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O Conceito de Direito - HART Resumo Paulo Cinquetti Neto

O documento resume o conceito de direito de acordo com H.L.A. Hart. Hart critica as visões de direito como mero comando apoiado por ameaça e defende que o direito se caracteriza pela generalidade, permanência e estabilidade das normas, que diferem de ordens individuais. Ele também argumenta que normas jurídicas são diversas e não se resumem a meros comandos ou desejos do soberano.
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O Conceito de Direito - HART Resumo Paulo Cinquetti Neto

O documento resume o conceito de direito de acordo com H.L.A. Hart. Hart critica as visões de direito como mero comando apoiado por ameaça e defende que o direito se caracteriza pela generalidade, permanência e estabilidade das normas, que diferem de ordens individuais. Ele também argumenta que normas jurídicas são diversas e não se resumem a meros comandos ou desejos do soberano.
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O CONCEITO DE DIREITO

H. L. A. Hart

Resumo de Paulo Cinquetti Neto

1. Positivismo jurídico em Hart


Herbert L.A. Hart (1907-1992), autor de matriz positivista, expõe em sua obra “O
conceito de direito” as particularidades de sua doutrina positivista, dialogando e se opondo a
noções de outros autores considerados positivistas, como Jeremy Bentham, John Austin, e
Hans Kelsen. Deles
Ao inscrever-se na tradição positivista, Hart traz daí as premissas no sentido de que
o direito é um conjunto de normas (união de normas primárias e secundárias). Nesse sentido,
seguindo a tradição positivista, conquanto reconheça que haja várias e diferentes relações
contingentes entre o direito e a moral, entende que não há uma conexão conceitual necessária
entre eles ou seus conteúdos (o que não impede o direito de incorporar, desde que
expressamente, regras morais em seu sistema), razão pela qual considera que disposições
moralmente iníquas ou injustas não lhes retira a juridicidade, nem tampouco a validade
jurídica. Assim Hart, em sua teoria “descritiva” do direito, sem ignorar a importância da moral,
da justiça e de outros valores, lembra que uma norma injusta ou imoral continua existindo em
um sistema jurídico e pode, ainda assim, ser considerada válida. Fica clara, portanto, outra
característica própria (embora atualmente não exclusiva) dos positivistas em Hart: a separação
entre direito e moral (um dos principais pontos de divergência com Ronald Dworkin).
Em contraposição à Dworkin, Hart reputa equivocada a noção de que direitos e
deveres jurídicos carecem de força ou de justificativa moral quando eles não possuírem uma
fundamentação moral. Isso porque, para Hart, direitos e deveres jurídicos são elementos
através dos quais o direito protege e limita a liberdade individual, e por isso mesmo, i.e., pela
importância suprema que tem para os seres humanos, merecem atenção como pontos focais no
funcionamento do sistema jurídico, independentemente de seus méritos morais.
Antes de dar início a um esboço sistematizado de sua obra, uma última observação
se faz necessária. Hart se coloca no caminho intermediário entre o formalismo (ou
conceitualismo) e o realismo jurídico (a que ele também denomina de cetiscismo). Se por um
lado o formalismo (ou conceitualismo) levaria à uma fossilização do sistema jurídico
impedindo seu avanço e adequação às mudanças sociais, por outro lado, o ceticismo (realismo
jurídico), ao dizer que o direito é aquilo que os tribunais (e não as normas) dizem ser, acaba
negando a existência as normas e concebe equivocadamente, a atuação dos juízes como algo
ilimitado e não regrado por parâmetros normativos; ignora-se assim o que as normas são e que
elas existem. Pretende com isso evitar o falso dilema de que “Ou as normas são o que seriam
no paraíso formalista e acorrentam com grilhões, ou não há normas, apenas decisões e padrões
de comportamento previsíveis”. Assim, formalismo e ceticismo seriam apenas grandes
exageros (saudáveis, quando um corrige o outro), estando a verdade em um ponto entre eles. O
principal elemento de refutação do formalismo é Hart é a noção de textura aberta das normas e
sua admissão “ampla” da discricionariedade judicial. Ao passo que seu principal elemento de
refutação ao ceticismo é seu positivismo normativo, no qual concebe que (apesar da textura
aberta e da discricionariedade) os juízes, mesmo os do supremo tribunal, são parte de um
sistema cujas regras são suficientemente determinadas na parte central para fornecer padrões
de decisão judicial correta, ou seja, que os tribunais decidem baseados em normas.
Para chegar ao que julgou ser o centro do sistema jurídico e, portanto, de sua
teoria, a norma, Hart critica as noções de direito de Austin (como comando, ou de ‘uma ordem
apoiada por ameaça’) de Bentham (como comando e como soberania) e Kelsen (como norma
primária que estipula a sanção).
Considera, assim, que a mais marcante característica geral do direito é que certos
tipos de comportamento já não são opcionais, mas, em certo sentido, obrigatórios (p. 8). O
primeiro sentido em que o comportamento não é opcional é o caso em que alguém é obrigado a
fazer algo porque outra pessoa lhe ameaça com consequências desagradáveis (aqui se
encontra, para Austin, a chave para a ciência do direito). “Em que sentido, então, podemos
dizer que o direito e a obrigação jurídica diferem das ordens sustentadas por ameaças e como
se relacionam com estas?” (p. 9). Esse é o questionamento central que conduzem Hart nos
primeiros quatro capítulos de “O conceito de direito”. Um segundo questionamento é: também
as normas morais, assim como o direito, impõem obrigações e subtraem certa liberdade de agir
ao indivíduo, e, igualmente, se assemelham a ‘ordens’ apoiadas por ameaças, o que leva
muitos a compreender o direito como um “ramo” da moral ou da justiça. Ocorre que, conforme
Hart, moral e direito não se confundem, de modo que se deve evitar confusões que nos levem à
afirmações que ele entende ser equivocadas, tais como “uma lei injusta não é uma lei”.
Questiona-se, ainda: considerando que direito pode ser entendido como um sistema jurídico
composto por normas, o que são as normas? Que significa dizer que elas existem? Os tribunais
realmente aplicam as normas apenas simulam fazê-lo?
Na tentativa de definir o que é direito, portanto, parte-se de três questionamentos:
1º) “em que o direito difere das ordens baseadas em ameaças e como se relaciona com estas?
2º) “em que a obrigação jurídica difere do dever moral e como se relaciona com este?
3º) “o que são as normas e até que ponto elas são os elementos essenciais do direito?

A finalidade de sua obra não é fornecer uma definição de direito, no sentido de


uma norma (um conceito-modelo) através da qual se possa pôr à prova a correção do emprego
da palavra, mas sim fazer avançar a teoria do direito, oferecendo uma estrutura aperfeiçoada da
estrutura dos sistemas jurídicos e uma compreensão das semelhanças e diferenças entre direito,
coerção e moral (p. 22).

Para tanto, o ponto de partida de Hart é uma crítica a uma doutrina positivista que
chamou de ‘teoria imperativa simples’, i.e., a concepção de direito como “ordem apoiada por
ameaça”, que Austin chamou de “comando”. É o que Hart faz nos quatro primeiros capítulos
do livro, partindo do exemplo conferido por Austin, no qual compara os elementos de seu
conceito de direito (“ordem apoiada por ameaça”) à uma ordem reforçada por uma ameaça
dada por um assaltante.

Aqui Hart dá início à distinção entre Direito e Coerção:


Hart aponta três características do direito que devem excluir de plano o exemplo
do ‘modelo simples do assaltante’ e a noção de uma “ordem apoiada por ameaça” (comando).
1ª) Generalidade: segundo ele, o controle jurídico consiste principalmente (embora
não exclusivamente) em instruções que são gerais, i.e., (a) indica um tipo geral de conduta (e
não uma instrução individualizada para que determinada pessoa faça algo) e (b) se aplica a
uma classe geral de pessoas. De maneira que, utilizar a noção de ‘comando’ ‘dirigido’ a
alguém, deixaremos passar em branco uma diferença importante entre a criação de uma lei e o
ato de proferir uma ordem.
2ª) Permanência ou persistência: o assaltante não dá ordens permanentes ao caixa
do banco (embora possa dá-las à sua quadrilha), nem são ordem que são proferidas para serem
seguidas ao longo do tempo por várias classes de pessoas. As leis, ao contrário, tem esse
caráter de permanência ou persistência, que o conceito de “ordem apoiada por ameaça” não
consegue representar.
3ª) Estabilidade (ou continuidade): Não basta que haja “um hábito geral de
obediência” (noção que Austin utiliza para justificar a relação entre aquele que profere a
ordem e aquele que deve obedecer, entre o soberano e o súdito). A “obediência geral” encerra
uma distinção crucial entre as leis e o caso da simples ordem dada pelo assaltante: a
ascendência temporária de uma pessoa sobre a outra deve ser naturalmente considerado o
oposto do direito, com seu caráter permanente e estável. Para Hart, portanto, a obediência
habitual generalizada é incapaz por si só de reproduzir a estabilidade e continuidade que
caracteriza os sistemas jurídicos. (OBS: esse ponto é abordado mais a frente quando Hart
demonstra a necessidade da existência de normas que assegurem a continuidade do
ordenamento jurídico quando da sucessão de ‘soberanos’, oportunidade na qual desenvolve a
noção de aspecto interno).
No III capítulo (A diversidade das leis), Hart vai além das três características
acima citadas, e opõe outras objeções ao modelo simples das ordens coercitivas, dentre elas: (i)
nem todas as leis ordenam que se faça ou se deixe de fazer algo; existem leis que outorgam
poderes para fazer testamentos, celebrar contratos ou casamentos, e também leis que outorgam
poderes à juízes para decidir sobre determinados litígios, poderes à ministros para expedir
decretos, etc...; (ii) nem todas as leis constituem expressão do desejo de alguém como no
modelo de ordens coercitivas; (iii) nem todas as leis se dirigem à outros indivíduos, podem
também constituir regras a serem observadas por quem às expediu; (iv) nem mesmo devem
todas as leis, para serem consideradas leis, expressar a vontade concreta do legislador; (v)
tampouco perde o caráter de lei, aquela aprovadas por quem sequer soubesse o que ela (ou a
“ordem” que ela contém) significa.
Essas objeções expressam a conclusão básica de Hart de que há uma grande
diversidade de leis que – embora guardem semelhança como o modelo de ordens coercitivas –
não apenas constituem ‘ordens’, não apenas contém ‘ameaças’, não apenas emanam de um
‘soberano’ e se dirigem à pessoas diversas dele, os ‘súditos’. São objeções que chamam
atenção para a diversidade quanto ao conteúdo, ao âmbito de aplicação e à origem das leis e,
assim, se dividem em três tipos:
1) Quanto ao conteúdo das leis. Nem todas as leis seguem o modelo do direito
penal, no sentido de disciplinar condutas que devemos realizar ou das quais devemos nos
abster. Aliás, há importantes ramos do direito ao qual esse modelo sequer pode ser aplicado.
Leis que outorgam poderes para fazer testamentos, celebrar contratos ou casamentos, não
impõem deveres, tampouco ordens, mas conferem meios, capacidades ou poderes jurídicos
aos particulares para criarem estruturas de direitos e deveres. Se adotarmos o conceito de
ordens apoiadas por ameaças, estaremos ignorando essa característica do direito de outorgar
poderes aos indivíduos. Existem também normas que estabelecem a competência de
determinados juízes, normas que estabelecem a forma de provimento/nomeação de
determinados cargos, normas que especificam a forma de determinados atos ou procedimentos
a serem seguidos pelos tribunais. Não se pode dizer que nenhuma dessas normas vise compelir
o particular a fazer o deixar de fazer algo, o que vise dissuadir os juízes de cometer
improbidades (ao menos não essas normas específicas); elas tem o objetivo de definir as
condições e limites dentro dos quais são validos os atos e decisões dos particulares e dos
tribunais. Nem sequer se pode falar em sanção/ameaça/pena. Se um indivíduo deixa de
observar uma regra para a redação ou registro de um testamento, tratar-se-á de (in)validade,
nulidade ou anulabilidade do ato, não podendo equiparar-se a uma pena; as partes não
praticaram nenhum delito, o ato carecerá de status ou de efeito jurídico. No caso de uma
decisão judicial, está também poderá ser anulada ou reformada, mantendo sua autoridade
jurídica até que isso ocorra. Assim, é importantíssimo reconhecer a existência de normas
diversas daquelas que exigem ou vedam comportamentos, pois sem o reconhecimento de
normas que outorgam poderes careceríamos de umas das características mais notáveis do
ordenamento jurídico, como o exercício válido de poderes jurídicos tanto privados quanto
públicos.
Podemos subdividir esse item ‘1’ em outros 3 subitens:
1.a) A concepção de nulidade como sanção. Entender a nulidade como uma
sanção constitui uma descaracterização e distorção do conceito de nulidade, cuja
finalidade em nada tem a ver com coagir, ameaçar ou obrigar à prática de
determinado ato.
1. O conteúdo das leis: existem normas que apenas outorgam poderes (ex:
como fazer um testamento; qual o juiz competente). Mesmo as “nulidades”
decorrentes da violação de tais normas dificilmente poderiam ser vistas
como sanção, pois sem a própria norma outorgando poder não se
vislumbraria qual a conduta proibida. Trata-se antes da outorga de um
poder do que de um comando sob ameaça. Segundo Hart, tampouco tem
valia fazer como Kelsen e ligar tais normas a efetivas normas de sanção
(normas autônomas e não autônomas),
1.b) Concepção de normas que outorgam poderes como fragmentos de leis. Esse
subitem pode ser visto como uma crítica a concepção de Kelsen de que o direito é
“norma primária que estipula a sanção” ou de que apenas as normas primárias
merecem ser consideradas verdadeiras normas jurídicas, porque seriam as únicas
que estabelecem sanções e que, por isso, deveriam ser consideradas secundárias
todas as demais. O direito é o que ocorre principalmente fora dos tribunais. Ex: o
futebol não é um conjunto de regras que determina que o juiz aplique faltas e
assinale gols em dados momentos. Ele é o que acontece, na maior parte do tempo,
sem interferência do juiz.
1. c) A distorção como preço da uniformidade. A redução de normas que
outorgam poderes legislativos e judiciais à normas que criam obrigações e
deveres tem um efeito deletério e obscurecedor da esfera pública. “Pois a
introdução na sociedade de normas que capacitem os legisladores a mudar as
normas de dever e ampliá-las, e permitam aos juízes determinar quando essas
normas tenham sido violadas, é um progresso tão importante para a sociedade
quanto a invenção da roda” (p. 56).
2) Quanto ao âmbito de aplicação das leis. A lei penal é aquela cuja forma mais se
aproxima do modelo simples de ordem coercitiva, mas mesmo a ela tem características que
esse modelo pode nos impedir de ver: embora um monarca absolutista disponha de um poder
de criar leis que não o alcancem (e mesmo num sistema democrático possam-se criar leis que
não se apliquem aos que as fizeram), o âmbito de aplicação de uma lei sempre depende de
uma interpretação desta mesma lei. A atividade legislativa pode perfeitamente ter essa força
autovinculante. Conquanto o modelo de ordens coercitivas nos faça ver as leis como ordens
emanadas de alguém e dirigidas a outrem, não há nada na atividade legislativa
essencialmente voltada para o outro. A influência do modelo coercitivo é que nos força a ver o
direito como uma ordem dirigida de uma pessoa (ou soberano) à outras pessoas (súditos),
ordem da qual ficaria aquele excluído, quando na verdade nada excluí, de plano, o órgão
legislativo do âmbito de aplicação de sua própria lei. Para compreendermos o poder
autovinculante da legislação, podemos lançar mão de um recurso que compare a edição de
uma lei com o ato de firmar uma promessa ou compromisso. Ambos são atos que nos obrigam
o autor da declaração nela contida. Não obstante, segundo Hart, o mais importante é lembrar
que o elemento necessário à correção, ou melhor, à refutação do modelo de ordens coercitivas,
é uma concepção de cada nova legislação como a introdução ou modificação de padrões
gerais de comportamento a serem seguidos pela sociedade em geral. O legislador não é
análogo àquele que dá ordens a outro indivíduo, alguém que estaria, por definição, fora do
alcança daquilo que exige, e pode, portanto, estar circunscrito no âmbito destas
ordens/normas. (p. 59)
3) Quanto à origem das leis. É sabido que a promulgação de uma lei, assim como a
emissão de uma ordem, é um ato deliberado e datável. Neste item, porém, a questão cinge-se a
um tipo de direito que não se amolda facilmente à essa noção, que é o costume, ou o direito
consuetudinário (Hart usa aqui as expressões ‘costume’ e ‘direito consuetudinário’ como
sinonímias). Hart nos adverte que algumas normas do direito têm sua origem no costume
(conquanto o costume não tenha grande importância como fonte do direito no mundo
moderno, cf. p. 60) e que esses costumes não devem seu status jurídico a qualquer ato
deliberado de criação do direito, mas conclui que o costume só faz parte do direito se
pertence a uma classe de costumes “reconhecida” como direito por um sistema jurídico
específico, independentemente de já terem sido aplicadas ou não por um tribunal à um litígio.
Não se trata, portanto, da criação de um costume por lei, mas de um reconhecimento dele
como integrante de um sistema jurídico. Entretanto, ainda que só depois de uma decisão de um
tribunal se possa verificar a integração de um costume ao sistema jurídico, esse costume não
tem origem num ato deliberado. Portanto, as críticas aqui dirigidas ao modelo de ‘ordens
coercitivas de um soberano’ é que (1) essa teoria não explica a existência dos costumes dentro
de um sistema jurídico antes de sua aplicação por um tribunal (e assim acaba se assemelhando
ao realismo jurídico ou ceticismo jurídico, na medida em que diz que nada pode fazer parte do
direito a menos que, e até que, alguém tenha ordenado) e porque tal teoria não encontra
respaldo na realidade ao tentar explicar que o costume passou a constituir uma ordem por uma
vontade tácita do soberano (2). Cumpre lembrar que, para Hart, é um contrassenso que uma
norma jurídica não seja considerada como tal antes de ser aplicada pelo tribunal, pela mesma
razão que é um contrassenso uma norma ser aplicada sem que seja antes considerada como
integrante de um ordenamento jurídico.
Depois de demonstrar a inadequação conceitual de parte da teoria imperativa
simples, i.e., a concepção de direito como “ordem apoiada por ameaça”, Hart (no capítulo IV,
Soberano e súdito) passa a tecer críticas ao que chama de “doutrina da soberania”, colocando
em cheque, assim, as noções de soberano (que expede a ordem à todos e a ela não se submete),
súdito (pessoa à quem aquela ordem é dirigida) e de hábito de obediência (que caracteriza a
relação entre soberano e súdito). Hart lembra que a ideia de “ordem apoiada por ameaça”
pressupõe que em qualquer sociedade que exista o direito, há de fato um soberano e um súdito,
sendo o soberano caracterizado pelo fato de que suas ordens são dirigidas aos súditos, os quais
o obedecem habitualmente. Neste capítulo (IV), Hart levanta dois aspectos dessa doutrina: 1) o
hábito de obediência, questionando se este hábito é suficiente para explicar as características
da maioria dos sistemas jurídicos, quais seja, (a) a continuidade da autoridade de legislar e (b)
persistência das leis ao longo do tempo; 2) a posição ocupada pelo soberano, acima da lei,
investigando (a) se esse status juridicamente ilimitado do legislador supremo é necessário à
existência do direito, e (b) se a noção de hábito e obediência são suficientes para entender a
presença ou ausência de limites jurídicos ao poder de legislar.
Para tanto, Hart parte de um experimento mental no qual convida o leitor à
imaginar uma sociedade que vive em um território no qual um monarca absoluto chamado Rex
reina por um longo período: esse monarca controla seu povo através de ordens gerais apoiadas
por ameaças, que são frequentemente obedecidas. Hart deixa de supor, neste exemplo, que a
obediência prestada a todas as suas ordens seja caracterizada pela habitualidade, mas lembra
que, quando se encontra presente, o hábito da obediência constitui uma relação pessoal entre
cada súdito e Rex. Trata-se de uma sociedade e, portanto, de um modelo “jurídico” que pode
ser caracterizado como primitivo.
a) Da continuidade do poder de fazer leis
Deste exemplo acrescenta um novo elemento e indaga: Caso Rex morra e seja
sucedido por seu filho Rex II, o que garante a este a continuidade do poder de fazer leis se
ainda não existe um hábito nem uma regra de sucessão? Conclui assim que a ideia de
obediência habitual fracassa de duas maneiras:
I – O mero hábito de obediência às ordens de um legislador não pode outorgar ao novo
legislador o direito de suceder o antigo e de dar ordens em seu lugar;
II – A obediência habitual ao antigo legislador não torna, por si só, provável nem fundamenta
uma presunção de que as ordens do novo legislador serão obedecidas.
Neste ponto, Hart conclui que para que haja CONTINUIDADE do poder de
legislar deve haver não um habito, mas (a) uma NORMA que estabeleça que um novo
legislador tem direito à sucessão e (b) que esta norma seja ACEITA.
Hart chama atenção, assim, para dois importantes elementos em sua obra, a
necessidade da existência de uma norma e sua aceitação (em que consiste essa aceitação), e
reforça a ideia de indispensabilidade de uma norma que dote um legislador de tal autoridade,
na medida em que apenas uma norma (com tais poderes), e não um hábito, pode explicar e
justificar a autoridade para legislar (i.e. o poder de estabelecer padrões de comportamento) e a
continuidade desse poder. A análise da sucessão de legisladores (Rex I e Rex II) ajuda a
demonstrar que a continuidade da autoridade legislativa depende daquela forma de prática
social que consiste na aceitação de uma norma, e difere do fato da mera obediência. O hábito
de mera obediência é insuficiente para explicar o direito por diversos motivos: (i) os hábitos
não são normativos (não outorgam direitos nem conferem autoridade a ninguém); (ii) os
hábitos de obediência a um indivíduo não podem se referir ao mesmo tempo a uma classe ou
linhagem de legisladores futuros e sucessivos e ao atual, nem tornar provável a obediência
àqueles.
É assim que Hart aponta as semelhanças e distinções entre um HÁBITO e uma
NORMA SOCIAL: Semelhança entre normas sociais e hábitos: - em ambos, o
comportamento em questão deve ser geral – não necessariamente invariável, ou obedecido por
todos –, i.e., o comportamento em uma norma social ou hábito se verifica quando é repetido
pela maior parte do grupo. Pode-se dizer que há uma conduta generalizada empiricamente
observável.

Diferenças entre normas sociais e hábitos:


Hábitos sociais Normas sociais
Basta que haja uma convergência geral de Não é suficiente uma convergência geral de
comportamento. Caso alguns indivíduos comportamento. Quando existe uma norma, os
afastem-se da conduta usual, não serão alvo desvios são vistos como lapsos ou erros sujeitos à
de críticas. crítica, razão pela qual as ameaças de desvio
sofrem pressão social exigindo uma obediência.
Não há qualquer razão que justifique uma Onde existem essas normas o desvio em relação
crítica/censura àqueles que se afastam de um ao padrão de comportamento por elas estabelecido
hábito é visto como uma boa razão para que a
crítica/censura seja feita. Essa crítica/censura é,
portanto, vista como legítima ou justificada, assim
como o padrão de comportamento socialmente
imposto.
Aspecto externo: Consiste no aspecto Aspecto externo e interno: Além do aspecto
empírico da conduta: é um comportamento externo, a norma social possui um interno, que
costumeiro e uniforme que um observador consiste no fato de que as pessoas (não
externo poderia registrar (uma conduta necessariamente todas) encarem o comportamento
generalizada empiricamente observável). em questão como um padrão geral a ser seguido
Quando um hábito é generalizado, essa pelo grupo como um todo. É quase como as
generalidade é apenas a constatação de um regras de um jogo de futebol ou xadrez, os
fato sobre o comportamento do grupo. Para jogadores têm uma atitude crítica e reflexiva
que tal hábito exista, não é preciso que diante desse padrão de comportamento, ou seja,
nenhum membro do grupo reflita sobre esse adotam uma atitude normativa em relação à regra
comportamento, e ainda menos que se esforce nela contida: consideram obrigatório o padrão de
para ensiná-lo ou preservá-lo. conduta e o utilizam como referência para crítica
e autocrítica.
Não se trata, portanto, de uma questão de
“sentimentos”. A existência de “sentimentos” não
é nem necessária nem suficiente para entender
esse aspecto (que há nas normas sociais e não nos
hábitos). O que é necessário é que haja uma
atitude crítico reflexiva diante de certos padrões
de comportamentos aceito como modelo comum,
e que essa atitude se manifeste como forma de
crítica/censura e exigência de obediência.
b) Da persistência das leis ao longo do tempo
Aqui temos o inverso do problema da continuidade. Utilizando-se do mesmo
experimento mental, Hart questiona: como pode a lei ser feita por um legislador anterior,
falecido há muito, ainda ser lei para uma sociedade da qual não se pode dizer que lhe
obedece habitualmente? O hábito de obediência não é capaz de explicar “por que isso ainda é
lei?”.
Novamente aqui, Hart lembra da imprescindibilidade de uma “norma aceita” que
estabeleça uma regra de vigência (persistência/manutenção) de um ordenamento editado por
um legislador anterior.
Ainda neste IV capítulo, Hart expõe dois outros problemas relativos à doutrina da
soberania e sua noção de obediência habitual: c) “existem limites jurídicos ao poder legislativo
e quais seriam estes limites?” e d) “há algum soberano por trás do poder legislativo e quem
seria ele?”
c) Limites jurídicos ao poder legislativo
A teoria da soberania entende que, aonde quer que exista o direito, existe um
soberano com poderes juridicamente ilimitados (embora possa sofrer limitações ou concessões
de outras ordens), ao qual os súditos obedecem habitualmente, mas que ele mesmo não precisa
se limitar por suas próprias ordens. Ocorre que a concepção de um soberano não limitado
juridicamente deturpa a representação da natureza do direito em muitos Estados modernos,
nos quais o poder legislativo está longe de ser ilimitado.
As considerações tecidas por Hart são por ele resumidas da seguinte forma: (1ª) as
limitações jurídicas à autoridade legislativa não consistem em deveres impostos ao
legislador para que ele obedeça a um legislador superior, mas sim em inabilitações jurídicas
contidas nas normas que o qualificam para legislar; (2ª) para que um ato legislativo seja
reconhecido como lei, não é necessário que tenha sido editado por um legislador
“soberano” ou “ilimitado” (seja no sentido de uma competência ilimitada ou no de que ele
não obedece habitualmente a ninguém) – em vez disso, devemos demonstrar que a lei foi
editada por um legislador qualificado para legislar de acordo com uma norma existente e
que essa norma ou não contém restrições ou as restrições não se aplicam àquela lei
específica; (3º) para demonstrar que nos defrontamos com um sistema jurídico independente,
não precisamos provar que seu legislador não está sujeito à restrições ou que não obedece
habitualmente a ninguém, precisamos tão-somente demonstrar que as normas que qualificam
o legislador não conferem autoridade superior aos que também detém autoridade sobre outro
território; (4º) devemos distinguir duas noções diversas: uma autoridade legislativa não
sujeita a limites e uma autoridade que, embora limitada, é suprema no interior do sistema
(ex. Rex pode ser a mais alta autoridade legislativa, mas sua vontade está limitada por uma
constituição); (5º) embora seja crucial a questão sobre a existência ou inexistência de
normas que limitem a competência do legislador, os hábitos de obediência destes não são
relevantes para essa questão: se ele obedece habitualmente alguém, isso é no máximo um
indício de que sua autoridade para legislar não costuma estar constitucionalmente ou
juridicamente; e se ele obedece, isso é só um vago sinal de que sua autoridade para legislar
possui subordinações jurídicas.

d) O soberano por trás do poder legislativo


Se todos os cidadãos têm o hábito votam para eleger um ‘soberano’, ou se só um
grupo de pessoas possui esse hábito, poderíamos dizer que uma norma que defina esse hábito
como regra é apenas a descrição de um hábito de obediência da população? Hart responde
negativamente e lembra que, como se tratam de normas que definem o que a população deve
fazer, não podem ter elas próprias a condição de ordens proferidas pelo soberano, pois nada
pode ser considerado como tal a menos que as normas já existam e já tenham sido seguidas.
As normas são, na verdade, constitutivas do soberano. E não há nada de
absurdo na ideia de que um monarca hereditário como Rex goze de poderes legislativos
sujeitos a restrições, poderes esses que são simultaneamente limitados e supremos dentro do
sistema.
A noção de hábito de obediência sequer pode explicar o exercício da soberania
popular, nem mesmo em uma democracia representativa. A teoria que trata o eleitorado como
soberano, por seu turno, explica apenas, quando muito, o caso de um poder legislativo limitado
numa democracia onde existe um eleitorado. Em vez disso, é necessária a noção de uma
norma que outorga poderes a pessoas dotadas de determinadas qualificações para legislar,
desde que observem determinados procedimentos.

Antes de analisar a conclusão a que chega Hart, no sentido de que o direito, ou


melhor, o sistema jurídico é um modelo complexo de união de regras primárias e secundárias
(capítulo ), continuarmos a expor as características fundamentais de seu positivismo e dos
elementos que os distinguem de outros autores positivistas. Entretanto, cabe trazer aqui
elementos caracterizadores da obrigação jurídica tratados naquele capítulo (v). Após lembrar
que as expressões “ter uma obrigação” e “ser obrigado a” são diferentes (a primeira caracteriza
uma norma jurídica enquanto a segunda uma ordem específica), a obrigação jurídica é
caracterizada:
a) pela seriedade da pressão social em apoio às norma que a institui - é esse o principal
fator que determina se as normas são vistas como criadoras de obrigação;
b) pela crença da necessidade de determinada obrigação à manutenção da vida social ou
de suas característica mais valorizadas sociedade, independente da sanção a elas
estabelecidas;
c) pelo sacrifício ou renúncia à um interesse pessoal em face de um dever ou obrigação –
por mais que uma norma criadora de obrigação represente um benefício, eventualmente
conflitará com aquilo que a pessoa obrigada deseja fazer;

Por essas características se denota que a obrigação jurídica estabelece um vínculo


que ata a pessoa compelida pela pressão social, e, ao se verificar uma infração ao padrão de
conduta, sabe-se que a esta infração constituirá um sinal de que poderá haver uma reação
hostil. Mas, mais do que um sinal (ponto de vista externo), a infração constitui uma razão para
a hostilidade (ponto de vista interno).
Além de centrar o sistema jurídico na norma, concluindo que o direito não se trata
de uma simples questão de “comando”, ou de “ordem coercitiva caracterizada pela cominação
de uma sanção”, Hart também critica aquilo que chama de “teoria preditiva”. Essa teoria parte
de uma das características da punição/sanção, qual seja, sua previsibilidade, para concluir que
o direito (e as normas jurídicas) fazem prever a aplicação da pena. Hart critica essa noção
porque, além de irrelevante para os objetivos do juiz, ignora que a as infrações às normas não
são apenas os motivos para prever que reações hostis se seguirão mas são também a razão e
justificativa para punir o infrator. Segundo o autor: “Se a afirmação de que uma pessoa tem
uma obrigação significasse realmente que essa pessoa provavelmente sofreria algum mal em
caso de desobediência, seria contraditório dizer que essa pessoa tinha a obrigação, por
exemplo, de se apresentar para o serviço militar”. Deste modo, verifica-se em Hart, a
preocupação não apenas de buscar explicar a natureza da coerção, mas também em
desmistificar a teoria (preditiva) que vê nos enunciados jurídicos uma previsão, chamando
atenção para o aspecto interno das normas. A norma não é em Hart uma previsão
(probabilidade) ou estimativa das possibilidades.
É nesse sentido que se diz que Hart analisa o direito também enquanto fenômeno
linguístico da lei (que, por vezes, pode ser entendida como um ato performativo da
linguagem), como algo que não é apenas descritivo, mas que representa uma determinação,
uma exigência, uma ação, ou como diz o autor, um “padrão de conduta”.

2. Conceituação do direito e 4. O direito como união de regras primárias e


secundárias.

Antes de abordar propriamente o que seriam regras primárias e secundárias, cumpre


lembrar que Hart não pretende que essa “união de normas (...)” seja encontrada onde quer
que a palavra “direito” seja usada “corretamente”, pois a diversidade de casos nos quais a
expressão direito é usada não está alinhavada por uma uniformidade simples desse tipo, o
que importa é que a maioria das características do direito pode ser apresentada de maneira
mais clara quando compreendidos esses dois tipos de normas e a relação entre eles (p. 105).

Após elidir a noção austiniana de direito como ‘comando’ (ordem apoiada pela
ameaça de uma sanção), Hart lembra que este conceito falha por não compreender aquilo
que reputa a forma mais elementar do direito: a norma.
Assim, Hart vê o direito como uma união de regras primárias e secundárias. As
primeiras são por ele considerado um “tipo básico” de normas que exigem que os seres
humanos pratiquem ou se abstenham de praticar certos atos, queiram eles ou não. As
segundas autorizam e regulamentam a criação de novas regras primárias, extinção ou
modificação de regras antigas, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou
fiscalizar a sua aplicação; ou seja as normas secundárias estipulam que os seres humanos
podem, ao fazer ou dizer certo tipo de coisas, introduzir novas normas do tipo principal
(regras de comportamento, p.ex. estabelecidas por um contrato), extinguir ou modificar
normas antigas ou determinar sua incidência (através de um processo legislativo), ou ainda
controlar sua aplicação (pelo judiciário ou por outros agentes do Estado).

As normas primárias existem em qualquer sistema jurídico, mas é possível conceber


uma sociedade desprovida de normas secundárias e, portanto, de um poder legislativo, de
tribunais ou autoridades de qualquer espécie. Tratar-se ia de uma sociedade que somente
comporta normas primárias. Mas apenas uma pequena comunidade ligada por laços de
parentesco, sentimentos e convicções comum em um local estável poderia sobreviver
somente sob tal tipo de leis e, as normas em um grupo como este não constituiriam um
sistema, mas apenas um conjunto de padrões isolados sem nenhuma característica
identificadora comum.
Não obstante, diante da possiblidade da existência de comunidades tais, Hart verifica
a existência de três problemas referentes à uma sociedade sem normas secundárias e
identifica que o remédio para cada um destes três defeitos principais consiste em
complementar as regras primárias de obrigação com regras secundárias, as quais são
regras de diferente espécie.
Os três problemas que tornam esse sistema: (1) estático, marcado pela (2) incerteza,
e pela ineficiência. E são problemas cujas soluções são três normas, respectivamente: (1)
normas de modificação, (2) norma de reconhecimento, e (3) normas de julgamento. São
estas as normas secundárias, e que se situam em um plano diverso das primárias, porque
versam sobre estas.
Incerteza: A incerteza caracteriza uma sociedade em que as normas não possuem
nenhuma característica identificadora comum (são um conjunto de padrões isolados), não se
podendo dizer “o que” ou “quem” confere juridicidade a elas. A forma mais simples para a
solução da incerteza é a introdução de “norma de reconhecimento”. Essa norma especifica
características que serão consideradas como indicação conclusiva de que se trata de uma
norma do grupo e que é, portanto, uma norma válida, a ser apoiada pela pressão que este
exerce. Ela pode assumir várias formas, p.ex.: pode fazer referência a quem promulgou a
norma, à época em que ela foi promulgada, à valores morais, etc. É, portanto, a fonte da
autoridade (e validade) de uma norma.
Estático: é o caráter das normas cuja única forma de modificação é o “lento processo
de crescimento” ou modificação social (como a formação, alteração ou dissolução de um
costume, hábito ou norma social). A solução é a introdução de “normas de modificação”
que autorizasse a alteração de normas de um sistema, com a introdução de novas normas e
modificação e exclusão daquelas então existentes. Estas possuem uma estreita conexão com
as regras de reconhecimento, pois quando as primeiras existirem, as últimas terão
necessariamente de incorporar uma referência à legislação como um aspecto identificador
das regras, embora não necessitem de referir todos os detalhes processuais envolvidos na
legislação.
Ineficiência (embora a tradução diga ineficiência, seria mais adequado entender que
o autor se refere à “ineficiência”): A falta de determinações dotadas de autoridade acarreta a
ineficiência de normas apoiadas unicamente na pressão social difusa. O remédio para isso
também consiste em normas secundárias que capacitem determinados indivíduos a
solucionar, de forma autorizada, o problema de saber se houve a violação de uma norma;
seriam a “normas de julgamento” que, além de identificar os indivíduos que deverão julgar,
também definem os procedimentos a serem seguidos.
Assim como as demais normas secundárias, estas (normas de julgamento) não
impõem deveres, mas conferem poderes. Segundo Hart, ela será também uma espécie de
norma de reconhecimento na medida em que identificará as normas primárias por meio dos
julgamentos dos tribunais e esses julgamentos também se tornarão “fonte” do direito
(observe-se, aqui uma característica “anglosaxônica” de Hart: ele concebe como principais
“fontes”, ou melhor, como formas principais de comunicação do direito a legislação e o
precedente).
A combinação de normas primárias e secundárias, e sobretudo a estrutura resultante
destas torna-se não apenas o cerne de um sistema jurídico, mas também um poderoso
instrumento para a análise dos problemas que intrigam juristas e teóricos da política.
Cabe observar que Hart, na construção dos elementos de seu conceito de direito,
ressalta que é necessário trabalhar com o “conceito” (uma noção) mais abrangente de direito.
Esse conceito seria aquele que considera como direito normas moralmente iniquas ou
injustas, de modo que o “conceito” (noção) restrito seria aquele que não compreende dentro
do direito as normas imorais ou ilegais. Um “conceito” (uma noção) mais abrangente, ao
incluir normas – ou sistemas – moralmente iníquos ou injustos, possibilitaria estudar as
características destas leis imorais ou injustas, a reação da sociedade a elas, os métodos de
controle social, permitiria distinguir o que “é” o direito do que ele “deveria ser”, e também
analisar as características que distinguem fenômenos diversos como direito e moral,
evitando confusões entre eles. Hart entende que um conceito restrito, além de não permitir
tais análises e confundir certos conceitos, não formar pessoas mais resistentes à regimes
autoritários ou imorais, como alguns afirmam.
Um pouco mais dos conceitos aqui tratados serão abordados no tópico abaixo (ver
sobretudo questionamento ‘II’ do item abaixo).

3. Semelhanças e diferenças entre direito, coerção e moral.

Já foram explicadas as diferenças entre coerção e direito e coerção e moral no item


‘1’, aonde Hart rejeita a noção que inclui no conceito de direito o elemento “comando” ou
“ordem apoiada por uma ameaça”.

5. Regra de conhecimento e validade jurídica.

Já dissemos acima que a “norma de reconhecimento”, forma mais simples para a


solução do problema da incerteza, especifica características que serão consideradas como
indicação conclusiva de que uma determinada norma se trata de uma norma do grupo e que
é, portanto, uma norma válida, a ser apoiada pela pressão que este exerce. Ela pode assumir
várias formas, p.ex.: pode fazer referência a quem promulgou a norma, à época em que ela
foi promulgada, à valores morais, etc. É, portanto, a fonte da autoridade (e validade) de uma
norma.
Em Hart a norma de reconhecimento constitui o fundamento de validade das demais
normas. Vale dizer: para que uma norma existente seja válida ela deve conter uma das
características (ou obedecer à critérios) estabelecidos pela norma de reconhecimento.
Cumpre observar que uma norma pode existir, mas não ser válida, e pode ser válida, mas
ineficaz. Hart distingue, portanto, os planos da existência, validade e eficácia das normas
(com uma exceção que será vista a seguir: em relação a norma de reconhecimento, ainda que
se possa dizer que se tratam de planos distintos, não é possível identificar, na prática, que ela
existe se não tiver eficácia, i.e. se não for aplicada).
A norma de reconhecimento, que estabelece os critérios para avaliar a validade de
outras normas do sistema, é uma norma última (ultimate rule); e, quando houver diversos
critérios hierarquizados por ordem de subordinação e primazia, um deles será considerado
supremo (supremo).

Um critério de validade ou fonte do direito é supremo se as normas identificadas


mediante referência a ele são reconhecidas como normas do sistema mesmo que conflitem
com outras normas: neste caso, estas últimas não serão reconhecidas como normas do
sistema quando conflitarem com as primeiras (com as normas identificadas mediante
referência ao critério de validade ou fonte prevista na norma de reconhecimento).

Quando se fala de uma norma última (ultimate rule), Hart parte do pressuposto
segundo o qual para aferir a validade de uma norma, devemos utilizar um critério de
validade oferecido por outra norma. Daí para aferir a validade de uma portaria ela deve
respeitar um decreto, e esse decreto deve encontrar fundamento de validade em uma lei, e
assim sucessivamente até chegarmos à norma última que confira validade a todas as demais,
esta é a norma de reconhecimento.

Ao se indagar, porém, sobre a validade da própria norma de reconhecimento, Hart


explica que esta não pode ser considerada válida ou inválida, porque seu uso já é aceito
como apropriado. Para Hart, portanto, não há sentido na pergunta sobre a validade da
norma de reconhecimento, porque ela já é uma norma aceita. Entretanto, para Hart ela não é
e não pode ser uma norma suposta ou pressuposta (p. 140 e 141, aonde Hart diz que, por
isso, pode-se supor a validade, mas não se pode pressupor a existência da norma de
reconhecimento, porque só se falará dela se ela realmente existir, ou seja, se se constatar que
os tribunais a aplicam). Ela é uma norma que de fato existe e pode ser constatada porque se
trata da prática com “prática complexa, mas normalmente concordante, dos tribunais, dos
funcionários e dos particulares, ao identificarem o Direito, por referência a certos
critérios”. Sua existência é uma questão de fato e não de direito (e, portanto, não de
validade). Esse é um dos aspectos que a distingue das demais normas, porque enquanto essas
possam existir (e até serem válidas), mesmo que não tenham eficácia, por serem
desobedecidas ou por nunca terem sido aplicadas, por seu turno, a norma de reconhecimento
só existe como prática dos tribunais. Ainda nas palavras do autor, em seu livro a norma
fundamental de reconhecimento é tratada como uma norma constituída pela prática
uniforme dos tribunais, quando a aceitam como orientação para suas operações de
aplicação da lei (p. 333).
Ainda dois desdobramentos dos questionamentos anteriores são pertinentes:

I – Como demonstrar que as cláusulas fundamentais de uma constituição (como,


p.ex., uma norma de reconhecimento) são realmente normas jurídicas? Para tanto Hart,
podemos compreender que a norma de reconhecimento, por exemplo, comporta duas
dimensões, a de fato e de norma. Ou seja, a norma ultima de reconhecimento pode ser
encarada de dois pontos de vista: um é expresso no enunciado factual externo de que a
norma existe na prática real do sistema; o outro pode ser visto nos enunciados internos de
validade, que são aqueles utilizados pelos indivíduos que irão “identificar o direito” através
dos critérios fornecidos pelo sistema, i.e., são aqueles utilizados pelos indivíduos que irão
verificar se uma norma pertence validamente ou não ao sistema jurídico.

II – Quando se pode afirmar que um determinado sistema jurídico existe? Pelo fato
de um sistema jurídico ser a união complexa de normas primárias e secundárias, é necessário
compreender as diferentes relações entre a pessoa e o direito na existência desse sistema. O
fundamental é que haja uma aceitação oficial, unificada e comum da norma de
reconhecimento (tal como uma “prática complexa dos tribunais...” – não bastando um
“habito de obediência dos súditos”). Assim, exigem-se duas condições mínimas, necessárias
e suficientes, para a existência de um sistema jurídico: Por um lado, as regras de
comportamento que são válidas segundo os critérios últimos de validade do sistema devem
ser geralmente obedecidas, e por outro lado, as suas regras de reconhecimento
especificando os critérios de validade jurídica e as suas regras de alteração e de
julgamento devem ser efetivamente aceitas como padrões públicos e comuns de
comportamento oficial pelos seus funcionários. A primeira condição é a única que os
cidadãos privados necessitam de satisfazer: podem obedecer cada qual “ por sua conta
apenas” e sejam quais forem os motivos por que o façam. (...) A segunda condição deve
também ser satisfeita pelos funcionários do sistema. Eles devem encarar estas regras como
padrões comuns de comportamento oficial e considerar criticamente como lapsos os seus
próprios desvios e os de cada um dos outros. Assim, a afirmação de que o sistema jurídico
existe é uma declaração bifronte como Jano, que contempla tanto (1) a observância por
parte dos cidadãos comuns quanto (2) a aceitação das normas secundárias pelas
autoridades, que encaram tais normas como padrões críticos comuns para o
comportamento oficial. Por um lado, se numa estrutura pré-jurídica (no direito primitivo
aonde existam tão somente normas primária), se o ponto de vista interno não estiver
amplamente disseminado, num caso extremo, pode ser que não haja norma alguma. Por
outro lado, num sistema jurídico (onde exista a união de normas primárias e secundárias),
também num caso extremo, ponto de vista interno poderia ficar limitado ao “mundo oficial”
– no qual só as autoridade aceitariam a utilizariam os critérios de validade jurídica do
sistema (como padrões críticos comuns para o comportamento); mesmo neste caso, em que
um sociedade possa ser deploravelmente subserviente ou acarneirada, não há motivos para
negar que aí exista um sistema jurídico (Lembre-se aqui que Hart, na construção dos
elementos de seu conceito de direito, ressalta que é necessário trabalhar com um conceito
mais abrangente de direito que inclua inclusive normas – ou sistemas – moralmente iníquos,
porque esse conceito permitiria estudar as características destas leis imorais ou injustas, a
reação da sociedade a elas, os métodos de controle social, possibilitando distinguir o que “é”
o direito do que ele “deveria ser”, e também analisar as características que distinguem
fenômenos diversos como direito e moral, evitando confusões entre eles. Hart entende que
um conceito restrito, além de não permitir tais análises e confundir certos conceitos, não
formar pessoas mais resistentes à regimes autoritários ou imorais, como alguns afirmam).

Uma observação final deve ser feita. A norma de reconhecimento não é para Hart
aquele teste de pedigree de que Dworkin fala. A crítica de Dworkin à Hart vem do fato de
que aquele entende que a norma de reconhecimento seria um teste de pedigree segundo o
qual se pode dizer que uma norma é ou não válida; de modo que toda norma que derivasse
da norma de reconhecimento seria válida. Ocorre que para Hart a norma de reconhecimento
não é uma norma da qual derivam as demais, mas uma norma que confere
critérios/características que tornam válida ou inválida uma norma. Uma norma de
reconhecimento, portanto, pode fazer referência a características atinentes a quem editou a
norma, ou à época em que ela foi editada, ou à valores morais, ou a todas essas
características em conjunto; isso dependerá do tipo de ordenamento.

Além disso, não é demais recordar que a norma de reconhecimento não é


necessariamente uma norma escrita. Como ela decorre de uma prática (dos tribunais), ela
pode não ser uma norma expressa, mas implícita em um sistema judicial que se utiliza de
determinados critérios (como p.ex. aqueles acima referidos) para declarar a validade ou
invalidade de uma norma. Ela não precisa, portanto, ser promulgada por um órgão
legislativo com poderes autorizados, bastando que seja aceita e aplicada pelos tribunais. E
essas características não lhe retiram o caráter de norma.
6. A textura aberta do Direito.

Para Hart as normas, os princípios, os padrões de conduta (em suma, o direito) são
instrumento de controle social.

Para se comunicar, o sistema jurídico deve ser formado por regras gerais (e não por
ordens particulares) e pode transmitir esses padrões de conduta de duas formas: a legislação
e o precedente. É através deles que as regras gerais serão expressadas para serem aplicadas a
uma variedade de situações que não foram (e não podem ser humanamente) previamente
consideradas, dado o grau de imprevisibilidade das inúmeras condutas possíveis, bem como
das novas situações que podem surgir a partir das transformações sociais.

No precedente, a transmissão é feita através do exemplo. Entretanto, tal forma de


transmissão pode deixar em aberto um amplo leque de possibilidades e, portanto, dúvidas,
sobre o que se pretende, e sobre a indeterminação de quais questões já estariam
compreendidas no exemplo.

Na legislação, o uso de formas gerais linguísticas explícitas parece clara confiável e


segura. Representa vantagens em relação a linguagem do exemplo na medida em que o
indivíduo não tem que especular de que forma sua conduta se assemelha ou não ao exemplo,
e permite detectar o que deve ser feito no futuro e quando fazê-lo.

No entanto, mesmo quando se utilizam normas gerais formuladas verbalmente,


podem surgir, em casos concretos específicos, incertezas quanto ao tempo de
comportamento por elas exigido. As situações particulares “não esperam por nós” já
diferenciadas entre si e rotuladas como exemplos de uma ou de outra norma geral, nem a
norma geral pode conferir exemplos de si mesma. Há um limite inerente à linguagem em
todos os campos. Além disso, nem mesmo os cânones interpretativos são suficientes para
eliminar as incertezas, servindo apenas para minorá-las, pois não podem solucionar todos os
conflitos; os cânones são também normas gerais e, assim, exigem eles próprios
interpretação.

Há, portanto, ao lado de uma zona de certeza, uma zona de imprecisão, uma zona de
penumbra. No exemplo de Hart, uma regra que proíba a entrada de veículos no parque pode
ser levado a um parque, teria uma zona de certeza quanto aos carros, motos, ônibus, mas
também haveria uma zona de incerteza/imprecisão/penumbra, quanto às bicicletas, skates,
patins, um carrinho de brinquedo. A indeterminação da linguagem humana revela que as
regras possuem essa zona de indeterminação. E, diante dessa crise na comunicação, há
sempre uma escolha entre alternativas abertas. Cabe lembrar, porém, que essa escolha não é
ilimitada, e encontra sempre limites nas normas. Essa textura aberta, embora ponha fim a
ideia de que a linguagem habilite o aplicador a identificar facilmente todas as hipóteses de
uma regra, não constitui uma carta em branco ao aplicador.

Qualquer que seja a estratégia usada para a transmissão de padrões de


comportamento, o precedente ou a legislação, ela se mostrará imprecisa em algum ponto. É
o que se chama de textura aberta. Não é crível, portanto que uma norma, por mais detalhada
que seja, já saiba responder ‘antecipadamente’ se é aplicável a um caso particular ou não,
sem envolver, no momento de sua aplicação real, uma nova escolha entre alternativas
abertas. Para Hart essa escolha nos é imposta pela condição humana, que nos obriga a
trabalhar com duas desvantagens: somos relativamente ignorantes em relação aos fatos; há
uma imprecisão dos objetivos por nós perquiridos, até mesmo quando promulgamos uma
norma. Em suma, isso se dá porque os legisladores humanos que são não podem ter o
conhecimento de todas as combinações de circunstâncias possíveis que o futuro pode trazer
e essa imprevisibilidade traz consigo uma relativa imprecisão de objetivos.

OBS: Para Hart essa escolha é inevitável, e o grande problema do formalismo ou


conceitualismo é disfarçar ou minimizar a necessidade dessa escolha. Ao fazê-lo, os
formalistas pretendem congelar o sentido da norma de tal maneira que seus termos gerais
tenham o mesmo sentido em todos os casos e em qualquer período da história,
independentemente das consequências sociais desse modo de aplicação da norma.

OBS2: Essa linguagem metafórica utilizada por Hart visa comparar o direito à um
tecido com tramas abertas, como uma ‘rede de pesca, em contraposição à uma trama
fechada, como seria a de um agasalho. Assim, as normas jurídicas têm um tecido aberto,
uma trama aberta, uma textura aberta, razão pela qual, diante de determinadas circunstâncias
(uma alteração no sentido de uma expressão, uma mudança na sociedade, o surgimento de
um caso incomum), elas podem passar a disciplinar coisa que não eram tratadas por elas ou
podem deixar de se aplicar a casos que estavam nela compreendidos. É por esse mesmo fato
(a textura aberta) que Hart diz que o legislador não é capaz de dizer nem prever todos os
casos nos quais ela se aplica ou não, mesmo porque nem a própria norma é capaz de dizer
qual é o seu âmbito de aplicação, é necessário que ela seja interpretada. Disso concluirá que
os juízes são dotados de discricionariedade, que inevitavelmente lhes imporá uma escolha no
momento de decidir, e que, quando o fizerem, estarão desempenhando uma função
normativa, semelhante aos órgãos administrativos quando editam decretos, resoluções.

Segundo o autor, todos os sistemas jurídicos conciliam, de modos diversos, duas


necessidades sociais: (a) a necessidade de que certas regras possam ser aplicadas pelos
indivíduos privados a eles próprios (sem nova orientação oficial ou sem considerar questões
sociais), e (b) a necessidade de deixar em aberto problemas que só podem ser
adequadamente apreciadas e resolvidas quando surgem num caso concreto, o que será feito
por meio de uma “escolha oficial e bem informada”. Assim, para controlar os limites entre
aqueles dois modelos de comunicação (formas gerais linguísticas explícitas e exemplos), os
sistemas jurídicos podem se valer dos mais variados expedientes, como p.ex. a delegação do
poder normativo aos órgãos executivos, ou uso de juízos comuns sobre “razoabilidade” (ex.
“tarifa razoável”, “condições seguras de trabalho”, “devida precaução”).

A textura aberta do direito significa que existem, de fato, áreas do comportamento


nas quais muitas coisas devem ser deixadas para serem decididas por autoridades
administrativas ou judiciais, que busquem obter o equilíbrio entre interesses conflitantes
cujo peso varia de caso para caso. A vida do direito consiste em grande parte em orientar
autoridades e indivíduos privados, através de normas precisas que, diversamente das
aplicações de padrões variáveis, não lhes exijam uma nova decisão a cada caso. Nesse
ponto, os tribunais também desempenham uma função normativa (tal como órgãos
administrativos) ao elaborar padrões variáveis. Em um sistema no qual o sistema do “stare
decisis” seja firmemente reconhecido, essa função dos tribunais se assemelha muito ao
exercício de poderes delegados.

7. Definitividade e infalibilidade da decisão judicial.

Para aqueles que acreditam que “uma lei é aquilo que os tribunais declaram que ela
é”, as decisões são ao mesmo tempo finais/definitivas (sobre as quais não cabe mais recurso)
e infalíveis; ou melhor, a pergunta se elas seriam infalíveis ou não sequer teria sentido, uma
vez que não haveria nada em que os tribunais podem “acertar” ou “errar”, já que segundo
essa concepção (ceticismo ou realismo jurídico), é a autoridade judicial que diz o que é
certo. Sob essa concepção, um jogo disputado “ao arbítrio do marcador”, o placar é aquilo
que o marcador (juiz) diz ser independentemente de estar de acordo ou não com as regras do
jogo.
Entretanto, conseguimos distinguir um jogo normal de um jogo “ao arbítrio do
marcador” simplesmente porque – embora a regra de contagem contenha uma textura aberta
– ela tem um núcleo de sentido estabelecido. E esse núcleo de sentido estabelecido é o
limite da liberdade do marcador/juiz; é ele que define até onde o marcador/juiz pode ir; ele
constitui o padrão para a contagem correta e incorreta de pontos.

Assim, as decisões do marcador/juiz, embora finais, não são infalíveis. O grau em


que a tolerância para com decisões erradas é compatível com um jogo tem um limite. O fato
de que aberrações oficiais isoladas ou excepcionais sejam toleradas não significa que o
jogo não esteja mais sendo jogado; porém se estas aberrações forem frequentes, o jogo já
terá mudado, será outro, diverso do que as regras previram.

Ao analisarmos o ceticismo temos que ter em mente essas diferenças. É fato que a
textura aberta outorga um poder mais amplo de criar o direito, e o padrão definido na
decisão permanece de pé até que seja alterada a legislação; na interpretação, os tribunais
terão a palavra final, definitiva, mas isso não torna o juiz um legislador competente para
sentenciar como lhe aprouver, ele não está autorizado a criar os padrões de comportamento.
A possibilidade fática de que um jogo normal de um jogo “ao arbítrio do marcador” – de que
um sistema jurídico se torne outro por mera “interpretação” judicial – não prova a tese
cética. Prova apenas que nenhuma regra oferece a garantia contra seu descumprimento,
mas não nega que os tribunais estejam, caso isso aconteça, descumprindo um padrão de
comportamento aceito e oficializado pelas autoridades capacitadas, o que os torna sujeitos
à crítica (ponto de vista interno), não obstante sejam suas decisões definitivas. E não é a tese
formalista (cenceitualista) que pode evitar discricionariedade da textura aberta, já que esta é
inerente à linguagem. Isso tudo é a constatação de que, embora a existência de normas
possibilite previsões frequentemente confiáveis, normas e previsões não podem ser
confundidas.

8. Incerteza na regra de reconhecimento.

Após lembrar do falso dilema entre formalismo e ceticismo no sentido de que “Ou as
normas são o que seriam no paraíso formalista e acorrentam com grilhões, ou não há
normas, apenas decisões e padrões de comportamento previsíveis” e após concluir que
ambos seriam apenas grandes exageros, estando a verdade em um ponto entre eles, Hart
questiona se o fato de uma norma de reconhecimento decorrer de uma prática (um fato) do
tribunal implica alguma restrição à tese de que a base de um sistema é a NORMA de
reconhecimento que especifica critérios de validade jurídica. Apresenta assim alguns
modelos jurídicos: um legislativo onipotente e ilimitado juridicamente, um legislativo
incapaz de limitar irrevogavelmente a competência legislativa de seus sucessores. O fato,
por exemplo, de de que no direito inglês o legislativo não pode proteger as leis por ele
editadas contra a possibilidade de revogação por sucessores, não autoriza dizer que exista
essa soberania parlamentar em todos os aspectos do direito inglês. É possível, contudo,
admitir que o parlamento inglês poderia alterar irrevogavelmente sua atual composição
(p.ex. abolindo a Câmara dos Lordes); é possível admitir que revogasse seus poderes por
completo ou só a legislação que dispõe sobre a eleição de futuros parlamentos, ou que
transferisse seus poderes; (ou que estabelecesse cláusulas pétreas, mitigando, assim, sua
‘soberania’ e a vedação de limitar revogações futuras); e se pode tudo isso pode o menos.
Nesse ponto Hart encontra um aparente dilema: Só saberemos se isso é admissível
quando um tribunal decidir sobre alguma dessas possíveis ‘alterações’. Mas como lidar com
isso sem dizer que “a constituição é aquilo que o tribunal disse ser”?
Hart responde à essa pergunta de duas formas: (a) primeiramente, através de outra
pergunta, “Como pode uma constituição conferir autoridade para que se diga o que é a
constituição” (seria um contrassenso); (b) em segundo lugar, lembra que uma das condições
necessárias para a existência de um sistema jurídico é que nem toda norma possa ser
posta em dúvida em todos seus aspectos. O poder que os tribunais têm para decidirem
questões referentes ao critério último de validade depende apenas do fato de que a
aplicação desses critérios não deixa margem de dúvidas de que essas normas existam e
sejam padrões a serem seguidos (mesmo que haja dúvidas quanto à sua extensão e limite).
Ou seja, o fato de um tribunal ser a autoridade para decidir tais questões não significa que o
tribunal esteja autorizado a dizer arbitrariamente qualquer coisa sobre a norma de
reconhecimento, mas comprova apenas que, se o tribunal está utilizando tal norma de
reconhecimento para aferir a validade de outra norma, é que essa norma existe e é aplicada
(e observada) e há uma discricionariedade (quanto ao limite ou extensão).
Aqui também Hart descarta a solução formalista; entretanto, se aproxima um pouco
dos céticos, dizendo que a concepção cética (no sentido de que “o tribunal sempre teve o
poder inerente de legislar dessa forma”) nesse ponto faz a situação parecer menos
controversa do que é, mas só pode ser acolhida nessa margem e desde que não obscureça o
fato de que o poder dos tribunais para “legislar” dessa forma, é resultado do prestígio
adquirido por eles quando de sua inquestionável atuação pautada por normas.

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