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SÍMBOLOS DOS LUGARES, DOS ESPAÇOS E
DOS “DESLUGARES”
JOÃO BAPTISTA FERREIRA DE MELLO*
RESUMO
OS LUGARES SÃO REPLETOS DE SÍMBOLOS TRANSITÓRIOS OU IMORREDOUROS. ASSIM DEFENDEM OS GEÓGRAFOS DO
HORIZONTE HUMANÍSTICO. A SIMBOLOGIA NÃO ESTÁ RESTRITA AOS CENTROS DE AFETIVIDADE, DESPOJAMENTO OU
EXPERIÊNCIA. OS ESPAÇOS VASTOS, ESTRANHOS, DESCONHECIDOS E DISTANTES, BEM COMO OS “DESLUGARES” MONÓTONOS
E REPETITIVOS REÚNEM IGUALMENTE SÍMBOLOS DE GRANDEZAS VARIADAS. NO ÂMBITO DE TAL COMPLEXIDADE, O TEXTO
ESTABELECE DISTINÇÃO E UNIDADE AO CARÁTER SIMBÓLICO DOS LUGARES, ESPAÇOS E “DESLUGARES”, EXPLORANDO
SÍMBOLOS ÍNTIMOS/INDIVIDUAIS E/OU COLETIVOS, ESQUECIDOS, FORJADOS NA CULTURA, TRANSMITIDOS POR OUTROS
OU CRIADOS NOS SONHOS.
PALAVRAS-CHAVE: SÍMBOLOS, LUGARES, ESPAÇOS, “DESLUGARES”, GEOGRAFIA HUMANÍSTICA.
Os lugares são repletos de símbolos. Assim de- do caminho são as tarefas a serem empreendidas
fendem os geógrafos do horizonte humanístico. nessas reflexões inaugurais.
A simbologia não se restringe aos centros de bem Os lugares/símbolos são entes queridos ou me-
querência, afetividade, despojamento experiência. recedores de considerações especiais. Tais envol-
Os espaços – vastos, estranhos, desconhecidos e vimentos, que despontam com a experiência, a
“distantes” – bem como os “deslugares” – monó- confiança e a afeição, denotam intimidade, na
tonos e repetitivos – reúnem igualmente símbo- acepção da palavra a qualidade do “que está muito
los de grandezas variadas. No âmbito de tal com- dentro” ou o “que atua no interior”, como apon-
plexidade, o texto almeja estabelecer distinção e tam os dicionários.
unidade aos conceitos de símbolos, lugares, es- Os lugares/símbolos, nessa abrangência, são
paços e “deslugares”(RELPH, 1976; POCOCK, igualmente públicos, compartilhados e forjados
1988; BUTTIMER, 1990; TUAN, 1983; 1996; por intermédio de edificantes significados. A idéia
1998; 1999). pode ser reforçada ancorando-se na frase do filó-
Lugares e símbolos adquirem profundo signifi- sofo francês Gabriel Mareei, reaproveitada por
cado, através dos laços emocionais tecidos ao lon- RELPH (1976, p.34): “um indivíduo não é distin-
go dos anos. Conciliar, entender e decodificar o to de seu lugar, ele é esse lugar”. O lar/lugar/pátria
conteúdo simbólico de magnitudes diferenciadas é, ao mesmo tempo, um símbolo de união e con-
como pátria, prédios, ginásios e as simples pedras graçamento. Trata-se de um mundo vivido e filo-
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sófico, existencial e coletivo, de enraizamento, condições, indica poder e sacralização de lugares,
lutas e glórias, uma “morada familiar”. ou seja, um desafio triunfal sobre a torcida adver-
O fervor patriótico resulta do incentivo cultiva- sária situada em seu rejeitado espaço. Os limites
do pelo estoque de conhecimento e dos esforços dos espaços e dos lugares são fixados através da
emocional intelectual. Decorre ou acontecimentos comunhão de adeptos com suas bandeiras, cores,
corriqueiros e notáveis, do orgulho, das tradições camisas, gritos, palmas, xingamentos e vaias, ele-
e do bem comum, ocorridos no chão dos ances- mentos utilizados com respeito à proteção dos
trais, fonte de vida, dos conflitos, das bênçãos dos lugares ou desprezo, ou mesmo temor aos espaços
céus, do sol e das tempestades, das façanhas, dos do inimigo.
frutos, do suor, do regozijo, das permutas, das agruras A cantoria tem sido também uma outra con-
e dos sonhos proporcionados neste lar/lugar, ape- vincente arma de conquista de lugares simbólicos
nas simbolicamente apropriado, cuja dimensão se nas arenas esportivas. Vejamos uma ilustração com
perde no horizonte. De toda maneira, a lealdade um conhecido refrão funk empregado em diver-
para com a pátria promove, ao mesmo tempo, uma sos outros contextos: “ah!/ah!/uh!/uh!/o Tijuca é nos-
significação especial de lar/lugar/símbolo (TUAN, so”, bradou a torcida do Clube de Regatas Vasco da
1983, 1991; MELLO, 1991). Gama na vitória sobre o Fluminense em uma das
Um outro traço extraordinário de afeição/iden- semifinais do Campeonato Nacional de Basquete,
tificação diz respeito ao “habitué” de um lugar apro- em junho de 2002, expondo diante da vitória o
priando-se simbolicamente dos artefatos de dife- domínio na quadra, na euforia expressa nas arqui-
rentes portes e esferas, pois mesmo a destruição bancadas e.ousada e simbolicamente na possessão
de um velho e querido prédio, localizado em um esporádica do ginásio, palco de diversas manifes-
logradouro acolá, pode causar aqui ou desconten- tações culturais na cidade do Rio de Janeiro.
tamento e nostalgia, por ser parte ‘integrante do No mesmo plano das projeções simbólicas,
acervo de um indivíduo, porquanto impregnado consideremos evidência ainda mais uma descon-
pela força do sentimento, da experiência, do re- certante. Na experiência repetida, as pedras por-
conhecimento e da sensação de pertencimento. tuguesas de mera aparência, reproduzindo em seus
Adentremos, a seguir, nos ginásios esportivos, desenhos as ondas do mar em parte da orla da Ci-
centros de júbilo, algazarra e regras, mas portado- dade Maravilhosa, transformaram-se em “veículo
res de identidade e significados. A referência ge- de significado” (WAGNER, 1979, p. 20). Como
ográfica está presente no posicionamento das equi- no pensamento filosófico desse autor, “não exis-
pes a cada 24 segundos e inversamente a cada tem- tem marcas e signos em si”, mas “somente em vir-
po de 20 minutos da partida de bola ao cesto e, tude do significado que um ser humano ou gru-
nestas circunstâncias, do lugar a ser defendido ao pos” (Ibid, p. 21) lhes atribuem. Esta questão de
espaço a ser capturado, em meio às táticas “bola- posse, defesa e significado remonta à noção feno-
das” pelos técnicos, bem corpo na delimitação dos menológica do mundo vivido contemplando in-
lugares e espaços das torcidas. Demarcar, nessas dissociavelmente os pertences privados ou públi-
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cos, parentes, amigos, conhecidos, eventos, ações cidade, como um referencial beleza geográfico,
e a base territorial intrinsecamente imbricados, de meteorológico. Um símbolo maior que supera
introjetados nos indivíduos e grupos sociais. Em a questão religiosa e representa, em qualquer par-
outras palavras, consoante a alma dos lugares. Nesse te do mundo, a “Cidade Maravilhosa” de São Se-
contexto, as pedras portuguesas, de simples orna- bastião do Rio de Janeiro, plena de fé, magia e
mentação no chão de toda gente, assomam como hospitalidade (TUAN, 1980, 1983; MELLO,
preciosidades pertencentes à coletividade. Desse 1991,2000).
modo, mesmo as pedras do caminho fazem parte Aceita a idéia do símbolo como componente
do acervo íntimo das pessoas. expressivo do todo, prossigamos com sua antíte-
Com vistas ao entendimento das múltiplas in- se, ou seja, os anti-símbolos concernentes aos frag-
terpretações possíveis de serem realizadas no âm- mentos restantes expostos em alguma porção es-
bito dos símbolos dos lugares, prossigamos apre- pacial, como o pequeno trecho sem fim ou desti-
sentando os símbolos representativos. Como lem- nação da Ladeira da Misericórdia, caminho para
bra Tuan (1980), o símbolo sugere ser a parte sig- se alcançar o demolido Morro do Castelo, “berço”
nificativa do todo. Nesse nicho, encontram-se da cidade do Rio de Janeiro ou a chaminé de uma
cartões postais e centros turísticos como o Pão de fábrica de açúcar que “brota” do gramado nas pro-
Açúcar e o Cristo Redentor. A natureza e as obras ximidades do Túnel Santa Bárbara, bairro do Ca-
do homem no alto dessas elevações contribuíram tumbi. São anti-símbolos dos espaços, porquanto
para forjar tais referenciais como símbolos da ci- exibidos como em uma espécie de vitrine, sem
dade do Rio de Janeiro. No tocante ao Pão de despertar maiores atenções, exceto a sensação da
Açúcar, o bondinho, transitando desde 1912, belo inutilidade de seus próprios artefatos, mas que hoje
panorama descortinado na viagem e a própria ro- persistem com formas sem funções ou significa-
cha do complexo adornam um quadro granítico dos, na medida em que seus lugares feneceram na
amplamente utilizado na sedução de turistas e na voragem do tempo.
divulgação da cidade. O povo e mídia conferem O ponto seguinte, sobre a reflexão em tela,
um status de tal maneira expressivo ao Pão de Açú- contempla os símbolos transcendentais criados a
car, que este passou a ser um símbolo compartilha- partir da experiência vivida, dos valores, da cultu-
do com orgulho pela coletividade carioca. ra, do vai-e-vem do dia-a-dia e do estoque de co-
Quanto ao Cristo Redentor, sua gigantesca nhecimento. Neste conjunto, encontram-se tem-
imagem fincada no alto do morro do Corcovado, plos católicos cujas formas materiais e funções es-
eternamente de braços abertos, a abençoar a cida- pirituais foram sobrepujadas no conjunto de ceri-
de, configura fraternidade e amparo, acolhida e mônias religiosas e atividades profanas, ocorridas
empatia, uma central idade extraordinária, seja para nas adjacências e ao longo de um processo de des-
quem alcança o cume da montanha para desfrutar cobrimentos, familiaridade e cruzamentos. As ex-
da privilegiada vista da cidade, seja para quem a pressões simbólicas (e transcendentais) surgem
procura constantemente, de qualquer ponto da desde a parte exterior com a torre de uma igreja
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de bairro, significando a elevação do espírito aos do núcleo central sobre a sua periferia. Neste mes-
céus e dominando, ou imponente, os seus arredo- mo descampado foram assentados outros símbolos
res até a sua denominação sendo proveitosamente traduzidos não apenas no tocante ao poder, como
convertida nos letreiros dos estabelecimentos co- também na forma majestosa dos edifícios da Pe-
merciais ou de serviços do lugar. Sua relevância é trobrás, do BNDES e do antigo BNH, atual Caixa
reconhecida por aqueles que não freqüentam seus Econômica Federal. Na realidade, a arquitetura da
cultos, festas e reuniões, mas que a utilizam como Catedral de São Sebastião do Rio de Janeiro co-
indicador geográfico, transformado em símbolo do munga com os tempos modernos do concreto de
bairro vivido. grande visibilidade, formato cônico, assemelhan-
Mudemos a escala dos símbolos transcenden- do-se desconcertantemente a um ginásio esporti-
tais. Focalizemos a igreja de Nossa Senhora da vo. A imensidão de seu interior, no entanto, in-
Candelária, situada na Praça Pio X, esta proposita- duz o fiel à idéia de sua pequenez diante da obra
damente criada para salientar sua monumentalida- do Criador (CAPDEVILLE et al, 1967; CORRÊA,
de, no início de uma das maiores artérias da Área 1995; ABREU,1997; MELLO, 2002b).
Central do Rio de Janeiro, a Avenida Presidente Símbolos impostos e, posteriormente, assimi-
Vargas. Trata-se de um símbolo transcendental lados dizem respeito aos prédios magnificentes,
interiorizado na alma carioca, em razão de sua como o referido templo, bem como monumentos
pompa arquitetônica, rodeada “por uma aura de suntuosos e bulevares, projetados e concluídos
profunda seriedade moral” (ROSENDAHL, 1996, pelas opressivas reformas urbanas, na busca da ex-
p. 64). Lugar sagrado, de devoção e compromisso tinção das formas espaciais pretéritas, conduzin-
emocional, a “Candelária”, nome utilizado com do a grandes corredores de trânsito e ao discipli-
intimidade, tem sido ponto focal ou mesmo parti- namento do uso do solo urbano, ou, ainda, à im-
cipado indiretamente de aterros, desfiles carnava- posição de muralhas segregacionistas. Ao lado dis-
lescos, protestos políticos, em meio ao centro de so, símbolos permanentemente escorados e resso-
negócios da Área Central do Rio de Janeiro, en- nantes valem-se do passado lendário para susten-
tre outras finalidades profanas concretizadas em tar ou recuperar o brilho exibido outrora e pros-
suas cercanias (lbid.; MELLO, 2002a). seguir como importante via comercial e financei-
Um outro templo integrante da galeria dos sím- ra, como a elegante Rua do Ouvidor, do Rio de
bolos transcendentais – a Catedral Metropolitana Janeiro do século retrasado, ou o centro de entre-
de São Sebastião do Rio de Janeiro – pode ser tenimento do bairro da Lapa, da mitológica ma-
igualmente conceituado como símbolo imposto. landragem do início do século XX. Nas últimas
A mesma, ao longo dos ‘séculos, recebeu endere- décadas, contudo, no encalço do glorioso passa-
ços diversos. Em 1976, foi, finalmente, sagrada em do de. compositores, malandros, prostitutas, cafe-
uma explanada surgi da com o desmonte do mor- tões, pederastas, cabarés e hotéis, outros segmen-
ro de Santo Antônio, ocorrido em 1954, na Área tos de renda passaram a freqüentar o espaço cole-
Central do Rio de Janeiro, permitindo o avanço tivo e os diversos estabelecimentos culturais sedi-
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ados na Lapa, valendo-se justamente de sua magia deza da cidade. Os aprazíveis subúrbios estaduni-
pretérita, cristalizada na fisionomia de seus anti- denses são edens preenchidos por mansões, sem
gos sobrados, emoldurados pelos afamados Arcos muros, cercadas de canteiros e jardins. Nos países
da Lapa, ainda que o panorama cultural e o con- centrais, como os Estados Unidos, as pessoas de
teúdo social tenham se modificado. alto poder aquisitivo residem em bairros afastados
A simbologia, parafraseando Cosgrove (1998), da confusão e do ar poluído do centro de negóci-
está em toda parte e mesmo nas diferentes cono- os e, ao mesmo tempo, próximos (de automóvel)
tações emprestadas aos vocábulos como centro, da abundância de bens e serviços oferecidos nos
periferia, subúrbios e shopping centers, e em rit- espaços urbanos. Nos, países periféricos, onde os
mos como o samba ou o tango. São símbolos re- custos para a implantação dos melhoramentos ur-
missivos que aludem aos lugares, interiorizados, banísticos e a irradiação de amenidades se tornam
parte do ser como postulam os princípios feno- extremamente dispendiosos, as elites e alguns seg-
menológicos, ou dependendo dos valores indivi- mentos da classe média procuram; da mesma ma-
duais ou dos grupos sociais, esnobados ou achin- neira, habitar em redomas de verde, como os bair-
calhados e, portanto, pertencentes aos espaços. ros-jardins ou em condomínios fechados, nas en-
O centro, rico em significados e para onde as costas das montanhas ou ainda à beira-mar. Mas,
coisas convergem, é de toda gente, e, nestas con- no Brasil, o estigma para os subúrbios e as periferi-
dições, as áreas centrais tornaram-se as grandes as é tão repulsivo que estes vocábulos e conceitos
referências das cidades. A periferia, no entanto, estão fora de cogitação para os “outsiders”. Assim,
exibe tons diversos. Preterida, distante e “escon- no Rio de Janeiro, o subúrbio assumiu uma expres-
dida”, a periferia empobrecida constitui espaço para são pejorativa, de espaço afastado, sendo o trem o
aqueles que a evitam ou a desconhecem. Mas, em veículo/símbolo de pobreza, cuja pecha somente
confronto às adversidades e às imposições do sis- nas últimas décadas começa a perder fôlego em
tema, a vida pulsa exuberante, nas formas alterna- razão do avanço da classe média sobre os bairros
tivas e de sobrevivência nesses lugares das trocas, da chamada zona suburbana (TUAN, 1980, 1986;
do sobretrabalho e do despojamento. A periferia MELLO, 1993; CORRÊA, 1997; ABREU, 1997).
enobrecida, por outro lado, ostenta a riqueza de Segundo David Harvey (1993, p. 261), “os sím-
suas formas e o aparato de amenidades verde, mar, bolos de riqueza, de posição, de fama e de poder,
montanha, por vezes isolados ou em conjunto, o assim como de classe, sempre tiveram importância
lugar da auto-segregação destinado àqueles que na sociedade burguesa”. A idéia contagiou elemen-
podem escolher onde e como morar (TUAN, tos de outros estratos de renda. Nesta trilha, os
1975; CORRÊA, 1995). shopping centers aludem a esta preocupação com
Quanto aos subúrbios, estes emergiram da con- status, beleza e prestígio. Enclaves plenos de gla-
dição de sub urbe para sentidos diversos. Nos Es- mour e maravilhas, nesses subcentros fechados e
tados Unidos, os subúrbios são símbolos que re- de luxo, os passantes são belos ou assim se fazem.
metem à conexão do esplendor do verde à gran- Como nos lindos sonhos de fadas, os shopping
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centers reproduzem paraísos encantados, os quais tos habitacionais, viadutos ou ainda a “sheratoni-
oferecem para os seus “eleitos” comodidade, músi- zação” ou “hiltonização” da paisagem empobrecem
ca, pequenos lagos, iluminação feérica, comércio o deslocamento dos homens nesses “deslugares”.
e serviços refinados, além de proteção contra a Desprovidos de afetividade, os fixos sociais (SAN-
violência, a poluição, as intempéries e a pobreza TOS, 1988) repetitivos empobrecem o posicio-
ou miséria do mundo “exterior” (MELLO, 1993; namento do homem nos espaços e nos “desluga-
CORRÊA, 1997). res”, tal a insistência das formas espaciais copiado-
O derradeiro símbolo remissivo a ser registra- ras, mas podem assumir o grau de lugar se vividos/
do neste texto diz respeito ao samba, um ritmo queridos/idolatrados. Neste caso, os artefatos “pas-
“tão forte e recorrente” no cenário das artes brasi- teurizados”, uniformes e seqüenciais são desluga-
leiras que persiste como “meio de identificação e res para os “outsiders”, a partir de suas posturas es-
de valorização do lugar” no qual nasceu e que, por téticas, mas lugares para aqueles que freqüentam/
isso mesmo, se confunde com a própria alma do experienciam essas construções destinadas à pau-
Rio de Janeiro (SOUTO DE OLIVEIRA, MAR- sa, ao movimento e à morada (TUAN, 1983),
CIER, 1998, p. 82). como os conjuntos residenciais ou mesmo os via-
Em outra galeria, a dos espaços e seus recrimi- dutos que enfeiam os espaços e lugares, mas são
nados espaços, as inscrições dos pichadores cons- dotados de serventia no balé do lugar, empreen-
tituem um veio de linguagem e comunicação, de dido no dia a dia com gestos, passos, itinerários
um modo geral repudiado, visto que profanam os estabelecidos por transeuntes e tendo os veículos
lugares e seus símbolos. Neste nicho de símbolos como coadjuvantes nesta coreografia. No entan-
rejeitados encontram-se, por vários motivos, os to, a despeito da monotonia, essas criações huma-
cemitérios, os pontos dos gays ou das gangues de nas podem ser alçadas à categoria de símbolos (REL-
rua, alocados nos espaços repulsivos e de temor. PH, 1976, SEAMON, 1980).
Todavia, ganham contornos diversos, pois enquan- No tocante às reminiscências, estas deixaram
to os chamados “usos sujos” dos campos dos mor- marcas profundas, e alguns lugares de outrora,
tos podem ser lugares/símbolos sagrados e de res- mesmo pulverizados em suas formas materiais, pros-
peito, os lugares dos gays, por exemplo, classifi- seguem sendo cortejados, tornando-se símbolos
cam-se, para os seus adeptos, como símbolos de eternizados na memória. Na realidade, como lem-
liberdade, resistência, expressão e freqüência. bra David Harvey (1993, p. 86), recorrendo a
Consideremos, a seguir, os não lugares ou “des- Jenks, “todos trazemos um musée imaginaire na
lugares” como conceituado pelo geógrafo Edward mente, extraído da experiência”. Restaurar o pas-
Relph, na obra “Place and Placelessness” (1976), sado revela o impulso de preservação do eu, como
referente às criações humanas clonadas, monóto- afirma Harvey, lembrando ser o passado o pilar da
nas em sua forma e até mesmo a enfadonha e uni- identidade individual e coletiva. Neste sentido, o
forme porção oferecida pela natureza nos deser- acervo do passado é fonte de significação dos “sím-
tos ou nos pólos climáticos. Com efeito, conjun- bolos culturais” (Ibid., p. 85), recompostos de
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maneira criativa por geógrafos, historiadores, fo- Braguinha e Alberto Ribeiro, mas, nas últimas dé-
tógrafos, entre outros especialistas, bem como em cadas, proclamada, por alguns setores da socieda-
depoimentos, na literatura ou na música. Na esca- de, como decadente, continua sendo uma “meca”
la íntima, a restauração dos símbolos do passado turística e congregando a maior reunião de pesso-
perpetua-se no movimento memorialístico, nas as no Rio de Janeiro, por ocasião do afamado Ré-
lembranças das casas da infância e da adolescên- veillon festejado na Avenida Atlântica. Paralela-
cia, dos lugares/símbolos outrora freqüentados e, mente, a escola de samba das cores verde e rosa da
por outro lado, adesão e posse da memória coleti- favela da Mangueira projetou-se a partir da cadên-
va, ou seletiva, como preferem alguns pensadores, cia de seus desfilantes e, nesse ritmo, ampliou os
na medida em que seria difícil haver um consenso seus domínios na educação e nos esportes, soman-
intersubjetivo. Seja como for, as pessoas, as artes e do multidões de adeptos de diferentes classes so-
os estudiosos retransmitem e restauram a magia dos ciais e, como reconhecimento de sua relevância,
símbolos pretéritos, destruídos ou preservados no recebeu a presença do homem mais poderoso do
íntimo de cada um ou aclamado pelos grupos so- planeta, o ex-presidente Bill Clinton, dos Estados
ciais, ou ainda nas valorizadas rugosidades, as ve- Unidos. Neste ponto, tanto Copacabana quanto
lhas porções espaciais que perduram lado a lado a Mangueira constituem símbolos culturais cuja
junto aos lugares, espaços e “deslugares” moder- ressonância extrapola os limites da “Cidade Mara-
nos ou pós-modernos (HALBSWACHS, 1990; vilhosa”. Ambos constituem lugares/símbolos de
TUAN, 1998; MELLO, 2000). brasilidade internacionalmente reconhecidos. Mas
No que concerne aos sofisticados patamares “decadente”, embora de extraordinária afluência,
dos símbolos míticos, os mesmos avultam como o bairro com nome de santa, e perigosa, a favela
decorrência da tradição oral, dos costumes e da da Mangueira, dominada pelo narcotráfico, estes
propaganda da mídia ou dos pacotes turísticos que símbolos, consagrados como eldorados urbanos,
atribuem dotes extraordinários aos paraísos eco- podem ser motivos de uma longa discussão con-
lógicos ou aos eldorados urbanos. Outros símbo- ceitual quanto ao espaço e ao lugar (LESSA, 2000;
los míticos nascem da magia emanada por algum MELLO, 2002).
aspecto cultural, na busca do “shangrila”, o lugar De toda sorte, o presente texto procura mos-
das delícias, ou, até mesmo em outra dimensão, na trar a existência de símbolos Íntimos/individuais
projeção anunciada pelas religiões, qual seja a tra- e/ou coletivos, a variabilidade e a dependência dos
vessia do portal do paraíso, com vistas à morada valores, da experiência e da cultura. Um símbolo
eterna envolta em contínua claridade (TUAN, perde ou recebe tal condição dependendo da es-
1983, 1999; MELLO, 1993,2000). curidão ou da claridade, igualmente no transcurso
Em termos de lugares/símbolos culturais, o bair- do tempo, ou mesmo se temidas, proibidas ou fran-
ro de Copacabana ou a favela da Mangueira reve- queadas as suas dependências. Símbolos afloram
lam-se como evidências extraordinárias. A “Prin- na experiência direta, transmitidos por outras pes-
cesinha do Mar”, cantada em verso e prosa por soas ou apenas cultuados nos sonhos. Alguns são
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Dos espaços da escuridão aos lugares de extrema luminosidade
transitórios, outros imorredouros. Mas permane- – o universo da estrela Marlene como palco e documento para
a construção de conceitos geográficos. Tese (Doutorado) –
cem sendo construídos ou esquecidos pelos indi- UFRJ, Rio de Janeiro, 2000.
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