A Orgonomia de W Reich e A Fusao Com o o
A Orgonomia de W Reich e A Fusao Com o o
FÍSICA E SUBJETIVIDADE:
A ORGONOMIA DE W. REICH E A FUSÃO
COM O OBJETO NA COMPLEMENTAÇÃO DA
OBJETIVIDADE CIENTÍFICA COMO MÉTODO E REFERENCIAL
Rio de Janeiro
2014
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FÍSICA E SUBJETIVIDADE:
A ORGONOMIA DE W. REICH E A FUSÃO
COM O OBJETO NA COMPLEMENTAÇÃO DA
OBJETIVIDADE CIENTÍFICA COMO MÉTODO E REFERENCIAL
Rio de Janeiro
2014
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1. Epistemologia. 2. Orgonomia. 3.
Subjetividade. 4. Física I. Kubrusly, Ricardo Silva
(Orient.). II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Programa de História das Ciências e das Técnicas e
Epistemologia. III. Título.
CDD: 121
4
FÍSICA E SUBJETIVIDADE:
A ORGONOMIA DE W. REICH E A FUSÃO
COM O OBJETO NA COMPLEMENTAÇÃO DA
OBJETIVIDADE CIENTÍFICA COMO MÉTODO E REFERENCIAL
__________________________________________________
Prof. Ricardo Silva Kubrusly, Dr. – HCTE/ UFRJ
___________________________________________________
Prof. Carlos Benevenuto Guisard Koeller Dr. – HCTE/UFRJ
__________________________________________________
Prof. Sergio Exel Gonçalves, Dr. – HCTE/ UFRJ
___________________________________________________
Prof. Marcus Vinícius de Araújo Câmara, Dr. – IP/UFRRJ
___________________________________________________
Prof. Eduardo José Aguilar Alonso, Dr. - ICT/UNIFAL
RESUMO
5
MALUF JR, Nicolau José. Física e subjetividade: A orgonomia de W. Reich e a fusão com
o objeto na complementação da objetividade científica como método e referencial. Rio de
Janeiro, 2014. Tese (doutorado em história das ciências e das técnicas e Epistemologia) –
Programa de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2014
Neste estudo, a possibilidade de Conhecer através da fusão com o objeto é examinada, em contraste
com a objetividade científica como método e referencial. Isso é feito utilizando-se como base a
Orgonomia de Wilhelm Reich, e cobrindo o território da Física e da Psicanálise, entre outros. O que
os estudos e pesquisas apresentados ao longo deste estudo demonstram e permitem teorizar, quando
vistos no seu conjunto, é a existência de um fator subjacente atuando como ligação ou continuidade
entre diferentes tipos de fenômenos e também entre humanos e humanos, e humanos e aparatos.
Esse fator é relacional, e não-local. Em diferentes momentos no texto, temas como Mecânica
Quântica, Psicanálise e a Interação entre consciência e aparatos eletrônicos foram apresentados.
Além da Orgonomia, destaque foi dado à parceria entre C.G.Jung e W. Pauli, na conjugação entre
Psicologia Profunda e Física. Ainda como parte deste estudo, a experiência do autor com uma arte
marcial, Aikido, sintetiza a proposta de que conhecer não é apenas conceituar. Como produto dessa
abordagem, em decorrência do referencial orgonômico, a subjetividade é alçada a um patamar
diferenciado no referente ao Conhecer. O esboço de uma proposta epistemológica, Terceiro
Momento, é apresentada justificando um novo estatuto para a subjetividade, também redefinida.
Palavras chave: Orgone, Inconsciente, Mecânica Quântica, Epistemologia, não-localidade.
6
ABSTRACT
MALUF JR, Nicolau José. Física e subjetividade: A orgonomia de W. Reich e a fusão com
o objeto na complementação da objetividade científica como método e referencial. Rio de
Janeiro, 2014. Tese (doutorado em história das ciências e das técnicas e Epistemologia) –
Programa de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, 2014
In this study, the possibility of Knowing by merging with the object is examined, in contrast
with the scientific objectivity as a method and referential. That is done using as base the Orgonomy
of Wilhelm Reich, and covering the territory of physics and Psychoanalysis, among others. What
the studies and researches presented throughout this study demonstrate and allow theorize, when
viewed as a whole, is the existence of an underlying factor acting as a liaison or continuity between
different types of phenomena and also between humans and humans, and humans and apparatuses.
This factor is relational, and non-local. At different times in the text, themes such as quantum
mechanics, psychoanalysis and the interaction between conscience and electronic apparatuses were
presented. In addition to Orgonomy, emphasis was given to the partnership between C.G.Jung and
w. Pauli, in their work combining depth psychology and physics. As part of this study, the author's
experience with a martial art, Aikido, synthesizes the proposal that to Know it’s not only to
conceptualize. As a product of this approach, and due to the 0rgonomic referential, subjectivity is
raised to a different level regarding the Knowlegde. The outline of an epistemological proposal,
Third Time, is presented justifying a new statute for the subjectivity, also reset.
Key words: Orgone, Unconscious, Quantum Mecanics, Epistemology, non-locality.
7
DEDICATÓRIA
Aos que foram meus mestres, mesmo sem sabe-lo, em todas as etapas da minha
vida, com muita gratidão.
AGRADECIMENTOS
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 4 – Cumulative total deviation of results for 247 formal hypothesis tests. The dotted
smooth curves show the 5% and 0.1% significance criteria. A truly random trace would
fluctuate around a level trend at zero on the ordinate. Originalmente publidado no artigo “The
Emotional Nature of Global Consciousness”. ………………………………………………85
Figura 5 –Figura retirada do livro Análise do caráter (REICH, 1993, p. 323). ....................114
Figura 6 – Representação gráfica do esquema PFC (Princípio Funcional Comum), com o PFC
A1e suas variações complementares A2 e A3. .....................................................................117
Figura 7 –Figura retirada do livro Análise do Caráter (REICH, 1993, p. 155). ...................122
9
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 13
2 FÍSICA E PSICOLOGIA
2.4.3Psicologia e imaginação 36
3 REICH E A ORGONOMIA 41
HOMEM-MÁQUINA 77
EMOCIONAL 83
PECULIAR DE CAUSALIDADE 86
6 FÍSICA E PSICOLOGIA II
SUJEITO/OBJETO 148
AO CONHECIMENTO 154
10 REFERÊNCIAS 179
13
1 INTRODUÇÃO
Deitado, tronco e pernas sentindo intensamente o contato com a areia, vejo meu
corpo. Vejo e me vejo e, ao mesmo tempo, sou parte da cena. Uma luz chapada incide sobre
toda a paisagem. Estou deitado de costas no exato limite em que o mar se espraia sobre a
areia. Pequenas ondas, ritmadas, batem e deslizam suavemente para cima e para baixo, posso
senti-las movendo-se ao longo do meu corpo de Gulliver. De alguma forma, sou como um
gigante, pois as ondas que alcançam a praia e o meu corpo são estranhamente longas, baixas e
a intervalos curtos. Há uma sensação de profundo relaxamento e presença.
O mar me alcança todas as noites.
Tempos depois, ao ingressar no primeiro ano da escola, em uma conversa com outros
meninos, venho a saber que isso que acontece todas as noites é um sonho, isso é sonhar. Mais
surpreso ainda, espanta-me saber que sonhar não é necessariamente sonhar o mar e suas
ondas, tão rotineira é a minha experiência de sonhar o mar. Muitos anos adiante, ao me
aprofundar nos trabalhos de W. Reich, dou-me conta de que as ondas, e seu ritmo, eram a
representação das correntes vegetativas, que davam literalidade aos meus sonhos. Minha
experiência pode testemunhar, portanto, a formulação reichiana de que os primeiros traços
mnésicos, os primeiros traços do que se pode chamar memória, são registros dessas
“correntes”.
Essa lembrança sólida foi, muitas vezes, o porto seguro, o local de apoio para muitos
esforços de entendimento e localização teórica dos fenômenos e das experiências ‒ muitas
vezes exóticos e insólitos ‒ na clínica da vida emocional.
Importante ainda é que esse registro poderia ser facilmente interpretado, num viés
psicanalítico clássico, como um episódio de enurese noturna e suas implicações na rota do
desenvolvimento psicossexual. Entretanto, longe de ser fonte de angústia, esse registro remete
a sensações positivas, tais como segurança, integridade e presença. E este é um exemplo de
como um determinado acontecimento e seu entendimento podem mudar por completo sua
assinatura quando eventualmente realocados em outro referencial teórico e experiencial.
Eu sou um clínico da vida emocional, um “psicanalista”, no senso comum do termo.
As aspas se referem ao fato de, nessa Psicanálise, o psíquico, a dimensão do mental, ser
referente ao organismo como um todo e, mais ainda: esse organismo e seu psiquismo como
14
Enfim, pretendo desenvolver uma apresentação não só de ideias e teorias que possam
ter relevância epistemológica, como também apresentar (parcialmente) minha biografia
experiencial, para que essas ideias e essas teorias sejam relacionadas.
Isso não significa, no entanto, que eu defenderei qualquer ponto de vista relativista
ou uma epistemologia de primeira pessoa, em que qualquer conhecimento só seria
conhecimento de fato para este, ou somente este, que conhece. Ao contrário, aceito a premissa
reichiana de que a inclusão do observador (e de suas sensações) no campo do que se tenta
observar e conhecer é um modo de ação mais efetivo (no sentido de conhecer) do que o
setting tradicional em que se busca objetivação e controle da situação experimental somente.
De fato, tal método também permite acesso parcialmente1
1
Muitas vezes, o parcial surge como total , como será apresentado no capítulo Psicanálise de campo.
16
tornou problemática para a gigantesca maioria dos animais humanos, e entendo que a esse
entrave há menção ‒ de forma simbólica ‒ no texto de Homero. Pretendo também explorar,
neste trabalho, a relevância não só das experiências somáticas para um Conhecer (como
substantivo), mas também como essa possibilidade de conhecimento é potencializada ou
restringida dependendo desses mesmos fatores experienciais, enquanto atividade somática e
experiência emocional envolvida. Dentre essas experiências, uma em especial merece extrema
atenção: o medo de morrer psiquicamente ou de enlouquecer. O animal humano parece ser o
único a temer dois tipos de morte, aquela que advém de uma ameaça a sua integridade física,
e aquela que ameaça o seu sentido de Eu, como perder o controle ou enlouquecer. Como
mencionado de forma extensa em minha dissertação de Mestrado, essa possibilidade, quando
se apresenta a alguém, é frequentemente acompanhada de uma forte sensação de queda, que
só é entendida dentro de um parâmetro fisiológico e psicanalítico reichiano. Entendo ser essa
possibilidade, a da perda do sentido do Eu e da razão, a mencionada simbolicamente no texto
de Homero, e não por acaso, quando Ulisses se encontra na situação de um conhecer, embora
todos os outros que tentaram fazê-lo, tenham morrido. Este é o convite da sereia, saber tudo ‒
“Over here, Odysseus [....] anchor your ship so that you can hear our voices [...] we know
everything that happens on the much nourishing earth” ‒ e este é o perigo da fusão com o
objeto. Mas Ulisses sobreviveu. E sua sobrevivência é o que norteia, de modo simbólico, a
possibilidade da superação das limitações da objetividade, em toda a extensão e com todas as
implicações desse conceito, como forma de produção de conhecimento.
20
2 FÍSICA E PSICOLOGIA
da emoção.
Certamente, quando da relação soma-psique em termos de fatores objetivos,
generalizáveis e mensuráveis, refiro-me a fatores nucleares, essenciais da vivência da
subjetividade, não à totalidade da mesma ou a algo como acessar conteúdos ideativos na sua
especificidade. A questão do problema de primeira pessoa fica, isso sim, relativizada pela
possibilidade de um observador externo poder reconhecer, por meio de sinais fisiológicos, o
pano de fundo da subjetividade vivida por outro alguém. Se determinadas ideias ou
experiências evocam um colorido emocional, qualificando, dessa forma, o que está sendo
vivido, isto pode ser identificado e definido. De forma correlata, pode-se saber a priori que
determinadas personalidades (ou estruturas de caráter, numa linguagem reichiana) terão mais
simpatia ou afinidade com certas ideias ou visões de mundo, dado o fato do seu arranjo
estrutural. Por exemplo: se alguém está ansioso em função de uma atividade social que lhe
seja particularmente difícil ou mesmo ansioso dado a fatores internos, esse alguém
necessariamente adota um funcionamento corporal (ritmo respiratório, tonus muscular etc.)
que é próprio da condição do estar ansioso – ainda que o sujeito esteja não consciente do fato
de estar ansioso ‒, e isso é detectável. Mais ainda, esse arranjo corporal será inevitável na
condição mencionada. Ninguém fica fisicamente relaxado e, ao mesmo tempo,
subjetivamente ansioso. Um exemplo do segundo tipo mencionado, a relação entre certas
estruturas de caráter e simpatia ou antipatia por um viés filosófico, ideológico ou de atitude
diante da vida, pode ser encontrado na aceitação mais favorável de tipos obsessivo-
compulsivos por parte de empresas que buscam otimização na execução de tarefas
burocráticas. Reich costumava apresentar essa questão ao afirmar que conteúdos filosóficos e
ideias científicas deveriam ser avaliadas não somente pelo seu aparente valor intrínseco, mas
também pela consideração da personalidade de quem as propõe.
O comentário de Ferenczi (1991, p. 60) sobre determinismo e forças que ativam
processos no inconsciente, assim como a natureza da antítese complementar soma-psique,
postulada por Reich, torna necessário explicitar a forma como, na metapsicologia freudiana,
deu-se a formulação de um conceito energético fundamental para essa metapsicologia como
parte da descrição do aparelho psíquico. Acompanhar como Reich, ao examinar se tal
conceito, como dito antes, remetia a algo de natureza física de fato, também é uma forma de
retomar a questão da a-cientificidade ou não da Psicanálise. Como apresentado antes, na
medida em que for possível objetivar algo desse funcionamento, teremos não uma redução ao
fisicalismo, mas uma abertura de um canal de comunicação entre os conteúdos hermenêuticos
da Psicanálise e outras formas de conhecimento situadas fora da esfera das ciências humanas.
23
Isto, por si só, poderia levar à superação do esgotamento conceitual que sofre a mesma
Psicanálise, como também, como é minha tese, ao processamento de modos de investigação e
de olhar sobre os fenômenos, os quais poderiam expandir radicalmente as possibilidades das
ciências ditas naturais.
Gostaria, por fim, de me deter por um momento na hipótese de trabalho que utilizei
nesta exposição das neuroses de defesa. Refiro-me ao conceito de que, nas funções
mentais, deve-se distinguir algo ‒ uma carga de afeto ou soma de excitação ‒ que
possui todas as características de uma quantidade (embora não tenhamos meios de
medi-la) passível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga, e que se
espalha sobre os traços mnêmicos das representações como uma carga elétrica
espalhada pela superfície de um corpo. (FREUD)
tendência a equacionar o conceito de libido como algo dando-se no cérebro (já que o termo
representações faz naturalmente pensar no mesmo como local em que tais representações
residiriam). Tomando-se em perspectiva essa questão, o curioso (mas não surpreendente) em
tal entendimento é como o sexual e o libidinal em Freud acabam sutilmente caricaturados, ao
longo dos anos, pelos comentadores da teoria freudiana, como algo que sai da esfera do
corporal para se abrigar na esfera do mental, porém, agora, um mental que tem características
de espiritual, ainda mais quando é possível se debruçar sobre o conceito de sublimação,
dentro da metapsicologia, e ver como tal conceito, que inicialmente foi formulado para
explicar os destinos possíveis da pulsão, acaba utilizado pelos herdeiros de Freud (e em parte
por ele mesmo, em época posterior de seus trabalhos) para indicar um destino superior e
melhor para o sexual, que não a própria descarga, ou, em termos mais próprios, a realização
mesma do desejo.2
Entretanto, comecei esse longo raciocínio para criticar o equacionamento entre cérebro
e mente, equacionamento dado como óbvio em tempos de neurociências e, também, de viés
materialista-mecanicista-atomista, como base fundamental da metafísica subjacente vigente.
Por metafísica, faço referência a um modo de pensar dominante, presente de forma silenciosa,
não obstante poderosamente atuante, visível somente quando se emprega um olhar
epistemológico sobre a cultura e sobre os modos de pensar vigentes. Objeto de minha
dissertação de Mestrado, esse equacionamento entre cérebro e mente foi longamente criticado
e analisado.
O viés energético, sua literalidade e sua relevância, fica evidenciado no texto reichiano:
2
O conceito de sublimação, passível de existir numa condição não neurótica, é polêmico, porque muitas vezes
confundido com o de formação reativa, em teorizações sobre a clínica das neuroses. A sublimação será
examinada adiante neste trabalho.
26
3
Reich parece se associar a W. James na localização de uma explicação corpórea para a emoção. “[...] Quando
percebemos algo excitante, seguem-se imediatamente mudanças corporais, nosso sentimento das mesmas
mudanças é a emoção”. Isso contrasta enormemente com Wittgenstein: “[...] sente-se tanta tristeza no corpo
quanto se sente o enxergar [...]”, Para ele, as emoções se davam na mente (SHUSTERMAM, p. 103).
29
4
Na verdade, Freud descreve um inconsciente que também é portador de “protofantasias”, porém este não é o
elemento fundamental de sua formulação.
32
da Psicologia, levando a uma comunicação com outros saberes e também, como postulado na
tese, a uma complementação das possibilidades de desenvolvimento desses outros saberes,
como o saber científico, por exemplo. Não é necessário, para isso, acatar essa ou aquela
definição de inconsciente, mas sim seguir a lógica e o caminho que se apresentam quando é
possível ingressar no universo de possibilidades que estão contidas, por exemplo, na ideia da
presença de fatores objetivos no psiquismo ou na subjetividade.
Pauli pensava numa ciência futura que vislumbrasse o âmago dessa realidade
essencial como não sendo nem física, nem psíquica, mas sim, de alguma maneira, igualmente
ambas. A semelhança dessa postulação com as teses reichianas chega a ser intrigante5
5
No Cern, entre os papéis de W. Pauli, organizados depois de sua morte, encontra-se uma rara cópia do Einstein
affair, publicado por Reich. No entanto, não é do meu conhecimento nenhuma citação a respeito de Reich por
parte de Pauli.
35
.
Como é sabido, Pauli, influenciado pelas ideias de Bohr, vislumbra um mundo em que
as duas dimensões, mente e matéria, não seriam complementares, mas expressões de uma
realidade única subjacente. A complementaridade se distingue da noção de paralelismo
psicofísico, totalmente insuficiente, segundo Pauli. E em relação à ideia da inclusão de
observadores humanos conscientes como um novo ângulo da MQ, ele foi claro:
Once the physical observer has chosen his experimental arrangement, he has no
further influence on the result which is objectively registered and generally
accessible. Subjective properties of the observer or his psychological state are as
irrelevant in the quantum mechanical laws of nature as in classical physics. (PAULI,
1954b/ p. 286)
A existência de uma realidade subjacente e, de fato, determinante na produção e na
criação dos fenômenos, tanto mentais como materiais, denota uma interligação (subjacente)
entre tudo o que tem existência, sendo a dimensão arquetípica o fator ordenador e
organizador, inclusive da propriedade complementar postulada. Esse fator é anterior, do ponto
de vista do existente, aos domínios psíquico e físico, cuja distinção, claro, é necessária para
fins científicos. Esse mundo unificado foi por Jung chamado de unus mundus. Ainda Pauli:
The ordering and regulating factors must be placed beyond the distinction of
‘physical’ and ‘psychic’ – as Plato’s ‘ideas’ share the notion of a concept and of a
force of nature (they create actions out of themselves). I am very much in favor of
referring to the ‘ordering’ and ‘regulating’ factors in terms of ‘archetypes’; but then
it would be inadmissible to define them as contents of the psyche. The mentioned
inner images (‘dominant features of the collective unconscious’ after Jung) are rather
psychic manifestations of the archetypes which, however, would also have to put
forth, create, condition anything lawlike in the behavior of the corporeal world. The
laws of this world would then be the physical manifestations of the archetypes. . . .
Each law of nature should then have an inner correspondence and vice versa, even
though this is not always directly visible today. (PAULI, 1948/1993, p. 496-497)
Pauli aceita a postulação junguiana, segundo a qual o arquétipo é não somente raiz, a
origem subjacente das imagens (que seriam manifestações psíquicas dos arquétipos), mas
também é o fator criador e organizador de suas manifestações físicas, as leis da natureza. Uma
observação importante: Pauli ingressou numa experiência de análise junguiana durante algum
tempo e, mesmo depois de cessada essa experiência, acompanhou, de forma atenta, seus
próprios sonhos e os elementos arquetípicos que neles encontrava, principalmente quando
tinham a física como conteúdo. Ao contrário do próprio Jung, que entendeu que nada mais
natural que um físico sonhar com a física, Pauli compreendeu que seus conteúdos oníricos
revelavam e permitiam acessar elementos primeiros constituintes da realidade em geral. O que
é pertinente sublinhar não é a possibilidade de simplesmente tomar seus próprios sonhos
como uma espécie de prova da realidade arquetípica, mas sim que, nessa concepção de
mundo, a introspecção, seja na forma de acesso a conteúdos oníricos, seja na forma de
36
da cartografia). Assim, ao longo da história, foram os modelos explicativos que mudaram, não
a ideia da existência dessas leis e desses princípios generalizáveis. Assim, é inegável que a
imaginação sempre esteve e está presente na construção de modelos explicativos, conjuntos
lógicos organizados de informação e referência.
6
De acordo com Pauli, como mencionado acima, essa Psicologia resume não exatamente uma subjetividade
pessoal, pois também remete ao acesso ao numênico.
38
É óbvio que uma análise desse tipo pressupõe um série de conceitos como atuantes,
caso contrário a noção de um funcionamento mental que não é apenas um reflexo, um espelho
ou uma fotografia da realidade não seria possível. E, no caso da nossa abordagem, um
psiquismo fundado na noção de inconsciente.
Essa noção apresenta um problema extra quando trazida para o campo da
epistemologia: não só não haveria percepção pura, objetiva, como também haveria um valor
(inconsciente) colocado em cada objeto da nossa atenção. Esse valor qualifica a percepção de
um modo emocional e sexualmente significativo. Ora animando-a, por exemplo, ora
excluindo da percepção uma ou mais classes de qualidades ou propriedades do objeto, por
razões também emocionais. Este, como dissemos, é um tema polêmico e complexo. Por esse
motivo, anteriormente abordei o tema do inconsciente discutindo se sua existência implicaria
necessariamente uma impossibilidade, mas agora abordo outro ângulo dessa questão.
Por apresentar uma proximidade interessante com o tema da alquimia, a
metapsicologia nos interessa também, já que, nela, a sexualidade é vista como desruptiva e
voltada para a satisfação imediata. Nesse sentido, a civilização e a cultura, então, devem sua
existência a um processo metapsíquico chamado de sublimação.
Sublimação significa, grosso modo, elevação. O sublime, na sua raiz latina, é aquilo
que vai se elevando, que se sustenta no ar. Na alquimia, sublimar significa elevar ao mais alto
grau; na Psicanálise, implica modificar a meta do instinto ou da pulsão, do que é diretamente
sexual, por meio de atividade motora, para um objetivo que nada teria a ver, de modo
aparente, com o sexual, cujo fim seria cultural, “superior”. Há, portanto, na definição de
sublimação, na ótica freudiana, tanto um componente ético ou estético, quanto um
componente “físico” ou “natural”, já que o sexual instintual possuiria potencialmente a
possibilidade de sublimação.
natureza. No caso, a natureza não é mera portadora da projeção, mas é, ela mesma, proprietária de elementos
similares aos daquele que projeta. Essa implicação fica postergada para a parte final deste trabalho.
8
O fato de Jung ser citado como contraponto a Freud não implica que um esteja certo e o outro, errado. Da
mesma forma que Jung parece ter acessado uma dimensão transcendente no psiquismo humano, a experiência
clínica demonstra como muitas vezes a relação com o “religioso” tem função meramente defensiva e neurótica.
40
pupilo durante dois anos, de 1932 a 1934. No último ano, teve início uma cooperação teórica
entre W. Pauli e Jung, que durou até 1958, quando da morte do primeiro. A análise de Pauli
fez com que Jung, a partir da análise, ficasse intrigado com os motivos e os conteúdos de seus
sonhos. Em especial, seus sonhos passaram a apresentar símbolos e imagens que, contidos na
Física, pareciam relativos a processos mentais. Pauli começou a se perguntar por que seu
inconsciente utilizava tais símbolos e imagens para descrever processos psíquicos, ao invés de
utilizar imagens da mitologia, por exemplo. Curiosamente, como foi descrito antes, Pauli não
ficou satisfeito com a hipótese Junguiana de que, dado o fato de ele ser físico, nada mais
natural que sonhasse com a física. Pauli estava convencido de que esses símbolos se
relacionavam com o comportamento real da matéria. Nesse contexto, pensou que a doutrina
alquímica poderia ajudar a solucionar o problema.
Niels Bohr, figura central da Escola de Copenhague, sublinhava fortemente a dinâmica
da complementaridade no entendimento da MQ, no referente à questão da natureza discreta
ou ondulatória das partículas subatômicas. Mas a complementaridade por ele defendida, “[...]
longe de conter qualquer misticismo contrário ao espírito da ciência... consiste, na verdade,
numa generalização do ideal de causalidade [...]” (BOHR, 1958, p. 34). Entretanto, essa
dinâmica afirmada não se restringia à dimensão microscópica. Ainda citando Bohr:
[...] de fato, somos levados a conceber as regularidades biológicas (vida)
propriamente ditas como representando leis da natureza complementares às que se
adequam à explicação dos corpos inanimados... nesse sentido, a existência da
própria vida deve ser considerada, no tocante à sua definição e observação, um
postulado fundamental da biologia, do mesmo modo que a existência do quantum de
ação, juntamente com a atomicidade última da matéria, compõe a base elementar da
física atômica [...]. (BOHR, 1958, p. 27, grifo meu)
Embora visse como pertinente a questão da complementaridade, Bohr não sugeria de
forma alguma uma relação mais estreita entre Física Atômica e Psicologia. W. Pauli, no
entanto, perseguiu justamente essa meta, apoiado num referencial alquímico, na Física e na
Psicologia Analítica de Jung. Desenvolveu uma visão de mundo unificado, em que a
“separação” entre mundo psicológico e mundo físico é suspensa. Quanto mais fosse possível
alcançar a estrutura intrínseca das coisas, mais as diferenças percebidas num plano macro
seriam suspensas. Mas Pauli não procurava um modelo reducionista, em que tudo fosse
resumido a uma já existente perspectiva, como a física ou a lógica. Ele procurou, na verdade,
uma totalmente nova abordagem científica, que não deixasse de lado o caráter único de cada
ciência individual, mas que tentasse encontrar denominadores comuns em um plano mais
profundo das coisas. O parâmetro utilizado continha a crença na existência de elementos
estruturantes universais que se revelariam em todas as áreas da experiência.
42
9
Isto considera apenas o universo do orgânico e da vida mental, mas, posteriormente, Reich postula uma
dimensão das coisas que engloba também o universo do inorgânico, “cósmico”.
44
3 REICH E A ORGONOMIA10
Descoberta por Reich entre 1936 e 1940, orgone é a energia cósmica primordial,
universalmente presente e visual e termicamente demonstrável por meio de um eletroscópio e
de um contador Geiger-Muller. No organismo vivo, é a energia biológica. Já Orgonomia é a
ciência natural da energia orgone.
A teoria reichiana é, muitas vezes, desconcertante e impactante, mesmo para os que
com ela estão familiarizados. Demanda, dos que procuram se aprofundar, tanto o
conhecimento em áreas diferentes ‒ como Psicologia Profunda, Epistemologia, Física e
Biologia ‒, quanto o abandono, muitas vezes, do senso comum, do politicamente correto e da
segurança dos modelos aceitos e conhecidos. Essas exigências, por sua vez, têm levado a
reações padronizadas, de alguns tipos, entre aqueles que se aproximam do pensamento
reichiano: 1- Afastamento radical e desinteresse pelo período orgonômico, visto como
complicado, equivocado e frequentemente associado à afirmação de loucura e psicose em
Reich. 2- Rejeição em nome de um cientificismo e tendência à normatização que estariam
presentes no pensamento reichiano. 3- Aceitação acrítica, ideologizada. 4- Aceitação parcial
de alguns parâmetros, como a perspectiva sistêmica ou holística, a posição libertária e a
atenção às questões mente-corpo, mas tendendo a reduzi-los a teorias científicas e
academicamente plausíveis e a eliminar a problemática da especificidade da energia orgone.
Uma análise inicial dessa problemática e do esvaziamento conceitual encontrado em textos de
autores identificados com a teoria reichiana se encontra em outro trabalho (MALUF JR.,
1999).
Nesse viés, a única maneira de examinar a fundo o pensamento reichiano implica não
tangenciar nenhuma de suas questões, nenhum de seus componentes como teoria complexa e
organizada, e manter, dentro do possível, uma atitude positivamente cética, porém sem
recorrer a soluções fáceis, tais como rejeitar algumas explicações e postulações reichianas por
considerá-las absurdas. Manter essa atitude, por sua vez, também quer dizer fazer o mesmo
com relação às explicações advindas das teorias academicamente aceitas, aquelas que a
formação intelectual e profissional ensinou a considerar como verdadeiras e inquestionáveis.
Mais à frente, neste texto, haverá a oportunidade de examinar, na história do conhecimento
científico recente, como alguns dos fenômenos examinados por Reich, cuja existência é
fundamental no desenvolvimento de suas pesquisas e de suas conclusões, mereceram não só
10
Este capítulo, em sua quase totalidade, já foi publicado anteriormente como capítulo do livro Jung e Reich -
articulando conceitos e práticas, organizado por Albertini e Freitas. Por sua forma sintética, a apresentação da
evolução dos trabalhos reichianos, neste texto, também já foi utilizada na dissertação de Mestrado.
46
diferença de posturas diante de uma situação clínica. Na condição freudiana, o emergente era
analisado assim que apresentado, exigindo-se que somente as resistências fossem examinadas
e que se esperasse que o material estivesse próximo o suficiente da consciência para ser
apontado. Na análise do caráter, havia não só a postulação da existência das defesas de
caráter, como também a noção da concatenação das forças ou dos elementos defensivos. Nela,
era possível visualizar a organização das defesas, como uma análise de estratos geológicos,
não num sentido de apenas reprodução da linha do tempo, mas da forma como a catexia dos
elementos formava um todo organizado. Podia-se transitar de um elemento a outro e distinguir
o lugar ocupado na hierarquia das funções; podia-se imaginar o tipo específico de relação que
um impulso recalcado tinha com outro e, ao mesmo tempo, manter uma perspectiva global,
inclusive e principalmente, do como esse aspecto global dos arranjos caracteriais manifestava
a principal função defensiva, justamente a potência defensiva surgida da própria concatenação
dos traços caracteriais. Não por acaso, é desse viés que surge a noção de falta de contato
vegetativo ou contato substituto que dará origem ao exame das correntes vegetativas e a seu
papel no surgimento da ansiedade orgástica, ao somático como contraponto do psíquico,
formando uma unidade complementar.11
11
Esse parágrafo contém descrições teóricas que fogem ao alcance do leitor não especializado em Psicanálise,
mas o entendimento não é imprescindível para os objetivos desta tese. O motivo de mencioná-las foi o de
oferecer uma ideia da profundidade e da estruturação sólida do pensamento reichiano, que é, enfim, o apoio
maior deste trabalho.
48
Por mais comentado que tenha sido esse momento na obra reichiana, nunca é demais
sublinhar o que está implícito e subjacente nesses acontecimentos e nessas observações: a
existência não só de uma funcionalidade sistêmica organizada, como também hierarquizada
em planos ou territórios diferentes. Há uma horizontalidade, assim como uma verticalidade
das funções envolvidas, usando-se um referencial cartográfico. Pode-se examinar a relação de
um impulso com outro ou com um conjunto de outros impulsos, mas se pode ainda verificar
como e se a existência de uma dada atividade motora inibida ‒ em função das sensações e
excitações corporais que acompanham a dada atividade ‒ opera em conjunto a uma evitação
de uma experiência psíquica que, por qualquer razão, precisa ser rejeitada. Se aprendemos
com Freud que, na dimensão inconsciente, o tempo não é necessariamente linear e que a
identidade dos objetos não é garantida (uma imagem ou uma representação podem condensar
muitas outras imagens), nesse momento, com Reich, começamos a conhecer uma
estratificação de múltiplos níveis e planos, atravessando o psiquismo e o fisiológico.
Múltiplos, mas não caóticos (no sentido popular), nem impossíveis de apreender. Se fizer
sentido afirmar que inconsciente sintetiza a descoberta freudiana (LAPLANCE; PONTALIS,
1970, ), a referida palavra está longe de definir exclusivamente uma determinada instância ou
um determinado estado mental, imbricando-se a outros conceitos, em especial ao de pulsão.
Foi a atenção constante ao fator energético, libidinal, a tentativa de definir se se tratava apenas
de um construto, de uma figura de linguagem, ou se tinha, de alguma forma, existência física,
o que levou Reich a desenvolver experimentos e raciocínios no sentido de esclarecer melhor
essa questão.
12
Robert Brown ‒ que observou pelo microscópio o movimento de partículas que recebeu seu nome, movimento
este definido por Einstein, em momento posterior, como aleatório e mecânico ‒, na verdade é autor de dois
textos: no primeiro, deixa implícita a ideia de que esse movimento é gerado intrinsicamente pelas partículas; no
segundo texto, posteriormente, “corrige-se”, temendo, ao que parece, a reação da comunidade científica.
50
. Se postas num meio nutriente, essas vesículas tendiam algumas vezes a agrupar-se e,
em torno delas, desenvolvia-se uma membrana, o que caracterizava um organismo
unicelular. Tempos depois, e mais surpreendente ainda, Reich consegue os mesmos
resultados repetidamente, utilizando, dessa vez, material inorgânico, como areia do mar.
Reich chama essas vesículas de bions.
Reich desenvolve conjuntivite em um olho e, como passa a utilizar o outro ao
microscópio, o mesmo acontece. Já que seu laboratório fica num porão com pouca luz
natural, Reich começa a perceber uma espécie de luminosidade pairando por sobre as
inúmeras culturas de bions, como mais tarde veio a denominar. Assustado e lembrando
do casal Curie, afasta-se de tudo e consulta físicos e químicos sobre essa espécie de
radiação, entretanto ninguém o leva a sério, apesar de, mesmo sendo inverno, ter o corpo
todo bronzeado aparentemente pela exposição à referida radiação. Decidido a correr
riscos, retorna a seus experimentos, e o faz da maneira que lhe é característica: atua em
várias frentes ao mesmo tempo.
Examina amostras de tecido cancerígeno ao microscópio e nota o mesmo processo de
desagregação de vesículas. Hemácias de pessoas saudáveis demoram muito mais tempo
a se desorganizar, e os bíons têm estrutura mais regular, margens definidas e um campo
denso. Organiza um laboratório de Biologia, injeta preparados de bions em ratos com
tumores e encontra resultados surpreendentes: muitas vezes, os tumores desaparecem
rapidamente e, ao mesmo tempo, com frequência, os animais morrem. Uma autópsia
revela a causa: choque renal, rins obstruídos pela tremenda quantidade de material
resultante da destruição dos tumores. Ao mesmo tempo, tentando isolar e conhecer os
fenômenos luminosos que o intrigaram, coloca tubos de ensaio (com culturas de bíons)
dentro de uma caixa Faraday e, quando estes aparecem, utiliza uma lente de aumento.
Ao encontrar a ampliação, confirma que o fenômeno é objetivo.
Forra todo o interior e o teto do laboratório com chapas de ferro galvanizado e passa
longas horas em processo de observação: depois que os olhos se acostumam à escuridão,
vê pontos luminosos em movimento, pequenos lampejos e formações azul-acinzentadas
flutuando, como nuvens. Esses fenômenos variam em intensidade, a depender do clima,
da hora do dia e da umidade relativa do ar.
Um dia, um eletroscópio registra uma forte carga, quando Reich pega novas luvas e o
roça, sem querer. Intrigado, entende que as luvas tocavam um tubo de ensaio com bíons
preparados a partir de areia do mar. Outros materiais orgânicos, como celulose, deixados
ao sol, também podem fazer o eletroscópio registrar cargas significativas.
Convencido da existência de uma forma desconhecida de energia, e a partir de outras
51
13
O campo orgonótico, de natureza energética, determina as condições atmosféricas locais.
52
Annalen der Physik (até hoje uma conceituada publicação em Física), Reichenbach, em 1861,
permanece como apenas um registro de uma esquisitice na história da Física.
14
Ver, por exemplo, a descrição de Bastian em Adrian Desmond and James Moore, Darwin (New York: Warner,
1992, p. 594-595).
57
tomou essa substância como sendo protoplasma e deu a ela o nome de Bathybius Haeckelii,
em homenagem a Haeckel, que recentemente cunhara o termo monera. Haeckel, sem demora,
postulou que toda vida surgira, por geração espontânea, no fundo do mar. Embora Huxley, de
forma controversa, alegasse que negava o materialismo, era impressão do público que este
apoiava a geração espontânea. Mais tarde, essa descoberta se mostrou enganosa.
Em uma série de artigos anônimos publicados no British Journal of Medicine, Bastian
defende, com retórica brilhante, a geração espontânea, baseado nos trabalhos de Huxley e
Tyndall, juntamente com o princípio de causalidade na natureza. Para ele, os processos
naturais cruzavam as barreiras entre vivo e não vivo, assim como era com a eletricidade, o
magnetismo e o calor.
No Weekly Scientific Opinion, de 28 de abril de 1869, encontra-se:
Nos parece estranho que muitos dentre os que rejeitam fortemente a geração
espontânea sejam ao mesmo tempo defensores da lei da seleção natural, e,
realmente, dos princípios gerais da seleção natural... a priori, pelo menos, não
entendemos como discípulos de Darwin possam rejeitar a heterogenia. (LAWSON
apud STRICK, p. 44).
Bastian, professor de anatomia e patologia, acreditava que as bactérias encontradas nos
doentes eram produtos secundários da doença, surgindo por geração espontânea. Fez
múltiplos experimentos para demonstrar isso e, em 1875, já havia publicado centenas de
experimentos que demonstravam que as bactérias podiam ser encontradas em tubos com
infusões de vários tipos, fervidas por diferentes períodos.
Huxley não estava mais em bons termos com Bastian, que se mostrava, então, capaz
de se posicionar de forma autônoma com relação ao antigo amigo. Nesses termos, Huxley e
Tydall alegam que os resultados encontrados se deveriam ao fato de, segundo eles, Bastian
não ser um bom técnico na condução dos experimentos, não fosse o caso de fraude e
enganação. Huxley, politicamente hábil, num comunicado à British Association, em 1870,
renomeia os termos, definindo biogênese como significando vida que vem de outra vida e,
assim, usando abiogênese como sinônimo de geração espontânea, ao subtrair o termo
biogênese de Bastian.
Em 1877, Bastian afirmou que era possível encontrar microrganismos surgidos de
forma espontânea em urina neutra ou alcalina. E, em resposta a um comentário de Pasteur, o
qual colocava em dúvida, como habitual, as habilidades técnicas de Bastian, escreve uma
carta à revista Nature, dispondo-se a demonstrar o que fora anteriormente afirmado. Pasteur,
com isso, escreve à mesma revista uma proposta de encontro na presença de juízes
competentes, numa espécie de reedição do debate com Pouchet.
Interessa-me reproduzir aqui, de modo literal, os termos do debate. Para isso, citarei
58
experimentais que ensejam o experimento que resulta nos bions, como mencionado no
histórico. Partindo da Psicologia Profunda, passando pelo fisiológico e pelo somático e
chegando novamente ao energético, Reich desenvolve não uma perspectiva reducionista, mas
sim holística e integradora. Portanto, está presente já aqui a funcionalidade da unidade
complementar dos contrários (sensação/excitação corporal, psiquismo/organização somática,
caráter/couraça muscular etc); entretanto, ao produzir o experimento que origina o
conhecimento dos bíons, Reich propõe a extrapolação de regras e funcionamentos essenciais,
encontrados num determinado domínio, para o campo de outros fenômenos (Biologia). No
pensamento complexo, isto seria chamado de importação de conceitos. Esse salto entre o
limite (conceitual) dos fenômenos, podemos adiantar aqui, explicita uma noção primeiramente
encontrada em Hegel: “O real é racional, e o racional é real” (SANDLER, 2003, p. 96) ou,
como afirma Reich (1979, p. 520), identificar inconsciente com irracional não faz sentido,
pois a próxima questão seria: de onde vem a mente inconsciente? A vida funciona muito bem
antes do desenvolvimento da razão, e não pode haver dúvidas: funções objetivas, naturais, são
basicamente racionais. De novo, há uma simetria essencial entre os fenômenos vivos e não
vivos. E mais importante: essa perspectiva globalizante não é reducionista e, além disso, não
perde de vista a identidade dos fenômenos e das disciplinas. Lembrando da citação reichiana
no início deste texto: “Isso não significa que as distinções tenham cessado inteiramente de
existir. Ao contrário, à luz da identidade funcional entre homem e animal, anseio orgástico e
anseio cósmico, Éter e Deus, etc., as diferenças específicas emergem de forma muito mais
aguda, e para o bem da capacidade racional de descriminar” (REICH, 1979, p. 520).
A proposição hegeliana, utilizada por Reich15, situa a razão num patamar da própria
natureza mais profundo que o da Psicologia. Obviamente, os termos razão e racional não têm
o significado estreito de capacidade de abstração segundo regras lógico-formais, tendo mais o
sentido de pensamento (o pensamento é a realidade objetiva, e esta, é o pensamento), no
ideísmo hegeliano16
15
Em um primeiro momento, tanto Engels como Hegel forneceram as bases da dialética utilizada por Reich e,
em momento ulterior, desenvolvida no pensamento funcional. Tanto o materialismo dialético quanto o ideísmo
foram substituídos pelo energeticismo reichiano.
16
Singer propõe que o melhor termo seria ideísmo, ao invés de idealismo, para definir a posição filosófica de
Hegel (SINGER, 2003, p. 95).
60
17
Bacilos T são um subproduto da desorganização da matéria, e seu aparecimento em grandes quantidades se
relaciona a estados disfuncionais da saúde física.
61
. Então, tal radiação levará Reich a entender o bíon como a primeira transição do não
vivo para o domínio do orgânico:
O confinamento de uma quantidade de energia orgone cósmica através e dentro de
uma membrana, foi a primeira diferenciação clara entre a vida e a não vida, ou
organísmica da energia orgone não viva [...] em algum lugar da evolução biologia,
essa energia desenvolveu a capacidade de perceber seu próprio fluxo, excitação,
expansão no prazer, e contração na ansiedade. (REICH, 1973, p. 291)
O que é feito aqui não é mera especulação. Os experimentos reichianos foram
elaborados rigorosamente dentro dos protocolos científicos, publicados e tornados acessíveis.
Reich era um experimentador cuidadoso, muitas vezes aguardando anos e inúmeras
repetições, antes de publicar seus resultados. Do ponto de vista analítico, toda sua obra, ao
longo do seu desenvolvimento, demonstra lógica e coerência interna. O aparente paradoxo de
um psicanalista se dispor a fazer experimentos em laboratório colocou o pensamento
reichiano na condição ímpar de ser criticado pelos adeptos das ciências humanas, pelo seu
cientificismo (um pecado mortal), e pelos filiados às ciências naturais, pela sua ausência de
treino científico adequado, mesmo sendo médico de formação, como dito antes, e tendo
publicado protocolos científicos passíveis de verificação. O fato é que os resultados obtidos
por Reich acabam por receber menos atenção.
A história do desenvolvimento da metodologia científica faz confundir, muitas vezes, a
necessidade de objetivação e mensuração (nesse método) com frieza, sobriedade e ausência
do inesperado. Este não é o lugar para o aprofundamento desse tema, mas uma
contextualização é necessária: a metáfora cartesiana do corpo-máquina, aplicada ao exame do
corporal e do mundo material, espraiou-se pelo pensamento científico, dando-lhe sua principal
característica. A imagem do cientista de jaleco branco, num ambiente asséptico e com feições
inexpressivas, tornou-se caricatural. É compreensível que, na longa história da tentativa de
diferenciar o conhecimento falso do verdadeiro, no pensamento ocidental, exista um
importante período em que a racionalidade seja sinônimo de mensuração, objetivação e
análise necessárias para se abordar a dimensão mecânica do mundo e das coisas e produzir
uma tecnologia. Entretanto, essa metodologia, a científica, é apenas uma maneira particular de
interrogar a natureza, pois não define o que é ou o que a constitui em sua totalidade. E, no
caso dos bíons, atitude científica de fato seria examinar os resultados imparcialmente, e não
rejeitá-los porque vão contra uma teoria já estabelecida (a microbiologia de Pasteur).
ou seja, hipotizar conexão e desdobramentos do que podia ser observado pelo microscópio.
“Nenhuma das escolas de pensamento teve sucesso no lidar com os problemas funcionais dos
processos do vivo, nem estas puderam encontrar uma conexão com a física experimental [...]”.
Especificarei, agora, como se formulou a conexão entre os processos biológicos e a física.
Naturalmente, durante os trabalhos com a análise do caráter e com a couraça muscular,
e ainda, no início das pesquisas com os bíons, Reich pensava manipular uma espécie de
bioenergia ou bioeletricidade. Pelo microscópio, observa o surgimento dos bíons, sua
agregação e seu envolvimento por uma membrana, mas também enxerga os bacilos T, de Tod
(morte), em alemão. Como fora levado a pensar o experimento com os bíons, imaginando
uma analogia entre o surgimento de amebas (num meio de cultura) e o surgimento das células
cancerígenas, Reich encontrou maneiras de produzir preparados predominantemente com a
cultura de um ou de outro. Por um lado, culturas de bacilos T, quando injetados em animais de
laboratório, podiam produzir câncer e tumores. Preparados de bíons, por outro lado, quando
injetados, muitas vezes levavam a um processo de desintegração dos tumores. Durante alguns
anos, as pesquisas reichianas com o câncer se deram por meio da produção e da injeção desses
preparados.
Mas, como dito antes, fazer conexões era uma capacidade deveras presente no modo
de pesquisar de Reich, assim como sua postura de observar de forma extenuante um
fenômeno, sem descartar a priori nenhum elemento nele presente. Foi essa capacidade, por
exemplo, que, felizmente, permitiu que os clonismos musculares surgidos durante uma sessão
de análise fossem entendidos na sua funcionalidade referente à vida emocional, ao invés de
serem interpretados como mero acting out.
Ao manipular as culturas de bíons, uma espécie de radiação e de fenômenos luminosos
já tinha sido observada. Reich utiliza a caixa Faraday18
18
Uma caixa Faraday é uma caixa de metal utilizada para isolar e estudar fenômenos eletromagnéticos.
63
19
A quantidade de desordem de um sistema é representada pela sua entropia: quanto mais organizado o sistema,
menor é a sua entropia. Em um sistema isolado (que não troca energia com o exterior), a entropia nunca
decresce, podendo apenas crescer ou permanecer constante.
64
20
Claro, essa é uma explicação resumida. As razões são múltiplas, incluindo a estimulação do sistema
imunológico, a expansão parassimpática e outros elementos da física do orgone que não podem ser mencionados
agora.
66
. Como dito antes, hemácias recuperavam seu turgor e seu campo orgonótico e, desse
modo, eram capazes de resistir mais tempo à desintegração molecular. Há um processo
presente que só pode ser entendido em termos estruturais, isto é, há uma dinâmica reguladora
da totalidade do organismo sendo afetada, o que, no caso disfuncional da doença, é o fator
integração. No câncer, grupos de células agem como se tivessem existência autônoma com
respeito ao organismo, reproduzindo-se em ritmo não só acelerado, como também
desconectado das outras células do corpo.
Mas, o que é essa integração e o que pode ser essa estrutura que não é algo
primariamente derivado, por exemplo, das relações químicas, moleculares, presentes nos
objetos vivos e não vivos? Questionamos, agora, o referencial materialista-mecanicista na sua
suficiência explicativa. Formas orgânicas não são redutíveis a explicações mecanicistas e
reducionistas (ao contrário do que fazem crer muitos textos e reportagens de divulgação
científica). A estabilidade de um organismo (sua estrutura) está longe de poder ser
suficientemente explicada pela mera derivação do DNA.
[...] Ao contrário do que dá a entender o discurso triunfalista de alguns biólogos,
temos que reconhecer que [...] a correspondência entre genótipo e fenótipo é uma
pura e simples “caixa preta”, de que conhecemos somente algumas articulações
locais. (THOM, 1994, p. 123).
Desde o princípio, Reich, intuitivamente, seguiu certas premissas que foram, depois,
comprovadas e, mais posteriormente ainda, elaboradas numa metodologia de pesquisa e
investigação, além de serem matematizadas. Em suas próprias palavras:
Desde que comecei minhas pesquisas, sempre esteve claro para mim que meu
trabalho estava submetido a uma lógica objetiva, que a princípio não podia ser
entendida [...] entender essa lógica e sua racionalidade, no desenvolvimento de
observações, hipóteses de trabalho, teorias e novas descobertas, é, em si mesmo,
parte principal do meu trabalho de pesquisa. Uma harmonia entre sujeito e objeto,
entre observador e observado, que era baseada em algum tipo de lei, parecia
constantemente permear essa lógica. (REICH, 1999, p. 406)21
21
Importante lembrar que, na abordagem científica, relevante é o contexto da demonstração e da comprovação, e
não o da descoberta. “Como” surge uma hipótese não é o elemento central.
69
.
Essa lógica, que se expressa no método do pensamento funcional22
22
O princípio fundamental do funcionalismo orgonômico, como método de pensamento, é a identidade das
variações no seu princípio funcional comum.
70
e na orgonometria23
23
Pesquisa orgonômica quantitativa, matematizada.
71
24
O termo função, na Orgonomia, pode ser visto como sinônimo de trabalho, no campo conceitual da Física.
Mas, note-se que, na Orgonomia, função e trabalho são idênticos, função não é algo que produz trabalho.
72
Mas, embora na Orgonomia a complementaridade dos opostos seja fundante, ela não é
idêntica à dialética. Nesta última, a síntese surge da pressão da contradição entre opostos,
enquanto, na primeira, além da direção da seta que representa o novo, o indeterminado, a
criação (tomando-se a representação no sentido esquerda-direita), há também a representação
da historicidade do desenvolvimento (sentido direita-esquerda), em que o PFC da função,
num determinado domínio, pode ser variação, ao mesmo tempo, de um domínio mais
abrangente e profundo.
Dependendo da direção que a investigação tome, podemos ir das funções mais
especializadas (psiquismo) às mais essenciais (pulsação), em patamares diferenciados,
regidos por leis próprias, mas não isolados. Trata-se de subsistemas de um sistema
caracterizado por pareamentos antitético-complementares unificados por um princípio
funcional. No entanto, não é qualquer função que, aleatoriamente, pode ocupar o lugar do
PFC ou de suas variações. É necessária a correspondência entre a localização da função e os
fenômenos do mundo, tanto em sua gênese histórica, quanto em sua capacidade de descobrir
relações (até então desconhecidas) entre eventos e funções.
Se examinarmos a condição de angústia, por exemplo, veremos que a esta corresponde
um estado corporal: vasoconstrição, frequência cardíaca acelerada, pele e extremidades frias,
pupilas dilatas, peristaltismo inibido, o oposto somático de uma vivência de prazer. A um
afeto psíquico, corresponde um estado somático, não numa relação de causa e efeito, mas de
mútua interdependência. A mediação entre o psíquico e o somático, por exemplo, é feita pelo
Sistema Nervoso Autônomo (SNA). Então, se pensarmos em termos de pareamentos
funcionais (sensação de angústia [A6] – estimulação simpática [A7], prazer [A4], ‒
parassimpático [A5]), teremos para o pareamento funcional A7 e A6, o PFC contração
biofísica [A3], e, para o pareamento A4 e A5, o PFC expansão biofísica [A2]. Por sua vez, os
pares funcionais A2 E A3 têm como PFC A1, excitação biofísica.
O pensamento complexo, que propõe romper as limitações do reducionismo, usa o
73
25
Embora Morin afirme que não há nenhuma metateoria da complexidade, chama a atenção o fato de este autor
nunca citar Reich, apesar da evidente semelhança estrutural entre as formulações.
74
um conteúdo que parece esotérico ou mera especulação filosófica pode surgir em outra teoria
(MQ) de forma considerada aceitável.
Ao longo deste capítulo, procurei enfatizar, de várias maneiras, como o pensamento
reichiano é solidamente apoiado em evidências, possui uma lógica interna coerente e
desenvolve uma metodologia própria e adequada ao seu objeto de estudo, a Orgonomia.
Com o exame dos processos da vida emocional, da biogênese e da física do orgone,
Reich não só demonstrou a interligação entre esses domínios, mas também evidenciou que a
vida emocional revela elementos profundos e significativos da realidade em geral e tem o seu
correlato no amo, ergo sum, de Pauli: “Se o homem conseguisse apreender no plano
energético a função da sensação e da percepção, ou seja, investigar as profundidades de sua
própria natureza, ele subitamente teria acesso a ‘coisa em si”. “Sentimentos alcançam as
mesmas profundidades que o pensamento” (GIESER, 2005, p.347), disse Pauli, que
acreditava que ambos, matéria e psique, são uma expressão de uma ordem comum, objetiva e
subjacente, e que, como Reich, entendia que a Psicologia, o inconsciente, remete a algo mais
do que simplesmente processos mentais, entranhando essa disciplina nas ciências naturais,
não humanísticas:
I should like to point out that psychology always used to be counted as one of the
humanistic sciences, but it was precisely C.G. Jung himself who emphasized the
scientific nature of his ideas, and it was through his works that the way was paved
for an integration of the psychology of the unconscious into the natural sciences.
(MEIER, 2001, p. 212).
As descobertas reichianas produzem uma modificação revolucionária na maneira de
pensar e ver o mundo e a nós mesmos, porém, ao mesmo tempo, reintroduzem a anima mundi,
banida da visão de mundo desde o século XVII, o que deu origem às fundações do
pensamento mecanicista. O pensamento reichiano, por isso mesmo, tem o valor de oferecer
uma alternativa àqueles que veem razões para se opor à hegemonia de uma visão mecanicista
reducionista e que, além disso, não compactuam com a postura pós-modernista que sustenta a
tese de que todo saber não passa de ideologia (com exceção da própria tese).
A riqueza do referencial reichiano tem o potencial ainda de se revelar, dependendo de
o mesmo encontrar ou não ressonância nas mentes do nosso tempo. Seu destino tanto poderá
ser o de sobreviver e se expandir, quanto o de desaparecer e ser esquecido, como muitos
outros já o foram.
Como talvez já esteja um pouco mais claro a essa altura, essa interligação dos
fenômenos, o unus mundus junguiano, o PFC reichiano (Princípio Funcional Comum) e
também o enredamento na MQ são pontos de partida para a teorização sobre o que chamo,
76
nesta tese, de fusão com o objeto, do ponto de vista de uma possibilidade de conhecimento
diferenciada (e complementar) da clássica postura do isolar e controlar os aspectos de um
experimento científico. As possibilidades de objetivação da subjetividade (novamente, não no
sentido da redução de uma a outro, mas no de evidenciar propriedades complementares
constituintes) se mostram possíveis tanto por meio de experimentos clássicos do ponto de
vista de controle e protocolos, quanto na forma da utilização de processos mentais e de
introspecção. Esta, a introspecção, e a via da consciência de si e da consciência somática serão
exploradas adiante com mais profundidade. Em capítulo posterior, e já contextualizados pelo
que já foi apresentado, ocupar-me-ei do mesmo tema, agora, em torno de registros
computacionais produzidos em experimentos sobre emoção e intenção, que resultaram em
dados intrigantes no respeito à interação homem-máquina. Volto a sublinhar que o que é
pretendido não se resume à dimensão dos fenômenos humanos e psicológicos, mas a toda a
esfera da existência e do conhecimento.
A MQ, em especial o enredamento (entlangelment), é por mim utilizada como um
entre vários fatores e parâmetros que justificam a tese da possibilidade da fusão com o objeto
como modo de conhecimento. Por esse motivo, no próximo capítulo, irei me estender mais
sobre elementos dessa teoria e da própria história de seu desenvolvimento, não exatamente
num sentido historiográfico rigoroso, mas com a finalidade de examinar aspectos ontológicos
e epistemológicos que entendo relevantes para a minha tese.
77
Para mim,
a concentração e o desdobramento (de Bohm)
são tão conservadores
quanto sua visão das variáveis ocultas.
Volta-se sempre à alguma coisa que está lá e
em seguida se desdobra...
O tempo é criação.
O futuro não está lá.
(Ilya Prigogine)
vindas, mas estes são os traços predominantes que definem até hoje o que é o conhecimento
científico: a negação do sobrenatural como explicação, a observação e a experimentação
como ferramentas, a lógica como instrumento da razão.
Existe, não por acaso, uma associação entre o método experimental e a democracia: os
dados da experiência, supostamente livres dos juízos de valor, podiam ser avaliados
criticamente por outros, não só pelo autor do experimento. Assim, criava-se um elo, uma
cadeia de abordagens e observações, que se contrapunha às formulações produzidas e
validadas apenas pela autoridade de quem as formulava.
No século XX, entretanto, o otimismo e a certeza de um futuro saem pouco a pouco de
cena. Duas grandes guerras, algumas descobertas científicas que abalam o senso comum, a
psicanálise, a desilusão, principalmente após os anos 50, com os grandes projetos de
transformação política, e, por fim, a globalização, entre outros fatores, criam as condições
para colocar em cheque a racionalidade.
Dissemos antes que uma maneira de definir a pós-modernidade é que, a respeito da
correspondência entre verdade e realidade, no que se refere às nossas possibilidades de
conhecimento, a única verdade é que não há verdades objetivas. Esse posicionamento pós-
moderno, por sua vez, decorre da correspondência, desde o Iluminismo, entre razão, ciência e
verdade.
Se o desejo e a tentativa de conhecer e dar sentido ao mundo a nossa volta é tão antigo
quanto a própria humanidade, após o Iluminismo e a rejeição do pensamento revelado, esse
conhecer se dá em torno do imbricamento entre ciência e razão. Conhecer (cientificamente) se
torna sinônimo de mensurar, prever e objetivar.
O Pós-modernismo constitui, portanto, um movimento de crítica à possibilidade de se
conhecer e de se definirem verdades objetivas, e isso através do instrumento da razão.
Não é somente a psicanálise, contudo, que vem apresentar a natureza irracional do
homem (com o conceito de inconsciente). Duas grandes teorias científicas, surgidas no
começo do século XX, parecem ser a motivação primeira (se pensarmos que certas ideias
podem se espalhar pela sociedade e pela cultura), ou então acompanhar as influências que
ensejaram a Pós-modernidade: a Relatividade Geral de Einstein, alterando as noções intuitivas
de tempo e de espaço, e a Mecânica Quântica e seu princípio de incerteza. A Relatividade
altera profundamente a noção intuitiva de tempo e espaço absolutos, e a Mecânica Quântica –
na interpretação de Copenhague – anula a ideia de identidade em si, sendo a existência de
fato da partícula somente definida pela relação mensuração/mensurado ou
observador/observado, dependendo do viés epistemológico empregado. A predominância, ou
79
A Mecânica Quântica apresenta uma estranheza que tem origem nos aspectos
ondulatórios e corpusculares em um mesmo fenômeno, algo impossível na concepção da
Física clássica. Embora Maxwell já tivesse proposto a natureza ondulatória da luz, que, como
eletromagnetismo, propagava-se continuamente pelo espaço, após Planck, Einstein, em
“Sobre um ponto de vista heurístico concernente à produção e transformação da luz
( EINSTEIN,1905), comentou a existência de corpúsculos de luz, vendo nesta uma
natureza descontínua. Essa natureza descontínua veio a mostrar muitas evidências e, em 1913,
Bohr propôs que a estabilidade do átomo fosse devida às orbitas quantizadas do elétron – o
que foi um marco importante para a química –, os elétrons saltando de uma órbita a outra
dependendo de processos de absorção ou emissão de luz.
Em sua tese de doutorado de 1924, de Broglie tenta defender a ideia da natureza dual,
tanto da luz, quanto da matéria, intencionando produzir uma síntese entre essas duas
naturezas.
A partir destes trabalhos e logo após os trabalhos de Heisenberg, em 1925,
Schrodinger, que tinha interesse em mecânica estatística, elaborou a Mecânica Quântica
Ondulatória e a equação de Schrodinger, uma equação para a propagação de uma função de
onda que representa o estado quântico, onde uma onda ψ representa uma densidade de
probabilidades de se encontrar uma partícula em uma determinada posição, tendo um caráter
estatístico e não o de uma onda real. A MQ se apresenta como um conjunto de regras para
cálculos e resultados (prováveis) de certos processos. Se na física clássica a matéria é definida
como partículas ou campos, não há na MQ, via de regra, um paradigma correspondente.
Na interpretação de Copenhague, de Heisenberg e Born, a localização e a própria
partícula decorrem do processo de mensuração, produzindo um colapso de função de onda ou
de vetor de estado. Todos os estados possíveis coexistem em uma superposição de estados
fundamentais, que evoluem no tempo de acordo com a equação de Schrodinger, até o ato de
mensuração ou observação, a depender da teoria quântica aplicável. Essa equação está
presente de forma unânime em todas as teorias ou interpretações da MQ, que variam
grandemente em outros aspectos.
O aspecto estatístico e indeterminístico da Mecânica de Copenhague (doravante MC)
levantou críticas a de Broglie.
Em O itinerário científico de Louis de Broglie em busca de uma interpretação causal
para a Mecânica Ondulatória, Paulo Vicente Moreira dos Santos afirma:
Em 1927, de Broglie publicou um artigo no Le Journal de Physique et le Radium
com o título ‘La mecanique ondulatoire et la structure atomique de la matiére et du
rayonnement’, no qual ele apresentou, pela primeira vez, a Teoria da Dupla Solução.
81
de alguma forma, deixam de se aplicar aos objetos que estão funcionando como
mensuradores ou observadores. (ALBERT,1994, p.61)
Em suma, esta é a visão majoritária, na qual predominam a perspectiva probalística e
(ou) subjetivista da realidade, presentes na interpretação standard, a Mecânica de Copenhague
(MC). Como sempre, o olhar epistemológico e não apenas tecnológico vislumbra a presença,
nessas definições, das velhas problemáticas, como o materialismo versus idealismo, atomismo
versus continuum. Sempre é pertinente lembrar que as teorias surgem a partir dos resultados
dos experimentos e das mensurações, mas não os constitui. Os dados brutos, com exceção das
avaliações que pretendem corroborar ou verificar a confiabilidade dos resultados, estão na
base daquilo que dará ensejo às teorias, que, contudo, além de guardar maior ou menor
coerência matemática e capacidade preditiva, também recebem, na formulação da
interpretação, a influência da subjetividade tanto do autor, ou autores, quanto do momento
histórico e cultural vigentes. Como mencionado anteriormente no texto, cabe perguntar se
foram as teorias científicas que influenciaram perspectivas culturais, ou se o cerne dessas
teorias segue uma tendência, uma seta cultural influente.
A definição standard provocou críticas ferrenhas, não só de de Broglie, mas
especialmente do expoente crítico mais conhecido, Einstein, que não só a considerou
incompleta (portanto, passível de sofrer modificações futuras que alterassem a postulação
sobre a identidade da partícula subatômica e sobre o que é a realidade), como também
justificava-as dizendo que, a partir dessa definição, o conhecimento científico seria então
impossível. A essência da ciência, segundo Einstein, estava no controle da situação
experimental e na predição para um conhecimento cada vez maior da realidade, e não no
manejo de formalismos matemáticos. Travou um conflito teórico com Bohr, que durou o
tempo de suas vidas, e, juntamente com Podolsky e Rosen, foi o autor de um
Gedankenexperiment (experimento em pensamento), o EPR, junção das iniciais dos autores.
Esse experimento mental surgiu do incômodo de Einstein com o enredamento, uma
decorrência dos formalismos da MQ em especial. Este formalismo prevê que, para certos
estados quânticos, há uma correlação entre duas mensurações distantes, ou seja, se o spin27 de
uma partícula for mensurado, o estado de outra, ou outras partículas, muda instantaneamente.
Isso, claro, não tem correspondência em nossas experiências cotidianas. Além disso, se a
mudança é instantânea, a teoria da relatividade, na qual a velocidade da luz é a invariante
central, está refutada. O problema da identidade da partícula28 surge conectado ao da
27
Spin é uma propriedade da partícula expressa como direção de movimento.
28
Não teria sentido falar nisso antes, no pensamento de Heisenberg, já que seria a mensuração a instanciar
propriedades da partícula.
83
localidade. Com isso, Einstein vislumbrava como a teoria quântica trazia problemas para o
conhecimento, sendo basicamente indeterminista na MC.
No EPR, duas partículas, que estiveram em contato anteriormente, chegam a dois
observadores diferentes. Se, por exemplo, a posição de uma delas é medida, o primero
observador pode saber a posição da partícula 2, já que o estado de entrelaçamento prediz isso.
A MQ seria uma teoria incompleta por poder fazer afirmações sobre um fenômeno (a ação à
distância), mas não poder fazer predições que seriam deterministas, em função do princípio de
incerteza, de Heisenberg. A teorização surgida no EPR era de que, ou as partículas tiveram
algum tipo de contato, mesmo estando à distância, ou, então, as partículas já carregavam com
elas, desde o princípio, a informação que surgiria nas mensurações. A segunda hipótese foi a
escolhida pelos autores, já que esta não contradizia a Teoria da Relatividade. A conclusão,
como dito acima, é que a MQ era uma teoria incompleta, já que não havia espaço, nos
formalismos, para parâmetros ocultos.
Os problemas filosóficos levantados pela alteração da física clássica, como vemos,
giram em torno da definição da natureza da partícula subatômica, da natureza da própria
realidade e, portanto, como na preocupação einsteiniana – um realista – sobre a possibilidade
de um conhecimento objetivo. É no mínimo curioso a correspondência temporal entre a teoria
psicanalítica, que vai justamente, de um ponto de vista mais geral, demonstrar como a vida
inconsciente se imiscui e até molda os conteúdos das cognições, como citado anteriormente
segundo alguns autores, e as premissas da MQ a respeito dos constituintes da realidade em
uma dimensão profunda. De um lado de Broglie, com a onda-u, e Einstein, debatendo uma
natureza intrínseca à partícula, mantendo a causalidade, num viés determinista, e, de outro, a
Interpretação de Copenhague, surgindo hegemônica no horizonte. De Broglie, entretanto, não
conseguiu elaborações matemáticas suficientes para justificar sua onda piloto e, por fim,
abandonou suas teorias e
[...] aceitou uma interpretação que chamava de “puramente probabilística”, por cerca
de vinte e cinco anos. Em 1951, sob a influência de David Bohm e J.P. Vigier, de
Broglie retomou o seu programa de pesquisa em uma busca de uma interpretação
causal para a Mecânica Ondulatória. Após esse retorno, ele se tornou um crítico
impiedoso da interpretação probabilística [...]. (SANTOS, 2010, p. 65)
David Z. Albert e Rivka Galchen em artigo com linguagem popular, publicado na
Scientific American, de fevereiro de 2009, intitulado “Einstein estava errado? Uma ameaça
quântica para a relatividade especial”, fazem um histórico do dilema Einstein-Bohr, no qual,
em certo momento, surge um subtítulo “o retorno do reprimido”, uma evidente referencia à
psicanálise. Aqui, Albert comenta sobre Einstein e Bohr:
84
[...] The first serious scientific engagement with the EPR argument came (after 30
years of more or less complete neglect) in a famous 1964 paper by the extraordinary
Irish physicist John S. Bell. From Bell's work it emerged that Bohr was wrong that
nothing was wrong with his understanding of quantum mechanics and that Einstein
was wrong about what was wrong with Bohr's understanding. To take in what was
actually wrong involves abandoning the idea of locality.
The crucial question is whether the nonlocalities that at least appear to be present in
the quantum-mechanical algorithm are merely apparent or something more. Bell
seems to have been the first person to ask himself precisely what that question
means. What could make genuine physical nonlocalities distinct from merely
apparent ones? He reasoned that if any manifestly and completely local algorithm
existed that made the same predictions for the outcomes of experiments as the
quantum-mechanical algorithm does, then Einstein and Bohr would have been right
to dismiss the nonlocalities in quantum mechanics as merely an artifact of that
particular formalism. Conversely, if no algorithm could avoid nonlocalities, then
they must be genuine physical phenomena. Bell then analyzed a specific
entanglement scenario and concluded that no such local algorithm was
mathematically possible.
And so the actual physical world is nonlocal. Period. (ALBERT; GALCHEN, 2009,
p. 3, grifo meu)
Albert faz referência à resposta de Bohr ao EPR, quando faz uma digressão sobre
problemas de linguagem relativos à definição de realidade e elementos de realidade, etc. Ao
mesmo tempo, também Bohr concordava com um único ponto de vista expresso no EPR: o de
que obviamente estava fora de questão a existência, de fato, de qualquer não localidade:
A aparente não-localidade, ele argumentou, era somente mais uma razão do porquê
devemos abandonar a antiga e fora de moda aspiração, tão manifesta no artigo EPR,
de sermos capazes de encontrar uma representação realística do mundo numa leitura
das equações da MQ [...].(ALBERT; GALCHEN, 2009, p.4)
Mas, a não-localidade veio para ficar. E paradoxalmente, tanto para Einstein, quanto
para Bohr, esta é o elemento de realidade.
A MB, como ficou explicitado, é diferenciada, não somente pelo fato de não ser
subjetivista ou exclusivamente probabilística, mas destaca-se, especialmente, naquilo que me
interessa, isto é, em descrever uma realidade subatômica interconectada e realista, no sentido
de uma existência pré-mensuração/observação. Como mencionado acima, suas características
de não-localidade, relacionalidade e holismo fazem-na, somada a algumas outras, referência
teórica possível para a ideia de fusão com o objeto, na medida mesmo em que, nessa
concepção, uma identidade não é refém de um isolamento aprisionante. Aqui, a
relacionalidade, juntamente com a não-localidade permitem pensar na possibilidade de um
conhecer que vá além dos termos da extensão – eventualmente, além do tempo.
Nesse momento, nesse trabalho, sempre em busca de uma somatória de elementos com
caráter científico, no sentido de mensurações e controle, que percorram o campo da
relacionalidade, pretendo apresentar dados e registros que se aproximam mais da ordem dos
elementos do psiquismo, ainda situado nas referências da não-localidade e da relacionalidade.
Neste próximo capítulo, a relação do psiquismo e da vida emocional com objetos mecânicos e
eletrônicos será pontuada, para, mais adiante, examinar, do ponto de vista do relacional, a
relação com o si mesmo como parte integral, essencial, de um modo de conhecimento. A
relação com o si mesmo, tomada como sendo entre dois objetos, que são, ao mesmo tempo,
um, estará no cerne da questão da fusão com o objeto como forma de conhecimento, não só
um conhecimento pessoal, subjetivo, mas o conhecimento entendido como complementar ao
modo objetivo do método científico. Esse objetivo é mencionado nesse momento do texto
apenas com o intuito de formular um desenho, que antecipa o que será apresentado e oferece
alguma linearidade e racionalidade, como síntese dos diferentes conteúdos que estão sendo
abordados como apoio para esta tese.
88
30
Robert. G. Jahn, o principal membro desta equipe, é professor emérito de Ciências Aeroespaciais e Decano
da Escola de Engenharia e Ciências Aplicadas.
31
No caso mencionado como exemplo, eventos eletrônicos.
89
.
Em um artigo de 1982, “The persistent paradox of psychic fhenomena: An engeneeiring
perspective”, Robert Jahn relata como se deu a sua aproximação com essa pesquisa:
[...] Eu arrisco começar a mais extraordinária tarefa por escrito que eu já tenha
tentado: responder ao pedido dos editores deste periódico para uma revisão crítica
do status e do prognóstico da pesquisa científica na área dos assim chamados
“fenômenos psíquicos"32. Eu faço isso com algum nervosismo, primeiro porque o
tópico está longe da minha principal linha acadêmica, e meu envolvimento foi
rápido e circunscrito33, e segundo, pela intensidade das reações que estes
comentários nessa questão tendem a causar em muitas e diferentes frentes.
Por estes motivos, pode ser necessário logo de início salientar minha perspectiva
nesse campo e o propósito do mesmo. Minha formação é em engenharia e física
aplicada, e o escopo de minhas pesquisas concerne uma sequência de tópicos no
domínio das ciências aeroespaciais... Na minha atual posição como Decano da
Escola de Engenharia e Ciências Aplicadas da Universidade de Princenton, eu tive
ocasião de estar envolvido com uma vasta seleção de tópicos e projetos selecionados
por estudantes da graduação, e foi nessa condição que fui requisitado, cerca de
quatro anos atrás, por uma de nossas melhores estudantes para supervisionar um
estudo sobre fenômenos psíquicos. Mais especificamente, esta estudante pretendia
usar seus talentos em engenharia elétrica e ciências computacionais numa pesquisa
sobre psicocinese. Embora eu não tivesse nenhuma experiência prévia, pessoal ou
profissionalmente, com este tópico, por uma série de razões pedagógicas, eu
concordei em participar... meu papel inicial como supervisor neste projeto levou
posteriormente
Figura 2: Diagrama afuncional
um graudo
deGerador
envolvimento pessoal,
de Eventos e a um crescente desassossego
Aleatórios.
intelectual, de tal forma que, quando esta estudante graduou-se, eu estava
convencido que este era um campo legítimo para um pesquisador capacitado
dedicar-se, e que eu continuaria a fazer isso [...]. (JAHN, 1982, p.3)
32
O autor refere -se à “paranormalidade”.
33
Posteriormente seu envolvimento tornou-se intenso, como ficará claro no texto a seguir.
90
34
Diz-se que Jahn consegui o financiamento que permitiu a existência e a continuidade das pesquisas, uma
soma mais que considerável, ao convencer uma autoridade da aviação que, caso existissem, essas influências
poderiam ser um fator de risco não ainda considerado para a aviação como um todo.
92
36
Ressonância mecânica é a tendência de um sistema mecânico a responder em amplitudes maiores quando a
frequência das suas oscilações encontra a frequência natural dos sistemas, diferente de outras frequências
possíveis ao sistema, mas que podem causar falhas catastróficas em estruturas construídas de forma
imprópria.
94
Parece que muitos físicos não estavam conscientes que Pauli era muito mais do que
um brilhante e de certo modo, singularmente único teórico. Mas eles sentiam isso.
Pois mesmo os mais sóbrios físicos experimentais eram de opinião que estranhos
efeitos emanavam de Pauli. Eles pensavam, por ex., que sua mera presença no
laboratório produzia todo tipo de azares experimentais, como se ele despertasse a
malícia dos objetos. Este era o efeito Pauli. Seu amigo Otto Stern, por ex., o célebre
virtuoso do feixe molecular, nunca permitia que este fosse ao seu departamento, por
essa razão. Isso não é uma lenda, eu conheci tanto Pauli quando Stern, e muito bem.
Pauli definitivamente acreditava nesse efeito. Me disse que o pressentimento do
desastre vinha a ele como uma sensação desagradável, e se o malfeito antecipado
anteriormente realmente ocorresse – com alguém – ele se sentia estranhamente
aliviado e relaxado. ( p. 20 - 21).
Como dito antes, essa inserção sobre Pauli é pertinente, na medida em que sublinha
uma possível interferência anômala sobre aparatos e instrumentos, difícil de explicar por
meios físicos conhecidos, mas também difícil de ignorar, conforme o relato e conforme
muitas outras citações sobre Pauli em outras obras.
Figura 4: Cumulative total deviation of results for 247 formal hypothesis tests.
The dotted smooth curves show the 5% and 0.1% significance criteria. A truly
random trace would fluctuate around a level trend at zero on the ordinate.
Originalmente publidado no artigo “The Emotional Nature of Global
Consciousness”.
37
Outros como Penrose e Hameroff, ao postularem um acontecimento quântico nos microtúbulos neuronais
como determinante para a consciência.
99
[...] no que segue, eu desejo explicar através de exemplos simples como a ideia de
complementaridade tornou possível, dentro do campo da física, uma síntese das
contrastantes e à primeira vista mutuamente contraditórias hipóteses. Para alcançar
esse objetivo, generalizações de extremo alcance da velha ideia de causalidade, e
mesmo da ideia de realidade física, são naturalmente necessárias.
A constatação de que partículas materiais, não somente a luz, produzem igualmente
padrões de interferência tornou a dualidade envolvida universal, segundo Pauli. Esses padrões
de interferência exibidos pelas partículas só podem ser descritos por uma referência onda, ou
imagem onda. Uma consequência disso é que há limitações para a ideia de partícula, não
somente para a luz, mas também para a matéria.
Deduz-se disso que:
[...] o princípio universal de indefinição ou incerteza nos permite entender que a
aplicação das referencias “onda” e “partícula” não podem mais conflitar uma com a
outra desde que os arranjos experimentais cujos resultados suportam “ambos-e”
(onda como referencial) e os outros arranjos experimentais cujos resultados
suportam “um ou outro-ou (partícula como referencial) são mutuamente
38
Ver prigogine e o re-encantamento da natureza.
100
excludentes [...].
A visão de mundo que Pauli irá adotar, em decorrência dessas formulações e da
parceria com Jung, leva-o a ser não tão somente um adepto da ideia de complementaridade,
como Bohr. Se Bohr, em um plano epistemológico, pensa os fenômenos vivos 39 como
contrastantes e complementares aos fenômenos materiais não vivos e também pensa a
psicologia como complementar à física, Pauli se destaca ao colocar uma ênfase sobre o
psiquismo: ao constatar a impossibilidade de controlar a interferência que o ato de observar
traz ao sistema observado, Pauli finaliza concluindo que objetos materiais ganham, assim, um
caráter simbólico, já que as condições para a descrição do fenômeno, independentemente do
modo de observação, não são preenchidas: “Dessa forma pode-se dizer que irracionalidade
apresenta-se ao físico moderno na forma de observação seletiva (auswahlende)” (PAULI,
1994,p.39)
Os termos empregados por Pauli – caráter simbólico, irracionalidade – mostram o
caminho que estava percorrendo na descrição apresentada. Há uma mistura, uma combinação
de significados de termos, os quais estamos acostumados a encontrar em outros lugares, não
em um discurso da Física. Tamanho é o esforço para apresentar a ideia de uma realidade não
estritamente objetiva e independente do observador e da mensuração, que tais termos ganham
uma espécie de sentido estendido. Não é simplesmente a subjetividade que é mencionada, o
simbólico não designa apenas o algo para alguém, mas ganha, nos termos de Pauli, dos
objetos-observadores, categoria composta que me ocorre empregar, uma espécie de sentido
em si. A irracionalidade também é empregada em um sentido diferente de subjetividade e,
certamente, é utilizada por Pauli como sinônimo de inconsciente. O mundo visado nessa
descrição não é o do lugar comum do paralelismo psicofísico, nem o da simplificação
consciência (observação) que produz realidade. A complementaridade analisada registra uma
realidade composta, na qual o simbólico se apresenta ao objeto e, ao mesmo tempo, está nele,
do mesmo modo como a irracionalidade, que se apresenta ao físico moderno, não constitui
apenas subjetividade, mas inconsciente, termo utilizado, aqui, como conduzindo ao profundo,
ao não-consciente, ao arquetípico em última instância – “The laws of this world would then
be the physical manifestations of the archetypes" –, ao que nas teorizações de Jung e de Pauli
é a fonte não somente do psiquismo, mas da realidade, transcendendo em muito uma
significação residente no plano do psiquismo. A complementaridade exposta passa longe de
ser uma simplificação de uma solução simplória, não sendo, portanto, apenas recurso
39
Um fenômeno vivo precisa manter sua integridade para ser examinado e analisado enquanto vivo, não
admitindo redução.
101
uma forma a-causal. O modo de pensar de Jung, sua visão de mundo, não era estranha ao
autor.
Em uma longa carta de Pauli a Jung, de 28 de junho de 1949, e em algumas outras,
comentando a ideia de sincronicidade, encontramos um texto pleno de referências à psicologia
do inconsciente e conceitos da física, como o de tempo e o de simultaneidade. A carta contém
também esta narrativa: referências a conteúdos oníricos de Pauli, que este avalia como tendo
relevância arquetípica. O autor começa a carta agradecendo o envio do manuscrito de Jung
sobre sincronicidade; discordado prontamente de seu interlocutor quanto aos experimentos de
Rhine terem expressão sincronística, “trata-se de outra coisa” diz Pauli; e valorizando a
noção, segundo a qual a sincronicidade guarda relevância, não quanto a aspectos estatísticos
(como os existentes nos experimentos de Rhine), mas, sim, quanto à conexão envolvendo um
estado definido de consciência: “[...]Dessa forma, o surgimento do fenômeno sincronístico
realmente parece estar conectado a um estado diferenciado de consciência (este termo é
deliberadamente bastante vago)” (PAULI, 1994, p. 36).
É necessário contextualizar o tema da sincronicidade em um esquema junguiano mais
geral. Jung foi psicanalista freudiano e distanciou-se deste ao teorizar sobre dois elementos
fundamentais da metapsicologia freudiana, o conceito de libido e o de inconsciente. A
primeira foi descrita como uma força para além do sexual e o inconsciente, por sua vez, como
tendo uma natureza mais profunda do que a de uma memória arcaica pessoal, mesmo
levando-se em consideração a ideia de proto-fantasias, elementos psíquicos pré-existentes à
experiência no psiquismo. Deixando de lado toda a complexidade das teorizações freudianas,
inclusive sobre a natureza da pulsão e da libido enquanto força ou energia, é fato que as
postulações freudianas implicam umas nas outras, os conceitos apoiam-se mutuamente, é,
portanto, impossível uma descrição da pulsão sem mencionar a de inconsciente,
recalcamento, etc. É possível, entretanto, uma aproximação das metas da psicanálise ao
utilizar as interpretações nas sessões: tornar consciente o inconsciente, ou seja, retirar o
recalque dos elementos ideativos que sofreram a repressão, como foi descrito em capítulo
anterior desta tese.
Na análise junguina, fundamentada em parâmetros diferentes, o objetivo é o processo
de individuação, a análise serve ao propósito de ajudar alguém a ser o que já era
potencialmente, e para isso, a natural oposição entre inconsciente e consciente precisa ser
minorada, com uma tomada de consciência mais completa possível sobre os conteúdos
inconscientes na sua expressão arquetípica. Esse é o processo de individuação. Sublinhei a
consideração sobre a oposição entre inconsciente e consciente, porque estes são vistos como
103
mesmo para que Pauli avaliasse um texto sobre sincronicidade enviado: depois de relatar
como conhecia o sentido das coincidências significativas nos textos de Shopenhauer, em que
este postula a definitiva união entre necessidade e acaso, e como ele, Pauli, tinha ficado
fascinado com esse texto, que evocava nele um novo rumo para as ciências, continua:
Eu agora chego às sua questões concernentes à possibilidade de juntar alguns dos
fatos físicos mencionados por você, com a hipótese sincronística. Essa é uma
questão difícil, e parece estar conectada a algumas das minhas experiências pessoais
no “background fysics”, que manifestaram-se especialmente na forma de sonhos
[...]. (MEIR,apud PAULI, 2001, p. 39)
Assim como na física, uma substância radioativa “radioativamente” contamina todo
um laboratório, o fenômeno sincronístico parece ter a tendência de se espalhar pela
consciência de várias pessoas. [...] O fenômeno físico da radioatividade consiste na
transição do núcleo atômico da substância radioativa de uma etapa inicial instável
para sua etapa final estável (em um ou vários passos), no curso do qual a
radioatividade finalmente para. De forma similar, o fenômeno sincronístico, num
fundamento arquetípico, acompanha a transição de um estado inicial instável da
consciência até um novo estágio estável, em equilíbrio com o inconsciente, uma
posição onde o fenômeno sincronístico se esgota também. (MEIR, apud
PAULI,2001, p. 40)
Logo adiante, e fazendo um paralelo com questões da MQ e chegando ao problema da
significação e da sincronicidade:
Mais uma vez aqui, o problema difícil para mim é o conceito de tempo. Em termos
físicos, é conhecido que uma determinada quantidade de uma substância radioativa
pode ser usada como um relógio, ou então o seu logaritmo pode. Em um intervalo de
tempo definido, é sempre a mesma fração de um átomo que é desintegrada, e dois
intervalos de tempo podem ser definidos como iguais quando a mesma fração de
átomo desintegra em ambos. Mas é aqui onde o caráter estatístico das leis da
natureza entram em cena. Há sempre flutuações irregulares sobre estes resultados
em média, e elas são relativamente pequenas quando a seleção dos átomos existentes
é suficientemente grande; o relógio radioativo é um fenômeno coletivo [sublinhado
pelo autor]. Uma quantidade de substância radioativa consistindo de poucos átomos
não pode ser usada como relógio. Os momentos no tempo onde dois átomos
individuais desintegram não são de forma alguma determinados pelas leis da
natureza, e na visão moderna estes realmente não existem independentemente de
serem observados na situação experimental adequada. A observação (neste caso, o
nível energético) do átomo individual liberta-o da situação - (isto é, significado )-
conexão com outros átomos e liga-o ao invés (em significado) ao observador e a seu
tempo [...]. (MEIR apud PAULI, 2001, p. 41)
No entendimento de Pauli, portanto, sincronicidade representa a justaposição de uma
condição interna, como por exemplo, um determinado estado de consciência, e um evento
externo relacionado ao estado interno. Daí a ênfase no experienciado e no significado, ao
invés de na simultaneidade. Pauli preferia o termo conexão significativa ao invés de
sincronicidade. Pauli pretendia colocar a experiência emocional do significado no centro do
conceito. Por esta razão, criticava a metodologia empregada nas pesquisas parapsicológicas,
notando que elas mostravam resultados positivos, isto é, desvio do padrão, quando os sujeitos
estavam emocionalmente engajados, resultados estes que deixavam de ser significativos
quando os indivíduos estavam entediados pela repetição mecânica dos experimentos. O autor
105
acontecimento.
Em função dos interesses ligados ao tema da minha tese, mantive um foco seletivo na
apresentação dos pensamentos de Jung e de Pauli, já que meu objetivo não é um estudo
aprofundado das produções de ambos, muito mais extensas e intrincadas do que o
mencionado aqui. Interessei-me especialmente pelas teorizações de Pauli, pelo viés tomado
pelos conteúdos da física que empregava e pelos comentários de cunho ontológico e
epistemológico. A não-localidade esteve em um lugar central41, assim como o conceito de
complementaridade e, por fim, como uma referência, ainda que leve, a um fator como que
dialético (porque também mutuamente excludente) nas produções dos autores recentemente
mencionados. A respeito dessa referência, destaque-se que a “dialética” é marcante e
fundamental nas teorizações reichianas. O termo foi por mim utilizado entre aspas por ser
objeto de atenção em capítulo posterior, quando for examinado o funcionalismo orgonômico
de W. Reich e suas implicações.
Marcante também é a diferença entre a MB42 e a Interpretação de Copenhague,
segunda base referencial de Pauli, na Física. Se Pauli, entretanto, faz uma defesa do
indeterminismo43 no inconsciente e nomeia como irracionalidade o elemento atuante na
produção da uniqueness, significado, elemento ordenador presente na sincronicidade,
caminhando até o arquetípico e o numênico, esse arquetípico, posto como inacessível e além
do alcance da possibilidade de conhecimento, não deixa de ser, ao mesmo tempo, de forma
caracteristicamente dialética, postulado como realisticamente existente (em si), além de fator
ordenador e regulador.
anômalos verificáveis.
41
O lugar central da não-localidade pressupõe um elemento da ordem do continuum (não definido) atuante.
42
Bohm definiu inicialmente sua teoria quântica como Interpretação Causal, mas posteriormente, notando que
isso parecia demasiadamente com determinismo, mudou o nome para Interpretação Ontológica.
43
“O fato de que o conceito matemático de probabilidade nessa nova situação denotada pelo termo
‘complementaridade’ me parece extremamente significativo. Parece que a isso corresponde, num plano
profundo, uma realidade na natureza; porque foi provida uma sólida e lógica base para o tipo de lei natural
que generaliza a clássica e determinística explicação da natureza, e fornece a ligação entre continuum (onda)
e descontínuo (partícula) e para a qual eu sugeri o nome de correspondência estatística. (PAULI, 1994, p. 48)
107
6 FÍSICA E PSICOLOGIA II
44
O termo “atenção” será temporariamente utilizado nesse momento, já que se trata de algo mais complexo do
que aquilo que essa designação não cobre totalmente. No item 6.4 será melhor detalhado.
109
isso, chegar ao pretendido pelo título desta tese e pelas diferentes pesquisas que alinhavo a
essa intenção. Nesse conjunto, encontram-se sempre temas e conceitos interligados, como
“relacionalidade”, “complementaridade”, “sincronicidade”, etc., um conjunto de estudos, em
que a relação continuum-discreto encontra-se presente, mesmo que implicitamente. Em todos
esses trabalhos, porém, buscando inclusive delinear um percurso acadêmico na seleção do
material apresentado, detalha-se a utilização dos recursos da mensuração e dos da objetivação,
tanto no sentido de declarar o caráter científico dessas elaborações, quanto no de sedimentar
possibilidades de replicação experimental.
Agora é um outro momento, em que o cerne do que é do que será comentado se apoia
em minha experiência pessoal e nada mais, mesmo que essa minha experiência seja
corroborada, eventualmente e em alguns pontos essenciais, por outros com semelhante
vivência. Embora na história do pensamento ocidental exista um precioso momento, em que o
argumento de autoridade, como referencial, é transformado, ao longo do tempo, em
possibilidade experimental, quer dizer, possibilidade de exame e de replicação, o que
pretendo, aqui, é fundar um terceiro momento, em que, encontrando-me em um momento
histórico pertinente, no qual o “eu sei” não tem mais vigência, e havendo sujeitos com
formação e capacidade crítica suficiente, o que considero ser o meu caso, possa haver espaço
para validar, a princípio, tateante e cuidadosamente, aquilo que seja o produto da experiência
pessoal, enquanto subjetividade, considerando-se a possibilidade de uma generalização para o
campo de uma objetividade, por mais exótico, insólito e distante do senso comum que esse ou
esses conteúdos da experiência pessoal possam ser. De um ponto de vista epistemológico,
isso implica contrastar, mas não rechaçar ou eliminar, o projeto científico 45 com uma situação,
como proposto por Reich, em que uma totalidade é que está sob investigação e em que a
subjetividade é incluída na situação experimental, por meio da reintrodução das sensações na
mesma. O contraste só não é absoluto, porque as sensações são consideradas também em sua
objetividade, o que será detalhado no próximo item, contribuições dos pensamentos freudiano
e reichiano à epistemologia.
A razão humana é o que substitui o pensamento revelado, o que suspende o argumento
de autoridade da situação experimental e o que supera também o empirismo e a
sensorialidade “ingênuos”, tornando possível a descentralização de Copérnico. Há, agora,
esse terceiro momento, em que as sensações e a própria subjetividade podem retornar ao cerne
dos modos de produção de conhecimento, não no sentido usual de relativização, mas no de
45
Projeto científico entendido, aqui, enquanto busca de objetividade, via distanciamento do experimentador, e
enquanto controle experimental, via redução ao mínimo das variáveis sob exame.
110
aproximação maior da coisa em si, usando um referencial filosófico para indicar isso.
Embora sempre seja possível, do ponto de vista de uma metodologia de pesquisa, o
emprego de avaliações e de mensurações que tornem qualquer tema de estudo – fora das
ciências ditas naturais ou exatas – ou qualquer pesquisa passíveis de serem considerados
científicos (pelo emprego específico de metodologias), o que procuro focar aqui diz respeito à
existência de eventos que possam estar suficientemente fora das possibilidades de controle, a
ponto de sequer serem considerados, ou mesmo detectados, como por exemplo, o caso da
sincronicidade mencionada por Pauli, na qual a tentativa de captura possa ser, ela mesma, o
fator não producente na situação. Aliás, no capítulo máquinas não maquínicas, irei mencionar
um aparato e uma tecnologia, o cloud-buster, desenvolvido a partir do acumulador orgônico.
Esse aparato, tendo utilização na modificação das condições atmosféricas, tem características
tais que demandam de seus operadores uma específica condição psicofísica, para que, assim,
estejam habilitados a perceber sutilezas dos eventos meteorológicos, as quais são idênticas, do
ponto de vista de denominadores comuns, aos acontecimentos energéticos que se dão dentro e
fora, ao mesmo tempo, dos organismos vivos. Dessa forma, há como que uma “estética”
necessária no emprego efetivo dessa tecnologia.
Para fins de clareza, é necessário explicar que aquilo que aqui é denominado
experiência pessoal se referente a toda gama de impressões que, mesmo não se resumindo a
uma apreensão direta pelos sentidos e, pelo contrário, sendo caracteristicamente indireta, é,
mesmo assim, considerada informação sobre o mundo enquanto realidade objetiva e, se
considerarmos a recursividade que há na ideia de subjetividade enquanto dimensão não
pessoal apenas, também subjetiva.
Por várias razões escolhi incluir a disciplina do Aikido neste trabalho: não somente por
fazer parte das minhas experiências pessoais e por ter caraterísticas que considero pertinentes
ao tema deste estudo – como muitas outras práticas orientais, esta visa uma espécie de
desenvolvimento do praticante que remete à ideia de religação, harmonização com o cosmos
–, como também pelo fato de o percurso individual do criador dessa disciplina, Muehei
Ueshiba, ter conotações que remetem à ideia de acontecimento sobrenatural, como irei
descrever logo à frente. Esse sobrenatural diz respeito tanto à descrição que Ueshiba faz de
eventos que teriam ocorrido com ele, como também a elementos dessa disciplina que são, por
isso, criticados como mistificação, inclusive por praticantes. Como razão de interesse de
mencioná-los aqui, aponto para o fato de esses elementos se associarem ao conjunto de
eventos e de teorizações que tenho apresentado como sendo da ordem do inesperado.
Antes de detalhar alguns elementos da disciplina Aikido, farei menção ao evento
111
apontado por Ueshiba como determinante para mudar para a denominação “Aikido” o que,
então, era chamado de Ai-Ki-Jitsu :
One day a naval officer entered into a minor disagreement with Ueshiba resulting in
his challenging Ueshiba to a kendo (sword) match. Ueshiba consented but remained
unarmed. The officer, a high-ranking swordsman, was naturally offended at this
affront to his ability and lashed out at Ueshiba furiously. Ueshiba easily escaped the
officer’s repeated blows and thrusts. When the exhausted officer finally conceded
defeat, he asked Ueshiba his secret. ‘‘Just prior to your attacks, a beam of light
flashed before my eyes, revealing the intended direction. All I did was avoid the
streams of white light. (Ueshiba, 1984, p. 38)
Selecionei esse trecho por haver nele referência ao que usualmente seria chamado de
sobrenatural, paranormal, ou ficcional, dependendo do ponto de vista de quem o comenta.
Minha intenção é sublinhar se é, ou não, possível se dar um evento como esse, na sua
literalidade, ou seja, sem que se recorra a uma explicação como sugestão psicológica, ilusão,
ou mesmo alucinação, assumindo-se, claro, como ponto de partida, a honestidade do relato de
Ueshiba Sensei. Embora seja possível uma série de explicações na órbita do academicamente
conhecido e do esperado, minha posição pessoal, não somente como praticante do Aikido,
mas como acadêmico, é que sim, é possível, sem nenhuma redução a outras explicações mais
palatáveis e plausíveis. Continuo agora com o relato de Ueshiba:
I felt that the universe suddenly quaked, and that a golden spirit sprang up from the
ground, veiled my body, and changed my body into a golden one. At the same time
my mind and body became light. I was able to understand the whispering of the
birds, and was clearly aware of the mind of God, the Creator of this universe. At that
moment I was enlightened: the source of budo is God’s love – the spirit of loving
protection for all beings. Endless tears of joy streamed down my cheeks. . . . I
understood, Budo is not felling the opponent by our force; nor is it a tool to lead the
world into destruction with arms. True budo is to accept the spirit of the universe,
keep the peace of the world, correctly produce, protect and cultivate all beings in
Nature. I understood, the training of budo is to take God’s love, which correctly
produces, protects and cultivates all things in Nature, and assimilate and utilize it in
our own mind and body. (Ueshiba, 1985, p. 154)
Não é meu objetivo defender, ou não, a existência literal dos conteúdos místicos,
religiosos ou sobrenaturais, ou propor uma análise psicológica, antropológica, etc., dos
mesmos conteúdos. O que importa é sublinhar o conteúdo da experiência citada e sua
literalidade enquanto tal, e não uma interpretação da mesma, simplesmente. Por exemplo, é
possível avaliar, como disse antes, no circuito dos saberes acadêmicos, como a iluminação, a
epifania podem remeter desde a alterações na bioquímica do cérebro, até o outro extremo, em
que, na psicologia junguiana, esse relato pode ser visto como a vivência crítica do que é
arquetípico, portanto numênico e não necessariamente divino ou sobrenatural. A experiência
enquanto tal, tomada no sentido de considerar se esta se dá, ou não, como relatado, o caso do
feixe de luz, antes mesmo do movimento executado com a espada, é por mim positivada em
razão, como dito antes, de sua justaposição a vários elementos, que fazem levar em
112
consideração sua existência factual. Como entendo que a permanente consideração de um viés
epistemológico é parte integrante do projeto científico, enquanto modelo de conhecimento,
entendo também que será proveitoso apresentar um exemplo de trabalho acadêmico,
produzido por pessoal credenciado, igualmente praticante da disciplina Aikido, que indica
direção exatamente contrária, quer dizer, que pretende que os conteúdos filosóficos e práticos,
principalmente esses que são considerados sobrenaturais por alguns, podem ser perfeitamente
explicados por elementos da Psicologia, da Fisiologia e da Antropologia, utilizando, para isso,
de forma central, a navalha de Occan, o que há de mais simples e melhor, como explicação.
Em artigo publicado na “The Humanist Phychologist”, o autor, psicólogo clínico e
praticante por cerca de trinta anos, contempla o título “Problems of romanticism in
Transpersonal Psychology: a Case Study of AiKiDO”. No abstract desse artigo, encontramos
uma boa síntese do que examina:
Romanticism is becoming increasing prevalent in transpersonal psychology,
subverting efforts to develop scientific approaches in this subfield of psychology. As
a case study of some of romanticism’s problems, the martial art and transpersonal
system of Aikido is examined in regard to cultural errors and unwarranted
supernatural assumptions. Specifically, six latent cultural errors (related to location,
authority, time, ethnicity, narcissism, and transmission) are identified and critiqued
while supernatural claims are challenged with alternative scientific explanations. In
view of romanticism’s problems in fostering such cultural errors and embracing
supernatural explanations when more ordinary ones suffice, the importance of
transpersonal psychology’s resisting the challenge of romanticism is advocated and
suggestions for the further development of this subfield as a science are provided.
(FRIEDMAN, 2005, p.1 )
O autor deixa claro que por romanticismo não pretende se referir exatamente ao
período histórico do romantismo, mas apontar para certas tendências encontradas nesse
período e comentadas por vários autores do ramo da Psicologia, sendo que alguns veem
favoravelmente, outros criticamente o romanticismo, em paralelo à psicologia transpessoal.
Entre os críticos severos, encontra-se o autor do artigo mencionado, que entende ser esse viés
destrutivo para a ambição da psicologia transpessoal de se apresentar como científica. Uma
listagem do que é considerado problemático inclui:
1- rejeição da racionalidade;
Embora eu mesmo concorde quase totalmente com suas preocupações em geral, não
113
somente no caso do Aikido, mas em relação à evidente força que toda forma de
obscurantismo46 mantém e apresenta em diversas culturas e atividades humanas, em especial
em relação aos direitos humanos, e embora eu, como reichiano, seja versado nas análises
sócio-psicológicas daquilo que Reich denominou praga emocional – uma tendência da
neurose coletiva de agir como força organizada e irracional contra tudo o que é vital –, não é
possível partir do pressuposto empregado pelo autor que, em síntese, coloca o conhecimento
científico como naturalmente melhor e livre de vieses e de valores, e a racionalidade como
um bem primeiro. Antes fosse assim. A irracionalidade frequentemente vem travestida de
racionalidade, como exposto anteriormente. Entendo e apresentei em minha dissertação de
mestrado que o pensamento científico tem, na interpretação dos dados, sua expressão de
localização em uma determinada metafísica, a materialista/mecanicista. Assim, concordar
com as preocupações do autor mencionado não é o mesmo que adotar dogmaticamente um
determinado ponto de vista. Não é necessário que eu me alongue nesse tema.
E qual o ponto central das críticas contidas no artigo citado? O conceito de Ki,
enquanto energia e seus desdobramentos, ou seja, que a maestria no contato com essa energia
seja capaz de efetivar habilidades não usuais no praticante. Em síntese, ao logo do texto,
embora reconhecendo características surpreendentes, explanações são desenvolvidas visando
esclarecer como a potência dos lançamentos, a potência de músculos relaxados e a capacidade
de perceber e de envolver o outro no ritmo próprio, dominando a cena, podem ser explicadas
de formas tradicionais na Fisiologia, na Psicologia, etc.. Em uma única exceção ao teor do que
é apresentado, em um parágrafo ele comenta:
However, it must be pointed out that there is still room for exploring the frontiers of
human potential and being able to naturally ex-plain, or even duplicate, allegedly
supernatural feats does not necessarily disqualify them from still being considered
potentially supernatural. For a related discussion on the relationship between
transpersonal psychology and parapsychology. (TART, 2001, p. 12)
E o que é sobrenatural? Será possível deixar de lado uma análise semântica quando se
faz um avaliação dos conteúdos do texto? O que parece estar sendo dito, em última instância,
é que a realidade é aquela definida pelo lugar comum, pelo conhecido, por aquilo que já foi
postulado, e é basicamente materialista. Assim, o que é criticado no artigo não é somente este
ou aquele viés cultural, antropológico, etc., considerado equivocado, mas o próprio fato de
haver, em outros, uma disposição contrária ao que é considerado academicamente tradicional.
A denominação Aikido, traduzida, quer dizer algo como o caminho (Do) da
Harmonização (Ai) com a energia (Ki). Como dito antes, “energia” é empregado como algo
46
Obscurantismo aqui como valorando toda atividade humana ou doutrina que assinale um “mal” vinculado à
corporeidade, ao prazer como possibilidade e à liberdade. Qualquer relativização de um destes elementos,
caracteriza no meu entender o obscurantismo, mesmo quando este se apresenta caricaturado de libertário.
114
mais que força no sentido da linguagem empregada pela Física, enquanto disciplina. Como
exemplo do que tenho apontando sobre o pano de fundo epistemológico presente no trabalho,
recorto uma outra parte ainda de seu texto:
These include harmonizing (Ai) with the intent of the attacker, use of efficient
muscle movements (Ki) so as not to resist but rather to amplify the aggressive
energy, and a recognition of the larger picture (Do) so that the temptation to strike
back is resisted [...]. (FRIEDMAN, 2005, p. 19)
O uso de movimentos musculares eficientes. Uma concepção milenar (Ki, Tchi,
Prana) presente em diversas culturas, inclusive ocidentais, reduzida à força muscular, porque,
segundo o autor, isso é consequência do bom uso do princípio heurístico de parcimônia
(navalha de occam). E o autor não se cansa de repetir que explicações naturalistas mais
simples devem ser escolhidas em detrimento de sobrenaturais e mais complexas,
principalmente, diz ele, quando não há marcantes evidências das segundas! O que define as
explicações tradicionais como mais simples? O simples utilizado pelo autor tem dimensão
meramente subjetiva, não é da mesma ordem de um algoritmo, por exemplo, em que
numericamente se pode dizer que um algoritmo é mais simples que outro, um menor número
de regras.
Toda essa argumentação parece bastante circular e pré-determinada. Além disso, a
aparência de análise cuidadosa do tema, formal e em ambiente acadêmico, revela
simplesmente preconceito e dogmatismo conformista.
É válido e suficiente descartar o lampejo de luz descrito por Ueshiba, quando estava
em uma situação de vida ou morte, como simplesmente inexistente objetivamente, uma ilusão,
uma expressão de mero fascínio e de perda de racionalidade por parte dos discípulos?
Entendo que não, especialmente em função dos temas e exemplos apresentados nessa tese até
agora. Entendo também que, para uma pessoa com um conjunto de referências e de
experiências distintas das minhas, a descrição do lampejo de luz, antecedendo o movimento
físico propriamente dito, possa ser recebida como risível. Entretanto, coube a mim a
possibilidade de ter conhecido tanto o Aikido, quanto os trabalhos reichianos, principalmente
aqueles concernentes à física do orgone, do ponto de vista experimental. Este, como é tomado
também como um meio, um campo, uma continuidade presente, e, à parte de outras formas de
energia, um recipiente, em que foi produzido vácuo no seu interior, e foi deixado por longo
tempo dentro de um acumulador de orgone, lumina (produz luz) quando excitado, por
exemplo, por uma fricção leve, ou mesmo quando posto em contato com outro campo
orgonótico. O comentário que fiz antes, sobre uma identidade entre uma tempestade furiosa e
a emoção referente, é teorizado com base justamente no condição de excitação de ambos.
115
47
Uso este termo, fisicalidade, querendo, com isso, definir uma existência que não é composta de uma
subjetividade, ou de uma fantasia, enquanto puro pensamento ou conteúdo ideativo. Não é sinônimo de
materialidade.
48
O peristaltismo é composto de contrações musculares ao longo de grande parte do tudo digestivo,
objetivando carregar o bolo alimentar. É também considerado um elemento importante da manutenção da
saúde psicofísica na teoria da Psicologia Biodinâmica, de Gerda Boysen.
116
49
Trata-se de um contato direto multifatorial, porque contato, ao mesmo tempo, consigo mesmo, com o outro e
com essa dimensão que engloba as duas anteriores.
117
objetivamente existente, passível de ser acionada por qualquer um que tiver condições para
tal, e não um constructo, ou uma figura de linguagem, uma imagem para explicar eventos que
estariam se dando apenas no plano da subjetividade, como no caso da chamada
contratransferência, ou um conceito em que eu estaria descrevendo meramente informações
obtidas de forma não-verbal (sinas corporais) e codificando-as como sendo impressões
advindas da forma sem pensamentos, equivocadamente. Embora isso possa acontecer, e
aconteça também, e o também merece atenção, não cometo o mesmo erro do autor citado
acima: a racionalização de convencer-se de estar fazendo boa ciência, quando se está fazendo
manutenção dogmática do status quo.
O impacto da vivência do que foi chamando de ressonância, tanto em uma sessão de
análise, quanto numa atividade corporal, como um treino ou qualquer outra situação,
frequentemente produz naquele que a experiencia a impressão de uma concretude ímpar,
inclusive devido ao acontecimento corporal que acompanha isso – a atenção duplamente
focada, o senso de equilíbrio físico e mental, a impressão de estar acompanhando e
produzindo um trilhar pré-existente – de forma a fazer pensar, quando se tenta teorizar a
respeito, no acontecimento de fato mencionado. Conhecemos através das sensações – é o
referencial reichiano. O organismo vivo percebe o seu ambiente, e a si mesmo, através de suas
sensações, “Se o homem conseguisse apreender no plano energético a função da sensação e da
percepção, ou seja, investigar as profundidades de sua própria natureza, ele subitamente teria
acesso à ‘coisa em si...’” (Reich, 1973, p.54). Deste modo, apreenderia a função da sensação e
da percepção no plano energético: no plano conceitual reichiano, o funcionalismo
orgonômico, em que a percepção não se resume à experienciação subjetiva e em que sensação
não se resume a excitação física, a impulso nervoso ou a estimulação química, estando essas
dimensões inseridas em uma dimensão mais abrangente, o isolamento da natureza, tão
predominante no viés do nosso tempo e linguisticamente expresso pelo “o mundo lá fora”
quando referidos à consciência, como se nós mesmos não fizemos parte deste, muda de
figura, justamente pela localização reichiana das funções energéticas como denominador
comum tanto das sensações, quanto das percepções. Esse tema também será melhor explorado
à frente, assim como outros que foram deixados pendentes, à espera de um melhor momento
para uma síntese e descrições.
A tese da fusão com o objeto como modo possível de obtenção de conhecimento, deve
estar claro agora, não implica fusão no sentido da espacialidade e sequer necessita
proximidade física. Implica, sim, uma descrição da realidade que aponte como possível essa
indicação. E tenho coletado e apresentado elementos de várias figurações teóricas e
118
disciplinas que, no meu entender, e quando justapostas, existem como evidências fortes dessa
possibilidade. A última apresentada é uma convicção apoiada em especial em fatores pessoais,
mas não somente, e na corporeidade: na forma de uma prática, que tem como base o Aikido, e
na minha prática clínica, em que esta corporeidade se apresenta também na forma de uma
experiência de conhecimento do Outro. Na descrição da realidade que torna possível essa
indicação, o que temos, de fato e mais fortemente, é a ideia de “relacionalidade” e de
“conectividade” amplas, por isso, importa menos, nesse momento, se essa realidade é a
idealizada pelos pesquisadores de Copenhague, pelos que exibem a crença nas divindades
shintoístas, ou pelos que aceitam as premissas do orgone como evidentes e comprovadas. A
ênfase recai sobre a relacionalidade, porque importa sublinhar a discrepância entre essas
formulações e o modo epistemológico no nosso tempo por excelência, o da impossibilidade
do acesso à coisa em si, e o do conhecimento como só adquirindo esse status na forma de
categorizações. Essa postura faz com que tudo aquilo que pode ser obtido de forma não
racional, e não possa ser efetivamente transmitido formalmente, seja retirado do universo do
que é considerado conhecimento ou, pelo menos, exilado da esfera do que é relevante.
Contudo, como tenho insistido, há um outro caminho.
importância depositada, por exemplo, por Bohr, ao postular uma complementariedade entre
Física e Biologia, lembrando que o vivo, para ser examinado como tal, tem que estar em sua
condição de integridade, não podendo ser decomposto e analisado em partes menores.
É claro o paralelo, retomando o que já foi apresentado, entre o viés filosófico e
ontológico de Jung/Pauli e o de Reich, de um ponto de vista macro, ou seja, na tentativa de
compreender e situar a psiquê/vida emocional em um campo mais abrangente do que o da
própria disciplina, que desempenha o papel de ponto de partida. Em ambos os vieses,
qualquer que seja a leitura a posteriori, é possível definir que os encaminhamentos se deram
por força das questões que as vicissitudes das pesquisas levantaram, para além de uma
preferência pessoal.
Com a postulação do inconsciente por parte de Freud e com a consequente saída do
primeiro plano do consciente e da razão, surgiram questões epistemológicas óbvias, que vão
até a radicalidade da impossibilidade do sujeito cognoscente, como mencionado logo de
início, a título de esclarecimento. Mas os desdobramentos posteriores levam os autores a duas
vertentes que nos interessam aqui:
1 - O inconsciente formulado por Jung/Pauli é mais do que história pessoal, é
arquetípico e numênico, estando nas bases tanto da psiquê, quanto das leis da natureza. Aqui,
o numênico, embora postulado como fora das possibilidades de apreensão direta definitiva, é
passível de aproximação em um patamar profundo o suficiente para permitir a noção de
interligação (os fatores ordenadores);
2 - A postulação de inconsciente está imbricada necessariamente com outras, como a
de pulsão. Embora leituras psicanalíticas posteriores tenham tido a característica de esvaziar
essa noção de qualquer ligação com uma noção de força50, como abordei inicialmente de
passagem, foi justamente o exame acurado desenvolvido por Reich que deslindou não
somente sua existência factual, mas a importância central dessa concepção, tanto no
desenvolvimento de uma clínica suficientemente efetiva, quanto no de uma abordagem
ontológica inusitada da realidade. Embora a noção de força – energia orgone – não se
resuma unicamente à ideia de capacidade de produção de trabalho, tendo também uma
dimensão que poderíamos chamar de geométrica, ou gestáltica, na qual a forma de sua
movimentação também tem implicações na descrição de suas características enquanto
atividade, é justamente essa noção de força, como todos os seus atributos, que irá
desempenhar um papel central. Nesse lugar central está a interligação de todos os fenômenos,
sem que eles, ou grupos deles, percam a identidade diferenciadora. Essa noção permite uma
50
Como a leitura que faz Lacan da obra de Freud.
120
forma de apreensão da realidade que encaminha também para a posição fusão com o objeto.
Para que fique suficientemente claro neste texto a) a importância da interligação dos
fenômenos; b) como essa noção está longe de ser lugar comum e simplória, como tantas
outras semelhantes; e c) como essa noção surgiu de questões da clínica de vida emocional
(então, psicanálise) para depois espraiar-se por outros domínios do conhecimento, devo
retomar o que foi apresentado antes, no capítulo sobre Reich e a Orgonomia, fazendo, agora,
um recorte mais detalhado: o elemento central para a compreensão profunda da vida
emocional, aquele que permite fazer pontes para o funcionamento da vida em geral e, depois,
para o não-vivo, é o chamado reflexo orgástico, pulsação em dois tempos, expansão-
relaxamento. O vivo, e somente o vivo, pulsa e convulsiona.
Posso imaginar como é difícil para alguém sem o conhecimento do passo a passo
histórico de evolução da obra reichiana, principalmente sem a possibilidade de verificar, na
prática, a propriedade e a validade dessa noção, apreender o cerne desse elemento. Daí a
necessidade de retornar ao que já foi mencionado.
O conceito de resistência, no âmbito freudiano, define uma atividade mental
inconsciente que tem a finalidade de manter sob xeque determinados impulsos que foram
anteriormente recalcados. Freud percebeu cedo que não bastava apenas interpretar os
conteúdos das experiências infantis diretamente. Nesse ponto é importante lembrar que a
necessidade do recalque diz respeito à natureza erótica dos impulsos sob xeque.
Reich se deu conta que esse processo de recalcamento implicava diretamente uma
corporeidade, modos de tencionamento crônico de grupos musculares, tencionamento que, em
geral, originalmente se dá de maneira perpendicular ao eixo corporal, formando o que chamou
de couraça muscular, contrapartida somática da couraça de caráter, ou personalidade
enquanto expressão da somatória dos modos defensivos: a história de cada um, inscrita não só
enquanto memória no sentido clássico, mas também enquanto modo corporal de
funcionamento, postura, etc.
De qualquer modo, é possível mencionar desde já o que se apresenta como paralelo,
como contrapartida, ou como outra definição semelhante: impulso-resistência, resistência
psíquica isolada-caráter, caráter-couraça muscular, conteúdo ideativo-excitação corporal.
Esses paralelos, claro, evidenciavam uma relação entre si, são como dois lados de uma
mesma moeda, e, embora a ideia de paralelismo não seja nem correta, nem suficiente no caso,
didaticamente serve ao propósito mencioná-la.
Da mesma forma que a resistência tinha uma função específica, manter sob xeque
determinado impulso, e outra mais geral, manter o equilíbrio neurótico e assim a “sanidade”,
121
por assim dizer, a couraça muscular foi descoberta também na sua funcionalidade, a de
impedir que intensidades sensoriais, emoções e sentimentos sexuais alcançassem existência de
fato e, assim, a consciência. Vejamos, porém: o que surgia quando os impedimentos caráter-
couraça muscular eram abrandados eram excitações corporais de fato, na forma de
movimentos musculares involuntários, mas antecedidos frequentemente por uma reação
emocional de angústia e de medo e por uma condição neurovegetativa de contração e de
simpaticotonia, que Reich nomeou de ansiedade pré-orgástica. Há muito o que se extrair de
um acontecimento como esse narrado aqui, do ponto de vista da epistemologia.
A proximidade da temática sexual, para os familiarizados com a temática freudiana,
ganha, evidentemente, destaque e chama a atenção na nomenclatura utilizada, reflexo
orgástico, ansiedade pré-orgástica.
O que são esses movimentos, qual sua origem e que medo é esse? Lembremos que eles
acontecem durante o exercício da prática clínica da análise e com a retirada do recalque, em
toda as sua funcionalidades.
Em minha dissertação de mestrado, Sistêmica Organísmica versus isomorfismo
cérebro-mente (MALUF JR., 2005), apresentei um estudo sobre a Desordem do Pânico sob a
ótica da teoria reichiana, apresentada como a única com possibilidades de fato de lançar luz
sobre o acontecimento que usualmente é confundido com um enfarto ou com o enlouquecer.
O que é característico dessa desordem é: intensificação de reações neurovegetativas,
taquicardia, sudorese, tontura e subjetivamente medo de morrer e/ou de enlouquecer. O
inusitado apreendido por mim e apresentado nesse trabalho se refere a como todas essas
reações podem ser sintetizadas na reação exacerbada do tipo ansiedade orgástica e a como
todos os sintomas rapidamente desaparecem quando a pessoa em crise, sendo atendida e
estando deitada no divã suporta que seu corpo convulsione. Não se trata de uma convulsão
como em um ataque epilético, ou com perda de consciência, ou desmaio, apenas convulsões.
Embora pareça que faço um desvio do tema “sensações e percepções” e de seus
entendimentos nas teorias freudiana e reichiana, irei retornar brevemente. Mais uma vez irei
recorrer a uma imagem gráfica para melhor esclarecer o que está sendo apresentado. Poderia
usar a imagem de planos se sobrepondo a planos para exemplificar a existência de diferentes
dimensões contribuintes e atuantes no fenômeno vida emocional, ou psiquismo, desde a
existência de fator subjetivo, como um significado, que de fato há, presente nessa desordem
do pânico, até uma dimensão neurovegetativa, somática, o valor e a funcionalidade dessa
atividade reflexa no evento, assim como a importância do fator descarga motora, agora tanto
em um viés freudiano, quanto em um reichiano. A imagem dos planos em sobreposição,
122
É difícil uma definição estrita do “vivo”....o vivo sem dúvida funciona para além das
ideias e conceitos verbais o processo de formação de palavras mostra em si mesmo a
forma como “se expressa” o vivo. O termo “expressão, ao que parece com base em
sensações orgânicas, descreve precisamente essa linguagem: o vivo se expressa em
movimentos, em “movimentos expressivos". O movimento expressivo é uma
característica inerente ao protoplasma, distingue estritamente os sistemas vivos dos
não vivos. O termo significa, em sentido literal, que algo do sistema vivo “tende
para fora”, e em consequência, move-se...o processo físico da emoção
protoplasmática ou do movimento expressivo vem sempre unido a um significado
compreensível de forma imediata, ao qual chamaremos expressão emocional...
Torna-se claro que o processo de formação de palavras, a linguagem, depende da
51
Como a paisagem corporal da Damásio.
124
52
Como tenho mencionado antes, entendo que há mais do que recepção de sinais envolvido nesse
acontecimento.
125
duas extremidades do corpo, acompanhadas de fortíssima excitação. É essa tendência que leva
Reich a entendê-la de acordo com funções bioenergéticas filogeneticamente primitivas,
funções coexistindo lado a lado com outras mais altamente desenvolvidas e com
características de organismo superiores:
Es precisamente esta medusa en el hombre lo que representa su unidad con el mundo
animal inferior. Tal como la teoría de Darwin estableció el origen del hombre en los
vertebrados inferiores, basándose en su morfología, en la misma forma la física
orgónica reduce las funciones emocionales del hombre aún mucho más, a las formas
de movimiento de los moluscos y protozoarios. (REICH, 1993, p. 323)
53
A. Green, em um excelente ensaio sobre psicanálise e ciência, aborda a mesma questão, observando como o
objeto primeiro que se oferece ao conhecimento do homem – seu corpo – tenha sido o último a que se tenha
dedicado (cf. GREEN, 1993, p. 117).
abstração vazia e carente de interesse prático.” (FREUD apud GREEN, 1993,p. 240,
grifo meu)
Se de um lado Freud comenta o óbvio, mas algo frequentemente nada evidente nos
estudos sobre psiquismo e natureza, isto é, que o primeiro é parte integrante desse mesmo
mundo, de outro fica mais uma vez marcante sua filiação kantiana ao valorar o modo como
faz as aparências dos fenômenos em função de nossa organização particular. Meu sublinhado
serve ao propósito de marcar a evidente diferença entre os enfoques freudiano e reichiano
quanto ao tema conhecimento do mundo. A posição reichiana é justamente a contrária: a
observação e a eficácia do método empregado surgem como fortes evidências de que há a
possibilidade de um observador fora da dinâmica sujeito-objeto, o qual pode, por isso,
reconhecer os elementos comuns e centrais a ambos em sua constituição.
O recorte freudiano colocado acima foi comentado de forma muito feliz por André
Green, psicanalista e teórico da psicanálise, dizendo inicialmente que lamenta que Freud
tenha deixado em suspenso a questão que todos gostariam que abordasse, ou seja, “[...] a
natureza do nexo entre esse processo de conhecimento da ciência e aquele que a psicanálise
permite, o conhecimento de si” (GREEN, 1993, p. 240). O autor pontua que a psique é parte
do mundo e, de forma alguma, separada estruturalmente dele, só é diferente em termos de
uma escala de desenvolvimento. Nota que há uma homologia, por menor que seja, de
estrutura entre ambos, o que faz com que possam se comunicar. Esse é o percurso reichiano:
notar e percorrer a homologia. Termina aí, porém, a simpatia entre o modelo reichiano e
aquele que Green, apoiado em Freud, apresenta como possibilidade de conhecimento. Green,
naturalmente até, indica a direção daquilo que seria específico, diferenciado e particular no
aparelho psíquico, enquanto Reich aponta na direção contrária, os elementos comuns tanto ao
psiquismo quanto à natureza. Embora Green sublinhe que Freud, assim como Reich, usou
mais de uma vez a metáfora dos pseudópodes em um organismo primitivo, emitidos com a
tarefa de extrair do mundo exterior dados necessários, e também sublinhe que é notável que
são as sensações que portam essa informação, ainda assim coloca a ênfase na percepção como
elemento que permite o conhecimento do mundo, pois o conhecimento não seria uma questão
de informação, já que implicaria a entrada em cena de uma organização mais elevada, o
psiquismo. Devo sublinhar, aqui, mais uma vez o óbvio: define-se como conhecimento o
categorizável, passível de formalização e transmissão, mas somente isso. Toda uma esfera de
possibilidades, a partir da experiência e da intuição, dos modos e das práticas tipicamente
orientais na sua tradição, ficam de fora. Daí o fato das sensações serem, nesse discurso,
relegadas a uma espécie de lugar secundário. E a perspectiva de utilização da homologia,
128
como referência de peso, perde-se na poeira. O pulsional, que ao ser postulado trouxe uma
possibilidade de inserir o psiquismo em um conjunto mais amplo de conhecimentos e, assim,
diluir o seu isolamento hermenêutico na psicanálise, acaba cedendo vez àquilo que seria
(propositalmente no condicional) o que distingue o humano dos outros animais: o seu
psiquismo enquanto tal.
Figura 6: Representação gráfica do esquema PFC (Princípio Funcional Comum), com o PFC A1 e suas
variações complementares A2 e A3.
A parte gráfica da linha reta atravessada por uma linha ondulante indica o
funcionalmente idêntico. No caso em questão, as sensações em Reich e a percepção em Freud
se dão necessariamente de forma concomitante, mas a ideia de existências paralelas
(paralelismo psicofísico) foi superada, através da lógica funcional, pelo denominador comum
A1. Isso quer dizer que, se esse método de investigação e raciocínio for correto, será possível
encontrar um fator mais fundamental como base primeira, tanto para a sensação, quanto para
a percepção. Também sendo correta, essa formação fornece um instrumento que permite
129
exame da natureza da pulsão estava no cerne das ocupações de Reich. O fato desta ter
revelado uma natureza energética-quantitativa foi central para o posterior desenvolvimento
das pesquisas reichianas, mas também importante no sentido de evitar aquilo que se deu com
a metapsicologia e com outras psicanálises: um desenvolvimento em que erros de técnica
resultaram em teorizações equivocadas, fazendo, recursivamente, daquilo que tinha surgido
como não somente um novo entendimento do ser humano, mas também como uma
possibilidade de acesso a um universo de conhecimentos ainda pouco explorados, quase uma
prática apenas filosófica.
A totalidade relacional inclui o próprio sujeito no acontecimento e, claro, as
sensações, mas de maneira coerente e organizada:
A exploração da natureza através do experimento foi um passo decisivo em direção
à observação objetiva. Mas o experimento conduzido mecanisticamente separou o o
observador da observação direta. A desconfiança no poder de julgamento e na
racionalidade das emoções é tão grande – e com razão – que este tipo de
experimento tornou-se primordial. Há “aversão” à ideia de se examinar tecidos vivos
e fazer observação da atmosfera a olho nu [...] O Funcionalista usa o experimento
para confirmar suas observações e o resultado do seu pensamento . Ele não substitui
observação e pensamento por experimentalismo. O mecanicista não confia em seus
pensamentos e observações, e ele está certo nisso...O funcionalista confia no seu
pensar e nas suas observações, e usa os experimentos . Ele difere do místico e do
religioso por conhecer suas incertezas e controla-las experimentalmente. Ele difere
do mecanicista por incluir tudo nas suas observações. (REICH, 1979, p. 306)
Como tem tido lugar importante na minha tese a ideia de uma continuidade na
natureza que permite a afirmação da fusão com o objeto e como mencionei, mais de uma vez,
a noção de que a força em questão em Reich, a energia orgone, tem implicações maiores do
que unicamente produção de trabalho, entendo que é pertinente apresentar um resumo de uma
questão da ordem da clínica que revolve em torno da natureza dessa força: a pulsão, em
termos freudianos, e algumas implicações para a clínica e a teoria da clínica psicanalítica,
problematizadas a partir de Reich. Como dito antes, não almejo um tratado clínico, mas viso
fornecer dados relevantes sobre as consequências em um plano ontológico e epistemológico
do tema agora mencionado. Entre essas consequências, ainda por ver à frente, está a relação
com a verdade e o ódio à verdade, através das possibilidades e impossibilidades do ser
humano contemporâneo, marcado pelo exílio de si mesmo, no lidar com as intensidades da
vida. Claro que esses dois termos são problemáticos e polêmicos, por isso, agora, irei avançar
no estudo proposto.
Eu coloco de passagem uma questão que não tenho competência para tratar: o
interdito de tocar seria mais específico das civilizações cristãs do que de outras? Em
todo caso, é fato que a prática psicanalítica se tenha sobretudo desenvolvido nos
países de cultura cristã: ela tem em comum com essa cultura a convicção da
superioridade espiritual da comunicação pela palavra sobre as comunicações corpo a
corpo [...]. (ANZIEUR, 1989, p. 165)
A passagem recortada está sendo utilizada como introdução a um estudo, que tem
particularidades clínicas específicas, e é um elemento útil para posicionar a maneira como
determinados encaminhamentos teóricos foram conduzidos, tendo como pano de fundo uma
situação cultural determinada, o cristianismo e sua influências. O apoio da igreja católica
recebido por Pasteur, nas discussões sobre abiogênese, também foi fundamental para que sua
teoria da microbiologia saísse vencedora. A figura da gestalt, onde o cristianismo é pano de
fundo, é constituída de dois conceitos freudianos, a sublimação e a formação reativa, ambos
conceitos relativos ao destino da pulsões, ou seja, àquilo que acontece com o fator força,
postulado na psicanálise freudiana como um dos fatores essenciais.
A formação reativa, segundo Laplanche e Pontalis é:
[...] atitude ou hábito psicológico de sentido oposto à um desejo recalcado..” pag
258. É um mecanismo de defesa, e como tal tem a finalidade de manter fora da
esfera da consciência um ou mais impulsos que já foram fonte de satisfação na idade
infantil, tendo sido posteriormente rechaçados para fora da consciência através da
adoção de um contrário. (LAPLANCHE; PONTALIS, 1967-1983, p.258)
A sublimação é o processo postulado por Freud para explicar atividades humanas sem
qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que encontrariam o seu elemento propulsor
na força da pulsão sexual. Freud descreveu, como atividades de sublimação, principalmente a
atividade artística e a investigação intelectual. Diz- se que a pulsão é sublimada na medida em
que é derivada para um novo alvo não sexual, ou na medida em que visa objetos socialmente
valorizados (cf. LAPLANCHE, 1970, p. 638).
Como bem nota Albertini ao examinar, em especial nos textos “Três ensaios para uma
teoria da sexualidade” e “O Mal estar na cultura” (ALBERTINI, 2005, p.16), se para Freud a
formação reativa ocorreria exclusivamente no domínio do patológico, dependendo do grau do
comprometimento, também para este a condição “formação reativa” adentra os determinantes
da própria formação do Homem, sendo uma subespécie da sublimação ao evocar, no período
de latência, sentimentos como repugnância, vergonha e a moralidade.
Como fica aparente, colocada dessa forma, a diferença entre os dois conceitos parece
resumir-se a uma gradação. Contudo, o que acontece com a força, no sentido econômico-
energético, em questão nos dois casos?
Novamente, um comentário é necessário: o conceito de pulsão, desde os seus
primórdios, revelou-se uma espécie de natureza dupla, sendo definido como estando na
132
descrever a lógica das abordagens reichianas e como ela levou a uma definição de um
componente quantitativo de fato (com características e propriedades formais inclusive). Essa
lógica é responsável pela capacidade de atravessamento conceitual profundo que tem a teoria
reichiana.
Para um último exemplo, neste capítulo, da importância da observação e do enquadre
teórico correto dos fatos na prática clínica, cito um fator divisor de águas, que surgiu da
postura reichiana: como psicanalista, o setting clínico se dava com o paciente deitado no divã
e o analista, Reich, ao lado e atrás. Como a análise do caráter evocava intensas reações
emocionais (lembremos que até então as sessões eram conduzidas sem nenhum tipo de
abordagem corporal direta), Reich se deu conta de que seus pacientes relatavam, com
frequência, “sensações de correntes” na superfície do corpo, impressões de movimento, ao
longo e após momentos de maior intensidade na sessão. Em alguns desses pacientes,
inclusive, desenvolviam-se movimentos musculares involuntários, tremores, em algumas
partes do corpo, e subjetivamente os pacientes relatavam ou temor, ou uma vontade forte de
movimento por ocasião desses eventos. Essas reações não eram exatamente novidade na
clínica, mas essa movimentação classicamente era entendida como acting out (atuação), ou
seja, uma expressão de resistência e defesa, como se na personalidade um determinado
conteúdo ideativo conflitivo fosse recusado pela consciência e, assim, atuado via descarga
motora direta. Assim era interpretado.
A negativação da expressão corporal, vista como evitação do destino positivo – o
pensamento ou mentalização – não é difícil de ser visto aqui, como a priori .
Bom observador e inovador, Reich não interferiu no surgimento dessa movimentação e
se deu conta que ela tendia espontaneamente, quando o medo era paulatinamente superado, a
uma expressão unitária, tomando o corpo como um todo, a qual ganhou o nome de reflexo
orgástico, devido à obviedade do mesmo. Esse foi o caminho para a transposição para a
biologia (medusa) e para o energético na natureza em geral. Mais importante ainda: esse
desenvolvimento não retira de cena a correção do conceito de acting out, ao contrário,
fornece melhores condições de diferenciar quando e se o que está ocorrendo é de fato isso. O
somático e o psicológico melhor diferenciados, não reduzidos um ao outro. Essa diferenciação
inaugurou o caminho para o deslindamento das funções cósmicas (dado a amplitude da
constatação da existência das mesmas) no vivo e me dá a oportunidade de justificar por que
iniciei este sexto capítulo comentando minha experiência com o Aikido e a possibilidade de
conhecimento através dela. Conhecimento é também, quem sabe até por excelência, o que
pode ser formalmente transmitido, mas não somente. Há mais o que esclarecer. “Sentimentos
136
alcançam a mesma profundidade que pensamentos”. Dito por Pauli, mas poderia ter sido dito
por Reich. “Apreender no plano energético a função da sensação e da percepção, ou seja,
investigar as profundidades de sua própria natureza...” Formulado por Reich, mas: o primeiro
aponta, no recorte escolhido, para o conhecimento via si mesmo, enquanto o segundo,
essencialmente para um conhecimento passível, em última instância, de ser formalizado.
Formas antagônicas, mas não excludentes.
Agora é um outro momento, em que irei sublinhar aquilo que mereceu destaque no
capítulo sobre o Aikido, com meus comentários, transpondo para a situação clínica elementos
vinculados àquela prática, como a atenção bi-focada, o estado que se instala nos dois
componentes da situação, analista e analisando, e o modo como a autopercepção se torna
imprescindível para saber do outro. Para isso, porém, é necessário primeiramente relembrar
alguns parâmetros que são componentes de uma situação de psicanálise, por derivarem de
uma determinada compreensão sobre a natureza da vida psíquica e emocional, do ponto de
vista freudiano. A abordagem, claro, será sintética, por conta dos fins do objetivo deste
trabalho, pois trata-se, na verdade, de matéria muito mais complexa.
Como o ponto de partida é o inconsciente e todas as outras derivações (pulsão,
recalque, etc.) e a tarefa do analista é interpretar (novamente, isso é só uma simplificação),
essa interpretação, tomando como base a teoria freudiana, observa os conteúdos oníricos, os
lapsos de linguagem, comunicações não-verbais, etc., e, em destaque, a transferência
137
psicológica, filosófica e poética apenas, com exceção de um pequeno trecho, em que Boadella
teoriza sobre a ressonância: “criar luminação no campo energético de ambos” (BOADELLA,
2013, p.9) uma teorização correta, do ponto de vista da física orgonômico, mas insuficiente
neste contexto, porque essa luminação necessita de uma certa proximidade espacial para
suceder. Lembro que tanto nos trabalhos de Jung/Pauli, quanto nos que se referem à
eletrônica-consciência-emoção e resultados anômalos, a proximidade espacial não é um pré-
requisito.
54
Ponto de vista “energético”quer dizer tomar o auto-deslocamento do orgone, as funções da energia livre de
massa, como primordiais para a compreensão das complexidades maiores residentes em diferentes planos dos
fenômenos.
140
1 - o pareamento analista-analisando;
2 - o pareamento excitação55-percepção.
O foco, claro, será a posição analista na situação e como este conhece o analisando.
descobrimos uma parte da natureza externa a nós mesmos. Porque aquilo que é
verdadeiramente vivo em nós é parte dessa natureza externa. Portanto, se nos
procedemos cuidadosamente no estudo do que constitui a função do vivo, nós
descobrimos também aquelas funções que tem validade geral, cósmica...”. (REICH,
1949/1973, p. 97)
Como se vê, o acesso a si mesmo, em bases válidas, é também a forma de aceso àquilo
que é comum, semelhante, na externalidade. Isso inclui a outra pessoa, em uma situação
clínica. Agora posso dizer que, tanto na minha experiência com o Aikido, quanto na
Orgonomia, é nessa dimensão profunda onde se situa esse conhecer, nessa interface não
necessariamente geográfica onde há comunicação. E onde o conceito de campo, mesmo
tomado na sua concepção original na Física, não resulta suficiente.
Há um relato clínico que quero apresentar. É apenas um entre muitos, entre miríades
de detalhes que se perderam no tempo em muitas outras análises. Este relato menciona um
elemento especialmente objetivável, o que é mais raro, sobre o “estado unificado” que pode
ser produzido em uma situação clínica. Contrastando com outros relatos por parte de vários
autores, em que é um conteúdo ideativo, uma imagem ou mesmo um sentimento forte que são
tomados como pertinentes e formas de comunicação induzidas pelo paciente, nesse relato é
um acontecimento inicialmente fisiológico que ganha destaque.
Não irei apresentar detalhes sobre o caso, apenas um recorte e poucos comentários
sobre a situação, sem nem mesmo esclarecer teoricamente certos parâmetros, a fim de não
tirar o foco do que pretendo sublinhar.
Esta paciente nunca comentava nada, nem lembrava sobre a sessão anterior, ou antes.
Cada sessão se desenvolvia como se fosse a primeira, ou a única, caso eu não interviesse de
alguma forma. Mais do que isso: ela passava a impressão de não saber o que estava fazendo
ali, havia um silêncio tenso, desconfortável, mas também “bovino”, que pairava sobre a
situação, enquanto me olhava sem expressão, mas visivelmente desconfortável. Se eu
permanecesse quieto, sem intervir, a sessão transcorreria desse modo, sem modificações. Só
quando eu intervinha, algo nela se movia e havia, então, alguma comunicação.
Uma situação como essa não é nova, frequentemente evidencia um psiquismo
primitivo, do ponto de vista da história pessoal, em que falta mentalização, e uma agressão
violenta não consciente. Além disso, há muito Reich já havia analisado, na ótica do Análise
do Caráter como o silêncio é uma forma de atividade expressiva enquanto resistência. Não há
dificuldades maiores no manejo de um caso como esse.
O marcante é o que o mesmo acontecia comigo. Sou costumeiramente capaz, via
memória afetiva, de acessar elementos essenciais sobre cada paciente, quer seja no referente a
relatos e experiências significativas durante as sessões, quer seja do meu entendimento teórico
142
sobre o caso. Como parto do princípio de que há uma linha mestra que alinhava o tema
fundamental de cada sessão e da somatória das sessões, sempre sei que há um conjunto
sintético, mas central, à minha disposição quando me coloco no estado corpo-mental propício
para o desempenho da análise, isso em cada sessão e com cada paciente diferente.
No caso desta paciente, entretanto, apenas o nada. Uma sensação amorfa, uma
impressão literalmente física de estagnação e uma ausência total não só de memórias, mas de
entendimentos. Era fisicamente tão exaustivo fazer uma intervenção, a inicial, como sair de
uma paralisia.
O inusitado é o que se desenvolveu em pouco tempo e que passou a dar-se
seguidamente, até não ser mais necessário: tomado por essa letargia pantanosa, percebo
subitamente um forte movimento peristáltico, meu estômago borbulha alto e, assim que isso
se dá, é como se uma luz se acendesse e, súbito, lá está, ao meu alcance, minhas memórias e
referências sobre ela, organizadas e acessíveis. Contudo, o mais importante é que isso se dava
concomitantemente com ela também. Às vezes, era o meu estômago que borbulhava primeiro,
outras, o dela, ambos audíveis, em décimos de segundo de diferença. E em uníssono, uma
atmosfera pesada começava a desaparecer, assim como a aparência “bovina” nela. Imagino se
eu também não estaria com a mesma aparência. Na medida em que sua organização egóica
evoluía e essa condição pré-psicótica se modificava, esse quadro foi se esmaecendo. Sublinho
que, no trabalho com esta paciente, nenhum recurso psicorporal direto foi utilizado nesse
período.
O peristaltismo guarda uma relação com o sistema nervoso autônomo ou vegetativo.
Um estado de maior tensão emocional, quer seja episódico, quer seja crônico, no sentido da
neurose, altera a intensidade e a frequência dos movimentos no tubo digestivo. O
peristaltismo, como eu disse antes, foi postulado como tendo uma função emocional
específica, na Psicologia Biodinâmica desenvolvida por Gerda Boysen, mas não irei discorrer
aqui sobre esse ângulo, mas, sim, o da Orgonomia e do fenômeno luminação, mencionado
antes.
O acumulador orgônico, descrito no capítulo sobre Reich, tem várias propriedades
mensuráveis, tais como diferença de temperatura comparada a um aparato controle, diferença
de tempo de descarga de um eletroscópio nas mesmas condições, etc., e também verificáveis
em quem utiliza o acumulador, como alteração da temperatura corporal e vasodilatação
provocada pela estimulação parassimpática, e a expansão biofísica, devido ao uso do aparato.
Da mesma forma que a tensão e o stress afetam o peristaltismo, a expansão biofísica e o
relaxamento são acompanhados de efeitos sobre o mesmo, no caso, intensificação e
143
mas ao engano do simplório. Da mesma forma que se faz um uso ideológico mal
fundamentado quando se retoma o pensamento reichiano sócio-psicológico, que remonta ao
período em que teve simpatias pelo marxismo, sem considerar que Reich se tornou anti-
comunista radical posteriormente, é também corriqueiro tomar seu viés energeticista como
sinônimo de fisicalismo, associando seu trabalho clínico ao trabalho corporal simplesmente,
ou a um viés esotérico, como foi comum na postura da chamada contra-cultura, ao se
apropriar do seu pensamento.
Como entendo que é da concatenação de todos os elementos surgidos ao longo das
pesquisas de Reich que surge o que é realmente inusitado e produtivo, pois é a própria
possibilidade de concatenação que importa e revela algo marcante, e como sou consciente de
que somente um bom entendimento dessa esfera de coisas permite estabelecer as
extrapolações que estou fazendo, retomo a tarefa de sublinhar alguns desses elementos, na
abordagem em espiral, que havia mencionado anteriormente.
Se na metapsicologia freudiana o conceito de inconsciente é fundamental e será o
depositário de traços mnêmicos, frutos da experiência erótica primordial, o inconsciente
reichiano inclui um acréscimo significativo. Segundo Reich, os primeiros traços mnésicos são
registros de movimento no plasma corporal (cf. REICH, 1949/1973, p. 92). Visto assim, o
próprio movimento, enquanto traço, é de uma ordem mais fundamental que o neuronal, o
imagético, a representação de coisa. Não é distante a analogia em que, em um organismo
primitivo, a sensação – a reação de uma ameba se aproximando de um meio nutritivo, por
exemplo – é concomitante à sua expansão plasmática, sua massa “indo em direção a”. Aqui,
pode-se pensar não em um antes (o perceber) e um depois (o expandir), mas na
correspondência imediata entre um e outro. A fenomenologia da percepção, de Merleau
Ponty positiva o corporal ao propor uma retomada da filosofia do mundo da experiência
afetiva, em que há uma conexão entre as percepções e a experiência que antecede o
conhecimento e a reflexão: “[...] retornar ao mundo que antecede o conhecimento, do qual o
conhecimento sempre fala” (MERLOT PONTY apud SCHUSTERMAN, 2012 p.101).
Correntes de excitação, pulsação na expansão e na contração, antítese complementar soma-
psiquê. A função do orgasmo como referencial, fornecendo o meio para acessar a interface do
domínio soma-psique e também a fronteira entre o vivo e o não vivo. Mas também o
Inconsciente, pulsões, transferência, formações reativas e sublimações. Esse é o universo das
vertentes que se apresentam a uma análise reichiana, que, pela sua própria característica de
composição entre muitos elementos, permite a lógica da inter-relação entre eles, o que
aumenta o seu potencial clínico e investigativo. O viés reichiano é includente, não excludente.
146
E não são a coerência interna e a possibilidade maior de fornecer respostas, mesmo que
temporárias, o que fazem uma teoria ser escolhida em detrimento de outra?
O termo psicanálise58, no título deste capítulo, advém do fato de ser parte importante
no seu desenvolvimento a utilização das premissas freudianas, em especial, a noção de
inconsciente. E, nesse sentido, acredito estar de acordo com a definição de Mezan de que,
psicanalíticas são todas as escolas de pensamento que adotam como verdadeira a hipótese de
inconsciente como formulada por Freud (MEZAN, 1996, p. 348). Portanto, é a aceitação da
hipótese e sua utilização que são questões centrais e definitivas, e não um setting particular e a
concomitante utilização exclusiva do verbal como instrumento específico. Essa explicação é
necessária porque, mesmo entre os reichianos mais ortodoxos, existem discussões a respeito
do quanto esse referencial continuava presente por volta do período orgonômico, e alguns
entendem que não. Meu ponto de vista é de que nunca foi abandonado por Reich, levando
seus escritos muitas vezes a confundir a explicitação e a ênfase na pontuação dos fenômenos
orgonóticos, com ausência de interesse nos relacionais e transferenciais. Myron Sharaff,
colaborador e autor da mais completa biografia sobre Reich e que foi também seu paciente,
diz que este, no período citado, apesar de cansado da psicanálise, nunca deixou de prestar
considerável atenção aos traços de caráter. Sharaff relata uma ocasião em que, após algumas
interpretações, Reich teria dito: “Você vê, este trabalho envolve muito mais do que espremer
músculos. Nos não somos contra a boa psicanálise” (SHARAF, 1993, p. 314). Mas retornando
a um ponto importante, é necessário discernir e poder determinar o valor e a natureza de um
elemento da vida emocional, quando é possível situar esse elemento em dois campos teóricos
diferentes, ao mesmo tempo. Continuando a utilizar um artigo já publicado antes, irei
salientar, através de um estudo de caso publicado por Freud, as diferentes possibilidades de
entendimento quando se utiliza um referencial reichiano, comparado ao freudiano. Nesse
estudo de caso, o movimento ocupa um lugar central. Claro que, nesse momento, no texto, não
pretendo apenas apresentar um contraste entre um referencial teórico e outro, mas, sim,
sublinhar mais uma vez essa característica do pensamento reichiano de atravessar barreiras
conceituais e disciplinares.
O homem dos lobos. Este é o nome do estudo publicado por Freud. Neste, especial
relevância é dada a um sonho ocorrido na infância, o qual deu origem à uma fobia infantil
que, posteriormente, transformou-se em uma neurose obsessiva. Nele, o paciente vive a
experiência de estar sendo olhado fixamente por lobos que estão postados sobre uma árvore e
58
Este parágrafo foi originalmente publicado no artigo “Psicanálise Somática Orgonômica”, de Nicolau Maluf
Jr.
147
que o olham através da janela do seu quarto. O paciente acordou em pânico. Paralelamente,
tem início a fobia. As associações que encaminharam a interpretação do sonho levaram Freud
a entender a imobilidade dos lobos no sonho como sendo uma referência a movimento, uma
distorção do que teria sido a observação, por parte do paciente, quando com cerca de dois
anos e meio, da cena primária e dos movimentos durante a relação entre os pais. O pânico, por
sua vez, é inicialmente entendido como uma espécie de rechaço de um desejo homossexual59.
Um orgonomista poderia concluir que, sim, a representação do movimento, reconhecida na
imobilidade dos lobos, é importante e que sua relação com o desejo é homossexual, ou não.
Mas ele, o orgonomista, poderia reconhecer a presença das correntes vegetativas,
representadas pela sua distorção, a imobilidade.Tomada dessa forma, a cena dos lobos aponta
para a presença da experiência corporal da própria criança como sendo também constituinte
daquilo que dá inicio à fobia. Como o próprio Freud menciona, “tenho observado que, com
frequência, a atenção das crianças é mais facilmente captada pelo movimento do que pelas
formas em repouso, e que as crianças baseiam-se nesses movimentos para fazer associações
que nos, os adultos, não estabelecemos [...] (FREUD, 1914/1981, p.1990). Não é difícil ver
aqui a relação existente entre a percepção dos movimentos no plasma corporal, como
descreveu Reich quando as crianças ainda mantêm intacta essa capacidade, e essa capacidade
associativa nas crianças. Desse modo, e de forma resumida é claro, é possível se pensar na
vinculação entre o sonho dos lobos, as sensações de movimento (correntes vegetativas) no
corpo e o estabelecimento da patologia. Na verdade, essa nova hipótese, quando considerada,
modifica totalmente o entendimento clínico da situação, retirando ênfase da cena primária
como fator etiológico, e de visto, testemunhado, para experienciadas como fator central.
Obviamente, não seriam as sensações de corrente elas mesmas o fator do adoecer, mas, sim, o
conflito psiconeurótico se apresentando, o que faria esta criança temer e rechaçar não só
impulsos e fantasias, mas também as intensidades corporais. E como este foi um caso de
insucesso clínico, justificado pela ação da suposta pulsão de morte, serve para pensar como
seria o resultado do processo de tratamento, se a corporeidade, na sua expressão literal, as
correntes vegetativas, fosse considerado.
Recapitulando: existe uma vinculação entre processos somáticos e psíquicos. Além
disso, uma intervenção feita de forma coerente com a estrutura produz efeito nos dois
domínios (soma-psique). Assim, uma abordagem, baseada em noções de desenvolvimento
psicossexual e de organização do aparelho psíquico, mas também em noções de economia
59
Obviamente, nesta narrativa que faço aqui, há uma redução ao extremo de uma exposição rica em detalhes e
em complexidade.
148
energética e biofísica orgônica, amplia seu potencial pelo simples fato de poder reconhecer a
natureza e a organização das produções somáticas advindas das intervenções no psiquismo (a
excitabilidade vegetativa). Dessa forma, percebe-se que, no manejo da transferência, toda
estruturação defensiva, de qualquer tipo ou ordem, origina-se a partir de um núcleo básico,
somático, o temor à vivência, que psiquicamente se manifesta como evitação de intensidades
corporais ou de sua percepção, quando existente.
A sobreposição do item 6.6 (psicanálise de campo) com o atual, 6.7, deixa evidente o
vasto contingente de elementos em cena. De uma subjetividade extrema, tomada como forma
de comunicação, até uma objetividade composta de uma corporeidade literal. No extremo de
cada um desses territórios encontramos a interface que encaminha ao outro território: o
inconsciente da subjetividade em dupla, o qual leva a um somático-energético e a uma
corporeidade estruturada que, no seu extremo, remete à dimensão psíquica.
Platão, no Fédon, “diz que o corpo nos destrai da realidade e da busca do
conhecimento verdadeiro por interromper nossa atenção com toda espécie de comoção
sensacional e por distrair nossa mente com toda forma de paixão [...]” (SCHUSTERMAN,
2012, p. 30). Em Reich, a paixão, a sensação e o corpo nos levam ao conhecimento.
149
idealistas, dentro da psicanálise, mas que o que surge destas demonstra que são exatamente
isso, desvios, e que o núcleo da psicanálise é materialista” (FENICHEL, 1972, p.39). O fato
de que a psicanálise é materialista em sua essência fica assegurado ao se demonstrar que seu
principal objetivo consiste em fazer remontar todas as chamadas funções “superiores” a seus
substratos biológicos:
[...] o espírito aos instintos, os instintos às suas fontes somáticas, os
atos do homem ao princípio materialista do prazer-desprazer e à sua
variante, o princípio de realidade...a atribuição dos instintos às suas
fontes somáticas nos conduziu a resultados muito satisfatórios no caso
da ‘pulsão de morte’, precisamente o que deu ensejo à especulações
idealistas [...]” (FENICHEL, 1972, p.41).
Merleau Ponty permite uma citação extremamente útil quando se ocupa da psicanálise
e da dialética:
As investigações psicanalíticas resultam não em explicar o homem pela
infraestrutura sexual, mas em reencontrar na sexualidade as relações e as atitudes
que anteriormente passavam por relações e atitudes de consciência, e a significação
da psicanálise não é tanto a de tornar biológica a psicologia, quanto a de descobrir
um movimento dialético em funções que se acreditavam puramente corporais
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 218)
Mas o que é exatamente materialismo? Afirmei acima o meu entendimento de que,
como referencial, o materialismo dialético foi abandonado por Reich, em nome de um outro,
esse, sim, mais suficiente, que seria energético. Já que o materialismo dialético é decorrente
do materialismo, começarei apresentando este último.
Na base desse modelo está a noção de que:
“O mundo, a totalidade espaço-temporal, é constituída de objetos caracterizados
completamente por um conjunto de quantidades interagindo com outros objetos, do
mesmo tipo geral de acordo com leis. (LACEY, 1998, p. 17, grifo meu)
As leis, por sua vez, representam relações entre quantidades. As teorias representam
imagens das coisas em termos de leis e quantidades.
Como pode-se notar, enfatizei o termo completamente, encontrado na definição de
Lacey, não por uma razão de cunho meramente detalhista, pois ele traz implicações para a
proposta do materialismo-dialético que tornam problemática e insatisfatória essa definição, a
do materialismo dialético. Veremos isso mais à frente, por enquanto me aprofundo na
proposição do materialismo. Irei examinar algumas passagens do livro Reality and Reason
-Dialectic and the Theory of Knowledge, de Sean Sayers (1985), a primeira delas longa, mas
extremamente útil ao exame proposto:
[…] I have, indeed, appealed both to the Hegelian philosophy and to materialism in
my account, but it has not at all been my intention to suggest that these outlooks are
equivalent. They arc, on the contrary, absolutely and irreconcilably opposed.
151
Nevertheless, they do share this much in common: both Hegelian idealist and
materialist dialectical philosophy are agreed in asserting the concrete unity of the
subjective and the objective, of consciousness and matter, of appearance and reality.
They are united in rejecting dualism. Both, moreover, equally reject the usual
reductionist alternative. For in asserting the concrete and dialectical unity of these
opposites, they are rejecting the view that these opposites can be immediately
identified and that either can be reduced to the other. That is to say, both forms of
dialectic reject Berkeley's subjective idealism, with its reduction of objective reality
to 'ideas'; and equally they both reject the metaphysical materialism of the 'identity
theory' and direct realism, which reduces the mind to the purely mechanical level,
and attempts to read off appearances directly from reality. Moreover, as I have
stressed, there are very important realist themes in Hegel's philosophy, particularly
in his critique of Kant [...]. (SAYERS, 1985, p. 44)
Em continuação, o autor faz uma diferenciação entre o materialismo dialético e a
dialética de Hegel:
[...] For, according to materialism, the objective and the material are primary.
Ultimately there is nothing in the world but matter in motion. Consciousness
and mental phenomena arise only out of the material world, as modifications of it.
Idealism in general, and Hegel's idealism in particular, is the exact opposite of this.
According to Hegel the material world is ultimately a product, a creation of
spirit. Nature, for him, is the 'self-externalization', the 'alienation', of mind.
(SAYERS, 1985 p.44, grifo meu)
Matéria em movimento. Sayers pontua o mesmo que Lacey, com um acréscimo
importante: a consciência e o fenômeno mental são decorrências do mundo material, surgem
dele. Veremos que a) essa hierarquia de desenvolvimento é problemática e incoerente com a
própria dialética, b) como o materialismo dialético se afirma dialético e c) que ele precisa
responder a essa contradição.
A segunda coisa a chamar a atenção é o comentário sobre o idealismo hegeliano. É
impressionante a maneira rasa e equivocada que muitos autores academicamente qualificados
empregam ao comentar Hegel e os conceitos de IDEIA e CONCEITO. Por exemplo, Sayers
afirma que, em Hegel, o mundo é uma criação do espírito e da mente. Convenientemente, não
explica o que seria espírito, além do que, pela justaposição de espírito e mente na frase,
talvez se traindo involuntariamente, dá a entender que ambos se referem ao território do
psicológico, embora ele mesmo, na verdade, tenha definido Hegel como um idealista realista,
como na passagem seguinte:
[...] As always with Hegel, what is necessary is to distinguish what is 'living' from
what is 'dead' in his thought; and to extract the 'rational kernel' from the 'mystical
shell'. It is in this spirit that I have been relying on Hegel so far. However, what is
dead in Hegel's philosophy - his extravagant metaphysical idealism, which amounts,
in effect, to a sort of pantheism, and so on - all this is so well known, so frequently
criticized and condemned (often as though there was nothing else to him), that I
have felt little need to dwell on this side of his thinking. (SAYERS, 1985, p. 45)
Embora realçando a força do pensamento de Hegel e transcrevendo o comentário
de Lenin, que sugere que “todos os filósofos que desejam portar a bandeira do Marxismo
deveriam declarar-se os amigos materialistas do idealismo hegeliano”, enfatiza a necessidade
152
de separar o que está vivo no seu pensamento do que está morto, um tipo de panteísmo,
segundo o autor.
“[...] That is all. In so doing, I try to extract the 'rational kernel' from his philosophy.
On the other hand, for the most part I simply discard the 'mystical shell' silently and without
comment [...]” (SAYERS, 1985, p. XII). Uma límpida declaração do preconceito do autor,
pelo menos.
Aproveito para relembrar minha afirmação da passagem reichiana do materialismo
dialético para o energeticismo, ao formar a orgonomia, e a relação com o pensamento de
Hegel.
Tenho então, até agora, dois pontos a serem elucidados, o referente ao materialismo
dialético como incoerente e a proposta de Hegel como idealista. No capítulo sobre Reich, em
nota de rodapé, tive a oportunidade de citar Singer e seu comentário sobre a melhor maneira
de definir Hegel, que seria Ideísmo e não idealismo.
62
Planos distintos da realidade de um ponto de vista das disciplinas e áreas do saber que se ocupam desses
155
que, por si só, não seria suficiente para apontar incoerência, que, contudo, fica evidente
quando trazemos à luz um pressuposto implícito do materialismo: o de que há uma
hierarquização presente na produção da realidade material, isto é, do mais simples ao mais
complexo, do átomo à molécula, do inorgânico ao orgânico, etc. Assim, é incoerente postular
a “[...] unidade concreta do subjetivo e do objetivo, da consciência e da matéria, da aparência
e da realidade [...]”como fez Sayers, ao mesmo tempo que rejeita o dualismo e o
reducionismo, assegurando a concreta e dialética unidade destes opostos. Ora, como rejeitar
o reducionismo, se a proposta do materialismo dialético é, sim, reducionista, por ser
justamente materialista? É incoerente afirmar que consciência e matéria têm estatuto idêntico
e, ao mesmo tempo, afirmar que a consciência decorre da matéria!
Há dois textos, conteúdos de correspondências enviadas a amigos igualmente
interessados no tema, que, entendo, são esclaredores, embora estejam informalmente
produzidos. Sua veiculação, nesse momento, irá me ajudar na continuidade:
Paulo e Ailton:
Seguindo aqui no nosso papo virtual: Paulo, examinar em profundidade temas como
esse implicaria em textos laudatórios e minuciosos, claro. Mas vou tentar aqui,
dentro do que tenho pensado, apontar alguns elementos que considero principais.
Lembrando sempre que temas como " materialismo-idealismo" remetem a uma
preocupação ontológica, tipo "qual o tecido básico da natureza, da realidade, etc". É
desse ponto de vista que mencionei, no mail anterior, a questão do problema do viés
materialista dialético.
Começando pelo meio, mas um ponto essencial: "o materialismo do materialismo
dialético não é, como seu ancestral, reducionista. Não reduz as ideias à matéria".
Tá ótimo. Mas então, de onde surgem as idéias? Estas têm uma existência autônoma,
irredutível, ou são um sub-produto da matéria viva (cérebro)? No texto, dá-se a
impressão da afirmação da sua irredutibilidade. Mas então, de onde? Se o mundo
das idéias não é redutível à matéria, então, estas têm o mesmo status que a matéria,
logo, por que "materialismo dialético"? E assim vai...
Com a "Dialética da Natureza" Engels produziu uma obra primorosa. Estava,
certamente, a par das teorias físicas do seu tempo, e de suas problemáticas. Na
verdade, verdade mesmo, é esta obra a precursora (sem sem citada) das mais
modernas teorias físicas contemporâneas como o famoso pensamento complexo, a
teoria dos "sistemas dissipativos auto-organizados" e mesmo da teoria do Caos
determinista. Mas a questão do reducionismo já havia sido abalada com o
surgimento da termodinâmica, e a teoria da distribuição das moléculas dos gases
num espaço determinado.
Estas são algumas das teorias que, a partir da metade do séc XX, minoraram a
"dureza" do mecanicismo, trazendo justamente a noção do "emergente" ("lei da
transformação da quantidade em qualidade") e do "probabilístico". São também as
teorias que abalaram o lugar central do reducionismo no pensamento científico (pelo
menos, para os cientistas "letrados" e não meramente “técnicos").
Mas o problema maior do materialismo não é o reducionismo, já que, como vimos, é
possível a concepção de uma materialismo não reducionista (pelo menos não em
parte). O problema do materialismo é o mecanicismo. Ou seja, um mundo
"Laplaciano" onde todo movimento e transformação decorre simples e unicamente
do "choque entre moléculas" (o que também é o viés da teoria do Big Bang). Mas...
esse movimento é "cego", aleatório, SEM FORMA.
No viés orgonômico, como Reich observou, o deslocamento espontâneo do orgone
envolve uma trajetória complexa, mas longe de ser aleatória. Essa "forma" do
deslocamento tem profundas implicações na definição da natureza dos objetos no
mundo, principalmente os vivos, como o Aílton já relembrou várias vezes em seus
trabalhos.
Compreende-se facilmente a ênfase dada por Engels ao materialismo, pra fugir do
"Idealismo-ideísmo" hegeliano, e , principalmente, para afastar a possibilidade de
qualquer "finalismo" como referencial (o finalismo é caro ao pensamento religioso).
A menção à "pesquisa historiográfica concreta, em oposição à reflexão filosófica
abstrata" deve ser pareada pela noção de que historiografia, antes de mais nada, é
interpretação.
Mas então, ficamos com o problema inicial: se as idéias não são redutíveis à matéria,
então?
Sem dizê-lo explicitamente (a não ser que consideremos que Reich "diz " o que vou
dizer à frente através da afirmação de que o pensamento funcional não é idêntico ao
pensamento dialético), Reich opta pelo energeticismo, em troca do materialismo
dialético. Dessa maneira, a questão da "forma" pode ser absorvida numa visão de
mundo holística.
Enfim, algumas observações sobre esse nosso papo! Como eu disse, estas são
algumas das questões que tenho abordado na minha tese.
Um abração, novamente, aos dois!
Nicolau
Outro:
Seguindo aqui nas nossas divagações-indagações:
Aílton, o materialismo dialético não é compatível com a orgonomia. A dialética, sim
(em parte).
Lembro que o diferente do materialismo, em termos epistemológicos, não é
necessariamente "idealismo". Mesmo este, o idealismo, remete a um "mundo das
formas" pré- existente, no referencial platônico, o que não é de todo incompatível
com a orgonomia, em certo sentido mais primário, se pensamos no energeticismo
reichiano e as propriedades e da energia orgone postuladas por ele, Reich.
Tudo o que é material é objetivo, é certo (se deixamos de lado a dimensão sub-
atômica na física), mas nem tudo o que é objetivo, ou objetivável, é material. Uma
equação é uma objetivação, a teoria do inconsciente dinâmico também, etc. Ou seja,
"existente" não é sinônimo de "material".
O materialismo dialético parte do pressuposto de que a matéria, como dito em outro
e-mail, é a "substância primeira" do universo. Reich menciona mais de uma vez que
tinha adotado uma perspectiva energética intuitivamente, a princípio, para depois
assumi-la integralmente. O materialismo (nem mesmo o dialético) dá conta das
funções de superposição postuladas por Reich, em fluxos orgonóticos "livres de
massa". Muito menos dá conta, o materialismo, da questão da forma do elemento
trigonométrico no orgonome. Não há, entendo eu, como aprofundar justamente a
questão da identidade mencionada por você entre os elementos vivos mais simples, e
as funções cósmicas mais amplas, sem considerar que a dialética, tomada
isoladamente, não é suficiente. Essa questão necessita dessa "forma a priori"
encontrada nos deslocamentos (transformação) espontâneos dos fluxos orgonóticos
livres de massa. E também, da adoção de um viés onde a "não localidade" seja
presente, mas isso já é bem mais complicado.
Por essas e outras razões é que entendo o porquê de Reich ter abandonado o
referencial materialista-dialético, para adotar um energeticismo (claro, onde a
dialética está presente no noção da complementaridade dos opostos).
O materialismo dialético não teve o menor sucesso nas ciências naturais, tendo,
quando muito, hoje, algum lugar na biologia. Mas isso não por culpa do
materialismo dialético (penso eu) mas sim pelas características do próprio
pensamento científico: este se ocupa do que é calculável, mensurável, e seu inegável
sucesso levou a uma espécie de propaganda subliminar que faz confundir o produto
deste método, com o que é bom ou válido (o "bem") . O existente não é só
"extensão" . Embora esta seja parte sem dúvida do mundo.
Um abração aos dois.
Nicolau
157
Nessa troca de e-mails, dos quais apresentei somente dois, enviados por mim, há a
abordagem da questão do materialismo dialético e a crítica que faço a essa concepção, mas há
também menções sobre a forma de descolocamento do orgone e sobre a não-localidade. Esses
conteúdos são pertinentes ao tema fusão com o objeto e serão, logo mais, abordados.
No texto reichiano que apontei no ínicio do item 7, há a observação “se o conceito
materialista da história [...]” e na nota de rodapé, acrescentada depois, está: “[...] nota de
1945. Hoje diríamos funcional [...]". É a história que é posteriormente definida como passível
de ser entendida de forma funcional e não materialista. A dialética encontrada por Reich,
enquanto firmemente aderido à regra da observação como elemento primário, é de uma
natureza que não pode ser reduzida a trocas de movimentos e energia. O materialismo
dialético tem sua insuficiência evidenciada também por implicitamente envolver a localidade
como pressuposto. A lei da transformação da quantidade em qualidade, quando abordada por
Marx e Engels, torna-se de menor abrangência por necessitar das possibilidades de trocas de
movimento e energia para efetivar-se. Assim, à incoerência de uma subordinação hierárquica
(matéria e consciência), soma-se a insuficiência representada pela localidade.
Uma sutil operação metodológica operacionalizada por Reich (no meu entendimento)
na criação do funcionalismo orgonômico como método de pesquisa e investigação trouxe
solução para esses dois dilemas: ao retirar a ênfase da síntese como consequência da tensão
entre tese e antítese e ao elaborar o princípio funcional comum, que é o denominador comum
de duas funções pareadas, como tese e antítese por exemplo, Reich soluciona tanto a
incoerência da postulação do estatuto hierárquico da matéria sobre as ideias, quanto a
limitação da localidade presentes no materialismo dialético.
158
O deslocamento para A1 do PFC, como denominador comum orgone das variações A2,
matéria, e A3, consciência. Orgone ganha características similares, filosoficamente falando, à
IDEIA ou RAZÃO, no referencial hegeliano, embora o orgone possua propriedades físicas
observáveis e mensuráveis, como descrevi no capítulo “Reich e a orgonomia”. O orgone,
como referencial, não é um princípio metafísico, mas, como referencial, constitui-se de algo
mais do que uma força utilizável para realizar modificações no mundo orgânico e inorgânico,
e este fator a mais é a sua forma de auto-propagação, que permitiu ilações, mas também
cálculos, sobre a forma primordial dos seres vivos, na trigonometria do orgonome e sobre a
Krassenvelle (onda espiralada) como uma modificação da elipse de Kepler. Mas isso já foge
aos objetivos desta tese. Algo mais próximo e imediato é o consequente vislumbre da não-
localidade apresentando-se nas elaborações reichianas desse período. A não-localidade surge
das possibilidades de operações de entendimento sobre fenômenos tão aparentemente
díspares, quanto a frequência da melhora súbita e temporária que acomete quem está
significativamente adoentado, ou o descarregar das folhas de um eletroscópio, como
mencionei antes. Na medida em que esta correspondência for correta e não apenas imaginação
vinculada a um mapeamento existente apenas na mente de alguém, ela produzirá outros
entendimentos e também uma verificação histórica. É correto mencionar que um viés como o
da orgonomia permitiu não só o desenvolvimento de técnicas, mas também de tecnologia, na
forma de aparatos.
Em última instância, se for preferível, o materialismo continua a ser o referencial
primeiro, mas um materialismo com sentido estendido, que não é definido por suas
propriedades atômicas e físico-químicas, alcançado o mesmo patamar que o índice da não-
localidade na MQ. Contudo, os elementos que exibem uma espécie de estado conjugado ou
duplo nas observações quânticas tratam-se de partículas que tiveram uma origem comum, em
um aparato produtor das mesmas. A não-localidade reichiana, observada na funcionalidade
comum entre fenômenos, tem sua origem comum no fato de serem existentes, tanto enquanto
matéria, extensão, como enquanto função. São as funções naturais que são formuladas como
primordialmente energéticas – livre de massa – na concepção reichiana.
Essa concepção valida questionar se não há uma presença de um determinante como
esse inclusive nas produções culturais:
159
Albert Rothenberg has analyzed the process of creative thinking and has interpreted
the creative act as a union of contrary psychological forces. In support for his thesis,
he quotes historian of physics Gerald Holton as writing:
Not far below the surface, there have coexisted in science, in almost every period
since Thales and Pythagoras, sets of two or more antithetical systems or attitudes,
for example, one reductionistic and the other holistic, or one mechanical and the
other vitalistic, or one positivistic and the other teleological. In addition, there has
always existed another set of antitheses or polarities, even though, to be sure, one or
the other was at a given time more prominent—namely, between the Galilean (or
more properly, Archimedean) attempt at precision and measurement that purged
public, “objective” science of those qualitative elements that interfere with reaching
reasonable “objective” agreement among fellow investigators, and, on the other
hand, the intuitions, glimpses, daydreams, and a priori commitments that make up
half the world of science in the form of a personal, private, “subjective” activity.
Science has always been propelled and buffeted by such contrary or antithetical
forces. Like vessels with draught deep enough to catch more than merely the surface
current, scientists of genius are those who are doomed, or privileged to experience
these deeper currents in their complexity. It is precisely their special sensitivity to
contraries that has made it possible for them to do so, and it is an inner necessity that
has made them demand nothing less from themselves. (GUSTAFSON, 2004, p. 102)
“Forças contrárias ou antitéticas. Que impulsionam a ciência. Cientistas geniais são
aqueles que são condenados, ou privilegiados a experimentar essas correntes mais profundas
em sua complexidade”. Holton parece tocado pela mesma inspiração que abarcou a Reich.
Entretanto, não são “forças psicológicas” exatamente, como pensa Rothemberg. Ouso
imaginar que o emprego deste termo, forças, por um e outro, deve-se mais a uma intuição do
que é operante de fato.
“Não devia ter dado o tapa no Tai Stick”, penso finalmente, não depois de ingerir o
ácido.
O Tai Stick é uma maconha alterada geneticamente, preparada pra ser mais forte que a
de uso comum. Reconheço seu efeito, embora não fosse eu um usuário contumaz, mesmo
naquele ano de 1977.
Olho mais uma vez em direção a Sérgio, ele, que prometera atenção caso “a viagem”
com ácido, a primeira que fazia, resultasse numa “bad trip”, mas ele está nocauteado pelo Tai
Stick. Subo mais um andar, decidido a me isolar no meu quarto naquele squatter: casas que
eram invadidas, quando estavam desocupadas. Uma vez ocupadas, era permitido aos
ocupantes por lá permanecerem durante tempo indeterminado. Uma política de bem-estar
social assim determinava.
Lá no meu quarto, eu poderia estar minimamente protegido. Nem pensar em contar
com os outros moradores, todos pequenos traficantes de haxixe que, em poucas horas,
estariam negociando quantidades com os inúmeros visitantes que, a cada noite, apareciam por
lá. Fora uma sorte ter conseguido esse quarto num lugar tão central em Londres – Shepperd's
Bush – e ainda por cima de graça, eu que, semanas antes, tinha que escolher entre comer ou
me aquecer o suficiente. Eu estudava durante o dia, eles dormiam e, à noite, traficavam, eu os
encontrava em algum meio termo durante esse período.
Minha estadia em Londres era a realização de um sonho pessoal. Vindo de São Paulo,
depois de formado em Psicologia, e tendo feito parte de um grupo de trabalho que se
propunha reichiano, buscava, agora, algo que me parecia mais autêntico, verossímil, menos
ideológico, se comparado às minhas primeiras experiências clínicas, tanto como paciente,
quanto como assistente de um expoente reichiano à época, de quem me tornara primeiro
assistente.
Em Londres, no Instituto em que acompanho o processo de formação destinado aos
alunos, mergulho nas aulas, teorizações e vivências, que têm a função de fornecer a prática
necessária das atividades corporais envolvidas nos processos de clínica das neuroses e
psicoses, dentro desse referencial psicorporalista. O mergulho prático-teórico é exaustivo e sei
que não só eu, mas todos os alunos, estamos como que permanentemente sensibilizados pelos
trabalhos que demandam um engajamento permanente da pessoalidade de cada um.
Literalmente, nossos corpos são bombardeados pelos trabalhos práticos – é bom lembrar que,
nessa perspectiva psicorporal, estados subjetivos e emocionais são entendidos como
contraponto de dinâmicas e funcionamentos corporais específicos, essa é a razão da presença
do corporal na situação clínica e, também, nos nossos processos de aprendizagem àquele
163
tempo.
Em meu quarto, espero pelas imagens, alucinações, mas nada disso acontece. Sou
apenas tomado por uma sensorialidade avassaladora. Meu corpo, minha pele, meus nervos,
tudo parece estar a serviço de um perceber sincrônico de estar, conexão. A passagem para esse
estado é fluida, não encontra resistências.
Passarei as próximas 24 horas num estado de profundo encantamento e contemplação.
Meu corpo, quando me deito, convulsiona sem parar, não como um estado epilético, em que
os clonismos provocam esgares, mas uma movimentação extremamente tênue e delicada,
como se finas correntes percorressem todo o meu ser. Mesmo sabendo da presença da
anfetamina no ácido, percebo que este movimentar é diferente, pois, ao mesmo tempo, uma
rápida sucessão de imagens e pensamentos acompanham todo o acontecimento. Não são
lembranças ou ideias caóticas, são um rearranjo de noções, conhecimentos e teorizações. Têm
principalmente uma faceta que organiza e reformula. Há um sentido de pertencença, de
entendimento, um entendimento mudo, sem palavras, pleno de sentido. Como flashes,
relações conceituais e teóricas surgem interconectadas e esse sentido nunca mais se perdeu, ao
contrário da caricatural “genialidade” que se mostra depois, passado o estado de intoxicação,
mediocridade ímpar.
Na madrugada, saio para a rua e caminho até Holland Park. Como um filho da
promessa de aquárius, sem vergonha alguma, abraço as árvores, enquanto cubro as trilhas.
Penso que consigo me lembrar da sensação de troca que senti, ou imaginei.
Como que num conluio, aos primeiros raios de sol o efeito começa a se dissipar, a
sensorialidade se apagando pouco a pouco, minha pele começa a parecer grossa, impeditiva,
insensível até, agora que o efeito diminuía e desaparecia pouco a pouco o colorido sutil, mas
irradiante que estava em tudo.
Subitamente me dou conta do que estava acontecendo, do efeito cessando, da vida que
voltava a ser a mesma que antes, do empobrecimento dos meus sentidos, da perda, da
dolorosa e profunda sensação de perda que se avizinhava, eu sabia o que nunca mais iria
sentir novamente, não mais aquela eternidade, naquele lugar, nunca mais outro ácido, eu não
suportaria, e então eu chorei, e chorei, e chorei, tristeza como nunca antes na vida.
Em algum momento nessa noite, enquanto fitava estasiado o brilho quase
incandescente do céu noturno, vendo as mesmas correntes espiraladas pinceladas por Van
Gogh, eu compreendi e me dei conta de que ali estava o "sonhar o mar". As correntes
vegetativas.
O que contém uma narrativa em primeira pessoa que difere de outras?
164
Acrescentei ao texto essa minha experiência, que pouco envieza de muitas outras, de
outros, naquele tempo. Pouco importa se, como é sabido, seja frequente que pessoas que se
utilizaram de substâncias psicoativas, no caso, alucinógenos, posteriormente testemunhem um
sentido de pertencimento, um sentido cósmico. Também é irrelevante se o cerne do que vivi
pode ser explicável à luz da estimulação química e intensificação das sensações
proprioceptivas, em um olhar analítico e redutor. A minha posição é a de valorizar a
experiência enquanto tal, valorizar como na postulação do incluir tudo, inclusive o que é
experienciado no escopo da observação, na qual a subjetividade é incluída, não excluída a
priori. Essa inclusão do vivido não se dá exatamente como no referencial fenomenológico, em
que a carnalidade em Merleau Ponty é lembrada como fator primeiro, mas transcende esta na
relação funcional “carne-realidade”, onde o lá fora se modifica enquanto conceito. Agrego a
isso a somatória de outras vivências, desde uma expressamente somática, como a do Aikido,
até as outras, que percorrem uma escala que inclui o contato com estudos e teorizações que
abordam o interesse na transposição dos isolamentos disciplinares, incluindo a forma como
aprendi a utilizar meus sentidos para fins de sessões analíticas. Tenho certeza pessoal que a
narrativa que forneci acima não seria a mesma, nem teria a mesma utilidade se não houvesse
anteriormente minha passagem pelo Aikido e também pela imersão teórica e prática,
sensibilizadoras, que vivia naquele tempo. É essa somatória, essa aglutinação, que fornece o
tônus e a ênfase que tenho encontrado e empregado na questão da relacionalidade como
propriedade da realidade, mesmo que essa propriedade seja apreensível ou hipotizável de
forma mais indireta que direta.
A posição de valorar como significativa uma visão do mundo e das coisas, quando esta
visão é profundamente calcada em uma sensorialidade, vivida e aceita como informação,
surge como inevitável, assim como inadiável é a consideração de incluir esse viés no estatuto
de modo de produção de conhecimento a ser melhor explorado e conhecido. Esse é o terceiro
momento, na analogia com o axioma zen. Não é ingênuo, nem distanciado.
A sensorialidade agudizada não é o único elemento significativo em uma experiência
como a narrada acima, com o LSD. Qualquer um, em qualquer atividade, pode experienciar
momentos de verdade ou ressonância com coisas e atividades, mesmo que por breves
momentos. No meu entender, atividades físicas que envolvem coordenação muscular e
atenção são mais pródigas em propiciar esse tipo de experiência, mas encontro a mesma
qualidade na minha prática clínica, depois de anos de engajamento. Antes desse momento em
Londres, muitas vezes tive a oportunidade de me encontrar centrado e sereno63 no Aikido, em
63
“Tudo é uma questão de manter: a mente quieta, a espinha ereta, e o coração tranquilo”, como na canção de
165
Walter Franco.
166
principalmente da minha experiência no Aikido. Talvez o fato de Bion ter nascido na Índia
tenha alguma importância. Irei logo mais detalhar essa sua proposta.
No caso de Bion, importante é a ênfase com que descreveu e diferenciou as partes
neuróticas e psicóticas da personalidade. Nas psicóticas, o ódio tem presença marcante à
realidade interna e externa, com preferência pelo mundo das ilusões. Bion desenvolveu suas
teorias com forte influência de Melanie Klein e essa psicanalista, baseando-se na sua
observação de bebês e seus trabalhos com crianças, entendia que o psiquismo inclui fortes
tendências ou pulsões destrutivas, como, por exemplo, na voracidade e no “ataque” ao seio.
Seria essa destrutividade que seria empregada no ódio à realidade, tanto interna quanto
externa, no pensamento de Bion.
Minha própria experiência clínica percorre situações semelhantes e, embora eu
discorde das teorizações mencionadas acima – não há essa destrutividade primária, ela é
secundária, fruto da patologia, encontra-se esse funcionamento mental em crianças já
adoentadas –, o fato clínico permanece, mesmo com outra explicação. Há de fato um
funcionamento mental possível que leva à fuga da verdade e que é acompanhado por uma
dificuldade de discriminação e diferenciação do que é do próprio self e do que está fora dele.
Bion entende que há uma imbricação entre pensamento e conhecimento e entre
pensamento e emoção na criança, dependendo de sua capacidade de rêverie64.
Se a capacidade de rêverie da mãe for adequada e suficiente, a criança terá condições
de fazer uma aprendizagem com as experiências positivas e negativas vividas, impostas pelas
privações e frustrações. No caso da clínica, o analista faria esse papel.
[...] No final do capítulo 12 de “Learning from Experience” [Aprendendo com a
experiência], Bion se interroga: «Quando a mãe ama a criança, o que faz ela?» Ele
responde: «Deixando de lado os canais físicos da comunicação, minha impressão é
que seu amor se expressa pela rêverie» (Bion, 1962). Ele religa isto ao conceito de
função-alfa. É o que transforma os ingredientes incontroláveis da experiência bruta
(os elementos beta) em um material que pode ser pensado (repensado, objeto de
reflexão) e utilizado na fantasia e na rêverie. A rêverie da mãe, diz Bion, é um
estado de espírito que é receptivo a qualquer «objeto» mental, vindo da criança e o
submete ao seu próprio funcionamento alfa, transformando-o em alguma coisa que a
criança, por sua vez, é capaz de utilizar de maneira imaginativa. (PARSONS, 2013
p.5)
Como deve ter ficado claro no texto, trata-se não de deslindar um conteúdo recalcado,
trazendo-o de volta à consciência e à circulação no aparato psíquico, mas de, da própria
produção de tal aparato, criar condições para que haja uma mentalização. Algo semelhante ao
que Ferenczi definiu como trabalhar a respeito da privação, e não da frustração.
De certa forma, é importante sublinhar, nessa condição de conteúdos quase psicóticos,
64
Rêverie (em francês): devaneio, sonho, fantasia. Vx. Delírio. Pensamento. Reflexão. Mod. Atividade mental
normal e consciente, que não é dirigida pela atenção, mas se submete a causas subjetivas e afetivas. V.
Imaginação, sonho, [ “viagem”]. Pej.: Idéia vã e quimérica. Quimera. Ilusão. Dicionário Petit Robert.
168
patamares.
Com quase quarenta anos de prática clínica na Análise Reichiana, o encontro com a
evitação do essencial, com o medo das intensidades próprias do estar vivo e também com o
ódio e com a destrutividade recalcados é prática cotidiana. Como profissional, teórico e
estudioso da obra reichiana, acompanho, há muito, a execração irracional, pelas razões
explicadas acima, e intolerante que seu pensamento frequentemente evoca, principalmente no
público supostamente culto e acadêmico. Essas reações quase sempre aparecem suportadas
por pontos de vista sociológicos, psicológicos e científicos, mas um acompanhamento de
perto evidencia o caráter irracional delas, pois torna-se claro que foram feitas com base em
conhecimento quase nenhum da obra criticada. É esse aspecto irracional e a explicitação do
desejo de descarte e execração que sublinham, de fato, a sua real importância.
A dimensão de psicologia profunda e psicologia sociológica, presentes na definição de
angústia orgástica e encouraçamento, visando manter sob jugo não só os impulsos, mas
também o sadismo e a destrutividade65, aparecem no texto reichiano:
[...] Eu acredito seriamente que na armadura crônica e rígida do animal humano nós
encontramos a resposta para a questão do seu enorme ódio destrutivo e o seu modo
de pensar místico-mecanicista....descobrimos o reino do DEMÔNIO. (REICH, 2012,
p. 120)
Claro que internamente e, não, como um ente de fato.
Mais do que negação, o ataque à realidade, descrito neste capítulo, envolve um modo
de ser psíquico que se aplica ao âmbito tanto do invidual, quanto do coletivo, sendo
componente das sessões na clínica e também, como um agente portador de intencionalidade,
atuando contra produções humanas, como movimentos culturais ou ideias, cuja existência
mobilize anseios intoleráveis nas pessoas e nos grupos envolvidos. A citação reichiana, há
pouco apresentada, leva inexoravelmente a uma associação temática entre a idéia do Mal, a do
pecado, e a expressão, no catolicismo, cair em tentação, no sentido de ceder a um impulso ou
desejo. O cair presente nessa formulação expressa, certamente, uma intuição da relação
existente entre o ceder, dar livre curso, entregar-se e o cair, mesmo que essa intuição deva sua
existência ao fato da neurose e do encouraçamento serem encontrados em geral na população.
Na desordem do pânico, a sensação de queda, acompanhando o ápice de uma crise, já
foi por mim documentado e, na introdução, relatei um vislumbre desse cair em Ulisses, as
sereias e o conhecer tudo. No próximo item irei abordar a relação entre a angústia orgástica –
e todas as implicações mais profundas –, o medo de cair e a relação com o conhecer, no
sentido de verdade. Aqui, o tema fusão com o objeto, tema que é objetivo primeiro desta tese,
65
O sadismo e a destrutividade são resultantes, energeticamente, do esforço do impulso em tentar atravessar a
couraça. Psicologicamente, seu contraponto é a frustração.
172
Mais uma vez, a dificuldade com a postulação reichiana se deve ao fato de sua obra
ser gigantesca – em termos de páginas publicadas66 – e de ter havido um percurso de pesquisa
sui generis, que demanda familiaridade com temas diversos, como psicanálise, biologia e
física. Penso também que, somente os que tiveram a oportunidade de experimentar a Análise
Reichiana e de também praticá-la, podem mais facilmente enfrentar os desafios de suas
teorizações e demonstrações experimentais, especialmente as relacionadas à última década de
sua vida. Fatores igualmente diferenciais: utilizar um acumulador orgônico e poder observar
bions surgindo de um preparado colocado sob um microscópio potente.
Como colocado desde o início, Reich, desde 1920, até o final de seus dias demonstrou
rigor e consistência lógica, aguardando muitas vezes anos para publicar resultados,
repetidamente comprovados. Há continuidade lógica desde seus estudos de psicopatologia, até
sua concepção da onda espiral na formação de galáxias. Só uma leitura informal e
fragmentada de seu material poderia dar ensejo à crítica de especulação ou esquizofrenia.
Poucos mas capacitados autores e pesquisadores chegaram exatamente à mesma conclusão,
como Corrington, professor Universitário de Filosofia e autor de Reich: Phychoanalist and
Radical Naturalist (CORRINGTON, 2003), com prefácio de James Strick, biólogo, PhD e
Historiador das Ciências.
A verdade enquanto função natural e como resultante da relação entre a vida e aquilo
que é vivido. O que Reich diz? Que o protoplasma vivo é central, na medida em que é o
contato orgonótico entre sujeito e objeto o principal modo de conhecimento, e que o sujeito
do conhecimento se diferencia ,na medida em que seu protoplasma está, ou não, encouraçado.
E, também, que é no plano energético do protoplasma que sujeito da experiência e objeto da
66
E páginas não publicadas também. A abertura recente dos seus arquivos, cinquenta anos após a sua morte,
por determinação explícita do mesmo, revelou milhares de páginas, manuscritos e esquemas ainda a serem
examinados.
173
67
No paralelo entre capacidade orgástica e conhecimento, capacidade de entrega orgástica inclui a
possibilidade de dar livre curso à excitação vegetativa, e no seu ápice, orgasmo, convulsionar, perder
temporariamente a consciência.
175
que se aproxime das sereias e passe por elas sem perecer como outros.
Essa imagem, na Odisseia, é especialmente interessante por envolver uma experiência:
o perigo de perder-se enquanto existência. Há uma dimensão diferente da questão no sem
nome e no nomeável: o problema das palavras nunca conseguirem descrever suficientemente a
experiência de unidade, ficando estas em um plano apenas discursivo:
“Nameless is the beginning of heaven and earth”: why is the beginning [shi]
nameless? Could it be that it is nameless, in part, because the beginning of all things
cannot be conceptualized and therefore cannot be named? What was there before the
beginning of heaven and earth (tian di) Nothing? But isn't that nothing still
something? (SHANKMAN; DURRANT, 2000 p. 9)
Os autores examinam o primeiro capítulo do Tao Te Ching, no qual, no entender
destes, Laozi, autor da obra citada, discorre sobre a verdadeira sagacidade, trocando
conhecimento enciclopédico por Sabedoria. A Sabedoria reside na capacidade de se fazer uno
com o dao.
If a way can be spoken (or followed),it is not the constant way. If a name can be
named, it is not the constant name. Nameless is the beginning of heaven and earth.
Named is the mother of the ten thousand things.
Therefore, constantly have no intention (wu yu) to observe its wonders; constantly
have an intention (you yu) to observe its manifestations.
These two come forth together but are differently named. Coming forth together
they are called mystery. Mystery upon mystery, Gateway to many wonders.
A linguagem não pode expressar a experiência da unidade, do pertencimento, pois o
nomear identifica e subtrai coisas e conceitos da totalidade (continuidade) subjacente, mas
pode evocar a experiência de imersão e participação no Tao.
O aparente paradoxo de ter uma intenção, a de observar, e não tê-la ao mesmo tempo
forma o que Laosi chama Mistério. Sobre esse ponto, os autores comentam sobre os aspectos
Intencional e Participativo da consciência, com relação aos quais o primeiro se destaca por
intencionar objetos, o segundo, sendo parte do mistério. Atos intencionais sucederiam sempre
em uma estrutura compreensiva da realidade.
A narrativa de Ulisses representaria, portanto, o desequilíbrio produzido na psique
humana pelo desejo de conhecer (tudo), que não levasse em conta o fato de que o ato de
conhecimento ocorre em uma estrutura compreensiva da realidade, da qual a própria
consciência também seria parte e, portanto, algo impossível de acessar e dominar. O desejo de
conhecer poderia fazer esquecer a Sabedoria, e colocar Sabedoria e Conhecimento em
oposição.
Entendo que é possível uma outra interpretação, ligeiramente diferente, desse capítulo
do Tao Te Ching e de Ulisses. A ênfase nessa minha interpretação recai não sobre o que se
procura conhecer, mas sobre o como. Como no título do item anterior, Conhecer não é apenas
176
68
Reich havia observado uma constante diferença de temperatura dentro do acumulador e no ar em volta. A
temperatura mais alta dentro do acumulador, sem a presença de nenhuma fonte conhecida de energia indicava a
existência de um tipo desconhecido de energia.
178
não podem ser vistas quando o disco metálico de cobertura é posto no lugar.
Aparato para Einstein: construção: 1. gera um campo de energia entre a matéria
orgânica e inorgânica.
Demarca uma certa região da atmosfera.
Matéria orgânica absorve o orgone atmosférico. As paredes metálicas refletem-
na de volta, e as partículas de ernergia começam a oscilar.
A energia cinética da radiação é convertida em calor, o qual pode ser melhor
mensurado sobre a superfície superior do aparato [...]”. (REICH,1999)
Em primeiro de fevereiro de 1941, houve um segundo encontro, desta vez Reich
deixou com Einstein um acumulador. Einstein pretendia ficar com o aparato duas ou três
semanas e, depois, escrever para a academia de física, se nada de errado fosse encontrado.
Fazem algumas observações ali mesmo, encontrando o mesmo diferencial de temperatura
comentado antes. Reich partiu aliviado e esperançoso, teve uma ótima impressão sobre
Einstein.
Em sete de fevereiro, recebeu uma carta de Einstein, em que este dizia que, de acordo
com um assistente seu69, a diferença de temperatura era devido à convecção, nada mais.
Reich ficou estupefato que uma explicação tão simplória pudesse ser alegada.
Escreveu a Einstein uma longa carta, na qual narrava como essa possibilidade já havia sido
descartada experimentalmente, agregando outras demonstrações, feitas ao ar livre, ou com o
aparato enterrado no solo, nas quais as mesmas variações com a caixa-controle eram
encontradas.
Einstein não respondeu.
Reich imagina possibilidades: estará Einstein consultando outros? verificando dados?
Afinal de contas, pensa ele, um cientista de fato responderia às refutações ou contra-provas
apresentadas.
Em maio e em setembro do mesmo ano, escreve mais duas cartas, acrescentando
dados experimentais produzidos nesse período, ainda esperançoso. Nenhuma resposta por
parte de Einstein. Finalmente, em outubro de 1941, Reich escreve a Einstein, estranhando a
descortesia e a contradição de seu silêncio, dado o entusiasmo inicial. “[...] se você não
quisesse continuar, poderia simplesmente ter escrito que não estava interessado e que não
queria ter nada a ver com isso [...]” (REICH, 1999, p. 123). Sim, o estranho silêncio de
Einstein. Essa carta igualmente fica sem resposta. Reich solicita à secretária de Einstein a
devolução do aparato, que só então é feita.
Em carta à Weinberger, cientista ligado à Radio Corporation of America, em
dezembro, Reich comenta:
[...] a diferença de temperatura, por exemplo, foi testemunhada por Einstein, que não
69
Infeld.
179
acreditava que pudesse ser demonstrada, até testemunhar isso. Mas então, um
assistente seu encontrou uma “palavra” para explicar e descartar isso. Mas esse
“excelente” cientista sequer se incomodou em controlar sua própria objeção. Se ele
tivesse tido este cuidado, ele teria fixado o termômetro de controle no mesmo nível
sobre a mesa, sobre a qual estava o aparato orgônico, e ele teria que admitir que a
sua explicação sobre calor vindo do teto em direção à mesa por convecção não se
sustentaria[...] e eu tenho a impressão que você subestima a irracionalidade no
comportamento dos cientistas [...]. (REICH, 1999, p. 127)
Paradoxalmente, a frustração com a atitude de Eistein gerou resultados experimentais
formidáveis. Novos experimentos, mais sofisticados e desenvolvimento de teorizações
seguem-se a isso. Reich pensa em escrever e publicar a história desse encontro, mas mantém-
se reservado quanto a isso, pensando em preservar Einstein e em não ser descortês como ele.
Passa-se todo o ano de 1942 e o de 43. Em fevereiro de 1944, Reich ouve rumores sobre
Einstein ter replicado seus experimentos e não ter encontrado os mesmos resultados. Esses
rumores, por sua vez, teriam tido origem em um ex- aluno europeu de Reich que fazia, então,
forte campanha contra ele no meio psicanalítico. Tendo sido sempre perseguido por rumores
sobre a sua sanidade mental e pensando na continuidade do seu trabalho, Reich decide
publicar um artigo, resumindo o seu ponto de vista sobre os acontecimentos envolvendo
Einstein e pede que um colaborador, Theodore Wolf, então editor de uma publicação sobre
orgonomia, escreva a Einstein, comunicando isso. Em 15 de fevereiro de 1944, Einstein
replicou, avisando que Reich não tinha o direito de publicar nada sem sua permissão, que se
isso fosse feito ele tomaria medidas para evitar que seu nome fosse usado “por razões de
publicidade”.
Reich escreve novamente, rejeitando os insultos e dizendo que, por três anos, reteve a
ideeia de publicação e que sempre tratara Einstein com a maior consideração, mas que, agora,
seus inimigos tratavam de espalhar rumores novamente 70 e ele tinha que tomar uma posição.
Em resposta, de forma bem mais branda, Einstein afirmou que nenhum rumor eventualmente
existente teria sido espalhado por ele e que a razão de não ter respondido era o fato de que
“[...] formei uma opinião, no melhor da minha habilidade, e não sou capaz de gastar mais
tempo nessa questão” (REICH, 1999, p. 227).
Não houve mais contatos entre eles. O “Caso Einstein” foi publicado. Nele, Reich
apresenta o acumulador orgônico, seu contato com Einstein e posterior desenvolvimento dos
experimentos. Nos próximos anos e na década de 50, teve que se defender de uma acusação
70
Seus inimigos sempre o acusaram de insanidade, sua ex-mulher afastou as filhas, alegando a mesma coisa,
afastamento este que lhe trouxe muito sofrimento. Uma de suas filhas, Lore, hoje uma psicanalista, relata como,
quando criança, era levada a tratamento psicanalítico com uma profissional que passava as sessões convencendo-
a que seu pai era louco. Eva, sua outra filha, depois de adulta, formou-se em medicina e tornou-se uma das mais
ardorosas defensoras do trabalho do pai. Esse estigma teve tanto sucesso que, alguns anos atrás, por ocasião do
lançamento em português de uma de suas obras, um articulista de um jornal de grande circulação, no Rio,
mencionou o “fato” de Reich ter falecido em um hospital psiquiátrico, ao invés de em uma prisão.
180
de fraude feita pela Food and Drug Administration71 (FDA). Em circunstâncias jurídicas
incomuns, foi condenado a dois anos de prisão, tendo falecido na prisão em 1957. Também
por ordem judicial, os acumuladores foram desmantelados e destruídos e seus livros, aqueles
que continham a palavra orgone, mesmo os de conteúdo psicanalítico e clínico, foram
confiscados e QUEIMADOS, em 1957 e em 1960, sem que sequer uma organização de
direitos civis protestasse contra isso.
71
Durante cerca de 10 anos, essa organização federal gastou 8% do seu orçamento, anualmente, para pressionar
um grupo de trabalho que, nos seus melhores momentos, chegou a ter não mais de 150 associados.
181
Tendo sido persona non grata nos campi universitários durante os anos 50 e 60, depois
disso, voltou a receber convites, geralmente falando para plateias imensas. Em 1973, a BBC
fez um documentário de 30 minutos sobre ele.
Um sumário das principais ideias de Velikovsky:
Antes e durante a história da humanidade, a terra sofreu eventos cataclísmicos.
Há evidências destas catástofres nos registros geológicos e arqueológicos.
Os eventos ocorridos durante a história da humanidade permanem sob a forma
de mitos, lendas e história escrita de todas as culturas e civilizações da Antiguidade.
Cunhou o termo “amnésia cultural”, de base psicanalítica, para descrever como
esses eventos vieram a ser considerados mitos, nada mais.
As causas desses eventos teriam sido choques da terra com outros corpos
celestes, inclusive Júpiter e Vênus, que teriam ocupado outras órbitas anteriormente,
mas ainda dentro do período da história da humanidade.
Para explicar essas mudanças na mecânica celeste, Velikovsky propunha que o
eletromagnetismo tinha um papel muito mais central do que o admitido em um
referencial gravitacional newtoniano.
Desenvolveu uma cronologia revisada, em que o exodus é colocado como
contemporâneo à queda do reinado egípcio médio. Argumentava que isso eliminava
idades das trevas fantasmas e tornava possível considerar literalmente tanto os relatos
bíblicos, como os de Heródoto.
Acredito que a exposição, aqui, de alguns recortes da correspondência e do relato dos
encontros entre esses dois homens é a melhor maneira de dar sequência à minha análise da
relação entre eles:
Carta à Einstein, de 26/8/1952:
[...] quando, por acaso, nos encontramos no lago, eu percebi que você estava furioso
comigo pelo meu “mundos em colisão” [...] de voce eu não esperava isso [...] um
físico não está autorizado a dizer a um historiador o que ele pode encontrar no
passado, mesmo se este encontra contradições entre os alegados fatos históricos e
nosso conhecimento das leis naturais. (VELIKOVSKY, 2013)
Em resposta, Einsten escreve a Velikovsky, em 27/08/1952:
[...] a razão da enérgica rejeição das opiniões apresentadas por você, reside não na
suposição (assumption) [grifo de Einstein] de que no movimento dos corpos
celestes, somente gravitação e inércia são os fatores determinantes. Ao contrário, a
razão reside no fato [grifo novamente] de que com base nisso foi possível calcular as
modificações temporais das localizações estelares no sistema planetário com uma
precisão inimaginável [...] contra precisões deste tipo, especulações como as
colocadas por você não são levadas em consideração por nenhum perito. Por isso,
seu livro deve parecer a este perito como uma tentativa de enganar o público. Eu
devo confessar que a princípio tive a mesma impressão [...]. (VELIKOVSKY,2013)
182
Em 10/9/1952, Velikovky:
[...] você diz que o fato da exata correspondência entre os movimentos planetários e
a teoria, prova a correção da mesma [...] o fato da correspondência entre teoria e
posição dos planetas foi justamente o argumento usado pelo sistema ptolomaico e
contra a teoria heliocêntrica. Por mais de duas gerações, até 1600, não era a igreja
católica a maior oponente da teoria de Copérnico, e sim os cientistas. Seu maior
argumento era a sua capacidade de prever posições planetárias, conjunções e
eclipses...e como faziam isso? Pela contínuo ajustamento das teorias às observações,
e as observações à teoria. O mesmo se passa hoje em dia [...]. (
O diálogo entre ambos prossegue, amistoso, até a morte de Einstein. Ora como
correspondência, ora através de encontros pessoais. A narrativa desses diálogos revela duas
pessoas empenhadas numa discussão frutífera, mas o que mais chama a atenção é a disposição
de Einstein em aceitar Velikovsky como um debatedor à altura, sem concessões. Os debates
são recheados de comentários, não somente de cunho epistemológico e filosófico, mas
também de teorizações e questionamentos, embasados, da suficiência de certas teorias
científicas e da posição de Einstein.
Pouco tempo antes da morte de Einstein, houve o que seria o último contato entre eles,
que Velikovsky descreve. Em um certo momento da conversa, Einstein diz: “[...] Eu li
novamente ‘Mundos em colisão’. É um livro de importância incomensurável, e que cientistas
deveriam ler”.
Velikovsky comenta seus próprios pensamentos: “estas palavras... ouvi-las... não
percorri eu um longo caminho?...”.
Mas Einstein continua: “[...] mas por que você quer mudar a teoria da evolução e a
mecânica celeste contemporânea?”.
forma corajosa, politicamente falando. Foi vigiado pelo FBI72 por todo o tempo da sua
permanência nos EUA, assim como Reich. Terá ele reagido mal, posteriormente, à
possibilidade de um retorno da teoria do éther, no sentido de abalar as suas próprias teorias? A
história do seus encontros com Velikovsky parece permitir essa premissa. A carta ofensiva
enviada a Wolf, em que acusa Reich de buscar publicidade às suas custas, e a desconfiança
quanto às reais intenções de Velikovsky, inicialmente, sugerem algo.Tenho razões para crer,
concordando com Reich, que seu comportamento foi especialmente reativo, de um ponto de
vista emocional, mas uma análise mais profunda disso fica de fora do escopo deste trabalho.
O leitor, acompanhando as descrições ao longo deste, entenderá o comentário sobre quando a
razão “[...] remete não à compreensão dos mecanismos, mas a seu controle, em que o ‘horror
do ininteligível’ é aplacado pela possibilidade de submetê-lo ao controle” (CHERTOCK;
STENGERS, 1990, p.13).
Em 1934, W. Reich foi expulso tanto do partido comunista, como da Associação
Internacional de Psicanálise (IPA).
Em uma vida de permanentes mudanças e busca de exílio seguro, desde antes da
segunda guerra, sempre acusou os comunistas73 de moverem uma campanha orquestrada
contra sua pessoa e suas ideias. O que pareceria uma paranóia facilmente descartável cede
lugar à preocupação quando levamos em conta que:
1 - Infeld, o assistente de Einstein, depois de residir no Canadá, decidiu retornar à
Polônia, sua terra natal, mesmo durante a vigência do stalinismo.
2 - R. Oppenheimer, físico ilustre e diretor do Projeto Manhattan, quando procurado
por Eleanor Roosevelt74, que indagava sua opinião sobre Reich, disse que este era uma fraude.
Por sua vez, Oppenheimer dialogava com Fenichel, psicanalista anteriormente discípulo e
admirador de W. Reich, mas responsável posteriormente por sua difamação. Fenichel era
marxista e definiu Oppenheimer como um “jovem marxista” (JACOBI, 1983, p. 124).
Causando ainda estranhamento:
Peter Mills, advogado durante anos de W. Reich e de sua fundação, tornou-se
procurador público do Estado do Maine em uma injunção contra Reich a partir da
investigação levada a cabo pela FDA.
72
Nos arquivos do FBI, facilmente acessíveis pela internet, contam-se cerca de 1800 páginas com registros sobre
Einstein, assim como cerca de 900 sobre Reich. Esse conteúdo acha-se disponível em função da lei “Freedom of
Information Act”.
73
Reich foi o responsável por desenvolver centros de atendimento a trabalhadores que chegaram a ter mais de
50.000 filiados, mas, depois, desencantou-se com o comunismo, denominando-o fascismo vermelho. Seus livros
foram banidos tanto na Alemanha nazista, quanto na Russia comunista.
74
Ativista dos direitos humanos e Primeira Dama dos Estados Unidos no período de 1933 a 1945.
184
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo percorreu uma trajetória em que diferentes campos de disciplinas e temas
foram abordados. Algumas vezes, a relação entre os trabalhos foi visivelmente direta, muitas
outras vezes, bastante indireta, na abordagem do tema Física e Psicanálise: a Orgonomia de
Willhem Reich e a fusão com o objeto como complementação da objetividade científica como
método e referencial. O próprio título é extenso, em uma tentativa de cobrir diferentes ângulos
do estudo. Física, Psicanálise, Orgonomia, práticas e técnicas corporais, experiências
pessoais: todo um conjunto de produções foi empregado no intuito de asseverar a
possibilidade e, até mesmo, a necessidade de se dar estatuto válido e semelhante ao científico
ao tema fusão com o objeto, como instrumento de produção de Conhecimento. A Orgonomia
de Wilhem Reich foi o fator evocador principal e referência primeira deste trabalho, em
função dos diferentes campos do saber que o seu desenvolvimento teve que cobrir e por ser,
de longe, o referencial teórico menos conhecido profundamente, embora o mais suficiente.
Esta disciplina, Orgonomia, tem não somente o mérito de traçar uma diretriz a) compreensiva,
que interliga a subjetividade às ciências naturais, mas também fornece o ponto de partida
epistemológico ao postular essa subjetividade como sendo ao mesmo tempo pessoal e
dependente das vicissitudes da história de cada um, no sentido freudiano, e b) pertencente às
mesmas estruturas elementares funcionais da construção da realidade, como examinado na
Orgonomia.
Os dados, estudos e vivências, que encaminham o tema mencionado para um lugar
central em termos epistemológicos e ontológicos, dão-se muitas vezes apoiados em protocolos
científicos, mas nem sempre. O desafio de alçar a subjetividade para um lugar diferente
daquele, em que é importante para produzir hipóteses, para o de também Conhecer é o mesmo
que para todos os os saberes: como distinguir conhecimento falso, de verdadeiro? Disso
decorre parte do título deste trabalho, como complementação da objetividade científica, e não
substituição dela. Esse detalhe significa validação do método científico, mas não sujeição
do(s) saber(es) ao método, de forma total e definitiva. De fato, a Orgonomia, no pensamento
funcional, propõe um método de pesquisa e de pensamento que é complementar ao clássico
científico.
Embora minhas experiência pessoais, como as mencionadas no texto, não possam ser
validadas apenas pelo fato de serem consideradas por mim valiosas, no conjunto das
apresentações, elas podem existir como apoio e complementação de resultados em pesquisas
de temas considerados exóticos ou insólitos. Mais ainda, como no viés reichiano são as
186
buster são máquinas, cujo desempenho reside menos no modo de sua construção e mais no
como da sua utilização. Não só seus efeitos somente são alcançados dependo de condições
externas a eles, as condições atmosféricas, como seu manejo é apoiado nas condições
biofísicas do operador. A fluidez e sutileza das condições atmosféricas, no referencial
orgonômico, fazem com que seja uma capacidade estética, emocional e sensorial do operador
o elemento central. É na capacidade de contato orgonótico do operador que reside o seu
potencial. Seu uso e manipulação jamais poderá ser massificado.
A relacionalidade é outra característica que se soma aos já apresentados. De certa
forma, é elemento comum a todos os estudos apresentados e não poderia ser diferente. O
horizonte descortinado é o da existência de uma dimensão de conexão subjacente entre
eventos, conexão que pode transgredir a dimensão temporal – em trabalhos como os de Pauli
e Jung e nas pesquisas do Instituto PEAR. Por mais estranho que seja, os eventos que deram
ensejo a essas teorizações devem ser levados a sério.
O tema do relacional não poderia deixar de lado a questão sujeito-objeto, observador-
observado. Hegel, a dialética, o materialismo dialético e a MQ foram temas que receberam
alguma atenção, menos do que a devida, mas a suficiente para contribuir com a minha
abordagem do relacional.
Procurei enfatizar, no meu texto, a insuficiência e a incoerência do referencial
filosófico materialismo-dialético e como o viés da interconexão entre as coisas, quando
aceito, utilizado e argumentado por alguém, como é o meu caso, necessariamente leva a
criticar o referencial materialista – pelo menos como este é definido nos autores que
apresentei – e a adotar um “energeticista”. Coloco o termo entre aspas, porque no caso do
Orgone, postulado por Reich e aceito por mim, ele tem propriedades que incluem uma
dimensão formal, matemática, e utilizo matemática no sentido de ela ser uma descoberta e não
uma criação do homem. O termo energia representa mais do que força, assim como
arquetípico, na formulação Jung-Paulineana, representa mais do que psiquismo. A citação
reichiana no item 3.4, que afirma:
Desde que comecei minhas pesquisas, sempre esteve claro para mim que meu
trabalho estava submetido a uma lógica objetiva, que a princípio não podia ser
entendida [...] entender essa lógica e sua racionalidade, no desenvolvimento de
observações, hipóteses de trabalho, teorias e novas descobertas, é, em si mesmo,
parte principal do meu trabalho de pesquisa. (REICH, 1999, p. 406)
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