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34372-Texto Do Artigo-85230-1-10-20200928

O documento descreve o processo criativo dos trajes de cena no Théâtre du Soleil. Ele é baseado nos depoimentos das figurinistas Marie-Hélène Bouvet e Nathalie Thomas e da atriz Juliana Carneiro da Cunha. O documento destaca a participação efetiva dos atores no desenvolvimento dos trajes em um processo de criação coletiva.

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34372-Texto Do Artigo-85230-1-10-20200928

O documento descreve o processo criativo dos trajes de cena no Théâtre du Soleil. Ele é baseado nos depoimentos das figurinistas Marie-Hélène Bouvet e Nathalie Thomas e da atriz Juliana Carneiro da Cunha. O documento destaca a participação efetiva dos atores no desenvolvimento dos trajes em um processo de criação coletiva.

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Dossiê música e cena

do Théâtre du Soleil
Vestindo o sol

A criação coletiva e os trajes de


cena do Théâtre du Soleil

Collective creation and costumes


at the Théâtre du Soleil

Fausto Viana
Universidade de São Paulo
E-mail: [email protected]
Resumo
O artigo revisita o processo criativo dos trajes no Théâtre du Soleil fundamen-
tado nos depoimentos das figurinistas-costureiras Marie-Hélène Bouvet e
Nathalie Thomas e no de Juliana Carneiro da Cunha, uma das atrizes há mais
tempo na companhia francesa. Por meio da descrição da colaboração de qua-
tro atores – Georges Bigot, a própria Juliana Carneiro da Cunha, Shaghayegh
Beheshti e Simon Abkarian –, a pesquisa aponta para a efetiva participação do
elenco no processo de criação dos trajes. As principais referências bibliográ-
ficas são VIANA (2016; 2004) e FÉRAL (1998; 2010).

Palavras-chave: Traje de cena, Théâtre du Soleil, Criação coletiva.

Abstract
The article revisits the creative process of costumes at the Théâtre du Soleil
through testimonials given by costume designers-seamstresses Marie-Hélène
Bouvet and Nathalie Thomas and Juliana Carneiro da Cunha, one of the longest-
running actresses in the French company. Through the description of the
collaboration of four actors – Georges Bigot, Juliana Carneiro da Cunha herself,
Shaghayegh Beheshti and Simon Abkarian – the research highlights the
effective participation of the actors in the process of creating the costumes.
The main bibliographic references are VIANA (2016; 2004) and FÉRAL (1998;2010).

Keywords: Costume, Théâtre du Soleil, Collective creation.

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Vol. 14, Ano 5 | Dossiê música e cena do Théâtre du Soleil
Os trajes de cena no Théâtre du Soleil
(...) eu ainda confirmo: provavelmente, uma das últimas aventuras
modernas é participar de uma trupe de teatro.
Ariane Mnouchkine.

Aquilo que o público vê quando tem início um espetáculo do Théâtre du Soleil


é o produto do trabalho de um grupo de pessoas, uma equipe. Estão ali, para
apreciação, as obras dos iluminadores, músicos, artistas da cena, maquiado-
res, peruqueiros, costureiras, figurinistas, cenógrafos e outros.
Se a busca por uma integração entre todos os elementos que compõem a
cena é uma investigação incessante de Ariane Mnouchkine desde o início de
sua jornada com uma trupe de teatro em 1964, a criação coletiva também é
uma ação constante. A Enciclopédia Itaú Cultural define criação coletiva da se-
guinte forma:
Processo de construção do espetáculo em que o texto é gerado pelo
jogo dos atores que, guiados ou não por um diretor, debruçam-se
sobre um tema, uma história ou qualquer outro tipo de material. Em
muitos casos, não apenas a função do dramaturgo é substituída pelo
trabalho dos intérpretes, como também outras funções de criação,
como o cenógrafo, o figurinista, o iluminador, o diretor musical.
Em geral, os atores que optam pela criação coletiva estão no contexto
do teatro de grupo e têm como objetivo ampliar sua participação, dei-
xando de ser apenas aqueles que se encarregam de criar personagens
e representá-las para se tornarem autores e produtores1.

1 CRIAÇÃO Coletiva. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú
Cultural, 2020. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo622/criacao-coleti-
va. Acesso em: 15 ago. 2020. Verbete da Enciclopédia.

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Vol. 14, Ano 5 | Dossiê música e cena do Théâtre du Soleil
Patrice Pavis a define da seguinte maneira:
Espetáculo que não é assinado por uma só pessoa (dramaturgo ou
encenador), mas elaborado pelo grupo envolvido na atividade tea-
tral. Com frequência, o texto foi fixado após as improvisações duran-
te os ensaios, com cada participante propondo modificações (...) É
necessária toda uma pesquisa histórica, sociológica e gestual para
a elaboração da fábula (Théâtre du Soleil para 1789 e 1793). Acontece
de o ator começar por uma abordagem puramente física e experi-
mental da personagem construindo sua porção da fábula em função
do gestus que teria sabido encontrar. (1999:79)

O próprio Pavis talvez esclareça uma dúvida que pode eventualmente ter sur-
gido para o leitor: o teatro não é uma arte coletiva? Ele enfatiza que sim, e que
a criação coletiva “nada mais faz do que sistematizar e revelar uma evidência
esquecida: o teatro, em sua realização cênica, é uma arte coletiva por excelên-
cia, um relacionamento de técnicas e linguagens distintas” (idem).
No Théâtre du Soleil o destaque, quando tem início o espetáculo, é o todo
da encenação: a sonoridade aperfeiçoada dos atores, o rigoroso trabalho cor-
poral, a composição cênica, tudo aquilo que leva a perceber o respeito que
aquela companhia tem pelo seu público. No que tange ao item visualidade, é
impossível ignorar o trabalho desenvolvido pela companhia nos trajes de cena,
a razão de ser deste artigo. Não se deve esquecer, no entanto, que aqueles
trajes de cena, com sua execução precisa, seus acabamentos primorosos e,
acima de tudo, de concepção muito elaborada, são construídos dentro de um
processo comum e servem para o corpo de um ator, que será iluminado, que
fará parte de um ambiente sonoro composto pela musicalidade, dentro de um
cenário específico. Fora deles, estes trajes são portadores da memória da cena,
vestígios teatrais que trazem em si traços de um espetáculo do Soleil, mas que
exibidos em uma exposição ‒ como muitos já o foram no Centre National du
Costume de Scène, em Moulins, na França, pois são propriedade hoje, por trans-
ferência do próprio Théâtre du Soleil, da Bibliothèque Nationale de France ‒
não permitem a reconstrução de um espetáculo. Fornecem apenas algumas
diretrizes sobre eles. (Ver o artigo O Traje de cena como documento, do mes-
mo autor deste artigo, na revista Sala Preta, disponível em http://www.revistas.
usp.br/salapreta/article/view/138645, acesso em: 15 ago. 2020.)

As figurinistas-costureiras ou costureiras-figurinistas
No Théâtre du Soleil, todas as atividades costumam ser divididas. Assim, os
atores podem ajudar a cozinhar, já que as refeições são compartilhadas. Podem
também ajudar na limpeza, na construção de cenários, no transporte de ma-
teriais diversos e também na costura, como contou em entrevista a atriz Juliana

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Vol. 14, Ano 5 | Dossiê música e cena do Théâtre du Soleil
Carneiro da Cunha: ela, por uma questão física, não vai
carregar madeiras pesadas, como os atores mais jovens,
mas sempre vai ajudar na sala de costuras (VIANA 2004:558).
Nesta, imperam duas figuras de grande importância na
elaboração dos trajes: Nathalie Thomas (que colabora com
o Soleil desde 1976) e Marie-Hélène Bouvet (desde 1982)
(figura 1). Annie Tran (figura 2) tem sido, desde 1990, uma
presença constante. Outras pessoas participam também
da criação, finalização e acabamento dos trajes.
No Soleil, as costureiras não exercem apenas as fun-
ções de uma costureira comum: elas são parte ativa do Figura 1: Marie-Hélène Bouvet e
processo criativo e é muito interessante perceber como Nathalie Thomas na sala de figuri-
existe, entre as três, uma sinergia que as ajuda a trabalhar nos do Soleil. Fonte: theatre-du-
juntas, com diferentes habilidades. -soleil.fr, acesso em: 17/ago/2020.
Nathalie Thomas é uma senhora bastante tímida, que
estudou figurino na Escola Superior Nacional de Artes e
Técnicas de Teatro (Ensatt), e
Trabalhou em diversos ateliês (Comédie-Française,
Société Française de Productions). Trabalhou en-
tre outros com Jacques Schmidt, Colette Deroy-
Victor, Mine Barral-Vergès. Ela colabora com o
Théâtre du Soleil desde 1976. Entrou na época da
realização do filme Molière, e depois voltou em
1979 para Mefisto, quando colaborou com Daniel
Ogier na realização dos costumes. (FÉRAL 1998:72)
Figura 2: Annie Tran no backstage
Nathalie pode ser descrita como uma pessoa reservada, do espetáculo Os efêmeros, em
que não gosta de estar envolvida na agitação. Para isso ‒ São Paulo, em 2007. Fonte:
a agitação, o lidar com os atores nos ensaios, conversar Maurício Alcântara, fotógrafo.
com a diretora Ariane Mnouchkine ‒ existe Marie-Hèlène.
Esta é expansiva, faladora, vivaz, dá ideias, pergunta... Chegou ao Soleil em 1982,
depois de um programa de readequação profissional na França, para aqueles
que queriam mudar de carreira. Não saiu nunca mais. Annie Tran é uma pes-
soa muito educada, simpática, daquelas que de tão tímida sorriem com uma
inclinação de cabeça: é a pessoa dos detalhes e dos acabamentos. Marie-
Hélène a descreve como sendo “asiática, é precisa e perfeita, e trabalha mais
na máquina de costura” (BOUVET 2007:120).
Liliana Andreone, que é relações-públicas do Théâtre du Soleil, explicou
Há um pouco de todos nos cenários e figurinos. A assinatura, na verdade,
é coletiva. Mas naturalmente há uma relação distinta. Annie tem uma re-
lação com a máquina de costura, faz quase tudo e muito bem. Nathalie
tem uma formação clássica de costura de teatro. Então, para ela, é muito
mais fácil interpretar sobre o molde uma ideia que lhe dão. A importân-

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cia da Nathalie é, sobretudo, nas obras clássicas. E Marie-Hélène tem um
dom que para o Soleil é precioso, que é saber interpretar o que Ariane,
às vezes, não sabe dizer com as palavras. E buscar uma solução a uma
ideia de Ariane, que tem que ser muito rápida. E a interlocutora para isso
é Marie-Hélène. A magia de encontrar a solução rápida e com calma é
Marie-Hélène. Depois que ela encontra a solução, entra a Nathalie para
organizar de outra maneira e Annie para fazer a costura. (BOUVET 2007:120)

Marie-Hélène e Nathalie explicam que assumiram, já no ciclo de Os Átridas, as


“múltiplas tarefas implícitas no trabalho de uma oficina de figurinos: seleção
de tecidos, escolha das cores, tingimento, corte, costura, propostas de figuri-
nos, esboços, realizações e provas de figurinos” (FÉRAL 1998:72).
Nathalie Thomas relatou em 1992, na revista Théâtre Aujourd’Hui, que o
processo criativo no Soleil era bastante diferenciado de outros processos em
que trabalhou. No Soleil, ela nunca estava sozinha para decidir, e que os figu-
rinos não eram criados da forma tradicional, que seria esta: depois da discus-
são com o diretor e produtor, o figurinista executa os desenhos, eles são es-
colhidos, aprovados e assim permanecem até o final da temporada.
No Soleil, elas não fazem nem desenhos nem modelos. Dentro do processo
colaborativo, os figurinos estão sempre suscetíveis a mudanças. A função do
figurinista passa a ser mais ampla: ele tem que assistir aos ensaios, observar
o que os atores estão propondo e como ela diz “é só com a evolução do tra-
balho deles que os figurinos vão tomando forma. Eu me ajusto ao processo de
criação enquanto também trago as minhas reflexões. Eu não sou apenas uma
simples executante” (idem).
Os figurinos vão mudando ao longo dos ensaios e até mesmo durante as
apresentações. Existe uma interação constante entre as costureiras-figurinis-
tas, os atores e Mnouchkine, que deixa, no princípio dos trabalhos, uma car-
tela de cores definida para cada espetáculo. Mesmo que ela mude depois.
O processo criativo dos atores é estimulado não só a partir de livros sobre
teatro ou das técnicas específicas de uma determinada cultura. “Desta forma,
nosso trabalho nunca é uma cópia pura e simples. As influências raramente
acontecem só na forma que as coisas acontecem. Tudo passa pela ordem da
recriação”(idem), esclarece Nathalie.
Cada novo espetáculo traz uma nova proposta e os atores têm que impro-
visar, pensar, sugerir para que cada cena atinja o patamar artístico proposto
por Mnouchkine. A sala de figurinos, ao lado da sala de ensaios, é uma fonte
rica de pesquisa para os atores, que podem usar as peças do acervo para fa-
zer propostas. No Soleil, os ensaios não acontecem com “roupas de ensaio” no
sentido mais comum de uma roupa simples, ou uma roupa preta. Um dia típi-
co de ensaios no Soleil, como esclarece Mnouchkine, é assim:
Chegamos às dez para às nove. Tomamos café e, às nove horas, come-
çamos. Quer dizer, fazemos o aquecimento. Este vai depender do espe-

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táculo. Ou é simplesmente um aquecimento, ou um aquecimento e
dança como para Les Atrides. Depois, decidimos quais são as cenas que
serão trabalhadas naquele dia, quem experimentará o quê em qual
cena. Às vezes tudo fora de ordem. Então, as equipes se formam de
acordo com as diferentes distribuições propostas. Os atores vestem seus
figurinos - não ousaria dizer que já estão com os figurinos definidos,
porque ainda não estamos nessa etapa. Então, eles põem os figurinos,
maquiam-se, parecem uns repolhos... e começamos a ensaiar.
No primeiro mês de ensaio, paramos normalmente às sete da noite.
E, em pouco tempo, começamos a parar às oito, às nove, às dez. Aí
jantamos. E depois recomeçamos. (FÉRAL 2010:123)

Os figurinos ‒ e o trabalho das figurinistas ‒ já começam no primeiro dia de


ensaio. A iniciativa de buscar peças, procurar e inventar sempre parte dos ato-
res. “A integração entre as duas figurinistas e os atores se dá gradativamente”,
explica Mnouchkine (idem:100).
A relação vai atingir níveis muito pessoais. Marie-Hélène explica que a fun-
ção de figurinista é complementada também com a função de camareira:
Nós os conhecemos por inteiro, os atores! É como se fôssemos as
mães deles. Estamos sempre cuidando deles. Às vezes, para vestir
um ator, é preciso ser forte. O maior problema não é colocar o figu-
rino propriamente dito, mas ter a paciência necessária. Às vezes eles
ficam com uma cara! “Ai, você está me apertando! Eu não estou bem,
você está me matando!” Tudo depende do grau de ansiedade com
que eles estão entrando no palco, se estão com medo ou não, se es-
tão em forma, se dormiram bem aquela noite, se beberam à noite...
(FÉRAL 1998:76)

Junto a esta dose de psicologia, há a agilidade:


Durante os ensaios, estamos por lá... de repente, chega um e diz “pre-
ciso que você me ajude em uma troca rápida”, aí estou lá. E, pouco
a pouco, nós vamos entendendo o que devemos fazer, onde deve-
mos ajudar, pois trabalhamos o tempo todo com eles. Por exemplo,
se há uma troca de roupa que deve ser feita rápida, nós preparamos
o figurino, todos os acessórios e quando o ator sai da cena, nós fa-
zemos a troca, às vezes em um minuto. Se precisar mudar a peruca,
o penteado, o figurino... (BOUVET 2007:119)

As figurinistas-costureiras têm claro o princípio da criação coletiva e de uma


das melhores definições de Ariane Mnouchkine: a de que as personagens vêm
ao encontro dos atores. Isso fica evidente quando Marie-Hélène diz que “não
é o figurino que queremos ver, mas a personagem. (...) Não. Não desenhamos.
Porque não podemos prever um traje antes que o ator encontre sua persona-

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gem. Pode-se dizer que a personagem se cria ao mesmo tempo que sua indu-
mentária. Mesmo para os figurinos de época, não há desenhos (BOUVET 2007:121).
A modelagem dos trajes é feita sobre o corpo dos atores por Nathalie Thomas
assim que as decisões ‒ nem sempre definitivas ‒ são tomadas.
O trabalho parece, e de fato é, muito duro, mas elas deixam claro o prazer
que têm em conviver com os atores e fazer parte desta trupe e não trabalhar
num ateliê comum de produção de trajes:
O que é mais agradável aqui é que não se vê os atores nas provas
de figurinos: nós os vemos nos ensaios, no palco. Nós os vemos quan-
do estão com dor de barriga, quando dão risada. Comemos com eles.
Temos uma relação diferente. Quando se trabalha num ateliê, não se
tem ligação com o teatro. Nós, além disso, temos a sorte de trabalhar
num teatro de verdade! Eu teria dificuldade de trabalhar só num ate-
liê. (FÉRAL 1998:79)

Georges Bigot
Georges Bigot é um ator francês, nascido em 1955. Ao chegar ao Théâtre du
Soleil em 1981, já tinha terminado sua formação como ator, com foco no tra-
balho corporal, e trabalhado em teatro e TV. Sobre o trabalho preciosista de
Bigot, o crítico francês Olivier Berardi escreveu:
O que Georges Bigot faz no palco é único, não único no sentido de
que ele tem seu próprio estilo - qualquer ator pode dizer isso - mas
único no sentido simples de que ninguém mais pode fazer o que ele
faz. Georges Bigot é, antes de tudo uma voz (...); parece que ele her-
dou sua dicção de Paul Meurisse e sua energia bruta de Brando. Bigot
é uma máscara em forma humana que, quando voltada para o pú-
blico, bate em você como um soco no estômago. Todo mundo que o
viu subir ao palco como Ricardo II, ou Príncipe Hal, ou Sihanouk ou
em L’Indiade sabe exatamente do que estou falando.
(Disponível em: https://www.broadwayworld.com/chicago/article/
Theatre-Y-to-Welcome-Georges-Bigot-for-Shakespeare-Workshop-
20151009. Acesso em: 17 ago. 2020)

Josette Féral já havia publicado que Bigot declarou que “o figurino também
determina o que está por baixo, não só o ator que está ali, mas também a rou-
pa íntima que ele veste. Tudo deve estar em conformidade com o traje da su-
perfície, mesmo os trajes mais escondidos” (FÉRAL 1998:76). Nem todos os ato-
res trabalham com esta concepção de que até aquilo que não é visto no traje
tem importância na criação de uma personagem.
O ator francês, ainda, mas desta vez em procedimento que lembra a pro-
dução brechtiana, “não quer que faça nenhum de seus figurinos com tecidos

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novos. Ele acha melhor usar tecidos que já viveram”, como
conta Marie-Hélène Bouvet: “Quanto mais velhos, mais bo-
nitos” (FÉRAL 1998:76), ela diz.
Não é de admirar, portanto, a proposta que Bigot faz
para a indumentária do seu Príncipe Henrique, o filho do
rei, elaborado por ele em Henrique IV (1984), no Ciclo de
Shakespeare (1981-1984).
A figura 3 mostra Bigot na sala de costura, buscando
tecidos para criar o traje como se vê na imagem. São vá-
rias tiras de tecido que ele concebeu para dar à sua per-
sonagem a mobilidade que ele gostaria. Neste espetá-
culo, Mnouchkine, a diretora, propôs que os atores en-
trassem em cena saltando, já que luzes na ribalta de
aproximadamente 1,20 m os projetavam no espaço cêni-
co, magnificando as entradas. Como ator, sua proposta
foi criar um traje nobre, em tiras, que acompanhariam a
movimentação do ator e impregnariam o olho do espec-
tador, como preconizara o inglês Edward Gordon Craig,
cerca de 60 anos antes, para quem o cenário, os figuri-
nos, a música e os outros elementos deveriam se fundir
em apenas uma unidade. Figura 3: Georges Bigot
Não foi apenas o alto grau de maturidade artística de experimentando com tecidos.
Bigot que finalizou os trajes: os tecidos foram substituídos Fonte: Théâtre du Soleil (Martine
por tecidos nobres pelas figurinistas-costureiras, com a Franck)
concordância de Mnouchkine, transformando-os no im-
pressionante traje da figura 4, que foi o usado na tempo-
rada do espetáculo. Se no espetáculo parecia voar, hoje
repousa na BnF! Bigot saiu do Soleil em 1992.

Simon Abkarian
Se Georges Bigot se preocupava com o tecido e a qualida-
de do acabamento de seus trajes, por exemplo, Simon
Abkarian (1962), ator também francês descendente de uma
família armênia e chegado ao Soleil em 1985, é lembrado Figura 4: Henrique IV, com Georges
como um “especialista” não só na sua proposição de tra- Bigot. Fonte: Théâtre du Soleil
jes como na elaboração de adereços. (Martine Franck)
Féral (1998) assinalou que, para Simon, o peso do traje
ajudava o ator, e isso fazia com que seus trajes fossem
construídos em diversas camadas.
No ciclo de Os Átridas, Simon elaborou diversos personagens: Agamenon;
Aquiles; um corifeu; o Emissário; Orestes e a Ama ‒ sem contar que propôs a

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própria Clitemnestra, papel que só deixou de fazer com a
entrada de Juliana Carneiro da Cunha na companhia.
Nathalie Thomas descreveu que a participação de Simon
no processo criativo dos trajes foi uma constante. Mas na
criação dos adereços, por exemplo, “Simon teve mais (par-
ticipação), particularmente. Ele trabalhava até as quatro
da manhã em casa. Ele adorou fazer isso. E talvez tenha
sido ele quem lançou o estilo (dos adereços de cabeça).
Os adereços foram inspirados nos de kathakali, não foi
uma criação pura” (FÉRAL 1998:74).
Ela, em outro momento, diz que “a mesma coisa acon-
teceu com o traje de Agamenon. É um delírio do ator, que
o concebeu e atingiu inteiramente” (BRYANT-BERTAIL,
1994:18).
O próprio Simon Abkarian relata que
Desde a minha “aparição”, confrontada com o
texto de Ésquilo, era como se eu tivesse que me
fazer menor, e ficar ainda menor, e de repente
crescer, acordar. Sair do chão. Nós frequentemen- Figura 5: Simon Abkarian como o
te falamos de exumação, e nós sempre nos ar- Emissário, em Agamenon. Fonte:
rastamos por trás da paliçada para entrar na po- Théâtre du Soleil (Martine Franck)
sição, mas era uma viagem poética que durava
dez metros. Para os figurinos, cada um pesquisou: eu tinha que cons-
truir um traje por mês, eu fiz um adereço de cabeça com setenta
centímetros de altura. Eu subi no palco com o figurino, durou trinta
segundos ‒ para nós percebermos. Aquiles acabou com uma simples
meia na cabeça, mas era necessário que eu fizesse aquilo tudo, e
que Ariane visse” (WILLIAMS 1999:207)

A impressionante sequência visual atingida por Simon Abkarian pode ser vista
na obra de minha autoria O figurino teatral e as renovações do século XX, en-
tre as páginas 243 e 246. Ele e Catherine Schaub receberam os créditos nos
programas dos espetáculos por “concepção de acessórios de figurinos”. Ambos
saíram do Soleil em 1993.

Juliana Carneiro da Cunha


Juliana Carneiro da Cunha (1949) é uma atriz brasileira que chegou ao Théâtre
du Soleil em 1990 e continua lá até hoje, protagonizando inúmeros espetácu-
los memoráveis. É uma atriz de minúcias, de pequenos detalhes. Em São Paulo,
em 2003, explicou em entrevista para este autor como era a sua preparação e
como pensava em sua personagem antes do espetáculo A morte do caixeiro

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viajante, que fazia na ocasião com Marco Nanini, em breve período de afasta-
mento do Théâtre du Soleil:
Quando eu me preparo, é diferente aqui, porque estou num outro
grupo. Eu chego mais cedo, geralmente eu sou uma das pessoas que
chega mais cedo, eu gosto de chegar mais cedo, e: “Eu estou aqui”.
Eu não vou mais ficar pensando que eu tenho que tomar táxi, que
eu tenho que pegar condução. Aí eu tomo meu cafezinho, vou, e de-
pois eu, aqui, por exemplo, desço e fico passando na minha lembran-
ça o que me ajudou na criação. Por exemplo, a Linda, do Caixeiro
Viajante, eu repasso toda a ida dela ao porão, quando a luz da casa
se apagou e ela estava procurando um fusível. E atrás da caixa de
fusíveis tinha caído um pedacinho de um tubo de borracha. “Tem
uma conexão na ponta. Percebi na hora. E é lógico que na base do
aquecedor, tem uma nova torneirinha no tubo de gás”. Então eu re-
passo este texto porque sei que quando aquela noite começa, a Linda
já fez isto, e este foi o momento em que ela se deu conta que o Willie
está querendo se suicidar. Então eu vejo, eu desço as escadas do
porão, eu vejo a janelinha que é pintadinha de amarelo, aqui, que
dá para a grama aqui do lado. Eu vejo aquele porão onde tem a má-
quina de lavar roupa, onde tem umas ferramentas, tudo na minha
imaginação. Aí eu vou para o quarto dos meninos, eu toco muito na
madeira, daquelas camas, a gente não tem muitos objetos em cena,
mas aquilo tudo foi me ajudando a eu ficar parando de pensar na
minha irmã, na minha amiga, no banco, sei lá a gente sempre tem
mil coisas fazendo, resolvendo, e isso vai te dando aquele apoio,
aquele chão, para que quando a peça começar, a Juliana está bem
longe de lá, porque se a Juliana estiver ali é um terror. (...) O que é
preciso é muita calma para você sentir que você não é mais você.
Isto todo mundo tem que ter, você não pode ser você mesmo quan-
do está em cena. (VIANA 2004:549)

Bailarina de formação, sua disciplina é férrea e sua dedicação ao Théâtre du


Soleil, que ela conheceu sete anos antes de entrar na companhia, é total. Ela
diz sobre Ariane Mnouchkine que “ela tem com ela mesma uma exigência, mo-
ral, humanitária, de atitude, de comportamento em relação à sociedade e em
relação ao próximo, ela mesma se exige tanto em relação a isso que a gente
acaba praticando essas qualidades, eu diria”, afirmou na mesma entrevista.
Um dos maiores segredos de Juliana, ao que parece, é conhecer bem as re-
gras e segui-las minuciosamente. No que se refere aos figurinos, por exemplo,
ela descreve qual é o processo:
Neste processo de criação das personagens, a maquiagem e os cos-
tumes são importantes. Eles participam na transformação para que,
mesmo antes de começar a trabalhar, você já esteja transformado.

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A personagem que você cria com o figurino também corresponde a
uma imagem, a uma imaginação. Você se prepara de acordo com uma
imagem, uma visão que você tem. E esta é interior (refletindo sobre
o processo de criação da personagem). (FÉRAL 2010: 94)

Ao descrever os trajes do ciclo de Os Átridas, ela conta que também fez ade-
reços: “Esse colar aqui fui que eu fiz. E esse acessório de cabeça aqui também
fui eu que fiz, era uma espécie de tiara que eu amarrava atrás, na cabeça, e eu
tinha colocado algumas pérolas. Era bem simples a tiara dela” (Entrevista, 2003).
Como já visto, nas atividades cotidianas do Soleil, Juliana vai para a sala de
costura. Sua descrição de trajes é, como sua interpretação, minuciosa e muito
reveladora. Um exemplo é sua descrição dos trajes de Tambores sobre o dique:
Esta roupa que eu falei que foi construída em algodão, teve uma hora
em que a Ariane falou: “Eu não posso mais ter ideias com este figuri-
no em algodão. Vamos ter que construir em tecido”. O tecido era fibra
de abacaxi, aquela roupa que era uma calça, uma túnica e um manto,
que a gente teve que fazer para todas as pessoas que queriam fazer
Senhor Khang, a possibilidade de usar um verdadeiro costume, para
realmente saber como que você anda, qual a sua postura. Era para se
ter uma ideia real, em algodão não dava mais. A fibra foi 4.000 francos.
E nunca foi usada no espetáculo. Porque se deu conta que não era
isso. A Madame Li tem uma roupa mais taiwanesa. Se bem que como
tinha corte, tudo que era corte acabou ficando japonês, porque a gen-
te se deu conta que o desenho do costume japonês é muito mais te-
atral do que um outro que é mais marionete. Mas não é no Japão, a
peça não se passa especialmente no Japão. (VIANA 2004: 544)

Juliana, de maneira geral, trata no coletivo o desenvolvimento do trabalho, o


que torna suas declarações muito compatíveis com suas atitudes: Juliana é
pessoalmente acolhedora; profissionalmente, é uma das atrizes mais escolhi-
das para parcerias em cenas.
Nossas roupas todas tinham aquela alça, a gente tinha por baixo um
arméé, que é um gorgorão, que a gente fecha com velcro (nas duas
pernas, para dar suporte). Aí cada um vai como for melhor. Um dizia
que preferia que o suporte fosse no ombro, o outro que o suporte
fosse no corpete. Cada um vai se adaptando, a gente vai pedindo
para as costureiras e elas vão fazendo de acordo. Mas todo mundo
tinha estas alças na cintura, que eram feitas do mesmo tecido que
a roupa, porque todas as roupas, as de baixo, as de cima e as outras
‒ porque são camadas ‒ uma calça comprida, depois um quimono,
depois um outro quimono, tudo tinha que ter um corte no mesmo
lugar, para poder passar a alça e cada roupa, para juntar uma na ou-
tra, tinha que ter um velcro. Nas costas também tinha uma alcinha,

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porque havia necessidade de alguém segurando.
Eu fazia de conta que ele estava me guiando, mas
na verdade ele é que estava me seguindo. (VIANA
2004: 542)

O figurino, para Juliana Carneiro da Cunha, é uma parte


muito integrada do processo criativo desde o início, uma
prática que foi sendo fortalecida desde tempos remotos no
Soleil, e que ela sabe que faz parte também do processo
criativo de Ariane Mnouchkine – o que mostra o trabalho
coletivo por outra perspectiva, que não é só atender seus
anseios, as suas necessidades como artista-criador, mas
também o respeito pelo trabalho do outro – que, nesse
exemplo, fica figurado no trabalho de criação dos trajes.

Shaghayegh Beheshti
Quem conta sobre a criação de Perle é Maria-Hélène Bouvet:
Madame Perle começou a se criar na cabeça da
Shasha (como é chamada a atriz Shaghayegh
Beheshti) no Afeganistão, quando Ariane reali- Figura 6: Mme. Perle, uma criação
zou um estágio para os atores afegãos, jovens da atriz Shaghayegh Beheshti.
estudantes de teatro da Universidade de Cabul, Foto: Divulgação Soleil.
em 2005. Eram uns trinta atores, sendo que so-
mente três mulheres. Levamos figurinos do Théâtre du Soleil, e tam-
bém muitas coisas, da Ópera de Paris, Commedie Française, doações
de figurinos e materiais para criar uma companhia teatral no
Afeganistão. Levamos cenários, adereços, o máximo de coisas pos-
síveis. Os atores do Soleil também estavam lá com os atores afegãos
e eles trabalhavam juntos. Era um estágio de máscaras. A esta época,
Shasha trabalhava a Madame Pantalon, da Commedia dell’Arte.
Geralmente uma personagem masculina, mas ela quis fazer. E lá co-
meçou a trabalhar sua voz, sua postura... (BOUVET 2007: 117)

Shasha, como ela é conhecida, nasceu no Irã em 1974 e mudou para a França
com sua família em 1975. Completou um mestrado na Sorbonne Nouvelle e
desde 1997 tem participado de atividades no Soleil. Seu primeiro espetáculo
foi em 2003: O último Caravançará (Odisseias).
Destaca-se do depoimento de Marie-Hélène o surgimento embrionário de
uma personagem antes de surgir em cena, finalmente, em dezembro de 2006,
na Cartoucherie em Vincennes. Ressalta-se também a liberdade de uso do gê-
nero de uma personagem, inspirada no clássico Pantalon da commedia dell’arte
italiana. Bouvet continua descrevendo a gênese de Mme. Perle:

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Era completamente diferente do que é a Perle hoje, mas ali começou
o trabalho. Então, durante a criação de Os Efêmeros, ela propôs uma
personagem que se inspirasse em Madame Pantalon. Essa máscara.
E a voz, sobretudo. Assim, a própria atriz, mais que nós, foi criando
essa senhora, pouco a pouco, ao fim de cada ensaio. Ela foi traba-
lhando com a Juliana e, com o assistente de Ariane, finalmente en-
controu. Foi um trabalho diário. E quanto aos figurinos, ela usa muita
roupa de minha mãe. (BOUVET 2007: 118)

Marie-Hélène explicou que sua mãe tinha ido para um asilo, em um momento em
que estava muito obesa. A mãe tinha sido costureira e feito muitas roupas boas que
não serviam mais em seu corpo. “Eu recuperei todas estas roupas (...). Coloquei tudo
no meu carro, que ficou cheio de roupas até o teto. Cheguei ao teatro, coloquei tudo
sobre as araras e os atores avançaram como moscas (risos)” (BOUVET 2007:118).
O que talvez tenha gerado um impacto emocional foi o fato de que aque-
las roupas não tinham apenas uma história, elas tinham um vínculo emocio-
nal e afetivo com uma pessoa muito importante para a figurinista: sua própria
mãe. Mais impressionante ainda era o fato de que Mme. Perle era uma senhora
idosa, com distúrbios emocionais e que tinha um câncer gigantesco na região
abdominal, o que a levava a crer que estivesse grávida (!). Suas cenas – suas
“intervenções” no espetáculo Os efêmeros? – com Juliana Carneiro da Cunha
eram, com certo exagero, mas na medida exata para descrevê-las, lirismo puro.
Na ocasião da entrevista, no Teatro Laboratório da USP, em São Paulo, em
2007, Marie-Hélène ainda completou sua declaração mostrando como o traba-
lho coletivo no Soleil se dá de várias maneiras: “Há muita roupa da minha mãe
no espetáculo: na Gaelle, em personagens da Juliana... E não só nas roupas
que eu trouxe. A Liliana, o Jean-Jacques... tem roupa de todo mundo no espe-
táculo” (BOUVET 2007: 118). Liliana é Liliana Andreone, a responsável pelo con-
tato com o público que vai às peças e atividades do Soleil e que não tem ne-
cessariamente a ver com o trabalho que acontece no palco. Jean-Jacques é o
multifacetado músico e instrumentista que trabalha no Soleil há décadas e é
um dos parceiros fixos de criação de Ariane Mnouchkine.

Apontamentos conclusivos
O que me desanima é o desencantamento, a indiferença, o cinismo...
Preciso de uma certa religiosidade, de uma ligação com o sagrado.
Ariane Mnouchkine

Desejou-se mostrar neste artigo como o trabalho integrado da companhia re-


flete seu processo de criação coletiva, o que abraça literalmente a produção
dos figurinos também.

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Ao ressaltar o fato de que as costureiras não são meramente reprodutoras
de trajes já prontos e estabelecidos, evidencia-se que elas se impõem e se
integram ao espetáculo como criadoras, trabalhando junto e conhecendo, até
mesmo muito proximamente, seu objeto principal de trabalho: o corpo dos
atores, meio sobre o qual “suas artes finalizadas” serão apresentadas ao pú-
blico. Essa integração acontece em tudo o que compartilham: refeições, hu-
mores, ensaios, crises e espetáculos em si.
Quatro trajetórias distintas foram apresentadas para mostrar processos
distintos de criação e elaboração de trajes: Georges Bigot, pelo requinte cria-
tivo que emprega trajes ou tecidos antigos, que já tenham histórias que pos-
sam contribuir para a elaboração de sua personagem, além de seu entendi-
mento de que mesmo aquilo que não está exposto aos olhos do espectador,
como a roupa interior, é importante e deve receber tratamento especial para
finalizar sua composição artística; Simon Abkarian pelo processo criativo e ma-
nual, efetivamente, na elaboração principalmente de adereços, mas também
de trajes; Juliana Carneiro da Cunha pela ourivesaria detalhada com que trata
suas personagens, seus colegas e também seus figurinos e adereços; e
Shaghayegh Beheshti, a Shasha, que forneceu elementos para que fosse tra-
çada a trajetória de uma personagem quase dois anos antes de sua apresen-
tação no palco, valendo-se de personagens da commedia dell’arte para atingir
uma personagem doente do contemporâneo com seus trajes que têm raízes
emocionais e pessoais em membros da companhia, notadamente a mãe da
própria figurinista Marie-Hélène Bouvet.
Nada se dá de forma tão organizada e descritiva como o artigo contempla:
elementos foram pinçados para demonstrar como se dá o processo colabora-
tivo entre os envolvidos, não significando que os modos de criação sejam úni-
cos e sempre iguais.
Há uma ilusão de que o trabalho de criação coletiva seja algo em que todos
os envolvidos fazem tudo, sem uma organização ferrenha. No Soleil, o que fica
claro é que o processo criativo é coletivo de fato, mas que cada especialidade
é respeitada e levada ao extremo de suas possibilidades. No caso dos figurinos,
a própria Marie-Hélène disse que a participação dos atores se encerra “quan-
do eles falam besteira! [risos] Quando eles falam coisas que não são realizáveis.
Aí, nós fazemos nossas propostas: “Não! É assim, assado...”. E eu falo: “Isso fun-
ciona, isso não funciona. Dá pra fazer, não dá pra fazer” (BOUVET 2007:120).
Tudo isso é regido com mão de aço há quase sessenta anos – e que isso
não soe como crítica, pois não se percebe outra maneira de descrever uma
mulher que dirige atores de mais de vinte nacionalidades, um corpo técnico,
uma equipe administrativa – por Ariane Mnouchkine.
É sobre ela e sua relação com os trajes e as figurinistas que se deseja en-
cerrar este artigo, com dois depoimentos precisos.
Josette Féral diz, para corroborar a fundamental importância do traje para
o ator no processo de criação que:

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Ela (Ariane Mnouchkine) tem um gosto especial por formas, cores e
tecidos. E o espectador sente prazer em olhar para os trajes tanto
quanto para os atores, e querem tocá-los, carregá-los, viver neles. O
papel do figurino é muito importante para Ariane porque ajuda o
ator a encontrar sua personagem. (2010:78)

E a última citação vem da própria diretora, em um posfácio que ela escreveu


para o livro A arte do presente ‒ Ariane Mnouchkine, de Fabienne Pascaud.
Encerro este artigo com esta citação-agradecimento, que demonstra a impor-
tância dada por Ariane Mnouchkine ao trabalho de criação e de costura das
figurinistas-costureiras ou vice-versa.
Ao longo do livro de entrevistas, Ariane cita muitas pessoas e sente, ao reler
as provas do livro que foram enviadas para ela pela autora, que faltava agrade-
cer várias pessoas, entre elas as costureiras-figurinistas. Assim, ela escreveu:
A costura! Ainda não falei da costura! Ainda não falei de Marie-Hélène,
a Francesa francesa, volúvel, alegre, aquela que sabe tão bem reco-
nhecer o valor de um instante e dizê-lo. Aquela que termina minhas
frases. “Essa calça... ‒ você quer que ela seja mais curta”. “É isso
mesmo.”
Tantos anos! Vinte e três anos [o texto foi escrito em 2004; hoje, 2020,
seriam 39 anos]. E Nathalie, a silenciosa, a toda de preto, envolta de
fumaça, sempre ali, a trabalho, com grandes tesouras nas mãos. Vinte
e oito anos [em 2020, 44 anos].. Annie, o sorriso khmer, o segredo
khmer. A firmeza. Catorze anos [hoje, 30 anos].
A costura, para os atores, é o templo antes do Templo. É a caverna
do tesouro. O calço do barco. O saque de Samarcanda. O porão onde
todas as manhãs eles se precipitam como uma nuvem de gafanho-
tos. E as três estão lá, as figurinistas intuitivas e espertas, guiando
os gafanhotos devoradores...
(PASCAUD 2011:214)

Bibliograf ia
BOUVET, Marie-Hélène. “Os figurinos de Les Éphémères”. In Revista Sala Preta
7 (2007): 117-122. Link: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57327

BRYANT-BERTAIL, Sarah. “Gender, Empire and Body Politics as Mise en Scène:


Mnouchkine’s Les Atrides”. In Theatre Journal - Março de 1994 Volume 46, Número 01.

FÉRAL, Josette. Encontros com Ariane Mnouchkine ‒ erguendo um monumen-


to ao efêmero. São Paulo: Edições SESCSP, 2010.

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FÉRAL, Josette. Trajectoires du Soleil autour d’Ariane Mnouchkine. Paris: Éditions
Theatrales, 1998.

PASCAUD, Fabienne. A arte do presente – Ariane Mnouchkine. Rio de Janeiro:


Cobogó, 2011.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.

THOMAS, Nathalie. “La Tragédie Grecque: Les Atrides au Théâtre du Soleil”. In


Théâtre Aujourd’Hui nº1- Diretor da Publicação: Pierre Trincal. Paris: CNDP,1992.

VIANA, Fausto. O figurino teatral e as renovações do século XX. São Paulo:


Estação das Letras e Cores, 2016.

VIANA, Fausto. O figurino teatral ‒ as renovações cênicas do século XX. São


Paulo, 2004. Tese (Doutorado em Artes Cênicas) ‒ Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo. Orientação: Ingrid Dormien Koudela. [Nota:
Foram adaptados trechos desta obra, do mesmo autor, para a elaboração des-
te artigo.]

WILLIAMS, David. Collaborative Theatre-The Théâtre du Soleil Sourcebook.


London: Routledge,1999, p.207.

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