Elementos de Uma Teoria Da Pratica e Dos Sujeitos Da Produção Jornalística
Elementos de Uma Teoria Da Pratica e Dos Sujeitos Da Produção Jornalística
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Capítulo II
Mídias e sujeitos da produção . . .................................................. 72
A parrésia ............................................................................................... 75
O jor nalista e a verdade.. ...................................................................... 80
Dizer a verdade .. .................................................................................... 83
Acontecimento.. ..................................................................................... 93
Poliedro de intelig ibilidade/pirâmide invertida ............................... 96
Nota f inal ............................................................................................. 100
Referências ........................................................................................... 103
Capítulo III
Sobre acontecimentos .. ...................................................................107
A reincidência do acontecimento ......................................... 108
Murmúrios de aion ............................................................................ 121
O acontecimento Foucault ......................................................... 131
20 Anos de publicações sobre teoria
da prática jornalística no Brasil: uma
abordagem de mineração de dados ......................................... 134
D
esviando-se das representações construídas no campo dos estudos em jornalis-
mo, em teorias pouco afeitas ao ambiente da prática e ao pensamento dos jor-
nalistas, este livro situa-se em uma brecha teórica que abrange, simultaneamente,
os acontecimentos que passam na realidade, as práticas e os sujeitos da produção. Um conjunto de
entrevistas publicadas na mídia, somadas às entrevistas de pesquisa (Marocco, 2012), livros escritos
por jornalistas, além de conceitos e da minha experiência como jornalista, geraram um locus privi-
legiado de problematização da prática. Neste ambiente ficou evidenciada a existência de um outro
modo de objetivação jornalística em que alguns repórteres têm emitido sinais de que ser jornalista
implica um descolamento radical das mídias. Sob outras condições de possibilidade, os repórteres
têm se dedicado a ouvir fontes populares, têm frequentado as ruas, se aproximado dos movimentos
sociais, realizando o que pode ser entendido como “acontecimentalização”, conceito forjado por
Foucault que fornece as pistas de um jornalismo filosófico, praticado por ele na “reportagem de
ideias” e encontrado nos “livro de repórter”.
Os elementos para uma teoria da prática jornalística nesta base epistemológica fo-
ram reunidos em dois capítulos.
No primeiro capítulo, desenha-se o duplo percurso metodológico percorrido para
desvendar um outro modo de objetivação jornalística que, afinal, foi descrito nas seis ca-
racterísticas que fundamentam a ação de um conjunto de repórteres: 1) crítica das práticas
jornalísticas; 2) presença do corpo e exposição às sensações na relação dialógica com o
outro; 3) governamentalidade dos sujeitos do jornalismo para fazer valer a sua liberdade
de sujeito e a relação com os outros; 4) desenvolvimento de um trabalho intelectual que
aproxima jornalista e filósofo nas ações de acontecimentalização para acionar as técnicas
de produção da crítica ao jornalismo, sob a forma de reconhecimento do presente; 5) fun-
ção diferenciada para a fonte jornalística; e 6) associação entre produção de reportagens
diferenciadas e autoria de outros materiais que estendem o jornalismo das mídias domi-
nantes para outros espaços.
No segundo capítulo, dedicado às mídias e aos sujeitos da produção, a verdade se
encaminha como o elemento central das práticas. Não se trata do atributo que diferencia
o jornalismo da ficção, nem de um contraponto às chamadas fake news. Desdobrando-se
em minúcia as figuras do “virtuoso” (Bourdieu, 1977), e do “parresiasta” (Foucault, 1987,
6
Gros, 2002), pode-se sugerir que a tensão criada entre verdade e falsidade mascara o que
ocorre entre o automatismo do fazer normativo e as práticas de liberdade. O repórter que
atua nas margens do jornalismo dá demonstrações de seu engajamento subjetivo a um
trabalho de observação e investigação no qual terá parceria do outro/fonte. Trata-se da
emergência de uma figura singular e complexa que redimensiona as práticas inspiradas na
forma clássica da pirâmide invertida. No processo de visibilizar e dizibilizar os aconteci-
mentos, destaca-se o poliedro de inteligibilidade. Esta figura de múltiplas arestas (o polie-
dro) complexifica a superficialidade construída pelas mídias que formulam um jornalismo
assombrado pelas marcas da dominação. Há um estreito parentesco de tal prática com a
perspectiva foucaultiana desenvolvida na “reportagem de ideias” (Marocco, 2008), na qual
a fonte não corresponde à autoridade, não tem o ônus da prova, nem da verdade, e nem
terá uma forma jornalística prescrita nos livros de estilo. Está francamente em oposição
ao modo de objetivação jornalística que, geralmente, se associa a fontes que ocupam po-
sições institucionais, fornecem a informação mais rapidamente, a baixo custo e, por isso,
são mais produtivas e conferem à informação aparência de maior confiança e de verdade.
O terceiro capítulo reúne dois artigos já publicados, em que uma analítica dos acon-
tecimentos se fundamenta nas diferentes temporalidades materializadas na atualidade das
mídias jornalísticas. No primeiro, “Murmúrios de Aion”, Marocco e Silva exploram en-
saisticamente as implicações de duas modalidades de tempo. Assim, pode-se reconhe-
cer o jornalismo tanto em uma dimensão diacrônica, denominada Cronos, dependente
dos espaços em que se realiza como gênero e como escritura, quanto em uma dimensão
sincrônica, denominada Aion, que se autonomiza do espaço material, configurando as
condições de criação de um jornalismo em devir. No artigo seguinte, Marocco esquadri-
nha um acontecimento fundador de temporalidades: o projeto do governo brasileiro de
repressão à ociosidade e as profissões desonestas (Projectus 13 A-1888), apresentado à
Câmara de Deputados do Brasil em 10/07/1888, que afetou o jornalismo porto-alegrense
no século XIX e permanece na sombra dos discursos do jornal gaúcho Zero Hora, aproxi-
mando a pratica contemporânea de um limiar epistemológico anterior do jornalismo. “O
acontecimento Foucault”, em outra direção, descreve alguns desdobramentos possíveis
do pensamento foucaultiano sobre o jornalismo. Neste viés epistemológico, o último ar-
tigo enfoca a produção acadêmica voltada à teoria da prática jornalística. Nos últimos 20
anos, segundo levantamento de Saggin, Scarrone, Marquetto e Carneiro, somente 6% das
publicações problematizam o poder e a resistência dos sujeitos da produção. No mesmo
universo, somente 9% deram espaço à voz dos sujeitos da prática no Brasil. Segundo as
autoras, “estes dados asseveram a indispensabilidade de pesquisas que incluam em seus âm-
bitos teórico-metodológicos e epistêmicos perspectivas de problematização e inclusão dos
sujeitos da prática para a reelaboração de uma teoria da prática jornalística”.
7
Decir los acontecimientos…
Sous une forme aussi naïve qu’une fable pour enfants, je dirai que la
question de la philosophie a longtemps été: «Dans ce monde où tout
périt, qu’est-ce qui ne passe pas? Que sommes-nous, nous qui devons
mourir, par rapport à ce qui ne passe pas? «Il me semble que, depuis le
XIXe siècle, la philosophie n’a pas cessé de se rapprocher de la question:
«Qu’est-ce qui se passe actuellement, et que sommes-nous, nous qui ne
sommes peut-être rien d’autre et rien de plus que ce qui se passe actuelle-
ment?» La question de la philosophie, c’est la question de ce présent qui
est nous-mêmes. C’est pourquoi la philosophie aujourd’hui est entièrement
politique et entièrement historienne. Elle est la politique immanente à
C
l’histoire, elle est l’histoire indispensable à la politique.1
uando, en 1969, Foucault decide explicar los principios de método que le han permi-
tido desarrollar sus primeras investigaciones arqueológicas, desde Historia de la locura
(1961) hasta Las palabras y las cosas (1966), insiste de modo especial en que son un
intento de escapar a las formas habituales de hacer historia global, a la que contrapone la posibilidad
de llevar a cabo una historia general. «Le thème et la possibilité d’une histoire globale commencent à
s’effacer, et on voit s’esquisser le dessin, fort différent, de ce qu’on pourrait appeler une histoire gé-
nérale. Le projet d’une histoire globale, c’est celui qui cherche à restituer la forme d’ensemble d’une
civilisation, le principe – matériel ou spirituel – d’une société, la signification commune à tous les
phénomènes d’une période, la loi qui rend compte de leur cohésion, – ce qu’on appelle métaphori-
quement le “visage” d’une époque. Un tel projet est lié à deux ou trois hypothèses: on suppose qu’entre
tous les événements d’une aire spatio-temporelle bien définie, entre tous les phénomènes dont on a retrouvé
la trace, on doit pouvoir établir un système de relations homogènes: réseau de causalité permettant de déri-
ver chacun d’eux, rapports d’analogie montrant comment ils se symbolisent les uns les autres, ou
comment ils expriment tous un seul et même noyau central; on suppose d’autre part qu’une seule
et même forme d’historicité emporte les structures économiques, les stabilités sociales, l›inertie des
mentalités, les habitudes techniques, les comportements politiques, et les soumet tous au même
type de transformation; on suppose enfin que l›histoire elle-même peut être articulée en grandes
unités – stades ou phases – qui détiennent en elles-mêmes leur principe de cohésion».2
1 «Non au sexe roi» (entrevista con B.- H. Lévy), Le Nouvel Observateur, N. 644, 12-21 marzo 1977; recogido en Dits et écrits III, Paris:
Gallimard, 1994; § 200, p. 265-66.
2 L’archéologie du savoir, Paris: Gallimard , 1969, p. 17-18 ; subrayado M.M.
8
De las hipótesis que sostienen la idea de una historia global, aquí interesa la primera,
en sí misma y por las consecuencias que acarreará su impugnación. Porque las preguntas
que se hará el historiador serán de un orden muy diferente, a partir del momento en que
deje de suponer que los acontecimientos de una época y un lugar determinados remiten
a un mismo principio de inteligibilidad, o que su sentido queda homogeneizado por el
hecho de pertenecer a tal o cual fase o estadio histórico. Como se sabe, la réplica de Fou-
cault irá en esta dirección, se encaminará a devolver al acontecimiento su singularidad y
a la historia su discontinuidad, ambos con carácter de fundamentales. El vínculo de la
investigación de Beatriz Marocco con ese gesto es evidente y explícito, forma uno de los
principales hilos conductores que sostienen la armazón de este texto, y el modo en que lo
aplica es uno de sus grandes logros. Así por ejemplo, en la primera parte, dando cuenta
de los resultados de su investigación sobre el livro de repórter, destaca como rasgo caracte-
rístico de “um outro modo de fazer jornalismo”, el siguiente aspecto: “desenvolvimento
de um trabalho intelectual que aproxima jornalista e filósofo nas ações de acontecimen-
talização para acionar as técnicas de produção da crítica ao jornalismo, sob a forma de
reconhecimento do presente”. Acontecimentalização es la palabra clave, la consigna, le mot
d’ordre; traduce una noción (événementialisation) que Foucault ha usado en sus escritos
solo en una ocasión, pero caracterizándola de modo completo, rotundo.3 A partir de ese
punto la tarea del historiador (también la del filósofo de la historia) y la del periodista en-
cuentran un elemento de atención prioritaria que les es común. Y precisamente del modo
de inteligibilidad propuesto por Foucault para hacerse cargo de esta acontecimentalização,
extraerá Marocco una herramienta privilegiada. “Neste sentido, a forma reducionista da
pirâmide invertida é substituída pelo poliedro de inteligibilidade”.4
No solo es una herramienta privilegiada la noción de poliedro de inteligibilidad,
también es un arma de combate, y un ethos, un talante moral que tutela todo el escrito de
Beatriz Marocco. Sabemos que el acontecimiento no puede ser contado del modo como
se habla de los estados de cosas, ni se reduce al número de personas y cosas que resultaron
afectados por su manifestación – en tanto que tal, el acontecimiento es otra cosa (aliquid).
Hace ya tiempo que, en el ámbito del pensamiento (post-)estructuralista francés, el filóso-
3 «J’essaie de travailler dans le sens d’une ‘événementialisation’. Si l’événement a été pendant un temps une catégorie peu prisée
des historiens, je me demande si, comprise d’une certaine façon, l’événementialisation n’est pas une procédure d’analyse utile. Que
faut-il entendre par événementialisation? Une rupture d’évidence, d’abord. Là où on serait assez tenté de se référer à une constante
historique ou à un trait anthropologique immédiat, ou encore à une évidence s’imposant de la même façon à tous, il s’agit de faire
surgir une ‘singularité’. Montrer que ce n’était pas ‘si nécessaire que ça’; ce n’était pas si évident que les fous soient reconnus comme
des malades mentaux; ce n’était pas si évident que la seule chose à faire avec un délinquant, c’était de l’enfermer; ce n’était pas si
évident que les causes de la maladie soient à chercher dans l’examen individuel du corps, etc. Rupture des évidences, ces évidences
sur lesquelles s’appuient notre savoir, nos consentements, nos pratiques. Telle est la première fonction théorico-politique de ce que
j’appellerais l’événementialisation. En outre, l’événementialisation consiste à retrouver les connexions, les rencontres, les appuis, les
blocages, les jeux de force, les stratégies, etc., qui ont, à un moment donné, formé ce qui ensuite va fonctionner comme évidence,
universalité, nécessité. À prendre les choses de cette manière, on procède bien à une sorte de démultiplication causale» («Table ronde
du 20 mai 1978», in Perrot (M.), éd., L’Impossible Prison. Recherches sur le système Pénitentiaire au XIXe siècle, Éd. du Seuil, 1980; en Dits
et écrits, IV, § 278, p. 23).
4 Se recordará el antepasado aristocrático que la pirámide invertida reivindica, nada menos que Rudyard Kipling; en concreto esta
estrofa: “I keep six honest serving-men; / (They taught me all I knew) / Their names are What and Why and When / And How and
Where and Who” (“The Elephant’s Child”, en Just So Stories, 1902).
9
fo Gilles Deleuze reivindicó la especificidad (y la importancia filosófica fundamental) de
la noción de acontecimiento y su concatenación con la de sentido, apoyándose en las anti-
guas doctrinas estoicas. «Inséparablement le sens est l’exprimable ou l’exprimé de la proposition,
et l’attribut de l’état de choses. Il tend une face vers les choses, une face vers les propositions.
Mais il ne se confond pas plus avec la proposition qui l’exprime qu’avec l’état de choses ou
la qualité que la proposition désigne. Il est exactement la frontière des propositions et des
choses. Il est cet aliquid, à la fois extra-être et insistance, ce minimum d’être qui convient
aux insistances. C’est en ce sens qu’il est ‘événement’: à condition de ne pas confondre l›événement
avec son effectuation spatio-temporelle dans un état de choses. On ne demandera donc pas quel est le
sens d’un événement: l’événement, c’est le sens lui-même. L’événement appartient essen-
tiellement au langage, il est dans un rapport essentiel avec le langage…».5
Esta vinculación del acontecimiento con el lenguaje, esa distancia que se abre entre
los cuerpos y los atributos que les asigna la proposición, de la que emerge el sentido en
su ser incorporal, sin duda invita a una extrema atención al detalle minúsculo, a la relaci-
ón entre las fuerzas y los efectos incorporales de superficie, también a la determinación
cuidadosa de los planos y niveles en los que se dice el acontecimiento. Sin dificultad puede
imaginarse la aplicación que aquí se hace del poliedro de inteligibilidad foucaultiano como
una variante fecunda de la vieja mirada estoica. Aunque haya que añadir que en esta vincu-
lación del acontecimiento con el lenguaje también reside su más grave riesgo, el que pueda
decirse de muchas maneras, incluso contradictorias entre sí, según las fuerzas que muevan
ese decir.
Asunto de la filosofía desde siempre, y ejercicio cotidiano del periodismo, hoy las
maneras en que se dice el acontecimiento requieren pues toda la atención. A la pregunta
de cuándo comenzó a ser el acontecimiento asunto del periodismo la respuesta casi au-
tomática sería que desde siempre, que es algo que le es connatural… Y por lo que hace
sus peligros, en mis tiempos de estudiante, en las escuelas de periodismo se ponía como
ejemplo arquetípico la cobertura periodística (sic) que William Randolph Hearst, (dueño
del New York Journal) y Joseph Pulitzer (dueño del New York World) dieron a la guerra entre
España y Estados Unidos, en Cuba (1898). Y tal vez no estaría de más recordar que, se-
gún dicen los expertos, fue por aquellas fechas que tuvo lugar el nacimiento de la cultura
de masas, y el periodismo pasó a estrenar un nuevo estatuto, el ser un (y por un tiempo el
único) medio de comunicación de masas. A día de hoy, siglo y poco más tarde, en pleno
auge de la mutación digital y la expansión de las redes sociales, las maneras de decir el
acontecimiento se enfrentan nuevamente con un riesgo de gravedad extrema, probable-
mente el que de modo más letal amenaza el sentido mismo del periodismo: las fake news.
5 G. Deleuze, Logique du sens, Paris : Minuit, 1969, p. 34. En una obra clásica sobre el tema (La théorie des incorporels dans l’ancien stoï-
cisme, Paris: A. Picard, 1908; p. 13), Émile Bréhier caracteriza el pensamiento estoico por su gesto de separar «radicalement, ce que
personne n’avait fait avant eux, deux plans d’être : d’une part, l’être profond et réel, la force; d’autre part, le plan des [événements],
qui se jouent à la surface de l’être, et qui constituent une multiplicité sans lien et sans fin d’êtres incorporels».
10
Hay dos modos de ser del discurso – explica Foucault en su clase del 2 de marzo de
1983, en el Collège de France –, “dos modos de ser del discurso que pretenden decir la
verdad y producirla bajo la forma de la persuasión en el alma de los otros”.6 Estos son, la
filosofía y la retórica, oposición que va a permitirle poner en valor la política de la verdad
propia a la filosofía. Así, mientras que lo que pretende la retórica es adular al auditorio
para influir en él y conducirlo, el discurso de la filosofía aspira a que aquel al que se dirige
establezca consigo mismo una relación más plena y veraz. El término técnico que Fou-
cault usa para nombrar esta relación está tomado también de la tradición griega de pensa-
miento, es parresía (παρρησία), que suele traducirse por decir veraz, sinceridad o franqueza.
Entiendo que el segundo gran mérito del estudio de Beatriz Marocco está precisamente
aquí, en el modo en que, ante la amenaza de las fake news, acude a la jurisprudencia greco-
latina del decir verdadero exhumada por Foucault. Y debo añadir que en esta nota me limito
a destacar aquellos aspectos de mi competencia, en este caso la aplicación de estrategias
conceptuales de origen filosófico a un dominio dado, aquí el periodismo; y que lamento
tener que pasar por alto aspectos que me parecen muy relevantes y algunos de los cuales
es seguro que son fundamentales, pero a los que no puedo añadir sino que comparto pro-
fundamente el ideario que sostienen.
Por lo que hace a la filosofía he destacado la acontecimentalização y el poliedro de
inteligibilidade, su clara y profunda raiz filosófica; corresponde hacer otro tanto con res-
pecto de la parresía, ante todo saludar la oportunidad de su aparición. Con las fake-news
como telón de fondo las líneas del análisis foucaultiano que se destacan en este estudio
cumplen una función heurística impecable: es el presente lo que queda cuestionado en
continuidad por este antiguo espejo grecolatino; es el presente lo que queda convocado
por el ejemplo de los usos políticos (de resistencia política indomable) de los que da tes-
timonio la parresía antigua.7 El propio Foucault advierte de lo fundamental que es este
aspecto: “Para que haya parresla, como recordarán – el año pasado insistí bastante en ello
–, es menester que el sujeto, [al decir] una verdad que marca como su opinión, su pensa-
miento, su creencia, corra cierto riesgo, un riesgo que concierne a la relación misma que
él mantiene con el destinatario de sus palabras. Para que haya parresla es menester que, al
decir la verdad, abramos, instauremos o afrontemos el riesgo de ofender al otro, irritarlo,
encolerizarlo y suscitar de su parte una serie de conductas que pueden llegar a la más ex-
trema de las violencias. Es pues la verdad, con el riesgo de la violencia…”.8
Ésta es por consiguiente la fuerza de choque que se le opone a las fake news: el decir
veraz, la parresía. Si en sus orígenes – recuerda Marocco – por lo que hace a la política,
el periodista foi definido como guardião da democracia e/ou quarto poder; o jornalista
foi chamado de “cão de guarda da democracia”; en el momento actual, la función política
6 Le gouvernement de soi et des autres. Cours au Collège de France (1982-1983), Paris : Seuil/Gallimard, 2008.
7 Y tal vez haya que añadir que para establecer la distancia que separa a la parresía de la retórica, Foucault se apoya también en un
filósofo estoico, esta vez latino, Séneca, concretamente en sus Cartas Lucilio ( § 29, § 38, § 40 y § 75).
8 Le gouvernement de soi et des autres, clase del 1 de febrero de 1984.
11
del periodista está ligada “ao problema da produção da verdade. Nessa perspectiva, há a
possibilidade e a capacidade de problematizar a verdade pelo questionamento do próprio
processo de produção”.
Lo que está en juego en este choque es asunto tanto del filósofo como del histo-
riador, decía Foucault al principio de estas páginas. Y ello era así en la medida en que
compartían la misma pregunta primordial : «Qu’est-ce qui se passe actuellement, et que
sommes-nous, nous qui ne sommes peut-être rien d’autre et rien de plus que ce qui se
passe actuellement?». Una pregunta, se recordará, cuyo alcance era inmediatamente polí-
tico… Sin embargo, a partir de la misma cuestión (la actualidad), no siempre Foucault ha
reclamado la presencia del historiador, no siempre ha entendido su propio trabajo privi-
legiando esa zona de vecindad. Merecen destacarse en este sentido otras declaraciones
suyas realizadas unos pocos años antes, en las que ya no piensa su quehacer como próxi-
mo al de los historiadores, sino que son otras las afinidades que descubre, mucho más inte-
resantes para lo que íbamos diciendo… Dice allí: «Je me considère comme un journaliste,
dans la mesure où ce qui m’intéresse, c’est l’actualité, ce qui se passe autour de nous, ce que
nous sommes, ce qui arrive dans le monde. La philosophie, jusqu’à Nietzsche, avait pour
raison d’être l’éternité. Le premier philosophe-journaliste a été Nietzsche. Il a introduit
l’aujourd’hui dans le champ de la philosophie. Avant, le philosophe connaissait le temps et
l’éternité. Mais Nietzsche avait l’obsession de l’actualité. Je pense que le futur, c’est nous
qui le faisons. Le futur est la manière dont nous réagissons à ce qui se passe, c’est la ma-
nière dont nous transformons en vérité un mouvement, un doute. Si nous voulons être
maîtres de notre futur, nous devons poser fondamentalement la question de l’aujourd’hui.
C’est pourquoi, pour moi, la philosophie est une espèce de journalisme radical».9
Un ejercicio de este periodismo radical que Foucault presentía es lo que Beatriz
Marocco ha imaginado, meticulosamente, en este libro. Es un ejercicio de pensamiento (la
filosofía siempre está cerca de lo que dice), de pensamiento que llama al pensamiento, a la
reflexión, al razonamiento. También a la consideración política del propio trabajo perio-
dístico. La tarea que éste tiene encomendada se encuentra hoy con dificultades que hasta
hace poco eran impensables, aunque siga siendo la suya la misma tarea de siempre: decir
los acontecimiento, narrar el relato de lo que nos pasa, construir la actualidad…
En el debate sobre las nuevas dificultades que han surgido en el ejercicio del trabajo
periodístico, es seguro que el estudio de Beatriz Marocco será de una ayuda inestimable.
Miguel Morey
L’Escala, otoño de 2019
9 “O mundo é um grande hospício” (entrevista con R.G. Leite), Revista Manchete, 16 junio 1973; en Dits et écrits, II, § 126; p. 434.
12
Capítulo I
Prática jornalística
O
que é concebido, produzido e visibilizado nas mídias recobre um regime de pro-
dução de discursos, que é regulado internamente por procedimentos de controle
discursivo, de um lado, por prêmios e recompensas, de outro. Alinhadas desde
sua constituição a uma rede de instituições sociais e a seus respectivos mecanismos de gestão das
populações, as mídias brasileiras têm acionado, com o seu funcionamento, um modelo de raciona-
lidade1 social e organizacional. Neste espaço heteromorfo, de dupla face – institucional e discursi-
vo –, originalmente evidenciado por Foucault na figura de uma “rede institucional de sequestro”
(Foucault, 1998, p. 129), os acontecimentos são representados em linguagem singular e por estraté-
gias discursivas próprias para nomeá-los, classificá-los, torná-los proeminentes ou silenciá-los. Em
relação aos indivíduos, a intelectual nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie sugere a aplicação do
“princípio de nkali”, que define como e quantas vezes as suas histórias são resumidas no bojo de
uma história única, incompleta, que simplifica a experiência de um povo a uma coisa só, e é “isso
que esse povo se torna”.
É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder. Existe uma pala-
vra em igbo na qual sempre penso quando considero as estruturas de poder no
mundo nkali. É um substantivo que, em tradução livre quer dizer “maior do que
outro”. Assim como o mundo econômico e político, as histórias também são
definidas pelo princípio de nkali: como elas são contadas e quantas vezes são
contadas depende muito do poder (Adichie, 2019, p. 22-23).
14
os efeitos de poder projetados na sociedade a que a circulação dá lugar. Indivíduos e
acontecimentos são matéria para a produção de discursos verdadeiros. Em relação aos
acontecimentos, o saber jornalístico possui um conjunto de enunciados que determinam
critérios de noticiabilidade e caracterizam uma diversidade de gêneros para encapsular o
real em determinados enquadramentos. Em relação aos indivíduos, naquilo que Foucault
denominou “práticas divisoras”, o sujeito é dividido em seu interior e em relação aos ou-
tros. Compreende-se aqui os diferentes sujeitos envolvidos na produção (os jornalistas)
e o objeto das ações das mídias (os indivíduos em geral). Os discursos que circularam na
imprensa no limiar de epistemologização do jornalismo são esclarecedores da função do
Estado na calibragem desta relação. No projeto de modernização das metrópoles, por
exemplo, os jornais brasileiros foram um agente das ações de governabilidade das popu-
lações ao dar visibilidade, consistência e regularidade aos acontecimentos protagonizados
pelas “classes perigosas”, situando-as à margem da ordem, do trabalho, da família burgue-
sa e das normas correntes na sociedade burguesa.
No final do século XIX, a imprensa brasileira falou como nunca sobre a vida e
as relações promíscuas de um conjunto de indivíduos, sobre becos de uns pou-
cos palmos de largura pelos quais costumavam vagar, sobre os cortiços velhos e
miseráveis em que viviam e as tavernas ruidosas que frequentavam. Dos pobres,
se dizia que todos eram virtualmente perigosos. Dos mendigos [...], que eram
agentes da depravação e profissionais das enfermidades falsas. Da prostituta, que
era um foco de imoralidade e de perigo para as “jovens incautas”. Do jogador
que era uma ameaça de contágio. Das crianças que perambulavam pelas ruas,
que eram os criminosos e as prostitutas de amanhã. [...]. Fruto dos discursos de
uma rede de instituições que o jornalista acolhia e anunciava em um conjunto de
crônicas diárias da desordem, do ruído e da imoralidade. Nelas, confusas mul-
tidões foram vigiadas e coagidas a ocupar uma nova taxinomia que, a diferença
das classificações medievais, que aproximavam pobreza e delinquência, designava
ambas categorias com o signo da “periculosidade”. Segundo estes textos já não
havia pobres bons ou maus, havia, isto sim, umas “classes perigosas” e sujeitos
marcados de negatividade porque estavam à margem do trabalho, da proprieda-
de, da família e das normas (Marocco, 2004, p. 15-17).
Nas versões dos jornais brasileiros, não havia lugar para os pobres nos centros ur-
banos; apenas deveria viver ali quem pudesse se submeter às regras e preceitos de higie-
ne: “Na cidade propriamente dita, só devem residir os que podem sujeitar-se às regras e
preceitos da higiene. Ora, num porão ou cortiço, não pode haver asseio e, consequente-
mente, a higiene desaparece” (Gazeta da Tarde, 17 de janeiro, 1898, apud Marocco, 2004, p.
27). Este modo de objetivação, que incluía os mais pobres na representação jornalística,
deu suporte às ações de uma rede de instituições que já havia permitido o nascimento de
outras formas de controle de algum modo clínico: o saber da psiquiatria, da psicologia e
da criminologia. Na constituição desses saberes, os próprios indivíduos, sobre os quais
se exerce o poder, foram o lugar para extração do saber que foi retranscrito e acumula-
15
do segundo novas normas (Foucault, 1998). No caso do jornalismo, constatou-se que a
contribuição a esta rede aliou a tecnologia de produção e distribuição rápida da imprensa
à observação minuciosa dos corpos movimentando-se na cidade, para produção e socia-
lização de “mapas da periculosidade” (Marocco, 2004, 2006, p. 7). A nova cartografia, de
natureza jornalística, calcada sobre a mobilidade urbana, era uma espécie de lado avesso
dos guias que orientam os deslocamentos corriqueiros.
No século XIX, com base na observação sistemática do movimento das pessoas, os
jornais salientaram os lugares e os percursos em que a polícia e o poder público deveriam
intervir para garantir a segurança da população e que deviam ser evitados pela burguesia,
ora pela falta de higiene e a sujeira, ora pela ociosidade e a imoralidade dos mais pobres
(Pesavento, 1994, Marocco, 2004). No interior desta rede encontra-se a gênese do pacto
do jornalismo com os governos, mais concretamente identificado no projeto de repres-
são à ociosidade e as profissões desonestas (Projectos 33 A-1888) e com a ratificação dos
planos de embelezamento das cidades, que em todo o mundo repercutiram os efeitos das
reformas de Hausmann em Paris (Marocco, 2004, p. 49). Ainda “isenta” de valores de-
rivados da objetividade jornalística, que influenciariam os procedimentos para apuração
dos acontecimentos, a imprensa produziu e fez circular ininterruptamente na sociedade,
os signos do alinhamento ao projeto de Estado para modernização e embelezamento das
cidades e “medicalização da sociedade brasileira” (Machado2, apud Marocco, 2004, p. 27).
Trata-se de uma matriz discursiva forjada em exigências econômicas imediatas e urgências
políticas de regulação social ditadas por uma cultura burguesa profundamente identificada
com a vida francesa.
A “objetividade” viria a ser emprestada da ciência, adaptada e posta em funciona-
mento no jornalismo somente algumas décadas mais tarde, para dar lustro de imparciali-
dade à produção industrial. A despeito da retórica, os restos do período anterior aparecem
frequentemente como pontas de iceberg no discurso jornalístico contemporâneo (Ma-
rocco, 2004, 2019). Diante de tais evidências na prática coetânea (ler “A reincidência do
acontecimento”, a partir da página 84), outra aresta adquire consistência nas interrogações
de pesquisa: como as ideias dominantes irrigam e circulam historicamente nas mídias e
fora delas?, ou, mais concretamente, como o poder, que está diretamente ligado às ativi-
dades finalizadas do que Foucault considera um “bloco”, ou uma “disciplina”, no caso, o
jornalismo, interfere nas ações de produção de saber sobre os acontecimentos para que
estes, sob a forma de relato, cristalizem os vencedores e os vencidos nas relações de poder
na sociedade? Neste espaço institucional/discursivo, instituições, discursos, sujeitos da
produção e a população podem ser tomados como peças de uma analítica do poder, mais
concretamente uma analítica das relações de poder múltiplas e móveis, que formulam os
jogos de dominação e resistência inerentes à existência social. Não é possível imaginar o
2 No original: MACHADO, Roberto et alii. A danação da norma. A medicina social e a constituição da psiquiatria no Brasil. Rio
de Janeiro: Graal, 1978.
16
discurso jornalístico somente como algo construído em conformidade com as normas
sociais vigentes e um modo de objetivação dos indivíduos e dos acontecimentos, que é
operado nas mídias. Existem muitas nuances à revelia desses elementos, que amplificam
a complexidade da prática e que são inerentes tanto à ambiguidade da linguagem como à
potência dos diferentes agentes.
Um conjunto de evidências dão conta do crescente interesse do campo acadêmico
pelo estudo da prática jornalística e das relações de poder nas mídias, em que se salien-
tam autores como Bourdieu, Giddens e Latour (Ryfe, 2018). Em diferentes graus, os três
autores consideram a interferência do poder no âmbito da prática. Bourdieu referiu-se
concretamente ao campo jornalístico e ao habitus como a estrutura que organiza a prática
e define o “sentido do jogo”, i.e., a lógica de um jogo de relações entre os agentes. Ainda
de Bourdieu, a noção de doxa pode ser emprestada para epistemologizar o chamado “faro
jornalístico” que é considerado, frequentemente, na manualística clássica, como uma ca-
racterística que diferencia o profissional das mídias. Já Giddens, na noção de dialética de
controle aponta para a possibilidade de que os sistemas de controle nunca podem fun-
cionar com perfeição, porque as pessoas sempre podem encontrar maneiras de resistir.
Neste cenário, pode-se salientar a oposição dialética entre “estrutura” (ou mundo social tal
como está constituído) e “agência” (ou as práticas interessadas de pessoas reais). Ortner
postula que o esquema em que Giddens imagina controle e resistência não situa o agente
na multiplicidade das relações sociais: enredado em relações de poder, de desigualdade,
de competição ou de solidariedade, que são definidores da “vida social [...] como algo ati-
vamente jogado, voltado para metas e projetos culturalmente constituídos e envolvendo
tanto práticas de rotina como ações intencionalizadas” (2007a, p. 46). Neste viés, Ortner
dá proeminência a uma “teoria da prática transformada” (2007a p. 57), ligada a questões
de desigualdade. Para além da intenção e do desejo individuais, sujeitos estrategicamente
posicionados, no âmbito dos “jogos sérios”, perseguem metas culturais dentro de uma
matriz de desigualdades locais e diferenciais de poder. Em relações maciças de poder,
como colonialismo e racismo, por exemplo, os dominados sempre têm certa capacidade
de resistência; exercem algum tipo de influência sobre a maneira como os acontecimentos
se desenrolam.
[...] de rebeliões sinceras em um extremo, passando, no meio, por várias formas
do que James Scott (1985) tão bem chamou de “fazer corpo mole”, até – no
outro extremo – um tipo de aceitação complexa e ambivalente das categorias e
práticas dominantes que sempre são modificadas no exato momento em que são
adotadas (Ortner, 2007a, p. 64).
Lashmar (2019) verificou que o aumento das pesquisas sobre prática jornalística,
com o apoio de teorias exógenas para compreensão do atravessamento da questão do po-
der, como foi constatado por Ryfe (2018), ocorreu simultaneamente à permeabilidade de
profissionais no ambiente acadêmico e à revisão da imagem construída do jornalista nas
17
teorias. O desenvolvimento desta vertente de estudo das práticas apoiou-se inicialmente
em duas peças-chave: a experiência de seu duplo vínculo – com o mercado e a academia
– e o estudo etnográfico que Morrison e Tumber desenvolveram durante a cobertura da
Guerra das Malvinas. Os autores estranharam que os repórteres britânicos se ocupassem
com o cotidiano da vida dos outros, contradizendo o que ambos haviam cristalizado sobre
eles na posição de leitores da produção acadêmica.
Reading the academic literature, one cannot help feel sympathy with the journa-
lists’ claim that the ‘outside’ has failed to get inside the trade: it is all too forma-
listic, too sterile, too serious; and it is not surprising that working journalists fail
to recognize the world they are supposed to inhabit (1988, apud Lashmar, 2019,
p. 13083).
3 Com base na literatura acadêmica, não se pode deixar de sentir simpatia pela afirmação dos jornalistas de que o ‘fora’ não con-
seguiu entrar neste comércio: é formal demais, estéril, sério demais; e não é de surpreender que os jornalistas que trabalham não
conseguem reconhecer este mundo que deveriam habitar (Morrison e Tumber, 1988, p. viii, apud Lashmar, 2019, p. 1308, trad. livre
da autora).
4 No geral, muitos dos textos consultados consideraram o jornalismo como hegemônico e monolítico na resposta a estes eventos,
em uma espécie de reatividade homogênea. O que eu argumento com mais força é que, embora alguns estejam em conformidade
com essa visão, a mídia nacional sempre inclui vozes não conformistas em relação aos meios de comunicação, equipes editoriais e
jornalistas que exercem agência. Houve esforços genuínos e consistentes de algumas equipes de notícias durante os anos 2000 para
fornecer relatórios perspicazes, imparciais e detalhados. Mas há um grande valor nos jornalistas que ficam fora de sua doxa por um
momento para refletir sobre sua prática, por mais dolorosa que seja (Lashmar, 2019, p. 1320, trad. livre da autora).
18
Na representação da guerra ao terror, o marco inicial estabelecido por Lashmar foi
a crise das Falklands, empacotada pela mídia brasileira na chamada Guerra das Malvinas.
Sobre a cobertura da mídia britânica, Robert Harris apontou mentiras, desinformação e
a manipulação da opinião pública pelas autoridades (1983, apud Lashmar, 2019, p. 1310).
Já no período relativo ao 11 de setembro, muitos jornalistas se alinharam a uma “impren-
sa patriótica”, epítome criada pelo ex-presidente Roosevelt e ratificada por Dan Rather,
âncora da TV ABC, no David Letterman show: “George Bush is the President, he makes
the decisions, and, you know, as just one American, he wants me to line up, just tell me
where5” (Navasky, 2002, p. XV). No âmbito acadêmico, o acontecimento refletiu uma
onda de “patriotismo acrítico” que fortaleceu a ofensiva global contra o terror e abalou
os conceitos de “distância crítica” e “observador isento”, tornando impossível a “repor-
tagem objetiva” (Jackson, 2005, Holloway, 2008, apud Lashmar, 2019, p. 1311). Nesta
ambiência midiática saíram fortalecidos os sentidos de uma entidade vitimizada tratada na
mídia como América: liberdade, civilização, inocência e guerra legítima.
... in the sense that it helped reconstruct the abstract collective entity threatened
by ‘terror’ – ‘America’, and the things ‘America’ meant in the dominant media
frame: freedom, civilization, innocence, resolve, victimhood, unity and the pur-
suit of justice via legitimate war6 (Holloway, 2008, apud Lashmar, 2019, p. 1311).
Para produzir outros sentidos sobre a cobertura, com o aporte de sua experiência,
Lashmar reuniu 50 textos do IoS publicados entre 9/11 e 7/7, assinados pelo time de jor-
nalistas que operava no quadro de valores-notícia reconhecido como “guerra ao terror”.
Neste enquadramento, segundo Lashmar, houve simultaneamente controle na seleção dos
relatórios no processo de edição e agência dos correspondentes na cobertura dos aconte-
cimentos: “We strove to be topical, fair, accurate, insightful, concise and to engage with
the reader7” (2019, p. 1313). Especificamente em relação aos atentados de 7/7, em que
56 pessoas morreram e mais de 700 foram feridas, Lashmar sinalizou a emergência de um
modelo alternativo para a narrativa do governo, com base no uso de fontes:
The IoS relied on politicians public statements, the then much rarer public utte-
rances from intelligence chiefs, the voice of retired security officials and acade-
mics with knowledge of terrorism. Over this time, contacts with security services
were either informal (confidential sources) or formal (if non-attributable). Still,
those I uses provided the IoS with a different picture of the politicization of
intelligence8 (Lashmar, 2019, p. 1313).
5 “George Bush é o presidente, ele toma as decisões e, como apenas um americano, ele quer que eu faça fila, apenas me diga onde.”
(Navasky, 2002, p. XV, trad. livre da autora).
6 ... no sentido de que ajudou a reconstruir a entidade coletiva abstrata ameaçada pelo ‘terror’ - ‘América’ e as coisas ‘América’ signi-
ficadas no quadro dominante da mídia: liberdade, civilização, inocência, resolução, vitimização, unidade e busca da justiça via guerra
legítima (Holloway, 2008, apud Lashmar, 2019, p. 1311, trad. livre da autora).
7 “Nós nos esforçamos para ser tópicos, justos, precisos, perspicazes, concisos e nos envolver com o leitor” (Lashmar, 2019, p.
1313, trad. livre da autora).
8 “O IoS usou declarações públicas de políticos, declarações públicas muito mais raras de chefes de inteligência, a voz de oficiais
de segurança aposentados e acadêmicos com conhecimento de terrorismo. Durante esse período, os contatos com os serviços de
19
Ao contrário do segmento da imprensa que seguia um “patriotismo linha dura9”, o
IoS criticou a intenção inicial do governo Blair de invadir o Iraque. Essa posição foi as-
similada organicamente pela equipe de notícias e ratificada a nível editorial, após a prisão
de Richard Reid, seguidor confesso do dissidente saudita Osama Bin Laden. Ao longo do
desenvolvimento da narrativa jornalística sobre o 7/7, ficou claro que o atentado tinha
ligação com a “guerra ao terror”. No primeiro texto, os repórteres já informaram “quem
era o inimigo”:
If we are Fighting a ‘war on terror’, then al-Qa’ida is clearly the enemy. But even
before it was disrupted by the fall of the Taliban in Afghanistan, and the arrest
of many members of its inner circle, it was never an organisation with a clear
hierarchical structure. It has always been as much an ideology as a tangible group.
‘Trying to hit al-Qa’ida is like trying to hit jelly’, said one intelligence source. ‘One
minute you think you know who is running it, and next minute you feel you have
no idea10’ (Withaker and Lashmar, 2005a, apud Lashmar, 2019, p. 1314).
20
do IoS da “guerra ao terror”, a orientação relativamente passiva em relação às definições
das fontes poderosas e autoritárias coexistiu com a agência dos jornalistas em relação a
questões como o descolamento da versão oficial do governo sobre os atentados, até a
escuta de fontes oficiais, fora do bloco homogêneo, e não oficiais, protegidas pelo sigilo.
At the IoS, the team was acutely aware of the problem of anonymous official
sources and as such the practice was to evaluate their commentaries and subject
them to assessment wherever possible. At the same time, I, for example, was also
dealing with non-official, long-standing contacts within the intelligence agencies.
At the time, the then Homme Secretary John Reid castigated unofficial sources
as a ‘rogue element’ on the BBC’s Today programme specifically referring to my
sources12 (Lashmar, 2019, p. 1316).
12 “No IoS, a equipe estava ciente do problema de fontes oficiais anônimas e, como tal, a prática era avaliar seus comentários e
submetê-los à avaliação sempre que possível. Ao mesmo tempo, eu, por exemplo, também estava lidando com contatos não oficiais
de longa data dentro das agências de inteligência. Na época, o então secretário de Homme, John Reid, castigou fontes não oficiais
como um ‘elemento nocivo’ no programa Today da BBC, referindo-se especificamente às minhas fontes” (Lashmar, 2019, p. 1316).
13 Tuchman (1980) relacionou rotinas de produção a uma tipologia de acontecimentos; neste caso a noção de acontecimento em
desenvolvimento vem ao encontro da argumentação de Lashmar.
14 “nunca foi considerado secundário” (Lashmar, 2019, p. 1317, trad. livre da autora).
15 [...] o papel das vozes comuns foi importante na cobertura da IoS e não algo que subestimamos, como sugerem alguns estudos
acadêmicos. Depois de citar a cobertura diária do Independent, no dia seguinte ao 7/7, em que um texto é conduzido pelo depoi-
mento de testemunha ocular e sobrevivente de uma explosão de tubo Zeyned Basci, após apropriar-se da noção de ‘ferida nacional’,
de Zelizer e Allan sobre trauma, Julian Matthews (2016) declarou que os jornais não posicionam as fontes comuns em posições
privilegiadas em sua cobertura diária. Nesse momento, eles as incluíram como pontos de referência para comentários mais amplos
sobre a ferida social (Lashmar, 2019, trad., livre da autora, p. 1317).
21
“processo de radicalização”, mas este esforço produziu poucos resultados. A produção
de informações mais complexas sobre o contexto são geralmente um problema para as
mídias. “[...] it is hard to know what we would have done otherwise and that will remain
for others to deconstruct, analyse and judge16” (Lashmar, 2019, p. 1318). Há exceções, em
que o jornalismo pode se adiantar a História, como ocorreu, por exemplo, com a posição
da equipe de jornalistas em relação à intenção do governo Blair de invadir o Iraque, em
2003. Somente 13 anos depois, o ceticismo dos jornalistas repercutiu nas conclusões do
inquérito Chilcot, sobre as avaliações falhas e a invasão precipitada, antes que todas as vias
pacíficas fossem descartadas. “History has confirmed the IoS teams scepticism over the
origin and execution of the Iraq war, though the Chilcot inquiry took many years to reach
similar conclusions17” (Lashmar, 2019, p. 1318). Os insights incorretos também influencia-
ram a equipe, como, por exemplo, sobre a operação de segurança Operation Overt de 2006,
que produziu ondas de prisões no Reino Unido e no Paquistão. A suspeita dos jornalistas
era de que havia exagero e que isso iria espalhar pânico na população. No entanto, no de-
senrolar do acontecimento, as forças de segurança conseguiram frustrar o plano e prender
os britânicos, que pretendiam lançar ataques suicidas a bomba contra uma sucessão de
companhias aéreas. Na análise dos 50 textos produzidos pela equipe, outras frustrações
foram apontadas como consequência do tempo de produção de uma investigação e do
processo de edição dentro das organizações midiáticas.
Often lost to the team at the IoS was the chance to oversee alterations to an ar-
ticle before publication. Occasionally, I was unhappy with the way material had
been used when reading the printed version. Sometimes, headlines overstated
the story. Time constraints played an important role in the process addition to
the work of the compiling editors. Having barely 2/3 days to work upon a com-
missioned story, even if I was drawing on man years of reporting this specialist
area, did not warrant senior editors branding as ‘An Independent on Sunday In-
vestigation’. This practice undermined the notion of well-resourced and lengthy
investigations in which Sunday newspapers had once earned, as Champagne puts
in it, their ‘legitimacy’18 (Benson and Neveu, 2005, p. 58, apud Lashmar, 2019, p.
1318).
22
fontes confidenciais, a equipe do IoS demonstrou a existência de “agência jornalística”
na contextualização dos ataques, que não foi reconhecida pelos textos acadêmicos con-
sultados por Lashmar. Ao mesmo tempo, ao sintetizar a atuação dos jornalistas, Lashmar
pode constatar que parte da imprensa britânica se revelou partidária de um nacionalismo
exacerbado19 e negativo a qualquer forma de percepção do “Outro” que não fosse baseada
no senso comum das audiências. Neste segmento, Lashmar localizou ainda a ocorrência
rotineira de práticas como hackeamento de telefones, pagamento por informação de fon-
tes e contratação de detetives para invasão de privacidade em escala industrial.
Em pesquisas realizadas desde 2009, tem-se localizado no livro de repórter as se-
guintes características que aproximam o trabalho de certos repórteres de um outro modo
de fazer jornalismo e que podem ser aproximadas de um elenco de teorias que foram sen-
do apropriadas no processo de investigação: 1) crítica das práticas jornalísticas. Exige um
trabalho de reflexão sobre os fundamentos da racionalidade jornalística que são válidos no
campo institucional e um trabalho de negação das formas de subjetivação que foram im-
postas pela máquina de produção jornalística, neste sentido, a crítica empreendida estará
mais centrada na descoberta do próprio conhecimento com o qual o indivíduo “não terá
mais que escutar o obedeça; ou antes, que o obedeça estará fundado sobre a autonomia
mesma” (Foucault, 1990, p. 6). Trata-se de dar visibilidade, com a crítica, à “mecânica
quase invisível” e, portanto, difícil de questionar das mídias (de Botton, 2015, p. 11); 2)
presença do corpo e exposição às sensações na relação dialógica com o outro. Essa atitu-
de contraria a racionalidade do saber jornalístico que impõe a neutralidade do repórter e
suspende o uso do corpo e das sensações que lhe correspondem; 3) governamentalidade
dos sujeitos do jornalismo para fazer valer a sua liberdade de sujeito e a relação com os
outros, que se constitui na própria matéria da ética (Foucault, 2006); 4) função diferencia-
da para a fonte jornalística; 5) desenvolvimento de um trabalho intelectual que aproxima
jornalista e filósofo nas ações de acontecimentalização para acionar as técnicas de produ-
ção da crítica ao jornalismo, sob a forma de reconhecimento do presente (Foucault, 1980;
Marocco, Zamin e Boff, 2014). Neste sentido, a forma reducionista da pirâmide invertida
é substituída pelo poliedro de inteligibilidade (idem, ibidem); 6) associação entre produção
de reportagens diferenciadas e autoria de outros materiais. Seja na literatura, seja no docu-
mentarismo, na reportagem, ou no livro de repórter, certos repórteres provocam um giro
na autoralidade jornalística e estendem o jornalismo das mídias dominantes para outros
espaços (Marocco, 2018).
A escuta dos repórteres foi desencadeada por um questionário enviado por e-mail a
269 repórteres do interior do RS e a 477 de Zero Hora, Folha de S. Paulo e O Estado de São
Paulo, de 18 de maio a 17 de agosto de 2010. Entre os primeiros, obtivemos uma taxa de
resposta de 21,18% (57 respostas para 269 e-mails). A taxa de resposta do segundo grupo
foi de 15,30% (73 respostas para 477 e-mails). No total da pesquisa, a taxa de resposta
23
atingiu 17,42% (130 respostas para 746 e-mails). A escolha dos repórteres de 51 jornais
gaúchos, com exceção da capital, ocorreu em dois movimentos: o primeiro, de atualização
da lista de jornais apresentadas por Dornelles (2004); a segunda, de atualização da base
de dados da Associação Riograndense de Imprensa – ARI, ano de 2004. Da relação de
jornais, optamos por alterar os jornais das regiões Planalto e Serra. Na primeira, porque o
jornal A Notícia Ilustrada, de Panambi, não existe mais. Nesta região, optamos pelos jornais
O Nacional, de Passo Fundo, e Jornal da Manhã, de Ijuí. Na região serrana, acrescentamos o
jornal O Pioneiro, de Caxias do Sul. Como o propósito era abranger um número expressivo
de jornais e, consequentemente, de jornalistas do interior gaúcho, optamos por ampliar
nossa base de dados a partir do Anuário de Mídia, de 2004, da ARI. Nesta fase, buscamos
atualizar a relação de jornais de 170 municípios gaúchos, independente da região, tiragem
ou circulação. Após contatos por telefone ou e-mail, 51 jornais, de 49 municípios gaúchos,
responderam positivamente quanto à participação de suas equipes na pesquisa, indicando
os respectivos endereços eletrônicos.
A formação do segundo grupo de repórteres foi baseada na leitura diária de Zero
Hora e dos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo considerados referência na esfera
estadual (ZH) e nacional (Folha e OESP). Os endereços eletrônicos dos repórteres da Fo-
lha de S. Paulo foram fornecidos pelos jornais após um contato preliminar com a ombudsman
da FSP e um período de negociação em que foram enviados os detalhamentos da pesquisa
e as questões referentes ao questionário, para análise da direção. Os endereços dos repór-
teres de OESP não foram fornecidos pelo veículo, o que nos levou, após várias tentativas,
a seguir uma sugestão informal de um jornalista conhecido para acionar os repórteres
diretamente por seu e-mail institucional que corresponde à identidade (primeiro nome.
sobrenome) seguida do complemento [@grupoestado.com.BR]. ZH geralmente disponi-
biliza os endereços dos repórteres nas matérias assinadas; os que não foram encontrados
deste modo foram localizados no site do grupo RBS. Os contatos com os repórteres
foram feitos exclusivamente por e-mail.
A enquete foi aplicada entre maio e agosto de 2010. Na primeira fase de aplicação,
em jornais do interior gaúcho, o questionário foi enviado para o correio eletrônico de 269
repórteres, enquanto na segunda, a dos jornais de referência, a 477. Entre os primeiros,
obtivemos uma taxa de resposta de 21,18% (57 respostas para 269 e-mails); no segundo
grupo a taxa foi de 15,30% (73 respostas para 477 e-mails). Sobre onde e como se apren-
de jornalismo, houve unanimidade entre os repórteres dos dois grupos: a competência
jornalística se adquire na prática do jornalismo, em que a orientação se dilui em várias
situações. Na transmissão da “pauta”, a orientação é imprescindível. Nos outros processos
de produção, a orientação foi vinculada, por ordem de importância, à coleta de dados, or-
ganização e hierarquização dos dados. Cerca de 30% dos repórteres pertencentes aos dois
grupos consideram que a cultura pessoal, adquirida previamente, substitui a orientação
24
no trabalho e menos de 10% entre eles acreditam que a orientação na redação pode ser
substituída pelo conhecimento adquirido na universidade.
Entre três figuras que detêm e irradiam o saber jornalístico, os expoentes da profis-
são, o chefe de redação e os repórteres mais experientes, quem mais auxilia na incorpora-
ção do saber jornalístico são os últimos. A opção foi compartilhada por cerca de 30% dos
repórteres da amostra; os veteranos foram seguidos pelos expoentes da profissão, men-
cionados principalmente pelos repórteres do primeiro grupo (15% contra 9% do segundo
grupo), e do chefe de redação, apontado por cerca de 6% dos repórteres dos dois grupos.
O chefe de redação, no entanto, se sobressai em termos de influência na carreira compa-
rado ao diretor de redação. Os editores foram considerados mais influentes que ambos e
ficaram próximos, em termos de influência, aos repórteres de outros veículos.
Em relação ao exercício contínuo como forma de aprendizado da profissão, a maio-
ria concordou: é com a prática que se aprende a fazer jornalismo (77% do primeiro grupo
e 79,5% do segundo responderam positivamente à assertiva); no entanto isto não depende
somente do que circula na redação – o sentido de “notícia”, por exemplo, é apreendido
no exercício diário (75% e 84%, respectivamente do primeiro e segundo grupo), embora
se reconheça que o curso de jornalismo colabore de algum modo com isso. A redação é
o lugar onde se ensina, por ordem de adesão, as técnicas seguintes: 1. A buscar o ângulo
mais atraente da estória; 2. A considerar sempre o que é mais relevante para a sociedade;
e 3. A ter “faro” para a notícia. A afirmação de que um bom repórter deve aceitar as nor-
mas jornalísticas foi corroborada por mais de 70% dos repórteres, enquanto cerca de 20%
dos repórteres dos dois grupos não concordam com isso. Entre os repórteres do interior
gaúcho, 33% afirmaram que usam manual de redação do próprio jornal, 25% de outro
jornal e 42% afirmaram que não usam a ferramenta. Quanto às funções dos manuais de
redação, ambos os grupos concordaram que a principal delas é a de orientação relativa a
normas e estilo (80%). Para encaminhar questões éticas, uma minoria costuma recorrer
aos tradicionais livros de estilo, enquanto um número um pouco mais alto relaciona a fer-
ramenta à linha editorial.
Apenas um repórter não respondeu à questão “O fundamental é ter ética?”; os ou-
tros concordaram com a afirmação. No entanto, não é na redação que se aprende ética.
Para quase 60% dos respondentes, os limites de um comportamento ético são ensinados
pela família; o restante dividiu a função entre os códigos de ética (19% e 14%, respecti-
vamente do primeiro e segundo grupo), professores (16% e 12%, respectivamente do
primeiro e segundo grupo) e colegas de redação (5% no primeiro e 14% no segundo). O
comportamento em relação às fontes, que pode ser atribuído à esfera da ética, e está estrei-
tamente ligado à imparcialidade jornalística, foi considerado como “de respeito mútuo”
pela maioria dos respondentes do primeiro grupo (61%) e por 39% do segundo grupo. O
restante afirmou que se trata de uma relação de confiança (19% do primeiro grupo e 25%
do segundo) e de independência (5% do primeiro grupo e 19% do segundo grupo). Para
25
a maioria dos respondentes, o repórter é um confessor público à medida que ele ouve a
verdade que emana do público e facilita a divulgação deste discurso para a sociedade. No
entanto, mais da metade dos repórteres concordaram com a afirmação de que “nunca é
possível saber se uma afirmação é 100% verdade”.
Para 20% dos repórteres, no caso de dúvida sobre o que pode ou não ser dito no
texto, há necessidade de consultar o chefe, o colega (3%), ambos (38% do primeiro grupo
e 27% do segundo) ou o manual de redação (3% e 7%). O restante dos repórteres, (30%
do primeiro grupo e 47% do segundo) não consulta ninguém porque acredita saber o que
pode ser dito. Para a maioria dos repórteres, a tomada de decisões na redação está bem
distribuída. Isto não significa que o poder de veto a uma matéria esteja diluído: mais de
90% dos repórteres que participaram da enquete reconheceu na figura do chefe o poder
para vetar uma matéria, enquanto a metade dos repórteres dos dois grupos afirmou já ter
sido censurado em seu trabalho. Um número levemente inferior (47% do primeiro grupo
e 51% do segundo) afirmou o contrário. Mais de 70% de repórteres dos dois grupos reco-
nheceram que relatam os acontecimentos da realidade que gostariam de relatar, enquanto
os demais afirmaram que não fazem isso. Na esteira dessas interrogações acerca do poder
em diferentes instâncias, 36% dos repórteres afirmaram localizá-lo “nas palavras”, en-
quanto 27% localizaram o poder no conjunto formado por jornalistas, jornais e palavras.
Se analisado de maneira isolada, o primeiro grupo concentra o maior percentual de re-
pórteres que relacionam o poder à palavra (40% sobre 33% do segundo grupo); enquanto
há uma inversão na associação do poder com o jornal (14% dos repórteres do primeiro
grupo contra 29% do segundo). Por outro lado, ambos os grupos são céticos em relação
ao empoderamento dos repórteres; uma minoria deles liga o poder ao jornalista (4%).
A ideia de que os repórteres tenham certa sintonia com a função de informar o
público ficou muito clara na questão em que se pediu para os participantes descreverem
o jornalista. O item “um defensor do interesse público” foi escolhido por 38% do total
de respondentes, com pequena margem de diferença entre um e outro grupo, enquanto
30% optaram pela assertiva “um prestador de serviços”. Já 14% (19% do primeiro gru-
po e 11% do segundo) consideram que o jornalista é alguém em busca da verdade; 8%
(9% do primeiro grupo e 8% do segundo), que é um questionador do status quo social; e
8% (5% do primeiro grupo e 10% do segundo) que é alguém que produz palavras, sabe
escrever sobre a realidade do mundo. Em relação a um conceito sobre si, 37% (32% do
primeiro grupo e 42% do segundo) dos jornalistas optaram pela assertiva “um trabalhador
assalariado”. O restante divergiu: no primeiro grupo, 30% dos repórteres se consideram
“um escritor”, 23% “um intelectual mal remunerado” e apenas 12% “um vigia do poder
público”; enquanto no segundo conjunto de repórteres 14% se consideram “um escritor”,
10% “um intelectual mal remunerado” e 29% “um vigia do poder público”. Em relação
à sociedade, 49% (50% do primeiro grupo e 47% do segundo grupo) acreditam que o
jornalismo seja um instrumento para informar o público; 28% (34% do primeiro grupo e
26
24% do segundo), que seja meio de expressão de grupos e pessoas; 20% (11% do primeiro
grupo e 26% do segundo), que seja um instrumento para vigiar o governo.
A despeito do que pensa Dent (2008) sobre a não ocorrência nas mídias do co-
mentário sobre o próprio jornalismo, nossa hipótese é que, além dos comentários que
conhecemos em nosso sistema de cultura – os textos religiosos ou jurídicos –, outro tipo
de texto, como o literário, os textos que têm pretensão de cientificidade e alguns materiais
jornalísticos, possam ser enquadrados como tal. Para testar a pertinência da hipótese de
que os livros escritos por jornalistas formalizam a existência do comentário à medida que
cumprem um duplo papel: a) Atualizam os textos que regulam o jornalismo (quer estejam
nas teorias, quer nos manuais de redação); b) Auxiliam a compreensão da FD e do que
“estava articulado silenciosamente no texto primeiro”, fizemos a pergunta “Os livros es-
critos por repórteres auxiliam você a compreender as práticas?”. Em termos percentuais,
37% da amostra respondeu que os livros auxiliam nas práticas; 47% que auxiliam às vezes;
14% que não auxiliam; e 1% deixou a questão em branco. O desdobramento dado para
a questão na pergunta “Neste tipo de literatura qual o primeiro título ou autor que vem
a sua cabeça?”, foi respondido por 90 repórteres. Os repórteres brasileiros mais citados
foram Caco Barcellos (21 menções), Eliane Brum (6) e José Hamilton Ribeiro (4). Outros
autores citados: Truman Capote (15 menções), Gay Talese (5), Gabriel Garcia Márquez
(4). Dos 90 repórteres que indicaram autores, 48 deram títulos de obra. Caco Barcellos
foi o autor dos dois “livros reportagem” mais mencionados pelos repórteres: Rota 66 (10
menções) e Abusado (4 menções). O olho da rua e A vida que ninguém vê, de Eliane Brum,
receberam respectivamente 3 e 4 menções. Outros livros citados: A sangue frio, de Truman
Capote (6 menções) e A arte de fazer um jornal diário, de Ricardo Noblat (3 menções).
Com o que foi dito pelos dois grupos de repórteres foi possível inferir elementos
consistentes de um regime de práticas próprio do saber que circula ininterruptamente
nas redações e que essas se constituem em espaços singulares de aprendizagem e repro-
dução das normas para o exercício da profissão e do compromisso do jornalismo com a
sociedade. Nos movimentos exploratórios deste saber ordenado foi possível localizar as
regularidades e os desvios que dão consistência às relações de poder e as estratégias de
resistência. O comentário identificado nas ações de alguns repórteres, que se desgarraram
da positividade jornalística, como uma disciplina de fronteiras absolutas, abriu uma linha
derivada de investigação. Com a realização de uma série de entrevistas com jornalistas
(Marocco, 2012), foi possível pleitear a existência de uma hermenêutica jornalística, no
sentido foucaultiano de “retomada, através do sentido manifesto de um discurso, de um
sentido ao mesmo tempo segundo e primeiro, isto é, mais escondido porém mais funda-
mental” (Foucault, 1990, p. 390).
No âmbito das práticas jornalísticas, seguindo o caminho aberto por Dent (2008),
foi possível constatar que a redação se configura como um espaço de controle das frontei-
ras do saber, ou seja, é no seu domínio e no exercício da profissão que os repórteres ad-
27
quirem competência, que está diretamente relacionada à orientação nas diferentes etapas
do processo produtivo e às normas que circulam nos manuais e no exercício da profissão.
Neste sentido, poder-se-ia afirmar que as práticas em seu funcionamento, exploradas pela
ação teórica que foi empreendida com base na conjunção da memória do pesquisador, dos
conceitos foucaultianos e das ideias dos repórteres capturadas em seu lugar de pertença, a
redação, se insinuam como uma instância para a compreensão do jornalismo que se dife-
rencia de outras linhas já percorridas pela pesquisa da profissão e das rotinas profissionais.
No que foi dito pelos repórteres, somente a questão ética não pode ser circunscrita ao
espaço das redações: para todos os respondentes, em jornalismo é fundamental ter ética,
mas é na esfera da família que a maioria localiza a sua transmissão e a constituição do su-
jeito ético. Outra instância de produção de saber, a universidade, é um dado desprezível na
formulação do saber que circula nas redações e da ética que o sustenta, segundo avaliação
dos dois grupos de repórteres.
Em pontas da superfície que se dão a ver nas respostas dos repórteres ficou eviden-
ciada a solidez do saber jornalístico em torno de procedimentos de controle que definem e
que permitem ao jornalismo ser como ele é, independentemente das teorias, da academia e
das particularidades institucionais. Assim, embora nas circunstâncias em que foram ouvi-
dos, os grupos de repórteres não compartilhassem mais com a categoria um território de
trabalho regulamentado (recentemente o instrumento do diploma como obrigatório para
o exercício da profissão foi derrubado pela justiça brasileira), foram, isso sim, capazes de
forjar e cristalizar um saber jornalístico que aproxima diferentes redações num processo
ininterrupto de circulação e partilha de procedimentos disciplinares que têm sido afirma-
dos há quase dois séculos para dar os contornos da formação discursiva e que poderá ser
posto à prova em outras ações de escuta anunciados anteriormente.
Em síntese: três elementos podem ser considerados centrais para a existência do
saber jornalístico, à medida que foram reconhecidos pela totalidade dos repórteres: o exer-
cício contínuo como forma de adquirir disciplina, i.e., competência jornalística e o poder
do “chefe” de vetar uma matéria. Outros elementos foram reconhecidos pela maioria. A
redação é o lugar de aprendizado. O sentido de notícia se produz nas práticas e não na
academia. A obediência às normas jornalísticas teve um alto índice de concordância, mas
não unanimidade. O uso de manual de redação aproximou a maioria dos repórteres – que
costumam recorrer ao manual em função de normas e estilo – e afastou-os. Os repórteres
de ZH, FSP e OESP, que utilizam a ferramenta, recorrem ao manual próprio da empresa
jornalística, enquanto o grupo de repórteres dos jornais do interior do RS evidenciou
que utiliza manuais de outros jornais, o que corrobora o conceito de jornais de referência
que adotamos na pesquisa “Os controles discursivos e o saber jornalístico que circula
nas redações” (Marocco, 2009, 2012). Há elementos que estão rarefeitos no âmbito das
práticas. O poder é um deles. Os jornalistas têm poder, as palavras idem, mas o poder
foi localizado, principalmente, em ambos. Já o poder de vetar uma matéria, como vimos
28
anteriormente, é prerrogativa da figura do “chefe”. Em relação à importância social do
jornalismo, os repórteres se dividiram entre a defesa do interesse público ou a prestação
de serviços e desprezaram a concepção de instrumento de reprodução das ideias domi-
nantes na sociedade.
Por outro lado, é importante frisar, que para chegar a esta compreensão do jorna-
lismo como uma formação discursiva, disciplinada e epistemologizada, realizamos um
conjunto de movimentos metodológicos sintonizados com a intenção de explorar as prá-
ticas desde uma postura de intimidade com elas, distanciando-nos de elementos como a
ideologia, a observação calculada de rotinas ou de elementos externos a elas que poderiam
confirmar a existência de uma “comunidade interpretativa” de jornalistas (Zelizer, 2000).
A experiência do pesquisador foi posta em jogo na realização da enquete e na problema-
tização dos conceitos foucaultianos de procedimentos de controle discursivo, apropriados
anteriormente por Dent para o jornalismo. Trata-se, portanto, de uma tentativa de cap-
turar essa espécie de discurso, que se manifesta nas redações em seu estado nu, espaço
em que não esconde uma ordem do discurso e um regime de verdade dominante, que
enquadra o seu exercício e o projeto de demonstrar o seu poder para a sociedade, nem o
controle interno que lhe possibilita ser tão singular. O próximo movimento, descrito nas
linhas que seguem, empregou a entrevista como metodologia de coleta de dados, afeita
tanto ao jornalismo como a diferentes áreas do conhecimento.
Segundo movimento
A saliência no mercado jornalístico, a memória da pesquisadora, a menção a colegas
pelos repórteres que responderam à enquete foram critérios para escolha dos entrevista-
dos. Em sua totalidade, esta pequena coleção de entrevistas formulou a trajetória de jorna-
listas que viveram sob diferentes condições de produção, mas compartilharam experiên-
cias ao longo da carreira de aprendizagem/ensino do jornalismo no ambiente das práticas.
O que se pensou com este movimento foi operar um deslocamento do proselitismo da
representação, que aprofunda o desvão entre as práticas no nível de produção e a produ-
ção de discursos acadêmicos, e uma retomada dos estudos, planejados desde Weber nas
primeiras décadas do século passado, que se ocupam do jornalismo em seu funcionamen-
to e com o protagonismo dos jornalistas. Num esforço pioneiro para desenvolver uma
Zeitungswissenschaft (sociologia do jornalismo), Weber apresentou um projeto de investiga-
ção que não chegou a levar adiante e que envolvia a cooperação de jornalistas e teóricos.
Com as entrevistas, o projeto era continuar esquadrinhando as práticas dando a
palavra aos jornalistas, o que foi feito de outubro de 2010 a dezembro de 2011, com a
realização de 17 entrevistas. Em termos metodológicos, a entrevista deu acesso ao fluxo
contínuo de conduta e às formas materiais de expressão da atividade através de uma des-
crição familiar do cotidiano dos jornalistas. No âmbito da teoria da estruturação (Giddens,
2009), parece que não haveria nada melhor para tentar entender as práticas do que deixar
29
o jornalista falar por si próprio. Para Giddens, concentrar a análise nas atividades con-
textualmente situadas significa empreender simultaneamente uma descrição refinada da
motivação e uma interpretação da dialética de controle, à medida que grupos ou tipos de
atores têm a capacidade de influenciar as circunstâncias da ação de outros.
Nas lutas pelo poder, a dialética de controle opera sempre, embora o uso que os
agentes em posições subordinadas podem fazer dos recursos a que têm acesso
difira muito substancialmente entre contextos sociais distintos (Giddens, 2009,
p. 334).
30
não contaminou o trabalho, tendo em vista que as posições foram reconhecidas previa-
mente entre os participantes. Em todas as entrevistas, predominou como atributo dos jor-
nalistas, a posição responsiva ativa de falante/informante, de contador de suas histórias e
de sua performance/rotinas, desde as informações da atualidade, até as relações que essas
provocavam nas camadas mais arcanas de memória que estão ligadas à profissão, inclusive
as situadas na infância. Sem que a memória sobre algumas atividades, como o hábito de
leitura, por exemplo, tenham sido pontuadas pelos pesquisadores, acabaram ganhando
proeminência em muitas falas sobre a trajetória profissional, a ponto de serem incorpora-
das, durante o processo, às questões de investigação. No espaço discursivo formulado por
cada uma das entrevistas, ou nos atravessamentos entre elas, foram aparecendo caracterís-
ticas comuns, não somente em relação às práticas jornalísticas, mas para além do exercício
da profissão. A leitura de livros e as atividades lúdicas com jornais e revistas foram reco-
nhecidos por vários jornalistas.
Eu sempre fui fascinado pelo jornalismo. Na minha pequena cidade, Marcelino
Ramos, tive uma espécie de orientador nas leituras. Acho que por aí começa
tudo. Esse cidadão era secretário do meu pai na prefeitura municipal [...]. Ele era
filho de um juiz de direito, um homem que lia muito, que tinha uma bagagem
cultural grande, e ele foi quem me orientou. Eu era um menino de 15 anos, de
uma família simples, e desde cedo me interessei por leitura. Uma das primeiras
providências de meu pai foi criar uma biblioteca. [...]. Naquela época, não existia
uma ponte rodoviária para atravessar o rio Uruguai. A cidade era o último ponto
da rodovia férrea, por onde se podia deixar o estado e ir para Santa Catarina. [...].
E havia um noturno das 22h, era uma velha maria fumaça que chegava todo dia
às 22h, e um dos vagões era dos Correios. Eu ia toda noite lá para apanhar as
sobras de jornais e revistas que vinham no carro dos Correios com os malotes.
Era um fascínio pela revista e pelo jornal. E o trem exercia um fascínio também
sobre mim, motivador da minha vontade de partir para o mundo (De Grandi,
apud Marocco, 2012, p. 26).
Aprendo a ler, aos sete anos, e só então a infância deixa de ser um território
inóspito. Os livros me salvam da infância. E passo a ler vorazmente e através dos
livros a viver outras aventuras e ser outros personagens. Desde então leio todos
os dias (Brum, apud Marocco, 2012, p. 72).
Eu sempre li muito, muito, muito, muito. Eu lia tudo, tudo que me caía nas mãos.
Comprava muito livro, sempre gastei muito dinheiro com livro, torrava dinheiro.
Adorava livraria. Acho que a leitura é fundamental para contar uma boa história,
falando em termos de texto (Gleich, apud Marocco, 2012, p. 51).
Eu quase nasci jornalista. Desde muito pequeno, sempre tive um enorme interes-
se em jornal, revista, radiojornalismo, telejornalismo. Meu primeiro veículo jor-
nalístico, o primeiro lugar onde trabalhei, era uma revista familiar, doméstica, que
fazíamos eu e o meu irmão. Eu tinha oito anos de idade. Aquilo durou um ano,
um ano e pouco. [...]. A revista tinha notícias nacionais, internacionais, esporte
e notícias da família, em que fazíamos entrevista com os familiares. [...]. Depois
continuei mantendo jornais só para mim até os 16 anos de idade, fazia jornais,
31
às vezes diários, e só eu lia. Não era um diário, era um jornal mesmo. Eu colava
fotografias, comentava os assuntos. [...]. Era uma folha de papel e depois cresceu,
virou A3. [...]. Nesta época, escrevia na Tribuninha, uma espécie de suplemento
infantil do jornal A Tribuna, de Santos (Lins da Silva, apud Marocco, 2012, p. 51).
Eu nunca pensei em ser jornalista. Eu não tenho o curso de jornalismo, fiz dois
cursos universitários totalmente dissimiles, um foi Biologia, que não concluí, de-
pois fiz Direito. E caí no jornalismo profissional por acaso. Eu nasci em 1934, e
meu primeiro jornal era um jornal oral no Grupo Escolar de Lajeado, tinha nove
anos. De fato, quem fazia era a professora, eu só lia. Mas houve um dia em que fiz
o jornal. Eu morava em uma cidadezinha do interior onde, naquela época, pouca
gente tinha rádio. Meu pai tinha rádio [...]. Então, meu pai se levantava muito
cedo e ouvia rádio e ouviu o rádio dizendo que os aliados tinham desembarcado
na Itália. [...]. Aí cheguei no grupo escolar dizendo isso para a professora e ela
disse: “Mas então vais escrever isso no jornal”; então escrevi isso aos oito anos
(Tavares, apud Marocco, 2012, p. 134).
Eu nunca quis ser outra coisa, eu sempre soube que queria escrever. A forma prá-
tica de viver, a partir daí, era ser jornalista. [...]. Muito cedo decidi que seria jorna-
lista. Esse desejo existe desde sempre. Eu venho de quê? Venho de um desejo de
escrita e de conhecer o mundo. Então, o jornalismo, ele abre essas duas coisas, a
vontade de escrever e a vontade de viajar. Então essas eram as duas porções de-
cisivas desde o início, desde que que eu me lembro, muito antes da faculdade. Sei
lá, desde que eu tinha 10, 11, 12 anos (Lucas Coelho, apud Marocco, 2012, p. 158).
[...] não tinha nenhum escritor na família. Mas tinha grandes contadores de histó-
ria. Trovadores. No Sul isso é muito comum. O trovador é um contador de histó-
ria acompanhado de um violão. Meu avô era carroceiro, e eu era o auxiliar dele, a
gente vendia frutas pelo bairro. Meu avô e todos os filhos eram trovadores. Acho
que a primeira noção de reportagem que eu tive, sem saber que era reportagem,
era essa atividade dos trovadores. Eles saíam pelo bairro, observando as cenas
que aconteciam, e eu observava junto, como auxiliar que era. E na hora da trova,
geralmente final de semana, regado a caipirinha, eles começavam a contar as his-
tórias. Eu ficava observando. Eu observava que eles contavam histórias que eram
trágicas, e eles contavam com grande humor. Ou o contrário disso. E eu pensava:
mas como é que pode? E reportagem é isso, o que você busca na rua é olhar, é
o olhar dos outros. Acho que eu fui muito influenciado por eles, eu gostava de
contar histórias. A minha mãe também é uma grande contadora de histórias. Ela
me telefone e fala: “Tu não sabes o que me aconteceu!” Sempre é uma tragédia.
“Morreu, morreu seu Alencar […]. Você não sabe do velório, quantas viúvas
apareceram” (Barcellos, em entrevista a Dráuzio Varela, 09/02/2017, disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=IVTqB0rwHaw).
Nesta rede formada por jornalistas e pesquisadores foi possível reconstituir e elabo-
rar, em ações de revezamento, como o saber circula nas redações sob condições históricas
de possibilidade. Entre os jornalistas ouvidos, foram identificados os nós de uma rede
de ensino/aprendizagem, nos limites do quadro normativo do jornalismo, e focos de
resistência (Marocco, 2012). Dos anos 1960 aos 2000 ficou desenhada a cristalização dos
32
processos de gestão, as normas, os procedimentos técnicos e sua adequação à duração do
processo de produção jornalística. Nas redações, a formação de “ilhas” e a hierarquização
desenhou um lugar singular de trabalho. O espaço editorial da página foi distribuído e
redistribuído em função dos anunciantes, das pressões dos diferentes grupos sociais sobre
a agenda e do estágio das tecnologias. Neste sentido, pode-se verificar que Marta Gleich,
diretora de redação de Zero Hora, considera Núbia Silveira uma grande mestra, que fazia
os repórteres inverterem a posição do lead do pé para a cabeça; Núbia Silveira foi apren-
diz de Celito De Grandi, outro entrevistado da pesquisa. Já Eliane Brum aprendeu com
o repórter de Zero Hora Carlos Wagner a se mexer estrategicamente na redação para se
esquivar das pressões institucionais. Entre os mencionados pelos participantes, somente
Wagner não foi ouvido.
Ao encaminhar o percurso epistemológico com Foucault e Giddens, a prática social
foi estabelecida como o nível que possibilita as ações de teoria, que prescindem da escu-
ta dos sujeitos e da “caixa de ferramentas” proposta por Foucault (Deleuze, 1993). De
Giddens, o conceito de “consciência discursiva” ajudou a situar o fluxo de pensamento
de cada um dos jornalistas envolvidos, encaixar as peças que foram sendo ajustadas para
dar sentido a um período de mais de meio século de jornalismo, da década de 1960 às
primeiras décadas dos anos 2000, em que os entrevistados se dedicaram ao exercício do
jornalismo. Nas entrevistas de Celito De Grandi e Núbia Silveira emergiram sinais de um
ciclo de grande autonomia do repórter, seguido por um período de censura política e,
posteriormente, por uma redação altamente hierarquizada e disciplinada. Nos anos 80, na
Zero Hora, passou a vigorar a exigência de que o repórter deveria dominar as técnicas de
entrevista e a escrita; não havia mais lugar para ótimos investigadores que não soubessem
escrever. A equipe de Silveira, que era editora de geral, era formada por subeditores, re-
datores, dois chefes de reportagem, da manhã e da tarde, pauteiro, plantonista da noite e
repórteres. Mais tarde, a esta redação altamente hierarquizada, foram incorporadas outras
exigências:
[...] hoje entra no jornal quem tem texto, não existe mais a possibilidade de en-
sinar para esse cara. [...]. Observo as pessoas que a gente contrata, a formação
desses caras é absurda. [...] Normalmente são pessoas que moraram fora, que
fizeram outras coisas na vida. São pessoas multifuncionais, multifacetadas, mul-
tiformadas. Todos eles falam inglês ou falam outra língua [...], eles sabem fazer
vídeo. Eles naturalmente estão fazendo a matéria e acham que essa matéria ti-
nha que ter algo nas redes sociais. O repórter de antigamente entrava para ser
repórter de jornal. Hoje é um produtor de conteúdo que se expressa em várias
plataformas (Gleich, apud Marocco, 2012, p. 48-49).
33
nológicos e culturais, o que foi dito pelos entrevistados evidenciou o domínio de um saber
jornalístico com baixo grau de epistemologização, aprendido na prática, que descreviam
num fluxo constante, quase sem necessidade de perguntas por parte dos pesquisadores.
No horizonte foi possível condensar o pensamento de Deleuze sobre as ações de teoria
realizadas por Foucault e a pertinência de sua função como “caixa de ferramentas”.
Uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significan-
te... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há
pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teó-
rico, é que ela não vale nada ou que o momento ainda não chegou. [...]. É curioso
que um autor que é considerado um puro intelectual, Proust, que o tenha dito
tão claramente: tratem meus livros como óculos dirigidos para fora e se eles não
lhes servem, consigam outros, encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é
forçosamente um instrumento de combate (Deleuze, 1993, p. 71).
Livro de repórter
As mídias jornalísticas, em sua dupla natureza, institucional e discursiva, não se ca-
racterizam por abrigar o comentário sobre a própria produção, a não ser quando dão
espaço a dispositivos do sistema de responsabilização da mídia (Bertrand, 2002), como o
Ombudsman. Este, no entanto, vinculando-se à atitude crítica das “pequenas atividades
polêmico-profissionais”, e a evidentes manobras de marketing, fica aquém da crítica que,
em sua complexidade, no caso do jornalismo, deve se aproximar de um projeto de reco-
nhecimento do presente.
Seria preciso tentar manter alguns propósitos em torno desse projeto que não
cessa de se formar, de se prolongar, de renascer nos confins da filosofia, sempre
próximo dela, sempre contra ela, às suas custas, na direção de uma filosofia por
vir, no lugar talvez de toda filosofia possível. E parece que entre a alta empreitada
kantiana e as pequenas atividades polêmico-profissionais que trazem esse nome
de crítica, me parece que houve no Ocidente moderno (a datar, grosseiramente,
empiricamente, nos séculos XV e XVI) uma certa maneira de pensar, de dizer,
de agir igualmente, uma certa relação com o que existe, com o que se sabe, o que
se faz, uma relação com a sociedade, com a cultura, uma relação com os outros
também, e que se poderia chamar, digamos, de atitude crítica. (Foucault, 1990,
p. 1-2).
Esta lacuna da mídia mainstream pode ser preenchida por alguns repórteres que se sa-
lientaram em um conjunto de entrevistas feitas durante a pesquisa “Os controles discursi-
vos e o saber jornalístico que circula nas redações” (Marocco, 2009, 2012). Tais repórteres
se diferenciaram da maioria dos entrevistados por táticas de atuação que se desviavam dos
procedimentos discursivos de controle prevalentes nas mídias, ora ocupando as margens
das mídias, ora fora delas, no objeto que mais tarde, em uma derivada da pesquisa, seria
designado “livro de repórter”. Nas reportagens e livros de Brum, Lucas Coelho e Caco
Barcellos, igualmente, na atuação jornalística de Carlos Eduardo Lins da Silva, Celito de
34
Grandi, Laurentino Gomes, Luiz Cláudio Cunha (Marocco, 2012) pode-se comprovar um
comportamento diferenciado.
As pistas deixadas na pesquisa foram aprofundadas em um levantamento de livros
escritos por jornalistas, encontrados nas bibliotecas de universidade brasileiras, de onde
foram recortados exemplares que se destacavam entre uma tipologia (biografias, repor-
tagens, viagens, entre outros) e, entre eles, selecionados os que rompiam com o modo
jornalístico dominante20 ao se inserirem no espaço discursivo de uma crítica das práticas
jornalísticas, ou de um projeto de reconhecimento do presente, considerado o núcleo da
ideia de “livro de repórter”.
Como havíamos construído um arquivo de entrevistas, tomamos dali a experiência
relatada por Brum e Lucas Coelho e os livros por elas publicados para delinear as ca-
racterísticas específicas de “livro de repórter” que foram confirmadas, posteriormente,
no trabalho de outros autores, como Adriana Mabília, Caco Barcelos, Carlos Dorneles e
Daniela Arbex. Para além das operações hermenêuticas do comentário, que a resistência
aos procedimentos de controle discursivo evidenciaram, algumas ações romperam com a
autoralidade coletiva, dando lugar a um giro autoral e à criação do repórter, dentro e fora
das mídias jornalísticas.
Trata-se de
[...] um exercício de crítica das práticas jornalísticas, para além do comentário,
apresenta a ação subjetiva e de resistência de um “repórter-autor”. Daí conser-
varmos a expressão “livro de repórter”, enquanto essa designa um tipo de autoria
individual afastada do ethos profissional e da autoria coletiva própria do tempo
e do espaço do jornalismo. Esta prática em novas bases espaço-temporais não
rompe com o jornalismo, embora o “repórter-autor” construa com seu trabalho
um lugar de criação dentro do jornalismo, voltado ao exercício da crítica como
reconhecimento do presente. Neste novo patamar epistemológico, o repórter
aciona movimentos de investigação que projetam o acontecimento em sua com-
plexidade, em um “poliedro de inteligibilidade” (Veiga da Silva, Marocco, 2018,
p. 37).
35
mais que escutar o obedeça; ou antes, que o obedeça estará fundado sobre a autonomia
mesma” (Foucault, 1990, p. 6). Trata-se de dar visibilidade, com a crítica, à “mecânica
quase invisível” e, portanto, difícil de questionar das mídias (de Botton, 2015, p. 11); 2)
presença do corpo e exposição às sensações na relação dialógica com o outro. Essa atitude
contraria a racionalidade do saber jornalístico que impõe a neutralidade do repórter e sus-
pende o uso do corpo e das sensações que lhe correspondem; 3) governamentalidade dos
sujeitos do jornalismo para fazer valer a sua liberdade de sujeito e a relação com os outros,
que se constitui na própria matéria da ética (Foucault, 2006); 4) desenvolvimento de um
trabalho intelectual que aproxima jornalista e filósofo nas ações de acontecimentalização
para acionar as técnicas de produção da crítica ao jornalismo, sob a forma de reconheci-
mento do presente (Foucault, 1980; Marocco, Zamin e Boff, 2014). Neste sentido, a forma
reducionista da pirâmide invertida é substituída pelo poliedro de inteligibilidade (idem,
ibidem); 5) função diferenciada para a fonte jornalística; 6) associação entre produção de
reportagens diferenciadas e autoria de outros materiais. Seja na literatura, seja no docu-
mentarismo, na reportagem, ou no livro de repórter, certos repórteres provocam um giro
na autoralidade jornalística e estendem o jornalismo das mídias dominantes para outros
espaços (Marocco, 2018).
Crítica das práticas jornalísticas
No âmbito das práticas jornalísticas, o repórter ocupa a função de sujeito da pro-
dução em que opera nos limites estipulados por um modo de produção. Em sua forma
clássica, o relato sobre a atualidade que produz, reproduz as leis e procedimentos discur-
sivos que predeterminam a sua significação. Os informes, diz Alain de Botton, “rastreiam
as horas do dia com precisão assustadora: as manhãs foram transubstanciadas em um
boletim matinal, e os fins de tarde, em um resumo das notícias vespertinas”. Neste enqua-
dramento e ordenação da totalidade do tempo, podemos ter revelações, aprender o que é
certo e errado, conferir sentido ao sofrimento e entender como funciona a lógica da vida
ao escutar a voz que se dirige a nós, natural e transparente, “sem qualquer referência à
própria perspectiva tendenciosa”.
Ele abre mão de deixar claro que não se limita a informar sobre o mundo, pelo
contrário: empenha-se o tempo inteiro em modelar um novo planeta em nossa
mente, um que esteja de acordo com suas prioridades muitas vezes bem especí-
ficas (de Botton, 2015, p. 11).
36
experiência delas, desviando-se do jornalismo tomado como uma “espécie de correlato da
experiência degradada” (Antunes, 2010), possibilita seguir avançando pelo viés do “livro
de repórter”. Esse traz à luz o sentido original da experiência, percebida como “travessia
e perigo” (Romano, 1999)21 e da resistência ao modo de ser normatizado do jornalismo e
ao jogo de poder jogado no interior do campo que refletem o que se pode/deve conhecer
sobre o presente. Foucault nos ajuda a pensar, na última fase de seus trabalhos, nas condi-
ções de possibilidade de recusa e resistência destes repórteres com capacidade de crítica.
Daí a importância da busca, na última fase de seu pensamento, de condições de
possibilidade de um sujeito com capacidade de recusa e resistência, de não ser
governado assim ou de opor a um saber-poder dominante outros jogos de verda-
de e de poder e outras formas de subjetivação. Foucault chama tal capacidade de
crítica (Portocarrero, 2006, p. 282).
Em reportagens e nos livros escritos por repórteres, a crítica das práticas jornalís-
ticas constitui uma sucessão de camadas discursivas sobre o discurso que prevalece na
mídia. Há procedimentos discursivos diferenciados que são adotados ao longo do proces-
so de acontecimentalização/complexificação. Além deles, é possível analisar estratégias
singulares no trabalho de cada repórter, nas marcas discursivas dos processos de subjeti-
vação, que ora evidenciam a objetivação, que faz dos seres humanos sujeitos produtivos,
divididos no interior de si mesmos, ora os procedimentos que o indivíduo mobiliza para
se apropriar de sua própria relação consigo mesmo (Revel, 2005, p. 82-83). Brum, por
exemplo, reflete frequentemente, sobre o que faz, seja no próprio tecido da narrativa, seja
em texto complementar, como se pode observar nos livros “O olho da rua” e em “A vida
que ninguém vê”. No primeiro, a crítica se relaciona a cada um dos capítulos do livro; no
outro, o capítulo final é dedicado ao seu modo de fazer jornalismo: “O olhar insubordi-
nado”.
Sempre gostei das histórias pequenas. Das que se repetem, das que pertencem à
gente comum. Das desimportantes. O oposto, portanto, do jornalismo clássico.
Usando o clichê da reportagem, eu sempre me interessei mais pelo cachorro que
morde o homem do que pelo homem que morde o cachorro – embora ache que
essa seria uma história e tanto. O que esse olhar desvela é que o ordinário da vida
é o extraordinário. E o que a rotina faz com a gente é encobrir essa verdade, fa-
zendo com que o milagre do que cada vida é se torne banal (Brum, 2008, p. 187).
37
Transforma em palavras o que era silêncio. Faz memória [...]. devolve nome,
história e identidade àqueles que, até então, eram registrados como “Ignorados
de tal”. Eram um não ser. Pela narrativa, eles retornam, como Maria de Jesus, in-
ternada porque se sentia triste, Antônio da Silva, sem diagnóstico, que ficou vinte
e um dos trinta e quatro anos de internação mudo porque ninguém se lembrou
de perguntar se ele falava. [...]. Como pessoas, não mais como corpos sem pala-
vras, eles, que foram chamados de ‘doidos”, denunciam a loucura dos “normais”
(Brum, em Arbex, 2013, p. 13).
Lucas Coelho escolheu problematizar o poder das redes de informação que ha-
viam potencializado a repercussão da Primavera Árabe, para criticar a simplificação que o
Ocidente opera em relação à imagem dos muçulmanos como terroristas, desde o “11 de
38
Setembro”. Na Praça Tahrir, Egito, ela fotografou o que pode e deu muita visibilidade aos
jovens. O uso do meio digital foi uma experiência nova, que teve um viés político, diferen-
ciando-se do viés literário, que predomina em seu trabalho, e serviu igualmente para andar
na contramão do jornalismo dominante:
O que eu quis fazer naquele momento foi simplesmente registrar aquelas ima-
gens ali, porque eu queria que as pessoas fossem vistas. [...] este também é um
ponto político, uma das coisas importantes para mim, que aconteceu lá na Praça
Tahrir, foi que, pela primeira vez, desde o 11 de Setembro, o Ocidente olhou para
aqueles rostos, e os jovens puderam olhar os jovens que estavam na Praça Tahrir
e ver: olha, eles são iguais a nós (Lucas Coelho, apud Marocco, 2012, p. 172).
Recentemente, o filósofo italiano Gianni Vattimo (2016) esboçou uma função a ser
ocupada pelo “novo intelectual”, definido como um sujeito profundamente atento aos
problemas de sua época, que cria formas de resistência e se mobiliza contra o estado de
dominação da mídia. Vattimo não identificou nenhum sujeito; é esse estatuto interrogati-
vo transformando-se em argumento na crítica de certos jornalistas, que dá a consistência
que faltaria e que pode ser associada a esta figura. Trata-se, no caso em foco, do preen-
chimento das lacunas deixadas por Vattimo ao colocar em tela de juízo temas como os
procedimentos de controle interno e as relações promíscuas de poder das mídias com os
governos.
Não obstante esta proximidade, o “novo intelectual” não se refere aos jornalistas,
nem ao pensamento de Michel Foucault. Um olhar atento sobre o jornalismo evidencia
que, em ações de resistência, descolando-se das mídias para criticá-las, certos repórteres
exercem o jornalismo nestes termos. Com esta chave de acesso, trespassam o modo de
objetivação jornalística e se voltam ao reconhecimento do presente, que foi empreendido
na filosofia, originalmente por Kant, posteriormente por Foucault na esfera da crítica,
dando lugar à constituição jornalística do acontecimento, a “acontecimentalização”, na
figura do “poliedro de inteligibilidade” (Foucault, 1978, p. 13). Uma prática seguida por
Foucault na “reportagem de ideias” (Marocco, 2008).
Foucault inaugurou esta linha invisível que pode ser traçada entre o jornalista e o
“novo intelectual”. Diferentemente de Vattimo, ele se disse “jornalista”. Na margem do
fazer profissional, aplicou as “enquetes do intolerável”, nas prisões, durante os trabalhos
do GIP (Grupo de Informações sobre as Prisões); produziu no Irã um conjunto de re-
portagens. Com os desdobramentos teóricos das ações do GIP, descritos em Vigiar e Punir
(Foucault, 1993), da Revolução Islâmica na “reportagem de ideias” (Foucault 2008), ou
com as articulações entre o sujeito, os jogos de verdade e os procedimentos de controle
discursivo (Foucault, 2006b; Marocco, 2015), Foucault aproximou prática e teoria, em
movimentos de investigação reconhecidos por Deleuze como “ação de teoria” (Deleuze,
1979, p. 70).
39
As práticas discursivas deste “novo intelectual” estariam voltadas à atualidade, como
referente da condição comum da vida atual e não à “atualidade jornalística”, demarcada
pelo tempo do efêmero, pela superficialidade e por critérios ordinários de noticiabilida-
de. Sua tarefa: criticar o que se configurou na consciência coletiva como sendo o mundo
verdadeiro com o apoio das mídias dominantes. Segundo Vattimo, com apelos às convic-
ções comuns, aporte de referências à história e às experiências partilhadas, é possível, aos
poucos, fazer prevalecer outros modos de a comunidade afirmar-se como um lugar de
convivência civil, “de verdadeira e própria amizade política”, em que “poderá sentir-se um
dia, junto de si, ‘em sua casa’” (Vattimo, 2016, p. 30, com citação de Hegel).
No jornal italiano Corriere della Sera, no que chamou de “reportagem de ideias”, Fou-
cault fez a experimentação de uma forma de escrita inédita, sem metáforas, direta, como
se naquelas circunstâncias não quisesse mais ser o escritor, para evidenciar a falsidade da
imagem construída pelas agências de informação sobre a Revolução Islâmica. Nas re-
portagens, forjou práticas de liberdade, em que empreendeu o desenvolvimento de uma
relação dialógica de comunicação para resgatar o outro como indivíduo ativo, não somen-
te uma fonte da informação. A existência do campo disciplinar, que ganhou autonomia
com a “objetividade jornalística” e os efeitos de verdade que esta proporciona às mídias
dominantes, expõe a subordinação a um regime de verdade. Em sentido inverso, em suas
ações no jornalismo, Foucault não se submeteu ao “jogo estratégico” no qual as mídias
determinam unilateralmente o que é acontecimento.
Na contracorrente das mídias, infringiu a ordem dos acontecimentos vigente e, com
isso, pode influenciar uma outra compreensão das coisas e do outro, nas teorias, nas inú-
meras entrevistas que concedeu, e, como jornalista, na “reportagem de ideias” (Foucault,
2006b, p. 282). Já na posição de analista, em A ordem do discurso (1996), ele havia vinculado
a produção do discurso a procedimentos de controle discursivo de diferentes naturezas,
que foram apropriados pelo jornalismo (Dent, 2008; Marocco, 2015). Como jornalista,
ou analista do discurso, Foucault enquadrou as instituições encarregadas da verdade e da
produção de efeitos de verdade na sociedade para afirmar que onde há relações de poder
e jogos de verdade há possibilidade de resistência do sujeito (Foucault, 2006b).
Vattimo não faz referência direta aos jornalistas; são os argumentos que utiliza, te-
cidos na proximidade do pensamento e das ações de Foucault, que parecem apropriados
a criar um elo entre o “novo intelectual” e o “intelectual específico”, no espaço de “uma
espécie de jornalismo radical” (Foucault, 1994, p. 434). Para fazer as pessoas perceberem
o que está acontecendo e fazer avançar as coisas, anunciando os seus perigos, o intelec-
tual deve ser um “diagnosticador do presente”, que se propõe a modificar, tanto quanto
possível, a dessimetria nos jogos de poder. Sinteticamente, interpreta Groulx, com base
no pensamento foucaultiano, desviando-se do papel de dizer verdades proféticas sobre o
futuro, deve: “[...] estabelecer uma nova relação com a atualidade que define nosso tempo
como problematização das ‘práticas de si em nossas relações com outrem” (2006, p. 216).
40
O intelectual me parece atualmente não ter tanto o papel de dizer verdades, de
dizer verdades proféticas sobre o futuro. Talvez o diagnosticador do presente [...]
possa tentar fazer as pessoas perceberem o que está para acontecer, exatamente
nos campos em que o intelectual talvez seja competente. [...]. O físico atômico, o
biólogo ambientalista, o médico sanitarista devem intervir para fazer saber o que
se passa, fazer o diagnóstico do que se passa para anunciar seus perigos e não
para justamente fazer-lhe a crítica sistemática, incondicional, global” (Foucault,
em Artières, 2004, p. 22).
Experiência corporal
O repórter que se distancia do modo de objetivação jornalística se reapropria da
potência do próprio corpo; Agamben (2017) diria, do uso comum22 de seu corpo, que havia
sido capturado pelo dispositivo jornalístico. Não interessa mais se manter suspenso no
exercício do cotidiano da vida, suspender-se nas diferentes etapas do processo de produ-
ção como um ser que se refugia na imparcialidade contra as artimanhas da linguagem, nem
ouvir somente declarações das fontes para cumprir burocraticamente uma pauta, nem
preencher lacunas informativas, para produção textual, dizendo-se porta-voz da objetivi-
dade. Nas novas condições de possibilidade, em que resiste à normalização do comporta-
mento, o repórter profana o dispositivo jornalístico, que inscreve os corpos nos cálculos
do poder disciplinar, para fazer uso do próprio corpo e dos sentidos do tato, da visão, da
audição em sua potência na relação dialógico-cognitiva entre seres humanos (Foucault,
2002; Agamben, 2017).
No âmbito jornalístico, pode-se pensar a disciplina jornalística, consolidada em me-
ados do século XX, com suas normas e modelos de produção, forjados no âmbito da
proeminência da burguesia, enquanto modo de governo das populações e dos indivíduos.
Pode-se mencionar, neste sentido, o contrato informal, jamais reconhecido, entre mídias e
governo, que foi um marcador da vigência da midiatização discursiva dos indivíduos e de
seus corpos, desqualificados para o trabalho formal, e que eram, regularmente, relaciona-
dos à violência, no século XIX (Marocco, 2004). Em relação ao jornalista, o processo de
dessubjetivação, alinhavado por Foucault e Agamben, parece estender-se da normalização
do saber à hierarquização dos procedimentos de controle jornalístico, especificamente
sobre a ação dos jornalistas e a autoralidade que drena a produção individual para a ins-
tância do coletivo. A objetividade padroniza a produção individual e o nome do jornal, na
perspectiva de Dent, transfere a singularidade do estilo autoral para a mídia, que forma-
lizaria tal função ao interferir nos textos como uma outra forma de ordem (Dent, 2008,
Marocco, 2015).
Na trajetória de vida desenhada em diversos movimentos feitos no século passado
por Foucault, além do que está escrito nos livros e nos conceitos que desenvolveu sobre
o processo de normalização da sociedade, é possível esquadrinhar a recusa que projeta
22 Nas palavras de Agamben: “Puro, profano, livre dos nomes sagrados, é o que é restituído ao uso comum dos homens. Mas o uso
aqui não aparece como algo natural; aliás, só se tem acesso ao mesmo através de uma profanação” (Agamben, 2007, p.58).
41
para si do estatuto do “homem calculável” (McGushin, 2018, p. 174), quando ele recorre,
por exemplo, ao uso do próprio corpo. Foucault quer se livrar do duplo constrangimento
político, que projeta a individualização e a totalização própria às estruturas disciplinares
do poder moderno; quando ele empreende as ações de teoria, com a intenção de com-
preender estas artimanhas, as sensações físicas anunciam que ele está ali, com os sentidos
aguçados, nos momentos cruciais dos livros que escreveu. Foucault surge de repente na
escritura, e os surgimentos nunca são acidentais. Em As palavras e as coisas, é o riso que
contamina seu corpo na leitura de Borges; em Pierre Rivière, a estupefação aparece na lei-
tura do manuscrito do parricida; o embaraço contamina a experiência que teve quando
encontrou os arquivos que viriam se constituir em excertos da Vida dos homens infames.
“Sinto-me embaraçado em dizer o que realmente experimentei quando li estes fragmentos
e alguns outros [...] talvez uma dessas impressões das quais se diz serem físicas” (Foucault,
em Artières, 2004, p. 32).
O corpo sente, age e era esta presença real que se fazia necessária para uma relação
com a atualidade. A análise crítica da atualidade, é, “talvez o mais evidente dos problemas
filosóficos”, disse em “O sujeito e o poder” (2009, p. 239). O corpo teso, esguio, recoberto
por uma blusa justa, se parecia com o corpo de um esgrimista, escreveu Claude Mauriac
em seu diário (em Artières, 2004, p. 32). “Essa prática do corpo no trabalho de diagnóstico
toma sucessivamente diferentes formas, todas participantes de uma verdadeira prática de
si” (Artières, 2004, p. 33). Na produção de seus diagnósticos, Foucault afrontou guardas
franceses, policiais espanhóis ou alemães; distribuiu panfletos do GIP em frente aos pre-
sídios franceses, foi preso e violentamente atingido no rosto. Ações e happenings políticos
contaram com a sua presença. Este deslocamento para o local dos acontecimentos incluiu
viagens que ele multiplica a partir dos anos 1970.
O diagnosticador percorre o espaço, faz a experiência física dele. Como em seus
livros, onde age como um viajante que percorre as áreas culturais e os períodos
históricos, em sua prática intelectual, Foucault circula, mapeia os países [...]. O
corpo do diagnosticador é para Foucault não apenas um “corpo de esquerda”,
mas um corpo viajante (Artières, 2004, p. 34).
A tarefa da filosofia de análise crítica de nosso mundo havia se tornado central com
a questão kantiana “O que está acontecendo neste momento?; o que está acontecendo
conosco?”, ou seja, o que somos nós, num período muito preciso da história, reformulou
a indeterminação da questão cartesiana, quem sou eu? sujeito único, mas universal, a-his-
tórico. Neste deslocamento, o objetivo da investigação filosófica se livra do sistema meta-
físico ou dos fundamentos do conhecimento científico, centrando-se num acontecimento
histórico que coloca o tempo presente como o mais evidente dos problemas filosóficos.
Neste quadro, a questão não é mais problematizar o que somos, mas recusar o que somos,
imaginar o que poderíamos ser e empreender um exercício de desprendimento do eu, ou
seja, para dizer a atualidade será necessário desfazer-se de todos os elementos que podem
42
turvar o olhar. Explicando-se a jovens maoístas, Foucault esclareceu que é preciso situar-
-se logo do lado “bom”, dos “dominados”, mas é preciso desprender-se imediatamente
dele, passar para o outro lado para tentar desprender-se dos mecanismos que fazem apa-
recer dois lados, dissolver a falsa unidade e a natureza ilusória do outro lado pelo qual se
tornou partido. “É então que começa o verdadeiro trabalho, o trabalho do historiador do
presente” (Foucault, em Artières, 2004, p. 35). Assim pode-se explicar a atitude de Fou-
cault ao preferir a noção de emergência ou de irrupção de forças, à ideia de revolução, sem
deixar de estar ao lado dos dominados (idem).
Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que
somos. Temos que imaginar e construir o que poderíamos ser para nos livrarmos
deste “duplo constrangimento” político, que é a simultânea individualização e
totalização própria às estruturas do moderno (Foucault, 2009, p. 239).
Na tarefa de crítica das práticas jornalísticas, o que parece central neste momento
é, mais do que replicar a existência de uma crise estrutural, voltar-se para as relações de
poder vigentes em que o repórter é duplamente constrangimento: como produtor de
informações e como peça do projeto de governabilidade das instituições estatais e paraes-
tatais. Nesta situação, alguns repórteres vêm realizando ações de resistência. Um modo de
produção diferenciado, em um lugar específico das margens, é posto em funcionamento.
É isso que move o interesse pela prática, ou melhor, por determinada prática jornalística.
Parece pertinente, neste quadro, replicar a questão kantiana e segui-la, mais concretamen-
te, em uma crítica das práticas do jornalismo contemporâneo, que se desloca da crise em
que o jornalismo é enquadrado em uma infinidade de discursos, para preferir a noção de
emergência de forças. São estas forças que aparecem com clareza no exame das entrevistas
feitas durante a pesquisa “Os controles discursivos e o saber jornalístico que circula nas
redações” (Marocco, 2009, 2012). Ouvidos em sua dispersão, os repórteres refundaram o
centro do trabalho jornalístico na experiência obliterada pela disciplina.
O uso do corpo no trabalho jornalístico foi relatado pelos repórteres na relação de
comunicação com o outro. Eliane Brum, por exemplo, provoca em si mesma um movi-
mento de esvaziamento: dos preconceitos, das visões de mundo, dos julgamentos, afinal,
jornalista não é juiz, para, em outro estado, deixar-se preencher pela história do outro.
“Se vais cheia, não tens como ser preenchida” (Brum, apud Marocco, 2012b, p. 77). Nesse
modo de se aproximar da experiência com o outro, parece que Brum se inspira em Fou-
cault. A repórter deu visibilidade a este movimento na reportagem “A mulher que alimen-
tava”, em que acompanhou os últimos quatro meses de vida de Ailce de Oliveira Souza.
As duas se viam toda a semana, todos os dias falavam por telefone. Brum descobriu-se
“um terceiro fio na vida dela” e que, “na condição de narradora de uma vida”, era uma
casa vazia. “Eram suas as palavras que me enchiam com história” (Brum, 2008, e-book,
s/p.).
43
Nunca tivera a oportunidade de falar muito de si mesma. Desse dreno de pala-
vras ela gosta. ‘A gente fica guardando coisas por toda a vida. Quando eu falo,
parece que elas vão se soltando dentro de mim. Me liberto’. Na outra ponta deste
fio, eu também me sinto presa (Brum, 2008, e-book, s/p.)
44
É preciso também perceber que até mesmo a justificativa da pressa e da falta de
tempo tem seus limites: matérias tóxicas (ainda que não aparentemente), que
difundem preconceitos e naturalizações, que alienam em vez de esclarecer, como
coloca Moretzsohn, são muito mais produções de um jornalista cujo olhar sobre
o mundo tem limitações não possíveis para quem se habilita a ser um mediador
social (Moraes, 2015, p. 219, em Veiga da Silva e Marocco, 2018, p. 41).
A estratégia relatada em entrevista por Lucas Coelho, por Brum, nas páginas iniciais
de Viagem à Palestina, por Mabília, e no capítulo “Um jornalismo de subjetividade”, de O
nascimento de Joyci, por Moraes, parece inspirada na experiência arcana da jornalista e ativista
francesa Caroline Rémy, que se tornou conhecida no século XIX, pelo pseudônimo Sé-
vérine. Para Sévérine, no rastro de seu mestre Jules Vallès (1832-1885), jornalista, escritor
e político francês, o jornalismo representava a via de acesso ao concreto e a fusão com o
povo nas ruas, onde é possível produzir uma escritura marcada pelo “eu” coletivo, como
se o repórter ocupasse a função de mero embaixador do povo. Assim, o jornalismo, de
acordo com Vallès, deveria conduzir à “liberação da tinta”, que ele pensava ser o advento
de uma língua afetiva, sobretudo visual: uma língua invadida por imagens, que permitiriam
o retorno das palavras à vida (Muhlman, 2008, p. 51). Ambos acreditavam na presença
física como absolutamente necessária para garantir uma justa percepção da situação, o que
diferenciava a testemunha do repórter que não sai às ruas e escreve muito. Na posição de
sujeito social em que se colocou, ao contrário dos colegas que se isolavam na profissão,
como se esta fosse uma ilha, reservada aos náufragos de uma esfera ficcional, Sévérine se
misturava à multidão nas ruas. Ela acreditava que o seu corpo era atravessado por sensa-
ções, que a faziam tocar a verdade do acontecimento, como se fosse uma fonte fiável da
universalidade da experiência que iria aproximá-la do leitor. Quem quiser contar a verdade
do acontecimento ao público, ela dizia, deve ancorar o seu testemunho no próprio corpo e
assim oferecer um relato sensível do acontecimento e não um discurso abstrato e retórico:
Etant femme, je n’allais point dans la tribune de la Presse, changement de milieu
qui me permettait d’habiller à neuf mon esprit; d’échapper au “métier”, a ses
traditions, à ses habitudes, à ses jugements préconçus, […], à tout ce qui fait
enfin du journaliste chargé “éclairer l’opinion” un isolé sourd et aveugle – pas
muet, hélas ! – enfermé dans sa profession comme Robinson dans son île […]
(Sévérine, 1894, p. 6)23.
45
projeta sua voz e inscreve um ponto de vista narrativo que as marcas de novas possibili-
dades de inscrição do sujeito/jornalista aparecem. Conforme Araújo, o programa propõe
uma nova forma de legitimação do jornalismo contemporâneo que não passa mais pelo
discurso da objetividade como distanciamento entre jornalismo e fato, “mas se ancora
numa perspectiva de partilha do pessoal, do relato de si como lugar de reconhecimento da
vivência comum na cultura ocidental hodierna (2018, p. 11).
Ética – cuidado de si
A escuta reiterada de jornalistas e das práticas que se desviam do jornalismo domi-
nante me levaram a perceber que o exercício do jornalismo assumido como função social
diz respeito à mudança de atitude consigo, com os outros, com o mundo; os jornalistas em
questão, primeiramente, impõem-se um modo de exercer de maneira regrada, uma relação
consigo e com o mundo, fazendo-se perquiridores da verdade e de sua prática, aproximan-
do-se dos indivíduos invisibilizados pelas mídias, distanciando-se das formas sociais de
cuidado de si (egoísmo, narcisismo, hedonismo) e da normatividade jornalística vigente.
Nestes termos, o sujeito se liberta do “eu” formado pela disciplina e pela contingência do
mercado, para se tornar um tipo de jornalista que privilegie a modalidade de comunicação
cujos fluxos circulam na contracorrente do caráter pronto da vida desenhada pelo jorna-
lismo em parceria com o Estado. Tal exercício na atividade do pensamento e da ação em
relação a si, aos outros e ao mundo, afina-se ao solo da epiméleia heautoû:
O solo da epiméleia heautoû, traduzido pelos latinos como cura sui e para o portu-
guês como cuidado de si, diz respeito à atitude diferente consigo, com os outros
e com o mundo; indica a conversão do olhar do exterior para o próprio interior
como modo de exercer a vigilância contínua do que acontece nos pensamentos;
sugere ações exercidas de si para consigo mediante as quais alguém tenta modifi-
car-se; designa maneiras de ser, formas de reflexão e de práticas que conformam
o núcleo da “história das práticas de subjetividade” (Foucault, 2001, p. 13, em
Candiotto, 2010, p. 128).
Essa temática, afeita ao plano das atitudes e das práticas, que fazem parte de um modo
de existência ético, será circunscrita por Foucault, na última fase de seu pensamento, como
exercício espiritual a ser atualizado, em que a filosofia é definida como estilo de vida e não
como posse da habilidade argumentativa, com objetivo de descoberta da verdade (Por-
tocarrero, 2006). Os exercícios espirituais compõem a cultura de si; são indistintamente
práticas de autodomínio e exercícios reflexivos de cuidado e de conhecimento de si, que
permitem ao indivíduo se livrar de si mesmo. Livrar-se de si mesmo não significa que al-
guém abandone a si mesmo a fim de se tornar uma pessoa completamente nova. Em vez
disso, obtém-se certa distância e perspectiva, ao adotar um modo esquinado de olhar para
si mesmo.
Assim posto, o cuidado de si, que Foucault chama de “tecnologias do eu” ou “ar-
tes de viver”, delineia uma subjetividade relacional, dinâmica e inquieta, potencialmente
46
indisciplinada e imprevisível. No espectro foucaultiano, em que a subjetividade pode ser
definida como sendo: seja você mesmo, em tentativas extenuantes, marcadas por uma
astúcia determinada, o eu é um contínuo devir, não um ente fixo, o eu é entendido como
uma obra de techné, de arte. O cuidado de si, sendo composto de tecnologias ou artes do eu
e das artes de viver tem pouca relação com a concepção moderna do artista e da obra de
arte. Para Foucault, a arte ou techné é realizada no labor de um tipo de trabalho criativo,
não se trata de um trabalho essencialmente teórico; o artista precisa experimentar e per-
ceber a aparência, a sensação dos materiais, envolvendo nisso o próprio corpo. McGushin
argumenta:
[...] a arte de tornar-me o meu eu é sempre, até certo ponto, uma arte de não mais
ser o que eu era, uma arte que separa o eu de si mesmo a fim de formar uma
relação nova, mais profunda e mais sábia consigo mesmo, a qual, por sua vez,
dará lugar ao seu próprio distanciamento de si, encaminhando-me para futuros
desconhecidos (2018, p. 184).
24 Foucault diagnostica: “A confissão difundiu amplamente seus efeitos: na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familia-
res, nas relações amorosas, na esfera mais cotidiana e nos ritos mais solenes; confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e
os desejos, confessam-se passado e sonhos, confessa-se a infância; confessam-se as próprias doenças e misérias; emprega-se a maior
exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; confessa-se em público, em particular, aos pais, aos educadores, ao médico, àqueles a
quem se ama; fazem-se a si próprios, no prazer e na dor, confissões impossíveis de confiar a outrem, com o que se produzem livros.
[...] O homem, no Ocidente, tornou-se um animal confidente” (1993, p. 59).
47
losofia é definida como estilo de vida e não como posse da habilidade argumentativa, com
objetivo de descoberta da verdade (Portocarrero, 2006). Os exercícios espirituais com-
põem a cultura de si; são indistintamente práticas de autodomínio e exercícios reflexivos
de cuidado e de conhecimento de si, que permitem ao indivíduo se livrar de si mesmo.
Livrar-se de si mesmo não significa que alguém abandone a si mesmo a fim de se tornar
uma pessoa completamente nova. Em vez disso, obtém-se certa distância e perspectiva,
olha-se para si mesmo de cima. “O eu do qual Foucault se livra não é outro senão aquele
formado pela disciplina, cuja subjetividade é moldada pelas práticas da hermenêutica e da
confissão” (McGushin, 2018, p. 183).
Quando Foucault “exercita-se” na “atividade do pensamento”, ele está tentando
“pensar diferente”, separar-se do eu disciplinado, normalizado no qual tem se
tornado até então. O trabalho ou a arte de si é o exercício pelo qual Foucault
estabelece uma relação de distância do eu da disciplina, da hermenêutica e da
confissão (McGushin, 2018, p. 183-184).
No que parece ser um exercício na mesma direção, Brum, Lucas Coelho e Tavares
se reconhecem sujeitos históricos, em práticas de liberdade que articulam as percepções
da atualidade, no exercício do jornalismo à atitude crítica, frente ao acontecimento a co-
nhecer. Em tal prática do jornalismo, o pensamento parece revelar uma subjetividade
que desliza de uma relação consigo e do contínuo trabalho que isso acarreta à relação de
comunicação com os outros, que sugere a verticalidade da formação de um estilo de vida
ético. Nos moldes do que foi pensado por Foucault, ao examinar o trabalho ético que
alguém efetua sobre si mesmo para tentar fazer de si mesmo um sujeito moral da própria
conduta, Brum utiliza como estratégia o que não conta nada para o sucesso do sujeito da
prática jornalística, ou seja, o próprio passado, obliterado em sua condição temporal e sub-
jetiva, em que ela, desde criança, praticava um exercício de pensar diferente a comunicação
com o outro, fazendo-se uma “escutadeira e uma olhadeira”.
Desde pequena sempre fui uma escutadeira e uma olhadeira, nunca fui faladeira.
Então, sempre preferia, em vez de ficar brincando, escutar os meus parentes mais
velhos, o pessoal da comunidade. O meu tio tinha um bolicho (armazém), que
era o bolicho da comunidade, onde o pessoal jogava cartas, comprava salame,
tinha aquelas balas que só se encontrava lá. E eu ficava ouvindo histórias. Então
eu comecei a me tornar repórter lá. […]. (Brum, apud Marocco, 2012, p. 72).
A infância deixou de ser um território inóspito quando ela aprendeu a ler, com sete
anos. Com os livros, viveu aventuras e pode habitar a pele de muitos personagens. Quando
a biblioteca da família esgotou, encontrou Lili. Na livraria onde ela trabalhava, em Ijuí,
Brum podia ler o livro que quisesse, sem pagar nada. Até hoje, as duas se correspondem
e o hábito de ler compulsivamente persiste, dos clássicos à literatura sobre vampiros, tudo
o que satisfaça a sua curiosidade de ser um outro, desde que goste. Do pai, ouvia muitas
histórias do cotidiano, sobre a comunidade e a família, nas pequenas viagens que faziam.
48
Deste mundo de histórias que a cercava, os jornais não faziam parte, mas a história oral foi
decisiva para se interessar pelo jornalismo, não pela aridez dos jornais, que não incluíam as
histórias de gente que gostava de ouvir.
[...] me considero extremamente influenciada pela literatura oral, porque este é o
privilégio que a reportagem me deu, que é o acesso à linguagem do povo brasi-
leiro. Pude escutar pessoas das geografias mais variadas, e o brasileiro tem umas
invenções de palavras, tem uns achados de linguagem que são extremamente
ricos. Então, muitas vezes me vi diante de analfabetos que faziam literatura pela
boca, o que me faz pensar que, se a educação formal pública do Brasil fosse boa,
nossa literatura escrita seria muito mais interessante do que é hoje (Brum, apud
Marocco, 2012, p. 91).
Como não tinha acontecido nada de mais importante naquele domingo, o texto es-
crito por Eliane Brum foi publicado na íntegra. Como ela escreveu. A partir desta matéria,
depois de um longo e árduo processo, ela conquistou um grau diferenciado de autonomia,
inclusive com direito a não ser escalada para fazer pautas “quinhentos”, como são chama-
das as matérias encomendadas pela direção. Em relação a essas, o que fazia era tratá-las
como se fossem investigação de rotina. “E isso dava um problemão, porque não era o
que queriam”. Já o “contrabando” – como era tratado o que não podia ser publicado –,
vinha camuflado por algo fora da norma, ou sensacionalista, para provocar um choque no
49
redator que reagia com o corte do lead, deixando passar o que importava e estava situado
no parágrafo que vinha depois.
Ele já tinha passado por aquela necessidade de cortar, já tinha exercido a sua
função, justificado o seu cargo de confiança e o seu salário. São essas coisas, que
nesse início de jornalismo fui aprendendo (Brum, apud Marocco, 2012, p. 76).
Para Lucas Coelho, a forma mais prática de realizar o seu desejo de escrever e conhe-
cer o mundo foi tornando-se jornalista.
[…]. O jornalismo foi uma travessia que me permitiu fazer essa ponte entre a
escrita e o mundo, que me permitiu viajar e ver o mundo. E aprender a ouvir as
pessoas e aprender a olhar as pessoas. A questão do olhar é uma questão decisiva
porque o jornalista é também aquele que consegue ver o maior número de coisas
numa situação. Não há dois jornalistas que escrevam o mesmo texto em uma
mesma situação, e a riqueza de um trabalho relaciona-se também com aquilo que
aquele olhar traz, ou seja, nem toda a gente vê a mesma coisa (Lucas Coelho, apud
Marocco, 2012, p. 158).
Na casa dos pais havia muitos livros; muito cedo passou a comprá-los por conta pró-
pria. Mais tarde, quando a literatura foi conciliada com a possibilidade de viajar, pode per-
ceber que as histórias que contasse sobre diferentes lugares por onde passou carregariam
a sua forma particular de contar. “A forma como olhamos para quem está a nossa frente
não é diferente”. No movimento de ida e volta dos mais diferentes lugares foi possível
perceber que cada pessoa carrega uma história com lições, reações, medos e afetos. Para
a repórter, a inteireza de quem está a sua frente pode ser percebida no som da voz, nos
gestos, nos detalhes particulares. Em contraposição a isso, pode-se compreender o que é
noticiado pelas mídias como não sendo o real:
[...] é ficção, que é construída pelas narrativas, sobretudo na televisão, mas não só;
o jornalismo tende a perpetuar umas ficções, uns borrões da realidade que não
são o real; e a tentativa que o jornalismo deveria ainda praticar, e talvez seja mais
fácil praticar em jornais e em revistas que não sejam semanais, é de, justamente,
tocar esse real que fica escondido e que fica oculto nesse borrão em que as pes-
soas não se destacam (Lucas Coelho, apud Marocco, 2012, p. 160).
50
Naquele tempo eles deixavam a gente dentro da viatura pra pegar calor, sabe?
Ou pra passar a noite de castigo mesmo. Não exatamente dentro de um xadrez,
mas ali em frente ao delegado, sendo o tempo todo humilhado. [...] Eu tive tam-
bém um tio que [...] se envolveu em confusões e foi torturado. Eu tinha até uma
carteirinha do presídio de tanto que precisava visitá-lo. Então, era uma coisa que
eu conhecia relativamente bem. E quando eu virei repórter, eu me dei conta do
seguinte. Na minha infância, a garotada corria para evitar o castigo, uma surra,
uma tortura. E hoje, como repórter, eu percebo que corriam para evitar os tiros.
Os tiros pelas costas. Os tiros na nuca. A situação tinha se tornado muito mais
grave (Barcellos, em entrevista a Dráuzio Varela, 09/02/2017, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=IVTqB0rwHaw).
51
Em busca de informações que não eram divulgadas pelas grandes agências de in-
formação, antes de viajar ao Irã, Foucault procura fontes que pudessem contribuir para o
planejamento de sua viagem. Encontra-se diversas vezes com Ahmad Salamatian, iraniano
exilado em Paris, que pertencia ao movimento da Frente Nacional. Dias depois, já em Te-
erã, põe-se a trabalhar. Encontra-se com líderes da oposição, com estudantes, transeuntes,
conversa com jovens islâmicos nos cemitérios, onde as reuniões eram permitidas, entre-
vista líderes religiosos. Nas ruas de Teerã e Qom, evita políticos profissionais, entrevista
intelectuais, velhos guerrilheiros que, em 1976, abandonaram a luta armada por ações no
interior da sociedade tradicional. Para todos, faz a mesma pergunta: “O que você quer?”,
e recebe de quatro entre cinco entrevistados a mesma resposta: “Um governo islâmico”
(Foucault, em Berger e Marocco, 2008, p. 43). Nas últimas linhas do artigo “Com o que os
iranianos estão sonhando”, pensa que talvez se tratasse de uma “espiritualidade política”,
esquecida no Ocidente desde o Renascimento e a crise do cristianismo (Vintges, 2018, p.
140). Em outro momento, quando questiona, “Isso é a revolução?”, Foucault vai afirmar
que os trabalhadores do petróleo, que carregavam “o peso da ordem do mundo inteiro”,
podiam estar sendo os protagonistas da “primeira grande insurreição contra os sistemas
planetários, a forma mais moderna de revolta”:
Quand je suis parti d’Iran, la question qu’on me posait sans cesse était bien sûr:
“Est-ce la révolution ? ” [...]. Je n’ai pas répondu. Mais j’avais envie de dire: ce
n’est pas une révolution, au sens littéral du terme: une manière de se mettre de-
bout et de se redresser. C’est l’insurrection d’hommes aux mains nues qui veulent
soulever le poids formidable qui pèse sur chacun de nous, mais plus particulière-
ment, sur eux, ces laboureurs du pétrole, ces paysans aux frontières des empires :
le poids de l’ordre du monde entier. C’est peut-être la première grande insurrec-
tion contre les systèmes plannétaires, la forme la plus moderne de la révolte et la
plus folle25 (Foucault, 1994, p. 716).
25 Quando eu parti do Irã, a questão que me colocava sem cessar era: “Isto é uma revolução?” Eu não respondi. Mas tenho o desejo
de dizer: isto não é uma revolução, no sentido literal da palavra: uma maneira de se colocar de pé e se perfilar. Esta insurreição de
homens com as mãos nuas que querem levantar o peso formidável que pesa sobre cada um de nós, mais particularmente, sobre eles,
esses trabalhadores do petróleo, esses camponeses das fronteiras dos impérios: o peso da ordem do mundo inteiro. Essa pode ser a
primeira grande insurreição contra os sistemas planetários, a forma mais moderna da revolta e a mais louca (Foucault, 1994, p. 716,
trad. livre da autora, apud Marocco, 2008, p. 40).
52
Estes rastros foucaultianos calham no modo de Brum fazer jornalismo de dar voz a
quem não tem voz. Para além dessa semelhança, ela desenvolveu um modo genuíno de se
aproximar da fonte, usando dois instrumentos, o olhar e a escuta. Com o tempo foi dei-
xando de fazer perguntas e percebeu nas relações de entrevista, que as perguntas são uma
forma de controle. Em geral, depois de se dirigir ao entrevistado com um pedido: “me
conta”, ouve informações importantes que não saberia se tivesse feito a primeira pergun-
ta, que já direciona. Encontrou um modo singular de fazer jornalismo.
O desafio de cada repórter hoje, e deveria ter sido sempre assim, é descobrir qual
é sua voz, qual é o seu jeito de fazer as coisas. Tenho o meu e vou passar o resto
de minha vida procurando a minha nova voz. Quando a encontro, ela logo me
escapa, porque estou sempre descobrindo uma coisa. E cada um vai ter que fazer
isso para ter uma voz que seja sua e seja escutada (Brum, 2012, p. 83).
Há, neste modo de entrevista, uma influência forte da psicanálise, mas a intenção é
outra, o lugar do jornalista é outro, porque, ao final, a história que foi ouvida será contada.
Outra característica desta escuta é que não arranca nada de ninguém, nem valoriza alguma
“coisa bombástica” que o entrevistado não gostaria de ter dito. Assim, se afasta tanto da
psicanálise quanto do sensacionalismo jornalístico barato. “As pessoas me contam porque
desejam me contar” (Brum, apud Marocco, 2012, p. 80). O que se forma na relação é um
pacto de confiança, em que os limites, segundo a repórter, devem ser questionados cons-
tantemente. “Todo dia tens que pensar se estás infringindo alguma lei invisível, se estás
passando dos limites com as pessoas.”
Hoje, o meu limite é muito mais claro. O meu limite é me colocar no lugar do ou-
tro. Se preciso buscar alguém, se preciso bater na porta de alguém, eu me coloco
no lugar dessa pessoa: como me sentiria se um jornalista batesse na minha porta?
Como me sentiria diante de tal pergunta? Eu poderia respondê-la? Se a resposta
for não, não bato nessa porta. Porque o meu limite é dado pelo seguinte: não
posso pedir para alguém aquilo que não sou capaz de dar (Brum, apud Marocco,
2012, p. 80).
53
Lucas Coelho critica a relação corriqueira que é estabelecida com a fonte, de “uma
arrogância terrível”, se pensarmos que o jornalista se vale de sua posição profissional para
naturalizar o encontro com pessoas que nunca viu antes, entrar em suas casas, ouvir a sua
intimidade. Ao fazer da atualidade o seu objeto, o jornalista lida com vidas, mortes, sen-
timentos, em cujo espessor, segundo Lucas Coelho, é importante indagar-se sobre como
se aproximar do outro que será protagonista, como buscar sua confiança, por que o outro
vai confiar-lhe suas histórias?
Isto é uma coisa em que eu sempre penso: que chego a um lugar e, de repente,
ali, em um barraco, em Gaza, converso com uma mulher que me conta que os
filhos dela foram mortos. E ela não me conhecia há cinco minutos. [...]. Este é
o trabalho do jornalista. Ele está ali a tentar contar, se acredita na história, se
acredita que há um bom motivo para estar ali, então isso ultrapassa a sua timidez,
ultrapassa o seu medo (Lucas Coelho, apud Marocco, 2012, p. 164).
Ela se coloca próxima do indivíduo que está a sua frente e pensa: “Esta pessoa sou
eu, pode ser eu”. Este giro identitário, segundo a repórter, torna mais sólida a percepção
de que esta pessoa podia ser ela; ao mesmo tempo auxilia a construção do respeito ao
outro e auxilia a compreensão da diferença cultural e social que existe entre regiões ge-
ográficas tão dispares como os Estados Unidos e o Afeganistão, a África e o Brasil. Tal
perspectiva permite que Lucas Coelho reconheça a dignidade de cada fonte e considere a
história diferente e complexa que cada uma delas pode representar.
Este é o grande lance: a dignidade. Da inteireza e da dignidade de uma pessoa
que está a nossa frente. E isso tem a ver com o que? Tem a ver com o som da
voz, tem a ver com os gestos, detalhes, tudo isso me interessa, que essa pessoa
possa se destacar em todas suas diferenças, particularidades (Lucas Coelho, apud
Marocco, 2012, p. 163).
54
Muitas vezes são acontecimentos do passado que instigam o repórter a desdobrar,
na atualidade, vozes silenciadas. O livro Colônia, ilustrado com as fotografias feitas por
Luiz Alfredo para a revista O Cruzeiro, em 1961 e publicado em 2008, pelo governo de
Minas Gerais, foi o elemento que faltava a Daniela Arbex para ter a certeza de que preci-
sava conhecer o que havia restado do “pior capítulo” da história da psiquiatria mineira. O
livro foi entregue a ela, após uma entrevista, pelo psiquiatra José Laerte, vereador em Juiz
de Fora.
Ao folhear a primeira página, levei um susto: – Não acredito – repeti, por diver-
sas vezes, ainda no gabinete do vereador. [...]. Senti-me na obrigação de contar às
novas gerações que o Brasil também realizou um extermínio. Quantos persona-
gens restavam vivos? O autor das fotos contava, então, com setenta e sete anos,
e suas memórias deram o pontapé inicial à minha investigação (Arbex, 2013, p.
189-190).
Outra pista veio do professor Ivanzir Vieira que testemunhou a compra de um lote
de 30 cadáveres pela UFJF, que eram somente um lote do comércio regular que totalizou
a venda de 1.823 corpos pelo Colônia para 17 faculdades de medicina do país entre 1969 e
1980. Em entrevista, o psiquiatra de Belo Horizonte, Paulo Henrique Alves, 75 anos, que
era estudante de medicina da UFMG em 1967, recordou como eram as peças anatômicas
disponibilizadas para dissecação.
No primeiro ano de medicina, não tínhamos ideia da crueldade que estava por
trás daquelas peças. Às vezes, ao dissecarmos um pulmão, percebíamos a presen-
ça de tuberculose, e os professores diziam que isso era comum nos cadáveres de
Barbacena (em Arbex, 2013, p. 77).
Em vida, 70% dos pacientes não tinham diagnóstico de doença mental. Eram epilé-
ticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, meninas grávidas, violentadas pelos patrões,
filhas de fazendeiros que haviam perdido a virgindade antes da hora, tímidos, pelo menos
33 crianças – no inventário de Brum, “gente que se tornara incômoda para alguém com
mais poder” (2013, p. 14). Para desdobrá-los como personagens, na voz de alguns sobre-
viventes, Arbex consultou documentos históricos e entrevistou mais de cem pessoas, que
sobreviveram ao Colônia, funcionários e médicos.
Sessenta mil pessoas perderam a vida no Colônia. As cinco décadas mais dramá-
ticas do país fazem parte do período em que a loucura dos chamados normais di-
zimou, pelo menos, duas gerações de inocentes em 18.250 dias de horror. Restam
hoje menos de 200 sobreviventes dessa tragédia silenciosa (Arbex, 2013, p. 26).
55
a aquecer. A massa humana tinha forma de roda: os do lado de dentro, mais protegidos
do vento, trocavam de lugar com os de fora para que todos recebessem calor por algum
tempo.
Sônia Maria da Costa e Terezinha foram ambas pacientes internadas no Colônia. Sô-
nia, por mais de 40 anos, socorria Terezinha em suas crises de otite, aquecendo remendos
de cobertor no pátio para amenizar a dor da amiga. Sonia sustentava a cabeça de Terezinha
entre os braços e aproximava o pano quente do ouvido que latejava sem trégua. Repetia
o gesto até que a outra adormecesse em seus braços. “Todo dia eu rezava para ela não ter
crises, tadinha. Tinha muita pena, porque não era esperta como eu e não tinha ninguém
para cuidar dela. Não podia deixar que judiassem dela” (Costa, em Arbex, 2013, p. 50).
Em 2003, as duas saíram do Colônia e foram morar juntas numa residência terapêutica de
Barbacena. Sônia foi uma das sobreviventes entrevistadas por Arbex.
Sônia cresceu sozinha no hospital. Foi vítima de todos os tipos de violação. So-
freu agressão física, tomava choques diários, ficou trancafiada em cela úmida sem
um único cobertor para se aquecer e tomou as famosas injeções de “entorta”, que
causavam impregnação no organismo e faziam a boca encher de custe. Deixada
sem água, muitas vezes, ela bebia a própria urina para matar a sede [...]. Assim
como a interna Celita Maria da Conceição, ela passou as próprias fezes no corpo
durante o período em que esteve grávida no hospital (Arbex, 2013, p. 51-53).
Foi o jeito que as internas grávidas encontraram para proteger a si e ao filho que
carregavam. Sônia teve dois filhos no Colônia; o que sobreviveu, na época da entrevista,
tinha 25 anos e estava preso. Geralda Siqueira Santiago Pereira, aos 62 anos, pode abraçar
o filho, João Bosco Siqueira, 46 anos, chefe da banda do Corpo de Bombeiros de Minas
Gerais. Estuprada pelo patrão, aos 11 anos, foi internada no Colônia por duas irmãs de
caridade e separada do filho aos 18. Encaminhado como órfão ao Patronato Padre Cunha,
mais tarde à Febem Lima Duarte, onde aprendeu a tocar tuba e ganhou um lugar na
banda. Entrou no Corpo de Bombeiros tornando-se chefe da banda. Em 2011, em seu
aniversário de 45 anos, ele e Geralda se reencontraram na festa que os músicos da banda
prepararam para eles.
No livro Viagem à Palestina, Adriana Mabília deu voz a mulheres palestinas para visi-
bilizar o quase silêncio que existe sobre elas nas mídias brasileiras. Antes de viajar à Cisjor-
dânia, ouviu palestinas que vivem no Brasil. Recém-chegada, encontrou-se com Suheir,
presidente de organização não governamental que ensina mulheres a usar câmeras de
vídeo – elas registram dramas pessoais, aprendem uma profissão, discutem a situação da
mulher na sociedade palestina. Suheir vive no campo de refugiados Dehaisha, em Belém,
com seus três filhos. Pernoitou na casa de um casal de brasileiros, que imigrou para Car-
mel, bairro novo de Haifa27, preocupada em ouvir os dois lados do conflito. Das palesti-
nas ouviu que ali se vive em confinamento: não há acesso livre a médicos, à educação, à
27 Haifa é a maior cidade do norte de Israel e a terceira maior cidade do país, depois de Jerusalém e Tel Aviv.
56
diversão, à alimentação, à água. “A cada passo que tentamos dar, cada vez que temos que
nos locomover, mesmo dentro do que restou para nós da nossa terra, somos submetidos
a constrangimentos” (Suheir, depoimento à Mabília, 2013, e-book, s/p.).
O repórter Caco Barcellos tem escrito livros para preencher os vazios informativos
da mídia. No livro Rota 66 ele estruturou um sistema de arquivo que desdobra o que foi
publicado pelos jornais com o apoio dos Boletins de Ocorrência, a que estes têm acesso
regular. Trata-se de um método de investigação que diversifica as fontes consultadas para
além da polícia e assim complexifica o exercício cotidiano da reportagem jornalística sobre
crimes. Isso fica claro quando se chega ao coração de sua investigação, no que o repórter
denomina “banco de dados não oficiais”, em que uma rede de informações de múltiplas
proveniências dá novos sentidos a uma base de dados jornalística: uma coleção de matérias
do jornal Notícias Populares (NP) sobre tiroteios entre pessoas suspeitas e policiais militares.
Além da versão oficial da polícia, Caco Barcellos entrevistou médicos dos hospitais
mais procurados pelos policiais para encaminhar suas vítimas – Santa Marcelina, Pirati-
ninga e Jabaquara – e levantou informações sobre crimes da Rota, tropa da polícia militar
de São Paulo, em cartórios da Justiça Militar, processos arquivados ou em andamento e
documentos do Instituto Médico Legal (IML) com informações sobre as pessoas mortas
em São Paulo por causa violenta (Barcellos, 1997, p. 67, 109, 122, 141). A partir das mortes
noticiadas pelo NP, Barcellos revirou os documentos do IML atrás do registro das mortes
na data do tiroteio investigado. Foi criado um arquivo no computador com os dados de
mais de 20 mil óbitos com as seguintes características, consideradas as de uma vítima po-
tencial da PM: jovens de uma região pobre da cidade, com mais de dois ferimentos à bala,
cujo corpo tinha sido recolhido pelo carro do IML em hospital. Depois foi feito o cruza-
mento com os dados do NP. Apenas por este método foi possível descobrir a identidade
de 145 mortos desconhecidos (ibid., p. 125-126).
Eu tive que fazer exumação, ir atrás de cadáver. Fazia plantão no IML, eu e o
Sidney, menino que era engraxate na infância, que me ajudou muito, me ajudou
fazendo plantão no IML. Queria ver os cadáveres. “Se encontrasse um cadáver
com concentração de tiro em zona vital, como na nuca, nem existe possibilidade
disso ser um indício de tiroteio. Ainda mais se há marca de tiro a queima roupa,
como o do Pixote, como nós o encontramos. Isso é indício de execução, não de
tiroteio. E isso é uma prova científica (Barcellos, em entrevista a Dráuzio Varela,
09/02/2017, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=IVTqB0rwHaw).
Eu vi que tinha coisas jamais vistas na história da humanidade. Nunca tinha ha-
vido uma polícia que havia matado tanto. Era um volume muito grande, de 12
mil pessoas que eles haviam matado, quando eu decidi escrever. Eu tava em crise,
já muito grave na profissão, achava que eu não deveria continuar repórter, e se
essa cena acontecesse diante de mim, todos os dias. […] Quando eu conseguia
provar que tinha sido execução, que as pessoas estavam humilhadas, ajoelhadas,
com as mãos na cabeça, assim, eles puniam o soldado, o que aperta o gatilho.
Eu sabia já que era um sistema: o esquadrão da morte financiado pela sociedade
57
brasileira. O estado brasileiro. Então, eu queria fazer uma denúncia contundente
(idem, ibidem)
Se eu não conseguir, eu vou ter que abandonar essa profissão. Relatos oficiais
são mentirosos [pra pensar a subversão das fontes oficiais]. Eu sabia que eram
mentirosos. E todo o dia, eu evitava a mentira apurando muito, mas muita gente
que não tinha, sei lá, vontade, coragem, ou algumas até preguiça, simplesmen-
te reproduzia os relatos do comando da polícia militar aliás, você é obrigado a
reproduzir todos os lados da história, e alguns encerravam seu trabalho apenas
no relato, que legitimava todo esse extermínio. Então, isso é algo que tem que
ser feito, ou eu abandono a profissão e vou fazer outra coisa. Já fui feliz fazendo
outras coisas. Daí eu resolvi fazer o livro, diante desse dilema (idem, ibidem).
Em Abusado, as noções de fonte, método de apuração, texto e edição são ainda mais
tensionadas. Desde as primeiras páginas, fica claro o lado que Barcellos escolheu: o dos
mais fracos, das vítimas, e como se coloca em tal posição, criticando, na sombra, os ele-
mentos que são fundamentais para o jornalismo hegemônico: a “objetividade jornalística”
e as “fontes oficiais”. Suas fontes, que deram longas entrevistas, foram os amigos e paren-
tes de traficantes, que se dispuseram a contar histórias, pessoalmente ou por telefone, às
vezes durante a madrugada, e que não tiveram seus nomes revelados no livro. Os nomes
de gente honesta, ou não, foram omitidos (Barcellos, 2003, p. 9-11). É possível então que,
com a promessa de anonimato, as fontes tenham contado histórias exageradas ou menti-
rosas.
Em Abusado, Barcellos evidenciou, igualmente, como a reportagem, que se prende
ao marco da “objetividade jornalística”, pode se situar mais próxima da ficção e da men-
tira do que o “romance” que escreveu. Foi o que ocorreu com a entrevista de Juliano aos
repórteres do Jornal do Brasil, O Dia e O Globo. Os três repórteres concordaram que haviam
perguntado a Juliano se ele tinha algum vício, mas cada um teria ouvido resposta diferen-
te. Nelito Fernandes, de O Globo, não entendeu direito a resposta, que teria sido: “Nunca
fiz isso. Eu não cheiro, não fumo, não bebo, só fumo o mato certo”. Na dúvida, optou
pela prudência: não reproduziu a frase na entrevista, atitude que o levou a ser cobrado
na redação por ter sido furado pelos concorrentes. Silvio Barsetti, de O Dia, reproduziu a
resposta com final diferente, mudando completamente o significado: “Nunca fiz isso. Eu
não cheiro, não fumo, não bebo. Só mato o certo”. Marcelo Moreira escreveu, no Jornal do
Brasil, uma forma ainda mais alterada da frase atribuída a Juliano: “Eu não bebo, não fumo
e não cheiro. Meu único vício é matar, mas só mato quem merece morrer” (em Barcellos,
2003, p. 351).
Carlos Dorneles, referindo-se particularmente às vítimas “que não têm importância”
para a polícia brasileira (Lourenço, 1997, em Dorneles, 2007, p. 263), desenvolveu um viés
de crítica das práticas em relação ao crime de imprensa. Para o repórter, a exploração da
miséria humana comprovou a “fantasia maior [...] de que a imprensa só retrata” (Dorne-
les, 2007, p. 220). Se o “real” na sociedade é uma forma de racionalidade ligada por laços
58
complexos e circulares a formas de poder (Foucault, 2006, p. 329), o que foi revelado
por Dornelles no livro “Bar Bodega, um crime de imprensa”, se trata da inflexão desta
racionalidade no jornalismo, que, entre outras distorções leva as mídias a se pautarem por
informações da polícia, explorarem a miséria humana e se revelarem contumazes insufla-
doras do preconceito de classe. Ao livro foi dada, igualmente, a classificação de “livro re-
portagem”, embora nele se evidencie, mais do que uma reportagem estendida, uma crítica
às práticas jornalísticas, baseada na análise de um extenso arquivo de textos que “acusam,
julgam e penalizam com execração pública” (Lourenço, 1997, em Dorneles, 2007, p. 260),
complementado por breves relatos e entrevistas sobre o destino do grupo que havia sido
barbaramente torturado, acusado pela polícia e absolvido, dez anos depois do caso.
As lacunas de informação das mídias apontam para “a má fé das pessoas que têm
preguiça” (Brum, discurso lido na entrega do Prêmio Comunique-se, 11/09/2018). Em
outras palavras, o que foi dito por Brum pode ser diagnosticado em um sem número de
episódios da relação precária existente entre as mídias jornalísticas e a função social do
jornalismo. Nos silenciamentos atribuídos aos diretores de redação, que são “muito bem
pagos” para estabelecer um controle na redação e fazer com que os jornais brasileiros
sejam cada dia mais iguais uns aos outros. “E meio aborrecedores, para usar o termo da
linguagem comum, meio chatos”. São estes chefes os mais obedientes. “Obedientes à
obediência, ficam áulicos, são os áulicos do jornalismo” (Tavares, apud Marocco, 2012,
p. 144). Nesta composição desigual, em que o funcionamento da engrenagem está
enquadrado à sociedade de consumo e ao regime de verdade28 que lhe corresponde, as
pessoas defendem seus pequenos interesses, não há uma verticalidade formal imposta.
Flávio Tavares lembra um caso que presenciou na redação de São Paulo da extinta Última
Hora, onde trabalhou como estagiário.
A Última Hora do Rio era divorcista, a Última Hora de Porto Alegre era divor-
cista. Na de São Paulo não se podia falar bem do divórcio. Por quê? [...]. Porque
a família Matarazzo tinha dado dinheiro para o jornal. O Chiquinho Mataraz-
zo, sujeito antiamericano, era um dos acionistas do jornal, e dizia: “Não, esse
dinheiro, vocês podem ficar com esse dinheiro, só que vocês não podem ser a
favor do divórcio”. [...]. O que eu quero dizer é que eu temo mais a ditadura da
mediocridade do que a imposição ditatorial. Porque a ditadura da mediocridade
é a ditadura que atinge pelo medo [...]. A omissão do medo. Eu vejo isso muito
28 “O importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é a recompensa dos espíritos livres, o filho das
longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas
coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade:
isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir
os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados
para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro. Em nossas sociedades,
a ‘economia política’ da verdade tem cinco características historicamente importantes: a ‘verdade’ é centrada na forma do discurso
científico e nas instituições que o produzem; está submetida a uma constante incitação econômica e política (necessidade de verdade
tanto para a produção econômica, quanto para o poder político); é objeto, de várias formas, de uma imensa difusão e de um imenso
consumo (circula nos aparelhos de educação ou de informação, cuja extensão no corpo social é relativamente grande); é produzida
e transmitida sob o controle, não exclusivo, mas dominante, de alguns grandes aparelhos políticos ou econômicos (universidade,
exército, escritura, meios de comunicação); enfim, é objeto de debate político e de confronto social (as lutas ‘ideológicas’).” (Fou-
cault, 1993, p. 12-13).
59
nos jornais [...]. Sempre alguém, um superior na redação, é mais realista que o rei
(Tavares, apud Marocco, 2012, p. 145).
60
Com a polícia pressionada pelo noticiário e as reações da população, começaram as
primeiras prisões de suspeitos, imediatamente identificados como culpados por boa parte
da mídia: enquanto um jornal da capital anuncia ‘Presos assassinos do Bar Bodega’, a co-
lunista Barbara Gancia escreve que os assaltantes do Bodega “São veneno sem antídoto,
nenhum presídio recuperaria répteis dessa natureza. A vontade de qualquer pessoa normal
é enfiar o cano do revólver na boca dessa sub-raça e mandar ver” (em Dorneles, 2007, p.
36). Cléverson foi levado para uma delegacia policial depois de um assalto frustrado, onde
o carcereiro o reconheceu como sendo o “cara do Bar Bodega” (Dorneles, 2007, p. 30).
Quanto mais negava, mais forte era o espancamento, até que acabou confessando ser o
líder do bando do Bar Bodega. A polícia queria um cúmplice e Cléverson denunciou Val-
mir, que denunciou Luciano, que conhecia de vista: todos eles jovens negros da periferia
de São Paulo, que denunciou...
O delegado também deu destaque à prisão do tal “Marcelo Negão”, e listou qua-
se todas as testemunhas, garantindo que elas eram uma base sólida para culpar
os acusados. Chegou a citar duas pessoas que reconheceram alguns dos detidos
com apenas 80% e mesmo 50% de certeza. Em nenhum momento o delegado se
referiu à estranha transformação dos assaltantes do Bodega: testemunhas viram
homens brancos, ele prendeu negros e mulatos (Dorneles, 2007, p. 119).
Os leitores dos dois maiores jornais de São Paulo – OESP e FSP – receberam em
casa, diariamente, de quatro a oito páginas sobre violência. No julgamento, em março do
ano seguinte, a história montada pela polícia foi desconstruída e os verdadeiros culpados
condenados. Na sentença, o juiz José Ernesto de Mattos Lourenço afirmou que o “caso
Bodega” se configurou uma referência obrigatória para descrédito da atividade policial.
Para dar ainda mais consistência ao subtítulo do livro, “crime de imprensa”, que os manu-
ais de jornalismo adotaram para este e muitos outros casos, Dorneles saiu atrás do grupo
que havia sido torturado e acusado injustamente, dez anos depois do acontecimento, na
contramão do modo de objetivação jornalística para quem culpados ou inocentes sempre
têm vida curta, que coincide com o espaço necessário à cobertura do acontecimento e o
tempo da atualidade quase-imediata. Muitas idas e vindas frustradas aos endereços que
constavam no inquérito, silêncios, traumas e rejeição à imprensa, como efeito da imagem
negativa disseminada pela mídia, foram relatados pelo repórter, que ouviu parentes, soube
que Natal e Jailson haviam voltado à prisão e que os outros desistiram de sonhos de ju-
ventude ou haviam se conformado com quase nada.
Sobre Natal, que estava preso, a irmã contou:
O Natal que apareceu na imprensa dez anos atrás, fotografado na banca de fru-
tas, durou só dois dias. O dono da banca disse que ele podia ser um bom menino,
mas “ia acabar afastando a freguesia com essa fama do Bodega. Flávia, na época
com treze anos, teve que abandonar a escola, tinha virado “a irmã do bandido”
(Dorneles, 2007, p. 184).
61
No Taboão da Serra, Dorneles andou a esmo, à procura de Benedito, perguntou para
qualquer pessoa que encontrava na rua, perguntou nos bares próximos dos endereços que
constavam no inquérito, até que um dia encontrou um papelzinho no limpador de para-
-brisa. Dizia: “Procura no bar do Adelmo”. No bar, depois de muitas cervejas, Adelmo
contou que sabia de uma sobrinha do Benedito que morava em Embu das Artes, deu o
nome da rua, mas não sabia o número. Antes de seguir a pista de Benedito, foi ao encontro
da mulher de Jailson, Geralda, de quem tinha ouvido, para sua surpresa, que falaria com
ele, sem problemas. Encontrou-a vivendo numa favela, “um dos lugares mais pobres da
cidade”, em uma casa de três cômodos, com os filhos, três meninas e um menino, todos
filhos de Jailson e Geralda. À pergunta sobre Jailson, Geralda respondeu sem rodeios:
[...] está preso, é a terceira cadeia que pega desde o Bodega. Mas e o trabalho na
autoescola do irmão de criação? Geralda conta que não durou mais do que um
mês. Um dia o irmão pediu, todo sem jeito, que Jailson não trabalhasse mais lá.
Os clientes ficavam falando dele e do caso Bodega, gente do comércio ao lado
comentava e isso poderia prejudicar os negócios, Jailson foi embora. Alguns me-
ses depois, foi preso por assalto no interior, Geralda não sabia direito em que
cidade. [...] Gabriela não tinha quatro anos quando o pai foi preso por causa do
Bodega. Mas diz que lembra de tudo. “Não vou esquecer do meu pai apanhando
na minha frente, quando invadiram aqui. Eu gritava desesperada pra eles parar.
Tá tudo guardadinho aqui”, falou apontando a testa (Dorneles, 2007, p. 189).
O repórter voltou várias vezes ao sobrado típico de classe média da periferia de São
Paulo, da família de Valmir Vieira Martins, até que os pais, gentilmente, contaram que
muito abalado com o que havia acontecido, ele não comentava o assunto com ninguém.
“Quando você toca a campainha, ele já corre para o quarto”. Foram duas horas de conver-
sa com os pais que nunca ouviram nada sobre as torturas que o filho havia sofrido. Qua-
tro meses depois, Dorneles encontrou Valmir, que antes do Bodega tinha planos de ser
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advogado, mas não retomou os estudos. “Por que você relutou tanto em falar comigo?”,
perguntou Dorneles. “Porque com a imprensa eu me sinto mais indefeso do que com a
polícia”, respondeu Valmir (Dorneles, 2007, p. 198).
Valmir da Silva continuava morando no mesmo endereço, trabalhava como porteiro
numa firma terceirizada, casado com Ilza, com quem tinha uma filha. Contou a Dorneles
que o sonho de ser bombeiro foi parcialmente levado a termo; tornou-se um voluntário,
porque não quer ser militar, nem PM, nenhum tipo de polícia. “Se eles fizeram aquilo co-
migo, será que eu também não faria com outros se fosse policial?” Um dia, o supervisor
da empresa mostrou uma carta anônima que recebera com recortes de jornais e fotos de
Valmir preso. O episódio não se repetiu e o supervisor esqueceu a demissão, que viria,
avisou, caso algum cliente viesse a receber a mesma carta.
Mas a carta foi a única e o episódio foi esquecido. Não por Valmir. Desde que
foi solto, dez anos antes, sempre teve dificuldade para arranjar emprego. Perdeu
vários porque diziam que o nome dele estava sujo. No primeiro trabalho que
conseguiu, numa distribuidora de gás, perguntaram se ele já teve algum problema
com a polícia. Não quis esconder, contou a história. Foi contratado sem nenhum
direito trabalhista (Dorneles, 2007, p. 201).
Cléverson, o pivô do caso Bodega, morreu uma semana antes de completar 20 anos:
cinco tiros, dois na cabeça e três nas costas. Valmir da Silva e Valmir Vieira Martins en-
traram na justiça com processo contra o estado. Até 2007, ano da publicação do livro de
Dorneles, não haviam recebido indenização nenhuma. Os policiais acusados de tortura
continuaram suas carreiras normalmente. Nenhuma das mídias envolvidas foi processada
e, nas palavras do juiz José Ernesto de Mattos Lourenço, que condenou os verdadeiros
culpados, em julgamento no dia 20/03/1997, “diariamente continuam explorando as notí-
cias na corrida louca da audiência que, na verdade, tem por finalidade o lucro” (Lourenço,
1997, em Dorneles, 2007, p. 263).
Ação – acontecimentalizar
Como é possível operar de outro modo com o acontecimento, no âmbito das práti-
cas jornalísticas? Na linha desenvolvida por Foucault na “reportagem de ideias”, pode-se
inferir que um giro no modo de objetivação jornalística do acontecimento, tendo como
horizonte uma aproximação entre jornalismo e filosofia, afetaria sujeitos e práticas da
produção. Na reflexão sobre uma prática de “reportagem de ideias”, Foucault definiu a
“acontecimentalização”, relacionando-a com uma figura de muitas arestas.
Procuro trabalhar no sentido de uma “acontecimentalização”. [...]. O que isso
quer dizer? [...] construir em torno do acontecimento singular analisado como
processo, um “polígono”, ou melhor, “poliedro de inteligibilidade”, cujo número
de faces não é previamente definido e nunca pode ser considerado como legi-
timamente concluído. [...]. Há muito tempo que os historiadores não gostam
muito dos acontecimentos, e fazem da “desacontecimentalização” o princípio de
inteligibilidade histórica (Foucault, 2006, p. 339).
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Na abrangência do que se pode inferir do que foi escrito por Foucault acerca do
trabalho de “desacontecimentalização”, realizado por historiadores, pode-se interrogar o
trabalho dos jornalistas, colocando-o sob suspeita: “o que está acontecendo com nosso
presente que não chega até nós?”. Com foco em um acontecimento jornalístico preciso
– a chamada Revolução Islâmica – sobre o qual foram constituídas zonas de silêncio no
Ocidente, Foucault indicou que o projeto a ser levado adiante ocuparia a contracorrente
do que havia sido feito pelas agências internacionais de informação. Nos termos foucaul-
tianos, o jornalismo deveria dar lugar à investigação da atualidade, que passasse pelo fio
miúdo e tênue dos acontecimentos. A informação, com isso, passaria ao centro das ações,
concebida como arma contra os efeitos de desinformação provocados pelos mecanismos
de poder que, postos em funcionamento pelas agências internacionais de informação,
haviam produzido e disseminado ideias estratificadas no Ocidente sobre o que acontecia
no Irã. São os mecanismos de poder que mantêm regiões escondidas que Foucault consi-
derou alvo para sua intervenção.
A ação do jornalista para dar conta do acontecimento, no sentido de acontecimenta-
lizar, i.e. complexificá-lo nas várias arestas de um poliedro de inteligibilidade, supõe uma
atitude crítica em relação às práticas jornalísticas coetâneas que prescrevem a suspensão
da experiência subjetiva e a submissão a um jogo de força entre o código que regula ma-
neiras de fazer (como selecionar acontecimentos, como selecionar fontes, como organizar
um texto) e uma produção de discursos verdadeiros, cuja forma dominante é a pirâmide
invertida. Ao se dizer jornalista, Foucault mostrou outro caminho por onde queria andar,
a contrapelo do que diziam os jornais sobre a Revolução Islâmica, para assistir “ao nas-
cimento das ideias e à explosão de sua força: não nos livros que as enunciam, mas nos
acontecimentos em que sua força se manifesta” e, com isso, revelar o que era silenciado
pelas agências de notícias internacionais do Ocidente sobre o Irã (Foucault, em Berger e
Marocco, 2008, p. 38).
Ao ser criticado, por seu envolvimento no Irã, em função da “ditadura dos aiatolás”
a que o final da revolução e a queda do Xá deram lugar, Foucault escreveu dois ou três
artigos em que descreve a sua ação de jornalista “neófito”. Explica que se interessou pelo
processo coletivo resumido por ele no termo “espiritualidade política”, ou seja, por “uma
história sonhada que era tão religiosa quanto política”. A espiritualidade, à qual se referiam
aqueles que se insurgiram e que escolheram morrer por uma causa, segundo Foucault
(2006b, p. 79), não poderia ser reduzida ao que veio depois, com o “governo sangrento de
um clero fundamentalista”.
Existem mais ideias sobre a terra que os intelectuais podem imaginar. E essas
ideias são mais ativas, mais fortes, mais resistentes e mais apaixonantes que pode-
riam pensar os políticos. É preciso assistir ao nascimento das ideias e a explosão
da força delas: e isso, não nos livros que as enunciam, mas, sim, dentro dos acon-
tecimentos nos quais elas manifestam sua força, nas lutas que se travam pelas
ideias, contra ou com elas (Foucault, em Berger e Marocco, 2008, p. 50).
64
Neste duplo sentido – de pertencimento e na ação de reconhecimento do presente
– o trabalho do jornalista, em uma relação de exterioridade com a filosofia, se diferencia,
necessariamente, do que é feito nas mídias. O jornalista se integra a um certo “nós”, que
o abarca e relaciona ao que acontece na sua/nossa atualidade para dar visibilidade, por
exemplo, à violência brasileira. Sob inspiração do “jornalismo filosófico”, ainda que isso
leve o peso da inferência interpretativa, a que Foucault gostava de aludir, Brum coloca
em jogo a atualidade. No quadro, desenhado por ela, as várias arestas do poliedro, que as
mídias dominantes regularmente fragmentam em diferentes editorias, como mundo, país,
meio-ambiente, crime etc., se referem a: o Brasil possui no seu território a maior porção da
maior floresta tropical do mundo; o mundo passa por uma crise climática; cresce o poder
da grilagem e dos desmatadores; os ruralistas se tornaram fiadores do governo; crimes são
cometidos historicamente contra ambientalistas e minorias; intervenção militar no Rio de
Janeiro.
Num momento de crise climática, a maior relevância do Brasil no cenário in-
ternacional é ter no seu território a maior porção da maior floresta tropical do
mundo. Mas desde que os ruralistas se tornaram fiadores do governo, cresce o
poder da grilagem na Amazônia e os desmatadores avançam justamente sobre
as áreas protegidas. Em Anapu, onde a missionária Dorothy Stang foi morta em
2005, hoje a situação é muito mais explosiva. Desde 2015, 16 camponeses foram
assassinados sem que nada se mova neste país. Nas comunidades do Rio, cabeças
de crianças negras têm sido arrebentadas à bala, antes e depois da intervenção. O
Brasil não tem guerra, o que tem é massacre. E há séculos ele destrói os mesmos
corpos: o dos negros e o dos indígenas (Brum, El Pais, 12/09/2018).
O texto publicado no jornal El Pais foi escrito por Brum para ser lido na cerimônia
de entrega do prêmio “Comunique-se” vencido por ela em 2018, na categoria “Colunista”.
No fragmento anterior, a repórter desdobra as camadas discursivas abaixo da superfície
da atualidade, em diferentes arestas. As informações são lançadas em certa desordem e
parecem, assim, subverter a representação jornalística. Em seu conjunto, dão conta do
compromisso da repórter de falar a verdade, em uma posição de exterioridade rebelde
em relação à política e ao jornalismo. Nesta posição, Brum se aproxima dos filósofos da
antiguidade que associavam a questão central da filosofia (“como ter acesso à verdade),
da questão da espiritualidade (quais as transformações que permitirão ao ser do sujeito o
acesso à verdade). Ela evidencia que há algo mais na sua inquietação de dizer a verdade.
Na junção da verdade à prática, Brum descobre uma potência ética, um engajamento sub-
jetivo e uma certa coragem que remete ao plano das teorias e à ordem da representação,
mas também ao plano das atitudes e das sensações, ao corpo e ao olhar, à ordem das prá-
ticas que constituem todo um modo de existência que a repórter atribui à “alma aberta”
com que faz emergir vidas anônimas, silenciadas pelo jornalismo, que estão presentes na
origem do acontecimento e em seus desdobramentos ao longo da história do Brasil. Fou-
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cault denominou este mergulho na vertical de si mesmo de “A coragem da verdade”, título
que deu aos dois últimos anos de aulas proferidas no Collège de France, de 1983 a 1984.
É preciso ter a alma aberta, um olhar sensível, e coragem para resistir e insistir
no jornalismo que conta a verdadeira história de uma nação a partir das pessoas
comuns, ou simplesmente anônimas, quando não, invisíveis. É pelo olhar desses
personagens que se enxergam as reais cores e dores de um país como o Brasil (El
Pais, 12/09/2018).
Lucas Coelho percorre outro viés de aprofundamento no real: a literatura é vital para
que dê densidade à perspectiva de algo que vem do início dos tempos e se projeta para o
futuro. Foram muitos os vértices que desenvolveu para explorar o México, com apoio da
poesia de Octávio Paz, ou do romance Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, para a
primeira reportagem que fez no Brasil, sobre a campanha à presidência de Dilma Rous-
seff. A viagem da repórter começou em Araçuaí, no Vale do Jequitinhonha, no Norte de
Minas. Por que? É o lugar de onde o personagem Riobaldo traz uma pedra para o Diado-
rim, segundo o que está escrito no Grande Sertão: Veredas. A relação com a literatura, diz
ela, “vai nos dar ângulos que nós não vamos encontrar em lugar nenhum”.
[...] às vezes, podemos ir a um lugar porque temos uma relação específica qual-
quer com o livro, ou com um poema. É isso que acrescenta autenticidade à forma
como nós olhamos para as coisas, porque se houver muitas camadas em nosso
olhar, quanto mais camadas houver no nosso olhar, mais coisas vamos conseguir
ver. E a poesia é um treino para isso, exatamente como aprendemos a correr, a
poesia vai nos dando músculos para conseguirmos chegar onde mais nenhum
discurso chega (2012, p. 174).
Uma das pistas que guiaram a investigação de Arbex sobre o Colônia foi o “trem
de doido”, expressão criada pelo escritor Guimarães Rosa, para designar os “deserdados
sociais” que eram transportados até Barbacena, de vários lugares do Brasil. No conto “So-
roco, sua mãe, sua filha”, do livro Primeiras estórias, o autor descreve a situação dos trens
que chegavam apinhados de gente “à capital brasileira da loucura, em busca de tratamento
psiquiátrico”.
O escritor referia-se a Barbacena, descrevendo, por meio do personagem prin-
cipal, a angústia de um homem na despedida das únicas pessoas que tinha no
mundo e que partiriam no trem da solidão coletiva. Soroco jamais voltaria a ver
seus afetos. As famílias dos pacientes do Colônia também não. Ao receberem o
passaporte para o hospital, os passageiros tinham a sua humanidade confiscada
(Arbex, 2013, p. 28).
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e Daniela Arbex), compartilham regularmente sua experiência no ambiente universitário,
onde são conferencistas e professores na universidade (caso de Fabiana Moraes e Flávio
Tavares), ou na TV, em que Caco Barcellos coordena uma equipe de jovens repórteres no
programa “Profissão repórter”.
Brum encontrou no documentário uma forma de viabilizar a abordagem de temas
que não se enquadrava na revista Época, em que trabalhava. Depois de várias matérias
publicadas, resolveu acompanhar o cotidiano de Severina, uma sertaneja analfabeta e mui-
to pobre que estava grávida de um feto anencéfalo. Ela não suportava a ideia de levar a
gestação até o fim e foi atrás de uma autorização judicial em Brasília. Brum tirou férias da
revista e para fazer o documentário fez parceria com uma ONG de Brasília. No segundo
documentário, acompanhou a campanha da cantora Gretchen à prefeitura da Ilha de Ita-
maracá.
Quando a Gretchen tinha feito 25 anos de careira tentei vender essa pauta para a
Época. Meu ponto era: uma mulher que passou 25 anos ganhando a vida com a
“bunda” tinha algo a dizer sobre esse país. Mas, naquele momento, o chefe achou
que não, mas interpretou o fato como um desejo meu de cobrir celebridades.
[...]. Mas guardei essa ideia, porque nunca esqueço uma história. Eu posso levar
até dez anos, mas faço, eu dou um jeito de fazer (Brum, apud Marocco, 2012, p.
88-89).
Depois de três décadas de jornalismo, Lucas Coelho optou por se dedicar exclusi-
vamente a um território, segundo ela, sem regras pré-estabelecidas, nem necessidade de
responder perante ninguém: o romance. A passagem se deu naturalmente, à medida que
não existe fronteira fixa entre jornalismo e literatura; para Lucas Coelho, o que diferencia
ambos é a liberdade. O jornalista obedece a regras e a um código deontológico. Distan-
ciando-se da reportagem, ela projeta no romance, uma experiência nova de estrutura, mo-
dos narrativos e linguagem. “Gosto da ideia de experimentar coisas novas. Todos os meus
livros são diferentes e eu quero que isso continue assim”. Em janeiro de 2013, quando
começou a escrever Deus dará, decidiu deixar para trás não o jornalismo, mas “ser funcio-
nária de jornal”, no caso o jornal O Público, de Portugal.
Durante anos tentei lidar com o real no jornalismo, que tem regras. Sempre sou-
be que queria escrever livros, e por isso é que, lá muito atrás, quis ser jornalista.
Os livros estão lá desde o começo. O que distingue os romances do jornalismo
é não terem regras pré-estabelecidas, e não responderem perante ninguém. É
bom, a bem da democracia, que o jornalismo tenha regras e responda perante um
código, e leitores. O romance é um território inteiramente livre. Escrevi quatro, a
cada vez tentando uma experiência nova de estrutura, modos narrativos, lingua-
gem. É o que quero continuar a fazer (em Santos, entrevista com Lucas Coelho,
2016, online).
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Padrão dos Descobrimentos, em Portugal. Embora enquadre o livro na categoria roman-
ce, distanciado do realismo jornalístico, a escavação no passado para desfazer as dobras
sobre o acontecimento – descobrimento do Brasil – e a atitude crítica em relação ao pen-
samento do presente, em que os portugueses não reconheceram o que foi feito “no nosso
passado”, projetam uma aproximação interpretativa de Lucas Coelho da complexidade da
acontecimentalização.
Para além da herança colonial portuguesa, que se vê na violência que é a vida no
Brasil, e particularmente no Rio de Janeiro, eu queria transportar a questão da
nossa relação com o nosso passado para agora, para aqui, para este momento.
Porque eu não aceito que Portugal tenha o Mosteiro dos Jerónimos e o Padrão
dos Descobrimentos, sem que haja um tributo aos índios que nós matámos e aos
milhões de africanos que tirámos de África e que escravizámos. Eu não aceito
isto em 2016 (em Santos, entrevista com Lucas Coelho, 2016, online).
O eixo narrativo do livro se constitui no presente, num jardim no Cosme Velho, bair-
ro do Rio de Janeiro, metáfora da cidade em que Lucas Coelho morou, entre 2010 e 2014,
e onde exerceu a atividade de correspondente internacional do jornal O Público. A história
se desenrola em sete dias, na alternância entre um dia ímpar, com uma estrutura de grande
panorâmica, e um dia par, com zooms para dentro de cada personagem. Os três primeiros
dias são de criação da cidade. O quarto dia é um dia muito político, de explosão nas ruas
e de entrada do presente. No movimento seguinte a história do subterrâneo, vem à super-
fície. O narrador descreve a conquista da Guanabara, entra na história da colonização do
Brasil. O sexto dia é um dia de fantasmas. O sétimo dia convoca, em termos estruturais,
todos os mecanismos da narrativa, é o grande caldeirão, e aí vem tudo, ao mesmo tempo, a
vida da cidade, o carnaval, a história desde antes da chegada dos portugueses. O narrador,
no rastro dos narradores que conversam com o leitor, é irônico, quer em relação ao leitor,
quer em relação a si e aos personagens na condução da catarse que acontece no romance.
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É uma longa corda de mortos o que nos liga ao Brasil. Ofende-me que não
haja um tributo, um sinal aos índios e aos negros que Portugal escravizou. Isso
ofende-me pessoalmente. Eu não quero um galo gigante na Ribeira das Naus, eu
quero que Portugal faça alguma coisa em relação aos índios e aos escravos que
matou (idem, ibidem).
No romance, Lucas Coelho cria um território em que tudo cabe, inclusive a verda-
de, ou muitas verdades que podem ser colocadas em contradição. As personagens não
são completamente construídas, nem totalmente inspiradas em figuras reais, são feitas de
milhões de coisas, entre elas situa-se a cosmogonia indígena, que dá amplitude ao movi-
mento de reconhecer o outro como uma força que tem potência política. “Eu também
vejo este livro como uma intervenção política”.
Não me interessa a verosimilhança, interessa-me a verdade. Por isso é que não
me interessa a ficção, porque a ficção tende a lidar com o esforço de verosimi-
lhança. A palavra ficção é uma palavra que nos é útil para separar mundos, mas
eu prefiro usar a palavra romance, como um território em que cabe tudo. Para
mim, a fronteira entre o jornalismo e a literatura é uma fronteira que tem a ver
com a liberdade apenas. Porque o jornalista obedece a um código deontológico,
não está livre para fazer tudo, tem que ser fiel a um conjunto de princípios em
que eu acredito. Na literatura, não há cânone, não há regras, idealmente cada livro
constrói a sua própria forma, não deve nada a ninguém, não responde perante
ninguém. É outro território, não tem nada a ver com jornalismo (idem, ibidem).
A experiência de Eliane Brum com a literatura está ligada à questão da morte, com
que trabalhou intensamente como repórter entre 2008 e 2010. Neste confronto direto
com o tabu da morte sentiu necessidade de mudar a sua vida, de se reapropriar do pró-
prio tempo. Como algumas das verdades inconscientes que emergiriam nesse processo,
somente a ficção poderia suportar, precisou encontrar outra voz e outras palavras para se
expressar.
[...] quem lê meu romance e lê minhas reportagens quase com certeza dirá o mes-
mo, são vozes completamente diferentes. Sou eu, mas é outro “eu”. Na reporta-
gem a gente se esvazia para ser possuído pela voz do outro. Na ficção tens que
ter a coragem de ser possuído pela tua própria voz. E que voz é essa? É uma voz
que desconhecias ou vozes que desconhecias (Brum, apud Marocco, 2012, p. 92).
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tórias, pararia de fabular sobre a própria vida. E não há humano sem fabulação
(Brum, apud Marocco, 2012, p. 92).
Caco Barcellos fez a opção pelo trabalho na mídia e por um programa, não mais
o noticiário jornalístico, em que simultaneamente age como repórter e símil de chefe de
reportagem na coordenação de uma equipe de jovens repórteres. Na entrevista à pesquisa
“Os controles discursivos e o saber jornalístico que circula nas redações” (Marocco, 2009,
2012), Barcellos comparou o funcionamento do padrão “Jornal Nacional” com o cotidia-
no do “Profissão Repórter”. Cerca de 150 matérias são feitas por dia para o JN, dessas,
somente 14 vão ao ar. O processo seletivo é feito em etapas que incluem discussões sobre
as prioridades, produção que aprofunda o que já foi feito, novas entrevistas e apuração,
onde o repórter pode retomar o trabalho já feito, e narração. Segue-se a edição, com a
seleção das entrevistas. No mínimo quatro grupos se envolvem no processo de produção
e, dependendo, o finalizador é agregado. No “Profissão Repórter”, segundo Barcellos,
somente um grupo de nove pessoas compartilha o processo de produção e a ideia central
é ir além da história contada. O que o jornalista está contando deve vir acompanhado da
imagem que comprova que o que é dito é verdadeiro.
No Profissão Repórter é um grupo só. Você tem que estar envolvido na história
que você vai contar. Então você sugere, você seleciona e sugere. Você impõe a
discussão, você defende as histórias que quer contar. Se você vence a discussão,
você conta essa história, vai reportá-la e gravá-la. Nós sabemos, entre aspas, fazer
perguntas, filmá-las e editá-las. E é o grupo final de edição que partilha com o
repórter a finalização da edição. Somos sempre, no mínimo, nove olhares sobre
uma história, três trios e um quarto grupo então na finalização. Então te respon-
dendo à pergunta: como é que nós escolhemos as histórias: o repórter traz a sua
sugestão e briga... e todo mundo fica brigando para derrubar a história. Se a his-
tória não cai é porque ela é forte, é boa. É muito complicado, porque [...] somos
repórteres radicalmente repórteres nós queremos provar que a história que nós
estamos contando é boa, é verdadeira, é uma história que não nasceu da nossa
cabeça. É uma história de que há algum tipo de espelho lá fora, na rua. E, so-
bretudo, cada palavra dita precisa de alguma forma ser provada no que difere do
jornalismo de opinião, por exemplo. A gente sabe que no jornalismo de opinião
não há esse compromisso. [...]. Não tenho nada contra o jornalismo de opinião,
evidentemente. Nada contra a entrevista. A entrevista é importante como multi-
plicador das ideias, mas como reportagem o valor é irrisório. Então no começo
da nossa experiência, quando o repórter chegava com dez, quinze entrevistas
achando que estava com o trabalho feito para levar ao ar, eu dizia: “Você está co-
meçando o trabalho, isso não passa de uma pauta. Tem pessoas que estão falando
sobre uma determinada experiência, você está provando que isso que eles estão
falando é verdade?”. O que difere, basicamente, a entrevista da reportagem é o
elemento da prova. Por isso, nós não somos um programa de investigação, nós
somos um programa comprometido com a reportagem. O que a gente faz então,
quando vamos às ruas e falamos com as pessoas? Pedimos o seguinte: por favor,
ao invés de falar da sua história, por favor, mostre a sua história. Permita que a
70
gente acompanhe a sua história. Por isso ficamos três, quatro meses, às vezes,
atrás de uma história. É o tempo que precisamos para provar que tudo que foi
dito é verdadeiro. Por exemplo: o indivíduo diz que na linha de produção lá na
fábrica onde ele trabalha está causando danos, acidente de trabalho e lesão contra
o corpo dele. Eu posso fazer isso em quinze minutos de entrevista queixosa deste
trabalhador e explorá-la muito bem no meu documentário. O que a gente faz?
Tenta ir à linha de produção, fazer essa entrevista na linha de produção flagrando
o momento em que ele leva a lesão, por exemplo, no braço. Estamos mostrando
para o nosso público, tu não precisas acreditar no jornalista que está contando
essa história por mais brilhante que ele seja. A história, a imagem, o registro, a
ação, estão mostrando que a queixa dele é verdadeira, o fogo está queimando o
braço, no momento em que ele está na linha de produção (Entrevista concedida
à Beatriz Marocco, Christa Berger e Thaís Furtado, 11/03/2011).
71
Capítulo II
73
estimulou a mobilização popular em defesa das crianças e o endurecimento da legislação.
Em menos de quatro meses, o caso repercutiu nos grandes veículos nacionais e levou os
parlamentares a legislar sobre o retorno da prisão perpétua.
La responsabilité des journalistes réside sans doute dans le laisser-faire de l’irres-
ponsabilité qui les conduit à exercer sans le savoir des effets non voulus au nom
d’un droit à l’information qui, constitué en principe sacro-saint de la démocratie,
fournit parfois son meilleur alibi à la démagogie (Bourdieu, 1994, p. 8).
Desde outra posição, em junho de 1992, 20 anos depois do caso Watergate, em que
foi um dos protagonistas, o jornalista Carl Bernstein escreveu o artigo “A mídia e o triun-
fo da cultura idiota”, em que fez duras críticas ao comportamento dos jornais, jornalistas
e políticos norte-americanos. Para Bernstein, o mais importante e duradouro legado do
governo do presidente Nixon, pode ser o desprezo pela imprensa, que continua afetando
centenas de funcionários públicos. As produções “insanamente rápidas” na web salientam
o risco da imprecisão e de o jornalista ser enganado; mesmo nas notícias menos interessa-
das, as fontes podem usar a mentira de maneira deslavada. O erro sempre existiu no jorna-
lismo, a diferença que Firmo salienta é que “nunca houve tantas pessoas interessadas em
informar errado e ludibriar a imprensa para emplacar notícias falsas” (Firmo, 2018, p. 63).
A quantidade de fontes é potencialmente ilimitada, qualquer um pode presenciar um fato
relevante e, na condição de fonte eventual, nunca mais será consultada. Nestas condições,
uma relação de confiança é impossível e o risco de manipulação se torna muito provável.
[...] qual o patamar mínimo para publicar uma informação? Em tempo de fake
news, uma das mais primordiais funções das mídias tradicionais é separar a men-
tira do fato. Quando o veículo embarca numa notícia falsa, gera fissura em sua
credibilidade difícil de ser reparada. A checagem precisa ser veloz, mas não pode
perder critério (Firmo, 2018, p. 65).
Com o risco cada vez maior de o jornalista ser enganado na era da democratização
dos meios de produção, estratégias que se valem do sensacionalismo e da mentira, em
74
nome de um direito à informação, agregam o valor da publicação, como “ratificação e
oficialização”. Nestes termos, bem antes da internet, Bourdieu (1994, p. 8) referia con-
cretamente os efeitos que os jornalistas podem produzir todas as vezes que aticem ou
mobilizem as pulsões humanas. No caso das fake news, mais recentemente, mesmo que os
jornalistas tenham sido objeto de manipulação, ou não tenham responsabilidade sobre a
versão original, os efeitos têm-se voltado contra as mídias que, na mira da desconfiança
das pessoas, disputam a “fama de mentirosas” com os políticos que, desde sempre, têm
recorrido à mentira como elemento recorrente nos jogos de poder (Bourdieu, idem, ibi-
dem). “E o jornalista, o qual deveria ser o “mensageiro da verdade”, entra na mira da
desconfiança” (Filgueiras, 2018, p. 23). Nesta situação, aproximar-se das fontes, em sua
pluralidade, sem as quais a apuração perde seus protagonistas, é uma “tarefa ingrata”.
Realizar o trabalho de repórter quando a credibilidade está em jogo é tarefa ingra-
ta. Sem fontes, não temos histórias. Como fazer o conteúdo quando as pessoas se
recusam a falar conosco? Nesse ambiente polarizado, entrevistei um migrante da
Venezuela que só concordou em falar depois que expliquei como seria elaborada
a matéria. De outras experiências, ele disse: “Mudaram o que falei, colocaram
fora de contexto”. O exemplo ilustra um dos motivos pelos quais o jornalismo
malfeito cada vez mais tem se confundido com fake news (Filgueiras, 2018, p. 24).
Sob a ameaça das fake news ou dizendo-se especialista para combatê-las, o sistema
continua justificando a legitimidade social e cultural do discurso jornalístico na busca da
verdade. A verdade, desde sempre anunciada publicamente como um atributo do jorna-
lismo, no entanto, acaba sendo refém do que pode e do que não pode ser dito nos limites
institucionais e profissionais, o que vincula diretamente a verdade aos interesses de quem
estabelece as regras nos jogos de poder ou por seus representantes diretos, normalmente
associados às fontes oficiais. Na superfície discursiva, o que se constata é uma verdade as-
sociada a um regime vigente na sociedade e a uma hierarquia de valores, que são validados
por textos que reclamam para si a posse da objetividade.
O ocaso da ideia de verdade objetiva na filosofia e na epistemologia não parece
ter entrado ainda na mentalidade comum, que ainda está profundamente ligada –
como ensina o escândalo dos “mentirosos” Bush e Blair – à ideia do verdadeiro
como descrição objetiva dos fatos (Vattimo, 2016, p. 8).
Abrir mão da questão, nesses termos, reconhecendo a verdade como uma aporia in-
superável, poderia significar a perda de um horizonte a perseguir, de uma finalidade ética
do trabalho profissional. Assim, como se poderia legitimar o trabalho do jornalista, o exis-
tir social da escrita jornalística, sem apresentar a verdade como sendo o seu fim último?
Como os jornalistas podem abrir mão da ideia de verdade? Ou, ainda, a partir de que con-
cepção do que seja verdade ela pode tornar-se uma questão aporética para o jornalismo?
A parrésia
75
Com a habilidade que o caracteriza de resgatar os antigos de modo a torná-los mais
do que contemporâneos, Foucault delineou dois modos de ser do discurso que pretende
dizer a verdade, nas últimas aulas do Curso no Collège de France (1982-1983). Ambos
pretendem operar com a verdade e “merecem ser analisados de outro modo que não seja
o do critério e do ponto de vista de uma história das ideologias que colocaria em discussão
por que eles são falsos em vez de verdadeiros” (2013, p. 281). Trata-se da filosofia e da
retórica, de onde se pode inferir os polos de correspondência com os dois modos de ser
em que a atualidade pode ser materializada na linguagem jornalística: o poliedro de inteli-
gibilidade e a pirâmide invertida. Mais tarde estas figuras serão esboçadas em sua relação
com as práticas jornalísticas.
[...] não são simplesmente duas técnicas ou duas maneiras de falar que se defron-
tam, [mas] verdadeiramente dois modos de ser do discurso, dois modos de ser
do discurso que pretendem dizer a verdade e que pretendem operar a verdade na
forma da persuasão na alma dos outros (Foucault, 2013, p. 280).
76
sob a forma da parrésia. A filosofia, definida como livre coragem de dizer a verdade para
adquirir ascendência sobre os outros, conduzi-los convenientemente num jogo que deve
aceitar por parte do parresiasta o risco de morte. Isso não significa somente uma preten-
são de enunciar a verdade nos discursos que o filósofo enuncia. Em sua vida, o filósofo
deve ser, efetivamente, um agente da verdade.
A parrésia como forma de vida, a parrésia como modo de comportamento, a
parrésia até na própria indumentária do filósofo são elementos constitutivos des-
se monopólio filosófico que a parrésia reclama para si (Foucault, 2013, p. 291).
77
são os prazeres, são as opiniões, é tudo o que é ilusório e falso. É isso que é repetido na
lisonja” (Foucault, 2013, p. 336). O fato que os dois interlocutores empreguem o mesmo
logos não será lisonja com uma condição: que os interlocutores possuam três atributos:
episteme, eunoia (sentimento de benevolência que provém da amizade), parrésia. Em
outras palavras, para que a homologia tenha efetivamente valor de lugar de formulação e
prova da verdade, o indivíduo que pronuncia o discurso e a alma devem fazer coincidir
estes atributos. Segundo Foucault:
Episteme, isto é, o que todos têm de saber: “saber” se opõe a essa lisonja que é
assim posta à parte aqui, pois aqui ela serve apenas de opinião. [...] a homologia
não será lisonja com uma condição: que – de novo em oposição à prática dos li-
sonjeadores – o que os interlocutores procuram [não seja] o bem deles, seu lucro,
sua reputação entre os ouvintes, seu sucesso político, etc. Para que a homologia
tenha efetivamente valor de lugar de formulação e prova da verdade será preciso
que cada um dos dois interlocutores tenha, pelo outro, um sentimento de bene-
volência que provém da amizade (eunoia). E, enfim, terceira coisa, será preciso,
para ter certeza de que a homologia não será simplesmente essa analogia do dizer
na lisonja, que cada um dos dois utilize a parrésia, isto é [que nada] que seja da
ordem do medo ou da timidez ou da vergonha venha limitar a formulação do
que se pensa ser a verdade. A coragem parresiástica é necessária (Foucault, 2013,
p. 337).
78
te como objeto escolar ou universitário, tem relativamente poucos pontos em
comum com a filosofia parresiástica (Foucault, 2013, p. 313).
Durante o curso em que se dedicou à parrésia antiga (1982-1983), Foucault fez uma
descrição do dizer a verdade filosófico, que une historicamente a palavra franca e corajosa
à filosofia, que se distancia tanto da retórica como da sabedoria. Enquanto o sábio cala,
ou medita em silêncio, e o retórico se ocupa de persuadir, o filósofo fala e diz o que pensa,
comprometendo-se a ter uma conduta coerente com o que foi por ele enunciado. Aqui
se vê que não pode haver ensinamento da verdade sem o exemplo. No fim do percurso
foucaultiano, segundo constatou Frédéric Gros, ficou esclarecido que “o característico
da filosofia moderna, desde o cogito cartesiano, que rejeita as autoridades do saber, até o
‘sapere aude’ kantiano, consiste numa reativação da estrutura parresiástica” (2013, p. 355-
356). Nestes termos, pode-se enquadrar a própria relação de Foucault com a atividade
filosófica.
Essa ponte construída pela primeira vez entre a filosofia antiga e a filosofia mo-
derna pode enfim abrir, em Foucault, para uma determinação meta-histórica da
atividade filosófica: é o fato de exercer uma palavra corajosa e livre que continu-
amente ressalta, no jogo político, a diferença e o caráter incisivo de um dizer-a-
-verdade, e que visa a inquietar e transformar o modo de ser dos sujeitos (Gros,
2013, p. 356).
79
e o fato de que a parrésia filosófica experimenta sua própria realidade nessa relação com
a política. O segundo aspecto é que a parrésia filosófica se situa numa relação não mais
de cara a cara ou de exterioridade com a política, mas de oposição e de exclusão com
relação à retórica. “[...] a filosofia manifesta, afirma e constitui seu vínculo permanente
com a verdade” (Foucault, 2013, p. 320). No terceiro aspecto, a filosofia é uma prática que
encontra o exercício de sua prática na transformação do sujeito por si mesmo e do sujeito
pelo outro.
A filosofia não tem de dizer o que se deve fazer na política. Ela tem de estar
numa exterioridade permanente e rebelde em relação à política, e é nisso que ela
é real. Em segundo lugar, a filosofia não tem de compartilhar o verdadeiro e o
falso no domínio da ciência. Ela tem de exercer perpetuamente sua crítica ao que
é o logro, engano e ilusão, e é nisso que ela joga o jogo dialético de desalienar o
sujeito. Ela tem de definir as formas nas quais a relação consigo pode eventual-
mente se transformar. A filosofia como ascese, a filosofia como crítica, a filosofia
como exterioridade rebelde à política, creio que é esse o modo de ser da filosofia
moderna. Era, em todo caso, o modo de ser da filosofia antiga (Foucault, 2013,
p. 321).
O jornalista e a verdade
A verdade está no núcleo duro da produção de conhecimento sobre a atualidade,
desde a profissionalização do jornalismo e consequente emancipação da literatura e da
política. No campo dos estudos em jornalismo, muito mais do que a verdade, a objetivi-
dade jornalística, em suas mais variadas formas, “para além da objetividade” (Jay Rosen,
80
2000), tem sido tomada como integrante do processo produtivo e problematizada à exaus-
tão, pari passu à adoção pelos jornalistas que, regularmente, vêm sendo apagados dos rela-
tos midiáticos que se afirmam “objetivos”. Já a problematização da verdade ocorre com
cautela e, ao contrário da objetividade, não foi conjugada, como “verdade jornalística”,
a exemplo do que se vulgarizou como sendo “objetividade jornalística”. Acredita-se que
um entendimento complexo da prática e dos sujeitos da produção possa ser conduzido
por uma via alternativa em relação à objetividade jornalística. O desvio que se propõe foi
construído com o apoio de uma aproximação do jornalista ao parresiasta. Ambos parecem
fundamentar sua ação na etimologia da palavra grega parrésia: palavra franca, coragem
para falar em público, ousadia. Há analogia neste ponto, mas, grosso modo, a objetivação
jornalística não resiste à prova de evidências em seu exercício, porque apesar da pretensão
de operar com a verdade, o modo de ser em que a prática foi forjada pende mais para o
lado da retórica e da lisonja, assim como acontece com a atividade política. Uma vez que
as representações da atualidade que materializa são construídas a partir de uma linguagem
própria, moldada de acordo com um certo número de normas e regras, uma técnica de
dispor os elementos do discurso com a finalidade de comunicar e formar uma opinião
pública, tudo isso conjugado à dupla natureza, institucional e discursiva, subtrai do discur-
so jornalístico algo que poderia ser considerado verdadeiro, uma palavra corajosa e livre
do jornalista para inquietar e transformar o modo de ser dos sujeitos, como o modelo de
Adorno, a garrafa atirada ao mar, ou o modelo nietzschiano, a flecha lançada por um pen-
sador e colhida por outro” (Deleuze, 1992d, p. 192).
A produção jornalística, no entanto, não é monolítica
Poder-se-ia pensar na ação de certos jornalistas, situados à margem do jornalismo,
no âmbito de uma prática da verdade ligada à comunicação, ou seja, centrada na impor-
tância da figura do outro (o mestre e o diretor, para o parresiasta; a fonte e o leitor, para o
jornalista). Trata-se assim, não somente de uma habilidade profissional, pensada segundo
o modelo de uma dominação-objetivação dos sujeitos por prescrições comuns (da norma
jornalística), mas de um processo de autonomização para o trabalho de contar o outro,
entre um jornalista, que toma a palavra, e um indivíduo/fonte, leitor. Essa modalidade de
tomada de palavra pelo jornalista, que exorta a desalienação do discípulo, ou sua eman-
cipação, nos termos kantianos,sugere a reincidência de traços do cinismo. Dois núcleos
duros da filosofia cínica, que inspiram tal semelhança, são mencionados por Gros: um
certo uso da fala (franqueza rude, áspera, provocadora) e um modo de vida particular
reconhecido na errância rústica e de pobreza, um manto imundo, um alforje e uma barba
hirsuta. “É a vida, e não o pensamento, que é passada ao fio da navalha da verdade” (Gros,
2004, p. 162). Trata-se de uma estética da existência em que o jornalista ousa subverter pu-
blicamente o regime das verdades do senso comum, pensa-se um sujeito que opera para a
emancipação da sociedade. Na junção de um dizer franco a um estilo de existência, enun-
81
cia a presença de uma verdade nua, de rejeição das normas sociais, capturada no âmbito
da complexidade do acontecimento que vai relatar.
Essa junção explosiva de um dizer franco e de um estilo de existência constitui
para Foucault uma constante supra histórica da atitude cínica, tal qual se pode re-
encontrar em uma certa mística cristã do despojamento e do escândalo ascéticos,
em alguns movimentos revolucionários do século XIX, correntes anarquistas,
militância de esquerda etc.), na arte moderna, enfim, desde que não se estabeleça
mais com o real uma relação de imitação ou de ornamentação, mas de redução
ao elementar pela agressiva rejeição das normas sociais (Baudelaire, Flaubert,
Manet) (Gros, 2004, p. 163).
Neste novo cenário, Foucault aponta quatro grandes núcleos de sentido do termo
verdade: a verdade é o que não é oculto; a verdade é o que é puro, não alterado, sem mistu-
ra; a verdade é o que é conforme e reto; e a verdade é o que é imóvel, incorruptível, idênti-
co a si. Essas quatro extensões do termo caracterizam o discurso sem simulação, isento de
opinião falsa. Aplicados à vida verdadeira e de pobreza dos cínicos, dão lugar a uma vida
simples e direta, desembaraçada de todo elemento impuro, que provoca a transgressão de
valores estabelecidos. “Trata-se de tudo fazer em público: Diógenes come e se masturba
aos olhos de todos, Crates faz amor no meio da multidão” (Gros, 2004, p. 164).
A análise da parrésia cínica terá levado Foucault ainda mais longe, quase até ao
oposto do cuidado de si estoico que o ocupará durante o ano de 1982 [...]. O
cuidado de si permitirá tramar a vida e a verdade em uma harmonia ideal. A ética
estoica era, com efeito, uma ética da correspondência regrada entre a ação e o
discurso, com a vida pondo a verdade à prova: trata-se de saber se essa existência,
que sabemos desbaratada pelas circunstâncias, pode se ver ordenada, regulada
por princípios verdadeiros. É uma ética da ordem e da disciplina. A ética cínica
da parrésia é, ao contrário a verdade pondo a vida à prova: trata-se de ver até
que ponto as verdades suportam ser vividas e de fazer da existência o ponto de
manifestação intolerável da verdade (Gros, 2004, p. 165).
O que põe a verdade operada pelas mídias hegemônicas em sintonia com a domina-
ção à prova concerne a uma potência ética, um engajamento subjetivo e uma certa cora-
gem, que Foucault vai trabalhar na última derivação de sua obra, no curso que denominou
“A coragem da verdade”. Estas características da parrésia – coragem e verdade – supõem,
segundo Gros, duas estéticas da existência, dois estilos absolutamente diferentes de cora-
gem da verdade: a coragem de se transformar lentamente, de fazer manter um estilo em
uma existência movente de durar e de persistir; a coragem, mais pontual e mais intensa,
da provocação, a de fazer aflorar por sua ação verdades que todo mundo conhece, mas
que ninguém diz; ou que todo mundo repete, mas que ninguém se dá ao trabalho de fazer
viver, a coragem da ruptura, da recusa, da denúncia, própria do intelectual engajado.
Nos dois casos, não se trata da fundação de uma moral que busca o bem e se
afasta do mal, mas da exigência de uma ética que persegue a verdade e denuncia
a mentira. Essa não é uma moral de filósofo, é uma ética do intelectual engajado
(Gros, 2004, p. 166).
82
É por este viés, de uma ética do intelectual engajado, que alguns jornalistas parecem
repensar seu modus operandi, contra as armadilhas secularmente montadas ao longo da
epistemologização do jornalismo, ora valorizando a objetividade da informação, ora a po-
lêmica e a opinião. Com essa restrição ao que acaba artificializando uma relação complexa
com a fonte e com o acontecimento, para avançar no problema da verdade, a parrésia,
compreendida como fala franca, afirmação corajosa, sempre em relação ao outro, e não à
formalidade conceitual, parece ser a figura adequada para elucidar uma posição de sujeito
da ação, potencialmente capaz de interferir ativamente na construção de uma teoria da
prática local e descolada do jornalismo hegemônico.
Colocado artificialmente neste cenário, por não ter sido provocado a se posicionar
diretamente, mas por relação de inferência, a partir do que disse em outra situação, Flávio
Tavares consideraria, supõe-se, que o jornalista tem o dever e o direito de revelar a verda-
de. Neste sentido, o ousar dizer com coragem, que a ética cínica determina, seria intrínseca
ao trabalho do jornalista, porque o que for escrito além de influenciar uma pessoa, vai
chegar até muitas outras pessoas. O gesto da escrita do jornalista não é individual, nem
restrito à superfície dos acontecimentos, ele não escreve para si, nem pode estar vinculado
somente às contingencias. Não é um médico que examina um paciente, ou um engenheiro
que constrói uma casa. Exemplos dele. Na perspectiva de Tavares, o jornalismo é trans-
formador à medida que se caracteriza pela circulação das informações.
Eu estou publicizando, tornando pública uma situação, uma informação, que vai
transformar uma cidade. O jornalismo é transformador, vai transformar para
melhor ou para pior. [...]. Então o fundamental é ter ética. Eu tenho direito a
ofender? Não. Agora, eu tenho direito a revelar a verdade. E o dever (Tavares,
apud Marocco, 2012, p. 143).
Dizer a verdade
O virtuoso, desenhado por Bourdieu, por sua capacidade de “fazer o que ninguém
faz” poderia antecipar, de algum modo, esta figura, esboçada ao longo do capítulo anterior;
como ela, o virtuoso se distancia do perfil prevalente do profissional forjado pela precarie-
dade do trabalho nas mídias jornalísticas. No entanto, ao mesmo tempo que possibilita
83
pensar a diferença, o conceito vincula o jornalista a três fatores conjunturais: concentração
das mídias; posição da mídia em questão no espaço midiático; e posição do jornalista na
hierarquia organizacional. O quarto fator está ligado ao sujeito e a sua capacidade de pro-
dução da informação.
Quant au degré d’autonomie d’un journaliste particulier, il dépend d’abord du
degré de concentration de la presse (qui en réduisant le nombre d’employeurs
potentiels, accroît l’insécurité de l’emploi); ensuite, de la position de son journal
dans l’espace des journaux, c’est-à-dire plus ou moins près du pôle “intelectuel”
ou du pôle “commerciel”; puis, de sa position dans le journal ou l’organe de pres-
se (titulaire, pigiste, etc.), qui détermine les différentes garanties statutaires (liées
notamment à la notoriété) dont il dispose et aussi son salaire (facteur de moindre
vulnérabilité aux formes douces de relations publiques et de moindre dépen-
dance envers les travaux alimentaires ou mercenaires à travers lesqueles s’exerce
l’emprise des commanditaires) ; et enfin de sa capacité de production autonome
de l’information (certains journalistes, comme les vulgarisateurs scientifiques ou
les journalistes économiques, étant particulièrement dépendents29 (1994, p. 4).
29 “O grau de autonomia de um jornalista particular depende do grau de concentração da imprensa (que, em reduzindo o número
de empregados potenciais, aumenta a insegurança do emprego); da posição de seu jornal no espaço dos jornais, quer dizer mais
ou menos próximo do polo “intelectual” ou do polo “comercial”; depois, de sua posição no jornal ou órgão de imprensa (titular,
freelancer, etc.), que determina as diferentes garantias estatutárias que possui (ligadas principalmente à notoriedade) e também seu
salário (fator de menor vulnerabilidade às pressões dos relações públicas e de menos dependência em relação a trabalhos ligados a
patrocinadores); e, enfim de sua capacidade de produção autônoma da informação (certos jornalistas, como vulgarizadores científi-
cos, ou os jornalistas econômicos, são particularmente dependentes” (Bourdieu, 1994, p. 4, trad. livre da autora).
30 Bourdieu reconheceu nas práticas, o estilo “pessoal” que carregam todos os produtos de um mesmo campo e no “virtuoso”,
aquele agente capacitado a “fazer o que ninguém mas é capaz de fazer”, antecipando a figura do repórter que veremos a seguir.
[…] only a virtuoso with a perfect command of his “art of living” can play on all the resources inherent in the ambiguities and
uncertainties of behavior and situation in order to produce the actions appropriate to each case, to do that of which people will say
“There was nothing else to be done”, and do it the right way (Bourdieu, 1977, p. 79).
84
manda para lá”, para fazer a cobertura. Na terceira ou quarta vez o Lauro (Lauro
Schirmer, diretor de redação de ZH, na época) me chamou e disse: “Tu achas que eu
sou palhaço? Que eu não sei o que tu estás fazendo? Vocês são informados an-
tes dessas invasões e tu mandas o Wagner para um lugar perto”. E eu fazia, era
verdade. Este foi um dos momentos em que as matérias foram vetadas por uma
decisão empresarial. Isso não era uma censura estatal, era uma censura empresa-
rial, em que a gente precisou cortar matéria para poder publicar ao menos parte
dela (Silveira, apud Marocco, 2012, p. 19).
É uma profissão que não é bem paga, para não dizer outra coisa. Então, você tem
que gostar, tem que ser vocacionado para isso. E conhecer técnicas, claro. Eu logo
aprendi de tudo de jornal. Porque me enfiava lá dentro, via como funcionava tudo.
E ingressei também quando o jorna estava em fase de transformação. Porque até
então era um jornalismo dito romântico, com glamour. E eu peguei uma fase de
transformação importante, quando as empresas foram buscar argentinos para a
diagramação do jornal (De Grandi, apud Marocco, 2012, p. 30-31).
O sujeito tem que se virar e crescer nesse meio, nesse fermento, muito por obser-
vação própria. Quem é que vai te puxar a mão? Ninguém. Ou poucos. É isso que
eu digo para os iniciantes. O sujeito entra como auxiliar de redação, o editor está
sempre atucanado. Nós, jornalistas sempre nos sentimos atucanados pelo tempo
(Ricardo Stefanelli, editor, apud Marocco, 2012, p. 58).
[...] você cria um ambiente extremamente competitivo na redação, porque o cara
quer emplacar mais capas ganha mais dinheiro no final do ano, tem um bônus.
Isso é um sistema estruturado que eu vi. Mas geralmente é uma coisa informal.
Eu acho que nem é inconsciente, é consciente sim. As pessoas sabem que elas
estão conseguindo fazer mais manchetes de página que o seu colega. E os dois
têm mais ou menos o mesmo tempo de profissão (Laurentino Gomes, apud Ma-
rocco, 2012, p. 113-114).
Ele (o repórter) escreve para o chefe dele primeiro, que é a pessoa que vai pegar a
matéria e vai ler. É o primeiro. “Eu escrevo pensando no meu leitor.” Não pensa
no leitor. Ele pensa no chefe. Primeiro: ele tenta se salvar da maneira que ele
pode. O seja, ele recebeu uma pauta, foi pra a rua, apurou a informação, e são
aqueles elementos que ele tem para fechar a matéria e ir embora para casa. Ver
o filho, dormir, fazer qualquer coisa. Ele precisa se livrar daquela tarefa. E ele
procura fazer da melhor forma possível, e o filtro é o chefe imediato, é o editor,
o subeditor. Esse também não está mirando o leitor final, ele está mirando o
fechamento. Se ele vai conseguir fechar aquela matéria, se a matéria vai ficar de-
fensável perante a direção da redação ou não (Laurentino Gomes, apud Marocco,
2012, p. 118-119).
(...) minha grande crítica ao ensino do jornalismo sempre foi a de que não tinha
jornalista ensinando. Sempre achei que tinha que ter não jornalista, mas tinha que
ter algum jornalista. E, em geral, não tem nenhum. Sempre achei que esse fosso
era muito prejudicial para os alunos. Então, tentava aproximar o máximo possí-
vel a minha prática didática à prática profissional. Eu dizia para os alunos como
é que se faz na redação, e que era assim que eles tinham que fazer. [...]. Muitos
alunos não gostavam, principalmente os de esquerda, claro. Então, tive alguns
85
momentos críticos em que, ao aplicar ao laboratório as práticas das redações, isso
gerou conflito (Carlos Eduardo Lins e Silva, apud Marocco, 2012, p. 128).
O enviado especial, eu fui muitas vezes enviado especial, chegava e, no primeiro
dia, sempre descobria coisas. Às vezes coisas óbvias, que já foram descobertas.
Descobria a água morna, só havia água quente e fria, ele descobriu a água morna.
Por quê? Porque ele chegava num mundo novo e percebia coisas que ninguém
tinha visto. Como se explica isso? Não há explicação. Mas o jornalista, o jorna-
lista mesmo, tem um faro, não aquele sujeito que tem um diploma e com isso
se diz jornalista. O exercício dá um faro, tira ilações, conclusões (Tavares, apud
Marocco, 2012, p. 151).
O jornalista da minha geração pegava as coisas no ar. A minha primeira láurea,
graças do Brizola, peguei no ar, numa janta, jantando, longe dele, eu tive que
auscultá-lo quase como se tivesse um estetoscópio (Tavares, apud Marocco, 2012,
p. 150).
O que é um furo no online? Um exemplo, no carnaval de 2011, a Ângela Bis-
marchi desfilou em São Paulo com uma maravilhosa coroa com não sei quantos
cristais Svarowski. Um globo de luz, E aí o editor cobrou que o G1 tinha isso e
a nossa repórter não. Liguei e ela disse que tinha conseguido aspa da Ângela Bis-
marchi dizendo que ia se operar para ser virgem uma terceira vez. Para a internet,
isso é muito mais importante do que a coroa Svarowski. Ou seja, minha repórter
tinha uma matéria muito melhor (Pithan, apud Marocco, 2012, p. 187).
O repórter que ocupa as margens da redação se caracteriza por uma crítica às re-
lações de poder, das quais o virtuoso necessariamente participa, que são prevalentes nas
redações e na sociedade da desigualdade. Nas margens, compreendidas como um outro
espaço que se configura, simultaneamente, dentro e fora das mídias, acredita-se que a
prática se dê em condições de possibilidade, quase-impermeáveis a fatores conjunturais
elencados por Bourdieu. Em ocupando nestas condições a função-repórter, alguns entre
um sem-número de jornalistas vão agir de modo singular, fazendo valer, de modo impe-
rativo, a liberdade individual em uma relação verdadeira consigo e com o outro, que se
descola das práticas jornalísticas ordinárias. Nesta relação, os jogos de comunicação com
o outro – fonte jornalística – se dão com fundamento em um pensamento crítico e em
ações de revezamento, em que a escuta substitui o questionário prévio e a fala da fonte
abre as possibilidades alternativas que transformam a maneira como a reportagem cons-
trói os fatos, o inusitado (Antunes, 2010). Há um estreito parentesco de tal prática com a
perspectiva foucaultiana, na qual a fonte não corresponde à autoridade, não tem o ônus
da prova, nem da verdade, e nem terá uma forma jornalística prescrita nos livros de estilo.
Está francamente em oposição ao modo de objetivação jornalística dos indivíduos que,
geralmente, ocupam posições institucionais, fornecem a informação mais rapidamente, a
baixo custo e, por isso, são mais produtivas e conferem à informação aparência de maior
confiança e de verdade.
86
Os repórteres que fazem valer a sua autonomia para dar protagonismo a outros
sujeitos e criticar o jornalismo das mídias dominantes, dentro ou fora delas, evidenciam
proximidade histórica com o modo de ser do filósofo, ou com o que Vattimo chamou de
“novo intelectual”. Na sociedade da desigualdade se poderia diferenciá-los, igualmente,
por demonstrações “do amor de si”, que, nas relações humanas, segundo Rousseau, re-
gularmente degenera em “amor próprio”. Nas palavras de Rousseau, o filósofo é sempre
um estrangeiro que será compreendido somente pelas novas gerações, i.e., no limiar de
um novo paradigma comunicacional, a potência deste novo modo de fazer jornalismo po-
derá ser o paradigma reconhecido no nível das práticas. Na perspectiva foucaultiana, este
jornalista se compromete com a verdade no lugar mesmo do nascimento das ideias – os
acontecimentos – como se pode acompanhar nas reportagens produzidas para o Corriere
della Sera sobre o Irã, o que nos levou a avançar na relação entre jornalistas, verdade, acon-
tecimento e poliedro de inteligibilidade.
Neste quadro, o repórter que atua nas margens do jornalismo, dá demonstrações de
seu engajamento subjetivo, ao agir sobre essa produção e materializar em texto uma figura
de múltiplas arestas (o poliedro) que vão corresponder, cada uma delas, a um eixo do tra-
balho de observação e investigação no qual terá parceria do outro/fonte. Trata-se, como
vimos, de uma figura complexa que redimensiona as práticas, que visibilizam a atualidade
como o real do jornalismo, diferenciando-se por sua complexificação da superficialidade
construída pelas mídias que formulam um jornalismo associado às marcas da dominação.
Foucault já havia se colocado na posição de jornalista e de sujeito de uma ação de teoria
cujo pontilhado foi definido em parceria com Deleuze na conversa intitulada “Os intelec-
tuais e o poder” (1993). Ali há pistas sobre a escuta dos sujeitos da prática adotada como
estratégia por Foucault e de como essa escuta pode se constituir em eixo para a epistemo-
logização de um saber da prática enunciado pelos próprios sujeitos da prática. Trata-se de
um pensamento sobre a ação, que fornece os materiais para a elaboração de uma teoria da
prática que se desvia de uma representação acadêmica da prática, ou de uma manualística,
que pouco têm a ver com a prática.
O protagonismo de quem fala e age, ocupa o centro de uma maneira foucaultiana
de materializar as relações teoria-prática, para além da representação construída por uma
teoria do jornalismo, afastada do ambiente da prática e de seus sujeitos. Com esse intuito,
desde 2009, um conjunto de pesquisas vem constituindo as camadas discursivas de pre-
paro para que uma teoria da prática jornalística seja possível. A primeira delas foi uma
enquete aplicada entre maio e agosto de 2010. A enquete esboçou, como vimos anterior-
mente, singularidades da prática a serem testadas na entrevista. Uma conjunção de ideias,
oriundas de autores de parentesco duvidoso, como Foucault e Giddens, gerou um locus
privilegiado de problematização da prática que está presente nos discursos que dão a ver a
“consciência discursiva” dos sujeitos, a ser investigada nas entrevistas (2009, p. 440).
87
Uma ontologia crítica do jornalismo, que se pergunte pelo modo de ser próprio deste
discurso, pode caracterizá-lo como sendo realista ou até mesmo uma forma de ficção que
define a atualidade, a liberdade e a verdade do nosso tempo, a partir de uma capacidade do
jornalista de escrever e de reproduzir discursos já ditos, não como um direito do jornalista
de ser, mas como um modo de conduzir a objetivação jornalística dos acontecimentos.
Isso nos faz acreditar que o jornalista naturalmente, por repetição, aprofunda uma dobra
que se forma pela ação da linguagem sobre os acontecimentos que passam, reverberando
um duplo, a atualidade do jornalismo, que circula nas mídias jornalísticas, ou, em outras
palavras, dando rendas à produção social da realidade (Tuchman, Alsina, entre muitos ou-
tros pensadores que colocam em dúvida a função do jornalismo de espelho da sociedade).
Nesta função social, o jornalista se afasta de si e das boas práticas do indivíduo, impri-
mindo ao que faz uma ausência de si na característica da autoralidade coletiva, fortemente
marcada pelo controle na produção e o poder institucional (Marocco, 2015).
Há jornalistas que desafiam há séculos a natureza das mídias jornalísticas e de um
modo de objetivação particular e dependente de seus interesses. No âmbito da reporta-
gem, espreita-se uma figura singular em plena crise contemporânea das mídias impressas.
No bojo desta figura, o repórter tem-se voltado a si de modo reflexivo e, de modo crítico,
se dedicado a ouvir fontes populares, tem frequentado as ruas, se aproximado dos mo-
vimentos sociais. Em síntese: tem disparado uma ação discursiva em que, para além da
obrigação de dizer a verdade, em torno da qual o jornalismo se constituiu como campo
profissional, o repórter ultrapassa o fazer normativo, engajando-se como sujeito ético.
Nestas condições de possibilidade, imprime ao trabalho a coragem da ruptura, da denún-
cia que caracterizam um jornalismo livre.
Esta atitude crítica em relação às práticas jornalísticas se desfaz do discurso domi-
nante que impõe normas ao sujeito que produz a atualidade para instaurar um “jogo de
interpretações não isentas de interesse e não necessariamente falsas, mas exatamente dire-
cionadas de acordo com projetos, expectativas e escolhas de valores diferentes” (Vattimo,
2009, p. 7). É cada vez mais evidente a todos, acentua Vattimo, “que a mídia mente”. Ou
seja, dado o seu poder social de representar, utilizando-se da linguagem, a mídia impõe
enquadramentos diversos, que aderem a um regime de verdade, vertebrado por discursos
emitidos principalmente por fontes oficiais, que são dotados de alto grau de confiabilidade
e credibilidade, são mais facilmente obtidos, e essenciais para as estruturas e para o fun-
cionamento de nossa sociedade31. Como sujeito do dispositivo midiático, o jornalista pode
ocupar uma posição específica e atuar no mesmo nível geral deste regime de verdade, em
um combate local, específico, de crítica às próprias mídias, que acarreta efeitos que tem
implicações que, segundo Foucault, não são somente profissionais ou setoriais.
31 As fontes oficiais as mais capazes de fornecer informações fidedignas, assim como também são elas capazes de produzir eventos
programados, que satisfazem as necessidades dos meios de comunicação em ter eventos para cobrir com prazos estabelecidos em
precedência. “As fontes que respondem a esses requisitos organizacionais da mídia são, obviamente, as ligadas a instituições, órgãos
oficiais, grupos de poder, etc.” (Gans, apud Wolf, 2005, p. 36).
88
Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” – enten-
dendo-se mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas
verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo
as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos espe-
cíficos de poder”; entendendo-se também que não se trata de um combate “em
favor” da verdade, mas em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-
-político que ela desempenha (Foucault, 1993, p. 13).
A função do jornalista está ligada à verdade. Neste sentido, uma perspectiva crí-
tica deve tensionar tanto o modo de vida dos sujeitos, como a produção da verdade na
mídia e como essa verdade, que coincide com o regime de verdade vigente na sociedade
e com o projeto do Estado de governabilidade de todos, foi cristalizada no centro do
jornalismo. O que se indaga, então, é como o jornalista pode se desprender do modo
de objetivação jornalística corrente para operar na prática com os acontecimentos que
definem a nossa atualidade? Como vem ocupando as margens do jornalismo, ou criando
novos espaços para colocar as mídias em contradição? Nas condições de possibilidade de
uma cultura jornalística posta a serviço do Estado, como aproximar-se do acontecimento,
que estratégias encaminhar em torno da verdade, tão central no exercício da filosofia e
do jornalismo? em outros termos, qual é a relação entre jornalismo, verdade e crítica das
mídias no trabalho do jornalista? Pode-se tomar como ponto de partida para um trabalho
jornalístico nestas bases, a determinação meta-histórica de um dizer a verdade, que visa a
inquietar e transformar o modo de ser dos sujeitos (Gros, 2013), articulada a um projeto
de “acontecimentalização”, que constitui e reverbera a potência social do jornalismo e do
sujeito da produção.
Ao relacionar a verdade a um problema localizado: a violência no Rio de Janeiro,
Caco Barcellos revelou esta potência do jornalismo, em contraste com a desinformação,
inclusive entre os intelectuais que descobriram “uma realidade de cidade partida no Rio de
Janeiro”. A tese é verdadeira, mas somente para o lado dos privilegiados que não conhe-
cem o outro lado, não se arriscam a entrar nas “comunidades” e esquecem que o lado de
lá é formado por gente que trabalha que frequenta os dois lados, e eles sobem e descem
o morro para trabalhar e conhecem as duas realidades. “Enquanto o intelectual, o mo-
rador das áreas bacanas, conhece o universo do umbigo dele, esquece que na sua casa...”
(os pontos suspensivos serão desdobrados mais tarde, na mesma entrevista concedida à
Beatriz Marocco, Christa Berger e Thaís Furtado, 11/03/2011).
Para escrever o livro Abusado, em que esquadrinha a violência no Rio de Janeiro, Bar-
cellos ouviu 200 traficantes. A mãe de todos era ou tinha sido empregada doméstica, na
época. Durante todo o trabalho, enquanto ele apurava, os entrevistados faziam perguntas
que eram mais ou menos assim “aê otário, responde uma pergunta: por que o filho do
bacana sempre tem duas mães e eu não tenho nenhuma mãe de segunda à sábado à noite?
Eu só tenho mãe no domingo”. Estavam se referindo à empregada doméstica que sai para
trabalhar segunda-feira, as que dormem no emprego e são a segunda mãe da casa, abando-
89
nam o filho lá e quando voltam tem que dar conta dos afazeres domésticos acumulados. A
louça suja na pia. As lições de casa que não foram bem-feitas. Cuidar dos alimentos para
a semana seguinte. E se o filho, mal cuidado durante a semana, se envolve no tráfico, ela
não tem argumentos fortes para dizer para o filho “siga o meu caminho”, ou para a filha
“seja empregada doméstica, não vá para o tráfico”, “seja como o seu pai, seja porteiro,
seja eletricista, seja pedreiro, siga essa maravilha de vida que nós te damos”, ela não pode
dizer isso, “porque quando há prosperidade dentro do barraco é o tráfico que traz, não é
o trabalho do mercado formal”.
Um exemplo, talvez banal, mas acho que dá a dimensão, é de quanto eles conhe-
cem bem as coisas dos dois lados. As pessoas não se são conta que a empregada
doméstica está no coração da classe média alta, super bem informada, ela tem
acesso à correspondência dos bacanas. Ela sabe que a patroa da casa trabalha
muito menos que ela, ela que educa, que lava as roupas, cuecas, o filho da casa, a
terno do patrão da casa. Sabe do luxo que é a vida de classe média alta no Brasil.
Empregada doméstica esse regime de semiescravidão, é invenção brasileira, eu
morei em cinco cidades de Europa, da América, nunca encontrei esse tipo de
profissão, não é? Vocês já encontraram? Quando encontraram, o peso de ouro
que vale esse trabalho, é a segunda mãe da casa. E as pessoas não se dão conta de
que ali têm um agente, muito bem informado, que leva essa informação. Isso para
falar de um profissional que é a empregada doméstica, podemos falar do pedrei-
ro, do segurança, que abastece de informação esse outro lado. Sabe o que estou
dizendo, que a patroa paga para essa segunda mãe da casa às vezes o equivalente
ao que ela gasta em duas visitas ao salão de beleza para a filha. É profundamente
injusto isso. E esse dado acho que bate mais forte em quem sofre essa injustiça
(Barcellos, em entrevista concedida à Beatriz Marocco, Christa Berger e Thaís
Furtado, 11/03/2011).
Barcellos queria escrever esta história sob a ótica dos bandidos mais corajosos e
respeitados; ele conheceu vários, mas conta que não conseguiu engatar uma boa história
com os depoimentos de nenhum deles. Nesta procura foi informado de que um assaltante
nunca dá um bom traficante e vice-versa. Para um assalto, não é preciso ter uma equipe,
como o traficante precisa. Um assaltante pode contratar. Ele precisa informação de quali-
dade. Uma boa empregada doméstica que diga onde estão os dólares da casa dos patrões,
ou o empregado de uma empresa que revela o horário do carro forte passar. Com boa
informação, o assaltante contrata freelancers. Um grande assaltante, que virou traficante
e estava na prisão, foi quem iniciou Barcellos nesta particularidades das carreiras e enviou
um aviso “não sei pra quem lá, dizendo ‘olha ele tá liberado a circular por onde ele quiser’”
(Barcellos, em entrevista a Dráuzio Varela). Durante o trabalho, sempre teve o cuidado de
dizer que o livro era sobre o passado; o presente ele não acompanhava porque com isso
estaria sendo conivente com o crime. O assalto ao Galeão, que ocorreu durante a apura-
ção, por exemplo, foi apontado para explicar o distanciamento que deveria manter. “Se
você me contasse essa história do Galeão na semana passada, eu seria de alguma maneira
90
criminoso junto [...]. Aí eu disse, vocês não podem me falar, e quanto eles falavam alguma
coisa eu saía fora” (Barcellos, em entrevista à Dráuzio Varella). Para demarcar a posição
de repórter, havia sempre um gravador, entre ele, o entrevistado e a mulher dele. Mas o
gravador não tinha no morro, o sentido comum do jornalismo.
Eles não têm costume de lidar com escritor, com repórter. É muito raro um
repórter subir morro. […] Mas eu fazia questão de dizer, eu to gravando, eu sou
repórter. […] eles falavam muito assim, aí malandro. Eu dizia malandro não, eu
sou repórter, malandro é você, eu sou otário. É engraçado. Eu queria fazer um
livro sobre a terceira geração do comando vermelho, que tava ascendendo naque-
la época. Foi a geração que tomou conta do tráfico de drogas no rio. Antes era
outro tipo de criminoso. Mas eu demorei muito para fazer o livro [...], quando eu
vi, tinham passado 5 anos, o pessoal que quando eu cheguei lá tinha 10, 12 anos,
tinha crescido, já tava no crime. Quando eu achava eu dizia, ei, tem alguma coisa
do teu passado que tu queira me contar? Eu sempre chegava com isso. O meu
passado é uma merda, cara. Que história é essa? E saiam. Mas no final de tanto
eu circular, eles entenderam que o passado significava contar coisas que não iam
comprometê-los, aí a criançada começou a gritar assim pra mim na rua: aí otário,
eu tenho uma história do passado pra te contar. E exigiram que eu contasse a
história deles no livro. Sabe o que eu fiz, eu tava com o livro pronto, lá pelo 4º
ano, e fiz de novo o livro, para incluí-los (idem).
91
Desde outra posição, Flávio Tavares pensa que filosofia deveria ter uma proximidade
relativa com o jornalismo e ser um ensinamento obrigatório nos cursos de jornalismo, que
distanciasse a aprendizagem universitária da operacionalidade das redações. “Acho que
falta um conteúdo em todas as profissões, mas fundamentalmente no jornalismo, falta um
conteúdo de interpretação filosófica da vida. Parece meio pedante, mas eu vou transmitir
um conteúdo que vai influir na vida do João, Maria, Pedro, vai influir, vai mudar o com-
portamento das pessoas” (Tavares, apud Marocco, 2012, p. 142-143).
Eliane Brum, em seu modo de lidar com a complexidade do real, provoca uma cisão
no núcleo duro da verdade e encaminha a prática jornalística à ideia de “precisão” – atri-
buto do “bom jornalismo”, que trabalha com tudo que é do real observável e leva ao leitor
o máximo de complexidade possível, para que o leitor possa ir onde ele não foi e, a partir
daí, faça duas próprias escolhas.
O que é o bom jornalismo? O bom jornalismo é aquele que compreende que
a realidade é muito mais complexa do que aquilo que é dito. Infelizmente, boa
parte dos repórteres se deixou reduzir a aplicadores de aspas em série. E a vida
não é isso. Quando estás fazendo jornalismo assim, estás fazendo algo meio
criminoso, que é o ato de reduzir a vida, reduzir a complexidade do real (Brum,
apud Marocco, 2012, p. 89).
O que Brum chama de bom jornalismo dá muito mais trabalho ao repórter, por-
que ele deve apurar todos os detalhes do acontecimento e com “absoluta precisão”. Se o
passarinho cantou, que passarinho era esse, ele estava ali somente naquele dia ou desde
sempre? Para ela, sem uma “puta” apuração, o texto vai ser ruim, sem informações para
dar conta de um acontecimento com detalhes e atmosfera. “Se não tiver apuração, vai ser
um texto cheio de adjetivos e sem consistência”:
Eu sempre dou um exemplo, de um terço de frase em uma matéria que fiz sobre
um crime numa cidade do interior paulista. Neste um terço de frase eu dizia algo
assim: “Fazia sol em Pompeia quando”. Para afirmar que fazia sol, entrevistei cin-
co pessoas diferentes que estavam na cidade naquele dia, e conferi com três sites
de meteorologia quando voltei à redação. Bastante trabalho para uma informação
tão banal. Mas por que? Porque se errasse numa informação tão simples, o leitor
teria todo o direito de não acreditar mais em nenhuma linha do meu texto (Brum,
apud Marocco, 2012, p. 89-90).
O modo de Brum lidar com o real, embora ela o considere ligado principalmente à
boa apuração, pode ser desdobrado em termos analíticos em uma atitude ética marcada
pelo vínculo entre o dizer, o fazer e a escrita de discursos sem simulação, cuja estratégia
para reforçar a sua autonomia em relação ao jornalismo dominante, incorpora a crítica,
regularmente, à revelia do jornalismo. Nos livros que escreve, a crítica toma a forma de
uma reflexão sobre si, em que pretende se liberar das obrigações e estruturas falsamente
necessárias que pesam sobre a sua imagem de jornalista que não pode errar.
92
Em O olho da rua eu faço uma reflexão em cada matéria, como naquela da casa de
velhos, e conto os meus erros. Para que pode servir o meu erro? O jornalismo
não tem reparação. O mal que a gente faz é irreparável. Pode dar direito de res-
posta, mesmo que seja uma página, mesmo que seja o dobro do tamanho, o mal
está feito. Então isso aumenta muito a nossa responsabilidade. Em parte, escrevo
meus livros pensando sobre o meu trabalho para que, quem está começando ago-
ra, não cometa os mesmos erros. Possa aprender sem errar tanto, se é que isso é
possível (Brum, apud Marocco, 2012, p. 81).
Acontecimento
Desde Kant, a filosofia tem-se desenvolvido em uma vertente crítica que se desvin-
cula do pensamento interessado em definir as condições e os conteúdos de uma verdade
impermeável às mudanças históricas. Interrogando-se sobre o seu próprio tempo e as
coisas que passam, Kant vai localizar o acontecimento – no caso da Revolução Francesa
– no centro de uma tradição crítica em que aparece a questão da sua própria atualidade,
que já aparecia em relação à Aufklärung. Durante a Revolução Francesa, Kant vai voltar
ao problema, ao formular uma questão que ele próprio tenta responder: “Existe um pro-
gresso constante para o gênero humano?” (em Foucault, 2013, p. 17). Uma vez que se
estabeleceu que existe a causa de um progresso possível, só se poderá saber se essa causa
age, efetivamente, na realidade, se assinalarmos certo elemento. Este elemento, para Kant,
é o acontecimento que, no interior da história, terá valor de sinal.
[...] o que faz sentido e que vai constituir o sinal de progresso é que, em torno
da Revolução, há, diz ele, “uma simpatia de aspiração que beira o entusiasmo”.
O importante na Revolução, portanto, não é a própria Revolução, que, de todo
modo, é um desperdício, mas o que acontece na cabeça dos que não fazem a Re-
volução, ou em todo caso que não são seus atores principais. É a relação que eles
próprios têm com essa Revolução que eles não fazem, ou de que não são atores
essenciais. O significativo é o entusiasmo pela Revolução. E esse entusiasmo pela
Revolução é sinal de quê? pergunta Kant. É sinal, primeiro, de que todos os ho-
mens consideram que é do direito de todos se dotar da constituição política que
lhes convém e que eles querem. Segundo, é sinal de que os homens procuram
se dotar de uma constituição política tal que evite, em razão dos seus próprios
princípios, toda guerra ofensiva (Foucault, 2013, p. 19).
No final de 2008, quando Barack Obama chegou à presidência dos Estados Unidos,
Zizek relacionou a vitória à Revolução Francesa, porque reconheceu no acontecimento
“indício de algo mais” do que um mero deslocamento dos fatos políticos que se resumem
às eternas lutas parlamentares pela maioria, cheias de manipulações e cálculos pragmáticos.
A conquista de Obama gerou entusiasmo universal. A TV mostrou imagens do povo nas
ruas no mundo inteiro, desafiando o “cínico paradigmático” que ainda acredita que tudo
na vida passa pela tríade consumista “poder, dinheiro e sexo”, ou seja, que os princípios
e valores morais na sociedade contemporânea não são mais do que frases vazias e sem
93
importância. O que os cínicos e as suas leituras cínicas do êxito de Obama não viram,
segundo Zizek (2008, s/p), “é a própria ingenuidade da sabedoria cínica que ignora o
poder das ilusões”. A razão da vitória de Obama ter gerado tanto entusiasmo não é
somente o fato de que se produziu contra tudo o que era esperado; mais do que isso, com
ela se demonstrou a possibilidade de que algo assim ocorra. O mesmo vale para todas as
grandes rupturas históricas (Zizek, 2008, s/p).
O giro epistemológico operado por Kant na filosofia faz vibrar o acontecimento
para responder à questão: o que é a “nossa” atualidade? Na mesma linha, reconhecendo-
-se jornalista, Foucault deu centralidade ao acontecimento, para assistir ao nascimento das
ideias, i.e., ser um sujeito da atualidade. Sobre o que acontecia no Irã, e não era dito pelas
agências de informação, no que ficou conhecido como “revolução islâmica”, ele publicou
no jornal italiano Corriere della Sera uma série de reportagens e elaborou o que se propôs a
fazer sob o conceito de “reportagem de ideias” (Foucault, 2008, p. 49-51). Ao operar de
outro modo no jornalismo, Foucault pretendia marcar a ação crítica do filósofo sobre o
seu próprio tempo, dando consistência ao que denominou por antonomásia de diagnos-
ticador do presente, nos movimentos que fazia de exploração da atualidade. Nas repor-
tagens, ele deixou pistas sobre este modo de interrogação situado no campo de nossas
experiências possíveis. A opção filosófica por um pensamento crítico, tomará a forma de
uma ontologia de nós mesmos, fundante para o pensamento filosófico de Hegel à Escola
de Frankfurt, passando por Nietzsche, Max Weber etc., “à que, é claro, eu me vinculo na
medida em que posso” (Foucault, 2013, p. 22).
Tratar-se-ia do que podemos chamar de uma ontologia do presente, uma ontolo-
gia da atualidade, uma ontologia da modernidade, uma ontologia de nós mesmos.
E me parece que a opção filosófica com a qual nos vemos confrontados atual-
mente é a seguinte. É preciso optar ou por uma filosofia crítica que se apresentará
como uma filosofia analítica da verdade em geral, ou por um pensamento crítico
que tomará a forma de uma ontologia de nós mesmos, de uma ontologia da atu-
alidade (Foucault, 2013, p. 21-22).
94
lado, supõe a autonomia de um sujeito, até então impedido pela objetividade jornalística
de se colocar como sujeito de sua própria atualidade.
Como o jornalista deveria proceder para acionar uma relação de comunicação ver-
dadeira, de mão dupla, com os indivíduos que pretendem conhecer a atualidade que nos
envolve?
No rastro de Foucault, que se deslocou ao lugar do acontecimento, para se aproxi-
mar da verdade sobre o que acontecia no Irã, parece pertinente que o jornalista não se dei-
xe assujeitar por um modo de produção cristalizado. O fazer, desenhado em consonância
com a verdade, supõe condições de possibilidade de um sujeito com capacidade de recusa
e resistência, de não ser governado e de opor a um saber-poder dominante outros jogos
de verdade e de poder e outras formas de subjetivação. Foucault chama a tal atitude de
crítica. Em relação ao jornalista, a crítica poderia contribuir para compor uma atualidade
mais “verídica” em que o jornalismo encontrasse o seu real, abdicando de “trucagens e
blefagens” (Ramonet, 2001, p. 62), sobre os acontecimentos, em uma relação de exte-
rioridade relativa com a filosofia. Observa-se no pensamento foucaultiano sobre o Irã,
uma simetria entre a filosofia e a crítica. Assim posto, no rastro de Foucault, o jornalismo
aceitaria a reflexão, em oposição ao discurso afirmativo, neutro e impessoal que alimenta
a prática pressionada por uma ambição institucional. No que poderia ser definido como
“jornalismo de ideias”, visceralmente ancorado no poder do sujeito de esquadrinhar o
acontecimento na interface jornalismo/filosofia, o que se esboça sobre a atualidade de-
corre de práticas de resistência/profanação do dispositivo jornalístico que se desviam do
ethos profissional e do saber cristalizado.
As pistas existentes sobre o espaço de ascendência moral e social do filósofo parre-
siasta, permitem imaginar como seria semelhante jornalista. Além da coragem de dizer o
que pensa a despeito das regras, dos hábitos jornalísticos, teria de apresentar os dois ou-
tros operadores da verdade: a episteme (saber) e a eunoia (sentimento de benevolência que
provém da amizade) direcionadas aos que estão às margens da sociedade e do jornalismo.
Sob essas condições de possibilidade, já experienciadas por Foucault na “reportagem de
ideias”, o jornalista desafia os procedimentos de controle do jornalismo tomando para si
o desenvolvimento de uma relação de comunicação que possibilitará a participação do ou-
tro como indivíduo ativo, não somente fonte da informação, além de abrir a via para uma
consideração mais adequada do que permanece “não dito” na atual sociedade midiática.
Em consonância com a filosofia, mais concretamente com a vertente crítica do “re-
conhecimento do presente”, o jornalista, ocupando-se da atualidade, deveria dar visibilida-
de à complexidade do acontecimento e ao “não dito” que se esquiva de toda pretensão de
objetividade. Desde Kant, a atualidade se constitui em objeto de crítica do filósofo. Para
Kant, colocar a questão do pertencimento à própria atualidade é enquadrá-la a um acon-
tecimento do qual se poderia falar em termos de sentido e singularidades em relação a um
“nós”, para formular o problema da comunidade da qual fazemos parte. Assim pode-se
95
compreender como o discurso jornalístico no Ocidente construiu uma parte fundamen-
tal da sua identidade nesta dobra, localizada no presente: o que está acontecendo agora?
No que é construído pelas mídias sobre certos acontecimentos do presente, entre todos
os outros, situam-se os jogos de poder e dominação, que conjugam aqueles que querem
dirigir os outros e aqueles que lhes obedecerão. O filósofo, de sua parte, seguirá outra di-
reção: será perquiridor e ator que afirma o seu pertencimento a um certo espaço onde se
interroga, escreve a sua reflexão e se filia a um “nós”, desde Kant.
É esse “nós” que deve se tornar, para o filósofo, ou que está se tornando para o
filósofo, o objeto da sua reflexão. E, com isso, se afirma a impossibilidade de o
filósofo eludir a interrogação do seu pertencimento singular a esse “nós” (Fou-
cault, 2013, p. 14).
96
se poderia encontrar o sustento, o suporte dessa rede de relações inteligíveis, é a lógica
própria de um jogo de interações com suas margens sempre variáveis e de não certeza.
Nos domínios foucaultianos, o modelo topológico do poliedro serve metaforica-
mente à análise dessa rede de relações sociais que não constitui um plano único. São rela-
ções que estão em mobilidade, são parcialmente visibilizadas em meio ao que reconduz o
mesmo processo e ao que o transforma; sua complexidade, no entanto, sempre está reser-
vada ao plano da análise. Neste sentido, acontecimentalização abarca além da analítica, as
reportagens feitas no Irã, o modelo utilizado por Foucault no processo de produção antes
da viagem, para dar consistência à investigação do jornalista que “assiste ao nascimento
das ideias”, embora isso não tenha sido reconhecido por ele. Pode-se pensar, igualmen-
te, acontecimentalização no desdobramento que o repórter realiza das várias arestas que
constituem um acontecimento, no plano da descrição acontecimental.
Em contraposição, a pirâmide invertida secularmente inoculada no jornalismo de-
termina o processo de produção da notícia, tanto a coleta de dados como a sua hierarqui-
zação e organização textual. Arranjadas como se esta figura existisse, estariam, logo na en-
trada, na parte superior, as principais informações sobre o acontecimento. Ao situá-las no
topo, o repórter estará repetindo a metodologia que teria sido inventada durante a guerra
de secessão norte-americana, quando os correspondentes pediam preferência nas oficinas
de telégrafo para utilizar o telégrafo e enviar suas informações às redações.
Ante esta situación, los operadores de telégrafo idearon un método para lograr
dar preferencia a todos los corresponsales a la vez. El sistema consistió em hacer
una rueda de informadores en la cual cada uno podía dictar un párrafo, el más
importante, de su información. Al acabar el turno se iniciaba el dictado del se-
gundo párrafo, y así hasta el final (Fontcuberta, 1993, p. 73).
97
positivista. Das ordens imediatas nas editorias dos meios de comunicação social
às disciplinas acadêmicas do jornalismo, reproduzem-se em práticas os dogmas
propostos por Auguste Comte: a aposta na objetividade da informação, seu re-
alismo positivo, a afirmação de dados concretos de determinado fenômeno, a
precisão da linguagem (Medina, 2008, p. 25).
98
tecer o presente”, descrita em um “livro artesanal” publicado em 1973, a análise do poder
jornalístico não faz parte, nem da fase em que se alinhou ao positivismo, voltada ao estu-
do das técnicas de entrevista e reportagem, nem da fase posterior em que rompeu com a
concepção positivista de objetividade apoiada por Marx, Nietzsche, Freud e Paul Ricoeur.
De Nietzsche a Marx, um passo na complexidade interpretativa do real concreto:
a aproximação do sentido de um fenômeno nada mais é que o aprofundamen-
to em suas aparências. Assim, o enlace dos três, bem além do positivismo: a
determinação do sentido no complexo de forças que atuam sobre o fenômeno
(Nietzsche), a decifração da essência encoberta pelas aparências (Marx) e a res-
significação dos símbolos na narrativa da contemporaneidade (Freud) (Medina,
2008, p. 30-31).
Desde a perspectiva crítica, que enfoca as relações de poder, pode-se deslizar para
fora da retórica vertebrada no apagamento do sujeito, na precisão e na verdade, para deci-
frar a importância da reportagem que é produzida nas margens ou fora da arquitetura de
um dispositivo, que dá forma e diferencia o jornalismo como formação discursiva singular
encarregada da produção e circulação do que pode e do que não pode ser dito sobre os
acontecimentos e de como o jornalístico é dito na conformidade não com a verdade, mas
com um regime de verdade e uma ordem dos discursos. Trata-se não somente de promover
uma virada nas formas jornalísticas contemporâneas, ou de aperfeiçoá-las e afiná-las com
o interesse das audiências, articulando diferentes plataformas. Um outro modo de fazer
99
não, necessariamente, deve descartar, igualmente, a dimensão espaço-temporal – regulada
pela brevidade, novidade, atualidade, imediatez e objetividade –, que compõe interesses
específicos, sejam eles da empresa, dos grupos de pressão ou do Estado. A construção
de uma figura na contracorrente da dominação supõe uma participação ativa no jogo de
forças vigente no interior da instituição jornalística. Isso significa, simultaneamente, ações
de resistência e uma produção diversificada de discursos para atingir e modelizar os indi-
víduos: “O ponto em que o poder se realiza numa rede microfísica” (Rodrigues Gomes,
2003, p. 103). Aqui, voltamos à própria formação histórica do jornalismo, em que uma
sucessão de práticas vem caracterizando o exercício do jornalismo desde os primórdios da
imprensa de tipos móveis.
Nota final
Uma teoria da prática jornalística, como a que se propõe neste livro, fundamentada
na epistemologização de um saber das margens do jornalismo dominante, requer um dis-
positivo teórico-conceitual vertebrado no pensamento foucaultiano, com apoio de outros
teóricos, desenvolvendo-se nas particularidades de dois elementos: as práticas jornalísticas
e os sujeitos da produção. Desde o início, a ideia era dar visibilidade ao fazer e complexi-
dade teórica à ação de certos jornalistas por sua distinção do mercado de notícias; chegar
até isso, no entanto, demandou um extenso processo de pesquisa.
Para uma aproximação ao pensamento dos jornalistas em geral, em relação aos pro-
cedimentos de controle discursivo, uma grande enquete com mais de 200 repórteres bra-
sileiros foi realizada. Foram eles que forneceram pistas para o planejamento e a realização
das entrevistas em profundidade com 17 jornalistas; alguns apareceram na enquete como
autores de livros, outros foram entrevistados independentemente de relação com a en-
quete, por terem sido citados por um entrevistado ou por proeminência nas mídias entre
os anos 1960 e 2000. Algumas entrevistas foram feitas por mera conveniência; caso dos
espanhóis Gumersindo Lafuente e Josep Rovirosa Olivé (apud Marocco, 2012); ou por
identidade com o pensamento foucaultiano, caso de Tony Hara (apud Marocco, 2012). O
primeiro elemento da teoria a ser construída, portanto, tratava-se da escuta dos jornalis-
tas e da busca pelo que Giddens denomina “consciência discursiva”, ou o que, a partir
do ponto de vista de Foucault, pode ser considerado, mutatis mutandis, “esta espécie de
discurso contra o poder, esse contradiscurso expresso pelos prisioneiros, ou por aqueles
que são chamados de delinquentes, é o que é fundamental, e não uma teoria sobre a de-
linquência” (Foucault, 1993, p. 72). Dos entrevistados foram recolhidas reflexões críticas
sobre o saber jornalístico que circula nas redações e faz funcionar a máquina de produção.
Nas entrevistas, um conjunto de práticas compartilhadas e singulares tornou visível um
outro modo de produção no qual as normas que configuram o campo do jornalismo e a
natureza institucional das mídias dominantes foram postas em xeque.
100
No desenrolar da pesquisa, o conjunto de suas peças, a enquete, as entrevistas, li-
vros e outros materiais produzidos com e por repórteres, foram sendo reunidos em um
grande arquivo onde, desde uma nova condição, em sua forma enunciativa, prescrita por
uma analítica dos discursos, descortinaram primeiramente um quadro de entendimento
desde o qual, a partir das recorrências existentes foi possível elaborá-los em sua complexi-
dade em uma nova arquitetura. Nas relações enunciativas, pode-se compreender a grande
proximidade deste movimento exploratório, feito no âmbito da prática e dos sujeitos da
produção, com a fala de Deleuze no diálogo com Foucault, “Os intelectuais e o poder”
(1993). Quando os repórteres se deram a ver na entrevista, percebeu-se que produziam,
com a mínima interferência do pesquisador, uma teoria do saber jornalístico, de como um
modo de fazer circula ininterruptamente nas redações e contagia múltiplos espaços que
são irrigados por um conjunto de normas e interesses institucionais que não estão descri-
tos nos manuais de redação. A este modo de fazer, que homogeneíza as diferenças, alguns
poucos resistem e foi com o aporte das reflexões e das ações de alguns entre eles que os
trabalhos foucaultianos da década de 1980 encontraram ressonância no presente.
De entrada verificou-se que havia um exercício de resistência de alguns repórteres
caracterizado por seis elementos: a crítica das práticas jornalísticas; uma relação física
com a atualidade através da presença do corpo na cena do acontecimento; atitude ética;
desenvolvimento de um trabalho intelectual, em ações de acontecimentalização; relação
diferenciada com a fonte jornalística; e autonomia autoral. Mais concretamente, em condi-
ções diferenciadas de possibilidade, são produzidos, além da reportagem, os “livros de re-
pórter”. Com foco nesses sujeitos buscou-se compreender o que se considera central para
uma teoria da prática jornalística ancorada em uma prática diferenciada dos respectivos
sujeitos da produção: a verdade. Em contraste com a disciplinarização do campo, quan-
do verdade e realidade foram reforçadas como conceitos primordiais para que os relatos
jornalísticos fossem destituídos de marcas autorais e se autonomizassem da literatura, em
meados do século XX, sustentando-se na “objetividade jornalística”, o que se evidenciou,
diante da centralidade dos sujeitos no processo de produção, foi a coragem do jornalista
de fazer aflorar, por sua ação, um conjunto de verdades que todo mundo conhece, mas
que ninguém diz. Mais uma vez Foucault, voltando-se para a antiguidade ajuda a compre-
ender como se dá o processo de engajamento desses sujeitos a uma maneira de visibilizar
o real, que implica uma relação singular com seu próprio corpo, com o cenário dos acon-
tecimentos, com as pessoas e a experimentação de uma forma de escrita – para Foucault,
uma escrita arma. São estratégias voltadas ao conhecimento de si que podem transformar
os sujeitos e levá-los a tramar a vida, as práticas e a verdade em harmonia. Esta liberdade
refletida implica uma relação ética com os outros, um modo de fazer jornalismo que per-
segue a verdade e denuncia a mentira.
Chegou-se então a um contradiscurso à ordem do discurso estabelecida pelo jorna-
lismo dominante. Com isso se pode expor em outras condições de possibilidade o centro
101
do famoso “jornalismo filosófico” de que Foucault gostava de falar. O livro de repórter,
espaço da crítica das práticas jornalísticas em que os repórteres desempenham a tarefa
de se fazerem porta-vozes de um conjunto de diferenças, tanto sociais quanto políticas
que são apagadas no jornalismo pela “objetividade jornalística” e o modo de objetivação
jornalística que lhe corresponde. Em ações de acontecimentalização, os repórteres eviden-
ciaram uma teoria do jornalismo, da prática jornalística, de uma prática que se descola do
jornalismo dominante e que se evidencia em ações de resistência dos repórteres que, nas
palavras de Foucault, revelam “o sistema regional desta luta [...] contra o poder, luta para
fazê-lo aparecer e feri-lo onde ele é mais invisível e mais insidioso” (Foucault, 1993, p. 71).
Na companhia de Foucault demos consistência ao que foi dito nas linhas acima e
é com ele que encerramos. Não poderia haver referência mais adequada ao tratamento
das práticas jornalísticas e das manifestações de poder internas e externas ao seu funcio-
namento que, secularmente, têm constrangido os sujeitos e as populações em diferentes
graus, mas em todos os lugares. E que, ao mesmo tempo, têm possibilitado o estudo das
manifestações de resistência, como a que defendemos neste texto como lugar de uma te-
oria da prática e dos sujeitos da produção: o livro de repórter. Uma série de negativas dão
solidez a sua existência: 1. Livro de repórter não se refere à produção de jornalistas, que
têm o desejo de “prender a atenção dos outros com um espetáculo de si mesmo” (Wu32,
apud Kakutani, 2018, p. 75); 2. Tampouco se trata de manifestação contemporânea de fait
divers (Barthes, 2002), voltada à exploração da “informação monstruosa” (Barthes 2002, p.
259); 3. Não se limita à reprodução da hegemonia das fontes oficiais, nem ao tempo e es-
paço jornalísticos, nem ao regime de verdade dominante, nem à autoridade da opinião aci-
ma do conhecimento; nem à forma da pirâmide invertida como fórmula de organização
das informações; e 4. Não há gênero jornalístico ou literário que o defina à medida que se
desprende de ambos para dar conta da complexidade dos acontecimentos e de sua mate-
rialização em ações de reconhecimento do presente mais apropriados à reflexão filosófica.
Nos dias de hoje, com a facilidade de acesso aos meios de produção e a circulação da
internet, a atividade jornalística pode cair em descrédito, se o jornalista não descobrir um
outro modo de contar uma história; nesta lacuna, os pequenos movimentos de resistência
no espaço quase infinito da mídia mainstream e os livros de repórter podem tomar dimen-
sões imprevisíveis. Historicamente, o jornalismo tem se reconfigurado, ora por força da li-
teratura, ora pressionado pela incorporação da “objetividade” da ciência; nas margens das
mídias, como se pode demonstrar, o que germina é um outro modo de fazer jornalismo,
em que a crítica das práticas jornalísticas ocupa o centro do que pode vir a ser um novo
ciclo epistemológico caracterizado pelo crescimento contínuo do livro como mídia, pela
redução do poder da estrutura das mídias e por autonomia do repórter.
32 No original: WU, Tim. The attention merchants: The epic scramble to get inside our heads. Nova York: Alfred A. Knopf, 2016,
p. 315.
102
A internet nos deu muito mais autonomia como repórter. Diminuiu o poder da
estrutura constituída. Então acho que a gente está vivendo um momento mara-
vilhoso. E por essa ampliação de narrativas, por estes desafios todos, lamento
muito que infelizmente vou morrer antes de ver muita cosa acontecer. O jornalis-
mo vai ficar cada vez melhor, porque as pessoas vão se tornando mais exigentes.
Então tens que fazer muita diferença para ser escutado em um mundo com tan-
tas e tão diversas vozes. E só fazes diferença fazendo diferente, e não fazendo o
manual, o básico, isso qualquer um faz. O desafio de cada repórter hoje, e deveria
ter sido sempre assim, é descobrir qual é a sua voz, qual é o seu jeito de contar
a história, qual é o seu jeito e fazer as coisas (Brum, apud Marocco, 2012, p. 83).
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106
Capítulo III
Sobre acontecimentos
A reincidência do acontecimento
Beatriz Marocco
108
De local turístico, as arcadas viraram teto para dezenas de desvalidos que ali
montaram barracas ou levantaram tendas feitas de tábuas e de papelão. Uma ao
lado da outra, elas se estendem ao longo de toda a construção, dos dois lados da
Borges de Medeiros, oferecendo um cenário desolador para as pessoas que ainda
se arriscam a circular por aí (Melo, 2016, p. 07).
33 Apropriação direta do conceito de macroacontecimento fundador: “Los acontecimientos de todos los días deberán recortarse a
imagen y semejanza de este macroacontecimento fundador (...): todos los acontecimientos serán así microrrelatos que reproducen
monádicamente la misma cantinela. Em todos lados, lo que hallamos es el despliegue de la reducción de los valores de la conciencia
empírica a las verdades del sentido común (Morey, 1988, p. 87-88).
34 A “periculosidade” (GARÓFALO, 1912; LOMBROSO, 1912) dava consistência a uma condição virtual, atribuída ao indivíduo
não por seus atos, pelas infrações efetivas a uma lei que houvesse infringido, mas por um comportamento que poderia ter manifes-
tado ou não, e que, em ambos os casos, deveria ser controlado (Marocco, 2004, p. 17).
109
pondem a diferentes limiares epistemológicos do jornalismo. Como o acontecimento é
contado pelos jornais? Como a informação é avaliada em sua vinculação com o passado
pelo jornalista de ZH? , i.e., como o jornalista esclarece ou oculta o jogo de forças da so-
ciedade imbricado na produção jornalística?
Reconhecimento do agora
A analítica para encaminhamento destas indagações sucede à atitude cognitiva de
espanto, que exige do pesquisador um olhar fixo na superfície discursiva do agora e ações
em duas direções: na emergência de pistas da reincidência do acontecimento a serem con-
trastadas com o arquivo de enunciados organizado em pesquisa anterior (Marocco, 2004)
e na organização de um novo arquivo de enunciados selecionados na superficie discursiva
da reportagem de ZH, em que é possível identificar marcas do acontecimento fundador.
Benjamin chamou este transe cognitivo de “reconhecimento do agora”. Ao segui-lo, nas
camadas históricas do subsolo discursivo, as figuras arcanas podem ser reconhecidas e
apontadas. Estas figuras permitem voltar a superfície para decifrar o que delas se insinua
na ponta de um iceberg: a identificação da potência de um acontecimento fundador na
sombra de um acontecimento corrente, produzido em outras condições de possibilidade
do jornalismo.
Neste sentido, em carta a G. Karplus, Benjamin escreveu:
Tomou corpo minha teoria do conhecimento que se cristaliza neste conceito que
(previamente) manipulei de maneira muito esotérica, ‘o reconhecimento do ago-
ra’. Descobri estes elementos da arte do seculo XIX que somente são reconhecí-
veis ‘agora’, que nunca o foram antes e nunca o serão outra vez” (carta citada em
Buck-Morss, 1995, p. 70).
110
mémoire historique – la similarité avec d’autres événements, la répétition ou la
rupture que l’information que l’information présente par rapport à cette mémoi-
re (1996, p. 56)35.
35 No processo de atribuição de sentido ou de valor ao acontecimento, o jornalista combina a leitura de símbolos ligados à infor-
mação – hora, lugar escolhido, tipo de atentado – e realiza a relação destes símbolos com a memória histórica – a similaridade com
outros acontecimentos, a repetição ou a ruptura que a informação apresenta em relação a esta memória (1996, p. 56, trad. livre da
autora).
111
a importância da experiência prática como elemento que proporciona o aprendizado para
construção mais precisa de uma intriga que, nos termos por ela emprestados de Paul Ri-
coeur (1983), permitem a identificação do fato como uma entidade localizável.
S’il manque au journaliste la maîtrise du contexte socio-politique, il peut certes
avoir connaissance de ce qui s’est passé, mais il ne peut pas le mettre en intrigue,
c’est a dire en faire un événement dans une histoire, bref en faire réellement une
information (Garcin-Marrou, 1996, p. 50)36.
36 Se falta ao jornalista o domínio do contexto sócio-político, ele pode conhecer o que se passou, mas não pode pôr-em-intriga,
quer dizer, construir um acontecimento na história, dar sentido à informação (trad. livre da autora).
112
sas da população formadas por indivíduos que se dedicavam à “vagabundagem” nos mais
diferentes relatos: literários, governamentais, jornalísticos.
Esse modo de objetivação jornalística fez o discurso funcionar como uma forma e
uma prática de mediação simbólica que, simultaneamente, revela e oculta as operações de
poder e abriga práticas disciplinares específicas para apresentar os indivíduos improduti-
vos e produzir efeitos de verdade sobre a sua “periculosidade”. Através da crônica policial,
os jornais apresentaram figuras tomadas do real em suas relações promíscuas e perigosas,
ao tornarem o corpo desses indivíduos, vetor de técnicas que combinam a hierarquia de
quem observa a um julgamento moralista e normalizador. Os indivíduos ganharam uma
existência verbal própria e mobilidade irrestrita no seio de uma grande família de cinco
figuras básicas:
a) Os vagabundos e mendigos. Muitos entre eles apenas resistiam ao trabalho na fá-
brica; eram operários que tinham se rebelado contra qualquer regularidade de horário ou
de hábitos, escravos recém libertos, camponeses sem terra para explorar, ou ex-soldados
empobrecidos e desempregaos após o final das guerras. Sob o ponto de vista dos jornais,
todos eram malfeitores que contaminavam a cidade. Porto Alegre tinha sido contamina-
da por um conjunto de vagabundos malfeitores que era necessário corrigir severamente,
“acabar com eles” (Gazetinha, 27/07/1897, apud Marocco, 2004, p. 37).
b) As prostitutas. Geralmente os jornalistas se referiam a elas como as crioulas, que
chamavam a atenção pela sua pele escura e desafiavam a ordem nas ruas. Em sua figura
jornalística, a prostituta era virtualmente perigosa. Tinha uma vida imoral que rompia com
as normas e valores morais da vida coletiva. Era o germe de todos os vícios.
c) Os jogadores. Viviam do negócio do jogo e contaminavam o entorno; eram os
vagabundos que se dedicavam ao jogo do osso nas ruas ou os pobre diabos que poupa-
vam para jogar e serviam de alvo fácil para a repressão policial. Eram, junto com os falsos
mendigos e os ociosos, o grande referente da vagabundagem e da anormalidade. A síntese
do mal que se opunha ao trabalho na fábrica e a família.
d) Os jovens. Na classificação jornalística, os jovens não eram nunca inocentes, joga-
vam e perturbavam a ordem nas ruas, frequentavam as tavernas ou viviam sob a proteção
dos jogadores. As meninas eram normalmente vítimas, de pais abusadores e das mães que
as prostituiam.
e) Os ladrões e criminosos. Ao contrário dos tipos anteriores, que foram incluídos
nos jornais no final do século, os ladrões e criminosos nasceram e o seu ser-linguagem foi
ganhando novas formas e volume, pouco a pouco, durante a história do jornalismo. No
final do século eram apresentados como “tipos esquisitos” que mantinham a cidade em
constante sobressalto (Gazetinha, 19/08/1987, apud Marocco, 2004, p. 43).
Exercício de análise
Sem um compromisso metodológico a priori, com a trajetória acadêmica atualmente
voltada a outro objeto de pesquisa, fui movida pelas pistas, que apontavam para a perti-
113
nência de uma análise enunciativa, no rastro da reincidência do acontecimento fundador
que afeta a pratica jornalística nas duas épocas. Um arquivo de enunciados deu lugar então
a um estranho diálogo entre dois limiares de epistemologização do saber jornalístico, o
primeiro em que o jornalismo é reconhecido como prática discursiva atravessada pela lite-
ratura, na passagem do século, e o jornalismo atual, organizado em um campo profissional
pela objetividade, a verdade factual e a presença de fontes, que dão credibilidade ao campo
jornalístico, compreendido em sua singularidade por um conjunto organizado de teorias.
Na sequência do espanto que experimentei diante das estrategias semelhantes para
objetivação de certos individuos, postulo, mais concretamente, a volta da “fábula moder-
na” nos discursos jornalísticos do agora (Morey, 1988, 2004). Ao objetivar o acontecimen-
to em torno do qual se estruturou o cotidiano do trabalho e da normalidade, no período
histórico que abrange o final da escravidão, início da industrialização e embelezamento
das metrópoles mundiais, vinculados ao princípio republicano de “ordem e progresso”,
os jornais portoalegrenses enquadraram a imaterialidade dos acontecimentos em fatos
ligados à ordem social, que incluía certos indivíduos no discurso para reforçar sua “peri-
culosidade”. A mesma forma de exclusão reapareceu na reportagem de Zero Hora.
xxx
37 Foram pesquisados os seguintes jornais de Porto Alegre: Gazetinha, Gazeta da Tarde, O Independente, O Século.
114
nas páginas. Na virada do século, os “riferrafes” diários entre os soldados do 25º Bata-
lhão de Infantaria e o proprietário do Restaurante Mocidade, a disputa entre um cabo e o
“crioulo” Francisco Gonçalves pelo amor da meretriz Odorica, ou a perseguição de dois
cidadãos por um par de soldados bêbados que acabavam de sair de uma taverna, com-
punham a imagem de promiscuidade atribuída à Rua General Paranhos (Gazeta da Tarde,
17/09/1896 e 04/08/1897; Gazetinha, 5/07/1898; Pesavento, 1998, p. 125; e Marocco,
2004, p. 102).
Na década seguinte, O Independente afirmava que as tavernas do Beco do Poço, como
era popularmente conhecida a rua, eram preferidas para a libertinagem (16/06/1907, Pe-
savento, 1998, p. 125; e Marocco, 2004, p. 102). No Beco do Poço localizavam-se os pros-
tíbulos da “crioula” Fausta e da “crioula” Domingas. As calhas eram outro problema do
beco. Segundo se pode ler na Gazetinha, as calhas estavam quase sempre cheias de lixo
(05/03/1896, apud Marocco, 2004, p. 103). No início do século XX começaram as opera-
ções urbanísticas para mudar o desenho dos becos e o espaço que os cortiços ocupavam
na cidade. Simultaneamente começava o trabalho jornalístico de difamação destas regiões
que se concentravam no centro da cidade.
Foi neste beco que se manifestou o primeiro caso de peste bubônica de Porto
Alegre, seguindo-se muitos outros não só de peste, como também varíola, febre
tifóide e outras moléstias contagiosas. Os registros de polícia estão repletos de
delitos no beco praticados, desde o assassinato até o estupro, sendo raro o dia em
que não se dêem desordens mais ou menos graves. Isto quanto ao ponto de vista
da tranquilidade, quanto ao da higiene, está afinado pelo mesmo diapasão. Os
moradores são ou vagabundos incorrigíveis ou prostitutas da mais baixa esfera,
infelizes que às vezes nem têm o que comer e que, para poderem pagar o aluguel
das casas, aglomeram-se as vezes seis ou oito em casas que com dificuldades con-
teriam três moradores. Nessas casas, a imundície era das mais flagrantes, sendo os
apartamentos ao mesmo tempo sala, dormitório, sala de jantar, cozinha e latrina
(O Independente, 18/02/1906, apud Marocco, 2004, p. 101).
115
Dois anos após ter sido usada de cenário para os torcedores da Holanda, as arcadas
“viraram teto para dezenas de desvalidos”. Ao longo da extensão do viaduto, barracas ou
tendas construídas de táboas e papelão abrigam “indigentes, drogados e doentes mentais”,
oferecendo “um cenário desolador para as pessoas que ainda se arriscam a circular por
ali” (Melo, ZH, 2016, p. 07). O repórter de Zero Hora desdobrou a aparência do lugar em
uma descrição detalhada e atravessada por sentidos que parecem estranhos em relação à
condição de ilegalidade e à precariedade da existência dos indivíduos. Na conta do repór-
ter, há 30 espaços ocupados, alguns por somente um morador, outros compartilhados por
casais ou amigos. Nos mais “simples” há um colchonete encostado à parede; a maioria,
no entanto, “é bem mais incrementada”, porque não houve resistência das autoridades à
ampliação dos domínios pelos denominados ironicamente de “inquilinos do viaduto”.
Em geral, cada lar tem um pequeno aposento de tábuas, com um teto feito de
lona preta ou outro material. No interior, todos estão dotados de colchões. À
porta de um, alinha-se com capricho um par de fantufas, as pontas voltadas para
fora. Em várias destas moradias, um pátio foi demarcado na calçada, e nesses
quintais é possível contemplar um tapete com arabescos, uma poltrona, estantes
feitas com caixotes e até uma mesa improvisada a partir de uma caixa de papelão,
coberta por uma toalha cor de rosa e ornamentada por um vaso de flor e um
porta-retratos sem foto alguma (Melo, 2016, p. 07).
116
“batuques infernais dos negros”, ou contra “bailes de lupanar” que reuniam as meretrizes
nos becos mais escuros da cidade (Gazetinha, 08/11/ 1897; O Século, 28/05/1882, apud
Marocco, 2004, p. 67). O repórter que ouviu Pereira Pires, fez entrevistas com a presidente
da Associação Comunitária do Centro Histórico, que mora em um prédio na vizinhança,
Ana Maria Lenz, com o líder da Associação Representativa e Comercial do Viaduto Otá-
vio Rocha (Arcovv), Adacir Flores, proprietário de uma loja de livros usados, situada na
parte inferior do viaduto, e com Renato Pereira Jr., proprietário do Armazém Porto Ale-
gre, um pub instalado há quatro anos nas escadarias do viaduto. Os três deram apoio ao
diagnóstico da vizinhança “exasperada” e dos “prejuízos ao comércio”. Conforme Melo,
Lenz mostrou-se preocupada com a insegurança, a sujeira, o mau cheiro, o consumo de
drogas e as gritarias na madrugada.
Fazem xixi, fazem sexo e se drogam no viaduto. À noite, o barulho é terrível, por-
que eles dormem durante o dia. Tem assaltos. Quem é que sofre com todos esses
problemas? Ao moradores dos edifícios próximos. Estamos cansados (Lenz, em
entrevista a Melo, 2016, p. 08).
Adacir Flores, conforme Melo, citou o prejuízo que a ocupação trouxe para os con-
cessionários de espaços comerciais. Alguns estabelecimentos fecharam e os que continu-
am têm menos movimento de frequeses e queda no faturamento, a ponto de estarem em
dificuldade para cobrir os custos.
Isso aqui virou uma cracolândia. Consomem e traficam direto. Tem também
delinquentes que foram corridos das vilas. Mais para baixo fica uma mulher que
é doente mental, transa com todo mundo e lava os genitais na frente dos carros,
como se estivesse lavando as mãos (Flores, em entrevista a Melo, 2016, p. 08).
117
Na reportagem “Cartão-postal do abandono”, Melo sintetizou a experiência dos jor-
nalistas de final de século e dos primeiros “repórteres”, ao ocupar uma posição de defesa
do “símbolo de uma Porto Alegre moderna, próspera e vibrante”, dedicando-se à escuta
do cotidiano dos moradores de rua na entrevista com Pereira e nos dois depoimentos que
transcreveu em duas colunas denominadas “vozes do viaduto”. Para além deles, situado
no limiar da “objetividade jornalística”, o repórter apresentou o outro lado da questão, em
que transcreveu as reclamações contra a presença dos moradores de rua.
As operações dos jornalistas no passado e na atualidade me levaram a cogitar ini-
cialmente na mobilização da “dupla temporalidade”, proposta por Garcin-Marrou (1996).
No entanto, como o repórter de Zero Hora se restringiu a reproduzir a fábula moderna, a
dupla temporalidade foi transferida para a função do analista, inscrita no âmbito da acon-
tecimentalização. As relações enunciativas entre os enunciados recortados da imprensa
porto-alegrense da virada do século e da reportagem de ZH levaram à compreensão do
signo longitudinal da exclusão e das figuras que foram construídas. As cinco figuras bem
delineadas pelos jornais decimonônicos, dos vagabundos e mendigos, prostitutas, jogado-
res, jovens e ladrões foram substituídas pela presença na representação dos “sem teto”,
qualificação genérica, para designar delinquentes, sujos, drogados e baderneiros, usada
pelo repórter e por vizinhos incomodados com o impacto no seu cotidiano e com os
prejuízos no comércio. As autoridades foram responsabilizadas por não corresponderem
às demandas por melhorias da vizinhança. Os sujeitos envolvidos com assistência social,
em suas diferentes atribuições, ou reconheceram que o problema “ainda não está no nos-
so horizonte38”, ou que “uma das coisas que favorecem muito a permanência ali é o lado
caritativo, ser um local onde há muita entrega de doações39”.
Ao final, poder-se-ia projetar uma dimensão de futuro na estrutura temporal es-
pecífica deste acontecimento fundador. No sábado, dia em que Zero Hora circulou, os
moradores de rua foram retirados para limpeza do viaduto que, no domingo teria festa de
comemoração de seus 84 anos. Na madrugada de domingo para segunda, os moradores
de rua voltaram ao viaduto. Embora o responsável pela operação de limpeza tenha negado
a relação direta com a reportagem de Zero Hora, é difícil não realizar novas relações com
os enunciados arcanos em que os jornalistas agiam e se reconheciam como auxiliares da
polícia e das autoridades sanitárias, usando o espaço do jornal para visibilizar onde os in-
divíduos viviam e por onde circulavam.
E por falar em indigentes, lembre a sábia polícia municipal o grande número de
vagabundos que andam esmolando por estas ruas [...]. Diariamente vem pelas
ruas da capital um robusto italiano, conduzindo pela mão um rapaz cego, que, de-
dilhando uma sebosa sanfona anda de porta em porta esmolando (12/08/1897,
apud Marocco, 2004, p. 37).
38 Declaração do vice-prefeito eleito de Porto Alegre, Gustavo Paim (Zero Hora, 10 e 11/12/2016, p. 11).
39 Declaração de Lirene Finkler, psicóloga da proteção social especial da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), res-
ponsável por políticas para a população de rua (Zero Hora, 10 e 11/12/2016, p. 12).
118
xxx
Referências
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Madrid: La Balsa de la Medusa.
Foucault, Michel. 1998. La verdad y las formas jurídicas. Barcelona: Gedisa.
Foucault, Michel. 2006. Mesa redonda el 20 de mayo de 1978. In: Ditos e escritos IV. Rio Janeiro,
Forense Universitária, p. 335-351.
Foucault, Michel. 1990. Qu’est-ce que la critique? Critique et Aufklärung. Bulletin de la Société
française de philosophie, 82(2), p. 35-63. Disponible en: www.unb.br/fe/tef/fi loesco/foucault/
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119
Garcin-Marrou, I. 1996. L’événement dans l’information sur L’Irlande du Nord. Réseaux, v. 14,
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Marocco, Beatriz. Prostitutas, jogadores, pobres e vagabundos no discurso jornalístico. 2004. São
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Marocco, Beatriz., Zamin, Angela.; Boff, Felipe. 2012. Os grandes acontecimentos e o reconheci-
mento do presente. Verso e Reverso, 26(62), p. 92-102.
Morey, Miguel. 1988. El orden de los acontecimientos. Sobre el saber narrativo. Barcelona: Edi-
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Morey, Miguel. 2004. Reconhecimentos do agora, prefácio. In: Marocco, B. Prostitutas, jogadores,
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Artigo originalmente publicado na revista Intexto - online first, da UFRGS. Disponível em: ht-
tps://seer.ufrgs.br/index.php/intexto/issue/view/2592
120
Murmúrios de aion
Alexandre Rocha da Silva e Beatriz Marocco
É muito possível que meu trabalho tenha algo a ver com filosofia: sobretudo
porque à filosofia – pelo menos desde Nietzsche – compete a tarefa do diagnosticar
e não mais a de buscar dizer uma verdade que seja válida para
todos e para todos os tempos. Eu procuro justamente diagnosticar: diagnosticar o presente.
Eu procuro dizer aquilo que nós somos hoje e o que
é que agora significa aquilo que nós dizemos. Este escavar sob os próprios
pés caracteriza, desde Nietzsche, o moderno pensar e nesse sentido eu posso
me designar como filósofo (Foucault, Dits et Écrits, 1994, tome I, p. 606).
Para que se possa investigar o tempo jornalístico e circunscrever os atributos que lhe
são próprios é preciso preliminarmente reconhecer que o discurso jornalístico – nossa an-
coragem empírica – é uma das expressões contemporâneas de duas modalidades de tem-
po: o tempo de Cronos e o tempo de Aion. O tempo de Cronos circunscreve o universo
das práticas jornalísticas e o de Aion sugere a determinação deste universo como criação.
Neste Artigo, pretende-se explorar ensaisticamente as implicações destas duas mo-
dalidades de tempo sobre as práticas e os desafios do jornalismo e circunscrever o Acon-
tecimento como o que emerge entre o tempo de Cronos e o de Aion. Assim, pode-se
reconhecer o jornalismo contemporâneo tanto em uma dimensão diacrônica, aqui deno-
minada Cronos, dependente dos espaços em que se realiza como gênero e como escritura,
quanto em uma dimensão sincrônica, aqui denominada Aion, que se autonomiza do espa-
ço material, configurando as condições de criação de um jornalismo em devir. Concordan-
do com Maffesoli, é possível reconhecer que se trata efetivamente de um desafio encarar
a “revanche de Dioniso” contra o pensamento conveniente e a favor da “verdadeira cria-
ção” (Maffesoli, 2007, p. 98) expressa pelos agenciamentos de Aion.
121
velocidades e configura em conjunção com o avanço tecnológico um dos problemas cen-
trais da nossa época: a aceleração. Assim, o jornalismo - com seus cortes, edições e diagra-
mações - forja ritmos que configuram formas de expressão do tempo como a medida, a
identidade, a sucessividade e a localidade.
O tempo cronológico da medida é sinalizado pelo jornal na sucessão regular das
edições. Sem interrupções, de segunda-feira a domingo, associa a continuidade dos dias
da semana ao reconhecimento do presente que nos cerca. O mesmo jornal, que se cola
ao calendário, aproxima-se também do relógio, conferindo ao tempo uma materialidade
propriamente jornalística.
Eco do calendário e do relógio, o jornal pode operar ainda como instrumento de
orientação em relação ao tempo forjando identidades que lhe são próprias. Essas identida-
des são expressas em três ordens: a institucional, a de produção e a discursiva. Em sua or-
dem institucional faz-se, a cada edição, como referido anteriormente, marcador de tempo.
Em sua ordem de produção estabelece as rotinas produtivas que caracterizam as relações
de trabalho. Em sua ordem discursiva o jornal vai descolar-se do calendário e do relógio
e o tempo emergirá como uma temporalidade perfeitamente passível de ser descrita na
cadeia de signos que engendra.
Assim, com a linguagem, o tempo na dimensão de Cronos pode ser identificado, por
exemplo, nas flexões verbais ou em advérbios como ontem, hoje e amanhã.
De fato, o que está se descobrindo hoje, por muitos caminhos, além do mais
quase todos empíricos, é que a linguagem é espaço. Tinha-se esquecido isso sim-
plesmente porque a linguagem funciona no tempo, é a cadeia falada que funciona
para dizer o tempo. Mas a função da linguagem não é o seu ser: se sua função é
o tempo, seu ser é o espaço. Espaço porque cada elemento da linguagem só tem
sentido em uma rede sincrônica (Foucault, 2000, p. 168).
1 Foucault reconhece que é de Bergson a idéia de pensar a linguagem como espaço e não como tempo, mas se afasta dele por
considerar sua concepção de tempo excessivamente metafórica. (Foucault, 2000, p. 167).
Texto originalmente publicado na revista Verso e Reverso, v. 22, n. 49.
122
A linguagem é essencialmente o que lê o tempo. Além disso, a linguagem restitui
o tempo a si mesmo, pois ela é escrita e, como tal, vai se manter no tempo e man-
ter o que diz no tempo (Foucault, 2000, p. 167).
Ora, tal constatação demonstra o modo como esse jornalismo de Cronos – com
seus cortes, edições, diagramações, como já dissemos anteriormente – pode ser o re-
sultado criativo de outro tempo não espacial, o tempo de Aion, cuja leitura é dada pela
linguagem, que simultaneamente materializa Cronos e deixa ler os rastros de Aion em sua
incomensurabilidade imaterial. Logo, o problema da expressão jornalística aparece aqui
circunscrito por dois vetores inter-relacionais: o de um tempo puro do acontecimento e o
de um tempo espacializado das representações do acontecimento. Demonstra, também,
que vêm dessas mesmas escritas as materialidades a partir das quais novos tempos puros
são criados, mantendo-se no tempo e mantendo o que se diz no tempo.
Essa materialidade espacial proporcionada ao tempo pelos signos jornalísticos abar-
ca passado, presente e futuro. No jornal, tanto o passado quanto o futuro estão direta-
mente vinculado ao presente, à sua atualização com base em elementos jornalísticos de
noticiabilidade. Bakhtin (1997) nos fornece pistas para refletir sobre essa característica no
trabalho jornalístico através da vista aguda de Goethe em relação aos sinais do tempo.
Goethe determinava a olho a idade de uma árvore, conhecia o tempo de crescimento de
diversas espécies de árvores. Diz Bakhtin:
Sobre o fundo desse tempo da natureza, do cotidiano e da vida (que até certo
ponto ainda permanece cíclico), Goethe descobre, entrelaçados com esse tempo,
os indícios do tempo histórico: a marca perceptível impressa pelas mãos e pelo
espírito do homem, e, em compensação, o reflexo dessa atividade do homem
sobre seus costumes e suas idéias (1997, p. 250-251).
Goethe era hostil à confusão mecânica do presente com o passado que ignora o
vínculo autêntico entre as épocas. Também não gostava do culto dos lugares históricos ao
qual se entregam os turistas; não suportava ouvir as narrativas dos guias sobre os grandes
acontecimentos históricos que haviam ocorrido outrora” (Bakhtin, 1997, p. 251-252). Em
um trecho de Viagem à Itália, Goethe ilustraria esse caminho, quando, menosprezando as
recordações clássicas do guia, se pôs a apanhar cuidadosamente pedrinhas na margem do
rio.
Mais uma vez não consegui lhe explicar que não há forma mais rápida de se
obter uma idéia melhor de uma região montanhosa do que examinar os tipos de
rocha arrastados pelos riachos, e que se tratava ali também de, por intermédio
de resquícios, se adquirir uma noção daqueles píncaros eternamente clássicos da
antigüidade da terra (1999, p. 278).
Essa passagem, que deixa entrever um método capaz de tornar visível a passagem
do tempo pela metáfora do rio que arrasta as pedras, ganha com Bakthin relevância para
pensar o jornalismo na exata medida em que acrescenta “aos píncaros eternamente clás-
123
sicos da antiguidade da terra” a possibilidade de pensá-los em sua contemporaneidade. O
jornalismo faz dos três tempos cronológicos – passado, presente e futuro – sua localidade
imanente.
Uma outra forma que o tempo parece assumir na página por conta da natureza do
jornalismo desenvolve-se em uma espécie de exterioridade em relação à cadeia lingüística.
Deleuze afirma que “o presente em Cronos é de alguma maneira corporal. O presente é
o tempo das misturas e das incorporações, é o processo da própria incorporação. [...]. O
presente mede a ação dos corpos ou das causas” (Deleuze, 1998, p. 167). Tais identidades,
no campo do jornalismo, se estabelecem, em primeiro lugar, a partir do nome do jornal,
124
que o diferencia dos demais jornais, de suas editorias, que organizam o espaço por temá-
ticas, de seus textos, que hierarquizam o relevante nos acontecimentos, e de suas misturas
traçadas pelos modos como as diagramações conferem sentidos propriamente jornalísti-
cos aos fatos.
Desta organização no diagrama deriva a característica da sucessividade. Há uma su-
cessividade interna ao jornal entre as matérias apresentadas e as diferentes páginas que
o formam e uma sucessividade externa, que vai de uma edição a outra, e de um veículo
a outro. Ambas, entretanto, porque da ordem de Cronos, expressam um presente que se
desdobra em outro presente: “Pertence ao presente delimitar, ser o limite ou a medida da
ação dos corpos” (Deleuze, 1998, p. 168).
No espaço do jornal, devido às técnicas de relato e de edição, o tempo pode apresen-
tar um modo particular de presença discursiva. Se tomarmos o viés da edição jornalística,
o que se vê é que o que estava isolado ou distante é aproximado no espaço da página ou
da editoria que organiza e hierarquiza os relatos. Com a edição jornalística, o jornal produz
efeitos de uma espécie de temporalidade – a atualidade – que, aparentemente, é resultado
de leis de produção reconhecidas por um código, cuja chave é dada pelo próprio jorna-
lismo. A edição jornalística vai, assim, materializar séries de acontecimentos no âmbito
da atualidade que poderão aproximar o que aparentemente estava separado pelo tempo e
pelo espaço geográfico, segundo uma estratégia jornalística.
É o primado da imanência que produz a cadeia Aion - Cronos - Aion, infinitamen-
te, ou, analogamente, a cadeia Acontecimento - relato - acontecimento jornalístico. As
temporalidades, como já referimos, estão interconectadas e produzem, sempre desde um
determinado aspecto, questões que lhes são próprias, como as da produção, em Cronos,
ou a criação, em Aion.
Esse jogo torna possível a pulverização do acontecimento durante longos períodos
de tempo, em um conjunto de micro-relatos recortados por medidas exteriores ao jor-
nalismo de discriminação e de repressão, para efetuar, por exemplo, o enquadramento
da vida cotidiana. O acontecimento pulverizado em micro-relatos atravessará diferentes
espaços jornalísticos de uma arquitetura complexa e sem as paredes que aprisionam o
Acontecimento na mídia convencional, uma arquitetura desenhada por uma rede de meios
impressos e digitais, que se materializa e irradia em fluxo para além fora da atualidade jor-
nalística. Esses micro-relatos sobre um mesmo acontecimento deixam aparecer elementos
estranhos, que escapam aos filtros de controle estabelecidos nos processos jornalísticos de
produção do real; forma-se com isso uma constelação de relatos que articulam o tempo
não mais à linearidade do calendário, à cadeia lingüística, ao relato ou à atualidade por sua
vizinhança na página, mas sim a processos intermináveis em que os acontecimentos per-
dem o seu fim e continuam replicando entre-tempos.
Forma-se, assim, um continuum de espaço-tempo singular geralmente articulando pe-
ríodos curtos constituídos pelos acontecimentos que ocorreram aqui e agora e nas suas
125
margens (ontem e amanhã) e se materializa na página à semelhança de um fotograma de
seqüências longas de fatos e processos, cujo significado está na lógica interna da própria
sociedade como forma de sensibilidade e de cultura (Morato, 1988, p. 59). A atualidade,
apesar de ser da natureza do jornalismo, não é uma invenção do jornalismo. Em sua forma
jornalística, a atualidade atribui ao passado o mesmo peso relativo que é próprio ao coti-
diano de nossa sociedade, e o tráfego informativo que lhe corresponde instaura uma nova
ordem perceptiva de uma época (Morato, 1988, p. 40).
Cronos é medido a partir do presente, primeira dimensão do tempo desdobrado
em outras duas dimensões: o passado e o futuro: “Só o presente preenche o tempo, o
passado e o futuro são duas dimensões relativas ao presente no tempo” (Deleuze, 1998,
p. 167). Isto implica reconhecer, em relação ao propriamente jornalismo o que se viu an-
teriormente como pertencente à esfera da linguagem, ou seja, que a atualidade jornalística
presentifica acontecimentos passados e tendências de futuro como duas dimensões cuja
quase-existência é subordinada à efetiva existência do presente; de um presente que, por
sua vez, entra em relação de contigüidade com todos os presentes que se fazem jornalís-
ticos a cada nova edição do jornal. “A relatividade do passado e do futuro com relação
ao presente provoca, pois, uma relatividade dos próprios presentes uns com relação aos
outros” (Deleuze, 1998, p. 167). Tais combinatórias, no âmbito de Cronos, revelam a face
atualizada do jornalismo como a que o especifica como gênero, mas também sua clausura
identitária.
Coextensivo ao tempo de Cronos, o tempo de Aion é infinito e expressa a eternida-
de, a duração, o líquido vital. Assim como o vazio (que é infinito) constitui a condição do
lugar (que é finito), e tem necessidade deste para atualizar-se em função de um corpo. Do
mesmo modo, o tempo total, Aion (que é infinito), se atualiza num presente (que é finito),
em função de um agente” (Pelbart, 2004, p. 68). Neste artigo, as práticas jornalísticas são
este presente finito atualizado por forças temporais de Aion cujo agente muitas vezes são
as redes de seqüestro de que fala Foucault, “que se encarregam de certa maneira de toda
a dimensão temporal da vida dos indivíduos” (1998, p. 129). Poder-se-ia dizer, em outras
palavras, que no espaço jornalístico o mundo toma a forma de uma “realidade” jornalísti-
ca e que essa funciona em sincronia com outras “realidades disciplinadas” produzidas em
outros espaços fechados e repercute as mudanças relativas à experiência e à esfera da vida.
Desde uma perspectiva foucaultiana, essa mecânica de funcionamento do jornalis-
mo, que provoca certo enquadramento do mundo a uma “realidade jornalística”, realiza-se
no espaço fechado da redação e nos limites intangíveis de uma “heterotopia” (Foucault,
1999), porque o jornal não foi imaginado somente como um dispositivo fechado para
controlar e deixar sempre “à vista de um inspetor” os corpos dos trabalhadores que pos-
sibilitam o seu funcionamento (Bentham, 1989, p. 37). Seu objeto de controle encontra-se
simultaneamente no interior de sua arquitetura e no exterior do edifício. Na fábrica, por
exemplo, a atividade é regulada em relação às necessidades do objeto e pela utilização
126
exaustiva do corpo do indivíduo nos movimentos empregados em uma operação deter-
minada e em um determinado tempo. Esse controle temporal regula as ações do indivíduo
no espaço fechado e fragmenta o tempo para que esse seja melhor empregado, utilizado
de um modo mais útil dentro e fora da fábrica. Na arquitetura do jornal, o tempo de pro-
dução incidirá sobre o objeto (acontecimento a ser objetivado como notícia) e sobre os
movimentos dos produtores e sua individualidade ao longo do processo de produção, En-
quanto gerador de efeitos discursivos, o discurso jornalístico dará novos sentidos às coisas
e aos diferentes lugares do mundo, à existência dos indivíduos e à experiência humana,
articulando uns e outros ao bom uso do tempo cronológico, assim como esse é concebido
pela sociedade.
O jornal também vai se aproximar das “heterotopias de desviação”, elaboradas por
Foucault, à medida que ambos são, sobretudo, um “espaço diferente” de “acolhida” para
os mais distintos perigos deste mundo. Igualmente como as “heterotopias”, os jornais
tornaram possível que vários lugares que eram por si mesmo incompatíveis se encontras-
sem presentes em um só lugar. Outro princípio comum, tanto às “heterotopias” como aos
jornais é que a sua mecânica sempre supõe um sistema de abertura e fechamento. Não se
pode entrar em um “lugar heterotópico”, disse Foucault, como se entra em um moinho
(1999, p. 431-442). Algo parecido ocorre com os jornais: nem todos os acontecimentos
são acolhidos e considerados assuntos jornalísticos, nem todos os indivíduos são conside-
rados protagonistas, apenas certos fatos e certos indivíduos.
Com efeito, essa aproximação que esboçamos com o jornalismo está longe de ser
pontual, visto que o exemplo mais bem acabado da heterotopia – o barco – foi descrito
por Foucault por meio de elementos muito mais próprios à literatura. O barco, disse ele,
é um espaço flutuante, um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, fechado em si e, ao
mesmo tempo, lançado ao infinito do mar. Daí ele funcionar, desde o século XVI até os
dias de hoje, não apenas como um importante instrumento de progresso econômico das
sociedades, mas também como a sua maior reserva de imaginação. Nesse último aspecto,
talvez esteja o impasse em que se coloca a diferença do jornalismo e o deslumbre que se
possa vir a ter do jornalismo não mais como rotina e sim como criação. Nas civilizações
sem barcos, “os sonhos se esgotam, a espionagem substitui a aventura e a polícia, os
corsários”. Por outro lado, o jornalismo, assim como o praticado hoje, propicia em suas
camadas históricas e constitutivas a compreensão da diferença com o jornalismo literário
e a própria literatura, enquanto essa teve o jornalismo como lugar de realização, também
sugere possibilidades de transformação. O que o jornalismo pode vir a ser não mais como
um conjunto de proposições e procedimentos que obedece a exigências sincrônicas, si-
multâneas, arquitetônicas e, por conseguinte, espaciais? Mas, nos termos de Aion, jorna-
lismo como uma linguagem que reconhece a proximidade com a irrealidade e o efeito
de desrealização que repousa no horizonte de todo enunciado, alheia à crença de que a
simples evocação do nome possa restituir a presença do ser.
127
Os desafios de Aion
Ao problema da seleção, configurado na passagem entre um tempo de intensidades
simultâneas de Aion e um tempo de realizações espacializadas de Cronos, amplamente
abordado a partir de conceitos como heterotopia, relatos e acontecimentos jornalísticos,
acrescenta-se um novo problema: o da criação, o do primado da criação desejante sobre as
formas desejadas e realizadas como práticas jornalísticas, ou seja, o problema do primado
de um devir-jornalismo localizado no futuro e que pode vir a ser em relação a um jorna-
lismo já institucionalizado. Dizia Nietzsche: “Agir contra o tempo, e assim, sobre o tempo,
em favor de um tempo futuro” (Deleuze, 1990).
É neste universo de problemáticas virtuais que Aion, ao se diferenciar, inventa Cro-
nos e Cronos, ao se desconstruir, dá a ver Aion. Pensar as relações entre tempo e jorna-
lismo implica, pois, fazer variar temporalidades para que emerjam diferentes ordens de
problemas: problemas que comportam diferenças de graus e são próprios de Cronos e
problemas que comportam diferenças de natureza e são próprios de Aion. O tempo de
Cronos que se divide, tendo o presente como referência, criando diferenças de grau entre
passado e presente, criando identidades dependentes da variável espacial, e o tempo de
Aion que se subdivide diferenciando-se de si e promovendo sempre diferentes atualiza-
ções, que são suas marcas enunciadas: “O vazio infinito [Aion] necessita do mundo [jorna-
lismo realizado] para atualizar-se, o tempo infinito, inarticulado, precisa da vida do mundo
para escandi-lo segundo seu ritmo próprio” (Pelbart, 2004, p. 68).
São, pois, estas passagens (Aion-Cronos-Aion-Cronos, ao infinito) que configuram
todo um universo de novas problemáticas para o jornalismo que este artigo quer também
discutir; problemáticas, estas, que podem ser pensadas a partir de características como o
desmedido, a singularidade não identitária, a concomitância e o atópico.
Ao contrário de Cronos, em Aion somente o passado e o futuro subsistem no tem-
po, subvertendo todo o presente. O presente é uma contração desse tempo (Bergson),
cujas forças remetem sempre ao desmedido que o contém: seu virtual, muitas vezes é
identificado com a memória, sobretudo na perspectiva bergsoniana. Essa primeira carac-
terística – o desmedido – permite à crítica compreender o jornalismo como criação, por
um lado, e como expressão a ser desconstruída, por outro. A constituição paradoxal da
experiência jornalística permite, assim, pensá-la como um instante da temporalidade de
Aion, à medida que são extraídas das práticas jornalísticas as singularidades que a ultrapas-
sam e que a reconfiguram como criação atual e atemporal, sem passado ou futuro finitos.
Eis um desafio para a análise do jornalismo pensado desde a temporalidade de Aion.
A segunda característica desta temporalidade de Aion consiste em pensar especi-
ficamente as singularidades não identitárias. Com Aion, diz Deleuze, “o devir-louco das
profundidades subia à superfície, os simulacros convertiam-se [...]” (1998, 168). Tal as-
sunção produz o jornalismo, mas simultaneamente produz seu devir-outro; o que permite
128
problematizar o estatuto de noticiabilidade para além das redes de poder que a enformam,
uma vez que a cada realização nas próprias práticas jornalísticas produzem-se operações
semióticas (micro-semióticas) capazes de desconstruí-las, devolvendo-as à sua temporali-
dade de Aion, nas profundezas, para que se recriem como diferença novamente e sempre.
O eterno retorno de tal diferença corresponde a este tempo de concomitâncias não
identitárias, apenas potenciais. Trata-se de um só e mesmo tempo de Aion que se desdobra
em todas as temporalidades espaciais de Cronos. Neste nível não há identidades, sequer
minoritárias, há apenas potencialidades a exigir micropolíticas de criação de cuja força
depende o jornalismo a ser ainda criado, seu tempo é o futuro. Quando as forças reativas
deste aparelho jornalístico institucionalizado parecem ser totais, discutir o tempo de Aion
no jornalismo corresponde ao possível que tanto Foucault reivindicava para não sufocar
(Deleuze, 1992, p. 131).
Como virtualidade, o tempo de Aion não é espacial, mas atópico, nas palavras de
Luiz Orlandi, transtópico (Pelbart, 2004, p. 72), configurando a condição de qualquer as-
sinalamento temporal: Aion é condição de Cronos assim como os devires de jornalismo
são a condição de todo o jornalismo que se pode experienciar. Tal constituição, para Pel-
bart, instaura um “presente crônico e não mais cronológico em que o próprio Cronos se
desfaz, é desequilíbrio, enlouquecimento temporal” (Pelbart, 2004, p. 70). Aqui, o tempo
se autonomiza em relação ao espaço, configurando, dionisiacamente, toda a condição da
criação, assegurando ser possível também um novo jornalismo.
Assim, se nos tempos de Cronos os mundos são compossíveis, ou seja, as criações
são distribuídas sintagmática e convergentemente em espaços estriados diversos, com
também em diversas identidades referenciais, que passam pelo nome do jornal, por suas
editorias, por suas textualizações e modos de diagramação e edição; nos tempos de Aion
os mundos tornam-se incompossíveis, lisos, ou seja, cada ação micropolítica faz desdobrar
o tempo produzindo sempre novas criações por processo de diferenciação: a cada dobra
do tempo, nova diferença de natureza se produz. Para Bergson, “o fluxo do tempo passa
a ser aqui a própria realidade, e o que se estuda são as coisas que vão passando [como o
jornalismo]. [...] Seguindo até o fim a concepção [de Aion], acabaria por se ver no tempo
um aumento progressivo do absoluto e na evolução das coisas uma invenção contínua de
novas formas” (Bergson citado por Pelbart, 2004, p. 87).
A questão de Pelbart traz à tona a problemática dos restos de Benjamin:
Mas o que fazer com os acontecimentos, que não têm seu próprio lugar no tem-
po, os acontecimentos que chegaram tarde demais, quando todo o tempo já foi
distribuído, dividido, desmontado, e que agora ficaram numa fria, não alinhados,
suspensos no ar, sem lar, errantes? [...]
129
seu caráter aleatório; elementos do mundo que fazem parte da experiência do real que
ficam fora da cena jornalística porque excedem a racionalidade do saber jornalístico ao
mesmo tempo em que se constituem como condição de um jornalismo em devir.
Nesta altura, para finalizar, deixa-se emergir uma interrogação. Poder-se-ia supor
que entre os “restos” que vimos observando e a possibilidade de um jornalismo em nova
base temporal existe a compreensão de ambos estarem fincados em uma revanche de Dio-
niso, agenciada por todos os que estão indispostos com o modo de objetivação jornalística
que nos aprisiona no tempo de Cronos.
Referências
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BENTHAM, Jeremy. El panoptico. Madrid, La Piqueta, 145p.
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FOUCAULT, Michel. Linguagem e literatura. In: R. MACHADO. Foucault, a filosofia e a literatura.
Rio de Janeiro, Zahar, 2000.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, Edições Loyola, 1996.
FOUCAULT, Michel. La verdad y las formas jurídicas. Barcelona, Gedisa, 1998.
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GOETHE, Johann Wolfgang von. Viagem à Itália. São Paulo, Companhia das Letras, 1999.
MAFFESOLI, Michel. Tribalismo pós-moderno: da identidade às identificações. Ciências Sociais-
-Unisinos, 43(1): 97-102.
MORATO, J.R. Crítica de la razón periodística. Um análisis desde la teoria general de la información.
Madrid, Universidade Complutense, 1988..
PELBART, Peter. Paul. O tempo não reconciliado. São Paulo, Perspectiva, 2004.
Artigo publicado originalmente na revista Verso e Reverso, Vol. 22, N. 49, 2008.
130
O acontecimento Foucault
Beatriz Marocco
Certa vez, Michel Foucault manifestou o desejo de que o que deixou dito e escrito
funcionasse como uma caixa de ferramentas úteis para calibrar nosso olhar sobre as coisas
e para conhecermos a nós mesmos como seres históricos. Quem era ele para dizer isso?
“Sou jornalista”, afirmou, fazendo um silêncio enigmático em torno desse enunciado que
nos tem permitido explorar suas teorias e ações voltando-nos a algo que não permanece
oculto, mas não é transparente e que constitui o “natural” de nossa experiência cotidiana.
Neste duplo sentido, metodológico e de identificação com o ativista intelectual que apro-
ximou jornalismo, filosofia e história do que é menos visível na sociedade, desde a História
da Loucura, milhares de leitores foram e continuam sendo alfinetados e afetados pelos usos
que a obra foucaultiana potencializa. Por quê?
Ao se debruçar sobre a própria obra, Foucault disse que, para se afastar de uma
história das mentalidades, ou de uma história das representações, quis dizer uma “histó-
ria do pensamento”, em que se dedicou a decifrar os lugares de experiência que foram
importantes para a definição da nossa cultura. A experiência da loucura, a experiência da
doença, a experiência da criminalidade e da sexualidade foram alguns desses lugares. Em
cada um deles se articulavam três âmbitos que cabia interrogar: das formas de um saber
historicamente constituído, das matrizes normativas de comportamento dos indivíduos e
dos modos de existência dos sujeitos. Aparecem aí os três eixos: o saber, o poder e a cons-
tituição do sujeito – privilegiados por Foucault em seus principais trabalhos.
Nessa empreitada, uma noção fundamentou as suas intervenções desde História da
Loucura: a noção de “problematização” ao objetivo de descobrir o que faz com que uma
coisa entre no jogo do verdadeiro e do falso e se constitua em objeto para o pensamento.
No caso da loucura, Foucault investigou como e por que, em dado momento histórico,
o louco foi inscrito no quadro da doença mental, da prática psiquiátrica e da instituição
asilar, como deixou de falar por si, da experiência de si como louco e se tornou um objeto
para os outros em um contexto social, político e epistemológico. A conduta sexual, por
131
outro lado, foi problematizada a partir de uma inversão na maneira tradicional de relacio-
nar a questão das relações da sexualidade com a interdição, considerando-a como uma
prática moral que concerne ao indivíduo que deve ser senhor de si e senhor dos outros.
Em ambos os estudos – da loucura na Idade Média e da sexualidade na Grécia antiga –,
Foucault explorou o passado a partir de uma questão nevrálgica da atualidade. Em História
da Loucura, mais concretamente, ele indagou discursos ligados às práticas institucionais,
textos que são pouco familiares, e comprovou a insuficiência das teorias que pretendem
elaborar um saber objetivo. Segundo Miguel Morey (2004), “o olhar de Foucault nos ajuda
a perceber o modo como os saberes médicos e os poderes institucionais mais diversos (o
hospital, o manicômio, mas também a escola, a fábrica ou o quartel) entrecruzam a malha
de seus dispositivos para ir exigindo do homem um corpo disciplinado e dócil, produzido
pouco a pouco”.
Foucault defendeu a tese intitulada Folie et déraison, Histoire de la folie à l’âge classique, em
20 de maio de 1961. A reação ao livro, publicado no mesmo ano, foi, ao mesmo tempo
virulenta e ambivalente. Foucault fantasiou uma história da loucura que não constava dos
arquivos da história da psiquiatria, diziam os historiadores, que reduziram o livro a uma
série de bobagens: erros de dados, erros de interpretação, erros de seleção de documentos,
desconhecimento de tal fato ou valorização imaginária de outro. A impressão deles era de
que essa loucura, que não tinham visto nos arquivos, e que Foucault parecia ter exumado
num passe de mágica, decorria de uma construção literária brilhante, as irresponsável. Os
adeptos da psiquiatria de Phillipe Pinel se referiam a Foucault como “psiquiatricida”. Por
causa disso ganhou força a ideia de que o francês não era nem médico, nem psiquiatra e
que jamais tivera de enfrentar loucos de camisa-de-força. Em 1992, Jaques Derrida ainda
reconhecia a dificuldade de identificar e medir o efeito que esse acontecimento teve para
ele: “Foucault foi, há trinta anos, um acontecimento que nem mesmo tento identificar, e
muito menos medir, no fundo de mim, a repercussão, tanto ela foi intensa e múltipla em
suas figuras”.
Cinquenta anos depois, no rastro de História da Loucura, título reduzido que o livro
ganhou na edição de 1972 (Gallimard), pode-se seguir refletindo sobre os sentidos da
exclusão que vêm sendo depositados sobre as figuras insistentes e temidas da lepra, das
doenças venéreas, da loucura. Nesse sentido, Foucault esquadrinhou, em trabalhos poste-
riores, o funcionamento de uma rede institucional, que se formou entre o final do século
18 e o século 19, voltada não somente a governar os indivíduos, por meio de procedimen-
tos disciplinares, mas aos problemas das populações quanto a gestão da saúde, higiene,
alimentação, sexualidade, natalidade, e, simultaneamente, à criação da imagem do “outro”,
inquietante e dificilmente controlável.
As estratégias de objetivação e classificação dessas novas figuras, que aparecem com
mais nitidez nos discursos com baixo grau de epistemologização, como o discurso jorna-
lístico, têm sido ferramentas úteis para que se leve adiante uma crítica das práticas jorna-
132
lísticas. Além de transportarem signos recentes da medicalização da sociedade, como os
aidéticos e drogados, as mídias produzem e reproduzem diariamente novas figuras que
ameaçam nosso desejo de segurança, de propriedade, de poder ter e de consumir. No
espaço das mídias, como dispositivos de saber/poder que objetivam indivíduos e acon-
tecimentos, pode-se ensaiar uma análise dos espantalhos que assombram e configuram o
pensamento de nossa época.
Retomando o diálogo com Deleuze publicado na revista L’Arc, em 1972, com o
qual iniciamos este texto, pode-se concluir que, para descobrir o que o biopoder é capaz
de fazer conosco, Foucault sugeriu que usássemos as suas reflexões levando em conta,
primeiramente, a sua posição sobre a questão “O que é uma teoria”:
“FOUCAULT – Uma teoria é uma prática. Local e regional, não totalizadora – é um
sistema regional de luta...
DELEUZE – Exatamente, como uma caixa de ferramentas. É preciso que sirva,
funcione” (Um diálogo sobre o poder, 1972).
Referências
FOUCAULT, Michel., DELEUZE, Gilles. Os intelectuais e o poder. In: FOUCAULT, Michel.
Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993, p. 69-78.
MOREY, Miguel. Reconhecimentos do agora, prefácio. In: MAROCCO, Beatriz. Prostitutas, jo-
gadores, pobres e vagabundos no discurso jornalístico. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2004, p.
7-11.
Artigo publicado originalmente no jornal Zero Hora, 24/12/2011, Caderno Cultura, p. 06.
133
20 Anos1 de publicações sobre teoria da prática
jornalística no Brasil: uma abordagem de
mineração de dados
Livia Freo Saggin2
Camila Scarrone3
Cristine Rahmeier Marquetto4
Raquel Gomes Carneiro5
1 Ao considerar o ano 2000 como o primeiro ano de publicações analisadas, até o ano de 2019, totaliza-se 20 anos de publicações,
respectivamente.
2 Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
3 Mestranda em Ciências da Comunicação pela Universidade do vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
4 Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
5 Doutoranda em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
134
tudo pelas propostas de compreensão sociológica possibilitadas pelo conceito de habitus.
Ambos os autores são fundamentais na construção da teoria da prática ao iniciarem uma
movimentação de rompimento com o estruturalismo, embora mantenham em seus desen-
volvimentos teóricos uma postura mais clássica, aproximada da sociologia devido às suas
formações e pela própria historicidade da produção científica à época das publicações.
Entre tentativas de rompimento com o estruturalismo, a filosofia irrompe como uma
alternativa para o pensamento sobre uma teoria da prática dos sujeitos. Enquanto a noção
de habitus de Bourdieu (1998) teve predominância junto aos estudos sociológicos por largo
tempo, o desenvolvimento do conceito de agência de Giddens (2003) apresentava, ainda de
modo delineador, uma noção de poder dos sujeitos frente a determinados contextos. As
tentativas de superação da oposição “estrutura/agência” foram fundamentais para impor-
tantes versões da teoria da prática, principalmente por recolocar os atores sociais como
personagens fundamentais dos processos sociais; por problematizar a presença e a ação
das estruturas sociais, e por responder a questões herdadas do funcionalismo e que ainda
pairavam sem respostas. Nesse bojo, o pensamento de Foucault, principalmente em O
Sujeito e o Poder (1995) e A Hermenêutica do Sujeito (2010), manifesta-se como frutífero
ao voltar seus esforços à compreensão da prática dos sujeitos junto às materialidades dis-
cursivas que se evidenciam na prática e em suas resistências.
Foucault (1995; 2010) sugere em seus estudos uma nova economia das relações de
poder a partir da filosofia, repensando as relações de poder dentro das estruturas vigentes
e procurando observar, empiricamente, possibilidades de resistências construídas pelos
sujeitos. Esta abordagem é essencial para a construção de uma teoria da prática dos sujei-
tos no campo do jornalismo por permitir um reconhecimento da teoria da prática junto
ao presente.
Para a antropóloga Sherry Ortner (2007), a teoria da prática precisa avançar a versão
europeia (elaborada essencialmente por Bourdieu e Giddens) a partir de uma problemati-
zação profunda sobre os atravessamentos da história e por uma percepção mais elaborada
dos jogos de poder na vida social. A autora reelabora aspectos para o desenvolvimento de
uma teoria da prática que considere as subjetividades complexas dos sujeitos e as relações
sociais de poder, procurando distanciar-se de uma simplificação dos processos sociohistó-
ricos envolvidos nas ações dos sujeitos e que, segundo ela, é um problema recorrente da
noção de agência.
Ao considerarmos os desenvolvimentos da teoria da prática e suas limitações, com-
preendemos que a elaboração de uma teoria da prática dos sujeitos da produção jornalís-
tica deveria trabalhar a dimensão do sujeito como sujeito histórico, complexo, reflexivo,
ético e com potencial de agência e resistência dentro das estruturas e através das relações
de poder que vivencia. Entendemos que as obras de Foucault, sobretudo as já citadas
neste artigo, possibilitam caminhos mais amplos e aprofundados para desenvolver estas
concepções. Suas proposições corroboram para uma atualização da teoria da prática dos
135
sujeitos, com foco nas práticas jornalísticas, por reforçar uma posição epistêmico-meto-
dológica de necessidade de observação e escuta dos sujeitos da prática em suas atividades
cotidianas, relações de poder e construção de resistências.
Na esteira do pensamento de Foucault, Marocco (2018) reitera o indicativo de neces-
sidade de escuta dos sujeitos da prática. Para a autora, a escuta possui potência dialógica,
focalizando suas argumentações sobre a entrevista que, segundo ela, pode:
Ser usada como ferramenta central, mais próxima das práticas (em seu desdobra-
mento de gênero jornalístico) e mais apropriada para operar no nível da reflexi-
vidade das práticas, em que se materializa o que os agentes são capazes de dizer
acerca das condições sociais e espaciais de sua própria ação (Marocco, 2018, p.9).
Metodologia
Metodologicamente, construímos este trabalho a partir de uma coleta de publica-
ções presentes em diferentes plataformas e banco de dados digitais. A busca pelos dados
foi precedida por uma abordagem metodológica de caráter quanti-qualitativo de explora-
ção, organização, quantificação e análise dos dados, chamada de mineração.
A mineração de dados é amplamente debatida e aplicada no campo da informática,
principalmente a partir do planejamento e programação de softwares. Estes softwares são
utilizados diariamente, minerando e transformando um montante gigantesco de dados
(disponíveis, sobretudo, na internet a partir dos rastros digitais deixados pelos usuários)
em informações úteis para empresas (formação de perfis; planejamento de mídia; pro-
paganda direcionada; formação de perfis profissionais para equipes de RH; pesquisas de
mercado; etc.) para governos (identificação de atividades terroristas e criminais; identifica-
136
ção de padrões eleitorais) e para demais campos como a medicina (indicação de padrões
de diagnósticos mais precisos); o financeiro (identificação de segmentos de mercado, de-
tecção de fraudes), e outros (Camilo; Silva, 2009).
Por não dispormos de ferramentas sofisticadas de mineração de dados, buscamos
nos inspirar nas etapas desta metodologia de pesquisa para realização de um encontro
satisfatório com os dados disponíveis nos espaços de armazenamento de dados que inves-
tigamos. Falci Júnior (2010) define sete (7) etapas para a mineração de dados: (a) limpeza
dos dados: remoção de ruídos e inconsistências nos dados; (b) integração dos dados:
combinação de múltiplas fontes de dados; (c) seleção dos dados: recuperação dos dados
que são relevantes para a análise; (d) transformação dos dados: consolidação dos dados na
forma apropriada para a mineração; (e) mineração dos dados: aplicação de métodos base-
ados em técnicas da área de inteligência computacional para a descoberta de padrões nos
dados; (f) avaliação de padrões: identificação de padrões de interesse por meio de alguma
métrica apropriada; (g) apresentação do conhecimento: utilização de técnicas de visualiza-
ção e representação dos resultados para apresentar o conhecimento.
Aproveitamos as definições contidas nestas etapas para pensar maneiras de adaptar a
metodologia a processos que dispomos. Nesse sentido, baseando-nos na experiência teó-
rico-metodológica de Ryfe (2017) que mapeou as principais publicações em língua inglesa
no serviço de indexação de citações científicas Web of Science, a partir de palavras-chave
como “teoria do campo”; “jornalismo”; e “institucionalismo e notícia”, procuramos re-
construir essa experiência, agora em bancos de dados de publicações em português e em
bancos de dados que armazenam publicações brasileiras.
Como o objetivo desta busca e mineração de dados era o encontro com trabalhos
e propostas de entendimento sobre uma teoria da prática dos sujeitos, foram eleitas algu-
mas palavras-chave vinculadas às abordagens teóricas debatidas neste horizonte, sendo
elas: “teoria do campo”; “teoria do campo e jornalismo”; “teoria da prática”; “teoria da
prática e jornalismo”; “institucionalismo e notícia”; “rotinas produtivas” e, por fim, “mí-
dia e notícia”6. Estas palavras-chave foram debatidas e escolhidas conjuntamente com as
professoras da disciplina que motivou o início desta investigação, aproveitando, mais uma
vez, a experiência de busca empreendida por Ryfe (2017).
Considerando a impossibilidade de busca em todos os bancos de dados disponíveis,
elegemos aqueles que consideramos os mais pertinentes para o encontro com pesquisas no
campo da comunicação e do jornalismo. Dessa maneira, a coleta ocorreu nos repertórios
digitais do Google Acadêmico, da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior) e da Compós (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação
em Comunicação). Ainda ponderando sobre a infinidade de publicações disponíveis para
consulta nos bancos de dados digitais, e das dificuldades de encontro com as mesmas, li-
6 Algumas palavras-chave pesquisadas não obtiveram resultados de busca nos bancos de dados, sendo elas: “teoria do campo e
jornalismo”; “institucionalismo e notícia”; “teoria da prática e jornalismo”.
137
mitamos um período temporal de busca, que consistiu entre o ano 2000 e o ano de 2019,
o que possibilitou mapear as publicações dos últimos 20 anos.
Segundo as definições de Falci Júnior (2010), estas escolhas no percurso metodo-
lógico são correspondentes à etapa (a) remoção de ruídos e inconsistências nos dados.
Ainda, como processo importante para a remoção de ruídos, retiramos da análise e dis-
cussão dados relativos a publicações de outras áreas e que foram encontrados a partir das
palavras-chave buscadas7. A etapa (b), de integração de dados, foi desenvolvida a partir da
combinação dos dados encontrados nos três bancos de dados explorados, escolhidos por
possuírem potencial de trabalhos indexados que versam sobre a área de estudo e a temá-
tica analisada nesta pesquisa.
Considerando o objetivo da pesquisa, não foi possível analisarmos todos os traba-
lhos encontrados a partir das palavras-chave usadas nas buscas. Precisamos selecionar,
individualmente, trabalhos que tratassem de uma teoria da prática dos sujeitos. Por isso, o
processo de imersão e busca nos bancos de dados escolhidos cobrou esforço, principal-
mente pelo trabalho braçal de leitura e seleção das publicações que interessavam à pesqui-
sa. A título de conhecimento, somente no banco de dados da Capes foram encontrados
mais de 400 publicações a partir da primeira busca com as palavras-chave. Já no Google
Acadêmico, o resultado de busca inicial rendeu mais de 100 páginas de resultados. O mes-
mo se repetiu no banco de dados da Compós. Tivemos que elaborar uma estratégia de mi-
neração para separação de publicações que tratassem de uma teoria da prática dos sujeitos.
A estratégia pensada e utilizada foi a de selecionar, a partir da leitura dos resumos,
palavras-chave e referências de cada publicação, indicativos de que ela abordava uma teo-
ria da prática dos sujeitos. Após a leitura das primeiras páginas de resultados (no Google
Acadêmico e banco de dados da Capes) percebemos que vários dos resultados de busca
estavam repetidos e foram excluídos. O processo de leitura e seleção qualitativa das publi-
cações levou três dias de trabalho para cada banco de dados.
Identificamos a utilização desta estratégia como a consolidação da etapa (c) seleção
e recuperação dos dados relevantes para a análise. Após esta fase da pesquisa, obtivemos
como resultado um montante de 89 publicações em língua portuguesa que tratam sobre
uma teoria da prática dos sujeitos nos últimos 20 anos.
Com um número já reduzido de dados para a análise, passamos para a etapa (d) de
transformação dos dados. Organizamos e montamos uma planilha para consolidar os da-
dos em um formato que permitisse melhor visualização dos resultados. Esta planilha foi
criada no Microsoft Office Excel, a partir de eleição de regras para organização dos dados.
Para cada banco de dados explorado, foi criada uma planilha organizada pelos seguintes
eixos: ano da publicação; título da publicação; autor da publicação; principais autores teó-
ricos utilizados na publicação; utilização da perspectiva de poder e resistência de Foucault
7 Além de trabalhos da área da comunicação e do jornalismo, foram encontradas publicações das ciências políticas; economia;
educação; administração; fonoaudiologia e enfermagem.
138
(sim ou não); e, por fim, escuta dos sujeitos da produção (sim ou não). Aqui, é importante
definir o que consideramos por escuta dos sujeitos da produção: separamos trabalhos que,
de alguma forma, conferiam espaço para a escuta dos sujeitos envolvidos na produção
comunicacional e/ou jornalística. Esta escuta poderia se dar de distintas formas, por en-
trevistas, questionários, observação participante ou etnografia (e/ou outras perspectivas
metodológicas). Interessava-nos identificar publicações que desenvolviam uma teoria da
prática dos sujeitos considerando suas práticas; rotinas; ações, resistências, enfim, que se
preocupassem em problematizar, a partir da observação empírica dos sujeitos da prática,
as ações e resistências construídas pelos sujeitos junto e através das estruturas e relações
de poder vigentes.
Ao organizarmos as 89 publicações mineradas dos bancos de dados a partir dos ei-
xos interessantes à análise, obtivemos um quadro comparativo e analítico entre diferentes
anos e bancos de dados; distintas linhas teóricas; formas de construção metodológica das
pesquisas, etc. Esta visualização possibilitou a avaliação e identificação de padrões de inte-
resse à pesquisa, constituindo a etapa (f) da metodologia de mineração de dados.
Finalmente, o último estágio da mineração de dados consistiu na apresentação dos
resultados obtidos a partir da utilização de técnicas de visualização e representação, alcan-
çando a etapa (f) da metodologia de mineração de dados. Nesse ponto, sistematizamos os
dados coletados e organizados em planilhas, gerando gráficos. Para cada ponto de interes-
se à pesquisa, construímos um gráfico, apresentando os resultados de modo visualmente
interessante. Assim, o trabalho de mineração de dados sobre os últimos 20 anos de publi-
cações sobre a teoria da prática dos sujeitos rendeu quatro (4) gráficos, sendo eles: sobre o
número de trabalhos publicados a cada ano8; sobre os autores teóricos mais utilizados nas
publicações; sobre o número de trabalhos que conferem espaço para a escuta dos sujeitos
da produção; e, por fim, sobre o número de trabalhos que utilizam das propostas teóricas
de Foucault para pensar o poder e a resistência dos sujeitos da prática.
Para fins de compartilhamento dos resultados, optamos por apresentar os mesmos
em formatos gráficos distintos. O gráfico que expõe a quantidade de publicações por ano
contém as informações em números. O mesmo ocorre com o gráfico que apresenta in-
formações sobre os autores teóricos mais usados nas publicações. Quanto a este gráfico,
é importante destacar que alguns autores são utilizados simultaneamente nas publicações,
o que explica a escala do gráfico não coincidir com o número total de publicações ana-
lisadas. Já os gráficos que revelam as publicações que escutam os sujeitos da produção e
que trabalham a perspectiva de poder e resistência de Foucault são apresentados em escala
percentual (%).
Evidentemente, nosso processo de mineração de dados teria ocorrido de maneira
mais efetiva, inclusive considerando a possibilidade de filtragem e análise de um montante
8 É importante frisar que a coleta de dados ocorreu no mês de abril de 2019, momento em que ainda não haviam sido publicados os
anais do encontro anual da Compós. Por esse motivo, o número de trabalhos encontrados no ano de 2019 é inferior em comparação
com os outros anos, como explicitamos na análise e discussão dos resultados.
139
maior de dados, se tivéssemos utilizado algum suporte tecnológico mais adequado, como
é o caso das ferramentas elaboradas e utilizadas no campo da tecnologia da informação.
Carvalho e Dallagassa (2014) apresentam limites e potencialidades da mineração de
dados, sobretudo pela identificação e utilização de estratégias algorítmicas que melhor se
adequam ao contexto e questão de investigação. Mesmo assim, para os autores, a principal
questão a ser debatida quando se realiza um processo de mineração de dados é presença
dos chamados “ruídos” nas bases de dados. Segundo os autores, os ruídos podem “preju-
dicar a qualidade da informação extraída, a partir de qualquer método, seja ele tradicional
ou baseado em estratégias mais elaboradas” (Carvalho; Dallagassa, 2014, p. 84). Em nosso
processo tentativo e adaptativo de mineração de dados nos bancos de dados pertinentes
para o campo da comunicação e do jornalismo nos deparamos com uma infinidade de
ruídos. O processo de identificação e remoção destes foi extenso e executado de modo
cuidadoso, ainda assim, reconhecemos as limitações dos resultados apresentados, conside-
rando a possibilidade de existirem variações de ordem quantitativa.
Apesar disso, consideramos que o processo de mineração de dados desenvolvido
apresentou resultados importantes para o desenvolvimento de um pensamento mais apro-
fundado sobre a teoria da prática no universo da comunicação e do jornalismo, principal-
mente por transformar os dados disponíveis em fundamentos de aprendizagem sobre a
teoria da prática que envolve os sujeitos da produção.
Na sequência, analisamos e discutimos os resultados obtidos a partir da mineração
de dados, explorando quantitativamente os gráficos e apontando elementos de análise
qualitativa sobre os mesmos.
140
de trabalhos encontrados não foi robusta se considerado o período de 20 anos de buscas.
A quantidade de publicações que problematizam as noções de poder e resistência é ainda
menor e o mesmo se aplica ao método de escuta dos sujeitos. O fato desses trabalhos
estarem distanciados no tempo de suas publicações e serem todos de autores diferentes
evidencia que não há um momento ou uma onda de discussão sobre essas abordagens
específicas, localizadas esparsamente.
No Google Acadêmico mais trabalhos foram encontrados, um total de dez (10) que
se localizam entre os anos de 2002 e 2015. No entanto, a quantidade de publicações que
problematizam as noções de poder e resistência de Foucault é de apenas uma (1), pu-
blicada no ano de 2015. Já os trabalhos que escutam os sujeitos da produção foram três
(3), um de 2010 e outros dois (2) de 2015. Nesse contexto há uma convergência, o único
trabalho que trata teoricamente sobre poder e resistência é também um dos que escuta os
sujeitos da produção. Do total de artigos encontrados, apenas três (3), então, se encaixam
nas especificidades investigadas nessa pesquisa. É importante ressaltar novamente a baixa
parcela encontrada de publicações que se baseiam nas proposições de Foucault e que tem
como abordagem metodológica a escuta dos sujeitos da produção.
Já banco de dados da Compós foi encontrado o maior número de publicações dessa
pesquisa, 72 trabalhos, e também a maior janela de tempo, entre o ano 2000 e 2018. A
maior concentração de trabalhos que utilizam as propostas teóricas de Foucault também
está nesse banco de dados, totalizando 19 publicações entre o ano 2000 e 2017. Aqui vale
apresentar de forma mais detalhada os anos das publicações para entender se há um pe-
ríodo mais expressivo: foram dois (2) trabalhos no ano 2000; três (3) em 2001; um (1) em
2002; um (1) em 2003; um (1) em 2009; um (1) em 2010; quatro (4) em 2011; três (3) em
2013; dois (2) em 2015, e um (1) em 2017. A maior concentração de publicações encon-
tra-se depois de 2010, tendo 2011 como pico. Dentre todas as 19 publicações, apenas uma
converge a teoria foucaultiana com a escuta dos sujeitos da produção, trabalho publicado
em 2011. Sobre essa abordagem metodológica, ao todo apenas quatro (4) trabalhos desen-
volviam a escuta dos sujeitos da produção: um (1) em 2001; um (1) em 2011, e dois (2) em
2016. Isso significa que das 72 publicações encontradas no banco de dados da Compós
no período de tempo investigado, apenas quatro (4) utilizaram a fala dos sujeitos da pro-
dução para abordar as práticas jornalísticas. Através dos dados coletados e apresentados, é
possível afirmar que a escuta dos sujeitos da produção para a elaboração de uma teoria da
prática é uma abordagem metodológica pouco usada por pesquisadores da área. Veremos
nos gráficos a seguir a visão geral das análises dos três bancos de dados juntos.
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Gráfico 1: Número de publicações em 20 anos nos bancos de dados da Capes, Compós e Google Acadêmico.
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Gráfico 2: autores teóricos mais usados.
143
Gráfico 3: publicações com a perspectiva de poder e resistência de Foucault.
144
A grande maioria das publicações encontradas buscava compreender as práticas jor-
nalísticas sem indagar informações diretamente com os sujeitos produtores destas práti-
cas. Nestas publicações, a referência das práticas é buscada em outros lugares, como na
teoria, na academia, em textos ou documentos. A escuta do sujeito que produz as práticas,
que vivencia as rotinas e que caminha entre as estruturas e as relações de poder pode re-
presentar um passo importante para entender a dinâmica e o processo de estruturalização
e disciplina da prática jornalística. Entretanto, a partir de nossa pesquisa, visualizamos que
esse percurso metodológico é pouco preterido, conforme evidenciam os dados. O motivo
da sua pouca utilização pode apenas ser especulado, requerendo um espaço maior para
debates e pesquisas nesse sentido.
Considerações finais
A mineração de dados realizada nos principais bancos de dados do campo da comu-
nicação e do jornalismo possibilita pontuarmos algumas questões. Embora conscientes
dos limites e potencialidades da metodologia construída e trabalhada, bem como dos
possíveis ruídos que podem prejudicar a qualidade da informação, como frisam Carvalho
e Dallagassa (2014), a quantidade de trabalhos encontrados no período que utilizam as
noções de poder e resistência de Michel de Foucault é pequena. As publicações mineradas
são elaboradas com vasta base teórica de autores conhecidos na área, utilizados em detri-
mento de abordagens mais críticas dos sujeitos, como a formação, a conduta, as ações, as
reações e, especialmente, de perspectivas que tratem de sua historicidade.
Ao depararmo-nos com este cenário, pensamos que a pesquisa científica, ao abordar
a teoria da prática dos sujeitos, deve considerar os aportes teóricos foucaultianos para a
elaboração epistêmica de sua construção metodológica. Isto porque, o autor provoca-nos
a refletir a dimensão do sujeito para além de sua agência, compreendendo-o não como um
indivíduo assujeitado, mas ser humano reflexivo, ético e enquanto sujeito histórico.
Como argumenta Giddens, as práticas não existem separadas dos indivíduos (Ryfe,
2017), reconhecidos como teóricos sociais que recorrem aos seus conhecimentos teóricos
e práticos, normalmente de maneira não forçada e rotineira, para a produção das mais va-
riadas práticas sociais. Considerando isso, entendemos que a pesquisa necessita construir
uma arquitetura teórico-metodológica que incorpore os sujeitos da produção e visualize
nas noções de poder e de resistência elementos fundantes para o estabelecimento e cons-
tituição de uma teoria da prática. Nas engrenagens dos sistemas sociais, compostos por
instituições políticas, organizações econômicas, associações civis, entre outras, estão os
atores, que compartilham de propósitos comuns e azeitam as práticas dentro dos campos,
os tornando consistentes. Em vista disso, como compreender o funcionamento do ma-
quinário jornalístico sem dar voz aos sujeitos que estão na raiz do mecanismo da organi-
zação lógica das práticas? Nesse sentido, defendemos uma perspectiva foucaultiana para
aprofundar a teoria da prática jornalística, pois propõe a observação das fontes que estão
145
nas micro instituições e relações para a compreensão em ambiência macro da produção
do poder.
Sugerimos, assim, uma abordagem metodológica baseada na etnografia, consideran-
do miradas como a de Sherry Ortner (2007) que visualizam a importância de os sujeitos
poderem narrar suas vidas de uma maneira coerente e significativa, ainda que essa capaci-
dade de autonarração seja constantemente subjugada pelo capitalismo tardio (2007). Por
meio do que chama de uma robusta antropologia da subjetividade, a autora argumenta
sobre a importância da investigação, escuta, observação e compreensão dos atores sociais
em prática.
Logo, para a construção de uma teoria da prática jornalística é necessário que o in-
vestigador entreviste, questione, observe, analise presencialmente, ou seja, permita-se des-
cer ao campo. Ao passo que a etnografia é uma disciplina científica, Yves Winkin (1998)
a coloca também como uma arte, pois consiste, primeiramente, em saber ver. Depois, é
preciso saber estar com os outros e consigo mesmo para, por fim, saber escrever. Ou seja,
a arte de ver, a arte de ser e a arte de escrever. Necessitamos, pois, discutir sobre como re-
alizar abordagens teórico-metodológicas que deem conta de examinar as complexidades e
subjetividades dos sujeitos, as relações de poder que atravessam suas práticas e as resistên-
cias construídas, permitindo a ampliação das lentes de escuta em uma perspectiva crítica,
de acolhimento das sensibilidades e das visões de mundo dos sujeitos e de suas práticas.
Frente a isso, compreendemos que as pesquisas que procuram desenvolver uma
teoria da prática devem, essencialmente, ser lugar de escuta dos sujeitos da prática, con-
ferindo espaço para suas vozes, para a compreensão das resistências constituídas frente
aos controles discursivos e às estruturas de poder. As histórias de vida desses profissionais
são partes imprescindíveis de seus discursos, como argumenta Veiga da Silva (2018). São
narrativas repletas de bagagens culturais subjetivas permeadas por uma trajetória capaz de
dar mostra de uma pedagogia do fazer jornalístico. Como evidenciam os dados minerados
nesta pesquisa, há uma carência de observação de práticas e suas rotinas, bem como de
investigadores que se dediquem a examinar os sujeitos da prática jornalística.
No sentido de proposição de abordagens metodológicas que propiciem a escuta
dos sujeitos da prática, a entrevista para Marocco (2018) pode ser empregada como uma
ferramenta central, apropriada para a construção de reflexões a respeito das práticas jor-
nalísticas, uma vez que os sujeitos históricos, agentes, têm a possibilidade de expressar as
condições de espaço e de tempo, além de permitir aberturas para a reflexão e narração de
entendimentos teóricos sobre as suas próprias ações.
Por fim, interessa reiterar que os resultados quantitativos da pesquisa demonstram a
existência de uma brecha teórica nos estudos da teoria das práticas jornalísticas pela baixa
incidência de publicações que problematizem o poder e a resistência dos sujeitos segundo
as perspectivas de Foucault (apenas 6% das publicações mineradas). Além disso, o pen-
samento de uma teoria da prática nutrida pela escuta dos sujeitos da prática apresenta,
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também, uma lacuna dentre as publicações analisadas. Somente 9% das publicações, nos
últimos 20 anos, conferiram espaço à voz dos sujeitos da prática jornalística no Brasil. Es-
tes dados asseveram a indispensabilidade de pesquisas que incluam em seus âmbitos teó-
rico-metodológicos e epistêmicos perspectivas de problematização e inclusão dos sujeitos
da prática para a reelaboração de uma teoria da prática jornalística.
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