Índice
O Negro do Narciso 9
Coração das Trevas 171
No Extremo Limite 267
O Companheiro Secreto 403
Linha de Sombra 449
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O Negro do Narciso
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Prefácio
Um trabalho que aspira, ainda que humildemente, a atingir a condi‑
ção de arte deveria levar a sua justificação em cada linha. E a arte em
si pode ser definida como uma tentativa obstinada de prestar o mais
alto nível de justiça ao universo visível, uno e multifacetado, lançan‑
do luz sobre a verdade, sublinhando todos os seus aspetos. Trata‑se
de uma tentativa para descobrir nas suas formas, nas suas cores, na
sua luminosidade, nas suas sombras, nos aspetos de matéria e nos
factos de vida, o que é que, em cada uma das suas características, é
fundamental, o que é duradouro e essencial — a sua qualidade básica
que é esclarecedora e convincente — a verdade real da sua existên‑
cia. O artista, portanto, tal como o pensador ou o cientista, procura
encontrar a verdade e faz o seu apelo. Impressionado pelo aspeto do
mundo, o pensador mergulha nas ideias, o cientista mergulha nos fac‑
tos — de onde, na devida altura, emergem para lançar um apelo àque‑
las qualidades do nosso ser que se coadunam melhor com a empresa
perigosa que é a nossa existência. Apelam, com autoridade, ao nosso
bom senso, à nossa inteligência, ao nosso desejo de paz ou ao nosso
desejo de intranquilidade; não raramente, dirigem um apelo aos nos‑
sos preconceitos, outras vezes aos nossos temores, muitas vezes ao
nosso egoísmo — mas sempre partindo da certeza de que dirigem os
seus apelos à nossa credulidade. E as suas palavras são escutadas com
reverência, dado que as suas preocupações dizem respeito a assuntos
de peso: com o cultivo das nossas mentes e os cuidados relacionados
com os nossos corpos, com a obtenção das nossas ambições, com a
perfeição dos nossos recursos e a glorificação dos nossos objetivos
mais preciosos.
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12 Joseph Conrad
Com o artista, o processo é diferente.
Confrontado pelo mesmo espetáculo enigmático, o artista mergu‑
lha no seu íntimo, e, nessa região solitária de stress e luta, se ele for
merecedor e tiver sorte, encontra os termos para o seu apelo. O seu
apelo é dirigido às nossas capacidades óbvias: para aquela área da
nossa natureza que, por causa das condições quase guerreiras da exis‑
tência, está necessariamente escondida dentro das qualidades mais
resistentes e duras — tal como um corpo vulnerável dentro de uma
armadura de aço. O seu apelo é menos barulhento, mais profundo,
menos distinto, mais perturbador — e é, a breve espaço, deitado ao
esquecimento. Contudo, os seus efeitos duram para sempre. A sabe‑
doria em mutação de gerações sucessivas liberta‑se das ideias, ques‑
tiona os factos, destrói teorias. Mas o artista apela para aquela zona
do nosso ser que não depende da sabedoria: para aquilo que, em nós,
constitui uma dádiva e não uma aquisição — e, consequentemente, é
mais permanentemente duradouro. Ele dirige‑se à nossa capacidade
para o prazer e o encantamento, para o significado do mistério que ro‑
deia as nossas vidas; ao nosso sentido de compaixão e beleza, e dor;
ao sentimento latente de união com a criatividade — à subtil, mas
invencível, convicção de solidariedade que une a solidão de inúmeros
corações, para a solidariedade nos sonhos, na alegria, nos desgostos,
nas aspirações, nas ilusões, nas esperanças, nos medos, que ligam
os homens entre si, que ligam toda a Humanidade — os mortos aos
vivos e os vivos àqueles que ainda não nasceram.
É apenas uma linha de pensamento, como esta, ou antes de senti‑
mento, que pode, em certa medida, explicar o objetivo da tentativa,
feita no decorrer da história que se segue, de apresentar um episó‑
dio inquieto nas vidas obscuras de alguns indivíduos, arrancados à
multidão ignorada dos perplexos, dos simples, dos que não têm voz.
Isto deve‑se ao facto de que se qualquer parcela de verdade existe na
crença atrás confessada, torna‑se evidente que não há um lugar de
esplendor ou um canto obscuro da Terra que não mereça pelo menos
um olhar de espanto e compaixão. Portanto, o motivo pode ser apre‑
sentado como justificação do assunto da obra; mas este prefácio, que
é apenas uma declaração do esforço feito, não pode resumir‑se nisto
— dado que a declaração não está ainda completa.
A ficção — se, pelo menos, aspira a ser uma obra de arte — dirige
‑se ao temperamento. E, de facto, assim deve ser, como a pintura, a
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música, como todas as artes, o apelo de um temperamento a todos os
outros inúmeros temperamentos, cujo poder subtil e sem resistência
dá aos acontecimentos do dia a dia o seu significado verdadeiro, e
cria a atmosfera moral e emocional de um determinado lugar e de
uma determinada época. Esse apelo, para ser eficiente, deve ser uma
impressão transmitida através dos sentidos; e, na realidade, não pode
ser feito de qualquer outra maneira, dado que o temperamento, indi‑
vidual ou coletivo, não pode ser submetido a qualquer tipo de persua‑
são. Portanto, todas as artes apelam, em primeiro lugar, aos sentidos,
e o objetivo artístico quando expresso na palavra escrita deve também
lançar o seu apelo através dos sentidos, se o seu desejo mais elevado
for o de atingir a mola secreta das emoções correspondentes. Deve
aspirar energicamente à plasticidade da escultura, à cor da pintura, e à
sugestibilidade mágica da música — que é a arte das artes. E é apenas
por intermédio da devoção completa e firme à combinação perfeita de
forma e conteúdo; é somente através de uma preocupação incessante
e nunca desencorajada, com a forma e tom das frases, que se pode
fazer uma abordagem da plasticidade da cor, e que a luz de sugesti‑
bilidade mágica pode tomar parte no instante evanescente, obtendo
uma vitória sobre a superfície vulgar das palavras: das velhas, velhas
palavras, desgastadas, desfiguradas por eras de uso descuidado.
O esforço sincero feito no sentido de levar aquela tarefa criativa
tão longe quanto possível, e até que as suas forças o permitam, de
se manter inflexível perante hesitações, fadiga ou censuras, é a úni‑
ca justificação válida para um prosador. E se ele tem a consciência
limpa, a sua resposta àqueles que, na totalidade de uma sabedoria
que procura lucros imediatos, exigem especificamente que editem as
suas obras, que os consolem, que os divirtam; aqueles que exigem ser
rapidamente melhorados, ou encorajados, ou aterrorizados, ou cho‑
cados, ou encantados deve ser a seguinte: — A minha tarefa, aquela
que estou a tentar realizar, é, graças ao poder da palavra escrita, a de
levar o leitor a ouvir, e a sentir — é, acima de tudo, a de convencer o
leitor a ver. Nada mais além disto, e isto é tudo. Se eu vencer, o leitor
encontrará na obra, de acordo com os seus desejos, encorajamento,
consolo, medo, encantamento, tudo o que o leitor exigir — e, talvez,
ainda aquele vislumbre de verdade que o leitor se esqueceu de pedir.
Roubar, num momento de coragem, à impiedosa passagem do tem‑
po uma fase fugaz da vida é apenas o princípio da tarefa. A tarefa,
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