Dos sorrisos, dos silêncios e das falas.
Conceição Evaristo
Resumo: A trajetória existencial das mulheres negras, tanto na África como na diáspora, se
considerada em termos coletivos surge marcada por lutas, sofrimentos e resistência. Entretanto,
essas as mulheres, na maioria das vezes, retiram do próprio cotidiano dolorido não só a
subsistência no plano material, como também inventam adequados suportes psicológicos para se
fortalecerem e se colocarem como esteio de suas famílias e muitas vezes das comunidades nas
quais se acham inseridas.
Palavras chaves: mulher negra, silêncio, silenciamento e fala.
Dorinda Hafner, natural de Gana, conta que deixou o seu país na África
Ocidental, para morar primeiramente no Canadá e depois na Austrália. A sua presença
em países estrangeiros, que muitas vezes consideram o sujeito africano como um ser
exótico, esquisito, vem lhe proporciando momentos constrangedores. Dorinda,
entretanto, consegue, não só relatar, como também responder a essas situações de uma
maneira cômica, debochada, fabricando dessa forma um suporte emocional para a
sustentação de sua pessoa. Poderíamos dizer que se utilizando da ironia, das respostas
inusitadas2 ela ensaia modos de sobreviver em um meio, em que a sua pessoa além de
1
Texto publicado In Mulheres no Brasil – Resistência, lutas e conquistas, (org) Liane Schneider
e Charliton Machado, João Pessoa, Editora Universitaria, UFPB,2009
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Dorinda Haner relata “a provação” pela qual passa uma mulher negra em Adelaide, na
Austrália, ao ir ao supermecardo. Enfrenta momentos de sofrimentos ao ouvir sempre as mesmas
perguntas, várias vezes ao dia.De onde você é? Você gosta da Austrália? O que está fazendo aqui? Um
dia – narra Dorinda – ela entrou apressada no supermercado, desejando que ninguém viesse com as
perguntas de sempre. Ao parar diante do balcão frigorífico, foi abordada por uma senhora que após as
indagações costumeiras passou a insistir nas seguintes perguntas: ‘Voce come carne realmente? Que tipo
de carne vocês comem em seu país?’ E por mais que Dorind explicasse à australiana que os africanos
ocidentais da costa do Atlântico preferiam peixes e quando optavam por carne comiam carneiro, bode e às
vezes carnes suína e ou aves, a senhora, entretanto, teimava na questão: ‘Acho que os missionários
acabaram com isso na Papua, Nova Guiné, mas ouvi dizer que ainda se pratica nas montanhas. Minha
queridinha, você deve sentir falta de seu tipo de carne de verdade.’ Diante da insistente insinuação de que
os africanos comem carne humana, Dorinda pensou: “Por que despontá-la”. E arremata a cena,
agarrando os braços da australiana, respirando fundo, levando-o à boca, chupando e fingindo morder.
Dorinda conta que a “mulher guinchou” e gritava “Ela me mordeu! Ela me mordeu!”. E termina o seu
relato dizendo que “o guincho chamou a atenção dos outros fregueses. Todo mundo olhou para nós:
aquela mulherzona preta dando uma mordida naquela velhinha branca.” In: Sabores da África, São Paulo,
Selo Negro, 2000, p-11-15
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ser reconhecida como estrangeira, é distinguida como mulher negra e africana. Em um
dos seus relatos Hafner diz que não sabe responder quantas vezes foi abordada por
pessoas que na “tentativa fingida de puxar conversa” acabam por repetir frases assim:
‘O seu povo parece tão feliz’ ou ainda; ‘As pessoas negras estão sempre sorrindo,
parecem tão felizes’. Ela se admira e acha inacreditável o fato de que pessoas brancas
“sabendo da história que existe entre as raças”, possam crer que o povo negro seja tão
feliz e que simplesmente não possa “deixar de sorrir o dia todo” (HAFNER, 2000,
p.171).E sobre o riso das mulheres negras, Hafner concorda dizendo: “sim, é verdade
que a mulher negra usa o sorriso quando está feliz, mas esse é apenas o começo da
história”. E, explicando o lugar, ou melhor, avaliando o sentido do sorriso no cotidiano
das mulheres africanas, Dorinda afirma que o sorriso da mulher negra não é somente o
registro de uma emoção, pois:
na maioria das vezes, as mulheres negras têm menos
razões para sorrir do que as brancas, mas, apesar disso,
elas realmente sorriem. Para a mulher negra, um sorriso
não registra apenas uma emoção. Não, o sorriso é uma
arma secreta guardada no mais profundo dela, um lugar
pessoal e inalcançável. Cada sorriso encerra uma história.
Com linguagem própria. (ibid, p.171)
Insistindo no valor terapêutico, no remédio natural que a mulher negra faz brotar
de seu próprio corpo, Hafner diz ter assistido mulheres negras sorrirem tristemente
“quando sobrevivem à tragédia de terem suas colheitas anuais queimadas num incêndio
no mato”, quando com “resignação olham para o filho doente cujo tratamento elas não
podem pagar” ou ainda quando diante do espelho, elas se contemplam e “afetadamente”
sorriem ao perceberem que foram deixadas por outra mulher mais nova. Testemunhou
ainda o sorriso que diz: “Não entendi uma palavra do que você disse, mas tudo bem
porque eu me retiro para o meu lugar secreto e confortável, então continue falando!”
Para Hafner o sorriso da mulher negra é: “a um só tempo uma máscara atrás da qual ela
se esconde e um escudo para se proteger da dor da sobrevivência. E muito
provavelmente incompreensível para alguém que não o vivenciou” (ibid. p.172).
2
A autora relembrando os tempos em que vivia na África, confessa que o motivo
maior de sua saudade da terra era o “humor irreverente das mulheres africanas, da sua
habilidade de realmente dar umas boas risadas juntas”. Risos que se cumpliciam
trocando piadas a respeito de seus homens, de suas famílias, da vida em geral. Com um
“maravilhoso humor autodepreciativo – afirma Hafner - as africanas diante da
adversidade, usam o riso como medicamento” (ibid).
Outra maneira de exorcizar as dores se inscreve na experiência das mulheres negras
americanas, “esconjura-se dor entoando blues”, afirma Opal Palmer Adisa (2000,
p.111).Segundo o poético depoimento da Adisa, jamaicana de nascimento e residente nos
Estados Unidos, foram as mulheres negras que “deram luz ao blues”. Palmer conta que quando
as mulheres africanas foram transportadas à força para o litoral americano e ao serem “
escravizadas e mais maltratadas do que gado, elas trincaram os dentes e, decididas a sobreviver
em seu destino, deram luz ao blues, à melancolia” (ibid.). A escritora enfatiza que ao cantar
blues, as afro-americanas exercitam um modo de enfrentamento ao stress diário, ao qual estão
submetidas na sociedade americana. Assevera ainda desconhecer uma só mulher negra que não
tenha de enfrentar o stress, independente do grau de instrução, da posição social ou situação
econômica vivida por ela (ibid.112). Entoar o blues parece se tornar, portanto, uma arma para
encararem a vulnerabilidade a que se acham expostas, por uma condição étnica. Adisa
prossegue dizendo que algumas pessoas acreditam que o “stress” é como o blues, como uma
tristeza. “Ledo engano” - diz a autora -para Adisa, ”O blues, a tristeza, cura”, enquanto que o
“stress é o veneno que mata” (ibid). A contista e poetisa jamaicana garante que:
Quanto mais se escutam os lamentos, mais os cantores de blues liberam
suas dores e mágoas, mais a tristeza vai saindo deles, vai saindo de nós,
dando-nos energia para continuar a viver. O blues nos ajuda a zombar de
nossa própria desgraça, dá luz às mazelas de nossas vidas e reafirma que
viver em si é o que dá significado à vida, quaisquer que sejam os
obstáculos a ultrapassar, (ibid., p.112-13).
A afirmativa da jamaicana, Palmer Adisa, se aproxima a da africana, Dorinda Hafner.
Cantar e sorrir são apontados como antídotos naturais contra a dor, extraídos do próprio corpo.
Tanto o riso como o blues curam. Palmer conclama as afro-americanas para se livrarem do
stress, dizendo ainda:
Portanto, amigas, vamos cantar o blues, vamos soltar nossos lamentos e
balançar sobre a luz do Sol. [...] Sabemos que a imagem de mulher negra
forte é uma máscara que contribui para nos levar à loucura. Balançarmo-
nos sob a luz do Sol é uma liberação. É como se nós, mulheres negras,
permitíssemo-nos vivenciar nosso lado humano, recuperando-nos o papel
de mulas, utilizando nossa força em nosso próprio proveito. (ibid.) (grifos
meus)
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Na recuperação do papel de mulas, entes aos quais só se exige força e que nunca é
permitido o cansaço, na relembrança de uma condição em que eram tomadas como animais, as
mulheres negras perfazem um caminho que lhes permite encontrar um espaço próprio, para
além do corpo visível.
Condutas de mulheres negras brasileiras se inscrevem também desde a escravidão,
como suportes psicológicos para elas próprias, garantindo o equilíbrio de seus companheiros, de
seus filhos e de toda uma família extensiva. As mulheres da África tornadas escravas no Brasil,
assim como as suas descendentes, foram responsáveis por muito das reinvenções das tradições
africanas nas terras brasileiras. Um caso exemplar é o das “Tias Bahianas”, cujo destaque no
Rio de Janeiro é dado a Tia Ciata. Foi na casa da grande Yabá, na Praça Onze, área que Heitor
dos Prazeres denominou como “Pequena África”, que nasce o samba brasileiro. Outras
mulheres, como Ciata, a presença da festa, tanto quanto do labor, exorcizavam suas dores nas
danças, nos cantos, nas possessões do candomblé, e /ou na fé católica enegrecida, como as
rainhas de congadas, nas festas de Rosário.
As mulheres africanas escravizadas nas Américas e suas descendentes procuraram se
adaptar às circunstâncias, mas, sutilmente sempre se movimentaram, buscando criar táticas de
enfrentamento. “A tática é a arma do fraco”, diz Michel de Certeau (2000, p.101) contrapondo o
conceito de tática ao de estratégia. Para o pensador francês, a última corresponde a uma ação
organizada de ataque por aqueles que têm as armas, que têm o domínio. Estratégia pressupõe
plano de ação, modos de ataques planejados, enquanto a tática tem como base a “astúcia”
(ibid.).
Aquilombando-se no domínio do senhor, perto ou longe da casa-grande, ou mesmo no
interior dela, agindo, pois, com astúcia para penetrar no campo controlado pelo inimigo, os
africanos e seus descendentes, homens e mulheres construíram seus espaços de sobrevivência
nas Américas. Taticamente ao sabor das circunstâncias, posicionaram-se diante do inimigo,
pois, ainda, segundo Certeau:
A tática não tem por lugar senão o do outro. E por isso
deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o
organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para
se manter em si mesma, à distância, numa posição recuada,
de previsão e de convocação própria: a tática é movimento
‘dentro do campo de visão do inimigo’. (ibid.)
Observa-se que foi de maneira tática e muitas vezes, ainda é dessa forma que o afro-
descendente, ao longo da história brasileira, moveu-se e se move utilizando brechas “que as
conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário”. Como aquele que se
movimenta, a partir de um “não-lugar”, e que vai penetrando no espaço do outro e, apesar de
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estar “dentro do campo de visão do inimigo”, aquele que não tem um lugar próprio, insiste e
“vai caçar” no terreno do dominador. E cria ali surpresa, consegue estar onde ninguém espera
(ibid.) Confundindo, fundindo movimentos em gestos de defesa e ataque. Creio que o
significado da tática, conforme quer Certeau, pode-se cotejar metaforicamente com o
significado da ginga proposto por Wilson Nascimento Barbosa, (1994, p.32). Para Barbosa a
ginga como atos de negaceios de um corpo, que parece se ausentar e que retorna
inesperadamente ferindo o espaço do outro, que gostaria de vê-lo bater em retirada, se inscreve
“não apenas como acumulação de força”, mas como uma “busca de solução” -enfatiza o
historiador afro-brasileiro - como um “mover-se para obter uma saída surpreendente”, como
“um elemento de imprevisibilidade, de complexidade, de desviação, de surpresa”(ibid).
Inspirada pelo conceito de tática, apresentado pelo pensador francês, e ainda refletindo
sobre leitura da ginga sugerida por Barbosa, trago um relato de mulheres colhido no interior de
uma família mineira. Entendo que essa narrativa exemplifica uma ação “do fraco”
movimentando-se na área inimiga e cujo movimento inesperado, a ginga, altera o resultado do
jogo. E mais ainda, ilustra páginas de uma história que a escrita oficial não registra. –
Maria, “griô” afro-brasileira, nascida em 1911, conta que na sua
juventude capinou, limpou, preparou a terra para o plantio. Plantou e
colheu para os fazendeiros e os descendentes deles. Foi trabalhadora
livre (?) em terras onde seus avós foram escravos e seus pais, “filhos da
Lei do Ventre Livre”, também serviram aos antigos senhores. Naqueles
tempos, cada trabalhador ou trabalhadora, segundo o relato de Maria, era
responsável por um pedaço de terra, que devia cuidar ora no plantio, ora
na colheita e no final do dia o resultado era conferido pelo senhor. Os
homens eram preferidos pelos fazendeiros para os trabalhos da roça. As
mulheres, porém, se juntavam e trabalhavam em mutirão, o que levava a
aumentar a produção. Rendiam mais do que os trabalhadores homens,
enfrentando, assim a preferência dos fazendeiros pelo trabalho
masculino.3
Essa tática de sobrevivência, esse gingado coletivo, como modo de enfretamento a uma
discriminação de gênero, como força de trabalho, acontecia nas redondezas de Pedro
Leopoldo, Minas Gerais, por volta de 1928. Naquela época, algumas mulheres,
trabalhadoras de roça, estavam experimentando modos próprios de resistência. Elaboravam
respostas a partir de uma condição vivida como sujeito - mulher negra e pobre sob a mercê, sob
o mando de uma classe dominante. Essas e outras lutas de mulheres, com certeza, não foram
ouvidas além do âmbito familiar, histórias que a narrativa histórica oficial desconhece.
3
História narrada por Maria Filomena da Silva (1911-1998), nascida em Pedro Leopoldo, MG, que como
suas cinco irmãs, trabalhou na roça e mais tarde na capital, Belo Horizonte, no fundo das cozinhas
alheias, experimentando outras formas de relações dentro do grupo dominante.
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Vitima de invisibilidade por parte do registro histórico brasileiro, a mulher, em geral, é
concebida a partir de uma representação estática, que projeta uma “enfadada ilusão de
imobilidade”, de sua pessoa, conforme observa Mary Del Priore (1994, p.11). Nesse sentido é
preciso acrescentar ao pensamento de Priore que notadamente a mulher negra, surge destituída
de seu papel também forjador de uma existência nacional. A autora observa que tanto a mulher
da elite como a do povo são representadas a partir de estereótipos na história do Brasil. A
primeira aparece “auto-sacrificada, submissa sexual e materialmente e reclusa com rigor”, uma
imagem que se contrapõe à da segunda, que aparece como promíscua, lasciva ”pivô da
miscigenação e das relações interétnicas que justificaram por tanto tempo a falsa
cordialidade entre colonizadores e colonizados” (ibid.).
Um exemplo bastante elucidativo da representação da mulher negra na
historiografia brasileira se prende à imagem de Chica da Silva. Júnia Ferreira Furtado
(2003, p.14) discute a maneira como Chica da Silva aparece retratada pela primeira vez
na história, sob a pena de Joaquim Felício dos Santos, em 1868. Para a historiadora,
tanto os livros de história, como os discursos ficcionais sobre a ex-escrava, surgidos ao
longo do tempo “criaram novos estereótipos, descrevendo uma Chica distante da mulher
de carne e osso que viveu no arraial do Tejuco, dos anos 30 a 90 do século XVIII”.
Entretanto, é possível reconstruir a história de Francisca da Silva de Oliveira, afirma a
pesquisadora. Novos documentos oferecem uma melhor compreensão da época em que
ela viveu, assim como elucidam “os significados de sua trajetória”. (ibid. p.21) Para
Furtado, não somente Chica da Silva, mas ainda outras ex-escravas, conseguiram a
liberdade, o que as possibilitou criarem seus filhos. E procurando sempre uma ascensão
social, elas provavelmente desejavam “reduzir a marca que a condição de parda e forra
impunha ela e a seus descendentes” (ibid.) O empenho da ex-escrava em galgar uma
posição que a distanciasse o mais possível de sua origem se torna compreensível aos
olhos da historiadora, uma vez que, na época apagar as marcas da mestiçagem era o
desejo da sociedade como um todo, e não somente de determinados indivíduos. Furtado
argumenta que mesmo sendo:
[uma] Inserção contraditória, ao buscar o reconhecimento da sociedade
branca, foi, porém, a única maneira que mulheres como ela encontraram
para retomar o controle sobre suas vidas, acumulando bens, transitando
entre as irmandades, tornando-se senhoras de escravos. Seu itinerário é
revelador também das relações entre os grupos étnicos nas Minas Gerais
do século XVIII. Sob o manto da pretensa democracia racial, sutil e
veladamente uma sociedade mestiça procurava branquear-se e escapar
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por vários recursos, inclusive a dissimulação, da fria exclusão
sociorracial. (ibid.)
As conclusões de Júnia Furtado validam do ponto de vista da história as várias
experiências de lutas, para a conquista de liberdade, empreendidas pela mulher
escravizada. São estudos que ao buscar entender, livre de qualquer juízo moral, algumas
formas de negociação, recuperam modos possíveis de enfrentamento e de subordinação
vividos na tensão de um jogo entre dominador e dominado. Histórias como a da Chica
da Silva evidenciam uma resistência construída não porque essa mulher tivesse “o
poder”, mas porque construía “poderes”, como propõe a discussão empreendida por
Michelle Perrot (1998, p.167), em torno da polissemia do termo, para refletir sobre as
formas de poder que as mulheres detêm.
Modos diversos de conquistarem um poder informal, uma liberdade relativa,
eram vividos através do próprio corpo, mesmo sendo escravo. A história da escravidão
no Brasil é enfeitada por vários relatos em que as africanas e suas descendentes tornadas
escravas conseguiam suas alforrias e as de seus filhos, devido ao “poder” exercido sobre
o seu senhor. O corpo, em tais circunstâncias, aparece transformado em instrumento de
negociação. A partir de dentro da casa-grande, da cozinha, do quarto, lugares íntimos do
poder patriarcal, as mulheres escravizadas acabavam sendo grandes mentoras de
liberdade para si próprias e para os seus.
Torna-se necessário observar que a violência perpetrada contra o corpo das
mulheres africanas e suas descendentes desenvolveu um imaginário fundamentado na
imagem da “mãe preta”, marca incontestável da presença da mulher negra no seio da
família escravocrata. Do interior da escravidão nasce a imagem da benevolência, da
bondade e do sofrimento da mãe negra que tira dos seus próprios filhos para oferecer
aos filhos alheios, como se tudo como se fosse um ato consentido da mãe escravizada.
Nenhum autor melhor que Gilberto Freyre (1978, p.331) para elaborar e descrever esse
imaginário sobre a presença da mulher negra no ameno quadro da escravidão. O autor,
que sem dúvida alguma, foi o primeiro da época a reconhecer valorativamente a
característica multirracial da sociedade brasileira e que ofereceu as bases para a
construção do pensamento da democracia racial brasileira, aponta inclusive a
interferência exercida pelas “mães pretas” na linguagem brasileira. Para Freyre:
A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo
que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os
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ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino
branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que
no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais
doces deste mundo.[...] Amolecimento que se deu em
grande parte pela ação da ama negra junto à criança; do
escravo preto junto ao filho do senhor branco.
Se relatos orais, assim como vários textos escritos e ainda todo um material
iconográfico, fotos e pinturas, apresentam as mulheres negras desempenhando seus
papéis de mães-pretas, de amas-de-leite, de educadoras informais da prole colonizadora,
um outro papel, uma outra representatividade é negada à mulher negra no seio da
sociedade brasileira. Há a negação de uma imagem em que a mulher negra apareça no
centro de sua própria descendência. Apagam-lhe sua prole, sua família, pois a imagem
da mãe-preta nasce no processo da escravidão e como tal esses filhos não são os seus e
sim os de seus senhores. Porém, mesmo abandonando os textos que se referem ao
período colonial, percebe-se que na literatura brasileira, ao longo dos tempos, a mulher
negra não surge representada como mãe, musa ou heroína romântica.
Contraditoriamente, apesar da forte presença da mulher negra na formação da cultura
nacional, é como se houvesse um desejo de apagamento, tanto por parte da história,
como da literatura de uma matriz africana na sociedade brasileira. Observa-se que o
indianismo romântico, na sua procura de uma identidade para os brasileiros, foi capaz
de imaginar uma nação mestiça metaforizada na relação dos casais: Peri/Ceci (O
Guarani, José de Alencar, 1857); e Iracema/Martim (Iracema, José de Alencar, 1865),
conforme observa José Maurício Gomes de Almeida (2001, p.95).4
Retomando as considerações sobre a obra de Freyre, reconhecemos que se por um
lado seus textos rompem com a perspectiva racista da época, representada por um Sylvio
Romero, um Oliveira Viana, um Euclides da Cunha e mais alguns, por outro, o reconhecimento
do negro nos textos de Freyre, ainda se dá na perspectiva daquilo que se apresenta como
exótico. Os africanos e seus descendentes ainda são “o outro, o diferente, o estranho”, como
bem observa Gislene Aparecida dos Santos (2002, p.150), “mas agora é o estranho desejado por
essas mesmas características”. Nesse sentido, ainda refletindo o pensamento de Gislene dos
Santos, pode-se dizer que a valorização da mulher negra como: negra velha, mãe preta, ama de
leite, mucama, mulata iniciadora do rapazinhos nos prazeres do sexo, são funções que nunca
colocaram as mulheres negras no mesmo patamar de valorização das mulheres brancas (ibid).
4
Consultar ensaio “Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face In Mulheres no Mundo, Etnia,
Marginalidade e Diáspora (orgs) Nadilza Barros Moreira e Liane Schneider, João Pessoa, Ideia, 2005.
8
Observa-se que silêncios e silenciamentos pontuamvários momentos da trajetória das
mulhere negras. Há que se estudar a qualidade dessa não-voz, dessa não-fal, desse não-grito,
escohido ou imposto. Eni Orlandi considera que “há um modo de estar em silêncio que
corresponde a um modo de estar no sentido” e completa a sua reflexão dizendo que “de certa
maneira as próprias palavras transpiram silêncio E para refletir sobre o silêncio pleno de
sentido, trago um comentário de Luiza Bairros acerca de uma imagem colhida pela
autora de um programa de televisão, protagonizado por duas mulheres, em
movimentação, uma branca e uma negra. No fundo da cena principal, a mulher negra,
completamente emudecida, apenas se movimenta e cumpre ordens, como se estivesse
no fundo de uma cozinha real. Para Bairros, entretanto, o corpo dessa mulher se
apresenta como fala, a partir de uma caracterização e gestualidade própria, pela qual se
quebra o silenciamento que a cena lhe impõe como papel. Assim, Luiza Bairros (1995,
p.458) descreve o modo como apreendeu as palavras corporais da outra:
Certa vez [...] vi na televisão um quadro sobre culinária. Era um
programa matinal dirigido ao público feminino [...]. Naquele momento, o
que prendia minha atenção estava atrás da imagem imediatamente visível
na tela de TV. O cenário era uma cozinha, e o personagem principal era
uma apresentadora que não parava de dar instruções e conselhos. Em
contraposição, uma jovem negra participava da cena no mais completo
mutismo. [...] Para mim, entretanto, tão poderosa quanto o silêncio era
nossa outra “fala”, transmitida pela pele negra e realçada pelo penteado
de tranças da ajudante. Uma imagem posta em nossos próprios termos,
desligada das representações de submissão atribuídas a nós mulheres e
homens negros.
Sabe-se ainda que gritamos as nossas palavras desde lá de dentro de nossos
silêncios. E por isso mesmo é que a voz de Anastácia5 se faz ouvir, pelos orifícios, para
além da sufocante máscara. É, aliás, pela existência da máscara, com a sua função de
interdição da fala, que o silenciamento imposto a Anastácia pode ser capturado
metaforicamente como um silêncio que surge orientando uma fala elaborada em um
5
Anastácia – Segundo texto impresso com sua imagem, Anastácia foi uma “Princesa bantu-Angola
cresceu livre em Abaeté-Bahia. Castigada com mordaça por dizer não escrava. Suplicada (SIC) pela
fazendeira com ferro no pescoço, gangrenou. Trazida pelo senhor para o Rio, faleceu. Enterrada na Igreja
dos Negros Porros (SIC) teve liberdade depois de morta.”
Esse texto informativo sobre Anastácia acompanha uma oração que lhe é dedicada e circula entre aqueles
que a têm como santa. Uma imagem de Anastácia era venerada na Igreja de São Benedito dos Homens de
Cor, no Rio de Janeiro. Atualmente, depois da veneração ter sido interditada pelos poderes católicos, a fé
em Anastácia continua propagando-se. Uma capela em seu louvor passou a funcionar em Madureira,
subúrbio carioca.
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outro tempo e lugar. Da história e/ou mito de Anastácia, surge não só um tipo de fé
popular que desafia uma orientação católica, mas ainda discursos ideológicos que
circulam entre os vários militantes, mulheres e homens do Movimento Negro.
E em nossa fala, em nossa escrita, há muito fazer-dizer, há muito de palavra-
ação. Falamos para exorcizar o passado, arrumar o presente e predizer a imagem de um
futuro que queremos. Nossas vozes-mulheres negras ecoam desde o canto da cozinha à
tribuna. Dos becos das favelas aos assentos das conferenciais mundiais. Dos mercados,
das feiras onde apregoamos os preços de nossas vidas aos bancos e ás cátedras
universitárias. Dos terreiros onde as Mães acolhem seus filhos convictas na força da
palavra, no Axé, aos movimentos feminista e negro. Desde ontem... Desde sempre...
Nossas vozes propõem, discutem, demandam. Há muito que dizer. Há muitos espaços
ainda vazios de nossas vozes e faremos chegar lá as nossas palavras. Há muito que
fazer dizer. Não tememos. Sabemos falar pelos orifícios da máscara com tal força que
estilhaçamos o ferro. Quem aprendeu a sorrir e a cantar na dor, sabe cozinhar as
palavras, pacientemente na boca e soltá-las como lâminas de fogo, na direção e no
momento exato. Por isso proclamamos nesses versos:
E não há mais
quem arranque a nossa língua
o nosso verbo solto
conjugou antes
o tempo de todas as dores.
Referências Bibliográficas:
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das Mulheres negras – nossos passos vêm de longe. Org.Jurema Werneck, Maisa Mendonça, Evelyn C.
White, Rio de Janeiro, Global Exchange/Pallas Editora/Criola, 2002, 2ª edição.
ALMEIDA, José Maurício Gomes. “Literatura e mestiçagem” In Outros e outras na Literatura
Brasileira, org. Wellington Almeida Santos, Rio de Janeiro, Caetés, 2001.
BAIRROS, Luiza. “Nossos femininos revisitados” In Estudos Feministas, vol.3,Rio de
Janeiro,IFSC/UFRJ,PCRIS/UERJ,1995
BARBOSA, Wilson do Nascimento & SANTOS, Joel Rufino dos. Atrás do Muro da Noite,
Brasília, Minc/Fundação Cultural Palmares, 1994.
CERTEAU, Michel.A invenção do Coditiano, Vol.1,Petrópolis,Vozes, 2000
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala, Rio de Janeiro, L. José Olympio, 19ª ed. 1978.
FURTADO, Junia Ferreira, “Verdades e mentiras sobre uma escrava que virou senhora” in
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HAFNER, Dorinda. Sabores da África – receitas deliciosas e historias apimentadas da minha
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PERROT,Michelle. Os Excluídos da História, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
10
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SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro, São Paulo/Rio de Janeiro,
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