos de humilhação e injustiça ficam restritos aos indivíduos
singulares que os sofrem, ou mesmo ficam restritos ao domínio privado,
poderiam eles constituir-se como formas de resistência? Para Honneth,
sentimentos que causam opressão podem tornar-se uma base mo-
tivacional para a resistência coletiva somente se os sujeitos estão
aptos a articulá-los através de um quadro intersubjetivo de inter-
pretação, o qual revele que esses sentimentos são típicos de todo
um grupo. (...) Procedendo deste modo, eles serão capazes de gerar
um horizonte subcultural de interpretação através do qual experi-
ências de desrespeito que, previamente estavam fragmentadas no
âmbito privado, possam tornar-se os motivos morais para uma luta
coletiva por reconhecimento (1995, p.163 e 164).

Por isso, quando Scott expressa suas conclusões, ele ressalta a


necessidade de tornar público, vísível e inteligível o conteúdo das
experiências de opressão, o conteúdo dos códigos ocultos a fim de que
a) os subordinados possam reconhecer que suas experiências não se
encontram restritas a poucos, mas que caracterizam a situação de vários
práticas de resistência
e códigos ocultos 255

grupos, e b) para que a capacidade mobilizadora dessas experiências


possa levar a um processo emancipatório que se desdobre não na “terra
das sombras” da infrapolítica, mas na cena de visibilidade pública onde,
segundo Habermas,

a escala de valores da sociedade como um todo entra em discus-


são; e as conseqüências dessa problematização chegam até as áreas
centrais da vida privada e atingem também os limites estabelecidos
entre as esfera pública e privada (2002, p.247).

Como nos mostra Scott, a zona de conflito entre os códigos públicos


e os códigos ocultos é o palco e o cenário de contestação dos discursos
dominantes, bem como da formação do leque de chances que os
indivíduos têm de manipular ou reinterpretar símbolos e práticas. A
existência dessa possibilidade aponta para a noção de que nem sempre
regras e símbolos são internalizados de modo imediato, havendo
freqüentemente uma brecha para sua contestação.
A análise elaborada por James Scott traz contribuições interessantes
para pensarmos como processos cotidianos de contestação e resistência
à situações de opressão cultural devem ser tratados como uma questão
política. A ação e o discurso marcam não só a inserção dos indivíduos
e grupos em contextos relacionais mas, sobretudo, são as mediações
entre eles. Vimos que as relações de poder também operam em uma
dimensão sensível onde são definidas as posições dos atores (mestre/
escravo, oprimido/opressor, dominante/dominado, etc.), os modos e as
oportunidades de sua participação e os tipos de comportamento que
podem ser manifestados.
A dinâmica simbólica e estética da atividade política revela o
quanto atores seguem papéis e elaboram performances no intuito de
preservar suas posições e respectivos status. James Scott demonstrou
que, por mais que as regras de etiqueta das relações de poder tenham
um grau de institucionalização, há sempre um elemento de terror
que pode tomar a forma de agressões arbitrárias, brutalidade sexual,
insultos e humilhações públicas. Dessa afirmação segue o que, a nosso
ver, é a questão-chave do estudo de Scott: como os grupos subalternos
podem transformar experiências de extremo desrespeito e humilhação
256 mídia, ética e esfera pública

em sustentáculo de uma luta por emancipação e reconhecimento?


Tal questão torna-se instigante se percebermos que essa luta não se
processa só em eventos esporádicos e impactantes – como revoluções
e manifestações de grande porte, por exemplo -, mas que é uma
luta travada cotidianamente. Mais ainda: é uma luta que não visa a
eliminação dos poderosos, nem a tomada do poder mas, sim, a
contestação de regras, de valores, de scripts e de classificações que, de
alguma forma, causam danos materiais e simbólicos às identidades
coletivas e subjetivas dos sujeitos sociais.
capítulo 13

Seis desafios éticos


na comunicação

A reflexão sobre o tema da ética é de certo modo incômoda.


É comum, tanto para profissionais quanto para estudantes e pesquisa-
dores da área, oscilar entre duas posições diametralmente opostas: ou
ter princípios éticos de uma rigidez que engessa, que não os levarão a
ser bons profissionais nem permite a felicidade do ato de Comunica-
ção, ou, por outro lado, ter princípios éticos bastante móveis, a ponto
de ser possível questionar se essa fluidez ainda conserva alguma coisa
de ético ou se, na verdade, não se trata de casuísmo, princípios que
podem ser adaptados a qualquer situação desde que se tenha uma boa
justificativa de qual natureza for.
Ao pensar na ideia dos “desafios da comunicação”, buscamos equa-
cionar aqui alguns problemas de caráter ético do comunicador. Dadas
as limitações de espaço e o aspecto introdutório da discussão, optamos
por seis principais questões que, de alguma maneira, auxiliam a dese-
nhar os problemas da comunicação.
258 mídia, ética e esfera pública

Da ética do mercado às decisões subjetivas


O primeiro desafio ético com o qual o comunicador precisa lidar
são as relações entre mercado e o campo da comunicação. Por que
lidar com isso? Porque não podemos fugir dessa realidade. Não
se pode ignorar que existe um mercado, um sistema capitalista no
qual vivemos, goste-se ou não. Apesar das muitas e justas críticas ao
capitalismo, uma pessoa não pode afirmar que vive numa sociedade
justa, com melhor distribuição de renda e maiores oportunidades para
todos. Vivemos em uma sociedade – e isso não é nada de novo – aonde
as leis de mercado têm proeminência e, às vezes, mais valor que muitas
outras leis – numa postura pessimista alguém poderia dizer que elas
têm mais valor do que qualquer outra lei.
O mercado da comunicação é um mercado muito complexo, pre-
datório como todos os outros, e mesmo dentro dos espaços aonde se
busca uma interação voltada para ética nos valores comunicacionais,
encontramos essa primeira barreira: com algumas exceções, o estabe-
lecimento de meios de comunicação requerem algum financiamento,
algum capital. A inserção em um mercado de bens simbólicos torna
imperioso que se vendam coisas – a comunicação tem um caráter de
produto, e aqui também não se diz nenhuma novidade.
O que seria possível pensar como novidade é que a comunicação
não é só um produto. Há vinte ou trinta anos talvez ainda fosse pos-
sível argumentar que a comunicação não é um produto, não pode e
não deve ser um produto. Hoje em dia, ainda que a discussão possa
ser feita, isso é fato consumado. As reflexões, no entanto, não apontam
para nenhum beco sem saída. De fato, se assim é no mundo capitalista,
a comunicação é um produto. Mas isso não significa, de um lado, que a
comunicação é só um produto e, mesmo dentro dessa condição, não é
por isso se deve pautar o produto pela baixa qualidade.
É possível pensar a comunicação como um produto, mas mesmo
dentro do mercado há um desafio ético de manter a qualidade do
trabalho. Quando se trabalha com a comunicação, mesmo aceitando
que a comunicação é um produto, existe o desafio ético de fazer esse
produto da melhor qualidade possível. Isso não significa entender
Seis desafios éticos
na comunicação 259

qualidade como a maior quantidade de pessoas a ser atingida. Alguns


grupos, certamente a audiência de alguns programas, quer ver violência,
quer ver o factóide, quem casou na novela, quem não casou no reality
show – e não há nada errado, a princípio, em buscar entretenimento.
Mas, além disso, há um interesse maior, um interesse político do qual
o comunicador não pode prescindir. Mesmo dentro do mercado da
comunicação os produtos não se encerram no entretenimento, na sa-
tisfação de uma vontade de determinados segmentos ou audiências.
Então, primeiro desafio: pensar que existe um mercado. Estamos
inseridos nesse mercado e talvez justamente por isso tenhamos que
redobrar a qualidade de trabalho, para fazer frente às informações
que chegam dentro de um lógica concorrencial da qual não se escapa.
É oscilando entre algum idealismo e um certo pessimismo que pode-se
pensar na perspectiva de escapar.
No caso pessimista, isso significa adotar algumas vezes uma pos-
tura quase fatalista e, de certo modo, condescendente com o próprio
produtor: “ah, já que o público quer violência, ou entretenimento fácil,
então vamos dar entretenimento fácil”. Até porque pode-se desconfiar
de discursos como “o público quer”. Geralmente é um discurso usado
para falar justificar a própria decisão e se respaldar em uma catego-
ria abstrata chamada de “público”. Correto, mas o índice de audiência
pode querer outras coisas. Comunicar com qualidade dentro mercado,
sem ignorar o mercado, talvez seja nosso primeiro desafio.
Por que um desafio? Porque o mercado não pensa muito em termos
de ética; falando às claras, o mercado raramente pensa em termos de
ética. É o comunicador que vai pensar nisso em todas as esferas, inclu-
sive dialogando com a empresa de comunicação. A comunicação não
é produzida ao acaso. É fruto de grandes conglomerados que também
podem ouvir outras vozes – eles nem sempre são monolíticos. Como
todo diálogo, há momentos em que vai se ganhar, há momentos que
vai se perder, mas certamente a resistência em alguns momentos é mais
importante do que a vitória, porque a vitória só se consegue através
dessa resistência, dentro desses próprios meios.
O segundo desafio é a tecnologia. Ela nos leva de volta a pensar o
humano atrás dessa tecnologia. Atrás de cada tela, conectado a cada
260 mídia, ética e esfera pública

fone há um ser humano, e não raro enfrentamos a tentação de fazer da


tecnologia um fim em si. Alguns autores se desdobram em livros e artigos
dizendo o que a tecnologia pode fazer. A pergunta do comunicador
é outra: o que o seres humanos fazem com a tecnologia? Dominique
Wolton tem vários livros nos quais pergunta isso, o que gera, não raro,
algumas interpretações negativas, como se ele fosse avesso à tecnologia
(e que, no entanto, dela se beneficia). Wolton (2012) nos propõe a pensar
o seguinte: atrás das redes tem um ser humano, atrás de cada página
do facebook tem um ser humano igual a nós, atrás de cada espaço do
ambiente da internet há um ser humano.
Tempos atrás fomos perguntados se havia racismo na Internet.
A resposta foi que não há racismo na Internet, há racismo na sociedade
que se manifesta na Internet. Fôssemos uma sociedade justa e plena-
mente inclusiva nós não precisaríamos nos preocupar com qualquer
questão de racismo na Internet. Curiosamente, quem nos lembra disso
é McLuhan (1996), na frase que se tornou quase um lugar-comum sobre
os meios de comunicação são extensões do homem. Ele não falou o
contrário, o homem é uma extensão dos meios de comunicação. Os
meios são extensões de uma criatura anterior, o humano. E é justamente
essa preocupação com a tecnologia que nós vemos exacerbada em al-
guns pontos e que Wolton convida a repensar. Em Internet: e depois?
questiona-se o que virá após essa revolução tecnológica. A internet
deixará de ser uma novidade. A internet aliás já não é uma grande
novidade para qualquer crianças de seus quatro anos de idade. Nas
faculdades já estão gerações que nasceram ambientadas na Internet.
Nesse segundo desafio, assim como não se pode ignorar o mercado,
não se pode ignorar as tecnologias. As instituições sociais não podem
ser refratárias à tecnologia. Cada uma vai adotá-la de acordo com seus
próprios critérios, mas o acoplamento das tecnologias de mídia com
as instituições, grupos e pessoas é cada vez maior. A vida humana, os
negócios, as empresas, a economia e a política estão em grande parte
midiatizada.
O uso da tecnologia parece nos levar ao terceiro desafio ético da
comunicação que é o outro: quando nós falamos, nós falamos para
e com o outro. Uma pergunta possível no processo de comunicação
Seis desafios éticos
na comunicação 261

refere-se justamente à alteridade: quem é o outro, que vai acontecer


com ele após entrar em contato com a mensagem? Qual é a cultura
dele, como ele vai entender os elementos do discurso? Como chegar a
esse outro que, como nós, é inteiro mistério? Como chegar nesse outro
tecnológico, mas profundamente humano?
E uma pergunta ainda mais difícil: quanto nós podemos comunicar
para esse outro? Há um limite: a comunicação não é, infelizmente tudo
indica, um processo completo; é complexa, mas não completa. Nós talvez
nunca consigamos entender esse outro, e, no entanto, afirma-se nisso um
paradoxo: para nos comunicarmos com esse outro precisamos entendê-
lo. Quem é capaz de dizer que conhece outra pessoa em sua integralidade?
Na relação de comunicação apenas vislumbramos o outro. Quando
alguém conversa conosco, nós ouvimos apenas um pedaço da vida dessa
pessoa, quando vemos outra pessoa, vislumbramos apenas um pedaço
dessa vida. A comunicação é sempre limitada; nunca chegaremos a esse
“eu” mais profundo do nosso outro, nunca chegaremos plenamente a
essa alteridade. Novamente, isso não significa que seja possível ou
desejável abrir mão desse desafio. Ao contrário, justamente porque não
parece haver nenhuma completude no processo de comunicação talvez
seja o desafio, quiçá dever, buscar o máximo de comunicação possível,
respeitando também os saberes desse outro, lembrando que toda
comunicação está entrelaçada com o poder, e a chance de se usar, mesmo
inadvertidamente, esse poder sobre o outro é muito grande, impondo a
ele uma comunicação que não é dele.
Sem mencionar, nesse sentido, que às vezes o outro simplesmente
não quer minha comunicação, como também nem sempre não quere-
mos a comunicação do outro. Às vezes não é a hora daquela comuni-
cação, às vezes é a hora do Big Brother, às vezes é a hora da novela, às
vezes é hora de alguma coisa mais séria.
Isso nos leva ao quarto desafio: a comunidade e o público. O trabalho
com a comunicação implica uma responsabilidade considerável com a
comunidade e com o contexto histórico, político e social de uma época.
A título de comparação, podemos pensar que se um médico comete
um erro, por exemplo, receitar um remédio incorreto, a única pessoa
atingida vai ser o paciente dele; é ruim, mas é uma tragédia individual.
262 mídia, ética e esfera pública

Se o comunicador erra, e noticia a morte de uma pessoa antes da hora,


o erro tende a afetar escalas maiores da sociedade.
E, neste sentido, uma questão ética se relaciona com as as novas
tecnologias: a comunicação está diretamente vinculada com a comuni-
dade. Não existe comunidade sem comunicação: sem uma “voz”, que se
articula discursivamente em inúmeras instâncias, e aqui usa-se a ideia
de “voz” no sentido mais amplo possível, não se cria vínculos com a
comunidade. É a voz (articulada em fala e endereçada a uma escuta), a
conversa, a rede social, digital ou não, que cria vínculos com a minha
comunidade. Não custa nada lembrar aliás que a raiz da palavra co-
municação, communio, é a mesmo da palavra comunidade, e, nos dois
casos, nós temos ideia de um vínculo possível que se fará presente no
momento da comunicação efetiva.
Nesse sentido, a organização política depende da comunicação. Se
não sabemos quem é a minha comunidade, não saberemos quem está
do nosso lado ou qual nossa força política. No entanto, a partir da hora
em que sabemos qual é nossa comunidade, não falamos apenas como
outro, não estamos mais sozinhos, criamos um vínculo político. É nesse
sentido que a comunidade pede, por excelência também, uma ação
política, porque cria vínculos, força, faz com que se tenha voz política.
Veja-se, por exemplo, o quanto as comunidades no ambiente online,
de grupos representativos deste ou daquele segmento se organizam e
ganham números. O indivíduo isolado, condição desastrosa em termos
políticos, ganha vínculos, força política, pode reivindicar o direito dele
e dos outros, e esse vínculo se dá a partir das relações de comunicação.
Não é à toa que quando se quer desmobilizar pessoas começam a ser
criados entraves para a comunicação. Não é à toa que em regimes tota-
litários, para desmantelar a crítica impede-se o diálogo. A democracia
se funda numa base comunicativa na medida em que a partir dela que
se pode deliberar, perguntar, questionar.
E isso nos leva ao quinto desafio, saber quem é o comunicador.
Quem é esse comunicador, quem somos nós, comunicadores? Em pri-
meiro lugar, também somos receptores. Vemos TV, estamos nas redes
sociais, vamos ao cinema. Há momentos em que queremos viver essa
comunicação e há momentos em que nós queremos descansar – o hu-
Seis desafios éticos
na comunicação 263

mano igualmente demanda por instantes onde simplesmente se pre-


tende assistir a um jogo de futebol da TV ou uma telenovela, simples-
mente porque se pretende deixar de lado a rotina cotidiana, as horas de
trabalho ou os problemas corriqueiros.
Nós, comunicadores e comunicólogos, somos iguais ao público em
muita coisa. Às vezes, pode-se cair em uma tentação elitista, criando
uma distância imaginária entre seu gosto e o gosto ou vontade de um
receptor entendido como alteridade – é o julgamento feito, por exemplo,
quando se justifica uma atitude a partir da alegação de saber “o que o
povo quer” ou “o que povo precisa”, deixando de lado que também se
é parte do povo. Lembrar que o comunicador também é um receptor
nos faz pensar que aquilo que é bom para os outros é bom para nós
também.
Algumas vezes um ideal ético será submetido a duras provas para
se realizar na prática, e, em alguns casos, no mercado, será preciso res-
peitar a decisão de outras pessoas; mais importantes, mais poderosas,
e nem sempre uma ética baseada no dever ou na virtude prevalecerá
sobre a ética do mercado. Em alguns casos não, em outros casos vai.
Mesmo quando não prevalece, e daí é um desafio, porque é novamente
um paradoxo, mesmo quando não prevalece, e às vezes, no mercado
de trabalho, você tem que fazer alguma coisa que você é contra, a fide-
lidade a si mesmo talvez seja importante para que você possa dormir
pelo menos tranquilo, se não feliz, mas pelo menos tranquilo de falar
“eu tentei. eu mantive meu princípio, eu defendi o princípio, mas eu
não sou o dono, eu não sou o chefe, eu não sou a pessoa que decide: a
pessoa que decide tem uma responsabilidade maior que a minha e não
fez aquilo que deveria ter sido feito”. Às vezes, no mercado de trabalho,
nos deparamos com situações diversas, e nem sempre é possível tomar
uma decisão propriamente de acordo com os princípios e valores éticos
que se tem.
Anos atrás a editora de uma revista importante decidiu publicar
como matéria de capa um determinado assunto. O dono da editora
desceu à redação pediu que a reportagem não saísse. Segundo ele, tra-
tava-se de uma denúncia envolvendo um dos principais anunciantes
de toda a empresa e a publicação acarretaria sérios problemas para a
264 mídia, ética e esfera pública

corporação. A editora da revista mostrou-se firme em sua posição e


decidida a publicar o texto. Diante da pressão do proprietário, ela se
demitiu, alegando que não agiria contra a ética profissional. O detalhe
que lança alguma outra luz sobre a questão: ela era solteira, sem filhos
e tinha um segundo emprego que garantia 40% da renda. Tivesse ela 3
filhos e fosse responsável por cuidar de pais idosos, seria merecedora
de alguma crítica se ela tivesse obedecido? Por isso conhecer o comu-
nicador é também lembrar que o comunicador não é todo poderoso.
Sua liberdade de escolha possui um limite.
Esse exemplo nos permite explorar mais detidamente um dos pro-
blemas centrais de qualquer debate sobre ética na comunicação: como
se configuram os fundamentos da liberdade de escolha e sua relação
com qualquer tomada de decisão que possa ser pensada a partir de
critérios vinculados a uma moral. Nesse sentido, a tomada de decisões
no âmbito das relações comunicativas não fica fora do enquadramento
das decisões humanas de efetivamente deliberar a respeito de qualquer
assunto – não no sentido do que se vai escolher, mas pensando, justa-
mente, no fundamento do que se pode efetivamente escolher.
Como recorda Barros Filho (1995), a existência de uma plena li-
berdade, fundamento de um ato vinculado a uma ética, se liga à pos-
sibiliade de uma ação livre de restrições. Só é possível pretender uma
liberdade maior dos meios de comunicação com uma concepção de
liberdade clara – e, novamente aí, ficam invisíveis as fronteiras entre a
comunicação, a ética e a política que a cerca.
O século XX mostrou-se paradoxalmente um momento de extremo
racionalismo e grande retrocesso dos conceitos de liberdade, sobretudo
nos regimes totalitários que se serviram amplamente dos meios de
comunicação para garantir a presença de suas concepções em todos os
lugares. Deixando a macroescala de Baudrillard (1991), a liberdade do
homem encontra na mídia uma ameaça na medida em que é, por si só,
um elemento questionável, de utilização rápida pelo sistema político –
uma economia política da mídia passa necessariamente pelo exame das
formas de liberdade possíveis, mas nem sempre desejáveis.
A consciência do conhecimento é a primeira etapa da liberdade.
Ter consciência é ser livre, ser livre é fazer escolhas. É a partir dessas
Seis desafios éticos
na comunicação 265

escolhas que definimos nossa existência, não determinada por


nenhuma essência – Deus não o faz, mas tampouco a luta de classes
– e nos tornamos tudo aquilo que não deixamos de ser. O conceito é
sempre negativo: deixamos outras “n” possibilidades de ser para ser
apenas isto que queremos. E é uma escolha nossa. Não é o Estado, não
é o Governo, não é o Sistema. Somos nós, em suma, a causa última de
nosso estado de liberdade. Aliás, é preciso distinguir esse “nós”, pois
não se trata de uma consciência coletiva, mas do estado individual que
o ser, definido em última análise pela sua própria existência, escolhe
para estar. Não há opção de escolha quando a liberdade é produto da
relação entre o homem e sua consciência – não mais entre o homem e o
“outro” – e ela é sempre o produto da negação de outras possibilidades
em prol de uma única. Assim, desse princípio negativo potencial de
escolhas nasce a única possível: ser livre. Apenas em conseqüência
dessa liberdade é que pode haver ação.
Em suma, a culpa de todas as ações, toda a felicidade ou infelicida-
de durante a vida nada mais é do que o resultado de todas as escolhas
que não fizemos. Ao final, o problema da liberdade resume-se, contra-
riando rios de tinta, na sua própria existência como parte da condição
humana, não deixando nenhuma outra possibilidade senão utilizá-la.
Ao deslocar a questão da liberdade humana para a consciência e para
a liberdade ao invés de confiná-la em fatos objetivos, Sartre muda o
eixo de compreensão das ações humanas. O homem não é o lobo do
homem, é apenas o culpado por ser livre.
A característica multiforme da cultura revela-se em suas inúmeras
exposições na mídia. Não se está, porém, isento de contradições que
revelam, por sua vez, os problemas existentes na sociedade. As con-
tradições econômicas e sociais revelam-se na miopia serena de alguns
produtos da mídia, destinados a manter a ignorância como fundamen-
to das relações sociais, estimulando a negligência do pensamento e ofe-
recendo o escape para uma câmara de sonho a custos reduzidos.
A extensão do poder da mídia está para ser medida corretamente,
mas as possibilidades de compreensão do espectador também derivam
de fatores muito além do controle do pesquisador. Esforços individuais
tentam conduzir estas mesmas parcelas para uma nova e constante
266 mídia, ética e esfera pública

aplicação da mente na criação de uma cultura na qual a mídia exista,


mas não seja hegemônica. Grande parte dessa hegemonia se encontra
atrelada aos modos como a linguagem encarna ideologias na produção
de estereótipos, discursos opressores e violência simbólica. Dito
isso, faremos agora uma reflexão acerca do sexto desafio ético na
comunicação: o trabalho da linguagem e com a linguagem. Esse não
é um desafio a ser encarado à parte, mas algo que perpassa todos os
outros anteriormente mencionados e guia a própria conduta do sujeito
político comunicador.

A linguagem, a ética e o ser


A linguagem é condição de todo ato comunicativo: ela sedimenta
nossas interações mais básicas e está presente em todas as dimensões
das interações humanas. Assim, é possível afirmar que não há apenas
uma linguagem, mas linguagens. A expressividade humana é complexa
e bastante diferente daquela do animal. No desenvolvimento do ser hu-
mano, há uma relação direta e dinamica entre inteligência e linguagem.
Quando nascemos, tivemos provavelmente o maior salto de inteligência
que teremos em nossa existência: nos poucos minutos após a saída do
ventre materno tivemos que processar informações referentes à luz,
temperatura, texturas, sons, cheiros, sentimentos de insegurança, medo,
dor... tivemos que aprender em poucos segundos e minutos a respirar, a
reconhecer um ambiente inóspito (tão diferente do útero acolhedor) e
a sugar para receber o alimento. A inteligência humana continua a dar
saltos grandes a partir das interações que tecemos com os outros a nosso
redor. Nossa inteligência é, portanto, interacional e permite que criemos
relações entre sons, coisas, atos e palavras. Essas relações são tão poderosas
que passamos a prescindir do mundo concreto para nos referirmos a ele:
não precisamos ter diante nós uma maçã, para sabermos como ela é, que
gosto tem e como se escreve a palavra que corresponde à fruta. Com a
linguagem criamos mundos e estruturamos nosso pensamento. Isso nos
difere dos animais e de seu comportamento.
Geralmente, associamos o termo linguagem com a “fala”. Mas a lin-
guagem não se restringe ao ato de falar. Se a língua pode ser entendida
Seis desafios éticos
na comunicação 267

como um sistema de códigos que nos permite construir enunciados, a


fala nos permite utilizá-los para entrar em contato com o outro. Esta-
mos imersos na linguagem, ou nas linguagens. É por meio dela(s) que
compreendemos a alteridade e a nós mesmos. É através da linguagem
que encontramos o outro, que nos vinculamos a ele. A linguagem nos
permite acessar o outro, compreendê-lo em sua diferença e, claro, nos
permite entrar em discordância, em atrito com outro e seus interesses.
A linguagem nos permite iniciar um ato de comunicação justamente
porque ela opera uma passagem do domínio da natureza (estado
natural) para o domínio da cultura (âmbito dos signos e dos sentidos
sociais). Um exemplo: quando estamos dormindo estamos em nosso
estado “natural”, estamos descodificados e desmontados. Mas quando
acordamos, a primeira coisa que fazemos é nos “montar”, isto é, nos
vestimos de acordo com um sistema de regras que possui convenções
e significados específicos. Escolhemos nossas roupas de acordo com
que elas devem significar para os eventos a serem vivenciados durante
o dia. Sabemos o que cada peça “significa”: conhecemos o código. Não
só a linguagem nos permite fazer essa passagem do natural ao cultural
(simbólico), mas ela também nos possibilita chegar ao entendimento
recíproco com o outro, pois todos nós partilhamos o mesmo código
e podemos, assim, traduzir e decifrar os comportamentos, gestos e
vestimentas uns dos outros. Podemos compor e entender o código.
Além disso, tudo o que rompe com o código partilhado nos chama a
atenção, uma vez que é ele que rede nosso comportamento.
Contudo, esses códigos não são rígidos, mas passíveis de “ruídos” e
ambiguidades. Os códigos de linguagem são ambíguos e insuficientes.
Isso se deve à insuficiência da linguagem para abarcar a complexidade
do real: a linguagem representa algo do mundo, mas não é o mundo.
Ao mesmo tempo, a ação de codificar e decodificar é assimétrica: nem
sempre o outro entende o que quero dizer e por mais que compartilhe-
mos os mesmos códigos gerais, há sempre muitas maneiras de inter-
pretar e significar um código (o que depende de condições pessoais,
históricas, culturais, etc.).
Nesse sentido, toda relação comunicacional é baseada na incerteza.
Não temos conhecimento absoluto do outro e de suas formas de inter-
268 mídia, ética e esfera pública

pretar o mundo. Exatamente por isso que lançamos mão de “disposi-


tivos linguísticos” para reduzir a ambiguidade de nossos enunciados
e gestos. O professor José Luiz Braga (2011) escreveu um ótimo texto
mencionando que a comunicação não é rara e nem ausente, mas é ten-
tativa. Ele apresenta o ato comunicacional como uma tentativa: um
lance de sorte, em um jogo no qual todos nos arriscamos em busca do
entendimento mútuo. Também a professora Lucrécia Ferrara (2013)
fala de uma comunicação indecisa, fazendo uma distinão entre o “co-
municar” (verbo) e a comunicação. Segundo ela, o ato de comunicar
requer dois elementos fundamentais: a resposta e o respeito (ambos
ligados a uma responsabilidade que um interlocutor possui em relação
ao outro). Assim, a comunicação é o espaço do encontro: ela se realiza
na reciprocidade.
Axel Honneth (1995) também apresenta uma perspectiva seme-
lhante e argumentam que a comunicação implica reconhecer o outro,
valorizá-lo e respeitá-lo. Nem sempre, para eles, passar informação é
comunicação. Muito pelo contrário: na maioria das vezes informar não
é comunicar, pois para que a comunicação ocorra é preciso encontro,
choque, relação. Assim, vivemos na linguagem a através dela: por meio
dela construímos nossa vinculação cultural e promovemos espaços de
múltiplos encontros, do encontro entre indivíduo e sociedade (respei-
tando a lógica e cultura de cada povo).

Violência e linguagem
Não existimos na vida cotidiana sem estarmos continuamente
em interação e comunicação com os outros. E é a linguagem que
constitui e torna possível o encontro e o confronto de subjetividades,
de experiências, pontos de vista. Ao mesmo tempo, a linguagem é
modificada criativamente por meio desse encontro.
Por meio da linguagem somos capazes não só de compreender e
agir sobre o mundo que nos cerca, mas também de construí-lo. Essa é
uma das missões mais importantes e de maior responsabilidade que é
dada ao comunicador: a partir da prática profissional, ele deve utilizar
bem a linguagem e os signos para construir representações e mundos
Seis desafios éticos
na comunicação 269

que não apaguem a diferença, que não desvalorizem a alteridade e que


não desrespeite a vida.
Com a linguagem, produzimos modos de ser e exisitir em comum.
As profissões relacionadas à comunicação exigem uma habilidade cria-
dora e, ao mesmo tempo, crítica que única: construir e reconstruir re-
presentações que nunca são neutras, que remetem a objetos, aconteci-
mentos, produtos e sujeitos em interseção com ideologias, assimetrias
e desigualdades.
Os textos verbais, imagéticos, sonoros, performáticos estarão sem-
pre entrelaçados com ideologias, com esquemas de de interpretação do
mundo e, justamente por isso, com relações de poder. Narrativas midi-
áticas, é importante lembrar, se constroém por meio de enquadramen-
tos que selecionam representações e estereótipos de modo a contar um
acontecimento, dar forma à experiência e contribuir para a renovação
do imaginário social.
É exatamente porque a comunicação envolve o reconhecimento
do outro que muitas das formas atuais de desrespeito envolvem a
invizibilização das pessoas. Quando ignoramos o outro e o retiramos
do campo de nossa percepção estamos, na maioria das vezes, retirando
do outro a linguagem e, portanto, sua humanidade. Basta que nos
recordemos de vários grupos oprimidos e do modo como são silenciados
por forças de poder e opressão. Se falar e ser andam juntos, quando a
perda da linguagem ocorre é como se a morte se apresentasse ao homem.
A linguagem nos define como seres humanos justamente por nos
permitir falar e escutar a fala do outro, sem coisificá-lo. Tornar o outro
um objeto, uma coisa, é desumanizá-lo: é dizer que ele pode ser morto.
Sob esse aspecto, o sociólogo Pierre Bourdieu (1992), ao estudar a
origem e os usos sociais da linguagem, chamou de violência simbólica
os atos de nomear e classificar o outro. Para ele, quando damos um
nome e rotulamos algo (coisa ou pessoa) fica mais fácil controlá-lo.
Bourdieu também menciona que, quando estabelecemos que há uma
forma “correta” de falar, definimos em contrapartida o “incorreto”.
Assim, se não seguimos o “correto”, somos julgamos como de menor
valor, somos desvalorizados no “mercado linguístico”. Ao longo da
história, o que mais presenciamos é um povo, comunidade ou grupo
270 mídia, ética e esfera pública

querer impor sua lógica linguística sobre o outro, uma lógica “correta” e
bem cotada sobre uma lógica “incorreta”, inculta, depreciada. Falamos
aqui em lógica e não apenas em linguagem, pois toda linguagem esta
imbuída de ideologia e é essa ideologia que opera as sentenças de
valorização e desvalorização dos sujeitos por meio de seus códigos.
A disputa entre lógicas no mercado linguístico é algo que Bourdieu
explora no livro “A distinção”.
Se as lógicas são empregadas para “ler” a realidade, então temos
também uma dimensão política da linguagem e de seu uso: segundo
Bourdieu (1988), quanto mais rara uma linguagem, mais alto o seu
valor e mais poder (capital) contabiliza para aquele que a domina. O
capital daquele que, por exemplo, fala e escreve bem na língua inglesa
é muito maior do que aquele que só conhece o português.
Mas se a linguagem pode ser utilizada para dominar,desvalorizar e
invizibilizar o outro, ela também pode servir a práticas de resistência e
luta por reconhecimento. Vale aqui lembrar o escritor queniano Ngũgĩ
wa Thiong›o que, em sua obra, “Descolonizando a mente” (Decolonising
the Mind: The Politics of Language in African Literature, 1986), nos
ensina a trabalhar nossa própria linguagem como fonte de emancipação,
recusando a língua do colonizador e, portanto, seu poder de apagamento
e opressão.
A política que se processa na vida cotidiana (contestação de estereó-
tipos e representações, luta contra opressões simbólicas de todo tipo,
conflitos raciais e de gênero, etc.) diz respeito ao processo de cons-
trução reflexiva dos discursos, dos textos e das identidades. A comu-
nicação constitui o local onde as lutas políticas são vividas tanto do
ponto de vista coletivo quanto íntimo, uma vez que as interações são,
em maior ou menor medida, baseadas em relações de poder. É nesse
sentido que um grande desafio se impõe a todo comunicador: há uma
dimensão ética que se manifesta no entendimento mesmo do ato de
comunicar: aprendemos que comunicar é tornar comum, produzir en-
contros, partilhar. Nessa ação de construir um “comum”, é vital o gesto
de acolher a palavra do outro na nossa palavra: cultivando o respeito, a
humildade e a generosidade.
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ÂNGela cristiNa salGUeirO marQUes
é doutora em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), com estágio pós-doutoral na Université Stendhal, Grenoble
III. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da
UFMG. Organizou e traduziu os textos que integram a obra A deliberação
pública e suas dimensões sociais, políticas e comunicativas (Autêntica, 2009).
É co-organizadora, junto com a profa. Heloiza Matos (ECA-USP), do livro
Comunicação e política: capital social, reconhecimento e deliberação pública
(Summus, 2011).

lUís maUrO sÁ martiNO


é doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC-SP). Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação
da Faculdade Cásper Líbero. Foi pesquisador-bolsista da Universidade de East
Anglia (Inglaterra) e é autor dos livros Teoria da comunicação (Vozes, 2009);
Comunicação e identidade (Paulus, 2010); Teoria das Mídias Digitais (Vozes,
2014), Mídia, Religião e Sociedade (Paulus, 2016), entre outros.

Esta coleção agrupa obras resultantes de parcerias e cooperações


acadêmicas entre o PPGCOM-UFMG e outras universidades
{ olhares nacionais e internacionais, cujos projetos deram origem a textos
transversais comuns, abordagens cruzadas e aproximações conceituais
marcadas pelo delicado jogo das dissonâncias.

Capas com Lombada.indd 3

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