A Padaria América e o Pão Das Gerações Curitibanas
A Padaria América e o Pão Das Gerações Curitibanas
CURITIBA
2002
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANA
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
UFPR COORDENAÇÃO DOS CURSOS DE PÓS GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Rua General Carneiro, 460 6 andar fone 360-5086 FAX 264-2791
o
PARECER
Prof. Dr.
2°Examinador
n
À memória de Bruda,
que viveu esta padaria.
m
AGRADECIMENTOS
Allan Kardec
VI
SUMÁRIO
RESUMO VII
1 INTRODUÇÃO 1
1.1 História e alimentação: uma nova perspectiva 4
1.2 Comida, cultura e sociedade 8
1.3 O pão nosso de cada dia, o pão dos ricos e o pão dos pobres 16
1.4 A memória e a história oral 19
2 PADARIA AMÉRICA 31
2.1 Um marco em 1913 34
2.2 Bruda assume a padaria 42
2.3 Eduardo Henrique aprende com o avô o ofício de padeiro 47
2.4 Hábitos alimentares: permanências e mudanças 51
4 A TRADIÇÃO 96
4.1 Tradição inventada 99
4.2 Tradição e memória 103
4.3 Tradição e história 108
RESUMO
A pesquisa sobre a Padaria América veio a ser realizada pelo fato desta padaria ser a
mais antiga de Curitiba em atividade. Fundada em 1913 por Eduardo Engelhardt, esta
sempre pertenceu e foi administrada por um membro da família do fundador e suas
receitas foram repassadas aos seus descendentes, estando um deles à frente da
produção. Hoje o membro da família que detém os conhecimentos da panifícação e as
receitas da padaria é o bisneto do fundador, Eduardo Henrique. Ainda hoje existem
receitas do início do século XX elaboradas com métodos artesanais. Esta padaria tem
em uma considerável parte de seus clientes, os descendentes de imigrantes europeus,
predominando os descendentes de alemães. O comprar o pão nesta padaria também foi
repassado de pai para filho. Neste trabalho buscamos entender a tradição de se fazer e
se comprar o pão na Padaria América. O que faz com que a família Engelhardt
mantenha a tradição de fazer o pão? O que leva uma determinada clientela a continuar
freqüentando esta padaria transmitindo esta tradição a seus filhos e netos? Qual o
significado desta padaria e de seus pães para a família Engelhardt e para seus clientes?
O que leva esta padaria artesanal a continuar no mercado? Para responder nossas
questões recorremos à história oral. Através das memórias reconstruídas de membros
da família Engelhardt e de seus clientes tradicionais pudemos compreender esta
tradição e por que ela permanece. Comprovamos que a comida permite caracterizar
indivíduos e que nossas escolhas alimentares são feitas de acordo com a família,
cultura, sociedade, religião, gostos e estilo de vida. Entendemos que esta tradição foi
construída ao longo dos anos e fortalecida pelos momentos de ruptura. Esta caminha
junto com a inovação e o conservadorismo. Para a família, a tradição existe por causa
da qualidade e esta qualidade existe pelo equilíbrio do conservadorismo e mudanças.
Para os clientes, a tradição também se mantém pela qualidade, mas principalmente,
pelo despertar de lembranças e manutenção de identidade que a Padaria América
oferece, através de seu ambiente, seus pães e doces.
A pesquisa sobre a Padaria América veio a ser realizada pelo fato desta padaria
ser a mais antiga de Curitiba em atividade. Fundada em 1913 por Eduardo Engelhardt,
a padaria sempre pertenceu e foi administrada por um membro da família do fundador
e suas receitas foram repassadas aos seus descendentes. Eduardo Engelhardt transmitiu
o ofício de padeiro e suas receitas à seu filho Ewaldo (mais conhecido como Bruda) e
este retransmitiu ao seu neto Eduardo Henrique, hoje o membro da família que detém
os conhecimentos da panificação e as receitas da padaria, permanecendo neste ofício.
Ainda hoje seus pães, broas, doces, tortas e bolachas são elaborados com métodos
artesanais, mantendo receitas do início do século XX. Esta padaria tem em uma
considerável parte de seus clientes descendentes de imigrantes europeus,
predominando os descendentes de alemães. O comprar o pão nesta padaria também foi
repassado de pai para filho. Os clientes de hoje são os filhos e netos dos clientes de
ontem.
Neste trabalho buscamos entender a tradição de se fazer e se comprar o pão na
Padaria América. O que faz com que a família Engelhardt mantenha a tradição de
fazer o pão? O que leva uma determinada clientela a continuar freqüentando esta
padaria transmitindo esta tradição a seus filhos e netos? Qual o significado desta
padaria e de seus pães para a família Engelhardt e para seus clientes? O que leva esta
padaria artesanal a continuar no mercado, sendo que muitos estabelecimentos
pequenos e artesanais de sua época desapareceram por não conseguir competir com as
indústrias de alimentos, massas semi-prontas, pães e doces feitos em larga escala
distribuídos para outros estabelecimentos?
Hoje podemos observar que o mundo artesanal dos padeiros e dos doceiros é
atropelado com a chegada da cozinha industrial, pois a padronização é uma condição
do fast-food, refeição rápida.1 Com esta tendência, vários pequenos estabelecimentos
começaram a declinar, padarias e açougues estão sendo gradativamente substituídos
pelos grandes estabelecimentos. Muitos não produzem mais seus próprios produtos: os
pães e doces agora são produzidos em larga escala e distribuídos à outras padarias e • y
1
ORTIZ, R. Cultura e modernidade-mundo. In: Mundialização e Cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994, p. 74 -87. -
3
2
DA MATT A, R. Sobre o simbolismo da comida no Brasil. In: O correio. Rio de janeiro, v.
15, n.7, p. 22 Julho de 1987.
3
4
Id.
SANTOS, C. R. A. dos. História da Alimentação no Paraná. Curitiba: Fundação Cultural,
1995, p. 124.
4
5
SANTOS, C. R. A. dos. Por uma História da Alimentação. In: História, questões e debates.
n. 26/27. Curitiba: AP AH, 1997, p.154.
6
MENESES, U. T. B. de & CARNEIRO, H. A História da Alimentação: balizas
historiográficas. In: Anais do Museu Paulista - História e Cultura Material, São Paulo: Nova Série,
vol. 5, jan/dez 1997, p. 9.
5
cozinha trivial ou excepcional, parece de uma fixidade notável; em todos os lugares, ela possui
a solidez dos hábitos que não são nunca questionados.7
Ainda segundo FEB VRE, seria possível localizar dentro do território francês os
três principais tipos de gordura para cozinhar: manteiga, azeite e banha. A fixidez dos
modos de cozinhar revela a permanência da tradição. A inovação, ou seja, os pratos
que vêm "de fora", se adaptam ao paladar local, sendo "sincretizados" segundo os
regras alimentares e culinárias vigentes. Daí a oportunidade de cartografá-los, podendo
assim, iniciar uma análise.8
Ma nem sempre trabalhou-se com o tema devidamente. Um determinado tipo de
história da alimentação e dos alimentos foi desenvolvido e relatado, fazendo parte da
cultura de base de todos. Fala-se que o macarrão foi inventado em tal lugar, que o
sorvete foi disseminado por determinada celebridade, que iniciou-se o uso das
especiarias em tal data. A esse tipo de história, que é contada com toda a segurança,
não importam os documentos que a contradizem. Mas existem maneiras de analisar o
passado de nossa alimentação menos fragmentárias, mais enriquecedoras e
satisfatórias. De forma que nos norteie melhor no presente, e mais de acordo com a
orientação atual da pesquisa histórica, pois como já comentamos, em todos os
domínios a história já não se ocupa exclusivamente das façanhas dos grandes homens,
especialmente quando se trata das estruturas do cotidiano, onde se encaixam os hábitos
alimentares.9
De posse das ferramentas certas dos campos multi e interdisciplinares, não há
como cair numa história da alimentação ao nível do pitoresco, do trágico, do exótico.
A evolução dos métodos históricos demonstram que não pode haver contradição entre
alimento e guerra, cozinha e diplomacia, vida cotidiana e vida política, ou seja, entre
as grandes e as micro- histórias.10
7
FEB VRE, L. Pour la première enquête d'alimentation de 1936, In: ORTIZ, R.
Mundializaçõo e Cultura. São Paulo. Brasiliense, 1994, p. 77 -78.
8
Id.
9
FLANDRIN, J. L. & MONTANARI, M. (org.) História da Alimentação. São Paulo: Estação
Liberdade, 1998, p. 16.
10
SANTOS, C. R. A. dos. Por uma história..., p. 155.
6
seu lugar na reflexão histórica. E apenas no final dos anos 70 e no decorrer dos anos
80 e 90 é que os especialistas em Idade Média e Idade Moderna estudaram como
práticas distintivas as escolhas alimentares dos povos ou das diferentes classes sociais;
compararam as práticas culinárias, os gostos, as aversões, a evolução histórica; a
influência da religião e da dietética na escolha e no modo de preparar os alimentos.
Desde então, iniciaram pesquisas (além das quantitativas sobre nutrição já
desenvolvidas) também sobre sua produção, circulação e consumo, as preferências
alimentares, a significação simbólica do alimento, as proibições dietéticas e religiosas,
os hábitos culinários, o comportamento à mesa, as relações que a alimentação mantém,
em cada sociedade com os mitos, a 1cultura
"3
e as estruturas sociais. Pesquisas estas
reservadas aos etnólogos e etnógrafos.
Esta transparente aproximação da história com a antropologia é explicada pela
entrada da Nova História na década de 70 cuja base filosófica é a idéia de que a
realidade é social ou culturalmente constituída. O compartilhar dessa idéia por muitos
historiadores sociais e antropólogos sociais ajuda a explicar a recente convergência
entre essas duas disciplinas.14
Aqui no Brasil existem autores que há muito já tratam do tema história e
alimentação com extrema riqueza e seriedade. Citaremos alguns, como é o caso de
11
BURKE, P. A escrita da história. São Paulo: UNESP, 1992, p. 23.
i,2
Id.
13
FLANDRIN, J. L.(org. ) & MONTAN ARI, M. (org.) op. cit., p. 20-21.
14
BURKE, P., op. cit., p. 11.
7
15
CASCUDO, L. da C. História da Alimentação no Brasil. Belo Horizonte. Ed. Itatiaia; São
Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1983.
* Mário Souto Maior recebeu em 1979 por esta obra, o prêmio Sílvio Romero para
monografias sobre o folclore.
16
como é o caso da tese "Gosto, prazer e sociabilidade - bares e restaurantes de Curitiba,
1950-60" de Maria do Carmo Marcondes Brandão ROLIM e da dissertação " Doces lembranças -
cadernos de receitas e comensalidade, Curitiba 1900-1950" de Solange Menezes da Silva Demeterco".
8
17
BRILLAT-SAVARIN. A fisiología do gosto. São Paulo: Cia das Letras, 1995. p.15.
18
WOORTMANN, K. A comida, a família e a construção do gênero feminino. In: Revista de
Ciências Sociais. Rio de Janeiro, vol. 29, n. 1, 1986, p. 103.
19
GARINE, I. de. Alimentação, culturas e sociedades. In: O correio, Rio de Janeiro, v.15, n.
7,p.4-7,jul. 1987.
9
de falta de asseio".
E diferentemente dos balineses, para nós a refeição é um ato social, não um ato
privado. Para nossa cultura, só é refeição o ato de comer em grupo. Não nos sentamos
à mesa para comer, mas para comer "junto". "Com efeito, embora não fosse
desconhecido na Idade Média, o prazer de comer e beber junto parece ter-se
transformado ao longo dos tempos modernos em função da procura mais insistente de
uma afinidade de maneiras e gostos entre os convivas."24 Também "...os franceses de
20
GEERTZ, C. A Interpretação da Cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 286.
21
WOORTMANN, K. op. cit., p. 104.
22
FLANDRIN, Jean-Louis. A distinção pelo gosto. In: História da Vida Privada - da
renascença ao século das luzes. São Paulo: Cia das Letras, 1991, p. 268.
23
CAMPORESI, P. Hedonismo e exotismo - a arte de viver no século das luzes. São Paulo:
UNESP, 1996, p. 12.
24
FLANDRIN, J. L. & MONTANARI, M. op. cit, p. 267.
10
bom grado, dividem o sentimento de que a boa mesa é agradável demais para ser
negligenciada."25
25
PITTE, J. R. Gastronomia Francesa - história e geografia de uma paixão. Porto Alegre:
L&PM, 1993, p. 16.
26
ROLIM, M. C. M. B. Gosto, prazer e sociabilidade - bares e restaurantes de Curitiba,
1950-1960. Curitiba, 1997. Tese (Doutorado em História) - Setor de Ciências Humanas, Letras e
Artes, Universidade Federal do Paraná.
27
GARINE, I. op. cit., p. 5.
28
WOORTMANN, K. op. cit., p. 107-108
11
34
HORTA, N. Não é sopa - crônicas e receitas de comida. 2 ed, São Paulo: Companhia das
letras, 1995, p. 10.
35
Id.
36
GIARD, L. op. cit., 1996, p.211.
37
Ibid, p.219.
13
38
FLANDRIN, J. L. Da dietética à gastronomia, ou a libertação da gula In: FLANDRIN, J. L.
& MASSIMO, M. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 667.
39
PITTE, R. op. cit.., p. 16.
40
BRILLAT-SAVARIN, op. cit., p. 15.
14
41
FLANDRIN, J. L.(org.) & MONTANARI, M. (org.) op.. cit., p. 18.
42
WOORTMANN, K. op. cit., p. 110.
43
SANTOS, C R. A. dos. Por uma ..., p. 159.
15
comum esta escolha pelos alimentos vegetais em substituição à carne. E esta opção
nada tem a ver com política, mas sim com filosofia de vida, religião ou também com o
cuidado à saúde. As carnes em geral são carregadas de toxinas, hormônios dados ao
animal para seu crescimento ou liberados pelo mesmo na hora de sua morte, pois
quase sempre ele pressente que vai morrer, secretando uma grande quantidade de
adrenalina.
A carne hoje também constitui um critério para designar o estabelecimento do
nível de vida de uma população. Os que não comem carne, fora os motivos já citados,
é por possuírem baixa renda, pois a carne possui elevado custo em comparação com
outros alimentos.
Mas mesmo estes a custo abrem mão da carne, por ela significar status social e
força. Para o trabalhador que tem que levar suas refeições de casa, não pode haver
falta da carne, e esta tem que estar visível na marmita, por cima de todos os outros
alimentos, feijão, arroz, macarrão. A falta da carne significaria fracasso em seu
trabalho e como chefe de casa.* E a carne que traz saciedade, - dá sustança". O que se
come com a carne é considerado alimento fraco, "mistura". Por isso vêm por baixo da
carne.
Segundo BRAUDEL este significado de força que a carne tem hoje vem da
Idade Moderna, quando havia duas humanidades: os raros comedores de carne e os
inúmeros comedores de pão, de papas, de raízes, de tubérculos cozidos. Os grandes
homens eram os designados por "comedores de carne". Eram os bravos, guerreiros.
Neles encontrava-se mais coragem do que nos que se contentavam com alimentos mais
leves.44
1.3 O pão nosso de cada dia, o pão dos ricos e o pão dos pobres
43
FLANDRIN & MONJANARI, Op. Cit., p. 122.
46
REVEL, J. Um banquete de palavras - uma história da sensibilidade gastronômica. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.85. Aqui o autor não analisa o caso da América.
47
GRIECO, A. F. Alimentação e classes sociais no fim da Idade Média e na Renascença . In:
História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998, p. 466.
48
Tratam deste assunto os seguintes autores: BRAUDEL, F. loe. Cit., p. 93; SANTOS, C. R.
A. dos, Por uma história..., p. 156 e SANTOS, S. de P. O vinho, a vinha e a vida. Porto Alegre: L&PM,
1995, p. 124.
49
Passagem retirada de um fascículo da coleção "Mitologia", da Editora Abril, vol. 9 - Ceres,
1973, p.82.
17
Também na Europa, no século XVIII, o pão dos ricos e o dos pobres eram
distintos. O dos pobres era o pão preto, feito com farinha considerada na época de
menor qualidade, por ser mais integral e misturada com farinhas de outros cereais
considerados menos nobres: cevada, centeio, aveia. O dos ricos, era o pão branco,
fofo, produzido com farinha branca, refinada, bem peneirada e pura. O pão preto
constituía o essencial da alimentação camponesa. Nas vésperas da Revolução Francesa
o camponês não consumia o trigo e o pão branco era uma raridade. O trigo era
considerado "cereal de luxo" e era dispensado às crianças, à venda e às festas.
Nesta época, apesar de os mais pobres destinarem maior parte de seu orçamento
com o consumo do pão, os mais ricos também não abriam mão de tê-lo em suas mesas.
E ainda havia um pão superior: pain mallei, feito com a flor da farinha e adição de
leite mais fermento de cerveja, que era consumido em Paris, sobrepondo-se ao pão
branco: o pão da Rainha (ao qual Maria de Médicis muito gostava). Quando em época
50 SANTOS, S. de P. op. cit., p. 124.
18
de carestía, este tipo de pão era proibido de ser feito bem como os pãezinhos e também
o uso do "pó de empoar" à base de farinha, na época muito usado para as perucas.51
Segundo alguns autores a falta do trigo foi um dos principais fatores para a
eclosão da Revolução Francesa.52 Não só na França, mas também em Roma, na época
do império, o pão desempenhou um importante papel político, sendo distribuído
gratuitamente ao povo, sendo conhecida de todos a divisa panem et circenses (pão e
circo).53
No Brasil, no século XVII, o pão de trigo também era o eleito pelo imigrante
português instalado na Bahia. Em Pernambuco, o colono consumia o pão de trigo, cuja
farinha vinha moída de Portugal. Quando os holandeses ocuparam a Paraíba, também
constataram que "os ricos e os remediados" só consumiam pão de trigo, ao passo que a
farinha de mandioca era o pão dos pobres. Já os indígenas repudiavam a farinha de
trigo por acharem indigesta, exigindo, quando em serviço militar da Companhia das
índias Ocidentais, que lhes fosse oferecida a de mandioca.54
No Paraná também o cultivo do trigo foi estimulado na metade do século XIX
para a fabricação do pão. Aqui o pão preto, ou broa de centeio, o pão misturado,
também era o pão dos pobres e dos colonos.
Se antes o pão preto era o pão dos pobres, hoje a situação se inverte. O pão
preto, que era o pão feito com outros cereais (centeio, milho, aveia) e farinha mais
integral, chamado de pão dos pobres, é o preferido por algumas pessoas, por neste pão
conter uma quantidade maior de fibras e menor de calorias que o pão branco,
significando mais saúde e beleza. Hoje beleza é significado do corpo magro, que
consome menos calorias. As fibras são responsáveis pelo carreamento de gorduras e
manutenção do bom funcionamento do intestino o que é bom para prevenção de
problemas cardio-vasculares e digestivos. As pessoas que procuram o pão preto por
estes motivos são considerados os "ricos" de hoje.
51
BRAUDEL, Civilização..., p. 120.
52
Tratam deste assunto os autores: BRAUDEL, Ibid., p. 93-126 e FLANDRIN, J.L. &
MONTANARI, M. Op. Cit., p. 409-413.
53
Id.
54
MELLO, Evaldo Cabral de. "Nas fronteiras do paladar". In: Folha de São Paulo, São Paulo,
2000. "Mais!" p. 7-10.
19
A gente tem notado que é de uma classe média para média-alta. Mas vem cliente de todo
padrão de vida. Clientes que a gente conhece e sabe que são de baixo poder aquisitivo, pegam
o ônibus e vem pegar seu pão aqui. Tem clientes que moravam nas redondezas e se mudaram
para o Boqueirão, etc. (. ..) Mas, também, se tem um feriado prolongado, a gente vê a diferença
que é enorme. Então, quer dizer, que esse pessoal desce para o litoral, devem ter casa lá. Uma
sobra de pão!55.
55
ENGELHARDT, Alfonso Eduardo. ENTREVISTA. Curitiba, 5 de junho de 2000.
56
THOMPSON, P. A transmissão cultural entre gerações dentro das famílias: uma abordagem
centrada em histórias de vida. In: Ciências Sociais Hoje. ANPOCS, !993, p. 9
20
Eles anotavam, e olha, era a coisa mais... Eu não sei como é que não perderam isso sabe. Por que o meu
pai, quando ele fazia uma receita, bolo, alguma coisa, ele fazia num papel. Nesse chamado papel de
embrulhe, aquele que nós tínhamos aqui no balcão. Estava tudo embaralhadas as receitas, sabe. E a
gente tinha uma preocupação muito grande com isso. Tem que cadastrar isso aí, tem que cadastrar, tem
que copiar isso aí... Então, depois com esse negócio de computador, aí ficou bem mais fácil. Aí foram
todas catalogadas.
57
Ver as reportagens: "Fogo ameaça o quarteirão inteiro". Tribuna do Paraná. Curitiba, 30 de
julho de 1981 e "Panificadora pegou fogo". O Estado do Paraná. Curitiba 30 de julho de 1981.
21
cuidados, são transformadas em documentos e podem ser utilizadas como fontes orais.
A história oral é um meio privilegiado para o resgate da vida cotidiana, tendo em vista
que esta se mantém firmemente na memória.
A história oral compartilha com o método histórico tradicional as diversas fases
e etapas do exame histórico. De início apresenta uma problemática inserindo-a em um
projeto de pesquisa, depois desenvolve os procedimentos à constituição das fontes
orais que se propôs produzir, realizando com o maior rigor possível ao controle e às
críticas interna e externa da fonte constituída. Finalmente passando à análise e
interpretação.58
De acordo com Antônio César de Almeida SANTOS:
... estaremos procurando estabelecer o sentido (significado) do texto oral, como fazemos
quando nos deparamos com uma documentação escrita. Em momento algum deve-se pensar
em tomar o que é dito como uma verdade, ou como uma expressão objetiva da realidade. Toda
a análise é um procedimento interpretativo e cabe ao pesquisador municiar-se de ferramentas
que lhe permitam a realização de uma "leitura correta".59
O uso deste tipo de fonte ainda hoje sofre resistência. Segundo Paul
THOMPSON, esta resistência é a resistência a novos métodos que a geração mais
velha de historiadores têm, pois eles devem sempre deter as "rédeas" do
conhecimento. A chegada de um novo método implicaria que estes não mais
comandariam todas as técnicas de sua profissão.60 Para Gwyns PRINS há razões mais
profundas: os historiadores vivem em sociedades alfabetizadas e inconscientemente
tendem a desprezar a palavra falada.61
Outro ponto colocado em questão é em relação à subjetividade e à veracidade
dos depoimentos. Este ponto é também ultrapassado, na medida em que sabemos que
as subjetividades e as dúvidas quanto à veracidade também podem ser encontradas nos
58
LOZANO, J. E. A. Práticas e estilos de pesquisa na história oral contemporânea. In: Usos e
abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 16.
59
SANTOS, A. C. de A. Curitiba, 1994. 6 f. Curitiba: uma aproximação ao método da
história oral. Texto apresentado ao Seminário de História Urbana, no Curso de Mestrado em História
da UFPR. (As palavras estão destacadas no original)
60
THOMPSON, P. A voz do passado - história oral. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1992
6
' PRINS, G. História Oral. In: A escrita da história. São Paulo: Editora da UNESP, 1992,
p.163.
22
O oral nos revela o "indescritível", toda uma série de realidades que raramente aparecem nos
documentos escritos, seja porque são consideradas "muito insignificantes" (é o mundo da
cotidianidade) ou inconfessáveis, ou porque são impossíveis de transmitir pela escrita (...) E
através do oral que se penetra no mundo do imaginário e do simbólico, que é tanto motor e
criador da história quanto o universo racional (...) a história oral é uma via de acesso
privilegiada a uma história antropológica e deve continuar a sê-lo. 63
62
PORTELLI, A. Memória e diálogo: desafios da história oral para a ideologia do século XXI.
In: História oral: desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz / Casa de Oswaldo Cruz
/ CPDÓC - Fundação Getúlio Vargas, 2000, p. 69.
63
JOUTARD, P. Desafios à história oral para o século XXI. In: História oral: desafios para o
século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz / Casa de Oswaldo Cruz / CPDOC - Fundação Getúlio
Vargas, 2000, p. 34.
64
Id.
23
(...) o recurso à memória pode possibilitar muito mais, à medida que permite descortinar
situações conflitivas, discriminações, jogos de poder entre pessoas e grupos sociais e
processos como o de construção de identidades, uma vez que memória e identidade se
encontram imbricadas. Isso significa que o processo de memorização possibilita reconstruir e
redefinir continuamente as identidades tanto individuais quanto coletivas (. . .). 66
65
FERREIRA, M. de M. ; FERNANDES, Tama Maria & ALBERTI, Verena. História oral:
desafios para o século XXI. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz / Casa de Oswaldo Cruz / CPDOC -
Fundação Getúlio Vargas, 2000, p. 13.
66
BERNARDO, T. Memória em branco e negro: olhares sobre São Paulo. São Paulo: EDUC:
Fundação Editora da UNESP, 1998, p. 30.
67
Ibid., p. 29.
24
68
HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990, p. 34
69
BOSI, E. Memória e Sociedade : lembrança de velhos. 2. Ed. São Paulo: T A. Queirós,
1987, p. 55.
25
Para captar estas memórias utilizamos em nossa pesquisa a entrevista (que foi
gravada por um gravador sonoro) que é denominada "momento da comunicação".
Através da entrevista obtivemos os depoimentos, que são os relatos ofertados pelos
depoentes, porém relatos de coloquios específicos. A entrevista então, se torna dirigida
para o assunto pesquisado.
As pessoas escolhidas para os depoimentos foram selecionadas por pensar que
estas prestariam as informações sobre o assunto pesquisado. Assim sendo, foram
desenvolvidas entrevistas primeiramente com membros específicos da família
Engelhardt: Alfonso Eduardo Engelhardt (Alfonso), neto do fundador e dono da
padaria juntamente com os filhos*; Eduardo Henrique Engelhardt (Eduardo Henrique),
bisneto do fundador c atual membro da família que permanece como padeiro;
70
HALBWACHS, M. op. cit., p. 34-36.
71
Id.
72
BARROS, Myriam M. Lins de. Memoria e familia. In: Estudos Históricos, vol. 2, n. 3, Rio
de janeiro, 1989, p. 30.
26
E um cliente que às vezes compra mais de uma broa, para deixar durante a semana, para
congelar e para ter durante a semana. E um cliente que admira mais doces, cuques e outras
especiarias também. São os descendentes também. Existe até uma tradição. Porque são
fregueses que se encontram, amigos que se encontram na fila da padaria, aquela coisa assim. E
começam a bater papo na fila da padaria. Então virou um programa de sábado: vamos na
América comprar o pão.
Em relação a estes clientes Lindamir comenta: "Aqueles lá você pode olhar que
são tudo freguês antigo. Quando não vem a mãe vem o filho, quando não vem o filho
vem o neto...".74 Lindamir também afirma que vários deles compram pão para toda a
semana: "Eles põem no freezer e tem alguns que guardam num sacão. Sabe, esses
alemães antigos, eles gostam do pão amanhecido. Que nem minha tia: minha tia fazia,
por exemplo, o pão no sábado e ia até no outro sábado. E aqui são os nossos fregueses.
Se dia de semana, vamos contar que vendam 1000 broas. No sábado vendem 2000*."
O que estes fregueses compram também diferencia. Os clientes que vêm
durante a semana, que são os brasileiros, "os tradicionais de hoje" segundo Lindamir,
* Alfonso tem 80% da padaria e seus filhos Eduardo Henrique e Andréa 10% cada um.
73
ENGELHARDT, Eduardo Henrique. ENTREVISTA. Curitiba, 7 de agosto de 2000.
74
LECHENAKOSKI, Lindamir Gumz. ENTREVISTA. Curitiba, 4 de agosto de 2000.
27
maioria, procuram a padaria nos finais de semana, pois muitos moram em bairros
distantes ou por que este é o dia para comprar a "broa do Engelhardt."*
Dentre estes foram selecionados clientes de diversas faixas etárias (dos vinte
aos oitenta anos), homens e mulheres. Dentre nossos depoentes temos exemplo de:
descendentes de europeus (maioria alemães); imigrantes alemães (um); europeus que
vieram morar em Curitiba (um). Optamos por diversificar a categoria para demonstrar
a atuação da tradição em homens e mulheres, jovens e velhos.
São eles: Elfi Ruth Harlezki (D. Elfi); Ivo Boutin (sr. Ivo); Jaqueline Boutin
(Jaqueline); Walter Kreder (sr. Walter); Petra Gerda Makarov (Petra); Carmem Klas
Garmatter (D. Carmem); Hyzir Bacovis Júnior (Hyzir); Aline Maria Kukolj (Aline).**
Dentre os clientes apenas três não foram indicados por Lindamir: Jaqueline
Boutin, Aline Maria Kukolj e Carmem Garmatter. A primeira é filha de um cliente
apontado por Lindamir, Ivo Boutin. Foi escolhida por acharmos interessante existir
dentre os entrevistados um exemplo desta tradição. Aline foi selecionada por sabermos
que fazia parte da chamada 'clientela tradicional' e por sua idade. E D. Carmem
Garmatter foi selecionada depois da análise das poucas fontes escritas da padaria,
dentre elas, notas de débito de compra datando de 1927, 1933 e 1943-1947. Estas
últimas em nome de Sr. Reynaldo Garmatter. Procuramos então contatar algum
descendente deste senhor como uma forma de comprovar a tradição. Conhecemos D.
Carmem, nora de Reynaldo. Ela, além de confirmar que seu marido freqüentava a
Padaria América, também pertencia à clientela solicitada, recebendo de seus pais a
tradição de comprar nesta padaria.
* a broa de centeio é conhecida por alguns fregueses como a "broa do Engelhardt" ou a "broa
da dona Elza", esposa do fundador.
** A identificação dos entrevistados está em anexo
29
momento da entrevista; reticências entre parênteses (...) indicam que houve uma parte
omitida dentro do trecho selecionado.
Optamos por editar os trechos escolhidos dos depoimentos. As transcrições em
sua íntegra estão de posse da autora deste trabalho.
Em anexo, apresentamos:
30
b) "Clientes tradicinais";
ANEXO 3 : Logotipo dos cartuchos de papel para embalagem dos pães da padaria;
1. PADARIA AMÉRICA
75
MAGALHÃES, M. B. Pangermanismo e Nazismo - a trajetória alemã rumo ao Brasil.
Campinas, SP: UNICAMP/FAPESP, 1998, p. 19
76
WACHOWICZ, R. C. História do Paraná. 2 ed. Curitiba: Editora dos professores, Í968, p.
113
77
VICTOR, N. "A terra do futuro - impressões do Paraná". Rio de Janeiro: Typ. do "Jornal do
Commercio", de Rodrigues & C, 1913, p. 99
32
Para Nestor VICTOR, as ruas mais comerciais da cidade neste final de século
XIX e início de século XX eram a rua Fechada (depois José Bonifácio), a rua XV de
Novembro (Rua das Flores), a antiga praça de Pedro II, que era vulgarmente conhecida
como pátio da matriz (praça Tiradentes), a rua do Riachuelo, os arredores do mercado
e trechos da rua Aquidaban (rua Emiliano Perneta). Ali se acomodavam carroças de
russos e polacos, falando seus idiomas, na frente de casas de comércio alemãs. Sabia-
se que eram alemãs pelos seus letreiros, pelo donos das lojas ou pela arquitetura de
suas construções, pois o próprio aspecto físico da cidade foi se modificando por
-TO
78
Ibid., p. 100-106
79
Ibid., p. 106.
* Esta sociedade tinha por objetivo principal auxiliar economicamente seus socios, quase todos
artesãos, em caso de doença, acidente ou morte. A residência de Eduard F. Engelhardt situada na rua
São Francisco foi a primeira sede da sociedade. Depois mudou-se para a rua Carlos de Carvalho, em 8
de março de 1896.
80
SOCIEDADE RIO BRANCO. In: Dicicionario Histórico-biográfico do Estado do Paraná.
Curitiba: Livraria do Chain/ Banco do Estado do Paraná, 1991, p. 472
33
81
VICTOR, N. op. cit., p. 107
82
SANTOS, C. R. A. dos. História da..., p. 107
83
PEREIRA, M. R. de M. Semeando iras rumo ao progresso. Curitiba: Editora da UFPR,
1996,p.39
84
SANTOS, C. R. A. dos. História da ..., p. 150.
34
Eduardo Engelhardt com um bolo feito na padaria de seu amigo em 1913. "Padaria [...] de Alberto [...]
Curityba, 1913" Acervo: Padaria América
A padaria objeto de nossa pesquisa - "Padaria América" - foi fundada na rua
Sete de Setembro esquina com a rua Alferes Poli. Nesta época era também um
armazém de secos e molhados, e era conhecido como "armazém de secos e molhados
da D. Elza" - a esposa de Eduardo que trabalhava no balcão. Ela dedicou 43 anos de
85
ENGELHARDT, Waldemar Arthur. ENTREVISTA Curitiba, 10 de agosto de 2000. O
início da entrevista não pôde ser gravado, somente feitas algumas anotações.
35
sua vida como vendedora da padaria. Segundo Lindamir, "...até hoje pedem a broa da
Dona Elza."
A padaria ficava ao lado da cervejaria do pai de Eduardo, e era de lá que saía o
fermento para a fabricação de seus pães. Segundo dr. Waldemar, sobrinho do fundador
da padaria, havia uma outra padaria chamada "Wulkov" situada na frente da Padaria
América e para evitar a concorrência a padaria mudou de lugar. Ela ficava situada na
região Sul da cidade, uma região menos urbanizada. Um ano depois, em 1914, a
padaria foi transferida para a rua Trajano Reis, na época rua América*, esquina com a
rua Paula Gomes, na região Norte de Curitiba, onde agora é o bairro São Francisco.
Nesta região estava também o comércio da cidade e os fregueses da padaria: os
imigrantes alemães. Nesta época o reduto alemão era a rua Treze de Maio, então
chamada Rua dos Alemães e arredores. Ali estavam - e ainda permanecem - a Igreja
Luterana (em frente à padaria) e o clube Concórdia, ambos freqüentados por alemães.
Em 1915, a "Cervejaria Glória" fechou e foi necessário que se procurasse bom
fermento. íMmeiramente começaram a comprar o fermento da "Cervejaria Atlântica".
O fermento era de má qualidade, então trocaram para a "Cervejaria Providência".
Bruda relata em uma reportagem, que mais tarde seu pai fez um "pequeno laboratório"
próprio para fazer o fermento dele: um pouco de fermento de cerveja e fermento de
batata. A partir daí a padaria prosperou e se firmou.
Ainda sobre fermento, segundo Alfonso e anotações de Bruda, a padaria foi a
primeira a realizar experiências com o fermento Fleischmann, na década de 1930 .
* A rua Trajano Reis se chamava nesta época rua América. Daí o nome da padaria.
36
Em sua obra lançada em 1913, Nestor VICTOR afirma que a fartura observada
no final do século XIX e os bons preços já eram coisas do "século passado". As
carroças que tomavam o comércio já não eram mais vistas, e a explicação que se dava
era que isto ocorria em conseqüência do surgimento das estradas de ferro. O autor
também nos conta sobre sua admiração quando se deparou com tantos edifícios,
segundo ele, "modernos" e que já não tinham aparência da arquitetura alemã, pois
italianos também estavam na disputa do ofício de mestre-de-obras. Também falou
sobre a elegância de homens e mulheres, que já não exibiam característica
"provinciana": "... estes estavam ganhando outro andar, outra attitude, muito mais
cidadã que de outr'rora. Sensível melhora no vestir masculino, e todos de barba feita,
como no domingo antigamente. (...) E eu notava que os cumprimentos agora já eram
QQ
89
VICTOR, Nestor. Op. cit., p. 122.
90
SANTOS, A. C. de A. Memórias..., p. 60.
91
BOLETIM INFORMATIVO DA CASA ROMÁRIO MARTINS. O cotidiano de Curitiba
durante a II Guerra Mundial. Curitiba: Fundação Cultural de CuritibaVol. 22, n. 107, outubro, 1995,
(67 p.), p. 59.
39
década de trinta, a revolução no tempo do Getúlio, e essas coisas todas; revolução de 64... E
crise, e mudança de moeda e tudo. E nós estamos aí. Então sei lá... Isso aí pra mim é um... é
um... Como é que se diz? É um ponto de referência. Você vê aí quanta indústria que montou.
Aí se tornaram uma potência e depois faliram. Não agüentaram a crise. E nós aí, estamos
fazendo pão desde 1913, entende? Com dificuldades e tudo, mas estamos aí. Estamos
trabalhando, estamos dando emprego, estamos gerando emprego. Mais do que muita
multinacional por aí. Que nem onde eu moro: tem uma multinacional alemã, uma enorme de
uma indústria. Hoje deve ter, no máximo, uns 40 funcionários. E eu, com uma padariazinha,
tenho 30. Entende?
Em 1928 a Padaria América mais uma vez mudou-se para o lugar de onde não
mais saiu: rua Trajano Reis, esquina com a rua Carlos Cavalcanti. Nesta época era uma
padaria de 200 metros quadrados com 3 funcionários.
A partir de 1930, além de uma aumento constante do custo de vida, houve um
aumento populacional causado pela chegada de famílias do interior do Paraná e de
estados vizinhos, atraídos pelo mercado curitibano. Com isto ocorreu a queda brusca
de oferta de trabalho.92
Já no final desta década de 30, Curitiba abrigava 140 mil habitantes e os limites
do município não iam além dos bairros São Lourenço, São Casemiro do Taboão,
Bacacheri, Guabirotuba, Portão, Vila guaira e Alto Cajuru (hoje, Jardim Botânico). O
Paraná vivia um período de crescimento econômico, em conseqüência das novas
estradas que possibilitavam a circulação da produção agrícola.93
92
BOLETIM INFORMATIVO... p. 5
93
Id.
Ibid, p. 6.
40
Lá por meados de 1942 houve o negócio da guerra. (,..)Não adormeci. Levou uma hora e
pouco, um barulho danado. Saltei da cama e pus a farda. Pendurei aquele arreio com a pistola
e fui descendo a escada. O tio Eduardo vinha subindo e disse: "Waldemar, estão invadindo o
armazém! Quebraram a janela!" Ai eu entrei em frente e estava um camarada sentado em cima
do balcão - era diferente dividido ao meio - arrancando a caixa [registradora], (...) Uma série
de fregueses moradores dali: "Aqui moram brasileiros!" O camarada correu porque eu peguei
minha pistola. (...) Já tinham arrancado a caixa lá para fora e foram embora. Lamentavam:
"Como é que puderam fazer isso com vocês brasileiros"...
* Dr. Waldemar fez questão de frizar que estas pessoas seriam judeus que moravam perto da
padaria: "Eu repito isto: estes que instigavam os brasileiros contra os germânicos descendentes de
alemães." Ele diz "só pode relatar sobre a história aquele que viveu a história." (!)
** Fatos relatados também no BOLETIM... p. 6-7.
41
... todas as panificadoras passaram por dificuldades por causa da falta de trigo. Com a guerra,
o trigo vinha dos Estados Unidos e do Canadá*. O trigo vinha e era distribuido quase como
que pelo governo. Tinha muita gente interessada, intermediários. Então era fornecido em
forma de cotas: vinha com menos peso, faltava, não tinha e, assim por diante. Eram vendidas
com notas. A gente comprava 10 sacos de trigo, daqui a pouco aparecia notas de 15, 20 sacos.
... No meio daquilo tudo, Bruda era encarregado de transportar, de carroça, os pães para os
bairros mais distantes. "Eram verdadeiras viagens e, geralmente, os fregueses nem tinha
dinheiro para pagar. Faziam isso com mercadorias", recorda. Recebia-se mel, frios, e com eles,
criavam-se receitas para utilizar essas matérias-primas em novas iguarias que enfeitavam o
balcão de madeira escura da padaria.98
A partir de 1943 passaram a faltar alguns produtos como o açúcar, carne, sal,
manteiga e trigo. Segundo Bruda "Houve escassez de matéria-prima e sofremos
boicote dos fornecedores"99. O racionamento da farinha de trigo e do açúcar ocasionou
uma adaptação aos hábitos alimentares da população da época. Na falta de pão de trigo
comia-se broa de milho, batata assada ou polenta frita e no lugar do açúcar usava-se
mel, açúcar mascavo, leite condensado (caro e raro na época) e até mesmo balas
96
BOLETIM... op. cit, p. 7
* de acordo com o "Boletim Informativo da casa Romário Martins", o trigo era importado da
Argentina.
97
BOLETIM INFORMATIVO... op. cit, p. 12.
98
Bruda em entrevista à URBAN, R. G. "O velho e o pão". Paraná & Cia. Curitiba, 28 de
fevereiro de 1998.
42
caramelizadas, como a Aymoré. Para se obter açúcar ou pão longas filas eram
enfrentadas, tendo muitas vezes que acordar de madrugada para se obter o desejado.100
... faltava mercadoria. Fazia-se o pão, a freguesia vinha buscar o pão, estranhos vinham buscar
o pão, que não eram fregueses. Curitiba era menor. Mas, como estava faltando trigo em toda
parte, vinham buscar lá. Os fregueses ficavam sem, então a gente tinha que guardar o pão para
eles. (...) e veio pela primeira vez, uma coisa que ninguém conhecia: inflação...101
Eduardo teve três filhos: o mais velho não quis trabalhar na padaria; a filha mais
nova casou e também não se interessou pelo negócio. Foi o filho do meio, Ewaldo
Ernesto (mais conhecido como Bruda) quem continuou no ofício.
Quando Bruda nasceu, a padaria ainda estava situada na esquina de baixo onde
ela fica atualmente. Ele viveu na padaria ajudando seu pai até o seu casamento com D.
Lídia.
Em 1957, depois de um derrame cerebral ter acometido Eduardo Engelhardt,
Bruda teve que assumir a padaria e voltar a morar nela. Neste mesmo ano, ele a
registra como "Padaria América".
100
BOLETIM INFORMATIVO... op. cit., p. 35.
101
ENGELHARDT, Waldemar Arthur. Op. cit.
102
OLIVEIRA, Clecio Vargas. "Padaria América - Há 73 anos fazendo com capricho, o pão
nosso de cada dia". Indústria e Comércio. 17 de julho de 1986.
43
Nascido em 1917, aos nove anos já ajudava seu pai levando sacolas de pão para
clientes durante a trajetória da escola. Com dez anos de idade aprendia as primeiras
lições da profissão. Como seu pai, ele próprio fazia os pães e doces da padaria. Bruda
faleceu em 1999, com 82 anos, na casa onde foi sua moradia e seu trabalho. Mesmo
antes de sua morte, já doente, ele ainda ia para a produção fazer alguma massa mais
leves, algum doce.
Em outra reportagem do jornal "Gazeta do Povo" intitulada " 'Seu Bruda' é o
padeiro mais antigo da cidade", é descrito o cotidiano deste padeiro: "Levantar bem
cedo, vestir o avental branco, um gorro alto como se usava antigamente e preparar o
pão para consumo de milhares de curitibanos. O mais antigo padeiro em atividade na
capital, Seu Bruda afirma que tem paixão pelo trabalho destacando: 'não dá para parar,
senão fico doente'."103 Pensamento que ele levou consigo nestes 42 anos de trabalho.*
E a reportagem continua: "Muitas memórias (...) e algumas receitas guardadas a
sete chaves que só ele conhece, é o que diferencia o 'Seu' Ewaldo de outros vinte mil
padeiros do Paraná, cinco mil dos quais da região metropolitana de Curitiba". A
padaria é a única da cidade que tem a receita original da torta "Aída", trazida da
Alemanha por uma cliente de Eduardo. Feita com camadas tipo de pão-de-ló, creme de
manteiga, nozes e chocolate, diz a estória que a especiaria tem este nome por ter sido
presenteada ao compositor italiano Giuseppe Verdi (autor da ópera Aída) por um
padeiro alemão, inventor da receita.104
Esta torta começou a ser produzida, segundo Dr. Waldemar, em 1940. E uma
torta com nove camadas de massa tipo pão-de-ló, assadas separadamente, recheadas
com um creme de manteiga, nozes e chocolate. Segundo Alfonso, só eles têm a
receita: "Segundo me consta, foi uma das primeiras freguesas que trouxa a receita. (...)
e essa torta ninguém faz aí. E uma torta muito trabalhosa, e hoje o pessoal... as coisas
têm que ser mais rápidas.". Lindamir diz que "... só os fregueses antigos, só aqueles
103 " ^ o s 74 ANOS, 'Seu Bruda' é o padeiro mais antigo da cidade." Gazeta do Povo. 4 de
julho de 1992, p.
* Bruda em todo este tempo só tirou férias para ir à praia por uma semana, (sua família teve
uma casa na praia por 30 anos)
104 w _
44
bem 'antigão' mesmo que conheciam a torta Aída." Segundo ela, hoje ainda tem
fregueses que não conhecem a torta. Por isso, agora estão começando a vendê-la aos
pedaços. A cliente Dona Elfi nos relata o que sabe sobre a torta:
A torta Aída... famosa... Ela é recheada. Tem vinte camadas de recheio (sic). Ela é assada (...)
pedaço por pedaço. Ela não é assada e depois cortada. Cada fatia é assada por si e depois é que
eles juntam. Então, eles só aceitam encomenda dela, e geralmente pro Natal, que tem mais
saída. E ela é tipo assim... seco. Mas recheada, eu acho que, com doce de leite. Não sei bem.
Não consigo definir. Então eu acho interessante esse nome Aída. Não sei por quê. Porque eu
sempre digo "é a ida ou é a volta (risos)". (...) e daí quando chega o Natal, eles já tem um
cartaz no balcão "só aceitamos encomenda da torta Aída até tal e tal dia". Porque é muito
trabalhosa. Imagina fazer folha por... fatia... como é que seria... bolachas, vamos dizer assim.
Fininhas assim... Até que ela é bem alta. Você já viu ela, não é? 105
105
HARLEZKI, Elfi Ruth. ENTREVISTA. Curitiba, 7 de junho de 2001.
106
ORTIZ, R. op. cit., p. 78
45
Este aproveitamento dos produtos locáis era feito por Bruda e seu pai. É só nos
remetermos à passagem citada em que se comenta sobre a época da Segunda Guerra,
quando Bruda recebia pelos pães entregues mel, frios e outro tipo de matéria-prima.
Com estes produtos faziam-se novas especialidades.
Todas as compras era ela que fazia. E, naquela época, para você ter idéia, a gente vendia desde
uma agulha até panelas de alumínio, porcelana... Tudo isso a gente vendia. Era padaria e
armazém. Era armazém de "secos e molhados". Então o que a pessoa queria... Até querosene
nós vendíamos! Querosene à granel... por litro! O pessoal vinha com o litro aí e a gente vendia
o querosene. Os cereais a gente vendia à granel aí. Então era outra época. E, deixa saudades...
O povo era bem menos exigente do que hoje. O pessoal antigamente (...) cada um que vinha
comprar o pão vinha com a sua sacola. E hoje, não. Hoje o que você gasta com embalagens
aí... E pensar que essas embalagens vão tudo para os lixões e não decompõe depois. Quantos
anos precisa para decompor isso...
... então domingo tomavam conta da padaria fazendo os produtos de Natal delas (as clientes da
padaria). E aí tinha mais uma freguesa que foi... Meu avô a considerava a primeira freguesa
efetiva dele, sabe? Ela morava aqui, na rua Paula Gomes. Chamava-se Dona Júlia e era uma
senhora de descendência alemã. Aí vieram morar aqui na cidade, eles moravam na colônia
Alfonso Pena, no sul do aeroporto ali. Tinham uma propriedade rural lá. Então ela trazia...
Fazia os pães em casa e vinha aqui para assar. Com bastante semente, bastante integral (os
pães) e, alguma coisa de receita ela deve ter passado também pro meu avô, sabe? Ficavam
sentados os dois aí conversando um tempão. Era bonito de ver isso! Hoje não existe mais...
Naquele tempo ela vinha correndo com as formas na mão. Hoje é capaz de derrubarem ela de
tanta gente que passa correndo aí.
família. Alfonso somente quando casou, mudou-se para outra residência. De acordo
com HALB WACHS "não é na história apreendida, é na história vivida que se apóia a
nossa lembrança".108 E de acordo com Myrian Lins de BARROS: "No ato de lembrar
nos servimos de campos de significados - os quadros sociais que nos servem de pontos
de referência. As noções de tempo e de espaço, estruturantes dos quadros sociais da
memória, são fundamentais para a rememoração do passado na medida em que as
localizações espacial e temporal das lembranças são a essência da memória."109
Alfonso se valeu da padaria, sua casa, para reconstruir suas lembranças.
A infância de Alfonso também ocorre na mesma época que a infância de Petra.*
A padaria também "desperta" as lembranças da infância de Petra através das
"...bolinhas de chocolate com amendoim que a gente levava para casa (...) e a broa. A
broa fresquinha, que é uma delícia...."110 Esta era a época em que ela estudava no
Martinus.**
107
Bruda em reportagem para PEREIRA, Ana Cristina. "Padaria América completa 80 anos e é a
mais antiga de Curitiba - as broas de centeio e integrais continuam sendo o carro-chefe."
108
HALBWACHS, M. op.. cit., p. 60.
109
BARROS, M. M. L. op. cit., p. 30
* ambos nasceram em 1945
110
MAKAROV, Petra Gerda. ENTREVISTA. Curitiba, 13 de junho de 2001.
** Além de Petra, mais duas clientes também estudaram neste colégio. As três relatam de suas
infâncias e vinculam o Martinus e a padaria à estas infancias. As três infancias são em tempos
diferentes: década de 50 para Petra, década de 60 para Jaqueline, década de 80 para Aline.
1,1
STRÄUBE, E. C. O predio do gymnásio - 1903-1910. Curitiba: SEEC, 1990, p.12.
47
volta, não tinha prédio nenhum... Tinha pinheiros em volta, tudo... E eu dizia: 'Meu
Deus! Como cresceu Curitiba! Credo...' " U 2
Em 1953 ocorreram as comemorações do centenário da emancipação política do
Estado do Paraná. Para esta comemoração muitas obras foram iniciadas: Teatro
Guaira, Biblioteca Pública, Centro Cívico.
Nesta época Bruda também entregava os pães, mas não era mais de carroça -
como na época da Segunda Guerra. Sr. Walter é quem comenta:
No começo tinha uma outra padaria lá perto onde eu morava, na rua Mateus Leme. Também
de alemão. A América depois, mais ou menos, me lembro bem, em 1955 quando nasceu
minha filha. O Bruda, ele entregava pão. Ele tinha uma caminhonete e entregava o pão em
casa. Então, morava na Xavier da Silva, então assim já conhecemos ele bem e, sempre
quando... Depois mudamos. E aí, não entregavam mais, ou ele parou. Não sei bem da vida
dele.113
1,2
GARMATTER, Carmem Klas. ENTREVISTA. Curitiba, 18 de setembro de 2001.
113
KREDER, Walter Kreder. ENTREVISTA. Curitiba, 8 de agosto de 2001.
114
Bruda em entrevista à GUIMARÃES, Mariângela. "Uma América feita de esperanças, pães
e doces." Jornal do Estado. Curitiba, 29 de abril de 1993. Espaço Dois, p. 1- C.
115
Bruda em entrevista à PEREIRA, Ana Cristina. "Padaria América completa 80 anos e é a
mais antiga de Curitiba - As broas de centeio e integrais continuam sendo o carro-chefe". Jornal do
Estado. Curitiba, I o de julho de 1993.
48
A passagem do ofício se deu de uma forma natural, à medida que este ajudava seu avô.
O filho mais velho de Alfonso, Carlos Alberto, também trabalha na parte da produção
da padaria*. Hoje Alfonso, Andréa e Eduardo Henrique são sócios na padaria.
As receitas e o modo de fazer são repassados de pai para filho e, deste, para
seus netos. Bruda falece, passando Alfonso e seus filhos a administrar a padaria como
um todo. Eduardo Henrique assume a produção dos pães. Alfonso relata emocionado:
"Meu pai nasceu e morreu dentro desta padaria. A vida dele era isto. Ele amava o que
fazia."
Foto retirada na produção da padaria. Da esquerda para direita: Alfonso, Andréa, Carlos Alberto,
Bruda e Eduardo Henrique. Início de 1990. Acervo da Padaria América
Carlos Aberto foi o primeiro neto a receber os ensinamentos de Bruda. Porém nunca
permaneceu por mais de três anos seguidos na padaria: De acordo com sua carteira de trabalho, entrou
em 1985 e saiu em 1987; retornou em 1992 e saiu em 1993; voltou em 1995 e saiu em 1998.
Recentemente ele retornou, em abril de 2001 e ainda trabalha na padaria na parte da produção.
49
marzipã, as cocadas (consideradas por Bruda como os "brincos da casa") ficaram sob
sua responsabilidade. Segundo seu pai Alfonso, se algum funcionário precisar fazer
alguma destas especiarias talvez até consiga, mas o produto final não ficaria da mesma
forma. Como já foi mencionado, os grandes chefs têm que estar presente em todas as
etapas de uma elaboração. É necessário o toque artístico do profissional, a
característica artesanal, que distingue a sua das outras preparações. Segundo Alfonso,
hoje Eduardo Henrique é "peça fundamental na padaria".
Alfonso não quis seguir o ofício de seu pai e avô. Hoje tem uma fazenda e mora
nela: "Eu não gosto. Eu realmente não gosto de comércio. Eu sou mais chegado à parte
de agricultura, de criação de pecuária, do que... sabe. Gosto mesmo (enfatiza), sabe.
Como meu pai gostava disso aqui, eu gosto do interior, sabe. Eu me sinto um
ruralista..." Esta fazenda fornece alguma matéria-prima para a padaria, como requeijão
e bananas. Bruda comentou em uma reportagem: "Meu filho tem uma chácara onde
produz o requeijão usado pela padaria, seguindo os padrões de qualidade aplicados
aqui."116
Alfonso prefere a vida rural mas: "... a gente não quer terminar com isso, sabe?
Se eles [os filhos] não estivessem tocando aqui, eu já teria encabeçado isto, mesmo a
contra-gosto, mas para manter a tradição, o sobrenome..."
Para Bruda o seu maior orgulho era manter sua clientela: "O que mais me
emociona é que nossa clientela, formada por imigrantes e seus descendentes sempre
foi fiel".117 Bruda relata em outra reportagem: "Isto é até um fato curioso, a nossa
clientela não é da redondeza, mas de outros bairros, alguns até bem distantes e de
outras cidades ou municípios de Curitiba, como Campo Largo e São José dos
Pinhais".118
1,6
FRANCO, A. P. "História à mesa". Gazeta do Povo. Curitiba, 31 de janeiro de 1999.
117
URBAN, R. op. cit.
118
MICHEL, N. (responsável). "Aprovado pelo imperador". Gazeta do Povo. Curitiba, 3 de
outubro de 1993. Viver Bem, p. 13-14.
50
119
No momento das entrevistas com Alfonso, Andréa, sua filha estava presente. Em alguns
trechos dos relatos ela tece comentários, que também foram gravados e transcritos. Alguns trechos
destas intervenções foram utilizados na pesquisa.
* "Gula" é uma revista da editora Camelot especializada em gastronomia.
51
para mim e pede para eu mandar...". Alfonso diz que é o pumpemikel e completa:
"Você veja, o cliente mudou daqui e ele ainda está sentindo o gostinho..."
... os indivíduos se sentem emocionalmente ligados aos hábitos alimentares de sua iníancia,
em geral marcados pela cultura tradicional. A perpetuação do estilo alimentar original na vida
cotidiana ou no calendário das festividades é uma prova da autenticidade e da coesão social e
uma defesa contra as agressões externas, inclusive no caso da imigração.121
120
GIARD, L. op. cit., p. 250
121
GARINE, I. de. Alimentação, culturas e sociedades. In: O CORREIO. Rio de Janeiro,. 15, n.7,
p. 5,jul. 1987
122
GIARD, L. op. cit.
52
Os relatos que Andréa faz contando sobre os clientes da Padaria América que
foram morar em outras cidades brasileiras nos fazem concordar com os autores
citados. São indivíduos que se prontificam a ligar para uma determinada padaria,
situada em outra cidade, solicitando receitas. Neste sentido, a própria Andréa em sua
intervenção, já tece uma justificativa, dizendo que lá não tem nenhum lugar que venda
broas como ele estava acostumado a comer aqui. E ela dá outro motivo: ele é
descendente de alemães também. O cliente, segundo Andréa, comenta que lá só tem
"pão francês" para comprar, e o pão é horrível. Também Alfonso justifica o
comentário do cliente: Para eles lá é muito gostoso, mas para o nosso paladar, aí já é
complicado.
Alfonso quer dizer que para aquela cultura, para aquela sociedade, aquele
determinado tipo de pão é adequado. Já para a nossa cultura "curitibana", para a nossa
sociedade, para este determinado "paladar" não é um pão que satisfaz. Quando
Alfonso se refere ao "nosso paladar", ele se refere ao paladar do descendente de
alemão ou europeu em geral, ou seja, ele e sua família bem como o cliente da Padaria
América.
E acrescenta: Você veja, o cliente mudou daqui e ele ainda está sentindo o
gostinho. Ou seja, ainda permanece com seus hábitos alimentares. Estas pessoas têm
hábitos alimentares diferentes daqueles outros brasileiros. Um destes hábitos desta
parcela de curitibanos é o comer a broa de centeio da Padaria América.
influência alemã sobre a alimentação dos curitibanos através dos kuques cobertos com
farofa, do pão-de-mel coberto com chocolate, do mel, das compotas, das tortas de
frutas, da banha de porco.
Em específico à broa de centeio, este apego à ela ocorre pelo fato de que por
muito tempo o centeio, mais resistente e desenvolvendo-se facilmente nas terras mais
pobres e em climas bastante frios, foi o cereal dominante na Europa. O recuo
progressivo do centeio diante do trigo é uma das manifestações do progresso das
técnicas agrícolas e do nível de vida no Ocidente.124
D. Elfi, faz a seguinte colocação: "... meu marido é da Ucrânia. Lá também tem
esse tipo de... Lá na terra dele, pão branco é de alto luxo. O que eles usam lá é o pão de
centeio direto. E, aqui o mais comum é o pão de trigo, pão branco. E lá é ao contrário.
Alto luxo é lá. Apesar de eles serem grandes planta... E...como é que eles chamam...
Plantação de trigo, eles têm muito lá. É. Para eles lá é o de centeio. Para uso diário."
A broa de centeio então, era o pão dos colonos: alemães, poloneses, ucranianos,
pois além de se constituir de um pão "típico" de seus países de origem era um pão de
baixo custo, como já foi comentado anteriormente.
Em conseqüência de ser o pão o principal alimento do colono, ocorreram
políticas de fomento à produção de trigo* . Com isto esperavam atrair os imigrantes.
Carlos Roberto Antunes dos SANTOS comenta este fato: "A partir da
promulgação da Lei de n. 939, o Presidente da Província do Paraná José Francisco
Cardoso, em relatório apresentado à Assembléia Legislativa, manifestava a intenção de
estimular a produção de trigo, para atrair ao colono, cujo alimento principal é o pão
[destaque do autor]**."125
Então, a partir da segunda metade do século XIX inicia-se uma campanha para
a produção de trigo no Paraná para tentar diminuir a importação do mesmo. Já em
124
REVEL, op. cit., p. 87
* Não podemos esquecer que para fazer qualquer especialidade de pão, metade da farinha usada,
no mínimo, tem que ser de trigo. Então o trigo era também cereal fundamental para esta produção.
** escrita em itálico para destacar frase retirada do relatório do Presidente da Província Dr. José
Francisco Cardoso, apresentado à Assembléia Legislativa do Paraná em 01.03.1860.
125
SANTOS, C. R. A. dos. História da ... Op. Cit., p. 144-145.
54
1855 um texto sobre a importância do trigo e suas vantagens sobre o milho foi escrito
no jornal "O DEZENOVE DE DEZEMBRO". Aqui está um pequeno trecho das
vantagens descritas neste jornal:
Comparado o milho ao trigo da Europa, diz Mr. De Humboldt, tem aquelle a desvantagem de
conter menor quantidade de substância nutritiva em um volume muito maior. Isto bastaria para
preferir em igualdade as circunstancias o cultivo do trigo e seu emprego como alimento, ao
cultivo e uso do milho; porém ainda há outros motivos para o preferir que não são
desprezíveis. O cultivo é muito menos laborioso que o do milho (...) A sementeira deste que
se faz espalhado, é muito mais ligeira, e muito menos laboriosa que a do milho. Este cereal
para ser bem conservado exige três lavras, e o trigo uma vez semeado não exige lavra
alguma.(,..)126
de obra nacional, pois esta não detinha as novas técnicas para o cultivo do trigo.
Ou seja, a explicação do plantio de trigo seria para atender ao hábito alimentar
dos colonos, porém ao mesmo tempo era necessário trazer este imigrante para plantar
o trigo...
Roseli Maria Rocha dos SANTOS em sua tese intitulada "O trigo no Brasil"
discorre sobre como o trigo foi introduzido no Brasil, reformulando hábitos
alimentares. Segundo a autora, o trigo sempre obteve uma maior atenção por parte dos
governantes no Brasil. Pode-se até dizer que o trigo é uma invenção estatal, tão grande
128
foi o papel do Estado na fixação do trigo em solos brasileiros.
126
O DEZENOVE DE DEZEMBRO, dê 04.02.1855. apud SANTOS, Carlos Roberto Antunes
dos. História da Alimentação.... Op. Cit, p. 146
127
SANTOS, C. R. A. dos. Op. cit., p. 146.
. 128 SANTOS, R. M. R. dos. O trigo no Brasil : estruturas e estratégias sociais. Curitiba, 1992.
Tese (Professor Titular em Sociologia Rural) - Departamento de Ciências Sociais, Universidade
Federal do Paraná, p. 23-24
55
Em algumas regiões como a França, Espanha e Itália as pessoas passaram a temer pela
identidade cultural sempre que ameaças pesaram sobre as tradições culinárias. Receiam que a
* esta enquete não foi publicada e foi realizada pela autora deste trabalho.
** o cuscuz marroquino foi enaltecido durante a exibição de uma novela da Rede Globo.
56
relação privilegiada mantida com a alimentação cotidiana como fonte de prazer, ato de
sociabilidade e comunicação, acabe sendo lentamente corroída, invadida, desagregada por um
inexorável processo que tem o nome de "americanização" e cujo vetor (...) é o hambúrguer.129
129
FISCHLER, C. "A 'McDonalização' dos costumes". In: História da Alimentação. São
Paulo. Estação Liberdade, 1998, p. 845.
130
Id.
57
arte.
Quando comemos alguma coisa que fazia parte de nosso cardápio de tempos
atrás, quando sentimos um gosto característico e dizemos "isto tem gosto de infância",
sentimos que se inicia uma viagem no tempo aonde podemos sentir cheiros, imagens,
sons característicos. Parece que retrocedemos e voltamos a lugares há muito não
vistos, nos vemos novamente nas diversas paisagens da infância, lembramos de gestos,
de palavras, e o melhor: de sensações. São estas lembranças que Proust revela.
Luce GIARD compartilha desta teoria. Conta que sempre havia fugido da
cozinha de sua mãe, por não concordar com aquela função delegada ao sexo feminino :
131
PROUST, M. Em busca do (empo perdido, o tempo redescoberto. 12a ed. São Paulo:
Globo, 1995
132
PROUST, M. Em busca do tempo perdido: o caminho de Swann. 15a ed. São Paulo: Globo,
1993, p. 68.
133
COSNIER, C. Gastronomia de Proust. In: Marcel Proust, o homem / o escritor / a obra. Rio
de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1971, p. 204-218.
58
134
"Eu detestava aquele serviço de mulher, porque jamais era pedido ao meu irmão"
Mesmo constatando que jamais havia aprendido coisa alguma sobre cozinhar, pois
sempre preferiu seu quarto, seus livros, seus jogos à cozinha constatou :
... meu olhar de criança viu e memorizou gestos, meus sentidos guardaram a lembrança dos
sabores, dos odores e das cores. Já me eram familiares todos esses ruídos: o borbulhar da água
fervendo, o chiar da gordura derretendo, o surdo ruído de fazer a massa com as mãos.
Bastariam uma receita ou uma palavra indicativa para suscitar uma estranha anamnese capaz
de reativar, por fragmentos, antigos sabores e primitivas experiências que, sem querer, havia
herdado e estavam armazenadas em mim. 135
Em seu livro: "O Não Me Deixes - suas histórias e suas cozinhas" Rachel de
QUEIRÓS organiza lembranças e receitas da cozinha sertaneja. É no sertão nordestino
que está "Não Me Deixes", fazenda da autora, onde seus filhos e netos passaram parte
de sua infância. Flávio Queirós, neto de Rachel, revela nesta obra:
Minhas lembranças (...) também contém as memórias de sabores até hoje sobreviventes. Ir
para o Não Me Deixes significava mudar completamente os gostos e cheiros, pois a cozinha
sertaneja é muito diferente da que comemos aqui no sul. Até hoje, quando me sento à mesa da
Fazenda, ao provar o feijão-de-corda temperado com coentro fresco e nata de leite, sinto a
lembrança daquele mesmo sabor e do seu impacto distante. O arroz com colorau e o leite
grosso são outros dois sabores que me lembro. (...) Um cheiro que também não posso me
esquecer era o do café, principalmente quando estava sendo torrado... 136
Para Nina HORTA outro tipo de comida que lembra a infância é a denominada
"comida de alma". É a comida que consola, que deve ser comida nos momentos de
tristeza, na hora da dor, da depressão. Ela deve escorregar garganta abaixo sem
precisar ser mastigada. Ela conforta a alma, dá segurança, "(...) lembra a infância e o
costume"137
Isabel ALLENDE em seu livro "Afrodite - contos, receitas e outros
afrodisíacos" também relata que suas lembranças estão vinculadas aos sentidos:
"Passeando pelos jardins da memória, descubro que minhas recordações estão
134
GIARD, L. op. cit. p. 213
13í
Ibid., p. 214
136
QUEIRÓS, R. de. O Não Me Deixes - suas histórias e sua cozinha. São Paulo: Siciliano,
2000, p. 16-17.
137
HORTA, N. Op. Cit., p. 15.
59
i
associadas aos sentidos." Dos seus amores ela também se recorda através dos
cheiros, gostos, texturas: " É assim que recordo os homens que passaram pela minha
vida (...) uns pela textura da pele, outros pelo sabor dos beijos, o cheiro das roupas ou
139
o tom dos murmúrios, quase todos eles associados a algum alimento em especial."
Entendendo também a comida enquanto "despertador" da memória,
acreditamos que um dos motivos que faz com que os clientes continuem a freqüentar a
Padaria América é a procura nos pães, doces, tortas e bolachas da padaria um meio
para despertar suas lembranças.
Uma das últimas indagações das entrevistas se referia às lembranças obtidas
através do pão da Padaria América. Fizemos a pergunta indiretamente: "O que este
pão, esta broa traz para você?" ou "O que significa comer o pão da Padaria América."
Muitos em um primeiro momento, não entendiam a questão. Para estes, a pergunta era
feita de outra forma: "O comer este pão traz alguma lembrança?" ou "Quando você
come este pão vem alguma lembrança?".
Analisemos a resposta de Jaqueline:
Jaqueline também vincula suas lembranças ao espaço, que é uma das formas de
trazer nossas lembranças à tona. Os espaços locais são um dos pontos de referência de
nossa memória. Novamente entramos em acordo com Miriam de BARROS.
Também Michael POLLAK relata a força que estes diferentes pontos de
referência que estruturam nossa memória exercem sob a memória coletiva: os
138
ALLENDE, I. Afrodite- contos, receitas e outros afrodisíacos. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1998, p. 10.
139
Ibid., p. 11.
140
BOUTIN, Jaqueline. ENTREVISTA. Curitiba, dia 30 de junho de 2001.
60
141
POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, vol. 2, n. 3, Rio de
Janeiro, p. 3.
142
SANTOS, A. C. de A. Memórias e cidade..., op. cit., p. 21
61
ficam conversando sobre assuntos familiares, corriqueiros: "Você vê que num sábado
aí, até eu nem tinha conhecimento disso, a Cibele [enteada de Alfonso que também
trabalhou na padaria] estava lá na frente. Daí ela estava contando que o pessoal, a
família, às vezes vem, vem um ou outro irmão, daí vem o pai e estão lá na fila
conversando, trocando idéia sobre assuntos familiares, e estão lá na fila para comprar
pão!" Nesta hora Andréa relata: "se você ficar lá em cima você... Dá bem para a janela
da rua, da calçada ali. Então volte-e-meia eu escutava o pessoal se encontrando ali.
Paravam na calçada e ficavam batendo papo debaixo da janela, contando da vida deles.
Eu acho que eles se encontravam ali comprando pão." Alfonso volta a falar:
Eu vejo que é uma coisa bem diferente (risos). Olha, não vou dizer que nós sejamos os únicos,
mas são poucos que têm esse feito. E a preocupação da gente, às vezes eu vejo a pessoa deixar
aí um carrão no estacionamento, uma mercedes, e você vê que o sujeito fica na fila para
comprar o que nós produzimos. Olha, a responsabilidade é grande! Então você vê o pessoal
que vem aí se sujeitar a ficar numa fila...
143
KUKOLJ, Aline Maria. Entrevista Curitiba, dia 28 de novembro de 2001.
144
MAKAROV, Petra. Op. Cit
62
O chifrinho* antigamente, hoje em dia tem croissants essas coisas todas para comprar. Mas
tinha o chifrinho deles, antigamente, era uma coisa de louco! Uma coisa diferente! (...)
Kraquinel! Eu lembrei do nome da bolacha... Eu adorava!... A gente ia só buscar kraquinel lá
por que não tinha em nenhuma parte em Curitiba ...(...) 0 que é muito bom também é aquela
bolacha pão-de-lozinho que a gente não acha em nenhuma outra parte (...) Essa também é do
tempo, é do meu tempo de criança.
carinho. D. Carmem gosta de lembrar as coisas "do seu tempo" e a Padaria América
faz lembrar "o seu tempo de criança". Vários clientes relataram que a padaria e seus
pães fazem lembrar suas infancias. Ou seja, vários momentos de Curitiba, pois as
infâncias dos clientes estão situadas em tempos diferentes. Década de 20 para Sr.
Walter, década de trinta para Sr. Ivo e D. Elfi, década de 40 para Petra... década de 80
para Aline.
Na fala de D. Carmem está explícito um dos motivos que a faz continuar a
freqüentar a padaria: "...eu vou lá porque eu gosto. Me acostumaram assim também.
Para mim é a melhor broa de Curitiba, porque eu aprendi assim também. Talvez até
tenha outra em volta por aí que eu não experimentei..."146 Além de D. Carmem gostar,
afirmando a importância do "gosto", está outro motivo "me acostumaram a ir lá.". Ela
não sabe explicar bem o porquê. O motivo é que a "acostumaram" a ir. E, a partir do
momento em que ela própria começa a freqüentar a padaria comprando as mesmas
coisas que seus pais compravam, ela renova a tradição. Então, ela mantém esta
tradição e a transmite.*
O "acostumar" a que D. Carmem se refere, vem no sentido de "ensinar". De
acordo com Luce GIARD, nós comemos o que nossa mãe nos ensinou a comer ou, no
caso dos homens, o que a mãe de sua esposa lhe ensinou a comer, "é mais lógico
acreditar que comemos nossas lembranças, as mais seguras temperadas de ternura e de
ritos, que marcaram nossa primeira infância."147. Acreditamos também, que o contrário
pode ocorrer, ou seja: comemos também o que nossos pais nos ensinaram a comer e o
que a mãe de nosso marido lhes ensinou a comer**.
Petra também menciona que foi "acostumada" e diz que é a tradição:
... quando a gente voltou da Europa, primeira coisa que a minha mãe disse. De tarde, eu estava
cansada, fuso horário arrebentado, tudo. A mãe olhou para mim e disse: "quem que vai na
146
Id.
* no 3o capítulo falaremos a respeito dos conceitos tradição e costume.
147
GIARD, L. op. cit., p. 249-250.
** Na casa da autora deste trabalho, várias tradições alimentares ocorrem por transmissão do
pai da mesma. O próprio comprar e comer a broa da Padaria América foi transmitido pelo pai. E, hoje,
não só nós, os filhos compramos esta broa, como também nossa mãe.
64
Padaria América comprar minha broa?" Então você fica, porque é uma coisa que você está
acostumada a comer e você gosta, você vai buscar de novo. Então é tudo. É a saudade, é a
vontade... E a tradição. Acho que é isso...
feijão tropeiro, lombo de panela, pernil assado, vaca atolada, frango ao molho pardo,
tutu a mineira, couve picadinha, lingüiça, além dos queijos, doces de frutas e de ovos.
Essa comida não faz parte do cotidiano das pessoas dos centros urbanos por serem
muito trabalhosas, pois são feitas em fogões à lenha ou em fornos de barro, e possuem
alto custo. Por isso, este tipo de comida típica faz parte da mesa cerimonial.
Restaurantes tentam recriar este tipo de comida regional para atender ao
turismo, e às pessoas que desejam conhecer os sabores de outros lugares. Mas, de
acordo com o autor, não é só o turista que procura os restaurantes típicos. A população
local também procura por ela com muita freqüência:
Ali elas buscam satisfazer uma necessidade criada pela nostalgia que vem da lembrança da
vida nas pequenas cidades, ou mesmo nas fazendas, de sua origem familiar. As pessoas
buscam, nestes restaurantes, recriar a memória da infância distante, consumindo os pratos
típicos que lhe são oferecidos e que são os mesmos que faziam parte do almoço de domingo
da casa da vovó, conservados tanto na memória afetiva quanto na gustativa.149
Isto é o que ocorre também com muitos dos clientes tradicionais da Padaria
América. Lá é feito o pão típico dos europeus que eles eram "acostumados" - no
sentido de "ensinados" - a comer na infância, em sua casa, na casa da tia, ou na casa da
avó. Alguns eram "acostumados" a comer a "broa do Engelhardt" di ariamente, outros
em ocasiões especiais. Hoje, eles tentam recuperar esta memória afetiva, mantendo a
tradição transmitida por seus familiares, ritualizando o seu comer.
Eduardo Henrique acha que seus produtos trazem prazer aos fregueses: "Ele
deve trazer prazer, não é? Eu acho... Porque a comida traz prazer. O sabor traz prazer.
Eu queria que ele trouxesse muito prazer para meu freguês, com certeza." Esta
indagação de Eduardo é confirmada por alguns clientes quando perguntados o que os
leva a comprar o pão da Padaria América: "Então eu não sei, eu gosto do sabor. (...)
você sente prazer em comer aquele pãozinho. Não é qualquer pão que você come e, às
148
BACOVIS, Hyzir Júnior. ENTREVISTA. Curitiba, 3 de outubro de 2000.
149
RODRIGUES, A. G. Comida típica - comida ritual. Texto apresentado na 23a Reunião
Brasileira de Antropologia em Gramado-RS. 16-19 de junho de 2002.
66
vezes, nem tem gosto. É um prazer."150 ; "Um pão gostoso."151 ; "Por causa da broa,
1 S")
156
Bruda em entrevista. "APROVADO pelo imperador". Gazeta do Povo. Curitiba, 3 de
outubro de 1993.
68
Sobre a torta Aída, D. Elfi comenta: "... já comeu também? Bem sequinha. Eu
acho que ela é... Em um aniversário eu não gosto dela. Mas para o Natal, para a
Páscoa, essas coisas, eu acho que ela combina bem. Por que eu acho ela muito seca."
Dona Elfi diz em quais ocasiões ela é apropriada. Como aqui em Curitiba, nos
aniversários os bolos são bem recheados, para D. Elfi a torta Aída, considerada seca,
não seria adequada a este evento. Mas para o Natal e Páscoa, quando são feitos os
doces alemães, a torta Aída é indicada: "... eu faço as coisas no Natal. Tudo receitas
alemãs e tudo. Faço bolo de requeijão, de nozes ...."
Outros clientes encomendam a torta especialmente para aniversários, como foi
verificado em uma visita à padaria: havia o nome de alguns clientes que tinham
encomendado a torta Aída. Entramos em contato com eles. Um relatou que
encomendou a torta para o aniversário de seu filho de nove anos e outra relatou que
levaria o bolo a um asilo de velhos. Quando perguntamos à última em quais ocasiões
ela comia a torta ela relatou que a torta é encomendada para os dias de aniversário,
157
Páscoa e Natal. Nas casas destes clientes o bolo de aniversário é a torta Aída.
De acordo novamente com Luce GIARD, a comida cerimonial é denominada
"tradicional". Ela, com seus ritos de composição, de preparação e de consumo -
reservada ao dia de sábado; às festas religiosas; à história familiar como casamentos,
nascimentos, aniversários, se torna a manutenção e a "narração da diferença, inscrita
1 CQ
na ruptura entre o tempo alimentar do 'si-mesmo' e o tempo alimentar do outro".
157
A colunista social Margaritta Sansone escreveu em sua coluna "Zoom" na época da morte
de Brada: "... tortas como a Aida, que (...) era a delícia dos aniversários dos curitibanos tradicionais e
ilustres". Gazeta do Povo, 1° de junho de 1999.
liS
GIARD, L. op. cit., p. 250.
69
Para alguns dos clientes entrevistados, 'o pão e os doces da Padaria América têm
outro significado: manutenção da identidade. Este fato só corrobora a nossa tese
quando afirmamos que a comida é o reflexo da organização social e da cultura, assim
sendo, através da alimentação o indivíduo mantém o sentimento de pertença à
determinado grupo social e/ou cultural. Roberto DA MATTA159 também afirma que é
a comida que permite destacar identidades. E conforme o contexto das refeições
podem ser nacionais, regionais, locais, familiares e pessoais.
No depoimento de Petra, ela menciona o motivo que a leva a freqüentar a
padaria: "...acho que por tradição. Acho que a gente tem essas coisas de tradição.
Curitibano é meio bairrista. (...) Você nunca pode esquecer o que você foi no passado,
seja ele bom ou ruim, raízes, não é? (...) a gente tem que ter raízes em algum lugar. A
gente tem que ter raízes em algum lugar." Aline também diz que ir à padaria lembra
um pouco o tradicionalismo de Curitiba. Outros falam que a freqüentam pela tradição,
pura e simples.
Para estas pessoas a tradição é uma forma de manutenção das raízes. O comprar
e o comer o pão nesta padaria é uma forma de se afirmarem como curitibanos, ou
como manutenção dos valores e culturas familiares através da tradição: A gente tem
que ter raízes em algum lugar.
Segundo Solange DEMETERCO: "As receitas culinárias adquirem uma
importância simbólica (...) especialmente nas sociedades urbano-ocidentais, onde os
traços tradicionais tendem a desaparecer, constituindo-se num meio através do qual se
mantém os vínculos a essas tradições e se reconstituem identidades sociais."160
Nos trechos de depoimentos a seguir podemos observar clientes que consideram
o comer a broa de centeio um meio para afirmação de uma identidade étnica. "... eu
acho que faz bem para o paladar do alemão (...). Fui criada com aquela tal da broa, não
159
DA MATTA, R. op. cit., p. 22.
160
DEMETERCO, Solange Menezes da Silva. Doces lembranças: cadernos de receitas e
comensalidade. Curitiba 1900-1950. Curitiba, 1998. Dissertação (mestrado em História) - Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná, p. 48.
70
é?"161. "... geralmente o alemão gosta muito (...) gosta mais de broa, mas... como é que
se diz? E ... centeio.(...) que tem mais calorias (sic). Mais saudável, dizem, que aquele
pão branco (...) Na Alemanha me deram também broa desse tipo lá."162
Um destes clientes é D. Elfi, brasileira, luterana, nascida em Curitiba em 1930,
descendente de alemães: " ...de ambas as partes." Mesmo sendo brasileira, em seu
depoimento identifica-se como alemã. Ela conta: "...então eu via meu avô, depois
minha mãe, minhas tias, sempre indo comprar broa, pão lá. Depois chegou uma época
que eu ia. (...) Então, fez parte da minha vida sempre..." Segundo D. Elfi, suas amigas
descendentes de europeus que moram em São Paulo, quando vêm para Curitiba
também procuram a Padaria América: "E elas acham inclusive bonito o ambiente lá.
Bem alemão assim, não sei.". Quando comenta das tortas e doces que faz no Natal e
Páscoa ela também relata que faz os doces sozinha e: "Tudo receitas alemãs...".
O segundo depoimento é de um imigrante alemão, sr. Walter, que veio para cá
em 1923 com 5 anos de idade. É luterano. Ele conta que seus pais também comiam
broa de centeio quando vieram para Curitiba, mas não conheciam a Padaria América.
Em um momento da entrevista ele comenta a respeito dos netos, que também comem a
broa de centeio quando se reúnem em sua casa aos domingos, e do bisneto, que
acabara de nascer: "...Théo Westphalen Vieira... o avô dele também veio da
Alemanha. Agora, ele [o pai do bisneto] não fala alemão. A neta [refere-se à sua neta]
ela foi no "Goethe", eu ensinei ela, ajudei muito. Tirou, eu acho, que até em primeiro
lugar lá, porque eu ajudava nas lições... sabe que ela esqueceu o alemão! (...) Agora eu
não entendo como... O inglês não....". Sr. Walter comenta um tanto indignado o fato de
sua neta "esquecer o alemão".
VALERI, comenta a respeito do vínculo pátrio dos imigrantes:
... os imigrantes, embora por vezes abandonem todas as tradições do seu país de origem,
permanecem obstinadamente fiéis a algumas tradições culinárias. A ligação simbólica entre
estas e a mãe-pátria pode explicar a sua utilização, consciente ou mais freqüentemente
inconsciente, como critério de identidade étnica: os alimentos que têm este valor simbólico são
161
HARLEZKI, Elfi. Op. Cit.
162
KREDER, Walter. Op. cit.
71
oferecidos aos compatriotas (...) O consumo de certos pratos tem, de facto, o valor de um
verdadeiro culto de origens.163
Outros clientes também afirmam que buscam esta broa por ser um pão que se
assemelha ao pão consumido pelos europeus. Sr. Ivo diz que seu pai já comprava lá,
pois: "... a padaria era conhecida já na cidade. Tem aqueles pães assim, mais especiais.
Afina muito com aqueles pães que vêm da Europa, da Alemanha. Aquele estilo de
broa, aquele pão pesado. Então quem quer aquela qualidade assim, tem que ir buscar
lá."164
Os clientes dizem que a padaria agrada aos alemães porque eles sabem que esta
é a clientela maior da padaria: os alemães e descendentes. Segundo Lindamir, os
clientes que compravam na padaria quando ela começou a trabalhar lá, em 1960,
"...eram alemães mesmo. Ficavam bravos porque a gente não falava o alemão. Mas
eles sabiam pedir as coisas em brasileiro (sic). (...) Agora não, agora eles já são tudo
assim (sic)...". Em nossa observação à clientela do sábado, verificamos que as
características desta cultura predomina entre os clientes da padaria.
Eduardo Henrique, o bisneto do fundador, comenta a respeito da identificação
alemã: "Meu avô tinha muito isso. Nós já não temos mais. Um pouco dessa tradição
toda se perdeu. Ele tinha. Ele tinha esse sentimento, aquela coisa alemã, alemã, alemã.
Os filhos já têm bem menos do que ele, e os netos já quase não têm. Já somos
brasileiros mesmo, sabe, aquela coisa. Não tem como cultuar o que não faz parte da
gente." Porém quando perguntamos qual classificação teria a padaria ele responde:
"Alemã." Eduardo também diz que no futuro, quando abrirem um café, ele servirá os
"doces da família", receitas feitas por seu avô somente em festas da família: receitas
alemãs.
163
VALER1, Renée. "Alimentação". In: ROMANO (org ). Enciclopédia Einaudi. Porto:
Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1984, v. 16, p.206.
164
Este conceito de "qualidade" a que ele se refere, significa espécie, tipo. Mais tarde
falaremos de um outro significado de "qualidade".
72
Carlos Eduardo ABBUD165 faz uma pesquisa sobre dois casamentos e seus
cardápios. Um dos casamento é de um descendente árabe - que não fala o idioma árabe
e não gosta da comida desta cultura, com exceção de alguns pratos já introduzidos na
nossa cultura ocidental. Ele, o noivo, faz questão da presença no cardápio de pelo
menos um prato da cozinha árabe. Quando perguntado sobre o motivo da escolha,
responde que faz questão de mostrar a todos que é árabe, ou seja, quer confirmar sua
origem.
O outro casamento é entre dois judeus. O noivo é ortodoxo e só se alimenta de
comidas preparadas segundo os preceitos ortodoxos da culinária "kosher", isto é, "feita
segundo a supervisão de rabinos e conforme certas regras, baseadas nos preceitos de
Torah e do Talmud"166. A noiva é judia não ortodoxa. Se alimenta de comida "kosher,"
mas também de outras comidas, desde que não contenham ingredientes proibidos,
como a carne suína. Ambos falam o "iídiche", idioma judeu. O cardápio da festa foi
somente comida "kosher" e o motivo para esta escolha foi a manutenção da comida
que estavam acostumados a comer. Sobre a possibilidade de um cardápio alternativo
para os convidados "goyim" - não-judeus - eles responderam que, além de sair mais
caro a presença de dois menus, todos sabiam que eles eram judeus, portanto só
poderiam esperar a comida "kosher". No primeiro caso da pesquisa de ABBUD a
identidade étnica foi resgatada e no segundo caso reafirmada.
Sobre os exemplos descritos, Dennys CUCHE comenta que algumas teorias
chamadas primordialistas, consideram que a identidade etno-cultural é primordial
porque a vinculação ao grupo étnico é a primeira e a mais fundamental de todas as
vinculações sociais:
165
ABBUD, C. E. "Da esfiha à sfyha X da challah à challah: aspectos simbólicos da
alimentação como resgate e/ou reafirmação de identidades culturais." Trabalho apresentado na 23®
Reunião Brasileira de Antropologia realizada em Gramado - RS do di 16-19 de junho de 2002.
167
CUCHE, D. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 1999, p. 179-180.
73
Quando se fala que "este pão faz bem para o paladar do alemão"; "o alemão
gosta muito"; "é importante existir tradição"; "curitibano é meio bairrista"; "lembra o
tradicionalismo de Curitiba", as pessoas estão se identificando enquanto grupo cultural
e social. A tradição então se torna importante para manter a identidade, pois
acreditamos que "a tradição é a memória coletiva de cada sociedade."168 E também
que a memória "permite descortinar processos como o de construção de identidades,
uma vez que memória e identidade se encontram imbricadas " 169
Em nosso trabalho não podemos aprofundar a questão de identidade étnica, pois
a princípio esta não era a questão a ser levantada. Quando alguns clientes dizem que
pertencem a uma etnia alemã, ou que professam tradições alemãs, isto pode não ser
necessariamente verdade, muito embora seja o que eles acreditem. Para tanto, outros
dados deveriam ser pesquisados. Porém acreditamos que há indícios de resgate ou
afirmação de uma identidade étnica no caso dos dois clientes citados anteriormente, D.
Elfi e Sr. Walter, em relação ao "comer a broa de centeio da Padaria América".
2.2 As mudanças
168
HALBWACHS. M., op. cit.
169
JOUTARD, P., op. cit.
* Este incêndio ocorreu na parte da produção (dos pães, tortas, bolachas) da padaria por causa
de um curto-circuito.
170
Bruda relata na reportagem de URBAN, R. G. op. cit., p. 42.
74
" em anexo. Notas adquiridas do acervo da padaria. Nestas notas o endereço é Conselheiro
Barradas, que era o nome da atual Carlos Cavalcanti.
padaria como assessora de marketing. Ela criou o desenho a partir de uma foto de seu
avô.
Neste cartucho de um lado está o desenho de Bruda segurando um pão com os
dizeres: "Produtos Engelhardt - desde 1913". E do outro lado está o logotipo da
padaria com o desenho do produto carro-chefe: a broa de centeio. Nesta parte se
encontram os dizeres: "Desde 1913, a 'Padaria América' é tradição em Curitiba,
fabricando pães e doces para você, que sempre fez questão de nos prestigiar.
Especializada em broas de centeio, kuques, doces, frios, queijos, bebidas e conservas
em geral, a 'Padaria América' continua do mesmo jeitinho que sua avó conheceu."
A parceria de muitos anos com o Moinho Curitibano, presente até mesmo na
placa de entrada da padaria, colocada na década de 1990: "Desde 1913, Padaria
América e Moinho Curitibano: parceria tradição e qualidade"* não existe mais.
Segundo Alfonso, "...se não me engano eles arrendaram o moinho, sabe. Nós tínhamos
uma parceria comercial grande com eles. Nós comprávamos bastante deles, tanto é que
eles nos forneceram a placa, tudo (...) O logotipo ali foram eles que criaram. Foi uma
ajuda que a gente recebeu deles. Mas também, meu avô chegou a ser sócio-acionista
deles."
O término da parceria não ocasionou maiores implicações, pois como conta
Alfonso, a padaria não recebia farinha de apenas um fornecedor e seus padeiros
conhecem a "boa" farinha:
Tanto é que hoje a gente tem farinha aí de três, quatro moinhos. Que daí os padeiros aí, eles
estão, que nem .. São quase quarenta anos trabalhando! Eles sentem só de pegar na farinha a
situação que ela está, assim como ela pode ser usada. Então isso é coisa que não tem. Só com
um aparelho eletrônico, talvez, para substituir esse tipo de coisa. Eles já apertam na mão, já
sabem se ela está muito úmida ou não, no que ele pode usar a farinha.
* em anexo estão fotos da fachada da padaria das décadas de 1960, 1970 e 1990.
** Antes os donos da padaria tinham um pequeno moinho colonial aonde eles compravam o centeio em
grãos para quebrar da forma como queriam.
77
Com a entrada de Bruda administrando a padaria, aos poucos ela foi deixando
de ser um armazém, para se especializar mais com a produção de pães e doces. A
variedade de produtos então aumentou.
Segundo Lindamir, foi somente em 1992, depois do falecimento da esposa de
Bruda, mãe de Alfonso e Roseli - D. Lídia - que ocorreram as maiores mudanças.
Hoje existem cerca de 120 produtos, entre pães, doces, tortas e bolachas. Andréa
comenta: "Porque a gente está aumentando mais, então a gente sempre coloca alguma
coisa nova, a gente sempre aumenta ou um ou dois [produtos novos]."
Também existe hoje na padaria o controle de produção e de sobras, e a
catalogação de receitas. Segundo Alfonso, Bruda estava iniciando Eduardo Henrique
na profissão quando faleceu. Por isso, Eduardo apesar de saber muitas receitas, não
conhece todas. Quem conhece as receitas que Eduardo não tinha aprendido são os
padeiros antigos, com cerca de 40 anos trabalhando na padaria. Bruda não chegava a
passar as receitas para os padeiros, mas Alfonso explica:
... acontece que o sujeito ia aprendendo a fazer, daí acontecia dele [Bruda] não poder estar
junto. (...) o sujeito ia fazendo e quando via estava feito. Mas ele não gostava de deixar
ninguém fazer. Ele era exclusivista. Era ele e ponto. Então ele trabalhava de madrugada, à
noite aí. Então tinha até um banco dentro que ele descansava. Então ele descasava dentro da
padaria mesmo! Ele acordava de manhã e passava o dia inteiro dentro da padaria. Até uns
meses antes de falecer ele ainda descansava depois do almoço e ia fazer umas massas aí"
Alfonso conta que todos eles da família, sabem fazer alguma coisa em termos
de panificação por terem sido criados "dentro" da padaria. A manipulação da massa,
como fazer o produto, ainda ele lembra: "São coisas que dificilmente esquece. O
formato, como fazer, como pôr na fôrma a gente guarda. Se precisar a gente vai lá e
faz. Os ingredientes da massa, se não tiver uma receita você perde um pouco. Não
consegue fazer."
... eu tinha alguma coisa escrita naquelas folhas [os "papéis de embrulho" em que Bíuda
anotava as receitas], mas eu tinha o sistema de preparação das massas que eles faziam de
cabeça. Os padeiros estão aí, todos eles fazendo a mesma coisa. E então, daí eu contratei a
Isabelle. Naquela época eu estava precisando de uma pessoa (...) e eu tinha que por alguém
que iria me cadastrar essas receitas aí, entende? (. . .) "então venha trabalhar comigo". E ela foi,
e eu disse: "você não vai fazer nada a não ser ficar junto dos padeiros e olhando tudo, com a
tua planilha na mão, a pranchetinha, e vai anotar tudo que eles estão pondo, como que eles
estão fazendo, quanto disso, quanto daquilo, como fez isso, percebe?" E aí ela catalogou tudo
isso aí, junto dos padeiros.
... para se ter uma idéia, naquele tempo, frios - quando o freguês pedia frios fatiados - não se
tinha nem fatiadeira de frios. Tinha um dos funcionários nossos (...) que chegava a cortar com
facas, fecas afiadas. (...) Não tinha esse tipo de coisa, que nem hoje. Daí depois (...) comprou
79
fatiadeira. Primeiro uma fatiadeira com manivelinha, à mão, sabe? Depois que vieram as
primeiras com motor e aí que foi melhorando ...
Por que é gostoso. Eles vêm aqui, você veja, a minha sobrinha, ontem fizeram um lanche aqui.
Daí o Marcelo, [esposo da sobrinha]: "ah, vou pegar a broa da Padaria América, tão gostosa,
fresquinha." Então (...) sabe, é aquela propaganda de boca em boca. A Padaria América não
faz propaganda. Nem em rádio, nem em televisão...Em nada. Então a Padaria América é
aquela coisa de boca em boca.
... A linha diet não existia. Foram os netos. E porquê? Eles se aperfeiçoaram, fizeram uma
linha de diversos produtos. Porque a filha dessa amiga que eu estava te falando [ela se refere à
filha de Bruda, Roseli], que levou o pedaço de pão para o pai experimentar, é diabética alta
(sic), então por causa dela eles se inspiraram, e contrataram uma nutricionista. E com ela,
desenvolveram toda aquela linha diet. Foram os netos. Ele [refere-se à Brur1?.] não. Aquele
plástico que agora eles embalam os frios, isso é tudo a nova geração. Ele não aceitava nada
disso.
80
Aí, justamente, o que eu queria contar, uma coisa interessante. O Bruda era muito
tradicionalista, ele não aceitava nada de novo. E eu fiz uma vez uma broa com diversos
centeios, centeio grosso e aquele, mourisco - trigo mourisco - e enfeitei com gergelim em
cima. E a filha dele [Roseli] pediu que eu cortasse uma fatia para mandar para o pai dela.
Lembro que eu fiz um pacote de presente para ele até com lacinhos. E ela levou para o pai e os
dois comeram juntos. Porque ela queria convencê-lo a entrar com coisas novas que ele não
aceitava. Ele queria só aquilo. Depois disso, ele começou a fazer aquela broa de gergelim.
Essa ainda é do tempo dele, sabe? Aquele gergelim que põe em cima. Mas, quem introduziu as
novidades foi só depois que ele faleceu, os netos.
Tem que evoluir! Os frios por exemplo. Antigamente era no papel manteiga assim que eles
pesavam, punham ali. Hoje não. Eles têm aquele isopo-, têm aquela máquina de plásticos para
- .embalar. (...) A caixa registradora no tempo antigo era aquela bonita, aquela de prata... Não,
hoje é tudo... Tanto é que as filas continuam, mas vai muito mais rápido porque tem duas
caixas e as caixas, rápidas. Antigamente era uma caixa e (...) a fila demorava mais para... Você
já pegou fila lá na rua? (.. .) Inclusive antigamente eles não cortavam a broa, era a gente mesmo
que tinha que cortar com a faca, hoje eles... Já simplificou. Com isso aumentou barbaridade a
venda. Inclusive aquela... Como se chama aquela broa quadrada, só de cereais? Em alemão é
pumpernikell. Poucos compravam porque era difícil de cortar. Agora, que eles põe em fatias,
aumentou barbaridade a procura, porque aí já vem fatiado. Você já experimentou cortar aquela
com a faca? E dura. Isso foi um dos progressos lá também. Inclusive o pratinho, aonde eles
põe a broa cortada, porque ele é um plástico diferente desses comuns, especial para guardar
bolachas, torradas, essas coisas. Então, eu não jogo fora, eu guardo. Eu gosto de fazer bolacha
e tudo. Eu guardo naquele saquinho plástico aonde eles colocam a broa. Isso também é uma
novidade da nova geração. (...) E o colégio também, os estudantes*... Muitos passam lá para
comer uma empada. Isso que antes eles também não tinham. Hoje eles servem refrigerante e
salgadinho. Antes não tinha isso, foi uma mudança também. A própria região também evoluiu.
O colégio também deu, trouxe um outro tipo de clientela. São os estudantes. Que quando sai
meio-dia, tá cheio deles lá. Você já percebeu isso também?
* o colégio Martinus, antigo colégio Progresso, mudou-se para a frente da padaria em 1948.
81
Isso até eles são conservadores também. Porque eles fazem a broa tipo assim, para hora do almoço,
Vamos dizer, lá pelas duas horas tem broa. Chega lá por quatro, cinco horas que você se atrasa um
pouquinho, você não consegue mais a broa de centeio! Pois eles, não é como as outras padarias que vão
fazendo à medida que vai passando (...). Então, eles são bem tradicionais até nessa parte. Só que
inovaram em muito (inaudível), em muitas outras coisas. Mas o jeito da padaria funciona mais ou
menos como na época... Antigamente não tinham aquelas tigelas para por (inaudível) como é que é o
nome daquilo? Para por... A gente vai pedindo e eles vão pondo. Antigamente não tinha isso. Você
pedia, eles punham no cartucho, e você levava. Quer dizer, nesta parte eles inovaram. Agora o jeito da
padaria faz lembrar o meu tempo de criança!...
(...) O pão é o mesmo praticamente... Só que hoje esse [o neto] está fazendo diversos tipos.
Pode ver lá que tem. Antigamente só tinha esse caseiro e tinha... o shrot também ele faz uma
vez por semana. E o integral ele faz todo dia. Sabe a diferença entre um e outro? O shrot é
mais graúdo o conteúdo lá. Então ele sempre teve também um pouco de coisas assim, mas não
tanto quanto hoje. Hoje ele já está inventando pão italiano, pão disso, pão daquilo... Que não
tinha. Você vê que progrediu bastante. Daí outros, que não gostam só desse, também compram
lá. Você pega um pouco de um e de outro... Geralmente as pessoas sábado já compram para
domingo junto. Que ainda dá para usar segunda também. Não estraga, sabe, o pão deles. Bom
o pão dele...
D. Carmem também menciona este fato e fala de "evolução": "...hoje tem uns
tipos de broas que eles já estão inovando. Lógico, tem que ir de acordo com a
evolução, não é? Antigamente tinha pouca opção, agora tem mais opção e tudo. (...) na
época da minha mãe não tinha essa broa integral. Tinha só essa outra que era a 'broa
do Engelhardt'* que eles chamavam."
Ela também fala a respeito de uma nova bolacha: "Agora, ultimamente, eles
estão fazendo uma bolachinha de castanha. Até ontem pedi, mas estava em falta. Eles
estão vendendo tanto que acaba em falta. É uma massinha de manteiga com nozes,
castanha, nozes... E uma delícia aquela bolachinha!"
A próxima mudança que a família planeja, como já foi mencionado, será a
abertura de um "café" em cima da loja da padaria: Eduardo Henrique fala a respeito:
"Nós estamos querendo abrir um café. Servir com mesinhas bolos, tortas, os produtos
da padaria, os produtos exclusivos da família, tortas que meu avô fazia para o
aniversário da família, que eu vou fazer." Eduardo quer inovar através da conservação
da culinária de sua íàmília.
Os clientes confirmam a teoria de Eric HOBSBAWM que afirma que certas
tradições permanecem por serem flexíveis e estarem se adaptando aos dias atuais. As
tradições devem se adequar à modernidade, caso contrário, elas acabam.
2.3 O conservadorismo
* a broa de centeio é conhecida por alguns fregueses como a "broa do Engelhardt" ou a "broa
da dona Elza", esposa do fundador.
173
HOBSBAWM, Eric. Op. Cit.
83
Outras especiarias também fazem parte dos produtos tradicionais: o stolle, uma
espécie de panetone vendido na época do Natal; as cocadas; a bolacha pão-de-ló.
Na padaria estão funcionários antigos, como os padeiros Nelson e Joaquim que
trabalham na padaria desde o início de 1960; e as balconistas Glaci e Alzira, ambas
funcionárias desde o final desta década de 60 anos, irmãs de Lindamir.
Padeiros Joaquim e Nelson com a divisora de As funcionárias Glaci, Alzira e Lindamir. Foto de
pães. Foto de 2002. Acervo da autora do trabalho 2002. Acervo da autora do trabalho
174
Relato de Bruda em entrevista à Audrey Possebom, do jornal Gazeta do Povo. Curitiba,
setembro de 1998
84
Eduardo Engelhardt atrás da amassadeira alemã que está funcionando desde 1925.
Foto da década de 1930. Acervo: Padaria América
Bruda com a amassadeira alemã. Foto de 1998 ou Eduardo Henrique com a amassadeira alemã. Foto
1999. Acervo: Padaria América de 2002. Acervo da autora deste trabalho
85
Também foi observado fôrmas para assar bolachas, que segundo reportagem:
"... centenárias chapas de ferro que garantem o cozimento perfeito, deixando-as
1 7S
crocantes e com sabor inigualável" . Estas fôrmas, segundo Eduardo Henrique, só
estão ainda lá "por história". Ainda são usadas para assar bolachas, mas existem outras
chapas que eles já adotaram que também são boas para assar.
Alfonso conta quais os equipamentos que ainda permanecem:
Nós temos uma amassadeira, nós temos uma divisora, nós temos uma máquina que rala coco,
queijo, todas essas coisas, que ainda é daquele tempo*... Adquiridos pelo meu avô ainda, que
ainda estão funcionando... Máquinas excelentes aí até, que não encontram-se mais no
mercado. Inclusive se funcionasse, eu compraria mais uma para ter aí à disposição. Porque são
máquinas de excelente qualidade para o nosso tipo de serviço. Por que hoje se usa muito
máquinas rápidas. O tipo de farinha que se usa hoje, ela é pré-misturada, exige outro tipo de
manipulação. E as nossas receitas não. As nossas receitas são do tempo do meu avô! E elas
são aquele sistema tradicional... Então o trigo é trigo, sem mistura; o centeio também é sem
mistura. Daí as misturas são feitas aqui na própria indústria. Então essa é a diferença...
... Para você ter uma idéia, quando eu era guri, nós deitávamos no meio-fio dessa rua aí e
ficávamos esperando um carro passar para daí levantar e sair correndo... Vai fazer isso hoje!
Aqui para cima do Cemitério Municipal não tinha asfalto, não tinha nada. Era só estrada de
terra. Então você vê o quanto mudam as coisas... A gente tem uma propriedade ali por
Campina Grande, Bocaiúva, já faz trinta e poucos anos. No que foi inaugurada a BR meu pai
comprou uma propriedade lá e a gente começou a viajar para lá. A BR era deserta, não tinha
nada! Hoje até adiante de Quatro Barras é loteamento. Está quase emendando Curitiba com
Quatro Barras. Curitiba - Colombo já emendou. São José está emendado. No tempo que eu era
175
URBAN, R. G. "O velho e o pão". Op. cit, p. 43.
* Segundo Eduardo, esta máquina de ralar foi feita pelo seu avô, que adaptou várias peças de
outras máquinas.
176
Aqui tomamos emprestadas duas categorias levantadas pelo professor Antônio César de
Almeida Santos em sua obra "Memórias e cidade - depoimentos e transformação urbana de Curitiba
(1930-1990)". Estas categorias surgiram dos depoimentos adquiridos por Antônio César, quando os
depoentes "assinalam duas Curitibas que são articuladas e contrapostas nos depoimentos. De um lado,
uma Curitiba de ontem (...) desde os anos 1930 até, pelo menos o início da década de 1960. De outro,
uma Curitiba de hoje, entendida como a cidade que substitui a primeira, temporal e espacialmente, e
que é percebida como um continuum desde os anos 50/60 (...) A Curitiba de hoje estava sendo
fundada em 1953, momento que assinala uma reorganização de seu espaço urbano." (destaques em
negrito do autor) SANTOS, 1999, p. 69.
86
guri era uma aventura viajar para São José. Nós íamos pela Salgado Filho e tal... Para você ter
uma idéia, uma das poucas vezes que meu pai saiu de férias, meu avô era vivo ainda na época,
ele tirou dez dias para ir para praia com nós. A gente saiu daqui, eu tinha um carrinho velho -
um Chevrolet 1937 - e a gente saiu daqui. Sabe, carro velho ia enguiçando... E fomos posar ali
em São José (risos), para no outro dia seguir viagem! O quanto cresceu isso! Você sabe que a
minha geração é de transição. Por que até a época do meu pai é aquele conservadorismo,
aquele sistema e tal. Na nossa geração entrou Revolução, aquela coisa toda, entrou regime
militar, uma série de coisas aí, que... Então é uma geração de transição, mesmo. E outra
época... Já vem a época do computador, informática essa coisa toda.
Eduardo Engelhardt com sua esposa e filhos em frente ao primeiro forno à lenha, de 1928. Da
esquerda para direita: Bruda, com nove anos de idade, seu irmão Eduardo Neto, sua irmã Isolde, sua
mãe, D. Elza e Eduardo Engelhardt. Foto década de 1930. Acervo: Padaria América
178
Bruda em entrevista à SATO, Eliane Eme. "Receita de tradição - relíquia paranaense".
88
Bruda com o forno à lenha obtido por ele em Da esquerda para direita: Carlos Alberto e
1964. Foto década de 1980. Acervo: Padaria Eduardo Henrique com o forno atual à gás e as
América broas de centeio. Foto de 2002. Acervo: autora do
trabalho.
Alfonso comenta sobre a reação de Bruda com o pedido de retirada dos fornos:
... Nós já estávamos até com alvará cassado. (...)... E ele queria continuar brigando... Brigava com o
pessoal do prédio, dizia que tinha vindo muito antes do que eles aí (...) Quando eu era guri aí, não tinha
prédios nenhum aqui em volta (...) A fumaça não atrapalhava ninguém. Agora, depois quando veio um
edifício aí com dez andares (...) aqui nafrente.A fumaça do forno vai direto na janela do prédio. (...)
Daí passou a fazer fogo só à noite. Então tinha que contratar um sujeito para vir fazer fogo à noite.
... então eu achei que devia começar com a sala de máquinas. E eu ia mexer num lugar que não
ia incomodar ele lá dentro da padaria, que era aqui nos fundos (...) então a gente tinha que
ligar o motor à gasolina para tocar as máquinas, por isso o uso da transmissão e tudo. Então só
o motor tocava todas as máquinas. E aquilo estava abandonado há muitos anos ali, então se
jogava caixa de papelão vazia, uma tranqueira mesmo. E eu digo: "sabe de uma coisa, é
melhor começar por lá e eu não vou incomodar ele. E, quando ele vir está pronto". E foi isso
que a gente fez. Começou ali, tal, e quando terminamos ali, eu disse: "bom, agora está na hora
de entrarmos na padaria". E foi a guerra. [Bruda pergunta:] "Mas o que vai fazer?" [Alfonso
diz:] "Não. Vamos lá". Até que a gente conseguiu abrir uma porta, desmanchamos a parede, e
entramos na padaria. (...) Aí colocamos o piso na padaria, até entrar no forno. Inclusive já
tinha comprado o forno, já tinha feito o pedido e tudo. Aí ele disse "ah, sabe de uma coisa, não
vamos tirar o fomo, vamos deixar tudo aí". "Agora não, agora a única escolha que eu te dou é
qual deles vai sair primeiro."
Então pergunto qual forno Brada escolheu para ser retirado: "O que ele tinha
• • 179
construído, porque o do pai dele tinha que permanecer mais um pouco (risos)."
Em uma das fotos do arquivo da família temos a retirada do segundo forno com
o desmanche da chaminé em 28 de maio de 1997. O senhor que executa o serviço é "...
um pedreiro nosso. É um velhinho que está com nós há quarenta anos fazendo
manutenção. Ele inventa cada coisa... É a peça cômica da padaria. Ele acha uma
peruca velha aí e põe. Uma saia... É um terror o velho. (...) Aí com 85 anos está
• 180 • •
correndo para baixo e para cima." Ele é Roman Rutski, conhecido como Romão.
Roman Rutski desmanchando a chaminé do forno Anotação de Bruda feita no verso de uma foto da
à lenha. Foto de 28 de maio de 1997. Acervo: retirada do forno em 1997: "Exigência do meio
Padaria América. ambiente pra não ter mais fumaça. Lembrança do
forno a lenha construido por um empreiteiro
alemão. O forno era de Thedoro Lemertz - de
Duisburg. Construido em 1928. E a derrubada da
chaminé foi em 28 de maio de 1997. Bruda: vi
construir e vi a demolir. Sentimento total."
Acervo: Padaria América .
179
ENGELHARDT, Alfonso. Op. Cit.
97
Porque ele era muito, não sei se era, acho que conservador, sei lá como é que eu vou detalhar
isso, não sei se era conservador, mas ele queria manter tudo aquilo que o pai dele construiu ele
queria manter igual. Ele não queria que mexesse em nada. Mas estava na hora de mudar, tirar
a transmissão que o pai dele tinha construído, porque o pai dele, o meu avô, nesse ponto... Ele
í¡
Md~
181
MÜELLER, T. L. Colônia Alemã - 160 anos de história. Porto alegre, Escola Superior de
Teologia São Lourenço de Brindes; caxias do Sul, Editora da Universidade de Caxias do Sul, 1984.
P.71
98
[o avô, Eduardo] foi padeiro, foi atender a profissão de padeiro, mas a época acho que também
exigia isso. Na época não existia, por exemplo, indústrias mecânicas que nem tem hoje, e
aquela coisa de, pega uma peça aqui, pega uma torneira ali e faz. Naquela época não. Naquela
época era ferreiro, era uma porção de coisas, então montar uma máquina, isso aí, ele tinha que
fazer sozinho. Então, para você ver. Para você ter uma idéia, naquela época não tinha fogão à
gás e você fazia essa torta que é famosa nossa também, essa torta Aída. Aquilo era batido o
creme em cima do fogareiro á álcool que ele fazia, entendeu? Ele fazia o fogareiro. Então a
dificuldade... Era bem feito. O fogareiro era um espetáculo! Álcool, com pavio, aquela coisa
toda. Mas só que para você bater um creme em cima de um fogareiro, não é que nem você
bater em cima de um fogão. A vasilha era menor, a panela que você fez o banho-maria
também era menor, sabe? Então a dificuldade daquilo virar de repente, ficava uma hora
batendo aquilo ali, não é brincadeira! Então ele fazia tudo isso aí. (...) alguma coisa disso eu
herdei dele. Porque eu faço muita coisa, eu gosto de fazer bastante coisa. Reformar, construir.
Essa parte de instalação da água quente foi toda eu quem fiz agora. E já precisa refazer, porque
os maquinários que tem hoje também são bastante problemático. O sujeito manda para uma
indústria uma caixa de água quente que não é galvanizado, não é de inox. Então você paga
uma fortuna pelo forno e põe um tambor de ferro, uma caixa de água quente. Então aquilo no
começo, beleza. Depois a água vai ficando amarela, daí você diz: que é isso? Teve que trocar
todo o sistema e, toda a parte de encanamento, tudo foi eu quem fiz. E tem mais uma outra que
eu vou colocar e, já pensei em fazer isso. Essas coisas sempre tive curiosidade neste sentido.
Gosto de fazer isso. Fiz na minha casa inclusive. Na minha casa tem um fogão à lenha, e tem o
aquecimento, não tem chuveiro elétrico. Tem o aquecimento por serpentina, então aquece a
água, essa água vai para um reservatório e dali vai para o chuveiro. Enquanto você fez a
comida você aquece a casa, pois aqui é frio. Antigamente era assim. Aqui tinha isso, sabe?
Não ouvia falar de chuveiro elétrico. Não tinha...
(...) meu avô guardava tudo. Você acredita que agora... Eu não guardava nada quando era
jovem, agora a gente vai ficando velho e começa a guardar. (...) então eu tenho uma oficina em
casa, eu guardo tudo que é pedaço de ferro-velho. Daí comprei uma máquina de solda, e vai
aprendendo a soldar uma porção de coisas aqui para a panificadora, desde a forminha de
bolacha para tirar as bolachas, por que é tudo feito à mão as bolachas. Inclusive o avô de um
dos padeiros arrumava as coisas aí.
Se vê, nós continuamos usando margarina, não mudamos as massas, tudo, o mesmo sistema
que meu avô usava na época, quer dizer, na época margarina nem existia (...) existia era a
banha, a manteiga. Usava muita manteiga. Vinha manteiga de Minas, em latas, coisa que eu
ainda recordo disso aí. (...) Mas o básico viu, o básico de nossa produção, que são os pães e as
bolachas, esses são do tempo do meu avô, isso não foi modificado em praticamente nada,
entendeu? A massa foi adaptada para um outro tipo de bolacha, no caso que meu avô não
fazia, mas meu pai já começou a fazer adaptando uma das massas dessas bolachas e mudando
o sabor. Usando o mesmo tipo de massa, no caso. Então isso já vem desde o tempo do meu
avô.
Pois é, você vê tanta bolacha bonitinha, recheadinha, bem embalada, essa coisa toda. Um
marketing de propaganda muito grande em cima disso, e a gente... Nós fazemos a nossa aqui
na regüinha, com forminha. Algumas têm forminha, outras todas são feitas à mão, e a gente
não está vencendo fazer essas bolachas! Até está pensando em comprar alguma coisa em
tomo...de máquinas, nesse sentido. Mas não é fácil a gente achar alguma coisa e mudar
também, a gente tem uma preocupação muito grande de mudar o modelo da bolacha e já não
ter aceitação... Então, a coisa é complicada você mexer no que está funcionado... Então,
enquanto der, a gente continuará produzindo desst forma ....
Bruda relatou em 1992: "Muitos perguntam porque nos 80 anos eu não expandi,
não cresci. É que meu pai, antes de morrer, disse: 'fique pequeno, sozinho e limpo."' É
isto que a família ainda tenta conservar.
Este conservadorismo se traduz em qualidade. Para a família, ter qualidade
também significa manutenção. Quando falamos em manter equipamentos antigos, este
"conservadorismo" mencionado, às vezes, ganha um sentido prático. Como Alfonso
mencionou, os equipamentos antigos são melhores para a fabricação do tipo de pães
feitos pela padaria, por serem mais lentos. Segundo Bruda: "Enquanto as padarias
trabalham com máquinas modernas e farinha de trigo descansada, nós optamos pelo
método antigo."'82 As receitas são do início do século, utilizam outro tipo de matéria-
prima então, precisam de equipamentos voltados à este tipo de produto. O próprio
182
Bruda em entrevista. APROVADO pelo imperador. Gazeta do Povo - Viver Bem. Curitiba,
3 de outubro de 1993.
93
forno à gás, que ficou no lugar do forno à lenha, teve que sofrer algumas adaptações
para assar os pães de uma forma adequada.
Outras vezes, o conservadorismo ocorre pelo fato de preservar memória, como
no caso das formas de bolacha, que Eduardo Henrique ainda as usa por história. Ou
ainda, no caso dos potes de vidro com tampas prateadas que guardam doces e
confeitos na loja da padaria, e que são também antigos*. Eduardo revelou que
quebraram alguns potes, mas eles guardaram as tampas e conseguiram fazer potes de
vidro iguais. Perguntamos por que fizeram a escolha por manter potes iguais. Ele
responde: "por charme..."
Em relação à conservação das receitas e da manutenção da matéria-prima,
Alfonso relata:
...as outras padaria preferem usar, por exemplo, pão francés que já vem a farinha pré-
misturada para fazer pão francês (...) assim como para pão de queijo, para pão doce. (...) E
hoje está avançando mais. Hoje já tem empresa aí que está fazendo um pão pré-assado
congelado. (.. .) e daí ele entrega este pão congelado e as outras padariazinfes têm só um
fominho pequeno, nem padeiros eles têm.(...) Tem uma empresa na Vila Hauer que já está
produzindo isso em larga escala aí, tomando conta aí de parte do mercado já.
Para a família e para os clientes as mudanças são bem-vindas, desde que não
interfira nas receitas tradicionais. E, para um produto novo chegar ao cliente, Bruda
dizia que ele deve ter o mesmo nível de qualidade dos "... croissants e da famosa broa
de centeio, cuja massa fica fermentando durante 24 horas."183 Ou seja, manter a
qualidade dos produtos tradicionais.
Para os clientes as mudanças são um sinal de "progresso". Estas devem ser
feitas no sentido de melhorar o atendimento, diminuir a fila, tornar mais prática a
compra. Mas também não podem interferir muito no aspecto físico da padaria. Há um
limiar sutil entre conservadorismo e inovação, pois como diz Alfonso "...a coisa é
complicada você mexer no que está funcionado..."
Vejamos o que Eduardo Henrique responde quando perguntamos por que os
clientes continuam a tradição de comprar na padaria:
Por causa de não perder qualidade. As vezes a gente deixa de ter um lucro muito maior do que
a gente poderia ter. Você veja, a gente já está reformando há seis anos, então a gente fica meio
que patinando, não sai do lugar, para manter qualidade, para manter funcionário antigo, para
manter um nível de compra de produto de alta qualidade e matéria-prima com alta qualidade,
entendeu? E eu acho que isso que é importante. Isso é o mais importante. E pagando
imposto...
Eu acho que tudo que é feito à mão. Não precisa ser equipamentos rudes - os nossos são
bastante rudes: réguas para cortar bolachas, aquelas carretilhas que se usa em casa para fazer
macarrão... Aquilo nós usamos ainda. Então tudo que é feito à mão é artesanato. (...) Se você
põe maquinário já vira indústria, (...) alta escala. Nós fazemos bastante bolacha, mas (...) você
183
APROVADO pelo imperador. Gazeta do Povo - Viver Bem. Curitiba, 3 de outubro de
1993.
95
faz à mão detalhes, massinhas pequenas (...) tudo colocado na forma à mão (...) Você vê, as
massas são estendidas com rolo de macarrão ainda...
Então eu gosto da padaria por causa do sabor, e sempre é fresquinho (. . .) E até apresentável, eu
digo assim, para um café... Você vai fazer um café da tarde, às vezes eu faço, eu também
compro o pão deles, nem que seja um só. Mas daí tem o patê, põe na mesa e serve. E um pão
de qualidade. Não é um pão desses, que às vezes você compra por aí. Ele é bonito, um pão
bem feitínho, você corta ele... Você corta firme. Não é aquele pão que às vezes fica mole, sei
lá. Então é um pão apresentável.
184
BOUTIN, Ivo. Op. Cit.
185
Id.
186
GARMATTER, Carmem. Op. Cit.
187
KREDER, Walter. Op. Cit.
96
3. A TRADIÇÃO
Aqui em nosso trabalho não nos cabe verificar o momento exato em que este
costume se transforma em tradição. Sabemos, no entanto, que a tradição se implantou
e se fortaleceu nos momentos de transformação, momentos de ruptura, como as
inovações, que representam a ruptura do presente com o passado.
De acordo com Gerd A. BORNHEIM os conceitos opostos costuma atrair-se
formando, de algum modo uma unidade, ainda que conflituada. Eles "...avançam em
sua oposição, e chegam a construir uma nova e harmoniosa unidade."188 . Ainda
segundo este autor:
...A tradição só parece ser impertubavelmente ela mesma na medida em que afasta qualquer
possibilidade de ruptura, ela se quer perene e eterna, sem aperceber-se de que a ausência de
movimento termina condenando-a à estagnação da morte. A necessidade da ruptura se toma,
em conseqüência, imperiosa, para restituir a dinamicidade ao que parecia 'sem vida'.189
sabor. A maior parte dos clientes relatou que a padaria conseguiu manter a produção
da broa da mesma forma, com o mesmo sabor: "O pão é o mesmo praticamente..."191.
"Não muda. É igual..."192, "...o gosto daqueles é tudo o mesmo..."193, "...sempre aquele
sabor."194
Os clientes comentam que quando sentem algo diferente com algum produto
reclamam, até o produto voltar a ser da mesma forma que antes. Como aconteceu com
sr. Ivo: "Uma ocasião aí, depois que o seu Bruda faleceu, parece que o pão ficou um
pouco mais seco, mais leve. (...) aí eu fui lá e falei para a moça ali, eu disse se tinham
misturado, mudado a fórmula (sic). (...) mas parece depois que eles corrigiram isso,
sabe, eu não notei mais." O cliente Hyzir revela: "...teoricamente eu acho que não
houve diferença. Talvez alguma coisinha, algum condimento. Antigamente era feito de
forno à lenha. (...) talvez tenha essa diferença." Porém quando questionado se sentiu
diferença, o cliente relata: "Não. Só se tiver o paladar muito sensível. Para mim ficou o
mesmo..." Dona Elfi relata que ela também não tem este "paladar refinado", então não
pode analisar se mudou o sabor, mas segundo ela, "...falam que a broa deles hoje não é
mais como era antigamente." Aline diz que sentiu uma diferença pequena,
"...pouquíssima assim. Mas o essencial continua bom."
Andréa nos relatou que alguns clientes, quando souberam da morte de Bruda,
falaram que o pão não iria mais ser o mesmo. Eles não sabiam que já fazia cerca de
dois anos que Bruda não mais fazia o pão, por já estar doente. Ele permaneceu fazendo
apenas produtos menos trabalhosos. Outros, segundo Lindamir e Eduardo Henrique
ficaram sabendo da troca dos fornos apenas mais tarde, e só então passavam a
mencionar uma diferença no sabor. Eduardo conta que alguns falavam: "ah, mudou?
É. Realmente não é a mesma coisa..." E há os que não perceberam a mudança, e dizem
que a broa está mais gostosa. Lindamir conta que os clientes dizem: " 'O que
aconteceu que a broa está mais gostosa? Mudou os padeiros?' E eu digo: 'Não, não.'
Mas a gente também não comenta que é o forno.(...) Senão eles acham ruim."
191
KREDER, Walter. Op. Cit
192
M AKARO, Petra. Op. Cit
193
GARMATTER, Carmem. Op. Cit.
194
BOUTIN, Jaqueline. Op. Cit.
99
Bruda, como vimos, foi quem mais se entristeceu com a mudança, ele relata em
uma reportagem: "São máquinas muito boas, mas não produzem o mesmo gosto"195.
Eduardo Henrique admite: "Eu concordo que um forno à lenha não é a mesma coisa
que um forno à gás. É lógico. Porque existe uma diferença até de sabor.(...) Só que na
receita não existe diferença. (...) E como se deixasse de existir um temperinho. Não
fosse acabar o produto, mas como se aquilo estivesse entrado em extinção e acabado.
(...) mas não que altere a qualidade do produto".196
Assim observamos o receio de todos, em maior grau dos clientes, que o "sabor"
se modifique; a preocupação em manter a qualidade, em maior grau por parte da
família, e o esforço realizado de ambas as partes - família Engelhardt e clientes - para
acreditar que tudo está igual, para que a tradição permaneça.
195
Bruda em entrevista à FRANCO, A. P. "História à mesa". Gazeta do Povo. Curitiba, 31 de
janeiro de 1999.
196
Eduardo Henrique.
,97
Segundo o autor "O termo 'tradição inventada' é utilizado num sentido amplo, mas nunca
indefinido. Inclui tanto as "tradições" realmente inventadas, construídas e formalmente
institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difícil de localizar num período limitado e
determinado de tempo - às vezes coisas de poucos anos apenas - e se estabeleceram com enorme
rapidez." (HOBSBAWM, 1997, p. 9)
100
"engomava" o chapéu e o avental. Por isso o dele ficava mais alto. Segundo Eduardo
Henrique, este chapéu é do mesmo estilo do chapéu usado por seu bisavô.
Sr. Walter comenta sobre o chapéu: "...quando eu ia na padaria, de vez em
quando, ele [Bruda] estava lá na frente com aquele chapéu dele..."198. Em todas as
fotos de reportagens da padaria em que Bruda saiu no jornal, ele está com este chapéu
e os jornais comentam a respeito do uniforme de Bruda:"...vestir o avental branco, um
gorro alto como se usava antigamente..."199. Segundo a reportagem, Bruda era "... um
dos últimos padeiros que ainda usa o gorro alto e branco na cabeça..."200
Bruda e Eduardo Henrique com seus chapéus. Foto de 1998 ou 1999. Acervo: Padaria América
A manutenção deste chapéu não tem um sentido prático. O que é usado hoje na
parte da "produção de alimentos"* são toucas descartáveis para mulheres e bonés para
homens, que cobrem todo cabelo e não têm perigo de caírem da cabeça, sendo assim
198
Sr. Walter.
199
"AOS 74 anos, 'Seu Bruda' ..., op. cit.
200 I d
201
HOBSBAWM, E.; RANGER, E. (org). A invenção das tradições. 2. Ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1997, p. 11-12.
202
MAKAROV, Petra. Op. cit. As palavras foram sublinhadas pela autora deste trabalho.
102
203
BOUTIN, Ivo. Op. cit.
* aqui falamos sobre a broa, mas pode-se remeter esta questão a outros produtos da padaria.
204
HARLEZKI, Elfi. Op. cit
205
LECHENAKOSKI, Lindamir. Ela também menciona a respeito dos clientes "de caderno".
Estes, segunda ela, eram os que compravam "fiado", ou seja, levavam os produtos para pagar depois.
Ela cita alguns sobrenomes. Stresser, Reinhardt, Szeki, Gastão. Estes são escritos para ela ver se a
ortografia está correta. Então eu digo que o meu sobrenome está entre eles... (este caderno foi
queimado durante o incêndio de 1981).
103
206
HALBWACHS, M. loe. cit.
104
207
Petra.
Este processo de "definição de normas de produção" por um órgão externo à esta
comunidade é, no mínimo, questionável. De acordo com Alfredo BOSI: ". .se alguém me perguntasse
'O quê que o Estado deve fazer com a cultura popular?' (...) O primeiro pensamento que me ocorre é
drástico: não fazer nada! 'Por favor, não mexa com o que não é da sua conta!' A primeira idéia que me
ocorreria seria esta: o Estado é uma estrutura tão diferente, tão heterogênea, tão exterior à cultura
popular que realmente é melhor não forçar contatos in desejados. O meu mestre em folclore é o
professor Oswaldo Elias Xidieh (...) Ele me ensinou (...) a cultura popular não morre (...) Se ela for de
fato popular, enquanto existir povo ela não vai morrer. Cultura popular é a cultura que o povo fez no
seu cotidiano e nas condições em que ele pode fezer." (BOSI, 1987, p. 43-44)
208
ENGELHARDT, Alfonso. Op. cit.
105
* nem todos utilizados pela padaria, alguns presentes apenas para o cenário da foto.
^ ** em anexo
209
Revista Gula, n°37, nov; 95, p. 85-86
210
Gazeta do Povo - Batel e região, 10 a 16 de setembro de 1998, p.9
211
Mariângela Guimarães para o Jornal do Estado - Espaço Dois. Curitiba, 29 de abril de
1993.
212
Raul Urban para a Revista Paraná & cia, 28 de fevereiro de 1998, p. 42-43
213
Robson Campos Silva para o Jornal do Estado. Curitiba, 29 de dezembro de 1990.
214
Ana Paula Franco para Gazeta do Povo. Curitiba, 31 de janeiro de 1999
215
Gazeta do povo, Viver Bem. Curitiba, 10 de março de 2002.
216
Cintia Végas para o jornal O Estado do Paraná. Curitiba, 2 de março de 2002.
217
Rafael Grecca, prefeito na época, em entrevista à MALUCELLI. "Gourmet & gourmand". Jornal
Indústria & comércio, Coluna do Malu. 9 de janeiro de 1995.
106
reportagem da revista "Gula" também menciona que "o atual prefeito e governador
estão entre seus clientes ilustres"218
Cada vez mais, novos clientes procuram a padaria. Por dois anos consecutivos a
padaria foi eleita pelo guia "Veja Curitiba" com o "o melhor pão de Curitiba"219 e hoje
é considerada como um dos pontos gastronômicos tradicionais da cidade. Em uma
propaganda da Bergerson* com o título "Curitiba, uma cidade de muitos quilates" está
um colar com alguns diamantes. O colar simboliza Curitiba e, os diamantes, pontos
turísticos e tradicionais da cidade, como a Pedreira Paulo Leminski, o Teatro Guaira, a
Rua das Flores, a Universidade Federal do Paraná, a Boca Maldita, e entre outros, a
Padaria América.
Estes fatores contribuem para que de certa forma, a padaria aumente sua venda
e sua clientela. Depois do lançamento do guia "Veja Curitiba" 2000-2001, não só o
pão da padaria foi eleito o melhor como também o "chineque", pãozinho doce
enrolado em forma de caracol. Depois deste dia, o número de "chineques" vendidos
chegou a triplicar.
Andréa relata: "Teve uma época que ficou 'chique' vir comprar o pão aqui. E é
uma coisa que foi acontecendo naturalmente...". Alfonso explica:
...a gente não dirigiu a coisa neste sentido, sabe? A gente não dirigiu, vamos dizer assim,
objetivando este tipo de coisa. A preocupação nossa era continuar produzindo um produto de
primeira qualidade e daí deu no que deu... E daí tem que manter. O problema não é você
manter durante um período, o problema é você manter isso durante dezenas de anos.
O que a clientela nova procura não são apenas os produtos tradicionais, mas
principalmente as inovações, como conta Lindamir:
Os fregueses de agora (...) eles vêem na propaganda e vêm correndo para cá. Que nem
aconteceu agora com essa torta "Charlotte". Fizeram a propaganda (.. .) era quarta ou quinta-
feira. Quando foi no sábado todo mundo queria a torta.(...) e tinha aquele freguês de manhã
com a boca cheia de frescura que aqueles do seu Bruda eram um doce melhor. Mas aí a gente
vê que não é verdade, que agora está saindo um monte de coisa boa aí. (...) só está aumentando
a freguesia agora.
2,8
SATO, E. E. op. cit. 1995
219
Guias Veja Curitiba de 2000-2001 e 2001-2002, p. 100 e 112 respectivamente.
* Bergerson é uma joalheria. A propaganda está em anexo
107
Acreditamos que este marketing não interfere na ida dos clientes tradicionais à
padaria. Os clientes confirmam nossa teoria dizendo que eles já tem uma tradição estabelecida
e continuam a freqüentar a padaria por causa desta tradição. Petra relata: "... Então quem
conhece como eu, vou por causa da minha mãe, aquele vai, vai a minha irmã, a gente
foi ontem, a minha sobrinha vai... Então a gente tá passando de geração para geração."
Sr. Ivo também relata:
... Então é uma questão assim, de tradição que a gente costuma ir lá sempre buscar o pão lá...
Depois também pela qualidade do produto que eles vendem. E uma firma assim com gente
antiga aqui de Curitiba, Os Engelhardt, a família Engelhardt muito antiga. Então, vem dali
aquele vinculo, então a gente aos poucos vai formando aquele vínculo, aquela tradição, pela
qualidade. Então é por isso que a gente está comprando lá toda semana.
E uma delícia mesmo. E ela [torta de figojé feita só no Natal e na Páscoa também e tem uma
camada bem grossa de chocolate e com glacê branco está escrito 'Feliz Páscoa', 'Feliz Natal'.
Você nunca viu assim? É. É só nessa época. E bolo de figo. Uma delicia. Ela não é fruta
cristalizada. E só figo cristalizado. E muito, é muito famosa. Muita antiga. E uma das receitas
do... do Bruda mesmo.
220
HARLEZKI, Elfi. Op. cit.
108
Apesar desta tradição ser importante na venda dos produtos, para Eduardo
Henrique o mais importante é poder manter a padaria, nem que para isso tenha que
parar de fazer o carro-chefe da padaria: "...a broa comprida, a broa tradicional. É a
broa de centeio."221
Se ela não me desse lucro, se ela me der prejuízo... Se ela me empatar eu continuo fazendo. Se
ela me der elas por elas eu continuo fazendo. Agora se ela me der prejuízo eu não vou
continuar fazendo. Se empatar eu continuo fazendo para manter a tradição. Porque o freguês
gosta, você vai ter sempre gente atrás. Se eu gastar e der empate, der elas por elas e outro
produto me der lucro no lugar eu vou continuar fazendo. Agora se me der prejuízo, a sobra for
muito maior, lógico que você vai procurar substituir por outro produto. Que aí esse é o lado
comercial também, né? Ninguém vive sem dinheiro. (...) Você precisa disso, vai fazer o quê...
Todo mundo tem o seu trabalho. Bom seria se ninguém precisasse trabalhar (risos).
221
LECHENAKOSKI, Lindamir. Op. cit.
109
... Agora, não pode deixar perder em nenhum ponto. Tem que continuar com a mesma força
que está sendo tocada antes. Do mesmo jeito ou melhorar (...) Porque é a tradição da casa. A
tradição da família. Nós fazemos o pão*, entendeu? É feito cada passo como era feito há
oitenta anos atrás (...) O nosso é artesanal (...) Na época do bromato, nós não usávamos o
bromato. E por aí se usava. Hoje, a pré-mescla pronta. Pré-mistura [farinha pré-misturada]
pronta que se usa por aí. Então o padeiro deixa, às 4 horas da tarde deixa pronto. Vai para uma
climatizadora e, amanhã às 6 horas da manhã o cara vai lá, põe no forno e assa aquela massa
feita hoje às 4 da tarde. Isso por aí, isso por fora. O nosso não. O nosso é feito no dia. Então
você não venha me dizer que um produto deste tem a mesma qualidade porque não tem. (...) O
nosso é artesanal, é desde o início. A gente faz uma massa básica, que a gente chama de massa
espoja, na noite do dia anterior, para ter uma massa com início de fermentação para ajudar na
fermentação da outra massa. O que é completamente diferente de você deixar o pão pronto.
Quase ninguém quer fazer [o pão d-água]! Essas padarias, essas panificadoras não tem. Então
lá tem. Muita gente não gosta do pão de água de lá porque acham muito massudo. Mas é
porque ele não tem bromato. O pessoal tá acostumado com esses mais fofos, mas esse tem
esse tal de bromato de potássio que se chama, não é? Lá eles não usam nada. Eles não usam
nada de produtos químicos. Isso ele [Bruda], o dono mesmo, falou pessoalmente para mim.
Ele não sabe o que é produto químico! Lá não entra. Ele era muito tradicionalista, e ele só
trabalha com a farinha e tudo do Moinho Curitibano. Ele tem uma parceria desde... E porquê?
Porque eles lavam os cereais antes de moer e ele viu uma vez uma lavagem destes cereais. Ele
foi lá, que tem um tonei grande que eles lavam, e é impressionante a sujeira que sai. Então ele
tem assim... Ele era fiel a esse moinho, que era o fornecedor. O senhor Bruda Engelhardt. Isso
foi num almoço do dia dos pais no Clube Rio Branco. Nós nos encontramos lá e ele contou. O
dia mais triste da vida dele foi quando teve que trocar o fomo à lenha pelo elétrico [o forno é à
gás], E ele sentiu a diferença do sabor. Que foi para ele chócame. Bom, é mesmo, não é. A
lenha é bem mais... inclusive o cheirinho... Até o sabor. Mas ele teve que se conformar porque
ele não podia mais ter aquele forno à lenha. Foi exigência da prefeitura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
223
ENGELHARDT, Eduardo Henrique. Op. cit
224
Id.
225
Id.
112
226
Bruda em entrevista para OLIVEIRA, Clécio. Vargas. "Padaria América - Há 73 anos
fazendo com capricho, o pão nosso de cada dia". Indústria e Comércio. 17 de julho de 1986.
113
227
MAKAROV, Petra. Op. Cit.
114
FONTES
FONTES IMPRESSAS
AOS 74 ANOS, "seu Bruda" é o padeiro mais antigo da cidade. Gazeta do Povo.
Curitiba, 4 de julho de 1992, p. 35.
BERGERSON, propaganda. In: VEJA - Curitiba. Especial. São Paulo: Editora Abril,
1998.
GENTE que é notícia. Ewaldo Ernesto Engelhardt (Bruda). Gazeta do Povo. Jornal da
Sociedade. Curitiba, 9 de agosto de 1992.
PADARIA América - Tradição do vovô ao neto. Pães e broas com sabor de 89 anos
de tradição. Bom Apetite. 2002.
ROZA, Deise. O comércio que vence o tempo. Gazeta do Povo. Curitiba, 16 de julho
de 2002.
SEU Bruda, há 58 anos fazendo pão aos curitibanos. Gazeta do povo, 4 de julho de
1992.
URBAN, Raul Guilherme. "O velho e o pão". Paraná & Cia, 28 de fevereiro de 1998.
VEJA - Curitiba. Guia 2001-2002 - o melhor da cidade. São Paulo: Editora Abril,
2001
3) fontes iconográficas.
FONTES ORAIS
A) Família América:
B) Clientes tradicionais:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERNARDO, T. Memória em branco e negro: olhares sobre São Paulo. São Paulo:
EDUC: Fundação Editora da UNESP, 1998.
BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. 2. ed. São Paulo: T.A. Queiroz:
Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
BRILLAT - SAVARIN. A fisiología do gosto. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
. P. O Paraíso Perdido. In: O CORREIO. Rio de Janeiro, n.7, p. 28- 30, jul.
1987.
CUCHE, D. A noção de cultura nas Ciências Sociais. Bauru: EDUSC, 1999, p. 179-
180.
FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. (Org.). Usos & abusos da história oral. Rio de
Janeiro : Editora da Fundação Getulio Vargas, 1996.
. Tempero, cozinha e dietética nos séculos XIV, XV e XVI. In: FLANDRIN, J.;
MONTANARI, M. História da Alimentação. São Paulo: Estação Liberdade, 1998. p.
478-495.
LINHARES, T. Paraná Vivo: um retrato sem retoques. Rio de Janeiro: Livraria José
Olympio Editora, 1953.
120
PROUST, M. Em busca do tempo perdido - O tempo redescoberto. 12a ed. São Paulo:
Globo, 1995
. Em busca do tempo perdido - O caminho de S wann. 15a ed. São Paulo: Globo,
1993
QUEIROZ, R. de. O Não Me Deixes - suas histórias e sua cozinha. São Paulo:
Siciliano, 2000.
ANEXO 1
A) "FAMÍLIA AMÉRICA"
padaria e lá ficou até 1970. Ajudava seu tio no balcão da loja. E casado e não possui
filhos. É médico.
125
B) CLIENTES TRADICIONAIS
Elfi Ruth Harlezki, (D. Elfi). Nascida aos 3 de março de 1930 é descendente
alemã "de ambas as partes." Casada há 48 anos com um senhor ucraniano, seu
sobrenome, segundo a mesma, é polonês: "Ele foi o primeiro imigrante depois da
guerra." Dona de casa, não tem filhos. Mora no bairro São Francisco. Não se lembra
desde quando conhece a padaria. Via seu avô, sua mãe, suas tias comprando broas e
pão, até que chegou a hora de ela mesma ir comprar. "Então fez parte da minha vida
sempre..." Sua religião é luterana e ela conta que morava na região da igreja situada na
frente da padaria, mas freqüentava a igreja luterana da Rua Inácio Lustosa, quase em
frente ao Shopping Müeller. Seu pai tocava o sino da igreja depois do culto, e sua tia
tinha um jardim de infância anexo à igreja. D. Elfi ainda freqüenta a padaria toda
semana: "pelo menos uma vez por semana", às sextas-feiras ou aos sábados, segundo
ela "para ter um pão bom para domingo, segunda, etc. E compro duas ou três, (...) se
puser no freezer no mesmo dia, ela parece fresca depois (...). A broa de centeio. Essa é
o carro chefe deles." D. Elfi morou em São Paulo por 30 anos e sempre que vinha
para Curitiba, levava as broas da Padaria América Ela gosta de comprar a broa de
centeio e o pão d'água. Gosta dos doces mas é diabética. D. Elfi diz que se deixasse de
comprar na padaria "...iria sentir muita falta."
Ivo Boutin, (sr. Ivo). Nasceu no dia 14 de janeiro de 1931. Casado, pai de três
filhos. O bisavô veio da Alemanha. Mora e trabalha no centro da cidade. E presidente
da empresa de adubos "Boutin". Sua religião é luterana. Freqüenta a padaria às sextas-
feiras e sábados. Conhece a padaria desde criança, pois seu pai já comprava lá. A
relação com a padaria é antiga, pois o lugar onde está situado seu estabelecimento
comercial pertencia à família Engelhardt. "Então meu pai já era cliente há muitos anos,
depois eu fui lá, porque casei e tudo. Fazem quarenta anos então que eu estou
comprando lá.". Ele compra a broa de centeio, a broa integral, a broa úmida e também
os frios.
126
Sr. Walter Kreder, (sr. Walter). Nasceu no dia 16 de julho de 1918. Casado, é
imigrante alemão. Veio para o Brasil com 5 anos de idade: " a viagem durou um mês
de navio. Desembarcamos em São Francisco do Sul, em Santa Catarina. (...) então
ficamos três meses lá em Joenvile. Mas é muito quente lá, meu pai não agüentou. Aí
inventaram (sic.) Curitiba." Sua família veio para o Brasil por causa da crise na
Alemanha. "A pior época na Alemanha, 23 [1923]. (...) Então fizeram muita
propaganda da Alemanha do Brasil. Elogiando, em slides, que lá era dono da terra...
Só que os coitados que vieram para cá , foram lá para terra no interior. Perderam tudo.
Quando não tinham mais nada para vender, eles vinham para cidade. Mas um no navio
alertou meu pai: 'não faça esta besteira, você vai perder tudo...' Então escapamos
desta!". Sr. Walter tem uma filha e uma neta que também freqüentam a padaria. É
luterano. Aposentou-se como técnico em contabilidade da Telepar. Foi o próprio sr.
Walter que começou a freqüentar a padaria, em 1955, já casado. Mora no bairro
Mercês e vai de ônibus à padaria. Compra além da broa de centeio, o cuque de
requeijão, o de damasco, bolo de chocolate, sonho e os frios: " Sempre a gente acha
uma coisa a mais do que a broa só (...) Nós, enquanto estamos vivos usamos esse
[pão]".
Brasil depois pois: "A Europa estava destruída, arrebentada. (...) jamais quem viu a 2a
Guerra Mundial achava que a Europa ia ser reconstruída tão rapidamente. Mas daí eles
[seus pais] eram jovens, quiseram se aventurar e vieram para o Brasil. (...) Amigos
falaram: 'o Brasil é o país do futuro.'" Petra foi batizada, mas não pertence a nenhuma
religião. Trabalhou durante 24 anos na área administrativa e hoje é aposentada. Mora
no bairro Mercês. Sua relação com a padaria começa mais ou menos em 1960, quando
ainda estudava no Martinus. Sua mãe também comprava na padaria. A cliente compra:
a broa de centeio, o sonho, o cuque, o chineque, as bolinhas de amendoim "que lembra
a infância da gente" e os frios. Agora que está aposentada não tem dia específico para
ir à padaria, mas quando trabalhava ia só aos sábados.
* D. Carmem é a nora de Reynaldo Garmatter, um dos cliente das notas de débito que estão em
anexo.
128
gente tem aqui em Curitiba. Não tem quem bata." Ela diz que "jamais" deixaria de
comprar o pão lá.
* parece uma lingüiça, mas na parte interna existe um patê de came suína.
129
ANEXO2
ANEXO 3
ANEXO 6