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A Voz Que Desabrocha - Joana Mariz

Este artigo discute o estado atual do ensino do canto popular brasileiro, apontando seus principais desafios e possíveis caminhos para expansão. O canto popular brasileiro é caracterizado por diversidade de estilos e influências, e busca do intérprete por uma marca vocal pessoal. Professores têm desenvolvido abordagens que valorizam a descoberta da voz individual ao invés de padronização.

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A Voz Que Desabrocha - Joana Mariz

Este artigo discute o estado atual do ensino do canto popular brasileiro, apontando seus principais desafios e possíveis caminhos para expansão. O canto popular brasileiro é caracterizado por diversidade de estilos e influências, e busca do intérprete por uma marca vocal pessoal. Professores têm desenvolvido abordagens que valorizam a descoberta da voz individual ao invés de padronização.

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A voz que desabrocha, o canto que se


constrói:
perspectivas para o ensino do canto popular brasileiro

JOANA MARIZ*
RESUMO: O presente artigo propõe uma reflexão sobre o estado da arte da
pedagogia vocal do canto popular brasileiro, levantando seus principais
desafios técnicos, estéticos e pedagógicos, e apontando possíveis caminhos
para sua expansão no terreno da formação expressiva do intérprete.

PALAVRAS-CHAVE: Canto. Canto popular. Pedagogia vocal. Técnica


vocal. Expressão musical.

Working the Song, Bringing the Voice to Light:


Perspectives for the Teaching of Brazilian Popular Singing

ABSTRACT: This article discusses the state-of-the-art of Brazilian singing


vocal pedagogy and its main technical, stylistic and pedagogical challenges.
It also points out some possible strategies to enhance the teaching of
creativity and artistic expressivity.

KEYWORDS: Singing. Popular Singing. Vocal Pedagogy. Vocal


Technique. Musical Expression.

* Joana Mariz é cantora e professora de canto. Doutora em Performance Vocal (IA-Unesp) e


especialista em Fonoaudiologia - Voz (PUC - SP), realizou aperfeiçoamento em Formação Integrada
em Voz (CEV - SP) e certificação no método Somatic Voicework, Levels I-II-III (2011). É Professora de
canto erudito e popular na Faculdade Santa Marcelina e uma das coordenadoras do coletivo Vocal-SP.
E-mail: [email protected]

MARIZ, J. A voz que desabrocha, o canto que se constrói: perspectivas para o ensino do canto popular brasileiro.
Música Popular em Revista, Campinas, ano 4, v. 2, p. 117-134, jan.-jun. 2016.
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assados pouco mais de 25 anos do surgimento do ensino formal de canto
popular brasileiro, marcado pelo início do curso de canto popular da
Unicamp em 1989 e pela fundação do Grupo de Estudos da Voz no Rio de
Janeiro1, chegamos a um contexto que se mostra particularmente propício para uma
reflexão sobre sua trajetória e os desafios nela encontrados para o estabelecimento de
uma abordagem vocal genuinamente brasileira.
Ao observar a pedagogia vocal popular tanto retrospectivamente quanto
nas suas diversas vertentes no tempo presente, é possível destacar os principais
fatores que parecem interferir de maneira determinante no que poderíamos
descrever como o estado da arte do canto popular e de seu ensino: a complexidade
histórica e cultural de sua formação, ensejando que apesar de seu reconhecimento
como um “gênero” mercadológico coeso, não haja neste nicho uma uniformidade de
estilos musicais ou de maneiras de cantar (curiosamente, uma das características
fundadoras desse tipo de canto); as pressões de demanda de duas facetas do
mercado musical — uma independente, elitizada e intelectualizada e outra
massificada e subordinada às grandes empresas; a influência de estéticas e de
pedagogias externas a seu ambiente, a saber a do canto erudito e a do canto popular
de influência norte-americana; a influência de procedimentos pedagógicos
inspirados e referenciados na ciência vocal moderna, abarcando uma pedagogia
orientada pela manipulação consciente do mecanismo fisio-acústico da voz e pelo
seu controle técnico; e, por fim, a busca de superação criativa e da descoberta da
expressividade artística individual.
No presente artigo, pretendemos discutir como estes fatores se articulam.

Um todo múltiplo: características do canto popular brasileiro

Machado (2012) estabelece como uma das principais características do


canto popular brasileiro a existência de duas vertentes de voz: uma que se relaciona
com as referências do melodismo europeu e a herança do canto erudito e outra

1 Grupo formado por professores de canto cariocas em busca de referências e de formação para o
trabalho específico com o canto popular.

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ligada aos padrões entoativos da fala. Segundo ela, a relação com a fala cotidiana e
prosaica acaba sendo o elemento-chave para se compreender a estética vocal do
canto popular, mesmo na vertente mais referenciada no canto europeu2,3. Os cantores
de cada vertente se organizam numa relação quase genealógica com seus
antecessores, num movimento dialético de citação, síntese e criação de novos
paradigmas a cada nova fase da música popular. Elme (2015) acrescenta que o
parâmetro que seleciona o estabelecimento desses novos paradigmas de
interpretação vocal aparece sempre ligado a um contexto social e mercadológico, que
favorece ora a fixação, ora a impermanência de uma determinada conduta vocal.
Neste processo, o autor destaca a tendência à mistura de referências culturais,
advinda de modo consistente desde o Modernismo da década de 1920, e à
coexistência de diferentes manifestações musicais e vocais.
Napolitano (2002 apud ELME, 2015) observa que essa tendência atinge seu
ápice no período pós-tropicalista, quando a crítica e o público começam a reconhecer
na multiplicidade um traço típico e até mesmo aglutinador do grupo de artistas que
compunham o gênero mercadológico doravante chamado MPB:

As canções de MPB seguiram sendo objetos híbridos, portadores de


elementos estéticos de natureza diversa, em sua estrutura poética e musical.
A “instituição” incorporou uma pluralidade de escutas e gêneros musicais
que, ora na forma de tendências musicais, ora como estilos pessoais,
passaram a ser classificados como MPB, processo para o qual a crítica
especializada e as preferências do público foram fundamentais. No pós-
Tropicalismo elementos musicais diversos, até concorrentes num primeiro
momento com a MPB, passaram a ser incorporados sem maiores traumas.
Neste sentido concordamos com Charles Perrone quando ele define a MPB
mais como um complexo cultural do que como um gênero musical
específico. (NAPOLITANO, 2002, apud ELME, 2015, p.97)

Assim, ao mesmo tempo em que se poderia descrever o canto popular


como uma extensão da fala, também seria possível dizer que são características
distintivas suas a citação de referências musicais e vocais, o forte entrelaçamento a
um determinado contexto cultural, a diversidade e a importância da marca pessoal
do intérprete.

2 Que Elme (2015), não por acaso, denomina “modelo erudito adaptado” e Latorre (2002) enxerga
como “canto prolongado” e “canto dolente”
3 Conforme TATIT (1986, 1995, 2004), a canção é um tipo de obra que não pertence nem ao domínio da

música nem ao da literatura. Sua característica distintiva é a presença subjacente da fala nas melodias.

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Em busca de uma escola de canto popular brasileiro

Ainda que intuitiva, é a noção dos conceitos acima que leva os professores
da área a refletir e que os impulsiona a lentamente elaborar uma abordagem
específica do canto popular.
Um breve olhar pelos poucos trabalhos acadêmicos sobre o tema mostra
que essa postura aparece de maneira geral, especialmente em relação à interpretação
vocal, em professores que se tornaram multiplicadores do ensino de canto popular4.
Assim, Latorre (2002), relata sua experiência pedagógica com um método de trabalho
vocal que parte das grandes referências da música popular, passando pela proposta
da imitação destes modelos, para chegar na depuração de um estilo próprio, baseado
na escolha e na escuta.
Da mesma forma, os depoimentos dos professores Felipe Abreu,
preparador vocal do Rio de Janeiro, e da Profa. Dra. Regina Machado, de São Paulo,
discutidos em Mariz (2013), também privilegiam a ideia de que no canto popular
brasileiro não cabe a padronização da voz, mas ao contrário, a busca de uma marca
vocal pessoal bem definida:

A coisa mais importante para um cantor é que ele descubra sua própria
maneira de cantar, sua voz. (depoimento de Regina Machado apud MARIZ,
2013, p. 353)

Cantar é decidir. Você tem que decidir sobre certas coisas, que vão desde
“como é que eu vou colocar a voz e que tom eu vou cantar”, até “que
instrumento eu vou usar, e qual é o andamento”... você tem que tomar
decisões. E é isto que vai te ajudar a desenvolver uma personalidade
artística, uma marca, uma expressão pessoal. Tem muito a ver com gravar a
voz e escutá-la. Analisar, entender, saber ouvir. (depoimento de Felipe
Abreu apud MARIZ, 2013, p. 138)

4 Por multiplicadores entende-se aqueles professores que muito frequentemente formam ou


influenciam a formação de outros professores, seja por atuarem no ambiente acadêmico, por
publicarem métodos de ensino de canto ou por trabalharem com cantores profissionais que desfrutam
de espaço constante na mídia e em espaços de performance, como é o caso de todos os citados neste
artigo.

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Ao mesmo tempo, ambos reafirmam a importância de o cantor se


reconhecer como descendente de uma linhagem artística, em que se insere e à qual
expande.

É importante que o cantor entenda que isso que ele está descobrindo nele [a
marca pessoal] tem uma referência lá atrás. Todo mundo tem uma história
de processo imitativo com alguém. (depoimento de Regina Machado apud
MARIZ, 2013, p. 137)

[Achar sua personalidade artística] tem muito a ver com o lento libertar-se
de influências. Todo cantor tem influências, é claro, e isso não é mau no
começo, o que não pode é não querer libertar-se, ou ficar fixado naquele
“quadrado”. (...) Começar a desenvolver um pouquinho a questão do timbre
próprio. E é um processo, na verdade, um processo lento e de muita
maturação. (Felipe Abreu apud MARIZ, 2013, p. 137)

E também aparece em suas falas a relação do canto com o “complexo


cultural” que Napolitano identifica como característico da MPB: a formação do
cantor deve incluir preocupações com uma formação reflexiva e amparada pela
cultura geral.

O trabalho em que eu acredito é o trabalho individual, personalizado, que


faça a técnica vocal servir à expressão artística. O objetivo final é dar ao
cantor as ferramentas para ele desenvolver uma autoconsciência e
independência para resolver seus questionamentos. Me interessa a voz do
cantor autoral, isto é, aquele que vai se expor e expor sua visão de mundo.
Prefiro a abordagem pelo viés da cultura geral, da história da música, da
história da arte, da literatura, da poesia, da política. Acho que um cantor
popular não deve ser uma pessoa desinformada, ignorante. (Felipe Abreu,
apud MARIZ, 2013, p. 139)

Só a abordagem técnica – e o fazer musical é cheio de abordagens técnicas –


me parece que leva a um campo restrito de reflexão. A reflexão crítica, a
ampliação do conhecimento artístico eu acho que é fundamental para o seu
amadurecimento como pessoa. E acredito que isso interfere diretamente no
seu cantar, porque interfere na sua capacidade de compreensão, interfere no
seu amadurecimento para filtrar aquela canção e para se pôr a serviço dela.
(Regina Machado, apud MARIZ, p. 139)

Piccolo (2006) aponta que para contemplar essa estética plural do canto
popular, os professores devem buscar ferramentas de trabalho prático que se
desprendam do modelo vocal erudito, ao contrário, estimulando nos alunos a
pesquisa das qualidades e dos gestos vocais históricos da MPB, assim como
experimentando a criação de seus próprios gestos interpretativos. Já Elme (2015),
Goulart, Cooper (2003), e Machado (apud MARIZ, 2013) buscam referenciar suas

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ferramentas para o trabalho prático em sala de aula em trechos do repertório


popular, fugindo assim ao modelo de vocalise típico da pedagogia erudita.

O papel da técnica vocal

Embora a noção dos objetivos artísticos e da estética geral do canto


popular esteja bem implantada nos professores especialistas após esse primeiro
quarto de século do surgimento do ensino formal, um dos principais desafios ainda
por se destrinchar é como lidar com o trabalho técnico-vocal.
Piccolo (2005) observa que a primeira geração de professores de canto
popular teve sua formação técnica com cantores eruditos, e uma parcela considerável
daqueles que ela pesquisou tende a reproduzir os conceitos de impostação de voz e
os exercícios vocais dessa tradição em suas aulas. Tal postura se deve, segundo a
autora, à crença corrente no meio do canto de que já que o aparelho fonador é o
mesmo, o trabalho técnico é uniforme em todos os estilos, e que as diferenças de
sonoridade de cada nicho vocal se deveriam unicamente a fatores de expressão, que
cabem a cada cantor desenvolver sozinho a partir de sua própria sensibilidade. Outra
convicção comum entre professores e alunos é a de que o canto erudito seria “a base”
técnica necessária para todo e qualquer tipo de canto.
Ela discorda de tal pressuposto, apontando que o canto popular brasileiro
possui características vocais bem distintas do canto lírico e de outros cantos
populares como o canto comercial norte-americano, por exemplo, e, portanto, deve
ser trabalhado tecnicamente de maneira também específica.
Felipe Abreu descreve que em geral no canto popular, ao contrário do que
ocorre no canto erudito, o cantor

(...) vai possivelmente explorar as diferenças, as quebras entre registros de


‘peito’ e ‘cabeça’, pois não há o desenvolvimento de uma voz
timbristicamente uniforme, em toda a tessitura; as mulheres enfatizarão o
registro de peito assim como os homens ficarão livres para utilizar o falsete;
os agudos podem ser ‘abertos’; a enunciação é geralmente mais importante
do que a qualidade da emissão; a classificação vocal é prescindível, já que o
cantor pode adequar livremente à sua voz a tonalidade da obra; com a
presença do microfone, não há necessidade da presença do ‘formante do
cantor’; há uma busca de coloquialidade; o vibrato é opcional e depende do

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gênero; a posição da laringe é bastante variável, assim como na fala, sendo


em alguns estilos predominantemente elevada. (ABREU apud CASTRO,
2002, p. 13)

A pesquisadora e professora norte-americana de canto cross-over5 Jeanie


Lovetri corrobora a ideia de que os diversos estilos de canto popular apresentam
mecanismos técnicos e fisiológicos diversos daqueles do canto erudito, relatando
que:

Até onde sabemos das pesquisas científicas, há diferenças [fisiológicas] no


funcionamento das pregas vocais, na posição da laringe, na maneira como o
ar é administrado, e, claro, na maneira como modelamos os sons das vogais,
ou se você preferir, na maneira como usamos as ressonâncias [do trato
vocal]. Então quase tudo é diferente. O nível em que essas diferenças
acontecem depende do estilo que a pessoa está cantando e do modo
individual de ela cantar esse estilo. (LOVETRI, apud MARIZ, p. 119)

Lovetri faz parte de uma geração norte-americana de professores de canto


que se beneficia dos avanços das ciências da voz. Mais de 170 anos depois das
primeiras observações in vivo da fonação cantada, feitas pelo professor de canto
Manuel García II por meio da laringoscopia indireta, o universo da pedagogia vocal
encontra-se em plena colheita dos frutos de uma segunda onda de pesquisa científica
avançada sobre a voz, emergente marcadamente da segunda metade do século XX
para cá, e impulsionada pela explosão de inovações tecnológicas e pelo trabalho de
equipes multidisciplinares.
O conhecimento multidisciplinar do canto vem exercendo enorme
influência sobre a pedagogia vocal contemporânea. Muitos professores de canto e
cantores se tornaram sujeitos de pesquisa e co-autores de trabalhos junto com
cientistas da acústica, da fonética e da fisiologia da voz, e vêm propondo
investigações sobre tópicos diretamente ligados à fisiologia da voz cantada. Suas
reflexões vêm resultando não somente na publicação de inúmeros artigos científicos,
mas de revisões críticas dos tratados históricos sobre voz e na criação de novas
abordagens técnicas.
No caso do canto popular americano, fortemente implicado num
mecanismo de produção musical em massa e numa lógica de mercado que demanda
a reprodutibilidade dos padrões vocais bem-sucedidos comercialmente, o influxo de

5 Chama-se cantor cross-over um cantor que transita livremente entre o canto popular e o canto erudito.

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informações novas sobre os mecanismos vocais fisiológicos e acústicos gera uma


série de métodos independentes de ensino baseados na ciência, com organizações
próprias, formação continuada de professores e um forte apelo mercantilista,
representado pela promessa de formação rápida, saudável e eficiente.
Paralelamente, nunca a informação sobre os mecanismos do canto e os
métodos de trabalho utilizados pelos professores esteve tão acessível quanto agora.
Livros e artigos dos mais variados tipos estão disponíveis pela internet, muitas vezes
gratuitamente; uma miríade de vídeos de experimentos científicos, de entrevistas
com cantores e professores famosos e de aulas se encontra na rede à distância de um
toque. A comunicação digital torna possível a atualização constante em pesquisa e a
troca de dados em tempo real entre pesquisadores de diversas partes do mundo; os
principais autores estão facilmente acessíveis, pois em sua maioria disponibilizam
seu endereço eletrônico em periódicos e sites de universidades.
No Brasil, o novo impulso de interesse foi influenciado também pela
aproximação entre médicos otorrinolaringologistas, fonoaudiólogos e profissionais
do canto, marcadamente nos anos 90, com a criação da Sociedade Brasileira de
Laringologia e Voz. Embora modificada de seu formato original em 1995 e agora
restrita apenas a médicos6, a SBLV fomentou o surgimento de cursos e encontros com
perfil interdisciplinar, como os que até hoje vem sendo ministrados por
fonoaudiólogos, professores de canto, etnomusicólogos e por vezes cientistas e
professores estrangeiros7.
Esse movimento de atualização no aspecto científico da voz oferece
alternativas de trabalho técnico aos professores de canto popular brasileiro, que antes
dispunham apenas da metodologia erudita como modelo estruturado de trabalho.
No entanto, na mesma medida em que uma parcela de professores busca elaborar a

6 Vide SARVAT, Marcos. Criação da SBLV: uma visão pessoal. Disponível em


http://www.ablv.com.br/secao.asp?s=1.
7 Por exemplo os workshops realizados no INVOZ, sob orientação da fonoaudióloga Sílvia Pinho, o

curso de formação integrada em voz coordenado pela fonoaudióloga Mara Behlau, que ocorre
bienalmente no Centro de Estudos da Voz, e os simpósios e encontros eventuais, como o III Encontro
de Estudos da Palavra Cantada, de 2011, no Rio de Janeiro, além da vinda de professores como
Elisabeth Howard e Melissa Cross e de cientistas-professores de canto como Hübert Noe e Donald
Miller. De maneira geral o campo da fonoaudiologia reconheceu uma carência de conhecimento
científico no mercado de pedagogia do canto e vem buscando satisfazê-la, pelo menos parcialmente.

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partir dessas informações um raciocínio técnico próprio às sonoridades múltiplas do


canto popular brasileiro, uma outra tende a importar os métodos norte-americanos e
europeus, já sistematizados num esquema de “passo a passo”, e aplicá-los ao canto
brasileiro. Como esses métodos envolvem, na maior parte das vezes, sonoridades
pré-estabelecidas estrangeiras, e almejam resultados replicáveis em série, passa a
existir uma tendência tanto à homogeneização vocal como ao “sotaque” pop na
emissão.
Evidentemente, a tendência à importação da estética comercial americana
não se deve somente ao uso dos métodos pedagógicos ditos “trademark” – a
tendência vem de todo um contexto maior. No entanto, a adoção desses métodos por
professores que trabalham com o canto MPB mostram que o nicho sucumbe às
expectativas de formação rápida, de retorno fácil e por vezes, superficial. Revela a
procura por fórmulas replicáveis que possam oferecer garantia de estandardização
segura do produto (a voz); e o acesso mais provável ao mercado de performance ao
seu dono (o cantor ou o produtor). Até mesmo o fraseado musical e os gestos vocais
acabam resumindo a interpretação a padrões pré-estabelecidos: cada um com seu
tipo específico de ornamento ou marcador musical e de timbre de voz, programado
cuidadosamente para apresentar um simulacro de determinada emoção.

A questão é que durante muitos anos a gente só teve formação, informação e


metodologias de ensino vindas de pensamentos europeus, e depois de
pensamentos norte-americanos. A técnica vocal americana, especialmente a
do belting, e até a da soul music, é específica de um universo cultural deles.
Vai cantar música brasileira com aquele sotaque, acho isso gravíssimo.
Porque é um processo de aculturação dentro de um país que tem a canção
popular mais consolidada do mundo. Isso já é uma questão política, é uma
questão de guerrilha. (MACHADO apud MARIZ, 2013, p. 139)

Assim, o trabalho técnico específico para o canto popular brasileiro ainda


requer libertação, de um lado, do modelo tradicional erudito, e de outro, da moldura
eficiente, mas, massificada do modelo comercial americano.

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Caminhos para o trabalho com a expressividade

Se o trabalho técnico representa um grande desafio a se lidar na pedagogia


vocal popular, maior ainda se coloca o de suscitar no aluno o que se poderia chamar
de aprendizagem da personalidade artística e da autonomia interpretativa. Em geral,
encontram-se duas posturas diferentes frente a essa questão: de um lado, há
professores que preferem não interferir diretamente no problema da expressividade,
apenas trabalhando a técnica, mostrando exemplos, apontando carências e esperando
que ela brote naturalmente no aluno; de outro, professores que abordam a
expressividade por meio da racionalidade, e buscam soluções objetivas para as
questões interpretativas, tais como o mapeamento de dinâmicas, timbres, divisão
rítmica, etc.
No ensino tradicional de canto, tanto o conhecimento técnico quanto o
expressivo são transmitidos com base numa relação geracional, de professor para
aluno, através dos anos. Nesse processo, um cantor que conseguiu ser bem-sucedido
utilizando os ensinamentos de um cantor mais velho e experiente tende a transmitir
estes ensinamentos a cantores mais novos, que os retransmitem a outros no futuro, e
assim por diante. Trata-se de uma forma de ensino-aprendizagem de caráter
artesanal, em que o ouvido, a intuição e a sensibilidade do professor são os principais
critérios para avaliar o que é bom ou não na voz do aluno.
Esse modelo de instrução persiste também no contexto do ensino formal
de canto popular, muitas vezes criando uma relação de hierarquia entre mestre e
aprendiz que passa pelo pressuposto de que o mestre sabe todo o necessário sobre
aquele ofício (o canto) e de que o aprendiz, em contrapartida, é uma página em
branco a ser preenchida pelos novos conhecimentos. Da mesma forma, trabalha-se
com conceitos estéticos da voz dentro dos paradigmas certo/errado,
saudável/danoso, melhor/pior, ignorando o fato de que estes paradigmas são
relativos às referências culturais de quem avaliou. Assim, muitas vezes apenas as
referências culturais do professor são levadas em conta, invalidando-se a vivência
anterior do aluno.

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Nos textos teóricos sobre educação musical percebe-se uma grande


preocupação em se questionar os pressupostos de ensino e a maneira de ensinar. Há
uma busca de alinhamento geral com as novas linhas pedagógicas elaboradas a
partir do desenvolvimento da psicologia cognitiva 8 , que consideram a bagagem
prévia dos alunos como ponto de partida para a aprendizagem. Entra em voga o
conceito de aprendizagem significativa, que traz a ideia de que um determinado
conteúdo só é assimilado quando faz sentido dentro do contexto geral desta
bagagem.
Ao contrário do pensamento dominante no ensino tradicionalista, no qual
a quantidade de informação curricular cumprida é o parâmetro mais importante, ou
seja, onde o descompasso entre ensino e aprendizagem é atribuído somente ao maior
ou menor nível de inteligência ou talento “natos” do aluno, nas correntes
pedagógicas modernas a forma como o conteúdo é apresentado é relevante, pois
interfere diretamente no teor de aprendizagem e na formação da inteligência deste
aluno. Assim, para estas correntes a assimilação real só acontece quando o aluno
constrói seu conhecimento, sendo capaz de apropriar-se dele e utilizá-lo em
diferentes contextos, e não simplesmente quando ele é capaz de repeti-lo com
correção. A qualidade do aprendizado é mais importante que a correção ou exatidão
com que os conteúdos são reproduzidos (COLL et al, 2006).
Na área do canto, em contrapartida, muito pouca atenção é dedicada a
como incluir o aluno como sujeito ativo de sua aprendizagem. Em geral os docentes
de canto não se consideram educadores propriamente ditos, mas treinadores de
artistas.
Esta postura se deve provavelmente ao fato de que na relação mestre-
aprendiz se determina não só a técnica e a musicalidade do aluno, mas também suas
posturas pedagógicas como futuro professor. Assim, mesmo com todo o influxo de
informações, o formato de aula com condução ativa do professor e postura passiva
do aluno continua sendo a regra.
Pesa também sobre o aprendizado do canto popular a questão do dom
musical e o mito do autodidatismo. A voz, junto com a capacidade de percutir

8 Construtivismo, sócio-construtivismo, etc.

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objetos ou o próprio corpo, é o instrumento musical mais primitivo, acessível e


espontâneo do ser humano. Qualquer falante tem contato cotidiano com a
expressividade vocal, se não por meio da voz cantada, pela voz falada, ao se
comunicar nos diversos contextos sociais onde se insere. Como aponta Berio (2006):

O som de uma voz é sempre uma citação, um gesto. A voz, não importa o
que faz, mesmo o barulho mais simples, é inescapavelmente cheia de
sentido: sempre engatilha associações e traz em si um modelo, tanto natural
quanto cultural (...) a voz humana, por sua natureza, está carregada de
traços de experiências musicais e não musicais e associações cotidianas.
(BERIO, 2006, p. 16)

A expressividade vocal é um patrimônio de todos os falantes,


intrinsecamente cantores potenciais. O que determinaria se uma pessoa é “mais” ou
“menos” cantora, isto é, segundo um determinado julgamento estético, se essa
pessoa tem mais ou menos talento para a expressão vocal por meio do canto, seria
seu pendor “natural”, ou seu “dom”, para este tipo de tarefa. É como se o
aprendizado de artes não fosse do domínio da educação, mas um universo
misterioso e transcendente, em que gênios se sobressaem a pessoas comuns,
incapazes de suportar a pressão do processo e desprovidas dos insights criativos
necessários.
O aprendizado de canto e instrumento é, também, encarado de maneira
análoga ao treinamento de um atleta. São utilizados comumente os termos “vocal
coach”9 para definir um professor de canto especializado e “treinamento vocal de alta
performance” para o processo de formação do cantor profissional. No candidato a
esse treinamento, avalia-se sua chance de sucesso na competição com seus pares, seu
“material” natural, e cabe a este sujeito corresponder à altura das expectativas sobre
ele lançadas. O cultivo ao mito da transmissão oral, do sacrifício pessoal e até do
heroísmo daquele que se propõe à vida artística reforçam e justificam a cristalização
tanto das estéticas quanto das posturas pedagógicas no ensino das artes.
Na Wikipedia, a definição resumida do herói é a seguinte:

uma figura arquetípica que reúne em si os atributos necessários para superar


de forma excepcional um determinado problema de dimensão épica. O herói

9Técnico/treinador vocal. Coach é o mesmo termo utilizado em inglês para denominar os treinadores
de esportes.

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situa-se na posição intermédia entre os deuses e os homens e é marcado por


uma projeção ambígua: por um lado, representa a condição humana, na sua
complexidade psicológica, social e ética; por outro, transcende a mesma
condição, na medida em que representa facetas e virtudes que o homem
comum não consegue mas gostaria de atingir – fé, coragem, força de
vontade, determinação, paciência, etc. O heroísmo que resulta em auto-
sacrifício chama-se martírio.

Essa é justamente a visão que o senso-comum apresenta sobre o artista.


Nada mais lógico do que o processo de formação expressiva ser tortuoso,
hierárquico, pouco dialógico e não acessível a todos, mas apenas aos poucos
privilegiados que possuem qualidades artísticas extraordinárias.
Pela carência de uma abordagem pedagógica aprofundada da
expressividade, há um foco excessivo na aquisição de habilidades técnicas, ou a
transformação de questões expressivas em maneirismos técnicos, já que o talento,
isto é, a capacidade expressiva espontânea, seria uma habilidade que não se ensina,
com a qual o sujeito nasce ou não nasce, e que ao fim vai distinguir o artesão do
artista. Segundo John Paynter,

A música exige imaginação, envolvimento ativo e compromisso criativo. (...)


No entanto, a importância – ou mesmo a possibilidade – de se encorajar a
criatividade na educação musical ainda é para algumas pessoas um assunto
controverso. (...) Isso é lamentável, porque a criatividade deveria estar no
cerne das áreas afetivas do currículo. Seu contexto é a imaginação, a criação
e a invenção; [o modo criativo de abordar o ensino-aprendizagem] vai além
de incluir interpretação e imitação personalizada. Caracteristicamente ele
demanda um maior nível de preferência e decisão do que outros modos de
pensamento. Ele é especialmente importante como um meio de conhecer as
coisas a partir de respostas inovadoras às ideias e aos meios de expressão.
Portanto, ele difere substancialmente da abordagem por transferência de
conhecimento ou da que busca dirigir o desenvolvimento de habilidades por
meio de regras. (PAYNTER, 1992, p. 10)

Embora muito esforço tenha sido focalizado na melhora dos conteúdos


envolvidos no ensino de canto, e muitos teóricos da área tenham inclusive percebido
o descompasso entre técnica e musicalidade ou expressividade, muito pouco se
evoluiu na mudança da maneira de se ensinar estes conteúdos e no molde básico de
ensino. A informação mostra antes ser mais um desafio a enfrentar que uma solução:
“Por detrás do desafio global e do complexo, esconde-se um outro desafio: o da
expansão descontrolada do saber (...) T.S. Elliot dizia: Onde está o conhecimento que
perdemos na informação?” (MORIN, 2003, p.16)

MARIZ, J. A voz que desabrocha, o canto que se constrói: perspectivas para o ensino do canto popular brasileiro.
Música Popular em Revista, Campinas, ano 4, v. 2, p. 117-134, jan.-jun. 2016.
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Muito do problema parece residir na dificuldade de se criar um


distanciamento do universo do treinamento vocal para integrá-lo num contexto
maior, da música, da cultura, da arte e de seu papel para a humanidade. Falta o
investimento numa compreensão complexa, no sentido moriniano10, da música e de
sua inserção na cultura humana, que possa despertar a curiosidade dos alunos e
estimular seu senso de liberdade expressiva.

A missão desse ensino é transmitir não o mero saber, mas uma cultura que
permita compreender nossa condição e nos ajude a viver, e que favoreça, ao
mesmo tempo, um modo de pensar aberto e livre. (...) Há inadequação cada
vez mais ampla, profunda e grave entre os saberes separados, fragmentados,
compartimentados entre disciplinas, e, por outro lado, realidades ou
problemas cada vez mais polidisciplinares, transversais, multidimensionais,
transnacionais, globais, planetários. (...) Os desenvolvimentos disciplinares
das ciências não só trouxeram as vantagens da divisão do trabalho, mas
também os inconvenientes da superespecialização, do confinamento e do
despedaçamento do saber. Não só produziram o conhecimento e a
elucidação, mas também a ignorância e a cegueira.
Em vez de corrigir esses desenvolvimentos, nosso sistema de ensino obedece
a eles. (...) Nos ensinam a isolar os objetos (de seu ambiente), a separar as
disciplinas (em vez de reconhecer suas correlações), a dissociar os
problemas, em vez de reunir e integrar. Obrigam-nos a reduzir o complexo
ao simples, isto é, separar o que está ligado; a decompor, e não a recompor;
(...) A educação deve favorecer a aptidão natural da mente para colocar e
resolver os problemas e, correlativamente, estimular o pleno emprego da
inteligência geral.
Esse pleno emprego exige o livre exercício da faculdade mais comum e ativa
na infância e na adolescência, a curiosidade, que, muito frequentemente, é
aniquilada pela instrução, quando, ao contrário, trata-se de estimulá-la, ou
despertá-la se estiver adormecida. (MORIN, 2003, p.13-15, 22, grifo nosso)

O confinamento não só dos vários campos do saber envolvidos no


conhecimento sobre a voz e o canto, mas também das competências técnicas
relacionadas tem, é claro, um impacto negativo enorme sobre a arte, que,
fundamentalmente, tem como característica principal o oposto - a complexidade.
Refletir sobre essa encruzilhada nos leva à conclusão de que para
trabalhar efetivamente com a expressividade, precisamos proporcionar situações de
ensino em que a curiosidade possa ser despertada, prescindindo da relação
hierárquica entre professor e aluno, e favorecendo no último uma participação ativa,

10Edgar Morin (1921- ) define a complexidade da seguinte maneira: “Existe complexidade, de fato,
quando os componentes que constituem um todo (como o político, o sociológico, o psicológico, o
afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-retroativo
entre as partes e o todo, o todo e as partes.” (MORIN, 2003, p. 14)

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a libertação do medo do erro, o estímulo ao autoconhecimento e a suspensão dos


preconceitos de estilo.
O processo de se chegar à flexibilização do modelo de ensino e à libertação
do aluno em sua procura pela expressão vocal não é, no entanto, simples. A
demanda pela rápida formação profissionalizante e especializada é enorme, seja em
ambientes institucionais, seja no de aulas particulares em estúdios independentes.
Há um complexo mecanismo de auto-replicação das práticas atuais, que conta com
determinações subsistenciais, pedagógicas, culturais, sociais, históricas e até mesmo
globais, em que todos estamos inseridos, queiramos ou não.
Não se trata, portanto, de abandonar por completo as práticas correntes,
mas de uma busca pela inclusão de outras práticas que possam fornecer maior
equilíbrio e capacidade de reflexão ao processo. A saxofonista e improvisadora Chefa
Alonso pondera, por exemplo, que o uso da improvisação livre como ferramenta de
estímulo à expressividade, à criatividade e à autonomia pode ajudar o aluno a se
apropriar da técnica para realizar sua expressão. Segundo ela, é a partir da
necessidade de expressão que surge a necessidade de refinamento técnico no
domínio de um instrumento (ALONSO, 2008).
Não à toa, o saldo do primeiro quarto de século da pedagogia vocal
popular aponta justamente nessa direção, e já se multiplicam iniciativas nesse
sentido: Consiglia Latorre, uma das referências seminais do início do ensino formal
de canto popular, aborda em seu trabalho mais recente, de 2014, um relato de caso do
grupo Sonoridades Múltiplas, da UFCE, que experimenta diversas possibilidades de
abordagens criativas da música e das artes (LATORRE, 2014). De maneira análoga,
Regina Machado, como já dito também uma referência central, organiza sua
disciplina de canto popular na Unicamp de modo a incluir atividades de reflexão,
improvisação e criação coletiva, além das aulas em grupo de técnica e interpretação
vocal. Outros exemplos de empreendimentos na direção da integração de saberes
técnicos e expressivos são a pós-graduação em canção popular da Faculdade Santa
Marcelina, que propõe o trabalho sinérgico de reflexão, composição, produção e
performance, e as ações do coletivo de profissionais do canto Vocal-SP, voltadas a

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vivências que contemplam os diversos sub-estilos do canto, o trabalho corporal, a


pedagogia vocal e a reflexão crítica.
Se empreendidas com uma postura aberta por parte do professor, há
diversas atividades que podem proporcionar um processo mais rico de ensino-
aprendizagem no canto, sem que tenhamos que pensar na suplantação utópica do
modelo atual por um completamente diferente, e talvez alheio às contingências do
difícil contexto profissional dos cantores. Podem-se incluir ao processo convencional
de formação atividades de criação, como a composição, a improvisação ou a
reinterpretação livre; a pesquisa, a análise crítica e a discussão coletiva de textos,
filmes, romances, obras de arte, de áreas variadas, tais como as ciências da voz, a
antropologia, a história geral e da arte, a psicologia, a filosofia; o uso do corpo, por
meio do contato com a dança, o teatro ou o movimento em geral; a apreciação
musical atenta de peças de estilos diferentes, sem as tradicionais polaridades
erudito/popular, nacional/estrangeiro, moderno/tradicional; e por fim, a reflexão
constante sobre os pontos de divergência e contato, de integração e síntese de todas
estas atividades.
Fritjof Capra (2002) observa que o processo de cognição, isto é, o processo
de conhecimento, se identifica com o processo de viver. Ele inclui as pré-disposições
físicas, as atividades biológicas, a percepção, as emoções e o comportamento do ser
humano, de maneira interligada e contrária à tradicional concepção cartesiana de
razão X emoção, mente X corpo. Assim, tudo o que ocorre na história de um ser vivo
faz parte de seu processo de cognição, e tudo o que um ser humano acrescenta
ativamente a sua história o altera, física e psicologicamente, modificando seu
processo de desenvolvimento da consciência e de uma mente encarnada11. Sob esse
aspecto, a integração entre pensamento, técnica e expressividade no canto popular
representa num plano mais amplo a possibilidade de reintegração entre mente e
corpo, entre o indivíduo e o coletivo.
Em última análise, não seria exatamente um dos papéis tanto da arte
quanto da educação? Cabe aos professores de canto popular, como seres humanos,

11 A mente integrada ao corpo, que participa ativamente do processo cognitivo.

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artistas e educadores de artistas, perseguir essa (re)ligação, de maneira realista,


porém corajosa.

Referências

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