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Cap1 - Phlippe Aries - Retratos Da Morte No Ocidente

Retratos da morte no ocidente
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Cap1 - Phlippe Aries - Retratos Da Morte No Ocidente

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1 PHILIPPE ARIES: Retratos da morte no Ocidente miclandestinidade de uma aventura solitaria e juntar minha voz go coro numeroso dos tanatdlogos” (Ariés, 1977, p. 12). ‘A forma de encarar a morte é importante para compreender rituais e formas de enfrentamento e é base também para a formagio de profis- sionais da satide e da educagao no seu trabalho cotidiano com a morte. Ariés (1977) realizou estudos sobre a historia do homem diante da morte, observando sua relagdo e seu significado durante a vida. S40 li- gados a uma trama ou a um tecido cultural presente em varias fases da historia e enfatizam atitudes e maneiras peculiares de vinculacao ao tema « A morte tao loquaz que, de minha parte, apresso-me a sair da se- da morte. Os estudos do autor s4o relativos ao Ocidente e trazem a anilise de documentos ¢ obras de arte sobre a morte das mais diversas origens. Neste capitulo, sero apresentados alguns pontos que nos ajudam a refle- tir sobre o tema a partir de seu livro Historia da morte no Ocidente (Aries, 1977), cujos titulos empregados pelo autor serao utilizados para nomeat as partes que seguem. 8 Purupre Artis: RETRATOS DA MORTE NO OCIDENTE AMORTE DOMADA: TODOS NOS MORREMOS A morte domada refere-se 4 morte que faz parte da vida, que é conhecida e é vivida em fungao desse conhecimento, publico e coletivo. Por um longo periodo na historia, a morte era anunciada por um ritual, e, por isso, era ridiculo ignorar esse aviso. Essa ideia de prentincio permitia o preparo para enfrentar a situa¢ao, que ocorria na ocasiao de guerras ¢ de doengas. Segundo Ariés (1977), a morte repentina era considerada infame e vergonhosa. Ela nao cabia em um mundo de familiaridade com a morte; era um insulto, trazendo desonra, feiura e monstruosidade. Era também clandestina, por no ter testemunhas. Se ocorresse por acidente, assassinato ou suicidio, nao teria direito a uma sepultura crista, pois nao havia tempo para o arrependimento dos pecados. Uma imagem frequente da morte domada é a pessoa doente em seu leito de morte, rodeada de familiares e amigos, falando de seus temo- res, mas também de seus desejos no final da vida, fazendo um apanha- do de sua vida e de suas experiéncias e mostrando familiaridade com a morte. Nessa situagdo, eram expostas suas recomendagoes e despedidas. Nas guerras, os feridos que tinham realizado atos heroicos buscavam a simplicidade na hora da morte. Uma ceriménia comum era feita para os feridos, que realizavam despedidas, pediam perddo, expressavam as recomendacées para seus familiares e companheiros e diziam o que dese- javam que ocorresse no seu enterro. As caracteristicas principais da morte domada eram a simplicidade das ceriménias e o fato de ser evento puiblico. A pessoa 4 morte estava no centro do processo; a morte lhe pertencia. Nessa perspectiva, o grande temor era de estar sé no momento do ébito. Entre as representagoes da morte est4 a perspectiva do sono e do repouso das almas, presente nas esculturas de cemitérios e nas oragdes. A morte nao é vista com repug- nancia: é uma fatalidade. A morte domada é familiar, faz parte da vida, é publica e esta presente desde o século V até os dias de hoje, atualmente convivendo com outras perspectivas, que pretendem afastar a morte da vida das pessoas, tornando-a um evento distante. EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIGMAS 9 APROTEGAO DOS SANTOS Apesar da familiaridade com a morte, havia preocupacéo com a proximi- dade dos mortos, sendo necessdrio o afastamento para evitar o contdgio. Essa ¢ uma das raz6es para os cemitérios ficarem localizados fora das cidades e as sepulturas terem as indicagées certas Para evitar odores e contaminacao dos lengdis freaticos. Do ponto de vista cristéo, era importante enterrar os mortos perto dos santos, para ter protecdo e seguranca para os vivos. Os malditos e os excluidos eram abandonados nos monturos, pendurados e expostos. Os suicidas eram enterrados em locais especiais para eles. Como trans- grediram as leis divinas, nao tinham direito aos rituais finebres e nao podiam ser abencoados. Hé relatos de pessoas que se mataram e tiveram suas mdos cortadas para no repetir 0 ato. Com o aumento das cidades e do niimero de habitantes, j4 nao era possivel enterrar todos na igreja, s6 os privilegiados tinham esse direito, porque ofereciam doagées a igreja ou eram pessoas do clero. Quando nao havia mais espago na igreja, passou-se a utilizar o patio e, depois, terrenos proximos. Podemos ver, em varias cidades, os cemitérios préximos & igreja matriz. Quando visitamos igrejas antigas, podemos ver os timulos dos poderosos na nave, prdximos ao altar e nas paredes. A relacdo entre igrejas € cemitérios esta na raiz de algumas palavras como churchyard ou kirchhof, Por falta de espaco, havia ttimulos justapostos, os ossdrios, que con- tinham ossos depositados nos muros. Alguns ossos eram retirados das Sepultura para dar lugar a novos corpos. Com o tempo, surgiu o termo cemitério, como é conhecido na atualidade, e os termos churchyard e gra- veyard foram substituidos por cemetery, na lingua inglesa. Além dos oss4- ‘ios, havia também as valas comuns para os pobres, com varios corpos no Mesmo espaco, que, se ficassem sem prote¢ao, poderiam ser devorados Por animais selvagens. Pode-se observar, entdo, a diferenca entre ricos e if en morte. Para os ricos, havia ° lugar privilegiado nas igrejas; para : » as valas comuns. Hoje essa diferenga se mantém, pela localiza- Sao Bes dos Cemitérios e pela arquitetura das sepulturas. 10 Pruipre Artis: RetraTos DA MORTE NO OCIDENTE Para localizar a sepultura, havia inscrig6es. Entre os espacos mais valorizados estd 0 coro no altar, onde se reza a missa, garantindo maior protecao dos santos. Outro espaco ficava préximo da Virgem Maria e do crucifixo. Na Idade Média, ocorriam epidemias com grande ntimero de cor- pos, lotando os cemitérios. Houve épocas em que sé se enterravam al- guns ossos porque os esqueletos ocupavam muito espago. Os cemitérios come¢aram a crescer e passaram a ser lugar de visita aos mortos: uma praca ou um passeio ptiblico, onde as pessoas podiam se encontrar. Eram locais de agitacao ou aglomeragio, com lojas, feiras espetaculos de mi- mica, teatro e malabarismo. Tornaram-se espagos de prostituicao e abrigo para mendigos. Estava se perdendo a sacralidade do espaco. Mortos ¢ Vivos estavam juntos no mesmo espaco. AMORTE DE SI, A HORA DA MORTE, RECORDACOES DE UMA VIDA Ariés (1977) afirma que até o inicio do desenvolvimento cientifico da medicina havia uma crenca generalizada de que havia vida apés a morte, uma continuidade presente em varias religides. Nessa perspectiva, estava Presente a representac4o do julgamento final e da salvacao da alma, que estd na base de varios rituais, das doacées monetatias no final de vida e das oragées. E a manifestacao do fim dos tempos e do apocalipse. Aqueles que tinham a protecdo dos santos nada tinham a temer. Até 0 momento da morte podiam ser feitas oragées € recomendacées. O final da vida e 0 julgamento traziam inquietude aos moribundos, com a separacao entre os bons e os maus. ' Uma imagem recorrente dessa época era a pesagem das almas. Cada vida era colocada na balanga Para ver o peso das boas e das mas agées. Toda vida era julgada diante das autoridades celestes. Havia possibilidades de perdao ~ por exemplo, as doagées ~, tornando as almas mais leves para irem em direcio ao céu. O drama no quarto do moribundo esta tepresentado em obras de arte que representam a morte, as Ars moriendi EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIGMAS 11 (A arte de morrer). Podemos ver essas representac6es nas obras de Van Eyck e J. Bosch. Entre o céu € o inferno, as oracées podem ajudar na trajetoria do morto. Os livros de Ars moriendi sao auxiliares nesse percurso do final da vida e do caminho entre 0 céu eo inferno. Um exemplo é o Livro tibe- tano dos mortos, 0 Bardo Thodil, em que sao recitadas as instrug6es para avancar pelo Bardo e assim chegar ao Nirvana sem ter que cair na roda de encarnagées (Evans-Wentz, 1960). Citamos também 0 livro de Reoch (1998), Morir bien: una guia para afrontar con valor y dignidad la experien- cia de la muerte, que apresenta uma série de recomendacoes e atividades para uma melhor qualidade de vida e a busca da morte com dignidade. ‘As mortes ocorriam nos leitos, em casa; a morte natural causada por doengas era gradual. As mortes stibitas e inesperadas eram temidas por néo permitir preparacéo. Nos livros citados, ha representagao de imagens sobrenaturais e figuras divinas e diabdlicas, e varios rituais sao estabelecidos para afugentar essas entidades, que perturbam a vida. TEMAS MACABROS Os temas macabros trazem representacoes realistas do corpo humano durante a sua decomposicao. Esse proceso comega logo apés a mor- ae o esqueleto fica dessecado, chamado de marie secea, oe 7 na soos dos séculos XVII e XVIII. Também ie a putificacgo e - terra Sera, as Gnas resultantes - decomposigao € Pupnantes ba i 2 € 0 cadaver semidestruido. Ha figuras menos re- Os tense ~ a os corpos envolvidos por uma mortalha. insblitas, Por 7 = oe também © que no se vé — as cenas “Morte entrando , eee tipica é, para a surpresa do doente, 80 de sua chegada, U; quarto com 0 cainio nos ombros, como um avi- com a Patticipacso a tepresentacao frequente é a da danga macabra, Stendem a ne le vivos € mortos, com a conducdo dos tltimos, que MoKtos ¢ a par ne ara 08 vivos que serao arrastados. Eo movimento dos sia dos vivos, Essas imagens ressaltam a igualdade de 12 Prmupre Artis: RETRATOS DA MORTE NO OCIDENTE todos diante da morte e também indicam que a morte se anuncia: bastar olhar e se vera o aviso. A morte que no se anuncia — a morte imprevista —assusta, é traigoeira e muito temida. O triunfo da morte outra representagao frequente, ilustrando seu poder. Est4 presente no quadro de Brueghel, com esse titulo. “A carreta da morte é uma maquina de guerra, uma maquina destruidora que es- maga sob suas rodas, ou sé com sua sombra fatal” (Ariés, 1977, p. 126). Trata-se de uma figura do destino cego, que nao reconhece a individua- lidade; a morte leva todos. Os temas macabros se relacionam com a decomposi¢ao dos corpos vivos — € a morte nas profundezas da vida. Essa imagem pode ser relacio- nada com a degeneracio das doencas e a decrepitude da velhice; entao a morte aparece como possibilidade de repouso e alivio. Isso também pode estender-se a alguns casos de suicidio, quando o softimento se torna in- toleravel. Nesses casos, a morte, mesmo que stibita, é melhor do que a morte anunciada, se ocorrer lenta e prolongadamente. As epidemias, as guerras ¢ as mortes coletivas trazem muitas imagens macabras, com corpos destrogados e mutilados. Um exemplo ¢ 0 montu- fo, que consiste em valas com muitos corpos, nesse caso ainda com odor fétido. Para Ariés (1977), os temas macabros se relacionam com a vida degradante, Eles provocam medo e a iluséo sobre a morte, Nao se veem imagens de moribundos agonizando, ainda vivos, mas desfigurados. A arte macabra mostra 0 que nao se vé, o que se passa debaixo da terra, a decom- posi¢ao escondida. E um produto da imagina¢ao e nao da observacao. A intengao do macabro nao é provocar medo, e sim favorecer 0 desapego. A pessoa tem que se confrontar com tentacées para confirmar sua fé e reali- zar 0 desapego das pessoas e das coisas queridas. HA mengio de um quadro de Bosch que retrata um homem carregando um imenso saco de moedas, t4o pesado que quase nao consegue carregé-lo. E uma imagem da Idade Média ligada 4 avaritia —a dificuldade do desapego. O fracasso é outra fepresentac4o importante da morte, pois esta che- ga antes das realizacdes da vida. Nesses Casos, a pessoa nao consegue s¢ EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIGMAS 13 resignar € Se desapegar de suas posses terrenas. A morte agora ressalta a decomposi¢ao € a podridao. GARANTIAS PARA O ALEM: RITOS ARCAICOS EOUTROS COSTUMES - ABSOLVIGAO, LUTO DESMEDIDO, RAPTO DO CORPO Varios rituais sio desenvolvidos para garantir a paz e 0 repouso das almas apés a morte. E muito importante que sejam prestadas honras e absolvi- fo antes da morte, garantindo a béngao ¢ a purificagao. O moribundo deve estar rodeado de pessoas, recebendo rezas para protegé-lo dos pe- rigos e dos pecados. Esses rituais eram realizados ainda em vida, sobre o corpo morto e no funeral. Uma imagem que passa a se desenvolver é a lamentagao dos sobre- viventes diante do cadaver, com excesso de sentimentos, que agora eram autorizados, mesmo que néo valorizados pela igreja. Havia sinais exter- Nos que passaram a ser respeitados. Um exemplo é a roupa preta que Mostrava que a pessoa estava enlutada, sem que tivesse que expressar seus sentimentos de forma mais dramética. O sofrimento da pessoa era teconhecido. As oracées tinham como objetivo apaziguar 0 enlutado e cram destinadas também aos mortos para que nao atormentassem os Vivos. Elas eram lidas com 0 nome dos mortos, para garantir que nao haveria confusio no dia do juizo final. Essas listas deram origem aos Obituétios. As missas celebradas tinham como intengo acalmar os vivos, eam no lugar dos mortos, sabendo que um dia oh a. a oan do século IX, as missas passaram a ser realiza fas = 7 ities, No ss inclindo os nomes dos mortos, 0 que trouxe ee tiog momentes in ce a a XVI, as missas eram ae Miche ovelle denoming ‘eetice do moribundo, configura he mae 4 missa de corpo pri le Missas a varejo (Arids, 1977). a = vnissa © Sétimo dia a ys ssente se tornou mais frequente, seguida p Pois, a missa de um ano. 14 Puupre Artis: RETRATOS DA MORTE NO OCIDENTE Os cortejos tinham como objetivo acompanhar o morto, Os religio- sos e seus ajudantes passaram a ser especialistas da morte. No Ocidente, em um contexto religioso, 0 corpo nao pertencia mais a familia, e sim 4 igreja. Quanto mais importante era a pessoa, maior era 0 cortejo, com religiosos, pessoas da rua, criangas, pessoas pobres que recebiam esmolae roupas pretas. O morto poderia, em vida, determinar o ntimero de pes- soas que queria no seu cortejo e a destinac4o dos donativos e das esmolas de quem participasse, podendo receber intercessao para a salvac4o de sua alma. O corpo ficava escondido no caixao para evitar a visdo insuporté- vel da degradacao da morte, que era valorizada nos temas macabros. Os mais ricos podiam ter reprodugdes em madeira ou cera, representan- do seu corpo e as mdscaras mortuérias. Os rituais de preparac4o sdo muito importantes em varias aborda- gens religiosas, como no budismo, uma filosofia e abordagem espiritual que prega o desapego para elevac4o do espirito. Os testamentos tém importancia quando se pensa nas garantias para o além com fungio similar 4 das oracées e das missas. Eles surgiram no século XII, com a proposta da transmisséo dos bens como pritica religiosa; era uma confissio de fé, com reconhecimento dos pecados ¢ garantia de absolvicao. Os testamentos do século XVIII tinham as cldu- sulas pias e a distribuicdo da heranca. Era Proposta a reparacdo dos erros € 0 pedido de perdao. Eles inclufam também os pedidos referentes 40 lugar de sepultura, as ceriménias da motte e ao cortejo. A distribuig4o dos bens, escrita no testamento, oferecia também garantias do além. Os herdeiros ficavam com uma parte e a outra era destinada a salvaca0 de sua alma; assim, as irmandades, as igrejas e os hospitais apresentaram grande desenvolvimento. © medo da morte movia pessoas poderosas, mesmo que tivessem conflitos para se desfazer de todos os seus bens. O testamento passou a ser um dever de consciéncia moral, uma oportunidade de colocar em ordem os negécios e a vida. A compreensio era de que a reflexio sobre o testamento deveria ocorrer durante toda EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIGMAS 15 a vida e nao sé na hora da morte. Podia ser a possibilidade de toma- da de consciéncia de si mesmo, da responsabilidade pelo seu destino edo cuidado da alma, bem como a expresso das ultimas vontades. Hoje, observamos a retomada dessa perspectiva no testamento vital e nas diretivas antecipadas de vontade, instituidas na Resolucao do Con- selho Federal de Medicina (CFM) n° 1.995, em 31 de agosto de 2012. No Capitulo 6, descreveremos esse tema com mais detalhes. E importante ressaltar que os testamentos so importantes para os historiadores como documentos reveladores de mentalidades. Nos sécu- los XIV e XV, os testamentos passaram a ser um género literdrio no qual as pessoas podiam expressar seus sentimentos sobre a vida ea morte. JACENTES, ORANTES E ALMAS Nos cemitérios antigos, o timulo era uma obra que permitia indicar 0 local onde o corpo tinha sido depositado, com a inscricéo dos dados do morto, como nome, idade, profiss4o, data de morte e outras informacées importantes. Podia também incluir uma foto. Todos esses dados com- poem a meméria da pessoa, o memorial. Estar na meméria das pessoas é um desejo humano sempre presente. E muito assustador ser esquecido, ser andnimo, uma verdadeira morte social. Essa pratica se mantém até a atualidade. No século XIII, o atatide era de madeira, recebia o nome de caix4o € servia para transportar o corpo. Nos séculos XIX e XX, as lembran- toa ae Spontantes, A inscrigo funerdria existia para reafir- 2 cliusulse : “a 7 podiam ser incluidos elogios e, em alguns casos, 2 meditar as 7 visitas aos cemitérios podiam estimular Os passantes 205 ou destruc iat ea eternidade. Eles podiam ser Parentes, ami- Pitifios on via i ‘os. Algumas Pessoas comecaram a fazer seus préprios ranga mais vj > Passando a meditar sobre a morte. Para manter : lem- viva, podiam ser incluidos complementos como aqui jaz ou “familig desolada chora a perda de... 16 Pruupre Arts: RETRATOS DA MORTE NO OCIDENTE Apresentamos o Meu epitdfio, escrito por Cora Coralina:! Morta... serei drvore, serei tronco, serei fronde e minhas raizes enlagadas as pedras do meu bergo s4o as cordas que brotam de uma lira. Enfeitei de folhas verdes a pedra de meu timulo num simbolismo de vida vegetal. Na&o morre aquele que deixou na terra a melodia de seu cantico na misica de seus versos. No inicio, os corpos ficavam muito préximos A superficie, em um caixAo simples ou coberto por um sudario. Posteriormente, os corpos passaram a ser enterrados mais profundamente, pelo receio da contami- nag4o, nao deixando nenhum sinal visivel — daf a necessidade das mar- cas de localizacao. Era muito importante ser visto, sair do anonimato. Hi cemitérios com covas mais rasas, com ldpides. Essa modalidade traz uma maior proximidade com a terra — do pé viemos e ao pé retorna- remos —, traduzindo uma mentalidade de simplicidade e desapego- Ea forma daqueles que buscavam humildade. Entre os tuimulos, hd os jacentes e os orantes. Os jacentes tém representacio de jovens, bem-aventurados em fe Ppouso. Estao estendidos apoiados no chao, como se estivessem vivos, mas vivos nao ficam nessa posicao. A principal ideia transmitida ¢ de paz, calma e repouso a espera do ultimo dia. Muitos deles tinham os ' Gentilmente cedido capitulo. por Ligia Assump¢ao Amaral (in memoriam) para este trecho do EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIGMAS 17 olhos abertos, parecendo estar vivos. Os jacentes também podem des- pertar a amargura de deixar as coisas da vida. Nesse caso, essa repre- sentacao esta mais relacionada com o corpo que se corrompe em uma atitude fatalista. Outra representagao é a do orante, que esté ligada & transmigracao da alma. A morte é a separacéo da alma e do corpo. Estar ajoelhado, com as mos postas, pode simbolizar a ideia de doador. Também é uma representac4o que busca maior realismo. Os orantes nunca tém os olhos fechados. HA tumulos que retinem jacentes e orantes, garantindo a represen- tagio do repouso e a migracao das almas. Essas representagoes desapare- ceram — a dos jacentes no século XVII e a dos orantes no século XVIII. Surgiram outras representa¢des mais neutras. A cruz era um elemento que indicava o lugar do timulo, um protétipo dos novos timulos. As méscaras mortudrias tinham como objetivo mostrar a semelhan- ca com os vivos, mantendo a vida nos mortos. A biografia trazia maior proximidade com a vida. Esse valor continua nos séculos XX ¢ XXI. A maquiagem era realizada com os corpos mortos para torna-los mais se- melhantes ao que eram em vida. Sobre esse assunto, recomendamos que Oleitor assista ao filme A partida (2008).’ A mensagem do filme é 0 sobre © cuidado com 0 corpo morto, que permite que enlutados se despecam dos mortos, transformando também a vida do profissional que realiza 0 trabalho. Trata-se de um filme japonés, que toca 0 coracdo também dos ocidentais, - Nos cemitérios, hé tiimulos sem corpo, com esculturas, memorial “lvico, busto e cabeca do morto, e todas elas eram formas de guardar as embrancas, Havia também os ex-votos, evocando a possibilidade de um milagre, sie ns Passaram a representar a diviséo entre ricos € am . Para cemitérios sé para eles, € 0 pobres ocuparam esp: ea Os 2 ca : yt" Yoo Takia, Japéo. Recebeu o Oscar de melhor filme esangei 18 Prruipre Artis: RETRATOS DA MORTE NO OCIDENTE em que tinham que construir seus tumulos, com a predominancia da cruz de madeira. No século XIX, a cruz passou a ser mais comum e aparecia na frente do nome nos obitudrios. Algumas familias construiam capelas coma possibilidade de reunir os mortos de uma mesma familia. Era também um oratério privado onde a familia vinha para prestar devogées ¢ onde podia ser rezada uma missa. Nessa capela, havia bancos onde estavam o tumuloe 0 epitafio. Essas capelas existem hoje em varios cemitérios. Na morte domada, os ttimulos tém caréter comemorativo, como forma de combater 0 anonimato, para lidar com 0 medo de ser esqueci- do. Os ttimulos devem dar espaco para 0 repouso necessdrio apés a vida na terra e antes da salvacao da alma. Sao representag6es que permitem um estado de contemplac’o. Havia espago para a reuniao dos vivos e aos mortos nas capelas dos cemitérios. AMORTE QUE VAI SE TORNANDO SELVAGEM Com o desenvolvimento da industria e da técnica médica, observa-se grande mudanga na representa¢ao da morte, que, de domada, torna-se selvagem, termos usados por Ariés (1977) em sua obra. O momento da morte passa a perder importancia. O doente ainda se encontrava no leito, mas o momento perde a dramaticidade; nao se dé mais tanta énfase ao sofrimento do moribundo, e sim 4 separagao da pessoa amada, a ruptura. Nao é mais o momento da morte que define as coisas, € sim 0 modo como a pessoa viveu, pois é uma ilusdo acreditar que o arrependimento do ultimo momento pode apagar as maldades de toda uma vida; 0 qué importa é a relacdo estreita entre o bem viver e o bem morrer. E funda- mental a meditacdo sobre a morte, os “exercicios espirituais”, proposts por Santo Indcio. A arte de bem morrer envolve moderacao, uma critica a avareza, representada por uma estima exagerada pelas posses, associan- do-se com um pacto com o diabo. Nessa perspectiva, busca-se a bela morte, 0 repouso, uma veste NO- bre para a alma. E a preparago para a morte romantica. Mas também EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIGMAS 19 comecao distanciamento da morte. Esse afastamento rege as praticas do século XVIII, com a simplificagao dos funerais ¢ a impessoalidade do luto, abolindo-se as pompas. Os funerais ocorriam com formalida- de, como uma obrigagao, ¢ poucos gastos. Essa secura nao queria dizer que nao havia dor; entretanto, sua manifestacao devia ser silenciosa ¢ discreta. Ritualizado e socializado, o luto nao tinha espago para o desabafo. Esse desejo de simplificar os rituais de morte tinha relag4o com a humildade crista. A morte representada nos cemitérios passa a ser silenciosa e discreta. Os cemitérios passam a ser construidos fora da cidade, obedecendo uma politica de higiene publica. Essa agao iniciou em Paris, na Franca, no século XVIII, porque nao era mais possivel enterrar os mortos nas igrejas por falta de espago. Essa transferéncia fez cemitérios, como o Cemitério dos Inocentes, nessa mesma cidade, ficarem sobrecarrega- dos. A diferenca entre ricos e pobres amplia-se, com os ricos ainda sendo enterrados mais préximo do centro da cidade e os pobres, em cemitérios mais afastados ou em valas comuns. A ruptura de igreja € cemitério se consuma. Os cemitérios ao ar livre podiam ser em um prado com pedras no lugar da sepultura. Na Inglaterra, s4o citados exemplos de timulos como 0s box-tombs, tipo cofre ou pedestal, ou as tumbas rasas, conhecidas como slabs ou headstones. Como iconografia, sao mais frequentes as imagens de anjos alados e ossos cruzados. Esse modelo valoriza a natureza © enfatiza a serenidade, a distancia ¢ as emogoes amortecidas. on 4 medi io sobre a morte passa a sera tarefa da vida, principale brevidade : 08, como exercicio de escrever biografias. Consi jera-se a a vida, a passagem do tempo, a pequenez da vida. Nos sécu- | °s XVII e XVIII, os timulos descem as profundezas da terra e se elevam Menos aos céus, [ 4 Jm grande problema nessa época comega a ser superpopulacao dos Semitéri i . : = '05, 0 abandono dos téimulos ¢ as grandes epidemias, que trou am ri . : Maneig = para a higiene publica, com a urgéncia de regulamentar a ‘a de : “e enterrar os mortos. Nao se pode confundir desapego com 20 Prmure Artis: RETRATOS DA MORTE No OCIDENTE desleixo. As leis passaram a regulamentar a profundidade minima para © enterro do corpo e os tumulos receberam grades para no serem vio. lados por animais; hoje as grades servem também Para evitar furtos em cemitérios. Agora, o macabro passa a se mostrar como 0 esqueleto limpo, a morte secca, que j4 nao causa medo. Também aparece em pedacos, pre- sente nos quartos dos enlutados, como enfeites domésticos. Recebe 0 nome de vaidades, uma natureza morta na qual alguns objetos evocam a passagem do tempo, o fim inevitavel, com sentimentos de melancolia tepresentando a incerteza da vida e a morte no coracao. S40 quadros, gravuras e anéis com temas macabros; o exemplo principal s4o os ossos cruzados. O momento da morte deixa de ser valorizado; agora importa 0 processo de morrer, a brevidade da vida e a meditacdo sobre a finitude como possibilidades de se preparar para os tiltimos tempos da vida. Com 0 prolongamento da vida e 0 envelhecimento, esse tema passa a ser essencial. CORPO MORTO Ariés (1977) introduz a questao do estudo cientifico da morte por meio da observacdo de indicios de vida no cadaver. Sinaliza a influéncia da medicina na morte, entrando no lugar da religido, seus principais repte- sentantes na Idade Média. O cadaver ainda é um corpo, pois mantém resquicios de vida e sen- sibilidade. Esse fato estimula a supersti¢ao popular de que o corpo mor to ainda ouve, e, por isso, é preciso tomar cuidado com o que se fala. Ocorre a confusao entre vida e morte, j4 que o corpo ainda apresent@ movimentos. Pelos, unhas e dentes continuam a crescer, Nos enforcados, pode-se observar a erecao do pénis, o que justifica essa pratica como we ma de excitacdo sexual causada pela falta de ar, Na busca dessa sensagio, pessoas podem errar o ponto e morrer enforcadas. Na busca de mais vida, encontra-se a morte. EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIGMAS 21 Os primeiros estudos médicos, citados por Ariés (1977), apresen- tavam a suspeita de que os mortos ainda mantinham a personalidade. Esse conceito foi abandonado no século XIX, quando a morte passou a indicar a separacao do corpo ¢ da alma. A morte passa a ser estudada em fungio da doenga. Os caddveres mantém os segredos da vida e da morte, passando a ser objetos de estudo, atividade presente até hoje na formacao dos médicos. O estudo dos cadaveres proporcionou um grande desenvol- yimento da medicina, transformando os médicos nos senhores da mor- te. A dissecagao de cadaveres passou a ser realizada com fins cientificos. Aanatomia se desenvolveu a partir desses estudos, provocando uma caga desenfreada aos cadaveres. Os corpos mortos eram observados por longo tempo para que fosse possivel ver suas manifestagées. Os caddveres também trouxeram o desenvolvimento dos conhe- cimentos farmacoldgicos, utilizando-se as secregdes como remédios. Os ossos podiam ser usados como amuletos, ¢ bebidas afrodisiacas eram feitas a partir do seu cozimento. A decomposi¢ao dos corpos fertilizava a terra, Assim, a morte mais uma vez se confunde com a vida. Nio hd apenas beneficios; hé também maleficios provocados pelos cadaveres, como apontam as superstigdes. Uma mulher que visse um corpo morto podia parar de menstruar. Mas, na realidade, o maior risco do contato com os cadaveres é a contaminag40 pelo contato. A preserva- S40 do corpo morto passa a ser importante por varios motivos. Um deles €o embalsamento, que mantém a imagem da vida, no ambito estético afetivo, Essa manutencéo do corpo, a fim de evitar 4 decomposi¢ao por dn” é importante porque os ritos funerdrios Pe tia i . en 0s, quando é preciso esperar para reunir toda a fami'ia. ‘Orpo morto parecido com o vivo trazZ Jembrangas da pessoa em Vida, favorecendo 0 processo de elaboragio da perda. Se nao for possivel mai Nter 9 0Cco: t . Nessa elaby po inteiro, preservar fragmentos como cabelos e ossos ajuda ‘abo} racdo, la ea morte, S40 a aprO- ‘om o sofrimento, do ente na iconografia roti rr : 0 di re 10 € a volupia, relacionando a vidi ie MOF com Tos e Thanatos, a ligacéo do prazer © 4 morte. A danca macabra, jé citada, pres “maga 22 Puuipre Aris: ReTRATOS DA MORTE NO OCIDENTE do século XVI, também tem um cardter erdtico. Outro exemplo é 0 Cavaleiro do apocalipse do pintor Albrecht Diirer, que por ser excessiva- mente magro tinha ressaltado seu pénis. Santa Agata, em éxtase amoroso ¢ mistico, desmaia ao serem arrancados seus seios, em uma mistura de prazer e dor, presente nas cenas de martirio. A violéncia estimula a exci- tagao sexual nos martirios, comprova em sofrimento pode provocar desejo, figura. A relagao entre prazer e morte passa a Ser objeto de desejo. dos nos eventos sddicos. O corpo principalmente se tiver uma bela OMORTO VIVO A semelhanga entre vivos e mortos ¢ a possibilidade de confundi-los tra- zem & tona outro grande medo presente nos primérdios da medicina, que & 0 de enterrar pessoas que, embora parecessem mortas, estavam vivas. Esta é uma das razées do surgimento do velério: aguardar para que haja um tempo entre a provavel morte e os funerais. Era importante que hou- vesse pessoas velando o corpo para confirmar a morte. Foram propostas 48 horas para essa garantia. Além das despedidas, havia um tempo para evitar 0 enterro de pessoas que ainda nao estavam mortas. Havia doengas que faziam as pessoas parecerem mortas, quando ainda estavam vivas, em um equivoco assustador. Atualmente, s6 é considerada morta a pessoa que receber um atestado emitido por um médico. Entretanto, © medo de ser enterrado vivo povoa o imagindrio de muitas pessoas até hoje. Despertar no velério ou no inicio das atividades em enterros nao era raro e foi enredo de varias histérias, novelas e causos. Ha- via algumas medidas folcléricas, como chamar o nome do morto por trés vezes ou fazer um corte na sola do pé do falecido e ver a reagao. Havia lugares especiais nos quais os corpos ficavam por dois ou trés dias para que finalmente os sinais de putrefac4o dessem essa garantia. No século XVIII, os médicos n4o atestavam a morte, pois era consi- derada uma incivilidade que eles visitassem uma pessoa que nao con- seguiram salvar. Os estudos continuavam e a morte deixou de ser s6 EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIG! Zi MAS 23 nomeno que provoca emogoes pata se tornar objeto da ciéncia, ue pudesse ser mais bem compreendida até chegar a ser ea — DO OUTRO: ORT AN EMPO DAS BOAS MORTES No sé ulo XIX, ocorreu uma grande mudanga na maneira de encarar a morte. Ela passou @ ser esperada como um porto seguro. Surge o desejo de morrer em algumas situagoes, que Ariés (1977) denominou de dogura narcotica, 2 Paz maravilhosa, a morte cantada pelos poetas. Busca-se a morte suave, mesmo que a ansiedade e a agitacdo estivessem presentes A morte parece mais feia para quem vé do que para quem esté morrendo. Um exemplo é a calma presente no rosto do morto. Nos observa-se a representacao de figuras em pose de acolhimento, 5 estendidos para o alto em uma atitude de encontro com com os brago: Deus. A ideia de repouso se agrega a possibilidade de reencontro das pes- soas amadas com expectativa. E ruptura, mas também é a possibilidade de estar eternamente com a pessoa amada. ‘A morte bela é a dos jovens. Uma das doengas dessa visio romantica éatuberculose, com os calores da febre e a magreza. Aparentemente nao observa-se até um certo prazer escapa-se dos sofrimentos que durante a vida. tamulos, parece haver sofrimento com a morte; com sua aproximag4o. Ao morrer jovem, virao com a idade, a degenerac4o € a decadéncia dos velhos. A morte é uma fuga para o além, por isso é desejada ¢ traz alegria. Havia uma certa tentacdo para o suicidio. A imagem da morte no leito, a morte repentina, abrupta e solitaria, continuava provocando temor. Esperava-se que a Pes- Soa ' morresse bem. A morte torna-se espetaculo; 0 moribundo era 0 en- os espectadores. Por essa razao, era nntos com exaltacao. ma vida cotidiana, os e reconhecidos. de dramaticidade, Piri peat amadas em volta, Morte era estar consciente para viver esses mome! “sta sim de s ce a como um triunfo para encerrar ul Perda é pie rimento. Os sentimentos eram express mpanhada de manifestagdes com gran 24 Pumuprre Artis: RETRATOS DA MORTE NO OCIDENTE um retrato tipico do século XIX. Nao havia interesse no diagnéstico das doengas, e sim na proximidade da morte. Nos Estados Unidos, sao escritos livros de consolacao para serem lidos por ocasiao da morte de uma pessoa querida, com o intuito de valorizar a lembranga e confirmar a possibilidade do reencontro na eternidade. Nessas obras, descreve-se a vida celeste. Ariés (1977) cita a obra The gates ajar,> de Elisabeth Stuart Phelps (1868), na qual é descrita a vida cotidiana dos habitantes do céu, seus habitos, ocupagées, criagao dos filhos e divertimentos. Este € 0 caminho para o desenvolvimento do espiritismo: os médiuns so os intermedidrios da comunicagao entre mortos e vivos. Acredita-se na autonomia do espirito, que é a parte imortal do ser, muito importante no século XVIII. Em 1854, Allan Kardec destaca-se como fundador da doutrina espirita, e, em 1868, ele passa a receber as primeiras instrugées dos espiritos. No Brasil, 0 espiritismo teve grande desenvolvimento, com varias fungées, como religiao, filosofia e ciéncia, fundamentando varias pesquisas. Ele est4 presente também nos cursos de teologia. Os médiuns ajudam a compreender as leis da vida apds a morte. Os desencarnados — os mortos — nao tém carne, por isso nao obedecem as leis da gravidade. Podem circular entre vivos, provocando grandes sustos. Na Inglaterra, em 1851, foi criada a Ghost Society, que tinha como objetivo estudar os fendmenos paranormais. Hoje ela é conhe- cida como Society for Psychical Research, dando origem a parapsicolo- gia. Essa crenga favorece um desejo sempre presente entre os humanos; que é a reunio entre vivos e mortos, abrandando a dor da separaca0- Sao importantes os rituais para evitar que as almas cheguem ao inferno; as oraces salvam da condenagio. Deve-se cuidar das almas errantes, qu° ficam vagando e atormentando os vivos, propiciando 0 repouso onde havia sofrimento. * Trilogia de novelas religiosas, espiritualistas: The gates ajar (1868), Beyond the gare (1883) e Gates between (1887), muito populares & época. EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIGMAS 25 Nessa perspectiva, torna-se dificil aceitar a perda da pessoa amada. Abela morte pertence ao moribundo, e o enlutado pode expressar seus sentimentos. Belo é 0 morto, e belos so os sentimentos de quem chora a perda. A morte passa a ter uma relacéo com as artes. No processo de se tornar selvagem, a morte se esconde na beleza e na atracdo pelo infinito. VISITA AO CEMITERIO O sepultamento envolve regulamentos e leis, mas também é lugar das despedidas e das lamentacées da perda. No século XIX, tornam-se essenciais as medidas de higiene coletiva. O decreto de 1804 confirma a interdicao do enterro nas igrejas e nas cidades. Nenhuma vala deveria ser reaberta e reutilizada em menos de 5 anos. Por isso, os cemitérios passaram a ter grande extensio de terreno. No final do século XIX, sur- giram as cesses perpétuas e as tempordrias foram perdendo seu espago, pois era humilhante nao ter o seu espaco garantido. Além dos cemitérios publicos, comegaram a ser criados os privados. Os novos cemitérios eram Construidos cada vez mais distantes do centro. Entretanto, as megalépo- les cresceram e os cemitérios periféricos se tornaram centrais, como é 0 caso do Cemitério do Aracd, na cidade de S40 Paulo. Muito do que se conhece sobre rituais funerdrios foi encontrado nos cemitérios. Os cemitétios urbanos foram criados para suprir os enterros que “gora nao podiam mais ocorrer nas igtejas e nas partes centrais da cidade, oo ke contdgio e 7 contaminacao pela manipulagio dos cadaveres, procure . acomodagao dos corpos e os maus odores. Have grande i fan asi com as epidemias, como a peste, sendo necessdrias formas as cee 6. desinfeccio, Havia uma relac4o entre os coe ¢ ; - Os gases ptitridos eram caminho para a infecg4o, por isso 8 terre; j oo ae Perto dos cemitérios eram altamente desvalorizados, 0 que tre ainda hoje. Nos sé séculos XVI For ee aa i conviviam com °S cientific, Te XVIII, as explicagdes magicas com 4s, envolvendo o diabo, os fantasmas e as epidemias. Por essa 26 Puruipre Artks: RETRATOS DA MORTE NO OCIDENTE razio, ainda havia o temor de perder a prote¢4o das igrejas, com o afasta- mento dos cemitérios. A insalubridade do convivio entre vivos e mortos passou a ser muito importante. No século XVIII, realizou-se um estu- do sobre cemitérios, tornando-se cada vez mais premente a necessidade de deslocé-los para fora das cidades para garantir a satide da populacio. O convivio entre vivos e mortos nao era saudavel, do ponto de vista fisico e spiritual. Para desestimular os enterros nas igrejas, passou-se a cobrar ta- xas muito altas e, mesmo assim, com cuidados especiais. Assim, as ceriménias publicas ocorriam nas igrejas e o enterro, nos cemitérios, com o predominio de covas individuais. Nos cemitérios, também ha- via a diferenciacao entre ricos e pobres, pela localizagao, pelo tama- nho e pelo luxo dos timulos. Essa desigualdade se tornava cada mais evidente. Os cemitérios passaram a ser como galerias de arte, com tumulos feitos por escultores famosos. No Brasil, podemos citar 0 Cemitério da Consolagao, em Sao Paulo, com varias obras de Victor Brecheret. Nesses locais, reuniam-se, também, pessoas ilustres que contavam a histéria de uma cidade, como é 0 caso do referido cemi- tério. Havia também cuidados com a vegetacio, o que tornava o local mais salubre. Saindo das igrejas, os cemitétios passaram a ser regidos pelo poder publico. Sintetizando, o cemitério reproduz, na sua topografia, a sociedade local. A seguir, estao as principais caracteristicas dos cemitérios de hoje. Envolvem areas verdes com drvores com sombra. Evocam lembrangas e saudades das pessoas enquanto estavam vivas. ‘Transmitem sobriedade. Favorecem a comunicagao entre vivos e mortos. Essas Sao as principais raz6es pelas quais as pessoas visitam cemité- tios. Esses espacos favorecem a meditacdo, o recolhimento e a expressao EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIGMAS 27 de saudades. Os epitdfios contam histérias e contém biografias que elo- giam as realizag6es das pessoas. E a fantasia de realizacao de reuniéo com as pessoas amadas. Na Franca, os cemitérios continuam publicos. Na América do m_a violacao dos tumulos faz as sociedades Norte, a preocupa¢ao co: que passaram a ser privados, civis gerenciarem alguns dos cemitérios, assim como no Brasil. Em alguns lugares, os cemitérios se tornaram locais turisticos, como museus a céu aberto. O cemitério passou a ser um local onde existe vida no meio da morte. E possivel conhecer a historia de uma cidade visitando os cemitérios, com obras de arte em destaque. Também ha as representagoes de pessoas em esculturas. Cemitérios podem expressar cardter civico e patridtico, no qual gran- des personalidades da regido sao enterradas, favorecendo um sentido de continuidade histérica. Nos cemitérios rurais, hd maior valorizagio da detrimento dos grandes ttimulos. Ha as pedras brancas cabecas conhecidas como headstones, iguais para todos, para facilitar a localizacio das pessoas mortas. Eles favorecem a relagao entre a natureza e a morte. Séo frequentes na Inglaterra e nos Estados Unidos, ¢ estao comegando a surgir também no Brasil. Portanto, é possivel dizer que, 2 caminho do século XX, a mor- te no é mais horrivel, nem agradavel: ela comega @ tornar-se ausente. Nos cemitérios, os epitdfios sao cada vez mais curtos € convencionals. A sentimentalidade do século XIX se transforma, ¢ passa-se @ valorizat @ auséncia da morte, sua interdigao. Ariés (1977) se questiona por que, P# Portante ter um caixo luxuoso, um lugar nao tiveram nada. Cita, como exemplo, 4 oo vale mais que a vida, j4 que est P morte € 0 seu direito de escapar por um di ia : = injusticas da vida. A morte lhe rest » p. 606), E vida e morte severina. natureza em semelhantes a com inscrigdes ra algumas pessoas, é tao im- para a sepultura, se ¢m vida Regiao Nordeste do Brasil, nao lhe pertence: “A posse a ao constrangimento da itui a dignidade” (Aries, 28 Puiuipre Artis: RETRATOS DA MORTE NO OctwenTE MORTE INVERTIDA Com essa adjetivacao, Ariés (1977) se refere a uma invers4o nas caracte- risticas da morte. Segundo o autor, até 1914, o acontecimento da morte modificava a vida das pessoas, por vezes, de uma comunidade inteira. Havia varias formas de anunciar as mortes que ocorriam, como a expo- sigéo do corpo morto e os avisos nas igrejas € nos locais puiblicos com uma papeleta. Os familiares e as pessoas proximas participavam dos ri- tuais. O perfodo do luto era composto por visitas 4 familia enlutada, aos cemitérios e as igrejas para as missas. Era, como se viu no decorrer deste capitulo, um evento piiblico. Entretanto, durante o século XX, comega a tornar-se mais presente uma completa alteracdo do que sempre foi considerado associado ao even- to da morte, principalmente nas zonas mais industrializadas, como se a imagem fosse invertida. O que é mais caracteristico dessa representacdo é a necessidade de que a morte néo seja percebida, que nada anuncie a sua presenga. Procura-se fazer tudo continuar de maneira sempre igual, como se nada especial tivesse acontecido. O autor se refere ao inicio de uma men- tira, a de que a morte nao existe. Nunca foi facil falar sobre o momento da morte, mas nunca foi tao dificil, como ser a partir de entao. A obra de referéncia para introduzir a interdicao da morte é 0 livro de Leon Tolstéi (1886/1998), A morte de Ivan Ilitch. Nessa obra, ob- serva-se que ninguém quer falar sobre o que est4 acontecendo com o doente, nem ele préprio, que sofre, geme, mas nada diz. Os familiares também sofrem, nao sabem o que fazer, mas fingem que est4 tudo bem, como forma de proteger o doente e a eles prdprios. E quando é necessa- rio saber, espera-se que alguém se incumba de dar a noticia. Entretanto, a leitura da obra de Tolstéi mostra como o doente est sofrendo e percebe © que est4 acontecendo, mesmo que ninguém diga nada. Ele pode nao querer saber, mas sabe. Todos procuram banalizar a situac4o para que nada fuja da normalidade e do controle. Todos sao ciimplices dessa mentira; a morte vai para a clandesti- nidade, com a falsidade do “nada mudou”. A familia passa a manter a EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIGMAS 29 ignorancia do oe ‘usta - ‘ntimidade e da profundidade das re- ages: Eo reino ee ‘agao. Uma pratica religiosa com a vinda de um padre para confisséo i aconselhamento é Ppostergada, com a ideia deser a extrema-un¢ao © ritual antes da morte. Deixa de ser um rito para pessoas nO fim da vida para ser um decreto de morte. Os testamentos passam por profundas modificagées, e n’o contém mais as cldusulas piedosas. A cena do moribundo rodeado pelos familiares, que fala de seus desejos, desaparece. A morte se torna um evento solitdrio, ea intimidade dos tiltimos momentos sofre grandes interferéncias, como acontece nas unidades de terapia intensiva. A morte é transferida para os hospitais, nos quais se valoriza a assepsia do corpo e da alma. A morte se transforma em agente de contdgio, torna-se medicalizada. Os médicos tém papel importante no agravamento da doenga, apartir do final do século XIX, fortemente imbuidos do papel de cura e de aliviar sintomas. Eles podem tornar-se conselheiros, tomando o lugar de sacerdotes. Esse papel se transforma com o avan¢o da ciéncia médica, com maior interesse pelos sintomas e pelo diagndstico da doenga, mes- mo que nao seja transmitida ao doente. Fala-se de sintomas da doenga, mas nao da proximidade da morte. Ariés (1977) discorre sobre a morte suja ¢ repugnante, citando Tolstéi, que bem descreve essa representac’o com o final de vida de Ivan Ilitch, Com seus gritos, gemidos e ruidos, e com uma descricao das excregées e seu odor. A morte era exaltada no romantismo, mas agora ela se torna tepugnante. Observa-se a decadéncia do corpo e os estragos que a velhice Provoca. Os temas macabros, que em outras épocas falavam do que acon- tecia depois da morte, como € 0 caso do esqueleto, agora se transferem para ° que acontece antes da morte. Como reflete Susan Sontag (1984), em seu a Doenga como metdfora, a tuberculose reflete a morte romantica e 0 Cancer, a morte suja, o simbolo da morte dos séculos XX e XX1. Assim, a aproximacio da morte néo traz. apenas 0 sentimento de per- spat spn psn cos emi a : estendida, ae o ane to. = se grande importancia. A morte deixa de ser um momento P: 30 Pumps Artis: RETRATOS DA MORTE NO OCIDENTE tornar processo, A trajetoria das doencas ¢ da morte é alterada, O Rojo faz a doenga e a morte serem escondidas. O hospital contemporaneo se presta muito bem ao ocultamento da morte: controlam-se os hordrios de visita e se oculta 0 que nao pode ser visto. Para familiares, 0 hospital é 0 local que melhor cuida do paciente, mas é também uma protecdo para que nao se veja a decadéncia que nio se quer ver, uma forma socialmente aceita de exclusdo. A cena ptiblica do moribundo de outros tempos é substituida pelo quarto isolado ou pela enfermaria. Muitas pessoas nao assistem 4 morte de seus familiares que, muitas vezes, ocorre na calada da noite. E a morte burocratizada, conve- niente, pois nao se da a perceber. Fala-se do pudor diante da morte, da qual nao se deve falar, dai a necessidade de simulagées e disfarces. Uma das versées é do interdito, é a morte que no se percebe, o pianissimo da musica quase inaudivel. Ea morte silenciosa. Vemos 0 moribundo softedor isolado que nao quer se comunicar, virado de costas para o mundo, voltado para a parede. Ha pacientes que agridem os profissionais ou os familiares que cuidam deles. Tenta-se aliviar ou esconder os sintomas e as dores com analgésicos ou calmantes para nao ter que dar mds noticias. Os rituais de morte se tornam mais discretos, imperceptiveis, invi- siveis. A morte foi retirada da sociedade. Familiares nao veem a morte de seus pacientes hospitalizados; assim, os rituais de despedida também nao ocorrem. O processo de luto sofre interferéncias, cada vez mais vale uma atitude discreta, como se a dor nio existisse. Parkes (1998) aponta que uma boa parcela das doengas de pessoas que perderam entes queridos se vincula 4 nao expressao do luto. Gorer (citado por Ariés, 1977) se refere a uma pornografia da morte, semelhante ao sexo na era vitoriana. Um fendmeno comum dos séculos XX e XXI é de criangas que nunca viram uma pessoa morrer ao vivo, apenas pela televisao. A cremagao tem ganhado terreno sobre outras formas de disposi¢ao do corpo por ser mais rdpida, com as cinzas guardadas em urnas, 0 que diminui a ocupacao dos espacos nos cemitérios, resultando em econo- mia. O corpo é liquidado de uma vez. EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIGMAS 31 A expressao do luto se torna indecente como Jenciamento de uma Sociedade, empurrada pela necessidade de ficiéncia, e manifestacées producio € e Hestagoes da dor da perda atrapalham esse .ocesso. No reduto do lar, ha Petmissao para dar vazio aos sentimentos, A expressio do luto na sociedade Causa constrangimento. E como se as setitmas derramadas por ocasiao do luto fossem semelhantes As excrecées resultantes das doengas. Na mentalidade da morte interdita, o luto é visto como doenga. As pessoas se afastam, com medo do contagio e do softimento, ficam prensadas entre o peso do softimento e 0 interdito da sociedade. Os trabalhos de Freud e, posteriormente, de Parkes (mencionados por Aries, 1977) resgatam o lugar do luto, enfatizando a importancia de diferenciar os processos adaptativos daqueles com risco de complicacao. A medicalizacg4o da morte busca a maior assepsia possivel, presente nos modernos hospitais. Em 80% dos casos, a morte ocorre nos hospitais endo mais em casa. Os hospitais, além de serem locais de cura, passam a ser espacos de morte prevista e aceita pelos médicos. Busca-se 0 alivio da dor, mas também se silenciam as manifestagées 4 custa de sedativos. No extremo da técnica, est4o as unidades de terapia intensiva, superequipa- das, onde se encontram mortos-vivos com tubos por todos os orificios do corpo, os Frankensteins modernos. Segundo Hennezel (2001), o hospital é 0 lugar onde algumas cruel- dades ocorrem principalmente quando a morte est préxima; uma delas €0 anonimato. Constréi-se uma muralha de siléncio, e nado se explica nada. Muitas vezes, ndo se permite a intimidade e o contato, limitados Pelos hordtios de visita muito curtos e pela falta de acomodagées para a Petmanéncia da familia. Na década de 1960, retomou-se a ideia do local de cuidados para Pacientes que néo tém cura e que necessitam de um local onde pudessem Motrer de forma suave, sem o afa de buscar a cura a qualquer prego. Trata- a Movimento Hospice, cuja insticuigdo-modelo é 0 St. Christopher’ 7 : flow ae Londres, na Inglaterra, fundado por Cicely a cuja Principais propésitos serio detalhados no Capitulo 3. a propria morte. Exige- se 0 si 32 Puruipre Arits: RETRATOS DA MORTE NO OCIDENTE A morte se torna o processo de morrer gradualmente, com Vatias etapas — morte clinica e morte cerebral. Essa quest4o passa a ter grande importancia no caso de transplantes, em que pacientes com morte ence. falica continuam ligados a aparelhos para a manuteng’o dos Orgios até que estes sejam retirados e transplantados. As implicacdes desses Proce. dimentos constituem questées bioéticas sobre vida e morte. O avango da técnica permite que 0 processo de morrer possa ser pro- longado pela equipe médica para além do razodvel. Se a morte nao pode ser suprimida, pode ser estendida, dando uma falsa ideia de onipoténcia, Ariés (1977) cita, em sua obra, o caso de Francisco Franco e de Karen Ann Quinlan, que mesmo com graves danos cerebrais, sem possibilidade de voltar 4 consciéncia, foram mantidos vivos por aparelhos ligados, Posteriormente, o respirador foi desligado e ela ainda viveu por alguns anos. O autor fala em obstinac4o terapéutica, um ponto importante da discuss4o bioética. No final do século XX e no século XXI, inicia-se a de- fesa contra essa falta de limites, com os pedidos de nao ressuscitamento e, mais recentemente, as diretivas antecipadas de vontade, que permitem que o paciente diga o que n4o quer no final de sua vida. Esse tema ser4 desenvolvido no Capitulo 6. A duracao da morte depende de um acordo entre familiares e médicos, e deixa de ser um processo natural. Na mentalidade da morte interdita, priva-se 0 ser humano de seu processo de morrer naturalmente quando chega a sua hora. Desenvolve- -se um estilo de morrer no hospital. A morte é vista como fracasso, aci- dente, um sinal de impoténcia ou impericia da equipe médica. Outra caracterfstica importante do morrer na mentalidade interdita € promover a inconsciéncia sobre 0 que est4 ocorrendo. Assim, nao hd expressio de emogGes intensas, ja que é dificil seu controle, nao se sabe 0 que fazer diante do choro intenso, da raiva ou do medo. Glaser e Strauss (1965), citados por Ariés (1977), falam em acceptable style of facing death (estilo aceitavel de encarar a morte), que é uma expressao caricata, uma morte aceitavel que nao incomoda as pessoas. A familia precisa lidar com a perda de maneira contida para que as Pessoas no fiquem constrangi- das, sem saber o que fazer, e deve sempre manifestar forca e controle. EDUCAGAO PARA A MORTE: QUEBRANDO PARADIGMAS 33 Configura-se uma forma de morrer, que tem seu maior desenvolvimen- oa ‘América do Norte, espelhada na obra de Jessica Mitford (1978), ‘American way of death. O que hoje chamamos de boa morte é a morte repentina, temida em outras €pocas, porque nao permitia o Preparo tao importante na menta- jidade da morte domada. O exemplo mais caracteristico da morte inter- dita é 0 desejo de morrer dormindo. Apesar de ser a forma mais deseja- da, acaba acontecendo muito raramente, porque a medicina alramente tecnolégica interfere o tempo todo, como no caso dos ataques cardiacos e dos acidentes vasculares cerebrais. O avango técnico permite processos de cura e prolongamento de vidas que poderiam ser interrompidas mais precocemente. ° Na mentalidade da morte interdita, observamos a tendéncia de manter o paciente ignorante de seu estado para que nao sofra e nao faga softer os que estao a sua volta. Um exemplo dessa atitude é a conspiracio do siléncio, na qual informagées sobre o quadro do doente sAo ocultadas, passando-se a impressao de que estd tudo bem. Nessa encenago, o pa- ciente sabe o que est4 acontecendo, pelas informagées do préprio corpo ou pelo que capta do entorno, mas finge que nao sabe para poupar seus familiares dessa sobrecarga. E a familia pensa que se no falar vai dimi- nuir o sofrimento do paciente. A manutengao desses segredos dificulta a comunica¢4o, que é tao importante nesses momentos. A passividade do moribundo com o uso de calmantes evita, em par- te, o softimento, que poderia constranger as pessoas préximas. Evita-se a morte feia, sem elegancia e perturbadora. Ha uma imagem recorrente da proximidade da morte com o paciente voltado para a parede, que nao quer conversar com ninguém, diferente daquele cercado pelos familiares, reunidos para falar de seus tiltimos desejos. Na morte interdita, 0 sujeito “expropriado de sua morte. Vida e morte se mesclam e fica dificil perce- “r quando a morte de fato ocorreu. : Do ponto de vista geogrdfico, a morte invertida e interdita ocorre Principalmente no Ocidente, mais particularmente nos Estados Uni- °s. O objetivo principal é eliminar a morte aparente, por meio da 34 Puiuipre Artis: RETRATOS DA MORTE NO OCIDENTE supresséo do luto e da simplificagao dos funerais com ceriménias r4- pidas e econémicas. Desenvolvem-se os funeral homes, que cuidam de todas as providéncias do velério e da disposicao dos corpos, alivian- do a carga para a familia. A maquiagem permite que 0 morto pareca vivo, a partir do desenvolvimento das técnicas de embalsamento, que ja existiam no século XVIII, de forma a manter a semelhanca com a pessoa viva; assim, garante-se uma boa lembranga. Os diretores fune- rarios (em inglés, funeral directors) tornam-se empresdrios da morte, que gerenciam os procedimentos dos funerais, cobrando por essa ativi- dade. Eles também podem oferecer cuidados psicoldgicos e espirituais. Na cidade de Sao Paulo, ja existe uma casa de funeral. Surgem os cuidadores do luto, profissionais e voluntarios cuja tarefa € autorizar a expresso do luto. O principal mentor dessa proposta é 0 psiquiatra Colin Murray Parkes, do Reino Unido. Ele fundou o Cruse, instituigao que congrega voluntdrios, que, apés passar por treinamen- to, cuidam de enlutados. As universidades se abriram também para es- ses cuidados, tendo, como referéncia, o Laboratério de Estudos sobre o Luto, na Pontificia Universidade Catélica de Sao Paulo, coordenado por Maria Helena Pereira Franco e o Laboratério de Estudos sobre a Morte, no Instituto de Psicologia da Universidade de Sao Paulo, fundado por Maria Julia Kovacs e Nancy Vaiciunas. Por fim, em meados do século XX, ocorre um processo de reumani- za¢ao da morte. Essa contribuicdo tem o seu inicio na década de 1960, com os trabalhos de Elizabeth Kiibler-Ross e Cicely Saunders, que bus- cam a apropriacéo da morte pela pessoa no final da vida, a morte com dignidade, que s4o temas do préximo capitulo.

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