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A Pele Da Cultura

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PHA.

Tombo

Derrick de Kerckhove

A Pele da Cultura
Uma Investigação Sobre a Nova
^ Realidade Electrónica

'y Tradução de Luís Soares e CatarinaCarvalho

V-

Mediações
Comunicação e Cultura
rw
E ssa
ia*.

Rua Sylvio Rebelo, n.° 15


1000 Lisboa
Telef.: 847 44 50 Fax: 847 07 75

© Derrick de Kerckhove, 1995

A edição em língua inglesa foi publicada pela Somerville House Books


Limited, Toronto, Ontário, Canadá

Título: A Pele da Cultura (Uma Investigação Sobre a Nova Realidade


Electrónica)
Título original: The Skin of Culture (Investigating the New Electronic
Reality)
Autor: Derrick de Kerckhove
Tradução: Luis Soares e Catarina Carvalho
Capa: Paulo Scavuilo

A colecção Mediações é dirigida por José Bragança de


Miranda

© Relógio D ’Água Editores, Março de 1997

Composição e paginação: Relógio D’Água Editores


Impressão: Rainho & Neves, Lda. / Santa Maria da Feira
Depósito Legal n.°: 108793/97
«Na idade da electricidade, vestimos toda a humanidade
com a nossa pele.»

— Marshall McLuhan
índice

Introdução 19

1 Tecnopsicologia:
Os Efeitos da Tecnologias Eléctricas 29

Tecno-lag 30
Tecnofetichismo 31
Tecnopsicologia 32
Psicotecnologias , 34

2 Televisão:
O Imaginário Colectivo 37

O novo contexto mediático 37


A TV fala ao corpo, não à mente 38
Sentido pressentido 39
Reacções defensivas e orientadoras 39
O «colapso do intervalo» entre estímulo e reacção 40
Sacudidelas por minuto (SPM) e «o meio
segundo que falta» 41
Submuscularização e «sentido pressentido» 42
«Ao de leve e sempre a mudar é a maneira
como damos atenção a tudo» 43
Você não vê TV, a TV vê-o a si 44
«Dar uma olhadela» versus «explorar» 46
Montagem versus modulação 48
Ecrãs de TV 50
Recuperando a autonomia 50

3 Programa Alfabético:
As Origens da Tecnologia na Linguagem 53

A invenção do dinheiro 54
O alfabeto e o cérebro 59
Enquadrar o cérebro 62
Enquadrar o mundo 64
Parar o mundo 67
Dividindo o mundo: os códigos originais 68
«A tinta letrada» 70

4 Ciberespaço 71

Realidades que o dinheiro pode comprar 71


Integração . 72
Aplicações 75
Integração é tacto 78
Ciberespaço 81
Consciência simultânea partilhada 82
A remoção gradual dos «interfaces» 83
Uma estrutura pensante em que a estrutura
também pensa 84

5 Romance na berma da estrada


A televisão Casa-se Com o Computador
na Auto-estrada da Informação 87

O contexto dos novos media 87


Convergência 88
Telecomputadores 89
Redes 90
A Internet — o melhor exemplo actual da
«auto-estrada da informação» 90
Largura de banda 92
Descentralização radical 93
«Pay-per-bit» 94
Implicações do acesso universal no mercado 95
Dos espectadores de sofá para os guerrilheiros de sofá 96
Videoconferência 97
Publicidade interactiva 98
«Precisamos desesperadamente de filtros» 99
O valor da ignorância 100
A linha de fundo: a linha de crédito da pessoa pobre , 100

6 O «Stress» da velocidade
Aceleração e Crise 103

Aceleração, crise e integração 103


Aceleração 104
«Design», material, escala e ritmo 104
«A inflação é o dinheiro com uma crise de identidade» 106
Espiral electrónica 108
Crise: do Big Bang h «Segunda-Feira Negra» 109
Gestão de crise 110
Colapso 111
De Tchernobyl ao Muro de Berlim. O colapso
como inovação 113
A inovação vem do estudo do padrão do colapso 1! 4

7 Babel e Jerico
Metáforas A rquitectónicas para
Catástrofes Tecnológicas e Psicológicas 117
Os novos arquitectos 123
A arte salvadora: «Ver mais, ouvir mais
e sentir mais» 126

8 Ciberdesign
Critérios de Design para a Ciberactiviclade 131

Realidade virtual 131


Ciberdesigu 136

9 Audição Oral Versus Audição Letrada 145

Podem os media afectar os nossos sentidos? 147


Como a literacia tomou conta do sistema nervoso 152
Audição oral 153
As palavras pesam o que pesam as pessoas
que as dizem 154
Audição associativa 155
Ouvir com o corpo 156
O espaço entre: a audição masculina e a feminina 157
Audição letrada 158

10 Media e Gênero 163

Tomar o controlo do interior 163


A família como uma forma de arte 163
A biologia está a eclipsar-se 164
O fumo, o gênero e a supressão do corpo 165
Ouvir versus ver 166
Relacionai versus instrumental 167
A força das mulheres 167
Cosmologia: «Que é que se está a passar?» 168
11 Graus de Realidade nos Media e na Cultura 169

Ataque à realidade 169


Da realidade para a fantasia 170

12 Massa, Velocidade e Cibercultura 175

Psicotecnologias 175
Massa 176
Velocidade 177
Cibercultura 178
Padrões de massa, velocidade e cibercultura
antes e depois de 1980 179
Tendências empresariais do princípio dos anos 60
aos anos 80 180
Tendências sociais 182
Tendências psicológicas 184
Humano de massa versus humano de velocidade 186
Estratégias empresariais 187
Lugares-comuns 189
Cibercultura nos anos 90 189
Transparência global 190
Tempo real 191
O que é a cibercultura? 192
A globalização é sobretudo uma questão de
psicologia e não de economia 194

13 Formas de Pensar Digitais e Analógicas


Novas Tendências na Informática 197

Foi um computador a revistar o seu saco


no aeroporto? 197
O que é uma rede neural? 198
Rede neural será um nome errado? 200
«Chips» analógicos 201
Darwinismo neural 202
Redes neurais e sistemas periciais 203
Processamento baseado em tempo versus
processamento baseado em espaço 203
Aplicações 206
Faro para o negócio 207
Sabedoria electrónica 208

14 A Pele da Cultura
Concebendo Novas Tecnologias 211

Design: a pele da cultura 212


Os harmônicos da tecnologia no design 214
Como o design responde à pressão tecnológica 215
«Quando estamos virados do avesso» 216
Interiorização 216
Explosão 217
Implosão 218
Design assistido por computador 219
O encontro dós campos tecnoculturais
. com a cultura japonesa 219
A mudança de pele como resposta
à aceleração tecnológica 220
Transformers como a imagem popular
da «mecatrónica» 223
O mito do espaço «neutro» 224
Ma 225
«Ma» psicotecnológico 226

15 Arte Vulcânica 229

16 Hcologias tie Cyborgs


Bioinecànicas 235
Realidade cyborg 235
Natureza versus cultura 236
Tendências tecnopsicológicas 236
Perda de fronteiras psicológicas entre o eu
e o meio ambiente 237
Ponto de vista versus ponto de existência 238
Dentro/fora: manipulando a electricidade 238
Uma nova sensibilidade 239

17 A Inteligência Colectiva
A ascensão da Internet e a Aldeia Global 241

«Res Publica» 241


A aldeia global na era neonacionalista 242
Consciência global 243
Transparência 244
Instantaneidade 244
Mudando a identidade moderna... 245
...Do ponto de vista... 246
.. .ao ponto de existência 248
Espaço público e esfera pública 249
A inteligência colectiva 251

18 Mudar a Mente
Uma Breve História da Inteligência 255

A linguagem foi a nossa primeira tecnologia 255


Porque é que toda a linguagem é bastante artificia! 256
A escrita amplifica a cognição humana 256
O código é a mensagem 257
A redistribuição da inteligência humana
pelas identidades privadas 258
A dor da reestruturação 259
O dinheiro governa o mundo como o
liquetaque do relógio 261
A electricidade e as implicações do espaço
temporal no indivíduo
Fragmentação
Descontextualização e recombinação
O eu
O novo «condutor comum»

19 Psicotecnologias

Com a televisão, a imaginação acontece


do lado de fora da mente
Nem aqui nem ali
Televisão — o nosso senso comum electrónico
A integração da TV e dos computadores
Psicotecnologias
Telecracia
Medicina — espiral
Os satélites e a nova sensibilidade continental
Identidades psicotecnológicas
Eu sou a Terra a olhar para si própria

Notas
262
263
264
265
267
Introdução

269

270
271
271
273
274
275
277
279
281
282

285
Há alguns anos, em Junho de 1982, The Times Literary
Supplement dizia que a Toronto de Harold Innis, Eric Havelock
e Marshall McLuhan «foi, durante um curto período de tempo,
o centro intelectual do mundo». O artigo continuava dizendo
que, em Toronto, «nascera uma nova teoria da primazia da co
municação na estruturação das culturas e da mente humana».
O período a que o artigo se referia, o fim dos anos 50 e os
anos 60, foi uma década de charneira na teoria da comunica
ção. Mas foi Marshall McLuhan, mais do que Innis ou Have
lock, quem captou o imaginário popular. Com a sua confes
sada «paranóia católica», McLuhan encontrou uma técnica
de análise dos media que teve conseqüências tremendas. A
publicação de A Galáxia de Gutenberg, em 1962, espantou
os leitores de todo o mundo. De uma só penada McLuhan
conseguiu colocar a comunidade escolar à sua mercê e captar
a atenção dos media. Nunca um vidente tão enigmático tinha
suscitado a curiosidade do público de forma tão poderosa.
Hoje, as suas frases e aforismos são chavões do vocabulário
contemporâneo.
Desde a morte de Marshall McLuhan, em 1980, tem havi
do muita especulação à volta de quem seria o seu real herdei-
20 Introdução

ro. McLuhan gerou dúzias de autoproclamados gurus, de Al


vin Toffler a Faith Popcorn, enquanto nas universidades da
América do Norte e da Europa, os departamentos de estudos
de comunicação deram lugar a outros tantos concorrentes ca
da qual com o peso do seu academismo. Ao seguir uma li
nhagem ainda visível, descobrimos que o mais provável her
deiro do manto de MacLuhan é o seu colega, o irreverente e
erudito Derrick de Kerckhove.
Mais conhecido como o director do Programa McLuhan em
Cultura e Tecnologia da Universidade de Toronto, Derrick de
Kerckhove tem contribuído, nestas duas décadas, para o deba
te sobre os efeitos últimos da tecnologia dos media e da co
municação. A sua associação com Marshall MacLuhan nos
anos 70, como tradutor, assistente e co-autor deu-lhe acesso
privilégiado aos estudos sobre a mente do mais proeminente
filósofo dos media deste século. Agora, como sucessor de
McLuhan à frente do principal instituto de estudos mediáticos
do mundo, o Programa McLuhan em Cultura e Tecnologia,
Kerckhove está em boa posição para continuar o trabalho de
Marshall McLuhan.
Desde a morte de McLuhan, Kerckhove tem estado activo
em várias frentes, no centro de uma rede internacional de es
tudantes, artistas c analistas da comunicação dedicada ao es
tudo da visão de McLuhan sobre os media electrónicos. Este
foi o valioso campo de teste das suas teorias que lhe permitiu
experimentar as suas idéias entre especialistas. Entretanto,
manteve também a carreira de professor no departamento de
francês da Universidade de Toronto, e desta sua associação
com a universidade surgiu a possibilidade de estabelecer o
Programa McLuhan em Cultura e Tecnologia que está, pre
sentemente, na famosa cocheira do Campus universitário.
Kerckhove tem também trabalhado como consultor de media
para firmas de telecomunicações a funcionar e várias redes
do Estado, empresariais e de televisão.
A Pele da Cultura 21

Observar Derrick de Kerckhove em serviço no Programa


de Cultura e Tecnologia c testemunhar a sua intensidade e a
sua capacidade para efectuar múltiplas tarefas ao mesmo
tempo. Numa tarde igual às outras, Kerckhove ncgoceia um
turbilhão de reuniões com teóricos dos media, artistas de RV,
estudantes, homens de negócios e cientistas. Num dado mo
mento está a demonstrar o aparelho mais recente do Progra
ma, alguns segundos depois ao telefone com um colega euro
peu. Como pano de fundo haverá um fax a debitar incessan-
temente. A mente de Kerckhove funciona lateral mente e a
sua conversa é pontilhada de histórias engraçadas, assuntos
colaterais e dados preciosos. Embora por necessidade, Ker
ckhove é um viajante inveterado e para ele a aldeia global é
uma realidade física. Vive virtualmente em aviões, a cami
nho da Europa, dos EUA ou do Japão. Está também bastante
à vontade com todos os meios que descreve em A Pele da
Cultura porque fazem parte da sua realidade diária. Já parti
cipa em videoconferências há uma década, ehá mais de uma
década que mergulha frequentemente na realidade virtual, em
vários estádios do seu desenvolvimento. Com a sua experiên
cia prática do mundo das telecomunicações e da informática
sempre em evolução e com a sua mente divertida e especula
tiva, Kerckhove está bem situado para perceber esta nova
realidade.
Neste livro, a sua publicação canadiana mais importante,
Derrick de Kerckhove demonstra porque é chamado o profe
ta canadiano dos media. Ao partir do trabalho de McLuhan,
Kerckhove alargou e aprofundou alguma das suas visões,
mas desenvolvendo também as suas teorias, provocatórias c
originais. A Pele da Cultura dá um panorama da pesquisa e
das especulações a que se dedicou na última década. Pela pri
meira vez o alcance e profundidade da sua visão são sistema
tizados. Culminação de dez anos de consultas e estudos, A
Pele da Cultura relata como os media electrónicos são exten-
00 Introdução

sõeSi não só do sistema nervoso e do corpo mas também da


psicologia humana.
Kerckhove descreve a televisão como um órgão colectivo
da teledemocracia que utiliza os estudos de mercado e son
dagens para examinar, como um raio X, o corpo social. Isto
acontece porque a televisão é uma projecção do inconsciente
emocional. Porque é um meio de comunicação de massas, a
televisão é uma exteriorização da psicologia do público.
Kerckhove diz que a televisão, como resultado desta psico
logia invertida, projectou um novo sistema político que se
baseia nos intervalos e se apresenta como um facto consu
mado. Ainda não nos demos bem conta de como tem sido
profunda a alteração da nossa agenda social. Kerckhove des
creve também esta nova realidade política como sendo a no
va democracia funcional, participativa — a telecracia, que
pode bem acabar por cair nas mãos dos populistas. Olhando
para além desses efeitos, Kerckhove defende que os compu
tadores estão prestes a engolir a televisão e que a próxima
revolução populista acabará por sucumbir, juntamente com a
televisão.
Também provocatórias, embora baseadas na ciência com-,
portamental, são as suas teorias sobre os efeitos físicos da te
levisão no corpo e no sistema nervoso, sobretudo porque am
bos se combinam com os sistemas neuromusculares. Ker
ckhove advoga que a televisão se dirige ao corpo e não ao es
pírito e que secundamos continuamente o que vemos na tele
visão com respostas musculares subliminares. A violência te
levisiva, diz ele, atinge-nos fisicamente — uma especulação
importante, mais não fosse pelas persuasivas experiências la
boratoriais que aí conduziram.
Alargando a sua estabelecida reputação como teórico lin
güístico e literário, Kerckhove explica em dois ensaios o
efeito histórico das tecnologias da linguagem e da escrita.
Argumenta que estes precedentes lingüísticos enquadram a
A Pele da Cultura 23

presente revolução mediática tanto tecnológica como biolo


gicamente e que a linguagem e os alfabetos constituem uma
espécie de «software» que nos predispõe para as tecnologias.
Propondo uma relação simbiótica entre a inteligência e a lin
guagem, Kerckhove prossegue explicando como é que a es
crita amplifica a inteligência.
Um dos mais fascinantes aspectos nas meditações lingüís
ticas de Kerckhove são as suas revelações sobre a origem e o
funcionamento do dinheiro. Primeiro segue a evolução do di
nheiro desde o seu nascimento, geminado com a escrita na
Sumária, até à sua encarnação electrónica no presente como
uma onda de impulsos electromagnéticos deslizando à volta
do mundo à velocidade da luz. Depois compara o curso de
água à volta do mundo com o bater do relógio da CPU no
computador que coordena todas as funções processuais. Se
gundo esta visão, o dinheiro foi transformado numa válvula
puramente simbólica e informacional das trocas sociais. A
medida que o dinheiro se torna mais leve, mais electrónico,
oferecerá cada vez menos resistência às transacções. Num es
tado sem dinheiro físico, a moeda corrente tornar-se-á ela
própria numa espécie de corrente, abastecendo as operações
da máquina tecnocullural. Uma máquina colectiva cuja com
plexidade só parcialmente podemos adivinhar.
Também neste livro se encontra a análise perturbadora dos
efeitos mais longínquos que a globalização terá nas estrutu
ras sociais. Kerckhove sugere que a guerra e o nacionalismo
podem ser os resultados da globalização. A Pele da Cultura
avisa-nos que o nosso planeta está num ponto de viragem
precário que pode levar tanto à fragmentação como a uma
maior globalização e que só controlando o design das tecno
logias, em vez de as deixarmos dominarem-nos à sua vonta
de, podemos evitar uma catástrofe social. Como já tinha feito
Marshall McLuhan, também Kerckhove afirma que o que pa
rece ser apenas característica marginal nos media pode ter os
24 Introdução

efeitos mais poderosos. Compreender e controlar estas carac


terísticas pode tornar-se na tarefa mais importante da espécie
humana, porque as novas tecnologias declaram sempre guer
ra às culturas de onde emergem.
As ramificações políticas dos novos meios parecem ser
igualmente,significativàs. A queda do Muro de Berlim e o fim
da «Guerra Fria» foram, segundo Kerckhove, acontecimentos
inevitavelmente provocados pelos sistemas de processamento
da informação e pelas telecomunicações, assim como pela te
levisão. Kerckhove vira a sua atenção para o Leste e para a
forma como o aparecimento de multinacionais está a redese
nhar as fronteiras e as identidades nacionais na era do capita
lismo terciário. Ele não vê só os blocos comerciais como as
novas fronteiras nacionais, defende também que a cultura dos
negócios está a tornar-se na própria cultura global. Vê o «po
liticamente correcto» como um sintoma da crescente sensibi
lização, resultado directo do domínio terapêutico da telccra-
cia. Sustenta por isso que não estamos fora de perigo, porque
a nossa realidade biológica ainda está a estruturar-se. Faz al
gumas especulações sobre a forma como as especializações
genéricas do cérebro e dos sentidos podem influenciar a reali
dade política do ambiente cibereléctrico. Depois de demons
trar como os media electrónicos são mais rápidos que as cau-
salidades democráticas, Kerckhove introduz um argumento
convincente que prova aquilo de que todos instintivamente
suspeitamos — que as sondagens são manipulações subtis.
Surpreendentemente, no entanto, parece que são manipuladas
colectivamente. Esta é a primeira explicação tecnológica para
a teoria da «fabricação do consentimento» de Chomsky.
As previsões de Kerckhove sobre o modo como a evolução
da revolução tecnológica vai tocar-nos pessoalmente são fas
cinantes e detalhadas. As máquinas falarão connosco, reco-
nhecer-nos-ão, anteciparão os nossos desejos. A algumas che
garemos mesmo a vesti-las. Os sistemas de entretenimento fa-
A Pele da Cultura 25

miliar serão desenhados a partir da forma como se sentem e


não apenas de como ficam bem esteticamente. A realidade
virtual, assim como os processadores ultra-rápidos activados
pela voz, tomarão tão depressa conta dos nossos desejos que,
a longo prazo, mudar a identidade pessoal será um entreteni
mento popular, como que uma cirurgia plástica da psique. Nas
redes de telecompuladores do futuro, os indivíduos tornar-se-
-ão produtores e consumidores, porque tal como os sistemas
de difusão hertziana se dividem em cada vez mais pequenas
unidades. Os ímpetos criativos dos indivíduos transformá-los-
-ão de consumidores nos «prosumidores», de que Tofflcr fala.
Nas análise que Kerckhove faz da cultura japonesa as me
táforas de Godzilla e dos Transformers (bonecos que mudam
de forma, meio humanos, meio máquinas fabricados no Ja
pão) encontram aplicação prática. Explica como os valores
culturais japoneses estão em harmonia com as influências
culturais da electrónica e porque é que os japoneses adapta
ram tão depressa as novas tecnologias. Depois utiliza um ter-
mo-chave da cultura japonesa para ilustrar como podemos
avançar para a compreensão do novo domínio cibernético.
A Pele da Cultura contém sérias previsões que os homens
de negócios, administradores e todos os que se encontram
envolvidos no crescentemente complexo mundo dos media e
das telecomunicações dificilmente podem dar-se ao luxo de
ignorar. Quando McLuhan previu o fim da revista Life por
que estava muito virada para o meio escrito, isto no auge da
sua circulação, ninguém podia ter adivinhado que esta profe
cia se tornaria verdadeira apenas numa década. Pelo contrá
rio, as asserções que Kerckhove faz são muito cautelosas,
elaboradas em anos de pesquisa e consideração, ainda que, à
primeira vista, pareçam audaciosas. Em última instância, A
Pele da Cultura representa uma visão realista dos próximos
cinco a dez anos — uma margem de cinco a dez anos no ne
gócio sempre volúvel das telecomunicações pode fazer uma
26 Introdução

diferença fulcral. Os avaliadores de tendências vindos de to


das as sensibilidades terão uma grande variedade de cenários
por onde escolher, porque A Pele da Cultura dá uma amostra
dos padrões emergentes.
Onde Derrick de Kerckhove se parece mais com Marshall
McLuhan é na ênfase dada à oralidade e ao tacto, particular
mente na sua relação com a linguagem e com a forma como
processamos a realidade sensorial. Kerckhove defende que,
embora os media electrónicos estejam a inverter os efeitos da
literacia e da linguagem, isto não é necessariamente mau,
porque estamos a deixar de dar total proeminência à cultura
letrada e a voltar à cultura oral. Especula que na vindoura
cultura da informação oral-cibernética a ignorância será uma
comodidade valiosa porque os indivíduos «não programa
dos» terão uma vantagem funcional sobre os «programados».
Os ignorantes são mais flexíveis porque não têm de lutar
contra velhos condicionamentos e estruturas mentais para
aprender novas tecnologias.
Enigmaticamente, Kerckhove sugere que a realidade virtual
é implacável e tem o seu calendário próprio, uma suposição
teleológica que tem origem na etnobotânica americana, Teren
ce McKenna, que escreveu sobre realidades alucinogéneas.
Ele acredita que a realidade virtual, com o tacto simulado, está
prestes a revolucionar o muito negligenciado sentido-tacto, e
torná-lo numa extensão cognitiva da mente; este espaço inte
rior, a física quântica e a nanotecnologia, abrem uma nova
fronteira, tão vasta como o espaço exterior. Mas, à medida que
a tecnologia e a comunicação aceleram, nós abrandaremos e
encontraremos a verdadeira tranqüilidade. Esta tranqüilidade
pode preparar o cenário para uma transformação psicológica
necessária, porque, em última instância, o poder cibertécnico
implicará a obrigação do conhecimento de si próprio.
As previsões mais fascinantes de Kerckhove dizem, no en
tanto, respeito à nossa sobrevivência colectiva como espécie.
i
A Pele da Cultura 27

Estamos a criar uma mente colectiva, diz ele, que vai exceder
as capacidades de qualquer ser humano individual. Isto vai
acontecer devido às propriedades emergentes, as proprieda
des que podem surgir de repente quando um sistema dinâmi
co, interligado, atinge um dado ponto de complexidade. Um
sistema complexo pode comportar-se de forma semelhante a
um organismo vivo e de maneiras imprevisíveis para quem o
criou. A mente colectiva será posta em prática pela globali
zação política cujos estágios iniciais serão invisivelmente
realizados pela convergência da televisão, telefones e compu
tadores. A Internet é o embrião deste cérebro colectivo. Par
celas mais pequenas desta consciência global estão já a for-
mar-se nas interligações das redes de cabo, sistemas de tele
comunicações e bases de dados, para não falar dos think
tanks'“ cibernéticos que em breve ligarão os investigadores à
volta de cérebros conuitativos verdadeiramente constituídos
pela soma de todas as partes. Como refere Kerckhove, a Eu
ropa está a caminho de unir-se numa entidade colectiva, co
municativa e de processamento de informação.
As teorias de Kerckhove distinguem-se pela facilidade com
que ele incorpora as conclusões de outras disciplinas na sua fi
losofia. Recolhe dados de campos tão diversos como a neuro-
biologia, a teoria do comportamento, a televisão, os negócios, a
lingüística e arte e inclui também as observações de outros
pensadores dos media. Este bricolage é característico da sua
convicção profunda de que as nossas descobertas mais impor
tantes e mais originais serão realizadas no domínio de estudos
interdisciplinares. E mesmo assim, a síntese que Derrick de
Kerckhove atinge no seu trabalho excede todas as sinergias que
estiveram na sua origem. A sua originalidade não tem paralelo.

Christopher Dewdney

* Grupos ile discussão organizados numa estrutura. (N. T.)


CAPÍTULO UM

TECNOPSICOLOGIA

Os Efeitos das Tecnologias Eléctricas

A primeira vez que vi lima máquina de fax foi em 1972 no


Centre for Culture and Technology da Universidade de Toron
to, então sob a direcção de Marshall McLuhán. McLuhan que
ria que eu visse o novo aparelho e ficasse por perto para o ca
so de ser preciso traduzir alguma coisa. McLuhan estava à es
pera de uma mensagem do ministro francês da Cultura — o
conhecido escritor André Malraux — e, é claro, planeara res
ponder-lhe em francês. A ideia, acho eu, era também testar o
sistema através do Atlântico. Malraux, ele próprio, não apare
ceu, mas um dos seus assistentes enviou mesmo uma mensa
gem de saudações em nome do ministro francês e nós respon
demos-lhe. Lembro-me de não ter ficado desapontado por
Malraux não ter aparecido, porque a minha atenção estava
completamente dominada por aquela máquina extraordinária.
Parecia beijar o telefone e sussurrar-lhe uma mensagem escrita
ao ouvido.
30 Derrick de Kerckhove

Tecno-lag*

A mesma máquina foi usada alguns anos mais tarde por


Salvador Dali. Mandou um desenho de Nova Iorque como
desculpa por não poder estar presente numa conferência im
portante sobre Consciência Céltica para a qual tinha sido
convidado como um dos principais oradores. Ao ver o fax de
Dali e ao reflectir sobre o estatuto da assinatura do famoso
pintor invejei os que tinham a sorte de poderem comprar
aquela tecnologia. Para minha surpresa, passaram-se anos
sem que alguém voltasse a falar de faxes', nem sequer ao pé
de McLuhan.
Em 1983, no entanto, quem não tivesse um fax ou acesso a
um fax, estaria obviamente por completo fora do contacto
com a realidade. O que é que acontecera? Porque é que leva
ra tanto tempo até que as pessoas percebessem que simples
mente não podiam viver sem faxes! Um atraso semelhante
adiou os atendedores de chamadas que já estavam disponí
veis e apoiados por fortes campanhas de marketing em mea
dos dos anos 60. Só descolaram já no fim da década de 70. A
mesma coisa aconteceu com uma tecnologia tão importante
como a da televisão que, depois de ser usada esporadicamen
te em 1928, só saiu realmente da naftalina após a Segunda
Guerra Mundial. Um atraso idêntico está actualmente a adiar
a videoconferência, que tem de explodir no mercado tal co
mo aconteceu com o fax.'
E claro, há sempre uma explicação de fundo ou tecnológi
ca para tudo. A explicação para o atraso tecnológico do fax
foi o facto de, no início dos anos 70, os sistemas telefônicos
internacionais não estarem prontos para suportar mais uma
carga. Entretanto, os japoneses, que tinham um interesse es-

* Lag como em Jet Lag, o efeito geral de indisposição provocado pelas viagens
aéreas de longo curso, atravessando vários lusos horários. (N. T.)
A Pele da Cultura 31

tratégico em encontrar formas de comunicar o seu difícil sis


tema de escrita, haviam centrado a investigação e desenvol
vimento na melhoria da tecnologia do fax. Reduziram-lhe a
exigência de sinal e fizeram baixar o preço. Mas isto é só
metade da história. A outra parte diz que mesmo a melhor e
mais útil tecnologia do mundo não pode impor-se a um pú
blico não preparado. Porque pode não haver espaço para ela
na nossa psicologia colectiva. Pelo menos por enquanto.

Tecnofetichismo

Por outro lado, quando as tecnologias de consumo são fi


nalmente integradas na nossa vida podem gerar uma espécie
de obsessão fetichista nos utilizadores, algo a que McLuhan
chamou «a narcose de Narciso». Na verdade, parecemos que
rer que as nossas máquinas, seja um carro ou um computa
dor, sejam dotadas de poderes muito superiores ao uso que
delas podemos fazer. Embora poucos de entre nós conside
rassem seriamente a hipótese de se tornarem corredores de
automóveis e muito menos a possibilidade de treinar, quere
mos que o nosso Toyota tenha uma velocidade máxima equi
valente ao dobro da velocidade-limite na auto-estrada. O fo
tógrafo amador pode não colocar a hipótese de carregar as
compras da loja para casa, mas preferirá de boa vontade car
regar o peso do equipamento, mesmo durante uma subida à
montanha, a ser encontrado sem o último produto da Nikon
ou da Minolta. A partir do momento em que mexem com os
computadores, as nossas crianças desenvolvem uma espécie
de vício que as faz berrar e espernear se os seus programas
favoritos demoram mais do que um nanossegundo a entrar.
Num fenômeno onde outros observadores culturais pode
riam ter encontrado forças de marketing, McLuhan viu um
padrão puramente psicológico de identificação narcísicá com
32 Derrick de Kerckhove

o poder dos nossos brinquedos. Eu vejo-o como a prova de


que estamos de facto a tornar-nos cyborgs e de que, à medida
que cada tecnologia estende uma das nossas faculdades e
transcende as nossas limitações físicas, desejamos adquirir as
melhores extensões do nosso corpo. Quando compramos um
sitema de vídeo caseiro, queremos que ele cumpra todas as
funções possíveis, não porque alguma vez as vamos usar,
mas porque nos sentiríamos limitados e inadequados sem
elas.
Esta é provavelmente uma aproximação saudável, não pa
tológica. De facto, sugere que somos perfeitamente capazes
de integrar dispositivos na nossa identidade, certamente no
nosso corpo. Uma tal capacidade prepara o terreno para o de
senvolvimento necessário de uma nova psicologia que esteja
mais bem equipada para lidar com o mundo que temos pela
frente. De momento, reagimos com demasiada cautela e mui
to lentamente. Alguns de entre nós estão dispostos a levar a
maquilhagem psicológica característica dos camponeses do
século XIX para o século XXI. Os nossos sistemas políticos
e de educação estão a arrastar-se muito atrás da nossa tecno
logia e do nosso marketing, eles próprios padronizados de
acordo com critérios suficientemente bons para fazer funcio
nar empresas, comerciais, mas pouco adequados para lidar
com os valores e problemas em mudança no mundo.

Tecnopsicologia

É um truísmo dizer que não sentimos saudades do que não


conhecemos e outro dizer que a publicidade cria necessida
des que não existiam antes. Banalidades como estas baseiam-
-se na pressuposição inquestionada de que todos os homens e
mulheres foram criados não só semelhantes como iguais de
uma vez por todas e para sempre. Nada podia estar mais lon
ge dos factos da vida. Estamos para sempre a ser feitos e re-
À Pele da Cultura 33

feitos pelas nossas próprias invenções. O mito do denomina


dor comum da universalidade humana é apenas um produto
do filosófico «pensamento desejante» do século XIX.
A nossa realidade psicológica não é uma coisa «natural».
Depende parcialmente da forma como o nosso ambiente, in
cluindo as próprias extensões tecnologias, nos afecta.
Uma boa forma de compreender a psicologia, como facto
da vida e como ciência, é propondo que o seu objectivo seja
fornecer uma interpretação abrangente e auto-actualizável
das nossas vidas, à medida que estas vão sendo influenciadas
pelo meio cultural em mudança. Assim, entre as suas muitas
funções reguladoras, o papel da psicologia pode ser o de in
terpretar e integrar os efeitos da tecnologia nos sujeitos. Uma
das funções da nossa psicologia individual é criar uma ilusão
de continuidade quando há quebras culturais e tecnológicas
importantes e, deste modo, retardar os efeitos do feedback
tecnológico no nosso sistema nervoso. Se não tivéssemos
uma qualquer forma de ambiente estabilizador pessoal, esta-
ríamos num estado de choque permanente causado pelo trau
ma cultural das novas tecnologias. Seriamos como Chancy
Gardiner, a personagem principal do romance de Jeizy Ko-
sinski, Being There. Depois de ter vivido toda a sua vida de
adulto em frente à televisão, Chancy sai à rua pela primeira
vez e descobre, para seu profundo espanto, que, por uma ra
zão inexplicável, o controlo remoto já não funciona.
A «tecnopsicologia» é o estudo da condição psicológica
das pessoas que vivem sob a influência da inovação tecnoló
gica. A tecnopsicologia pode ser ainda mais relevante agora
que existem extensões tecnológicas para as nossas faculdades
psicológicas. A tecnopsicologia pode ser, para os investiga
dores da cultura e psicologia, o campo de actividades das psi-
cotecnologias.
34 Derrick de Kerckhove

Psicotecn ologias

Inventei o termo psicotecnologias, baseado no modelo da


biotecnologia, para definir qualquer tecnologia que emula, es
tende ou amplifica o poder das nossas mentes. Por exemplo,
enquanto a televisão é geralmente vista apenas como um difu
sor unilateral de materiais audiovisuais, podia ser útil para os
psicólogos verem-na como uma extensão dos nossos olhos e
ouvidos até aos locais de produção das imagens. Quando se
compreende a televisão desta forma, pouco importa se o pro
grama é ao vivo ou gravado. De facto, telefone, rádio, televi
são, computadores e outros media combinam-se para criar
ambientes que, juntos, estabelecem um domínio de processa
mento de informação. É o domínio das psicotecnologias. Vis
ta deste prisma a televisão torna-se a nossa imaginação colec-
tiva projectada fora do nosso corpo, combinando-se numa te-
ledemocracia consensual electrónica. A TV é literalmente, co
mo Bill Moyers lhe chamou, «uma mente pública»2.
Este domínio público é mais explícito durante uma video
conferência. Com-a videoconferência e os videofones, a tele
visão aproxima-se da flexibilidade e comunicação instantâ
nea conseguida com o telefone. De facto, estas tecnologias
não apenas prolongam as propriedades de envio e recepção
da consciência, como penetram e modificam a consciência
dos seus utilizadores. A realidade virtual ainda está mais
ajustada a nós. Acrescenta o tacto à visão e audição e está
mais próxima de revestir totalmente o sistema nervoso huma
no do que alguma tecnologia até hoje o fez. Com a realidade
virtual e a telepresença permitida pela robótica projectamos
literalmente para o exterior a nossa consciência e vemo-la
«objectivamente». Esta é a primeira vez que o homem o con
segue fazer.
Com a televisão e os computadores mudamos a localiza
ção do processamento de informação de dentro dos nossos
A Fcle da Cultura 35

cérebros para ecrãs à frente dos nossos olhos, em vez de por


detrás. As tecnologias do vídeo dizem respeito não só ao nos
so cérebro, mas a todo o sistema nervoso e aos sentidos,
criando condições para uma nova psicologia. Ainda não che
gou a bom termo a nossa relação com os ecrãs. Pode ajudar
compreendermos que a TV não está em competição com os
livros, sugerindo antes algo completamente diferente. Propõe
uma imaginação colectiva como algo que podemos realmente
consumir, embora ainda nela não participemos directamente.
Com efeito, a característica essencial, a interacção, a capaci
dade que garante a nossa autonomia individual dentro da po
derosa tendência da colectivização psicotecnológica, é forne
cida pelos computadores e ainda mais eficazmente pelas re
des de computadores.
CAPÍTULO DOIS

TELEVISÃO

O Imaginário Colectivo

O novo contexto mediático

Steven Kline é o director do Laboratório de Análise dos


Media da Simon Fraser University, em Vancouver. Juntamen
te com o seu irmão, Rob, inventou um sofisticado sistema de
análise das reacções fisiológicas das pessoas a qualquer coisa
que lhes seja mostrada. Qualquer coisa, todas as coisas e, es
pecialmente, a televisão. O trabalho de Kline sobre o impacte
da publicidade e programação televisivas c bem conhecido.
Recentemente, Stephen e o seu irmão convidaram-me para
ser uma das suas cobaias. Ligaram-me a um computador
através de um conjunto de dispositivos destinados a medir as
minhas reacções na pele. Um dos sensores estava ligado ao
meu dedo médio esquerdo para ler a condutividade da minha
pele, outro à minha testa — provavelmente para analisar a
minha actividade cerebral —, um terceiro ao meu pulso es
querdo, para medir as pulsações e um último sobre a zona do
coração, para monitorizar a minha circulação. Na mão direita
foi-me posto outro aparelho, um joystick bastante primitivo.
1
38 Derrick cie Kerckhove

Ao empurrá-lo para a frente ou para trás indicava se gostava


ou não do que estava a ver. Rob e Stephen saíram do labora
tório e o espectáculo começou.
Fui vendo uma sucessão rápida de seqüências de imagens
típicas: sexo, publicidade, notícias, talk shows, sentimentalis-
mos e tédio. Os cortes surgiam em média de quinze em quin
ze segundos. Não é uma velocidade excessiva, tendo em con
ta a média em televisão, mas no meu papel de crítico por re
flexo, achei muito difícil manter o ritmo com o joystick. Ao
fim dos vinte minutos de duração da experiência, estava to
talmente frustrado, não tendo conseguido exprimir muito
mais que movimentos pouco convincentes do pulso de apro
vação ou desaprovação. Em muitos dos segmentos nem se
quer tinha tido tempo de exprimir fosse o que fosse.
Quando Rob e Stephen voltaram para rebobinar a cassete e
analisar os gráficos no computador, falei-lhes do meu senti
mento de impotência. Riram-se e convidaram-me a observar
o ecrã enquanto voltavam a passar a cassete sincronizada
com os resultados. Para meu completo espanto, verifiquei
que cada corte, cada movimento, cada mudança de plano ti
nham sido percebidos por um ou outro sensor e registado no
computador. Pude ver as agitadas linhas dos gráficos corres
pondentes á condutividade da minha pele, ritmo cardíaco,
circulação e, fossem quais fossem, as misteriosas reacções na
minha testa. Fiquei espantado. Enquanto lutava para conse
guir exprimir uma opinião, o meu corpo inteiro tinha estado a
ouvir e a ver e a reagir instantaneamente.

A TV fala ao corpo, não à mente

Tirei duas importantes conclusões dessa experiência. A


primeira foi a de que a televisão fala, em primeiro lugar, ao
corpo e não ã mente. Disto suspeitava eu há vários anos. A
t A Pele da Cultura 39

segunda conclusão foi a de que, se o ecrã de vídeo tem um
| impacte tão directo sobre o meu sistema nervoso e as minhas
1 emoções, e tão pouco efeito sobre a mente, então a maior
| parte do processamento da informação estava a realizar-se no
‘ ecrã. Estas são as hipóteses que eu quero explorar neste estu
do sobre a nossa relação com os nossos ecrãs, tão ubíqua, ín
tima e pouco conhecida: as nossas videomentes.

|
| Sentido pressentido
jI
Woody Allen diz a Diane Keaton, dentro de um táxi em
Manhattan-. «És tão bonita que quase não consigo estar a
j olhar para o taxímetro.» Por que é que é tão difícil, senão im-
í possível, concentrarmo-nos quando a TV está ligada? Porque
* a televisão é hipnoticamente envolvente: qualquer movimen-
! to no ecrã atrai a nossa atenção tão automaticamente como se
alguém nos tivesse tocado. Os nossos olhos são atraídos pelo
i ecra como o ferro por um iman.
|

í
Reacções defensivas e orientadoras

! Perceber a nossa cultura televisiva implica conhecer a ra-


, zão e a forma como a televisão nos fascina para além do nos
so consciente. Como eu provei a mim próprio com a expe-
. riência dos irmãos Kline, o meu sistema neuromuscular se
gue constantemente as imagens no ecrã, mesmo que a minha
1 mente divague ocasionalmente. Tudo isto é involuntário de
vido à nossa programação biológica ancestral: o sistema ner
voso autônomo dos mamíferos mais evoluídos está treinado
para responder a qualquer alteração perceptível no ambiente
que seja relevante para a sobrevivência. Estamos condiciona
dos para responder involuntariamente a qualquer tipo de estí-
40 Derrick de Kerckhove

mulo, interno ou externo, com o que, em fisiopsicologia, se


chama Reacção Orientadora (RO). Este tipo de reacção cha
ma a nossa atenção para o estímulo ou despoleta uma Reac
ção Defensiva, que nos leva a protegermo-nos dele.
A pergunta é evidente: em que é que a TV é relevante para
a nossa sobrevivência? Em termos de conteúdo, pouco. Mas
o principal efeito da televisão, como McLuhan não se cansa
va de repetir, produz-se não ao nível do conteúdo mas sim do
próprio meio, com o piscar constante do feixe de electrões
percorrendo o ecrã. As mudanças e cortes na imagem provo
cam continuamente RO, chamando a nossa atenção sem a sa
tisfazer necessariamente. Na vida, vamos arrumando os estí
mulos à medida que os conhecemos: ou os identificamos
imediatamente ou desenvolvemos depressa uma estratégia
para lidar com eles. Chamamos resposta a uma reacção com
pleta a um estímulo. Na vida, a maior parte dos estímulos
desperta as RO, pedem um acabamento e obtêm-no. Com a
televisão, no entanto, nunca acabamos de lidar com os estí
mulos iniciais: a TV provoca sucessões rápidas dos RO, sem
conceder o tempo necessário a uma resposta.

O «colapso do intervalo» entre estímulo e reacção

Num trabalho sobre as reacções cognitivas à televisão, a


teórica dos media alemã, Hertha Sturm, fez uma importante
observação. Quando vemos televisão, é-nos negado o tempo
necessário para integrar a informação a um nível de cons
ciência completo.

Apresentações em mudança rápida bloqueiam a verbaliza


ção. Entre estas contam-se as mudanças não interpretadas
do ponto de vista, saltos inesperados de imagem para texto
ou de texto para imagem. Quando confrontado com apre-
A Pele da Cultura 41

sentações em mudança lápida e acção acelerada, o especta


dor é literalmente levado de imagem para imagem. Isto
exige uma adaptação inesperada mas constante aos estímu
los perceptivos. Como resultado, o espectador deixa de
conseguir manter o ritmo e desiste de fazer classificações
mentais. Descobrimos que, quando isto ocorre, o indivíduo
age e reage de forma crescentemente fisiológica, o que por
sua vez conduz a uma redução da compreensão. O especta
dor torna-se, por assim dizer, vítima de uma força externa,
da rapidez da montagem audiovisual.3

Pegando neste tema, Edward Renouf Slopek, comunicólo-


go e investigador da Universidade McGill, além de associado
do McLuhan Program, criou a expressão' «colapso do inter
valo» para indicar o facto de a TV eliminar o efeito de dis
tanciamento -— intervalo entre estímulo e reacção -— e o
tempo para processar a informação no nosso consciente.4 Su-
gere-se que a televisão nos deixa pouco, se é que deixa al
gum, tempo para reflectir sobre o que estamos a ver.

Sacudidelas por minuto (SPM) e


«o meio segundo que falta»

As reacções orientadoras geradas pela televisão são bas


tante diferentes das geradas pelo cinema. A luz do ecrã-vídeo
não ressalta na direcção dos nossos olhos, vem direita a nós
através do ecrã, desafiando-nos a responder, como a luz de
interrogatório da polícia num qualquer filme. Hertha Sturm
afirma que a mente demora pelo menos meio segundo para
produzir uma resposta correcta a um estímulo complexo.
Afirma ainda que a TV nega isso ao espectador, naquilo a
que chama «a síndrome do meio segundo que falta». A mi
nha mente demorou, sem dúvida, alguns segundos a respon-
42 Derrick de Kerckhove

der, mesmo inadequadamente, ao material compilado por


Stephen Kline. Sturm está provavelmente certa ao sugerir
que a programação televisiva está deliberadamente preparada
para nos impedir de ter reacções verbalizadas, tornando-nos
vítimas fáceis das mensagens publicitárias.
Recentemente, um crítico dos media de Toronto, Morris
Wolfe, criou o conceito de «sacudidelas por minuto» — ou
SPM — para descrever a forma como a TV nos atinge.5 A
noção por trás das SPM é de que há um número crítico de
cortes necessários para impedir que o espectador adormeça
ou mude de canal. A TV tem de fazer zap ao zapador antes
que ele ou ela faça zap ao canal. SPM que mantêm a atenção
bem presa podem também impedir respostas cognitivas com
pletas.

Submuscularização e «sentido pressentido»

Por muito que se tirem conclusões moralistas, não se trata,


necessariamente,'de uma coisa má. Um efeito do colapso do
intervalo é que, para conseguirmos criar sentido a partir da
rapidez tias imagens, devemos, de alguma forma, emular a
acção com o nosso corpo. Tal como as crianças percebem
melhor um novo conceito pelo gesto, seguimos a acção na
TV com os nossos corpos e imitamos uma ou outra expres
são para melhor a interpretarmos. A isto chamo o «efeito de
submuscularização» — análogo à estratégia de «subvocaliza-
ção» utilizada pelos leitores com dificuldades. A submuscu
larização é a interpretação do movimento e da acção por uma
espécie de mímica sensomotora envolvendo todo o corpo.
Defendo que interpretamos os gestos, as posturas e as ex
pressões na TV com uma espécie de reacção submuscular vi
sível na tensão e distensão dos músculos.6 Quer isto dizer
que «sentido televisivo» não é o mesmo que «sentido lilerá-
A Pele cia Cultura 43

rio». Está mais próximo do que o psicólogo e filósofo ameri


cano Eugene T. Gendlin chama «sentido pressentido».
Gendlin define sentido pressentido como «o equivalente a
centenas de milhares de operações cognitivas» transformadas
numa só pelo corpo em resposta a estímulos e isso numa
fracção de segundo.7 Pode dizer-se que o sentido pressentido
é produto da submuscularização. Na verdade, ao experimen
tarmos os acontecimentos no nosso ambiente mais próximo,
armazenamos de várias maneiras no nosso sistema neuro
muscular os efeitos relevantes. E precisamente aquilo a que
Hans Selye chamou stress. Psiquiatra clínico de Montreal,
Selye desenvolveu a teoria da Síndrome Adaptativa Geral
(SAG) para explicar a forma como absorvemos as pressões
da vida diária e como o nosso corpo nos ajuda a gerir o stress
organizando e armazenando a sua energia.
Embora se saiba que temos dificuldade em respirar quando
ficamos ansiosos ou que coramos quando sentimos vergonha,
não temos geralmente percepção dos acontecimentos físicos
que se dão nos nossos corpos quando reagimos a pessoas e
situações. O sentido pressentido raramente é consciente.
Mas, em segundo plano, regula e condiciona a nossa reacção
global aos acontecimentos diários. O sentido pressentido pre
cede a lógica e pode ser mais exaustivo que o pensamento.
Consequentemente, o efeito profundo da televisão pode ocor
rer ao nível do sentido pressentido, deixando pouco espaço
para uma reacção. A televisão provoca Reacções Orientado
ras tecidas no nosso sistema neuromuscular.

«Ao cie leve e sempre a mudar é a


maneira como damos atenção a tudo»

Com este comentário o crítico social Michael Ignatieff


condena a televisão. Reflecle provavelmente a opinião de
44 Derrick de Kerskhove

muitos canadianos quando defende que «a TV está a tranfor-


mar-nos numa cultura viva mas superficial». É fácil atirar as
culpas para cima da televisão. Frequentemente, as pessoas,
baseadas em pouco mais do que uma suspeita, atribuem à te
levisão a instigação do mal na sociedade, desde a violação ao
assassinato e à apatia cínica. Recentemente, um grupo de ci
dadãos empenhados de Vancouver levou a sua opinião sobre
os perigos da televisão ao ponto de encomendar uma campa
nha publicitária televisiva destinada a desencorajar as pes
soas de a verem. («Esta imagem faz-lhe mal: pare de olhar
agora!»)
Há discussões sobre programação, ética, estética e inva
sões da privacidade. Mas só uma mão-cheia de críticos, pes
soas como Jerry M ander, George Gerbner, Joshua
Mcyrowitz, Neil Postman e, claro, McLuhan começaram a
perceber a mensagem profunda do meio. A TV está a desa
fiar a nossa outrora dominante e literária forma de pensar,
substituindo-a pela oralidade, táctil e colectiva. Ameaça a sa
crossanta autonomia que adquirimos através da leitura e da
escrita.

Você não vê TV, a TV vê-o a si

Não há muito de «inocente» na maneira como usamos os


nossos olhos. A observação seguinte pertence a Jean-Marie
Pradier, professor de Teatro na Universidade de Paris e fun
dador de uma associação internacional sobre Comportamen
tos Humanos Organizados.

Vida social, sexualidade e agressividade são sobretudo do


minados por componentes visuais. É talvez por isto que
olhar fixamente é um comportamento tão severamente
controlado por códigos e regras precisas. É também por is-
A Pele da Cultura 45

so que a maior parte das culturas humanas criaram objec-


tos de visionamento livre (pintura, escultura, fotografia,
filme) e indivíduos de visionamento livre (desportistas,
bailarinos, actores e actrizes, mas também prostitutas, pa
dres e figuras públicas) além de espaços de visionamento
livre (teatros, feiras e carnavais, zonas vermelhas nas cida
des) onde é permitido ser voyeur.8

Será a televisão uma zona de visionamento livre? A rele


vância desta questão surgiu-me numa perspicaz instalação de
arte vídeo de Mit Mitropoulos, artista de comunicação do
MIT. Em Face a Face, dois participantes ao vivo sentam-se
costas com costas e conversam com a imagem um do outro
em tempo real num circuito fechado de TV. Enganadoramen
te simples, a experiência foi inesquecível quando participei
como um dos parceiros de conversa. Independentemente de
já conhecer ou não o meu parceiro, senti que não haviam as
barreiras habituais como acontece quando se está a fitar des-
caradamente a cara de alguém. Quase se pode tirar «maca
cos» do nariz no contexto desta nova intimidade electrónica.
De facto, percebi pela primeira vez até que ponto sentimos
terror das caras no contacto em presença, mas o que mais me
impressionou foi descobrir que há trinta anos temos incons
cientemente observado as nossas personalidades televisivas
sem ponta de timidez. O voyeurismo televisivo é o «fitar não
censurado». Talvez a televisão seja, de facto, uma zona de vi
sionamento livre.
Pelo menos assim parece. O envolvimento profundo exigi
do pelo visionamento televisivo, o facto de a maior parte das
nossas reacções serem involuntárias parecem demonstrar
uma relação de poder entre produtor e consumidor em mu
dança. Quando lemos, exploramos os livros, temos o contro
lo. Mas quando vemos TV são os electrões explorando a su
perfície do cinescópio que nos «lêem». As nossas retinas são
46 Derrick de Kerckhove

o objecto directo do feixe de electrões. Quando essa explora


ção se cruza com o olhar e estabelece contacto visual entre
homem e máquina, o olhar da máquina é mais poderoso. Em
frente ao ecrã da televisão as nossas defesas estão em baixo;
somos vulneráveis e susceptíveis à sedução multissensorial.
Daí o verdadeiro significado de prime time não ser «hora de
maior audiência», mas sim «hora de maior apetência», isto é,
a melhor altura para trabalhar a mente do espectador. Como o
executivo publicitário e crítico televisivo de Nova Iorque,
Tony Schwartz, sugere «a TV não é urna janela sobre o mun
do, mas sim uma janela sobre o consumidor».9

«Dar uma olhadela» versu s «explorar»

Herbert Krugman, da RCA, foi notícia no início dos anos


setenta quando apresentou a sua teoria de que a televisão fa
laria ao lado direito do cérebro, enquanto os livros se diri
giam ao lado esquerdo — a parte mais racional da nossa ma
téria cinzenta. Krugman sugeria que a TV adormece o lado
esquerdo. Isto pode até ser verdade, mas nenhum trabalho de
investigação o provou satisfatoriamente até hoje. Na verdade,
nem é preciso invocar localizações cerebrais controversas. A
simples explicação de que a TV fala ao corpo e não à mente
é muito mais esclarecedora sobre o modo como a televisão
passa por cima das nossas faculdades críticas.
Contudo, Krugman sugeriu mais tarde uma teoria bem
mais interessante em que ninguém pegou. Alvitrou que as
crianças criadas em frente à televisão não olhariam para as
coisas da forma considerada normal. Em vez de usarem os
olhos sequencialmente, como se tivessem sido treinadas pe
la escrita, Krugman sugeriu que lançariam «olhadelas rápi
das».
A Pele da Cultura 47

A televisão ensina as crianças pequenas a «aprender a


aprender» de uma forma muito especial, em alguns casos
antes de saberem falar e, em muitas famílias de um baixo
estrato sócio-económico ou sociedades semiletradas, antes
mesmo de terem visto um livro. Nesses casos a criança
aprende a aprender por olhadelas rápidas. Mais tarde, se a
criança está numa sociedade onde a leitura é necessária,
confronta o novo meio de «aprender a aprender» com o
hábito adquirido por via da televisão. Tenta compreender a
palavra impressa através de olhadelas rápidas. Não funcio
na. Aprender a ler é um processo difícil, duro e — o que
pode ser uma surpresa — algo que é em muitos casos into
lerável.10

Se esta hipótese for verdadeira, então as nossas estratégias


de processamento de informação mudaram radicalmente com
o advento da TV.
Se observarmos algumas crianças a ler, parecem não per
correr o texto com o movimento consecutivo do leitor treina
do, antes «atirando» o olhar para a página como se transferis
sem a sua estratégia visual do ecrã de TV para o texto. Pare
cem dar olhadelas rápidas, por várias vezes, como se estives
sem a reunir uma imagem para dar sentido à página. Isto po
de ter um importante impacte cognitivo: em vez de explorar
os textos para criar e armazenar imagens, as crianças que
vêem TV são obrigadas a produzir generalizações a partir de
fragmentos dispersos e assim reconstituírem o objecto da vi
são. É muito diferente de dar nomes aos objectos e alinhá-los
em frases coerentes.
O texto requer regras elaboradas e convencionadas para
evitar a ambigüidade. Não espanta que precisemos de prática
repetitiva para aprender a ler e mais educação ainda para in
terpretarmos o texto na totalidade. Ninguém precisa de qual
quer instrução para ver televisão. Com a TV estamos cons-
48 Derrick de Kerckhove

tantemente a reconstruir imagens incompletas, quer no ecrã,


quer na nossa mente. Este é um processo dinâmico que tem
algumas das características dos nossos sistemas nervosos. A
TV corta a informação em segmentos minúsculos e frequen
temente desligados entre si, juntando tantos quanto possível
no menor tempo possível. Nós completamos as imagens, fa
zendo generalizações instantâneas a partir de algumas pistas.
Ao mesmo tempo, programadores e montadores aprenderam
a aproveitar a nossa prontidão em preencher as brechas. Isto
não implica que estejamos a fazer sentido, estamos apenas a
fazer imagens. Fazer sentido é coisa diferente, não necessa
riamente essencial para ver televisão.

Montagem versu s modulação

A televisão, na pcugada do filme, adoptou a montagem ci


nematográfica como norma. Mas como o seu meio é o impul
so electromagnético, a TV está mais próxima da música do
que da fotografia. Sendo um dispositivo integralmenle elec
trónico, como o telefone ou o rádio, a televisão é um modula-
dor. Para montar um filme ou uma imagem, temos de cortá-
-lo e juntá-lo depois a outros segmentos cortados. Montamos
imagens de acordo com uma história que temos na cabeça,
juntando-as para se adaptarem ao texto. A montagem de fil
mes é um processo similar, excepto no facto de ser feita fora
das nossas mentes. De certa forma, quando vemos um filme
é a nossa mente que está a ser montada no processo.
Com a televisão a rápida manipulação das nossas reacções
neurofisiológicas, o nosso sistema de sentido pressentido, vai
muito além da montagem imagem a imagem. É tão rápida,
tão contínua, tão poderosa que é mais uma modulação mag
nética da nossa sensibilidade. A televisão modula as nossas
emoções e as nossas imaginações de uma maneira compará-
A Pele da Cultura 49

ve! ao poder da música. Por isso o videoclip é naturalmente


uma criatura televisiva.
Este é outro aspecto da misteriosa dimensão táctil que
McLuhan atribuía à televisão. Quando sugeriu em obras
mais tardias que «o meio é a massagem», troçando do seu
famoso aforismo, queria na verdade dizer que a televisão
nos acaricia c impregna o seu significado por debaixo da
nossa pele.
A TV prefere a repetição à análise e o mito ao facto. Es
tampa os seus ícones na nossa psique tão bem como nas pa
redes das nossas cidades. A homogeneidade espalha-se como
um fogo florestal através da TV, já que ninguém quer ser
apanhado fora de moda. Qualquer centro comercial é TV «de
passagem». Sons, cores e formas de TV que são as expres
sões sensoriais da nossa sensibilidade colectiva.11 Mas a ar-
regimentação televisiva da nossa sensibilidade assume outras
formas, como os risos e aplausos enlatados ou, num nível
mais subtil, as votações electrónicas. A maior parte do que
aparece nos noticiários ou documentários é pré-digerido e
apresentado num formato estereotipado para uma dentada rá
pida, como fast food. Não terá a TV criado uma cultura de
massas, fazendo desaparecer o espaço da reflexão privada e
autonomia de escolha? O sucesso súbito de Trivial Pursuit
parece indicar que a maior parte de nós partilha aproximada
mente o mesmo corpus de conhecimentos triviais. Ern tudo
isto, a TV pode muito bem estar a pensar por nós — pelo
menos a parle que nos exige sermos rápidos e completos.
Embora nem sempre precedendo os nossos pensamentos, pa
rece ser porta de entrada para participações individuais neste
constante ruminar colectivo. Pode também ter sido a porta de
entrada das mulheres no espaço público.
50 Derrick de Kerckhove

Ecrãs de TV

O eleito psicológico mais ignorado da televisão é prova


velmente o faclo de esta ter tornado externo tanto o contexto
como o programa do processamento de informação pessoal.
Na estrutura psicológica criada pela literacia, o nosso progra
ma é o alfabeto. Está, por um processo qualquer, interioriza
do, tendo afectado de modo semipermanente a organização
do nosso sistema visual. Por outro lado, o «quadro», a nossa
organização perspectivista de tempo e espaço, está do lado
de fora. Com a televisão, tanto o quadro como o programa
estão do lado de fora. A programação funciona de fora para
dentro. Mesmo o nosso tempo é pormenorizadamente pro
gramado pela hora televisiva. O quadro é, evidentemente, o
próprio ecrã de TV. Sendo bidimensional, elimina instanta
neamente a perspectiva. McLuhan comentou que não pode,
literalmente, haver um ponto de vista em frente à TV. Para
além do facto de, como sucede com qualquer meio usando
filme ou vídeo, o ponto de vista ser inevitavelmente forneci
do pela câmara-, existe também a impossibilidade de mudar o
ângulo de visão em frente a um pequeno ecrã bidimensional.
O ecrã de TV é um quadro de prescrição percept iva rigorosa,
porque, de uma vez só, enquadra todas as dimensões de tudo
o cjiie houver para ver, foca o olhar e atenção do espectador e
condiciona absolutamente a forma como a informação é pro
cessada e distribuída.

Recuperando a autonomia

Não obstante, a difusão televisiva pode ter chegado ao


ponto máximo de maturação, senão de saturação. De facto a
era da teledifusão teve o seu ponto mais alto provavelmente
no iuUi aos anos 60, princípio dos anos 70, coincidindo não
A Pele da Cultura 51

acidentalmente, com os Baby Boomers*. Durante a ultima


parte dos anos 70, a TV foi cedendo mais e mais controlo aos
computadores. A palavra-chave aqui é controlo. Tal como fo
mos outrora plasticina humana moldável pela manipulação
televisiva, estamos agora a acordar para a hipótese de res
ponder aos nossos televisores. Para além de aprender a res
ponder aos nossos ecrãs, graças à explosão dos números de
computadores nos lares dos anos 80, entrámos num programa
educativo de quatro fases conduzido pela tecnologia, convi
dando-nos a ser produtores.

1 «Como Mudar de Canal» foi o nosso curso para princi-


piantes de montagem,
c 2 A gravação e leitura em vídeo foi o nosso curso intermé
dio em produção.
^ 3 As tecnologias portáteis de VIIS e HIGH-8 (incluindo
sistemas de montagem melhores e mais baratos) permitem a
V-' qualquer um exprimir-se em formato filme. Uma nova litera
tura electrónica poderá estar a nascer. A câmara de vídeo está
em vias de se tornar uma caneta electrónica.
4 Com teclados e ratos, aprendemos a actuar sobre as pro
priedades de processamento de informação no ecrã, de uma
forma interactiva.

Na verdade, a rápida e universal adopção de computadores


pessoais pode ser entendida como o necessário protesto do
indivíduo numa sociedade dominada pelo vídeo. O computa
dor recuperou parcialmente o equilíbrio entre as formas de
pensar alfabéticas e videográficas, ao criar uma espécie de li
vro electrónico. Mas é precisamente neste ponto de junção
que precisamos de reavaliar os nossos conceitos sobre o meio
e as suas funções.
* A geração nascida logo após a Segunda Guerra Mundial, que alingia nessa altu
ra a idade adulta. (N. T.)
52 Derrick de Kerckhove

Os computadores permitem-nos «responder» aos nossos


ecrãs e consequentemente introduzem o segundo elemento
que conduzirá à exteriorização da nossa consciência. Res
ponder implica uma qualquer forma de interface. É por isso
compreensível que muito do trabalho desenvolvido na con
cepção de melhores computadores se tenha centrado em me
lhorar as interfaces e torná-las mais amigáveis. Simultanea
mente, a interface tornou-se o lugar principal de processa
mento de informação. É precisamente aí que a fronteira entre
interior e exterior começou a perder nitidez. A questão im
portante que persegue os psicólogos cognitivos hoje é se, ao
usarmos o computador, somos mestres ou escravos — ou um
pouco de cada um deles. Serão as rotinas de programação
eventos puramente exteriores que dizem respeito a uma má
quina objectiva ou tenderão a impôr um protocolo de opera
ções tão rigoroso que nos tornam em meras extensões do
programa? A única resposta possível a esta questão funda
mental é reconhecer que os computadores criaram uma nova
forma de cognição intermédia, uma ponte de interacção con
tinuada, um corpus callosum entre o mundo exterior e os
nossos cus interiores.
CAPÍTULO TRÊS

PROGRAMA ALFABÉTICO

As Origens da Tecnologia na Linguagem

«Para eles eu inventei os números, a primeira das ciências, mas


também ensinei os humanos a combinarem as letras, memória
de todas as coisas, mãe de todas as artes.»
— Esquilo, Prometeu Agrilhoado

Podemos considerar que, a partir do momento em que apren


demos a ler, o alfabeto influencia a nossa relação com o tempo
e com o espaço. Por exemplo, no espaço visual ocidental, o
passado está à esquerda e o futuro é o lugar para onde corre a
escrita, para a direita. Para ilustrar esta tese olhe-se para os rec-
tângulos na Figura 1. Que linha sobe e que linha desce?

ABCOEFGHIJKLM NOPQRSTUVW XYZ

Figura i
54 Derrick de Kerckhove

Se seleccionar a da esquerda como a descendente, é prová


vel que o seu principal sistema de leitura não seja o alfabeto
romano. Mas se for, a sua propensão para ler da direita para a
esquerda, e o arrastamento do campo visual direito, permitir-
-lhe-ão apenas concluir que a acção, o tempo e a realidade
avançam da esquerda para a direita.

A invenção do dinheiro

Prometeu, o deus do lado esquerdo do cérebro, é tido co


mo o inventor do alfabeto grego. Mas, de acordo com Ésqui-
lo, Prometeu terá inventado primeiro a aritmética. A verdade
nesta história está muito provavelmente relacionada com o
facto de, nas sociedades primitivas, a invenção da escrita es
tar directamente relacionada com a invenção do dinheiro. Va
le a pena contar a história que se segue porque estas duas in
venções, a do dinheiro e da escrita, determinaram a nossa
cultura por dois mil e quinhentos anos.
Quando a investigadora americana, Denise Schmandt-Bes-
serat resolveu o mistério dos símbolos sumários, realizou
uma das mais interessantes descobertas arqueológicas dos úl
timos tempos12. Quando percorria os locais onde viveram ci
vilizações antigas junto ao Mediterrâneo Oriental, reparou
nuns pequenos símbolos estranhos de cerâmica que se encon
travam em muitos dos museus locais. Os símbolos eram do
tamanho de berlindes. Alguns tinham forma de boi, de espiga
ou de ânfora. Outros possuíam formas geométricas indecifrá
veis. Ninguém sabia para que serviam estas relíquias de bar
ro, embora alguns arqueólogos as tomassem por brinquedos.
A melhor sugestão provinha dos conservadores dos museus
locais que achavam que eram uma forma de dinheiro.
Seguindo esta pista, Denise Schmandt-Besserat começou a
recolher e classificar todos os símbolos que conseguiu en-
A Pele da Cultura 55

contrar, olhando para as suas diferenças e semelhanças de to


dos os pontos de vista. A primeira coisa que descobriu foi
que estes símbolos se encontravam em vários sítios arqueoló
gicos por todo o Próximo e Médio Oriente. Em segundo lu
gar conclui que o número de formas e padrões básicos não
excedia os trinta, apesar de sofrerem marcadas alterações lo
cais. A descoberta seguinte foi a de que os símbolos tinham
sido encontrados entre cacos de cerâmica quebrada. A pri
meira vista, pensando que os potes eram recipientes vulgares
onde os símbolos tinham estado guardados, Schmandt-Besse-
rat não se preocupou em reconstruí-los. Mas depressa mudou
de opinião quando viu marcas misteriosas em alguns dos
fragmentos e quando, mais tarde, encontrou um recipiente in
tacto com símbolos lá dentro. Esta vasilha, intacta e sem
marcas, era oca. Quando agitada, parecia conter pedaços de
cerâmica. A hipótese de Schmandt-Besserat confirmou-se
através de um exame com raios X: continha, de facto, uma
série de símbolos.
A questão que agora se colocava era por que é que os sím
bolos precisavam de estar escondidos? Depois de reexaminar
as marcas em alguns dos fragmentos, Schmandt-Besserat con
cluiu que as formas rudimentares tinham sido feitas pela pres
são de um objeclo redondo no barro antes de este secar. O sig
nificado disto tudo já tinha ocorrido a Schmandt-Besserat,
mas estava determinada a certificar-se de todos os detalhes
antes de tirar conclusões precipitadas. Todos os símbolos e os
pedaços de cerâmica foram classificados e catalogados com
as datas, locais e contextos precisos em que tinham sido en
contrados. Ao cabo de alguns meses, Schmandt-Besserat
havia encontrado um número significativo de «bullas», como
chamou aos recipientes, intactas e partidas. O mais importan
te, no entanto, era o facto de algumas das últimas «bullas» en
contradas trazerem marcas que correspondiam exactamente
ao número e formas dos símbolos que continham.
56 Derrick cie Kerckliove

Um ultimo achado confirmou a Schmandt-Besserat a certeza


de que tinha encontrado, não só as origens do dinheiro «im
presso», como também da própria escrita. Entre as últimas
«bullas», Schmandt-Besserat encontrou umas placas rectangu-
lares finas com marcas idênticas às encontradas na face das
«bullas». Isto indicava que, se as «bullas» eram de facto usadas
para representar dinheiro, então estas peças chatas de cerâmica
eram as primeiras notas — a descoberta do dinheiro dos Flints-
tones, por assim dizer. Escavando mais fundo 11a antiga história
do dinheiro, regressando uma e outra vez aos pequenos museus
locais, Schmandt-Besserat encontrou grandes quantidades de
placas chatas com simples marcas geométricas 011 simbólicas.
Mais investigação cronológica levou às seguintes conclusões:

1. Primeiro, os símbolos eram usados sem recipiente para


simbolizar itens reconhecíveis como carneiros, trigo e ânfo-
ras de vinho e azeite. Seriam usados como notas promissó
rias que garantiam a clareza dos negócios e das trocas. Como
pagamento de bens e serviços seria dado um par de símbolos
de ovelhas que prometia uma futura amortização com um par
de ovelhas reais.
2. Mais tarde, os símbolos passaram a ser reunidos numa
«bulla», talvez para simplificar as grandes transacções, mas
mais provavelmente para assegurar a protecção contra a cunha
gem fraudulenta de símbolos. Na mesma época os símbolos
começaram provavelmente a assumir formas mais geométricas
e menos naturalizadas, já que a sociedade os tinha aceitado co
mo uma prática codificada fiável.
3. Com o passar do tempo as pessoas perceberam que não
era prático ter de partir a «bulla» para saber exactamente o
que continha. A solução foi fazer uma marca na parte exte
rior das «bullas».
4. Mas agora, que havia maneira de saber o que havia den
tro das «bullas» sem ter de quebrá-las, por que razão usar a
A Pele da Cultura 57

«bulla»? Afinal podiam fazer-se as mesmas marcas num ma


terial mais resistente e mais portátil. Daí a criação das placas
de dinheiro.

Até agora, tudo bem. Mas o que é que isto tudo tem a ver
com a invenção da escrita? É aqui que Denise Schmandt-
-Besserat nos dá um exemplo de verdadeira dedicação inves
tigadora. Outra pessoa qualquer poderia ter-se contentado em
responder à questão original. Em vez disso, Schmandt-Besse
rat regressou ao quadro original e regrediu no trilho arqueo
lógico para desvendar a história exacta das próprias placas de
dinheiro. E que não só encontrou uma progressão visível na
complexidade simbólica das placas, como também descobriu
que os desenhos, a partir do terceiro milênio a. C., na Sumé-
ria, estavam a tornar-se menos naturalistas e mais estilizados
— como se as marcas já não fossem representações literais.
Para completar, as últimas placas indicavam números, sem
repetir os símbolos, mas juntando ao símbolo um sinal espe
cífico mostrando o valor ou a quantidade. Schmandt-Besserat
avançou mais um pouco, até ao ponto em que se pode final
mente estabelecer a relação entre o dinheiro e a escrita. Mui
tas das formas estilizadas mais simples que se encontravam
nas placas de dinheiro podiam também ser encontradas entre
os primeiros exemplares de escritos sumérios. Escritos que
sobreviveram até hoje.
Em resumo, juntando milhares de anos, foi isto que acon
teceu:

1. A invenção das placas estabeleceu a fórmula, o meio e


os princípios do processo de simbolizar coisas reais através
de marcas.
2. O uso das placas revelou que se podia estabelecer um
sistema de comunicação fiável e universal, aceite por todos
os membros da mesma cultura.
58 Derrick cie Kerckhove

3. O número de transacções permitido por este sistema era


ilimitado. A quantidade de bens e serviços permitida por este
sistema simbólico estava apenas limitada pela imaginação
dos desenhadores.
4. Deve ter ocorrido aos utilizadores que, se os objectos
podiam ser representados desta forma, então a linguagem
também podia — apesar do caracter rudimentar dos códigos
pictográficos desenvolvidos pelos sumérios.

O que se seguiu é bem sabido. Os acadianos arrebataram o


sistema sumério de pictogramas estilizados e adaptaram-no à
sua linguagem. Só que em vez de representarem imagens e
idéias, os sinais eram usados para representar os sons da lín
gua. Assim foi criado o primeiro silabário, um sistema co
nhecido por cuneiforme, que teve uma influência importante
no desenvolvimemto do alfabeto fenício e depois também no
grego e no romano.
Desenvolvido e aperfeiçoado ao longo de cinco milênios,
o alfabeto tornou-se o mais importante conceito, ocupando
a mente, a alma e-o corpo de qualquer cultura humana até à
descoberta da electricidade. A contabilidade e a aritmética
são já aclividades cerebrais — têm nomeadamente relação
com a chamada parte esquerda do cérebro. Assim como a
linguagem. Não é, por isso, nem surpreendente nem irrele
vante que a linguagem e o dinheiro tenham sido inventados
num contexto comum, porque ambos são projecções cultu
rais tia propensão selectiva do hemisfério esquerdo do cére
bro. Todos os sistemas de escrita, mesmo os que fazem
mais uso da parte direita do cérebro para o desenho e deci-
fração, retornam às funções do hemisfério esquerdo. Quan
to mais não seja porque, por necessidade, retornam à lin
guagem, uma função do hemisfério esquerdo. No entanto,
nenhum sistema de linguagem inventado até hoje deu uma
ênlase mais radical ou mais exclusiva às propcnsões selecti-
A Pele cia Cultura 59

vas da parte esquerda do cérebro do que o alfabeto fonético


greco-romano. Todos fomos criados sob a sua influência,
claro.
Este é um bom ponto de partida. Porque se se consegue ler
isto que escrevo, isso é um exemplo de como o cérebro pode
ser afectado por uma tecnologia como o alfabeto fonético.

O alfabeto e o cérebro

Nos últimos dez anos, estudiosos de vários países têm ten


tando determinar se o facto de escrevermos da esquerda para
a direita afecta a nossa forma de pensar13. Por outras pala
vras, qual foi o impacte dos alfabetos grego e romano no
conteúdo e estrutura das nossas mentes?
A hipótese que se coloca é a de que o alfabeto teria tipo
um papel determinante ao acentuar tempo e seqüência, as
duas funções essenciais do hemisfério esquerdo do cérebro
humano. A longo prazo isto conduziu à dependência tipica
mente ocidental da racionalidade e da racionalização de toda
a experiência, incluindo a da percepção do espaço.
Umas das primeiras e raras sugestões sobre a correlação
entre a teoria da especialização do cérebro e a escrita foi feita
por Joseph E. Bogen. «Muito possivelmente é uma assime
tria anatômica que está na base do potencial para a especiali
zação cerebral.»14 Aqui também se torna claro que desenvol
vemos as nossas potencialidades de acordo com o meio am
biente. Embora saibamos que todos os seres humanos, de
qualquer cultura, têm capacidades inatas para aprendeç a ler e
a escrever, muitos permanecem analfabetos e nunca adqui
rem as funções cerebrais específicas do hemisfério esquerdo.
Assim podemos compreender, no sentido inverso, a existên
cia de uma sociedade na qual «a iliteracia do hemisfério di
reito» seja regra. Uma das especializações do hemisfério di-
60 Derrick de Kerckhove

reilo é a arte, por isso a incapacidade dc desenhar bem é um


sintoma da iliteracia desta parte do cérebro. Muitos conse
guem escrever uma boa descrição da cara de um amigo, mas
poucos conseguem desenhar uma representação identificável
dessa mesma cara.
A teoria que introduzi em The Alphabet and the Drain:
The Lateralization of Writing parte do facto de que, quando
os gregos antigos criaram o alfabeto, por volta do século
VIII ã. C , mudaram a direcção da escrita do modelo fenício
— da direita para a esquerda — para a direcção da esquerda
para a direita a que estamos habituados.15 Há uns anos, na
tentativa de descobrir se havia alguma característica corres
pondente entre as estruturas internas da ortografia e a sua
orientação na superfície da escrita, fiz um inquérito de todos
os sistemas escritos do mundo. Os resultados foram sur
preendentes.
Todos os sistemas escritos que representam sons são escri
tos horizontalmente, mas todos os que representam imagens,
como os ideogramas chineses ou os hieróglifos egípcios, são
escritos vertical mente. As colunas verticais dos sistemas ba
seados em imagens são geralmenle lidas da direita para a es
querda.
Todos os sistemas de escrita com vogais, com excepção do
etrusco, são escritos da esquerda para a direita. Para perceber
este facto tive de estudar o cérebro e os sistemas visuais.
A minha teoria refere-se não só ao alfabeto grego mas
também ao impacte geral da literacia verbal e pode ser resu
mida em três hipóteses básicas. Cada ponto é suportado por
provas históricas específicas.

1. É a estrutura intrínseca da linguagem que determina a


direcção da escrita. Sistemas como o grego, o latim ou o etío-
pc, que foram desenhados com base no sistema das consoan
tes, ou seja, da direita para a esquerda, podem mais tarde ter
A Pele cia Cultura 61

vindo a mudar a direcção da escrita, mas só depois das vo


gais terem sido acrescentadas ao modelo original.
2. A escolha da direcção depende do processo de leitura.
Se este se estabelece pela combinação de letras determina
da pelo contexto é da direita para a esquerda, se se estabele
ce pela criação de uma corrente seqüencial é da esquerda
para a direita. Isto acontece porque o cérebro humano reco
nhece mais rapidamente configurações no campo de visão
esquerdo, enquanto as seqüências são mais rapidamente re
conhecidas no campo visual da direita. A mudança de di
recção da escrita grega deu-se pouco depois de os gregos
terem acrescentado um conjunto completo de vogais à lin
guagem fenícia, constituída apenas por consoantes. A pre
sença das vogais tornou contínua a seqüência das letras. O
sistema inicial era uma linha descontínua de símbolos que
só precisavam de serem lidos no contexto, não sequencial-
mente.

O facto do nosso alfabeto só ter mudado de direcção quan


do adquiriu vogais dá força à minha hipótese: a estrutura da
linguagem fez pressão para que o cérebro desse ênfase às ca
pacidades de processamento seqüencial e «ordenadas pelo
tempo».
Uma vez que a literacia é geralmente adquirida durante a
formação e já que afecta a organização da linguagem — o
mais completo sistema de processamento de informação —
há boas razões para suspeitar que o alfabeto também afecta a
organização do pensamento. A linguagem é o software que
conduz a psicologia humana. Qualquer tecnologia que afecte
significativamente a linguagem afecta também o comporta
mento física, emocional e mentalmente. O alfabeto é como
um programa de computador mais poderoso, mais preciso,
mais versátil e mais completo do que qualquer software es
crito até hoje. É um programa desenhado para fazer funcio-
62 Derrick de Kerckhove

nar o instrumento mais poderoso da natureza: o ser humano.


O alfabeto encontrou o seu papel no cérebro: especificar as
rotinas que iriam suportar o software de funcionamento arti
culado na brainframe cerebral letrada. O alfabeto criou duas
revoluções complementares: uma no cérebro, a outra no
mundo.

Enquadrar o cérebro

Não escrevemos para a direita só porque foi assim que nos


ensinaram mas principalmente porque é a forma como o cé
rebro e o sistema visual querem que façamos. Poucos perce
bem que os dois olhos são feitos de quatro meio olhos: dois
para cada lado do campo visual. As metades esquerdas são
comandadas pela parte esquerda do cérebro e as direitas pela
metade esquerda.
Esta é a mais remota relevância da questão da direcção da
ortografia. Estudos clínicos revelam que não «vemos» da
mesma maneira para a esquerda e para a direita. O que ve
mos para a esquerda é literalmente apreendido — tomado to
do de uma vez. Mas o que vemos para a direita é analisado
bocadinho a bocadinho. Esta divisão corresponde precisa
mente às diferenças que se estabelecem entre as propensões
dos dois hemisférios. Com efeito, o que fazemos com os
olhos está tão dividido como o que fazemos com as mãos. As
duas metades esquerdas apreendem o mundo, as duas direitas
dividem-no nos seus componentes.
A Pele da Cultura 63

Me Metade esquerda
Md Metade direita
C Campo visual
D Direita
E Esquerda
O Quiasma óptico
C Corpo caloso
Cd Campo visual da metade
direita
Ce Campo visual da metade
esquerda
He Hemisfério esquerdo
Hd Hemisfério direito

Figura 2

Por que é que isto é relevante para a questão do alfabeto?


Para ler qualquer sistema escrito, tem de reconhecer-se a for
ma dos símbolos e analisar seqüências de símbolos. Depen
dendo de qual dos dois é mais importante, a seqüência ou a
forma, a direcção do sistema terá tendência para estabelecer-
-se para a direita ou para a esquerda. Se se tiver de adivinhar
e verificar a escrita, é importante ver a forma primeiro. Por
exemplo, os leitores árabes e hebraicos têm de reverificar os
textos porque adivinham as vogais não escritas. Para um re
conhecimento instantâneo de uma superfície inteira o campo
esquerdo de visão funciona melhor e mais rapidamente que o
da direita. Por outro lado, quando se lê holandês ou inglês,
tem de ver-se primeiro a ordem das letras, uma após outra:
uma tarefa realizada melhor pelo campo direito de visão. É
por isso que o nosso alfabeto, um sistema linear, seqüencial,
de informação codificada, se escreve para a direita. Esta era,
aliás, a minha primeira hipótese.
64 Derrick ele Kerckliove

A minha segunda hipótese diz respeito à forma como


aprender a ier e a escrever vai condicionar as rotinas básicas
do processamento da coordenação entre os olhos e o cérebro,
que, por seu lado, exercerão um efeito de feedback nos ou
tros processos psicológicos e sensoriais. Embora os actuais
meios de investigação não nos permitam avançar suficiente
mente dentro do cérebro, de forma a permitir uma verifica
ção clínica destas teses, pode facilmente ser demonstrado que
um dos mais importantes resultados da cultura alfabética é a
criação de um «quadro» ou uma configuração para a mente.
É a ideia de «perspectiva» que caracteriza a configuração al
fabética da mente. Desta forma, o alfabeto terá provavelmen
te alterado a maneira como vemos o mundo.

Enquadrar o mundo

O efeito mais visível e, na minha opinião, mais importante


da revolução alfabética foi a invenção da perspectiva. A
perspectiva, ou a arte de representação proporcional do espa
ço a três dimensões, é uma projecção directa da consciência
letrada. Ou seja, é a imagem invertida da organização da
consciência letrada. Ao contrário da opinião comum, não há
nada de natural na perspectiva. É até uma forma altamente
inventiva de representar o espaço. Se olharmos à volta, em
bora possamos impor um modelo perspectivista ao que nos
rodeia, nada nos obriga a fazê-lo. Nada do que vemos nos
aparece naturalmente como um ponto de fuga. Porque estou
a escrever no Sul de França, lembro-me da forma como Cé
zanne tentava vezes sem conta pintar quadros não perspecti
vados da montanha Sainle-Victoire por detrás de Aix-en-Pro-
vence.
A perspectiva é a divisão do espaço em segmentos propor
cionais. Numa ilustração de qualquer tratado sobre perspectiva
A Pele da Cultura 65

de Alberti ou Dürer, o que chama primeiro a atenção é a densa


rede de linhas que se juntam a cada elemento ou estrutura. Em
causa está uma precisão dolorosa ao medir as distâncias exac-
tas de um ponto ao outro, como se a ordem rigorosa de inter
valos entre as suas proporções «reais» fosse tão importante pa
ra o desenhador como o desaparecimento de todas as linhas
convergentes no mesmo ponto de fuga central. E claro que esta
medição ubíqua que se impõe pode ser interpretada como um
mero guia do pintor novato para estabelecer a perspectiva.
No entanto, há uma outra maneira de compreender esta
forma de representar o espaço. Ao mostrar no papel a redu
ção proporcional do tamanho e da distância como uma visão
que diminui a partir do ponto de vista, o desenhador está a
colocar o tempo no espaço. O artista está a representar uma
ordem sucessiva de objectos numa realidade espacial. Não
está a mostrar o que lá está realmente, mas como deve apare
cer ao observador. Não está a mostrar «o espaço real», mas o
espaço organizado por uma visão altamente selectiva e con
dicionada. E o condicionamento do tempo sobre o espaço. O
espaço «real» devia mostrar as distâncias tal e qual elas são.
O condicionamento temporal mostra-as com uma ordem hie
rárquica de aparecimento, ou melhor, neste caso, de desapa
recimento. Por que é que se quererá fazer isso?
Para nos orientarmos na vida não há necessidade de uma
representação científica ou naturalística do espaço tridimen
sional. Muitas outras propriedades do sistema visual, mesmo
na visão monocular, contribuem para a nossa apreciação da
profundidade de campo. Não precisamos nem queremos real
mente ver as coisas em perspectiva, a não ser que nos seja
pedido que calculemos as proporções do campo visual, por
exemplo, quando conduzimos. Na arte, especialmente nos
desenhos das crianças, também não há necessidade de pers
pectiva. Quando não são orientadas, as crianças não se preo
cupam em desenhar os objectos em perspectiva. Os chineses,
66 Derrick de Kerckhove

os egípcios e as culturas africanas permaneceram indiferentes


à perspectiva. Mesmo a nossa cultura não deu importância à
perspectiva na época medieval. As pessoas só desenvolvem o
gosto pela perspectiva em tempos de grandes incrementos de
alfabetização. Ou seja, primeiro, quando aprenderam a ler, na
época de ouro da Grécia Antiga, e mais tarde, por alturas da
invenção da imprensa por Johannes Gutenberg. A descober
ta, primeiro do escorçamento, na Grécia, nos séculos V e VI
a. C., e depois da perspectiva, entre os fins do século XII e o
final do Renascimento, são, de facto, os melhores exemplos
de como o alfabeto reenquadron a mente.16
A minha sugestão é que o aumento da participação do he
misfério esquerdo, requisitado para a leitura, leva a uma mais
intensa colaboração dos dois lados do cérebro ao encorajar e
suportar a visão em estéreo. A visão binocular coloca tudo
«em perspectiva», por assim dizer. O cérebro precisa de dois
olhos, olhando de dois pontos de vista ligeiramente diferen
tes, para calcular as proporções de espaço entre os objectos.
Para atingir a perspectiva, o cérebro é levado a calcular pro
porções juntamente com o produto final da combinação dos
campos visuais dos dois olhos. É o hemisfério esquerdo, e
não o direito, que faz estes cálculos e assim analisa o campo
de visão. No entanto, o processo não decorre unilateralmen-
te: é bastante complexo. Tal como já mencionei, a totalidade
do campo de visão é constituída por quatro semiolhos. Esta é
a base do chamado quiasma óptico. A divisão de cada olho
em duas partes é considerada crítica para a compreensão do
mecanismo fundamental da visão porque, embora cada parte
do mesmo olho esteja exposta sensivelmente â mesma área
de visão, não vê da mesma maneira.
A visão perspectiva tornou-se um sistema privilegiado de
representação. No início do Renascimento, os ricos mecenas
começaram a clamar por esta excitante maneira de represen
tar a realidade. Deve ter sido quase mágico descobrir a pers-
A Pele da Cultura 67

pectiva nas grandes obras de arte do Renascimento. A excita


ção provinha não só da novidade mas também da concordân
cia daquilo que as pessoas mais cultas observavam com aqui
lo que acontecia dentro das suas cabeças. Estavam a olhar
não só para um modelo de organização da informação visual
e espacial mas também, e isso devia ser muito mais impor
tante para eles, para um modelo de organização do próprio
pensamento. Estava a criar-se uma nova ordem — a ordem
da perspectiva.

Parar o munilo

Ver as coisas em perspectiva significa colocar tudo no seu


lugar, com as proporções certas para a mente humana. A ra
cionalidade, que vem do latim ratio, também implica um
sentido da proporcionalidade. O racionalismo é o estudo de
objectos, noções e relações não simplesmente isolados mas
considerando a sua proporção com todas as outras coisas que
pertencem à mesma ordem. A racionalidade faz parte da psi-
codinâmica do alfabeto e expressa-se, sem dúvida, no quadro
perspectivo.
O grande problema da realidade é ser demasiada e estar
sempre a mudar, sempre a modificar-se quando a tentamos
agarrar. Pelo contrário, o tipo de realidade enquadrado pela
perspectiva é muito selectivo e muito fiável. Através do uso
da perspectiva, a moldura cerebral manipulou as duas coor
denadas dominantes da realidade, o tempo e o espaço, e fê-
-las parar. Tal como a visão natural divide a sua tarefa entre
ver um objecto e analisá-lo, a perspectiva, como estratégia
visual, permitiu à nossa cultura segurar o mundo no espaço e
analisá-lo no tempo.
Uma história que costuma contar Michael Smart, um topó-
grafo que trabalha para o Governo canadiano, serve para
68 Derrick de Kerckhove

ilustrar como foi fulcral para a nossa percepção da realidade


esta forma excepcional de manusear o tempo e o espaço. Mi
chael estava a trabalhar na floresta a norte do estado de Ontá-
rio com um guia Algonquin, a definir as características do
terreno e a recuperar os nomes originais dos rios, colinas, va
les e outras referências topográficas. A dado momento, Mi
chael disse ao guia: «Eh, estamos perdidos!» O guia respon-
deu-lhe com um ar de estranheza: «Não estamos perdidos, o
terreno é que está perdido.»17 Naquele momento Michael
percebeu que havia um aspecto muito importante a separar a
sua visão do mundo da do seu guia: para Michael o espaço
estava fixo c ele era um agente livre para mover-se através
dele, como um actor num palco, uma vasta área onde as pes
soas podiam perder-se. O guia via o espaço como algo dentro
do corpo, e não fora, um meio fluido e sempre a mudar no
qual ninguém podia perder-se, onde o único ponto fixo do
universo era ele próprio, e onde ele, embora pusesse um pé à
frente do outro, nunca se movia realmente. Há culturas onde
o acto de andar não é visto como atravessar o espaço mas co
mo empurrar o espaço debaixo dos pés.
Para nós, ocidentais, o alfabeto, ao acentuar as propriedades
temporais do cérebro, regulou a colaboração entre os dois he
misférios cerebrais estabilizando e focalizando a relação com a
natureza. Começámos a ocupar e a manipular o espaço cm vez
de sermos manipulados e ocupados por ele. Assim não admira
que a rápida progressão da lileracia no Renascimento tenha si
do acompanhada de um igualmente rápido progresso da explo
ração do mundo, da geografia e da astronomia.

Dividindo o mundo: os códigos originais


*

As propriedades seqüenciais do alfabeto condicionaram a


mente ocidental a dividir a informação em pequenos pedaços
A Pele cia Cultura 69

e a voltar a juntá-los numa ordem da esquerda para a direita.


O alfabeto tornou-se então a base de inspiração e o modelo
para os mais poderosos códigos da humanidade: a estrutura
atômica, a cadeia genética de aminoácidos, o bit dos compu
tadores. Todos estes códigos têm um enorme poder de acção
e de criação e todos eles estão enraizados no modelo básico
do alfabeto.
Foi o programa mental lingüístico e o modelo alfabético,
por exemplo, que orientaram a mente no sentido de aprofun
dar as matérias analisando entidades cada vez mais pequenas,
até ao átomo. O átomo é só uma ideia — não tem realidade
física, com excepção de um estado transitório. No entanto,
mesmo como ideia, contém mais poder físico do que tudo o
que foi inventado pelo homem. A ideia'do átomo foi desco
berta por Demócrito de Abdera no século V a. C. Sem o mais
pequeno indício, Demócrito chegou à conclusão de que os
elementos da matéria deviam ser como os fonemas indivisí
veis do alfabeto, inventando assim a noção que um dia mais
tarde, no ano de 1945, ameaçaria destruir o mundo. O poten
cial desta descoberta não reside na inteligência poética de
Demócrito, que teve a sorte de encontrar a metáfora adequa
da, mas no princípio de divisão impresso 11a mente educada
dos gregos e, portanto, nas nossas mentes — o alfabeto.
O código genético, o código da vida, é uma forma primiti
va de estrutura alfabética de quatro aminoácidos combinados
de várias maneiras por forma a completarem séries. A enge
nharia genética faz-se a partir daquilo a que se chama a re-
combinação do ADN, uma espécie de reescrita da estrutura
genética original. Novas formas de vida são criadas com o
empréstimo de informação de uma célula, colocando-a nou
tra proveniente de uma espécie diferente. A informação des
tacada do seu contexto é chamada «ARN mensageiro». Tudo
o que seja escrito a partir do alfabeto é como o ARN mensa
geiro — informação em bruto sem contexto vivo. O segredo
70 Derrick de Kerckhove

da inovação e da invenção está em destacar informação de


um contexto e colocá-la noutro. É por isso que o alfabeto é o
único sistema de escrita em todo o mundo que, logo após a
sua criação, mudou a orientação da cultura humana de tradi
ção — retirando ao passado os modelos de comportamento
— para a inovação, projectando sempre para o futuro a ardi
losa resolução dos problemas da humanidade através de uma
série de inovações.

«A tinta letrada»

Graças ao programa instalado nas nossas cabeças pelo alfa


beto, inventámos o direito, a história, a geografia, a gramáti
ca, a física, a geometria, a astronomia, a arte, a arquitectura e
praticamente todos os ramos do conhecimento. Como elegan
temente escreveu Paul Levinson: «A adição de uma gota de
tinta azul num copo de água resulta não numa gota azul com
água mas em água azul: uma nova realidade.»18 Como mos
trou McLuhan, a criação do hábito de literacia não teve como
resultado a criação de um mundo pré-letrado ao qual se adi
cionaram alguns leitores, mas a de um mundo letrado: um
mundo novo em que tudo é visto através dos olhos da litera-
cia.
CAPÍTULO QUATRO

CIBERESPAÇO

«O futuro já está aqui, a questão é que não foi distribuído equi-


tativamente.»
— William Gibson

Realidades que o dinheiro pode comprar

Em Desafio Total, um filme que capitalizou o recente inte


resse pela Realidade Virtual19 e tecnologias de ficção científi
ca, Arnold Schwarzenegger acordava todo transpirado.; Não
tinha a certeza se estava a acordar de ou para uma fantasia to
tal, fabricada expressamente para ele por uma agência de via
gens que funcionava à base de drogas; As suas memórias re-
cém-construídas eram tão realistas, que Schwarzenegger não
conseguia distinguir a ficção da realidade.
Mais tarde ou mais cedo isto pode acontecer a qualquer
um, com a diferença de que uma pessoa normal não precisa
va de acordar em suores. Não estaria, aliás, a dormir. Para
parar com a experiência bastar-lhe-ia tirar os auscultadores e
desligar o computador.
As realidades que o dinheiro pode comprar não são fabri
cadas em Hollywood mas num número crescente de labora-
72 Derrick cie Kerckhove

tórios cie pesquisa como o Head Mounted Display na Univer


sidade de Chapel Hill, na Carolina do Norte, ou o Human In
terface Technology Lab, de Seattle. Com máquinas de reali
dade virtual como a RB2 («Reality Built for Two»*) de Jaron
Lanier, não se vê apenas o sonho a desenrolar-se à nossa
frente, entra-se nele e até se encontram outras pessoas lá den
tro. Esta máquina funciona melhor do que o vídeo-jogo parti
cipativo do Fahrenheit 451 de Ray Bradbury. Entretanto, se
preferir o mundo do trabalho ao mundo de sonhos dos jogos,
há também um número crescente de aplicações profissionais.
«Usando um guiador constituído por barras para as mãos, ar-
quitectos e engenheiros podem navegar num edifício virtual
visionado através do capacete.»20 Arquitectos, designers de
cidades e imobiliárias estão já a usar cenários de realidade
virtual para vender casas e condomínios ainda não construí
dos. As máquinas de realidade virtual tornam literal o facto
de que, para algumas culturas, andar não é atravessar o espa
ço mas «empurrar o espaço debaixo dos pés».

Integração

Em termos concretos, a RV ainda está um pouco longe do


universo substituto de Desafio Total, é claro. O obstáculo pa
ra a computação é a insuficiente capacidade: de momento so
mos incapazes de produzir imagens vídeo de alta definição
animadas em tempo real. Assim os aparelhos de RV ainda
paretem um pouco tontos e caricaturais. No entanto, os pro
tótipos que já existem iluminam o caminho. Estes desenvol
vimentos estão em progresso na tecnologia dos computado
res e todas as outras tecnologias parecem convergir para a
realidade virtual. A electrotecnologia parece estar a evoluir

* Realidade Virtual construída para ser partilhada por duas pessoas. (TV. T.)
A Pele da Cultura 73

segundo tint processo de feedback, dando origem a novas


tecnologias.
Se, nos primeiros tempos, a electrificação se difundiu se
gundo uma lógica de ordem de chegada — quem chegava
primeiro tinha acesso primeiro — com a informática o pro
cesso parece-se mais com uma erupção de crescimento bio
lógico. Inteligência artificial, sistemas periciais e redes neu-
rais estão a invadir todos os media integrando as tecnolo
gias electrónicas — através da digitalização universal — fa
zendo convergir o audio, o vídeo, as telecomunicações e as
tecnologias computacionais. Falamos da digitalização como
se fosse uma coisa nova, mas, de facto, remonta às origens
da escrita alfabética que corta a realidade em letras que não
têm sentido por si. A digitalização tem ela própria uma his
tória: a tradução do alfabeto para a electricidade foi primei
ro realizada através do telégrafo. Samuel Morse reduziu as
26 variáveis do alfabeto num código de três: longa, curta,
sem sinal. Os informáticos reduziram, mais tarde, os três si
nais a um código de dois: on/off. Porém, tal como as partí
culas subatômicas dividem o átomo, a digitalização corta a
linguagem natural bem para além das suas divisões natu
rais.
Hoje assistimos a uma integração tecnológica a três níveis.

1. INTERIOR. Hiperconcentração e aceleração do poder


computacional.
2. EXTERIOR. Estandardização das redes de telecomuni
cações internacionais.
3. INTER ACTIVA. Interactividade biológica homem/má-
quina na RV.

Se a Realidade Virtual captou a imaginação mesmo antes


de dar provas, isso deve-se ao facto de, mais do que qualquer
outro avanço tecnológico, tipificar a tendência para a inte-
74 Derrick de Kerckhove

gração. Segne-se uma resenha rápida de alguns dos desenvol


vimentos tecnológicos que nos conduzem para a RV.

• processamento em tempo real com UHSI e ULSI («ultra-


-high speed» e «ultra-large-scale integration»)
• computadores de quinta geração: memórias de um único
chip com capacidade para design assistido por computa
dor, processamento paralelo, software mais poderoso, sis
temas de visão e reconhecimento de voz
• miniaturização e integração de aparelhos de transmissão
para a cabeça e dispositivos que reconhecem o movimento
• ecrãs de televisão de alta definição e tecnologia de pixels
melhorada
• redes neurais e processamento paralelo
• robots de última geração
• simulação-de voo
• micro-sensores tácteis integrados em fatos virtuais
• interfaces 3D
• tecnologias de fibra óptica e comutadores ópticos
• encriptação de som 3D

Ao colocarmos os nossos corpos dentro de prolongamen


tos do sistema nervoso, através dos media eléctricos, ini
ciamos uma dinâmica pela qual todas as tecnologias ante
riores que eram meras extensões das mãos e dos pés e dos
dentes, mecanismos de controlo do calor do corpo — todas
as extensões do nosso corpo tais como as cidades — serão
traduzidos em sistemas de informação.

Marshall McLuhan21

Nesta passagem, a realidade virtual é prevista cerca de três


décadas antes sequer da ideia ser considerada. McLuhan não
precisou de ver o sistema para saber que o objectivo dos
A Pele da Cultura 75

computadores era transformar o hardware em software, re


metendo o reino do poder físico para o pensamento. Se levar
mos este facto às suas últimas conseqüências, descobrimos
que o objectivo da RV é comandar, apenas através do pensa
mento, simulações psicológicas externas.

Aplicações

As reacções populares às demonstrações de RV — ou à


ideia de RV — vão desde o «É a maior transformação cultu
ral desde a invenção da imprensa» (Howard Rheingold, Who
le Earth Review,12) ou o «Vai matar a televisão» (Jaron La
nier), ou o «Vai permitir à América industrial sobreviver e
expandir-se» (Steve Pruitt e Tom Barrett23), a «Outra tecno
logia da qual os utilizadores vão provavelmente tirar mais
benefícios do que os seus fornecedores» (Esther Dyson, For
bes Magazine), e ainda «Claro, mas para que é que isto ser
ve?» (Joe Public). John Perry Barlow, o poeta e ex-letrista
dos Grateful Death, observa com razão que «a presença desta
vastidão sem dono parece extrair impulsos territoriais dàs re
giões físicas demasiado velhas para reconhecer a verdadeira
infinitude desta nova fronteira»24. A RV ou nos choca, ao le
var-nos a reconhecer que aumentámos o poder cerebral co-
lectivo, ou nos deixa transidos. Entretanto, há os que aco
lhem bem a ideia de tornar realidades virtuais em lucros mui
to reais.
Aplicações simples tais como a análise e o design assisti
dos por computador já estão a ser usadas pela Ford, Chrysler
e outros. A RV poupa tempo e dinheiro ao substituir modelos
de cerâmica dos protótipos dos carros e, como nota Esther
Dyson, com a vantagem de «poder usar-se o assento e o cinto
de segurança no carro de ficção».25 Estranhos conceitos co
mo Cyberspace, o nome que a Autodesk deu à sua marca de
I
76 Derrick de Kerckhove

pesquisa e desenvolvimento sobre RV, ou Corporate Virtual


Workspace (Empresa de Trabalho Virtual) (CVW) e Personal
Virtual Workspace (PVW) (Local de Trabalho Pessoal Vir
tual) começam a infiltrar-se na consciência empresarial. Ste
ve Pruitt e Tom Barrett prevêem que a empresa do futuro
possa vir a existir apenas no ciberespaço, escavando nichos
num mercado tecnológico hipercompetilivo, apenas com es
critórios on-line26.
Em termos mais concretos vemos que a indústria já está a
experimentar com modelos espaciais aplicados à arquitectura
e ao planeamcnto urbano. Há quem diga que a cidade de
Atlanta ganhou o concurso para receber as Olimpíadas de
1996 porque incluiu na sua apresentação um modelo de si
mulação espacial em RV dos estádios e do certame. O traba
lho sobre a RV está em evolução também no campo das apli
cações médicas, nomeadamente na Universidade da Carolina
do Norte (UCN). Por exemplo, Jim Chung, um investigador
daquela universidade, usa óculos virtuais e gráficos a três di
mensões para se mover dentro de simulações do corpo do pa
ciente. E assim que Marc de Groot descreve o processo:

«Imagine que é um cirurgião cerebral, com operação marca


da para remover um tumor. A posição do tumor no cérebro
torna a sua remoção arriscada. Para encontrar a melhor ma
neira de o fazer, você e o seu colega colocam ambos os ócu
los de RV que lhes proporcionam um modelo a três dimen
sões do cérebro do paciente. Usa-se este ponto de vista privi
legiado, dentro do corpo, para examinar o tumor de ângulos
impossíveis de descortinar de outra forma... Com este novo
modelo de visualização os médicos serão capazes de intro
duzir na operação fontes de radiação simuladas por compu
tador de modo a que o tumor possa ser extraído suavemente
com danos mínimos para os tecidos circundantes.»27
A Pele da Cultura 77

Howard Rheingold sugere que a visualização em três di


mensões pode ser a única forma de ultrapassar a complexida
de de certas áreas científico-tecnológicas, como, por exem
plo, a da renovação molecular. O destino da RV pode muito
bem vir a ser a transferência da maior parte do processo cog
nitivo da visão para o tacto, tal como acontece numa outra
aplicação UNC descrita por Marc de Groot.

«A Tecnologia de RV permite aos cientistas ver moléculas


complexas em 3D com total profundidade de campo e pas
sear por elas, examiná-las de vários ângulos. A UCN está
também a desenvolver meios que possibilitem aos cientis
tas “agarrar” e manipular as moléculas que estão a anali
sar. Por exemplo, os investigadores de UCN estão a usar
um mecanismo I/O chamado braço de forçix/feedback. O
cientista coloca o seu braço dentro do aparelho — parecido
com uma luva de metal até ao ombro, equipado com rolda
nas. O aparelho identifica a posição do braço e da mão do
cientista e faz a pressão necessária para que ele sinta um
objeclo virtual. Com esta ferramenta o cientista pode segu
rar uma molécula na mão e encostá-la à superfície de outra
molécula enquanto observa e sente como é que as duas se
unem quimicamente. O computador e o braço de for-
ça/feedback podem mesmo simular os puxões dos elec-
trões à medida que os átomos se friccionam uns contra os
outros.»28

Tendo testado a instalação da UCN, Rheingold testemunha


que «o braço tem força suficiente para cansar o vosso braço
se ele lutar muito tempo com uma molécula... Eu tentei ro
dar, girar, esmagar e beliscar olhando para o quebra-cabeças
3-D no ecrã e manipulando-a com a mão. Não levou muito
tempo até sentir, de facto, a molécula no espaço definido pe
lo ecrã»29.
78 Derrick de Kerckhove

Integração é tacto

Integração é um termo que quer dizer pelo menos duas


coisas. A primeira, comum, é fazer um todo ou colocar as
coisas juntas de acordo com a sua natureza. A palavra era
também usada pelos economistas do séc. XIX para indicat
ion processo pelo qual as actividades subsidiárias estavam li
gadas às indústrias principais. No entanto, o sentido mais an
tigo da palavra está ligado à expressão latina tangere, que
quer dizer «tocar». Mais, quer dizer, especificamente, «tocar
a partir de dentro» — o seu significado mais interessante e
relevante.
Alguns investigadores de RV estão especialmente interes
sados em criar simulações verosímeis do tacto. E não é por
acaso. O tacto não é só a base da realidade, mas também uma
das bases do entendimento e da compreensão. Subliminar-
mente, as operações intelectuais são experiências tácteis. Ate
os investigadores de Inteligência Artificial reconhecem que o
processamento real da informação não deve restringir-se às
operações lógicas, tendo de incluir também os sentidos. O
que a RV traz a esta tendência é um meio de projectar elec-
tronicamente o sistema nervoso, especialmente as extensões
electrónicas do tacto.30
Como São Tomás tornou muito claro, partilhar a mesma
visão não é exactamente o mesmo que ser capaz de lhe tocar.
Apesar das suas deficiências técnicas actuais, na RV, a simu
lação do tacto é mais potente do que a da visão devido ao su
porte 3D. Normalmente as pessoas pensam as três dimensões
como visuais, mas a sensação dominante em 3D é táctil.
Quando se anda por um modelo de RV, o corpo inteiro está
em contacto com o ambiente circundante como acontece com
a água quando se está mergulhado numa piscina. Como suge
re Jaron Lanier em relação aos mundos virtuais, «o universo
inteiro é o seu corpo e a física é a sua linguagem»31. A men-
A Pele cia Cultura 79

sagem da 3D é penetração e profundidade, não apenas o


perspectivista ângulo de visão. De facto, a história da simula
ção computacional é a da gradual entrada num ambiente tác
til. Das duas para as três dimensões, e daí para o rápido de
senvolvim ento provocado pelas sensações de força e
feedback, estamos a ser sugados para um vértice electrónico
rico em texturas.
O apelo da tecnologia eleclroláclil lembra-me o mito das
sereias de Ulisses, com as suas intensas conotações eróticas.
A RV é como uma sereia que nos arrasta para um mar de
electrões. Na tradição intelectual abstracta, tivemos tendên
cia para ignorar, e até temer, a experiência riquíssima que é a
aprendizagem que se faz através do tacto. Com efeito, até aos
anos 60 permanecemos apavorados com o tacto, quando a te
levisão nos induziu a um desejo colectivo pela recuperação
dos corpos perdidos nas cabeças literárias. Depois d e(uma
epidemia de terapias de contacto que começou na Califórnia
e alastrou até à costa leste, regressámos a uma relação mais
calma e confortável com o corpo. No entanto, nunca chegá
mos a dar ao tacto a posição honrosa que merecia entre os
nossos hábitos sensoriais. A RV prepara-se para mudar tudo
isto.
Entre os educadores e muitos artistas tem-se colocado a hi
pótese de que o tacto talvez possa ser a mais importante fer
ramenta cognitiva humana. Os bebês aprendem a tocar, os
adultos aprendem a «agarrar» as situações — uma metáfora
táctil. Normalmente desenvolvemos uma espécie de «apeti
te» por coisas que sabemos ou precisamos de saber. Nos pri-
mórdios das mainframes, o sentido artístico de McLuhan le
vou-o a concluir que a computarização levaria ao tacto:

«As palavras “agarrar” ou “apreensão” apontam para o


processo de chegar a uma coisa através de outra, de manu
sear ou de sentir mais do que uma faceta ao mesmo tempo.
80 Derrick de Kerckhove

Começa a ser evidente que o “tacto” não diz apenas respei


to à pele mas à interacção dos sentidos, e que “manter-se
em contacto” e “entrar em contacto” tem a ver com um en
contro frutuoso dos sentidos, da visão traduzida em som, e
o som em movimento, sabor e cheiro. O “senso comum”
foi, durante muitos séculos, tido como a peculiar aptidão
do homem para traduzir uma experiência relacionada ape
nas com um sentido para todos os sentidos e a capacidade
de apresentar o resultado continuamente como uma ima
gem mental unificada. De facto, esta imagem construída
como uma relação entre os vários sentidos foi durante mui
to tempo considerada como a marca da racionalidade hu
mana, e pode vir a tornar-se novamente importante na era
dos computadores. Porque nessa altura será possível pro
gramar relações dos vários sentidos que se aproximem da
condição da consciência.»32

A realidade virtual é, então, uma realidade que se pode to


car e sentir, ouvir e ver através dos sentidos reais — não só
com ouvidos ou olhos imaginários. Agora podemos juntar ao
pensamento a «mão da mente». Penetrando no ecrã com a lu
va virtual, a mão real transforma-se numa metáfora técnica,
tornando tangíveis as coisas que anleriormente eram apenas
visíveis. A partir de agora podemos querer tocar os conteú
dos do pensamento. Antes da invenção da RV, ninguém ima
ginaria o conceito de «uma mão mental». O conceito em si
nem sequer era imaginável. Não parecia haver necessidade
de sentir os objcctos que nos preenchiam a mente. Hoje, a in
clusão do tacto entre as restantes extensões tecno-sensoriais e
psicotécnicas podem mudar a forma como nós, ou os nossos
filhos, pensamos que pensamos.
A Pele da Cultura 81

Ciberespaço

Alé há pouco tempo não podíamos pensar uma coisa e tê-


-la feita nesse preciso momento. As mudanças numa página
escrita ou numa tela pintada levavam pelo menos alguns mi
nutos a serem feitas. Agora, a velocidade de interacção atin
giu a imediaticidade. É possível experimentar reacções ins
tantâneas — não só com as simulações de Realidade Virtual,
mas também com os aparelhos que captam o movimento dos
olhos ou que analisam todas as reacções biológicas. O cére
bro lecnologicamenle prolongado projecta exteriormente a
sua rede de sensores inteligentes, observando o meio ambien
te, da mesma maneira que as anémonas projeclam o estôma
go para capturar o plâncton. A função das'extensoes tácteis é
fundamental porque é íntima. O tacto participa sempre no
processo do pensamento, seja na cabeça seja na máquina. O
tacto simulado é a primeira psicotecnologia com poder sufi
ciente para nos lançar para fora de um sistema mental letra
do, teórico, frontal.
Entre outras aplicações de RV, Laura Carrabine, editora da
revista Computer-Aided Engineering, descreve bastante ino
centemente o «Flying Mouse», um novo programa da
SimGraphics, que está bastante próximo do cibercérebro.

«O Flying Mouse é um aparelho de recepção para acres


centar as mãos ao programa de simulação Automated
Mainframe Assembly que deixa as marcas do movimento
realizado num determinado terreno quando se navega atra
vés de um “campo” de análise a três dimensões, ou quando
se faz digitalização de objectos a três dimensões e ainda
nas aplicações que envolvem o posicionamento e visiona-
mento de objectos ou entidades a três dimensões. O apare
lho controla a visão do utilizador, selecciona a viabilidade
de uma parte dos resultados verificando-os numa base de
82 Derrick cie Kerckhove

dados constituída por conjuntos particulares, e tentando


encontrar espaços vagos. A partir do momento em que a
tecnologia permite o movimento arbitrário e a visão alter
nada, podem ser realizadas todas as operações do mundo
real. Algumas destas funções CAD avançadas incluem de
tecção das colisões em tempo real, prevenção das penetra
ções e a obtenção de imagens para as bases de dados.»33

Esta conversa tecnológica quase cifrada leva a uma con


clusão: com a manipulação de objectos 3D em tempo real, o
pensamento e o processamento estão a tornar-se a mesma
coisa. Se, por analogia, se puder transpor o que acima foi di
to para a educação de uma criança, estaremos a romper a bar
reira do ambiente escrito. John Perry Barlow tem experiência
disso. Ao discorrer sobre o aspecto desajeitado dos monitores
de computador,- diz que «a metáfora do desktop permanece
rasa como uma folha de papel. Não tem nem a profundidade
nem a espacialidade da experiência». E acrescenta:

«Não é desta forma que a mente guarda a informação. Não


nos lembramos dos nomes dos amigos por ordem alfabéti
ca. Quando procuramos uma frase num livro é mais prová
vel que o façamos pela sua localização do que pela sua po
sição intelectual no contexto.»34

A VR poderá vir a permitir-nos arquivar informação da


mesma forma que a mente o faz, ou mesmo ensinar-lhe como
obter uma ou duas vantagens.

Consciência simultânea partilhada

De acordo com Jaron Lanier «a essência da realidade vir


tual é a partilha». Lanier propõe que a RV é «o primeiro ní-
A Pele da Cultura 83

vel de uma realidade objectivaniente partilhada à disposição


da humanidade desde [a invenção] do mundo físico»35. En
quanto a consciência comum é como o processamento de
uma RV dentro da cabeça, a tecnologia da RV permitiria a
muitas cabeças processarem em conjunto uma espécie de
«consciência grupai». No entanto, antes de lá chegarmos as
tecnologias de interface têm de aproximar-se muito mais do
corpo e da fonte dos nossos pensamentos.

A remoção gradual dos «interfaces»

Eric Gullichsen diz que a RV vai muito além dos computa


dores convencionais que são meramente interactivos. «Um
sistema do ciberespaço é dinâmico: o mundo virtual muda
em tempo real, fluida e autonomamente, em resposta às ac
ções do utilizador. A acção é visceral e não há necessidade
de simular interfaces simbólicos, já que os objectos deste
mundo a três dimensões podem ser directamente manipula
dos.»36 Na mesma publicação, de resto bastante acrítica, Luis
Racionero sugere que, no futuro, a tendência será para a liga
ção directa entre os caminhos electrónicos e as redes biológi
cas neurais através da engenharia biônica37. A ideia é remo
ver os interfaces para atingir o contacto directo, para atingir
directamente o pensamento, tal como acontece na vida real:

«Quando interagimos nas situações de todos os dias, obte


mos informação pura, directa. Raramente considerada in
tensiva, a experiência directa tem a vantagem de abranger
a totalidade dos processos internos — conscientes, incons
cientes, viscerais e mentais — e é constantemente testada e
avaliada naturalmente. O conhecimento de segunda mão,
processado, digerido, abstractizado, é normalmente mais
generalista e concentrado, mas afecta-nos apenas intelec-
84 Derrick de Kerckhove

tualmente — falta-lhe o equilíbrio e o acabamento das ex


periências simuladas. Embora estejamos cada vez mais a
viver num domínio de princípios e conceitos abstractos e
generalistas as nossas raízes estão ainda mergulhadas na
experiência directa, a muitos níveis, tal como acontece
com a capacidade de avaliar a informação, consciente e in
conscientemente.»38

Toda a gente se lembra da primeira experiência íntima, es


tranha, criada pelos auscultadores. Habituámo-nos de tal ma
neira aos walkmen que deixámos de reparar como o som pe
netra no corpo todo. Imagine-se, agora, uma sensação de
imediaticidade semelhante vinda de um estímulo visual. A
máquina que permite esta experiência já está no mercado. A
Cyberspace Corporation produz um aparelho para colocar à
frente dos olhos e à volta da cabeça que projecta imagens di-
rectamente para a retina. A imagem parece pairar no ar, em
tamanho real, vista exclusivamente pelo utilizador. Novos
aparelhos: eye-tracking, contacto com imagens e interfaces
que se aproveitam das ondas cerebrais, assim como projec-
ções de laser directamenle para a retina. Todos estão a avan
çar na direcção do processamento directo do pensamento pa
ra a máquina. Tendo em conta lodo o trabalho desenvolvido
com estas tecnologias e os avanços informáticos, podemos
esperar dispor em breve de todos os tipos de interface, até
para a mais pequena parcela de atenção.

Uma estrutura pensante em que a


estrutura também pensa

Scott Fisher sugere que ao dar às pessoas acesso instantâ


neo a «mais do que um ponto de vista sobre uma cena», a
realidade virtual «permite-lhes sintetizar uma percepção vi-
A Pele da Cultura 85

suai mais forte de todos os pontos de vista; a possibilidade de


estabelecer vários pontos de vista coloca os objectos num
contexto, animando-lhe assim o sentido»39. Isto, claro, era a
teoria do cubismo, mas até agora nunca tínhamos estado nu
ma situação onde vários pontos de vista, vindos de diferentes
pessoas, pudessem simultaneamente interagir através tie uma
relação directa com um objecto de estudo comum. Numa si
tuação em que duas pessoas se comprometem a criar uma
realidade virtual comum, como no caso do sistema RI3-2
criado por Jaron Lanier, primitivo mas já impressionante, es
tes agentes podem considerar-se operativos, mas o eleito que
criam é cognitivo, reflectindo a combinação dos pensamen
tos dos dois agentes cognitivos. A experiência é automatica
mente gravada em 3D e pode ser exibida para se encontrar
novas perspectivas. Acrescentando a esta possibilidade a de
tocar no objecto da percepção e modificá-lo, a de formas se-
leccionadas através de rotinas seleccionadas, obtém-se, no fi
nal, a mais poderosa máquina pensante imaginada: um think
tank onde o pensamento é o tank, ou seja, a estrutura.
Podemos encarar o futuro da resolução de problemas como
uma extensão em realidade virtual deste think tank. A tentati
va de encontrar uma solução para um problema será melho
rada com a simulação da totalidade do ambiente do processo
de raciocínio, gerado pelo pensamento combinado de várias
pessoas que estão a pensar sobre o mesmo objecto. No fim
talvez sejamos capazes de criar novos objectos apenas atra
vés do pensamento de forma colaborante. Serão blueprints
gravadas para produção automatizada de hardware.
A longo prazo, a mudança psicológica mais importante po
de ser a exteriorização da nossa consciência pessoal comum,
mesmo que passemos a explorar as percepções tácteis exter
nas através dos processos prolongados a partir do pensamen
to. O mundo exterior vai tornar-se uma extensão da consciên
cia, tal como costumava acontecer com as culturas «primiti-
86 Derrick de Kerckhove

vas». Isto ditará, não o fim, mas o afastamento do Homo


theoreticus do centro da acção, substituído pelo Homo parti
cipates.
CAPÍTULO CINCO

ROMANCE NA BERMA DA ESTRADA

A Televisão Casa-se com o Computador na


Auto-estrada da Informação

O contexto dos novos m e d ia

Até as burocracias dos governos mais lentos estão a des


pertar para a ideia de que as chamadas «auto-estradas da in
formação» são consideradas tão críticas para a sua sobrevi
vência como a manutenção das estradas e auto-estradas reais,
ou mesmo mais. Este reconhecimento advém de factores ób
vios e de outros mais conspícuos. Entre os factores mais ób
vios estão os econômicos: qualquer pessoa pode observar a
forma como a televisão tem dominado a mente e o mercado
de quase todo o mundo desde o início dos anos 60. O cresci
mento rápido dos computadores pessoais desde o início dos
anos 80 demonstrou que o ecrã podia ser o ponto comum de
incontáveis variações de produtos domésticos, chegando tal
vez mesmo a rivalizar com a indústria automóvel como base
de suporte das economias nacionais.
88 Derrick de Kerckhove

Convergência

Enquanto as tecnologias da televisão e do vídeo, depois da


fotografia e do cinema, estão prioritariamente preocupadas
com a conquista do nosso espaço mental, as redes de compu
tadores acentuam o domínio do tempo inerente aos sistemas
telefônico e telegráfico. O papel da televisão é introduzir em
todas as casas um mecanismo focalizado e colectivo de pro
cessamento de informação. Ao juntar as componentes vi
suais à rede de rádio instalada, a TV introduz na cultura uma
espécie de memória colectiva, ainda que continue a ser um
meio de um só sentido. A TV prolonga o pensamento priva
do para uma memória activa colectiva ao reproduzir, num
ecrã exterior, as principais combinações sensoriais que utili
zamos para criar internamente o sentido. Especialmente
quando é usada para transmissões em directo, a TV fornece
um referente comum complementado por três dados senso
riais chave: audição, visão e propriocepção quinestésica (a
capacidade de saber a posição do corpo sem ter de olhar para
ele). Pouco depois do período de desenvolvimento meramen
te tecnológico a TV manifestou a sua tendência latente de le
var o telespectador para a cena onde decorria a acção. A TV
de hoje concretiza este movimento oferecendo um número
crescente de opções interactivas, do modesto controlo remo
to à gravação em vídeo, produção de vídeo e videoconferên
cia. Estes desenvolvimentos anunciam a democratização do
meio. A tendência que prenuncia a caminhada para a emis
são para pequenas audiências e, finalmente, para a progra
mação directa dos telespectadores está ainda a ser trabalhada
com tecnologias como as caixas-negras instaladas na televi
são e os telecomputadores.
A Pele da Cultura 89

Telecomputadores

É útil que se compreenda o desenvolvimento dos computa


dores não em oposição à televisão mas na sua continuidade.
No novo chavão, o telecomputador, a ideia da visão e até a
da televisão desapareceram. A palavra-chave do telecompu
tador é tele, um aparelho de conexão à distância, como o te
lefone. O que está a emergir deste termo é a noção de teleco-,
municação combinada com a de computador. Porque, muito
em breve, nos ambientes informativos constituídos por redes
integradas digitais, o domínio da televisão será absorvido pe
los computadores. Tomemos como exemplo a televisão de al
ta definição (TVAD), uma inovação que tem menos a ver
com a definição do que com a digitalização. A TVAD é a te
levisão a evoluir para o estatuto dos computadores. De facto,
os computadores ligados através dos telefones herdam o le
gado mais precioso da TV, o acesso a um grande número de
pessoas ao mesmo tempo, em tempo real.'Com os tclecom-
putadores, no entanto, as pessoas podem realmente falar
umas com as outras, podem entrar na acção. Tudo o que era
estúpido na televisão torna-se extremamente inteligente com
o telecomputador.
Não tão evidente é o apelo psicológico ligado a cada uma
das tecnologias: enquanto a televisão foi sempre percebida
como um meio de grande difusão, para grandes públicos, os
computadores eram meios personalizados, solitários e priva
dos. Enquanto a TV fornecia uma espécie de espírito colecti
vo para toda a gente, mas sem qualquer contribuição indivi
dual, os computadores eram espíritos privados sem contribui
ções colectivas. A convergência de ambos oferece uma pos
sibilidade nova, sem precedentes: a de ligar indivíduos com
as suas necessidades pessoais a mentes colectivas. Esta nova
situação é profundamente criadora de novos poderes; tem re
percussões sociais, políticas e econômicas. Irá acelerar as
90 Derrick tie Kerckhove

mudanças e adaptações na cena geopolítica assim como na


sensibilidade privada de todos. Trará novas formas de cons
ciência e exercerá pressões sobre os sistemas educacionais
para que estes aprendam a lidar com a mudança. Apanhará
muitos mercados de surpresa. De facto, embora seja óbvio
que, a não ser que aconteça uma catástrofe política ou social,
o mundo caminhará no sentido de uma globalização, não é
assim tão claro o uso que se fará de todo esse poder comuni-
cacional. Como é que se muda o hábito de investir o automó
vel de poder, acção e prestígio e se transfere esses factores
para a adopção da «telepresença» como forma de vida?

Redes

Uma outra chave para esta nova sensação — a incipiente


psicologia da convergência ainda em desenvolvimento — é a
tendência recente dos computadores para se ligarem em rede.
De repente, as companhias de telefones e telecomunicações,
sempre poderosas e eficientes mas normalmente ignoradas
pelo sector público e privado, estão a aparecer perante a
consciência colectiva. Na América do Norte as companhias
de cabo competem com as de telecomunicações na oferta de
serviços multimédia, videoconferência e video-on-demand
através da compressão do sinal digital. Nets, internets e
ethernets estão a crescer em irrupções rápidas como o cére
bro de um pequeno leviatã.

/I Internet — o melhor exemplo actual da


«auto-estrada da informação»

A Internet é uma rede de redes que permite a transmissão


muito precisa e coloca o controlo nas mãos do utilizador. A
A Pele da Cultura 91

Net não é invasora, é-o ainda menos do que o telefone, por


que não chama as pessoas, as pessoas é que a chamam. Tam
bém se pode ter acesso à Net através da tecnologia celular: os
dados digitais não têm de chegar através de um canal. Já com
40 milhões de utilizadores em cerca de 90 países, o número
de utilizadores da Internet duplica todos os dez meses. A In
ternet tem também capacidade, quando a ligação é estabele
cida através de fibra óptica ou das linhas principais, de forne
cer interactividade hipermédia, tendo em conta o desenvolvi
mento rápido que estão a ter os sistemas de multimédia em
rede: veja-se o exemplo da World Wide Web.40 Os utilizado
res pagam pelo que pediram, e pedem-no directamente da
fonte sem ter de passar por intermediários que cobram taxas
para o acesso.
A Net é só por si um computador monumental, com espan
tosos bancos orgânicos de memória e processadores paralelos
que hoje se situam entre os vinte milhões e amanhã serão mil
milhões de co-processadores. Por que é que se há-de chamar
a isso uma auto-estrada? A Internet é, na realidade, um cére
bro, um cérebro colectivo, vivo, que dá estalidos quando o
estamõ:: a utilizar. É um cérebro que nunca pára de trabalhar,
de pensar, de produzir informação, de analisar e combinar. O
maior problema em relação à Internet é como ligar-se e como
navegar através dela. É ainda um problema para milhares de
futuros utilizadores. Normalmente chegamos lá com as nos
sas mentes da geração de televisão à espera de cores, movi
mento e satisfação instantânea, e encontramos dados lentos,
secos à maneira dos livros. Mas as coisas ainda estão a mu
dar. A Internet está a tornar-se «hyper» e está prestes a trans
formar-se no primeiro multimédia on-line, como sucede com
a colorida World Wide Web e os serviços totalmente interac-
tivos que oferece a quem pode ligar-se directamente através
das linhas telefônicas de grande capacidade. A Internet ultra
passa em muito as elevadas expectativas que se geraram com
92 Derrick de Kerckhove

as superauto-estradas da informação. A Internet vem de bai


xo, do subterrâneo, do subconsciente da inteligência colecti-
va. Tal como o subconsciente, é constituída por mais infor
mação do que a que pode ser filtrada para um nível conscien
te. É por isso que são necessárias cada vez maiores unidades
de processamento e distribuição.

Largura de banda

Tal como acabou por acontecer em relação à ligação tele


fônica, as casas e os serviços vão ligar-se com uma boa lar
gura de banda que permita a transmissão de todos os dados,
mesmo o vídeo. Presentemente há muitos standards e capaci
dades diferentes que incluem redes de telecomunicações tal
com a Rede Digital de Integração de Serviços (RDIS). Em
muitos países uma parte importante do cabo pode transportar
até 900 milhões de bits por segundo, mas não está ainda di
gitalizado nem tão-pouco adaptado para a resposta interacti-
va. Os governos e indústrias estão a considerar a hipótese de,
aos poucos, ir mudando de linhas analógicas standard para
linhas digitais que podem transportar até cerca de 64 mil bits
por segundo, até aquilo que a indústria chama linhas T3, com
capacidade para 45 milhões de bits por segundo. Esta capaci
dade já permitia uma transmissão totalmente interactiva de
dados, som, imagem e vídeo. Entretanto, enquanto as deci
sões estão a ser tomadas nos ministérios e nas empresas, os
desenvolvimentos tecnológicos, como o ATM41 («asynchro
nous transfer mode») que permite a passagem de vídeo em
tempo real através de linhas telefônicas normais, vão mudar
as regras do jogo.
A questão complica-se ainda mais porque as ondas e os ca
bos já não estão sozinhos na competição para nos fornecer o
canal que nos conduzirá ao processo colectivo mental. As re-
A Pele cia Cultura 93

des de cabo geram os seus próprios mercados. São diferentes


das de éter porque a sua imagem (e consequentemente os
seus efeitos) está muito mais próxima do sistema nervoso hu
mano, que se estende do corpo individual para o corpo so
cial. A difusão através de ondas na atmosfera cria um am
biente suave, claro e com vibrações e parece-se mais com a
mente do que com os nervos. Com o rápido desenvolvimento
da tecnologia celular está a criar-se outra relação entre os in
divíduos e o espaço público. Estes três universos simultâneos
de comunicação são mais ou menos auto-organizados (quan
do não estão em guerra por causa de regulamentações gover
namentais obsoletas) já que descobrem por si as suas pró
prias características e as suas aplicações opcionais. O guru
director do Media Lab do MIT, Nicholas Negroponte, diz
que a TV e a rádio deviam desocupar as ondas atmosféricas
de uma vez por todas e deixar esse espaço para as comunica
ções celulares mais urgentes: «Dentro de 20 anos, será per
verso, se não mesmo ilegal, usar satélites para transmissões
de televisão.»42 Pode ter razão: não há nada pior do que um
cérebro enevoado quando surge uma emergência. A TV e a
rádio fazem parte daquele ruído branco que um organismo
necessita para sobreviver, mas não têm de monopolizar a bo
ca de cena da consciência colectiva.

Descentralização radical

Com a proliferação de diferentes iniciativas nos domínios


político, técnico, industrial e legal, não é fácil prever até on
de irá levar toda esta actividade e como é que será um am
biente tecnológico estabilizado. Com o video-on-deinand a
aparecer distintamente no horizonte, as comunicações públi
cas estão a tornar-se privadas e a parecerem-se cada vez mais
com as telecomunicações e menos com a difusão em massa.
94 Derrick de Kerckhove

George Gilder prevê a rápida obsolência da emissão no mun


do das auto-estradas da informação e a ascensão de uma co
municação disponível e barata que virará as relações de per
nas para o ar: «A televisão e o telefone — pensados para um
mundo em que o espectro e a largura de banda eram escassos
— estão completamente desadaptados num mundo em que a
largura de banda é abundante. A estratégia-chave dos dois
sistemas tem sido centralizar a inteligência em departamen
tos centrais, e dar ao utilizador um terminal stripped-down
commodity, um telefone ou um televisor.» Gilder diz ainda
que «na próxima década, os engenheiros usarão a largura de
banda e o poder computacional nos extremos das redes como
substitutos da inteligência e dos comandos centralizados». E
conclui que «a primeira a cair será a emissão em massa onde
umas centenas de estações e algumas redes servem milhões
de caixas estúpidas»43.

«Pay-per-bit»*

No limite as pessoas poderão escolher -— e pagar — a lar


gura de banda e os bits (isto é, as unidades de informação por
segundo) de que precisam, a qualquer momento, nas suas co
municações. Isto é o chamado «pay-per-bit» ou largura de
banda a pedido, uma hipótese que aparece aos críticos mais
iluminados como a maneira mais democrática e mais eficien
te de ligar o país. Os espectadores e os ouvintes comprarão o
tempo e os itens de que necessitarem de uma rede de redes
de bases de dados. Pagarão também «pay-per-bit» ou por-
-ponto para um conjunto que queriam estabelecer. Como
alertava Mitch Kapor, num número recente da revista Wired,
o sistema mais lógico é uma arquitectura aberta, uma rede

Pagiunculo por bit. (N. T.)


A Pele da Cultura 95

universal digitalizada (sempre a melhorar durante os próxi


mos 25 anos), com um nível que se ajustasse às diferentes
capacidades precisas, desde os 64 Kbs dos fios de cobre até
aos terabits da fibra óptica.

Implicações do acesso universal no mercado

Se a informação é realmente a chave da economia de hoje,


pode vir a ser útil ter em conta que a informação é a única
substância que cresce com o uso, em vez de decrescer, como
acontece com os recursos naturais. Estamos perante uma eco
nomia da abundância. Esta economia só irá ter efeito quando
a infra-estrutura permitir realmente o acesso universal que
acontecerá, naturalmente ou à força, quanto mais cedo me
lhor. No entanto pode ser necessária uma revolução social e
política. Tal como as velhas estruturas do poder monárquico
tiveram de ser derrubadas e literalmente decapitadas para dar
espaço ao povo no processo democrático, o presente panora
ma das comunicações e do controlo de informação poderá ter
de vir a ser lançado para fora da nossa existência. A transição
começou de uma forma muito pacífica graças à sofisticação
das tecnologias de produção doméstica e o aumento das ne
cessidades dessa produção.
A mudança do controlo do produtor/emissor para o consu-
midor/utilizador transformará uma minoria de utilizadores
nos seus próprios produtores, ou «prosumidores». A descen
tralização das emissões será acompanhada pela descentrali
zação das tecnologias produtivas. A queda dos preços dos
equipamentos de vídeo e dos computadores está a ser acom
panhada por um aumento da qualidade e da performance.
Hoje é possível fazer um melhor trabalho e mais rápido com
um câmara semiprofissional de HI-8 ou com um editor de
vídeo assistido por computador e uma simples mesa de mis-
96 Derrick de Kerckliove

lura dc som, do quc era, há tins anos atrás, com enormes es


túdios de edição vídeo. A tecnologia de transmissão, estimu
lada pelas redes celulares, vai contribuir para colocar o po
der da difusão nas mãos dos indivíduos, em áreas cada vez
maiores.

Dos espectadores de sofá para os guerrilheiros de sofá

Apesar das ameaças colocadas pelos emissores já estabele


cidos, a razão mais profunda para o apoio que o mercado irá
dar a estes desenvolvimentos reside na multiplicação de ca
nais via satélite, cabo, na compressão telefônica e na trans
missão celular. Esta multiplicação vai exigir cada vez mais
conteúdos, o que implicará que as pessoas normais, mesmo
os telespectadores de sofá*, terão de dar a sua contribuição.
Desenvolver-se-ão redes regulates privadas, de negócios ou
de lazer, sem restrições de tempo ou espaço. O video-on-de-
mand (VOD) representa hoje a comodidade com mais poten
cial para o futuro porque as pessoas percebem o que signifi
ca: não é só o fim do aluguer de vídeos, mas também uma
base para outros serviços. Quando o VOD estiver estabeleci
do, o maior negócio serão as redes multimédia. Quando os
problemas de direitos de autor para os conteúdos multimédia
se resolverem — o que levará muito tempo a não ser que ha
ja um processo de os cobrar automaticamente — a interacti-
vidade fará com que muitos consumidores de informação se
transformem em fornecedores de informação e isto criará
uma torrente de nichos de mercado com interesses específi
cos e dirigidos a comunidades transnacionais.

* «Couch potatoes» no original. (TV. T.)


A Pele cia Cultura 97

Videoconferência

Os preços da videoconferência de qualidade, com ecrãs


grandes e confortáveis baixarão para 500 dólares a sessão
dentro dos próximos dois anos; alguns utilizadores irão ainda
ligar-se através de linhas analógicas normais (talvez com a
criação de um cartão especial que se acrescentará aos televi
sores para os converter em emissores e receptores) mas a
maior parte deles aproveitará a tecnologia da compressão, ca
pitalizando na relação cada vez mais vantajosa entre os avan
ços competitivos e os preços baixos — mesmo para os cabos
de cobre, digitalmente manipulados, e, quando for possível,
as redes de fibra óptica. De início, a videoconferência terá
mais aplicações no mercado das empresas, dos governos e
das universidades do que nos lares onde muita gente poderá
considerá-la como uma invasão da privacidade, não contabi
lizando as suas vantagens na redução das deslocações. Mais
tarde a videoconferência será responsável pela criação de um
grande mercado de vídeos pornográficos e simplificará a exi
gência das salas de visionamento. Aparelhos de videoconfe
rências celulares portáteis (desenvolvidos e colocados no
mercado entre daqui a dois e cinco anos) provocarão uma
aceleração no mercado imobiliário, permitindo visitas a to
dos os imóveis sem sair de casa. A videoconferência possibi
litará as sondagens públicas, votações simplificadas e, enfim,
vigilância policial e de fraudes. Globalmente, o efeito mais
importante da videoconferência será uma mudança radical 11a
relação casa/local de trabalho, mais radical ainda do que a
que o automóvel operou na maior parte das cidades america
nas. As pessoas passarão muito tempo longe do seu local de
trabalho, no conforto e paz das segundas casas, as casas de
campo. Os que vivem nos subúrbios voltarão a andar de
comboio porque estes lhes proporcionam a liberdade de mo
vimentos necessária para manipular uma máquina inteligen-
98 Derrick de Kerckliove

te, o computador portátil ou um telefone celular, e isso será


preferível a controlar uma máquina estúpida como é o auto
móvel. A arquitectura e o planeamento urbano começarão a
ser pensados em termos da acessibilidade de comunicação e
não em termos de infra-estruturas viárias e hídricas.

Publicidade interactiva

Os mass media provocaram uma tremenda explosão da pu


blicidade que acabou por suportar as economias de escala no
auge da época da televisão. Assim, é provável que numa pri
meira fase a publicidade sofra com a descentralização. Nin
guém ainda descobriu a forma de fazer com que os utilizado
res das redes de computador paguem, a não ser cobrando-
-lhes as linhas e -o tempo de utilização. O multimédia interac
tive dá, no entanto, algumas indicações do que está para vir,
mesmo com uma espécie muito limitada de interactividade
como a que é permitida por um canal de cabo, como o Vi-
deoway System on Videolron de Montreal. As pessoas gos
tam mesmo da publicidade e muitas chegam a passar horas
acordadas em frente ao televisor só para ver os «info-mer-
cials». Muitas talvez gostassem mesmo de entrar no «anún
cio», seleccionando a informação que lhes é apresentada. Da
qui a uns tempos poderão responder directamente ao fornece
dor. Em vez de um mercado massificado com comunicação
de um só sentido que se dirige a grandes audiências, haverá
um mercado «rápido» com comunicação bilateral interactiva.
Outro dos desenvolvimentos mais importantes será a pos
sibilidade de saber exactamente o número de utilizadores e
de compradores de um produto. Todas as tecnologias digitais
convergem para a exactidão dos números. No mercado já
houve uma altura em que se podia enganar a maior parte das
pessoas durante a maior parte do tempo. Hoje, um publieilá-
A Pele da Cultura 99

rio ou uma empresa não podem falsear as audiências ou o


conteúdo do pacote: electronicamnete não se pode enganar
ninguém, nunca. Tomando o sistema nervoso humano como
ponto de partida faz muito mais sentido privilegiar as comu
nicações que permitem um feedback instantâneo do que ma-
traquear a realidade com balas feitas de notícias, anúncios e
serviços.44

«Precisamos áesesperadamente de filtros»

Enquanto a economia dos mass media escritos e difundidos


se baseava na produção, a nova economia dos media interac-
tivos basear-se-á na «redução», à imagem do cérebro. Muitos
neurobiólogos dizem que o cérebro não é um mecanismo pro
dutivo mas uma espécie de válvula de redução gigantesca que
permite que uma série de operações ordenadas aconteçam no
corpo humano. Lembrando a confusa panóplia de oportunida
des permitidas pela flexibilidade da programação de compu
tadores, David Rokeby, um engenheiro de computadores que
também é artista, dizia «precisamos desesperadamente de fil
tros»45. No futuro as oportunidades irão para os gatekeepers,
assistentes inteligentes, caçadores de informação especifica
mente treinados para saber as últimas sobre qualquer assunto.
O software mais caro será o da encriptação — para manter a
privacidade — e o software para os PDA (Personal Digital
Assistants) ou outros mecanismos quaisquer que, ao comando
da voz, forneçam instantaneamente a informação pedida. De-
senvolver-se-ão novas formas de inteligência colectiva basea
das em grupos de amostragem automaticamente actualizá-
veis, tal como acontece hoje na Internet com as actividades e
interesses dos grupos de discussão. Estarão à disposição de
quem preciar deles através de palavras-chave, buscas cruza
das e integradores neurais em rede.
100 Derrick de Kerckliove

O valor da ignorância

Quando se sabe que todo o conhecimento está distribuído e


que tudo é conhecido por alguém, nalgum lugar, e que essa
informação está acessível, e tem um preço, desenvolve-se
uma espécie de psicologia «just in time». Para quê preocu-
parmo-nos cm aprender isto agora se, quando precisarmos,
estará acessível? Pelo contrário, não saber uma coisa pode ter
o seu valor, já que o processo da descoberta pode tornar-se
mais útil e mais estimulante que o conteúdo da descoberta.
Com os sistemas periciais, melhorados por redes neurais so
fisticadas e com curvas rápidas de aprendizagem, ninguém
precisa de ser perito em nada. O melhor recurso pode muito
bem ser a ignorância, que força a atenção a reposicionar-se
para aprender qualquer coisa, do ângulo privilegiado dos não
especialistas. Poderemos todos desenvolver, até, um gosto e
um orgulho pelo reconhecimento dos nossos limites e limita
ções:
O sistema de valores está a mudar de um critério de exce
lência, hierárquico, competitivo, baseado na agressividade
em relação ao outro, para um critério onde se dá valor à inte-
ractividade e à colaboração e apoio. Neste novo contexto se
rá mais do que nunca necessária uma boa capacidade de ava
liação, adquirida com a experiência, não com a aprendiza
gem. Julgar é como a intuição, em parte sentimento, em parte
ideia: ambos provêm da colaboração sinergética entre o cor
po e a mente.

A linha de fundo: a linha de crédito da pessoa pobre

Para as pessoas orientadas para os negócios tudo o que foi


dito acima pode parecer demasiado sentimental. No mundo
da abundância durante quanto tempo consideraremos útil e
A Pele cia Cultura 101

satisfatório reduzir tudo a uma avaliação numérica? Do mo


do como funciona hoje, o dinheiro já não é suficientemente
rápido ou complexo para continuar a actuar como um meca
nismo de avaliação apropriado. A própria natureza do dinhei
ro está a mudar à medida que este migra para a era digital
com tránsacções financeiras puramente electrónicas. Quando
o dinheiro atinge a velocidade da luz é pura energia. Pode
nem sequer necessitar de voltar a passar por um estádio sim
bólico. Se seguirmos a evolução da tecnologia de encriptação
podemos observar que, em breve, será mais fácil medir todas
as operações globais do que lidar com a representação mate
rial do valor. A função do dinheiro estará precisamente confi-
^ nada a dar conta e designar a miríade de operações digitais
^ do computador global. Na economia dá abundância iremos
• necessariamente ter às formulas do «pay-per-bit» e à defini-
ção a pedido, com débito intantâneo na fonte, logo na altura
da utilização. A corrente e a moeda corrente serão ambas a
\— mesma entidade. Como disse Mark Poster «a palavra dinhei
ro refere-se a uma configuração de óxidos numa fila guarda
da no departamento informático de um banco»46.
No computador a linguagem encontra-se com a luz, numa
relação directa: a energia absoluta encontra a complexidade
absoluta. Os raios laser, a fibra óptica e os campos electro
magnéticos são os novos componentes da inteligência. Pro
cessadores ultra-rápidos juntar-se-ão à integração de grande
velocidade em standards que se tornarão uniformes. É disto
que a realidade é feita. A grande reviravolta da civilização
está agora a acontecer: entre o domínio do consciente e do
inconsciente. Não há muito tempo o mundo era estiípido e
nós éramos inteligentes. Mas o mundo assistido por compu
tador está a tornar-se mais rápido e mais esperto que nós.
Muito em breve a inteligência tecnológica colectiva vai supe
rar a inteligência orgânica individual tanto na velocidade co
mo na capacidade de integração. Vai ser interessante saber
102 Derrick de Kerckliove

como é que esta organização unificada tomará conta do am


biente e da pobreza humanos, e com que critérios avançará
para a engenharia genética. Por enquanto, relaxe. Ainda não
chegámos lá.
CAPÍTULO SEIS

O «STRESS» DA VELOCIDADE

Aceleração e Crise

«O aparecimento de uma crise pode ser lido não apenas como


ruído no sistema mas como sinal da emergência do próximo nível
de ordem histórica.»47
— William Irwin Thompson

Aceleração, crise e integração

Os efeitos da massa, velocidade e profundidade sempre es


tiveram connosco. Imprensa, telegrafia, fotografia, telefone,
rádio, cinema e televisão aceleraram consecutivamente o rit
mo de uma cultura anterior. Os computadores estão especifi
camente associados à velocidade; os microchips invadiram e
aumentaram a velocidade de outras tecnologias. Os computa
dores aceleram e desintegram padrões culturais tradicionais
para os reintegrar mais tarde de uma nova maneira.
104 Derrick de Kerckhove

Aceleração

A partir da criação das lotarias provinciais, muitos cana-


dianos ficaram multimilionários de um dia para o outro. Con
tudo, esta causa aparentemente desejável nem sempre produz
um efeito desejável. Investigadores e assistentes sociais cha
mam a atenção para o alarmante número de pessoas cujas vi
das foram arruinadas pela sorte caída do céu. Abundam as
histórias sobre cisões familiares, divórcios, rivalidades de
bairro ou entre parentes, gastos impensados e investimentos
desastrosos — acontecimentos que levaram a alcoolismo,
drogas, depressões e até mesmo suicídios. Seria um lugar-co
mum cpncluir que o dinheiro não traz felicidade. Mais exacto
seria afirmar que estes percalços são efeito de uma acelera
ção súbita. Pessoas que nunca tiveram ou geriram grandes
quantidades de dinheiro podem ser destruídas pela pura ener
gia que ele traz.

«Design», material, escala e ritmo

Se se submeter qualquer estrutura física ou psicológica a


uma aceleração súbita, esta pode desintegrar-se. A resistência
de uma estrutura à tensão é função do seu design global, o
seu material, a sua escala e, acima de tudo, o seu ritmo. Es
tes são critérios importantes a considerar quando se cuida da
saúde das organizações em tempos de rápida mudança. Quer
falemos de um edifício, da burocracia ou de uma maneira de
pensar, todas as estruturas, têm determinadas proporções e
movem-se ou funcionam a uma dada velocidade.48 A perda
de escala ou de ritmo podem traduzir-se, por exemplo, numa
perda de orientação por parte dos trabalhadores. A investida
da cultura de massas através da TV gerou gigantescas econo
mias de escala para cadeias de lojas e grandes superfícies,
A Pele ela Cultura 105

mas quase apagou do mapa o pequeno comércio e as lojas lo


cais. Foi uma dolorosa perda de escala, não só para os reta-
lhistas mas também para muitos clientes, que se sentiram tra
tados de modo impessoal nas novas megalojas. Depois da
aceleração, uma tendência inversa de integração pode agora
ser observada nos centros comerciais que trazem de volta as
antigas lojas de bairro.
Momentos de aceleração, crescimento súbito ou intensifi
cação podem afectar uma ou todas as características de um
design. Podem estilhaçar ou transformar toda a estrutura.
Além de alterar o seu ritmo básico de operação, um efeito
da aceleração é cortar as ligações entre as várias partes de
uma organização, desmantelando-a assim no tempo c no es
paço.
Como estudante tive um emprego de Verão a vender espa
ço de publicidade num catálogo para empresas africanas e
asiáticas. O seu editor, baseado na Grã-Bretanha, hoje já fa
lecido, estava habituado a trabalhar a um ritmo invariável,
para não dizer de caracol. No princípio desta minha carreira
percebi que alguns melhoramentos na eficiência trariam dez
vezes mais negócio do que empregados de Verão como eu.
Tendo quadruplicado o rendimento gerado no ano anterior,
apresentei um plano de acção exigindo pouco ou nenhum in
vestimento do meu tempo. Para meu espanto, nenhuma das
sugestões foi aceite. Muito mais tarde soube que os meus
planos e iniciativas foram vistos como tendo apenas o objec-
tivo de apressar as coisas desnecessariamente. Tinha sido ob
viamente um erro pensar que esta empresa estava no negócio
de fazer dinheiro. Isso fora irreflectido. O que eu devia ter
concluído era que as empresas, especialmente as pequenas
empresas inglesas, são estruturas orgânicas com os seus rit
mos e andamentos próprios e que qualquer aceleração pode
ameaçar não só a sua estabilidade como a sua própria razão
de ser.
106 Derrick de Kerckliove

De acordo com a flexibilidade da estrutura em causa, a


conseqüência da aceleração pode ser a desintegração ou a
mutação. A aceleração das moléculas de água pelo calor
transforma a substância original em vapor. A aceleração de
uma pequena estação dos correios pela introdução de uma
máquina de, fax pode causar uma quebra de motivação ou
mesmo greves. Da mesma forma, organizações econômicas,
mercados e mesmo economias inteiras sujeitas a aceleração
ou se transformam ou se expandem até um ponto de ruptura.
A inflação é um bom exemplo de uma economia a transfor
mar-se em vapor.

«A inflação é o dinheiro com uma crise de identidade»


-— Marshall McLuhan

O humor de McLuhan vai direito ao assunto. Em primeiro


lugar, lembra-nos que a inflação não é o aumento dos salá
rios e dos preços, mas a desvalorização da moeda em termos
reais. Em segundo lugar, mostra que a inflação caracteriza os
estágios críticos da história econômica, quando o suporte ma
terial ou a identidade física do dinheiro sofre mudanças. À
medida que o dinheiro se torna mais e mais leve, oferecendo
menos resistência à velocidade das transacções, o seu signifi
cado transfere-se do material para o simbólico. Como Tom
Forester diz, «quando alguém passa um cheque, nenhum di
nheiro muda de mãos... o dinheiro é na verdade informação
sobre dinheiro»**9.
Ao mudar-se da sua base em hardware para a base presen
te em software, o valor do dinheiro deixou de ser identificado
com a sua referência material absoluta — uma quantidade de
metal na mão, no banco ou no cofre-forte. Agora é identifica
do como uma convenção relativa. Na verdade, para ser efi
ciente, o preço tem de estar estreitamenle relacionado não só
A Pele da Cultura , 107

com a oferta e a procura, mas também ter em conta as dimen


sões da economia em que o preço existe. Logo, o preço é
uma figura dependente de um campo muito mais vasto e
qualquer alteração neste campo modifica o seu valor simbóli
co. O campo da economia ocidental variou frequentemente:
materialmente, da agricultura para a informação; em termos
de ritmo, de dinheiro pesado para dinheiro leve; em termos
de escala, do local para o global; globalmente, em termos de
design do nômada para o ecológico. Na economia contempo
rânea, cada vez mais globalizada, o que impede nações indi
viduais de imprimir dinheiro sem restrições, as balanças co
merciais internacionais tornam-se o critério. Logo, os défices
locais começam a crescer cada vez mais e algo tem de ser
feito para os manter sob controlo.
O valor convencionado do dinheiro é monitorizado diaria
mente, para não dizer de hora a hora. Todas as excentricida
des das economias locais e globais, as suas divisas e interac-
ção estão comprimidas. Esta é uma situação extremamente
instável que exige uma expressão de valor mais simbólica do
que real — uma área de pequena resistência para acomodar
as flutuações do mercado. Como escreveu McLuhan «todas
as divisas, enquanto informação eléctrica, são igualmente
abstractas e infundadas; todas as despesas se transformam
em défices e a única forma prática de taxar é a inflação (taxa
sem representação)». O mercado está no éter desde que os
computadores tomaram conta dos jogos que se fazem com o
nosso dinheiro. Decimais flutuantes e variações sinusoidais
ligeiras circulam na interface dos câmbios externos. As divi
sas roçam-se gentilmente umas com as outras e, na fronteira
onde se encontram, uma ligeira chuva de ouro cai sobre os
nossos cambistas.
Estranhamente, as nossas notas de banco portam-se como
acções de flutuação moderada, não como o antigo símbolo
fiável do nosso sistema econômico nacional. vSe o dinheiro

?
108 Derrick cie Kerckhove

papel dc ontem era o «cartão de crédito do pobre», hoje


transformou-se nas suas acções e obrigações.

Espiral electrónica

As Transferências Electrónicas de Fundos (TEF) permitem


algumas operações financeiras bastante engenhosas se bem
que absurdas. Alguns corretores especializam-se em investir
enormes somas de dinheiro por prazos de 48 horas ou menos.
Digamos que uma soma de dinheiro vai a meio caminho para
pagar uma incorporação ou aquisição. Dez milhões de dóla
res investidos a 10 por cento durante dois dias dão uin rendi
mento de 5500 dólares. A soma principal, no seu voo electró
nico, não parece ter de aterrar em sítio nenhum. Neste caso
particular, ou em qualquer transacção da bolsa, não parece
haver necessidade de grandes quantidades dc dinheiro esta
rem ligadas à produção real. Podemos apenas assumir que o
valor simbólico do dinheiro se deve exprimir algures de uma
forma que beneficie a economia.
Os investimentos já não podem ser garantidos por uma
realidade material, tal como o nosso dinheiro não correspon
de a um equivalente em metal. O dinheiro, como a informa
ção, só está garantido por mais informação sobre outra infor
mação. O grosso das transacções financeiras mudou-se do
hardware para o software, uma situação que dá um empurrão
na orla da economia e a envia em turbilhão num remoinho de
electrões. Quando o dinheiro se move à velocidade da luz, o
valor passa do espaço e da matéria para o tempo e o design,
acompanhando o movimento do centro de gravidade da eco
nomia da produção para a informação, dos bens para os ser
viços. Parece possível o surgimento de uma tendência infla
cionária como única variável flexível entre um conjunto de
parâmetros rigidamente controlados. A inflação absorve o
A Pele da Cultura 109

efeilo da desligação entre investimento e produção. A infla


ção é o fole variável intermédio que absorve e regula o valor.
Deixada à larga, não controlada e mal compreendida, a in
flação não é mais do que «taxa sem representação». Contudo,
percebida como a aura de um campo lecnocultural activo, a
inflação é o processo pelo qual o dinheiro e o valor recupe
ram a sua identidade. Como veremos, uma intervenção infla
cionária cirúrgica pode mesmo impedir a catástrofe.

Crise: do B ig-B an g à «Segunda-Feira Negra»

Duas importantes datas marcam as mudanças da forma


industrial de ver o mundo para a feitiçaria financeira tecno-
cultural: 1971, o ano da introdução dos câmbios flutuantes,
e 27 de Outubro de 1986, quando as comissões fixas acaba
ram na Bolsa de Valores de Londres. Esta última é conheci
da como o «Big-Bang» do novo universo financeiro. Am
bas as decisões de desregulamentação foram uma resposta à
aceleração trazida pelos computadores. Ambas trouxeram
tempos de flutuações rápidas depois de tempos de controlos
rígidos. Significativamente, quase no mesmo dia, um ano
depois do «Big-Bang», veio a «Segunda-Feira Negra». Foi
o nosso primeiro encontro sério com a inflação das cada
vez mais electrificadas e aceleradas decisões de investimen
to. Paradoxalmente, a lei de Adam Smith da «mão invisí
vel» da economia auto-regulada funcionou mesmo para res
taurar um equilíbrio perdido naquele ambiente imensamente
volátil.
A «Segunda-Feira Negra» foi o colapso da bolsa assistido
por computador de 19 de Outubro de 1987. Milhões de ac
ções foram vendidas em poucas horas, fazendo cair o índice
da Bolsa de Nova Iorque para um terço do seu nível mais al
to. Alguns economistas culparam a complexidade incontrolá-
110 Derrick de Kerckliove

vel e a falta de processos de segurança do sistema de investi


mento pela queda. Por um lado, os investidores e corretores
individualmente foram responsáveis de modo consciente pe
las decisões de investimento. Por outro, a acumulação e ace
leração dessas decisões, interpretadas pelos sistemas periciais
da bolsa, desfizeram o equilíbrio entre o controlo do homem
e o da máquina. A mecanização tomou as rédeas com conse
qüências imprevisíveis.
Mas porque é que este colapso não seguiu o modelo de
1929, que trouxe com ele dez anos de Depressão e uma onda
de suicídios? Porque o primeiro foi um colapso industrial,
atingindo uma forma de encarar o mundo industrial, enquan
to o outro foi um ataque epiléptico de auto-ajustamento de
um campo tecnocultural para recuperar o seu equilíbrio.

Gestão de crise

Como sugeri, a nova raça de investidores tinha andado a


brincar com a informação e a transformá-la em dinheiro.
Contudo, a Reserva Federal sabia que mal a fenda entre in
vestimento e produção se alargasse de mais, a situação resul
taria em crise. Agora que isso tinha acontecido, na Segunda-
-Feira Negra, que se poderia fazer? A resposta, paradoxal
mente, foi investir mais dinheiro — quer dizer, mais infor
mação — no sistema. Mesmo correndo o risco de perder di
nheiro no curto prazo. Desta forma, o mercado recuperaria
rapidamente a compostura. Não havia, é claro, razão para
alarme visto que o risco dos investidores eslava coberto pelo
risco do Governo, isto é, toda a economia estava em jogo.
Esta atitude vai, contudo, certamente gerar uma série de ou
tras crises fruluosas, que eventualmente nos ensinarão uma
coisa ou outra sobre os defeitos do dinheiro representacional
como meio para o desenvolvimento social.
A Pele da Cultura

A crise é o momento da mudança, da metamorfose: calcu


lo que a lagarta esteja em profunda crise no momento em que
se torna borboleta. Todos pensamos que a palavra crise quer
dizer algo de terrível, mas não. Quer dizer algo de inteligen
te, pacífico, bom. Crise vem do grego antigo, krino, que quer
dizer «avaliar, julgar ou decidir». Urna crise é uma oportuni
dade de julgamento e um objecto de julgamento. Embora
muitas crises sejam criadas por ocorrências verdadeiramente
imprevisíveis, muitas mais nascem do colapso de velhos sis
temas à medida que são substituídos por novos. O desastre de
Bophal podia ter sido previsto — senão evitado — pela veri
ficação periódica dos registos de segurança da gestão local.
Mas uma verdadeira inovação foi a descoberta do novo con
texto da atenção pública permitida pelas comunicações elec
trónicas. Todos nos tornámos guardiões dos nossos irmãos no
mundo da comunicação instantânea. Perante uma crise, mui
tos perdem tempo a observar a velha ordem desmoronar-se,
lastimando a sua sorte e lamentando o mundo que passou.
Mas é preciso julgamento crítico em tempos críticos para
perceber que o que interessa é o que vem aí. Então a tarefa
de decidir é fácil, e fascinante.

Colapso

Desde o Watergate, que os colapsos se têm tornado cada


vez mais visíveis, as falhas éticas nos lugares públicos cada
vez mais desconfortáveis. Porquê? Estaremos a tornar-nos
sensíveis? Precisamente: estamos a tornar-nos mais atentos e
mais informados. Por todo o lado, a electricidade está a ilumi-
nar os recantos escondidos. Há razões para supor que mesmo
os mais rudimentares equipamentos vídeo e informáticos na
Europa de Leste ajudaram a expor as iniquidades do poder to
talitário. Viver num ambiente de informação quer dizer pelo
112 Derrick cie Kerckhove

menos duas coisas. A primeira é que nos estamos a tornar fa


róis da informação. A segunda é que, se é possível saber e fa
zer saber tanto, então não há onde nos possamos esconder.50
As guerras dos últimos cem anos podem ser interpretadas
como crises que serviram para destruir uma ordem mundial e
substituí-la por outra. Mesmo a chamada «Guerra Fria» foi
efectivamente uma nova ordem mundial. Embora a ameaça
nuclear tenha impedido guerras totais convencionais e trans
formado os agressores em guerrilheiros e terroristas, educou
todas as culturas quanto à unidade invisível do Planeta. No
momento em que a ameaça foi levantada por uma mudança
nas relações Leste-Oeste, surgiu no golfo Pérsico uma guerra
convencional. A guerra pode ser resultado da aceleração de
uma cultura lenta por uma cultura mais rápida. O recente
exemplo da Guerra do Golfo tornou isso óbvio, mas a guerra
é uma forma muito dolorosa de educação. Podemos olhar a
guerra como colapso e deplorá-la piedosamenle ou ver a ino
vação por trás dela. A crise do Golfo foi um exemplo de co
lapso como catástrofe, não como inovação. Em grandes co
lapsos, uma mente atenta reterá duas coisas: primeira, que a
situação não voltará a acontecer da mesma maneira, segunda,
que chegou a altura de ter uma nova compreensão de como
estas coisas acontecem. Eis o que William Irwin Thompson
escreveu cm Dezembro de 1983, com entando se era
McLuhan ou Orwell que tinha uma melhor visão de como se
ria o mundo em 1984.

Uma indicação segura de que os eslados-nação estão para


ser integrados num novo nível de ordem histórica pode ser
encontrada na natureza cumulativa dos conflitos globais
hoje em dia. As tribos combatem as tribos em África e na
Irlanda do Norte; um povo combate outro povo no Médio
Oriente e os estados-nação combatem-se uns aos outros
por todo o lado: da pilhagem de camiões espanhóis è ita-
A Pele da Cultura

lianos pelos agricultores franceses, à destruição de mísseis


sírios por caças americanos ou israelitas. Isso acontece
precisamente porque as formas globais de comunicação in
tegraram todos numa cultura planetária. As formas tradi
cionais de identidade estão ameaçadas c estamos a lutar
pela sobrevivência com a histeria do terrorista, mas como
estas lutas são imediatamente reproduzidas pelo mundo
através dos meios globais de comunicação que os terroris
tas exploram, o uso negativo da televisão só serve para dar
mais energia à integração global de todos os povos numa
nova cultura mundial.51

Uns anos mais tarde a situação já mudou dramaticamente,


apesar de alguns jogadores continuarem á jogar mais ou me
nos o mesmo jogo. A globalização mudou-se do pano de fun
do para o proscênio na consciência das pessoas.

De Tchemobyl ao Muro de Berlim


O colapso conto inovação

No colapso de Tchernobyl, as pessoas começaram a perce


ber que a tecnologia nuclear envolvia grandes e desnecessá
rios riscos. Os soviéticos tinham imitado os americanos com
a sua própria versão do desastre de Three Mile Island. Mas
perderam a face para o Ocidente por causa da má publicidade
na imprensa sobre a poluição nuclear mundial. Foi esta a ins
piração para a retirada das forças nucleares intermédias da
frente europeia? Um incidente pode não ter tido nada a ver
com o outro. Contudo, num contexto mais global, Gorbachev
pode ter visto em Tchemobyl a necessidade de rescrever as
regras do jogo Lesle-Oeste e adaptar-se às novas condições
do jogo mediático da imagem. Quando o Muro de Berlim foi
construído, McLuhan tinha já sugerido que este não resistiria
i 14 Derrick de Kerckhove

à pressão exercida pela cultura ocidental mais rápida sobre a


cultura de Leste mais lenta. Ao recusar o envio do Exército
Vermelho para acabar com os protestos contra Honecker,
Gorbachev mostrou as suas qualidades de homem de Estado
na gestão de crise. O colapso do Muro de Berlim traduziu-se
na maior inovação nas relações Leste-Oeste desde o fim da
Segunda Guerra Mundial.
Tendemos a pensar que as crises acontecem numa espécie
de nevoeiro, onde não conseguimos perceber nada da situa
ção. E contudo mais freqüente a própria crise revelar o pa
drão. Existe um belo relato de um colapso que conduz a uma
inovação em «A Descida do Maelstrom» de Edgar Allen
Poe. Um marinheiro e o seu irmão estão num barco no meio
de um enorme remoinho. Enquanto o irmão se agarra ao
mastro do barco com o terror, o marinheiro observa como os
grandes barcos e' barcaças apanhados na espuma em espiral
se afundam para se despenharem no fundo, como se arrasta
dos pelo próprio peso, enquanto as estruturas mais leves so
bem, beneficiando de uma contracorrente vertical. Tomando
uma decisão difícil e tendo tentado em vão convencer o seu
irmão a largar o mastro, o marinheiro agarra um barril arras
tado na confusão e salta para dentro. E levado em segurança
para a orla exterior do turbilhão, vendo o irmão afundar-se
com o barco.

A inovação vem do estudo do padrão do colapso

As recessões dos anos 70 reorientaram os gastos públicos


do apoio ao consumismo dos anos 60 para o apoio à actual
acção conjugada das economias deficitárias. Uma resposta
interessante à crise foi a invenção do refinanciamento da dí
vida, que aconteceu quando o Brasil se recusou a pagar os ju
ros da sua dívida nacional. Isto implicou a aquisição de parte
A Pele da Cultura 115

da dívida para fazer crescer as concessões fiscais, descontos


e privilégios de forma a criar equidade na indústria local. Es
ta é uma verdadeira inovação, pois combina bom sentido co
mercial — proteger um investimento que de outra maneira
estaria perdido — com a ajuda a países em vias de desenvol
vimento.
A gestão de crise é particularmente valiosa em tempos de
transição. A transição hoje é entre a chamada «história do
mundo ocidental» e a «história da Terra». Com as comunica
ções a viajar à velocidade do pensamento, as economias es-
trilamente locais não fazem mais sentido que as ecologias es-
trilamente locais. Em cada segundo que passa, estamos liga
dos uns aos outros por acontecimentos tão globais como o
tempo. As nossas empresas e as suas crises ajustam-se muito
bem neste cenário — e ainda melhor quando os executivos
percebem em que ponto estão no esquema mais largo, no
contexto mais amplo. Haverá sempre tempo para voltar aos
aspectos específicos de uma situação difícil, quer diga respei
to às normas internacionais de telecomunicações quer à resis
tência dos empregados à informatização. Como qualquer
grande empresa, mas com a complicação adicional da eleva
da visibilidade, os governos são frequentemente culpados de
padrões de má gestão. Talvez da próxima vez, os governos
possam explicar na televisão como estão a trabalhar para
manter a confiança dos cidadãos sem ameaçar o sistema. Pa
ra fazerem isto bem feito, precisam de perceber como, inspi
rar autoridade, rigor, compaixão e calma nos media.
A única certeza que adquirimos até agora é a de que «o fu
turo já não é o que era». O próximo passo é reconhecer que
somos primitivos numa cultura nova e global. Para evoluir
mos do estado de meras vítimas para o de exploradores, te
mos de desenvolver um sentido de julgamento crítico em
tempos críticos.
C A P ÍT U L O SETE

BABEL E JERICO

Metáforas Arquitectónicas para Catástrofes


Tecnológicas e Psicológicas

E o Senhor desceu a ver a cidade e a torre que os filhos dos ho


mens estavam a construir. E o Senhor disse: «Vede, eles são
apenas um povo e falam uma única língua; e eis que começam a
fazer isto; e agora riada os impedirá de realizar os seus projectos
futuros. Vamos, desçamos e confundamos a sua língua, de for
ma a que não entendam a fala uns dos outros.»
(Gênesis 11:5-7)

Nesta passagem, o mais antigo livro da Bíblia admite o ili


mitado, quase divino, poder da linguagem; o primeiro sof
tware a criar, moldar e comandar a matéria. É por serem do
tados de linguagem, que nada, excepto a confusão das lín
guas, pode deter os «filhos dos homens». Babel e Jerico fo
ram ambas catástrofes de software, a primeira trágica, a se
gunda cômica. Ao colapso das comunicações em Babel cor
respondeu um caso clássico —- quase grego — de hubris: os
arquitectos de Babel foram punidos por aquilo que os tornava
orgulhosos, a universalidade da sua linguagem,
118 Derrick de Kerekliovo

Mas a queda de Jerico propôs uma alternativa: «E, quando


ouvirdes um longo clangor do corno do carneiro e o som das
trombetas crescer e vós o escutardes, todo o povo irromperá
em grande clamor; e a muralha da cidade desabará. Então o
povo subirá para a cidade, cada um seguindo o que lhe ficar
em frente» (Josué 6:5). Foi necessária a combinação de três
tipos de som para derrubar as muralhas: o clangor do corno
do carneiro, o som das trombetas e o grande clamor do povo.
Seja como for, a receita aponta para uma crença no poder do
som para pulverizar até o obstáculo mais difícil. Como vitó
ria do software sobre o hardware, Jerico simboliza uma revo
lução na Física, uma transformação paradigmática. Hoje o
nosso mundo está suspenso entre duas opções, a desintegra
ção como em Babel ou a metamorfose como em Jericó.
Philippe Quéau põe o problema do mundo moderno no
campo babélico, ao sugerir que a questão aí não era a falta de
compreensão entre os arquitectos, mas o facto de se percebe
rem bem de mais.52 E esse mesmo universalismo, nas ten
dências contemporâneas de compatibilização e normalização
no mundo da informática, que pede a comparação com os pe
rigos do poder acumulado de uma linguagem universal. Ape
sar do grande mal-estar social e de uma recessão mundial, a
nossa imparável aceleração tecnológica pode dar-nos a im
pressão de que tudo vai bem de mais, que vamos depressa de
mais a caminho de um destino que não conseguimos distin
guir, à medida que vamos experimentando colectivamenle a
adrenalina de uma alucinação consensual. Sentimos a imi
nência da catástrofe, não necessariamente do sentido bíblico,
mas antes no sentido do filósofo francês René Thom, que
descreve um fenômeno que, sob a acumulação do seu próprio
peso e velocidade, atinge subitamente um ponto de inversão.
A aceleração tecnológica e social súbita sem preparação
pode na verdade levar à desintegração, como ambas as guer
ras mundiais amplamente demonstraram. Este é seguramente
A Pele ela Cultura I 19

o lado babélico. Contudo, começamos a estar habituados à


velocidade. Os nossos computadores estão a acelerar as nos
sas respostas psicológicas e os nossos tempos de reacção
muito mais do que fizeram os aviões, os comboios e os auto
móveis. Os computadores estão também a combinar, unificar
e sincronizar as actividades da rede electrónica global. Esta
mos a começar a aperceber-nos desta unidade sob a forma de
enormes ondas de corrente eléctrica em campos electromag
néticos. Est,a é a onda sonora que pode demolir todas as mu
ralhas das cidades e estados-nação. A inversão que devemos
esperar não é um desastre mas uma transformação — uma
imagem radicalmente nova da humanidade.
A herança cultural e tecnológica ocidental provém de uma
única fonte: a literacia fonética. Hebreus, gregos e romanos
foram «Povos do Livro». Enquanto o Velho e Novo Testa
mentos forneceram a espinha dorsal e linhas mestras da cul
tura ocidental dos três últimos milênios, o sistema principal e
dominante de processamento de informação do Ocidente (até
ao aparecimento da electricidade) foi o alfabeto. O alfabeto
tem sido o principal dispositivo de programação das culturas
ocidentais. É do alfabeto que o Ocidente derivou a sua carac
terística tendência tecnocêntrica. O alfabeto portou-se como
um acelerador cultural, tirando partido da articulação da lin
guagem para traduzir o pensamento em tecnologias. A tenta
ção tecnológica, omnipresente na tradição hebraica, vem com
toda a probabilidade do domínio da linguagem que a sua or
tografia altamente eficiente dava aos hebreus.
Contudo, o medo das conseqüências das suas próprias ino
vações veio também da natureza consonântica do seu alfabe
to. Visto que as vogais não são representadas na escrita semi-
ta, o texto nunca é completarnente independente do contexto.
Não só é impossível ler hebraico sem conhecer a língua, co
mo é também bastante difícil ler sem um conhecimento bas
tante extenso do contexto dos enunciados. Daí que seja ne-
120 Derrick de Kerckhove

cessário que a maioria, senão mesmo a totalidade, dos textos


hebraicos se refiram a uma raiz comum, uma base de conhe
cimento partilhado que não permite muitas divergências ideo
lógicas. O conhecimento é sagrado neste sentido e não pode
ser alterado. Contudo, dentro dos constrangimentos de uma
ideologia profundamente religiosa, a escrita fonética é, neces
sariamente, subversiva por objectivar o pensamento em ter
mos verbais e não icónicos. Ver os pensamentos escritos per
mite-nos trabalhar sobre eles, refiná-los, voltar a eles e modi
ficá-los. A expansão do pensamento pela representação, com-
plexifica e acelera o pensamento. Convida às explorações
verbais e lingüísticas ou «ensaios». A tentação de inovar, de
pensar por si, já latente no desejo de provar o fruto do conhe
cimento de Eva, deve realmente ter sido grande. Mas deve ter
sido bastante difícil para o leitor hebreu antigo experimentar
sem culpa a liberdade do pensamento puro, da inovação pela
inovação. Na tradição hebraica, não só é pecaminoso cair em
tentação, mas também simplesmente pensar nisso.
Pbr comparação, qualquer pessoa pode ler qualquer coisa
escrita nos alfabetos românicos, qualquer que seja a língua
representada. Ao permitir que a leitura do texto seja razoa
velmente independente do conhecimento do contexto, os al
fabetos românicos permitem a completa descontextualização
dos textos em relação às suas fontes. O leitor românico não
sente nenhuma necessidade ou urgência especial em referir o
texto a um todo-poderoso contexto, nenhuma razão para se
sentir culpado por imaginar alternativas a um conhecimento
comum. A ficção, a teoria c a experimentação científica tive
ram rédea livre em intermináveis combinações, recombina-
ções e permutas de cadeias lingüísticas em formas literárias.
Até hoje, devemos os nossos hábitos de livres-pensadores e o
nosso impenitente impulso tecnológico à alfabetização pri
mária na escola. É também nesta perspectiva não hebraica
que a nossa relação com a inovação tecnológica tem de ser
A Pele da Cultura 121

considerada e a ameaça de uma nova catástrofe babéliea rea


valiada.
O Gênesis II não especifica como é que o Senhor confun
diu as línguas para dispersar o povo. Poderia ter usado a es
crita. À raiz histórica escondida do mito de Babel pode ser a
de que a literacia semita, ao substituir as ortografias pictográ-
ficas egípcias, enfatizou as representações fonológicas em re
lação às representações ideográficas da linguagem, realçando
também as diferenças entre dialectos locais e entre usos espe
cializados de uma língua comum. Esta hipótese adquire ainda
mais credibilidade quando comparamos as conseqüências ex
plosivas da literacia alfabética com o poder dos ideogramas
para manter a estabilidade no Egipto e na China durante mi
lênios apesar das enormes disparidades locais entre dialectos
e línguas.
O alfabeto foi um barril de pólvora. Entre as muitas conse
qüências da fragmentação letrada, tipicamente exemplificada
pela invenção da imprensa na Renascença, estiveram várias
explosões; a do latim como lingua franca nas linguagens ver
naculares, a do Sacrossanto Império Romano em nação e ci-
dades-estado e a da unidade religiosa medieval em Reforma
e Protestantismo. Estas diferentes explosões geraram guerras
terríveis e prolongadas, mas talvez o mais consistente efeito
da revolução literata no Ocidente tenha sido o nivelamento
sistemático de estruturas verticais em horizontais. Pouco de
pois do alfabeto começar a tomar conta das classes dirigentes
c especialmente dos mercadores, houve uma mudança gra
dual das hierarquias verticais feudais (poder divino) para as
democracias horizontais. Poucos sinais são mais reveladores
que as profundas mudanças arquitecturais da Alta Idade Mé
dia para a Renascença tardia. Uma espécie de «imperativo do
horizontal» mudou a orientação das construções e também
do pensamento. O pensamento evolui de uma relação Deus-
-para-Homem, cima-baixo, para uma concepção exclusiva-
122 Derrick de Kerckliove

mente terrena exemplificada pela famosa frase de Voltaire «II


feint cultiver notre janlin.» No que se refere à arquitectura,
enquanto a catedral de Colônia pode perfeitamente exempli
ficar a verticalidade pré-catastrófica de Babel, construída ao
longo de séculos de fé comum de um povo que falava uma
língua comum, os edifícios da era seguinte adoptaram a hori-
zontalidade da linha escrita e a fiel simetria das duas páginas
de um livro aberto.
Paradoxalmente, com todo o seu potencial explosivo, a in
venção do alfabeto grego foi também uma espécie de vingan
ça da humanidade contra a dispersão babélica. Tornou-se ra
pidamente o sistema de escrita normalizado para todas as lín
guas indo-europeias, excepto o russo, e associado às línguas
eslavas. Foi o primeiro «transportador comum» de informa
ção no Ocidente. Apesar de ter dado um forte impulso às lín
guas locais e vernáculas, enfatizando as identidades e cultu
ras locais nas várias comunidades lingüísticas europeias, o
alfabeto também lançou as raízes do comércio, associação e
transferência de tecnologias internacionais. Ao nível cogniti
vo, a literacia alfabética tornou-se a fonte comum de todas as
referências sensoriais constitutivas da elaboração de sentido.
As pessoas alfabetizadas têm tendência a traduzir a sua expe
riência sensorial em palavras e as suas respostas sensoriais
em estruturas verbais. Isto vem do seu hábito de traduzir ca
deias de letras impressas em imagens sensoriais para dar sen
tido ao que lêem.
Hoje, o novo «senso comum» é o processo digital. Via di
gitalização, todas as fontes de informação, incluindo fenôme
nos materiais e processos naturais, incluindo as nossas simu
lações sensoriais — em sistemas de realidade virtual por
exemplo — estão homogeneizados em cadeias seqüenciais
de 0 e 1. Parte do «efeito Jericó» vem da facilidade com que
o código eléctrico se infiltra em todas as substâncias e as tra
duz na sua própria matéria. A electricidade começa onde fi-
A Pele da Cultura 123

cou o alfabeto. É por isto que estamos mais uma vez a expe
rimentar a emoção e ansiedade da aceleração.

Os novos arquitectos

A nova arquitectura está dentro e fora dos computadores; é


feita de redes de comunicação baseadas em cabo, fibra óptica,
ondas hertzianas e satélites. Estrutura a operacionalidade dos
programas e bases de dados. Estrutura o funcionamento do Es
tado e da Economia. Todos este sistemas são tributários de
uma só tecnologia transversal: a electricidade. A electricidade
é a nova, única linguagem comum. E por natureza coesa e im-
plosiva, não explosiva como o alfabeto. Para serem úteis e au
mentarem o seu valor no mercado, tecnologias de comunica
ção inovadoras como as redes de dados ou os sistemas de vi-
deotexto ou videoconferência requerem o máximo de interope-
racional idade e normalização. Apesar da tendência dos investi
gadores e produtores de sistemas para desenvolverem nôrmas
patenteadas, um reflexo inconsciente herdado da nossa era me
cânica babélica, a tendência é para a integração e o mercado
eventualmente eliminará os jogadores que se recusarem a ali
nhar nessa equipa. Os computadores deram-nos poder sobre o
ecrã e permitiram-nos a personalização do tratamento de infor
mação. Não é o mundo que se está a tornar global, somos nós.
Esta é a boa notícia. A má é que cada inovação tecnológica
traz uma contra-reacção oposta: a globalização encoraja a hi-
perlocalização, que em muitas partes do mundo leva a agita
ção social, vários tipos de racismo e conflitos armados. Esta
é a faca de dois gumes de Babel presente na redefinição das
identidades e lealdades locais. À medida que os povos se vão
globalizando, enfatizarão também cada vez mais as suas
identidades locais. A ameaça de uma Babel revisitada esprei
tou na Guerra do Golfo, na Somália e na antiga Jugoslávia.
124 Derrick de Kerckhove

Contudo, a assustadora memória de Babel no nosso in


consciente colcctivo não vem necessariamente das questões
presentes nos conflitos políticos c étnicos. Vivemos já mo
mentos de agitação muito mais generalizados e violentos sem
falar de Babel. Um medo babélico pode surgir a partir das
implicações mais profundas do nosso recém-adquirido poder
sobre a matéria e a vida, com as suas conseqüências sociais,
políticas, psicológicas e religiosas. Os Novos Arquitectos são
os engenheiros nucleares, moleculares, genéticos. A nova
Torre é uma hélice dupla e o novo sonho babélico é o projec
to do Genoma (a transcrição de todo o código genético hu
mano) que, com as melhores intenções do mundo, está pres
tes a dar à engenharia genética um poder de controlo social
inaudito.
O nosso código genético é o próximo nível das nossas lin
guagens universais. Em breve deverá ser aparente que uma
certa perda de equilíbrio entre os poderes da natureza e os da
cultura faz parte do alfabeto fonético. A imagem do alfabeto
ainda reside na nossa interpretação científica das relações en
tre ADN e'ARN. A engenharia genética recombinatória per
mite que cadeias de instruções genéticas sejam descontextua-
lizadas da sua origem e transplantadas para outra célula dife
rente, vinda de um indivíduo diferente e, mesmo, de uma es
pécie totalmente diferente.
O facto de estarmos, na verdade, a ir por um caminho de
total controlo sobre a natureza é abundantemente demonstra
do pela nossa recente predilecção pelo vocabulário da reali
dade artificial. Expressões como realidade «virtual», «ciber»
espaço, tempo «real», vida «artificial» c «endo-» e «nanotec-
nologias», estão a crescer exponencialmente. São claros sin
tomas lingüísticos de uma tendência «ciborg» que tenta mis
turar os reinos do orgânico e do técnico. Para já não falar da
relação incerta e desconfortável que as cada vez mais invaso
ras tecnologias têm com os nossos corpos, a questão mais
A Pele da Cultura 125

premente para os Novos Arquiteclos é a de saber se este rei


no biotccnico constitui um suporte tecnológico desejável pa
ra o destino humano. Nada nos garante que os peritos, têm o
enquadramento certo, ou mesmo qualquer tipo de enquadra
mento, em que basear as suas opções de investigação. E o
facto de grandes grupos médicos e farmacêuticos estarem já
a fazer ofertas pelo controlo dos direitos sobre as primeiras
descobertas homologadas do projecto do Genoma, não deixa
ninguém mais seguro. Depois de décadas em que fomos re
féns do complexo militar-industrial, somos ameaçados por
um novo ataque ao corpo político, o do complexo médico-in-
dustrial.
Enquanto cientistas e tecnocratas se atarefam a aperfeiçoar
os nossos corpos e as nossas mentes de acordo com o velho
modelo do homem renascentista, as nossas tecnologias do
dia-a-dia estão a mudar-nos insidiosamente de uma forma
que em breve se tornará irreconhecível à luz de paradigmas
científicos obsoletos. A imagem científica d'o humano é a de
uma máquina perfeita com peças intermutáveis. Na engenha
ria genética a imagem é apenas ligeiramente melhorada. A
máquina pode construir-se a si mesma de acordo com especi
ficações se soubermos como modificar a programação. O fu
turo da saúde física está no conceito corporizado pelo repli
cant de Bladerunner. O círculo vicioso é fácil de prever: a
tecnociência vai construir organismos cientificamente equili
brados para executar operações calculadas cientificamente à
perfeição. O computador feito carne. Não há alma nesta má
quina porque não há espaço para mais do que um eu opera
cional na visão científica/robótica deste ser. Precisamos cer
tamente de uma catástrofe babélica, se é na verdade essa a
direcção para onde caminhamos.
Contudo, na verdade, não é. A ciência não é melhor que a
ficção científica a prever a realidade. Os cientistas, por exem
plo, não têm noção das implicações profundas e em larga
126 Derrick de Kerckhove

medida inconscientes do movimento «politicamente correc


to» na América. Como reacção à ameaça de um esmagador
controlo da natureza pela cultura, a tendência do «politica
mente correcto» (PC), que se espalhou na América do Norte
como um fogo florestal e se está a espalhar mais dificilmente
na Europa, pode ser uma resposta profunda ao medo criado
pelo controlo científico e tecnológico daquilo que constitui a
melhor imagem da humanidade. Seja o que for que objecte-
mos às atitudes por vezes opressoras dos activistas PC, a no
ção de que cada membro da sociedade, independentemente
da raça, cor, religião, gênero, estado de saúde, nível de educa
ção, condição de fortuna ou classe, atributos pessoais ou falta
deles tem direito a um estatuto igual na sociedade é algo que
vale a pena explorar. Pode salvar-nos de Babel.

/I arte salvadora: «Ver mais, ouvir mais e sentir mais»

A ciência não sabe para onde vamos porque abandonou o


«porquê» às desvalorizadas religiões. Não pode saber do fu
turo porque dificilmente consegue avaliar o presente. Perdi
dos em espirais conceptuais, teorias encadeadas e experiên
cias estupidificantemente simples, a maior parte dos cientis
tas profissionais não têm senão a mais grosseira das per
cepções. Como Karl-IIeinz Stockhausen sugeriu, hoje somos
convidados a «ver mais, ouvir mais e sentir mais». Esta é
uma frase de artista. Poucas pessoas para além dos artistas
são capazes de prever o presente. As nossas tecnologias já
nos fazem ver mais, ouvir mais e sentir mais. Mas nenhum
psicólogo com amor-próprio de nenhuma universidade ame
ricana estaria disposto a considerar sequer que as extensões
das nossas experiências sensoriais possam ter um efeito de
retorno sobre a nossa experiência psicológica. O papel do ar
tista hoje, como sempre, é recuperar para o público em gera!
A Pele da Cultura 127

o contexto mais amplo que se perdeu nas investigações ex


clusivamente textuais da ciência.
Mas a sugestão de Stockhausen não é que fiquemos satis
feitos por a televisão levar os nossos olhos ao fim do Planeta,
ou que nos maravilhemos com a forma como o telefone nos
traz vozes de longe, ou que aprendamos a tocar nos ecrãs e
em texturas virtuais. O que ele recomenda é que deixemos os
nossos sentidos ensinar-nos a ser novas pessoas, mais bem
ajustadas às dimensões reais de uma humanidade que se pro
longa para além do alcance dos nossos sentidos naturais. A
tarefa do artista que aborda os novos meios e novas máqui
nas não é louvar ou condenar a tecnologia, mas fazer a ponte
entre tecnologia e psicologia. As nossas novas formas de arte
nos vídeos de John Sanborn, nos gráficos de computador de
Karl Sims, na holografia de Dieter Jung, nas realidades vir
tuais de Monica Fleishmann não são mais do que metáforas
expandidas dos nossos sentidos tecnologicamente prolonga
dos. E uma palavra como «telessensibilidade» apenas come
ça a descrevê-las.
Ver mais não é apenas ver mais longe, para além dos limi
tes das nossas paredes e horizontes presentes. É desenvolver
uma nova precisão e flexibilidade do nosso olhar; é ver por
trás das nossas costas, como vemos à frente dos olhos; é
apreender o mundo não apenas numa relação frontal., mas
num ambiente circundante total; é multiplicar as facetas dos
nossos olhos e os objectos do nosso olhar simultâneo como
se todas as câmaras do mundo fossem a realização de um no
vo Argus.
Ouvir mais é saber como encontrar o som por trás do som,
para lá do frenesi da cidade e para lá da cacofonia dos media.
Ouvir mais é aprender com David Hykes e o Harmonic Choir
que, sim, durante séculos obliteráramos os harmônicos dos
sons que suportam o significado, os únicos que sabemos ou
vir. Durante séculos não conseguimos ouvir as divinas subti-
128 Derrick de Kerckhove

lezas das ressonâncias e a combinação de harmonias presen


tes no meio ambiente. John Cage disse que o silêncio é a so
ma de todos estes sons do meio ambiente ao mesmo tempo.
Poderia também ter dito que o silêncio está vivo.
Sentir mais é o mais importante. Paracelso disse que a ore
lha não é uma extensão da pele, mas que a pele é de facto
uma extensão da orelha. É evidente que, depois de aprender
mos a ler e escrever, fechamos dentro da nossa pele os silen
ciosos conteúdos da nossa mente. Aprendemos a usar a pele
como um dispositivo de exclusão. Ganhámos terror ao toque,
ao contacto corporal, aos corpos das outras pessoas e ao nos
so, mais do que a qualquer um. Desse modo a pele só pode
doer. Precisa da protecção de camadas de roupa. O toque das
outras pessoas só pode magoar. A nossa privacidade exige, a
protecção da culpa. f'
Para a extensão electrónica do corpo, esta percepção da
pele é aberrante. McLuhan sugeriu que «na era da electrici
dade, usamos toda a humanidade como nossa pele». Isto faz
todo o sentido. A pele como dispositivo de comunicação e
não de protecção faz todo o sentido. Eugene Gendlin, o pou
co escutado psicólogo americano que inventou a noção de
«sentido pressentido» para descrever como os nossos corpos
processam informação com tanta, senão mais, velocidade que
as nossas mentes, abriu-nos um novo campo de percepções
tácteis, para além dos limites do corpo individual. Não posso
ver demasiada violência na televisão, não por temer que isso
me insensibilize como tantos comentadores pouco imaginati
vos se apressam a sugerir, mas porque não posso receber de
masiados golpes nas minhas respostas neuromusculares.
A violência de uns poucos é resultado da insensibilidade
de muitos. Sentir mais é começar a estar preparado para uma
melhor compreensão do mundo em que estamos a entrar. É
uma maneira de evitar uma catástrofe babélica. Expandir o
alcance da nossa responsabilidade psicossociológica, assim
A Pele da Cultura 129

como descobrir uma nova, global e colectiva Renascença: o


papel da arte é fundamental. A solução real está em mudar as
nossas percepções e não só as nossas teorias. A arte da tele
comunicação ajuda-nos a perceber que nos estamos a tornar
povos maiores, à medida que olhamos o nosso planeta do es
paço e descobrimos que o real tamanho do nosso corpo co-
lectivo é o do Planeta. As artes interactivas e a proliferação
de interfaces sensoriais podem fazer-nos perceber que usa
mos as nossas mentes e corpos prolongados como mecanis
mos de afinação para ir verificando o estado de saúde da Ter
ra. Somos convidados a refinar a nossa autopercepção para
estender o nosso ponto de ser (mais que o nosso ponto de
vista) de onde ou para onde quer que os nossos sentidos tec-
nologicamente prolongados nos levem.
C A P ÍT U L O O IT O

C IBE R DESIGN

Critérios de D e s ig n para a Ciberactividade

Realidade virtual

Na unidade Head Mounted Display (HMD)* da Universi-


jdade da Carolina do Norte em Chapel Hill, existe um sistema
de RV que permite a um designer seleccionar formas básicas
em 3D (esferas, cubos, estruturas piramidais) e expandi-las
para os tamanhos que quiser, combiná-las, trabalhar sobre
elas com diversas técnicas de corte e proporção em tempo
real. O designer pode ver o conceito ganhar forma e entrar
nele ou andar à volta dele em tempo real. A realidade virtual
permite-nos entrar fisicamente nos produtos da nossa imagi
nação.
A RV está o mais próximo do «puro» design que é possí
vel em tecnologia aplicada porque é inteiramente baseada em
actividades de software. Para além da estação de trabalho,
um par de visores e uma Luva Virtual, nada há de material
até ser enviada uma ordem para fazer ou construir alguma

* Capacete de Realidade Virtual. (TV. T.)


132 Derrick de Kerckhove

coisa. Os sistemas existentes consistem em variados tipos de


interfaces ligando os utilizadores a ambientes totalmente en
volventes, gráficos e sonoros, fornecidos por um computa
dor. Para entrar na realidade virtual podemos usar um capa
cete com visores, que nos dão visões estereoscópicas tridi
mensionais de um mundo gráfico, ou projectar a nossa ima
gem nesse mundo sem nos metermos realmente lá dentro.
Para operar no mundo projectado, usamos uma luva, a Luva
Virtual, que nos permite mover-nos no universo gráfico e
manipular os objectos lá dentro.
Desde o início a RV tem estado nas mãos de uma raça es
pecial de artistas-engenheiros. A interface de RV original é a
unidade HMD que foi primeiro desenvolvida no MIT e na
Universidade de Utah durante os finais dos anos sessenta e
princípio da década de setenta pelo cientista informático Ivan
Sutherland. Contudo, como Howard Rheingold53 correcta
mente afirma, a ideia de pôr o observador dentro da imagem
nasceu com o cineasta Morton Heilig e a realização da pri
meira máquina multissensorial completamente envolvente foi
o seu Sensorama (1960), que foi guardado no seu pátio das
traseiras e ainda funciona passados trinta anos. O Sensorama
é um dispositivo que permite ao utilizador experimentar um
filme em 3D, pelo tacto (usando aproximadamente o mesmo
princípio dos filmes mais recentes com som envolvente),'
cheiro e, é claro, estimulações auditivas. Outro artista-enge-
nheiro cujo conceito de RV diferia ao projectar a imagem do
utilizador no mundo virtual é Myron Krueger. Krueger pas
sou anos a desenvolver o seu Videopiace, um ambiente onde
a imagem do utilizador projectada no ecrã cria elegantes
eventos gráficos e sonoros. Krueger só há pouco recebeu re
conhecimento internacional como pioneiro da RV.
É realmente preciso um tipo especial de sensibilidade para
prever o potencial da RV. Heilig nunca conseguiu encontrar
apoio suficiente para desenvolver o que poderia ter sido o pri-
A Pele da Cultura 133

meiro sistema de RV. A RV foi subsequentemente desenvol


vida por uma instituição a quem, ao que se sabe, não faltava
dinheiro, o Departamento de Defesa dos Estados Unidos. O
HMD foi adaptado para simulação de voo militar por pessoas
cuja motivação prática era evitar treinos em aviões militares,
caros e potencialmente fatais através da pilotagem simulada
informaticamente. A maior parte do trabalho na simulação de
voo consistia — e ainda consiste — em melhorar as simula
ções auditivas e tácteis da aterragem e descolagem, persegui
ções, bombardeamentos e situações de combate aéreo.
Na outra ponta do espectro de design estão muitos artistas
como Krueger, mas também Thomas Zimmerman, Jaron La
nier, Graham Smith, David Rokeby e outros que reconhece
ram a RV como o melhor campo de experimentação para a
exploração- tecnológica do aparelho sensorial humano. A re
lação da RV com a arte é inerente seu potencial de expressão
sensorial. Há todo um novo campo para os artistas descobri
rem padrões sensoriais, projecções sensoriais tecnicamente
prolongadas e a sua interacção com os utilizadores. Os desig
ners provavelmente quererão dar atenção ao que os artistas
estão a fazer neste campo porque em breve é daí que as suas
melhores idéias poderão vir. Hoje, o mais interessante traba
lho em RV é o que parece brotar espontaneamente do estúdio
do artista. Na verdade, a inspiração para o trabalho artístico
em RV vem da exploração livre do campo biológico das nos
sas respostas psicológicas.
De um ponto de vista prático, a RV é para a mesa de de
sign o que a gravação e reprodução instantânea em vídeo foi
para a filmagem em celulóide. As suas respostas acontecem
em tempo real. A RV pode potencialmente reduzir, senão eli
minar de todo, o intervalo espácio-temporal entre intenção e
realização. Eventualmente a RV seguirá o caminho do pro
cessamento de texto e da edição electrónica, que permite ao
escritor a total flexibilidade da instantânea e, no entanto, apa-
134 Derrick de Kerckhove

gável publicação e distribuição. A RV é quase uma extensão


e expressão tecnológica directa dos processos envolvidos no
design. Às visões mentais são dadas formas gráficas que po
dem responder facilmente a mudanças, quase como as coisas
acontecem na nossa cabeça. Podemos trabalhar em RV com o
benefício adicional da possibilidade de entrar realmente nos
conteúdos da nossa mente prolongada e partilhar mesmo o
produto do nosso pensamento sem ambigüidades com cole
gas de trabalho. A RV permitirá eventualmente às pessoas
encontrarem-se e trabalharem juntas em estações virtuais que
têm já o nome de «espaço comum virtual».
Se alguma vez existiu uma tendência definida, mais teleo-
lógica que casual, uma direcção para o desenvolvimento das
tecnologias electrónicas, a RV poderia bem representar a sua
síntese presente. Parece ser o resultado lógico e o ponto de
convergência de muitas outras tecnologias electrónicas. Por
trás da RV estão fortes estímulos conduzidos pelo potencial
do mercado. Por exemplo, a nível técnico, a RV parece estar
pronta para tirar inteira vantagem da tendência para conver
ter o analógico em digital na Televisão de Alta Definição. A
RV combina o directo «ao vivo» das tecnologias vídeo com a
flexibilidade da intervenção do computador. Para melhorar a
distribuição e o uso em colaboração, bem como as técnicas
de construção da imagem, a RV está a forçar desenvolvimen
tos rápidos na compressão e transmissão de sinal. Juntamente
com as redes de comunicação melhoradas e as «auto-estra
das» electrónicas, pode suportar serviços de difusão e outros
especiais. Associadas com as tecnologias de redes neurais a
RV pode levar da automação à «autonomação», isto é, conce
der níveis controlados de autonomia a robots electrónicos au
tomatizados.
A um nível mais profundo, a pesquisa em RV faz conver
gir as mais recentes descobertas em software psicológico e
tecnológico. Tal como a procura de uma melhorada inteiigên-
A Pele da Cultura 135

cia artificial (IA) e sistemas periciais nos computadores le


vou a pesquisa neurológica mais depressa e mais longe do
que se tivesse ficado nas instituições médicas e acadêmicas,
a RV está já a inspirar um impulso acelerado para a com
preensão das bases orgânicas e complexidades sensoriais da
inteligência humana. Não é, pois, surpreendente que haja um
impulso para adicionar o tacto à nossa especialização audio
visual nas simulações, para tornar a experiência mais «real»,
mais directa e, em última análise, mais controlável. Graças à
digitalização, é possível traduzir qualquer conjunto de entra
das em diferentes conjuntos de saídas. A digitalização tor-
nou-se no «senso comum» da tecnologia e da psicologia no
software de computadores.
Quando a RV atingir o nível de maturidade implícito nas
tendências actuais, é provável que mude os níveis e proces
sos de qualquer sistema de produção para objectos e produtos
do design. Eventualmente a RV entrará nos noticiários dos
media, fazendo as pessoas participar nos acontecimentos co
mo já acontece no entretenimento. A educação das crianças
será consideravelmente acelerada pelo contacto corporal total
com diferentes tipos de experiências nos campos do conheci
mento e recreação. Um dia os museus estarão a abarrotar de
reconstituições em RV de ambientes distantes nos tempo e no
espaço. A pesquisa e prática médicas, assim como o acompa
nhamento e tratamento de pessoas com deficiências, serão fa
cilitadas pela aplicação de tecnologias de RV. É hoje claro
que as indústrias de RV dependerão, antes de mais, da quali
dade e versatilidade dos seus designers.
O estado presente da tecnologia RV é ainda bastante gros
seiro. A definição da imagem é pobre e a renovação dos qua
dros é muitas vezes lenta de mais para dar uma impressão em
«tempo real» da correlação entre os nossos movimentos e os
efeitos nas simulações gráficas. Mas o progresso da RV é im-
parável e eventualmente tomará conta da economia — tal co-
136 Derrick de Kerckhove

mo a televisão fez em tempos — porque estimula a conver


gência de pressões do mercado e necessidades psicológicas
crescentes. A RV é a primeira tecnologia que atingiu a imagi
nação popular mesmo antes de se ter aproximado sequer da
maturidade. Mesmo como conceito, a RV é já suficientemen
te poderosa para ajudar a mudar o pensamento da grande in
dústria e rejuvenescer a nossa exausta economia pós-indus-
trial. Precisamos desta nova forma de pensar para responder
ao desafio da RV.

Cí/rc/design

O «Ciberdesign» é o design reconsiderado à luz da realida


de virtual. É um aspecto do design que se prepara para passar
da periferia para o centro da atenção da indústria. O ciberde
sign é aquilo em que o design se transforma quando é apoia
do por sistemas ciberactivos. O cibadesign é uma adição
fundamental ao vocabulário dos designers porque em breve
será uma indústria importante.
Os parâmetros do design são as características do design
susceptíveis de se alterarem e interagirem nos sistemas cibe
ractivos. A tarefa do designer é fornecer uma selecção de pa
râmetros integrados que moldarão as respostas do sistema. É
preciso um designer profissional para intuir o que é preciso
ou não, num cada vez mais complexo conjunto de ambientes
integrados auto-ajustáveis de possibilidades. Se é possível
abrir ou fechar uma parede de cristais líquidos na «casa do
futuro» do culturólogo holandês Kriet Titulaer, então tam
bém é possível mudar a sua cor ou torná-la interactiva com
as pessoas que passam. Estas características são elementos de
um puzzle que o utilizador pode às vezes querer juntar sozi
nho. A complexidade dos parâmetros a controlar requer um
nível de «meladesign», isto é, desenhar um sistema para utili-
A Pele da Cultura 137

zação pelo comprador/cliente. A tarefa do designer é forne


cer uma selecção de parâmetros integrados que moldarão as
respostas do sistema. Um exemplo das complexidades envol
vidas pode ser visto na história dos sistemas de processamen
to de texto que fizeram as fortunas e desgraças dc produtores
de software por causa dc características singulares.
O ciberdesign pode ser visto como uma variante do design
tradicional mas aplicado especificamente àquela nova figura
do mercado que é o «prosumidor».
Alvin Toffler inventou o termo para destacar as mais re
centes tendências do marketing, que mostraram que muitos
potenciais compradores não estavam satisfeitos com o mero
papel de consumidores, querendo cada vez mais estar no acto
da produção54. James Joyce tinha antevisto este desenvolvi
mento há muito tempo quando perguntou em tom de.brinca
deira: «Os meus consumidores, não serão eles os meus pro
dutores?» O que ele queria dizer, claro, é que a relação entre
produção e consumo é de forte interdependência. O que está
a acontecer hoje, contudo, como resultado da informatização
do corpo social, é que as pessoas querem ajudar a produzir os
seus próprios bens. Não é só uma questão de «personaliza
ção» do produto, para o fazer servir mais de perto às necessi
dades individuais do consumidor. O que está em causa é, an
tes de mais, uma questão de poderes.
A medida que a tecnologia dá poder às pessoas, os consu
midores desenvolvem a necessidade dc exercer mais controlo
sobre o seu ambiente imediato. A medida que nos movemos
de uma cultura dirigida pelo produtor para uma cultura diri
gida pelo consumidor, a indústria aperceber-se-á que conce
ber características que reflitam o poder do consumidor é algo
que terá de fazer parte dos seus produtos. A geração do «pro
sumidor» nasceu nos anos 80, a era dos yuppies e das redes
de computadores. Os computadores permitiram às pessoas
falarem com os seus ecrãs, recuperar o controlo da sua vida
138 Derrick de Kerckhove

mental da televisão e tomar parte activa na organização do


seu ambiente, local e global.
O «prosumismo» está longe de chegar ao seu ponto culmi
nante, mas já introduziu a necessidade de um poder persona
lizado como característica crítica de muitos bens destinados
ao consumo em massa. Para dar um pequeno mas ubíquo
exemplo, nenhum empresário digno desse nome se contenta
com um telefone básico. Funções adicionais como o respon-
dedor automático, linhas de espera, encaminhamento de cha
madas, selecção de chamadas e a audição remota de chama
das servem todas para dar uma confiança adicional ao utiliza
dor no controlo aumentado que tem sobre a sua vida. Os nos
sos televisores tornaram-se eles próprios pequenas unidades
de produção para responder à sofisticação técnica dos siste
mas de gravação e montagem de vídeo. Novos sistemas as
sistidos por computador de edição electrónica, publicação,
gravação e operação multimédia aterram na nossa secretária
de dois em dois meses.
O ciberdesign é o tipo de filosofia de design que se dirige
à sensibilidade do «prosumidor». Enquanto os mercados de
massas dos anos sessenta e setenta estavam implicados na
obsolência planeada e nas embalagens, em que os mercados
velozes dos anos oitenta eram governados pela comunicação
instantânea e alta tecnologia, a economia dos anos noventa
basear-se-á provavelmente no convite ao consumidor para to
mar parte nas decisões de produção. Os líderes vão usar sis
temas ciberactivos e inspirar uma abordagem modificada em
muitos outros campos como, por exemplo, a educação, o en
tretenimento, auto-serviços e talvez mesmo na política — ve
ja-se o reaparecimento do populismo (governo orientado para
os serviços) na América do Norte.
Deste imperativo de dar poder vêm outros critérios de de
sign que podem revelar-se fundamentais com os mercados de
massas de amanhã para bens e serviços. Dar poder traduz-se
A Pele da Cultura 139

numa melhor personalização e em maior versatilidade de


produtos para permitir mais escolhas a partir de uma única
tecnologia. A selectividade inerente à indústria de PC permi
tirá uma maior penetração em mercados de nicho. Do lado do
consumidor, os clientes quererão mais «acessórios» nos seus
televisores, leitores de CD e fornos micro-ondas, não porque
precisem ou planeiem utilizá-los, mas porque esses adicio
nais lhes dão poder. O simples facto de terem essas caracte
rísticas ao seu dispor para o caso de serem precisas é justifi
cação suficiente para gastar mais. Quando as pessoas com
pram estes sistemas, não estão a comprar serviços, nem se
quer estatuto; estão a comprar poder.
Obter poder tem também como condição sine qua non a fa
cilidade de utilização. O processo de aprendizagem para usar
a tecnologia tem de fazer parte do sistema e não ser requerido
ao utilizador. Há vários milhões de pessoas que seriam ainda
hoje iletradas informáticas se não fosse a invenção do Apple
Macintosh, que se pode aprender a usar numa tarde. Compa
re-se isso com os meses de laboriosa prática exigido aos utili- ,
zadores da maior parte dos sistemas PC antes de estes terem
finalmente cedido ao ambiente Windows. A facilidade de uti
lização vai de encontro às exigências de gratificação instantâ
nea — um legado da bulimia consumista alimentada pela era
da TV — e de uma utilização mais intuitiva que indutiva. Tal
vez por termos sido estragados com os mimos de tantas aju
das tecnológicas, mas também por termos perdido o hábito de
fazer esforços físicos, achamos que as nossas máquinas deve
riam obedecer instantaneamente, sem nos pedir nada a não ser
alguma atenção e, às vezes, nem isso.
É por isso que os sistemas ciberactivos funcionam melhor
em tempo real. Mas a temporalidade real não é só mais uma
exigência feita pela nossa sede de gratificação instantânea. É
evidente que a velocidade a que as nossas ordens são execu
tadas é uma medida do nosso poder, mas o gosto pelo tempo
140 Derrick tie Kerckhove

real vem de novo nível de proximidade e intimidade que a


tecnologia evoca nos nossos corpos e nas nossas mentes.
Certamente, auscultadores Walkman, capacetes de RV, «data-
gloves» c «datasuits» têm uma relação quase orgânica com o
nosso ser físico. Estamos a habituar-nos a convivei''com os
nossos ecrãs de computador como se fossem apenas exten
sões das nossas mentes, realizando diálogos interactivos que
tem também algumas marcas de organicidade. A conseqüên
cia c que começamos a esperar que as nossas máquinas rca-
jam aos nossos comandos com a mesma velocidade intuitiva
dos nossos membros e sentidos.
Pensamos no design, antes de mais, como uma preocupa
ção para os nossos olhos; este é um efeito do nosso recente
passado literário. Houve algum desenvolvimento no design
não visual desde a invenção do conceito de ergonomia, mas
a pesquisa em design assistida por computador está a alargar
os limites da simulação c estimulação sensorial c a adicio-
nar-lhc a consciência das subtilezas dos outros sentidos. En
quanto, não há muito tempo, costumávamos fazer entrar da
dos nas nossas máquinas ou carregar num botão para as fa
zer funcionar, estamos agora a assumi-las como corpos vir
tuais.
Contudo, há um último critério que parece de alguma for
ma ter evoluído espontaneamente, sozinho, na cultura pós-in-
dustrial — algo a que poderíamos chamar discrição. As coi
sas querem esconder-se, fundir-se com o fundo. As funções
deixam de ser evidentes em algumas máquinas de qualidade.
Esta discrição é como um novo mundo de «boas maneiras»
no design. Embora a tendência de austeridade econômica
global possa explicar uma tendência recente para evitar si
nais exteriores de riqueza, talvez haja mais do que uma base
econômica para a crescente estética do desaparecimento.
Há uma proporção inversa entre alta tecnologia e visibili
dade; quanto mais baixa a tecnologia, mais os acessórios so-
A Pclo tia Cultura 141

fisücados são necessários para a abrilhantar. Compare-se, por


exemplo, o design dos radiogravadores Sony com o novo de
sign dos televisores Sony, que quase se tornaram estações in
teligentes em vez de terminais estúpidos. Mesmo os sistemas
de telecomando tendem a minimalizar todas as funções a um
ponto absurdo (nunca consigo encontrar o botão para ajustar
o tom da imagem ou sintonizá-la melhor!).
Todavia, o que desaparece perante o olhar, frequentemente
rccmcrgc no tacto: na verdade, mantendo a metáfora tio siste
ma nervoso central, a continuidade entre electricidade orgâ
nica e tecnológica é um assunto com que o sentido do tacto
lida melhor. Crianças que apuram a sua coordenação mão-
-olhar com os videojogos portáteis têm uma experiência do
toque que rivaliza com as capacidades de-um pianista profis
sional! Os designers quererão saber as diferenças entre arti
culações do toque como contacto e do loque como pressão
remota. A electricidade pode simular ambos para diferentes
efeitos e os designers industriais no Japão estão bem cons
cientes das possibilidades de interacção com comandos sim
ples activados apenas pela proximidade.
A maior parte dos critérios de design invocados aqui são
introduzidos e tornados relevantes pelas novas tecnologias. A
facilidade de utilização, multissensorialidade, tempo real ou
miniaturização não eram concebíveis na era modernista ou
mesmo pós-modernista. E, contudo, tais critérios não São di
fíceis tie identificar ou perceber. Podem ser aprendidos «en
quanto se faz», por assim dizer. Outros critérios podem ainda
não ter emergido e serão descobertos à medida que a verda
deira natureza dos sistemas ciberactivos se for revelando.
Mesmo assim, há também um processo mais profundo a
decorrer. É como se cada tecnologia importante, antes de
atingir níveis de saturação nas culturas, tenha tido de passar
por dois estádios básicos: primeiro estar em clara evidência;
segundo ser interiorizada até ao ponto de se tornar invisível.
142 Derrick de Kerckhove

Por exemplo, a princípio, os fios eléctricos estavam em gran


de evidência em todo o lado e muitas cidades canadianas es
tão ainda pejadas de postes telefônicos e cabos exteriores
bastante feios, mas a tendência, mesmo com custos muito
maiores, é para pôr tudo debaixo da terra.
A tendência para a discrição pode, em alguns casos, vir de
uma espécie de estratégia auto-regulada. A electricidade está
a disfarçar-se, por assim dizer, não só porque faz parte da na
tureza do sistema nervoso humano, mas também por uma
tecnologia de base funcionar melhor quando permanece in-
questionada e não detectada. Bem versado nestas matérias,
McLuhan gostava de citar a frase de Joyce em Finnegans
Wake\ «A viabilidade dos vicinais é invencível enquanto eles
forem invisíveis.» Um excelente exemplo desta invisibilida
de ou transparência do meio subjacente a uma cultura é o da
literacia. Quanto tempo levaremos a perceber os formidáveis
efeitos do alfabeto sobre nós desde a Renascença e a Refor
ma? É claro que, mal percebamos o quanto a nossa ideia bá
sica de nós mesmos dependeu dessa agora menos dominante
tecnologia, mudaremos de forma bastante radical. Uma nova
geração de ciberdesigners poderá ser chamada a redesenhar
mesmo a nossa psicologia...
É realmente de esperar uma mudança psicológica resultan
te do desenvolvimento e consumo em massa de tecnologias
ligadas à RV. A medida que aprenderem a usar a RV do jar-
dim-escola ao local de trabalho e ao lar, para entretenimento
nocturno e de fim-de-semana, as pessoas perceberão que to
das as nossas tecnologias, especialmente as baseadas na elec
trónica, não são apenas simples melhoramentos externos do
nosso ambiente imediato, mas extensões quase orgânicas do
nosso ser mais íntimo. A verdadeira natureza da RV não é
apenas produzir objectos, mas estender e expandir sujeitos.
Quando o design se tornar na interface normalizada entre o
pensamento e a acção, as actividades dependentes do pensa-
A Pele da Cultura 143

mento e do planeamento podem tornar-se extensões directas


do pensamento e da sensibilidade. A medida que investirmos
o nosso ambiente da nossa sensibilidade em RV, seremos le
vados a perceber que este mundo inteligente e sensível em
que nos envolvemos não é mais que uma extensão das nossas
mentes e almas.
C A P ÍT U L O N O V E

AUDIÇÃO ORAL V E R S U S
AUDIÇÃO LETRADA

«Hoje a visão está ofuscada; já não vê o nosso futuro, pois cons


truímos um modo presente de abstracção, não sentido e silêncio.
Agora temos de aprender a julgar a sociedade mais pelos seus
sons, artes, festivais do que pelas estatísticas. Ao ouvir um baru
lho, podemos compreender melhor onde a loucura do homem e
os seus cálculos nos estão a levar e que esperança ainda nos é
permitido ter.»
— Jacques Attali55

O livro de Attali, Noise: The Political Economy of Music,


descreve a forma como a economia da música controla a sen
sibilidade e modela desse modo os aspectos significativos da
cultura. É um inquérito muito perspicaz sobre a cultura e a
força profética que tem a análise da música do nosso tempo.
No excerto citado acima, o autor tira esta conclusão através
da oposição da visão à audição como uma característica do
actual ambiente sócio-cultural. Surpreendentemente, para
além de algumas observações sobre o impacte da música es
crita na reestruturação dos gêneros e formas musicais, não há
nenhuma menção ao efeito profundo da literacia na cultura,
146 Derrick de Kerckhove

especialmente perceptível nas atitudes perante a audição. Di


go que é surpreendente porque as pautas de música são um
dos primeiros exemplos do tipo de controlo que a literacia te
rá tido sobre a psicodinâmica dos ocidentais. Desde o Renas
cimento até ao recente volte-face provocado pelas tecnolo
gias electrónicas, a escrita da música foi colocada numa posi
ção dominante relativamente ao uso do som e reduziu para
um estatuto secundário todas as formas espontâneas popula
res e os ritmos folclóricos tradicionais. A oposição entre a es
crita e a música é quase biológica, a escrita detém o controlo
do cérebro enquanto o som organizado toma conta do corpo
todo.
Quando se lida com os sentidos «elevados», a visão e a au
dição, costumamos ter atitudes típicas de produtores, não de
consumidores. Contentamo-nos perfeitamente em usar o na
riz por puro divertimento, mas olhamos e ouvimos para daí
retirar proveito. A maior parte das utilizações da visão e da
audição na vida urbana são funcionais. Até a audição recrea
tiva pende para um fim funcional. Vamos a um concerto de
jazz, ou de música erudita para relaxar, para dizermos a nós
próprios e aos outros que esta é a altura para parar e ouvir.
Muitos vão aos concertos tal como praticam desportos, como
um dever (mesmo se não estiverem a fazê-lo profissional
mente). O uso do tacto é também um assunto racional, puri
tano, com excepção de algumas situações íntimas especiais.
No entanto, mesmo no contexto da estética pública desenha-
-se uma diferença entre a visão e a audição. Planeamos as
coisas para parecerem bonitas mas não nos preocupamos que
soem bem. Quando não apitam, ronronam ou produzem
beeps cômicos, o melhor que a tecnologia consegue fazer pa
ra que os seus produtos soem bem aos nossos ouvidos é tor
ná-los silenciosos e acusticamente neutros, o que é conside
rado um sinal de eficiência. Ficaríamos com mais facilidade
culturalmente surdos a esses sons indesejáveis do que os pas-
A Pele da Cultura 147

saríamos a considerar mais agradáveis ou mesmo transforma


dos numa experiência desejável. As crianças que crescem na
cacofonia urbana têm de escutar música alta para dar alguma
coerência a todos estes sons e suavizar as arestas quebradas,
duras e agudas do vidro, tijolo e aço.
A paisagem auditiva da cultura urbana é uma lixeira varia-
díssima. Quantidades enormes de energia humana são suga
das para o buraco negro da cidade, que as regurgita como ba
rulho. Vamos buscar energia bruta a este ruído branco, mas
em troca perdemos a sensibilidade ao som. É claro que não
nos apercebemos de ter perdido alguma coisa porque há mui
to tempo que apenas concedemos à audição um papel auxi
liar. Quando uma sociedade inteira sofre uma perda de audi
ção, não fica ninguém para contar o dano sofrido. No mundo
dos surdos, quem consegue ouvir é Joana d’Arc, uma mulher
louca. A negligência para com a audição pode ter sido um
dos preços a pagar pela literacia.

Podem os m ed ia afectar os nossos sentidos?

Feche os olhos e imagine o mundo à sua volta. Se for mui


to instruído é provável que o que rege a sua representação do
ambiente seja um modelo visual. Uma caixa (o quarto) com
coisas e uma pessoa lá dentro. Talvez até haja mais alguém
dentro da caixa, ou um animal de estimação. Talvez consiga
ouvir o som dos passarinhos fora do quarto. Contudo, se não
estiver tão submetido aos poderes da literacia, poderá ouvir
sons que os outros nem sequer notarão. Pode atingir uma re
presentação perfeitamente útil e prática do seu quarto sobre
pondo vários níveis de som: o restolhar das roupas, o som
ambiente, o gorgolejar da canalização e o som do aqueci
mento. Pode ouvir os sons como esculturas sobrepostas con
tendo texturas e formas, todas a fazerem pressão sobre si.
148 Derrick de Kerckliove

Uma experiência que recomendo para testar a diferença


entre a audição oral e letrada: experimente, na próxima reu
nião social onde estiver, esconder discretamente a cabeça e
fechar os olhos. Ficará surpreendido com o número de con
versas diferentes que conseguirá seguir simultaneamente.
Depois, abra os olhos e tente continuar. Será muito difícil se
não mesmo impossível. As causas desse efeito são duplas.
Primeiro, os seus olhos consomem grande parte da energia
mental. As nossas funções sensoriais são sclcctivas. Para
uma resposta eficiente a energia só pode ser dedicada a uma
situação. A sobrevivência está na atenção. Alguns sentidos
requerem mais energia do que outros, tal como a visão, por
exemplo, que requer oito vezes mais energia do que a audi
ção. A visão é mais rápida e mais completa que a audição,
especialmente nas condições sócio-culturais em que vive
mos.
Devido á sua compreensão da tirania do olhar, muitos poe
tas simbolistas, de Verlaine a Claudel, recomendaram que se
fechasse os olhos para ser «um profeta». Mas há uma razão
natural para que a visão seja exclusiva e obsessiva. A visão
frontal permitida pelos olhos encoraja a especialização da
atenção que tende a eliminar todas as outras formas de per
cepção. Como foi sugerido pelo compositor Murray Shafer,
com os olhos estamos sempre à beira do mundo a olhar para
dentro, enquanto com, os ouvidos é o mundo que vem até nós
e estamos sempre no seu centro. Este efeito é sempre o mes
mo, do caçador da selva até ao da cidade. Mas a experiência
frontal da concentração visual é também adquirida, às vezes
à custa de grandes esforços, à medida que se ganha a litera-
cia. Assim, os letrados, que precisam de elaborar e controlar
o seu sentido sobre todas as coisas, confiam primeiro nos
olhos, antes mesmo sequer de tomarem em consideração os
ouvidos. Tendem a concentrar a sua atenção no desenvolvi
mento linear dos eventos, diálogos e situações, têm de «ver
A Pele da Cultura 149

para crcr». Deve haver lima razão ncurobiológica oculta para


o facto de privilegiarmos um sentido sobre outro.
Segundo a neurobiologia, crescemos num ambiente anatô
mico, de acordo com o programa genctico, mas seguindo
também neurologicamente o programa cultural. O cérebro,
embora inicialmente direccionado para desenvolver-se de
acordo com programas comuns a várias culturas, está gra
dualmente exposto a influências e condicionantes cada vez
mais de índole cultural que requerem respostas selectivas e
redefinem o cálculo das sensações obtidas na vida quotidia
na. É óbvio que quase nunca usamos os ouvidos para encon
trar o caminho num ambiente urbano, mas fá-lo-íamos se ti
véssemos de viver no bosque ou na floresta tropical.
Pode muito bem acontecer que enquanto bebês recém-nas
cidos percebamos uma grande variedade de sons. O trabalho
da psicóloga canadiana Sandra Trehub indica que, algumas
horas ou mesmo dias depois do nascimento, os bebês conse
guem perceber a diferença entre várias línguas.56 Esta facul
dade parece desaparecer muito cedo, à medida que o bebé
começa a instalar-se no seu ambiente lingüístico maternal. A
teria de Alfred'Tomatis de que algumas línguas se concen
tram em determinadas larguras de banda57 pode ter alguma
relevância para o facto dos recém-nascidos começarem a es
pecializar a sua atenção em sons lingüísticos que reflectem a
frequência e o espectro da voz da mãe. A característica mais
interessante do trabalho de Trehub não é o momento em que
os ouvidos dos bebês se começam a sintonizar, mas o facto
de que muito cedo perdem a capacidade de acolher outros
sons não relevantes.
O neurobiólogo francês Jean-Pierre Changeux desenvol
veu uma teoria da «estabilização selectiva das sinapses» para
explicar porque é que perdemos em vez de ganharmos flexi
bilidade sensorial depois de expostos a estímulos ambientais
consistentes. Sugere-se que o crescimento e o desenvolvi-
150 Derrick de Kerckhove

mento assim como a fixação das conexões neurais entre o cé


rebro e o sistema nervoso central estão condicionadas à utili
zação preferencial de certos padrões. Treinamos o sistema
nervoso central pela habituação tal como faz o atleta com os
seus músculos.58 Uma outra forma de olhar para este proces
so é concordar com o linguista francês Jacques Mehler que
diz que, quando nos especializamos, «aprendemos com a de-
saprendizagem» de outras respostas menos apropriadas59. É
como se ao crescermos estivéssemos a esculpir o sistema
nervoso assim como o nosso destino.
Por detrás da selecção de padrões de audição neurológica-
mentre determinada estão condições culturais que restringem
o âmbito da audição ao que é relevante para determinado am
biente sócio-psicológico. Se dermos crédito às teorias de
Benjamin Lee Whorf sobre o impacte do vocabulário na defi
nição e limitação da experiência psicológica, há uma possibi
lidade de que só ouçamos, ou prestemos atenção aos sons
que estão compreendidos no vocabulário (verbos, substanti
vos, adjectivos) e pela gramática (relações) de uma lingua
gem particular. Para testemunhar esta tese veja-se o caso das
duas únicas palavras existentes para descrever a acção de ou
vir ou escutar, quer em francês quer em inglês, enquanto
existem dezenas de verbos para descrever a forma de olhar
(ver, olhar, admirar, olhar extasiado, espiar, reparar, perscru-
tar, etc.).
Mesmo a maneira como usamos a nossa língua pode aju
dar a direccionar a experiência psicológica e, talvez, senso
rial. A Programação Neurolinguística (NLP), o famoso méto
do de terapia, está em parte baseado no reconhecimento de
que, como indivíduos, privilegiamos certos sentidos em vez
de outros no uso regular das metáforas. Há os que insistem
em dizer «estou a ver o que quer dizer» e os que se conten
tam em afirmar: «estou a ouvi-lo.» Os investigadores que uti
lizam a NLP dizem que as pessoas que mostram uma consis-
A Pele da Cultura 151

tência estatística na escolha das suas metáforas sensoriais,


com uma propensão para as metáforas visuais, são provavel
mente melhores na utilização desse sentido do que os outros.
A audição, em contraste com a visão, é o produto da aten
ção selectiva; não é guiada por um processo interno mas por
processos externos. Como processo selectivo, a audição está
ligada ou desligada. Ligamos o modo auditivo para obter in
formação e para tomar nota do meio ambiente em que esta
mos. Mesmo assim, há vários modos de ouvir: palavras, sen
tidos patentes, sentidos ocultos, emoções, entretenimento,
para si próprio, para descortinar uma situação global, para
^ ouvir Deus, para meditar. Cada uma destas funções auditivas
^ convoca um conjunto diferente de atitudes, posturas, expec
tativas, julgamentos e medidas de arquivo e descodificação.
" Cada uma pode ser chamada um «modo». A mudança de um
. para outro modo depende das circunstâncias e das necessida-
V- des. Como já sugeri, a cultura ambiental pode impelir-nos a
seleccionar preferencialmente um dos modos. Quero acen
tuar as diferenças entre dois modos opostos da audição, que,
por conveniência, chamarei de «oral» e «literato».
A diferença básica entre os dois modos reside na tendência
que a audição oral tem para ser global e compreensiva en
quanto a audição letrada é especializada e selectiva. Uma
presta atenção às situações concretas e às pessoas, enquanto
a outra está interessada nas palavras e nos significados ver
bais. Uma está dependente do contexto, a outra é relativa
mente independente do contexto. A primeira é cosmocêntrica
e espacial, a segunda é linear, temporal e logocêntrica.
Os gregos antigos estavam atentos aos problemas da per
cepção e às suas conseqüências culturais. A tragédia grega é
a resposta dramática às novas condições sensoriais introduzi
das pela literacia alfabética. Os dramatrugos, no entanto, não
sabiam qual a verdadeira causa da sua situação difícil. Quan
do Tirésias diz a Édipo que ele não consegue ver a verdade
152 Derrick de Kerckhove

da sua situação, está implícito que a confiança excessiva de


Édipo nos seus olhos e na sua lógica visual o tornou cego —
ou, mais precisamente, surdo — para qualquer coisa que es
teja para além das aparências. O facto é que, enquanto oci
dentais, temos vindo a tornar-nos gradualmente surdos sem
nenhuma culpa, apenas através da reescrita do nosso sistema
nervoso pela literacia.

Como a literacia tomou conta do sistema nervoso

No início do seu livro The Origins of Consciousness in the


Breakdown o f the Bicameral Mind, Julian Jaynes dá um
exemplo perfeito da nossa tendência para conceptualizar a
experiência: sugere que se pensarmos na última vez em que
estivemos sentados na banheira, quase automaticamente cria
mos uma ficção: imaginamo-nos, sem contornos definidos,
vistos a curta distância, a tomar banho. É claro que, como diz
Jaynes, nunca tomámos banho dessa forma, a não ser, talvez,
num filme caseiro. Não evocamos a sensação da água à volta
da cintura — isso seria um ícone — simplesmente associa
mos o conceito da nossa pessoa ao conceito de alguém a to
mar banho numa banheira. Saltamos a nossa representação
do corpo e daquela banheira particular, ícones fiéis, e avan
çamos para um conceito genérico.60
Um conceito é, assim, uma representação mental, nem se
quer é uma imagem, tem pouca ou nenhuma informação
sensorial, mas possui uma grande capacidade de adaptação
para se combinar rapidamente com outros conceitos ou íco
nes, e até percepções, para formar sentido. Não há razão pa
ra pensar que haja alguma cultura, no mundo inteiro, que es
teja privada de alguma destas categorias de imagens men
tais. Seria tolo sugerir que as culturas orais não são capazes
de formar conceitos, mais não fosse porque os conceitos são
A Pele da Cultura 153

as peças constitutivas da linguagem. Alison Gopnik, um dos


cientistas que esteve no McLuhan Program, estudou a for
mação dos conceitos na infância. Desse trabalho podemos
concluir que não há muitas dúvidas sobre a capacidade de as
crianças começarem a produzir conceitos muito antes de
aprenderem a lcr.
No entanto, também não é disparatado sugerir que apren
der a ler e a escrever acentua o uso dos conceitos sobre qual
quer outra categoria mental. Porquê? As palavras ditas não
são mais do que conceitos quando se escrevem e se descon-
textualizam. Enquanto as palavras ditas trazem sempre per
cepções c ícones, as palavras escritas são conceitos isolados,
até serem combinadas com imagens, pelo leitor. A literacia
facilita o uso de conceitos, por apresentar o-discurso cm pe
quenas unidades enfileiradas. Isto torna conceptual todo o
uso da linguagem, até mesmo no discurso falado.
Como pessoas cujas atitudes são governadas pela literacia,
temos tendência para prestar atenção ao sentido das palavras,
e não à substância da argumentação ou à intenção de quem
fala. O mesmo não acontece necessariamente com o ouvinte
apenas oral.

Audição oral

Como referiu McLuhan em A Galáxia de Gutenberg, a


«separação entre o olho e o ouvido», conseqüência da difu
são da literacia alfabética, pode criar estranhas dificuldades
às culturas que permanecem orais.61 Há aquela magnífica
história verdadeira de um escriba turco que era a única pes
soa que sabia ler na sua aldeia costeira. Sempre que tinha
de ler cartas privadas para os seus vizinhos analfabetos, ta
pava as orelhas com as mãos para mostrar que não estava a
ouvir.
154 Derrick de Kerckhove

Efeito directo do crescimento da literacia, o desenvolvi


mento do drama na Grécia clássica introduziu um novo papel
social e uma nova atitude: o hipócrita. Upokritos queria di
zer originalmente «o que responde às perguntas», ou seja, o
actor. Etimologicamente a palavra significa «o que julga de
uma posição inferior». Os hipócritas e os fariseus do Novo
Testamento podem estar associados aos valores das pessoas
cultivadas, ou seja, os letrados. Os fariseus eram ricos, logo
eram educados. Não usavam só os seus ensinamentos para
interpretar e modificar o sentido dos textos sagrados em seu
favor, mas eram também conhecidos por nunca se baterem
frontalmente por nenhum assunto, especialmente por nunca
se confrontarem com Cristo. Toda a gente usa a linguagem
para a comunicação e o controlo, mas as culturas orais usam-
-na mais para a comunicação do que para o controlo.
Em Oralidade e Literacia, Walter Ong faz a súmula de
muitos anos de investigações sobre a comparação entre as
mentes orais e as letradas, sugerindo algumas das caracterís
ticas daquilo a que chama «a psicodinâmica da oralidade».
Cada característica corresponde a uma atitude própria da au
dição, nomeadamente o que ouvir, como ouvir, quem ouvir e
como guardar ou lembrar o que foi ouvido.62

As palavras pesam o que pesam as pessoas que as dizem

Numa cultura verdadeiramente oral as palavras não são ba


ratas: o parvo é o que fala de mais. Tudo o que é dito tem um
peso favorável ou desfavorável, por isso é preciso escolher
bem as palavras. Numa cultura oral as palavras são suporta
das pela presença, a energia e a reputação de quem fala; são
as extensões do seu poder e chamam a atenção de quem ouve
na medida da eminência de quem fala. O antropólogo fran
cês, Mareei Mauss, lembra-nos que o poder do locutor é con-
A Pele da Cultura 155

cedido pelo público de ouvintes, tal como acontece nas au


diências contemporâneas, manipuladas pela promoção, rela
ções públicas e pela reputação do locutor, o que dá poder ao
actor de TV, ao músico que dá concertos ou ao político.63
As palavras têm pouco valor numa cultura letrada. Até no
papel podem ser baratas. É necessário um bom número de
procedimentos rituais para dar peso às palavras escritas, co
mo nos contratos, documentos legais e decretos legais. Em
bora muito do poder das palavras orais seja dado por marcas
não verbais, por si só a palavra escrita não produz nenhuma
informação não verbal. Alguma investigação não oficial nos
laboratórios das universidades parece indicar que, em média,
a totalidade do conteúdo das conversas humanas é constituí
do por sete por cento de material verbal e 93 por cento de in
sinuações não verbais. A palavra oral nunca está sozinha. A
entoação, volume, rima e outros valores tonais têm intencio-
nalidade e força. A publicidade escrita e urbana é apenas a
tentativa de reprodução visual do poder e matizes da fala.
Neste âmbito estamos a testemunhar uma inversão; as pa
lavras de um homem de Estado na televisão têm peso, não
pelo seu conteúdo mas pela imagem da pessoa que as diz.
Uma outra inversão é a tendência legal contemporânea de dar
atenção ao contrato oral em promessas de casamemto, con
tratos e despedimentos. Estas mudanças são sinais claros de
que estamos a voltar a uma cultura oral ou, mais precisamen
te, estamos a caminhar em direcção a uma cultura electrónica
oral.

Audição associativa

A segunda característica proposta por Ong é a de que nu


ma cultura oral «só se sabe o que se consegue lembrar». Há
então uma forte acentuação da memória, não apenas da me-
156 Derrick de Kerckhove

mória privada do locutor, mas da memória colectiva do pú


blico. Este tipo de memória está contida, não fora de quem se
lembra, mas nas palavras, nos ritmos, gestos e performances
dc conjuntos legitimados. Neste contexto as pessoas não es
tão terrivelmente interessadas em novas idéias ou conceitos,
ouvem aquilo que já sabem, da mesma maneira que temos
tendência a olhar para características reconhecíveis em novas
situações: «Isto lembra-me aquele acontecimento» ou «Esta
cara lembra-me isto e aquilo».
As pessoas que têm uma cultura oral estão sempre a pensar
associativamente, não processando as idéias de uma forma
específica ou especulativa. Este cenário cognitivo conduz a
analogias e mitos. Um mito só funciona se se ligar a muitas
situações humanas e a muitas interpretações sem perder a sua
estrutura básica. Um outro corolário da psicodinâmica da
memória oral é o facto de a informação oral ser em geral par
tilhada colectivamente, em vez de detida individualmente.
Até as associações de poder como a Igreja ou o Estado na
época medieval eram oligarquias de informação partilhada.
A detenção de informação privada e do controlo é uma das
características que distingue uma cultura completamente le
trada.

Ouvir com o corpo

O pensamento oral permanece próximo do mundo natural


humano c afasta-se das abstracções. A audição oral procura
imagens em vez de conceitos, pessoas em vez dc nomes. O
sentido é organizado à volta de imagens vividas que agem
em contextos. O discurso oral é construído à volta das narra
tivas e, como demonstra Havelock na sua análise da literatu
ra grega, prefere verbos de acção a predicados.64 Estas figu
ras são definidas numa oposição de tensões agonísticas. As-
A Pele da Cultura 157

sim como os apresentadores das notícias fazem projecções


dramáticas, mesmo quando têm de narrar uma aborrecida de
cisão orçamentai na Câmara dos Comuns, assim também o
ouvinte oral dará prioridade à dinâmica teatralizada em rela
ção às descrições estatísticas. Esta tendência corrobora a su
gestão de que os seres humanos começam por aprender e dar
sentido às coisas através da imitação corporal. A TV faz sen
tido para as crianças mais pequenas porque se dirige ao cor
po, tal como a mente trabalha nas suas representações da rea
lidade, directamente com imagens arquivadas e pedidas em
prestadas aos inputs multissensoriais que provêm da totalida
de do sistema nervoso humano.

O espaço entre: a audição masculina e a feminina

Uma última de entre as muitas observações relevantes de


Ong é a noção de que o pensamento oral é «empático e parti
cipativo e não objectivamente distanciado». O foco da audi
ção oral não é tanto a fonte da voz mas o espaço criado entre
os interlocutores. Embora o ego das pessoas que comunicam
oralmente não esteja ausente (e é muitas vezes altamente ex
pressivo no caso de constrangimento) é bem menos persona
lizado e, por isso, mais fraco do que o ego das pessoas letra
das. Sem qualquer desprestígio para as mulheres, as atitudes
auditivas das culturas orais são idênticas à forma como as
mulheres ouvem. Há um estudo fascinante da psicóloga de
Stanford, Diane McGuinness, sugerindo que as mulheres es
tão geneticamente condicionadas, em todas as culturas, a res
ponder melhor à audição do que à visão.65 Os homens vêem
duas vezes melhor que as mulheres, e as mulheres ouvem
duas vezes melhor que os homens. Esta diferença física, que
se junta a outras mais óbvias, provoca entre os homens e as
mulheres uma atitude radicalmente diferente em relação à
158 Derrick de Kerckhove

linguagem. Os homens tendem a considerar a linguagem ins


trumental, enquanto as mulheres estão mais acostumadas a
falar relacionalmente. O espaço entre o locutor e o ouvinte é
onde se desenrola a acção da cultura oral.

Audição letrada

A audição letrada é uma espécie treinada do pensamento.


Quando somos crianças aprendemos a pensar não só através
da leitura ou de exercícios mentais e de lógica, mas também
a ouvir o discurso estruturado do professor. O próprio pensa
mento é, para o letrado, antes do mais, a estruturação do dis
curso no silêncio da mente. Encontramos, claro, muitos mo
delos de discurso estruturado nos livros, mas aí o discurso é
visto como uma sucessão estática de frases. É só quando nos
é pedido que juntemos frases e palavras do discurso comple
xo do professor que tornamos dinâmicas as formas estáticas.
Uma mente treinada é uma mente cuja função principal é
eliminar o ruído, ou seja, a informação desnecessária, crian
do espaço para respostas especializadas. Uma mente treinada
pela literacia é levada a processar informação através do pen
samento e não da acção. Enquanto está a pensar a mente le
trada processa através de palavras em vez de imagens. Den
tro dessas frases e palavras a mente letrada organiza-se a si
própria em conceitos e não em metáforas.
A escola é regulada pela literacia alfabética. O discurso
deve produzir informação e não sensações, conhecimento e
não emoções, estrutura e não ritmos. O efeito do alfabeto é
secar os diálogos humanos, descontextuâlizá-los para os tor
nar utilizáveis noutros contextos. Não é por acaso que os
Diálogos de Platão se tornaram na mais elevada homenagem
à mente letrada. O que começou como uma experiência oral
nos encontros de Sócrates com os seus amigos e discípulos
A Pele da Cultura 159

foi fixado e manipulado pela escrita, isto é, descontextualiza-


do. Imagine-se o que seria uma cassete gravada com os diá
logos de Sócrates.
Nos anos 80, Sylvia Scribner e Michael Cole fizeram um
estudo pioneiro para demonstrar que o papel desempenhado
pela escola era essencial na distinção entre as chamadas cul
turas oral e letrada.66 O estudo sugeria que, da situação esco
lar, as formas da instrução formal são a única coisa que as
crianças, mesmo as mais crescidas, levam para casa. De fac
to, o discurso formal não é uma mera sucessão de palavras,
apresenta-se também através de uma postura, uma posição e
uma atitude facilmente reconhecíveis e adaptáveis por uma
criança. Na vida «real» ninguém fala como um professor, ex-
cepto, talvez, o apresentador das notícas da rádio. Mesmo as
sim, a influência do professor na nossa maneira de ouvir é
tão grande que a maior parte de nós continua a interpretar o
sentido dos discursos do dia-a-dia da maneira formal e lega
lista com que fomos treinados enquanto analisávamos frases
nas aulas de gramática.
No entanto, nunca chegamos a ter acesso instantâneo às abs-
tracções da nossa condição de letrados. Primeiro temos de
aprender as coisas no contexto da situação em que nos encon
tramos. Os estudos de Jean-Marie Pradier sobre a biologia da
profissão de actor diz-nos que o grande actor japonês Zeami
costumava afirmar que, em japonês, «aprender» quer dizer
imitar com o próprio corpo.67 Começamos todos dessa forma.
Uma criança aprende por gestos e imitação. Pode ser esta a
forma mais fácil do sistema nervoso integrar informação duma
só vez, olhando, ouvindo e fazendo simultaneamente, e depois
separando, catalogando e arquivando os bits de informação es
pecializada. Pode até dar mais prazer: os neurobiólogos Mi
chael Studdert-Kennedy e Myron Mishkin afirmam que uma
das tarefas mais excitantes do recém-nascido é a coordenação
das sensações que ocorrem simultaneamente. Mesmo o diver-
160 Derrick de Kerckhove

timento da criança de dois anos que bate com o brinquedo


contra a grade do berço pode vir do reconhecimento de que o
toque, a audição e a visão provêm todos do mesmo gesto.
Agora compare-se a situação da aprendizagem — ouvir
com o corpo — à leitura. Enquanto se lê o corpo está quieto,
como o de alguém que está a dormir. O leitor ou está em si
lêncio ou se fechou o suficiente para que o barulho exterior
lhe pareça silêncio. Este tipo de controlo, já agora, é testemu
nha do poder da literacia sobre a audição. Quando se lê, fe
cha-se literalmente os ouvidos, como se se tivesse protecto
res auditivos.
Transformar palavras escritas em imagens é uma tarefa
complicada. Nunca me hei-de esquecer de quando o meu pai
se inclinava sobre mim para se certificar que eu estava a ler
as histórias infantis de Alphonse Daudet, La chèvre de Mon
sieur Seguiu. O Sol brilhava lá fora, e eu conseguia ouvir os
meus amigos a brincar com o meu irmão no jardim. Estava
frustrado. «É tão fácil», dizia o meu pai, «tudo o que tens a
fazer é imaginar a pequena cabra a subir a montanha florida,
a pastar e a mastigar o dia inteiro e, depois, à noite, imaginá
ria a encontrar um lobo negro e feroz e a ter de lutar para sal
var a pele.» Era fácil para ele que tinha visto muitas cabras,
montanhas, até talvez lobos e que já tinha lido a história mui
tas vezes. Eu também já tinha visto cabras, e montanhas, e
fotografias de lobos, mas tinha de fazer um esforço enorme
para as colocar todas juntas, porque as imagens não pareciam
encaixar-se. Eram planas e sem vida, e tudo o que eu queria
fazer era ir a correr lá para fora e ir ter com os meus amigos.
Desde essa altura tornou-se óbvio para mim que a maior par
te das crianças gosta de livros de banda desenhada, de dese
nhos animados e de televisão porque assim não tem de arran
jar as imagens com a sua própria mente.
Quando tocava, costumava gravar as minhas improvisa
ções. As vezes tinha de deitar cá para fora os quilômetros de
A Pele da Cultura 161

melodias armazenadas no meu corpo pela exposição prolon


gada à música clássica a que os meus pais me obrigavam. A
música deve estar armazenada no corpo da mesma forma que
a memória de curto e longo prazos está armazenada no cére
bro. Certos tipos de música desaparecem num segundo. Ou
tros permanecem uma vida inteira, armazenados nos mem
bros, no cérebro ou mesmo no coração. Quando tocava algu
ma coisa que funcionava bem, acontecia uma coisa estranha
aos meus ouvidos: logo depois de parar de tocar ouvia um
zumbido a ecoar no quarto como se as minhas orelhas se ti
vessem tornado numa espécie de radar, detectando ao mesmo
tempo tudo o que me rodeava. Normalmente o meu acesso ao
ruído ambiental é selectivo, não é global. Se não tenho ne
cessidade de um som, não o ouço, a não' ser que seja real
mente intrusivo. Mas neste caso, era como se ter estado a to
car tivesse tornado o meu corpo num sitema de monitoriza-
ção programado para detectar a expansão do ser. Conseguia
ouvir mais e mais profundamente do que era habitual. Pensa
va ser a recompensa do músico. Não é preciso dizer que me
dava um grande gozo. Aliás hoje não sei dizer se as minhas
improvisações funcionavam bem por causa desta qualidade
especial do som, ou se esta qualidade especial do som se de
via à minha boa performance. Uma coisa é certa, tocar assim
ajudou-me a mudar-me do modo letrado para o modo oral.
Mais do que nunca precisamos disso.
C A P ÍT U L O D E Z

MEDIA E G Ê N E R O

Tomar o controlo do interior

Até há pouco tempo a lei natural da reprodução, do nasci


mento e da educação orientou as convenções sociais e mante
ve a estabilidade no centro da vida social. A pílula mudou is
so tudo. O poder simbólico da pílula é mais eficiente do que
o seu uso tecnológico: uma espécie de desmame, não das
crianças pelas mães, mas das mães em relação ao acto de dar
à luz. As mulheres não «têm» de ter crianças, podem esco
lher se as têm ou não. Dentro de alguns anos pedirão que lhes
paguem para tê-las — e com todo o direito. Os desenvolvi
mentos legais estão a substituir o patriarcado pelo matriarca
do porque agora as mulheres detêm o poder de vida ou morte
sobre a procriação, associado, desde o início do direito roma
no, apenas ao homem.

A família como uma forma de arte

Nos anos 60, as crianças tornaram-se obras de arte, maté


ria-prima para as experiências educacionais de Montessori a
164 Derrick de Kerckhove

Summerhill. Cortada em ambas as extremidades do controlo


natural pela lei c pela tecnologia, a vida humana tornou-se
um objecto útil, um recurso como todos os outros — embora
a maior parte das pessoas ainda não se tenha apercebido dis
to. Agora a própria família nuclear se tornou uma forma de
arte, para os trabalhadores como para os casais homosse
xuais. Parece cjue a palavra nuclear se tornou literalmente
verdadeira: as novas famílias sem crianças têm dois protões e
nenhum eleclrão! Dois produtores, nenhum consumidor! Co
nheço casais sem filhos que instalam quartos de criança em
casa como vestígio cultural de um passado distante.

A biologia está a eclipsar-se

A biologia pode já ter sido o nosso destino mas agora já


não é: até aprendermos a separar o átomo, decifrar o código
genético e dominar a electricidade, os seres humanos esta-
vam sob o punho da natureza. Hoje, para bem ou para mal,
estamos a aprender a recriar a natureza — por nossa conta e
risco. Daqui para a frente será inevitável. Estes desenvolvi
mentos que tornam o rclativismo de gênero c de cultura, não
uma opção, mas uma necessidade, afcclam todas as argu
mentações que pretendessem devolver «a mulher à cozi
nha». Hoje, as mulheres competem com os homens, e até os
batem, no mercado de trabalho especializado. Hoje, por cada
homem que funda uma empresa, há cinco mulheres a fazê-lo.
Há uma crescente suspeição de que as mulheres possam estar
mais bem preparadas do que os homens para lidar com novas
situações. Isto faz-nos regressar à questão biológica, claro,
com um novo dado: quando a biologia se encontra com a cul
tura, as mulheres chegam ao ponto de encontro mais cedo.
A Pele da Cultura 165

O fumo, o gênero e a supressão do corpo

Já repararam que as mulheres fumam mais do que os ho


mens, hoje em dia? Isto apesar do fumo se ter tornado numa
ofensa pública e um sinal fora de moda de fraqueza, revela
dor de tendências imorais e suicidas num corpo aparente
mente saudável. Estas jovens mulheres conhecem por certo
melhor maneira de impressionar as pessoas com a sua pose
«libertada» do que adoptando um vício tradicionalmente
masculino. O fumo não devia ser tratado de modo superfi
cial. Não porque nos coloca em risco de vida, mas porque,
como o álcool, as drogas, o ópio, o haxixe, a cocaína e outras
substâncias ingeríveis ou inaláveis toma o controlo do nosso
interior e é um indicador de grandes fenômenos sociais ocul
tos.
Para além de dificultar o acesso pessoal e imediato ao fu
mador, o fumo, como o álcool, ensombra a sensibilidade do
corpo e acentua as abstracções da mente. Qüando consumido
em excesso, o álcool submerge o cérebro e encharca-o. A ni
cotina enxuga-o. As mulheres começaram a fumar pela mes
ma razão que os homens pararam: cada um encontra a outra
metade, os homens aumentam a sua sensibilidade deixando
que os seus corpos comuniquem, as mulheres estão a dimi
nuir a sua sensibilidade reduzindo o volume de informação
que os seus corpos lhes dão naturalmente. Na medida em que
fumam e bebem, as mulheres tornam-se tão nervosas como
os homens costumavam estar e, consequentemente, estão a
sofer dos mesmos riscos de cancro e de ataque cardíaco. Mas
a razão principal para que as mulheres comecem a fumar é o
facto de, ao aceitarem algumas das condições psicológicas
mais duras da vida no «mundo real», é imperativo que consi
gam silenciar os seus corpos.
166 Derrick de Kerckhove

Ouvir versus ver

As mulheres são mais sensíveis que os homens em relação


ao corpo porque a sua atenção não é especializada. As mu
lheres provavelmente não focam a atenção numa coisa de ca
da vez, como fazem os homens. As mulheres usam os ouvi
dos tanto ou mais do que os olhos. Isto significa que estão
acostumadas a manter-se em contacto com muitas coisas ao
mesmo tempo, incluindo com as respostas do corpo aos
acontecimentos que se passam à sua volta. Como tenho vin
do a notar, e como diz a Diane McGuinness, as mulheres ou
vem melhor que os homens. O seu limite de sensibilidade
acústica situa-se quase um decibel abaixo do dos homens. A
audição e a visão não são apenas maneiras diferentes de ter
acesso e processar a informação, estabelecem uma relação
diferente entre as pessoas e o meio ambiente.
Suponha que podia associar as mulheres à audição e os
homens à visão. Que diferenças encontraria na forma como
ambos interpretam o meio ambiente? Com os seus olhares
de caçador os homens estariam à espreita, como na selva, ur
bana ou natural, tomando nota ou esperando todos os peque
nos acontecimentos que requerem uma atenção especial para
um propósito específico. As mulheres não têm de ir muito
longe para perceber tudo o que se passa à volta delas, os
seus corpos dizem-lho. Ouvem as pessoas por inteiro, não só
as palavras, mas também as situações, à frente e atrás, antes
e depois. E quando digo que ouvem quero também dizer que
sentem. Ouvir e tocar são dois sentidos próximos. É por cau
sa disso que as mulheres são mais sensíveis ao toque que os
homens. O mundo das mulheres tem uma textura rica em
minúsculos impulsos que mantêm o equilíbrio entre a mente
e o corpo, entre o que elas já sabem e o que têm de aprender.
A Pele da Cultura 167

Relacionai v ersu s instrumental

Diane McGuinness acrescenta que esta diferença audi-


ção/visão afecta também a relação dos homens e das mulhe
res com a linguagem. Os homens treinam-se pela atenção
que prestam ao que vêem, procurando sentido apenas na lin
guagem. As mulheres treinam-se pela atenção que dão ao
que sentem, para ouvir as indicações do contexto no que lhes
é dado ouvir. McGuinness usa palavras simples mas podero
sas: os homens têm uma atitude instrumental perante a lin
guagem e a vida enquanto as mulheres têm uma propensão
relacionai para com as palavras, sons, pessoas e coisas. Mui
to do significado é sentido pelas mulheres, enquanto muito
do significado é pensado pelos homens.

A força das mulheres

Talvez a razão pela qual as mulheres são mais fortes do


que os homens porque vivem, em média, mais sete anos, es
teja na distribuição equilibrada que fazem do stress entre o
corpo e a mente. Ao reconhecer e satisfazer estas duas neces
sidades as mulheres fazem incidir menos desgaste e agitação
sobre os seus sistemas nervosos. No entanto, numa altura em
que as mulheres aumentam a sua quota-parte de responsabili
dades públicas e sintonizam a sua atenção em tarefas espe
cializadas, há fortes probabilidades de que esta diferença de
esperança de vida diminua.
Esta não é a biologia dos romances cor-de-rosa, é o reco
nhecimento de que a forma como as mulheres e os homens
compreendem o mundo são duas estratégias de sobrevivência
igualmente importantes e complementares. Qualquer dese
quilíbrio sério entre as duas ameaça a sobrevivência. Isto é
fundamental para a compreensão do que é o gênero sexual, e
do que lhe está a acontecer na nossa cultura contemporânea.
168 Derrick de Kerckhove

Cosmologia: «Que é que se está a passar?»

Estamos a fazer menos bebês, mas, num sentido perverso,


estamos a fazê-los melhor. Poderemos esquecer-nos que, no
século XVII, numa família tão protegida como a do rei da
França, Luís, foram precisas quatro gerações e muitos nados-
-mortos para produzir um único herdeiro durável do trono?
Já houve uma altura em que a vida era barata no Ocidente, tal
como ainda é no Terceiro Mundo. Novas exigências estão a
acumular-sc para nos guiarem rumo a uma renovação global.
CAPÍTULO ONZE

G R A U S D E R E A L ID A D E N O S MEDIA E
NA CULTURA

Ataque à realidade

De uma notícia: «A realidade está doente: peritos acredi


tam que a iliteracia possa ser a causa.»

Já houve uma altura em que podíamos acreditar na realida


de. Platão e Aristóteles tinham ditado as regras. Se alguma
coisa não parecia certa a culpa era do aparelho sensorial ina
dequado, nunca do mundo. Apesar dos resmungos do bispo
Berkeley sobre árvores que caíam em silêncio na floresta
quando não havia ninguém para as ouvir, no século XVIII a
realidade estava entrincheirada pelo filósofo alemão Imma
nuel Kant. Como veremos daqui a pouco isto é um produto
do condicionamento da literacia. A literatura reforçou ainda
mais este condicionamento. Além de dar suporte à ideia de
realidade ao propor uma alternativa, a função da ficção era
fornecer modelos para as pessoas lidarem com a realidade.
Mas a realidade ia durar pouco. Por exemplo, o realismo do
século XIX, um movimento artístico que acompanhou a as
censão da fotografia, é geralmente considerado como uma
170 Derrick de Kerckhove

reacção ao excesso de romantismo. Eu acho que o realismo


teve mais a ver com a existência de uma sociedade burguesa
que estava a tentar lidar com o arrepiante conforto do início
da industrialização. O realismo e o naturalismo na arte e na
literatura asseguravam que existia uma realidade: quanto
mais desconfortável, mais real.
Numa altura em que o mundo era real, o objectivo de toda
a investigação científica era descrever um universo estável e
fiável, com ou sem a ajuda divina. Platão e Heródoto torna
ram a realidade real quando reivindicaram que os factos subs
tituíam as opiniões (doxa) na argumentação e análise históri
cas. O átomo foi inventado por outro grego para dar ao uni
verso uma sólida base material. Desde que o átomo aguentas
se, a realidade era fiável. Mas agora nem nos átomos se pode
confiar. Hoje sabemos que os átomos são muito pouco fiáveis
e somos mais receptivos a idéias como a de Schroedinger, «as
coisas não são, as coisas só tendem a ser». Hoje parece que o
objectivo de muita da investigação científica é minar os
profundos recursos da nossa ingenuidade tecnológica.
A partir de Einstein, Niels Bohr, Heisenberg, Freud e a te
levisão, a realidade está a desintegrar-se rapidamente. Hoje já
está a cair aos bocados. O eu e a alma estão em todo o lado e
Deus não está à mão para poder juntar as peças. Ao emular
os Beatles, o físico e teórico David Bohm fez um trabalho
puramente metafísico para provar que sim, é verdade, está tu
do na sua cabeça.
Não há muito tempo até a Coca-Cola era real. Se o mundo
já foi real por que é que já não é?

Da realidade para a fantasia

Depois de McLuhan, Postman, Meyrowitz ou Bill Moyers


será ainda preciso lembrar que «as notícias são entretenimen-
A Pele da Cultura 171

to»? No entanto, as pessoas ainda tomam as notícias como


realidade, e acreditam que as notícias televisivas são as mais
reais. A única altura em que não nos sentimos culpados por
estarmos a ver televisão é quando vemos os noticiários por
que nessa altura estamos a cumprir o nosso dever de cida
dãos. É claro que as notícias são apresentadas de uma forma
diferente. The World is Watching, um filme de Peter
Raymont sobre a forma como os acontecimentos mais signi
ficativos da Nicarágua foram cobertos pelas várias estações
televisivas, demonstrou as distorções da imprensa no proces
samento da realidade. O cerne da argumentação de Raymond
diz respeito à forma como o canal ABC tratou o assunto:
quando a equipa estava a preparar uma peça sobre o regresso
do presidente Daniel Ortega a Manágua, vindo de Moscovo,
eles previam — e estavam prontos a dizê-lo — que o presi
dente iria declarar, em conferência de imprensa marcada para
as 5 da tarde, que não iria negociar com os Contras. A confe
rência de imprensa foi adiada para as sete da tarde, muito tar
de para apanhar as notícias da noite em Nova Iorque. A equi
pa da ABC avançou com o seu plano inicial, afirmando que
Ortega se mantinha firme na sua posição. Mais tarde, para
grande espanto da equipa, descobriram que Ortega tinha mu
dado de idéias sobre este tema fundamental. Este incidente
pode ser interpretado como o problema que a TV tem em li
dar com o tempo. No entanto, no decorrer do documentário,
Raymond demonstra com muitos outros exemplos convin
centes que a manipulação da mensagem é realizada sempre
para adaptar a realidade às condicionantes do meio. A televi
são apresenta só as «notícias que servem» e se não servirem,
os produtores farão com que sirvam.
O documentário de Raymont é uma espécie de «concentra
do de realidade» que podia encontrar paralelo numa lei de di
minuição da realidade. A realidade desaparece gradualmente
pela seguinte ordem:
172 Derrick de Kerckhove

1. Directos
2. Diferidos
3. Notícias empacotadas
4. Documentários objectivos
5. Documentários opinativos
6. Documentários ficcionados

Em princípio a manipulação dos media é legitimada pelas


necessidades de ser breve e de cobrir um número cada vez
maior de assuntos importantes no menor tempo possível.
Mas este processo abre também a porta a uma nova série de
fraudes sobre a realidade. Por exemplo, a notável reportagem
de Ted Koppel «A Revolução numa Caixa», mostra que o
que foi apresentado ao público americano como imagens aé
reas de Tchernobyl, logo após a explosão, eram, na realidade,
imagens de arquivo mostrando uma fábrica tranqüila, embora
enevoada e fumarenta, no vale do Pó na Itália. Outro exem
plo do mesmo documentário mostra um vídeo com uma série
de reféns a «confessar» a sua conspiração para escapar a uma
prisão do Médio Oriente, demonstrando como a selecção de
excertos apropriados e a edição em estúdio levou à pura fa
bricação das tais «confissões».
Nestes casos houve prova evidente da fraude, mas que di
zer das famosas reconstruções da ABC? Se ligar o televisor
durante a transmissão da encenação de um crime e do pro
cesso de investigação, pode muito bem vir a tomá-lo por real.
Isto aconteceu já uma vez quando um telespectador inteli
gente acusou um dos actores de uma encenação de ter toma
do parte no crime real, porque pensou ter visto no programa
algo que provava a sua culpa!
Em todos estes casos, o público é apanhado numa armadi
lha mais poderosa do que o mero efeito de realidade de uma
fotografia. A famosa lei de McLuhan pode necessitar de uma
adaptação: o contexto, e não apenas o meio, é a mensagem. E
A Pele da Cultura 173

como se o mecanismo detector da realidade fosse enganado


pelo enquadramento de uma reportagem televisiva c como se
o resultado disso viesse a ser a suspensão da incredulidade.
Com uma realidade destas quem é que precisa da ficção?
CAPÍTULO DOZE

M A S S A , V E L O C ID A D E E C IB E R C U L T U R A

«A informação expande-se à medida que é usada. É transportá


vel à velocidade da luz. Acima de tudo, escoa-se; tem uma ten
dência inerente para se escoar.»
— Harlan Cleveland

Psicotecnologias

O crescimento das psicotecnologias e do processamento de


informação tem gradualmente evoluído do universo privado
da mente para o mundo público do tubo de raios catódicos.
Na medida em que o ecrã de vídeo substitui a mente quando
chegamos à imagem e processamento de informação, cada
época, juntamente com os meios que a dominaram, corres
pondeu a mudanças de posição na nossa relação com o ecrã
de vídeo. A nossa relação de sentido único, frontal, com o
ecrã do televisor trouxe a cultura de massas. O ecrã de com
putador, ao introduzir modalidades de interactividade bidi-
reccional, aumentou a velocidade. O efeito dos hipermédia
integrados será a imersão total. Estamos à beira de uma nova
cultura profunda que está a tomar forma durante os anos no-
176 Derrick de Kerckhove

venta. De todas as vezes que a ênfase dada a um determinado


meio muda, toda a cultura se move.

Massa

Para se ter uma ideia do campo total criado pela televisão,


imagine-se a nação inteira especada em frente ao ecrã do te
levisor na hora de maior audiência, a receber informação sem
responder. A única maneira da audiência afectar o meio é
através de medições, padrões de compra e estudos de merca
do. Com um meio de difusão, o padrão de energia viaja num
só sentido, para dentro do receptor, onde é consumido com
uma resistência mínima. Isto cria condições favoráveis para a
promoção e distribuição de produtos, onde a ênfase está na
persuasão e embalagem. De facto, o auge da era da televisão
foi também o tempo da publicidade sem limites. O conteúdo
da publicidade era também o conteúdo de um novo tipo de
consciência colcctiva, a informação activa que formou e in
formou a maior parte da cultura europeia e norte-americana.
Desta forma, o período que foi de meados dos anos 60 a
meados dos anos 70 foi definido pela cultura de massas. Co
meçou com o feixe de electrões iluminando os nossos siste
mas nervosos, inundando as nossas sensibilidades com ex-
pansionismo inflacionário e marketing agressivo. A era da
TV viu as viagens por todo o mundo para estudantes univer
sitários, viagens psicadélicas para os que ficavam em casa,
escolas para treinar a sensibilidade de um dia para o outro,
métodos psicolerapêuticos e macrobióticos, fantasias de en
contro este-oeste, licenças sabáticas para executivos e mes
mo uma nova liberdade para a criação de mitos lingüísticos.
Tudo traços desses tempos excitantes e idealistas do auge da
cultura de massas.
A Pele cia Cultura 177

Velocidade

O quadro mental generoso e expansivo dos anos sessenta


foi confrontado com a psicologia de limites de crescimento
do princípio dos anos setenta, trazida por racionalizações in
formatizadas dos recursos finitos do Planeta. A nova tendên
cia que iniciou a mudança dos anos setenta parece ter come
çado no Hudson Institute, com as projecções pessimistas de
Herman Kahn sobre as reservas naturais de energia da Terra.
Foi o resultado do trabalho de grandes e deselegantes compu
tadores. Com a introdução dos microcomputadores pessoais
e portáteis, que nos anos 80 tinham já penetrado no mercado
doméstico, os consumidores foram instigados a tornarem-se
produtores. A nova tecnologia tinha mudado a nossa relação
de sentido único com o televisor para o modo interactivo e
bidireccional dos computadores pessoais. Os ecrãs de com
putador estabeleceram uma interface entre a electricidade
biológica e tecnológica, entre o utilizador e as redes.
A televisão tinha feito da maior parte da juventude ameri
cana hippies despreocupados, disparando fotões rios seus cé
rebros receptivos. Contudo, á medida que iam aprendendo a
falar com os ecrãs através dos computadores, telecomandos,
gravadores de vídeo e câmaras caseiras, homens e mulheres
muito jovens recuperaram a autonomia suficiente para resis
tir ao consumismo automático e reflexo e tornaram-se rapi
damente empresários de sucesso. Os anos 80 assistiram à as
censão da «cultura da velocidade» e das redes. Mesmo ainda
no final dos anos 70, a música-disco estava a moldar o tempo
com o relógio hertziano dos seus sintetizadores, a «alma» das
novas máquinas. A cultura da velocidade, culminando na dis
tribuição universal de máquinas de fax, obrigou-nos a estar
em forma, emagrecendo as empresas e adquirindo um estilo
e um conteúdo de alta tecnologia. Os hippies foram substituí
dos pelos yuppies.
178 Derrick de Kerckhove

Cibercultura

Agora, à medida que penetramos nas realidades virtuais


do ecrã com capacetes de realidade virtual, «datagloves» e
«datasuits», estamos a entrar numa terceira era mediática: a
cibercultura. A cibercultura é o produto da multiplicação
da massa pela velocidade, com as tecnologias do vídeo a
serem intensificadas pelas tecnologias informáticas. A Te
levisão de Alta Definição é um exemplo típico deste tipo
de multiplicação. A mensagem profunda da TVAD não é
uma melhor definição ou uma resolução mais fina, mas
mais poder para o enquadramento. A TVAD é a televisão
educada pelo computador. A TVAD é composta por mi
lhões de pixels interactivos. Cada pixel pode ser endereça
do para um comando específico. A imagem TVAD é uma
espécie de sistema dendrítico electrónico composto por mi
lhões de processadores paralelos. Antes do fim da década,
veremos experiências combinando TVAD com redes neu-
rais em sistemas operativos enormemenie complexos e
educáveis.
Estamos a descobrir que há tanto lugar no espaço interior
como no espaço exterior. Estamos já a explorar, industrializar
e vender o reino infinitamente pequeno do genético, atômico
ou molecular. Os yuppies foram-se, chegaram os cyberpunks.
O negócio no ciberespaço acontece sobretudo on-line, envol
vendo redes neurais e sistemas periciais de grande capacida
de de processamento numérico, mas é também altamente per
sonalizado já que os novos executivos têm de aprender a li
dar com as complexidades de outras sensibilidades culturais.
A cibercultura procurará e encontrará informação valiosa
noutras sociedades. As tecnologias ocidentais estão a esten-
der-se para ir ao encontro de todas as culturas do Planeta.
Mas a electricidade, embora desenvolvida pela tecnologia
ocidental, está, no seu espírito, mais próxima da psicologia
A Pele da Cultura 179

oriental do que ocidental. Daí a importância de explorar os


campos psicológicos integrais de países como o Japão, a Chi
na ou a índia.

Padrões de massa, velocidade e


cibercultura antes e depois de 1980

«Quando a informação se move a uma velocidade eléctrica, o


mundo das tendências e dos rumores torna-se o mundo “real”.»
— Marshall McLuhan
I ' /■ ^

E difícil relembrar os anos sessenta. Grace Slick, vocalis


ta da banda rock Jefferson Airplane, disse um dia que al
guém que afirmasse que se lembrava dos anos sessenta não
poderia de forma alguma ter estado lá. Realmente, são me
mórias de um tempo fora do tempo, uma espécie de desen
rolar de um eterno presente, que rapidamente se eclipsou
com a crise do petróleo dos anos 70. Agora parece que q u a/
se não é possível ir além da maneira de pensar dos anos 80.
Vemos os anos sessenta na escuridão, através das lentes dos
anos oitenta.
i Foi a abundância a cgerar as tendências sociais dos anos
sessenta ou o contrário? Seriam as tendências sociais a pro
mover as tendências empresariais? Seriam as recessões e os
mercados altamente instáveis a criar economias deficitárias?
O que aconteceu para transformar os jovens de hippies em
yuppiesl Historicamente, tanto o liberalismo econômico co
mo as ideologias marxistas partilharam uma tendência para
procurar na linha de fundo a explicação dos comportamentos
do homem e do mercado. Isto é demasiado óbvio para ser
útil. Se não houvesse outras variáveis em jogo, teríamos uma
situação onde a linha de fundo funcionaria e a eficiência se-
j ria a sua prova. Sabemos que não é assim. Tem de estar em
180 Derrick de Kerckhove

acção algo mais que avidez humana. A minha resposta c que


é preciso encontrar raízes mais profundas, algo que una todas
as características.

Tendências empresariais do princípio dos anos 60


aos anos 80

As tabelas seguintes talvez ajudem. É frequentemente re


velador — e espero que excitante — olhar para o antes e de
pois das gravuras. O quadro que se segue compara as gran
des tendências empresariais dos anos 80 com as dos anos
sessenta e meados dos anos setenta (quando a mitologia dos
limites do crescimento atingiu as empresas e os governos
com a perspectiva de recursos energéticos limitados). Mui
tas destas tendências não precisam de introdução. São co
nhecidas de qualquer pessoa que tivesse uma empresa na al
tura. A razão real para as juntar é apontar a consistência dos
períodos. É relativamente fácil ver os padrões a desenrolar-
-se, porque as características de cada período raramente se
sobrepõem. Outro objectivo destas tabelas é fornecer algu
mas indicações preliminares para analisar o comportamento
dos campos tecnomagnélicos. Ao contrário do que os econo
mistas nos querem fazer crer, as tendências empresariais re-
flectem frequentemente condições e circunstâncias que esca
pam ao seu controlo. Finalmente e no mínimo, deve existir
algum tipo de interdependência entre as tendências empresa
riais e as sociais.
A Pele da Cultura

Tabela I
T e n d ê n c i a s E m pr e s a r i a i s

Anos 60-70 Anos 80

Potência econômica Estados Unidos Japão


cm crescimento

Tendência estrutural Expansão Contracção


global (ramos e (fusões e
«.franchise») aquisições)

Mitologia financeira Inflação Défice


dominante

Hardware preferido Aviões e Computador


automóveis (comunicação)
(transporte)

Papel do governo Centralização Desregulamentação


(assistência (privatização)
social)

Padrão dominante Acções de alto Imobiliário e


de investimento valor e risco fundos mútuos

Ideologia empresarial Economia Reaganomics


dominante Keynesiana (as empresas sabem
(o poder de o que fazer)
compra
estimula a
economia)
Padrão dominante
de internacionalização Multinacionais Mullissectorial
(uma só indústria, (diversificação)
muitos países)
182 Derrick de Kerckhove

Aquilo a que eu chamo mitologia não é necessariamente


algo de falso, mas algo que, por uma razão ou outra, chama a
atenção de toda a gente e se torna numa fonte de clichês con
sensuais. Não vale a pena provar que o Japão é neste mo
mento a estrela em ascensão no mundo empresarial ou que
acabamos de assistir a uma onda de fusões, compras apoia
das e aquisições. As estratégias de governo-contra-o-défice
substituíram as do governo-com-défice dos anos 70. Os cor
tes cirúrgicos nos programas sociais que acompanharam a
Reaganomics quase eliminaram as políticas do Estado como
assistente social de governos mais liberais, pelo menos no
mundo anglófono.

Tendências sociais

Ao olhar para o segundo quadro, perguntamo-nos o que


veio primeiro, se as tendências sociais se as empresariais. É
de façto uma boa questão. Diz-se frequentemente que a razão
para termos passado tão despreocupadamente pelos anos 60
foi o facto de haver muito dinheiro a circular. E com uma
pressão reduzida para lutar pelo sustento, os baby boomers
tiveram oportunidade de descansar. Na verdade há muito
mais dinheiro a circular hoje. De acordo com Joseph N. Pel-
ton, «perto de cem mil biliões de dólares de transferências
electrónicas de fundos ocorrem via satélite ou cabo todos os
anos»68. Porque será, então, que, com mais dinheiro que nun
ca, em mais lugares, as administrações no governo, educa
ção, artes e, claro, serviços sociais nos pedem que apertemos
o cinto e nos preparemos para ainda mais severas restrições
orçamentais no futuro?
Nos finais dos anos 70, quase de um dia para o outro, e
sem sequer uma iniciativa das autoridades governamentais
ou escolares, os miúdos do secundário e das universidades —
"A Pele da Cultura 183

se bem que não os seus pais — deixaram de tomar ácido e


fumar droga. Porquê nessa altura e não mais cedo? Por que é
que tanta gente deixou de fumar cigarros nos anos 80 (com a
provável excepção das mulheres jovens, urbanas e profissio-
nais)? Como explicar o interesse generalizado pelo ambiente,
registando neste momento mais de 80 por cento nas sonda
gens de opinião, comparado com os egocêntricos, virados pa
ra o umbigo, anos 70? Ao mesmo tempo, no que poderia pa
recer uma tendência contraditória, os yuppies têm deixado
cada vez para mais tarde o momento de ter crianças e estão
mais preocupados em correr pela sua saúde do que para os
cargos públicos. Não terá isto nada a ver com a compra da
CBS pela Sony ou com os cortes de Reagan e Thatcher nos
programas sociais? A medida que exploramos a validade e
relevância da Tabela 2, talvez valha a pena começar a procu
rar um campo tecnocultural.

Tabela 2
Te n d ê n c i a s s o c ia is

Anos 60-70 Anos 80

Producionismo Consumismo
Egocentrismo (minha década) Ambientalismo
Relações Saúde física
Hippies Yuppies
Feminismo Duplo rendimento
sem filhos
Drogas sociais (ou não tão sociais) Não fumadores
Motor ideológico Linha de fundo
184 Derrick de Kerckliove

Tendências psicológicas

O quadro seguinte procura relacionar as principais mudan


ças não com a economia, mas sim para os meios de processa
mento de informação que exercerem uma espécie do hege
monia sobre a cultura, modas e atitudes empresarias do tem
po. A televisão tinha o poder de relaxar e induzir a nossa sen
sibilidade para um humor expansivo enquanto os computado
res contraíram muita dessa expansividade em mentes atentas,
concentradas e de emoções controladas.
A televisão e os computadores conquistaram o mundo in
dustrial, esculpindo e moldando a psicologia empresarial de
acordo com os seus critérios altamente distintos que, por sua
vez, formaram e informaram políticas distintas dentro da cul
tura que ajudou a desenvolver outras políticas.

Tabela 3
T e n d ê n c i a s Ps i c o l ó g ic a s

Televisão Computador
(saturação (penetração
nos anos 70) nos anos 80)

Conceitos dominantes Cultura de massa Cultura de


velocidade
Produção em massa Comunicação
instantânea
Estar em todo o Estar aqui e agora
lado ao mesmo onde conta
tempo

Principais padrões de Difusão Redes


comunicação (unidireccional) (bidirecciona!)
(Dar às pessoas o (Descobrir o que
que elas querem) as pessoas querem)
A Pele da Cultura 185

Atitudes dominantes Sedução Precisão


de Marketing

Estratégia empresarial Promoção Contabilidade


dominante

Principal fonte
de metáforas Corpo-sentidos- Cérebro/Sistema
-loque nervoso central
(toca-me, (A Alma da
sente-me) Nova Máquina)

Cliches favoritos Mitos, ícones, Lógica, IA,


imagens sistemas periciais

Representação
mitológica popular Super-homem HAL de 2001
(visão raios X, ' (comando e
voar) controlo)

Se substituirmos os cabeçalhos das colunas dos dois pri


meiros quadros por Televisão à esquerda e Computador à di
reita, ficaremos surpreendidos por os novos cabeçalhos traze
rem na verdade mais informação. Fazem ainda mais sentido
do que a classificação por períodos. A televisão transformou-
-nos em consumidores inveterados, ao trazer o mundo exte
rior para dentro de casa, para dentro do eu. Desenvolvemos
uma espécie de apetite voraz por imagens e bens. Mas os
computadores, ao projectar de dentro para fora a partir do
sistema nervoso central, dando-nos acesso e poder sobre
qualquer ponto do ambiente, em qualquer momento, para
qualquer fim, fez de nós produtores. A geração mais jovem
de homens e mulheres ficou pedrada com pequenos negócios
186 Derrick de Kerckhove

e novas empresas em vez de drogas. A informatização da


economia é também uma chave para todas as outras mudan
ças, sendo o centro nervoso do presente corpo político.

Humano de massa versu s humano de velocidade

O homem da massa foi homogeneizado e bastante desper-


sonalizado. O homem ou mulher da velocidade da terra dos
computadores reage às pessoas e enfatiza as diferenças. E a
razão para isso é clara: onde o homem da massa da televisão
estava rodeado por redes de difusão mediática, preso num
mundo feito para ele pelas indústrias da consciência, o ho
mem da velocidade dos computadores está em todo o lado no
centro das coisas. Mesmo o polícia de província que nos apa
nha em excesso de velocidade numa estrada secundária pode
ter acesso ao nosso registo chamando a base de dados da po
lícia pelo seu telefone celular. A nova situação é bastante pa
radoxal: como tudo acelera ;à sua volta, o homem da veloci
dade não se pode dar ao luxo de desacelerar. No centro das
coisas, os homens e mulheres da velocidade não se movem.
A sua velocidade é o acesso instantâneo que têm às coisas e à
informação. As pessoas da velocidade não são sobretudo
consumidores mas sim produtores e agentes. A sua produção
e as suas acções são marcadas pelo seu carácter pessoal.
A televisão criou a noção do «homem da massa» e a ideia
de mass media. Não fazíamos ideia de que existiam coisas
como «consumo de massa» e «psicologia de massa» até a te
levisão no-las terem revelado. Mas os computadores trouxe
ram a «cultura da velocidade». O computador não é um meio
de massa, mas um meio pessoal, como no computador pes
soal. Fomos levados pela necessidade de simultaneamente
acelerar e humanizar a interacção entre nós e as nossas má
quinas. Tomemos por exemplo a tentativa de criar sistemas
A Pele da Cultura 187

operados por voz, ou a tendência para a facilidade de utiliza


ção. Aos melhores designers de software é exigido que ela
borem programas que percebam linguagens naturais em tan
tas combinações quantas forem possíveis. Os sonhos da defi
nitiva máquina de tradução ou de «funções difusas» eficien
tes ou ainda do processamento paralelo múltiplo são alimen
tados pelas crescentes possibilidades tecnológicas.

Estratégias empresariais

A maior parte das tendências no quadro de tendências psi


cológicas merece uma elaboração mais aprofundada, que se
rá o assunto dos próximos capítulos. Entretanto, vejamos o
que uma análise de um campo tecnocultural pode dizer sobre
as atitudes empresariais. A Tabela 4 compara as estratégias
empresariais das gerações dos anos 60 e 70 com as recentes
técnicas dos anos 80. Mais uma vez, a televisão nos anos ses
senta e os computadores nos anos oitenta parecem ter actua-
do como ímanes com polaridades diferentes.
Uma das mais significativas mudanças nas atitudes empresa
riais dos anos 80 foi a nova ênfase dada à psicografia por opo
sição à demografia, que tinha reinado nos anos 60 e 70. Esta
foi uma clara deslocação de uma psicologia da massa para uma
psicologia da velocidade causada pelos computadores. A mu
dança permitiu à indústria tornar-se mais precisa nas análises
estatísticas e de tendências, sob pressão da crescente concor
rência, para se manter na frente. A psicografia permitiu aos
executivos do marketing perceber muito mais do que números.
Foi um salto qualitativo na pesquisa de audiências, que fez dos
dados psicológicos, mais do que os numéricos, o indicador das
áreas de crescimento no mercado. A pesquisa assistida por
computador permite apontar com ainda maior precisão que ti
pos de pessoas são susceptíveis de comprar um produto ou um
188 Derrick de Kerckhove

serviço, quanto comprarão, durante quanto tempo e onde estão


localizadas. Várias companhias de estudo de mercado estão
agora atarefadas a criar as suas próprias categorias de pessoas
sob várias classificações. Novas personalidades colectivas, re
presentando segmentos com valor de mercado da população to
tal, estão a ser definidas não em termos de caracter, coino eram
as mulheres e homens individuais pelos escritores e críticos so
ciais depois da Renascença, mas em termos de hábitos de com
pra fiáveis demonstrados por gostos, disposições e atitudes.

Tabela 4
E s t r a t é g i a s E m pr e s a r i a i s

Anos 60 e 70 Anos 80

Mercados de massa Mercados de velocidade


Demografia Psicografia
(grandes números) (os números certos)
Marketing por via Marketing em nichos
da publicidade
Obsolência planeada Melhoramento
Embalagem Posicionamento
(a embalagem é a mensagem) (mantendo lugares)
Excesso de pessoal Downsizing
(emagrecimento)
Relações públicas Comunicação empresarial
Ênfase no produto Ênfase na audiência
Tentativa e erro Análise de tendências
Campanhas Ajuda e empurrão
(operações militares) (deixar a força agir)
Mostra e vende Sondagens
(estatísticas)
A Pele da Cultura 189

Lugares-comiins

Existe um método rápido de apreender a estrutura profun


da de qualquer situação contemporânea. Quando se quer ob
ter uma visão do que se passa, verifiquem os chavões corren
tes; o governo, as empresas e os media gostam muito deles.
Os chavões revelam as imagens que ficam da mudança so
cial; representam exactamente os enormes poderes da mu
dança social. Quando um novo cliché ou lugar-comum apare
ce, podemos ter a certeza que o seu aparecimento depende de
alguma área de actividade do campo tecnocultural.
Os computadores, por exemplo, deram origem a um gran
de número de chavões, ou imagens que ficam, mesmo quan
do estavam a deslocar o solo em que assentava a vida de to
dos os dias. Algumas das palavras e expressões estão obvia
mente ligadas aos computadores: redes, interface, interacti
ve, amigável e por aí adiante.
Outras imagens residuais não são assim tão evidentemente
relacionáveis com os computadores mas tiveram direito a
uma maior proeminência por causa destes: downsizing, ges
tão de crise, análise cuslo-benefício, psicográficos, loque
pessoal, mania da saúde, interiorização, encasulamento e an-
tifumador. Os chavões geralmente são verbos e/ou substanti
vos implicando acção e, por isso, frequentemente revelam in
teressantes mudanças culturais ocultas que estão a verificar-
-se na comunidade empresarial.

Cibercullura nos anos 90

Neste ponto dos anos noventa, o chavão dominante é inques


tionavelmente a «globalização». Quando McLuhan introduziu
pela primeira vez a noção da «aldeia global» no princípio dos
anos 60, ninguém prestou muita atenção. O Japão ainda estava
190 Derrick de Kerckhove

a produzir máquinas fotográficas baratas e carros pequenos, o


Muro de Berlim tinha acabado de ser erguido e a China nem
sequer começara a despertar. As telecomunicações eram muito
caras e apenas acessíveis a uns poucos privilegiados. As pes
soas faziam piadas sobre a famosa «linha vermelha» entre
Moscovo e Washington, um aparelho exótico que tinha a tarefa
assustadora de anunciar o holocausto nuclear. Lembro-me de
me interrogar se Nikita Kruchtchev se teria preocupado com as
tarifas telefônicas internacionais antes de telefonar a John Ken
nedy sobre o incidente da baía dos Porcos69.

Transparência global

A democratização e proliferação das comunicações instan


tâneas e dos aparelhos de telecomunicação pessoais substituí
ram a nossa outrora opaca e distante percepção do Planeta
por uma nova percepção da sua imediatez e transparência.
Que fronteiras existem para a electricidade? As linhas telefô
nicas do mundo estão abertas. Assistimos à revolta dos estu
dantes chineses em 1989 na televisão enquanto máquinas de
fax davam notícias de Pequim apesar do controlo governa
mental intenso. A vinte mil milhas de altitude, mais de três
mil satélites de comunicações estão a transmitir informação
para antenas parabólicas de todo o mundo. Poucas horas de
pois da colisão do cometa Shoemaker Levy Strauss 9 com
Júpiter, imagens das explosões estavam disponíveis na Inter
net. Redes de notícias podem ser recebidas do ar, em linha ou
impressas dentro ou fora de uma agência de notícias. Mesmo
as bases de dados estão abertas — para qualquer espertalhão
que saiba furar e iludir o sistema. Ninguém consegue manter
um segredo durante algum tempo.
Hoje, só o estrito controlo militar dos noticiários dos me
dia, como aconteceu na Guerra do Golfo, pode impedir o es-
A Pele da Cultura 191

crutínio de tudo por todos. Mas mesmo durante a Guerra do


Golfo, espectadores de televisão viram mísseis Scud explodir
em Telavive enquanto comentadores, sob rígido controlo mi
litar, afirmavam que nenhum deles atingira a cidade. A aber
tura dos países do Leste europeu, juntamente com a erosão
do controlo comunista, é uma das mais poderosas e espanto
sas expressões do efeito das tecnologias electrónicas gerando
uma glasnost mundial.

Tempo real

Há outra coisa que contribui para a abertura mundial. O


fosso entre o estímulo e a resposta comunicacional está a
diminuir dramaticamente, aumentando o número de transac-
ções. Houve um tempo onde demorava mais a transmitir a in
formação do que a recolhê-la. Esse tempo passou. Em alguns
negócios, as notícias da manhã são obsoletas à hora do almo
ço. Consequentemente, encontramos empresários obcecados
em aumentar a velocidade de acesso à sua casa, escritório ou
contactos ojf-shore. As máquinas do fax e os telefones celula
res encontraram lugar aos nossos colos nos aviões, juntamen
te com os computadores portáteis. Cada vez mais pessoas
usam bips, quer seja para lhes lembrar o próximo biberão do
bebé ou para irem à cabina mais próxima telefonar para o es
critório ou para a clínica. A diminuição do hiato entre acção
e reacção está a criar uma espécie de continuidade entre pla-
near e executar em «tempo real».
Por outro lado, a multiplicação de contactos reduz a resis
tência local à mudança. Aumentar a velocidade de acção e
reacção por todo o lado abre a possibilidade de unificar rapi
damente as respostas de todo o mundo. Hoje, sociedades in
teiras e economias de grande escala, sob a cobertura de hol
dings únicas, são processadas instantaneamente como se fos-
192 Derrick de Kerckliove

sem utilizadores singulares do ambiente electrónico. A elec


tricidade envolve o globo numa só teia. Os media tecem uma
só manta táctil de actividade electrostática em volta do Pla
neta. Qualquer oscilação numa bolsa de valores afecta o
equilíbrio delicado e sensível dos investimentos por todo o
mundo. Os computadores reagem imediatamente, enquanto
os investidores permanecem de olhos colados aos seus termi
nais. Para alguns, pode ser uma questão de vida ou de morte.
As notícias de que a bolsa de Nova Iorque tinha tido um co
lapso em 19 de Outubro de 1987 repercutiram-se imediata
mente em todo o mundo, como uma chicotada.
O paradoxo é este. O nosso hardware -— a realidade ma
terial, da terra — está a contrair-se c a implodir sobre si
mesma, porque as nossas tecnologias reduzem constante
mente os intervalos espácio-temporais entre operações. En
tretanto, o nosso software, a nossa realidade psicológica c
tecnológica, está continuamente a expandir-se. O acesso aos
reinos do infinito — estruturas de informação atômicas e
subatômicas, planetárias e galácticas — está também a ex
pandir o alcance da nossa «cultura em profundidade» que
não cessa de aumentar.

O que é a cibercultura?

A cibercultura é o resultado da multiplicação da massa pe


la velocidade. Enquanto a televisão e a rádio nos trazem notí
cias e informação em massa de todo o mundo, as tecnologias
sondadoras, como o telefone ou as redes de computadores,
permitem-nos ir instantaneamente a qualquer ponto e intera
gir com esse ponto. Esta é a qualidade da «profundidade», a
possibilidade de «tocar» aquele ponto e ter um efeito de-
monstrável sobre ele através das nossas extensões electróni
cas. Podemos hoje fazer isto em qualquer contexto do mundo
A Pele da Cultura 193

e mesmo mais além, visto termos enviado numerosas sondas


para o espaço. Hoje, da sonda Pioneer, a milhões de quilôme
tros de distância, podemos receber uma imagem bidimensio
nal da superfície de Miranda (uma das luas de Urano) e dar-
-Ihc relevo tridimensional por computador. O efeito 3D é só
uma expressão da profundidade. A outra é a literal profundi
dade da própria sondagem. Já não nos contentamos com su
perfícies. Estamos mesmo a tentar penetrar o impenetrável, o
ecrã de vídeo. Uma expressão literal da cibercultura é a flo
rescente indústria de máquinas de realidade virtual que nos
permitem entrar no mundo do ecrã de vídeo e de computador
e sondar a interminável profundidade da criatividade humana
na ciência, na arte c na tecnologia.
Outra expressão da profundidade da cibercultura é a pene
tração, por microscópios assistidos electronicamente e dispo
sitivos dc ressonância magnética nuclear, nos reinos infinita
mente pequenos das estruturas moleculares, genéticas e atô
micas. Muitas são as tecnologias a convidar-nos a sondar pa
ra além da superfície do visível, ou do que é tornado visível
por simulação ou aumento. Estes mundos nunca tinham sido
acessíveis antes. Estes reinos, para os quais estamos já a
construir micro-eslruturas e motores atômicos, estão a tornar-
-sc mercados insaciáveis para a indústria.
A cibercultura implica «ver através». Vemos através da ma
téria, do espaço e do tempo com as nossas técnicas de recolha
de informação. Quando uma tecnologia nos dá acesso físico
ou mental a um lugar na Terra ou ao espaço profundo, para
além de qualquer limite anterior, as nossas mentes vão atrás.
Daí que a nossa psicologia tenha de evoluir com essa tecnolo
gia. Quando viajamos fisicamente em negócios ou em férias,
estamos contidos na esfera global. Contudo, quando pensa
mos globalmente e mandamos ou recebemos informação dos
nossos escritórios, contemos a Terra nas nossas mentes e re
des. A informação que aplicamos a esta estrutura interior é
194 Derrick de Kerckhove

parte de um pensamento global e de uma actividade global.


Como forma de expressão da mente e quadro de referência, a
globalização é uma das condições psicológicas da cibercultu-
ra.

A globalização é sobretudo uma questão de


psicologia e não de economia

As multinacionais são como a ideia de Deus durante a Re


nascença. O seu centro está em todo o lado e a sua periferia
não está em lugar algum. A conseqüência de tudo isto é que a
cultura empresarial se está, ela própria, a transformar em cul
tura global. Contudo, a onda de fusões e compras, a reconfi-
guração das economias locais em estruturas globais, apoiada
por acordos de comércio livre por todo o mundo, não é só
uma questão de bom senso econômico. Tais desenvolvimen
tos podem ser considerados a uma luz diferente e, em última
análise, mais interessantes. Poderá a economia ser considera
da como o meio compreensivo onde a sociedade atinge a sua
própria integração ou uma nova base psicológica ou tecnop-
sicológica?
Por exemplo, os media impressos ou electrónicos ficam
muito excitados com as monumentais fusões e aquisições.
Tomemos por exemplo a fusão entre a Warner e a Time, ou as
dramáticas compras de firmas americanas por firmas japone
sas. Algumas pessoas pensam que é tudo uma questão de
empresários particularmente brilhantes nos negócios e advo
gados agressivos que cobram fortunas. Mas há muitos mais
factores a considerar. É claro que os sistemas instantâneos de
recolha de informação permitem às empresas manterem-se
informadas sobre domínios de produção, distribuição e tran-
sacção cada vez maiores e mais complexos. É também claro
que a informatização apoia e melhora o controlo exercido pe-
A Pele da Cultura 195

la administração ou governo que a adopta. Contudo, é inge


nuamente que pensamos que as empresas ou o governo pro
movem a informatização no interesse da eficiência ou compe
titividade. Na verdade, a maior parte dos executivos das em
presas iniciaram a informatização baseados num pressenti
mento ou para se manterem a par da empresa do lado. Alguns
descobriram mesmo, para seu grande desapontamento, que a
informatização, por via da sua complexidade, atrasou na ver
dade as operações comerciais durante algum tempo.
Portanto, pode ser ao contrário. As psicotecnologias como
as redes de computadores e de vídeo podem estar a usar as
empresas e os governos para proliferar. As psicotecnologias
são máquinas inteligentes desenvolvidas por colectivos inte
ligentes e comercializadas por agressivas forças de vendas.
São inventadas na junção entre a invenção humana, o apoio
institucional e a necessidade básica. Daí que pudéssemos
conceber que a informatização usa as empresas e os governos
como meio ideal para o crescimento e integração.
C A P ÍT U L O T R E Z E

FORMAS DE PENSAR DIGITAIS E ANALÓGICAS

Novas Tendências na Informática

«Nesta idade eléctrica vemo-nos a nós próprios como sendo tra


duzidos cada vez mais em informação, movendo-nos para a ex
tensão tecnológica da consciência.»
— Marshall McLuhan

Foi um computador a revistar


o seu saco no aeroporto?

A bagagem de avião nos aeroportos de Nova Iorque, Mia


mi e Londres é submetida a uma inspecção especialmente
rigorosa antes de ser carregada para o porão. Para além dos
raios X para detectar armas de metal, estes aeroportos
usam redes neurais para procurar explosivos plásticos. O
sistema de detecção bombardeia a bagagem com neutrões
e monitoriza os raios gama que são emitidos em resposta.
A rede neural analisa o sinal e decide se ele veio de um ex
plosivo.70
198 Derrick de Kerckhove

O colaborador da Technology Review, Herb Brody, conti


nua a dizer: «é uma distinção difícil de fazer. Diferentes ele
mentos químicos emitem diferentes frequências de raios ga
ma. Os materiais explosivos são ricos em nitrogênio. Por isso
uma abundância de raios gama na frequência do nitrogênio
levanta suspeitas. Mas algumas substâncias benignas — in
cluindo materiais ricos em proteínas como a lã e o couro —
também contêm muito nitrogênio.»71
A beleza do sistema é que, embora as redes neurais não se
jam cem por cento acertadas, a sua capacidade de «procura-
-e-decide» pode ser calibrada para ter apenas 2 por cento de
hipóteses de um falso alarme. Processando uma média de
700 malas por hora, poupa muito tempo e sofrimento para
passageiros e seguranças.
As redes neurais têm estado em investigação e desenvolvi
mento mais ou menos nos últimos cinco anos e muitas apli
cações estão agora a ser comercializadas. É uma nova gera
ção de inteligência informática, aproximando cada vez mais
a emulação do cérebro humano.

O que é uma rede neural?

De acordo com J. Clarke Smith, director financeiro da


Sears Mortgage Corporation, «perceber como funcionam as
redes neurais é tarefa para o super-homem... qualquer direc
tor financeiro ou mesmo director-geral arrisca-se a ficar para
trás em relação à competição sem pelo menos um conheci
mento rudimentar do que são as redes neurais e como podem
exactamente ser aplicadas»72. As redes neurais artificiais
(RNA) — em contraste com as biológicas no cérebro (RNB)
— são feitas de nós de computadores, chamados «neuronós»,
que estão flexivelmente interligados. Ao contrário dos com
putadores comuns que manipulavam números e os compila-
A Pele da Cultura 199

vam muito depressa, um por um, as RNA processam a infor


mação de uma forma mais semelhante à do cérebro humano,
organizando padrões de conexões pesadas entre os seus neu-
ronós. «Dar peso» a uma ligação é equivalente a dar-lhe mais
importância em relação a outras ligações menos viajadas en
tre variáveis. Maureen Caudill, uma das primeiras consulto
ras em redes neurais, diz que «uma rede neural aprende por
exemplificação; isto é, modifica os pesos das interconexões
entre os neuronós»73. Como Herb Brody explica:

«Cada neuronó recebe muitos valores de entrada, multipli


ca cada um por um factor de “pesagem”, adiciona os pro
dutos destas multiplicações e matematicamente opera so
bre esta soma para obter outro conjunto de valores. Estes
números podem traduzir-se directamente numa resposta —
digamos, a identidade de uma palavra dita ou de um carac
ter escrito. Sistemas mais complexos encaminham as saí
das de um conjunto de neuronós para muitos outros neuro
nós,outra vez por interconexões pesadas. A rede adapta-se
e aprende variando os pesos das ligações.»74

Digamos que o resultado desejado é um veredicto sobre


uma decisão de empréstimo com hipoteca. Cada variável, tais
como as condições, valor de mercado ou localização da pro
priedade, juntamente com os recursos financeiros ou história
financeira do candidato, é dirigida para um neuronó específi
co que computa as entradas por categoria. O trabalho da rede
neural é construir o padrão de interconexões que conduz ao
resultado desejado, neste .caso, a aceitação ou recusa do em
préstimo. A rede falhará à primeira tentativa. Tem de voltar a
verificar as conexões uma e outra vez para descobrir qual a
combinação mais apropriada. É aqui que entra a pesagem.
Antes de conseguir tomar decisões em que se possa confiar, a
rede neural tem de ser exposta a centenas, senão milhares de
200 Derrick de Kerckhove

diferentes configurações de variáveis. Eventualmente, auto-


-ajustando a pesagem para cada novo caso, a rede reúne «ex
periência» suficiente para apresentar recomendações definiti
vas. Esta é a maneira como nós pensamos, não é?

Rede neural será um nome errado?

Ao ler a palavra «cérebro» junto à palavra «computador»,


muitas pessoas sentem uma compreensível irritação. Isto
acontece em parte porque já viram essa associação vezes de
mais; em parte porque a questão se um computador é — ou
um dia será realmente — como um cérebro não foi resolvida
apesar das intermináveis controvérsias. Mas que interessa
provar ou não se um computador pode pensar, ou tem uma
alma, ou qualquer outra definição bem pensada que qualquer
neurofilósofo invente?
Apesar da controvérsia, a metáfora deve ser poderosa, por
que cola. E existem boas razões para manter a comparação.
Herb Brody defende convincentemente a manutenção da re
lação:

1. «O cérebro recebe o seu poder não da velocidade dos


seus comutadores individuais mas da maneira como estão li
gados uns aos outros; é a complexa interconexão destes neu
rônios que dá ao cérebro a capacidade crucial de reconhecer
padrões — e por isso de aprender.»75
2. «Como no cérebro, uma rede neural artificial é construí
da a partir de componentes simples.»
3. «Ao contrário da maior parte dos computadores, uma re
de neural aprende a partir dos seus erros.»76

Mais uma vez, numa tentativa de desenhar a linha entre as


RNA e as RNB, outro investigador propôs que «onde os sis-
A Pele da Cultura 201

temas neurais são paralelos por natureza, os sistemas electró


nicos são geralmcnlc seriais»77. Em menos de três anos, esta
distinção foi invalidada pela invenção dos chips analógicos.

«Chips» analógicos

Os chips analógicos são muito diferentes dos chips digitais


normais. O agora familiar vocabulário de bits e bytes não se
aplica aqui. A maneira de processar os dados nem é «pára-ar-
ranca» nem seqüencial, mas contínua.
Eles guardam a informação numa série contínua de valo
ra res, tipicamente como voltagens num condensador, em vez
^ dos Os e Is significados pelos comutadorés ligado/desligado
• de um transistor. Uma vez que as entradas de uma rede neu-
^ ral são frequentemente valores analógicos — o brilho de um
pixel, por exemplo, ou a intensidade de um sinal sonoro —
os chips analógicos oferecem um atalho rápido, se bem que
menos preciso, para a computação. Os chips de circuito inte
grado das redes neurais estão já disponíveis comercialmen
te.7»
Os chips analógicos são incrivelmente rápidos. «Ao codifi
carem pesos como voltagens num chip, as redes neurais po
dem funcionar muito mais depressa que quando integradas
em software num computador convencional. Os engenheiros
medem a velocidade destes em “conexões” por segundo —
cerca de 10 000 vezes mais rápido do que é possível usando
hardware convencional.»79 Se o impulso tecnológico que
apoiou os computadores convencionais for aplicado com a
mesma força a esta nova geração analógica, é concebível que
novos modelos de processamento de informação sejam imita
dos direclamente a partir do cérebro. O que está a acontecer
agora, cm centros de investigação por todo o mundo, é uma
espécie de diálogo intensificado entre a tecnologia informáti-
202 Derrick de Kerckhove

ca e o cérebro, onde cada um dos lados influencia o cresci


mento e compreensão do outro.

Darwinismo neural

Provavelmente o mais ambicioso projecto de investigação


em modelos neurobiológicos é o do Prêmio Nobel de 1972,
Gerald Edelman, na Rockefeller University. O seu projecto
chama-se Darwin III e envolve uma rede neural complexa,
consistindo em camadas e camadas de interconexões entre
operações sensoriais, motoras e cognitivas. Inclui um olho,
um braço robótico e uma rede neural do tipo cerebral. Edel
man cunhou a expressão «Darwinismo neural» para apoiar a
sua teoria de que os conectores neurais competem, na verda
de, uns com os outros para descobrirem e manterem o seu lu
gar na rede.
Para testar a dinâmica de uma tal teoria, que tem as suas
semelhanças com a «estabilização selectiva das sinapses»,
Edelman construiu o Darwin III de tal forma que as conexões
da rede neural artificial do seu sistema têm de seleccionar as
sub-redes que melhor respondem aos valores de entrada es
pecíficos. «Este conceito de “selecção natural” difere de ou
tras teorias de redes na medida em que assume que o cérebro
é feito de diferentes sub-redes e que, durante a aprendiza
gem, só as que produzem a resposta desejada serão seleccio-
nadas.»80
Existe um efeito de retorno de modelação do reino biológi
co para o artificial e vice-versa. Devolvendo os cumprimen
tos ao cérebro, computadores baseados em redes neurais são
usados no centro de pesquisa Ames da NASA para «visuali
zar a conectividade dos sistemas nervosos reais e simular o
comportamento do sistema nervoso»81. Ben Passarelli acres
centa que «utilizando os seus métodos, os cientistas podem
A Pele da Cultura 203

agora interagir com o microscópico mundo dos neurônios e


testar as suas teorias e idéias sobre os princípios em funcio
namento nos sistemas vivos». No rápido intercâmbio entre os
modelos das redes artificiais e das biológicas, podemos ver a
fronteiras entre tecnologia e psicologia a estreitar-se.

Redes neurais e sistemas periciais

Como foi já explicado, os computadores podem processar


em dois modos, analógico e digital. O tipo de computador
usado para construir «sistemas periciais», presentemente a
mais comum tecnologia de inteligência artificial, é fundado
em operações digitais, que são realizadas bit a bit.%2 Um sis
tema pericial é um conjunto de dados organizado hierarqui
camente governados por rotinas lógicas. É usado comercial
mente para ajudar os médicos a diagnosticar a partir de con
juntos de sistemas ou para ajudar engenheiros a cumprir pla
nos estabelecidos. O outro tipo de tecnologia informática,
preferida e promovida pelas redes neurais, é baseado em ope
rações analógicas realizadas interactivamente; isto é, produ
zindo e assentando novos padrões sobre padrões anteriores,
verificando-os uma e outra e outra vez até se atingir uma so
lução satisfatória.

Processamento baseado em tempo


versus processamento baseado em espaço

Não é simplificar excessivamente afirmar que os modos


analógico e digital se adequam à distinção entre as modalida
des do lado esquerdo e do lado direito do cérebro. Logo, os
sistemas de processamento digital e analógico podem ser
considerados como reflexos dos processos básicos biológicos
204 Derrick cle Kerckliove

ou neurofisiológicos que observámos no Capítulo 1. Neles


podemos reconhecer os diferentes princípios dos hemisférios
esquerdo e direito do cérebro: o processamento digital asso
ciado com o processamento analítico, baseado em tempo, no
hemisfério esquerdo; o analógico com o processamento ho-
lístico, baseado em espaço, no hemisfério direito.83 Nas apli
cações técnicas, os processamentos analógico e digital en
contram a sua melhor expressão nas redes neurais e nos siste
mas periciais. A sua relação com a noção de uma «forma de
pensar» é que o analógico e o digital são dois modos progra
mados básicos de «formas de pensar» influenciados pela in
formatização. A rivalidade entre os dois é suficientemente
forte para engendrar discórdia. Pode mesmo haver momentos
de grande hostilidade entre estas formas de pensar, normal
mente complementares.
Brodt observa que «na comunidade da inteligência artifi
cial, as redes neurais e os sistemas periciais estão de lados
opostos de uma barreira quase ideológica».84 Já assisti a de
bates exaltados entre pessoas que preferiam o MS-DOS da
IBM à tecnologia WIMP* da Apple e vice-versa. Às vezes
as pessoas identificam-se tanto com a sua formação que pu
ra e simplesmente não conseguem ver para além dela. O re
sultado, contudo, é tenderem a tornar-se caricaturas do siste
ma.
As pessoas que se inflamam quando ouvem falar do outro
lado do mundo do processamento são as que confundem a
exclusão mútua com incompatibilidade. Não posso ser eu e a
minha mulher ao mesmo tempo, mas isso não implica que se
jamos incompatíveis. Esta é a questão. Tenho tendência a di
zer analógico e digital em vez de analógico ou digital, porque
embora se excluam mutuamente, nunca deveriam ser julga-

* WIMP é a sigla de Windows Icons Mice and Pointers, isto é, Janelas ícones
Ratos e Apontadores. (TV. T.)
A Pele da Cultura 205

dos incompatíveis. Um pouco de cada um é indispensável


para qualquer processamento complexo de informação. A es
sa luz talvez seja educativo comparar as suas características.

Comparação entre sistemas periciais e redes neurais

Sistemas periciais Redes neurais


lineares não lineares
verticais/hierárquicos laterais/em mosaico
estáticos dinâmicas
digitais analógicas
seriais paralelas
especializados generalistas
modelos computacionais modelos neurobíológicos
memória, processamento
numérico, cognição projecção sensorial
análise seqüencial reconhecimento de padrões
baseados em regras
(precisa de regras) baseadas em exemplos
(encontra regras)
específicos de domínios livre de domínios
precisam de melhorias
freqüentes podem melhorar-se a si próprias
não tolerante aos erros tolerante aos erros
precisam de um
perito humano precisam de uma base de dados
lógica rígida lógica «difusa»
protocolos baseados
cm rotinas competências abertas

É preciso trabalhar melhor este último ponto. Por causa


dos padrões de aprendizagem flexíveis das redes neurais,
quer biológicas quer tecnológicas, é possível treiná-las para
mais do que um tipo de actividade. Por outras palavras, os
206 Derrick de Kerckhove

computadores baseados em redes neurais podem adquirir


competências acumuláveis com o tipo de flexibilidade neces
sária para se relacionarem com diferentes ocorrências. Isto é
impossível para os computadores digitais normais. Mais ain
da, existem alguns métodos disponíveis para modificar a res
posta das redes neurais. Cada um confere um conjunto dife
rente de competências ao sistema.85

Aplicações

Há uns anos surgiu um escândalo bastante divertido envol


vendo pretensões exageradas em relação a sensores electro-
-químicos numa venda abortada de «aviões com faro», su
postamente capazes de detectar reservas de petróleo, de água,
níveis de poluição e silos nucleares. Na verdade descobriu-se
que nenhuma das pretensões podia ser provada e a venda a
um grande governo europeu foi cancelada, para grande diver
timento dos media. Na altura, as pretensões pareciam difíceis
de engolir, mas os numerosos feitos espantosos realizados
pelas actuais redes neurais justificam a fé dos executivos au
dazes que tentam vender a tecnologia sensorial de hoje.
Com mais de cem aplicações a serem desenvolvidas em
menos de cinco anos, algumas das quais referidas abaixo, es
tamos certamente à beira de mais uma mudança cultural. Há
mesmo uma experiência a decorrer em Stanford onde uma
rede neural está a aprender a conduzir uma empilhadora si
mulada numa pista cada vez mais complicada, tomando as
suas próprias decisões no percurso. As principais categorias
que encontrei para agrupar alguns dos mais impressionantes
feitos das redes neurais tecnológicas são:•

• modos sensoriais («olhos e ouvidos»)


• reconhecimento de caracteres: ordenando códigos postais
A Pele da Cultura 207

manuscritos, autorizando assinaturas, melhorando o Reco


nhecimento Óptico de Caracteres do Kanji japonês
• reconhecimento da fala
• armas inteligentes (por exemplo, mísseis teleguiados que
comparam as suas rotas de voo com um mapa electrónico
do território)
• predição de tendências, diagnósticos e prognósticos (por
exemplo, descobrir rapidamente o uso fraudulento de car
tões de crédito através da análise de padrões de compra
subitamente diferentes)
• análise química e molecular
• tarefas de comparação, escolha e ordenamento (por exem
plo, ajudando robots a escolher a fruta madura, deixando
de lado a verde, ou a procurar falhas nos motores ouvindo
sons estranhos)
• grandes melhoramentos na tecnologia de radar e sonar (por
exemplo, intuindo formações rochosas em campos de pe
tróleo ou melhorando os sinais de sonar devolvidos pelo
fundo dos oceanos)
• cancelamento de ruído em sistemas de telecomunicações
• operações bancárias (análise de riscos em decisões de em
préstimos e hipotecas)
• tradução automatizada

Faro para o negócio

As extensões das modalidades sensoriais são particular


mente impressionantes não só porque as redes neurais dão
um novo tipo de intencionalidade aos dispositivos audiovi
suais, mas especialmente porque podem introduzir outra ex
tensão tecnológica dos nossos sentidos adicionando o cheiro
e, possivelmente, o gosto. John Naisbitt relata que:
208 Derrick cie Kerckliove

«Isao Karube, do Instituto de Tecnologia de Tóquio, de


senvolveu um “chip de frescura”, um dispositivo constituí
do apenas por proteínas produzidas artificialmente e polí
meros orgânicos que serão embutidos nas caixas de peixe
dos supermercados. Quando o peixe começa a apodrecer
produz químicos aromáticos que o chip de frescura detecta
muito antes de se tornarem aparentes para o nariz normal.
Quando uma tira na caixa muda de cor, os clientes (e a ge
rência) sabem que os dias daquele peixe estão contados.»86

Naisbilt acrescenta que os chips de frescura para outras co


midas virão a seguir e que um nariz artificial deverá surgir
«ate ao fim da década». Se tivesse prestado atenção às redes
neurais, Naisbitt talvez pudesse ser levado a concordar que o
nariz artificial já chegou na forma do controlo de bagagem
assistido por computador, ou nas várias redes neurais usadas
para verificações localizadas por engenheiros químicos. A
questão é, contudo, que as redes neurais são tão versáteis e
aplicáveis a tantas funções multissensoriais que são mais fa
cilmente identificadas com o «senso comum» do que com
um ou outro sentido em particular. Contudo, graças às redes
neurais, as nossas extensões visuais, tácteis, auditivas e ol-
factivas já não são passivas; estão a tornar-se próteses de pro
cura em breve dotadas de intenções e poderes de decisão. Is
to traduz-se obviamente numa melhoria da nossa psicologia
normal.

Sabedoria electrónica

Sociólogos críticos da televisão, de jogos de vídeo e com


putadores queixam-se frequentemente da «info-saciedade»,
com isso querendo significar informação de mais em tempo
de menos. As pessoas que se queixam da overdose de infor-
A Pele cia Cultura 209

inação são frequentemente especialistas dominados pela in


formação impressa, apanhados desprevenidos pelo fluxo de
informação electrónica. A maneira de pensar alfabética fun
ciona eotno um computador digital: só pode tratar um assun
to de cada vez num meio de cada vez. Já ouvi vítimas deste
constrangimento tecnológico queixarem-se que se sentiam
como computadores terrivelmente lentos.
O problema é que as pessoas subestimam completamente
os seus cérebros. Isto acontece porque fazem a comparação
errada com os computadores — ou com o tipo errado de
computadores. Pensam cpie os nossos cérebros não são sufi
cientemente rápidos. E isso é, evidentemente, verdade, pelo
menos em comparação com os computadores digitais. Mas
os nossos cérebros não precisam de ser rápidos, basta serem
espertos, isto é, muito bem montados e ligados. Na realidade,
as nossas capacidades naturais de processamento de informa
ção são muito maiores do que admitimos. Como McLultan
observou, «Overdoses de informação levam ao reconheci
mento de padrões». É precisamente para fazer isto que as re
des neurais estão preparadas e desenhadas. Mais cedo ou
mais tarde, serão aplicadas à reunião e organização de infor
mação verbal. Um dia poderão mesmo ser ensinadas a ler o
nosso jornal por nós e escolher o que precisamos de saber, ou
seleccionar os programas de televisão que não podemos per
der. Ainda havemos de ver o dia das «couch potatoes»* neu
rais?

* Couch potato ou «balata de sofá», espectador de televisão completamente


passivo. (TV. T.)
CAPÍTULO CATORZE

A PELE DA CULTURA

Concebendo Novas Tecnologias

De acordo com a ideia geral de que as tecnologias geram


campos tecnoculturais, é interessante examinar se estas cor
rentes também afectam o design industrial. Considerado co
mo uma das mais visíveis imagens que ficam da tecnologia,
o design dá-nos um meio de identificar padrões no labirinto
da mudança cultural. Os tipos de produção podem também
oferecer-nos uma visão profunda sobre os preconceitos e
vícios culturais. O melhor exemplo é o Japão, não só por
causa do lugar especial do país na economia mundial, mas
também porque poucas outras culturas revelam nos seus
produtos indicações tão claras sobre o que condiciona os
seus sentidos. A medida que as economias se globalizam,
tornar-se-á essencial saber analisar estas coisas — coisas
que Edward Hall tem explorado desde que escreveu A Lin
guagem Silenciosa, um estudo inovador sobre relatividade
cultural.87
212 Derrick de Kerckhove

Design: apele da cultura

Parece que o design faz as relações públicas da tecnologia,


embelezando os seus produtos e apurando a sua imagem no
mercado. O design particular que envolve a tecnologia, por
exemplo o nariz em cone e forma elegantemente alongada do
comboio de alta velocidade francês, o TGV, representa-a e
promove-a, quer directa quer subliminarmente. Contudo, o
design é mais do que uma ideia a posteriori, colada à produ
ção industrial para facilitar o marketing. Existem claramente
mais questões no design além de servir para conter e seduzir.
Num sentido mais amplo, o design desempenha um papel
metafórico, traduzindo benefícios funcionais em modalida
des cognitivas e sensoriais. O design encontra a sua forma e
o seu lugar como uma espécie de som harmônico, um eco da
tecnologia. O design frequentemente faz-se eco do carácter
específico da tecnologia e corresponde ao seu impulso bási
co. Sendo a forma exterior visível, audível ou texturada dos
artefactos culturais, o design emerge como aquilo a que po
deríamos chamar «a pele da cultura». Alguns exemplos de
sons harmônicos tecnológicos no design são:•

• O crescente aerodinamismo dos meios de transporte, intro


duzido por Raymond Loewy, que se estendeu a toda uma
gama de produtos, incluindo frigoríficos, torradeiras e, é
claro, o clássico design da garrafa de Coca-Cola.
• Os estilos musicais do jazz, rock e disco que seguiram, res
pectivamente, a rádio, a televisão e os computadores, para
já não falar da ligação directa ao campo tecnomagnético
via Muzak.
• O funcionalismo elegante de Dieter Rams para a linha
BrAun que influenciou, não só as práticas de design de ou
tras nações, mas tipificou os produtos BrAun como a linha
alemã por excelência.
A Pele cia Cultura 213

• A nouvelle cuisine francesa que estendeu o efeito Bauhaus


à textura e frescura da comida.

Como, em qualquer período dado, o design afecta mais do


que um só objecto ou linha de produtos, acaba por trazer à
superfície o que poderíamos chamar os «harmônicos» da cul
tura. Cada tecnologia produz tons harmônicos no som, saber,
cheiro, cor e forma. O design, é claro, pode exprimir-se a
muitos níveis e em muitos modos metafóricos. Alguns exem
plos disso são:

• Os modos sensoriais (cores, formas, gostos, texturas): por


exemplo, a resposta dos impressionistas à fotografia, o psi-
cadelismo televisivo ou a pretensão de rejeitar de grelhas
formais no design pós-moderno de materiais e texturas;
• Os modos cognitivos: o hula-hoop foi uma resposta cogni
tiva ao abraço matricial da televisão, enquanto o cubo má
gico de Rubik foi a imagem da expressão das operações
cognitivas rotativas nos primórdios dos CAD-CAM;
• O modo organizacional: um efeito fascinante da televisão
sobre os modos de design organizacional foi identificado
por William S. Kowinski: «O centro comercial é uma ex
periência visual. É televisão em que se pode passear lá
dentro. Olhar para as outras pessoas é o que se faz num
centro comercial, quando não se está à procura de qualquer
coisa para comprar. As imagens que vêem são as da televi
são; e a maneira como vêem e aceitam estas imagens está
já condicionada pela televisão que viram.»88

O desenvolvimento e os padrões dos campos tecnocultu-


rais dependem destes harmônicos; as tecnologias são como
instrumentos musicais tocados por toda uma cultura durante
um período de tempo. Os tons harmônicos são captados, am
plificados e distribuídos pela indústria.
214 Derrick de Kerckhove

Os harmônicos da tecnologia no design

O design dá unidade a um período. As antiguidades são


datadas e coleccionadas com base na escola de design a que
pertencem. Similarmente, os artefactos modernos podem ser
relacionados com o seu design. O psicadelismo e Andy
Warhol caracterizam os anos 60. O estilo, formas e cores dos
McDonald’s e o aspecto largueirão dos marretas da Rua Sé
samo pertencem à mesma categoria — como artefactos da re
cente cultura de massas da televisão. Existe frequentemente
um boneco de banda desenhada de culto partilhado por pro
dutos de supermercado, um programa de televisão para crian
ças e anúncios de gasolina. Por outro lado, um estilo discreto
de alta tecnologia substituiu a arte estouvada durante os anos
80. Este é seguramente um efeito secundário psicológico do
campo tecnocultural informatizado. Afinal de contas, a ver
dadeira «alta tecnologia» raramente sai do laboratório ou da
base militar. Só a presença ubíqua de microchips nos mais,
comuns electrodomésticos poderia ter inspirado o nosso de
sejo de estilos e modas high-tech.
Aparece mesmo um design não intencional entre motivos
e formas aleatórias. O design não planeado reflecte de forma
bastante espontânea as origens culturais dos seus produtos.
É interessante, por exemplo, seguir as influências multicul
turais nos arredores das cidades americanas e canadianas.
Conseguimos sempre encontrar o edifício chinês mesmo an
tes de encontrar o primeiro ideograma, observando apenas
que a proporção entre as linhas horizontais e as linhas verti
cais nas janelas não é o nosso standard ocidental de 3 por 4,
mas 4 por 5.
Mas o design, como a palavra parece claramente implicar,
é planeado. O design, tal como eu o compreendo, é uma mo
dulação da relação entre o corpo humano e o ambiente na
medida em que ela é modificada pela tecnologia. A tecnolo-
A Pele da Cultura 215

gia vem do corpo humano e o design dá-lhe sentido. A única


diferença séria entre corpo e mente, na minha opinião, é que
a mente é consciente. Em todos os outros aspectos, corpo e
mente estão tão misturados que não faz sentido separá-los,
sequer em teoria. Mesmo assim, em certa medida, a mente
tem de se tornar consciente de todas as mudanças na ecolo
gia total do eu. Uma vez que isto nem sempre é fácil, é aqui
que entra o design. Ao observar os valores específicos do de
signi, a mente aprende a interpretar as posturas dos nossos
corpos prolongados. Quer estejamos a olhar para o nariz de
um TGV ou para os pequenos mas poderosos auscultadores
de um Walkman Sony, é o design que traz os seus efeitos
sensoriais e funcionais à nossa atenção. É o design que nos
ajuda a integrar a velocidade e poder do comboio-bala no
nosso sistema muscular. É o design que faz o nosso sistema
nervoso aceitar a íntima, «ciborguiana», união com os aus
cultadores.

Como o «design» responde à pressão tecnológica

O design pode reflectir agressão criativa e frequentemente


gera agressão nos consumidores antes deles se aclimatarem.
Cada novo gênero musical levanta o mesmo nível de hostili
dade daqueles que estavam ligados ao anterior. Os novos es
tilos são denegridos antes de serem adoptados pelas mesmas
pessoas. Na verdade, longe de condenar os gostos e formas
que eventualmente saturaram uma cultura — a cultura pop
nos anos 70 ou o pós-modernismo nos anos 80 — os críticos
deveriam reconhecer que aí estiveram os designs mais efi
cientes e de maior sucesso, visto terem conseguido ganhar
uma aceitação de massa.
216 Derrick cie Kerckhove

«Quando estamos virados do avesso»

Como extensões dos nossos seres interiores, as tecnologias


electrónicas produzem objectos que emulam os nossos am
bientes interiores. Isto tem um impacte interessante sobre o
design. No auge da era da televisão, a tendência da psicolo
gia pessoal era para «deixar tudo sair». Depois de décadas de
repressão no pós-guerra, expressa nas linhas finas da arqui-
tectura e design modernistas, as pessoas começavam a recu
perar as suas libidos — queriam abrir-se e mostrar tudo. Um
bom exemplo de como isto foi traduzido, mesmo no conser
vador mundo da arquitectura, foi o espantoso Centro Pompi
dou em Paris. Embora pouco atraente para alguns, é a mais
fascinante sátira do estilo modernista vidro-e-aço jamais fei
ta. Todas as características que normalmente estão dentro de
um edifício estão do lado de fora, canalização, fios eléctri
cos, aquecimento, condutas, tudo.
Nos finais dos anos 60 e princípio dos 70, escultores patro
cinados por empresas construíam enormes estruturas de aço
enferrujado no exterior de fábricas muito limpas e elegantes
na sua arquitectura. De uma forma acidamenle humorística,
estes artistas indicavam o final dos dias da era mecânica. Pe
lo menos, era o que pensavam. Na verdade, reagiam à televi
são, que estava a pegar em todas as nossas funções interiores
e a vomitá-las cá para fora. Mas hoje, as coisas mudaram ou
tra vez: a eficácia silenciosa da comunicação informatizada
instantânea está a tornar o velho hardware em software e a
enterrar as funções tão lá dentro que mal se vêem já.

Interiorização

Após o primeiro fluxo de fascinação com uma nova tecno


logia, especialmente a que acabou de descer do mercado pro-
A Pele da Cultura 217

fissional para o do consumo, a interiorização torna-se nuiito


evidente. E verdade que algumas pessoas ainda mostram or
gulhosamente a sua mobília equipada ou os botões no radio-
gravador ou o telefone celular do carro. Este pode ser um
passo necessário de exteriorização que cada tecnologia tem
de atravessar para penetrar numa cultura, um processo mais
demorado para umas tecnologias do que para outras. Os
computadores, contudo, estão já quase a desaparecer na mo
bília. Os designers japoneses estão a usar mais e mais fun
ções informatizadas internas para explorar o «não se dá por
isso»: aço geométrico e caixas de plástico respondendo ao
gesto e comandos de proximidade sem sequer um botão de
ligar-desligar.

Explosão

O mundo da arte é muito sensível aos estilhaços de cultu


ras que explodiram. Por exemplo, o desenvolvimento do telé
grafo e do telefone, que contraíram espaço e tempo, rebenta
ram com a paz dos tempos coloniais. A arte acadêmica e as
mobílias burguesas foram feitas em pedaços nas mentes dos
artistas e escritores que inspiraram o futurismo em Itália e,
mais tarde, Dada e o surrealismo em França. Dada anunciou
a explosão denegrindo as convenções e o surrealismo apa
nhou os bocados e pô-los numa nova e divertidamente irra
cional ordem.
A cópia da Madonna de Rafael feita por Salvador Dali é
um exemplo maravilhosamente estrutural disto, pintada co
mo se tivesse sido sujeita a uma explosão interior. O poder
deste trabalho vem do contraste violento entre a suavidade da
imagem de Rafael e a agudeza dos estilhaços. Ao mesmo
tempo, o quadro tem um lado místico, que nos dá segurança,
como se o formidável sentido de humor do artista viesse da
Derrick de Kerckhove

absoluta confiança numa ordem fundamental das coisas. Es


tas paródias de culturas em desordem destruíram a bafienta
ordem burguesa dos realistas do século XIX. O aparecimento
da televisão anunciou o teatro do absurdo, que a nossa psico
logia racionalista e a nossa forma de pensar perspectivista já
não estavam sintonizadas com as realidades do nosso novo
campo tecnocultural.

Implosão

Os computadores, ao acelerarem o ritmo da nossa cultura


televisiva, geraram a implosão pós-modernista. O típico edi
fício pós-moderno tem referências das eras e estilos anterio
res. Pode parecer uma mistura confusa de aspectos incompa
tíveis, como se tivesse sido submetido a uma rápida implosão
depois da explosão dos anos sessenta e setenta. Ou como se
fragmentos de culturas anteriores tivessem subitamente ater
rado para decorar fachadas e mobília. Quando acontece este
tipo de explosão seguido pela recuperação, a paródia, o hu
mor e a ironia dominam.
Uma afirmação arquitectónica divertida deste tipo pode ser
encontrada numa das lojas Steinberg, no Arizona. Escarnece
das rígidas e limpas formas modernistas, fazendo literalmen
te um dos cantos inferiores do edifício, separar-se para dar
lugar à entrada principal. Podem mesmo ver-se as arestas
dentadas no ponto de separação. Os estilo pós-modernista é
um exemplo de humor, sendo total e elegantemente integrado
no solene negócio da arquitectura. A liberdade de estilo do
pós-modernismo expressa uma necessidade humana de recu
perar a escala num ambiente crescentemente tecnológico. Por
contraste, o modernismo surgiu de um mundo em que as pes
soas não se sentiam ameaçadas pela tecnologia. Mies Van
Der Rohe andava a espalhar grandes monólitos verticais em
A Pele da Cultura 219

zonas urbanas horizontais, trabalhando ainda à escala impos


ta por Haussmann em Paris do século XIX.

Design assistido por computador

Os sistemas informáticos permitem o acesso instantâneo a


grandes quantidade de informação sobre o design e artefactos
de culturas anteriores. Como arquitectos, podemos chamar ao
ecrã praticamente todos os períodos ou estilos em grande
pormenor. Usando um programa profissional de simulação
3D, podemos vê-lo evoluir ou vê-lo de qualquer ângulo.
Através do design assistido por computador, simulações ins
tantâneas mostram como um edifício seria com mudanças or
namentais ou estruturais. Este tipo de poder encoraja os ar
quitectos e designers a explorar eras anteriores e reintegrá-
-las numa espécie de presente prolongado. A memória colec-
tiva tecnológica fornece os meios para uma exploração inter
minável em vários níveis de tempo. Uma boa definição de
tempo acelerado por computador surge quando o passado se
integra num imenso presente prolongado.

O encontro dos campos tecnoculturais com a


cultura japonesa

Quando o comodoro Perry deu uma locomotiva a vapor ao


shogun Ieyasu em 1854 para celebrar a abertura oficial do co
mércio entre os Estados Unidos e o Japão, o shogun mandou
o seu artista da corte pintá-lo, já que não podia ir vê-la em
pessoa. O artista japonês achou tão difícil reproduzir o novo
objecto que acrescentou uma nota para o shogun. «Receio ter
cometido demasiados erros neste desenho.»89 Temos tendên
cia para achar curioso ou divertido este tipo de ocorrências no
220 Derrick de Kerckliove

cruzamento de culturas, mas isso não deve obscurecer a reali


dade de que, quando uma nova tecnologia é introduzida, lan
ça uma guerra não declarada à cultura existente.
Para uma cultura cujas portas tinham estado fechadas a in
fluências exteriores durante vários séculos, a Revolução In
dustrial chegou como uma força agressiva c centralizadora.
«O comboio foi febrilmente construído para ligar todas as
partes do Japão, não só como símbolo do progresso e unifica-
dor da economia, mas como parte da militarização do Ja
pão.»90 Ao contrário dos industriais do Ocidente, os japone
ses favoreceram o caminho de ferro em relação às estradas.
Fosco Morani explica que, durante muito tempo, o povo ja
ponês resistiu a comprar carros particulares. «Um carro im
plica individualismo, independência, decisões súbitas, tudo
coisas que vão contra a mentalidade japonesa. Num país com
uma textura social tão unida, a iniciativa individual é sobre
tudo suspeita.»91 Hoje em dia, contudo, os carros são uma
das grandes exportações e congestionam as cidades japone
sas. Um inquérito cm Osaca em 1964 notava que tinham
acontecido 4254 engarrafamentos de trânsito de pelo menos
meia milha de comprimento e demorando mais de trinta mi
nutos, resultando em 5508 horas de trânsito parado.92

A mudança de pele como resposta à


aceleração tecnológica

Num país como o Japão, invadido por sucessivas ondas de


campos tecnoculturais, é preciso um povo particularmente do
tado para manter o equilíbrio entre tradição e inovação. Este
equilíbrio está praticamente perdido em muitos outros países
que foram sujeitos à aceleração tecnológica. Os japoneses
atravessaram os traumas da industrialização em massa de mo
do muito semelhante aos países ocidentais, só que muito mais
A Pele cia Cultura 221

depressa. A velocidade de adaptação nunca se atrasou. Ainda


agora está a acelerar, com a mudança de uma indústria mecâ
nica baseada no hardware para a economia electrónica do sof
tware. Isto quer dizer que os japoneses tiveram de aprender
em «formação contínua» de forma a integrar o novo no velho.
Quando submetidos a mudanças sociais de grande escala,
as culturas minoritárias, em função da força da sua identida
de, responderão com padrões emergentes de assimilação, inte
gração, alienação ou agressão. Depois de terem tido um for
midável impulso de agressividade na Segunda Guerra Mun
dial, os japoneses encontraram uma nova resposta: mudar de
pele. Ao mudar de pele, muda-se a aparência de uma cultura
mas não o seu conteúdo. E na superfície da sua cultura e não
no seu âmago que o drama japonês de adaptação acontece.
O design popular pode fornecer pistas quanto à forma co
mo uma cultura reage ao massacre da tecnologia. Godzilla,
uma invenção tipicamente japonesa, podia ser uma metáfora
boa, se bem que inconsciente, do efeito do automóvel na ci
dade japonesa. Godzilla é o engarrafamento por excelência:
antediluviano (obsoleto), pesado (pouco subtil), estúpido
(não pensa), lento (paralisia urbana em hora de ponta) e mal
cheiroso (vomitando monóxido de carbono). Existe, eviden
temente, uma fusão de mitos nesta nova encarnação do velho
tema chinês do dragão. Sc a especial adoração dos japoneses
por filmes de Godzilla é a resposta da impotência do Japão
perante a invasão da indústria, então os Transformers de
monstram uma segunda fase, em que o «inimigo» é conquis
tado pelos melhores aspectos do carácter japonês.
O sociólogo canadiano Mark Segai lembra-nos que os
Transformers que invadiram o mercado de brinquedos ameri
cano nasceram na verdade em solo japonês.93 Segai faz notar
que tal como o folclore popular americano, o teatro de
variedades japonês está obcecado com o medo da invasão
por forças exteriores.94
222 Derrick de Kerckhove

A fantasia da perseguição por extraterrestres, apesar de não


haver provas concretas para a apoiar, é, claramente, uma espé
cie de metáfora traumática. Pode ser o efeito psicológico das
tecnologias a atacar a cultura. Mas devemos observar que a va
riedade japonesa é curiosamente mais particular que o normal
«bons contra maus». Os transformers são criaturas do design,
simultaneamente orgânicas e mecânicas. Que melhor aproxi
mação a um ajustamento desconfortável da psicologia japone
sa à integração ciborg do homem e da máquina? Por compara
ção, os ocidentais foram violentados pelas suas máquinas qua
se sem dar conta. Em essência, o equivalente ocidental do
transformer japonês são os andróides de Bladerunner, mecani
zação a ganhar forma orgânica; os transformers retratam seres
orgânicos que se tomam mecânicos em autodefesa.
Comentando o texto de Segai, diz Stephen Kline:

A tradição da ficção científica japonesa tornou-se extrema


mente popular porque dá vida no ecrã a um número de tra
ços culturais japoneses essenciais, entre os quais estão a
invasão e conquista por extraterrestres, a transformação
em componentes, a estrutura social hierárquica, a dedica
ção altruísta ao grupo, o estoicismo em face do perigo,
uma necessidade de agir no limite das nossas capacidades
pessoais e um modelo japonês de interdependência e toma
da de decisões em grupo... no mercado americano de brin
quedos os robots e autobots indicam outras relações da so
ciedade com a tecnologia, atrás das quais está uma mensa
gem sobre a sua relação com a maneira de ser ocidental.95

Contudo, a estratégia de transformação adoptada pelos japo


neses é o oposto da mutação, porque os elementos centrais da
cultura não são afectados. É uma mudança de pele. Os japone
ses vestem a tecnologia como um novo fato. Em vez de se dei
xarem atropelar (a síndroma Godzilla), os japoneses acham
A Pele da Cultura 223

mais simples usar os seus carros, vesti-los. Os transformers fo


ram uma espécie de furúnculo na pele da sua mudança cultural.

Transformers como a imagem popular


da «mecatrónica»

Pelo design único dos seus brinquedos e das narrativas a


eles associadas, os japoneses criaram uma resposta mitológica
que pode facilmente ser generalizada na sua cultura. Kline co
menta: «No fim de cada história, quando os invasores têm
mais uma vez de ser derrotados, os componentes da equipa de
combate voltam a juntar-se num robot guerreiro gigante que
combate contra a máquina alienígena. A batalha é vencida pela
cooperação e dedicação da equipa contra o esforço individua
lista mecânico.»96 Assim, a mais interessante leitura da metá
fora dos transformers revela-os como totens simbólicos de
uma nova raça de empresários japoneses, os novos samurais,
declarando a guerra por meios industriais em vez de militares.,
Se a integração modular das várias partes de um só mega-
robot nos diz alguma coisa sobre o carácter japonês, o casa
mento das tecnologias mecânicas e electrónicas no próprio
Transformer conta a história da indústria japonesa. Na ver
dade, as arestas duras e aguçadas e as linhas complicadas dos
brinquedos parecem trair o facto da indústria japonesa não
ter absorvido completamente nem ultrapassado a sua herança
mecânica. Há algo de trapalhão nos transformers, como uma
encarnação incompleta, desconfortável. O desenvolvimento
dos transformers data do tempo em que a indústria foi borda
fora em favor do que os japoneses chamam mecatrónica.

Agora ultrapassada, a mecatrónica era um desses feitos


tecnológicos que vão além da simples inovação. Como o
nome implica, fundia idéias do mundo oleoso da maquina-
224 Derrick tie Kerckhove

ria com noções retiradas da electrónica. Os produtos que


oferecia iam do relógio digital barato à moderna máquina-
-ferramenta controlada numericamente.97

Contudo, o impacte da electrónica sobre a cultura no Japão


pode ter sido bem diferente do impacte da mecanização. Po
de, em breve, ter um efeito curativo sobre as feridas culturais
e sociais abertas pela industrialização. Na verdade, existe a
possibilidade de os japoneses terem desenvolvido uma maior
familiaridade com as tecnologias electrónicas por a electrici
dade estar mais próxima da sua psicologia cultural. A electri
cidade permite-nos modular os intervalos de espaço, algo que
os japoneses aprendem a fazer desde o nascimento pela sim
ples observação das suas tradições. Por outro lado, o que os
japoneses têm possibilidade de perceber como uma oportuni
dade para reafirmar a sua identidade, poderá um dia ser enca
rado pelos ocidentais como uma ameaça, precisamente por
estes últimos terem desenvolvido um sentido do espaço com
pletamente diferente.

O mito do espaço «neutro»

A nossa arquitectura desde a Renascença mostra com niti


dez que tendemos a considerar o espaço como algo que pode
ser dividido claramente entre propriedade pública e privada.
O espaço, em si e para si, costumava ser considerado neutro
no modo de pensar perspectivista ocidental. A noção ociden
tal tradicional de ambiente é a de que se trata de um palco va
zio para o desenvolvimento das actividades do homem e dos
elementos. Até ao princípio do século XX, os ocidentais assu
miram que o ar era vazio e de modo algum sagrado. Sob a
protecção das suas peles privadas individuais, tendiam a sen-
tir-se imunes às conseqüências das suas próprias invenções.
A Pele cia Cultura 225

Mas o espaço de hoje está invadido por redes de comuni


cações electrónicas, moleculares e virais. O ar já não está va
zio. É por isso que os ocidentais estão a ficar tão conscien
ciosos em relação à poluição e ao ambiente. ‘Poluição’ vem
do latim pulvis que quer dizer pó. Na verdade, a maior parte
das pessoas imagina a poluição como feita de finas partículas
de substâncias estranhas não identificadas. Contudo, a polui
ção é tanto uma realidade física como psicológica. Ouvimos
falar mais sobre a poluição industrial do que sobre a electró
nica. Isto é porque emergimos para uma nova era em que
tendemos a considerar a anterior como suja. Agora, o pó re
sulta do desgaste de diferentes materiais, tecnologias ou, ao
nível psicológico, de ideologias. Como conseqüência, senti
mo-nos ameaçados a muitos níveis. A nossa' saúde, privaci
dade e autonomia como indivíduos estão ameaçadas por
agentes químicos, moleculares, físicos, industriais e psicoló
gicos. O mito da poluição é a metáfora da descoberta pelo
Ocidente que o espaço está vivo e por isso pode ser morto.

Ma

Os japoneses, por outro lado, nunca usaram a noção oci


dental de um espaço neutro. Na cultura tradicional japonesa,
o espaço é um fluxo contínuo, vivo de interacções e governa
do por um sentido preciso de tempo e de ritmo. O nome para
isso é ma. Ma é a palavra japonesa para espaço ou «espaço-
-tempo», mas não corresponde à nossa ideia de espaço. A
principal diferença é que quando dizemos espaço estamos a
dizer área ou lugares vazios. Para os japoneses, ma inclui a
rede complexa de relações entre pessoas e objectos. Michel
Random, um especialista francês sobre a sociedade japonesa,
afirma:
226 Derrick de Kerckhove

No Japão, tudo dependo do ma: as artes marciais como a


arquitectura, música ou a simples arte de viver. As estéti
cas, proporções, desenho de jardins, tudo pertence a redes
de significados que estão relacionadas umas com as outras
através do ma. Mesmo os empresários no Japão obedecem
às leis do ma quando se aproximam uns dos outros; a ideia
é intuir como o outro julga as coisas. O ma ditará mesmo
as hierarquias das escolhas, as prioridades nos investimen
tos, o tempo certo e ritmo apropriado na organização da
empresa, e moldará a exacta percepção das pessoas e das
situações. Numa palavra, o ma é percebido como estando
por trás de tudo, como um acorde musical indefinível, um
sentido de intervalo preciso entre a mais forte e a mais fina
ressonância.98

Os japoneses têm uma consciência aguda do intervalo. O


design japonês revela uma consciência do espaço entre as
coisas, mais do que da fixação do objecto, por exemplo, ar
ranjos florais, jardinagem ou interacções humanas hierárqui
cas. Não é portanto surpreendente que as indústrias japonesas
mostrem hoje um tão grande interesse no design. De uma
certa forma, a electricidade e as ondas hertzianas podem dar
mos uma muito melhor ideia de como os japoneses percebem
o espaço do que da nossa própria ideia de espaço.

«Ma» psicotecnológico

As nossas mais recentes tecnologias electrónicas convidam


o Oriente e o Ocidente a conhecerem-se de uma forma total
mente nova: todos se relacionarão a níveis diferentes numa
espécie de ma electrónico. A medida que desenvolvemos in
terfaces cada vez mais estreitas entre a nossa mente e as nos
sas tecnologias, podemos esperar em breve «pensar» em li-
A Pele da Cultura 227

nha. A exteriorização destas funções pode provocar uma si


tuação em que as máquinas também se tornam cada vez mais
autônomas. Mas as interacções homem-máquina enchem
também o chamado mundo objectivo com redes espessas de
actividades. Este é o ma psicotecnológico, um mundo de in
tervalos electrónicos em constante actividade e reverberação.
O design evoluirá rapidamente de um estádio sobretudo reac-
tivo para se tornar pró-activo. As novas tecnologias devem
tornar-se objecto do design, em vez de estarem na origem do
design. O design encontrará campos mais recompensadores
na exploração e criação de interfaces do que na produção de
objectos.
Esta é uma área em que os designers e engenheiros japo
neses deveriam ser os melhores. A fonte de inspiração para
as modalidades do design, no futuro próximo, não se limita
rão às tradicionais noções de beleza e eficiência, mas inclui
rão a recuperação da nossa antiquíssima necessidade de sabe
doria. Isto acontece por causa do próprio excesso dos nossos
poderes. Quando se pode fazer tudo e mais alguma coisa, o
passo seguinte tem de ser descobrir quem realmente somos e
o que realmente queremos. O presente está demasiado atare
fado para nos dar informação sobre isso. Talvez tenhamos de
substituir em breve a mitologia do progresso pelo progresso
por um regresso às idades douradas das culturas mundiais.
Nesse sentido, o conceito japonês de ma tem muito para
oferecer ao Japão moderno e ao mundo moderno em geral.
Ma é a quintessência de um certo aspecto da civilização hu
mana global. Ao compreender e especialmente ao perceber o
ma, designers e planejadores poderiam começar a recuperar
as dimensões e proporções humanas agora perdidas na inva
são tecnológica. O papel principal do artista ou do designer
no contexto de um poder e acesso ilimitados é sondar a histó
ria natural e social — extrair linhas mestras das mais bem su
cedidas experiências vividas pela humanidade.
C A P ÍT U L O Q U IN Z E

A R T E V U L C Â N IC A

Em épocas de desassossego e de de tumultos sociais a arte


lida com os valores morais. Em tempos mais calmos pode
dar-se ao luxo de contribuir para a ornamentação e para a or
dem. Em tempo de violentas convulsões psíquicas, como a
nossa, a arte não é um escape, não é uma saída da confusão e
da incerteza, mas uma entrada, um postigo para espreitar pa
ra a massa da inteligência colectiva, o magma da realidade
em construção. Procuramos ansiosamente o sentido. Os nos
sos valores foram abalados por uma rápida sucessão de ban
carrotas ideológicas: comunismo, nazismo, existencialismo,
marxismo, socialismo, capitalismo, consumismo, freudismo,
novo esquerdismo, thatcherismo, reaganisino, movimentos
hippy e yuppy. As imagens do homem e da mulher, as nossas
próprias imagens, os mitos da televisão, a sede de equilíbrio
e ordem — todas estas noções flutuam num magma de im
pulsos, desejos, frustrações, esperanças, desapontamentos e
promessas incumpridas. Por que é que, numa época de tanto
progresso tecnológico, estamos numa tal confusão psicológi
ca? Por que é que ainda somos incapazes de partilhar os nos
sos recursos em tempos de tanta abundância mundial?
230 Derrick de Kerckhove

É talvez útil reorientar a relação entre a arte, a cultura e a


tecnologia, uma vez que grande parte das nossas vidas de
pende da tecnologia. A minha metáfora vulcânica baseia-se
na ideia de Jünger de que a arte, como produto do incons
ciente colectivo, irrompe à superfície da consciência quando
a crosta da realidade é muito fraca para suportar o status quo.
A primeira questão que se coloca é: por que é que a chamada
crosta da realidade se torna fraca? Porque, fundamentalmen
te, a realidade é tecnodependente, muda cada vez que é inva
dida por uma nova tecnologia. Uma visão do mundo baseada
na imprensa foi desafiada e enfraquecida pelo aparecimento
da televisão, tal como uma visão do mundo baseada na tele-
difusão é profundamente ameaçada pelas redes de computa
dores. A realidade é uma forma de consenso apoiada pela
boa vontade e pela linguagem das comunidades que a parti
lham e enquadrada na sua manutenção pelo principal meio de
comunicação usado por essa cultura. A arte irrompe quando
a nova tecnologia desafia o status quo.
As tecnologias invadèm a realidade com pouca ou nenhu
ma resistência consciente por parte dos que as adoptam rapi
damente. Os impulsos tecnológicos e as promessas do merca
do, assim como um exuberante tecnofetichismo, entorpecem
o público em geral que permanece psicologicamente ligado
às antigas imagens de si e do mundo. Os artistas contemporâ
neos são a ponta aquecida e consciente do sonâmbulo iceber-
gue público. Questionam os efeitos das últimas tecnologias,
os computadores, os sistemas interactivos, o multimédia, a
realidade virtual e muitos outros mecanismos que se dese
nham no horizonte do marketing. Não o fazem de uma forma
politicamente ingênua, mas actuam a um nível psicossenso-
rial mais profundo. Quem somos? Que é que estas máquinas
nos estão a fazer? Que reflexões nos devolvem sobre nós
próprios? Como é que estão a transformar as imagens de
quem nós ainda pensamos ser? As primeiras respostas a tão
A Pele da Cultura 231

sérias perguntas enfrentam uma severa reprovação e uma re


sistência tanto do meio artístico como do público que fre
qüenta as galerias de arte.
Uma visão mais romântica e idealista explicaria do seguin
te modo a arte vulcânica: o trabalho artístico rompe a crosta
da realidade enfraquecida constituindo uma ameaça ao con
senso. Faíscas e fogo de artifício costumam gerar muita opo
sição dentro do regime estabelecido. A oposição feroz à ino
vação é a resposta normal em qualquer regime estabelecido,
seja ele político, religioso, econômico ou científico. Os pri
meiros trabalhos de Courbet e Manet foram acolhidos com
medo e horror, e o mesmo aconteceu com os filmes de Res
nais. A última exposição internacional da Dokumenta, em
Kassel, na Alemanha, foi uma sátira a qualquer representa
ção da tecnologia na arte. A nova realidade, a nova consciên
cia em ebulição, ainda a verter da boca do vulcão, escorre pe
la montanha, abrandando e solidificando-se no caminho.
Quanto mais longe do topo mais fria e negra se torna, até que
atinge o ponto de sedimentação. O último estádio é então a
memória, o museu, a instituição. O sedimento é tão impor
tante como a faísca, se queremos que a cultura tenha coerên
cia e sentido. Trata-se não de dar uma marca e um rótulo ao
produto, mas de observar o processo da arte na sua resposta à
tecnologia.
Esta visão é romântica e idealista porque na multicultura
de massas globalizada o trabalho artístico encontra-se, de
facto, mergulhado no contínuo constituído pela cultura popu
lar dos mass media. Mas, precisamente devido a esta globali
zação proporcionada pela comunicação instantânea, o traba
lho artístico de Tóquio a Paris, a Amsterdão e Glasgow, da
cidade do Quebeque a Joanesburgo e a Wichita, estado do
Kansas, está em contacto instantâneo com tudo o que está a
acontecer. No sistema nervoso do mundo a arte funciona em
pequenas doses para ter grandes efeitos.
232 Derrick ele Kcrckliovc

A arte nasce da tecnologia. É o contrapeso que equilibra os


efeitos disruptivos das novas tecnologias na cultura. A arte é
a face metafórica das mesmas tecnologias que ela própria usa
e critica. Por exemplo, enquanto a imprensa foi inventada pa
ra representar e distribuir a informação, o teatro, os romances
e a poesia, mas também a pintura perspectivista, a escultura e
a arquitectura foram desenvolvidas como metáforas da con
dição humana sujeita à literacia. Como ocidentais, devemos a
estrutura da nossa consciência à literacia. Mas devemos a
matéria da nossa sensibilidade, o conteúdo da máscara psico
lógica aos trabalhos de Da Vinci, Shakespeare, Racine, Vol
taire, Espinosa, Rembrandt, Vermeer, Dostoievski e a muitos
artistas que pacientemente construíram as paredes da nossa
consciência privada e as decoraram.
No contexto presente, fortemente acelerado pela tecnolo
gia, dependemos da arte e da cultura popular para a integra
ção dos aparelhos da nossa existência: aceitamos que os car
ros, a televisão e os computadores estejam na nossa vida, não
sem os criticarmos, mas sem termos em consideração que ca
da um destes aparelhos vai fazer um grande rombo, não ape
nas na carteira, mas, mais precisamente, na psique. Cada ex
tensão tecnológica que admitimos na nossa vida comporta-se
como uma espécie de fantasma, nunca se integra completa
mente nas funções do corpo e da mente, mas também nunca
está completamente fora da máscara psicológica.
Dê uma olhadela a uma velha casa desfigurada por uma
garagem que lhe foi acrescentada depois. Esta é a imagem ar-
quitectónica da nossa cultura inchada pelo consumismo e é
também a imagem da nossa construção psicológica. Fazer
um lugar para um carro, numa casa, é desfigurá-la. Permitir
que esse carro entre no modo de vida, na totalidade da exis
tência, é carregá-lo, acrescentar-lhe uma estação de serviço,
uma paisagem de asfalto e uns subúrbios cheios de dióxido
de carbono e anúncios de gasolina.
A Pele ela Cultura 233

Se é este o mundo que temos de usar, assim seja. Mas de


vez em quando aparece uma obra de arte algures no mundo,
através dos media, e levanta-se outra vez a questão da identi
dade. Tomemos como exemplo O Rinoceronte de Eugène Io
nesco. A metáfora mal disfarçada de seres humanos normais
que se transformam em rinocerontes tem sido frequentemen
te interpretada como uma fábula sobre o fascismo, um re
gresso à época dos primeiros protestos contra a aceitação de
ordens sociais opressoras. Mas uma vez que foi pela primeira
vez levada à cena nos anos 60, é mais provável que a peça
seja mais uma resposta do subconsciente à ascensão das for
tunas da General Motors, Renault, Mercedes-Benz e British
Leyland. Quem negará que nos sentimos tão identificados
com os nossos automóveis que estaríamos até dispostos a
vesti-los?
A arte nem sempre é bem sucedida a restabelecer o equilí
brio perdido, mas tenta sempre dar forma e significado à cul
tura que se rompeu. O Futurismo e Modernismo italianos
acompanharam, tanto na escultura como na arquitectura e na
pintura, os condicionamentos da revolução industrial que ti
nham rompido com os ritmos mais lentos da cultura agrária.
A arte de Marinetti, Boccioni, Léger entre outros tentaram
instituir novos valores, mais agressivos, baseados na função
de Vulcano. Esta tendência levou à Primeira Guerra Mundial,
um efeito adicional e mais radical da aceleração tecnológica.
A questão da aceleração é muito abrangente. Numa cultura
estável, onde o desenvolvimento tecnológico é lento, é o Es
tado que apoia e controla a cultura. A época de ouro de Péri-
cles na Grécia, e do Rei-Sol, na França correspondem a pe
ríodos de estabilização tecnocultural, durante os quais há um
começo de organização da consciência social, das infra-estru
turas comunicacionais e do controlo do Estado. Na nossa
época as revoluções tecnológicas acontecem depressa de
mais para conseguirem atingir um estado de maturação.
234 Derrick de Kerckhove

Quando a inovação tecnológica acelera, as forças do mercado


descolam. É à cultura popular que cabe o papel de harmoni
zação colectiva e de educação psicossensorial. A Madonna e
o Rudolfo Valentino são os equivalentes contemporâneos de
Miguel Ângelo.
Ao mover-se a uma velocidade muito rápida, a tecnologia
controla o mercado e, consequentemente, a cultura. Já houve
uma altura em que a história era a realidade. Hoje a realidade
corre o risco de se transformar em história. Neste momento a
Nintendo sintoniza o sistema nervoso de gerações que estão
mais expostas a computadores do que a ecrãs de televisão.
Enquanto jogam, as crianças tornam-se em extensões infeli
zes dos seus Nintendos e Segas, como se fossem servomeca-
nismos orgânicos complexos ligados a joysticks e a bonecos-
-vídeo.
A arte tecnológica está a entrar numa segunda fase do pro
cesso vulcânico, a verter do vulcão e a arrefecer tão depressa
que permite que as pessoas se aproximem perto e observem.
É uma época de grandes expectativas e esperança numa me
lhor compreensão das complexidades de um mundo repenti
namente maior para os indivíduos e mais pequeno para as en
tidades colectivas. Como pessoas estamos à procura de uma
autopercepção alargada, equivalente ao alcance global dos
nossos membros tecnológicos fantasmagóricos. Como uma
multicultura mundial, estamos à procura de padrões de inte
gração para além das irreconciliáveis diferenças lingüísticas,
étnicas, políticas, religiosas e econômicas. Precisamos de
mais metáforas globais que nos ajudem a começar a reconhe
cer o nosso planeta, não só como o nosso lar, mas como o
nosso corpo efectivo.
C A P ÍT U L O D E Z A S S E IS

ECOLOGIAS DE CYBORGS

Biomecânicas

«A mente, uma vez expandida até à dimensão das idéias maio


res, nunca volta ao seu tamanho original.»
— Oliver Wendell Holmes

Realidade cyb org

Já é possível dar ordens a máquinas para efectuarem tarefas


simples apenas através do pensamento. Os interfaces para o co
mando da voz e do olhar estão em desenvolvimento. A última
fronteira da relação biotécnica entre o homem e a máquina é o
interface. Pode não parecer muito apelativo, mas essa rejeição
não nos deve fazer esquecer que desde sempre desenvolvemos
relações quase biônicas com as nossas invenções. Nunca houve
o «homem natural», nem mesmo o de Jean-Jacques Rousseau.
A ideia de um ser biotécnico foi popularizada por Arnold
Schwarzenegger no filme O Exterminador Implacável. Por
fora o corpo dele era igual ao nosso, mas quando a pele so
fria danos ou se rasgava podiam ver-se as ligações. Os an-
236 Derrick de Kerckhove

dróides de Bladerunner eram muito mais sofisticados: eram


mutantes geneticamente programáveis, e não apenas robots
tecnológicos. Mas se, depois de ler este livro, aceitar as teses
que aqui se defendem, terá de concluir que somos todos mais
ou menos programáveis, se não mesmo mutantes genéticos.
Não é caso para alarme. É antes um repto a que nos conheça
mos com mais precisão.

Natureza versu s cultura

Hoje as tecnologias são tão versáteis que nos dão poder


para refazer aquilo a que chamamos realidade. Com as tecno
logias que manipulam o tempo, o espaço e o ser, o equilíbrio
desfez-se favorecendo a cultura em detrimento da natureza.
O código genético pode querer ditar-nos quando devemos
comer ou dormir, mas vamos sempre querer fazer outra coi
sa. As salvaguardas consagradas pelo uso do nosso planeta
foram desmanteladas. Isto não implica que nos lancemos pa
ra as modas ambientalistas. A solução não está em apontar a
culpa mas em adoptar novas responsabilidades perante uma
ecologia planetária que nos é colocada nos braços pelos no
vos poderes tecnológicos. Estes poderes ignoraram frequen
temente as leis convencionais da natureza, por isso agora te
mos de escolher entre uma multiplicidade de possibilidades.
Hoje podemos fazer tudo o que quisermos, por isso primeiro
temos de saber o que é que queremos.

Tendências tecnopsicológicas

Gostava de arriscar alguma previsões, embora tenha em


mente a recomendação de McLuhan «Para ser um bom pro
feta nunca preveja nada que já aconteceu.»99 Aqui deixo uma
A Pele da Cultura 237

série de tendências que talvez tenham escapado a alguns, se


não a todos os gurus da gestão.

Perda de fronteiras psicológicas entre o eu


e o meio ambiente

Na eminência da realidade virtual podemos achar cada vez


mais difícil distinguir entre as nossas identidades naturais e
as extensões electrónicas. O problema advém da natureza
eléctrica de ambos os ambientes em que nos movemos: o
biológico e o tecnológico. Claudia Dona, historiadora italiana
de design, explica, com elegância, como é que a electricidade
se tornou o meio usado nas relações biotécnicas entre o cor
po e o meio ambiente.

«A corrente de baixa voltagem a passar por um circuito


impresso de funções, fá-lo de maneira semelhante às célu
las corporais. Os traçados de um circuito electrónico assu
mem formas orgânicas. As memórias artificiais tendem a
dispensar os suportes mecânicos para se estabelecerem co
mo concentrações sólidas da informação: com a elimina
ção do interface a relação do utilizador com o processador
tornou-se natural.»100

Dona sugere também a emergência de um novo tipo de ser


humano à procura de características globais. «Como nôma
das telemáticos libertámo-nos dos constrangimentos de uma
coincidência histórica entre o “espaço” e o “tempo” e ganhá
mos o poder de estar em todo o lado sem sairmos do mesmo
sítio.»101 Esta capacidade traz consigo a responsabilidade de
expandirmos as nossas personalidades psicológicas para
além dos limites da pele e do corpo.
238 Derrick de Kerckhove

Ponto de vista versu s ponto de existência*

«Usar a humanidade como a nossa pele», como sugeriu


McLuhan,102 pode tornar-se uma necessidade ecopsicológi-
ca. Uma forma de lá chegar é abandonar os pontos de vista
unidimensionais reconhecendo que estão a ser rapidamente
ultrapassados pela percepção do ponto de existência. A ques
tão é onde nos situamos, como indivíduos, nesta súbita ex
pansão da consciência que está a fazer encolher o Planeta.
A ideia do ponto de existência permite-nos encontrar uma
posição enquanto os sentidos prolongados tecnologicamente
operam à volta de todo o Planeta. É o único ponto de referên
cia físico no meio das projecções electrónicas que nos ro
deiam. A sensação física de estar em algum lado é uma expe
riência táctil, não visual. É ambiental e não frontal. É com
preensiva e não exclusiva. O meu ponto de existência, em
vez de me distanciar da realidade, como acontece com o pon
to de vista, torna-se o ponto de partilha do mundo.
Entrámos em novas escalas temporais, do nanossegundo
até ao milênio. Procuramos coisas novas desde o subátomo
até ao sistema solar. O universo já não funciona à escala do
corpo humano. Fomos projectados para fora da tradição hu
manista. O homem renascentista já não é o modelo. A partir
do momento em que nos apercebermos que a nossa identida
de não está separada do meio ambiente, tornar-nos-emos pes
soas mais abrangentes.

Dentro/fora: manipulando a electricidade

A partir do momento em que as fronteiras que separam o


eu do meio ambiente se esbatem, começa uma torrente —

* « P o in t- o f - B e in g v e r s u s P o i n t - o f - V i e w » , n o o r ig in a l. (N. T.)
A Pele da Cultura 239

através do corpo e fora dele. Quando manipulamos a electri


cidade, podemos utilizar noções de interior/exterior como a
dos gregos que julgavam-«inspirar» os seus pensamentos e
percepções. Esta tendência dá força à teoria de que o próprio
ambiente é inspirado, tornando-se por si um objecto de per
cepção e de avaliação. De acordo com esta metáfora aparece
a imagem do homem como um ser que inspira informação
complexa e expira materiais transformados. Há outra razão
para redimensionarmos a relação com o meio ambiente: ago
ra há meios ambientes alternativos que aparecem nos ecrãs
como realidade virtual.

Uma nova sensibilidade

Por que é que depois de anos de tabaco, álcool e abusos na


alimentação ficámos de repente tão preocupados com a boa
forma? Imensa gente está a deixar de fumar. Os executivos
aparecem de calções, correndo para expurgar os efeitos dos
escritórios confortáveis, dos automóveis e dos muitos almo-
ços de negócios. Porquê esta mudança de atitude, que está a
deixar nervosa certa indústria «menos saudável»?
Realçando o sistema nervoso, a idade da electrónica tor-
nou-nos mais sensíveis ao risco de perdermos os nossos cor
pos. O tabaco foi inventado, como o álcool, para separar o
corpo do espírito. Agora que a comunicação está a tomar a
dianteira, queremos mais contacto connosco. Ao dirigir-se
directamente ao sistema nervoso, a tecnologia eléctrica está a
emular os sentidos. Nos anos 60, a televisão injectou quanti
dades maciças de experiências sensoriais e provocou a redes-
coberta de uma orgia de sentidos. Com o advento da infor
mática isso transformou-se num sentimento essencial para a
integridade orgânica. Ainda não somos completamente eco
lógicos, mas estamos a tornar-nos cada vez mais exigentes
240 Derrick de Kerckhove

perante a gestão do meio ambiente. O ambiente deixou de ser


um receptáculo neutral das nossas actividades. É também ele
constituído por informação, está a tornar-se inteligente, e,
através dos media, visível.
C A P ÍT U L O D E Z A S S E T E

A IN T E L IG Ê N C IA C O L E C T IV A

A ascensão da Internet e a aldeia, global

«A velocidade eléctrica tende a abolir o tempo e o espaço da


percepção humana. Não há distância entre o efeito de um acon
tecimento sobre outro. A extensão eléctrica do sistema nervoso
cria um campo unificado de estruturas organicamente inter-rela-
cionadas a que chamamos a “Idade da Informação”.»
— Marshall McLuhan103

«lies Publica»

Res publica, a coisa pública, era a ideia que os romanos ti


nham de como organizar uma sociedade de iguais. Foi o pri
meiro conceito 11a democracia ocidental de «domínio públi
co». Nessa altura ninguém cunhou a expressão decorrente,
res privata «a coisa privada», mas o que é certo é que o exer
cício do direito à privacidade depende do reconhecimento de
um domínio público. É só dentro dos limites do que é públi
co que se pode reivindicar a privacidade. A distinção é muito
clara. E a democracia baseia-se nessa distinção.
242 Derrick de Kerckhove

A electricidade acelerou o domínio do público, através da


TV, e do domínio privado, através dos computadores e das
redes. A convergência da TV e dos computadores, com a
proliferação das redes celulares e de cabo, está a esbater a
distinção entre o domínio público e privado. O espaço da In
ternet não é neutral, não tem fronteiras, não é estável nem
unificado. É orgânico. Comporta-se como um sitema auto-re-
gulado em perpétuo movimento. E tornará totalmente obsole
tas as nossas idéias políticas.

A aldeia global na era neonacionalista

A imagem de uma «aldeia global» introduzida por


Marshall McLuhan parece entrar em conflito com os cres
centes regionalismos, separatismos e movimentos locais que
aparecem todos os dias na televisão. Os críticos começaram
por colocar-se contra a metáfora de McLuhan, mas no seu
zelo deram um significado demasiado literal ao conceito da
aldeia global. Originalmente era uma generalização para dar
conta do complexo panorama das telecomunicações interna
cionais. Tal como a cidade se torna uma entidade com base
no espaço, a aldeia global foi o primeiro nome dado à terra
quando esta se constitui numa única comunidade que comu
nica à distância. O que induz em erro os críticos contemporâ
neos é a ideia de quietude rural que associam à de aldeia.
Comparando-a com a prova do aumento diário do neonacio-
nalismo, troçam de qualquer sugestão de que a terra tem sido
bem sucedida na busca do equilíbrio.
Uma das implicações mais valiosas da metáfora da aldeia
global é a noção de escala. Há menos espaço para nos mo
vermos numa aldeia que numa cidade. As telecomunicações
impõem forçosamente uma associação; foi-nos imposta uma
situação implosiva — e potencialmente explosiva. As comu-
A Pele da Cultura 243

nidades humanas que vivem a diferentes velocidades, com


níveis muito diferentes de experiência social são lançadas de
encontro umas às outras sem aviso nem mediação. Não há
protocolo que nos prepare para estes confrontos desorganiza
dos, não há treino para o comportamento social ou colectivo.
Quanto mais noção temos da globalidade, mais ficamos
conscientes das identidades locais, e mais as protegemos: é
esse o paradoxo da aldeia global. O hiperlocal é o comple
mento inevitável do hiperglobal.
A noção da aldeia global nasceu na era da televisão, quan
do as imagens analógicas dominavam a consciência pública.
Embora a cultura já fosse global há uns tempos, McLuhan
pôde criar a expressão «aldeia global» porque a televisão nos
deu o conhecimento de que existiam várias nações na Terra.
Éramos todos aldeões do mesmo planeta. Ainda somos, é
verdade, embora nem sempre dando-nos bem.

Consciência global

A televisão domina a ideia que fazemos das relações espa


ciais. Cada cadeia de televisão partilha, mais ou menos com
as outras a mesma representação da realidade, particularmen
te quando estão a cobrir as mesmas notícias, desportos ou
qualquer acontecimento em directo. É isto que faz do mundo
uma aldeia onde toda a gente conhece toda a gente ou, pelo
menos, onde toda a gente concorda, com maior ou menor re
lutância, que toda a gente partilha o mesmo espaço. Hoje é
essa ideia de espaço que está a ser desafiada por uma nova
forma de experiência consciente, que a humanidade até hoje
ainda não conhecia, e para a qual ainda não existe designação
no vocabulário psicológico.
A consciência é o termo central da globalização. Enquanto
os críticos sociais como Hans Magnus Enzensberger, Jurgen
244 Derrick de Kerckhove

Habermas ou Jean Baudrillard reconheceram correctamente


que a consciência é um novo produto industrial, a sua abor
dagem política estreitou o âmbito do seu estudo e afastou-os
dos desenvolvimentos mais completos que estão agora a dar-
-se. Pela primeira vez na história do mundo, estamos a acele
rar em direcção a um novo nível de consciência privado e pú
blico ao mesmo tempo. Há pelo menos três características da
tendência actual da globalização que nos merecem considera
ções psicológicas (e não exclusivamente políticas): transpa
rência, instantaneidade e ambientes inteligentes.

Transparência

A transparência global surge da distribuição instantânea


das notícias e do acesso a todo o mundo através dos media.
Pode ser uma espécie de ilusão, mas é uma ilusão muito po
derosa porque propõe o mundo inteiro como um campo da
consciência, a par da nossa própria consciência e da das enti
dades sociais. E para os que acusam as telecomunicações de
serem a última forma da colonização, gostaria de recordar
que os colonizadores são sempre as primeiras vítimas da tec
nologia colonial, normalmente porque não se mantêm a par
do impacte psicológico da tecnologia que estão a usar para a
colonização.

Instantaneidade

A instantaneidade, função da globalização, impõe uma


aceleração em todas as sociedades humanas. Tem dois efeitos
principais: um é o alcance e o feedback instantâneos, o outro
é a eliminação dos períodos de adaptação. O primeiro efeito
torna-nos nômadas electrónicos: coloca-nos em contacto com
A Pele cia Cultura 245

qualquer ponto do globo e recolhe informação de qualquer


ponto do globo instantaneamente. A nossa ubiqüidade elec
trónica acabará por ser necessária e positiva, mas neste mo
mento está a causar um perigoso efeito secundário; antes de
termos tempo de reorganizar a vida, de encontrar uma res
posta institucional, as conseqüências sociais, políticas e cul
turais já estão em cima de nós. Não estamos preparados para
lidar com estas conseqüências.
Algumas regiões do globo estão protegidas do tempo: este
é um legado ou negligência de impérios já mortos ou mori
bundos. Fomos apanhados de surpresa pela desintegração do
dia para a noite da União Soviética, agora somos testemu
nhas involuntárias das atrocidades que aí se cometem. Fal
tam-nos critérios psicopolíticos e precisão emocional para li
dar com o sofrimento humano, real e obsceno. A perda do es
paço de tempo necessário na comunicação moderna coloca
todas as culturas num jet-lag permanente.
Antigamente, na época da tecnologia da impressão, as or
dens sociais eram realizadas com grandes perdas humanas e
depois de muitos empurrões das fronteiras geográficas e ins
titucionais. Hoje, a nova òrdem social não pode ser deixada a
si própria. A diferença entre o presente e o passado é que en
quanto antigamente as fronteiras se desenhavam geografica
mente, através do equipamento, ou dos fusos horários, hoje
dependem apenas de condições psicológicas. Já não é o po
der militar que domina o mundo mas o pensamento, o senti
mento e a expressão da cultura tecnológica.

Mudando a identidade moderna...

Até hoje ainda não nos libertámos do hábito de nos cen


trarmos como projecções visuais no palco da nossa imagina
ção. Por isso ainda não temos um modelo que represente a
246 Derrick de Kerckhove

nossa presença no meio das imagens múltiplas, entrelaçadas


e multiplicadas formadas pelas redes electrónicas.
Desde a invenção da fotografia e seus derivados — do ci
nema até à realidade virtual — deslocámos, multiplicámos e
revestimos tecnologicamente o ponto de vista. Com as redes
neurais muitas das faculdades de juízo, que já foram as res
ponsáveis pela preservação das deliberações pessoais e do
grupo, serão cada vez mais delegadas nas extensões tecnoló
gicas do homem. É verdade que esses tipos de subjectivida-
des tecnológicas apoiadas pela redes neurais serão imperfei
tas num primeiro momento, funcionarão estritamente com
critérios simples e seleccionando assuntos não complicados.
Mas esta experiência levará muito rapidamente à forma em
brionária da consciência autônoma. As aplicações comerciais
de PDA (Personal Digital Agents) dotados de iniciativa e ca
pacidade de juízo levarão a indústria a produzir auxiliares
electrónicos do cérebro.
Em breve, os problemas com que a política se depara ao
lidar com as aplicações das complexas redes neurais na in
dústria, medicina, negócios, banca, educação e administra
ção tornar-se-ão tão contraditórios que irão requerer uma
reestruturação psicológica das nossas mentes pessoais e co-
lectivas. Até onde é que isso irá levar-nos? Como saberemos
onde, como e quem somos quando os nossos pontos de vista
e as nossas escolhas forem assistidos por computador e dis
tribuídos em grandes bases de dados no espaço e tempo vir
tuais?

...Doponto de vista...

Enquanto o feedback das nossas sensações se estende


muito para além da pele, a imagem que fazemos de nós pró
prios ainda é restrita. Quando telefono de Toronto para Mu-
A Pele da Cultura 247

nique, transformo-me instantaneamente num homem cego


com 7 mil quilômetros de comprimento. Quando uso a vi
deoconferência estou mais «lá», no lugar distante onde a mi
nha imagem aparece num ecrã, do que quando uso apenas o
telefone. Na simulação e extensões dos nossos sistemas ner
vosos, repletos de próteses tecnológicas da visão, audição,
toque e, agora até do cheiro, aparecemos sob a figura de en
tidades nodais, viajando através de padrões de corrente eléc
trica que são co-extensivos à nossa máscara biológica e neu
ral. Como é que damos conta disto tudo psicologicamente?
O que é que isto faz à imagem de nós próprios? É óbvio que,
para sermos conseqüentes neste novo contexto, temos de
projectar e reflectir as imagens de nós próprios para além da
mera representação. Ou pelo menos, para além da represen
tação visual.
Uma discussão que teve lugar recentemente entre Stelarc,
um artista australiano, e Paul Virilio, um crítico pós-descons-
trucionista dos media, levou Virilio a especular sobre as no
vas formas de colonização política e econômica, já possíveis
em teoria, que invadiram o corpo, genética e biologicamente.
O medo de Virilio justifica-se, especialmente se tomarmos
em consideração que as companhias farmacêuticas estão nes
te momento a comprar patentes de parte do puzzle genético.
O discurso ideológico que Sterlac tem em relação ao seu tra
balho não é nada animador. Ele diz, tal como Hans Moravec
e a geração cyberpunk, que o corpo está obsoleto e que devia
ser inteiramente substituído pela tecnologia. Este romantismo
ao contrário está muito longe da incipiente psicologia subja
cente à simbiose tecnológica. A maior parte das tecnologias
electrónicas não se dirigem ao abandono do corpo, mas à
reutilização da vida sensível de modo a acolher a combina
ção da mente privada e colectiva.
248 Derrick de Kerckhove

...ao ponto de existência

A apreciação proprioceptiva da realidade envolve o corpo


inteiro e todos os sentidos. O seu ponto de referência não é a
representação nem sequer a visão pura. Relaciono-me com o
mundo das comunicações instantâneas c universais através
do meu ponto de existência e não do meu ponto de vista. Só
há um lugar onde estou completamente, esse lugar é debaixo
da minha pele, mesmo que essa pele e as suas extensões sen
síveis assistidas tecnologicamcnte atinjam limites que vão
alem dos da visão, tacto e audição. O meu ponto de existên
cia não é exclusivo mas inclusivo, não é a visão perspectiva
que enquadra a realidade, mas a realidade que é um lugar de
finido pela precisão e complexidade das minhas ligações ao
mundo.
Só os últimos redutos do nosso antigo pendor visual po
dem impedir-nos de reconhecer o que é óbvio: a inleraclivi-
dade é tacto. A indústria está a desenvolver próteses tecnoló
gicas que actuam como integradores de vários sentidos. As
tecnologias interactivas fornecem os vínculos sociais, psico
lógicos e físicos para a criação de uma inteligência colecliva
mais alargada. A mente colectiva que estamos a construir po
de dar conta da complexidade, fracturas e reestruturações das
mentes individuais — está em progresso um processo de in
tegração à escala mundial.
Estes novos critérios psicológicos permitem-nos repensar
o sentido das extensões tecnológicas, não como meros auxi-
liares de transporte de sinais mas como formas, padrões e
configuração das relações. Potencialmente, todas as tecnolo
gias electrónicas são interactivas, estabelecem constantes e
íntimas trocas de energia e de dados entre os nossos corpos e
mentes e o ambiente global.
A Pele da Cultura 249

Espaço público e esfera pública

É exactamente quando pensávamos que a realidade estava


sob controlo, que ela muda de novo. Mudou da Idade Média
para a Idade da Razão e agora está a mudar para a Idade da
Mente. Na era do livro, o controlo da linguagem foi sempre
privado, mas com os media electrónicos o controlo da lingua
gem torna-se público e oral. Com o advento da Internet temos
o primeiro meio que é oral e escrito, privado e público, indi
vidual e coleclivo ao mesmo tempo. A ligação entre a mente
pública c a mente privada é feita através das redes abertas e
conectadas do Planeta. Em breve reconheceremos que a reali
dade é esta mente pública. Temos de tolerar o facto de que a
mente vai ganhar poder à razão. No entanto, tal como a reli
gião sobreviveu na época que se seguiu à invenção da escrita,
a razão também resistirá na era da inteligência colectiva.
Politicamente, no entanto, ainda não há certeza sobre que
regime corresponderá a esta nova ordem de inteligência co
lectiva e do comportamento social. Os negócios parecem ser
a actual mente colectiva. Obedecem a leis consistentes e uni
versais. Os negócios auto-ajustam-se e são sistemas aulo-re-
gulados de transferência tecnológica. Em traços largos pare
cem ser positivos. No entanto, a maior falha dos negócios é a
sua negligência para com o ambiente e o facto de depende
rem, em parle, das indústrias militares. Quase 25 por cento
da economia em todos os estados desenvolvidos baseia-se na
fabricação c/ou distribuição de armas. Isto é intolerável numa
mente saudável, particularmente na mente colectiva que que
remos ser num futuro o mais próximo possível.
Também há boas notícias neste campo: mesmo os países
com as indústrias militares mais avançadas estão a diminuir a
influência militar sobre a política. Onde quer que a velha or
dem ainda prevaleça, os habitantes que sofrem há muito es
tão ansiosos pelas leis do mercado que, pelo menos superfi-
250 Derrick de Kerckhove

cialmente, parecem mais suaves do que as outras. Parece ser


viável um mundo onde toda a gente está a fazer negócios
com toda a gente, embora nem sempre ele seja encorajado.
A tecnologia domina os negócios, mas também os muda.
A Internet espantou o mundo dos negócios e confundiu os
governos. A Net está claramente a tornar-se uma auto-estrada
da informação, mas não parece querer assumir esse papel.
Como expressão da mente colectiva a Net é muito mais so
fisticada do que tudo o que conhecemos até hoje.
Paralelamente à expansão da Internet, a TV vai sofrer uma
metamorfose. Depois de consumar o casamento com o com
putador, a TV vai gradualmente privatizar-se até ao absurdo,
perdendo o seu papel no espaço público. Daqui a pouco tem
po o nosso sentimento de fazermos parte de um campo co
mum vai chegar-nos não através da televisão nem do espaço
físico, mas da ligação à Internet ou o que quer que seja que a
substitua.
A relação entre o individual e o colectivo está a mudar, as
sim como as regras que governam as associações de i n d i v í
duos. O antigo regime, baseado no espaço neutral e na gestão
desse espaço pela política e pela economia tem de dar lugar a
um novo regime baseado no controlo da competência, acesso
e rapidez. A velocidade de processamento vai custar mais ca
ro do que o espaço. Está a desenvolver-se uma nova cons
ciência do tempo, como se, depois de termos conquistado o
espaço tornando-o menos constrangedor, a evolução tecnoló
gica estivesse agora a dirigir-se ao tempo — real, virtual,
pessoal e social — considerando-o como a última fronteira.
Das provas que todos os dias nos são dadas pelos desenvolvi
mentos tecnológicos e pelas mudanças na economia geopolí-
tica da Terra, podemos concluir que ainda estamos presos no
modo de aceleração. E, embora se descortine um patamar
não muito longínquo na ondeante frente cultural, ainda é difí
cil vê-lo. Utilizando um termo verdadeiramente propriocepti-
A Pele da Cultura 251

vo, o que está a acontecer é mais facilmente sentido do que


visto.
É essencial que à medida que se desenvolvem as comuni
cações sem rede sejam ao mesmo tempo criados mecanismos
políticos para proteger o acesso universal e a liberdade de ex
pressão, assim como o direito à privacidade na Net. A tenta
tiva do Governo dos EUA para introduzir um sistema de co
dificação digital (para o qual o Governo deteria a chave uni
versal) deve ser considerada como um aviso. Seria preferível,
por exemplo, que os Estados Unidos decidissem cessar o
apoio logístico à Internet, para que os outros países se unis
sem e decidissem aguentar o barco sozinhos, a bem da sua li
berdade intelectual e política. Seria a forma mais simples de
assegurar que a democracia se mantém neste novo ambiente.
No futuro próximo, qualquer ordem que prevaleça na Inter
net será a mesma que prevalecerá na realidade e tudo o que
se possa fazer para prevenir uma confiscação à escala global
deve ser tomado em conta.

A inteligência colectiva

Cheguei recentemente à noção de inteligência colectiva.


Porque é um conceito capaz de atrair a atenção da comunida
de científica, vale a pena explicar o seu processo de forma
ção. Em Novembro de 1994 estava em Amsterdão, na festa
final da conferência sobre a importância das novas tecnolo
gias para o design, «@Home», oferecida pela revista Media-
matic. Embora a maioria dos oradores fosse muito interes
sante, muitos de nós mostraram-se preocupados com o facto
de não ter sido prestada muita atenção a alguns dos princi
pais assuntos pendentes na Internet: o direito de autor, a pri
vacidade, as liberdades civis, o consumo e o comércio, inter
ferência governamental, dinheiro electrónico e outros assun-
252 Derrick de Kcrckhove

tos que irão muito provavelmente afectar as nossas vidas


num futuro que se aproxima a passos rápidos. Embora a en-
fâse estivesse posta no design, muita gente argumentava que,
para um número cada vez maior de pessoas, a Internet tam
bém está a tornar-se uma espécie de lar.
Na festa juntei-me a um analista da AT&T chamado Phil
Chang, que na altura confundi com outra pessoa. Comecei a
falar muito do Japão, dando a entender que o tomava por ja
ponês. Uns instantes depois ele aproveitou um dos raros mo
mentos de silencio para me informar gentilmente que era de
origem coreana e que estava a viver há muito tempo em São
Francisco. Para me ajudar a recuperar do embaraço, pergun
tou-me o que tinha sido tão excitante no meu encontro com a
cultura japonesa. Respondi-lhe que quando se andava por
Tóquio sentia-se a inteligência no ar. Do ponto de vista do
estrangeiro, Tóquio parecia ser uma cidade sincronizada co
mo se qualquer pessoa soubesse o que as outras pessoas to
das estavam a fazer. O nível de coordenação e de acordo táci
to que se vive em Tóquio lembraram-me o modo como me
senti com o tipo de pessoas que encontrei noutra conferência,
o Simpósio Internacional da Artes Electrónicas em 1994, em
Helsínquia. Quase toda a gente estava ligada à Internet. E pa
reciam-me, todos juntos, um novo tipo de pessoas e um novo
tipo de espaço. Nessa altura percebi que o espaço da Net es
tava vivo com uma presença vibrante, humana e colectiva.
Sim, havia alguma coisa em comum entre as pessoas das ruas
de Tóquio e os 400 engenheiros/artistas reunidos em Helsín
quia. A procura da palavra certa disse que se tratava de uma
espécie de inteligência colectiva.
Nesse preciso momento Jill Scott, um artista multimédia
australiano, saltou e gritou «IC! IC! que campo de estudo!»
A IC foi criada nessa altura no escritório da Mediamafic.
Juntámo-nos seis e começámos a trabalhar: o Jill, o Phil, a
Josephine Greaves, uma outra artista australiana que nos su-
A Pele da Cultura 253

geriu que nos concentrássemos na Net como o campo prefe


rencial da IC; o Erkki Huhtamo, um dos organizadores do
congresso de Helsínquia, que sugeriu que considerássemos a
«inteligência de galinha»* como a fase anterior à IC, e David
D’Heilly que agarrou na ideia da galinha como uma mascote
«politicamente correcta» para esta nova ciência e desatou a
cacarejar do modo mais alto e terrível que eu e toda a gente
na sala já alguma vez tínhamos ouvido.
A IC como um conceito foi realmente encontrado por Jill
Scott, mas, durante algum tempo, pensei sinceramente que ti
nha sido o primeiro a ter esta ideia. Só algumas semanas
mais tarde descobri que a noção tinha sido engendrada por
Pierre Lévy, e que ele tinha acabado de publicar um livro so
bre o assunto.104 Fiquei muito contente, não só porque isso
prova a seriedade da ideia, mas também porque assim não le
nho eu próprio que escrever um livro sobre o conceito.
Mas a noção tomou conta de mim e deu-me a perceber de
uma nova maneira aquilo de que estava à procura desde a al
tura em que pela primeira vez me interroguei sobre o alfabe
to. Como toda a gente sou ao mesmo tempo juiz e parle da
actual condição da mente cuja história é contínua e tem vin
do a crescer como um organismo há alguns milhares de anos.

* No original «Chicken Intelligence», inteligência de galinha, tem as mesmas


iniciais que inteligência colectiva. (N. T.)
C A P ÍT U L O D E Z O IT O

M U D A R AS NO SSAS M EN TES

Uma Breve História da Inteligência

A linguagem foi a nossa primeira tecnologia

O processamento da informação começa com a linguagem


falada. A linguagem ainda é o mais poderoso código disponí
vel e vai permanecer como o principal pelo menos no futuro
previsível. Como o investigador da realidade virtual Jaron
Lanier explicou a Frank Biocca «...a linguagem falada (...) é
uma extraordinária construção viva. Não é só um projecto
tecnológico mas também um projecto biológico, de evolução.
A espécie (humana) tem florescido com ele. Faz parte do cé
rebro. É uma parte fisiológica do corpo humano, e algo que é
muito profundo e misterioso».105 O que torna a observação
de Lanier melhor do que os habituais lugares-comuns sobre o
papel central da linguagem é o facto de sublinhar a intimida
de profunda que as formas lingüísticas estabelecem com a
nossa maquilhagem biológica. A linguagem cresce connosco
e ajuda-nos a formar os pensamentos que nos permitem per
ceber a realidade e sobreviver-lhe. Quanto melhor aprender
mos a controlar a linguagem melhor estaremos equipados pa-
256 Derrick de Kerckhove

ra reconhecer, compreender e viver nos ambientes que cons


tituem a realidade. É essa a substância da inteligência huma
na. Tudo o que afectc o desenvolvimento e crescimento da
linguagem afecta também o crescimento e desenvolvimento
da inteligência.

Porque é que locla a linguagem é bastante artificial

A evolução da inteligência humana acompanha a evolução


não apenas da linguagem mas ainda das tecnologias quê su
portam e processam a linguagem. A primeira destas tecnolo
gias é a escrita. Embora se possa conceber que a origem da
linguagem tenha estado 11a prática da associação de sons às
actividades da sobrevivência diária, é a escrita que armazena
estes sons para usos mais duradouros. Ao serem fixadas pela
escrita, as prática orais pertinentes e selectivas obtiveram a
consistência e a fiabilidade que permitiram ao código lin
güístico adquirir a oportunidade de desenvolver-se para além
do uso’comum. Em termos evolutivos, um dos principais
efeitos da escrita, qualquer que seja o código utilizado, foi
destacar os enunciados humanos da situação da sua enuncia-
ção e permitir a sua manipulação. Nas culturas anteriores, ex
clusivamente orais, a linguagem controlava as pessoas e o
seu comportamento; com a escrita acontece o contrário. As
sociedades que lêem e escrevem atingem um nível de contro
lo sobre a linguagem que lhes permite deter uma espécie de
poder sobre os seus destinos.

A escrita amplifica a cognição humana

Escrever dá capacidade aos homens para arquivar, expan


dir e explorar a linguagem como um controlo simbólico e
A Pele da Cultura 257

prático sobre a natureza. A escrita, que é sempre o âmago de


elementos específicos da civilização, parece actuar como
uma espécie de «amplificador da inteligência» e dá origem a
explosões repentinas na aceleração cultural. Como demons
trou Harold Innis na sua impressionante resenha histórica so
bre o impacte da comunicação na cultura, é a escrita e os
meios de transporte de mensagens que proporcionaram as
condições para a organização social, os códigos legais e os
padrões de comportamento.106 O trabalho de Eric Havelock
mostrou também que algumas linguagens, especialmente sis
temas escritos, tal como os alfabetos greco-romanos, deram
mais poder a alguns indivíduos, e não à sociedade em geral.
Isto afecta directamente os padrões de distribuição da inteli
gência humana que prevalecem nas sociedades ocidentais.107

O código é a mensagem

Esta espécie de inteligência humana que se desenvolveu na


civilização ocidental deve muito da sua forma aos métodos
de codificação dos alfabetos ocidentalizados. O trabalho de
Havelock indica que a litcracia alfabética não é só uma ques
tão de conteúdo, ou seja, uma simples questão de tornar as
idéias mais acessíveis à memória e ao funcionamento mental,
mas é sobretudo uma questão do próprio processamento. Ha
velock identifica o sistema alfabético e todos os sistemas pri
mitivos de escrita, com as vantagens do código informático
de hoje, não só com base naquilo para que podiam ser usa
dos, mas também na forma como trabalham nas plataformas
de processamento que os suportam. Como os silabários, os
alfabetos são códigos fonéticos. Isto significa que não repre
sentam imagens, conceitos ou idéias, mas palavras nas for
mas lingüísticas pronunciáveis. Assim, qualquer escrita que
traduza os sons pronunciados na linguagem falada em repre-
258 Derrick de Kerckhove

sentações, ou seja, do fonema para o grafema, torna também


passíveis de transcrição, análise e criação as subtilezas da
gramática e do vocabulário. Dão acesso às articulações da
linguagem, multiplicam as possibilidades de variação dos pa
drões básicos que partem dos usos comuns.
Como explica Havelock, os códigos alfabéticos são muito
mais poderosos do que os silabários porque, em vez de anali
sarem as línguas faladas em termos de sílabas pronunciadas,
levam esta análise ao nível dos fonemas individuais. Isto re
duz o número de caracteres necessários para a representação
das palavras ditas e também elimina as ambigüidades nas
complexas contracções silábicas. Quanto mais simples e
mais fiel o código, mais poderoso se torna ao garantir um
controlo consciente sobre a linguagem. Havelock sugere que
os melhoramentos do alfabeto grego elevaram o estatuto da
escrita de ferramenta para a memória a ferramenta do pensa
mento. A inteligência humana libertou-se do peso da lem
brança para se aplicar na inovação.108
f,

A redistribuição da inteligência humana


pelas identidades privadas

Esse foi um passo monumental para o desenvolvimento da


racionalidade na aplicação dos processos cognitivos ao domí
nio da natureza, mas não foi o impacte mais importante que o
alfabeto escrito teve na inteligência humana. A partir da sua
organização cognitiva do meio espáçio-temporal, os gregos
antigos desenvolveram também um forte sentido de si pró
prios como observadores da realidade que processavam dessa
forma nas suas mentes. Ao permitir a gravação e o arquivo
de informação factual e vital qualquer sistema escrito podia
introduzir e suportar vários graus de consciência histórica co-
lectiva. Da mesma forma, embora nem todos tenham a mes-
A Pele da Cultura 259

ma importância no que diz respeito às capacidades de pers


pectiva em profundidade e de espacialização em três dimen
sões, qualquer sistema de escrita visual acentua a cognição
espacial. O que a literacia alfabética atingiu num nível sem
precedentes foi a atribuição a todos os que a detêm de um
muito elevado grau de autoconsciência.
Para se perceber como é que isto aconteceu, podemos refe
rir o número cada vez maior de autobiografias entre os indi
vidualistas notáveis como Santo Agostinho ou Montaigne, ou
aos diários que as crianças letradas e românticas escrevem.
Quem quer que escreva um diário está a tomar o controlo da
linguagem e está também a usá-la para aumentar a consciên
cia de si próprio. Escrever os seus próprios pensamentos,
quer digam respeito apenas ao indivíduo ou a realidades e
observações sociais, define a relação com a realidade e refor
ça o ponto de vista do autor sobre essa realidade. É um acele
rador da inteligência pessoal. É também uma apropriação da
linguagem no seu detalhe estrutural e no seu processo infor
mativo. Entre os gregos, depois entre os romanos, e mais,
tarde entre os impérios do Ocidente o alfabeto dotou sempre
cada cidadão leitor com uma noção pessoal da realidade. Ler
e escrever são as condições fundamentais para a privatização
da mente.

A dor da reestruturação

A privatização da mente que teve início com a literatura


teve conseqüências desastrosas nos métodos estabelecidos do
processamento da informação colectiva dominados pelas hie
rarquias religiosas e políticas. Ao passo que os outros siste
mas formais de escrita como os hieróglifos egípcios e os
ideogramas chineses colocavam o processamento da infor
mação social sob o comando das hierarquias políticas e reli-
260 Derrick ele Kcrckhovc

giosas em estruturas verticais que não deixavam espaço para


as contribuições e iniciativas individuais, uma das primeiras
conseqüências da literacia grega foi a introdução de um novo
conceito sócio-político radicalmente novo — a democracia.
Se foi ou não rigorosamente aplicado segundo as linhas defi
nidas na República de Platão, isso não é importante. É preci
so perceber como a inteligência humana, daí em diante geri
da numa base colectiva, se tornou de repente disponível para
uso pessoal a partir do uso do alfabeto grego. A democracia
política começa antes do mais com a democracia psicológica.
Marshall McLuhan109 e Elizabeth Eisenstein110 observa
ram que a invenção da imprensa escrita (que acelerou o im
pacto da alfabetização através do manuscrito) esteve na raiz
dos mortíferos levantamentos religiosos durante e depois da
Renascença. A transição da consciência colectiva da Idade
Média, predicada com o objectivo comum da salvação, para
a nova ordem social do espaço público e das mentes privadas
levou vários anos de ferozes disputas ideológicas e políticas.
Finalmente, a inteligência humana ganhou condições para
uma aceleração e crescimento sem precedentes. O conceito de
natureza, desenvolvido pela filosofia grega, foi uma espécie
de bolha espácio-temporal para a cognição amplificada e or
ganizada. A natureza tornou-se o domínio do «senso comum»
aplicado, mas nunca foi mais do que um consenso cognitivo
baseado numa herança partilhada da literacia alfabética. O
processo científico afastou o dogma religioso para distinguir
claramente as apreciações objectiva e subjectiva da realidade.
A objectivação do conhecimento comum — armazenada em
livros, tratados, dicionários, universidades e bibliotecas —
garantiu um espaço comum, mental, público e social para a li
vre evolução das contribuições individuais. As iniciativas de
pesquisa e as teorias que emanavam dos cidadãos privados
eram testados para verificar se eram convincentes perante o
conhecimento comum. O teste estandardizado reconhecido
A Pole th» Cullimi 26!

por todos era o do princípio mecânico. Se a teoria ou a expe


riência reflectiam e respeitavam conseqüências normalizadas
que provinham sempre de uma causa hipotética sem perturbar
os paradigmas científicos estabelecidos estavam imediata
mente incluídas na enciclopédia da sabedoria humana. Se
não, eram simplesmente rejeitadas mas sem que o teórico fos
se decapitado. As cabeças tinham o direito de errar.
Nesta situação, os princípios estruturais da organização so
cial reflectiam e reforçavam as suas origens na associação de
mentes privadas baseada na comunidade.111 Tal como o es
paço público comum se estruturava à volta do entendimento
de que o espaço material era uma expansão neutra e infinita
dentro da qual o universo se desenrolava de acordo com leis
mecânicas imutáveis, assim também a consciência se organi
zava numa disposição espacial proporcionada ao espaço da
vida quotidiana. A outra coordenada, o tempo, distinguia-se
claramente do espaço, tanto nos relatos da história pública
como na filosofia da história, e nas construções psicológicas
privadas. Embora a rápida aceleração das inovações na ciên
cia e na tecnologia puras e aplicadas tenha ameaçado a or
dem estabelecida, a situação cognitiva permaneceu relativa
mente estável até ao aparecimento da electricidade.

O dinheiro governa o mundo como o


íiqiielaque do relógio

Uma conseqüência subsidiária mas não menos importante


da invenção do alfabeto foi a invenção contemporânea da
cunhagem do dinheiro112. Enquanto o dinheiro antigo estava
muito arreigado às suas raízes da troca directa de valores de
uso, as moedas inventadas pelos lídios, um povo letrado, no
século sétimo a. C , reflectiam o princípio estrutural da re
presentação. Este princípio foi instituído pelo uso do alfabe-
262 Derrick de Kerckhove

to como uma sub-rotina cognitiva. Tal como a relação entre


a leitura e o sentido é proclamada nas representações dos
significados abstractos por igualmente abstractos significan-
tes, a relação entre a moeda cunhada ou impressa e o valor
centra-se não na aquisição de bens ou serviços reais, mas na
medição do valor abstracto. Isto permitiu que o dinheiro se
tornasse numa das mais importantes ferramentas da inteli
gência humana. Esta valorização abstracta exprimiu um no
vo tipo de equilíbrio entre os valores de uso e os valores de
troca. Na história do processo valorativo ocidental, o dinhei
ro tornou-se o sistema de tradução universal para a maior
parte dos bens e serviços.'Aqui não se trata de partir de onde
a análise marxista ficou, mas observar que o dinheiro em
breve se tornou a forma escolhida pela inteligência humana
para designar o tempo, o espaço e o esforço humano. Quan
do Maquiavel disse que «cada homem tem o seu preço» não
estava só a prever o hábito moderno de medir uma pessoa
pelo seu valor líquido, mas também a aludir à prática tão ve
lha como o tempo de valorizar a energia humana através dos
salários. O dinheiro é a valorização que a inteligência huma
na utiliza: permitiu dar conta das porções de espaço, perío
dos de tempo e resultados da energia humana, diferenciando-
-os. O dinheiro teve na sociedade o mesmo papel do relógio
na unidade de processamento central do computador — sin
cronizar todos os cálculos que a máquina faz.113

A electricidade e as implicações do espaço


temporal no indivíduo

O telégrafo foi a primeria tecnologia de processamento de


informação a reduzir os constrangimentos espácio-temporais
através da comunicação instantânea. Consequentemente teve
um impacte quase imediato na coordenação e harmonização
A Pele da Cultura 263

das actividades humanas que, até à sua invenção, tinham sido


conduzidas separadamente. Afectou os sistemas de preços e a
forma de fazer e dar as notícias. Também introduziu algumas
novas possibilidades nos métodos de processamento da inte
ligência humana.
É importante ver o telégrafo enquanto processo de ligação
entre o alfabeto e o computador. A tradução das vinte e seis
letras do alfabeto em três sinais, curto, longo, ausência, signi
ficou um refinamento radical do código e foi a primeira base
internacional de cabo instalada e o primeiro modelo de um
condutor comum para a inteligência colectiva. Para atingir a
flexibilidade universal do código binário, será necessária
mais uma redução, de três para dois sinais. A continuidade
entre o alfabeto e o dígito reflecte-se não só nos standards
universais de ASCII, mas de forma mais pertinente no facto
de todas as operações informáticas se basearem nos mesmos
princípios fundamentais da fragmentação, descontextualiza-
ção e recombinação, até ao aparecimento dos simuladores de
redes neurais.114

Fragmentação

A descoberta dos fonemas, as mais pequenas unidades do


som na linguagem, foi a inspiração dos filósofos gregos anti
gos para imaginarem a noção equivalente de átomo. A frag
mentação como a busca do aspecto mais pequeno e/ou do
mínimo denominador comum da informação e da matéria era
um princípio já aplicado por Platão para a análise do discurso
humano, dois mil anos antes de Descartes lhe ter dado um
delineamento formal no seu Método fundador. O mesmo
. princípio foi aplicado mais recentemente na tentativa de che
gar às mais pequenas unidades discerníveis dos componentes
químicos e fisiológicos das formas de vida. Fonemas, átomos
264 Derrick de Kerckhove

e genes partilham a mesma estratégia conceptual. É claro que


continua a ser possível e talvez necessário fragmentá-los ain
da mais, mas não há vantagem em cortar o bit. Hoje, a digita
lização superou o dinheiro e o alfabeto como o principal me
canismo de diferenciação. É o tradutor universal de todas as
substâncias heterogêneas. No entanto, a fragmentação não foi
suficiente para libertar a matéria e a informação para análise
e reutilização. Este princípio terá antes de ser acompanhado
do seu corolário: a dcscontextualização.

Desconlextualização e recombinação

O alfabeto grego era diferente de todos os outros sistemas


de escrita no mundo. Em vez de obrigar o leitor a ficar ligado
ao contexto do que está a ser dito, permite a remoção de
enunciados dos seus pontos de origem e a sua recolocação
noutro local, noutro contexto não directamente relacionado
com os anteriores. Esta característica, ela própria interessan
te, foi acompanhada pelo processo cognitivo envolvido na
leitura. Pode-se facilmente decifrar e até mesmo ler alto
qualquer fiada alfabética mesmo sem fazer a mínima ideia do
que se está a dizer, mas não se pode fazer o mesmo em he
braico, árabe ou com os hieróglifos ou com os ideogramas. O
princípio da desconlextualização é também suportado pela
resposta neuropsicológica que damos aos critérios de decifra-
ção. As seqüências contíguas de letras aguentam-se por si, e
são, por isso, apropriadas lateralmente pelos campos de visão
direitos de ambos os olhos. Pelo contrário, a necessidade de
procurar provas contextuais impede os leitores de outros sis
temas lingüísticos de separar o sentido relativamente ao códi
go. Com a ortografia alfabética, o texto liberta-se do contex
to. Obviamente, este princípio de descontextualização está
também presente em todas as máquinas de códigos linguísti-
A Pele cia Cultura 265

cos. A fragmentação e a dcscontextualização formam a base


da recombinação que é, por seu lado, o impulso para a inova
ção tipicamente ocidental, o poço a que James Joyce cha
mou, em Finnegans Wake, «a fonte cartesiana».
Trouxe propositadamente da engenharia genética o termo
«recombinação» porque ajuda a perceber que o alfabeto e os
outros códigos funcionam como células vivas, tal como o
RNA — conhecido como o gene mensageiro. Ao analisar
(fragmentar) a matéria e a linguagem, dividir (descontextua-
lizar) segmentos úteis, e depois combinando-os (recombina
ção) com outros segmentos as culturas ocidentais praticaram
a inovação como uma estratégia de sobrevivência. Isto levou
a saltos quantitativos na aplicação da inteligência a situações
sociais, culturais e tecnológicas.

O eu

Como carregamos uma imagem de nós próprios baseada


nos princípios letrados da Renascença, não conseguimos re
conhecer que as tecnologias electrónicas, do telefone à reali
dade virtual, estendem o nosso ser físico muito para além
dos limites da pele. A questão da propriocepção, o nosso
sentido dos limites corporais, será o assunto psicológico cha
ve com que em breve se virão a deparar as novas gerações
atentas à tecnologia. Tal como a rápida elaboração do ponto
de vista se tornou a condição para a liberdade individual no
espaço neutral do perspectivismo renascentista, a apreciação
proprioceptiva do ponto de existência numa rede de circula
ção é um dos requisitos necessários para que se consiga
manter o controlo físico e psicológico sobre o nosso lugar no
nomadismo electrónico. A noção do escritor William Gibson
que mostra as pessoas «elevando-se para o ciberespaço» é
profética.115
266 Derrick de Kerckhove

Por outro lado, as fronteiras tradicionais entre o que está


dentro e fora são muito problemáticas em todas as interac-
ções informáticas. Talvez venham a ser irrelevantes à medida
que o grande horizonte renascentista se tornar no seu oposto.
Tal como Lanier explicou a Biocca,

«acho que uma das coisas mais impressionantes sobre um


sistema do mundo virtual no qual teremos poder para mu
dar facilmente o conteúdo desse mundo é que a distinção
entre o nosso corpo e o mundo é escorregadia. Do ponto
de vista da realidade virtual, a definição do corpo é a parte
que se pode mover tão rapidamente como o pensamento.
Num mundo virtual (...) pode-se... abrir portas à distância
ou fazer com que vulcões entrem em erupção. Torna-se di
fícil definir com rigor qual é a fronteira do corpo»116.

A observação de Lanier aplica-se também ao telefone e à


videoconferência, embora nestes meios a questão não seja
tão evidente. /
Entre as observações mais pertinentes vindas de artistas
sobre as novas imagens de si que emergem dos sistemas ci-
beractivos está a noção de David Rokeby de «subjectividade
que se pede emprestada». Não só é possível gravar e pôr ou
tra vez a funcionar a experiência sensorial de outra pessoa
num ambiente de realidade virtual, mas, como Jaron Lanier
observou muitas vezes, o efeito de feedback das reacções
moduladas pela RV podem distorcer o sentido de si tal como
uma droga ou uma interrupção num circuito. A diferença es
tá, é claro, no facto de a experiência de RV ser totalmente
controlável e totalmente analisável. A mudança da identidade
pode vir a ser, no futuro, a mais divertida forma de entreteni
mento.
A Pele da Cultura 267

O novo «condutor comum»

A ideia de uma subjectividade de empréstimo na RV é só


um exemplo extremo do que já está a acontecer nas comuni
cações em rede. O seu efeito reside na expansão do ego do
seu espaço mental privado para o espaço partilhado on-line,
enquanto o espaço social imediato fica dedicado à privacida
de. Quando se está a ligar e a desligar da Internet essa activi-
dade corresponde ao aumento da presença do ser no ciberes
paço e fora do tempo, especialmente em modelos de trans
missão assíncronos. O «eu on-line» não se apoia em nenhum
tipo de tempo, espaço ou corpo, e é, sem dúvida, um presen
te.117 O processamento de texto, quer em computadores iso
lados quer em rede é um «processamento do pensamento» tal
como a velha ordem literária era uma espécie de desenvolvi
mento cognitivo lento, específico, e personalizado, mas ao
mesmo tempo preparado para ser partilhado. A aceleração do
feedback, a concentração de muitas contribuições individuais
nas conferências via computador, a redistribuição instantânea
de dados para trabalho de grupo gera novos padrões de me
diação e intermediação. As fronteiras entre a contribuição
subjectiva e a assimilação objectiva proporcionam novas co
munidades «interjectivas» mentais.
A bolha espácio-temporal da cognição literária, que separa
claramente as realidades subjectivas e objectivas dos agentes
cognitivos está a ser subvertida. As auto-estradas da informa
ção estão a juntar-se para formar um único ambiente cogniti
vo onde o utilizador individual, consumidor e produtor ao
mesmo tempo, se transforma numa espécie de entidade ubí
qua e nodal/neural. Nessa nova configuração, o mundo exte
rior não está fixo nem é convencionalmente «real», mas age
como uma super ou hiperconsciência activa em permanente
fluxo de mudança e de ajustamento às necessidades locais e
circunstanciais. Neste ambiente pancognitivo em desenvolvi-
268 Derrick de Kerckhove

mento e apesar da infindável luta da indústria para manter o


controlo através de standards multiproprietários, a última e
irrevogável tendência será a formação de um canal global à
imagem da rede telefônica. A digitalização fornece a subs
tância comum, o «sentido comum», do canal comum.
C A PÍT U L O D E Z A N O V E

PSICOTECNOLOGIAS

«A velocidade eléctrica tende a abolir o tertipo e o espaço na


consciência humana. Não existe intervalo no efeilo de um even
to sobre o outro. A extensão eléctrica do sistema nervoso cria o
campo unificado de estruturas organicamente inter-relacionadas
a que damos o nome da presente Era da Informação.»
— Marshall McLuhan

Os media electrónicos são campos unificadores imediatos.


Analistas de marketing e técnicos de sondagens electrónicas
orquestram as nossas emoções colectivas e electrónicas. Via
TV e rádio, um acontecimento planetário como a crise do
Golfo agarra a atenção do mundo inteiro, e exclui habitual
mente preocupações locais. Durante a própria guerra, as nos
sas opiniões eram controladas por decisões na frente mediáti-
ca tanto como qualquer frente militar, embora a TV evitasse
os censores militares em várias ocasiões. Isto era uma mora
lidade colectiva, tecnocultural, em acção. Sob o olhar dos sa
télites, grandes blocos de comércio estão a formar-se dentro
das fronteiras continentais. Estes expandem a nossa identida
de para além dos limites pessoais, locais, nacionais ou mes-
270 Derrick de Kerckhove

mo lingüísticos. Globalizar a economia pode bem ser neces


sário — uma metáfora contínua mesmo — para a globaliza
ção da nossa psicologia pessoal através da extensão das psi-
cotecnologias. A questão mais interessante aqui é: como se
relaciona o indivíduo com uma tal situação?

Com a televisão, a imaginação acontece


do lado de fora da mente

Com a televisão, o ponto de vista está do lado de fora, a


olhar para dentro de nós com um feixe de electrões. A TV é
um ponto de vista muito público. Convida as pessoas a cons
truírem o sentido fora das suas próprias mentes: isto é, a re
ceber imagens completamente formadas do discurso social
de fora para dentro. Quando o mundo ocidental era apenas
governado pelos livros, havia um «interior» e um «exterior»
da nossa experiência psicológica. O reino exterior era públi
co, colectivo, estável, seguro e objectivo. Era institucionali
zado pela lei, educação e ciência. O reino interior das nosSas
mentes permanecia privado, pessoal e subjectivo.
Contudo, os media em directo, como a rádio e a televisão,
aceleraram o processamento externo de informação e come
çaram a diluir a distinção entre público e privado. Se a leitura
da palavra impressa é uma experiência verdadeiramente pri
vada, ver televisão ou entrar na Internet, não o são.
A TV fornece um tipo de realidade «mental» fora do corpo
e da mente. Enquanto vemos TV, se a nossa mente não diva
gar, se não tivermos um telecomando, as imagens do ecrã
substituem as nossas. Partilhamos da imaginação colectiva e
do pensamento colectivo que ela põe à nossa disposição. Na
televisão, as imagens não vêm da experiência pessoal, mas
do trabalho de uma equipa de produção profissional, frequen
temente influenciada pelas medições de audiências e estudos
A Pele da Cultura 271

de mercado. As sondagens lidam não com particulares ou


gostos e escolhas individuais, mas com números. Logo, a
medição de audiências e a programação televisiva que dela
depende é dirigida à consciência colectiva e não à privada.

Nem aqui nem ali

É claro que quando estamos a ver TV, temos de abstrair das


imagens um certo sentido, mesmo que mínimo. Apesar disso,
não há muito espaço para outra actividade mental. A nossa
tarefa é interpretar a seqüência de imagens e sons de modo
muito semelhante ao que utilizamos na vida: criando sentido
para o que está a acontecer segundo a segundo. A realidade
psicológica televisionada não pode ser verdadeiramente des
crita como objectiva. Ao trazer o mundo exterior para dentro
de casa, a televisão fornece um nível intermédio de discurso
social, nem exclusivamente público, nem realmente privado;
nem francamente ficcional, nem seguramente real. Podemos
ainda não ter plena consciência disto. Apesar da pressão para
adoptar modelos psicológicos externos, sempre fomos cria
dos com livros e daí podermos ainda manter modelos de
consciência privada desenvolvidos na Renascença.

Televisão — o nosso senso comum electrónico

Não interessa se temos um canal ou cinqüenta. O conteúdo


de uma estação de televisão geralmente fará eco de outro.
Abstraindo das questões de estilo, o discurso televisivo é o
mesmo por todo o mundo. A TV é üm barômetro da psicolo
gia global, não local. É a nossa psicologia global electrónica,
fornecendo-nos noções comuns de tempo, espaço e socieda
de. A televisão fornece-nos a todos um invólucro psicotecno-
272 Derrick de Kerckhove

lógico moral. Ao seleccionar os tópicos da nossa consciência


moral, elabora também parte do nosso pensamento para nós.
Exércitos de repórteres e publicitários ajudam-nos a seleccio
nar o que vale ou não a pena dizer. Somos tecidos numa psi
cologia de massas que selecciona os nossos assuntos por nós
e nos unifica cm opiniões convergentes. A TV não arrisca em
questões de moralidade pública. Quando um assunto contro
verso emerge, tal como questionar ou desafiar uma decisão
governamental, as estações de TV norte-americanas e euro
péias parecem dotadas de uma espécie de sistema de estan-
dardização e autocensura. As notícias de um canal são fre
quentemente idênticas, ponto por ponto, ao que outro está a
noticiar. Durante a Guerra do Golfo, a TV, actuando como
criadora de tendências e árbitro da moralidade pública, pro
vocou o aumento do número de pessoas a favor da guerra nos
EUA, Canadá e Europa (inicialmente 55 por cento, mais tar
de 85 por cento).
Colectiva e diariamente, procuramos continuidade, segu
rança e equilíbrio. A moralidade pública é inventada diaria
mente em directo na TV. Assuntos seleccionados são apoia
dos por narrativas simples com que qualquer pessoa se pode
relacionar. Começamos a ter uma noção da mente colectiva,
não como um conceito mas como um processo activo respon
dendo imediatamente a acontecimentos à medida que suce
dem. Nem reais nem fabricados, nem públicos nem privados
— mas tudo isto ao mesmo tempo — toda a informação é
adicionada no momento televisivo.
A soma total dos discursos nos nossos ecrãs é o nosso no
vo, electrónico, senso comum. Verdadeiramente comum na
medida em que é construído pelos media públicos. Verdadei
ramente sensorial na medida em que é um órgão reflexo dos
sentidos. A TV e, em certa medida, a rádio, operam como as
congeminações das nações. Na verdade, a notícia média em
televisão — um clip de 20 a 45 segundos — corresponde
A Pele da Cultura 273

exaclamente ao tempo que a maior parte das pessoas pode


dedicar a tais assuntos.
Quando os comentários de todos os noticiários sobre um
certo assunto são encarados como um todo, podem ser real-
mente vistos como «a nação a pensar» e este senso comum
alimenta o padrão e organização da cultura. A TV é também o
meio privilegiado para percebermos as nossas relações com a
realidade colectiva. Houve um tempo em que nos era dito pa
ra nunca acreditarmos em nada que tivéssemos visto na im
prensa. Agora vemo-lo primeiro na TV. De acordo com as es
tatísticas, a televisão c hoje considerada o meio mais impor
tante, mais credível c mais «autorizado» de todos. É digno de
registo considerando que o senso comum é o acordo tácito en
tre indivíduos e sociedade num ambiente democrático estável.
McLuluin foi o primeiro a reconhecer «que os sistemas
eléctricos de informação são ambientes vivos no pleno senti
do orgânico. Alteram os nossos sentimentos e sensibilidades,
especialmente quando não lhes prestamos atenção»118. O que
acontece quando o nosso senso comum já não está dentro de
nós, mas sim fora?

A iníegmção da TV e dos computadores

A televisão já não está sozinha. A nossa relação passiva


com um ecrã «objectivo» acabou; os computadores introdu
ziram toda uma série de novas relações -— interfaces — entre
as pessoas e os ecrãs. As nossas máquinas falam-nos e espe
ram respostas. Mais ainda, porque os computadores intensifi
cam e aproximam as relações entre todos os meios electróni
cos e os media integrados estão a mudar e expandir as raízes
da psicologia humana.
Os computadores estabelecem uma mediação entre o siste
ma nervoso interno de indivíduos e os sistemas externos de
274 Derrick de Kerckhove

processamento: actuam como interfaces entre o psicológico e


o técnico, tal como os videojogos fornecem interfaces entre
as respostas neurológicas e as electrónicas. Esta interacção é
um bom exemplo de um troca biotécnica estreita. A electrici
dade, que é produzida tanto orgânica como tecnologicamen-
te, é a base comum. A electricidade é também o meio que li
ga o mundo inteiro numa só rede. As trocas biotécnicas lo
cais entre corpo, mente e máquina estão agora ligadas a um
ambiente global pelo processamento de dados e transmissões
mundiais. O verdadeiro objecto da informatização é estender
ao ambiente electrónico o tipo de controlo e verificação que
as pessoas experimentam em si próprias.
Os novos media electrónicos estão a tornar-se ambientes
intermediários, acedendo à realidade íntima das nossas psi
ques privadas e fornecendo uma ponte para o mundo exte
rior. Efectuam uma espécie de mediação social numa única e
contínua extensão dos nossos poderes pessoais de imagina
ção, concentração e acção. Funcionam largamente como uma
segunda mente — em breve dotada de mais autonomia do
que talvez desejássemos.

Psicotecnologias

Ainda tendemos a considerar as notícias e as reportagens


como simples unidades de informação processada. Os media
que transportam as notícias são encarados como suportes
neutrais para armazenagem e distribuição, não como proces
sadores de informação. Esta visão vem da nossa forma de
pensar literária, que considera a imprensa o meio de informa
ção modelo. Com a imprensa, a informação está já completa.
O processador é o leitor, o agente livre. Mas agora que as
máquinas estão a. processar palavras e informações por nós,
talvez tenhamos que ter um olhar mais duro sobre a relação
A Pele da Cultura 275

entre os nossos meios e a percepção de nós próprios como


consumidores e produtores autônomos de informação.
Os sistemas de processamento de informação, como os
computadores e os vídeos, são extensões de algumas das
principais propriedades intelectuais das nossas mentes. Desta
forma, podem ser consideradas tecnologias da psique — psi-
cotecnologias. As psicotecnologias incluem os dispositivos e
redes públicas e domésticas de processamento de informação
«em directo». É o caso do telefone, a rádio, a televisão, os
computadores e os satélites, por exemplo. Como mudam re
lações no tecido social, reestruturam ou modificam também
aspectos psicológicos, especialmente aqueles que dependem
da interacção entre a linguagem e o organismo humano ou
entre a mente e a máquina.
Ao nível mais simples, qualquer meio obriga-nos a respon
der fisicamente ao seu modo de funcionamento. Por exem
plo, temos de nos sentar em frente a um ecrã para ver televi
são. Mas também temos de responder psicologicamente: usa
mos a nossa memória e imaginação de forma diferente con
forme estamos a ler ou a ouvir rádio. A um nível mais pro
fundo, já vimos que a nossa exposição aos media dominan
tes, tais como os livros e a televisão, pode realmente ter efei
tos secundários bem para além do tempo de exposição, con-
dicionando-nos tanto social como psicologicamente para res
ponder de acordo com critérios técnicos e não apenas psico
lógicos.

Telecracia

O poder dos novos meios pode já ser demonstrado pelas


sondagens. Enquanto a TV percorre a nossa mente, sonda
gens informatizadas percorrem o corpo social, deixando-o
como um esqueleto num negativo de raios X. Ajudada pelos
276 Derrick cie Kerckliove

computadores, a programação televisiva está mais estreita


mente relacionada connosco por via das redes de acesso ins
tantâneo e sistemas de monitorização. Na verdade, sonda
gens, audiências, pesquisas de mercado e todos os outros me
didores populacionais geram uma psicologia colectiva, me
diana e medianizante, ainda mais homogeneizada pela com
petição entre emissores. Recorrendo a sondagens para desco
brir a ’relação da TV com o colectivo, os media integrados
tornam-se uma espécie de consciência a meio caminho, uma
compreensiva mediação entre o eu e o mundo, entre eles e
nós, entre os nossos cérebros e as coisas da vida.
A integração da televisão com outros meios noticiosos
dentro de redes de computadores permite aos engenheiros de
sondagens reduzir o intervalo de tempo entre pergunta e res
posta, acção c reacção. O potencial para manipular opiniões,
nestas condições, é altamente ampliado. Isto tem muitas re
percussões políticas e sociais.
Os políticos das democracias de estilo ocidental devem
cada vez mais a sua base de poder a meticulosas análises in
formatizadas da opinião pública em determinadas áreas. Os
directores de campanha confeccionam as suas respostas em
meios localizados e apropriados. Durante as campanhas polí
ticas em todo o mundo a TV empanturra as consciências dos
eleitores com as suas imagens, enquanto computadores anali
sam as respostas nas sondagens, que são instantaneamente
apresentadas como factos estatísticos. Tudo isto é suposto
ajudar-nos a decidir. Mas quando a televisão e os computa
dores estão integrados num único anel de feedback em ques
tões urgentes, a decisão está tomada por nós. A nossa própria
capacidade de decisão pode nem sequer estar envolvida de
modo nenhum.
Uma coisa é as sondagens reflectirem, o mais precisamen
te possível, as opiniões de uma dada comunidade. Outra,
bem diferente, é essas mesmas sondagens moldarem opiniões
A Pele ela Ciillura 277

ou apresentarem opiniões que não existiam lá antes. Isto é a


psicotecnologia em acção. Sondagens e estatísticas têm um
efeito homogeneizador sobre a opinião pública porque desta
cam, c por isso promovem, respostas maioritárias relativa
mente às divergências. Numa cultura onde os meios de deci
são têm menos peso e tempo que os que fazem a mente co-
lectiva, é mais fácil deixar a maioria ter a preponderância.
Esta c uma das rupturas entre a cultura livresca e a televisiva.

Medicina — espiral

O sociólogo francês Jean Baudrillard sugere que, no novo


contexto mediático, já não é necessário produzir opinião (co
mo era o caso na Idade do Iluminismo) mas simplesmente re
produzir a opinião pública119. Para criar uma corrente de opi
nião, é suficiente levantar uma questão, por exemplo a emi
gração ou o aborto, 11a imprensa ou na TV. O passo seguinte
é levar a cabo um estudo de opinião. Frequentemente os re
sultados da primeira sondagem são inconclusivos. Nesse
ponto, os media aquecem o debate expondo e destacando
uma qualquer história controversa que prenda a atenção do
público. Tais acontecimentos, em si próprios, são frequente
mente triviais e estatisticamente irrelevantes. Quando o tem
po é o certo, geralmente depois de um qualquer incidente-
-rastilho a que é dado destaque pela TV ou pela imprensa,
nova sondagem é feita e exposta. Em momento algum as pes
soas sentem que se tornaram autoridades sobre um assunto
acerca do qual não faziam a mínima ideia um mês antes, e
sobre o qual nenhuma informação foi avançada. Na verdade,
muitas pessoas decidem baseadas num «palpite», não em fac
tos. Muitas pessoas, em geral as que constituem 0 «não sa
be», são profundamente influenciadas pelo que outras pes
soas, especialmente pessoas de influência, pensam e dizem.
278 Derrick de Kerckhove

Os votantes indecisos — habitualmente de 15 a 20 por cento


do eleitorado — geralmente estão críticos em relação ao re
sultado. Por isso, são o primeiro alvo de campanhas eleito
rais. Para os puxar para um dos lados, o truque é dar o peso
certo, no momento certo e no meio certo, às opiniões das
pessoas de poder e influência.
As últimas eleições americanas introduziram na cena me-
diática uma nova figura, o «doutor-espiral»*. O doutor-espi-
ral é um engenheiro de opiniões, cuja função é «pôr a girar»
as opiniões políticas de um líder em conferências de impren
sa e encontros públicos. A função consiste em seleccionar e
destacar as palavras, expressões mais sonoras e frases que te
nham maior grau de probabilidade de provocar o efeito dese
jado na opinião pública. Citar e repetir com, ou mesmo sem,
um comentário apropriado é como lançar uma bola de neve.
A espiral faz o resto. A medicina da espiral não funcionaria
sem os meios electrónicos. A própria electricidade é uma
«espiral». A reverberação ou feedback de um meio para o
próximo, da imprensa para a TV e reciprocamente, cria uma
impressão que em breve se transforma numa emoção e ali
menta uma opinião. Outra sondagem dá mais firmeza ao pro
gresso da opinião, o que por sua vez gera mais apoio para a
opinião. Há um efeito geral de aceleração entre as sondagens
e as notícias, especialmente quando chega a altura da segun
da ou terceira sondagem.
Como McLuhan gracejava, «quando a informação se move
à velocidade eléctrica, o mundo das tendências e dos rumores
torna-se o mundo “real”»120. A questão é que as novas elei
ções electrónicas não são uma representação verdadeira dos
votos individuais, mas mais um caso em que o ambiente
electrónico amplifica e torna reais as opiniões locais alimen
tadas pelos doutores-espiral. O ambiente é muito sensível a

*,«Spin Doctor» no original. (N. T. )


A Pele da Cultura 279

flutuações, mostrando padrões de estímulo e inversão tal co


mo as emoções humanas. É a velocidade da resposta que tor
na o ambiente electrónico integrado num sistema emocional
colectivo. Estudiosos da psicologia das multidões, peritos em
media, executivos publicitários e engenheiros de sondagens
todos concordam: existe um considerável efeito de arrasto
que empurra os «não sei» pelo caminho da maioria assumida,
particularmente quando a assunção é feita pelos media. E, é
claro, os políticos sabem muito bem que os votantes indeci
sos precisam de conhecer as opiniões dos outros antes de se
comprometerem.

Os satélites e a nova
sensibilidade continental

É também esta qualidade indefinível da emoção psicotec-


nológica que está a mudar as nossas bases geopolíticas e eco
nômicas. A nossa sensibilidade geográfica foi em tempos
condicionada pelos modelos de limites nacionais e continen
tais estáveis em lugares distantes. A geografia da Terra era
um palco de desenvolvimentos históricos relativamente len
tos. Hoje esta impressão dá lugar a imagens de condições cli
máticas e políticas em rápida mudança, afectando as econo
mias locais de uma forma real, monetária. São satélites, e não
as fronteiras nacionais, que governam as configurações geo
gráficas121.
A psicologia continental — evidenciada por idéias como a
Europa de 1992 ou o acordo de comércio livre entre os EUA,
o Canadá e o México de 1993 — pode ser um dos mais im
portantes efeitos secundários da tecnologia dos satélites.122
Os satélites mudaram o ponto de vista sobre os acontecimen
tos locais e globais. São o «olho de Deus», uma vigia à dis
posição de cada um de nós. Os satélites ignoram as fronteiras
280 Derrick cie Kerçkliove

nacionais e substituem a habitual psicologia terrena por uma


outra baseada cm amplos campos tecnoculturais. As únicas
fronteiras que estes respeitam são as que separam as zonas
povoadas das não povoadas, tais como a terra e o mar, valori
zando perspectivas continentais. Os satélites introduzem uma
nova sensibilidade e uma nova consciência de como nós, as
pessoas, nos encaixamos na consciência nacional e interna
cional. Os satélites dão ao mundo uma espécie de pele elec
trónica, enviando e recebendo informação sensível sobre os
assuntos humanos numa ampla e exaustiva rede de relações,
trazendo unidade e transparência às nossas percepções de um
número crescente de lugares do mundo.
Por outro lado, há muito espaço para a diversidade nos
conjuntos unificados da sinergia mediática. A propósito do
papel das tecnologias em mutação da radiodifusão na Europa,
o executivo de televisão alemão, Hans Kimmel, explica que

novas formas de distribuição por novas bandas de frequên


cias, satélites e cabo, puseram fim às restrições de canais.
Os monopólios de radiodifusão já não são possíveis e já
não são precisos. Na verdade, o desenvolvimento da radio
difusão na Europa tem sido sujeita a um processo constan
te de descentralização apesar da protecção de que gozam
as estações de língua nacional... o público já não se vê fa
ce a face com um solitário Deus da Comunicação transmi
tindo a sua mensagem monoteísta pelo ecrã de televisão
aos peregrinos involuntariamente reunidos no seu templo.
O emissor já não está em posição de se dirigir «à nação».
O telecomando pôs fim à lealdade a um canal.123

A consciência da Europa como uma entidade tem sido acom


panhada e reforçada por uma crescente consciência do papel
dos media como novo contrato social. Actualmente estão a ser
substituídas polaridades nacionais e internacionais relevantes.
A Pele cia Cultura 281

Identidades psicotecnológicas

A julgar pelas siglas usadas para os seus programas euro


peus, como ESPRIT, BRITE, FAST, ERASMUS, MEDIA,
BRAIN, SPRINT e EUREKA, podemos identificar uma ten
dência entre os burocratas para apresentarem os seus projec
tos como uma espécie de «revolução cognitiva». De facto, a
mente colectiva está a encontrar expressão, assim como
meios para desenvolver as suas actividades, num campo tec-
nocultural de psicologia humana, telecomunicações institu
cionais e tecnologia audiovisual. Esta mentalidade europeia
inclusiva está agora em construção e temos uma oportunida
de excepcional para observar os seus processos de auto-orga-
nização em acção. A substância é-lhe conferida pelo Acto
Único Europeu. Apoia nove línguas diferentes e mil dialec-
tos. Não é o resultado de uma política econômica ou indus
trial, mas da nova psicologia ajudada pela técnica 11a cultura
pós-industrial. As redes de actividades psicotecnológicas são
fornecidas pelas telecomunicações. O seu conteúdo, a miría-
de de facetas das características europeias, é alimentada pe
los media de difusão. Embora o desenvolvimento de tão am
plas «mentes» tecnoculturais vá ser em breve reconhecido
como a marca do continentalismo por lodo o lado, falta-nos
ainda admitir este tipo de organização psicológica na Améri
ca do Norte.
Por outro lado, se as comunicações electrónicas pratica
mente eliminaram 0 significado das fronteiras geográficas
como interfaces de mercado, estão também a corroer as fron
teiras entre identidades locais e globais. A electricidade flui
através das pessoas e das culturas e reorganiza-as à medida
que as reconfigura como campos tecnoculturais. Tal como os
meios electrónicos delimitam as fronteiras físicas e geográfi
cas, assim o fluxo electrónico delimita as nossas fronteiras
pessoais. O feixe de electrões apaga a maior parte das nossas
♦1
282 Derrick de Kerckhove

defesas psicológicas e corrói as paredes da nossa identidade


privada.
Como as estruturas dos sistemas de distribuição de infor
mação moldam as nossas respostas psicológicas de maneiras
formais (o meio sendo aqui a mensagem), as psicotecnolo-
gias criam a condição para um eu expandido, saindo do eu
pessoal para os mais distantes confins que sejamos capazes
de sondar com as nossas todo-poderosas e em constante ex
pansão, extensões perceptivas e motoras.

Eu sou a Terra a olhar para si própria

Peter Russell começou o seu livro The Brain Book com


uma citação do astrônomo Fred Hoyle, «Logo que esteja dis
ponível uma fotografia da Terra tirada do exterior... será
libertada uma nova ideia, mais poderosa do que qualquer ou
tra na história.»124 Esta citação é verdadeira e apropriada pa
ra um livro qi'è abre novos campos na percepção planetária.
O que está em causa é, evidentemente, que, uma vez vista a
fotografia, temos talvez uma sensação da unidade da Terra e
da humanidade que vive sobre ela. Começamos a perceber
que a Terra é uma massa una suspensa no espaço sideral. Es
sa fotografia iniciaria um novo estado psicológico.
Lembro-me de, em criança, tendo sido exposto a dúzias
de representações do nosso planeta, em bandas desenhadas e
livros de escola, ter a vaga consciência do facto de a Terra
ser uma grande bola redonda de matéria suspensa no espaço.
Estas imagens eram interessantes, mas não verdadeiramente
emocionantes. E, contudo, quando muito mais tarde vi a pri
meira fotografia da Terra observada do espaço no Paris-
-Match, experimentei uma emoção fantástica, um sentimen
to de espanto e ternura e também um sentimento de radical
contradição: era impossível eu estar a ver isto e, no entanto.
A Pele da Cultura 283

estava realmente a vê-lo. A fotografia era «a verdade», pelo


menos o acesso mais verdadeiro que eu podia ter à verdade.
Da mesma maneira, fotografias do outro lado da Lua, ou re
construções em computador da superfície de Miranda de
ram-me a emoção das coisas reais, da minha própria exten
são no espaço.
Seguramente, o mais importante efeito da fotografia da
Terra é expandir a percepção que temos do nosso eu para
além da imagem do corpo e alargar o nosso sentido de identi
dade. Na verdade, desde o primeiro momento em que vemos
essa fotografia, tomamos posse da Terra e de um novo poder
para nela investir. É uma extensão dos meus olhos. Tudo o
que nela está contido é «meu» tanto quanto eu sou «dela».
Sou eu. Com esta fotografia, recebo provas seguras de que
sou ao mesmo tempo terrivelmente grande e terrivelmente
pequeno. Um paradoxo apoiado pelo facto de eu ‘ver’ a terra
é que, embora eu seja apenas um entre cinco mil milhões de
pessoas, aquela coisa enorme é parte de mim. O facto de eu
próprio não ter tirado a fotografia, ou até de ter sido tirada
por controlo remoto pouca diferença faz. Se algo vindo deste
meu «eu maior» foi enviado para fazer esta fotografia, então
eu também a fiz, juntamente com todas as pessoas para quem
ela tem significado.
Da mesma forma, graças à televisão e à fotografia, ir à Lua
está ao meu alcance, mesmo que eu nunca vá lá com a minha
parcela pessoal de substância orgânica a que chamo o «meu
corpo». Este sentimento não poderia acontecer sem uma ex
tensão técnica das minhas próprias percepções que me mere
cesse confiança. Poderia ler coisas sobre a ida à Lua nos jor
nais, mas seria a experiência de outra pessoa. A televisão fá-la
minha. O mesmo argumento funciona com o telefone e outros
meios de comunicação que me dão acesso instantâneo a qual
quer ponto da fotografia; estas extensões dos meus sentidos
percorrem o corpo do Planeta e tornam-no parte de mim.
284 Derrick cie Kerckhove

Graças a esta fotografia, eu sou a Terra, eu e toda a gente.


Esta é uma nova experiência psicológica com implicações
imensas. A melhor vingança contra as psicotecnologias que
nos transformariam em extensões delas próprias é incluí-las
dentro da nossa psicologia pessoal. Um novo ser humano es
tá a nascer.
NOTAS

1 Como explica Early C. Joseph, «O crescimento leva normalmente mais


tempo do que o previsto. Apesar da crença de que o mundo está a andar
mais depressa, uma revisão da inovação passada mostra que leva muito
tempo até uma inovação ter sucesso comercial. Por exemplo, os transis
tores foram inventados há mais de 40 anos nos Laboratórios Bell. Le
vou quase uma década até que fossem usados nos computadores e mais
décadas ainda até serem usados em aparelhos electrónicos de consumo.
O forno micro-ondas, por exemplo, levou 20 anos a ter sucesso. É tam
bém a longo prazo que os produtos desaparecem do mercado. Um estu
do das 25 maiores marcas dos anos 20 mostra que 23 delas ainda hoje
ocupam os primeiros lugares na sua categoria», em «Lessons from Past
Errors», Futures (Novembro L990): 988-89.
2 A série de Bill Moyers, «Television the Public Mind» foi emitida na
NBC em 1989.
3 Hertha Sturm, «Perception and Television: The Missing Half Second»,
The Work o f Hertha Sturm, publicado e traduzido do alemão por Ger
trude J. Robinson (Montreal: McGill University, Working Papers in
Communications, 1988), 39.
4 Edward R. Slopek, «Collapsing the Interval», Impulse (s.d.):29-34.
5 Morris Wolfe, Jolts: The TV Wasteland and the Canadian Oasis (To
ronto: James Lorimer and Co., 1985).
6 A necessidade deste tipo de padronização é observável no comporta
mento que temos quando falamos ao telefone, em que acompanhamos
as nossas frases com mais gestos e movimentos que utilizamos na con
versa em presença do outro; talvez isto suceda porque este tipo de en
volvimento físico nos ajuda a dar sentido às coisas cpie dizemos.
1 Uugeins T, Gendlin, Experience and the Creation o f M eaning (Nova
Iorque: Free Press, 1964), 27.
286 Derrick de Kerckhove

8 Jean-Marie Pradier, «Toward a Biological Theory of the Body in Per


formance», New Theatre Quarterly (Fevereiro 1990): 89.
9 Tony Schwartz, Media: The Second God (Garden City, Nova Iorque:
Anchor Books, 1983).
10 Herbert E. Krugman, «Memory without Recall, Exposure without Per
ception», Journal o f Advertising Research 7:4 (Agosto 1977): 8.
11 William S. Kowinsky, The Mailing o f America (New York: William
Morrow, 1985), 43-8.
12 Denise Schmandt-Besserat, «L’invention de 1’écriture», Les Imaginai-
res 11, Cause Commune (1979): 119-30.
13 Ver Kerckhove, D. e Lumsden, C.J (eds.) The Alphabet and the Brain,
the Lateralization o f Writing (Heidelberg: Springer-Verlag, 1988) «A
theory of Greek Tragedy» Sub-Stance 29 (Maio 1981): 23-36; «Ecritu-
re, théâtre et neurologie», Etudes françaises (Abril 1982): 109-28. D.
de Kerckhove and D. Jutras (eds.), «Introduction à la recherche neuro-
culturelle», McLuhan e la metamoifosi d ell’uomo (Ottawa: Canadian
Commission for UNESCO, Occasional Paper 49, 1984), 112-29.
14 Joseph E. Bogen «Some Educational Aspects of Hemispheric Specia
lization», UCLA Educator 17:2 (1975):29.
15 Ver Kerckhove e Lumsen, A lphabet and the Brain, especialmente
«Logical principles underlying the Layout of Greek Orthography»,
153-72 e «Critical brain processes involved in deciphering the Greek
Alphabet», 401-21.
16 Falando com Jonathan Miller, Ernst Gombrich sugeriu que o aperfei
çoamento da representação perspectivista surgiu da procura de realis
mo a que chama o princípio da testemunha ocular, o desejo de repre
sentar e de ver um acontecimento como se estivesse a acontecer ali:
«Foi esta necessidade que, duas vezes na história (no mundo antigo e
na Renascença) levou à... imitação da natureza através do esquema e
correcção; do “fabrico à medida” com uma série sistemática de tenta
tiva e erro que nos permitiu, finalmente, olhar para além da superfície
plana do quadro para o mundo imaginário evocado pelo artista», em J.
Miller, States o f M ind , Nova Iorque, Methuen, 1983), 231.
17 Esta história tem corrido bastante entre os círculos intelectuais de On-
tário. Eu tive o privilégio de a ouvir duas vezes da boca de Michael
Smart. A primeira vez foi em 1972, num dos famosos seminários so
bre cultura e tecnologia das noites de segunda-feira de MacLuhan. A
segunda em Fevereiro de 1991 num comboio de Toronto para Otava.
18 Paul Levinson, «Media Relations: integrating computer telecommuni
cations with education media», in R. Mason e T. Kaye (eds.) Min-
A Pele da Cultura 287

dweave: Communication, Computers and Distance Education (Lon


dres: Pergamon, 1989), 42.
19 Tal como o acrônimo AI é universalmente reconhecido como Inteli
gência Artificial, é suficiente referirmo-nos, daqui para a frente, à
«realidade virtual» como VR. A Realidade Virtual podia, no entanto,
ser igualmente designada por imaginação artificial ou consciência arti
ficial. É porque podemos agora acrescentar aos nossos sentidos dados
sensoriais tais como visão, audição e tacto artificiais que podemos de
facto considerar a possibilidade de existência de uma consciência arti
ficial. AI é igual à AC quando se lhe retira o funcionamento dos senti
dos. Só acrescentando o funcionamento sensorial podemos reconsti
tuir, fora do nosso corpo, o tipo de interioridade característica da
consciência humana.
20 Carrabine, Laura, «Plugging into computer to Sense Virtual Reality»,
em Computer Aided Engineering (Junho de 1990):23.
21 M arshall M cLuhan, U n d ersta n d in g M ed ia (Toronto: M cGraw-
-Hill,1964).
22 Howard Rheingold, «Travels in Virtual Reality», Whole Earth Review
(Verão 1990): 85.
23 Steve Pruitt e Tom Barrett, «The Corporate Virtual Workspace», co
municação apresentada na First Conference on Cyberspace, Maio 4-5,
1991, Universidade do Texas, Austin (retirado de um relatório não pu
blicado de Maurice Sharp. Knowledge Science Labs, Universidade de
Calgary).
24 John Perry Barlow, «Being in Nothingness», Micro Times (Jan. 22,
1990): 104.
25 Dyson, Forbes Magazine.
26 Pruitt e Barrett, «The Corporate Virtual Workspace».
27 Citado por Rheingold, «Travels in Virtual Reality».
28 Marc de Groot, «Virtual Reality», Unix Review 8:8 (Agosto, 1990):
34-5.
29 Rheingold, op. cit.
30 E curioso verificar que é uma mulher não um homem, que é presente
mente considerada como pioneira do tacto electrónico. Margaret
Minsky, filha do famoso perito de inteligência artificial do MIT, está a
desenvolver um inovador «simulador de texturas virtuais» que, em
conjunto com outros sistemas preparados para a simulação do movi
mento, peso e densidade irá acabar por aumentar o âmbito e a profun
didade da apreciação táctil dos objectos tanto fora como dentro da
RV. Como descreve Steve Ditlea, «os cristais simulados electrónica-
288 Derrick de Kerckhove

mente podem ser usados em cada dedo para criar uma sensação de
formigueiro que o cérebro humano interpretará como uma pressão de
um objecto sólido», ib id , 94.
3 1 Jaron Lanier e Frank Biocca, na «Insiders View of The Future of Vir
tual Reality», Journal o f Communication 42:4 (Outono 1992): 160.
32 McLuhan, Understanding Media, 67.
33 Laura Carrabine, «Plugging into the Computer to Sense Virtual Rea
lity», Computer Aided Engineering (Junho 1990): 23, 26.
34 Barlow, «Being in Nothingness», 104
35 Citado por Eric Gullichsen, «In the realm of the sensors», Catálogo do
A rt Futura 1990 (Barcelona: Verão de 1990).
36 Não é impossível causar um curto-circuito no processo (de impulsos
electroquímicos) ao substituir os estímulos da realidade exterior por
uma conexão entre a rede cerebral e o programa de computador que
emite estímulos similares às percepções sensoriais», «Virtual Reali
ties», ibid., 2 1.
37 Tom Perkings, citado por Scott Fisher, «Virtual Environments, Perso
nal Simulations and Telepresence», ibid. , 50.
38 Ib id , 51.
39 Ibid.
40 Este é o nome do sistema que liga várias bases de dados da Internet
através de links especializados em dar acesso automático à informa
ção. Está associado a software de navegação, como Mosaic, Cello ou
Netscape, o que permite navegar neste labirinto electrónico com cor,
som e imagem em movimento (embora ainda limitada). A World Wi
de Web contribui para a sedução da Net; a vontade de entrar nela está
a crescer mais depressa do que o fornecimento de linhas e de equipa
mento.
41 Numa continuação surpreendente de uma distinção importante há tec
nologia rádio, a ADSL (assym etrical dig ita l su b scrib er loop) e o
ATM parecem partilhar algumas características das diferenças de pro
cessamento entre AM e FM: enquanto o AM (amplitude modulation)
afecta as formas modulando a amplitude das ondas de som, o FM (fre
quency m odulation ) dirige-se ao número de frequências das ondas pa
ra distribuir e estruturar o sinal; da mesma forma o ADSL parece ba
sear-se na compressão da estrutura do sinal, enquanto o ATM diz res
peito à quebra, manipulação e reconstrução dos segmentos de cada si
nal.
4‘2 Nicholas Negroponte, «Trading Places: Over next 20 years television
and telecomunications will swap their primary means of transmission»
A Pele da Cultura 289

em «products and Services for Computer Networks», Scientific A m e


rican, (Setembro 1991): 76-8.
43 George Gilder, «The end of Telephony», 150 Economy Years, número
especial dc aniversário de The Economist, 1993.
44 0 anúncio da Volvo na Hotwired, a versão on-line da Wired, é o
exemplo mais recente cpie vi deste novo direccionamento publicitário.
Pode ver-se o carro que escolhemos de vários ângulos; amanhã pode
remos guiá-lo numa auto-estrada virtual. Em breve, claro, essa poderá
ser a única forma de guiar que lhe vai apetecer...
45 Comunicação Pessoal.
46 Mark Poster The Mode o f Information (Chicago: University of Chica
go Press, 1990).
47 William Irwin «History as Cultural Perception», U nderstanding
1984/Pour C om prendre 1984 (Ottawa: Canadian Commission for
UNESCO, Ocasional Paper 48, 1984):319.
48 No caso do edifício, a velocidade é zero. Um.edifício que seja atingi
do por um míssil é destruído porque não pode ceder de todo. Por outro
lado, alguns edifícios, como por exemplo os bunkers, estão mais bem
desenhados, com material mais forte que outros, para suportar o im-
pacte de mísseis.
49 Tom Forester, H igh-Tech Society (Cambridge, Mass.: MIT Press,
1988), 218.
50 Como David F. Linowes comenta: «A maior parte dos americanos não
faz ideia da quantidade de informação pessoal, delicada, sobre todos
nós que está a ser acumulada e mantida em enormes memórias infor
máticas, para nunca mais ser destruída. Esta informação pertence a
grandes empresas, bancos, companhias de seguros, instituições gover
namentais, mesmo escolas e organizações religiosas.» «The Informa
tion Age: Technology and Computers», Vital Speeches o f the D ay (27
de Outubro de 1990).
5 1 Thompson, «History as Cultural Perception».
52 Philippe Quéau numa conferência, «Babel», Colônia (Novembro,
1992).
53 Ver Howard Rheingold, V irtual R eality (Nova Iorque: Summit
Books, 1991)55-7.
54 Alvin Toffler, A Terceira Vaga (Nova Iorque: Morrow, 1980).
55 Jacques Attali; Noise: The Political Econom y o f M usic (Paris, Le
Seuil, 1989).
56 Sandra Trehub e Bruce Schneider (eds.). Auditory Development in In
fa n cy (Nova Iorque, Plenum Press, 1985).
290 Derrick de Kerckhove

57 Alfred Tomatis, L ’Oreille (Paris, Le Seuil, 1972).


58 Jean-Pierre Changeux, Neuronal Man (Boston, Basic Books, 1990).
59 Jacques Méhler, Théories clu Langage , Theories de 1’Apprentissa.ge
(Paris, Le Seuil, 1979).
60 Julian Jaynes, The Origins o f Consciousness in the Breakdown o f the
Bi-Cameral Mind (Boston: Hougton Mifflin, 1976).
61 Marshall McLuhan, op. cit.
62 Walter Ong, Orality and Literacy (Londres, Methuen, 1982).
63 Marcel Mauss, A General Theory o f Magic (Londres, Routledge and
Kegan Paul 1972).
64 Eric A. Havelock, Preface to Plato (Cambridge, Mass.: Belknap Press
of Harvard University Press, 1963); Prologue to Greek Literacy: L ec
tures in M em ory o f Louise (Cincinnati: University of Cincinnati,
1971).
65 Diane McGuinness, «Sex, symbols and sensations» em D. de Ker
ckhove e A. Iannucci (eds.) M cLuhan e la M etam oifosi dell'U om o
(Ottawa: Canadian Comission for UNESCO, Occasional Paper No 49,
1984).
66 Sylvia Scribner e Michael Cole, The Psychology o f Literacy (Cam
bridge, Mass.: Harvard University Press, 1981).
67 Comunicação Pessoal.
68 0 Futurist (Set.-Out. 1989): 10. /
69 De acordo com Robert B. Porter, «Em 1989, um telefonema de dez
minutos dos Estados Unidos para o Reino Unido custava $9.90. Em
1950. o mesmo telefonema custava $209.30, em dólares de 1989. Não
é coincidência o facto do número de chamadas dos EUA para o Reino
Unido tenha subido de 110 300 em 1950 para quase 85 milhões em
1989.» Em «Conflict and Co-operations in the Global Marketplace»,
Vital Speeches o f the Day 57:6 (Jan. 1, 1991): 163.
70 Herb B rody, «O C om putador N euronal», T ec h n o lo g y R e v ie w
(Ago./Set. 1990): 46.
71 Ibid.
72 J. Clarke Smith, «A neural network — could it work for you?» Finan
cial Executive (Maio/Junho 1990): 26.
73 Maureen Caudill, «Humanly Inspired», Unix Review 7:5 (Primavera
1989): 42.
74 Ibid., 44.
75 Ben Passarelli lembra-nos que por alturas da viragem do século, o
neurobiólogo pioneiro Santiago Ramon y Cajal tinha descoberto que
«o caminho neural para uma tarefa de reconhecimento ou reflexo não
A Pele da Cultura 291

pode envolver mais do que 20 ou 30 passos seqüenciais executados


em paralelo». Em «Profiles in Learning», Unix Review 7:5 (Primave
ra, 1989): 51.
76 Brody, «The Neural Computer», 45.
77 A. Wilson, «Do DARPA’s Androids Dream of Electric Sheep?», ESD
The Electronic System Design M agazine (Julho, 1988): 28.
78 Brody, «The Neural Computer», 47, 49.
79 Ibid., 49.
80 Wilson, «Electric Sheep», 30.
81 Passarelli, «Profiles in Learning», 52.
82 Maureen Caudill descreve a diferença: «Um computador digital exe
cuta as suas acções em números que foram, é claro, convertidos para
uma escala digital. Isto quer dizer que os números usados podem ter
apenas valores discretos; não são entradas de valores verdadeiramente
contínuos. O tamanho dos intervalos discretos pode ser muito pequeno
na prática (um número real de 64 bits é extremamente preciso!), mas
os intervalos estão lá na verdade e o computador não lida com valores
analógico contínuos», «Humanly Inspired», 42.
83 Herb Brody observa que a «função das redes [neurais] é determinada
pela sua topologia — a maneira como os neurônios estão ligados... is
to também distingue as redes neurais dos computadores convencio
nais, que se baseiam primariamente num conjunto codificado de ins
truções, ou programas». «The Neural Computer», 44.
84 Ibid.
85 O mais popular destes procedimentos de treino é a chamada «retropro-
pagação» e é descrito por Maureen Caudill: «As redes de retropropa-
gação usam um regime de treino chamado aprendizagem supervisio
nada em que a rede é alimentada com um padrão de entrada juntamen
te com o padrão de saída apropriado para essa entrada. Os pesos das
interconexões da rede são modificados pelos neuronós na base das di
ferenças entre a saída real e a saída desejada para a rede. Este proces
so é repetido até a rede reconhecer correctamente os padrões de entra
da usados no treino. Ou seja, o procedimento de treino é interactivo,
exigindo muitas apresentações de cada padrão de treino antes da
aprendizagem estar completa», «Humanly Inspired», 42.
86 John Naisbitt e Patricia Aburdene, Megatrends 2000 (Nova Iorque;
Avon Books, 1990, 258).
87 Edward Hall, The Silent Language (Garden City, Nova Iorque: Dou
bleday, 1959).
88 Kowinski, The Mailing o f America.
292 Derrick de Kerckhove

89 Citado por Fred Thompson em «The Development of the Japanese


Transportation System», Explorations (Verão, 1990): 74.
90 Ib id .,16.
91 Ibid., IS.
92 Ibid., 84.
93 Mark Segal, «The Alien Other in Japanese Fantasy Television», Ca
nadian Journal o f Political and Social Theory, 12:3 (Outono, 1988).
94 E interessante notar que três das mais poderosas nações do mundo,
Estados Unidos, Rússia e Japão, nações que presumivelmente têm
menos a temer em termos de agressões vindas do exterior, são tam
bém as que parecem favorecer as mitologias mais agressivas nos
seus media populares. A agressão pode ser vista apenas como uma
projecção do medo que a cultura tem de si mesma e da sua transfor
mação.
95 Stephen Kline, «The Theatre of Consumption: On Comparing Ame
rican and Japanese Advertising», Canadian Journal o f Political and
Social Theory, 12:3 (Outono, 1988), 104.
96 Ibid.
97 Nicholas Valéry, «Back to the Drawing Board: A Survey of Japane
se Technology», The Economist (2 de Dezembro de 1989): 5.
98 Michel Random, La stratégie de Pinvisible (Paris: Félin, 1985), 149-
-50 (tradução a partir da versão inglesa do autor).
99 Marshall McLuhan, The Dew Line (Toronto: McLuhan Centre for
Technology, University of Toronto, Occasional Papers, s.d.).
100 Claudia Dona «Invisible Design» em D esign A fter M odernism :
B eyo n d the Object, John Thackara (ed.) (Londres, Thames and
Hudson 1988).
101 Ibid.
102 McLuhan, op. cit.
103 Ibid.
104 Pierre Levy, L ’lntelligence Collective (Paris, La Découverte, 1994).
105 Jaron Lanier e Frank Biocca, op. cit.
106 Harold A. Innis, The Bias o f Communications (Toronto, University
of Toronto Press, 1951) Empire and Communications (Toronto: Uni
versity of Toronto Press: 1972).
107 Havelock, op. cit.
108 Havelock, «Prologue to Greek Literacy».
109 Marshall McLuhan, The Gutenberg Galaxy: The M aking o f Typo
graphic Man (Toronto:University of Toronto), Understanding Media
(Toronto: McGraw-Hill, 1964).
A Pele da Cultura 293

I 10 Elizabeth Eisenslein, The Printing Press as a A gent o f Change


(Cambridge: Cambridge University Press, 1979).
I 11 Cornu explica David Harvey «a ordenação simbólica do espaço e do
tempo fornecem um quadro para a experiência através do qual apren
demos quem somos e o que somos na sociedade». Harvey cita o so
ciólogo francês Pierre Bourdieu: «A razão porque a submissão aos
ritmos colectivos é ordenada com tanto rigor reside no facto de as
formas temporais e das estruturas espaciais estruturarem não só a re
presentação colectiva do mundo mas do próprio grupo de acordo
com esta representação.» Ver David Harvey, The Condition o f Pos
tmodernity: Alt Enquiry into the Origins o f Cultural Change (Cam
bridge: Blackwell, 1989).
112 Schmandt-Besserat, «L’Invention de 1’écriture».
113 Ver Harvey, op. cit. «Os mercadores e os mestres criaram uma nova
“rede cronológica” na qual foi captada a vida quotidiana, simboliza
da pelos relógios e sinetas que chamavam os empregados para o tra
balho e os mercadores para o mercado, separados dos ritmos “natu
rais” da vida agrária, divorciados dos significados religiosos.»
114 As redes neurais, especialmente as que se baseiam em chips analógi
cos, são muito diferentes porque funcionam com base na contextuali-
zação e contexto dos dados, enquanto todas as,outras arquitecturas
informáticas adoptam o princípio da fragmentação como base de
funcionamento.
115 Em Neuromante, o romance de Gibson, há muitas referências alta-
mente instrutivas sobre novas experiências tácteis; especialmente re
levantes para a compreensão da situação em que estamos a entrar é a
sugestão de que será possível guiar outra pessoa, ou um robot, num
ambiente de telepresença radical.
116 Lanier e Biocca, op. cit.
I 17 Os utilizadores da Internet deliciam-se com a ausência de caracterís
ticas psicológicas que podiam provocar interferência na autenticida
de assumida das suas comunicações. Muitos dos que se dedicam à
pornografia, no «Minitel Rose», em França, colocam anúncios que
os descrevem sempre como mulheres loiras e bonitas, mas são sem
pre pequenos empregados de escritório.
I 18 McLuhan, Understanding Media.
119 Jean Baudrillard, Les strategies fa tales (Paris: Gallimard, 1984).
120 McLuhan, notas de uma apresentação oral, s. d.
121 De acordo com o economista político David Linoews, há mais de
3000 satélites de comunicações no espaço e, como A. C. Clarke uma
294 Derrick de Kerckhove

vez comentou, uma combinação de quaisquer três de entre eles pode


potencialmente chegar a qualquer pessoa do Planeta.
122 O lançamento da primeira série de satélites de comunicações total
mente europeus, os ECS-1, 2 e 3, postos em órbitas por foguetões
Ariane franceses, entre Junho de 1983 e Maio de 1985, provocou
uma rajada de actividades regulamentadoras para controlar o uso e a
partilha das ondas hertzianas pelos estados membros.
123 Hans Kimmel, «The future of educational broadcasting», EBU Re
view, Programmes, Administration Law, Vol. XL, No. 5 (Setembro
1989): 34.
124 Peter Russell, The Brain Book (Londres: Routledge and Keegan Paul,
1979),!.

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