A Princesa Da Lapa - Danilo Barbosa
A Princesa Da Lapa - Danilo Barbosa
Quanta besteira!
Porque quando ela massacra seu coração você vê que não sabe nada da vida. Sozinho e
abandonado como um gato velho jogado na rua, eu permaneci escondido dentro de casa, lambendo
minhas feridas, sem demonstrar para o outro aquilo que sentia. Havia aprendido desde cedo que
não poderia ser sentimental ou chorão. Demonstrar fraqueza ou dor é para os fracos.
Pela primeira vez, não conseguia sentar em frente ao computador para criar histórias. A
maioria dos escritores adora os acontecimentos depressivos da sua trajetória para digitar ricas
histórias de amor, com tramas que os ajudem a lidar com seus momentos tristes, mas nem isso eu
estava conseguindo naquele período. Meu editor havia me ligado naquela tarde, querendo saber
sobre o início uma nova história; meu público já estava ansioso por um novo título. O último livro
que havia escrito, recebeu boas críticas no mercado e ele estava confiante de que eu teria grandes
chances numa premiação literária de destaque nacional.
Pensei que ele iria ver em minha voz trêmula que não estava me sentindo bem, perceber
a tristeza que emanava por mim, mas ele sequer tocou no assunto. Era como se meus problemas
não existissem.
Meus dramas só rendem se convertidos em páginas.
Para aquietar os seus queixumes, falei para ele que já estava escrevendo algo...
Tudo bem, havia mentido descaradamente, mas ele não tinha culpa se a minha mente,
que em determinadas situações é tão criativa para conceber novas tramas, naquele momento estava
impossibilitada de pensar. Isso pelo simples fato de que me recusava terminantemente a vivenciar
qualquer coisa nova, mesmo que na ficção.
Juro que tentava deixar as minhas musas literárias trabalharem, mas da caneta
explodiam apenas palavras que expressavam a minha crua frustração. Eu era momentaneamente
feito de dor e isso transparecia nos textos.
Havia abolido o clássico Eu te amo por definitivo do meu vocabulário, inclusive das
minhas obras. Eu que era considerado pelos leitores e críticos literários como um inesquecível
criador de histórias de amor, me sentia acabado.
Para ser um escritor, você deve captar o mundo como cerne de seu universo literário.
Cenas cotidianas, trechos de conversas alheias e gestos involuntários perdidos naquilo que
chamamos de diariamente... Agora, me expliquem como eu poderia ter novas ideias ou
inspirações, se meus olhos não se dirigiam para nada? Se minha consciência estava perdida em
ermos pensamentos?
Gostava de sentir o povo para criar os meus universos. Diferente de muitos autores;
quando carecia de inspiração, necessitava do fervor do contato humano. Quantas vezes, em um
sábado de manhã ensolarado, eu ia procurar inspirações em verdadeiras epopeias no Mercadão de
Madureira? Sentir a vibração do povo carioca em meio ao frescor das hortaliças e os louvores
aos santos entre os pontos de umbanda. Quer maior aprendizado que macerar arruda entre os
dedos e escutar as histórias da sorridente mulata de vestido florido, entre estátuas de Cristo e
pombas giras? Esta é a verdadeira inspiração do artista: o seu povo e suas histórias.
Foi dessa forma que me dei conta de que o amor não havia me matado.
Era um sábado quente, típico da cidade. A noite começava a tomar forma sob o céu do
Rio de Janeiro, prometendo diversão e esquecimento. Repentinamente, comecei a sentir aquele
calor sedento de inspirações que tomava o meu corpo, querendo abraçar o mundo.
Precisava ser preenchido por histórias narradas, gestos que não fossem apenas os meus
braços ao lado do corpo, enfadonhos olhos embaçados ou a cabeça baixa, fitando o chão
impoluto.
Queria fugir dos problemas. Precisava encontrar a saciedade que só a noite poderia me
proporcionar. Percorrer os bares e baladas da metrópole carioca, na busca incansável de meus
personagens, ilustres desconhecidos. Nomes e corpos em branco que queria tocar, absorver e usar
na minha jornada irrefreável em inspirar minha escrita adormecida. Iria parar de sofrer e
transformar o pior de mim em ação. Era exatamente daquilo que precisava: dar asas aos meus
desejos.
Quando atravessei a porta da garagem e entrei no carro, eu já era um novo homem. Que
ninguém esperasse de mim palavras generosas ou flertes inocentes. Coberto pelo calor da noite,
iria uivar minha virilidade para a lua, coberto de desejo, no cio. Queria tomar posse sem
delicadeza ou doçura e alcançar o prazer das noites insones.
Carícias, só se fossem de luxúria, entremeadas de paixões de uma noite e promessas
vazias. Não iria me importar com sentimentos feridos.
Queria, outrossim, destruir de vez a ingenuidade do garoto que, um dia, fui, perdido
pelas inconstâncias do amor. De cada lençol amarrotado que saísse ou carne macia em que eu
mergulhasse, sairia um novo homem, mais maduro e ousado, moldado pela verdadeira vida.
Ia desfrutar cada instante da dura crueldade de ser usado.
Não queria mais como companhia a mocinha ingênua. Estava cansado dessa utopia,
ao contrário da maioria dos outros homens. A imagem de moça de família é puramente mítica. Por
isso, queria que sumisse do meu conceito a gentil dama desejada e ausente, criada pelo imaturo
que um dia fui, o rapaz que vivia ansioso por se casar e ter filhos.
Eu já aspirava no vento o ar esfumaçado das boates. Sentia na saliva a companhia das
bebidas destiladas.
Havia um lado meu ansioso para sanar a dor aninhando-se no perfume barato das
prostitutas e escorregando as mãos pela suavidade da pele feminina coberta de suor.
Nem me lembro onde estacionei, pois o meu corpo já tremia diante da expectativa de
uma noite insone, mas intimamente proveitosa. O olhar adquiriu um brilho predatório e comecei a
deixar que meus passos se tornassem mais firmes e cadenciados, com o quadril seguindo o ritmo
ordenado de cada passada. É como se estivesse fazendo amor com o mundo, de forma ritmada e
possessiva.
Após algum tempo, já estava me apaixonando e desejando cada pessoa que por mim
cruzava. Atravessei algumas ruas, chegando à Avenida Armando Lombardi com um destino
escolhido: o Taj Lounge, uma das muitas casas noturnas da cidade. Uma ampla estrutura, com
ambientes esfumaçados que remetiam à Índia e sua cultura. Ali, a programação se dividia entre os
mais variados públicos, tocando desde o funk carioca ao sertanejo. À noite, a Techno Music
dominava o balanço do público.
Com certeza era um ambiente sugestivo para o que verdadeiramente queria: ceder à
febre da vida mundana. Estava exposto na fila de entrada, como um objeto de prazer à disposição
da apreciação feminina, um pedaço de carne pronto a ser abocanhado. E como eu queria isso...
Fiquei certo tempo na fila, analisando o ambiente. Meu rosto era de apenas mais um
ilustre. Ali, com certeza, seria o melhor lugar para fugir da realidade e ceder aos desejos. Peguei
o cartão de consumação no balcão e entrei, em meio ao vibrante som do DJ, cercado pelas
sugestivas estátuas de Shiva e Ganesha. Qual seriam os deuses que me amparariam naquela noite?
Caos e renovação ou sabedoria para superar os obstáculos? Entrei na pista esperando
encontrar essa resposta.
A vida é tecida por fios entrelaçados de memória. Ora finos, ora grossos, cada
acontecimento toma forma, enfeita, embeleza ou enaltece um fato ao qual muitas vezes parecemos
não dar valor. Um momento fugaz que depois parece ser o agente definitivo das nossas mudanças.
Com o passar dos anos, ao reavaliarmos esses fatos, vemos que algo diferente surgiu
naquele lugar ocupado da nossa memória, em um recanto há muito esquecido. Alguns fios se
quebraram, viraram pó, sobraram apenas resquícios daquilo que um dia foram.
Outros tomaram corpo, criaram forma e construíram tranças tão fortes que unidas se
transformaram em coisas completamente diferentes daquilo que era a sua natureza original.
Viraram folhas, caules e troncos cercados de seixos, transformando-se em belas árvores de
lembranças. Algumas frondosas, de copas firmes, apontando para o alto e outras sombrias,
contorcidas, de folhas nebulosas ou vermelhas como sangue.
Mas independentemente de qualquer fato, elas nos fortalecem.
Ultimamente, ao adormecer, visito esse meu jardim composto de lembranças com uma
frequência cada vez maior. Apesar de não precisar ir até lá para visitar os meus fantasmas, nele
consigo reviver de forma mais palpável tudo que me aconteceu. As carícias, as lembranças, as
lágrimas e meu amadurecimento à força pela vida.
Neste espaço composto de amor e solidão, revivo os olhos daquele que amei e me amou
de volta, com modos muitas vezes pueris, influenciados pela fantasia. Vejo decisões duras que
tomei e consequências de meus atos cheios de dor intensa, mas libertadora.
Mas o melhor de tudo: ali sou a mesma jovem encantada que um dia fora amada
intensamente. Não preciso lidar com minhas dores, tremores, maus jeitos e o frio incômodo da
idade que costuma adentrar os ossos. Nem penso que minha alma reside em um corpo que se
deteriora aos poucos, preso pela armadilha do tempo, que também pode ser cruel e enganoso.
Neste momento, sou a menina-mulher que, com seu vestido branco rendado, adentra um
lugar que julga sagrado, ao encontro do homem que ama. Os sapatos não apertam e o tecido
branco e diáfano não se suja ao passar por entre as folhas coloridas. Meu cabelo, preso em uma
grande trança, enfeitada com flores, parece seguir o ritmo do vento.
Nesta hora eu sou a sua princesa, como você, meu amado, sempre me chamou.
Aqui posso ver-te, sentir o seu corpo e despir-me para você como se fosse a primeira
vez. No lugar criado de memórias e sonhos, te revejo e sinto o quanto sou amada, sem tempo,
espaço ou razões, coisas que só existem no mundo humano, preso pelas amarras da consciência.
Deitada em seu colo, aspiro o perfume conhecido e rezo para que o momento não se
acabe. Fito sua pele clara, os lábios grossos e os cabelos na altura dos ombros no qual tantas
vezes afundava meus dedos. Tenho vontade de tocar sua face com a barba por fazer e descer a
ponta dos meus dedos pelo seu nariz aquilino e másculo, como dos grandes imperadores. Mas
desta vez, meu amor, você não deixou que eu descansasse.
Pegou-me pelos ombros e fitei seus olhos azuis, tão límpidos como um céu claro de
verão. Poderia me perder nos seus detalhes, mas você apontou para o horizonte. Foi quando vi o
céu mudando, coberto por uma névoa espessa, pulsando tristeza e desesperança. Uma fumaça
voluptuosa que aparentava tomar conta de tudo, sem demonstrar freios ou receios. Um lamento a
acompanhava, abafando o som dos risos e suspiros da minha lembrança.
— O que é isso, meu amor? — perguntei, ansiosa.
Você sorri de um jeito meio triste. Acalenta-me em seus braços e sussurra:
— É o seu corpo pedindo para esquecer, minha princesa. É chegado o tempo de contar a
nossa história...
— Para quem? Será que alguém acreditará em uma trama tão fantástica?
— Eu te mostrarei o caminho.
— Não quero me esquecer de você. É triste ficar sozinha...
— E quem disse que algum dia eu a deixei, princesinha? — disse ao me beijar.
Por um momento, seus lábios me prenderam a você. Larguei-me em seus braços, sem me
importar com a vida, morte ou o peso dos anos em meu corpo antes tão liso e delgado.
Quando dei por mim, você já havia sumido em um revoar de pássaros, perdido entre o
aroma das rosas que tanto amávamos. Meus olhos instintivamente se voltaram para a névoa que
não havia me deixado. Ao contrário, ela se aproximava para encobrir as memórias, abafar os
sentidos, levar tudo em sua opacidade febril.
Vendo sua aproximação inexorável e portentosa, me pus a correr. Peguei a barra do
vestido, que usava entre as mãos, para fugir daquela força duvidosa que se aproximava.
Mas a cada pisada, os anos se passavam diante de mim. Senti a pele se tornar flácida,
os cabelos branquearem e rarearem, o rosto se desfazer em uma expressão de dor. As pernas
acabaram por ceder ao corpo que se alquebrava e eu, por fim, caí em meio à grama que escurecia.
Quando a névoa chegou, pensei que iria sentir dor, medo ou simplesmente meu coração
fosse parar, tomado pelo pânico.
Mas o pior aconteceu.
Fui tomada pela nulidade. Esquecimento em sua forma mais pura.
Acordei sobressaltada, recoberta de suor. Minhas mãos que já são normalmente
trêmulas não conseguiam manter-se paradas. Sentia um frio intenso assolando minha alma. O
quarto estava escuro, mas os pensamentos claros. A magia tinha me despertado... E depois de
tantos anos, eu não conseguiria fazê-la adormecer novamente.
Senti, naquele momento, minha cabeça incendiar dominada pela inquietação. Um canto
invadia os meus ouvidos, como uma sereia invisível pronta para me levar para longe da realidade.
Havia chegado a hora de cumprir o meu destino, como havia visto no sonho, antes que as brumas
cobrissem de vez a minha memória. Só que eu não tinha ideia de onde começar essa busca.
Não poderia ficar esperando. Peguei o telefone na cabeceira da minha cama e liguei no
quarto de Lalinha. Para meu alívio, Roberto, seu marido, me atendeu:
— Pode falar, dona Larissa...
— Precisamos sair agora.
— A senhora está passando bem? Precisa de um médico?
— Não preciso de nada. Só tenho de resolver um assunto urgente.
— Mas é de madrugada, dona Larissa...
Comecei a ouvir a voz de Lalinha ao fundo, perguntando o que havia acontecido, mal
deixando que ele argumentasse comigo. Podia imaginar a cena: minha querida amiga se
desvencilhando das cobertas, pronta para ir ao meu encontro se eu não mudasse de ideia e
permanecesse quieta na cama. Não sabia por que, mas a certeza de que não podia ficar ali estava
cada vez maior em meu coração. Deveria ir para as ruas naquele exato instante. Parecia que minha
sanidade dependia daquilo...
— Roberto, não tente me enrolar. E fale para a Lalinha nem se atrever a vir ao meu
quarto tentar me impedir. Preciso espairecer um pouco.
— Agora? — ele perguntou pela última vez.
— Agora. Prepare o carro enquanto eu me arrumo.
Lalinha pegou o telefone da mão dele e me perguntou, assustada:
— O que é isso, minha amiga?
— Lalinha, começou novamente — Tinha de ser franca com ela. Não poderia enganá-la
depois de tudo que havíamos visto no decorrer de nossas histórias.
— Oh, meu Deus! Mas por quê?
— Alguma vez, conseguimos entender tudo isso? Será que não é hora de darmos asas
para aquilo que verdadeiramente somos? Nem que seja pela última vez. Passamos a vida omitindo
nossas naturezas, desempenhando papeis que não são nossos. Odeio fingir que você é apenas
minha governanta, Lalinha. Fico triste em pensar o quanto escondeu de Roberto para podermos
viver em paz.
— Pare de falar besteira. Não vai acontecer nada, Larissa.
— Já está acontecendo, Lalinha.
Desliguei o telefone lentamente, tomada por um mundaréu de vozes que insistiam em
assolar minha cabeça. Parei por um momento, respirei lentamente e pedi que todas elas se
tornassem uma, me indicando qual caminho tomar.
Tudo pareceu se acalmar repentinamente e um só palpitar pareceu agitar o meu peito.
Vesti uma roupa qualquer, ajeitei os meus cabelos em um grande lenço com detalhes carmim e me
dirigi para a entrada de casa.
Roberto já me esperava na porta. Adentrei o carro silenciosamente e esperei que ele
saísse pelo portão.
— Aonde, senhora? – ele me indagou formalmente.
Não soube responder de imediato. Agora iria aonde o meu coração me mandasse.
Entrei em meio às luzes ofuscantes e me misturei à multidão. Bocas sedutoras pediam
por beijos, acompanhadas de corpos agitados e seios empinados, muitas vezes fabricados, que se
agitavam diante do ritmo da música.
Entrei naquele ambiente com ares de predador esfomeado, tentando suprimir com o
prazer a dor que ainda insistia em ocupar seu espaço. Minha respiração se acelerava diante da
visão daquelas saias curtas que expunham por meio dos panos as macias carnes das coxas que
desejava tocar. Aquelas deliciosas mulheres e a forma como o seu eterno fascínio recaía sobre
nós, homens. Diante delas, nos transformávamos em verdadeiros meninos, buscando o conforto de
seus braços macios.
Elas são o eterno elemento de desejo e arrebatamento que incendeia nossas cabeças.
Escondidas em gentis meninas ou perversas matronas, elas despem o ser masculino de qualquer
resquício de racionalidade.
Cheguei até o balcão e me apoiei, pedindo um copo com uísque. Fiquei vendo os corpos
que se esfregavam na pista, um amplo espaço quadrado cercado de pilares. Para quem chegava ali
pela primeira vez, se sentia em meio a um Taj Mahal pós-moderno, entre luzes multicoloridas e
piscantes que embaraçavam a vista.
A luz que doía nos olhos era a coisa que menos importava àquela noite. Ao olhar meu
objeto de desejo e ruína, eu queria poder despi-las de suas roupas e artifícios, fitar suas peles
nuas, a alvura de seus seios e deixar que as suaves texturas dos corpos se arrepiassem ao meu
toque.
Estava isento de sentimentalismos, começando a me embalar pelo doce vagar do álcool
que aparecia em uma quantidade cada vez maior no meu copo. Sentia-me o próprio Príncipe do
Prazer, pronto a amar cada uma que por mim passava.
Queria deitá-las no chão e tocá-las com mãos, dedos, língua e membro, punindo-as
com o castigo da submissão do sexo irresponsável.
A noite se estendia e a música não cessava, com um pulsar monocórdio. O álcool, como
em um passe de mágica, continuava a não diminuir do copo com gelo.
Mas para o azar dos ébrios, a bebida em excesso causa efeitos contrários àquele que
esperamos. Esquenta o corpo e derrete o coração, deixando-nos sentimentalóides.
Isso mesmo: transformei-me em um ser completamente coração. Assumo sem culpa que
sou do tipo que fica emotivo quando bebe. Por mais que pareça clichê, admito que habito esse
rótulo. E naquela noite não foi diferente. Cada gole de bebida, em vez de me fortalecer, parecia
me trazer à realidade, reabrindo a ferida do abandono, expondo em meu rosto a dor que tanto
queria jogar debaixo do tapete.
Como em um círculo vicioso e ignóbil, eu bebia ainda mais na tentativa de abafar a pena
de mim mesmo. Mas, em vez de se desvanecer no copo, o álcool, unido à música, pareciam
realçar o que eu sentia.
Mesmo que eu não quisesse, minha razão se entorpecia e as fraquezas que residiam
trancafiadas no peito irromperam sem freios, com uma facilidade avassaladora.
Sem controle, eu me abri. Chorava e ria, expondo um humor barato diante do mundo que
normalmente não me pertencia. Sem me limitar, ingeria cada vez mais, destruindo a fortaleza do
predador que havia construído à minha volta.
No decorrer da noite, a emoção e a razão combateram duramente pelo controle de
minhas ações. E, para meu desgosto, a emoção pareceu ganhar uma força digna de super-herói,
tomando todos os espaços possíveis dentro de mim, fazendo meu emocional regredir a um estado
lastimável.
Larguei o copo e corri para o banheiro. Enfiei a cabeça debaixo da torneira, passando
as mãos com força em meus cabelos lisos para ver se voltava a ficar lúcido. Enchi a mão de um
sabonete líquido rosado, com cheiro de cânfora, esfregando-o com força por todo o meu rosto.
Enxaguei-me e peguei o papel-toalha, me sequei vigorosamente e parei para me fitar em frente ao
espelho.
Aquele era o mesmo rosto que conhecia e revia todas as manhãs. Os olhos amendoados,
cercado por sobrancelhas grossas; o nariz pequeno, quase infantil, contrastando com a boca cheia
e larga, herança da descendência negra de meu pai.
Minha pele morena e meus cabelos cheios e grossos, acompanhados da barba, poderiam
atrair a atenção de qualquer mulher, mas se alguém naquele momento me fitasse nos olhos, só
veria minha real situação: eu nunca conseguiria ser considerado um “macho alfa”, o arrasador dos
corações femininos.
Estava destinado a ser o eterno romântico, refletindo isso não só em cada uma das
histórias que já escrevi para os leitores, mas em todas as cenas que criasse. O amor que eu achei
que havia destruído nunca havia me deixado de verdade. Só estava se transformando em algo que
eu ainda não sabia como explicar.
Ficara velado dentro de mim.
Acho que, no fundo, eu sempre acreditei no amor. Só não acreditava que ele ainda
pudesse existir para mim.
Com os olhos perdidos no meu reflexo, nem percebi quando as lágrimas saltaram pelo
meu rosto ou quando abafei o choro reprimido. Respirei fundo e voltei para a pista.
Com passos meio trôpegos, me dirigi ao caixa. Empurrava gentilmente as pessoas,
querendo sair daquele ambiente que agora já não me alegrava mais. Na verdade, começava a me
enojar.
Quando terminei o trajeto pela pista, tive a sensação de que alguém me encarava. Ergui
os meus olhos repentinamente.
Bem, vou logo avisando que nesse instante foi que tudo piorou de vez. Minhas pernas
bambearam e por um instante me senti a criança insegura, que mesmo que tentasse fugir, seria
massacrada pelo monstro que habitava o guarda-roupa do meu quarto; este era real e havia me
alcançado. Foi naquela hora que eu a vi: a mulher que me abandonou como um pedaço de pano
velho, mas que ainda dominava os meus pensamentos, misturando em minha vida doses maciças
de ódio e amor.
Ali estava ela, a menos de dez passos de distância de mim. Meu demônio me encarava.
Luíza.
Nome de diva, letra de música. A bela donzela que apunhalou meu coração em um golpe
derradeiro. Mesmo com as luzes que insistiam em piscar, atrapalhando a minha visão, via cada
contorno de seu corpo delineado no vestido vermelho. Seu cabelo loiro e curto, como de um
menino travesso ou de uma Joana D´Arc valente e guerreira, pronta a destruir os meus
sentimentos, sugando para si os reflexos da luz.
Ela me fitava séria, indecifrável. Aquela mulher era a esfinge construída de gelo e
desafeto, o canto da sereia que levava à perdição. Nada mais que a eterna Monalisa, aquela que
em seus traços não sabemos se reside a euforia ou a tristeza.
Ela sustentou o meu olhar. E como quem elimina uma mosca incômoda que rondasse os
seus pensamentos, me deu as costas, mergulhando na multidão.
Caminhei em sua direção, aparentando que se a alcançasse fosse capaz de aplacar os
rugidos do meu coração inquieto. Empurrava, gesticulava, sentia a variação de cheiros e
fragrâncias explodirem em minhas narinas, mas não queria mais nada ali. Aquela visão
momentânea havia me deixado são. Rever a pessoa que eu teimosamente insistia em amar, mesmo
quando tudo já havia acabado, me enchia de raiva da vida, mágoa e vontade de gritar.
Eu só queria sair dali e pegar a sua cabeça tão linda para batê-la na parede com toda
minha força até que um dos dois recobrasse a razão. Minha alma desejava rasgar aquela face linda
e, ao mesmo tempo, enchê-la de beijos ternos.
Mãos se roçavam no meu corpo, prometendo alívio para as minhas dores, mas sabia que
não iria me contentar com noites efêmeras diluídas em fumaça de cigarro. Não mais. Ela tinha de
aparecer para coroar minha dor e trazer de volta todas as minhas dúvidas? Será que um dia eu iria
parar de vasculhar os cantos da minha memória tentando ver onde havia errado?
Precisava encontrá-la. E, nas respostas dela, me encontrar, antes que adentrasse
novamente nos caminhos tortuosos e sombrios que o amor deixa quando nos abandona.
Consegui enxergá-la se dirigindo à porta de saída. Como se adivinhasse que eu a havia
encontrado, virou a cabeça novamente, percorrendo o salão com os olhos até me encarar. Senti
tudo parar naquele momento em que nossos olhos se reencontraram e, por incrível que pareça,
senti medo. Reconheci que havia chegado a hora da verdade. Quem sabe o que eu poderia
descobrir?
Será que a culpa sairia dos meus ombros pelo fim desse romance? Ou me afundaria de
vez?
Fui até o caixa e paguei rapidamente, buscando a saída sem nem esperar o troco.
Alcancei a calçada, atropelando as pessoas que se encontravam à minha frente e
respirei fundo ao ar livre de promessas não cumpridas e buscas desenfreadas para aplacar o
desejo. Minha mente começou a clarear e foi ali que percebi que, ao contrário do que insistia em
acreditar, eu não estava pronto como imaginava para aquele momento.
Mas não tinha como escapar. Ela estava ali à minha frente.
Linda, exuberante e pronta para levar a minha alma, como da primeira vez que nos
vimos, há tanto tempo.
Estava em uma livraria da cidade, durante um lançamento. Pegou o meu livro e pediu
um autógrafo. Olhei então para o seu rosto. Foi quando Luíza sorriu e todo o restante do
mundo perdeu o sentido. Estava capturado, a fera cercada de histórias prontas a se cumprir...
Mas agora não é hora de relembrar isso. Deixemos para depois. O importante foi que
naquela hora eu me aproximei, vagarosamente, com receio de que atitude tomar. Queria tocá-la,
pedir perdão de joelhos por qualquer ato infame que tivesse feito e, ao mesmo tempo, gostaria de
ter um arsenal de palavras para feri-la implacavelmente.
— Olá, Luíza!
— Boa noite, Jonas!
Queria tentar entender o peso do meu nome nos seus lábios, mas não havia nada. Nesse
tempo, havia ouvido ela me chamar com amor, prazer ou até mesmo mágoa. Mas nunca com
tamanha indiferença.
— Luíza, eu só queria saber... – tentei falar, mas ela me interrompeu.
— Pare de tentar achar respostas, Jonas. Deixe de se lamentar porque esse pedaço da
nossa história acabou. Todas as histórias um dia acabam. Só você que ainda não percebeu isso?
Eu dei um passo brusco para trás. Por um momento, abaixei a cabeça para me controlar.
Não ia deixar transparecer as minhas emoções. Era triste saber que a imagem da mulher
construída diariamente neste meio tempo pertencia apenas a mim.
— Por quê? – sussurrei. — Só isso que eu preciso saber – achando-me dono das minhas
emoções, olhei em direção a ela. Foi naquele instante que nos unimos como nunca havíamos feito
antes. Juntos pela dor e a certeza de que aquilo que pensávamos ser eterno estava
irremediavelmente terminado. — Qual foi o momento em que colocamos tudo a perder?
— Acho que foi mais que isso, Jonas. Nós mudamos e não vimos. Diante de nossas
rotinas atribuladas, colocamos o lado prático da vida na frente de tudo. Já não tínhamos o contato
necessário um com o outro. Éramos apenas dois desconhecidos que se despiam todas as noites,
procurando resgatar algo que não sabíamos mais onde procurar. Aquilo que iniciamos foi lindo,
mas nem faço ideia onde foi parar...
— Será que um dia eu aprendo a viver sozinho? – olhava para ela, mas perguntava a
mim mesmo. Por mais que negasse, ainda a amava. Gostava dela mesmo diante do sofrimento que
me trazia.
— Todos nós não vivemos sós? Mesmo quando estávamos juntos você compartilhava
dos meus momentos de sono ou das minhas dores de cabeça? Não, você me acompanhava com sua
própria vida. Todos somos sozinhos, Jonas. Está mais do que na hora de aprender isso.
— Não quero que tudo acabe, Luíza. Eu nunca quis...
— Eu sei. Por isso ficou em uma briga solitária sem perceber quando o brilho do olhar
se tornou baço, a beleza que antes enchia a visão perdeu o seu teor. Tivemos momentos que as
palavras que eu amava ouvir pareciam sons sem importância, pronunciados por uma boca que
antes desejava beijar. Agora tenho saudade apenas do que fomos um para o outro. Por isso meu
coração quis alçar novos voos, procurar uma nova casa, pois já se cansou de ficar esquecido.
Preferi fazer isso antes que meu respeito por você acabasse. Quero correr atrás do meu próprio
destino, Jonas. Sem você...
— Não consigo entender o que faltava...
— Um dia sei que você vai entender. Não importa o que tínhamos, mas sim nos
conscientizarmos de que o que restou não é o suficiente. Amar o outro é também ter a coragem de
deixá-lo se for preciso. Esqueça-me, Jonas.
Fechei os olhos e neguei com a cabeça.
— Você tem outro? É isso que não consegue me dizer? – comecei a perder o controle.
— É nisso que acredita? Precisa ter uma desculpa plausível para nossa história acabar e
você carregar a bandeira de vítima abandonada? Saiba que o abandono já havia acontecido antes,
Jonas. – ela continuou. — Ambos fomos culpados e abandonamos essa história sem tentar
consertar. Agora, nesse momento, nada vai mudar esse fato. Se eu for embora agora ou morrer
daqui a 50 anos de casada, um dia você vai se sentir abandonado. A diferença é que agora ainda
podemos ser felizes. Depois, quem sabe...
— Mas e o amor? Será que ele existe?
— Histórias de amor sempre existirão. O tempo que elas duram é que nunca permanece
o mesmo.
Abri os olhos e quis retrucar algo, mas Luíza não me esperou. O rapaz chegou com o seu
carro e ela entrou, sem olhar para trás. Foi embora como se nossa conversa não tivesse
acontecido.
Para mim não era o suficiente.
Comecei a correr atrás de seu carro pelas ruas escuras da cidade, como se fosse capaz
de alcançá-la. Sem rumo certo, a cabeça parecendo um turbilhão cheio de indagações. Preso entre
atitudes certas ou erradas, decisões que poderia tomar e mudar toda a minha vida.
Precisava de respostas para os meus anseios mais íntimos, rasgar a minha carne
magoada e vasculhar as entranhas, como uma feiticeira da Idade Média, em busca de respostas
reais para os sentidos que permeavam a minha vida. Será o ser humano capaz em algum momento
de decifrar todos os mistérios que preenchem o Livro dos Dias?
E eu saberei um dia descobrir o sentido do amor?
Fiquei por horas caminhando sem motivo. Um alucinado em busca de minha droga. Esta
não é a verdadeira definição desse sentimento? Uma coisa viciante que nos aprisiona e faz o
homem mergulhar numa doce e amarga viagem?
Com o dia que amanhecia, avistei a praia a minha frente. Queria tanto que Luíza naquele
momento ali estivesse, com o salto alto preso delicadamente entre as mãos, caminhando
suavemente na areia. Fechei os olhos e desenhei na minha mente o seu contorno esguio, as pernas
longas e seios pequenos se movendo pela areia da praia. Via seu cabelo dourado ganhar as cores
daquela manhã que chegava, cheia de dor e verdade.
Desejoso de me perder diante da miragem criada pelos meus anseios, acelerei o passo
no asfalto frio, esperando que meu desejo se realizasse. Estava disposto a alcançá-la de alguma
forma e declarar tudo aquilo que não pude falar, tomado pela emoção. Só me importava em vê-la.
Nem sabia mais o que era minha própria vida.
Corri inconsequentemente para o meio da rua.
Só ouvi a freada brusca.
Quando virei o meu rosto para o lado, assustado, um par de faróis ocupou minha visão
em um instante. Cada movimento pareceu correr em câmera lenta com o frio metal do carro se
aproximando impiedosamente de mim. Tentei pular para frente, querendo evitar um atropelamento,
mas, mesmo assim, meu raciocínio e reflexos não foram bons o suficiente.
O corpo escorregou e, num movimento antinatural, vi claramente a rua encontrar o meu
rosto quando caí. A cabeça beijou a escuridão do asfalto com um baque oco. Em seguida, a dor
explodiu em todo o meu corpo. Sobrou a escuridão, levando completamente os meus sentidos.
Só voltei a abrir os olhos um bom tempo depois. Em outro lugar, com outras pessoas.
E garanto a você que, depois desse encontro, tudo mudou...
Vozes. Murmúrios do passado me embalam enquanto o carro passa pelas ruas cariocas.
Sombras esquivas passam enquanto fecho os olhos, cercada pela magia que retorna ao
meu cerne, com todas as forças, abrindo-se diante de mim.
Nunca imaginei que no final da vida ainda pudesse temer alguma coisa. Mas a verdade é
que, conforme o veículo deslizava pelas ruas noite adentro, mais aumentavam os meus receios de
que pudesse falhar. Será que aguentarei cumprir o meu destino com tamanha força de vontade?
Serei capaz de contar a minha história para que nada seja esquecido ou manterei cada momento
dentro do meu peito para que somente eu viva dessas lembranças?
Fico sentindo sua presença querendo me chamar a atenção. Você deve estar torcendo o
nariz, num gesto de desagrado que tão bem conheço. Sei que tenta me encher de esperanças de que
no final tudo vai dar certo. Para uma mulher como eu, à qual a vida já deu tantas surpresas
desagradáveis, é difícil se manter com autoestima. Não sou mais aquela menina que você
conheceu, mesmo que aquela magia que tanto nos encantou ainda exista. E se faça presente
novamente.
Ela está aqui agora, vibrando em minha cabeça, tentando me acalmar. Mas só você fazia
isso comigo, enlaçando-me com seus braços fortes...
Queria ter coragem de mandar tudo às favas e ficar jogada na cama, vivendo apenas das
lembranças, até que você viesse me buscar... Mas sei que não posso. Meu próprio coração não
deixa.
O meu corpo anseia por esse descanso. Vejo isso em detalhes, quando me observo
diante do espelho que reflete essa forma velha e encarquilhada, cheia de rugas, dobras vazias e
vacilantes onde antes residia apenas a firmeza da juventude. Sei que você me veria como se fosse
a mesma. Em dias bons, eu ainda vejo a beleza que me habitou, aquela que você reverenciou; nos
outros, os dias de névoa, nem sei dizer quem eu sou...
O pior de quando nos tornamos velhos não é a sensação das limitações do corpo ou o
peso da solidão imposta, já que muitos daqueles que amamos vão-se embora; o duro é quando
percebemos que a vida está nos abandonando, pois passamos a nos tornar espaços vazios.
O preço da experiência adquirida é a nossa própria existência...
Sentada no banco de trás do carro, confortavelmente envolvida pelo couro, fiquei
perdida em pensamentos, misturando passado, presente e futuro dentro da minha cabeça, sem
perceber que a noite já se dissolvia em meio às ruas. Roberto me perguntou várias vezes se queria
voltar para casa, mas neguei veementemente.
Meus instintos diziam para ter perseverança, seguir adiante, saber esperar a resposta
certa. Realmente, aparentava que algo estava vindo ao meu encontro, lento e vagaroso, atraindo-
me de maneira que não conseguia escapar.
Foi nessa hora que lhe vi ao meu lado, meu querido. Tão palpável como se estivesse
vivo. A face compenetrada, como se necessitasse fazer algo muito difícil. Sabia que alguma coisa
muito importante estava para acontecer.
— O que foi, meu amor? – perguntei receosa.
— Chegou a hora – sua voz ressoou pelo carro.
Roberto se virou para trás. Deveria estar achando muito estranho: eu, encostada no
banco, falando sozinha. Será que era incapaz de sentir a energia no ar, pulsando a nossa volta?
— A senhora está bem?
— Continue dirigindo, por favor...
Você enfiou sua mão direita em meu lenço e agarrou os meus cabelos. Ao contrário do
que poderia pensar, senti o toque em minha cabeça. Por um momento você era real.
Segurei sua mão e senti sua pele macia. O brilho da aliança do nosso casamento pareceu
refulgir diante dos meus olhos.
— O que está acontecendo?
Uma onda de energia pareceu me tomar repentinamente. Fechei os olhos, inebriada
diante daquele poder e comecei a ver cenas desconexas de uma vida que não era a minha. Sentia
muita mágoa, dor, descrença e, acima de tudo, solidão. Era como se visse toda a existência pelos
olhos de outro. Tudo muito rápido, repicado e sem ordem certa.
De alguma forma, aquela pessoa tinha alguma ligação muito forte com aquilo que eu
estava destinada a cumprir. Vi mãos masculinas digitando apressadas diante do computador. Logo
em seguida, estava com um livro nas mãos, com o título Aspectos do Amor brilhando no meio da
capa, em uma cena romântica idílica.
Eu reconheci aquela obra: havia lido assim que fora lançada, ficando entre os meus
favoritos. Ela narra o encontro de um jovem fotógrafo e uma enfermeira em um dia de chuva. Um
encontro fortuito que faz com que o casal repense todos os seus valores sobre amor e lealdade.
Na ocasião, achei o texto uma pérola entre tantos outros maçantes e sem nexo vindo da
nova geração de autores nacionais. Muitos copiam fórmulas prontas, ideias de seres fantásticos,
como vampiros e anjos, longe do nosso popular, e se esquecem de valores e sentimentos reais do
nosso cotidiano. Somos seres em constante dúvida, precisamos de exemplos reais para nos
identificar, mostrar parte do que somos.
Não que o fantástico não exista. Eu que o diga... Mas, no caso daquela obra em
específico, o que mais me surpreendeu no autor foi a propriedade com que ele discorria os
sentimentos. Jonas Albuquerque, esse era o seu nome, tinha menos de 30 anos, mas dialogava com
o leitor em suas obras aparentando carregar consigo três vezes a minha idade. Para confirmar essa
visão, reconheci o rosto dele quando se prostrou diante de um espelho. Parecia que estava em um
bar. Cabelos desarrumados, olhos fundos e inchados de tanto chorar, tão sem rumo que meu peito
se apertou. Seu corpo jovem e esguio arfava, coberto de suor. Ombros caídos que pareciam
carregar um peso além da conta.
— Ela nunca me amou... – ouvi-o sussurrar antes que sua imagem sumisse novamente na
minha cabeça. Em seguida, o cenário mudou repentinamente, como em um filme mal editado. Fui
cercada por luzes resplandecentes e a vista se embaçou de súbito. Tudo girava e eu tentava me
manter em foco, perdida em um gingar sem sintonia.
Ele ergueu a cabeça e vi uma bela moça. Soube na hora que ela era a verdadeira razão
de sua mágoa. Senti, mais do que nunca, a dor do abandono ocupando-me a mente. Seu coração
duelava entre o desejo de amá-la e esquecê-la. Mesmo sabendo qual o resultado daquilo tudo, ele
foi ao seu encontro...
A cena mudou novamente. Estávamos na calçada, na porta de um lugar qualquer, e a
moça lhe dava as costas. O jovem sabia que deveria desistir do seu intento, seguir adiante com a
vida, mas algo dentro dele era irascível e teimoso, incansável na tentativa de se magoar. Ela
entrou no carro e ele foi atrás, correndo com determinação.
Não sei quanto tempo se passou, eu o vendo vagar pelas ruas, perdido, em busca de algo
que não tinha mais volta. Por um momento, ele estava perdido entre os prédios, um vulto anônimo
mesclado à noite que se findava. Em seguida, senti seu caminhar firme em direção à praia. Há
muito já estava sóbrio, banhado pela racionalidade das lembranças que ela havia lhe despertado.
Sem pensar, atravessou a rua. Foi quando um carro entrou em seu campo de visão,
repentinamente. O veículo freou, bruscamente. E me trouxe de volta. Havíamos nos encontrado.
Avistei a porta da sala e para lá me dirigi. Girei a maçaneta e comecei a abri-la, e, logo
a frente, havia duas pessoas numa acalorada discussão. Fiquei meio receoso sobre como agir
naquele instante: faria notar a minha presença e correr o risco de ser julgado como um curioso ou
voltaria para a convidativa biblioteca e esperaria alguém vir me ver?
Foi quando ouvi algo que me fez ficar na escuta:
— Lalinha, tem algo muito estranho nessa mulher...
— Pare de falar bobagem, homem!
— Mas ela estava assombrada! Eu vi com meus próprios olhos, não era doideira, não.
Estava dirigindo sem rumo, rodando feito um peão como ela havia pedido. De repente, algo me
chamou a atenção no banco de trás. Juro por Deus que, quando eu olhei, tinha um homem
brilhando, sentado ao lado dela. Foi nessa hora que perdi a direção e o moço caiu na frente do
carro.
— Pode parar agora de inventar histórias, Roberto! Você andou bebendo?
— Que isso, meu amor?! Parece que não me conhece... Vamos embora, Lalinha. Sair
desse lugar e abandonar essa mulher de uma vez por todas.
Senti um silêncio tenso no ar. O grito dela não demorou a chegar.
— Nunca mais repita isso, Roberto. Ela é uma irmã para mim. É mais importante que
tudo e eu nunca a deixaria sozinha. Se ousar pensar nessa hipótese de novo, eu te largo, certo?
— Mas, Lalinha...
— Certo?
— Sim, meu amor – ouvi-o sussurrar baixinho. Ele saiu pelo corredor e só pude ver sua
silhueta de costas, com os ombros abaixados e passos indecisos.
— Agora vou à biblioteca ver como ele está – ouvi a mulher dizer.
Corri para dentro e me deitei no sofá, fingindo ver um livro. Tentei diminuir os ritmos
do meu peito para não demonstrar minha ansiedade e esperei a visitante misteriosa fazer a sua
entrada.
Como se alguém ouvisse os meus pensamentos, a porta se abriu suavemente e ela entrou.
Era uma jovem senhora que, ao me ver acordado, abriu um enorme sorriso. Simpatizei-me com ela
à primeira vista.
Trajava um vestido escuro, para baixo dos joelhos, junto de um avental branco. Seus
cabelos loiros, com ligeiros fios prateados, estavam presos firmemente em um coque, adornando
um rosto tranquilo encimado por belos olhos azuis. Ela sorriu mais uma vez e seu brilho pareceu
iluminar toda a sala. Sentia-me em casa.
— Espero que o senhor esteja melhor – ela falou, com uma voz baixa e sonora.
— Estou sim, obrigado. Sinto se causei algum transtorno – desculpei-me rapidamente,
recordando mais uma vez dos meus atos insensatos de amor madrugada adentro.
— De forma alguma, senhor. Foi um simples susto, pelo que o meu marido me contou –
ela se aproximou e resolveu terminar de contar o acontecido, sem imaginar que havia ouvido a
conversa do lado de fora da porta poucos minutos antes. — Era ele que estava dirigindo e disse
que o senhor caiu na frente do carro.
— E quem pediu que me trouxessem para cá?
— Foi a própria dona Larissa. Ela desceu correndo e pediu para colocar o senhor no
banco traseiro. Não sei por que ela não quis levar o senhor para o hospital. Essa saída repentina
dela foi bem estranha mesmo... – por um momento, parecia dialogar com si mesma.
— Que saída?
— Não repare não, moço. Tem horas que eu falo demais – ela logo emendou.
— Por favor, pode me chamar de Jonas.
Vi que seu rosto se enrubesceu. Acho que aquela gentil e faladeira mulher não estava
acostumada à gentileza.
— Obrigada! O senhor é tão educado – ela emitiu uma pequena risada, que quase me fez
sorrir junto, se não fosse a dor de cabeça que voltava a me alfinetar. — Pode me chamar de
Lalinha.
— Tudo bem, Lalinha. Então, afinal de contas, foi a dona da casa quem me trouxe para
cá?
— Sim, foram ordens dela. Afinal, o seu corte não havia sido nada sério. Ela mandou
que o colocasse desacordado aqui na biblioteca. Dona Larissa achou que ficaria mais à vontade
entre os livros. Nós mesmas cuidamos do senhor. Ela disse que não tinha problema nisso. Não
havia chance de o senhor ter uma con... Como chama mesmo?
— Concussão? – indaguei, me divertindo com o jeito expansivo daquela mulher.
— Isso mesmo, Seu Jonas. Desculpe a minha ignorância, mas não seria mais fácil falar
que bateu a cabeça?
Eu não me segurei e comecei a gargalhar. Abruptamente parei, surpreso com a alegria
que vinha da minha voz. Será que começava a dar o devido sepultamento ao meu relacionamento
ou a pancada na cabeça havia embaralhado as minhas ideias e desajustado meus sentidos?
— Você é ótima, Lalinha! – Cada palavra que eu dizia a deixava cada vez mais
envergonhada. Não conseguia entender, mas estava bem tranquilo diante dela.
— Imagine, Seu Jonas. O senhor que é muito bom. – Seu semblante se tornou sério
repentinamente. – O senhor está melhor de verdade?
— Estou me sentindo muito bem, obrigado. Estou apenas com uma ligeira dor de
cabeça. Mas com o tempo isso deverá passar. Agora devo agradecer à sua patroa tamanha
compreensão e hospitalidade.
— Ela o está esperando no escritório. Pediu que assim que o senhor despertasse, fosse
levado até lá.
Descemos um grande lance de escadas e viramos à esquerda. Chegamos a uma
imponente porta de madeira, que ela abriu silenciosamente.
— Com licença, senhora.
— Está tudo bem, Lalinha – uma voz firme ressoou pelo local. — Busque um café para
nós, por favor.
Entrei no escritório. Havia uma ampla escrivaninha de madeira maciça trabalhada que
parecia saída de um museu. Em frente, havia uma confortável poltrona, feita de couro. A cada
passo que dava no recinto, forçava mais a vista, já que o cômodo se encontrava iluminado apenas
pela luz esparsa de um abajur.
E na minha frente, estava a dona da casa. Ela parecia se reclinar para trás, fugindo da
luz. Via seus ombros afilados e seu corpo esguio, ocultados por uma camisa feminina de seda
vermelha. Os braços longos repousavam sobre a mesa e seus dedos finos tamborilavam no tampo
escuro de madeira. Ressaltavam diante de mim as suas unhas, pintadas de carmim e os anéis que
enfeitavam seus dedos, como delicados relicários dourados.
Tentei firmar os olhos em seu rosto, mas não conseguia ver nada em detalhes. Quando vi
sua cabeça se virar em minha direção, desviei o olhar sem graça.
Neste meio tempo, olhei meu relógio de pulso, que por um milagre ainda se mantinha
inteiro. Já passava das nove horas da manhã e eu, cheio de vergonha, achava que seria muito
abuso ainda compartilhar o café com a mulher para quem eu havia causado tantos transtornos. Mas
assumo que, no meu íntimo, estava curioso para conhecê-la. Na verdade, eu estava morrendo de
vontade de falar sobre todos aqueles livros na sua biblioteca.
— Acho que não será necessário, dona Larissa. Só vim agradecê-la e já vou embora. A
senhora deve ter muitas coisas para fazer... – Tentei me desculpar.
O silêncio pesou por um instante até sua voz replicar ao meu pedido.
— Meu caro senhor, não vai me atrapalhar mais do que já fez até agora, pode ter
certeza. Faça o favor de me acompanhar em um café.
Senti a minha face arder de vergonha. Pelo jeito aquela mulher era dona de uma sutileza
incomparável.
— Peço desculpas para a senhora...
— Não tem necessidade disso, jovem. Depois de pular na frente do meu carro e assustar
a mim e ao meu motorista, acho que podemos compartilhar deste momento sossegado... – seus
olhos me encaravam, deixando-me cada vez mais embaraçado. – Não concorda?
Assenti com a cabeça. Lalinha entrou silenciosamente, empurrando um carrinho cheio de
deliciosas guloseimas e um elegante conjunto de chá feito de prata.
A sala pareceu ficar em suspenso, respirações pausadas enquanto Lalinha nos oferecia o
suntuoso lanche, em um delicado ritual. Suas mãos pequenas nos serviram rápida, mas regiamente,
como se fôssemos imperadores de um reino mágico.
Ela continuou a conversa assim que Lalinha saiu:
— O que me interessa é que agora vou poder tomar um lanche com um conhecido autor
de romances. Não é verdade, senhor Jonas Albuquerque?
Fiquei espantado com essa declaração. Aquela mulher me conhecia.
Peguei a xícara nas mãos e bebi um gole tentando ganhar tempo. Peguei uma bolacha de
nata e mordi, fechando os olhos diante da delícia que se desmanchava na minha boca. Ela nada
falou neste meio tempo.
Apenas esperou, pacientemente...
— Desculpe, dona Larissa, mas...
— Não precisa me encher de explicações se não quiser, Jonas – ela foi direta e incisiva,
sem formalidades. – Sei reconhecer quando um homem está perdido...
— Como assim, senhora?
— Sem saber como agir, o que fazer. Não é verdade?
Respirei aliviado. Por um momento, na minha cabeça fantasiosa, pareceu que ela sabia
bem mais a meu respeito do que eu pensava. Coisas de quem vive com a mente imersa em um
mundo irreal.
Olhei incisivo em sua direção, tentando perceber mais do que apenas seu vulto altivo e
delgado, quase fantasmagórico, enchendo o ambiente.
O único detalhe que conseguia discernir eram suas mãos que bailavam diante dos meus
olhos, enquanto ela falava. Seu gesticular mais parecia uma dança hipnótica, atraente. Minha
cabeça divagava, indagando o quanto de beleza poderia ter residido ali quando ela era mais
jovem, visualizando apenas a bela forma de suas mãos.
— Como eu não me sentiria perdido? – Respondi, grosseiramente, me encolhendo
diante da acusação. — Trombei literalmente com o seu carro e não sei ao menos onde estou.
— O senhor está um pouco para frente do bairro Recreio. E na hora que quiser posso
mandar levá-lo – ela ergueu um dedo, me mantendo em silêncio —, mas só depois que terminar o
seu café.
— Por que insiste tanto em conversar? – eu estava na defensiva.
— Curiosidade. Um homem jovem, talentoso e bonito cai diante do meu carro, em plena
madrugada carioca. Não estava tão bêbado assim e nem ao menos parecia drogado. Fico me
perguntando: o que aconteceu?
— Nada, minha senhora.
Ela continuou com os seus devaneios, sem ouvir minhas respostas:
— Parecia que estava perdido em pensamentos, entorpecido pelas lembranças, à
procura de respostas. Será que havia dor em seu pensamento? Será que estava sofrendo de amor?
Estava colocando a xícara na bandeja quando ela disse aquilo. Assustei-me e derrubei
todo o café que ainda restava.
— Bingo... – ela exclamou baixinho.
— Como sabe que eu sofro por amor? – respondi a ela, sem ter argumentos para criar
outra situação que eliminasse minha vida pessoal como foco da conversa.
— Não sofremos todos, meu querido autor? Em algum momento, como para você, o
amor também já fez parte dos meus dias. E assim como você agora, outrora sofri demais quando
ele se foi...
— Ele te abandonou?
— A morte também não é uma forma de abandono involuntário?
Reconheci na fala daquela senhora misteriosa as mesmas palavras de Luíza de poucas
horas atrás. Mas ela não me deu tempo de pensar, continuando a falar:
— O único amor que me restou foram os meus livros. Cada obra que corro os olhos é
uma forma de viver minhas paixões. Pelo mundo, pela realidade da vida e por mim mesma. Sou
uma excelente leitora, Jonas, e sempre tento saber mais sobre os autores que aprecio. Seu livro
Aspectos do Amor está entre os meus preferidos...
— Sabia quem eu era desde o começo?
— Confesso que não. Só quando eu o coloquei no carro, senti que o conhecia de algum
lugar. E ao chegar a casa e ver os seus documentos, foi só juntar os fatos.
— Então você conhece meu livro? – perguntei espantado. Como imaginaria que cairia
diante do carro de uma fã, em uma noite insone, doente de amor?
— Sim. Acho peculiar sua forma de ver o amor...
— Como assim? – Quis saber, interessado.
— Você cria em sua obra um ideal romântico almejado, mas nunca consentido. É como
se expusesse ali os seus anseios e devaneios mais altos. O amor não é aquela paixão intensa na
qual você vê o outro como o objeto de seu desejo por toda a vida. Amar é compartilhar altos e
baixos, mas sem ser o outro. É um sentimento interessante, extremamente ambíguo...
— A ambiguidade, em sua opinião, reside no eterno embate entre o amor e o ódio e a
tênue linha que os separa?
— Não, longe disso. O amor fica no meio da linha. Deve ser cuidado e cultivado, mas
não visto como necessidade primária. Se fosse um livro, o amor ideal mostraria um sentimento do
ponto de vista dos dois personagens, deu para entender? Cada um deve compartilhar o amor como
parte da sua história, a herança do seu próprio mundo.
Comecei a sorrir.
— Então você não acredita no amor eterno?
— Se acreditar no amor eterno for acreditar que o sentimento não muda, não acredito.
Os sentimentos são extremamente complexos e mutáveis, assim como nós.
— E o conceito de almas gêmeas?
— Não como a maioria pensa. Porque se você encontrasse alguém que fosse igual a
você e o completasse, o que restaria do seu ser individual? Cada passo seu seria um reflexo do
outro...
— Bom argumento, dona Larissa.
— Acho que já pode me chamar apenas de Larissa, Jonas.
— Obrigado!
Naquele escritório à meia luz, conversamos sobre as mais diversas obras literárias.
Divagamos sobre a vida e a morte, culpa e redenção, saboreados com os deliciosos biscoitos de
Lalinha e seu café forte. Nem percebi o tempo passar. Parecia estar dentro de uma bolha
atemporal, onde falar com aquela senhora era um bálsamo para minha alma cansada de se torturar.
Era uma troca de respeito, informações e uma absorção constante de cultura. Juntos divagamos
sobre a nossa paixão pelos livros e suas histórias. Um terreno que achava seguro para mim
naquele instante. Mal imaginava que era para ambos.
— Você já amou um dia, Larissa? Como nos meus livros? – o assunto se tornava cada
vez mais interessante. Não estava com a mínima vontade de sair dali.
— Já, Jonas – ela parou de falar por um instante, enquanto bebericava o café. — Foi
através dele que descobri ser quem eu sou hoje, inteira e verdadeira. Sem artifícios ou
subterfúgios.
— Posso pedir uma coisa, Larissa? – perguntei sem pensar. O clássico comichão de que
uma boa história estava prestes a surgir começou a me atormentar. – Na verdade, duas.
— Sim, fique à vontade.
— Posso abrir a janela? Gostaria muito de vê-la. É ruim falar com alguém que parece
um vulto em meio às sombras.
— Cansou de usar a imaginação, Jonas?
— Às vezes, precisamos de uma dose de realidade.
— A realidade nem sempre é boa. Por que acha que amo tanto a literatura? Porque em
cada livro que leio posso amar e ser retribuída na mesma medida. Não tenho que lidar com a
realidade das falsas aparências ou de palavras vazias...
— É possível amar a outros... – Tentei argumentar. Só não sabia se era para ela ou para
mim mesmo.
— Você não está sendo bom em defender argumentos, Jonas. E neste momento sinto que
também não é o melhor conselheiro.
— Eu sei... – tentei mudar de assunto, persistente no meu objetivo. — Posso abrir as
janelas?
— Será que está pronto?
Por um momento, temi ao ouvir sua voz mudar drasticamente. Em tão pouco tempo, tanta
coisa tinha acontecido. Será que ainda estava preso no meu quarto, sonhando? Ou em uma cama de
hospital, entorpecido em um coma profundo?
Eu era como o Coelho de Alice, correndo para o meu próprio País das Maravilhas. Será
que se eu contasse a alguém, iriam achar alguma realidade naquela situação que eu vivia? Tudo ali
poderia ser o sutil devaneio de um autor em crise. Ou a história de um novo livro.
— Estou pronto sim.
Adentrei a escuridão e passei por ela. Por um momento, ela segurou o meu braço com
força.
— Nunca se esqueça de que o agradável aos olhos aprisiona. Só a verdadeira isenção
de beleza exterior é capaz de libertar o que há de mais belo no ser humano.
Ainda cheio de temor, abracei a escuridão. Tateei até encontrar a janela.
— É mais para cima – ela murmurou, sabendo com exatidão onde eu me encontrava.
A luz entrou em um jorro no ambiente, deixando o ar puro da manhã adentrar o
escritório. Via o belo jardim que ela tinha, com árvores diversas. Uma fonte em formato de
querubim se localizava mais adiante, jorrando água límpida. Se não fosse o céu típico do Rio de
Janeiro, com sol inclemente e os prédios da Barra e seus condomínios mais adiante, poderia
pensar que estava viajando no tempo.
Virei-me lentamente e a primeira coisa que vi foi um lenço colorido. Seu desenho
intricado de pássaros e flores parecia ter vida naquele fino tecido. Ele cobria toda a cabeça de
Larissa. O nó dado para prendê-lo na cabeça caía elegantemente no final da nuca, onde começava
a camisa feminina de cor carmim.
Fui me encaminhando devagar e me sentei à frente dela. A cada passo que dava, meu
coração se mesclava em uma infinidade de medo, mágoa e pena. Tudo parecendo explodir.
Como definir a minha visão ao observar aquela mulher? Na sua juventude, ela deve ter
sido a mais linda que já existiu. Em seus olhos quase dourados, era possível ver como fez os
corações mais gélidos se derreterem ao mirarem sua figura. Seus lábios ainda eram carnudos e
não tinham perdido o volume com o tempo. Ao contrário de muitas mulheres de hoje, não se via o
traço de qualquer intervenção cirúrgica em nome de uma beleza artificial.
Mas, o que mais se destacava diante de mim eram as marcas de queimadura que
pegavam grande parte de sua fronte. Como algo destruidor, tentando arruinar aquele rosto onde a
beleza imperou, as carnes inchadas e vermelhas desciam pelo canto do olho direito ocupando a
sua bochecha, alcançando a boca que repuxava, como se ela estivesse sempre sorrindo, num esgar
ressentido.
A primeira coisa que pensei era como tamanha beleza poderia ter sido tão destruída?
— Não necessito do seu olhar de pena. Olhe além de minha face marcada e só assim me
verá de verdade.
— Desculpe-me!
— Não preciso de desculpas por algo que já aconteceu há tanto tempo. E me libertou...
— Como a destruição da beleza pode libertar?
— E como não poderia? Só nos vemos realmente quando fitamos o outro além do físico.
Este é o amor que você deve buscar! – Por um momento sua voz tremeu. — Foi este que eu tive.
Além do corpo que se degenera...
— Se você foi amada como diz, não deveria ser prisioneira de sua própria casa ou de
seu físico. Se o amor te libertou, por que ficar trancada aqui, em meio aos livros?
— Porque, meu caro autor romântico, eu amei tanto nesta vida que não me sobrou
sentimento para amar mais nada além dos livros. Cada página revirada é uma lembrança do
homem que eu amei...
Seus olhos se fecharam por um momento. Pareceu puxar de sua memória todas suas mais
secretas lembranças. Gemeu baixinho e lágrimas escorreram pela sua face.
— Sabe por que eu o trouxe para minha casa, Jonas?
— Por quê?
— Como eu disse, eu lhe reconheci assim que meu motorista o colocou no carro. E no
momento que o destino pôs você no meu caminho, sabia que era hora de alguém contar a minha
história...
— Você quer que eu conte a sua história?
— Quero.
— Mais uma vez pergunto: por quê?
— Por que não? – ela replicou, com olhos brilhantes.
Não sabia o que responder.
Será que estava tão disposta a me abrir como afirmava ao jovem escritor?
Agora que Jonas estava diante de mim, não tinha certeza de que teria coragem de seguir
até o fim com a minha narrativa. Eram tantas memórias, fatos obscuros e muitas vezes
implausíveis que faziam parte da minha trama pessoal, que tinha medo de que ele me
desamparasse no meio do relato, achando que eu era apenas mais uma velha excêntrica e
abandonada, vivendo um mundo de ilusões, como aquela personagem clássica de Crepúsculo dos
Deuses[1].
Fechei os olhos e mandei os meus receios embora. Se o destino havia confabulado para
que chegássemos até ali, nada poderia dar errado. Ergui a cabeça e fitei o seu rosto, à espera da
resposta que iria mudar tudo.
Ele parecia hesitar, pesando os prós e os contras daquela situação. Sabia que o lado
autor dele se indagava o que poderia ter de tão fantástico em minha história.
Seus ombros começaram a relaxar e ele se recostou na poltrona, de frente a mim. Pegou
uma bolacha amanteigada e mordeu vagarosamente, aumentando cada vez mais a minha tensão.
Minha vontade era de gritar com ele, exigindo uma resposta, mas sabia que esta não era a forma
certa de conquistá-lo. Por isso, comecei a sorrir, confiante. Queria que ele entendesse que aquela
escolha havia sido um mero acaso. E que se ele não quisesse me escutar, outra pessoa facilmente o
substituiria.
Mesmo que não fosse bem assim.
— Vou ser bem sincero com a senhora, está bem?
— Claro Jonas. Fique à vontade.
— Assumo que meu lado criança é cheio de uma imaginação frenética que anseia
eternamente por mais. Mas qual escritor não a tem? Bem, esse meu lado que nasce a cada dia e vê
o mundo com encanto, neste exato momento, está pulando de alegria, dizendo que eu devo escutá-
la. Eu sempre achei que toda história deva ser ouvida. Porque não a sua?
No meu íntimo, fiquei aliviada. O medo agora não teria mais vez, pois eu seria obrigada
a enfrentar o meu passado e confrontar novamente as minhas decisões. Sábias ou não, elas me
transformaram naquilo que eu sou. Boa ou má, anjo ou demônio, desejo ou paixão. Estava na hora
de arrancar os cadeados que insistiam em fechar a minha caixa de Pandora e deixar que os
demônios saíssem. Mesmo porque eu sabia que, no final, meu amado sempre estaria lá, escondido,
no fundo de tudo, carregando os meus mais belos sonhos e esperanças.
Antes que eu pudesse indagar algo, ele continuou:
— Mas antes que eu dê qualquer resposta definitiva, terei de te perguntar algo que não
sai da minha cabeça...
— Pode perguntar.
— É sobre todos aqueles livros da biblioteca...
— O que têm eles? — onde ele queria chegar?
— Você diz que fazem você se lembrar do homem que amou.
— Sim.
— Folheei alguns deles. Desculpe-me a curiosidade...
— Sem problemas. Todo livro deve ser tocado, folheado e acariciado, como um amante.
Pensando bem, tem como definir melhor uma obra? Ele se abre para você, permite que você o
toque, o devore, aspire aos seus aromas mais secretos e, como recompensa, te leva a lugares
inimagináveis...
— Concordo com você. Mas o que percebi na sua biblioteca é que todos os exemplares
que peguei nas mãos tinham uma assinatura curiosa...
Ele havia sido mais rápido do que eu pensava. Entendia cada vez mais porque você o
tinha escolhido, meu amado.
— Por que você diz isto? – Tentei fingir que não sabia do que ele falava.
Porque não há nenhum nome escrito ali. Apenas uma letra: R. Era a assinatura do seu
marido ou alguma brincadeira entre vocês? Não sei o porquê, mas isso me chamou a atenção.
— Bem, vou tentar esclarecer a sua dúvida. Mas não poderei falar muito, pois essa
assinatura tem tudo a ver com a minha história. Entendeu?
Ele assentiu com a cabeça. Seus olhos brilhavam na minha direção, ansiosos por uma
resposta.
— O nome do meu marido era Lucas. – Senti na mesma hora a sua presença ao meu
lado. Meu eterno amor, meu anjo da guarda. — O R que você viu escrito nos livros não tinha nada
a ver com o nome dele, como pode perceber.
Minha voz ficou embargada por um instante. Respirei profundamente para continuar a
falar. Pela primeira vez, eu não conseguia esconder que aquela era minha fraqueza:
— Ele já se foi há algum tempo, mas não tem um dia que meu peito não sangre por ele.
A portadora da assinatura solitária que você viu está bem viva. Posso até dizer que ela está em
cada lugar dessa casa. Na verdade – endireitei-me na mesa —, ela é o motivo de você estar aqui,
Jonas.
— Você fala desta R como se fosse uma força além da nossa compreensão. Não consigo
te entender.
— Talvez seja... Mas tenha muita calma, meu caro jovem, que você saberá tudo no
tempo certo. Mas antes precisa me responder se quer escrever esta história.
— Acho que você sabe a resposta. Como poderia fugir do que me trouxe até aqui?
Havia chegado o momento. E por mais que quiséssemos, nenhum de nós poderia
escapar.
Fitei-a em silêncio, tentando imaginar que surpresa dúbia o destino preparava para
minha alma de poeta.
Estávamos imóveis, em um duelo de quereres sem palavras. Éramos como duas forças
opostas, incapazes de lutar contra a maré da vida. Apesar do olhar de Larissa mostrar uma
serenidade que só aqueles que viram o tempo passar diante dos olhos podem ter, sabia que, ao
mesmo tempo em que desejava que simplesmente a ouvisse, tinha receio de abrir as portas do seu
passado e desnudar diante de mim, um ilustre desconhecido, todo o amor e dor de seu peito.
Afinal, quem em sã consciência deseja abrir suas paixões, receios e medos incrustados no fundo
da alma para alguém que, mesmo que nada comente, poderá julgar cada um dos seus passos?
Eu também temia, não posso negar. No fundo, minhas mãos já ansiavam pelo bater
inclemente do teclado. Vibrava pela expectativa de transformar sentimentos em verbo, construir
ações distintas que passariam por olhos ansiosos por cultura. Meu coração sempre soube, desde o
momento que ela havia me feito aquela proposta, que eu não sairia dali o mesmo homem.
Veria a literatura sob um novo prisma, guiado por uma senhora cuja história poderia
conter tudo o que eu temia escutar... Por que tanto medo de aceitar tão valorosa responsabilidade?
Não sabia se estava pronto para ouvir falar de amor. A experiência com Luíza há poucas
horas havia me jogado em uma espiral de autodescobertas. Precisava ser como Narciso e olhar o
lago plácido dos meus pensamentos, fitar aquilo que eu verdadeiramente era. E, só então, me
despir dos velhos conceitos criados por aquele menino preso em um corpo de adulto, habitando
meu peito, que achava necessário criar histórias mirabolantes, em vez de vivenciá-las como
verdadeiramente são.
Igual a uma criança que fica diante do seu guarda-roupa escuro, meu cerne misturava-se
entre o medo e a excitação, disposto a ver se o bicho-papão que me amedrontava era real. Havia
chegado a minha hora de decidir. Não sabia definir contextualmente aquele instante em que nós
nos olhávamos, Larissa e eu. Eu sentia que precisávamos um do outro ali, com apenas uma mesa e
tantos anos passados entre nós. A mesma história iria nos unir de forma intrínseca.
Quando dei a minha resposta afirmativa, ela por fim relaxou, pois não tínhamos como
mudar mais nada.
Encostou-se à cadeira e um sorriso meio entristecido correu por sua face.
Então peguei papel e caneta e esperei que ela me contasse sua história. Assim que os
fatos começaram a ser descritos para mim, viajei pelos mais diversos lugares, em uma época onde
a fantasia e a realidade mesclavam-se como nunca imaginei. Ouvi cenas que só pensei existirem
nos contos de fada que minha mãe me contava, ao pé da cama. Com sua voz suave e repleta de
sensibilidade, chorei, sorri e torci para que alguns fatos tivessem tomado rumos diferentes. E
outros não... Mas, acima de tudo, aprendi o significado do que o verdadeiro amor é capaz de nos
trazer.
Em meio às reflexões dela, eu revi cada momento da minha história com Luiza, e quanto
às coisas poderiam ser diferentes se eu mesmo o fosse, me olhando através dos véus que interpus
em meu caminho.
A partir de agora, é à voz dela que darei a vez. E, se um dia essa história chegar até
vocês, que ela toque os seus corações e permita que sonhem sempre e vejam o mundo com o olhar
que só uma criança é capaz de ter. Pois só nas épocas mais tenras da nossa vida, quando não
criamos metas, conceitos, achismos e objetivos fúteis, quando apenas vivemos, que somos
verdadeiramente nós mesmos.
Espero que o relato dela mude o seu modo de ver o mundo. Assim como mudou o meu.
A fantasia existe imersa na realidade. Este é um fato que acredito com todas as
minhas forças.
Até hoje, não consigo conceber a hipótese de que as pessoas possam viver sem
acreditar nisso. Por que não crer que a mágica sobreviva em meio ao marasmo da realidade?
Por mais que o ser humano se acomode e acredite em dias cinzentos, movimentos
mecânicos e racionais, nós temos de nos lembrar de que o fantástico cerca-nos... Alguns o chamam
de Divino, outros de milagre... Não importa que nome se dê, está presente em todos nós. Aquele
roçar do vento no rosto que sentimos, mas não vemos; o agitar descompassado de nosso coração
quando nos apaixonamos ou até mesmo a ausência de palavras para descrever a dor que podemos
sentir ao perder alguém que amamos...
Não importa qual nome damos a essa presença que rompe os limites da modorrenta
normalidade – Deus, espíritos, fadas, anjos ou até mesmo o próprio diabo, se ele verdadeiramente
existe – o mais importante é assumirmos que a maioria das coisas da vida está além da nossa
compreensão. E sempre vai estar... Afinal, toda essa coisa maravilhosa que nos impulsiona para
frente não é fantástica? Então por que vivemos tentando explicar? Será que a melhor forma de
descobrirmos as coisas não é simplesmente as vivermos?
Eu fiz isso com todas as minhas forças e sem arrependimentos. Minha história é como
poucas que você viu até hoje e sei que, em muitos momentos, verei o ceticismo em seus olhos.
Minhas palavras poderão levá-lo do céu ao inferno pelo simples espaçar de uma sílaba, mas pode
crer que, por mais fantasiosa que possa parecer, cada momento vivenciado por mim foi real. Senti,
vivi e passei por cada efêmero segundo que lhe relato agora, com toda a certeza de que a
insanidade ainda não tomou a minha alma.
Cada vivência minha é recoberta de magia, fantasia e amor... Mas também da dura
realidade. Sendo assim, repito que vai ouvir sobre coisas que nunca ousou imaginar que existiam
– exemplos de solidão, crueldade, altivez e sedução. Terá coisas sensuais e sexuais. Acredite que,
por mais que pareça, não vou lhe narrar um conto de fadas fugido de um dos livros da Carochinha
e sim uma história de pessoas cheias de acertos e erros, amor e culpa. Na verdade, acho que o
amor estará presente acima de tudo...
Toda a minha história voltou, ocupando seu espaço e tempo, como se tivesse acontecido
horas atrás. Diante de um Jonas ansioso, que com seus olhos brilhantes aguardava para absorver
cada uma das minhas palavras, procuro a firmeza da minha voz, tentando me manter indiferente à
correnteza de emoções que afloravam, tiravam o meu controle e devastavam todos os meus
sentidos.
Eu era o rato preso na quina da parede, trêmulo e extasiado diante da gigantesca figura
do gato prestes a me devorar. Era a pequena borboleta, presa no brilho da luz a me aquecer. Ao
mesmo tempo em que ansiava por receber as minhas lembranças de volta e deixar que tomassem
forma e gosto em minha boca, queria que as minhas mãos senis tivessem força suficiente para
bani-las das minhas vistas. Quando o entardecer da vida se aproxima de nós, somos feitos de
dores e lembranças. Ao passá-las para Jonas, o que sobraria de mim?
Estava temerosa do que fazia, mas, ao mesmo tempo, feliz. Conseguia libertar minhas
lembranças antes que as brumas do tempo ocupassem o seu espaço, destruindo cada detalhe,
embaçando-as com véus abismais de ceticismos e medos.
Assim, voltei ao meu relato.
Para satisfazer sua principal curiosidade, meu caro Jonas, tudo começa com R.
Você deve estar curioso para saber quem é o verdadeiro portador da misteriosa
assinatura em cada livro da minha biblioteca. Quem seria esse misterioso personagem que tanto
atiça o autor que mora dentro da sua mente fantasiosa?
R existiu antes de eu sequer pensar em ser esta idosa mulher que lhe conta esta história.
É tudo aquilo que verdadeiramente fui há tempos. Faz parte de uma época em que eu poderia
destruir seu coração. Esmagar sua alma sem olhar para trás. E mesmo assim, você me idolatraria.
Esta personagem (ou serei eu agora uma personagem?) teve as mais belas joias, os mais
caros desejos satisfeitos, mas, no fundo, ela nunca foi feliz. Ou livre... Assim como nos famosos
contos de fadas que ocupam livros desgastados pelo tempo, o Rio de Janeiro também abriga doces
e terríveis fábulas entre suas ruas e casarões antigos.
Há tempos, entre os postes brilhantes e solitários da Lapa, houve um castelo feito de
amores e ilusões perdidas. Nele, entre cortinas e brocados, vivia uma bela mulher, prisioneira de
sentimentos perdidos e marcada pelo desejo dos homens. Esta, cujo nome você conhece por
apenas uma letra, um símbolo sem sentido, foi chamada e ovacionada como a Princesa da Lapa.
Aquela que governou a força masculina com a pele imaculada, entre a maciez dos lençóis
guardadores de segredos. Uma simples mulher que conheceu a humanidade entre os braços do seu
príncipe, aquele que desarmado, rendeu-se e ganhou a batalha.
Mantive minhas mãos, uma sobre a outra, até que parassem de tremer. Ao me sentir
novamente senhora das minhas razões, estendi minha mão até ele e finalmente disse o que ele tanto
ansiava ouvir.
Muito prazer, Jonas. Eu sou R!
Pode me chamar do que quiser. Já fui nomeada por muitos predicados: fui apontada
como Rameira e adorada como uma Rainha. Mas, hoje, eu permito que você me considere como
bem desejar: o começo de um Romance ou o fim de um Amor...
Como preferir, para mim não importa. Lembre-se que o preço da minha companhia já foi
muito maior do que muitos homens poderiam pagar.
Sem delongas, deixemos de lado as introduções teatrais e os subterfúgios. Seja bem-
vindo à vida de R, a Princesa da Lapa! Melhor dizendo, sem demagogias, à minha história. Não há
mais a possibilidade de que paremos ou de que você recue diante das minhas palavras. Porque eu
sei que, mais do que por mim, cada vez que minha voz tremer diante das minhas relembranças,
será também por você. Sinto que eu preciso resgatar o meu passado, mas você necessita alcançar
o seu futuro. Por isso, devo transportá-lo ao início desta história fantástica. Porque toda princesa
tem o seu Era uma vez...
Acho que a primeira coisa a ser dita é que o destino une pessoas, como fios de cabelo.
Alguns se juntam, outros se arrebentam, muitos caem e somem no tempo para que outros nasçam.
Ocasionalmente, nós o arrumamos de uma forma bela e elaborada, formando os mais diversos e
conceituados penteados. Tudo para iludir o outro, criando uma máscara conceitual daquilo que
verdadeiramente somos. Em outros dias, até que tentamos causar esse efeito, abraçar aqueles que
estão perto de nós para um objetivo comum, mas desabamos em uma teia amarfanhada...
No final, todos nós mudamos. Enfraquecemos, nos tornamos quebradiços e frágeis,
apesar de presentes. E, mesmo quando a morte vem, continuamos a crescer e evoluir em um mundo
que os olhos não mais veem. Agora mesmo, por causa desta história, começamos a criar uma bela
trança, que desce e percorre por todo o caminho adiante.
Bem, paremos de devaneios, não é? Voltemos à história de R. Antes, só quero lhe dar
uma dica: Prepare-se, porque, por ironia do destino, ainda ouvirá muito falar sobre cabelos...
– II –
As primeiras histórias da minha infância já tiveram as mais diversas versões, mas todas
elas são cercadas de mistérios. E, também, é claro, da Casa dos Prazeres. Pela sua cara de
espanto, vi que nunca ouviu falar desse lugar na sua tão curta vida. Imaginei mesmo que assim
fosse...
Sou do tempo em que o Rio de Janeiro era a grande capital do mundo. Além da beleza
natural e desse povo de sangue quente, capaz de proporcionar horas de amor intenso ou cometer
crimes bárbaros na mesma intensidade, graças à paixão típica dessa gente, essa terra abençoada
por São Sebastião já teve coisas que a mente mais imaginativa nunca seria capaz de conceber.
Coisas muito além de cultura, religião e arte. Mais escondidas que as torturas aprisionadas, as
notícias libertárias ou os fantasmas da ditadura que viriam anos depois.
Certos recantos da cidade pareciam carregar em si uma aura diferente, onde as reações
humanas eram exacerbadas. Era como se esses pontos fossem verdadeiros portais mágicos, nos
transportando para lugares que atiçassem os nossos sentidos, transformassem seus transeuntes de
meros espectadores da vida em verdadeiros senhores dos seus desejos e vontades. Nesses antros
de luxúrias, tudo era permitido para quem tivesse dinheiro suficiente. E a Casa dos Prazeres era o
mais famoso e também o mais seleto desses lugares.
Situado na Lapa, perto do Largo dos Pracinhas, o palacete era um mundo fantástico cujo
passaporte de entrada circulava apenas entre os milionários e personagens do alto escalão
carioca. Porque ali, ao contrário das grandes casas onde as cortesãs circulavam, iluminadas pela
luz vermelha, a realidade do dia-a-dia abandonava aqueles que adentravam a porta principal. Em
meio a brocados e veludos, fadas e ninfas seminuas passeavam entre os presentes. Cada uma
delas, portadora da mais régia beleza. Mais que uma casa de prostituição, quem passasse pelos
lençóis daqueles quartos, se perderia nos aromas suaves e carnes tenras de mulheres que pareciam
saídas de contos de fadas.
Esse lugar mágico era comandado pelos punhos fortes de Mama Mercedes, uma carioca
da gema que, com traços de polaca, ancas largas e olhos azuis gélidos, fingia-se de europeia para
agradar ao público. Pois é, assim como hoje, muita gente achava as coisas vindas de fora muito
melhores que as nossas... Bem, casos à parte, Mama Mercedes era dona de um incansável faro
para os negócios, sabia escolher entre as suas meninas, iguarias únicas, capazes de enlouquecer o
mais cético dos homens.
Ao contrário da maioria das meninas que por ali passaram, eu não fui para lá por minha
livre e espontânea vontade. Fui deixada naquele antro de desejos e histórias fantásticas ainda uma
recém-nascida, antes de sequer imaginar como me tornaria parte das damas da noite que
circulavam por aquele palacete. Entre as cortinas carmim e fêmeas que povoam o imaginário dos
mais exuberantes autores foi que me transformei naquilo que verdadeiramente sou.
– III –
As minhas mais antigas lembranças foram contadas pela própria Mama Mercedes
quando, ainda pequenina, era colocada para dormir. Enquanto escovava os meus cabelos, que
caíam em cascata até o chão, ela confidenciou que fui trazida até a porta da Casa dos Prazeres
durante um dos acontecimentos mais inesquecíveis de 1939: naquela noite quente, não só a Lapa,
como todo o Rio de Janeiro estava em suspenso.
A capital do país estava parada, ao lado dos seus rádios, ouvindo as tenebrosas notícias
que vinham da Europa através da Rádio Roquete Pinto. Acho que todo o Brasil estava sintonizado
naquela frequência, sem imaginar que a invasão da Alemanha à Polônia iria originar uma das
guerras mais sombrias da humanidade. Ali, no grande bairro cercado de cabarés e teatros, entre
antros de luxo que em breve começariam a ver os sinais de decadência, foi ouvido pela primeira
vez sobre um combate que até hoje nos choca.
Em um ano onde Scarlett O’Hara prometeu nunca mais sentir fome, Dorothy caminhou
com seus inusitados amigos por uma estrada de tijolos amarelos e a pequena notável portuguesa
Carmem Miranda lançou moda mostrando o que é que a baiana tinha, não canso de me lembrar de
que, como num presságio, eu cheguei àquela casa em meio às lágrimas e lamentos pueris.
Mama, por sinal, antes de me contar essa história, já começava a cantar A jardineira,
marchinha sucesso daquele ano no carnaval, interpretada por Orlando Silva:
— Oh, jardineira, por que estás tão triste? Mas o que foi que lhe aconteceu...
Bem, a questão foi que, enquanto elas recebiam a malfadada notícia sobre o início da 2ª
Guerra Mundial, Mama ouviu a campainha ressoar na sala, fazendo-a dar um pulo. Ficou tão
irritada que nem mandou uma das meninas ir atender: foi correndo fazer isso pessoalmente, pois
havia cancelado o expediente daquela noite.
— Nem sequer tive tempo de xingar a infeliz alma que nos importunava, pequenina.
Assim que abri a porta e olhei para baixo, só via você na minha frente: a menina mais bela que
havia visto em toda a vida – exclamava, entre uma escovada e outra. — No mesmo instante, soube
que entrava uma princesa em minha casa.
Não me esqueço de como aqueles olhos azuis pareciam se aquecer ao me fitar e
finalizava, num desabafo:
— Pelo menos uma coisa boa aconteceu naquele dia...
Pois é, meu querido Jonas... Pena que todo esse carinho não durou para sempre. Até
hoje, penso que, de uma forma ou de outra, eu trouxe a guerra comigo para dentro daquelas
paredes. Bem, mas isso é outra história...
– IV –
Mama Mercedes tinha uma preocupação extrema com minha figura, assim como de todas
as meninas. Por ser a única criança ali, quando a noite chegava, eu ficava presa no quarto dela,
cuidada por uma das empregadas da casa. Quando acontecia a chamada “hora da função”, uma
jovem ficava recebendo os visitantes, até que chegasse a hora do leilão. Mas este é outro assunto
que não quero adiantar...
Quando chegou a minha hora de ser a cortesã, eu fui uma das maiores sensações da Casa
dos Prazeres, sob os braços generosos e impiedosos de Mama. Mas, durante a minha infância,
andar por ali era como participar de um reino insondável de maravilhas. Sereias e ninfas
circulavam à minha volta. Jovens que flutuavam como se não tivessem peso; capazes de
transformar seus quartos em mundos à parte, feitos para encantar. Com diminutas roupas ou corpos
nus, prontas para saciar as mais diversas vontades. Curvas e aromas secretos que enlouqueciam a
cabeça do frágil sexo masculino, mas que, para mim, era o exemplo da mulher cheia de poder que
eu poderia ser.
Lembra que disse que você iria ouvir falar muito de cabelos? Pois é, tudo porque eles
foram o quesito mágico mais importante da minha vida... Até completar um ano, eu poderia me
passar por uma criança comum, se não fosse completamente careca. As meninas diziam que, ao me
fitar, muita gente sentia pena, sem saber por que um rosto tão angelical não teria nenhum cabelo
para enfeitá-lo.
Mama Mercedes confirma essa versão e acrescenta que, quando cortou comigo o bolo
de um ano, eu, no meu linguajar infantil, falava o tempo todo o nome de “Rapunzel”, a gentil
princesa dos cabelos mágicos. Ao que consta, aquele havia sido o conto de fadas que uma das
meninas havia me contado naquela semana. Todas as habitantes da casa não deram bola ao fato,
porque, na verdade, eu, uma menininha careca, não lembrava em nada a bela princesa.
Mas são palavras que dão o toque final à magia, não é? No final do expediente, Mama
Mercedes entrou no quarto, assim que o dia amanheceu. Tanto ela quanto a empregada na época,
que despertou com a chegada de sua patroa, começaram a gritar, perdidas entre o espanto e a
emoção.
— Você havia mudado – ela me contava. — Dormia tranquilamente em minha cama,
com belos cabelos dourados e cacheados emoldurando sua face. Eles repousavam sobre o lençol,
como fios de luz, alcançando ambas as bordas da cama. Cada fio brilhava, iluminando o quarto
cercado de penumbra, como se estivesse vivo. Todas as meninas achavam que você tinha se
transformado em um anjo, deitada calmamente, cercada por sua auréola de fogo. Naquela manhã,
eu gritei aos quatro cantos que sempre soube que você era especial. A partir daquela data, nunca
mais deixei de ter sorte – concluiu.
Pode parar de me olhar com este ar de estranhamento, tentando encontrar algum fio
dourado, por menor que seja, escapando por entre as tramas do lenço colorido. Até este momento
que nos encontramos, muita coisa aconteceu. Bem, se os fatos que lhe narrei até agora pareceram
ter um ar de absurdo, deixe-me continuar e você ao fim tirará suas próprias conclusões...
–V–
A primeira coisa que as meninas da Casa dos Prazeres descobriram foi que ninguém
conseguia domar meus cabelos. Eram criaturas vivas, que não admitiam mãos estranhas passeando
entre seus fios. Mantê-los curtos, então, nem pensar. Cada vez que uma pessoa se punha a cortar
um fio que fosse, ele não se dobrava ou cedia espaço, teimoso e forte como um guerreiro diante da
batalha. Só a mim era permitido um contato maior com aqueles fios quentes, claros como a
inocência que dominava minha alma. Quando meus pequenos dedos corriam por eles, toda aquela
imensa cabeleira descia suave pelos meus ombros, envolvendo meu corpo como um porto seguro.
Eu havia me tornado uma descendente tupiniquim da clássica personagem dos contos de
fada, presa dentro daquela casa, cercada pelas belas e tristes borboletas da Lapa, que buscavam
em mim não apenas a filha que nunca tiveram, mas suas próprias inocências perdidas.
Sinto-me capaz de descrever cada detalhe da minha infância e mocidade naquela casa.
Sou capaz de rever cada rosto e gesto com nitidez. Uma pena que agora só me restam as vozes dos
que já se foram, perdidas na minha memória, insistindo para que eu as mencione e não deixe que
se percam no esquecimento. Afinal, sou uma das poucas que ainda resta viva que pode falar
daquele tempo há tanto passado e trazer de volta à vida, pelas minhas palavras, cada uma das
meninas que viveu naquela casa e fez desta história uma mágica extraordinária durante o correr da
minha vida.
Eu não entendia, mas para aquelas mulheres sem esperança, tanto por sua condição
quanto pela situação de nosso país marcado pela sombra da guerra, eu era tratada como milagre.
Enquanto me pegavam no colo, depositavam em meus braços infantis seus medos, anseios e
desejos, como se eu fosse a pessoa mais sábia de suas vidas. Independente da minha mãe
biológica desaparecida, tive várias mães entre aquelas paredes, prontas para tornar a minha
infância um acontecimento mágico.
Cada gentil alma moradora da Casa dos Prazeres, as belas e coloridas mariposas que
noite após noite circulavam entre as chamas da luxúria, dedicavam seus dias, sob as ordens de
Mama Mercedes, a me fazer crer que habitava um reino encantado, concebido apenas de bons
gestos humanos, feito só de coisas boas.
Eu sempre ia para a cama assim que a noite caía e meus sonhos eram cheios de beleza e
fantasia, inspirados naquelas meninas que, todas as noites, antes da função, iam me dar um beijo
de boa noite. Foi assim que aprendi a valorizar a beleza: pelo desfile das bocas pintadas de
carmim, os cabelos plissados, leves anáguas e rendas nos mais diversos formatos. Os perfumes
mesclavam-se no quarto, criando um jardim particular, só meu, elevado pela pureza da infância.
Despedidas eram pronunciadas com os mais diversos sotaques, me levando a mundos que nem
sequer imaginava existir.
Entretanto, todo mundo possui aquele exato instante na vida que a inocência é arrancada
de você. Seja por um choque muito grande, a percepção da morte ou quando descobrimos um fato
que nos impõe a realidade do mundo. A minha vez demorou um pouco, mas aconteceu. Tinha em
torno de catorze anos quando a Mama Mercedes mostrou pela primeira vez o seu lado
maquiavélico, e assim conheci toda a verdade não só sobre a casa em que vivia, mas sobre mim
mesma.
Quando deixei a inocência de lado, conheci o mundo de verdade. Antes daquele
dia, as informações vinham até mim conhecidas através das bocas dos outros, em um
universo belo, mas falso, prestes a desmoronar.
Para falar como perdi a minha infância, antes tenho de falar sobre o Brucutu, o anjo
sombrio da Lapa. Afinal, toda dor e morte que cercaram minha vida passaram por suas
impiedosas mãos.
Ninguém sabia dizer com precisão quando o único morador da Casa dos Prazeres havia
chegado ou de onde vinha. Uma coisa era certa: quando Mama Mercedes precisava de um trabalho
sujo, era pelas mãos de Brucutu que o executava. Algumas desconfiavam que ele fazia mais que
obedecer às ordens da dona daquele casarão, mas os murmúrios e gemidos partilhados entre os
quartos da casa não eram comentados. Ele estava sempre ao lado dela, não importava onde, como
uma sombra gigantesca sempre disposta a protegê-la.
Desde que tenho consciência, eu temia aquele homem. Era negro, muito alto e tinha um
corpo que todos falariam sem hesitar que era extremamente desejável. Até você, meu caro Jonas...
Seu cabelo crespo era cortado bem rente à cabeça e adornava a beleza do seu rosto, tão perfeita
que chegava a ser assustadora. Aquele anjo possuía um nariz e lábios grossos, um rosto sedutor,
quase andrógino, que raramente pronunciavam qualquer palavra e olhos num tom mel que
pareciam translúcidos.
Mas quando Brucutu sorria, a beleza angelical se transformava em demoníaca, já que
aquele homem só se sentia feliz quando exercia a lei dos seus punhos sobre a carne alheia. Nesses
instantes, seus olhos pareciam se encher de chamas e abria a boca, num esgar sorridente,
mostrando o brilho dourado de seus dentes. Isso mesmo, meu caro, o sorriso dourado de Brucutu,
pois todos os seus dentes eram feitos do mais puro ouro, e quando refulgiam sobre os olhos de
suas vítimas, eram o último vislumbre de algo precioso que viam.
Só de me lembrar daquele homem, eu me arrepio. Ele era uma sombra perversa
aprisionada entre as paredes do casarão, deixando uma energia pesada onde estivesse. Mas até
aquela fatídica tarde, a R ainda não existia... Era apenas uma criança que jurava ser muito amada,
vivendo em seu quarto, rodeada pelo seu cabelo dourado e o carinho de Mama.
Sorria com as gargalhadas de Marialva, a típica carioca cor de jambo que encantava e
enchia o ambiente por onde passava; aprendia com a cultura de Ninete, a francesinha mignon com
uma beleza tão etérea que parecia se quebrar com a mais leve brisa; imitava a elegância da bela
japonesa Kyo, com seus passos silenciosos... Todas ajudaram de uma forma ou de outra a
construir R. Mas isso foi depois...
–II–
Como eu disse, tudo começou com o Brucutu... E com a morte de Norma. Afinal, era ele
que mantinha a ordem entre aquelas paredes, de uma forma ou de outra. Durante o dia, enquanto
todos dormiam em suas confortáveis camas e o silêncio reinava, eu, menina-mulher travessa e
ansiosa, entrava nos quartos, jogava no ar os seus perfumes para aspirar aos diferentes aromas,
experimentava sapatos, passava as mãos pelos diferentes tecidos e sentia suas texturas. Brincava
em um reino que era todo meu. Até aquele dia em que entrei no quarto de Norma...
Ela era uma italiana grande e corpulenta, com cabelos castanhos e revoltos e um jeito
bonachão que contagiava toda a casa. Dizia com orgulho que seu nome veio da Ópera de Bellini e,
assim como a personagem, sua vida era trágica e magistral. Todas as vezes que mencionava isso,
fazia um gesto teatral, levando uma das mãos à testa e fingia tristeza, com seu grande busto arfando
sobre a camisola e sua pele clara parecia rubra, sob as parcas luzes do quarto. Mal sabia o quanto
Norma estava perto da verdade... Pelo menos quando falamos em tragédia.
Mama Mercedes tinha saído para fazer algumas compras, acompanhada de Brucutu e a
cozinheira, quando entrei no quarto da bela italiana, que estava de pernas para o ar. Havia roupas,
sapatos e lingeries espalhados por toda a cama, e ela tentava ajeitá-los apressadamente em uma
mala pequena. Seus cabelos desalinhados tentavam se manter presos em um coque desajeitado,
assim como seus gestos. A boca tremia, ensaiando um choro que a moça parecia tentar conter em
seu rosto pálido, tão cheio de medo...
— Oi, Norma. O que você está fazendo? – perguntei, naquele jeito todo curioso que os
mais novos carregam dentro de si, até que o mundo faça questão de destruir.
Ela deu um pulo e me fitou. Por um momento vi o terror em seus olhos, antes que ela
tivesse tempo de esconder seus sentimentos. Norma abriu os braços e me aconcheguei em seu colo
macio.
— Vou embora, cara mia[2]. Não posso mais ficar em questa[3] casa...
— Por quê?
— Estou appassionata[4], principessa[5]. Espero que um dia você saiba o que é sentir
isso com todas as suas forças. Se eu pudesse, levava você com me. A vita[6] irá maltrattare
molto[7] aqui, bella.
— Por quê? Aqui todo mundo me ama. A Mama, você...
Norma me interrompeu no mesmo instante.
— Mama non é tu amore, cara mia. Quando virar una donna[8], vai ser apenas carne,
merce[9], como as outras. Por ser novidade, vai ser apenas mais cara, especiale. Assim que
sangrar, será acolhida como o melhor produto da casa.
Afastei-me dela, sentindo-me perdida.
— Como assim?
— Não posso mais mantê-la em una favola[10]. Mama, no começo, faz todas nós nos
sentirmos como figlie. Libre do mondo dal male [11]que vivemos aqui todas as noites, mas sua
purezza será vendida aqui, como todas nós. Ela a convencerá a vender sua alma, pequena.
Principessa, você se tornará a mais bela de nós, com seus belos cabelos dourados e esta pelle di
porcellana que nunca saiu daqui. Você vai sofrer muito inquesta casa...
— Você não é mais feliz aqui?
— Você nos deixa felice, cara mia. Mas nesta casa não tem felicità. Tem soldi, potenza
e sesso[12]. Apenas isso... Mas agora eu vou ser amada por qualcuno[13], sabia? O filho do
lattaio[14] me pediu em matrimonio. Conseguimos manter o nosso namoro nascosto[15] e ele me
ama, apesar de toda esta sporcizia[16]. Por isso vamos fugir para bem lontano da qui[17]. Preciso
aproveitar que Mama e su demone saíram de casa e fugir. No mai tornare qui[18].
Não consegui mais entender o que ela me dizia. Com a típica tristeza egoísta de quem
perde sua parca segurança, desejava que Norma desfizesse suas malas e se esquecesse de todas
aquelas ideias tolas de amor. Eu já era uma adolescente, mas ainda perdida em um falso mundo de
brilhos e cores, desejando ser eternamente tratada como a princesa de um castelo encantado,
mesmo que este fosse feito de pétalas e brisa, uma construção aparentemente segura, mas que o
mais breve suspirar seria capaz de desmanchar.
— Não me deixe, Norma... Vou sentir sua falta.
— Você vai acabar me esquecendo, dolce bambina. Quem dera minhas palavras
ficassem impressas a foco [19]em la sua memoria, mas o momento vai fazer-lhe esquecê-las... –
Por mais que tentasse, Norma não conseguia diminuir a dor que latejava em meu peito. — Espero
que você saia deste lugar antes que seja troppo tarde[20]. Ora non si capisce [21]o que digo... Uma
hora a verdade vai surgir davanti dei occhi [22]e a sujeira deste lugar impregnará na sua pele.
Mama Mercedes é male, não pense o contrário. Usa cada uma destas donne aqui como se fossem
nada. Por isso, eu vou embora, acho que infatti[23] nunca dei para essa vida. Enfrentei fome,
carrapatos, enjoos e muita dor para chegar nesta terra di opportunitá e ter uma vida digna e não
isso, na qual tenho de me deitar com maschi que não quero, il suo corpo sudato [24]resfolegando
em cima do meu, sufocando-me em seus talcos e ceroulas amareladas. Todos precisam ser livres,
bella. Espero que um dia você também seja. Agora vá para o seu quarto que tenho de ir embora
antes que alguém me veja. Você nunca vai estar sozinha, minha pequena Rapunzel. Sinto que ainda
vai ser muito feliz.
Abraçou-me e se despediu com um suave beijo nos lábios, com gosto de menta.
Gesticulou para que saísse do quarto e continuou a arrumar sua mala. Fechei a porta o mais
silenciosamente que pude e, quando me virei em direção ao corredor para voltar ao meu quarto,
uma grande mão negra me ergueu bruscamente. Sem ar, repleta de medo e de dor, senti meu corpo
ser erguido até ficar face a face com Brucutu. Seu sorriso de satisfação parecia refletir o brilho da
morte. Seus olhos cinzentos me diziam que não adiantava lutar. Para ele, eu era um pequeno traste,
dispensável.
Tentei me debater, chutá-lo, mas reagir parecia fazê-lo apertar ainda mais o meu
pescoço. Não tinha forças sequer para gritar por ajuda.
— Largue a menina – Mama Mercedes apareceu às costas dele, ordenando
silenciosamente. — Ela não é o meu problema.
Prontamente, o gigante me largou e caí no chão, como um trapo velho sem uso. Refeita
do susto, esqueci toda a dor que sentia e gritei, desesperada, dando vazão a todo o horror daquele
momento. Instantaneamente, cada uma das portas dos quartos se abriu e as meninas vieram em meu
auxílio, nos mais diversos trajes, divididas entre o sono e o susto em desconhecer o que na
verdade ocorria. Norma foi uma delas e assim que viu que Mama Mercedes estava ali, recuou
assustada. Tentou trancar a porta, mas Brucutu estourou a madeira como se fosse papel.
— Sua maldita traidora! Achou que não desconfiava de nada? Tinha a crença que não
percebia como escondia dinheiro entre seus pertences? Vá, víbora, morda a mão que te acalenta –
Entrou no quarto, atrás do seu capataz, transtornada de ira.
Algumas meninas tentaram proteger Norma, mas Brucutu as empurrava para os cantos,
sem nenhum traço de delicadeza ou piedade. Quando ele chegou perto de Norma, a agarrou pelos
cabelos e a jogou na cama. Assim que a bela italiana pousou no colchão, Mama Mercedes a
atacou com as suas compridas unhas e, entre tapas, arranhou o rosto da pobre.
— Sua tola! Você confirmou tudo que eu precisava saber nessa tua conversa com a
garota. Quem você pensa que é, sua insolente? Acha que todas vocês podem largar a Mama
quando quiser? Não! Sem mim, vocês serão apenas rameiras imbecis. Eu que mando aqui! Sem
esta casa – ela gritou, arrastando Norma para fora do quarto pelos cabelos —, vocês não são
nada. – Largou Norma no chão, em meio a todas nós, coberta de vergonha e sangue. — Você e o
seu leiteiro vão pagar... Vai servir de exemplo dentro desta casa, Norma, e ninguém vai derramar
uma lágrima por você.
Para terminar a humilhação, Mama Mercedes puxou um viscoso pigarro do fundo de sua
garganta e cuspiu na mulher.
— Brucutu! – O seu anjo negro prontamente deu um passo à frente. — Acabe com ela...
Permanentemente. E se alguma delas reclamar, jogue em uma cova rasa junto com a italianinha.
Aterrorizada, nem consegui levantar do chão. Grudada às pernas de Kyo, vi Brucutu
pegar a cabeça de Norma e bater na escada com toda força, para que ela não gritasse. O estrondo
calou todas aquelas mulheres sem esperança, encobertas pelo medo. Como se a pobre fosse uma
boneca, Brucutu pegou-a pelos cabelos, arrastando seu corpo em direção à cozinha. Zonza, ela
ainda tentava se soltar, esperneando, seus pequenos gemidos entrando como farpas em nosso
peito.
Junto a ela, minha alma de criança apagava-se. Como as outras mulheres esquecidas por
ali, chamadas pela sociedade de quengas, perdidas ou até mesmo de piranhas, permaneci em
silêncio, deixando apenas que as lágrimas exprimissem minha dor.
Os gemidos abafados de Norma foram ouvidos durante um momento, distanciando-se
lentamente. Pela porta aberta onde eles haviam passado, um súbito estalo silenciou os seus
pedidos de socorro, pondo fim ao tormento de Norma. E dando início ao nosso.
Mama Mercedes permaneceu impassível. Ajeitou os seus cabelos negros que caíam
pelo rosto, passou as mãos pela sua roupa a fim de desamarrotá-las e fitou a todas, uma por vez.
Quando seus olhos se fixaram nos meus, pareciam-se com dardos frios apunhalando a
minha alma. O reino de falsas aparências do qual eu era cercada havia acabado de desmoronar.
Meu corpo dolorido carregava todo o peso do mundo sobre os meus ombros. Tinha certeza de
nunca mais veria aquela mulher da mesma forma. Aquela que um dia chamei de mãe era uma
desconhecida para mim.
— Espero que isso nunca mais se repita, com nenhuma de vocês. Deixarei qualquer uma
sofrer nas mãos de Brucutu se me desobedecer novamente. Até você, pequena... – disse, sem tirar
os olhos de mim. — Ninguém escapa dos braços de Mama Mercedes se ela não quiser. Vocês
entraram aqui porque quiseram e só vão sair quando eu quiser. Corja ingrata que maltrata quem as
acolhe, apunhala quem lhes dá cuidado e atenção. Devem me agradecer eternamente, beijar os
meus pés, suas putinhas. É graças a mim que vocês têm uma casa confortável, comida decente e
uma empregada ao seu dispor. – Vendo que algumas ainda choravam, gritou: — Parem de chorar,
agora!
Alguns soluços foram engolidos pelo corredor e ninguém ousou retrucar. Ela havia
conquistado com sangue a atenção de todas. O medo ali era palpável e se tornou uma companhia
constante para quem viveria ali a partir daquele instante.
— Agora vão para seus quartos! Arrumem-se e tratem de ensaiar seus mais belos
sorrisos. Em poucas horas a função irá começar na Casa dos Prazeres e não quero ver ninguém se
lamentando por aqui. A não ser que queiram ter o mesmo fim de Norma...
Como para reafirmar o discurso de Mama, Brucutu voltou ao corredor. Um calafrio
subiu pelas minhas costas.
Olhamos assombradas o homem, perdidas entre o pavor e o nojo. A roupa dele estava
toda respingada de sangue. Seu pescoço continha um arranhão, mas o anjo malvado da casa
parecia não sentir. Estava cheio de satisfação pelo que havia feito.
— Está tudo pronto, senhora – declarou, com sua voz grave.
— Ótimo, Brucutu. Livre-se dela o mais rápido possível. Jogue-a em uma viela
qualquer, longe daqui. E não se esqueça de dar um jeito no noivinho dela antes que faça escândalo
aqui na porta. Ofereça um dinheiro para ele sumir e se não resolver simule uma briga de bar ou
qualquer coisa do tipo e acabe com o desgraçado. Mas faça isso discretamente... Esse povo aqui
da Lapa fala demais e qualquer fofoca errada que cair nos ouvidos de nossos clientes pode ser
prejudicial aos negócios.
— Pode deixar, senhora – Brucutu abaixou a cabeça, em um cumprimento respeitoso e
foi até a despensa. Pegou dois grandes sacos pretos de lixo e voltou à cozinha. Alguns minutos
depois, a cozinheira saiu pela porta, extremamente pálida, quando ouvimos o primeiro baque do
facão em cima da mesa. Depois disso a pobre saiu daquela casa e nunca mais voltou. Pena que o
restante dos moradores não podia fazer o mesmo.
— Agora vou me arrumar para a noite e espero que cada uma de vocês faça o mesmo. –
disse Mama por fim, antes de ir para o seu quarto.
Entre soluços abafados e gemidos de perda, minha pequena cabeça rodava, incrédula
por tudo que havia visto. Cega pelas lágrimas e magoada, só pensava em sair dali e nunca mais
voltar. Por isso, enquanto a maioria das meninas ia de cabeça baixa para os seus quartos,
indiferente aos golpes de Brucutu sobre o corpo de Norma, como se aquela bela mulher de sorriso
leve fosse um reles animal, eu corri para a porta da frente, fugindo ao encontro do final da tarde
que recobria a rua.
Afastei-me dali o mais rápido que pude, ignorando os gritos das meninas ou de quem
quer que fosse, pedindo para que eu voltasse. Parei para tomar fôlego só quando as vozes que
restaram ao meu redor eram desconhecidas. Só ali, longe de tudo, encostei-me a um muro e me
lamentei alto, chorando desconsolada por tudo que havia visto.
A transformação de uma pessoa em adulta pode ser a mais traumática das
situações. Um ato de bestial violência destruiu tudo que eu conhecia.
–II–
Era um mundo falsamente regido por homens. Por detrás deles, sempre havia mulheres
dispostas a manipular as situações, por meio de palavras doces e seduções.
Isto nunca vai mudar...
O que nos transforma em superiores não é a forma que batemos de frente com vocês,
querendo plenos poderes. É o modo como utilizamos da docilidade para deixar a nossa marca nos
microuniversos, entorpecendo o mais fraco de uma forma irreparável. Brucutu foi o meu primeiro
contato com o universo masculino e o que ele tem de pior.
A morte brutal de Norma devastou a menina que eu havia sido até aquele instante.
Quando saí daquele ambiente, a redoma de cristal que me consumia, constatei a dureza da
realidade ao caminhar pelas ruas cariocas daquele ano de 1954. Eu perdera tudo aquilo que
acreditava a cada passo dado na sujeira das ruas da Lapa.
Naquela tarde, havia conhecido a maldade de um homem.
E na mesma noite, conheceria a bondade de outro. Descobriria que tudo na vida é uma
questão de escolha.
Mas isso é adiantar demais a história...
–III–
–IV–
Fechei os olhos ali e me deixei levar, embalada pelo cântico mágico que ressoava em
minha cabeça. Foi quando a dor veio, abaixo do meu ventre, dura e cruel como uma grande agulha
perfurando minhas entranhas. Ainda de camisola, alva e que mal encobria meu corpo adolescente
que começava a tomar forma, vi uma mancha rubra florescer entre as minhas pernas. Junto com a
dor, vi naquele sangue o meu pedido atendido: a infância se esvaía entre minhas entranhas,
desvendando segredos, transformando a menina que era em algo completamente novo.
–V–
A multidão que estava ao meu redor se afastou por um momento, dando espaço para que
a nova borboleta da Lapa saísse de seu casulo. Cambaleante, cônscia da minha dor, senti que meu
corpo formigava, reclamando um novo espaço, novas vontades. A luz à minha volta começou a
mudar, escurecer, tomar o mesmo tom das luzes que cercavam muitas das casas por onde passei
em minha desabalada carreira. Peguei uma das mechas nas mãos e vi que cada fio dourado parecia
pulsar, se transformando em vermelho. Minha cabeleira mudava de cor, contorcendo-se em
chamas vivas.
Dei mais alguns passos e caí no chão, sem forças. Meu cabelo, agora de um vermelho
vibrante, me cercava. A multidão voltou a se aproximar de mim, com um novo brilho nos olhos.
Todos me fitavam, com expressões de desejo, bocas se contorciam, línguas corriam cobiçosas,
mãos deslizavam para dentro das calças.
Um homem mais ousado, aquele que havia me chamado de Berenice, veio por trás e
enfiou as mãos sob os meus cabelos, erguendo-me em sua direção. Juntou meu corpo ao dele e
passou as mãos entre as minhas pernas, emplastrando os dedos de sangue menstrual. Sentindo-se
vitorioso de algo que nunca soube o que era, gritou o nome de alguém que vivia apenas dentro da
sua mente deturpada. Por um momento permaneci estática, tomada pelo choque da situação.
Logo em seguida, desvencilhei-me como pude e comecei a correr, em meio às mãos que
tentavam me agarrar. Ali, Mama Mercedes e Brucutu me pareceram o menor dos problemas.
Aquelas pessoas estranhas, encantadas, que me perseguiam pela Rua dos Arcos, estavam prontas a
me dividir em pedaços. Não tinha ideia do que eles queriam. Os problemas daquela tarde
pareciam distantes. Eu só queria voltar para casa.
Cada rua que virava na Lapa semideserta tornava a minha vida mais complicada.
Homens das mais diversas idades, status sociais ou posições, olhavam para meu rosto
desesperado e, em vez de me ajudarem, começavam a correr atrás de mim. As mulheres, ao
contrário, me viam como se eu fosse uma vilã de fotonovela: xingavam e me jogavam as mais
diferentes coisas que encontravam ao redor.
Era perceptível como as pessoas mudavam diante daquele primeiro olhar sobre a minha
mirrada figura: seus olhos se embaçavam, as bocas se abriam num muxoxo inteligível, para logo
em seguida se transformarem em novos seres, com ódio ou desejo.
Os olhares que inicialmente se revelavam de aturdimento e piedade transformavam-se
em amor, ternura e, por fim, em desejo e intensa luxúria.
Ouvia o chapinhar das passadas em meio à chuva que não parava. Acelerava, pulando
entre caixas, engradados e latas de lixo, a fim de aumentar a distância entre eu e os perseguidores,
mas não via na minha trajetória a possibilidade de um final feliz.
Entre suas múltiplas vozes, altas, baixas, agudas, graves, joviais e roufenhas pela idade,
conseguia discernir os mais variáveis nomes sendo chamados. Poderiam ser filhas, mães,
mulheres e amantes perdidas, como se a me ver pudessem colocar para fora tudo aquilo que seus
solitários corações desejavam.
–VI–
Não sei por quanto tempo eu fugi. De certo, minha corrida foi bruscamente interrompida
quando uma mão pesada tapou-me a boca. Fui arrastada por uma discreta viela, que estava logo à
minha frente.
— Cale a boca se quiser que eu te salve, menina...
Havia começado a espernear, mas parei tão rapidamente quanto comecei, morrendo de
medo pelo tom ameaçador daquela voz.
— Vou largar você. Fique quietinha, senão te corto a língua com a navalha.
Assenti com a cabeça, sem respirar. Aquela mão calosa largou-me vagarosamente.
— Olhe para mim.
Virei a cabeça e vi uma figura alta à minha frente. Por um momento, meu coração se
encheu de pânico, achando que era Brucutu que havia me encontrado e ia me matar, assim como
fez com Norma. Mas, apesar do mesmo tom de ébano na cor, seus corpos eram diferentes. Aquele
negro também tinha traços finos, mas dava para perceber a definição dos seus músculos no corpo
esguio. Seu cabelo estava armado, ao contrário do objeto do meu temor, que vivia com eles
engomados. Vestia uma calça simples, porém alinhada e uma discreta camisa escura.
Ele sorriu para me acalmar e seus dentes brilharam diante de mim.
— Pode ficar tranquila, menina. Eu vou te tirar deste perrengue.
Não sabia por que, mas tinha certeza que podia confiar nele. Como se confirmasse isso,
a chuva parou aos poucos de cair, deixando somente a sujeira e a lama por onde passou.
— Qual é sua graça, moço?
Ele me fitou por alguns instantes. Transmitia em cada respiração autoconfiança e
otimismo, como se pudesse enfrentar o mundo com o peito aberto.
— Que menina educada – respondeu, com um jeito sarcástico, que muito depois
descobri ser a sua marca característica. — Chamo-me João Francisco dos Santos. Mas aqui na
Lapa sou conhecido como Madame Satã.
Estremeci de medo com aquele nome. Oras, mesmo numa casa de prostitutas existia
religiosidade. E ver o nome de Satã ser falado com tanta tranquilidade na boca daquele homem me
deu arrepios.
— O senhor veio para me levar para o inferno, seu Satã? Eu juro que me comportei
direitinho.
Ele gargalhou bem alto.
— Não, garota. O “viado” aqui só vai te levar para casa.
— O senhor é bicho também?
Ele continuou a gargalhar.
— Um dia, quando você for mais adulta, alguém te explicará isso. Vamos embora. Mas
antes...
Ele olhou para os meus cabelos, demoradamente. Tocou neles, acariciou-os e, por um
momento, seus olhos ficaram presos neles, como havia acontecido com os outros homens.
— Seu Satã, não fique louco igual aos outros homens, não, por favor!
Ele piscou por um momento e me fitou novamente.
— Por todos os orixás, que magia reside em você, menina?
Encolhi-me diante dele, sabendo que algo de muito mal iria me acontecer. Mas me
enganei. Ele se encolheu à minha frente e catou um vaso quebrado, ainda cheio de terra, que se
encontrava no chão.
— Filha de Iemanjá, você ainda não percebeu que tem o canto da sereia, né? Cada fio
do seu cabelo tem força, menina. Você vai levar os homens que te olharem a loucura.
— Não estou te entendendo, moço.
—Ah, mas um dia vai... Agora precisamos sujar bastante o seu cabelo para você sair
daqui.
— Sujar meu cabelo? – coloquei as mãos neles, automaticamente, fazendo cara de
desagrado. Mesmo desde a mais tenra idade, nunca gostei de ver-me suja. Para mim, cada fio ali,
aparecido milagrosamente, era especial. Até mais do que eu imaginava. Mal tinha ideia do quanto
estava perto da verdade.
— Sim, sim. Agora mesmo. – afirmou ele, passando aquela pasta fétida de barro e
sujeira nos meus cabelos. Não sossegou até que cobrisse cada fio, apagando qualquer vestígio de
vermelho que pudesse haver. Quando todo o trabalho havia terminado, ele por fim me perguntou:
— Onde você mora, garota?
— Na minha casa...
— E em que rua é?
— Rua?
— Nunca tinha saído de lá antes não?
— Nunca.
Ele me fitou por um momento, espantado.
— Agora complicou mesmo. Vê-se que você tem berço, já que está vestida com roupas
boas. Vamos ver se a gente descobre.
Pegou na minha mão e caminhou comigo por lugares que até hoje não sei definir direito.
A Lapa naquela época era considerada o Montmartre do Rio de Janeiro, como se o boêmio bairro
de Paris tivesse se transformado com os contornos cariocas. Apesar de já começar a mostrar
sinais claros de degradação, era um lugar de contrastes, onde a verdadeira vida começava quando
a noite chegava.
Se você pudesse entrar na minha cabeça e vislumbrar esse tempo, iria ver os casarões
antigos, com sua diversidade de luz e música. Era naquela época que o berço cultural do Rio
tomava forma. Naqueles bancos se iniciou a Bossa Nova. Entre acordes de violões, autores
começavam a criar as mais intensas histórias, emparelhadas com mulheres com corpos em flor ou
destruídos pelo tempo, coberto pelo lusco-fusco das lâmpadas amareladas.
Algumas sorriam quando passávamos. Por um lado, rostos limpos que transpareciam a
inocência que os homens desejavam ver. Por outro, rostos extremamente maquilados, para
encobrir os hematomas dos seus cafetões. Mas todas, sem exceção, cumprimentavam o meu
companheiro. Algumas abertamente, outras com um simples aceno.
— Noite, Madame Satã.
Ele retribuía os acenos, com seu jeito galhofeiro de quem sempre via o lado bom da
vida, inclusive nos piores momentos. Não somos nós todos assim até hoje? Mesmo nos piores
momentos, tentamos ver o lado bom para não desanimar. Tirar diversão em meio a dor é o nosso
melhor remédio.
Estranhava que alguns homens não o cumprimentavam. Principalmente os de farda. Eles
se afastavam dele como o Diabo fugindo da cruz.
Foi só anos depois que soube toda a sua história e a forma que, com linha dura, ele dava
memoráveis surras em vários homens dali, graças ao treinamento intenso dele na arte da capoeira.
— Levando a filha para passear, Satã? – um bêbado, sentado em frente ao bar gritou,
levando vários dos seus companheiros de bebida às gargalhadas. Ele parou, olhou sério para os
homens e disse, em alto e bom som.
— Não devo satisfação a nenhum de vocês! Alguém aí paga minhas contas, dorme
comigo?
O silêncio caiu sobre o ambiente. Ele foi até o homem que gritou com ele, me puxando
pelo braço. Eu não emiti um ruído enquanto ele fitava aquele beberrão diretamente nos olhos.
— Está preocupado com o quê? Por acaso, quer sentir na sua carne a minha pele preta?
– retrucou, começando a gargalhar antes de sairmos dali, rapidamente.
–VII–
Quando dei por mim, ele havia me levado novamente para a Rua dos Arcos, em frente a
Fábrica de Fogões Progresso. Ainda sei dizer exatamente onde ficava cada coisa a minha volta –
o Passeio Público ali por perto, a Igreja da Lapa e acima de tudo a escadaria do Convento de
Santa Teresa, tão alta que era como se os seus degraus pudessem nos conduzir aos céus.
— Quem é a sua mãe, menina? – ele por fim me perguntou, ajoelhando-se a minha
frente.
— Mama Mercedes.
Por um momento vi os olhos dele se arregalarem.
— A dona do palacete ali no Largo dos Pracinhas?
Olhei para ele sem entender nada. Ele pensou em apontar para a direção que falava, mas
murmurou:
— Esqueça! – pensou por uns momentos e por fim declarou. — Sua mãe é a patroa do
Brucutu?
Meus olhos se arregalaram e comecei a tremer de medo ao ouvir o nome dele ser
mencionado. Revi tudo o que havia acontecido antes que eu fugisse. Sem pensar, corri para os
braços de Madame Satã e comecei a chorar, desconsolada.
— O que será que seus olhos viram, menina, para ficar tão apavorada?
Funguei e suspirei profundamente. Não queria contar nada. Estava tão apavorada que a
voz parecia ter sumido da minha garganta.
— Vou te levar para sua Mama, menina. Eu vou te proteger, fique tranquila.
Poucos passos depois, estávamos na porta da Mansão, onde ele se abaixou na minha
frente pela última vez. Pegou um dos muitos colares coloridos que carregava no pescoço e
colocou no meu. Era de um azul intenso, brilhante.
— Odoyá – murmurou, como em uma prece. Por fim, levantou o corpo espevitado e me
acompanhou até a porta dos fundos, esperando gentilmente que eu entrasse.
Parece que o vejo neste exato instante, em seu jeito espigado e malandro, se despedindo
de mim. Infelizmente, nunca mais o encontrei. Sei que tive a honra de conhecê-lo entre as poucas
ocasiões em que esteve livre, longe da Ilha Grande. Dava para sentir a força daquele homem, em
cada gesto e olhar. Hoje sei como João Francisco dos Santos se tornou uma lenda, protegendo
cada uma daquelas mulheres que expunham suas carnes entre as vielas da Lapa. Foi ali que viveu
e morreu, tomado pelo câncer, no final da década de 70. Fico triste por isso. Ele, assim como
muitos outros, é uma parte memorável da nossa história, gente que, sem grandes conhecimentos,
muda o mundo à sua maneira. Foi uma honra tê-lo conhecido.
Acabei por assistir, anos atrás, o filme que fizeram sobre ele. E me emocionei pela
forma com a qual o homenagearam. Recordei-me perfeitamente daquela caminhada sobre o luar da
Lapa e como, ao me transformar em mulher, marcada pelo sangue, tanto o meu quanto o de Norma,
descobri que a gentileza masculina vem dos mais inusitados lugares. Quem sabe quando eu for
embora dessa terra, eu o encontre, dançando, todo em brilho e vermelho, como no famoso filme
[25]que deu origem à sua alcunha?
Assim que o som da porta se fechando ressoou pelas paredes do lugar que sempre
havia considerado como um lar, sabia que estava por conta própria.
Minha cabeça ainda não conseguia concatenar os últimos acontecimentos em tão pouco
tempo: o assassinato, minha fuga, a transformação dos meus cabelos... Ou poderia dizer minha
mudança em geral? Pois já não era a mesma que dali fugira. Em vez de mera coadjuvante, outrora
cercada pela ingenuidade e pureza, passaria a ser o centro das atenções, a dama central, dadivosa,
exposta com toda sua beleza e falta de pudor em cima do palco. Meu cerne, ávido de vida, trocou
a ingenuidade do pensamento infantil pelos vícios da Casa dos Prazeres.
Mas ao entrar naquela casa, coberta de sujeira e medos, ainda mantinha em mim a
criança confusa que fugira horas antes. A menina não se reconhecia no corpo de mulher em
transformação e tentava se agarrar com unhas e dentes a inocência da infância que se desfazia,
deslizando entre os dedos, levadas pelo tempo.
A verdade foi que as pessoas mal notaram a minha volta. Afinal, o show não podia
parar. A noite crescia ao meu redor, entre os acordes iniciais dos músicos, perfumes mesclados
aos aromas de sabonete e sais de banho. Eu, como uma ratinha confusa, corri por entre os
corredores, recoberta pelas sombras, querendo apenas a segurança da minha cama. Ouvia, ao
passar, os sussurros por entre as frestas das portas, os soluços abafados e risadas forçadas que às
vezes somos obrigados a exibir, aquela alegria estática, falsa, que temos a capacidade de vestir,
como máscaras, quando nosso coração está gritando suas lamentações para a alma.
Consegui chegar ao quarto sem me descobrirem. Joguei-me na cama e deixei-me
envolver pelos lençóis, encolhida, os ruídos exteriores transformados em meros murmúrios,
incapazes de acalentar os meus pavores. Foi ali, sozinha, que entre lágrimas comecei a mudar.
Pois quando o mundo nos obriga a crescer, o processo é doloroso.
— Por onde andou, menina? Que sujeira é essa?
O lençol foi tirado do meu rosto repentinamente e um par de mãos me chacoalhou. Abri
os olhos com dificuldade, devido à luz do sol que iluminava todo o quarto. Mama Mercedes me
fitava, dividida entre o espanto e o asco. Suja de lama seca, cabelos emaranhados e rosto marcado
pelas lágrimas, me sentia agredida pelo olhar daquela que eu considerava como uma mãe.
Em um gesto de desprezo, ela me deu as costas. Gritou pela empregada e assim que esta
apareceu, apontou na minha direção.
— Leve-a para tomar banho e depois desinfete esse quarto. Vou trabalhar no meu
escritório e quando voltar quero tudo impecável.
Onde estavam os gestos de amor? Para ela não importava onde eu estava? Se havia me
machucado? Será que não merecia uma atitude de carinho?
— Mama... – murmurei, suplicante em sua direção.
— Não quero ouvir uma palavra sua! – Neste instante, seu rosto se virou em minha
direção. Minha cabeça balançou, com o tapa que Mama desferiu em minha face, cheio de ódio. –
Fique apresentável e depois conversamos. Espero que tenha uma boa explicação para ter ficado
desse jeito...
Saiu dali batendo a porta. Sem forças para retrucar ou dar explicações, acompanhei a
empregada que me levou ao banheiro em um caminhar arrastado. Não me ressentia pelo tapa ou a
dor que corria pela minha face. Em mim, só restava a dor de um coração partido. E relembrando
tudo que havia me acontecido desde a morte de Norma, uma certeza se firmava em mim: o amor é
um mal que deveria suprimir da minha vida, a qualquer custo.
Por isso, quando fui levada para o banho e me despi, descobri a mulher que eu deveria
ser, em meu corpo lavado pela água tépida. Junto à sujeira que escorria pelos cabelos tomados
pelo fogo das paixões, vi despontar meus pequenos mamilos, sutis ondulações redondas sobre a
pele pálida, humildes vestígios do que estava por vir. Desci a mão pelos meus quadris e senti-os
mais firmes, arredondados, tão parecidos com o das queridas mulheres que me rodeavam e senti,
com espanto, que um recanto antes tão liso da minha pele estava recoberto por suaves pelos,
parecidos com pequenas labaredas crepitando entre minhas coxas.
Que a sujeira e a água afogassem a criança boba que ainda existia em mim.
Peguei o sabonete e, junto com a esponja, percorri o corpo daquela nova mulher que
nascia, entremeada de água e lama, como uma Afrodite moderna, desperta pela sujeira do mundo,
filha do desejo e da carne que toda mulher carrega dentro de si.
Assim como as civilizações antigas que, entre cerimônias, rituais e cânticos pagãos,
celebram a vinda da maturidade feminina após o primeiro sangue menstrual, ali eu me transformei
e sorri diante da nova deusa que nascia, mistura de sangue, água, chamas, terra e sujeira. Quando
fechei a ducha e deixei que a água barrenta descesse pelo ralo, foi que finalmente R nasceu.
Enxuguei-me vagarosamente e saí do banheiro, me sentindo poderosa, divina, a própria
deusa caminhando sobre a Terra. Meus cabelos nunca estiveram tão vivos, caindo sobre o meu
corpo, rubros cachos envolvendo-me, alegrando-me, despertando-me...
Pequenas gotas de sangue ainda manchavam o meu caminhar, derramando pelo ambiente
os odores mais secretos, deliciosos convites para noites insones da mulher que ainda habitaria
meu corpo. Foi assim que andei pela casa, sem me preocupar com nada, disposta a ser tratada
como igual por Mercedes, aquela que um dia, há tão pouco tempo, havia chamado de mãe.
–II–
Quando comecei a caminhar pelo corredor, o primeiro som que reconheci foi o grito de
uma das empregadas. Um misto de medo e surpresa saiu daquela voz ressequida pela idade e pelo
excesso de trabalho daquele dia de faxina. Abaixou para pegar as roupas de cama que haviam
caído ao chão com o susto e evitou o meu olhar. Eu não me refreei, continuei caminhando, a nova
filha caída que adentrava àquele mundo particular. Mais do que Eva, constantemente condenada
por seu pecado, eu era Lilith, aquela que não se deixava ser dominada por ninguém.
Todos acorreram aos corredores diante do grito de espanto da pobre mulher. Cada uma
das meninas, sem exceção, surpreendeu-se ao ver que a princesinha que elas tanto embalaram
havia sido deposta. Não conseguiam conceber o que havia acontecido, mas tinham certeza de que
o tempo de me acalentar em seus braços havia acabado. Seus olhos seguiam meus passos, seus
narizes cheiravam o ar por onde eu passava como seres tomados pelo cio.
— Gente, essa menina está virada em pomba-gira! – declarou Marialva, persignando-se.
Ninete comentou:
— Não, ela cheira a rosas. Só pode ser uma santa com esses cabelos de fogo...
— Lótus, ela entorpece a gente como lótus – Kyo, por outro lado, declamou com sua voz
suave.
Mas foi o comentário de Mariana que mais me chamou a atenção. Era uma loira muito
bonita, com cabelos lisos até o meio das costas e seios fartos que enfeitiçavam os homens. Era
uma das mais requisitadas da casa, apesar de seu vocabulário de lavadeira, sem papas na língua.
Ela parou na minha frente, cheirou o meu pescoço e sem que eu esperasse, passou a mão entre as
minhas pernas, manchando seus dedos levemente de vermelho.
— Que flores o quê?! Essa danada cheira a sexo, aquele capaz de enlouquecer a cabeça
de qualquer um. Se ela começar a atender aqui na casa, nós que vamos estar fudidas, isso sim!
Ensaiei um sorriso e empurrei Mariana a fim de continuar a minha caminhada. Parei
diante do escritório de Mama Mercedes e gritei seu nome. A porta se abriu bruscamente e ficamos
nos encarando.
Levemente descabelada, seus olhos primeiro se encheram de fúria. No fundo, acho que
sua maior irritação não era pelo fato de eu ter fugido daquela casa, mas sim pela situação ter
fugido do seu controle. Hoje, penso que, por um momento, trancada naquela sala ao lado de
Brucutu, pensava em alternativas para se safar se por acaso eu abrisse a boca para alguém. Quem
sabe por um momento não pensou se poderia acabar também com a minha vida, assim como fizera
com Norma?
Em vez de recuar, enfrentei o seu olhar. Ergui o rosto, altiva, e joguei todo o meu cabelo
para trás, expondo sem nenhum pudor o meu corpo mutante, as carnes se modelando a um corpo
que exigia cada vez mais. As curvas se acentuavam entre os quadris, coxas e seios, surgindo
diante de olhos perdidos, entre ideias sagradas e profanas. Nascia assim a mais nova mulher da
casa.
Mama Mercedes velou seus olhos, em sinal de contemplação e mistério. Em seus mais
escuros pensamentos, pesava todas as alternativas daquele novo ente que se plantava à sua frente,
pensando em todas as vantagens que poderia lhe oferecer.
Brucutu surgiu logo atrás dela e estacou de súbito. A maldade fria que durante toda a
minha vida habitou seus olhos foi substituída imediatamente por um desejo latente. Constatei,
surpresa, que sua pele negra reluziu repentinamente com gotículas de suor e seu sorriso diabólico
sumiu, fazendo-o morder discretamente os grossos beiços com seus dentes dourados. Os dedos se
contorcendo agitados, as pernas inquietas e seu corpo de homem reclamando de uma fome que
ainda não sabia de onde vinha.
Sabia que minha presença exercia algum tipo de força no ambiente, mas ainda não tinha
certeza se aquilo seria vantajoso ou não.
Mama Mercedes se adiantou e Brucutu retornou para a sombra do escritório. Apesar de
fazer isso rapidamente, não foi o suficiente para esconder uma estranha protuberância crescente
entre suas calças de linho. Vi seus olhos fixos em mim enquanto aquela que achava ser a sua dona
se aproximava.
Ela me rodeou lentamente, passou a mão pelos meus cabelos e arrepiou-se:
— Menina, seus cabelos estão quentes... Sedosos, macios... Tocá-los é como sentir-se
tentada por todos os diabos do inferno. O que aconteceu lá fora? No que você se transformou?
— Já não sou mais sua menina, Mercedes. Aquela que fui há poucas horas não existe
mais – passei o dedo em uma das minhas coxas, pegando uma pequena gota de sangue e, antes que
ela percebesse, passei em sua testa.
Todas as mulheres presentes gritaram de espanto. Mama, por outro lado, parou,
extasiada... Seus olhos se reviraram por um pequeno instante e olhou-me, enfim, com um sorriso
no rosto. Nunca soube o que ela sentiu naquele instante.
Uma coisa era certa: assim como eu, não conseguia entender a mágica que se operava
em mim. Acho que até hoje não sei o que sou, Jonas. Filha dos Deuses, da luz ou das sombras. Só
sei que vim a este mundo e o vivenciei com o parco conhecimento que se desvendou diante dos
meus olhos. Sem titubear, continuei a enfrentá-la.
— Agora, Mercedes, eu sou você. Sou o feminino em toda a sua vontade. A menina que
abandona a inocência e desabrocha em mulher. O sangue me despertou. Hoje posso ser Eva,
Salomé, Maria Madalena, Jezebel, Helena de Troia ou a própria Vênus. Não somos todas assim?
Feitas de carne, desejos e sonhos, prontas para tecer doces camas para que os homens se deitem?
Fitei todas as meninas que ainda restavam na casa. As poucas e belas mulheres que
fugiam diariamente ao meu universo à procura de um pouco de fantasia em suas vidas. Agora era a
vez de me chafurdar no universo delas. Não via mais as belezas etéreas cobertas pela inocência
da minha infância. Observava os olhos cansados, as peles manchadas e alquebradas pelas
maquiagens diárias e as desavenças que seus corpos tinham com a vida e com o tempo... Sem
falsas exibições ou sorrisos coquetes, eram apenas as descendentes de Lilith, cansadas de doar
amor sem receber de volta.
— Eu sou todas vocês – declarei, por fim. Diante do silêncio barulhento que nos
rodeava, impregnado de dúvidas e questionamentos, perguntei à parte mais interessada:
— Não vamos falar de negócios, Mamacita?
Todos os olhares se voltaram para a proprietária da Casa dos Prazeres.
— Você já está pronta para isso? – seu tom não era de indagação.
— Resta alguma dúvida?
Ela negou com a cabeça, silenciosa. Com um gesto simples, chamou Kyo.
— Leve-a para seu quarto. Limpe-a e empreste um de seus quimonos. Menina, espero
por você mais tarde em meu escritório – deu-nos as costas e fechou a porta da sua sala
suavemente.
Aproximei-me da esguia japonesa que baixou sua fronte diante de mim, tépida como
uma borboleta, como sempre fora cada um dos seus gestos. Ergui seu rosto diante do meu e, num
gesto delicado, toquei os seus lábios com os meus.
— Peço que me ensine a ser tão leve quanto você. Sussurrar como o vento que ressoa
entre as folhas das laranjeiras, acompanhar o mover suave da flor debruçada sobre o riacho, cair
entre os lençóis com o peso de um floco de neve sobre as antigas casas de sua terra.
— Acho que não só ela fará isso – Marialva resmungou. — Se os deuses levaram a
nossa princesinha embora e colocaram-lhe no lugar, não foi à toa. Sua pele e cabelos têm fogo,
menina, mas nos seus olhos eu vejo muita água correr. – A bela mulata me fitava, séria.
— Bienvenue, mon cher [26]. Se este é seu décadent destino, estaremos a son lado. –
Ninete também se aproximou, colocando suas mãos em meus ombros.
Todas se aproximaram, restando somente Mariana, que se manteve afastada.
— Eu não coloco o doce na boca da criança. Se quiserem ser estúpidas, o problema é
de vocês – disse irritada, indo para seu quarto naquela mistura ousada de cabelos loiros e ancas
sacolejantes.
— Vamos para dentro – Kyo declarou, nos levando para dentro de seu quarto.
–III–
A Casa dos Prazeres, por ser um local como nenhum outro da cidade do Rio de Janeiro,
prezava pela elegância e discrição. Os convidados que adentravam a casa atravessavam diáfanas
cortinas e encontravam um elegante salão, convidativo, com mesas e cadeiras em estilo europeu.
Eram recepcionados por uma bela mocinha moradora da região, Noemi, com traços de
índia e pele azeitonada, que os conduzia às suas respectivas mesas e levava a uma sala reservada
seus paletós e chapéus. Além dela, o restante da equipe era formado por homens, contratados por
Madame e vigiados todo o tempo por Brucutu. Esses chegavam para o serviço quando a primeira
estrela surgia no céu, engomados e alinhados.
Entre drinques e conversas, a casa sempre tinha artistas que se apresentavam em seu
palco. Atores, cantores e dançarinas burlescas faziam os seus shows das mais diferentes formas,
atendendo a um público selecionado, disposto a prezar um trabalho de qualidade. Quando a meia-
noite se aproximava, era chegada a hora das mariposas.
Os homens ajeitavam os cabelos, tiravam os amassados das camisas e ajeitavam as
costas na cadeira, à espera do grande momento. Apresentadas pela dona da casa, cada uma das
meninas aparecia em seus melhores trajes. Elas desfilavam diante dos olhos ávidos dos clientes e
depois eram leiloadas, prontas a satisfazer qualquer homem que adentrasse aquele lugar disposto
a ter os seus desejos realizados.
Os vencedores eram conduzidos por suas conquistas aos seus respectivos quartos,
verdadeiros palcos capazes de levar quem ali entrasse aos mais diferentes universos: o de Ninete
era aconchegante como um sótão de Montmartre, com a vitrola tocando as mais belas canções na
língua do amor; Marialva e seu recanto transmitiam toda a cultura e religião Africana, enfeitado
com tambores, orixás e peles dos mais diversos animais; o ambiente da falecida Norma remetia à
opulência dos palazzos venezianos, com brocados, peças coloridas e máscaras espalhadas pelas
paredes; e Mariana, apesar de ser paulista, trazia algo oculto dentro de si que era refletido em seu
quarto. Entrar em seu ambiente era como visualizar um livro de Sade, com estranhos objetos
fálicos, cavalos de madeira, amarras e coisas que até hoje não sei como utilizar sem me
enrubescer.
O quarto de Kyo, para onde fui conduzida, era, em minha opinião, o lugar mais belo da
casa. Suaves folhas de seda serviam de porta e se abriam ao menor toque. Desenhos intrínsecos
adornavam as paredes, enchendo de cores aquele ambiente tranquilo. Suas roupas, a maioria de
seda, se encontravam penduradas em um canto e um véu cobria a cama, recoberta por um brilhante
lençol negro.
Mãos me cercaram e esponjas dos mais variados tamanhos passaram pelo meu corpo,
encharcadas por uma água levemente perfumada. Água que também lavou os meus cabelos,
fazendo-os brilharem, cheios de cor e energia. Flores das mais diversas cores e aromas enfeitaram
a minha cabeleira vermelha, dando à minha pessoa um novo cheiro, secreto e cheio de promessas.
Kyo me levou para a cama e pegou um pequeno vidro colorido de perfume. Borrifou no
meu pescoço, braços, pulsos, abaixo dos seios e entre as coxas. Em seguida, suas pequenas mãos
esfregaram as partes borrifadas, espalhando o perfume.
— O que está fazendo? – perguntei, curiosa.
— Espalhando o perfume em pontos essenciais do seu corpo, onde o sangue mais
circula. Assim, o perfume não desvanece com o suor, impregna na pele.
Assenti com a cabeça, enquanto ela me ajudava a levantar novamente. Vestiu-me
silenciosamente com um belo quimono verde, com suaves pássaros brancos correndo pelo
brilhante tecido. Senti-me extremamente confortável dentro daquela roupa.
— Agora você está quase pronta.
Olhava a bela oriental, fitando-me cheia de devoção, bem como todas as outras. Mesmo
que algumas tentassem disfarçar, seus olhos buliçosos me contemplavam. Quem sabe relembrando
tudo que foram, há tão pouco tempo, ou até mesmo vendo na minha esguia figura um objeto de
desejo e amor. Livre dos arremedos de inocência que há pouco tempo ocuparam o meu ser, sentia-
me viva, pulsante, ansiosa por aprender os mistérios do prazer.
Queria ser parte delas, introduzida em seus mundos, capaz de dar-lhes a satisfação
negada por tantos homens que ocuparam suas camas. Para mim, o meu desejo era restituir-lhes a
vontade sobre os seus corpos.
Por isso, deitei-me na cama e abri-me. Passei os dedos pelos lábios carmins de Kyo,
beijei a testa alva de Ninete, beijei o pescoço de Marialva e sorvi o seu suor quente e cheio de
significados. Toquei em cada uma a meu modo, disposta a inebriá-las de vida, energia e
feminilidade. Porque ser mulher não é apenas ser dócil e servil... Deve-se ser guerreira, amazona,
fêmea e rainha.
— Quero ser parte de vocês – falei com convicção. — Preciso que me ensinem a arte
do prazer...
Enquanto algumas hesitaram, sem saber como reagir, Kyo se aproximou. Entre beijos,
unhas correndo pela pele e toques aveludados sobre partes do meu corpo que nunca imaginaria, a
japonesa me abriu o seu coração.
Contou sobre sua terra, onde arrozais cobriam lamaçais a se perderem de vista. Sobre o
pai rígido, que desejava que ela fosse uma dama, e a mãe, amorosa e silenciosa diante da fúria
paterna. Com seus lábios em meu ouvido, confidenciou como aprendera tamanhas habilidades com
os lábios e dedos junto ao casal de fazendeiros, os patrões de seus pais, o firme senhor Hashida-
San e sua esposa.
Falou sobre segredos sujos e prazerosos, capazes de viciar ou enlouquecer àqueles que
não fossem fortes. Verteu lágrimas ao relembrar de como a bomba, ao final da guerra, acabou com
tudo e a separou daqueles que a faziam sentir-se mulher. Hiroshima foi devastada e deles só
sobraram lembranças.
Por um momento, Kyo parou de me tocar, deixando meu corpo arqueado, ansioso,
clamando por alcançar aos céus. Sentia eu a mesma perda que ela? Seria o meu corpo campo de
carne e desejo, devastação à flor da pele?
— Por favor, não pare – exigi.
— O prazer também envolve dor, minha tenshi[27]. – Kyo disse enquanto voltava a me
tocar, sem pressa, mergulhada de volta à sua história. Entre seus gestos e palavras, vislumbrei uma
moça perdida, no outro lado do mundo. Recoberta de luto e num átimo de dor e fúria, Kyo contou
a verdade ao furioso pai e à espantada mãe. Por isso, antes que morresse por desonra, havia vindo
embora para um mundo novo, cheio de oportunidades, com língua e costumes tão diferentes dos
seus.
Assim foi com todas, enquanto, naquela tarde, me desvendavam os mistérios da carne,
me confessavam suas histórias e seus nuances inalcançados por outros.
Entre pernas, cabeças e braços, visitei Ninete e sua sina de ser filha de uma das
dançarinas do Moulin Rouge. Vista como mercadoria, foi vendida a um soldado inglês e teve a
mãe fuzilada pela turba como simpatizante dos alemães. Vilipendiada e ferida, matou o soldado e
fugiu, conseguindo chegar ao Brasil como amante de um português. Assim que ficou grávida, ele a
abandonou. Mercedes a encontrara entre as sarjetas da Lapa. O nenê não havia nascido, abortado
naturalmente em uma noite fria. Era a coisa que Ninete mais agradecia a Père du ciel[28], a alegria
de não ter trazido uma criança pura e indefesa para este sauvage monde[29].
Marialva, a neta de escravos, guiou-me pelos movimentos da carne voluptuosa de suas
ancas. Enquanto me ensinava, mostrou como o final da escravidão não livrou o seu povo de viver
entre grilhões. A moradia nos casebres, os maus tratos pelos brancos, as humilhações e a vontade
de uma só mulher em fazer a diferença. Sua arma era sua dança, munida de roupas transparentes e
a herança da terra dos orixás. Através do tremeluzir da pele negra, úmida de suor e desejo,
enlouquecia quem a via dançar. Dispôs-se a ir embora do interior onde morava, guiada pela prosa
de um circo itinerante. Ali foi o seu destino final, quando chegou à cidade grande, a capital do
país, achando que naquele recanto imenso teria vez.
De Mariana nunca soube a história. Ao pensar nela, havia um vazio dentro do peito,
como se dois olhos escuros e sombrios me olhassem, querendo abocanhar meu coração até
extinguir toda a luz possível. Era uma mulher sombria e se fosse munida do poder certo, poderia
ser muito mais feroz que Brucutu.
Por isso que lhe digo, naquelas horas em que passei com as meninas, dei e compartilhei
prazer, aprendendo as artimanhas e mecanismos escondidos nas curvas suaves e recantos sutis dos
corpos. Mais que receber, restitui-lhes o amor próprio como nunca imaginei fazer.
–IV–
A primeira noite em que R adentrou aqueles salões, não havia em mim nem sombra
daquela garota fugidia, princesa pudica perdida em afagos. Os sonhos de infância já gastos,
jogados no chão, desvanecendo sobre cada pisada de meus pés descalços entre os tapetes
vermelhos.
Os olhos cobiçosos em minha direção, os lábios inquietos em torno dos bigodes
espessos, úmidos de suor. Enquanto me avaliavam, eu os despia em pensamentos, transformando
aqueles adultos, por vezes cruéis, em crianças desengonçadas e inseguras... Grandes barrigas,
pernas peludas e sexos pequenos, achando que em seus cruéis desmandos iriam dominar o mundo.
Mas seus olhos, olhos de militares, poetas, empresários, salafrários, que se velavam para ditar
ordens para suas esposas compassivas, brilhavam em minha direção, rendidos, desejando o corpo
puro e alvo daquela que seria a Princesa da Lapa, uma mulher incapaz de amar.
Eu, habilidosamente treinada, correspondia a todos os anseios. Por fora era toda
volúpia: uma máscara de renda sob os olhos, cabelos vermelhos, chamas vivas caindo em cachos
pelo meu corpo alvo e imaculado, seios empinados, cintura afinada e o sexo, peça central dessa
profissão, cobiçoso e convidativo entre pele e pelos rosáceos, incentivando os mais desavisados
a se perderem em seus segredos.
Dentro de mim, um novo ser mostrava as suas garras, desejoso de poder e controle,
inebriando-se e alimentando-se dos desejos alheios.
Sorria enquanto as mãos se retorciam nervosas, querendo tocar-me, macular a minha
pele pálida, sem manchas. Desprezava aqueles que me rodeavam, prontos a marcar território
como cachorros velhos, estendendo notas amassadas, gritando esbaforidos lances pela minha
carne.
A cada grito, a cada oferta, a menina que um dia havia existido em mim tampava os
ouvidos, querendo o silêncio, pedindo para que as risadas inocentes e cantigas infantis voltassem
ao seu redor.
A pureza era aniquilada e a prostituta, a devassa, a portadora do gozo por fim surgia. R
levantava-se gloriosa, dona da sua vontade e do seu sexo, erguia os seios em direção aos lábios
dos seus clientes. Sorria timidamente, mandava beijos e prometia os céus entre as quatro paredes
de sua alcova.
Para os homens, todos os segredos femininos parecem pairar entre nossas coxas, estas
que parecem mares sinuosos e calmos após a tempestade da conquista, onde até mesmo os machos
mais viris se sentem em casa, ouvindo o canto da sereia que chega através dos gemidos
sussurrados e das palavras infames vindas à hora do coito.
Estes seres, dotados de pragmatismo, entre nossos braços se tornam instinto, criança
chorona ou pai dominador. Agradece aos céus ou clama aos infernos quando atinge o ápice.
Aprendi a utilizar todo o meu corpo para agradar, como um gato insinuante que brinca
com a presa antes de devorá-la. Dedos, colo, nádegas, língua... Todo o meu corpo foi treinado
para ser o instrumento da paz, aquela que vem após a descoberta dos prazeres terrenos.
Conseguia manusear o tempo ao meu favor, tornando o orgasmo um ato rápido e fugaz,
ou quem sabe aquele delicioso tormento capaz de deixar o outro inquieto a noite toda. Para mim,
não eram os clientes... Aqueles homens eram os degraus da minha ascensão. Ouvia suas histórias,
guardava seus segredos em todas as versões: desde a verdade crua, exposta com todas as letras,
até aquelas moldadas em pequenas mentiras, as meias-verdades voltadas para os ingênuos e
displicentes.
Os métodos mais convencionais foram aperfeiçoados por mim... Meu querido, você não
tem ideia do que um simples pote com gelatina pode proporcionar... Faça sua parceira colocar na
boca, deixá-la dissolver lentamente e depois prendê-lo entre os lábios...
Parece que o deixei ruborizado, meu querido?
Bem, o importante é que em pouco tempo, após o leilão da minha virgindade, havia
conseguido me tornar a sensação da casa.
O que dizer da minha primeira noite de verdade com um homem? Bruta, ácida, cruel,
vitoriosa... A minha pureza foi jogada fora como se fosse um trapo sujo pelas mãos calosas de um
capitão do exército suado e peludo, que insistia em não tirar as botas.
Rejeitei a dor de me tornar uma mulher de verdade em silêncio, trazendo na face uma
expressão de prazer que não me pertencia. Se ainda havia ideias românticas em alguma parte
escondida do meu ser, elas foram assassinadas no momento em que a minha carne se abriu,
florescendo em dor. E, ao ouvi-lo gemer, prestes a gozar, a mulher que ali nascia o prendeu com
força, pernas travadas às costas largas, demonstrando seu poder. Gemendo e clamando por mais
como se ele fosse o melhor amante do mundo.
Nós, mulheres, somos assim, camuflamos os melhores momentos da vida com dor, para
lembrarmos que somos humanas. As pessoas se lembram do padecimento cercado de amor no ato
de dar à luz, mas se esquecem que também sofremos, mesmo que em muitos momentos caladas, ao
receber a luz vinda do sêmen do homem pela primeira vez.
Depois de tudo findo, o homem pesado ressonando ao meu lado, segurei o gemido ao me
limpar, sentindo a água fresca escorrendo pela minha pele macerada. Foi-se assim a pureza
preservada por tantas, aquilo que para mim era apenas mais um ideal romântico utilizado para
catalogar as chamadas “boas moças”.
Rompia-se a barreira do puritanismo opressor, esvaía-se a nobreza construída por
ideais sentimentalistas e surgia a senhora dos próprios atos, a mulher que era dona do destino,
fazendo a trajetória sobre os corpos fracos dos homens sedentos pela volúpia das carnes.
Na segunda noite, já não sofria mais nada. A alma se distendia, ferida, mas eu a
ignorava, deixando-a trancada junto ao pobre coração que eu outrora rejeitara. Nunca seria como
Norma, vítima dos homens e de seus amores traiçoeiros. Quando nos apaixonamos, perdemos
nosso papel de algozes e nos tornamos vítimas passivas, cordeiros prontos para o abate...
Eu mudaria essa história.
–II–
Passaram meses e anos, nos quais dancei com o diabo e sua corja de demônios,
abraçando-os com os meus cabelos em fogo. Fiz as coisas mais degradantes, sucumbi aos desejos
mais ardentes, realizando tudo que aqueles clientes de uma noite vislumbravam em meus fios.
Havia me tornado a Princesa da Lapa, a mulher misteriosa que nunca saía às ruas,
guardada como uma joia preciosa na Casa dos Prazeres. À noite, não podia nem sequer desfilar
entre as meninas. Era vista do alto da escada, sob a segurança de Brucutu, exposta como um objeto
para poucos, algo inalcançável a ser conquistado. Nua, com poucas partes da pele alva
fulgurando entre as madeixas ruivas enfeitadas com rosas brancas. Deixava que brigassem por
mim, descarregassem suas economias para os bolsos cada vez mais inchados de Mama Mercedes
para então se perderem no aconchego que só eu era capaz de proporcionar.
E as outras meninas? Competiam entre si para me fazerem favores, dividindo comigo
uma relação de amor e ódio... Cheias de insinuações e manipulações como só as mulheres são
capazes de fazer. Queriam compartilhar do meu mundo e dos bons olhos da Mama, que via em
mim a sua “galinha dos ovos de ouro”. Apenas Mariana me olhava de soslaio, com raiva no olhar
e palavras ferinas ressoando pelas minhas costas.
Mas deixemos que a criatura mostre o veneno na parte que lhe cabe, mais à frente.
Na época, não percebia que estava em uma prisão. Sem muros ou grades, entre
almofadas, perfumes e rendas, era um rouxinol raro aprisionado em uma sutil gaiola de cristal.
Vivia em um lugar cercado de rara beleza...
Só que, se tentasse me afastar dali, poderia sangrar, ferida nas afiadas hastes do vidro
que se romperiam em tão pouco tempo.
–III–
Poderia falar que passei toda a minha vida ali, cercada deste falso e ardiloso poder
capaz de corromper facilmente a mais íntegra alma, mas para que me armaria de mentiras se quero
lhe contar os fatos como verdadeiramente ocorreram? Como todas as do meu sexo que almejaram
e alcançaram o poder, houve a vertiginosa queda quando fui arrebatada pelas emoções.
Aconteceu quando uma simples troca de olhares selou o meu destino, fazendo ressoar as
batidas do coração que julgava adormecido. O danado, aquele que chamamos de portador de
sentimentos, aproveitou uma distração minha e escapou, suplicando por doces gestos de ternura.
O mais engraçado nisso tudo é que quando o meu pequeno mundo me admirava,
transformando-me em reflexo dos seus desejos, um jovem de olhos nublados em azul chegou sem
que eu quisesse e domou a minha febre, trazendo à tona a humanidade que ainda me restava.
Como o pretenso cavalo destruidor de Troia, o destino fantasiou-se de inocência e
trouxe a chave para destruir aquilo que dava sentido a minha vida, subjugando de uma vez por
todas a fera rebelde existente em mim.
Um novo arranjo se formava nos fios tecidos pelos meus atos. Ações estas que me
mudariam para sempre.
Engraçado como uma vida pode ser tão intensa, mesmo quando uma parte dela
tem como palco as paredes do quarto de um bordel...
Depois de tantas cenas aqui narradas, eis que o amor, irrefreável e incansável, entra em
cena e se apodera de tudo. Eu, que achava que não precisava de nada mais na vida, permiti que o
fogo em mim contido começasse a arrefecer a partir do momento em que ele esteve em meus
braços.
Lucas foi aquele que, por ironia do destino, me guiou através das trevas. Viu entre a
beleza impressa em mim, ultrapassou os êxtases momentâneos criados para outros e tocou a minha
alma, fazendo-a vibrar com simples gestos de afeto. O primeiro homem que adentrou a minha
alcova e não me levou à cama, resistindo bravamente ao canto da sereia devoradora que roubava
qualquer vestígio de sanidade que poderia em mim surgir.
Naquela época, antes que Lucas entrasse pela porta do meu quarto, eu era impulso, ódio,
dor, ente visceral que tinha como objetivo aniquilar os sentimentos frágeis, aqueles que mataram
Norma nas mãos pétreas de Brucutu, o anjo negro, portador da morte, esquecido por mim por um
momento neste relato. No decorrer dos anos, ele não me dirigira a palavra. Parecia ter se tornado
imune à magia que me rodeava. Recebia apenas olhares de desprezo frio da sua pessoa, que
passava muitas noites perto da porta do meu quarto, protegendo a principal renda de Madame
Mercedes de clientes arredios.
Já estávamos em 1964. Dez anos em que o sangue da luxúria e do pecado havia me
marcado, escorrido quente entre minhas coxas. Um tempo que havia se passado em um pestanejar
de olhos e a Casa dos Prazeres atingia o seu ápice.
Naquele ano de golpes de poder e silêncios impostos, o brilho das fardas parecia
predominar pelo ambiente, junto aos comentários belicosos e segredos de estado confinados
naquelas paredes. A casa de tolerância criada por Madame Mercedes havia se tornado o ponto de
encontros dos militares concentrados no Rio de Janeiro.
Por mais que JK tivesse inaugurado a nova capital do país, Brasília, quatro anos antes,
o verdadeiro poder que dominava e tiranizava a população ainda estava embrenhado nas ruas
cariocas. E levaria muitas pessoas antes de cair, trocando o nome de cada uma delas pelo
codinome DESAPARECIDO impresso em cartazes baratos.
Marechais, comandantes, tenentes... Todos compareciam a cada anoitecer em nosso
recanto, com suas mãos grudentas e mastros flácidos à procura de animação. Eu servia apenas às
altas patentes que viam na minha cama o seu reduto seguro, onde a mulher ideal estava disposta a
saciar suas sanhas e escutar passivamente os planos escusos com os quais pretendiam quebrar a
vontade dos cidadãos.
Um dos meus clientes mais assíduos era o Marechal Rubem Pontes, honorável cidadão e
defensor do país. Nos porões da Ditadura, longe de ser o homem gentil que me penetrava com
suavidade, Rubem era um dos mais exímios torturadores do DOI – Destacamento de Operações de
Informações, localizado na Tijuca.
Um lugar que até hoje apenas mencionar seu nome me causa arrepios. Mas falaremos de
cada coisa em seu tempo. Eu só pude renascer como amada e amante quando em vez dele, o seu
próprio filho, Lucas, veio aos meus aposentos para perder sua virgindade.
– II –
– III –
O que havia falado era verdade: depois daquele encontro algo começara a mudar dentro
de mim. Porque aquele rapaz não saía da minha cabeça, como tantos outros clientes que
frequentaram o meu quarto? Não sabia dizer se era o fato de eu não conseguir controlá-lo que me
incomodava, ou se a fé quase infantil dele no amor, um sentimento que, em minha opinião, só os
loucos ou os mortos acreditavam.
Mas se fechava os olhos e passava as mãos nas minhas pernas, ainda vermelhas pelo
friccionar de sua barba por fazer contra a minha carne, meu coração disparava, ameaçava sair do
seu ritmo e meus lábios pediam para pronunciar o seu nome. Será que estava doente? Ou as
artimanhas que tanto engendrara os homens até agora estariam se voltando contra mim? Não queria
pensar naquilo, nem podia. Saí do quarto e fui até o bar. Pedi um vinho.
Ele ainda estava lá, sentado ao lado de seu pai. Cumprimentei o Marechal com um
sorriso e peguei nas mãos a taça de cristal que me foi servida. Assim que levei a bebida suave aos
lábios, como se sentisse a minha presença ali, Lucas me encarou.
Meu corpo estremeceu em choque, como se ele estivesse aos meus pés, o rosto a tocar-
me, fazendo-me abrir como uma rosa em seus lábios macios. Fechei os olhos, trêmula, perdida em
sensações que não sabia existir. Só voltei a mim quando a taça que segurava entre os dedos se
espatifou no chão.
Por um momento tudo parou. A música, as meninas, os convidados. A Princesa da Lapa,
sempre tão fria, estava ruborizada, em um misto de desejo e vergonha... Olhei para Lucas
novamente, disfarçando minha falta de jeito com o que sentira.
Fitei-o. Ele sorria.
Sem me atentar as perguntas e comentários, subi para o meu quarto, irritada. Abraçava-
me, tentando fazer com que os tremores parassem. Lutava com o que começava a sentir e não
entendia. Mal sabia que seria a perdedora de uma luta injusta, contra os meus próprios
sentimentos... Contra a minha humanidade.
Num gesto de raiva, arranquei as flores dos cabelos, lavei o rosto e me odiei por me
mostrar fraca diante não só de Lucas, mas de toda a Casa dos Prazeres. Eu sempre havia sido
mestra em omitir minhas reações. O que mudara em meu coração de gelo?
Levantei-me e me coloquei diante do espelho de corpo inteiro que havia em meu quarto.
Observei cada detalhe, com as chamas dos meus fios de cabelo a emoldurarem o corpo todo. Tudo
parecia inalterado, mas eu não era a mesma.
O rosto claro estava rubro de excitação, vontade, desejo. Toquei-me em cada parte para
ver se nada em mim havia mudado... Por fim, ergui os cachos rubros para cima, a fim de analisar o
meu rosto.
E qual não foi a minha surpresa quando, ao levantar o cabelo, entre os fios que
normalmente fulguravam, intensos, algumas mechas se tornaram opacas diante dos meus olhos.
Pequenos fios de cabelo perderam o seu brilho, escurecendo ligeiramente, tornando-se algo que
não podia controlar.
Havia apenas uma explicação: assim como os meus cabelos eram capazes de dominar
os corpos dos homens, o toque de Lucas havia me contaminado de alguma forma, destruindo a
fonte da minha proteção, tentando colocar à prova a minha liberdade.
Ou seria um recado do meu insensato coração, até então submisso aos meus desejos,
reclamando à sua dona que sacie a sua necessidade de sentimentos? Aquele seria o dia em que
pagaria pela minha soberba?
Um pensamento macabro começou a crescer, vendo aqueles fios começando a ficar
pálidos sobre os meus dedos: será que o efeito sobre os clientes passaria? Será que além de
abalar as minhas convicções, Lucas também tiraria o meu poder sobre os outros?
Cheia de medos e inseguranças, toquei a campainha para chamar umas das empregadas e
pedi que me trouxesse Kyo. Dentro daquela casa, a bela japonesa ainda me dedicava as suas
atenções, não só como amiga, mas como mulher.
Nas manhãs frias e embaçadas, aquelas em que o medo e a insegurança nos tomava,
dormíamos abraçadas, os corpos cansados devido ao sexo ininterrupto com os clientes e nos
entendíamos, mergulhadas nos aromas uma da outra. Só podia contar com ela, pois mostrar-me
frágil as outras poderia ser perigoso. Afinal, para conquistar o meu espaço no topo do pódio não
hesitei em passar por cima de quem fosse preciso. A seu modo, as outras meninas eram as amantes
rejeitadas, que haviam me treinado com todo esforço nos segredos do sexo... E eu as havia
superado.
Marialva e Ninete se mantinham imparciais e distantes. Ah, e quanto a Mariana? Meu
querido confidente, o tempo só serviu para aumentar a sombra que habitava sua alma. Seu corpo
amadurecera, firmara-se nas formas, tornara-se extremamente tentador, atrativo e mortal. Dona de
uma beleza fria, era um gato que brincava com suas presas antes de devorá-las lentamente. Muito
mais cruel do que eu possa ter sido em toda a minha vida, seu quarto sombreado por cortinas
negras, misturava entre seus sons característicos gemidos de prazer e gritos de dor. Ali os homens
se submetiam a chicotes, ferros, coleiras, falos artificiais dos mais diversos tamanhos. O prazer
vinha da degradação, submissão e entrega total.
Pensa que ela não gostava de esfregar isso na minha cara? Lógico. Mariana era a
antítese de tudo aquilo que era. Eu oferecia prazer aos outros, ela o roubava para si.
Ansiosa, sentada na cama, esperei a chegada de Kyo. Senti o seu cheiro de neve,
cerejeiras em flor e lótus antes mesmo que ela aparecesse diante de mim. A porta se abriu sem um
leve ruído. Kyo assomou por ela e se aproximou com seus pequeninos pés da minha cama. Olhei-a
como um barco perdido que encontra o seu porto, com lágrimas nos olhos. Sem um murmúrio,
estendeu-me os braços.
Joguei-me em seu colo, sentindo-me insegura como aquela criança que eu fora tantos
anos atrás, testemunha da morte e dos malefícios do amor. Sem recriminações, após alguns
minutos, ela suspirou e com a ciência que só cabe aos amados e aos sábios, murmurou:
—A humanidade voltou a alcançá-la, princesa?
—Proíbo que qualquer sentimento tome conta de mim, Kyo. Deixe que os outros sofram
por palavras vazias como desejo, saudade e amor – falei como se a boca estivesse cheia de bile. –
Desprezo os fracos que se deixam dominar. Como pode um homem destruir aquilo que tanto
prezava ao simplesmente recusar as minhas carícias?
– Conte-me tudo o que aconteceu, tenshi.
Assim, descrevi a Kyo cena por cena daquela noite, a partir do momento em que Lucas
entrou pela porta do meu quarto. A constatação de sua cegueira, o debate, a aposta, o meu orgasmo
e as consequências desse ato em mim. Relembrei a minha busca incansável pelo poder; a renúncia
de qualquer tipo de sentimentalismo e, consequentemente, da fragilidade por este ocasionado. Kyo
apenas me escutou em silêncio, passando seus dedos sobre meu rosto.
— Parece que não conhece as pessoas, minha princesa... – disse Kyo, depois de me
escutar atentamente. – Desejamos apenas aquilo que não podemos ter. Quando temos tudo que
almejamos ao nosso alcance, o que nos recusam é que nos transforma. A falta constrói as
mudanças. Não importa que nome leve, seja saudade, itai[30] ou amor.
— Isso é loucura! Como eu, que tive todos os homens que quis e não quis em meus
braços iria me render a um poeta trágico? Alguém que não me vê? Nunca permitiria isso!
— Acho que ele a vê mais do que pensa... Aos olhos da seishin[31] nada é equivocado.
– Por um momento, Kyo se afastou e abaixou a cabeça. Vi que seus olhos também compartilhavam
as minhas lágrimas. – Estou triste por não ser a escolhida do seu coração, mas agradeço a Buda
por finalmente encontrar o hito[32] que irá partilhar o seu caminho.
Me afastei de Kyo, como se tivesse levado um tapa na cara. Magoada por até ela
discursar sobre fúteis ideais românticos. Que sentimento era aquele que não conseguia identificar?
Que forma era aquela que o inimigo da minha alma se mostrava? Não reconhecia nos olhares e
gestos carinhosos de Kyo o sentimento passional que destruíra Norma. Será ele tão insidioso que
se transformava, mudava e se retorcia para caber nas mais variáveis situações?
Havia me enganado, vangloriando-me durante todo esse tempo que era incapaz de
sentir? Eu precisava descobrir a verdade antes que a armadura tão habilmente construída por mim
se rompesse, antes que perdesse minha alma a espera de um final feliz que, para mim, não passava
de utopia, sonho de tolos. Voltei o rosto para o meu colo e testemunhei, assustada, mais uma mecha
de cabelos perder o seu viço, adquirindo o tom terroso de folhas outonais. Agarrei-o com força
nas mãos antes de responder a Kyo, disposta a me livrar daquilo que ameaçava me fazer fraquejar.
— Eu me lembro de Norma, Kyo. Por isso, nunca permitirei me submeter a um homem.
O amor é para os tolos. Ele mata, destrói, traz sofrimentos e sequelas para toda a vida daqueles
que são acometidos por ele. É uma doença que não quero ter em mim. Prefiro arrancar o coração
do meu peito a. amar alguém. – completei, tomada pela repulsa.
— Não fale besteiras, princesa. Sinto que este jovem irá lhe mostrar as alegrias do
amor. Espere e verá.
Por mais que eu tentasse argumentar que ela estava enganada, Kyo tentava me consolar
como se eu já estivesse perdida de amor. Não me repreendeu, mostrou ciúmes ou dor. Para ela,
amor era entrega total, mesmo que significasse ver o seu objeto de afeto ser feliz pertencendo a
outro. Por isso, Kyo acalentou-me como se eu tivesse voltado a ser criança.
Naquela casa, onde o tempo parecia não passar, rugas e fios grisalhos eram banidos de
nossas frontes. Por isso, eu me tornei a criança obstinada e Kyo, a mãe sábia e pacificadora.
A cada frase procurava me reafirmar não só para a minha amiga, mas para mim mesma.
Estava disposta a jogar contra Lucas e vencer aquela aposta absurda, nem que tivesse de vender a
minha alma por isso. Mas após aquele encontro com o homem que mudou o meu destino, sem
saber resgatei dentro de mim não a Princesa da Lapa, a sequiosa por luxúria, mas a jovem, a
princesinha que fora cercada de amor.
Era a mesma, mas diferente. Lucas, ao rejeitar o meu sexo, fez minha alma despertar
para algo mais... Ao me tocar com todo o seu corpo, na experiência de me sentir, deixei pela
primeira vez de ser algo apropriado por outros, para ter a propriedade do meu corpo e alma.
Assim que me acalmei, Kyo prometeu me ajudar a reencontrá-lo. Enquanto isso, minha
rotina não poderia mudar. Ainda tinha que ser a Rapunzel com os cabelos em chamas, a fantástica
prostituta da Lapa capaz de oferecer aos homens, iguarias incomparáveis. Não era mulher de me
perder em lembranças. Poucos são aqueles que se permitem viver de sonhos. E se estes existem,
viviam fora daquelas paredes.
A vida na Casa dos Prazeres, para os olhos dos visitantes, era cercada de magia e
beleza, mas, para nós, que éramos como borboletas atrevidas brincando em torno das chamas da
vaidade humana, era um teatro, uma grande cena de burlesque, onde nada nos pertencia. Éramos
brinquedos, ilusões sem vontade, prontas para satisfazer os mais pecaminosos desejos.
E por conseguir me manter até aquele instante sem sentir nada, era o motivo de ser a
grande rainha daquele castelo decadente.
Passei a tarde toda sem querer ver ninguém. As moradoras da Casa, inclusive Madame
Mercedes, acataram a minha ação, achando talvez que fosse um dos meus achaques de estrelismo.
Deixei que pensassem o que quisessem, afinal como poderia explicar o que estava
pensando se nem eu mesma sabia? A única forma de parar de pensar foi procurar consolo nos
braços de Morfeu, que me proporcionou o mais prazeroso esquecimento.
Ao abrir os olhos, vi que a casa despertava para mais uma noite. O som alto dos
Beatles tocava no rádio, dizendo que o amor não poderia ser comprado...
Doce ilusão dos que ainda não viveram o suficiente da vida. Há pouco tempo, Marialva
e Mariana haviam ido ao cinema assistir ao filme Os reis do iê-iê-iê e se encantaram com o
quarteto britânico.
Todas as vezes que as músicas dos garotos de Liverpool apareciam no rádio, o som era
aumentado consideravelmente. Nem Mama Mercedes reclamava. Ao contrário: fingíamos não vê-
la balançar os pés ao ritmo da música.
Sem ânimo, levantei-me da cama e comecei a me preparar para ser mais uma vez a
atração principal daquela casa. Em minha mente, repassava todas as sensações sentidas na noite
anterior com Lucas e, por mais que pretendesse negar, todo o meu ser repercutia a lembrança do
seu toque. Ao me arrumar, eu percebera que algumas mechas do meu cabelo estavam mais baças,
manchas destoantes em meio ao fulgor que antes adornava a minha cabeça.
Aos poucos, me transformava em uma nova entidade, primitiva e que fugia da minha
razão e controle. Crescia em mim algo que eu ainda não sabia o nome, oferecendo-me uma
humanidade que eu tanto insistira em rejeitar. Não iria perder aquela aposta, render-me ao tolo
amor oferecido por um homem que tinha os olhos cegos para a realidade da vida. A Princesa da
Lapa não seria derrotada pelo Menino do Cosme Velho!
Mesmo que em meus mais doidos pensamentos quisesse sair correndo dali, ganhar as
ruas nem que fosse nua em pelo à procura daquele que nunca mais desocuparia minha mente, tinha
que me fantasiar de prostituta, entregar-me ao homem que melhor pagasse e perverter o vazio que
senti com o êxtase do gozo derramado sobre o meu corpo.
Por fora, estava a mesma mulher: a fêmea fatal, nua e fria, cabelos enfeitados com flores
brancas, parecida com Vênus a surgir da concha. Por dentro, me encontrava em carne viva,
coração pulsante e insaciado, alma quebrada em busca de respostas. Loucura que toma conta por
alguém que mal conheço, horas passadas na companhia de quem parece devassar-me de uma só
vez.
Dei o melhor de mim. Vestida apenas com uma máscara de veludo vermelha, fui bruxa,
sereia, devassa, querendo mostrar a mim mesma que só o sexo era capaz de reger. Longe da
castidade imposta pelo amor, a cópula é suja, animal, cheia de urros, palavras sacanas e gestos
lascivos.
Depois que meu cliente, um magnata francês, deixou a minha cama, esparramei-me
como um gato à procura de sol, corpo grudado de sêmen, o gosto de macho na boca. Esqueci-me
dos medos, dores e fraquezas, sentimentos inúteis que mexeram com a minha cabeça após o
encontro com Lucas. Dormi saciada, com a mente em silêncio.
– II –
No decorrer dos dias, aos poucos consegui controlar os meus anseios. As dúvidas que
criaram voz, gritavam dentro de mim, querendo respostas, passaram a ser um murmúrio, um eco
daquela noite em que Lucas havia passado em meu quarto. Estava feliz por ter tomado novamente
o controle da minha vida, já que até mesmo os fios dos meus cabelos haviam parado de
manifestar-se, dando forma e tom aos meus pensamentos.
Pena que essa falsa calmaria durou pouco tempo... Ou pensou você, Jonas, que o Cupido
me deixaria em paz após eu lutar tão bravamente contra os seus encantos? Quem me dera. Como
dizia o poeta, o amor tem a capacidade de arder e não se ver, doer e não se sentir, manter-se
quieto, ganhando forças, para no fim tornar-se opressor de nossas razões. Pobres humanos cativos
de nossos sentimentos.
Porque esta cara de incredulidade, Jonas? Acha que os meus pensamentos naquela
época eram exagerados, infundados? Viaje comigo no tempo então, só por um instante, e veja
quantas mulheres puderam ter tudo e foram derrotadas pelo amor... O que seria de Cleópatra se
não fosse trespassada pelo fulgor de Marco Antônio? Maria Madalena não seria considerada
rameira se não surgissem as histórias de seu amor por Jesus... Guinevere, Elizabeth, Catarina de
Aragão... Posso citar uma galeria de nomes de mulheres ultrajadas, banidas e denegridas por toda
a posteridade graças ao poder do homem e seus amores sobre elas.
Por mais que os anos tivessem passado, o amor não era aquilo que hoje eu vejo em seus
livros, meu caro. Era dor, sofrimento e morte. E por mais que todos ao meu redor tentassem me
provar o contrário, eu teimava em não enxergar.
Até que Kyo cumpriu o que havia me prometido. E me levou ao encontro dele....
– III –
Naquela manhã, estava eu sentada em uma cadeira, escovando os cabelos, quando Kyo
entrou no meu quarto, sem que esperasse. Foi abrindo o meu guarda-roupa e, sem dar-me
explicações, pegou um discreto vestido verde e colocou-o encima da cama.
–Termine logo de escovar os seus cabelos, pois tenho de trançá-los. Não dá para sair na
rua com eles soltos.
Fitei-a sem entender nada. Do que Kyo estaria falando? E alto, como se quisesse que
todos a escutassem.
– Do que diabos você está falando... – antes que eu terminasse a frase, ela colocou o
dedo nos lábios, pedindo silêncio. Sorrindo misteriosamente, beijou o meu rosto e disse:
– Confie em mim.
Assenti a cabeça. Permaneci em silêncio enquanto ela fazia uma elaborada trança em
meus cabelos, as dúvidas cada vez maiores povoando a minha cabeça. Kyo parecia ser outra
pessoa, rindo e brincando enquanto me arrumava, como uma mãe que trata a sua filha mais
querida.
Ajudou-me a colocar o sutiã e a calcinha com reverência, logo em seguida o vestido
verde. Marcou a minha cintura fina com um cinto branco e prendeu a parte de cima da roupa atrás
do meu pescoço, como era costume na época, fechando o botão silenciosamente.
– Uma linda flor, pronta para se entregar ao seu futuro amante... Chegou a hora de te
entregar ao seu destino. Que Buda a abençoe!
– Poderia me explicar o que está acontecendo? Senão, não saio daqui.
– Nós vamos encontrar o seu homem, princesa. Como eu havia prometido... – ao me
dizer isso, Kyo me fez virar em direção ao espelho, enquanto escondia a minha trança em um
enorme chapéu de palha, como aqueles que Brigite Bardot usava. Fitei-me no espelho, perdida
entre o medo e o assombro, como uma prisioneira diante da sentença de morte.
– Como conseguiu isso, Kyo?
– Encontrá-lo foi fácil, depois de todas as informações que havia me passado. Caminhei
pelo Cosme Velho alguns dias, pedindo para que o unmei [33]me mostrasse o caminho até o dono
de seu coração. E numa tarde, penso que no terceiro hi[34], o vi na janela de um sobrado, de olhos
fechados, sentindo o calor do sol em seu rosto. Parecia que tinha sido tocado por um tenshi[35].
Ali, eu vi um homem iluminado, minha querida, e aprovei a escolha do seu coração.
– E você falou com ele?
– Claro... Ele me recebeu com a maior gentileza. E combinei de encontra-lo hoje, no
Jardim Botânico. Irei deixa-la na companhia dele e busca-la antes que a noite chegue.
– Qual desculpa deu? O que disse para Mama Mercedes?
– Que iríamos ver novas flores para os seus cabelos.
– Preciso saber toda a trama que você armou para que não haja erros – comentei, um
pouco alto demais.
– Preze pela discrição. Assim que consegui falar com Lucas-San, pensei em uma
maneira de te tirar daqui. E como um pássaro que voa sobre a cerejeira em busca da fruta mais
amai[36], fui analisando as possibilidades de fazer isso. Tinha de ser de forma que nem Mama
Mercedes ou Mariana descobrissem.
– Mariana? – fiquei espantada ao ver Kyo mencionar o nome da bela e fria cortesã.
– Aquela bruxa é sua maior inimiga aqui. Mais que os braços da morte que cercam
Mercedes; ela quer te ver derrotada, transformada em cinzas. Seu ódio é como uma oni[37], saindo
do coração obscuro dela como um mar, capaz de tudo para sufoca-la. Cuidado com ela – Kyo
pegou em meus braços, desesperada. Vi seus olhos suplicantes em minha direção, por um momento
prestes a perder o controle.
Somente assenti com a cabeça. Isso pareceu acalmá-la. Assim, ela voltou a contar o que
havia feito, com a mesma voz baixa e controlada.
– Agora pouco, ela estava na porta, escutando o que falávamos. Por que acha que falava
alto como um gaikokujin[38]? Para que a maldita escutasse a nossa conversa...
Tentava dizer alguma coisa, fingir que sabia algo e que também via as intenções de
Mariana, mas não havia desconfiado de nada. Havia passado tanto tempo lutando contra os meus
demônios, que esquecera o mundo à minha volta. Fugira para algum lugar dentro de mim, lutando
por meu controle, focando-me em meu poder e sexo, esquecendo-me que a confusão de
sentimentos que passavam diante de mim me enfraqueciam, deixavam-me vulnerável e ao meu
frágil reinado dentro da Casa dos Prazeres.
E se Kyo não estivesse ao meu lado, cumprindo a sua promessa para me trazer à tona, eu
poderia acordar tarde demais. Lucas, maldito era aquele nome preso em meus lábios! Sua imagem,
como uma praga, não desaparecia dos meus olhos. E as memórias, malévolas memórias,
ressurgiam em meus momentos de sono, para me assombrar com as carícias de seu rosto, a barba
por fazer se encaixando em minha pélvis, sua língua sobre o meu sexo e....
– Princesa, está prestando atenção?
– Sim – assenti, assombrada e trêmula pela presença que voltara a minha mente.
– Bom, vou ser rápida, pois o tempo é curto. Mama contratou um carro para nos levar.
Vou explicar em detalhes o que fiz... Acontece que todas as mulheres desta casa viram que você
está diferente.
– Mas...
– Não negue e escute. Mama me perguntou se havia notado algo estranho, pois você
estava ficando muito reclusa e ela percebeu a sutil mudança de cor dos seus cabelos. Pediu que eu
descobrisse o que era, discretamente. Foi aí que tudo veio a minha cabeça. Contei a ela que te
examinei e descobri que as flores que usava nos cabelos davam aquela reação em você. Por isso a
melancolia e a mudança dos cabelos. E como um dos meus clientes mais regulares é um dos
diretores do Jardim Botânico, disse a ela que poderia descobrir qual hana [39]seria a mais
indicada para você... – não consegui esconder o sorriso. – Mas que, como eu não poderia trazer
todos os tipos de plantas para fazer o teste, você deveria ir comigo.
Abracei-a ansiosa como uma criança. Por um instante havia me esquecido o motivo
daquilo tudo. Afinal, quantas vezes você me viu mencionar que saíra as ruas ou tivesse andado
pela praia?
Pois é, Mama Mercedes não permitia que eu saísse por aqueles portões. Quando afirmo
que era prisioneira daquela mansão, não é mentira, considerando que o produto dela tinha de ser
preservado. Dava para contar nos dedos as vezes que a Princesa da Lapa saíra da Casa dos
Prazeres, para deleite dos transeuntes.
Me retrai ao me lembrar de que iria encontra-lo.... Lucas e seus olhos acinzentados que
me enchiam de dúvidas e temores. Comecei a tremer de medo, ansiedade, ódio ou, talvez, uma
mistura de coisas que simples palavras não poderiam definir. Estava prestes a enfrentar um dos
maiores desafios da minha vida.
Kyo, como sempre, me abraçou e fez-me sentir segura, nem que fosse por um instante.
–Vamos, Kyo. Antes que eu perca a coragem.
Ela assentiu e foi comigo até a saída. Assim que abrirmos a porta, demos de cara com
Mariana, tentando manter-se imparcial, como se estivesse ali por acaso.
– Perdeu algo diante do meu quarto?
– Não, nada... – Logo ela mudou de assunto: –Vai sair?
– Sim. Kyo me levará para conhecer algumas flores. As que ando utilizando ultimamente
tem acabado comigo.
– Tem certeza de que são as flores, R? – Mariana replicou, zombeteira – Pode ser que
não esteja mesmo dando conta do seu serviço.
Olhei-a, demonstrando desdém.
– Pelo que vejo dos desempenhos alheios, nem quando eu estiver com noventa anos,
corro o risco de que alguém me supere em disposição.
O sorriso morreu na cara da musa de gelo. Ia responder, mas Kyo a encarou e secamente
comentou.
– Temos mais o que fazer, se não se incomoda...
Mariana saiu batendo os pés, pensando em uma safra de desaforos para nos responder e
eu segurei na mão da Kyo, sorridente. Bastava alguns passos para sairmos dali e começar a minha
guerra contra tudo que aquele rapaz representava. Mas ainda faltava um pequeno obstáculo: Mama
Mercedes e Brucutu. Ambos estavam nos esperando.
Brucutu, de braços cruzados, parecia maior que a própria porta. Não era possível
definir o que se passava em sua mente, o rosto impenetrável como uma esfinge, incapaz de
demonstrar o menor vestígio de emoção. Mama Mercedes, ao contrário, mostrava mais uma vez o
ser possessivo e passional que era. De roupão, seios alvos arfando sob a roupa, nos observava
com uma expressão de curiosidade e desconfiança. Fingindo ser uma mãe preocupada, pegou-me
pelo braço e me puxou para si.
Tinha de utilizar a minha dose de fingimento. Mama Mercedes era incapaz de lidar com
rebeldia. Se imaginasse o real motivo da minha saída, me trancaria no quarto e jogaria a chave
fora. Afinal, mesmo que Mariana negasse, eu ainda era o principal rendimento da Casa dos
Prazeres. Por isso, eu era prisioneira... E principal prenda do nefasto leilão que ocorria todas as
noites.
Eu também colaborara, como um cão servil que se abaixa a espera da coleira.
Aprisionada dentro daquelas paredes não sentia o sol ou via as pessoas caminhando pelas ruas,
muito menos o movimento dos carros. Sequer caminhara e sentira a areia sob os meus pés, o sal
do mar em meus lábios... Mas era a senhora do meu castelo.
Ali, mãos sujas não me tocavam, olhares esfomeados permaneciam à espreita da minha
passagem. Era rainha, deusa, adorada e mimada. Costureiras e modistas vinham me visitar,
fazendo as mais belas lingeries e penhoares, que desfilava pela casa durante o dia ou enquanto
cumprimentava aos clientes mais seletos, antes que o meu momento de desfilar pelo palco da Casa
chegasse.
O afetado perfumista de Mama, Louis, vinha com os mais deliciosos óleos e perfumes,
xampus para meus cabelos e seus cremes para a pele. Tudo o que eu pedia, era atendido em um
piscar de olhos... Uma criança menina. Uma prisioneira iludida.
Por isso, sabia como ela temia que seu principal investimento descobrisse o mundo e
nunca mais voltasse. O que Mama não imaginava era que eu estava apavorada. Iria ver com os
meus próprios olhos um universo que só vislumbrara através da tela monocromática da televisão
durante os últimos anos.
Enfrentaria o desconhecido de todas as formas. Por meio não só de um homem, mas de
uma cidade que poderia me engolir, pois se apenas um fio, uma pequena mecha que fosse,
escapasse daquele chapéu, não sabia o que poderia acontecer comigo.
Então, a abracei, sem dizer nada. Pensei em um momento naquela que havia considerado
como minha mãe, em uma infância que parecia ter passado há tanto tempo. Resgatei emoções há
muito perdidas para sustentar a farsa e a agarrei, como se nunca mais quisesse larga-la. Isso
pareceu aquietá-la, pois em poucos momentos ela me afastou de seus braços.
– Espero que não demorem. Não se esqueçam de que ambas têm de trabalhar hoje – seus
olhos se voltaram para Kyo – Espero que o seu cliente resolva o problema.
A japonesa assentiu e pegou em meus braços, levando-me para fora, em direção à vida.
– IV –
Será que conseguiria descrever para você a emoção que senti ao entrar pela primeira
vez em um táxi? O cheiro de couro e cigarro do motorista; o rádio ligado falando notícias; o povo
pelas ruas da Lapa nos olhando como se fôssemos celebridades; apontando para o carro que
rodava pelas ruas.
Gente... Pessoas dos mais diferentes tipos e estaturas; correndo apressadas pelas
calçadas; perdidas em seus próprios universos; indiferentes aos meus olhos desvirginados;
deslumbrando-se cada vez mais a nova curva do caminho. Voltei a ser criança com o calor do
banco de couro daquele Gordini preto, o aroma uma mistura de suor e lavanda, completamente
indiferente aos solavancos e freadas bruscas do trânsito carioca. Principalmente quando passamos
pela Lagoa Rodrigo de Freitas, o sol refletido nas águas, as pessoas sentadas em suas beiradas,
perdidas em seus momentos de reflexão, olhos fechados e o calor do dia banhando seus rostos.
Por um momento, queria ser um deles. Estar ali, sendo humana, recebendo a benção dos
céus, me preocupando com as coisas sutis, ora banais, com a qual as pessoas comuns perdem
horas. Encostei meu rosto na janela, entortando a aba do chapéu, maravilhada diante do que nunca
imaginara ver.
Acho que foi naquele momento que as minhas defesas começaram a se arrefecer.
Indiferente a Lucas e o que ele representava para mim, eu era um pássaro, que vivia confortável
em minha gaiola, trancafiada, respirando pausadamente, dona do meu próprio destino. E quando as
grades que me prendiam foram abertas e os ares da liberdade me convidaram a conhecer a
amplitude do mundo que me rodeava, fiquei empolgada e, ao mesmo tempo, perdida, dividida
entre o desejo e o medo de dar o primeiro passo.
O carro parou com um solavanco e mal esperei Kyo pagar ao motorista para descer
correndo, como uma garota peralta, extasiada diante daquela entrada, permitindo-me ver; passos
adiante, um mundo verde que nem sequer imaginara. Segurando o chapéu para que não voasse da
minha cabeça, corri sorridente, diante das plantas, roçando os dedos pelas folhas, troncos nodosos
e aspirando o perfume das flores.
Mal ouvia Kyo me chamar enquanto, ignorando as placas, tirei os sapatos e comecei a
caminhar na grama, sentindo a aspereza pinicar a sola dos pés. Com minha amiga me seguindo, fui
até o lago e contemplei os peixes, as aves e as tartarugas que descansavam em pedras, esticando-
se para receber o dia. Algumas crianças começaram a correr comigo, enquanto alguns adultos me
observavam, sorrindo.
Nada de desejo em seus olhos, ou imaginar quanto a minha noite valeria... Por um
momento, tinha a liberdade de ser desconhecida diante de mim.
– Pelo jeito já começou a aprender sobre o amor, princesa...
Estávamos debaixo das palmeiras imperiais quando, por fim, nos encontramos. O
amoroso e a vagabunda. O poeta e a concubina. Me despedi das crianças, arrumei o vestido e
peguei os sapatos que Kyo me oferecia, com um sorriso no rosto.
–Yaa[40], Kyo-San – cumprimentou-a Lucas, com um sorriso no rosto – Tenho um
motorista à sua espera para leva-la onde desejar.
–Arigatô, Lucas-San – sorriu para mim antes de continuar – O senhor estará muito bem
acompanhado. E, além de tudo, tenho flores para comprar. Nos encontramos no final da tarde,
tenshi.
– Obrigada, minha amiga! – Abracei-a. Tremia, sem saber o porquê.
– Fique calma e abrace o seu destino.
Contive a respiração ofegante enquanto ela se afastava. Precisava ser a mesma mulher
fria e controlada de sempre. Que absurdo era aquele de perder as minhas estruturas cada vez que
ele aparecia? Assim que consegui me recompor, me posicionei ao lado dele, pronta para começar
o primeiro round daquela batalha pela minha alma.
– Para onde vamos, meu caro?
– Caminhar, comer algo, conversar sobre nós, talvez nos conhecermos um pouco mais...
– Isso é o melhor que pode fazer para defender o amor que você tanto diz acreditar? Por
apenas uma tarde conversando correrá o risco de perder seu corpo ao calor e devassidão que irei
lhe impor – sorri, quando começamos a percorrer o corredor, cercado pelas gigantes palmeiras.
– Suas palavras podem soar com desdém, mas sinto o medo incutido nelas. Seria
porventura o medo de se revelar? Estaria por acaso descobrindo que o ato de se desnudar para
quem se ama é muito maior do que o que faz, noite após noite?
– E porque pensaria isso? Do que acha que tenho medo, menino sonhador? Palavras
tolas, juras vazias? Na hora do gozo, quantos homens você acha que dizem ‘Eu te amo’?
– Imagino que vários; mas a quantos já retribuiu?
– Eu não sou Vênus, disposta a amar a humanidade. Sou Atenas que, por uma noite,
destrói os inimigos que povoam o homem. Em mim reside o sexo que cura, deleita, esvazia a
cabeça – e porque não os escrotos – cheios. Seja de problemas, medos, dúvidas, receios... Quem
sabe a recusa das esposas malfadadas a rotina da casa e ao cansaço na cama. Quando lambo seus
mamilos, mordo suas nádegas descarnadas e coloco em minha boca seus sexos, apunhalo os
amores não correspondidos, as frustrações, as tentativas frustradas de sucesso. Sexo cura, o amor
adoece.
– Isso é o que você entende por amor?
– Sim – Para fugir do assunto, corri a frente dele até um belo banco que estava um
pouco à frente, perto de um corredor cheio de arcadas de concreto – Como sabia que eu estava
ali? E Kyo? Você se virou tão rapidamente na direção dela que foi como se a enxergasse. Ela é
sempre tão leve e silenciosa, que você foi a primeira pessoa que vi percebê-la com tamanha
facilidade.
Ele se aproximou sem pressa. Sentou-se ao meu lado e pegou as minhas mãos
gentilmente entre as dele. Eu parecia ter tomado um choque. Queria fugir, correr dali para a
segurança do meu quarto, mas, ao mesmo tempo, que o tempo parasse naquele instante, em um
gesto de intimidade mais simples de tudo que fizera. Um sutil toque capaz de destruir todas as
minhas defesas.
– Eu nasci cego, princesa. Para muitos, isso pode parecer uma tragédia, mas para mim
foi muito natural aceitar, pois não tinha como me embasar em outras situações. Sendo assim,
enquanto a maioria desperta e abre os olhos, espantados, diante daquilo que o mundo oferece,
diferenciado entre o belo e o horrendo, meus outros sentidos se ampliaram para me dar
significados equivalentes. O belo, para mim, é macio, suave, perfumado. Ele tem som, textura,
cheiro, vislumbres de cor e sombras de olhos que foram banhados desde seu nascimento por uma
escuridão eterna. Pelo menos era, até você aparecer.
– Como assim? – perguntei, me aproximando dele. Antes de responder, Lucas levou
minha mão até os seus lábios. Depois de beijá-las, passou-as pelo rosto, aspirando profundamente
a pele exposta do meu pulso.
– Cada pessoa carrega em seu aroma pedaços de história. Notas e fragrâncias
indeléveis, únicos, capazes de definir suas identidades. Quando Kyo está por perto, posso sentir a
força do oceano, cheiro de arroz e chuva molhando a terra, quem sabe flores de cerejeira com um
toque diferente, algo adocicado e ardido, como o suor exalado pelo corpo dos amantes. Tentando
simplificar, é como se fosse uma mistura de canela e especiarias, algo suave, mas extremamente
marcante... Um cheiro como o dela é capaz de fazer uma pessoa se perder, como uma flor
refrescante que, se aspirada em excesso, entorpece.
Aquiesci, encantada. Lucas, de inimigo declarado, ganhava novos nuances diante de
mim. Era algo completamente novo que se delineava para ser observado. O menino inocente
passara a ser uma alma velha, um sábio, algo mágico e raro em meio a tantos acontecimentos
fantásticos que já cercavam a minha vida.
Por mais que lutasse e tentasse fugir, uma parte de mim queria que ele nunca largasse
minhas mãos, que simplesmente me levasse embora, para uma nova vida, onde ser a desejada, a
Princesa da Lapa, não fosse mais importante. E, para destruir de vez as minhas forças, Lucas não
parou. Passou os dedos pelos meus braços, acariciou o meu pescoço, correu os dedos pelos meus
lábios, permitindo que eu sentisse um pouco do seu gosto de homem e promessas de prazeres
eternos.
Naquela hora, o mundo entrou em transe, arfou em silêncio à espera de suas palavras.
– Com você, princesa, é diferente. Estar ao seu lado é mais que sentir seu cheiro. É
percorrer caminhos mágicos, aromas que nunca senti na vida. Algo doce, suave, raro, baunilha
rompendo do favo, orvalho da manhã, mel, chocolate. Seu cheiro tem calor de afago, de bocas
prestes a se encontrarem, promessa de finais felizes. E tem mais... Ao seu lado, eu vejo.
Assustei-me com o seu comentário e rapidamente me afastei, deixando que a sua mão
tocasse o vazio. Que brincadeira mais tola era aquela? Me levantei, o coração palpitando, sem
saber lidar com tudo que povoava a minha cabeça.
Ao ver o seu sorriso puro e iluminado voltado em minha direção, ouvia os gritos de
Norma, sua cabeça nas mãos do Brucutu, o choque... Um barulho ritmado e crescente, que foi se
tornando cada vez mais ensurdecedor em minha mente.
– Não me venha com besteiras, Lucas – disse rispidamente. – Pois agora a prostituta
virou santa? Cria milagres em sua cabeça de vento a fim de amolecer meu coração, – me
aproximei de seu rosto, com lágrimas nos olhos, tentando reprimir meus soluços – esquecendo-se
que este é de gelo? Peguei a mão dele e coloquei entre meus seios – Tente ouvi-lo, Lucas,
consegue? Ou é surdo além de cego?!
Aquilo pareceu atingi-lo como uma bofetada. Vi a dor transparecer em suas feições por
um momento, mas logo ele se recuperou. Pegou a minha mão e me puxou em sua direção.
Sem conseguir resistir, caí sentada no banco. Senti seus dedos me apertarem, enquanto
ele mais uma vez lutava contra a minha resistência.
– Sim, eu vejo! E não são ideias absurdas de um louco, como você pensa com tanta
convicção. Quando estou ao seu lado, é o único momento em que a escuridão que cobre meus
olhos tremula, parece romper-se... Transforma-se em luz – Tentei me desvencilhar, mas não
consegui. – Como se a realidade a minha volta mudasse, princesa, pequenas faíscas iluminadas
tomam as minhas retinas, tomam voo, flutuam diante de mim. O amor toma forma, cria milagres à
minha volta. É por isso que me abri diante de você, que sei como você é especial.
Eu não conseguia mais me conter. Soluçava, com o peito rasgado, parecendo que o ar
esvaía de meu corpo. Esse era o amor que Kyo tanto admirava? Seria ele capaz de trazer somente
dor?
– Eu não sou especial como você deseja, Lucas. Sou a antítese do amor. Não possuo
alma. Dentro de mim residem a luxúria, os gemidos, a rendição do inimigo, o poder maculado
pelo sêmen. Eu me alimento da febre que arde a pele dos enfermos desse amor bobo e utópico que
você tanto anseia. Ingênuos como você, eu devoro no café da manhã... Acabo com a soberba,
deixando os homens mais poderosos desta cidade de joelhos. Fujo de quem deseja cuidar de mim.
– Aproximei-me dele e passei a língua sobre a sua orelha. – Gosto de ser quebrada, amassada,
deixo meus clientes implorando por me penetrarem. Sou profana, humana e desprezo os seus
conceitos sagrados e sentimentais.
Puxei o meu braço com força e cai na grama, sem ar. Ajeitei o meu chapéu na cabeça,
impulsivamente, com medo de que algo pudesse ter saído do lugar. Estávamos sozinhos naquela
área do Jardim Botânico. Nem mesmo os pássaros cantavam. Era como se toda a Natureza
desejasse testemunhar o nosso duelo.
–Você quer fazer amor... Por isso, repito: eu fodo, meu caro. Você quer beijos castos. Eu
quero que sua língua invada a minha boca e que você morda meus lábios. Você pede, eu ordeno.
Você deseja restaurar o meu coração, se for possível que eu tenha um. Eu quero violar o seu.
Acorde, meu menino... Entre nós não pode haver uma história.
Segundos se passaram. Momentos onde apenas as nossas respirações eram ouvidas.
Sorri, satisfeita, ignorando o coração que se apertava, dolorido. Eu havia vencido.
Mas a que preço?
– Está enganada, Princesa. Vejo em sua voz o tremor do amor brotar mesmo quando o
nega. Quer cobrir com a neve da indiferença o calor que habita o seu coração, mas é impossível.
Tudo que é fingido se dissolve diante dos sentimentos verdadeiros. Nega que sente algo por mim?
Até quando acha que pode fingir indiferença e tentar fazer que sua felicidade a abandone? Melhor
ainda, me diga apenas uma coisa, por que tem tanto medo de amar?
– Porque o amor mata! – gritei, por fim, libertando o monstro que me habitava e me
possuíra durante tanto tempo – Este sentimento feito para os tolos nos cega, machuca e assassina!
Faz-nos sentir heróis, invencíveis, mas basta um vento diferente, uma pequena mudança dos fatos
para que o destino nos abandone e nos percamos para sempre – Antes que ele tivesse tempo de
falar algo, eu continuei – Com Norma foi assim.... Eu era uma menina mais me lembro. O amor, a
paixão tomando força, contagiando todos que falavam com ela... Ela ia fugir, sabe? Ia viver um
destino lindo ao lado do moço que amava. Mas Mercedes descobriu...
Comecei a soluçar. Lucas procurou as minhas mãos novamente e as aninhou no colo. Me
ajoelhei diante dele, coração e alma em carne viva.
– Nós todas vimos a hora que Brucutu a matou, sem dó ou piedade. E o pobre moço
deve ter tido o mesmo fim... – Fitei o seu rosto, marcado pela dor. Ele lutava contra as lágrimas,
compartilhando uma dor que não lhe pertencia – É isso que deseja para nós, Lucas? Dor, mágoa e
sofrimento? Um corpo esquecido em um canto qualquer, onde só os vermes poderão saber a sua
história?
Ouvi-o murmurar – Oh, meu Deus! – antes de continuar: – Quem disse que isso é amor,
princesa? O que Norma sentia podia ser, mas os resultados catastróficos do que viu, vieram da
ganância, da inveja, do poder... Desse mesmo desejo de poder que você tanto almeja e acha que
irá fortalecê-la. Ele sim irá destruí-la – Determinado, ele se levantou – Venha comigo.
–V–
Levantei-me com dificuldade e o segui. Fomos caminhando em silêncio até uma bela
fonte um pouco mais adiante. Perto dela, crianças corriam sob o olhar atento das mães, casais de
namorados passeavam e, mais à frente, um casal de velhinhos estava em silêncio, admirando o
movimento.
– Fecha os olhos. Seja por um momento como eu. Aguce os sentidos e permita que seus
ouvidos sejam seu guia. O que ouve?
– As crianças. Elas riem, brincam e ficam juntas...
– Isso é amor, minha querida. É a vontade de estar junto, descobrindo o mundo, sem
precisar fingir ser alguém diferente. Rir, chorar, e mesmo quando o outro lhe magoar, saber a hora
de perdoar, abraça-lo e seguir em frente. É sentir saudade quando fica sem se ver, e gargalhar
quando reencontrar. Beijar sem maldade, dar as mãos, abraçar e não fazer da vida uma
brincadeira. Não importa se você tem oito anos ou oitenta... Quem ama se entrega sem refrear-se.
Suspirei e permiti-me mergulhar nos risos e gritaria das crianças. E sorri,
compartilhando da alegria deles brincando de pique em volta da fonte, murmurinho de água
misturado as risadas.
– O que mais ouve?
– A conversa das mulheres...
– E o que elas dizem?
– Repreendem seus filhos, mas os elogiam as outras mães. Uma está falando que não se
imagina sem o seu pequeno. A outra comenta que adora trazer os seus sobrinhos ali, pois eles têm
contato com outras crianças e se divertem...
– Mais alguém?
– Uma voz feminina, de fala hesitante – parei para escutá-la – Ela disse que nunca teve
dinheiro para muitos luxos, como as “madames”. Traz os filhos para brincar naquele lugar lindo,
longe da pobreza em que vive. Ali eles são iguais a todos, e têm perspectivas do futuro, daquilo
que podem alcançar...
– Viu como o amor nos envolve em todos os lados? Se precisarmos repreender aqueles
com que nos importamos, fazemos. E também os exaltamos aos quatro cantos do mundo. O
coração apaixonado permite que nós acompanhemos o outro e aprendamos com ele, não que
sejamos absorvidos, vivamos a vida do outro... Essa não nos pertence... Amar liberta, não
aprisiona. E a última mãe mostra o amor sem limites, que permite abraçarmos o mundo, longe
daquele no qual vivemos, muitas vezes rotineiro e massacrante. É ele que nos dá força, faz as
pessoas amadurecerem. E sonharem, pois para os amantes de alma não há limites.
Então isso era amor? Não só perda, mas ganho. Se devotar a alguém e aprender com
isso, compartilhando sonhos, medos e dúvidas, sem restrição. É gostar junto, não importa quanto
tempo dure, se a pessoa que estiver ao seu lado vai ganhar o mundo ou permanecer ali a vida
inteira... Abri os olhos, emocionada. Olhara tanto tempo para o lado errado, imersa em desejos
sombrios, que não me permitia mais sonhar. Aquilo que mais temia era a chave da verdadeira
liberdade, pensei comigo mesma. A fortaleza fria da solidão que construía ao meu redor começara
a dissolver.
– Obrigada! – disse, sorrindo, na direção dele.
– Por que?
– Eu não tinha ideia de que para me livrar da escuridão que me acometia, bastava que
eu abrisse os olhos para a realidade. Fiquei tanto tempo com medo de sentir...
– E não o tem mais?
– Claro que tenho. Estou apavorada. Você mostra em cada gesto seu que está apaixonado
por mim, um sentimento real e ao mesmo tempo tão platônico que me apavora... Esqueceu de quem
eu sou? De quem você é?
– Não, é impossível que eu me esqueça. Mas tenho fé de que encontraremos uma
maneira – Lucas me abraçou e, após uma pausa, me perguntou: –Tem mais alguém por aqui?
Olhei ao redor da fonte antes de afirmar:
– Sim. Um casal de velhinhos. Eles estão em silêncio, de mãos dadas, apreciando o
movimento. Não sei, eles são diferentes...
– Me explique melhor...
– É como se eles estivessem satisfeitos apenas com a companhia um do outro.
Lucas se moveu com calma, se colocando diante de mim. Procurou o meu rosto e
ergueu-o vagarosamente.
– Então agora você conhece o amor que desejo ter ao seu lado. Aquele que dura, se
completa em silêncios, se satisfaz. Não vivemos de grandes feitos, atos impensados ou noites de
orgia, como as que você vive. O amor é feito de pequenos momentos, toques, carícias, abraços.
Não precisamos de palavras, declarações apaixonadas ou arroubos gigantes. O maior sentimento é
perceptível naquelas horas de sossego, os momentos mais banais e simples, que fazem parte de
toda a nossa vida.
Comecei a fitá-lo, sabendo qual era o próximo passo, perdida entre o desejo e o receio
de fazê-lo. Lucas parecia sentir todas as minhas dúvidas e, em seus gestos gentis, queria dissipá-
las. Pegou o meu queixo e aproximou meus lábios dos seus...
Sei que você se lembra do sabor do primeiro beijo apaixonado, Jonas... Os lábios
hesitantes, sedentos e carentes, doidos para descobrir os recantos mais ocultos da boca do outro.
As mãos que automaticamente puxam o seu corpo em direção ao corpo do outro, enquanto a
intensidade do beijo aumenta, devora e consome qualquer resquício de razão, medo e sanidade. O
beijo, para mim, sempre será mais íntimo que o sexo. Afinal, fechamos os olhos para beijar, sem
reservas. Ao contrário do sexo, onde nos mantemos alertas e em posição o tempo todo...
Desculpa te encabular, Jonas. Mais uma vez.
Quando nossos lábios se afastaram, estava trêmula, sem fôlego, rendida. Abracei-o, sem
reservas, querendo que aquele momento durasse para sempre... Mas o tempo não para, como dizia
Cazuza.
Kyo estava de volta mais rápido do que eu queria. Era hora de retornarmos a nossa
prisão de cristal. Assim que viu o meu rosto rubro tomado pela emoção, de mãos dadas com
Lucas, sorriu.
– Sempre soube que ele era o dono do seu coração, tenshi.
Antes de me despedir, beijei-o mais uma vez. Com fome, sofreguidão, medo de que não
tivesse outra oportunidade. Ele pareceu sentir os mesmos anseios e medos, pois puxou o meu
corpo junto ao dele, enfiou as mãos e jogou fora o meu chapéu, que o vento levou para a fonte.
– Cuidado! – Kyo gritou, mas os cabelos se soltaram, rebeldes, vivos. Chamas vivas
que por um momento brilharam incandescentes, chamando a atenção de todos. Deixando
paralisadas as pessoas presentes, que olhavam encantados a Princesa da Lapa em todo o seu
resplendor de mulher apaixonada.
Ela me puxou, separando-me de Lucas. Alguns guardas se aproximaram, atraídos pelo
grito de Kyo. Assim que me viram, pararam como hipnotizados, a face revelando um desejo que
poderia ser perigoso. Não íamos esperar para ver o que poderia nos acontecer. Começamos a
correr.
– Ei, esperem um pouco. Deixem a gente conversar um pouquinho com vocês...
– O que está acontecendo? – ouvi Lucas perguntar ao longe.
Não tive tempo de responder. Kyo e eu éramos manchas coloridas em meio ao verde da
vegetação. Fios vermelhos e negros em meio ao verde luxuriante do jardim.
– Por aqui, tenshi – disse ela, me levanto a um banheiro feminino antes que nos
alcançassem. Me conduziu para dentro de um reservado e pediu, de forma firme – Segure os
cabelos no alto e espere que eu venha chama-la. Irei buscar sua seishin e já volto. Não o
deixaremos sozinho.
– VI –
Permaneci lá, por um tempo que pareceu infinito, tremendo de medo e ansiedade. Me
amaldiçoava interiormente por ter esquecido esse pequeno “detalhe” da minha vida. Como achava
que este amor recém-surgido vingaria diante do efeito dos meus cabelos sobre os homens? Iria
rejeitar os fios que por tanto tempo haviam me sustentado, me protegido, refletido o meu interior?
Qual seria o meu destino?
Até que ouvi passos entrarem no recinto. Eu queria me fundir a parede, sumir,
apavorada diante da possibilidade do que poderia me acontecer se fosse encontrada por outros
homens. Será que minhas palavras se voltariam contra mim e seria violada, despedaçada e
consumida até que nada de mim restasse?
Prendi a respiração enquanto os passos se aproximavam. Mãos foram em direção a
maçaneta. Tapei minha boca a fim de abafar os gritos.
– Princesa?
Aliviada, abri a porta e me joguei nos braços da minha seishin, minha alma, como Kyo
o chamava. Beijei o seu rosto, sua testa, seus lábios, surpresa por demonstrar tamanho afeto,
sentindo-me segura ao seu lado.
– O que aconteceu lá fora, princesa? – disse, ao ouvir-me ofegar.
Olhei e Kyo estava lá, observando-nos, tensa, enquanto fechava a porta, olhando para os
lados, o bendito chapéu preso em uma das mãos. Aquele dia era feito de verdades... Não
precisava fitar os olhos amendoados da minha amiga para ter ciência disso. Como sempre, ela
pareceu ler os meus turbulentos pensamentos e assentiu, incentivando-me a contar tudo, por mais
maluca que a minha história parecesse.
– Eu sei que pode parecer loucura, Lucas, mas... Quando você tirou o meu chapéu e
soltou os meus cabelos, foi que tudo começou...
– Como assim? Não estou entendendo, princesa.
Kyo interveio:
– Sei que mesmo antes de ir a Casa dos Prazeres, Lucas-San, o seu pai e os amigos dele
devem ter lhe falado sobre os encantamentos da Princesa da Lapa, sobre a beleza de seus
cabelos... – ela começou. Dentro da Casa dos Prazeres, o meu poder não era segredo. Dalila e
Sansão unidos em um único ser, reunindo em cada emaranhado de fios força e delicadeza, sedução
e voracidade, ora redentora, ora crueldade.
Lucas pareceu pensar por alguns instantes.
–Lembro que antes dele me levar até lá aquele dia, disse que eu “comeria” uma mulher
sem igual – vi Lucas enrubescer ao repetir o termo utilizado por seu pai. – Dizia que você parecia
um anjo, princesa... Mais que isso, um demônio capaz de levar qualquer homem à loucura, com
seus cabelos cor de fogo quase alcançando o chão... Dizia que você desfilava nua, com os cabelos
cobrindo teu corpo e delicadas flores claras brotando entre seus seios, empinados e opulentos,
que davam vontade de pegar... – Ele tremeu por um momento e parou de falar.
Lucas se sentia mal ao relembrar as frases utilizadas pelo seu pai.
– Desculpa, não consigo falar assim de você, princesa!
O abracei e terminei por revelar-me.
– O maior segredo da Princesa da Lapa, que só as habitantes da Casa dos Prazeres
sabem, é que a fonte de tanta paixão e mistério vem dos meus cabelos – Enfiei as mãos dele entre
os meus cachos que permaneciam desbotados desde a primeira vez que havíamos nos encontrado.
– Os homens reagem ao avistá-lo, enchem-se de desejo de me levar para suas camas e
demonstrarem toda a paixão por algo que só a imaginação criou. Em mim, eles veem refletido a
mulher sonhada, a virgem intocada, a devassa poderosa. Como o canto da sereia que atrai aos
homens, meus fios vermelhos os chamam, convida-os ao sexo, as carícias, ao gozo em meus
braços. Por isso, sou a mulher mais cobiçada da Lapa. Isso foi até você aparecer...
– Isso quer dizer que a minha deficiência anula sua influência sobre mim?
– Vocês estavam destinados a se encontrar, Lucas-San. É sua a missão libertar a tenshi
de seu cativeiro dourado.
– Assim que entrei no quarto dela, a escuridão dos meus olhos transformou-se em luz,
Kyo. Por um momento parei, estático, sem fôlego. Depois daquele instante, consigo saber onde ela
está, como se fosse um pedaço da minha alma. Ao tê-la por perto, fios brilhantes parecem
circular-me, desaparecendo com a escuridão, os medos e as dúvidas de que esta história de amor
seja a certa.
Parei extasiada. Não sabia o que falar, de qual maneira agir, como descrever o que
sentia.
– Irei buscar o seu motorista, Lucas-San, enquanto ela se arruma – disse Kyo,
quebrando o silêncio, deixando-nos a sós, um sorriso de mistério e cumplicidade em seus lábios.
Arrumei coragem para contar a minha versão da história.
– Acha que só a sua vida mudou depois daquele encontro, Lucas? Eu também me
modifiquei. Fiquei perdida, com medo, querendo fugir dessa emoção que não sabia definir. Amor,
ao meu ver, significava perda, morte e sacrifício. Não queria aquilo para mim. Ao me tocar aquela
noite, você começou a me libertar. Após você me ouvir alcançar os céus com o delicado toque da
sua língua sobre o meu sexo – peguei o rosto dele entre as mãos – a princesa foi destituída de seu
posto. E, para que sua presença nunca parasse de me assombrar os meus cabelos, antes vivas
chamas, perderam a força de sua cor. A maciez e calor que antes me protegiam e me cercavam
começaram a me abandonar, talvez fugindo pelo ar à sua procura.
Dei um passo para trás, afastando-me de Lucas. Ele permaneceu de olhos fechados,
enquanto eu lhe dava as costas. Encontrei o meu chapéu, deixado em um canto por Kyo. Peguei-o,
sem me importar se estava limpo, e o coloquei de forma desajeitada em cima da pia.
Diante do espelho torci os meus cabelos com força, como se tentasse punir a cada fio
pela traição, por me mudarem, por me enfraquecerem perdendo suas cores e me deixando sem
ação. Precisava prendê-los dentro do chapéu, como Kyo havia feito, para que eu pudesse sair
daqui. Pela primeira vez, eu não gostava deles... Odiava aquilo que eu era, um ser irreal que
ansiava por uma normalidade que nunca teria.
Tentava me manter focada naqueles gestos mecânicos, segurando a vontade de chorar
que me acometia. Sentindo minha insegurança, Lucas se aproximou, me abraçando por trás. Sua
boca alcançou o meu pescoço e beijou-o várias vezes, fazendo a minha pele se arrepiar...
Fechei os olhos e arfei quando as mãos dele subiram pela minha barriga e chegaram aos
meus seios, enquanto seus lábios alcançavam a minha orelha, dando pequenas mordiscadas. Como
desejava que ele abrisse o vestido e tocasse a minha pele nua, mas as mãos continuaram pelo seu
braço, fazendo-me soltar os cabelos, que com tanto empenho tentava prender.
– Acabou o sofrimento, princesa – sussurrou Lucas, entre os meus cabelos. – Você foi
apresentada ao amor e duvido que permaneça a mesma. Algo me diz que um dia você será apenas
a minha mulher, sem cargos ou títulos, a mente e o coração livre dessas dúvidas e medos que a
tomam. – Seus dedos enlaçavam meus cabelos enquanto ele mergulhava neles, os sentia, beijava
os fios ligeiramente desbotados.
– Isso não terá um final feliz, Lucas. O amor que você tanto anseia poderá cobrar um
preço alto demais.
– Estou disposto a correr os riscos, minha princesa. Não percebeu ainda que eu te amo e
meu coração rendeu-se aos seus desmandos?
Abri os olhos, pulsação acelerada com tão sincera declaração. Fitei-nos em frente ao
espelho, meu rosto rubro, tomado de emoção, junto ao dele, capturado pelo calor da declaração.
Vi o carinho com o qual acariciou os meus cabelos e começou a trançá-los, como se fizesse aquilo
todos os dias.
– Há coisas que a gente não esquece mesmo... – disse, divagando, enquanto continuava a
separar os fios e trançá-los. – Desde que eu era pequeno, o meu pai via a minha cegueira como
símbolo de inutilidade e desprezo. Quantas vezes eu o ouvi dizer que ele nunca veria o filho ser
independente, que eu sempre dependeria dos outros...
Me chamava de inútil, baixinho, enquanto minha mãe não estava por perto. Mas ela
sabia, sempre soube... Eu sentia os olhos dele sobre mim, com raiva daquilo que eu era. O
máximo que ela podia fazer, para que eu não ficasse triste ou me sentisse inferior, era me chamar
em seu quarto e pedir que eu trançasse os seus cabelos, como ela mesmo ensinou-me, com todo o
carinho e paciência.
Lembro que, no começo, demorava muito tempo para fazê-lo, mas logo adquiri a
prática, trançando fios entre conversas e canções. Ela sempre me dizia o quanto eu era forte,
valente e especial. Que não precisava ter força, agilidade, pois com a minha habilidade e força de
vontade eu iria enxergar mais longe do que todos os meus conhecidos. Ela me fez ver o quanto eu
era especial e poderia sê-lo para os outros. Como pretendo ser para você, pela vida inteira...
Relaxei como uma gata, confortada, ao receber os carinhos de seu dono. Entreabri os
olhos e vi em meu reflexo o rosto de uma mulher saciada. Mas algo no espelho me chamou a
atenção. Um pequeno detalhe que poderia passar desapercebido diante da nossa euforia. Com os
olhos cada vez mais arregalados, tentei controlar a respiração e tampei a boca para não gritar.
Pois, por mais que tentasse ocultar meus sentimentos, os meus traidores cabelos
insistiam em mostrar que algo em mim mudava... Em cada canto onde os lábios de Lucas
passaram, em entusiasmados beijos de amor, os fios, antes opacos, tornaram-se negros, de uma
escuridão mais intensa de que uma noite sem estrelas.
– VII –
–Tenshi, pode abrir a porta? – Kyo bateu discretamente, fazendo-me acordar do meu
estupor.
– Só um minuto... – Lucas terminou de trançar os meus cabelos que, por incrível que
pareça, obedeciam-no. Tentei permanecer indiferente a mecha negra que surgira e a prendi
habilmente dentro do chapéu. Assim que havia me recomposto, beijei Lucas em silêncio e abri a
porta. Kyo me avistou sorrindo e entrou rapidamente, enquanto o motorista esperava há alguns
passos atrás, do lado de fora.
– Está na hora de irmos, Lucas... Espero vê-lo em breve...
–Você ainda tem a sua parte da aposta para me mostrar, lembra? – disse ele, sorrindo.
Não pude deixar de acompanha-lo.
– Então, meu querido, prepare-se. Da próxima vez que nos encontrarmos, vou acabar
com você.
Foi assim que nos despedimos. Exteriormente, o que havia mudado podia ser ocultado.
Pelo menos por um tempo. Mas por dentro, todo meu ser estava uma bagunça, lutando contra uma
nova mulher que despertava, cheia de sonhos e medos...
Uma mulher de cabelos negros, secreta, que iria esconder dos outros – e de si mesma –
o que sentia, o maior tempo possível.
O motorista que nos levou até ali, apareceu para nos buscar. Kyo havia combinado com
ele de nos encontrar na porta do Jardim Botânico às 16 horas, para assim dar tempo de nos
arrumarmos antes dos trabalhos da noite. Relutante, ajudei-a a pegar as novas flores: delicadas
Plumérias brancas e cor de rosa; orquídeas com os mais intrincados desenhos e rosas negras,
cujas pétalas eram suaves como veludo.
Lucas pegou minhas mãos pela última vez e beijou-as, antes que entrássemos no carro.
No momento em que o veículo começou a se afastar de volta para a Lapa, olhei através do vidro
traseiro com certo ar de abandono, como um cão adestrado afastado de seu dono, vendo-o
diminuir à distância, o rosto à minha procura como se eu tivesse abandonado tudo e ficado ao seu
lado, um triste e solitário amante vivendo de sonhos.
– Descobriu o sentido do amor, tenshi? – Kyo me perguntou, olhando para o banco de
trás, onde eu me sentara, pelo espelho retrovisor. Viu-me pensativa, disposta a relembrar tudo que
havia passado no leito cheio de flores que aquele banco se transformara.
Assenti com a cabeça antes de murmurar.
–Sim, o conheci. E dialogar com o Amor fez-me deixar mais cheias de dúvidas do que
respostas. Ainda temo e respeito esse sentimento, enquanto nos confrontamos e ele tira o chão sob
os meus pés. Não sei como manter a calma, esperar, ou me entregar a outro com os meus olhos à
procura de Lucas. Já não sou mais a mesma, Kyo. A borboleta saiu do seu casulo, para se encantar
pelo brilho da chama e correr para o calor do seu abraço, mesmo que essa a queime
completamente.
– Fico feliz pelo ódio sair de sua alma, mesmo que no momento só a tristeza a preencha.
Isso irá passar, tenshi. O sofrer faz parte de amar. Se eu pudesse, não te levaria novamente para a
Casa dos Prazeres, mas sabe que é impossível – Ela esticou o braço para trás e fui em sua
direção, entrelaçando os meus dedos nos dela. – Somos mulheres, princesa. Fortes até mesmo
quando nos submetemos. Agora é a sua hora de espera-lo, deixar que ele venha atrás. A princesa
da Lapa provou o seu valor indo ao encontro do menino do Cosme Velho. É chegada a hora de ele
passar por esta provação....
– E o que farei enquanto isso?
– Seja a rainha daquela casa. Utilize de todos os seus truques e artimanhas para ganhar
tempo. A cada noite insone, sob os corpos suados de outros homens que não sejam o seu, veja
como instantes se escoam e a aproximam de seu objetivo. O show deve continuar e você, princesa,
deve ser a estrela mais brilhante daquele céu de luxo e perdição.
– Para isso teria de esconder o que sinto... Mas o duro é que nem eu mesma sei o que se
passa em mim... – Vi que Kyo continuava me fitando pelo retrovisor e tirei para fora do meu
chapéu um pedaço do meu cabelo, noite escorrida em fios.
Kyo empalideceu. Pensou por um momento, fitando a paisagem da janela, calada. A
poucos quarteirões da casa, voltou a falar comigo.
– Deixe que eu me resolvo com Mama Mercedes. Assim que chegar, vá para o seu
quarto, como se sentisse indisposta. Ela vai querer respostas, e eu as darei...
– Já fez demais por mim, Kyo...
– Nunca faria demais, tenshi. Estas são as alegrias e dores do ai suru[41]. Assim como
você, eu fico diariamente frente a frente com o amor, em um duelo que sempre perco, pois ele
sempre é mais sábio. Mas, independentemente do resultado, estarei protegendo-a, já que é a única
kazoku[42] que eu tenho.
Assenti, emocionada, com um frio no estômago enquanto nos aproximávamos da Casa
dos Prazeres. No momento em que o Gordini parou, fitei a fachada do palacete pela janela. Como
da outra vez em que saíra dali fugida, dessa vez eu também voltara diferente, mudada, mulher. Só
que em vez da luxúria e da sedução, iguarias que podia dosar e controlar, havia permitido ser
aprisionada por um homem de olhos oblíquos, cheios de névoa, cuja única arma eram os seus
beijos e palavras carinhosas de amor eterno.
Não tinha mais jeito. Eu estava perdida...
Entrei na casa silenciosamente, cabeça baixa, tentando passar indiferente ao
palacete que começava a despertar para a função. Por um momento, queria ser Kyo,
misturar-me ao silêncio e a indiferença quando quisesse, para que Mama Mercedes ou
os olhos inquisidores de Brucutu não me alcançassem...
Mas não era inocente. Quanto tempo conseguiria esconder aquela nova mudança sobre
mim? No máximo algumas horas.
O melhor era prosseguir com o teatro. Mostrar-se refém de uma enfermidade inexistente,
quando o meu único mal era sofrer do irremediável amor – como era estranha aquela palavra
balbuciada pelos meus lábios – e esperar que um dia tivesse alento aos meus ais que pareciam
infindos naquele instante. Assim que os comentários de que havíamos chegado ressoaram pela
casa, Mama Mercedes veio nos receber.
Fitou-me por um instante, como se pudesse devassar-me, visualizar todos os tormentos e
dores que vinham em minha alma. Pegou o meu rosto entre os dedos com firmeza, bem diferente da
forma com a qual Lucas me acariciara horas antes.
– Está tudo bem, R? O que o velho disse para vocês? – Seus olhos iam de mim para
Kyo, a procura de respostas. Pensei em mil e uma mentiras, mas Mama ainda me intimidava.
Tentava balbuciar algo, mas minha voz não parecia sair. Foi Kyo que intercedeu por nós.
– Ele não consegue explicar, okaasan[43]. Fez vários exames nos cabelos dela, mas
nunca viu as flores mudarem de tal forma o cabelo de uma pessoa. Também, nunca se viram
cabelos como os da tenshi. Trouxemos algumas flores diferentes para enfeitá-la, mas tudo
permanece um mistério.
– Não se preocupe, R. Iremos lavar os seus cabelos, perfumá-los, cuidar deles... Uma
hora eles voltam a cor antiga.
– Isso não vai ser possível, Mama... – consegui murmurar.
– Como assim? –ela me indagou, dando um passo para trás.
Respirei fundo, tirei o chapéu e soltei os cabelos. Pequenas estrias negras em meio aos
vermelhos tomaram conta do ambiente, chamando atenção dos olhares não só de Mama, mas das
meninas da Casa dos Prazeres. Ouvia o arfar de algumas e comentários nos mais diversos
idiomas. A única que não pareceu se abalar foi Mariana, que se aproximou, bamboleando os
quadris, e pegou um fio entre as mãos.
– Pois é, quem disse que praga de puta não pega? – disse, sorrindo. – Agora que acabou
o espetáculo, vou para o meu quarto me arrumar – comentou, saindo dali, com o desejo saciado
nos olhos.
Mama Mercedes estava sem palavras. Cambaleou para trás e foi amparada por Brucutu,
que mostrou-se, pela primeira vez, dono de uma gentileza incomparável com aquela mulher
aparentemente tão fria. Se ainda restasse em mim algo daquela inocência de outrora, poderia
pensar que ela se importava verdadeiramente comigo, olhos fechados à espera de um abraço
maternal. Que nunca viria.
–Você não pode perder o seu encanto, R. O que será da Casa dos Prazeres sem a
Princesa da Lapa?! – O foco do seu olhar voltou sobre mim. Pegou o meu braço com força e
começou a me puxar em direção ao meu quarto. – Você deve trabalhar, é isso. Mostrar qual é o
efeito que ainda exerce sobre os homens, orgulhar essa casa com as suas carnes. Sorrir, mesmo
que não queira. Encantar, seduzir, fazer os homens urrarem sobre aquilo que você tem entre as
pernas...
Eu tentava argumentar, me defender, mas ela não ouvia, perdida em seus pensamentos.
Meu braço doía, tentando escapar de suas garras, mas Mama permanecia impassível. Brucutu
vinha atrás, andando vagarosamente. Aparentemente, ele parecia tranquilo, porém eu sabia que se
tentasse algo contra sua patroa, sofreria graves consequências.
–Okaasan, a solte. Ela não fez nada – Kyo gritou e correu em nossa direção, pronta a
me defender a qualquer custo. Tentei dizer para ela que tudo acabaria bem, mesmo que estivesse
morrendo de medo daquela atitude irracional de Mama Mercedes, mas não tive tempo. Sem
demonstrar qualquer reação, Brucutu virou o seu braço com toda força, a mão aberta em direção à
japonesa. O impacto foi seco, ruidoso, capaz de tirar o meu fôlego por um momento.
Kyo caiu no chão, como uma folha levada pelo vento, amparada por Ninete e outras
meninas, os gritos misturados aos meus. Tentei me voltar, esticar a mão para alcançá-la, mas
Mama, impiedosa, pegou em meus cabelos e me carregou em direção ao quarto.
– Pare de se debater, garota – Mama disse, enquanto me jogava na cama. – Kyo com
certeza está bem. Já levou pancadas piores que aquela – sorriu, predadora. – Você tem de se
arrumar, ficar maravilhosa para essa noite. Quem sabe esses fios pretos acabem por realçar a sua
beleza, dar um certo ar de mistério... Quem sabe?
– Por um momento pensei que você se importava comigo – murmurei, me virando. –
Acho que todas nós, um dia, a olhamos como uma mãe. A admiramos, somos capazes de mover o
mundo para lhe dar o melhor... Mas você é ingrata, Mercedes. Dá-nos uma falsa ilusão de carinho,
liberdade e conforto inexistentes. Transforma suas meninas em cordeiros obedientes, aquelas que
declinam suas cabeças à espera do afago e encontram a força do machado, o seu egoísmo, um
senso deformado de poder.
Mama me fitava, séria, impassível. Brucutu não havia entrado. Encostado na parede,
braços cruzados sobre a porta, encarava aquelas que ficaram de fora, analisando quem tinha a
coragem de enfrenta-lo.
Foi neste instante que ela começou a gargalhar, incontida, deixando-me sem reação. O
volume das risadas aumentou gradativamente, até se transformar em algo diabólico, cruel,
desumano. Se retorcia, com as mãos na barriga, como se eu houvesse dito a maior piada da
humanidade. Fitei-a em choque, enquanto o riso foi morrendo aos poucos e, por fim, ela se
aproximou, poderosa e temida.
Minha coragem escoava pelos dedos, fazendo-me tremer, antevendo seu punho sobre
meu rosto, prestes a magoar minha pele. No último instante, Mama Mercedes parou, diante de
mim, sem tirar o sorriso do rosto.
– Mãe? Você me via como uma mãe? Ainda é uma tola, menina. Para mim você é carne,
pronta para ser vendida – Como uma cobra insidiosa, se aproximou, abaixando o tom de voz. –
Até que enfim mostraste suas garras, princesinha ordinária. Sorte sua que, por enquanto, você
ainda me vale muito... Mas não é diferente das outras. Carne negra, branca ou amarela, pouco
importa, são banquetes para os homens que adentram as portas desta casa. Prazeres para eles, dor
e desilusão para vocês, dinheiro para mim. Só isso e nada mais.
Levantou-se, ajeitou o vestido e dirigiu-se à porta. Antes que saísse, fitou-me pela
última vez e fez sua última recomendação. – Quero que esta noite, faça o seu melhor. Finja que
ama, dedica-te como se o mundo fosse acabar amanhã. Que estes fios de cabelo bastardos não
acabem com a sua fama.
A porta bateu e permaneci ali, mergulhada em pensamentos, lembranças do dia passado
e sonhos reprimidos. Sentimentos contrastantes a brigar pelo meu controle quando chegasse a hora
de receber o cliente daquela noite, na tentativa de impedir que meu corpo me traísse, repugnado a
um corpo que não fosse o de Lucas.
Saí do quarto só quando convocada, tarde da noite, e desfilei indiferente, insensível
marionete, despida de emoções. Olhava a todos os clientes com um desprezo ímpar, só
demonstrando reação certa vez, em determinado momento, ao deparar-me com Kyo, o rosto
inchado devido a pancada recoberto pelo pó de arroz. Olhamo-nos e assentimos, em
reconhecimento, sem palavras que pudessem nos definir, ambas vítimas de nossas convenções e
submissões.
Fingi sorrir ao final do meu leilão, levada até a porta por aquele que deu o melhor lance
pelo meu corpo. Fui na frente, falsos sorrisos brilhantes no rosto, flores emaranhadas nos cabelos
refletindo uma candura inexistente.
O cliente da noite assomou pela porta, logo atrás de mim: alto, cabelos grisalhos,
vestido com um terno preto de corte elegante. Não me perguntou nada, nem sequer se apresentou.
Enfiou a mão entre os meus cabelos e grudou-se à minha bunda.
Como o lobo prestes a devorar-me, me jogou na cama. Fechei os olhos apenas querendo
que aquilo acabasse logo. Desejava ardentemente que fosse Lucas ali, e que eu estivesse a ensiná-
lo os deliciosos prazeres compartilhados na alcova. Fechei os olhos enquanto ele abria as minhas
pernas de forma brusca, tomado pelo desejo. Pelo jeito, para alegria de Mama, a escuridão que
começava a me recobrir não inibiu o calor proporcionado pela magia dos meus cabelos.
Ele enfiou sem dificuldade o pequeno membro rijo dentro de mim, que me resumia
apenas a um corpo flácido, sem vontade de fingir, o rosto virado para não encará-lo. Com os olhos
fechados, tentando esquecer as palavras ferinas de Mama Mercedes e lembrando que ali eu era
apenas carne, minha mente divagava, voltando ao passado. Era como se estivesse em pé no Jardim
Botânico novamente, ouvindo os sorrisos das crianças na fonte, junto ao traquejar de suas mães
orgulhosas.
Se buscasse ainda mais fundo na memória, poderia aspirar o perfume das flores, sentir a
brisa fresca do lugar, ignorar o toque sutil do cliente da noite e buscar o toque macio das mãos de
Lucas na minha.
O homem que resfolegava em cima de mim parou um momento, tirando-me de meus
devaneios. Não sentia mais sua respiração de cerveja sobre a minha face, por isso abri os olhos.
E o vi encarar-me...
Seus olhos estavam arregalados, a boca contorcendo como se estivesse sendo
eletrocutado. Tentei me levantar, assustada com aquilo, mas minha cabeça começou a esquentar
repentinamente, cabelos em chamas.
Virei a cabeça para saber o que estava acontecendo e constatei, assustada, que os dedos
daquele homem estavam emaranhados em um punhado dos meus cabelos negros.
O que era aquilo? Segurei a mão dele, tentei forçá-lo a abri-la, mas em vão. Afastei-me
para ver melhor e, assustada, constatei que os fios negros pareciam vivos, mexendo-se sem que eu
os controlasse, enrodilhados nas mãos do homem. Pareciam aumentar de tamanho, como fios de
seda construindo um casulo sobrenatural.
Estava assustada demais para gritar. Fiquei incrédula, assim como você está agora, meu
querido escritor, diante do poder da magia que havia oculta em mim. Será que aqueles fios, que
até o momento serviam aos outros, haviam consentido em me ajudar? Minha cabeça pulsava, ao
ritmo deles.
Por um momento, o tempo parecia pausado em seu eixo, concentrando as energias do
universo para o próximo passo. Os sons e o calor que pareciam explodir em minha cabeça se
calaram e as transformações à minha volta começaram aos poucos. Olhei para o meu cliente e vi
os olhos dele mudando, pincelados de cinza, a íris azulando-se, tomadas por algo que não sabia
discernir.
Aos poucos, esse certo ar de estranhamento passou, dando lugar a um sorriso aberto,
amplo, como se o velho homem se transformasse diante de mim em alguém jovem, vivo. Foi só
então que, com hesitação, ele começou a falar.
— Um dia eu fui como você...
— Como assim? – sussurrei baixinho, tentando entender o que ele dizia.
— Apaixonado.
Estava surpresa diante de sua afirmação. Muda de espanto, fitava-o enquanto ele
começou a me sussurrar seus segredos de amor.
Como um adolescente, falou sobre uma antiga paixão pela vizinha. O primeiro e
inocente amor, aquele de mãos dadas, beijos fortuitos, juras em que todo o corpo se expressa em
concordância. O pedido de namoro, noivado, casamento, o gentil falsear de palavras na hora do
“sim”. O toque suave e a delicadeza da noite de núpcias e o esperado filho meses depois.
Mas grandes histórias não são fadadas a prazos curtos? Dores, sangramento e gritos.
Cheiro de morte no ar e a alegria de um nascimento virou a tristeza de dois falecimentos. A mãe e
o filho, as coisas que mais amou. A dor que amarga o coração, endurece, tira a humanidade.
Um desconhecido, apenas o cliente de mais uma noite que me mostrou através de sua
história a intensidade e a dor de amar. A ânsia de ter o outro ao seu lado e a tristeza de não
aproveitar mais.
Assim que terminou sua história, o ente encantado enxugou as lágrimas e deitou-se.
Dormiu, com um vislumbrar de saciedade na face, como se tivesse participado da mais almejada
das orgias. E, ao acordar, meia hora depois, agradeceu-me pela noite prazerosa, sem ter ideia de
que havia exposto sua alma para uma prostituta que começava a aprender o que sentia.
Durante a semana, todas as noites, um homem diferente se deitava sobre mim, seu corpo
nu junto ao meu e, em vez de me possuir, tocava-me os cabelos, aqueles negros em meio ao fulgor
rubro, negrume esse que cada vez mais se espalhava, para me mostrar o amor verdadeiro através
de seus relatos. Ora pungentes, ora leves, via histórias que ainda duravam, outras que o medo de
seguir adiante levava ao fracasso (e tristeza eterna).
Em meio às palavras, vi romances nascerem, perdurarem e, se não bem cuidados,
deixarem vazios imensos. Apesar de não ver Lucas, em cada testemunho de amor, parecia senti-lo
ao meu lado, uma presença quase palpável acelerando as batidas implacáveis dentro do peito.
Durante o dia, mal conseguia dormir, imersa em lembranças alheias mescladas a
saudade de um único encontro... Minha alma o desejava, clamava por ver Lucas novamente, em um
querer incessante.
O nome dele vagueava por meus lábios, transformava minha saliva, criando gosto de
néctar. Mesmo que estranho aos meus olhos, minha alma o reconheceu como parte minha. Aquele
que me desafiava, enlouquecia... Havia negado a minha carne para conquistar-me, transformar-me
em prenda, despojo de guerra.
A cada noite, mais mechas negras saíam entre meus vermelhos, ensandecendo-me,
fatigando-me. Lutava para não enlouquecer, tentando esconder de mim mesma aquilo que tanto me
consumia. Em pouco tempo, me vi ferida de amor, ardendo em intensa febre, murmurando no
silêncio do quarto por aquele que não aparecera.
Em poucos dias, a doença misteriosa da Princesa da Lapa já corria à boca miúda. Kyo
vinha para o meu quarto todos os dias, cada vez mais preocupada. Como uma boa e sábia amiga,
não tentava me acalentar e poupar-me de uma possível decepção.
– A paciência é a virtude dos vitoriosos, tenshi. Não ache que ficar chorando no quarto,
como uma criança egoísta, vai mudar o seu unmei, o que de fato lhe pertence.
Insistia que eu parasse de me fazer de vítima, apontando sobre as maledicências que
corriam pela Casa dos Prazeres. Diziam das febres constantes e meu olhar vago, distante, como se
desejasse algo que estivesse além deste mundo.
Esse ar etéreo, cabelos negros e vermelhos sob a pele pálida, com as bochechas rosadas
pelo estado febril, para somente atiçar os homens, que cada vez mais brigavam pela minha posse
diária, como cães diante da carniça.
– II –
Procure refrear a sua impaciência, Jonas... Até parece que acredita em histórias de
amor! Bom, antes que me indague, quero esclarecer que a Princesa da Lapa só reencontrou o seu
consorte depois que parou de procurá-lo entre os olhares que cruzavam com o seu.
Poderia dizer que ele entrou Casa dos Prazeres adentro, tomou-me entre os braços e me
levou dali, entre beijos e inocentes juras de amor eterno... Mas não sejamos sarcásticos, Jonas.
Sejamos reais. Apesar de minha história assemelhar-se às fábulas infantis, nada se resolve em um
simples passe de mágica. Por isso, desejo esclarecer-lhe que os nossos primeiros reencontros não
vieram por meio da carne, mas sim, das palavras.
A primeira vez que consegui ter notícias foi em uma daquelas manhãs de céu nublado e
tempo fresco, onde as horas não pareciam passar. O dia havia chegado e eu permanecera trancada,
entre as cobertas, pedindo que a noite logo chegasse para ocupar minha mente. Foi quando Kyo
entrou, sorrateiramente.
Levantei-me, estranhando, pois ela costumava vir bem mais tarde, pouco tempo antes da
Casa dos Prazeres abrir as suas portas. Aquele horário, todas as mulheres dali deveriam estar
adormecidas. Achava que apenas eu permanecia ali inquieta, insone.
– O que está fazendo aqui, Kyo? Você deveria estar dormindo em vez de andar pela casa
como se fosse uma assombração – dei-lhe as costas e enfiei o rosto no travesseiro, mostrando o
quanto não queria ser incomodada naquele dia.
– Seu mau humor ainda vai deixa-la doente, tenshi. Só vim dizer-lhe que saí cedo para
buscar mais flores para você, sob as ordens de Mama Mercedes... E encontrei com o seu
koibito[44]... – concluiu ela. Levantei imediatamente o rosto atenta. Ela sorria.
– Você viu o Lucas? Como assim? – indaguei, pulando na cama, um misto de gestos
adolescentes nunca expressados por mim antes. Em minha cabeça, as dúvidas e as esperanças se
duelavam por notícias. Pela expressão daquela que eu considerava parte da minha vida, sentia que
tudo parecia estar bem. Mas tinha receio de qual o preço a ser pago se por ventura tivesse um
relacionamento como aquele.
– O que posso lhe falar? Assim como as outras mulheres, não aguentava mais as suas
lamentações. – Fiquei vermelha diante desse comentário. – Por isso, fui atrás de seu kokoro[45]
novamente no Cosme Velho, a procura de notícias. – Antes que eu fizesse mais uma pergunta, Kyo
estendeu o braço e, com a mão espalmada, gesticulou para que eu me calasse – Ele também sente
sua falta, tenshi. Só não conseguiu vir vê-la ainda. Ou esqueceu-se o preço que deve ser pago pela
sua companhia?
Neguei com a cabeça. Comecei a sorrir como uma criança e Kyo me acompanhou,
contagiada pelos meus sentimentos. Aproximou-se com um pacote nas mãos. Hoje, revendo essa
cena, me lembro com saudades e amor daquela que sempre havia sido o meu anjo da guarda
dentro daquela Casa, testemunha de todos os momentos da minha vida, mesmo os mais ínfimos. Se
pudesse um dia voltar a vê-la...
Desculpe-me, Jonas. Preciso parar por um momento para tomar um copo de água.
Respirei fundo e tentei segurar as lágrimas, inebriada pelas lembranças. Kyo havia sido
a amiga mais fiel, a amante silenciosa, a consoladora. Seu caminhar era como uma dança, em meio
a sedas brilhantes de seu quimono. Os cabelos negros como azeviche, reluzentes, emoldurando a
pele imaculada como porcelana. As mãos que tocaram com delicadeza o meu rosto e cabelos,
cantando músicas em sua língua natal, a voz calma e sussurrada que acalentava o coração de quem
a ouvia.
Kyo tinha este dom: mais do que despertar a luxúria, era capaz de amansar a mais cruel
das feras, por meio de sua presença. Já vi os homens mais brutos entrarem em seu quarto
esbravejando e saírem leves, cordeiros servis apaixonados pela sua dona, adorando-a como o sol
que desponta no Oriente. Como tenho saudades daquela que acalmava meu coração... Será que
quando atravessasse a tênue linha que separa os vivos dos mortos, eu teria a honra de reencontrá-
la?
Queria por um momento vislumbrá-la, como faço com você, amado... Mas a alma de
Kyo, esteja onde estiver, nunca atendeu aos meus apelos. Depois de tudo que aconteceu, onde ela
estará?
Termino a minha água, enxugo as lágrimas que cismaram em cair com as mãos que
insistem em não se firmar e continuo a minha história.
Conseguiu adivinhar o que tinha naquele pacote, Jonas? Ao pegá-lo nas mãos e abri-lo
delicadamente, deparei-me com um lindo livro, com capa de pano vermelha. Era um exemplar de
Rapunzel, famoso conto dos Irmãos Grimm, história aquela tão parecida e, ao mesmo tempo tão
diferente da minha, capaz de encantar gerações de pessoas. Assim que abri a primeira página,
emocionada, vi as palavras escritas com uma caligrafia rebuscada, cheia de beleza e elegância.
“Este livro pertence à R”.
Abracei o livro e o cheirei, sentindo ali um resquício do seu perfume. Kyo sentou-se ao
meu lado e começou a explicar-me:
–Sua seishin não pode escrever, graças a falta de luz em seus olhos. Mas pagou a
alguém que desse forma aos seus anseios.
Ansiosa para saber mais, virei mais uma folha e deparei-me com uma perfumada carta,
uma gentil dedicatória dele para mim. Emocionada, absorvi lentamente as palavras ali escritas.
Abracei a carta e me entreguei as lágrimas, tentando trazer para mim os seus medos,
anseios e dores. Como gostaria de acariciar os seus cabelos e falar que o seu sentimento por mim
era correspondido...
Leva-lo para minha cama, amá-lo e depois acalentá-lo entre meus seios nus, sua
respiração leve arrepiando meus mamilos que ansiavam pelo seu toque.
Ao ler o seu relato, finalmente começava a entender a magia que nos unia. Enquanto eu
vislumbrava histórias de amor todas as noites, ele descobria no silêncio da casa adormecida os
prazeres do sexo. Lucas se abria enquanto eu me fechava, cabelos cada vez mais negros para
ocultar os sentimentos alheios – e os meus. Mesmo que as maiores distâncias nos separassem,
algo acima de nós, encoberto pelo inexplicável, estava conduzindo o destino para que ficássemos
juntos.
Não percebi o momento que Kyo me deixou. Dormi abraçada ao livro, sonhando pela
primeira vez com uma vida fora da Casa dos Prazeres.
Aquele foi o primeiro livro, mas não foi o último. Kyo pegara para si o encargo de ir
todas as semanas comprar flores para enfeitar os meus cabelos. Sempre que voltava, tinha um
livro novo a me ofertar e junto, uma carta com as mais lindas declarações de amor.
Kyo, para compensá-lo, ia até o Cosme Velho contar minhas saudades, medos e anseios,
expulsando de nossas vidas qualquer sombra que pudesse pairar sobre nossa história. Semanas se
passaram, onde só restava a mim alimentar o meu coração com o universo proporcionado pelos
livros presenteados, a mente livre sem necessidades, receios ou medo de seguir em frente.
Até que o novo ano chegou a Casa dos Prazeres. E com ele o momento em que Lucas e a
Princesa da Lapa voltaram a cruzar os olhares.
– III –
A chegada do final de ano era um acontecimento na Casa dos Prazeres. Antes que a noite
oficial de Réveillon acontecesse, os respeitados pais de família e poderosos do Rio de Janeiro
tinham a sua própria festa, regada a muito sexo e champanhe.
Além de nós, Mama Mercedes contratava as mais belas meninas, vindas das casas de
tolerância espalhadas por todo o estado, a fim de que satisfizessem os seus convidados enquanto a
noite se agitava. Seios nus e nádegas arrebitadas eram vistas entre as mesas, acompanhando as
gargalhadas dos homens que batiam nas ancas desavisadas. Mãos delicadas enfiavam-se dentro de
calças, preparando os clientes para o melhor da noite que ainda viria. Pois quando as doze
badaladas ressoavam por todo o ambiente, nós, as verdadeiras habitantes da casa mais mágica da
Lapa, saíamos dos quartos, adornadas pelos mais lindos trajes, prontas para levarmos quem
melhor pagasse para nossas alcovas.
Aquela era a noite. Através da porta fechada do meu quarto, ouvia a música animada
que tentava esconder os gemidos das meninas e a sacanagem proferida pelas bocas dos homens.
Eu, deitada na cama, de olhos fechados, tentava não pensar no que estava por vir. Jogada entre os
lençóis alvos, lábios vermelhos de tanto que os mordia durante os calores que assolavam-me
durante os dias claros, enquanto pensava nele, no maldito homem que me contava histórias de
amor por meio dos livros.
Eu oscilava entre o encantamento que me cercava sempre que seus presentes chegavam
e o medo de que talvez ele nunca mais voltasse. Mas quando os apelos da minha carne pela dele
seriam satisfeitos? Meus mamilos estavam enrijecidos, a pele arrepiada e as pernas roçavam umas
nas outras, clamando pelo toque daquele que nunca mais aparecera. Haviam passado três meses
do nosso último encontro, mas, para mim, parecia que havia caminhado solitária por três vidas.
Aproximava-se a hora do espetáculo começar. Os cabelos soltos, ondulados, ajeitados
estrategicamente sobre os seios. Em vez de flores, encaixei pérolas entre os fios mesclados. No
alto da cabeça, uma fina tiara, enfeitada com conchas peroladas. Nada de anéis, brincos ou outros
enfeites. Apenas uma maquiagem clara, para encobrir as minhas olheiras. A máscara prateada,
cheia de brocados, dava o toque final à minha figura mítica. Diante do espelho, sorri; vendo ali
refletida uma nova e sexy Vênus de Botticelli.
Ergui a cabeça quando o relógio ressoou as doze badaladas, ecoando pela casa. Saí do
meu quarto e deparei-me com Kyo, que estava deslumbrante em um quimono cereja todo
trabalhado com estamparias. Ninete, tal qual uma menina faceira, representava uma das ninfetas
do Sacre Coeur, um misto de inocência e pecado.
Marialva se revestia de divindade, saia de estampas tribais, contas sobre o rosto e os
cabelos presos em um coque no alto da cabeça, os seios empinados adornados por suas guias e
colares. Todas se fitando antes de descer, cercadas do mesmo respeito e admiração pela beleza
que portávamos naquela noite. Cúmplices de uma mesma sina, expostas como escravas dos
desejos alheios.
Só uma pessoa parecia deleitar-se com aquilo, caminhando altiva sobre seus saltos
finos, olhares de desprezo focados não apenas em mim, mas em todas as outras mulheres da casa.
Mariana havia se transformado no desejo fatal incutido nos homens. Para minha surpresa, ela
tinha cortado os cabelos, bem curtos, tornando-se quase um menino, com seus fios platinados
recobertos de laquê. Era quase uma devassa Marlene Dietrich, as voluptuosas curvas dos seios e
das ancas marcando o tecido fino de seu terno. Enquanto seu caminhar ressoava pelo corredor,
batia nas coxas o chicote que carregava em uma das mãos, acompanhando o ritmo dos passos.
Ela foi a primeira a chegar ao salão principal, seguida por todas nós. Enquanto Mariana
se enroscava em todos os homens que passava, eu me mantive distante, etérea, o sorriso congelado
nos lábios. Assim como as demais meninas, desfilei entre os presentes, a banda tocando uma
música propícia para uma noite de promessas românticas. Enquanto Ninete mandava beijos e Kyo
parecia flutuar, gesticulando com um leque de papel de arroz preto, Marialva transformava seu
corpo em dança, trazendo para o ambiente a força daqueles que vieram para nossa terra trancados
em navios negreiros.
Cada uma se posicionou em um canto do salão, de pé em suportes que lembravam
pedestais, objetos à exposição para seus compradores. Tínhamos de ficar ali, pausadas, em
suspenso, como estátuas de cera para avaliação do público. Os homens ali presentes não podiam
nos tocar, mas nos avaliar de longe para, por fim, escolherem qual seria a melhor opção para
investirem naquela noite.
Eu me convertera em uma estátua de sal, como a mulher de Ló que, olhando para trás,
encontrasse a minha humanidade que havia perdido em um dia de chuva. Por fora, poderia parecer
poderosa, cercada de majestade e indiferença, mas dentro de mim o caos imperava.
Despertava, através de cada história que eu gostaria de viver, todas as noites
pronunciadas por lábios desconhecidos, indiferentes. Um pássaro que se sentira até o momento em
segurança, mas ao abrir os olhos viu a imensidão do mundo além das grades. Bastou que alguém,
uma mão até então desconhecida, tocasse o seu coração. Eu estava em meu limite, tentando segurar
dentro do meu papel de Princesa da Lapa quem eu verdadeiramente era... Mas até quando?
Mal sabia eu que não era apenas minha vida que mudava, mas todo o mundo. Encerradas
dentro daquela casa, vivíamos em um universo à parte da realidade. Para nós, os dias eram iguais,
expostas diante de homens tristes e amargos, escondidos sob o poder de suas fardas e quepes.
Mas, 1964 se findava, cobrindo de luto e medo o verde amarelo da nação, deixando os céus azuis
escuros como chumbo.
Eu poderia lhe falar que sofri na pele o peso da Ditadura ou que fui levada para
conhecer as dores e gritos escondidos em seus porões, mas seria desrespeitosa com àqueles que
foram as verdadeiras vozes libertárias daquela época.
As meninas da Casa dos Prazeres eram as queridinhas dos oficiais, não se esqueça
disso. A alta cúpula militar sempre viveu dentro daquelas paredes, ali organizando seus planos,
fazendo seus acordos e arquitetando o futuro da nação antes do famoso golpe. Penso que a minha
trajetória já tem o toque essencial de drama, paixão e fantasia.
Não repare, Jonas. Velhas adoram divagar... Vamos voltar àquela noite, não é mesmo?
Qual a pergunta? O que tem de especial nessa noite de Ano Novo?
Lembro quando Mama Mercedes subiu ao palco, em um vestido longo branco e braços
recobertos de joias, ela brilhava, magnífica e cruel, acima de todos nós.
– Boa noite a todos os presentes! Espero que a Casa dos Prazeres proporcione para
vocês momentos únicos, mágicos e inesquecíveis. Através de cada uma daquelas portas, – disse
ela, apontando para o alto das escadas – esconde-se um mundo capaz de lhes proporcionar
prazeres requintados, como só as nossas meninas são. Beleza, encanto, delicadeza... Para os que
desejam as santas – olhou na minha direção – ou as putas, temos aquilo que cada um de vocês
precisa.
Os homens gargalharam e irromperam em palmas, interrompendo Mama Mercedes por
alguns instantes. Ela agradeceu, como uma atriz em cena, antes de continuar.
– Uma noite de festa como esta, em tão boa companhia, me enche de alegria. E quem
sabe uma súbita bondade... Finais de ano me deixam emotiva – murmurou, fazendo a plateia rir
mais uma vez. – Não sei, será que irei presentear a todo mundo com sexo gratuito? – Quepes
começaram a ser lançados para o alto. – Podem parar com a animação, meus queridos, eu não sou
Papai Noel. Nem ao menos estou de vermelho, como podem ver. Prontos para a última grande
noite do ano?
Mãos bateram nas mesas, ritmadas. Cadeiras chacoalhavam, fazendo alvoroço. Cada
vez mais me sentia como uma cristã no meio da arena, instantes antes de ser jogada aos leões.
Para me acalmar, comecei a trazer a minha memória cada um dos livros que Lucas havia me
mandado.
Dei asas à minha imaginação e divaguei sobre reinos mais fantásticos que aquele em
que vivia. Numa fração de segundos fui Beatriz, Dorotéa, Julieta, Pollyana, Emília e, porque não,
Rapunzel presa na torre, à espera que seu amado subisse pelas suas tranças.
Flutuei sobre mares nunca antes navegados, mergulhei com os golfinhos, vi piratas, reis
e dragões com suas chamas incandescentes. O tempo perdeu sentido, rasgou-se e permitiu que eu
construísse dentro da minha mente o lugar que sempre ansiei fugir, por toda a eternidade.
– ... A Princesa da Lapa! – abri os olhos assustada, tomada de meus devaneios. Por um
momento tinha me esquecido de onde estava, qual a minha função dentro daquela casa. Focalizei-
me em Mama Mercedes, que continuava a apresentar-me aos clientes. – Quem nunca ouviu falar
da mais bela mulher do Rio de Janeiro. Pele imaculada, cabelos suaves e longos capazes de
encantar e dobrar até os mais bravos homens. Dizem que até o tempo se curvou aos seus pés,
permitindo-lhe ser imortal. Venha, Princesa, para que eles possam te ver.
Desci sem dificuldade de onde estava exposta e segui até o centro do palco. Caminhei
pisando firme, descalça entre tantos sapatos negros, polidos com esmero. Andava sem fazer um
ruído, suave como Kyo havia me ensinado.
Parei, altiva como sempre, ao lado de Mama Mercedes, cabelos ainda se movimentando
pelo ritmo do caminhar, pedrarias faiscando em meio aos fios que chegavam quase a dobra suave
dos joelhos.
Me expus sem revelar, seios e pélvis cobertos por aqueles que me transformaram em
lenda.
– Quem nunca desejou conhecer o calor desta pele, a doçura e suavidade destes lábios?
Como será o seu rosto em toda amplitude? Seriam seus olhos o segredo do seu encanto, ou a forma
que ela geme sob os comandos de um macho? Esta noite, um de vocês poderá descobrir os
segredos que se escondem no Quarto da Princesa. Prontos? Que comece o leilão!
O primeiro lance veio de um homem logo a nossa frente, estendendo um punhado de
notas de cinco mil cruzeiros, me mandando beijos úmidos de whisky e sujos de tabaco. Logo em
seguida, outro ofereceu um lance maior, meu corpo chegando a valores que nunca havia
imaginado.
– Quatrocentos mil cruzeiros – gritou um velho, no fundo do salão.
Era um marechal reformado, conhecido entre os seus pares por sua vitalidade e
descomunal membro, se é que consegue entender-me, Jonas. Mas entre nós sabíamos a verdade –
aquele era apenas mais um entre os homens tristes que por ali passavam, lamentoso com o peso da
idade, que via em cada mulher o retrato de sua mãe há muito falecida.
Por isso, o máximo que poderia fazer era passar a noite inteira com os lábios flácidos
sobre o bico do meu seio, sugando-os, brincando com eles e falando como uma criança, vestido
apenas de botas, o pênis que tanto vangloriava murcho entre as pernas.
Assumo que fiquei curiosa por saber qual história ele teria para me contar. Para
sobreviver, havia me viciado nos segredos que aqueles homens brutais e frágeis podiam me
revelar. Como não conseguia viver as minhas próprias experiências, criava a minha felicidade em
cima de outras experiências, as proporcionadas pelos clientes... Ou pelos livros que Lucas me
enviava semanalmente.
– Acabaram as ofertas? Ninguém mais deseja ocupar a cama da Princesa da Lapa esta
noite? Dou-lhe uma, dou-lhe duas... – Dei um passo para trás para descer o palco em direção ao
meu cliente daquela noite quando uma voz conhecida abafou todos os sons, me fazendo arrepiar.
– Seiscentos mil cruzeiros – Lucas saiu em meio as sombras, um saco de papel nas
mãos. Caminhou até o palco, muito alinhado em um terno preto, a bengala aumentando o espaço
entre os homens, como Moisés abrindo o Mar Vermelho, disposto a encontrar o seu destino.
– Ela não vale tanto... – Um dos homens perto de nós murmurou.
Meu eterno amado parou a minha frente, estendeu as suas mãos e tocou os meus pés,
minha pulsação acelerando e a cor tomando conta do meu rosto.
– Para mim, vale – disse ele, jogando o saco que estava em suas mãos no palco. Maços
e maços de dinheiro caíram aos pés de Mama Mercedes, que olhou as notas, sorridente. Abaixou-
se e pegou-as, ávida.
– Leve-o para o seu quarto, Princesa.
Assenti e tentei me afastar, mas as mãos me Lucas me seguraram.
– Rendo-me diante de ti, gentil princesa. Faça de mim o seu servo esta noite – seus
lábios encontraram meus pés. Carinhosamente, ele beijou os meus dedos um a um.
Eu sorri, emocionada pelo carinho demonstrado. Sem conseguir mais esconder o que
sentia, os meus cabelos se tornaram completamente negros, fio, a fio, diante da Casa lotada. Mama
Mercedes arfou, sem saber como reagir. Vi na plateia as mais diferentes reações, emoções e
desejos estampados nas faces. Parecia que meu amor, desejo e luxúria, tanto tempo aprisionados
dentro de mim se libertavam, dispostos a abraçar o mundo.
Enquanto descia o palco e subia as escadas, de mãos dadas a Lucas, vi maravilhada a
Casa dos Prazeres fazer jus ao seu nome. Homens e mulheres arrancavam as suas roupas,
beijavam-se e faziam amor por todos os lugares, arrebatados pela paixão. Sem regras ou
distinções, até os músicos tocavam a canção do amor, corpos apoiados sobre as mesas e sofás,
enrodilhados pelo chão, sem ver regras sociais, cor ou sexo.
E Mama Mercedes? Ainda era o centro das atenções, no meio do palco, nua sob o corpo
grandioso de Brucutu. Peles alvas e negras se entrecruzando, mostrando uma ansiedade que nunca
imaginara antes. Fiquei ali por um momento, paralisada, diante daquele espetáculo de carne, até
que Lucas apertasse gentilmente as minhas mãos me trazendo para a realidade.
– Agora é a nossa vez de sermos felizes.
Entramos no quarto e fechei vagarosamente a porta, vendo aquele momento com um
significado novo. Quem adentrava aquele ambiente longe de ser meu era o único homem que eu
desejava de verdade.
Sentei-me na cama e fiquei à sua espera, de olhos fechados. Comecei a chorar de pura
alegria, força incontida desbravando o peito.
— Princesa... Ou chamo você apenas de R? Admirada Rapunzel que caçoa dos
apaixonados, quando venho ao seu encontro em vez de sorrisos, ouço o arfar dos soluços
contidos?
Perdida entre o medo de ser um devaneio e a vontade de ser real, minha respiração
parou, em um êxtase, à espera do segundo acorde de sua voz em meio aos gemidos e sussurros que
vinham através das frestas da porta. Escutei o arrastar de seus passos em minha direção e, por fim,
o peso dele ao meu lado na cama.
Suas mãos, ao contrário da incerteza esperada daqueles que não têm a visão,
souberam se aprofundar em meus cabelos com precisão, em busca do rosto rubro de amor. Foi só
neste instante, quando os olhos se abriram, que finalmente o vi. Ali, real, à minha frente.
Toda a presença que meus olhos procuraram durante dias, alimentando-se apenas de
lembranças. Arrancou a máscara em um gesto displicente e passou os dedos sobre o meu rosto,
correu-os pela minha boca e os suguei, insaciável, querendo sentir mais uma vez o seu gosto.
Mas não podia me render aos seus braços sem explicações. Levantei-me, corpo e alma
em carne viva, demonstrando minha mágoa, jogando-me em cima dele com os punhos fechados. Vi
a surpresa em seu rosto quando o esmurrei e o esparramei em minha cama.
— O que você fez comigo, seu maldito? Com simples palavras agrilhoou a fera que
havia em mim. Transformou-me em uma gata, em um animal no cio ansioso por suas carícias de
amor. Tocou-me como ninguém nessa vida havia feito e sumiu, me fazendo viver com as
lembranças do único dia que fui livre! – Arranquei seu paletó e rasguei sua camisa, tomada de
desejo e fúria. — Do que é feita esta armadilha que me colocou, onde todas as noites diferentes
homens vinham me contar histórias de amor, destruindo minha força, impondo sua presença sobre
mim mesmo que não quisesse?
Ele pegou os braços e me puxou junto a ele. Beijou-me com fome, pressa e desejo
misturados, sua língua macia descobrindo cada vestígio da minha boca, tateando em busca de
segredos, fazendo-me amolecer, perder o controle. Quando por fim largou os meus lábios,
mordiscando-os em um gesto de luxúria, sussurrou baixo lindas palavras de amor e saudade,
beijando meu pescoço, rosto, orelhas e colo.
Minha língua passava sobre seu peito por mim arranhado, mordiscando seus mamilos,
pequenos e rígidos. Queria marcá-lo, fazê-lo meu para sempre, puni-lo e elevá-lo aos céus. Ele se
virou sobre mim, de cuecas, roupas espalhadas ao nosso redor. Seu corpo subiu sobre o meu, o
pênis marcando o tecido. Puxei-o para junto de mim e cravei minhas unhas em suas nádegas
roliças e claras, carne rígida e tensa à minha espera.
— Você que me tornou cativo, princesa feiticeira. Imagina como foram as minhas noites,
desejoso de vir te ver e tendo que manter as aparências diante dos meus pais? Noites insones com
meu corpo cheio de tesão, pensando nas mais pervertidas ideias e sensações. Tenho dinheiro,
minha amada, mas não posso gerar desconfianças, declarar-te a minha preferida sem que soframos
represálias. – Sua língua correu sobre o meu pescoço, desceu sobre o meu colo e bebeu de meus
seios. – Acha que sou como qualquer destes hipócritas que enchem a Casa com o dinheiro do
povo e pensam que apenas roupas engomadas os fazem donos do país? Não posso prometer vir ao
seu encontro com regularidade, minha amada, mas todas as noites os meus pensamentos e desejos
serão seus. Portanto, façamos esta noite valer a pena... Já está pronta a se render ao meu amor?
— Sim – sussurrei. – E você, querendo se render ao meu sexo?
Passei a mão sobre sua cueca e a tirei da minha frente com destreza. Vi o corpo dele
inteiro diante de mim, músculos e pele arrepiados, pulsante e suado para oferecer prazer. Como se
visse o que de fato ocorrera naqueles dias, ele levantou-me por um instante e trouxe a minha boca
para a sua. Encaixou suas mãos nas mechas negras.
— Algo mudou em você.
—Depois daquele dia, me vi aprisionada de sentimentos que não podia mudar. E, para
piorar, todas as noites em que ia atender um dos clientes, um encanto parecia cobrir os semblantes
e, em vez de me reafirmarem que sexo é poder, narravam suas grandes histórias de amor, aquelas
vindas de seus incautos corações. Ensinando-me o que você desejava, acordando esse insensato
coração que deveria ficar adormecido.
— E acha que isto aconteceu somente com você? Leu minhas cartas, ouviu minhas
declarações agora há pouco? Enquanto suas noites eram insones, eu adormecia para que a sua
ausência tivesse menos horas. E quando sonhava, eu a via como se a deficiência dos meus
sentidos nunca houvesse existido. Vislumbrava seu corpo nu, debruçado sobre os meus braços,
contando histórias que não eram as minhas, mostrando coisas que nunca imaginei sentir. Com o
ciúme e o tesão a me corroerem as entranhas, mirava seu corpo pálido e nu arfando, pedindo para
ser tocado e, ao mesmo tempo, tendo a consciência de que outros atendiam ao seu clamor, naquele
mesmo instante. Tremia diante de suas pernas, um recanto secreto pronto para receber amantes
anônimos com a intimidade que só uma profissional poderia ter. Enlouquecia, me revirando,
pronto a trepar com você sem qualquer pudor ou reserva. Desejando e amando em meu mais
primal estado, querendo alcançar o silêncio conspurcado pelos gemidos e palavras grosseiras,
recoberto de suor, mordidas, secreções e cheiros que sua cama poderia me trazer.
Foi então que percebi que ambos sofremos naqueles dias, prisioneiros de um destino
que nos obrigava a ficar juntos, mesmo quando fisicamente era impossível. Lado a lado,
alcançaríamos o céu e o inferno e nada poderia nos separar. Éramos um do outro,
impreterivelmente, e assim como tudo na minha vida, aquela história seria mágica e intensa.
Para marcá-lo como meu, tomei o domínio da situação, virando-o na cama, descendo o
rosto entre suas coxas, beijando-as lentamente, ouvindo-o arfar. Peguei entre as minhas mãos seu
pênis ereto, sexo e sangue prontos a dar vida e sentido ao amor consumado, murmurando.
— Acabaram as dúvidas e esperas, meu amado. Pronto para os prazeres que eu posso
lhe proporcionar? – Indaguei, passando seu sexo sobre meu rosto e lábios.
Ele aquiesceu.
— O amor e o sexo são complementares, minha querida R. Enquanto um reúne nossas
almas, o outro encaixa nossos corpos. Quando reunidos, faz-nos alcançar os céus... – trocou suas
explicações por um gemido profundo quando o coloquei inteiro dentro da minha boca.
E me perdi no seu gosto de homem. Naquela noite, aprendi o que era fazer amor. No
quarto escuro, meus cabelos brilhavam, escuridão rodeada de estrelas como um céu limpo, cheio
de promessas.
– IV –
Está vermelho novamente, Jonas? Nunca imaginou uma senhora falar tão abertamente
sobre o sexo?
Não tenho vergonha de falar que naquela noite me abri para ele, minha vagina aninhando
seu pênis dentro de mim como se fôssemos um só. Por cima dele, me aninhei naquele corpo rígido
e musculoso e fiz amor, como Lucas sempre insistiu em falar, quase a noite toda.
No dia seguinte, ninguém se lembrava do acontecido. Ou melhor, fingiam não se lembrar
da orgia desenfreada que agitara a Casa dos Prazeres, rostos baixos e vermelhos, tomados por
lembranças. Ninguém via a mim e os meus cabelos negros com espanto.
Pareciam sim temer-me, como se tivesse revelado uma nova face minha que nunca
imaginaram. Eu era respeitada e temida por todos, até mesmo por Mama Mercedes. Sentia que
ninguém iria tentar atrapalhar-me de realizar as minhas vontades naquele lugar. Como pôde ver,
Jonas, alguns desejos se transformaram em realidade. Mas até que isso acontecesse, muitas
alegrias e dores nos rondaram... Vamos continuar a narrar esta trama fantástica sem mais
devaneios, por enquanto.
– V–
Afinal de contas, esta história mirabolante onde existem prostitutas saídas de contos de
fadas que tiram a virgindade de jovens moços, com cabelos que mudam de cor conforme sabe-se
lá o quê, só pode ser loucura. E para ficar ainda mais insana esta fábula, tenho de lhe contar ainda
sobre o anjo...
Sim, pode parecer loucura – como se os fatos expostos já não o parecessem – mas ainda
falta um personagem muito especial entrar nessa história. Uma criatura mágica, fantástica,
diferente, alguém que surgiu um dia na Casa dos Prazeres em circunstâncias misteriosas e
ofereceu-me coisas nunca antes imaginadas.
Assim que seu voo ressoou pelas sombras da casa, minha alma vibrou e finalmente eu
soube que estava completa. Mas, para que ela viesse, precisei me vestir de luto com a morte de
Kyo.
Os meses foram se acumulando entre o calor dos meus lençóis, mas eu pouco me
importava, achando que nada iria atingir-me. Cega de amor, não via os olhares cada vez mais
intensos de Mama Mercedes sobre o breu dos meus fios incautos. Nem sequer notava que
Mariana, sequiosa de inveja, ouvia por trás das portas do meu quarto as juras de amor trocadas
entre nós, intercaladas das mais lindas histórias narradas ao pé do ouvido.
O próprio Lucas passou a me trazer os livros, aninhado nas mãos ou escondidos em
meio ao paletó. Mundos de histórias, como Jorge Amado, Graciliano Ramos e Érico Veríssimo
deram origem aos primeiros exemplares da biblioteca onde você acordou há poucas horas... A
cada noite em que ia me visitar na Casa dos Prazeres, ele me trazia um exemplar novo, páginas
capazes de conter um universo inteiro, pronto a ser descoberto pelos meus olhos ansiosos,
apresentando-me vidas que nunca imaginaria conhecer.
Nossos momentos eram esparsos, mas felizes. Mal via os dias passarem, intoxicada de
amor. Hoje, eu vejo que havia me entregado de tal forma para Lucas que partilhava de todo seu
ser, inclusive de sua cegueira.
Pois, imersa em saciar o meu coração e corpo incansáveis, recusei-me a enxergar as
nuvens nebulosas que se aproximavam de minha pequena prisão enfeitada. Não vi a morte chegar,
sua sutil presença perto daqueles que amava antes que fosse tarde demais.
– II –
– III –
A cada passo que dava em direção ao meu quarto, a mente se recobria de dúvidas e
incertezas. Quando pensei que finalmente tudo iria se acertar, o destino colocou adiante uma porta
que não se abria, uma curva brusca que nos refreava e fazia pensar se havíamos pegado o caminho
certo.
A possibilidade de ver Kyo partir dava-me vontade de gritar, arrancar o coração do
peito e parti-lo em mil pedaços. Ela havia sido o meu último vestígio de segurança ali dentro,
alguém que me amara incondicionalmente, sem pedir nada de volta. Sem ela por ali, a amparar os
meus passos, o mundo seria pesado, ensurdecido pelos gritos e lamentos que não terei a chance de
expressar.
Lucas e ela eram o que me mantinham sã. Kyo era fidelidade e conhecimento, carinho e
cumplicidade, coisas que só mulheres podem compartilhar. Em nós reside o mistério, o segredo, o
gesto mudo, coisas onde palavras são desnecessárias.
Somos diferentes de homens e suas intempestividades. Enquanto vocês, juntos, são
barco e tempestade, domando forças, encontrando nesse duelo uma forma de cumplicidade, nós
somos areia e mar, céus e estrelas, calmaria que se complementa e vencemos pela força e beleza.
Por isso, me sentia inteira. Enquanto Kyo me recebia entre os braços e me acalentava,
dava-me forças para esperar por Lucas, que era força, amor intenso, tempestade. Me jogar em
seus braços era ser livre de alguma forma.
Liberdade... Um sonho distante que poderia ser real. Mas será que as palavras de Kyo
eram verdadeiras? Seria ela capaz de me abrir as portas dessa prisão?
Parte de mim, mesmo diante da possibilidade de perder Kyo, era egoísta. Queria sorrir
e gritar aos quatro ventos, diante da chance, mesmo que remota, de viver ao lado de Lucas sem
horas marcadas e declarações de amor hesitantes, com medo de que alguém estivesse nos
escutando do lado de fora do quarto.
Essa parte insensível, que clamava pelo corpo rijo do meu amado sobre mim e dentro
de mim, abafava o lamento por Kyo. Tentava destruir a dualidade do meu coração, mas assumo
que não saberia viver sem os dois. Pois só vi o quanto ela era importante quando a doença
misteriosa que a consumia ameaçava tirá-la de mim.
Seria eu incapaz de lidar com mais perdas?
No decorrer dos dias mais tristes, comecei a me despedir de Kyo, ao meu modo.
Chorava, desalentada, já que se chegasse a derradeira hora de perdê-la eu deveria estar forte.
Abafava a dor com uma almofada e relembrava de meus momentos ao lado dela, com todo seu
esplendor e suavidade.
Via diante dos meus olhos sua história, aquela que me foi sussurrada quando o meu
corpo convidativo se abria em chamas, querendo aprender os sutis segredos e odores do sexo.
Deixei que sua imagem fosse repassada pela minha memória até que, como um disco muito
ouvido, ela se desgastasse, arranhasse, perdesse o sentido.
Penso eu que quis matá-la dentro de mim antes que a perdesse de verdade. Assim o
sofrimento seria menor... E se fosse mesmo fugir dali, por mais que parecesse um gesto de
ingratidão, Kyo não poderia me acompanhar. Teria de viver por mim... E por ela.
Tinha de fazer algo para viver aquilo que eu acreditava ser o meu futuro. Iria trazer à
tona não mais a princesa da Lapa, mas a escrava do amor. Aquela que gostaria que, ao abrir a
porta do quarto, longe da cama, os olhares e beijos continuassem, sem fingimentos.
Estava cansada de me despedir dele ao pé da escada como se fosse mais um cliente e,
ao fechar a porta, contemplar com tristeza os lençóis vazios, marcados por nossos corpos.
Encontrar uma forma de ficarmos juntos de uma vez por todas. Era só o que me importaria agora.
– IV –
A verdade era que sempre tivemos destinados a ser um do outro. Era a única certeza
diante de mim. Quanto mais adversidades nós tínhamos, mais descobríamos o quanto nos
amávamos. Lucas não conseguia vir com frequência, suas visitas se limitavam a apenas um
encontro mensal... Apenas algumas horas para consumir a fome de toda a vida que se retorcia em
meu âmago.
— Meu pai está nos vigiando... – ele me disse uma noite, jogado na cama, o corpo
suado e convidativo perto do meu. — E isso pode não ser bom. Pelo pouco que consegui
descobrir, parece que uma das meninas daqui apareceu no escritório dele para falar sobre nossos
encontros.
— Como assim?
— Ele me interpelou ainda ontem, me dizendo que uma das rameiras daqui havia tido o
disparate de aparecer lá no escritório, com um assunto do interesse dele. Foi essa mesma mulher,
de identidade não revelada, que contou a ele que ando vindo demais à Casa dos Prazeres,
gastando o seu dinheiro com a mais cara prostituta da casa. Insistiu para que ele me vigiasse, pois
deveria ter ficado encantado com a mulher que arrancou a minha virgindade. Gritou furioso,
dizendo que deveria parar de vê-la, que não ousasse me apaixonar por uma mulher como você...
— Como eu? O que ele quis dizer com isso?
— Prefiro não dizer, minha princesa. Não é o que acredito.
— Diga logo de uma vez, Lucas. As palavras do seu pai não podem me atingir – respirei
fundo e completei — Ele disse que eu era uma puta?
Ele assentiu com a cabeça.
— Disse que não importava se você se vestisse com joias e vivesse em um grande
palacete; você não passava de uma puta que abria as pernas em troca de dinheiro. Mas eu não
acredito nisso. Eu te amo, minha Princesa da Lapa!
Me emocionei com o seu comentário e o beijei ternamente nos lábios.
— Você aprisionou a fera que existia em mim, meu amado. Sou sua dócil serva, aquela
que anseia e teme por você como alguém que passa anos trancafiado e se depara com a porta
aberta pela primeira vez. A cada toque, palavra e gesto seu, meu corpo treme, oscila, transforma-
se e exige mais. Sua ausência é morte, esquecimento. Me torno um corpo sem alma, deitada e
rendida, à espera de que o próximo encontro chegue. Seu pai diz a verdade, sou a prostituta, a
devassa que permanece com as pernas abertas para que muitos a marquem como sua, nem que seja
no decorrer de algumas horas. Mas, nenhum deles possui minha alma. Minha essência, como uma
caixa de Pandora, só se revela sob os seus lábios macios, que me tocam com fome. – beijei-o e
mantive o seu lábio inferior entre os meus. Senti o seu gosto antes de largá-lo. – Como queria eu
que vivêssemos longe destas paredes.
— Tenha paciência, arrumarei uma forma.
Eram esses momentos que, junto às palavras de Kyo, faziam meu peito arfar de
esperança, cansada de esperar por viver a felicidade em toda a sua plenitude. Por outro lado, a
parte racional do meu cerne, a controladora, me indagava se não seriam aqueles os devaneios de
uma moribunda, disposta a ver alegria em meus olhos antes de fechar os seus, em uma vontade um
tanto egoísta de levar o meu semblante feliz como última lembrança.
Mas iria deixar que os pensamentos sombrios fossem embora. Mandaria para algum
lugar recôndito da minha mente vozes de anjos, mortes de pessoas queridas e esperanças ainda
não concretizadas.
– II –
Quando as grandes mãos dele tocaram os meus cabelos, o seu corpo estremeceu. Por um
momento, pareceu-me que o temido militar ia desfalecer em cima de mim. Seu corpo passou do
ligeiro tremor a um convulsionar intenso, seus olhos se viraram e os dentes trincados pareciam
segurar um gemido de dor. Gemido este que corria por todo o meu corpo. Pois, pela primeira vez,
a magia também me atingia.
Meus cabelos gritavam... Sei que isso pode parecer confuso, mas é a melhor forma de
descrever o que acontecia naquele instante. Cada fio parecia vivo, pulsante e cheio de dor. Fios
com feridas abertas sangrando devido a uma emoção sinistra, invasora, ruim, que não condizia
com aquilo que eles estavam acostumados a sentir. Como eu havia dito anteriormente, a escuridão
me descobrira. Agora não tinha mais volta.
Nunca mais seria a mesma.
Minha cabeça esquentava, tomava forma, tornava-se memórias alheias, integrava-se ao
outro como se este fosse uma parte minha. Conseguia ver, alucinada pelos milhares de lamentos,
os fios darem espaço a uma escuridão fria, misteriosa. Entravam como agulhas pelos braços do
Marechal, que havia jogado a arma longe, como presas a procura do sangue de vítimas inocentes.
Preparavam-se para ouvir uma nova história, cheia de amor, claro, mas também de medo,
obsessão e morte.
R, a Princesa da Lapa, iria se transformar mais uma vez. Tirar a luxúria da sua vida para
dar espaço a algo nocivo... Iria conhecer o mal.
– III –
Porque ambos sabemos que as palavras, uma vez ditas, perdem o controle de seus
donos. Tomam forma, significado, transformam a pessoa à sua volta.
Até esse exato instante, mostrei a você uma história que pode julgar fantasiosa, lírica,
delírios de uma velha senil, inventando fatos que uma pessoa mais cética, ao ouvi-las, já teria me
dado às costas e ido embora, sem hesitar. Por isso, ao ver sua face, que tão maravilhada me fitou
até agora, refletindo os sentimentos que eu também senti, hesito em continuar... Pois sei que irei
vê-lo se fechar em confusão, medo, dor... Luto.
Saiba que o onírico não é feito só de luz. Dele pode vir o pesadelo, os monstros, a
sombra. Uma vez que a escuridão nos toca, se apodera de nosso cerne, rasgando, mordendo,
pedindo por sangue.
A derrocada, quando se inicia, nunca acontece em pequenos gestos. Ela nos leva ao
fundo, onde nunca imaginamos. Mas, no fim, pode ser boa. Já que, às vezes, se mudarmos o
ângulo, passaremos a ver tudo como nunca imaginamos. Brechas, saídas e esconderijos até então
desconhecidos definem-se diante dos nossos olhos.
Tem certeza de que deseja saber o resto da história, meu menino?
Jonas aquiesce, sem hesitar. Conforme narro as minhas venturas, vejo que a mente dele
divaga entre o ceticismo e a fé. Em seu papel de homem, machucado pelo amor e despido de
fantasias, vejo surgir cada vez mais frequente sua faceta escritor, tomada pela imaginação e
inspirada em universos que não consegue explicar. Contra todas as regras, brigando em sua
racionalidade, vejo algo novo surgir nele.
Quem sabe um lampejo que acredita piamente em cada uma das minhas palavras? Eu
mesma, ao pronunciá-las, duvido que tudo aquilo tenha acontecido, como se fosse tomada pela
loucura, me vendo disposta a ouvir histórias fantasiosas.
Pressentindo as nuvens tempestuosas que cobriam o meu pensamento, Lalinha entra com
uma bandeja. Desta vez, havia trazido salgados, bolos e tortas, em travessas fumegantes que
ocuparam um carrinho ao nosso lado.
Só então me dei conta de que não sabia há quanto tempo estávamos ali. Jonas olhou para
minha querida amiga, parte tão importante da minha história, agradecendo pelo gesto. Será que,
como eu, ele não vira o tempo passar?
Surpresa ao ver que o sol já começa a nos deixar, fico pensando se o tempo havia nos
deixado em paz, afastando-se para que eu pudesse contar essa história sem sono ou cansaço. Ou
quem sabe ele estaria ali, em um canto do escritório, também à espera, um ouvinte sequioso no
aguardo da próxima cena.
Sorrindo, chacoalhei a cabeça levemente para que parasse de divagar e agradeci a
Lalinha antes que ela fechasse a porta. Tinha de continuar... A trama estava chegando ao seu fim.
Não sei quanto tempo fiquei ali, esquecida, esperando que o silêncio chegasse à Casa
dos Prazeres. Cercada de lágrimas, medos e dores, via de todas as formas possíveis a minha
história de amor terminar sob os punhos do Marechal Rubem Pontes.
Sabia que ao descobrir a verdade sobre a origem de Lucas, sepultara todas as chances
de vê-lo novamente. Pelo menos, por enquanto me encontrava intocável dentro daquele recinto.
Teria que enxugar as lágrimas, mascarar o meu desespero e trabalhar em uma forma de
rever Lucas. Manter-me longe dele me mataria.
Na casa, embrulhada entre meus cabelos, chorei até dormir. Acordei horas depois, com
a casa em um silêncio inquieto, perturbador. Levantei-me rapidamente, em um primeiro momento
me sentindo perdida, sem saber onde estava. Fitei-me no espelho, assustada, sem saber o que
dizer a todos quando saísse pela porta daquele quarto.
Pois eu havia mudado. Disto não tinha dúvidas. Meu cabelo, que havia passado por
tantas cores e nuances, agora era de um negro opaco. Breu total, omitindo de todos um bando de
histórias inigualáveis, cercadas de amor, paixão, loucura e fúria. A pele parecia estar mais pálida,
sem marcas de expressão, olheiras ou sequer um hematoma após ser golpeada pelo pai de Lucas.
Espantada, me indagava que espécie de magia era aquela que me rodeava. Sentia-me
como uma fantástica filha de Sansão, cujos poderes incutidos em meus cabelos me davam recursos
inimagináveis para mudar o universo ao meu redor... Mas não uma resposta plausível para dar a
Mama Mercedes, seguida de seu tenebroso capataz. Meu futuro se revelava uma incógnita e, por
isso, não sabia qual o próximo passo a dar.
–II–
Daquela vez, fui derrotada antes mesmo de tentar me defender. Enquanto me fitava no
espelho, a porta se abriu em um estrondo. Mama Mercedes entrou, poderosa, feita de acusações e
fúria. Brucutu, seu demônio pessoal, a acompanhava.
— Você! Sua víbora traiçoeira! Achou que podia cuspir no prato em que comia e que eu
não ficaria sabendo? – Aproximou-se com rapidez e esbofeteou-me no rosto. Ela estava
transtornada. — Te transformei em uma princesa e colocou tudo a perder se apaixonando. E ainda
mais por um meio-homem! Um que não é capaz nem de apreciar a sua beleza, a melhor coisa que
tem! – Pegou uma mecha de meus cabelos em suas mãos, com asco. E, para meu espanto, eu não
tinha poder nenhum sobre ela.
Mercedes fechou as mãos sobre os meus cabelos e puxou com vontade. Forçou-me,
entre gemidos, a ajoelhar-me diante dela.
— Nunca cansarei de dizer que você continuaria a ter o mundo aos seus pés, mas perdeu
por um sentimento medíocre. – Fitei o seu rosto duro e impassível, entre lágrimas. A minha força
havia me deixado. — Seu choro não vai me comover. Você mudou, está exposto em cada fio de
cabelo seu. Como eu fui deixar acontecer? Mariana bem tentou me avisar de que eu havia
escolhido a mulher errada para ser a minha preferida. Que você iria me apunhalar pelas costas.
Foi ela que me mostrou a frequência com que o ceguinho vinha te ver. Eu me mantive indiferente.
Afinal, ele era filho de um dos mais proeminentes marechais do Exército Brasileiro. E pagava o
seu preço, não importava qual fosse. Até hoje...
Brucutu, de braços cruzados, encostado na porta, sorria. Era como se ansiasse por
colocar as mãos em mim e quebrar-me ao meio. Bastava uma simples palavra de Mama para que
eu encontrasse a morte, dentro da minha prisão de cristal.
— Estava trancada em meu escritório, fechando a receita da noite, quando o Marechal
veio falar comigo. E, acompanhado de Mariana, contou-me tudo. Como ela o alertou sobre os
encontros dos dois pombinhos. Das promessas de amor e fuga. Enfurecido, ele disse que viria
prendê-la nem que tivesse de destruir toda a Casa dos Prazeres. Você enlouqueceu ao desafiá-lo?
Queria acabar com tudo aquilo que fiz aqui – estendeu as mãos para os céus, como se neles
pudesse mostrar a glória de seu reinado – mostrando sua soberba? Amar deve a ter transformado
em uma tola, ou esquecida, já que o final de Norma nem passou pela sua cabeça.
Mama Mercedes se ajoelhou diante de mim. Juntas, como confidentes, testemunhas
unidas e portadoras do pecado de ser mulher em um mundo onde as regras dos homens sempre
iriam imperar.
Eu poderia ser como ela, fria, ardilosa e calculista. Mas seria capaz de abandonar os
sentimentos que faziam sentir-me viva? Era cada vez mais claro que não. Mesmo que morresse
naquele instante, não negaria aquilo que eu era.
Mama Mercedes colocou a mão em meus ombros. Sussurrou, quase encostando os
lábios nos meus.
— Não adianta esconder-se atrás da escuridão dos seus cabelos, princesinha – a última
palavra dita com um desprezo que nunca havia sentido antes. — Você vai pagar por seus atos,
cada um deles. Será um exemplo de que todos devem me respeitar... E me temer. Nesta casa, os
amores são proibidos, minha menina. Eles tiram as mulheres dos seus objetivos, nos enfraquecem.
Transformam santas em putas. Deixamos de ser objetos de desejo e passamos a ser comuns, tolas
e sem noção.
Ela ergueu a sua mão e a passou lentamente pelo meu rosto. Talvez com pena, quem sabe
um pouco de tristeza... Mas sem compaixão alguma pelo meu destino.
— Sabe o que mais me exaspera nessa situação? Saber que você era a menina desta
casa com mais potencial de me suceder. Só que em vez de usufruir dos prazeres que só o poder é
capaz de proporcionar, jogou tudo para o alto por algo que tem prazo de validade. Amores eternos
não existem, minha menina. Corações apaixonados como o seu eu devoro no meu café da manhã.
Levantou-se altiva, emanando em cada gesto o triunfo de quem tinha em sua boca o
sabor dos desejos realizados. Tão rapidamente quanto entrou no quarto, deu-me as costas em
direção à porta.
— Traga-a até o salão, Brucutu.
Com os olhos arregalados, tentei me afastar, mas foi em vão. Brucutu agarrou-me pelos
cabelos e começou a me arrastar pelo corredor, seguindo os passos de Mama Mercedes.
Tentava fugir, esperneava como uma criança fazendo birra, mas Brucutu se mantinha
impassível, arrastando-me pelos corredores da Casa dos Prazeres.
— Eu vivo para obedecê-la. Desde a primeira vez que conheci essas paredes, vivi para
servi-la. Foi a minha maneira de destruir a distância e ficar por perto... – Foram estas as poucas
palavras que Brucutu começou a sussurrar enquanto me puxava, sem demonstrar emoção nenhuma
em sua face enquanto me carregava pelos corredores, as mãos em meus inquietos fios.
Minhas pernas se debatiam, sem ter onde apoiar, amontoando tapeçarias, derrubando
vasos, quebrando o silêncio e fazendo coro junto aos meus gritos de dor. Tentava compreender o
significado das palavras de Brucutu enquanto me carregava, as mãos como tenazes aprisionando
meus cabelos negros, mas não conseguia. Dentro de mim, predominava o silêncio do vazio.
Os poucos segundos em que o anjo da morte de Mama Mercedes me carregou pela casa
pareceram uma eternidade. Era um ser em suspenso, mergulhado pela escuridão, preferindo
morrer a viver em um mundo onde fosse impedida de amar. Como uma heroína romântica,
aguentei bravamente quando Brucutu desceu comigo pela escada, o corpo batendo entre os degraus
de madeira, barulho ritmado como passos em meio aos gemidos das outras meninas que estavam
ali, reunidas para testemunhar a minha ruína.
Sem nenhuma delicadeza, Brucutu finalmente me pegou no colo para jogar-me no palco,
objeto em destaque daquela pantomina. Naquele instante, eu era o sacro profanado, a mártir
transformada em dejetos. O corpo machucado, sangrando em algumas partes, os cabelos uma
massa negra em polvorosa, desgovernados em volta de mim. Eles também estavam em silêncio,
como se aguardassem o desenrolar dos fatos.
Mama Mercedes parecia brilhar, dona da cena, vitoriosa diante da sua inimiga, sua
antítese, espelho inverso da sua alma. Naquela hora eu representava tudo aquilo que ela ansiara
um dia, cada coisa que recusara por poder estava diante de si personificado em meu corpo ferido,
mas vivo, pulsante, amado.
— Quem aqui não conhece a nossa princesinha? A Rapunzel transformada em carne,
fome e desejo... Uma das mais belas e requisitadas mulheres desta casa. Ela nos trouxe destaque
na sociedade carioca. Vocês nunca tiveram diante de si tantos homens ricos e poderosos. Não só
ela foi coberta de glamour e joias, mas todas vocês agora têm acompanhantes que as tratam como
rainhas.
Algumas meninas aquiesceram. Vi cada uma delas receosa de como aquilo iria terminar.
Marialva, apoiadas na parede, olhava para mim, contrastando com sua camisola branca. Ninete
tentava consolar Kyo, que parecia quase invisível, apesar de mostrar ligeira melhora. Ela se
encolhia em uma cadeira, coração em dor, querendo se levantar dali para me ajudar. Mariana,
trajando um vestido azul bem escuro, era a própria definição da maldade. Sorrindo, apoiada na
beirada do palco, cuspiu em mim antes de falar em alto e bom som, triunfante.
— Vivíamos de restos dessa aí, isso sim. A Princesa da Lapa, que balela é essa. É só
mais uma vagabunda, como a gente, que acha que pode ter o que quiser na vida. E se não fossem
esses cabelos, o que seria dela? Nem teria espaço nessa casa. – Aproximou-se de Mercedes e
toda manhosa, sugeriu — Para que a colocarmos no alto de uma torre? Por que deixá-la ser
Rapunzel se o lugar dela é no borralho?
Mama Mercedes voltou os olhos para Mariana, sorrindo. O lampejo de algo maligno
surgiu neles...
— É isso mesmo, Mariana! O que seria de R sem os seus cabelos? – Assim, ergueu a
sua voz para as meninas a fim de declarar a sua sentença. — Olhem bem para esta que foi
considerada a irmã de vocês. Aquela que foi despejada na minha porta há mais de vinte anos, uma
criança vista pelo mundo fora daqui como uma aberração... O que seria de você sem a minha casa,
os meus cuidados, R? Uma atração de mais algum circo, uma sereia engaiolada que ficaria
trancada em uma jaula, escovando os seus cabelos em uma infinita monotonia. Todas nós – e
apontou em direção a cada uma das meninas — demos nosso carinho, atenção, afeto... Um pouco
de nós foi entregue a você, sua ingrata. E como nos recompensou? Mostrando-se soberba e
egoísta. Querendo, como Norma, fugir com um homem em troca de uma liberdade inexistente. Na
verdade, foi pior que a italiana. Quis um homem de posição, poder, filho de um marechal
proeminente do exército. Foi gananciosa, pensou longe. E, em sua sede de ganância, nem hesitou
em trazer a ruína para cá.
— Como assim? – Marialva perguntou, dando um passo à frente, tremendo. — O que
tem a ver a infeliz se apaixonar com o destino do resto da casa? Se algo quisesse nos destruir, o
santo já teria me dito através dos búzios...
— Então seus santos lhe viraram as costas, Marialva. Preferiram se omitir a contar a
verdade. A única que percebeu os passos dessa vilã foi Mariana. A pobre tentou abrir os meus
olhos, avisou-me dos encontros, da regularidade com a qual o pobre moço, cego e enfeitiçado,
vinha visitá-la. Como não dei ouvidos, uma tarde ela tomou para si a responsabilidade de salvá-
las e foi falar com o próprio pai do rapaz, que veio até aqui descobrir a verdade. Essa noite, ele
esteve aqui... E essa aqui – disse, dando um tapa na minha cabeça — acabou por nos condenar.
Não só tentou seduzir o pai, como chantageá-lo....
— É mentira! – gritei. — Eu nunca trairia o homem que eu amo.
— Você faz isso todas as noites, R. – Mariana retrucou. — Ou será que virou santa e
ganha dinheiro de todos os homens rezando com as pernas bem trancadas? – Algumas meninas
riram com o comentário. Apenas Kyo me fitava, as lágrimas escorrendo das faces ressequidas,
querendo encontrar uma forma de me salvar.
O que eu poderia falar? Como provar que nenhum homem copulara comigo além de
Lucas?
— Acabe com as mentiras agora, princesa. – Mercedes continuou. — O Marechal veio
até o meu escritório, irado com sua atitude. Ele gritou comigo dentro da minha casa! Disse que
você o chantageou com mentiras absurdas... Falou que você tripudiou em cima dele, dizendo que
eu, Mama Mercedes, não abaixo a cabeça para o presidente ou o exército brasileiro! – Ouvi os
sussurros assombrados entre as meninas. — Agora, por sua insensatez, devo entregá-la para ele ou
todas nós pagaremos. Acha que eu, mãe de tantas filhas, deixarei que outras padeçam por sua
causa?
— Não, nunca! – disse Mariana.
Aos poucos, as outras meninas seguiram o coro, indignadas com a minha atitude. Via
raiva em seus olhos. Para elas, eu era a traidora. Fora impulsiva e jogara com a vida de todas
elas. Agora estavam unidas contra mim, como Mama Mercedes e Mariana queriam. Se eu
morresse, nenhuma delas me lamentaria.
Ou quase nenhuma...
–III–
— Ela é uma menina, Mercedes. Tem muito que aprender. Perdoe-a.... Deixe que viva,
por favor! Realize esse último pedido de quem em pouco tempo se juntará ao universo. Não se
nega o pedido dos moribundos, mãezinha. – Caminhou hesitante e, em um passo lento, subiu no
palco. Ajoelhou-se com dificuldade aos pés de Mama.
Todas ficaram em silêncio vendo as lágrimas caírem pela pálida face de Kyo. Seu rosto
procurou o meu, demonstrando um amor maior que meu coração poderia suportar. Por um
momento, deixei que o sentimento voltasse, independente do medo de perdê-la. Estiquei minha
mão para tocá-la, mas Mariana me impediu, me empurrando sem nenhuma delicadeza.
Mama Mercedes fez um gesto para Brucutu, que foi até ali e pegou Kyo no colo. Ela era
a única capaz de fazer aquele monstro transmitir algum gesto de delicadeza. A minha querida flor
de lótus parecia não ter peso, leve e translúcida sobre os braços gigantes daquele homem negro
capaz de nos encher de pavor com um simples olhar.
— Leve-a para o quarto. Ela já viu o suficiente... – pedi, e Mama aquiesceu,
concordando sem questionar.
Vi Kyo ser levada embora, seus braços esticados como se tentassem me alcançar, a boca
aberta em um protesto mudo, um lamento em vão para aquela que estava condenada antes mesmo
de ser julgada.
O silêncio reinou entre nós durante algum tempo. Todas, ao nosso modo, amávamos
Kyo. Seus braços acolhedores, as palavras sábias, os gestos leves como os de um pássaro, os
passos suaves que pareciam não tocar o chão. Ela sempre havia sido aquela que apaziguava
brigas, demonstrava afeto, trazia a concórdia em um ambiente tão competitivo. Kyo era o ponto de
sanidade entre todas... E agora, mais do que nunca, víamos que aquela que simbolizava a nossa
união estava desaparecendo.
— Até o amor de Kyo por nós você roubou, R. É uma erva daninha, perniciosa ao olhar
e deve ser destruída. É a parasita, a bela flor que se alimenta de nós, levando tudo o que nos faz
felizes... Peça para o Brucutu acabar com ela, Mama, assim como fez com a Norma anos atrás.
Pensei que, ao ouvir essa declaração de Mariana, as meninas fossem protestar, gritar,
exalar pelo menos um suspiro assombrado, um gesto que fosse em minha defesa. Mas, para meu
horror, todas aquiesceram em silêncio.
— Não posso fazer isso, Mariana... – antes que a loira pudesse protestar, Mama
continuou — Lembre-se que o Marechal a quer viva. E hoje mesmo ele virá buscá-la... Não que
uma rameira como ela seja tão importante assim, mas entendo a posição dele como pai, vai querer
cuidar de seu filho...
Mercedes começou a rir e meu peito se encheu de horror. Será que os meus maiores
medos estariam se concretizando? Será que aquele que eu amava corria perigo?
Como se confirmasse esse fato, Mama Mercedes falou para Brucutu.
— Traga-o aqui, meu anjo negro.
Diante dos meus gritos, Brucutu trouxe Lucas até o salão. Com os braços para trás,
tentava se debater dos punhos de granito do monstro de ébano, sem resultado. Era como um
fantoche sob o domínio do gigante; Davi contra Golias, Dom Quixote contra um inatingível moinho
de vento.
— Pois é, R. Esqueci-me de te falar, minha querida, que acordamos com os gritos do
seu querido ceguinho à nossa porta. Veio conferir pessoalmente se você tinha sobrevivido ao
paizinho dele....
Respirei fundo, tentando não demonstrar meu desespero. Não me importava qual seria o
meu fim, tinha de resguardá-lo daquilo tudo. Ambos fomos vítimas de nossos próprios corações,
mas ele tinha uma vida lá fora. Eu não... Ao vê-lo ali, subjugado, a razão finalmente me alcançou.
A quem queria enganar? Minha vida nunca seria um conto de fadas. Passei todos os
meus dias entre aquelas quatro paredes, me sentindo segura, portadora de um poder para poucos.
Quem garantiria que sobreviveria fora dali? Seria eu como aqueles homens que passam anos na
prisão e cometem um crime só para voltar ao único ambiente que conhecem?
Controlei-me antes de perguntar.
— Lucas, por que veio para cá?
— Minha princesa – seu rosto se levantou à minha procura.
— Se quiser falar com ela, aproveite e faça. O tempo é curto —Mama Mercedes
retrucou.
— O que vocês vão fazer com ela? Me soltem! – Lucas tentava se libertar das mãos de
Brucutu, mas era como ver Sansão tentar se libertar dos pilares do templo. Um homem derrotado à
espera de uma última demonstração de força.
— Nós, nada. O importante é o que o seu pai irá fazer com ela – Mariana comentou,
sorrindo.
— Meu pai... Eu tentei impedi-lo, minha princesa. Me trancou dentro de casa, não
permitindo que eu viesse ontem à noite. Revirei-me a noite toda, com medo das consequências dos
atos dele. Vi quando ele chegou em casa e, do telefone de seu escritório, avisou que iria levá-la
para o DOI com a finalidade de interrogatório e averiguações. Sou cego, mas não sou tolo. Sei que
meu pai é um dos monstros por trás das torturas do exército. E temo que isso vá piorar ainda
mais... Foi por isso que vim para cá, disposto a fazer qualquer coisa para te salvar.
— E acabou ficando preso junto... – Mariana comentou, em tom de chacota. — É por
causa desse menino que a princesa da Lapa se perdeu?
— Pois é. Viu como para ela valemos pouco?! – Mama Mercedes espezinhou ainda
mais, conseguindo manipular a cabeça das outras meninas.
— Nós devemos ter a mesma considerácion pour elle. Mama, livre-nos dessa cruel
sœur. [52]
— Como bem sabemos – continuou Mama Mercedes, a voz alta e clara acima de todos.
Seu timbre abafava as reclamações das meninas, o meu choro e os lamentos de Lucas tentando
soltar-se, procurando ouvir minha voz —, a força de nossa princesa é como a de Sansão,
inteiramente aprisionada em seus fios encantados. – Todas aquiesceram e a dona da Casa dos
Prazeres continuou: — E todas já tentaram domar esses fios. Penteá-los, cortá-los, não importa...
Apenas a portadora do dom tem poder sobre eles. Sendo assim, quer castigo maior do que fazê-la
se destruir? Sua vez, Brucutu.
Comecei a gritar com um novo fôlego quando Brucutu tirou das costas um facão e
colocou no pescoço de Lucas. Ele tentou se mexer, mas o acólito de Mama Mercedes não se
abalou. Ao contrário, apertou ainda mais a lâmina no pescoço do rapaz, fazendo um filete de
sangue escorrer em direção ao seu peito.
— Não o machuque, por favor! Eu faço o que vocês quiserem...
— Qualquer coisa, princesa?
— Qualquer coisa, Mama Mercedes. Irei obedecê-la.
Foi nesse instante que Mariana lhe entregou uma tesoura grande, de aço. O metal
refulgia em minha direção, mostrando o meu rosto recoberto de lágrimas.
— Então acabe com a magia em torno da sua figura. Caia para a sujeira que é o seu
lugar. Corte os seus cabelos.
O que fazer? Renegaria tudo aquilo que havia sido para salvar a vida de alguém que
amava? Amaldiçoaria os meus últimos instantes sendo uma reles humana, apenas para tentar
salvar aquele que me tornara feliz?
Era novamente Eva, tentada pelo falso conhecimento que a humanidade era capaz de nos
dar, achando que ao tomar uma decisão, fosse me tornar uma heroína, e não alguém movida por
egoísmo de não perder aquilo que tinha, nem que fosse por instantes.
–IV–
–V–
Gostaria de dizer que fiquei horas inconsciente, ou pelo menos até que a dor das
queimaduras se tornasse um pequeno latejar. Como se o fogo não tivesse cobrado o seu preço...
Mas como pôde ver, nem sempre a vida é feita apenas de momentos felizes.
Voltei a mim assim que fui colocada na minha cama, acordada pelo sofrimento em toda a
sua intensidade. Despojada de todas as coisas que me davam prazer, abri os olhos e mordi as
mãos para que o meu grito não trouxesse todos ao meu quarto novamente.
Respirei aceleradamente, segurando a vontade de gritar, pois sabia que se começasse
poderia nunca mais parar. Estava sozinha, abandonada pela primeira vez. Gostaria de abraçar a
escuridão novamente, mas até ela se recusava a me aceitar. Tinha em cima de mim o peso de
Atlas.
Precisava não só me ajudar, mas também libertar Lucas e Kyo daquela situação. Ver a
ambos de braços estendidos, tentando me ajudar, esquecidos de seus próprios desfechos, oprimia
meu coração. Tinha de buscar uma solução, mas não sabia onde.
Foi nesse instante que veio à minha mente minha última conversa com Kyo. Não aquela
de momentos atrás, quando a vi ser carregada pelos braços gigantes de Brucutu, mas aquela
sussurrada em sua alcova, antes que o mundo desmoronasse.
Recordava-me de suas mãos me segurando com força, os olhos suplicantes sobre mim e
a frase que ressoava em minha mente, pedindo para que eu ouvisse o canto do anjo... O que será
que ela tentava me dizer?
Encontraria nas suas palavras ressoadas às portas da morte algum fundo de verdade ou
mágica? Mas, infelizmente, não havia como descobrir, já que tinha renunciado a toda a mágica
existente em mim.
Levantei-me com dificuldade, tentando ignorar a dor que pulsava em meu rosto. Passei
diante do espelho e vi, por um momento, um emaranhado de ataduras cobrindo a minha face,
emoldurada por tufos esparsos de cabelos curtos. Havia sido despojada de tudo: do poder, da
beleza, da fantasia que me rodeava, do amor e, em breve, da minha vida.
Caminhei até a janela do meu quarto, com um fio de lágrimas escorrendo pelo olho
descoberto. Escancarei-a com vontade e deixei que um ar suave e frio entrasse em minha prisão
de rendas e brocados.
Suspirei e relaxei, rendida. Não havia nada que pudesse fazer ou perder. Finalmente
estava livre. Destituída de tudo, estava disposta pela primeira vez a encontrar de verdade o meu
eu perdido em meio a tantos papeis que criei durante a vida.
Pois é, meu querido, a beleza me colocava em ascensão. E me aprisionava.
Chacoalhei a cabeça, em uma vã tentativa de desanuviar a dor. Acabara o tempo para
divagações. Negaria ser derrotada, sacrificada tão perto da vitória. Tinha de encontrar uma
maneira de subjugar a brutalidade que desejava me curvar.
Ouça o canto do anjo...
A frase não me deixava. A solução viria dali, meus sentidos me diziam. Mas como?
Cerrei os olhos e busquei em mim a solução desse enigma. Em um fio de esperança de
que algo de mágico ainda restasse em mim, comecei a sussurrar, como em uma prece, para que a
voz do anjo se fizesse ouvir. Pedi ao inimaginável, aos mistérios insondáveis ao meu redor para
que a verdade se revelasse diante de mim.
Foi quando senti a minha cabeça vibrar. No princípio, pensei que eram delírios de
minha psique ferida, mas a sensação aumentou, como se em minha cabeça fios desconectados
voltassem a adquirir força.
Meus cabelos, esparsos na cabeça ferida, pulsavam levemente, como se tentassem me
consolar do crime que havia cometido.
— Obrigada – murmurei, entre lágrimas nos olhos. — Não posso deixar que tudo passe
impune, preciso encontrar uma forma para que o desalento em mim se transforme em força. Se
existe alguém a me escutar, peço-lhe: atenda ao meu pedido! Mostre-me a saída de tão cruel
situação.
A voz veio de uma vez, me jogando ao chão. Longe de ser alguém disposto a me contar
histórias ou mostrar saídas, era um canto divinal que parecia assomar tudo, tomar espaço,
preencher-me de forma que nunca pensei ser capaz.
Ecoavam à minha volta, em um cântico capaz de emocionar até o mais cruel dos
corações. Nota após nota, a voz sobrenatural preenchia o meu peito com tantas sensações que
poderia esquecer tudo, naquele instante, ouvindo-a. O júbilo ao ouvir a voz encantada do anjo de
Kyo poderia fazer o meu coração parar, esquecido de bater, destinado a contemplá-la.
O som tomava forma, se transformava em borboletas douradas, traçando caminhos,
voando ao meu redor, guiando-me para lugares desconhecidos. Sorrindo, perdida em
encantamento, eu me pus a segui-las.
Fui à janela, me pendurei na soleira e sem tentar demonstrar medo de me machucar ou
algo pior, andei vagarosamente pelo telhado, evitando as telhas mais velhas do beiral. Cheguei até
a ponta e segurando na calha, tentando não gemer diante da lata que cortava os meus dedos,
joguei-me no chão do gramado.
Calculando mal a queda, embalada pela voz materializada diante de mim, caí
desajeitadamente, de lado, batendo a lateral com força no chão. O estalo do braço que quebrei ao
cair fez-me dar o grito de um animal ferido, meu corpo já castigado por tantos abusos.
Ouvi passos dentro da casa e antes que fosse descoberta, me encostei no tanque dos
fundos, mordendo a mão boa para conter a dor, o gosto ferruginoso de sangue amargando a boca.
— Quem está aí? – ouvi a voz de Brucutu segundos depois que a porta se abriu.
Contive a respiração e apoiei o braço machucado na parede. Vi, assustada, que para
baixo do ombro, a pele começou a arroxear, em torno de uma ponta de osso que parecia prestes a
romper a pele.
Segurei os soluços enquanto ele desceu os pequenos degraus que o levavam ao quintal,
tentando enxergar alguma coisa diferente ali. Poucos minutos depois, ouvi Mercedes o chamando.
— Brucutu, venha cá. Leve o ceguinho para um dos quartos que temos sobrando aqui
embaixo e o tranque...
— Vou dar um jeito para esse rapaz ficar bem quietinho até que o pai dele chegue. Nem
que eu tenha de quebrar os seus dentes. – Brucutu comentou, voltando para dentro.
Ao ouvir aquilo, eu tinha ainda mais certeza de ser a única ali capaz de mudar a situação
daqueles com quem eu me importava. Fechei os olhos, tentei controlar a respiração e abri a mente,
dispondo-me a ouvir novamente o canto do anjo, pedindo que ele me mostrasse para onde seguir.
Os meus cabelos se ouriçaram instantaneamente e, em segundos, o chamado se fez ouvir.
O som novamente se condensou, pulsando, tomando forma, convertendo-se em luz. Em vez de
borboletas, crianças douradas surgiram. Sombras iluminadas capazes de afastar a escuridão.
Com mãos etéreas, me tocavam e se aconchegaram em mim, aquecendo a pele e
afastando a dor. Guiaram-me até o roseiral que havia na lateral do casarão, um amontoado de
espinhos e flores vermelhas que, para meu espanto, começaram também a se mover.
Galho a galho, os ramos espinhosos se retraíam, abrindo caminho, curvando-se diante
de mim como se eu estivesse em uma história mágica, contada por fadas ou duendes.
As rosas, antes abertas, se fechavam em um sono desconhecido, movendo-se
lentamente. Constatei, espantada, que o canto da parede que antes era ocupado pela vegetação
revelou uma porta de madeira. Para reafirmar o fato de que estava no caminho certo, os espíritos
etéreos que me acompanhavam por ela ultrapassaram, entre ecos de sorrisos infantis.
Sem hesitar, com o braço bom, abri a porta. A escuridão do desconhecido me fitava,
junto ao canto misterioso que me chamava, mais claro e límpido do que nunca. Seria a hora de
descobrir a verdade do mistério posto em minha mente por Kyo? Só havia uma forma de
descobrir.
Como uma guerreira ferida, mas ainda com vontade de lutar, atravessei o limiar entre o
meu mundo e o desconhecido.
Sinto que daqui a pouco, você começará a roer as unhas, Jonas, curioso sobre para onde
aquela porta misteriosa havia me levado. Afinal, no decorrer dessa história, fui tantos personagens
de contos de fadas que parece até inverossímil acreditar em minhas palavras.
Primeiro fui Rapunzel, aprisionada com meus fartos cabelos em uma torre de vidro.
Também posso dizer que fui uma Fera, aprisionando dentro de mim a beleza dos homens, à espera
de que um amor verdadeiro quebrasse o monstro recoberto de luxúria e soberba que me habitava.
Por fim, fui reduzida a Cinderela, cercada em meio a sujeira dos caluniadores e
invejosos. E agora, seria eu a Alice abrindo a pequena porta rumo ao País das Maravilhas? Ou
estaria finalmente saindo desse alucinado lugar, procurando uma arma para derrotar
definitivamente a Rainha de Copas?
Se você acha que os meus lampejos de memória até agora foram de uma mulher que está
perdendo a sanidade, prepare-se para o que está por vir.
Assim que dei o primeiro passo para dentro da escuridão, a porta bateu e o canto
cessou, repentinamente, me deixando em um impenetrável silêncio. Não sei quanto tempo fiquei
por ali, ouvindo apenas o ressoar da minha respiração pesada. A dor cobria todo o meu corpo,
querendo me dobrar, incentivando-me a parar, gritar a minha derrota, entregar-me ao silêncio
daquele local que parecia um túmulo.
Mas eu não iria desistir. Se o canto do anjo havia me levado até ali, existia um motivo.
Disposta a vencer os meus medos, comecei a caminhar em linha reta, sem saber para
onde iria. Não via um palmo diante do meu nariz, mas continuei a andar com o máximo de altivez
que meu corpo me permitia e com a fé de que nada me aconteceria.
Repentinamente, passos ecoavam ao meu lado, ecos de risadas assomavam meus
ouvidos na tentativa de me assustar, mas nada me fez parar. Concentrei-me na dor e nos meus
sentimentos por Lucas.
Via-o preso entre os braços de Brucutu, torturado sob as mais diferentes formas, o seu
sangue pingando no chão de um quarto vazio. A vontade de impedir que isso acontecesse me
impulsionava a seguir em frente, quebrada, ferida, mas ainda com vontade de vencer.
Não sei quantos passos eu dei até que uma mão fria e pálida surgiu repentinamente à
minha frente. Senti a pele fria como gelo me queimar e, antes que me mostrasse assustada, o ser
que mal conseguia distinguir na escuridão pegou o meu braço quebrado e torceu, colocando o osso
no lugar com um estalo.
Foi nesse momento que urrei. Toda a dor se esvaindo de mim em um único e primal
grito, traduzindo naquele instante cada pancada que havia sentido durante o dia.
— Pode gritar à vontade... Aqui ninguém vai te escutar... – uma voz rouca se fez ouvir.
Gritei até que a minha voz sumisse, se tornasse apenas um fio de som, um gemido fraco.
Aos poucos, a minha sanidade foi voltando e, ao levantar o rosto, constatei que não estava mais na
escuridão.
Era uma sala redonda, cheia de grandes velas acesas pelo chão feito de pedras gastas.
Não havia janelas, mas correntes espalhadas pelas paredes, como se estivéssemos em um antigo
calabouço de castelo.
Utilizo o plural aqui porque não estava sozinha. Diante de mim estava a criatura mais
bela e tenebrosa que havia visto. À primeira vista, poderia parecer uma mulher como todas as
outras, se não fosse por seus cabelos brancos, translúcidos, como se uma tempestade de neve
tivesse se moldado em suaves fios.
Sua pele era lisa, sem marcas, como se idade, tempo e morte fossem fatores que ela
desconhecesse completamente. Seu vestido negro estava em frangalhos, mas dava para perceber
que um dia havia sido magnífico, recoberto de pedrarias.
Ela me fitava e sorria, com seus olhos vermelhos, parecidos com duas pedras de sangue.
— Eu estava aguardando-a – disse, mostrando os dentes perolados. — Seja bem-vinda
ao coração da Casa dos Prazeres... E à minha prisão. – declarou, por fim, antes de empinar o
corpo e abrir um par de asas negras como a noite.
Caí no chão, abismada.
Pela primeira vez, estava diante de um anjo.
Eu poderia ter saído correndo dali, fugido de toda aquela aparente insanidade, mas
não conseguia. Diante da cadeira, mãos febris escrevendo no papel repleto de anotações,
tornei-me um dos personagens fantasiosos daquela que se intitulava a Princesa da Lapa.
Era o pirata amarrado no mastro, tentando manter-se imune ao canto da sereia;
Sansão sem cabelos deposto aos pés da ardilosa Dalila. Por mais que tentasse não acreditar em
seus devaneios fantasiosos, via em seus olhos a mais rara lucidez, a estabilidade daqueles que
creem em algo maior do que eles.
Deixar que as palavras dela preenchessem o escritório, se tornassem vida e
entrassem pelos meus ouvidos, alteravam os meus sentidos, colocava o meu ceticismo,
fortalecedor e recém-adquirido, em xeque.
Afinal, se eu em algum momento cedesse àquela história tão fantástica, em pouco
tempo acreditaria que o mundo dos livros e o da realidade estavam mais interligados do que
imaginava. Ou seja, se existia a fantasia de uma mulher e seus poderes extraordinários, o que
impediria de existir o amor, a busca incessante por ele ou sequer a chance de recomeçarmos?
Crença e fé caminham juntas. Ambas podem ser armas bem perigosas para o homem.
Ferramentas capazes de fazê-los reconstruir os seus sonhos. Diante dela, com a respiração
acelerada e mãos doendo, sem noção de quanto tempo havia decorrido desde que havíamos
começado a conversa, estava extasiado e com medo.
Aquela narrativa estava abrindo diques há muito fechados dentro de meu ser. Sorri,
chorei, me excitei, permiti-me voltar a ser uma criança diante do inimaginável e fechei os olhos
diante da crueldade de Brucutu.
Testemunhar o amor entre ela e Lucas, muitas vezes compartilhado à distância,
através de histórias alheias, abriu uma pequena brecha na clausura na qual tão disposto estava
a trancafiar meu coração. Comparando a minha história a dela vejo o quanto o meu romance
com Luíza havia sido efêmero, monótono, onde eu vivia de planos que não sabia se eram dela. R
e Lucas, por meio dos olhos do sobrenatural, desvendaram em poucos dias a alma um do outro
como eu nunca fora capaz.
No momento em que ouvi sobre a Princesa despojada de tudo, inclusive de sua beleza,
fiquei espantado quando ela me disse que havia se libertado. Mas, poucos segundos depois,
analisando a trajetória dela – se real for – com a minha, passei a compreendê-la.
Ficar livre de promessas, medos, anseios e planos é libertador. Não ter planos
impossibilita de chorarmos por algo que perdemos. Ou coisas que na verdade nunca tivemos,
como é o meu caso. Já que eu vivia em um mundo maravilhoso, mas só por mim construído.
Havia colocado Luiza ali, ao meu lado, forçando-a a seguir os meus planos. Sem
saber se aquela era a direção que ela desejava tomar.
Achava, até poucas horas, que o amadurecimento humano, ao contrário das frutas,
que se tornam coloridas e doces, é se tornar cético, seco, amargo, encrudescido. Mas me
enganei: só amadurece aquele que anda com as próprias pernas, a árvore que é capaz não só
de oferecer ácidos frutos, mas também belas flores.
Olhei para ela mais uma vez. Sorri e pedi para ela terminar de me contar a sua
história.
Você imaginou algum dia se deparar com algo sobrenatural, Jonas?
Com o mesmo espanto e assombro que vejo você me fitar, meu jovem, eu permaneci
naquela sala secreta, caída diante daquela criatura magnífica, capaz de ostentar um poder divino.
A pele branca imaculada parecia neve refletida em meio à escuridão que, junto com os cabelos,
contrastavam com o vestido farfalhante em seu corpo, feito de um tecido que parecia acompanhar
o movimento majestoso das penas negras de suas asas.
A criatura me fitou com seus pequenos rubis, capazes de trazer à tona nossos segredos
mais ocultos. Ela me sorriu, e seus lábios também vermelhos refulgiam, apetitosos, prontos para
serem tocados. Mas algo em mim dizia que se eu provasse daqueles beijos, a morte seria o menor
dos meus tormentos.
– Como você sabia que eu viria? – falei, tentando esconder o pânico que parecia
sufocar a minha garganta.
– Eu sempre soube, pequena princesa. Afinal, quem acha que protege cada um dos seus
passos nesse antro que nos cerca? – declarou, esticando suas mãos pálidas, mostrando as paredes
ao nosso redor, os dedos longos parecidos com os de uma boneca de porcelana. – Conheço você
desde antes da sua chegada... Sou a única aqui que sabe do seu potencial, menina sem nome. A que
sabe todas as respostas que sombreiam seu coração... O passado nos une – Ela começou a deslizar
de um lado para o outro, as asas negras tremulando levemente. – Sei cada uma de suas mudanças,
seja do corpo, dos desejos, até a sutil variação da cor dos cabelos. Vi sua ascensão e chorei pela
sua queda, sentindo suas dores até poucos momentos atrás, quando finalmente consegui atraí-la
para junto de mim, para cuidar de suas feridas e cessar suas dores de uma vez por todas. Ambas
odiamos aquele arremedo de bruxa, aquela que tentou de todas as formas controlá-la... – Ela
gargalhou e a nossa volta uma ligeira brisa me envolveu, trazendo cheiro de barro e água fresca. –
Mas quem consegue domar o que é natural? Existe uma pessoa capaz de mudar a força das marés
ou as fases da lua?
Estava paralisada, extasiada diante da eloquência de tão incrível criatura. Acomodei-
me no chão, como uma criança a ouvir histórias, ignorando a dor e o medo, identificando-me com
um ser que nunca vira antes. Tão distante, mas ao mesmo tempo, sentia que eu era parte daquilo.
Como se lesse os meus pensamentos, ela continuou:
–Somos iguais, menina sem nome. Forças envoltas em mistérios. Criaturas sagradas e
profanas, carregando em nossa alma a insensatez humana, e em nosso ventre as chamas do inferno
– Ela riu mais vez, erguendo o vestido, mostrando as pernas pálidas e intactas. Um misto de
maravilha, encanto e medo pareciam lutar dentro de mim, fitando aquele ser soberbo sem piscar,
com medo de que sumisse.
Tudo ao meu redor parecia embaçado diante de tal presença, faiscando entre nós uma
energia tal que nunca sentira antes, uma força invisível que me prendia a ela. Algo inédito, quem
sabe uma centelha daquilo que eu mesma era.
O caminhar de um lado para o outro parou, repentinamente. Ela, se assim poderia
chamá-la, farejou o ar como um animal, tentando pegar um aroma perdido entre o cheiro de terra e
mofo que nos cercava. Moveu lentamente a cabeça em minha direção e se inclinou, retorcendo-se,
até alcançar o chão.
Com as mãos cravadas nas pedras em que pisávamos impulsionou as costas e abriu as
majestosas asas, reflexos noturnos do mesmo tom que pertencia aos meus cabelos, antes que eu os
cortasse. Fitei-a e vi, em seu rosto, como se fosse um reflexo meu, toda glória e dor de minha
história estampados em sua face. Foi como se, em poucos instantes, minha vida fosse despejada
em mim, fazendo-me relembrar de tudo que havia passado até chegar ali.
A imagem de Lucas atordoado e ferido em meio aos meus gritos foi a última cena da
minha visão. Passei a mão nos cabelos, tufos esparsos em meio ao coro cabeludo ferido, e
comecei a chorar, soluços incessantes capazes de liberar toda a dor que conseguira me manter de
pé até aquele instante. O risco de perder o amor tão arduamente conquistado se misturava ao ódio
destinado aquela que comandara magistralmente a minha ruína, utilizando a infantil inveja de
Mariana como seu instrumento de poder.
Mas porquê? Porque aquela que na infância eu apelidara de Mama queria destruir a
mim, o maior trunfo de sua casa?
Meu choro se transformou em grito, dando vazão ao meu animal mais sombrio. Meu
peito parecia conter o poder de destruir o mundo entre os meus dedos, dentes trincados, mãos
crispadas e bile na boca para conter as palavras de ódio que deveriam sair dela.
Assim invertemos papéis: a bela se converteu em fera, e aquela que era considerada até
aquele instante como um ser bestial, mas não menos belo, despiu-se da sua aura assombrosa. Em
um sutil gesto de humanidade, forçou as correntes que a prendiam, ignorando os repuxões do aço,
e me acalentou nos braços.
Por um singelo momento, seu rosto pareceu quase maternal enquanto me cobria com
suas asas, embalando-me como se faz com uma criança carente, com fome, frio, ausente de
expectativa de vida. Começou a cantar uma bela melodia, a mesma que me guiara até ali, uma
sonoridade para mim desconhecida. Reconheci a língua, parecida com a minha, mas ao mesmo
tempo arcaica, carregando em cada sílaba o peso do próprio tempo.
– Liberte a Princesa da Lapa... Deixa que ela se vá, em busca de um ‘felizes para
sempre’ que não lhe cabe mais. Já está na hora de trazer para fora a verdadeira mulher que é,
marcada pelas dores, desejos e amores, sem cargos ou rótulos. Deixe que algo novo surja, menina
sem nome. Livre-se dessa prisão sem grades que construiu em volta de si, onde sua beleza era o
que te controlava. Finalmente caminhamos para o grand finale dessa ópera bufa, onde, com um só
golpe, ambas cumpriremos os nossos destinos.
Fechei os olhos e respirei fundo, as penas negras cheirando a canela, passando por
sobre a minha face. Sabia que nunca mais deveria abaixar a cabeça e permanecer em silêncio,
achando que estava no poder, mas sendo abusada diariamente, deixando que retirassem de mim
tudo aquilo que verdadeiramente importava...
Meus pensamentos voltaram para Lucas, Kyo, Norma... Todas as pessoas que me
ofereceram aquilo que tinham de mais precioso, que me fizeram o que eu era, mesmo que lutasse
tanto para aceitar e quebrar as defesas que construíra à minha volta. Seja na forma que eu, na
inocência pueril da infância, fingira viver uma vida de bonecas; seja como mulher, cultivando a
ilusão de que tinha todos os homens aos meus pés, ou melhor, ridicularizando o amor, um
sentimento que nunca me permitia sentir.
Fingindo não ver que vivia em cativeiro, envolvi-me em meus cabelos como uma lagarta
em um casulo, fugindo do tempo, ignorando a borboleta que eu deveria me tornar.
Eu entendia finalmente porque estava na presença de um anjo, se assim poderia chamar
tão extraordinária criatura: era chegada a hora da minha morte. Afinal, em minha pele ferida e
cabeça em frangalhos nada restava da Princesa da Lapa, a ninfa dos cabelos longos e propostas
sedutoras. Ou a criança de cabelos dourados... Nem sequer a guardiã dos amores alheios e seus
cabelos negros.
Eu deveria ser todas, multifacetada criatura que encontra tudo que procura dentro de seu
próprio cerne. Era hora da verdadeira mulher surgir, a Única, a mariposa de asas abertas alçando
seu primeiro voo.
Sabia que o passo definitivo, o pulo em direção ao abismo estava ali. Afinal, era
impossível que, após ser destituída de tudo aquilo que valorizava e atraída de forma tão mágica
para uma prisão povoada por algo que nunca imaginaria ver, fosse derrotada pela soberba do
Marechal Rubem Pontes e as maquinações de Mama Mercedes.
Sentia que, inconscientemente, toda a minha vida me encaminhou para aquele instante.
Era preciso criar coragem para me manifestar, fazer-me ouvir para descobrir mais sobre o meu
passado. E o meu futuro.
Como se adivinhasse que eu estava preparada, o anjo abriu as asas para que eu saísse
dos seus braços. Permaneceu meio encolhida, tentando abraçar-se em um desafio as correntes que
insistiam em aprisioná-la, as asas acompanhando gentilmente os seus movimentos.
Agachei-me com dificuldade à sua frente, ignorando a dor que ameaçava voltar.
– Porque insiste em me chamar de menina sem nome? – dessa forma quebrei o silêncio.
– É óbvio, minha querida, porque nunca o teve. Desde que nasceu possui apenas vagos
adjetivos. Foi de anjo a puta, de princesa a uma simples carne fresca em exposição. Nunca teve
uma identidade, algo tão básico como um nome. Poderia ser Maria ou Joana, até Etelvina ou
Olegária. Mas não, o único título que a outra permitiu que utilizasse foi o de cativa, princesinha –
disse a última palavra com sarcasmo. – Peço que agora olhe para trás, reflita sobre sua mísera
vida e me diga: era princesa do quê? De qual reino? Talvez seja o dos degenerados, dos vazios,
dos incautos e loucos. Utilizar de seu corpo para suprir a carência daqueles que te procuravam,
não é para ser notado como heroísmo.
– Concordo que nunca tive um nome que fosse meu, por mim admirado, no qual pudesse
me identificar. Mas durante esse tempo fui muitas. Fui a Filha, tratada como um bibelô em alguns
momentos, em outros, esquecida. Reinei como a Princesa, meu olhar capaz de atrair os homens,
que se jogavam aos meus pés. Fui inspiração para sinfonias e poemas. Fui a Amante, paciente e
temerosa, disposta a relutar antes da entrega, receosa das armadilhas do sentimento. Mas agora
dou um basta. A Princesa da Lapa, assim como todas que eu fui, sumirão a partir de agora. Seja
em forma, força ou devaneio, ficarei na mente e no coração dos homens, em verso e prosa, por ser
intrínseca, incógnita e humana.
A entidade sorriu, assentindo com a cabeça. Ela compreendia o que acontecia, sabia que
as transformações que ocorriam em mim ali, naquele instante, eram definitivas.
– Agora está pronta, menina. Pronta para ser o que e quem quiser. Como dizem os
sábios, é no instante que nos vemos sem nada que descobrimos que podemos ter tudo. Levante-se
e venha até mim. Desvenda o meu passado para descobrir o seu futuro.
Aproximei-me dela e peguei uma de suas mãos, pulsos em carne dolorosa.
– Foi Mama Mercedes que a transformou em prisioneira? – Ela concordou. – Mas como
ela fez isso? Porque a maldita dona disto aqui insiste em deixá-la algemada sob os alicerces da
casa? – murmurei.
–De onde acha que vem a magia que move este lugar, rasgando o véu da realidade que
cerca-nos? Porque pensa que todos que nela adentram mergulham em um ambiente onírico, onde o
velho tempo parece congelar? Já reparou que todas as mulheres da casa possuem o mesmo rosto e
corpo de quando você foi deixada naquela porta? Através de meus sortilégios, desaparecem rugas,
dores e aflições que acometem a maioria das pessoas... Porque acha que a beleza não perece na
Casa dos Prazeres?
Neguei com a cabeça, sem imaginar a resposta.
– Porque eu assim a mantenho, em troca de coisas que para vocês são simples de dar...
Sensações humanas. Entre grilhões, alimento-me daquilo que os torna exemplares tão curiosos.
Sorvo com avidez cada gota de dor, prazer e sofrimento que vocês exalam entre as paredes desta
casa. Banho-me no êxtase do gozo de seus clientes. Agora mesmo, fortaleço-me com teu ódio, por
isso ele está se abrandando em seu coração. – Ergueu suas mãos junto com as minhas e acariciou a
própria face. – Prisioneira da magia que há séculos atrás usurpei. Cativa – agitou as grossas
correntes – me chafurdo naquilo que vocês têm de melhor e pior. Aquilo que, mesmo em doses
efêmeras, permite que eu volte a sentir o que um dia eu fui. Me alimento da humanidade de todos
que por aqui passam. Através de suas imperfeições e limitações eu me ilumino. E mantenho as
coisas como estão.
Intimidada e maravilhada com o que descobria no decorrer do seu discurso, via as
palavras daquele ser criarem força, ao serem sopradas por seus lábios.
– O que é você? Um anjo, como Kyo me disse? Ou um demônio capaz de devastar
nossas vontades?
Mais uma vez ela gargalhou, incontida, sinos repicando pelo ar, som flutuando ao vento
sem pressa, fazendo a escuridão à nossa volta vibrar.
–E se eu for as duas coisas? Melhor ainda, se minha definição for completamente
antagônica àquela concebida por você? Amplie os sentidos, menina. Não limite-se apenas a
clássica categorização de bem e mal. Afinal, o que impede que as minhas vontades sejam
governadas por Deus e pelo Diabo?
– Nada – vi a surpresa em seus olhos diante da minha resposta – Mas não acredito que
você seja uma coisa ou outra. Ninguém o é. A única certeza que tenho são as minhas vontades,
aquelas por mim governadas. Penso eu que você irá me amparar de alguma forma, mas esse gesto
terá um preço, que pode ser mais temível que o castigo à minha espera fora dessa sala. Criatura
humana ou angelical, pouco importa: somos egoístas por natureza, sem exceção. Todos sempre
queremos algo... Seja dinheiro, aplausos ou benefícios de alguma forma. No fundo, acho que o
mundo lá fora não é muito diferente do que vivo aqui, na Casa dos Prazeres. Uma cadeia de
interesses e carências onde todos tentam ganhar o seu, mas sempre tem alguém lucrando com isso
mais que os outros.
Saí de meus devaneios quando ouvi a criatura bater palmas entusiasmadas, com um
sorriso no rosto.
– A vida lhe privou de muitas coisas, princesinha, mas não de sabedoria. Se importa
com o agora, seus desejos e paixões. Alguns pedem aos céus com a força de um milagre por
coisas ínfimas. Outros, como você – olhou meu rosto e meus cabelos tosados –, mesmo quando se
encontra na penúria, com a morte em seu encalço, não clama por bondade ou quem sabe um
milagre, simplesmente por não acreditar em nada disso. Mesmo quando um anjo aparece à sua
frente. – sorriu, zombeteira. – Você é uma criaturazinha deveras interessante... Mas para sua
alegria, um fato é verdadeiro: assim como te protegi durante toda a sua vida, ainda posso fazê-lo
agora.
– Duvido que você seja capaz de salvar-me! – declarei. – Como pode, se nem é capaz
de se livrar destas correntes que a enlaçam?
– Eu não posso livrar-me destas amarras sozinha, é verdade... Mas você pode soltar-me
e, ainda, acabar com toda a iniquidade de Mama Mercedes de uma vez por todas. Penso que, ao
terminarmos essa conversa, você mudará suas opiniões. Agora se aproxime, aconchegue-se
melhor em meus braços e me acompanhe nesta viagem... Prepare-se para atravessar as brumas da
lembrança em busca da minha história.
Antes que eu retrucasse ou ao menos me surpreendesse com a sua proximidade, os
lábios vermelhos do anjo tocaram a minha testa, transformando o seu toque em brasa. Calor que
percorre as veias, toma o comando do corpo à força, deixando marcas. Parece me tomar,
anestesiando, levando tudo, tirando-me o rumo.
Um rosto de alabastro em meio a fios brancos me fita com intensidade. É a última coisa
que vislumbrei antes de perder-me, guiada por um universo de lembranças que não me pertenciam.
– II –
Mais uma vez me tornei Alice, caindo através de um túnel cercado de imagens em
movimento, ecos e sensações. Só que em vez de despencar em velocidade, flutuava como uma
folha carregada pelo vento.
Espantada, vi que trajava um vestido igual ao do misterioso ser, quiçá um anjo, que com
certeza me guiava naquela jornada. Mas o meu era branco, recoberto de pérolas e brilhos como os
que me enfeitaram na primeira noite com Lucas, há muito – e tão pouco – tempo. Meus cabelos,
como mágica, haviam voltado a emoldurar meu rosto, mais curtos, mas recobertos pelo mesmo
negror de antes.
Eu era a antítese da minha anfitriã. Duas figuras opostas, portadoras da mesma magia.
Uma leve brisa surgiu, contendo a minha jornada. Um aroma almiscarado, de sal e suor
invadiu as minhas narinas e meu corpo tomou uma nova direção, rumo a um grande espelho
adornado de belas penas negras, que não havia percebido anteriormente. Tomei forma na
superfície plana, cada vez mais definida, recoberta por uma aura que nunca possuíra antes.
Repentinamente, o meu reflexo mudou, tomou cor, cenário, viajou no tempo para uma
terra antiga, da qual eu só tinha conhecimento dos livros. Era uma nau, cheia de gente cansada,
magra, vestes pesadas sobre o calor tropical. Olhares de espanto e receio, esperanças sobre a
terra nova que se avistava.
Um verde intenso e, para muitos, opressor, de uma terra que séculos depois seria
chamada de Brasil. Mas ali, naquele instante refletido, era apenas o começo da civilização que
hoje vislumbramos. Uma pequena vila, comandada por Martins Afonso de Souza, sob as ordens da
coroa portuguesa.
Entre os que chegavam, havia uma moça. Podia-se ver a sua beleza mesmo em meio aos
trapos, sujeira e a cabeça coberta por um pano, devido aos piolhos. Uma pequena órfã enviada
àquela terra, em meio aos índios, comprada por um velho comerciante que desejava se casar com
uma boa filha de Portugal, católica e servil. Alguém que, no fundo, não era de se submeter, e
ansiava por uma vida livre do desmando dos homens.
Essa moça, ao me olhar através do vidro, pareceu ver além do seu mundo. Enxergar-me,
como quando anos depois, transformada em uma criatura mágica, me fitara instantes atrás. Assim
que a nau atracou próxima a Vila, chamada de São Vicente, pareceu devassar-me com os olhos e
dizer: Siga-me.
Eu assenti. E atravessei o espelho.
– III –
Será que um dia conseguirei colocar em palavras tudo aquilo que invadiu os meus
sentidos ao atravessar o limiar entre passado e presente? Dissecar para outras pessoas essa
história que não é minha, enriquecê-la com nuances e detalhes aqueles momentos tão crus e
sombrios?
Recordo-me que por trás dos olhos inocentes da jovem órfã que chegava em terras
brasileiras, havia uma mulher que descobria sua sede de poder. Cansada da vida de pobreza e
restos entre os pesados hábitos das freiras, via naquele casamento arranjado uma oportunidade de
ter algo de valor em sua vida miserável. Não se importava se tivesse de ceder a um homem velho
e fedido, que tivesse suas carnes devassadas por mãos calosas...
Fora treinada entre rezas e palmatórias para ser a servil esposa de um mercador, e
assim o faria... Pelo menos nas aparências. Seu espírito era devasso, seu corpo clamava por ser
descoberto, tocado, satisfeito. Fosse pelas outras meninas do quarto, posteriormente pelo filho do
jardineiro, Maria, era o seu nome, sabia muito bem como prender os homens em suas artes na
alcova.
Ao ver o futuro marido, barrigudo e hesitante, dentes amarelados pelo fumo e voz fina,
quase infantil, agradeceu aos céus – ou ao inferno – pela graça alcançada. Aquele homem
decrépito, longe do herói idealizado de seus sonhos infantis, seria incapaz de fazê-la se render aos
arroubos do amor.
Ficaria assim senhora das suas vontades, incapaz de desviar do seu objetivo, o de ser
um dia dona daquele lugar. Por isso, na primeira noite após o seu casamento, sem pompas, na
igrejinha da Vila, não hesitou em mostrar suas artes amorosas: transformou-se de ingênua menina
em dona profana, marcando aquele que seria seu amo na carne, transformando-o em servil criado.
Em poucos meses, tinha-o aos seus pés, como um cachorro obediente. Era sempre ela
quem dava a última opinião sobre os acordos feitos pelo marido.
Ovacionada dentro de casa, difamada pelo restante da Vila, que a chamava pela boca
miúda pelos mais famigerados nomes: assim vivia Maria, dona de seu pequeno mundo, nutrindo a
fantasia irrisória de que aquele singelo lugar, de paredes caiadas, a transformara em rainha. Seu
corpo parecia enfeitiçar cada vez mais o seu marido, que não dava um passo sem a aprovação de
sua deusa.
Tudo estava como ela sempre sonhara, até que, por ordem natural das coisas, ela
engravidou, atendendo pela primeira vez um pedido do marido que ia contra os seus objetivos.
Afinal, o sonho do pobre era ter alguém que continuasse o seu legado. Maria fez isso para manter
a imagem de boa esposa perante aquele que a trouxera para a nova terra e a tornara livre das
convenções sociais do velho mundo. Ou talvez os pequenos índios correndo pela vila, em meio as
batinas rotas dos padres tenha lhe dado ares maternais. A verdade ao passado pertence.
O que ela não imaginava era que os enjoos e o inchaço ouriçariam ainda mais o seu
humor já tempestuoso. Todos já sabiam que Maria não pertencia a ordem das doces esposas e
agora, com um bebê nas entranhas, o populacho preferia ver o diabo do que cruzar o seu caminho.
Colheres voavam, xingamentos eram vociferados e até o mais corajoso dos homens
estremecia ao passar pela porta do comerciante Luís da Cruz, diante dos impropérios de sua
esposa, a bela moça que já sem máscaras, olhos vermelhos de fúria e desmandos, prometia
mandar matar quem a desobedecesse.
Foi natural que aos poucos o marido se afastasse de sua presença, um gesto tão
insignificante que ela nem ao menos se importara, jogando no pobre a culpa das mudanças
constantes em seu corpo e humores.
Maria estava tão centrada em seu rancor por viver uma situação que não podia
controlar, que nem sequer percebeu como os deuses começaram a conspirar contra ela. Foi só
quando, em uma noite quente em que não conseguia dormir, ouviu o marido, entre os seus roncos
de porco fétido, sussurrar o nome de outra mulher.
Jurecê, repetia ele, noite após noite, impedindo Maria de dormir, alimentando o ódio de
uma mulher que se achava traída. E pior, com uma criatura sem alma, filha das joças, pois só uma
bugre teria um nome como aquele...
A cada hora insone, onde os lábios de Luís se ocupavam com o nome de sua rival,
Maria era tomada por ideias maldosas, visualizando mil formas de punir aquele que lhe traíra.
Fingia nada saber, mas sem que o pobre percebesse, passou a acompanhar todos os seus passos, a
mão apoiada às costas doloridas, a barriga se pronunciando cada vez mais e os pés inchados
dificultando sua caminhada
Até que um dia conseguiu ver quem era a culpada pela sua discórdia. Desde que chegara
à Vila de São Vicente, ouvira boatos de que em uma aldeia próxima existia uma jovem índia que
parecia encantar a todos que a fitavam. Mas nunca havia tido curiosidade em saber mais detalhes
sobre a tal criatura, vista por muitos índios como uma aberração desde o seu nascimento, devido
aos seus longos cabelos loiros, semelhantes a fios de ouro, em contraste com a sua pele escura.
Até que descobriu o nome da vil mulher... Jurecê, a pequena filha de Jaci, a deusa da
Lua que surgia inclemente no céu, bela e maravilhosa. Poupada da morte no nascimento pelo xamã
da aldeia, ela atraía os olhares por onde passava.
No contato com o homem branco não foi diferente. Os padres, maravilhados diante
daquela que passaram a considerar uma santa, desejavam leva-la para a aldeia – e porque não
Portugal – a fim de mostrar que os milagres divinos estão por toda parte. As mulheres queriam
cuidar dela como se fosse a mais bela das filhas. E alguns homens, como o marido de Maria,
achavam que o simples gesto de tocá-la os levaria a descobrir sensações nunca imaginadas...
Quem sabe o êxtase oferecido aos anjos?
Jurecê, assim como a Lua que se proclamava sua mãe, era livre, sem freios ou donos,
carregando em si a felicidade plena que pertence apenas aos inocentes e aos tolos. Mal percebera,
em suas andanças pelas matas, que Maria, consumida por medos e ciúmes, havia sido tocada pelas
sombras de sua alma e, por fim, encontrado o seu alvo.
Com o passar do tempo, quanto mais a gestação avançava, mais a obsessão da
portuguesa pela índia aumentava. O rancor a fazia almejar pelo sangue daquela criatura que, aos
poucos, se tornava o principal assunto da cidade. Ao pensar que seu marido poderia estar tocando
aquelas carnes escuras, cheias de mato e terra, tinha nojo de toca-lo.
Já não fazia o mínimo esforço para agradá-lo e, quanto mais a sua barriga apontava,
mais o humilhava na frente de todos, sem poupar os olhos da cidade de suas afrontas.
Por fim, o fizera dormir na rede enquanto ela, coberta de calores, imaginava seu marido
indo ao encontro da famigerada mulher, corpos se roçando em todos os lugares, fazendo coisas
que nunca imaginara, como dois animais em um cio imundo, proibido. Seu mundo encheu-se da
certeza de que a índia, que nunca sequer a vira, poderia destruir não só o seu futuro, mas do
rebento que crescia em seu ventre, tornava-se sua carne.
Cada vez mais ensandecida, tomada pelas dúvidas e receios, Maria foi um dia até a
aldeia enfrentar sua nêmese, com uma faca de cozinha escondida entre os panos da saia. Logo
avistou Jurecê, cercada de pessoas e sorrisos.
Assim que a viu, feita de amor e liberdade, o corpo esguio coberto por uma fina túnica,
sentiu algo que nunca pensara ter por aquela desprezível índia: inveja. Sentia-se imensa, feia e
infeliz, enquanto Jurecê, era o centro das atenções, cabelos banhados pelo sol, rodeada pelo povo
que a admirava. Sem que percebesse, Maria começou a gritar todo o veneno que corroía sua
garganta, chamando a atenção de todos, libertando enfim o ódio que a consumia.
A índia, sem compreender as blasfêmias que aquela mulher lhe gritava, sorria diante das
expressões de choque de grande parte dos moradores da Vila, que seguiram os gritos, afoitos,
farejando o sangue no ar.
Jurecê, a jovem encantada, combatia o veneno com o peito aberto, braços estendidos
prontos a dar um abraço e acolher aqueles que sofriam pelas dores da alma como Maria. Por isso,
quando a portuguesa se cansou de seus impropérios, afirmando que aquela barregã, cria do
demônio, roubaria não só o seu marido, mas todos os homens da vila, Jurecê se aproximou e a
abraçou, beijando-lhe os lábios, desejando que a doçura de seu gesto destruísse a dor de Maria.
Esta se afastou e, antes que pudesse reagir, ainda com o gosto de mel daquela que era
chamada de santa entre os lábios, viu a índia agachar-se e beijar-lhe a barriga, como se
abençoasse o seu rebento.
Maria gritou, rosto recoberto de repulsa, dizendo que aquela imunda havia amaldiçoado
o seu filho. Foi retirada entre os braços do povo, pernas de debatendo, unhas rasgando outras
carnes, ódio estampado no olhar. Viu seu marido virar-lhe a face, recoberto de vergonha e raiva
por tal atitude. Para piorar, ela lhe chamou, mas foi ignorada, saindo daquele lugar repleto de
sujeira sem nada.
Aquilo foi a gota d’água para a jovem. Perdera ali o seu último resquício de
humanidade. Para não permitir que fosse devolvida à Portugal, faria qualquer coisa. Não iria
embora daquela vila como motivo de chacota, para viver de favores e restos de outrem. Fria e
silenciosa, Maria abraçou a sua sombra e deixou que sua mente desse asas a uma ideia tão
monstruosa que valeu-lhe a danação na qual eu a encontrara, tantos anos depois.
Na calada daquela mesma noite, foi a procura de uma velha parteira, considerada por
muitos uma bruxa, moradora de um casebre no alto do promontório, à beira da praia. Na maior
discrição e com as moedas certas, adquiriu uma série de ervas abortivas, para continuar o seu
plano sombrio. Habilmente, enquanto o marido roncava na varanda, fez uma concentrada infusão e
bebeu sem dó.
Será que em algum momento teve noção do assassinato que cometera, matando uma
criança tão perto de seu nascimento? Sim, por um momento, no ápice das dores, sangue entre as
pernas e o sol já alto, enchendo seu quarto de moscas, Maria pediu perdão a Deus por tamanho
pecado. Mas como resposta, só teve o silêncio.
Assim que ato tão cruel e desumano se findou, Maria pegou entre as mãos a pequena
vida que se esvaía e gritou, de ódio e amargura. Talvez uma pequena nesga de consciência a tenha
tomado, talvez era a sua maneira de culpar o mundo por ter feito tamanho ato.
Capengou até as ruas, o natimorto nos braços, coberta de muco, sangue e lágrimas,
culpando aos quatro ventos o feitiço que a índia Jurecê havia lhe lançado.
Amparada pelas vizinhas, Maria foi socorrida e o pequeno corpo retirado de seus
braços. Passou dias ardendo em febre, lutando contra possíveis infecções, condenando-se a ser
seca, infértil por toda a sua vida. Renegando aos seus filhos uma vez, o faria para sempre.
O caos se instalou na Vila de São Vicente, dividindo opiniões. Ainda mais pelo fato de
que Luís estava sentado aos pés de Jurecê, embevecido diante do encanto da índia, quando tomou
conhecimento da tragédia que assolara sua família, confirmando assim as suspeitas de Maria, de
que estava perdendo seu marido para tão inusitada criatura.
Enquanto a alma turva de Maria lutava pela posse de seu corpo novamente, a
desconfiança e o ódio pareceram espalhar-se, como praga virulenta, no coração de todos os
habitantes daquele lugar. Cada gemido e grito acusatório, no calor da febre que consumia o corpo
da jovem, transformava as pessoas mais céticas em obtusos, sustentados por falsas crendices.
Foi assim que, para vingar a morte da criança e as dores da “pobre mulher”, os homens
invadiram a aldeia em uma noite de lua cheia e mataram Jurecê à pedradas. Os gritos e pedidos de
piedade foram ouvidos por toda a floresta, que se fechou em lágrimas e luto.
Jaci, a Lua, mãe daquele ser encantado, fechou-se em nuvens e virou seus olhos,
recusando-se a iluminar a terra. Luís, o marido de Maria, também foi punido. Trancado em uma
tapera, foi queimado vivo, pedindo clemência para um Deus que nada poderia fazer.
E Maria? Iria escapar de ato tão ignóbil impune? Assim que se recuperou, a agora
viúva, envolta em vestes negras, fingindo uma dor que não sentia, começou a comandar os
negócios do marido com pulso de ferro, sem se importar com as consequências de seus atos.
As mortes que ocasionou eram parte do passado, apenas percalços executados para
cumprir os seus objetivos.
Uma ocasião, recoberta pela noite, atraída pela lua, foi caminhar à beira-mar, certa de
que nunca seria descoberta. Mas pode alguém escapar da justiça dos Deuses?
Jaci, com seu brilho, atraiu Maria até uma área deserta da praia e, enquanto a mulher
deixava a mente vagar em pensamentos de poder, desceu dos céus, tomada de luz e frieza nos
gestos.
Assim que o rosto da humana cruzou-se com o da deusa, seus cabelos se branquearam,
fios brancos como a superfície daquela que reina nos céus, entre as estrelas. Magia antiga brotou
pelos seus lábios ancestrais, tomando força, destroçando a realidade, transformando Maria em
algo nunca visto.
Olhos rompendo-se em sangue, enrijecidos, vermelhos e iriscidentes. Os ossos das
omoplatas se quebrando, retorcendo a pele, rompendo em asas negras como as da graúna, pele e
sangue em meio às penas.
Maria urrava, mas não se fazia ouvir, sua voz, já irreconhecível, parecia ter sido levada
para o alto, perdida em meio as estrelas. Por fim, o som morreu nos lábios inumanos de Jaci, que
sorriu satisfeita. Nua, altiva e banhada em prata, a divindade, planando no ar, deu por fim seu
veredito. Trazer à tona a beleza e o horror de sua verdadeira natureza não era o bastante.
“Aquilo que tiraste, irei te tomar. – disse, por fim. Olhos prateados sobre os vermelhos.
A executora diante da criminosa sentenciada – Serás criatura da noite, monstro capaz de gerar
medo e desejo, ser incapaz de sentir qualquer sentimento e sensação humana por tuas próprias
vontades. Vagarás pelas eras nutrindo-se de emoções alheias, parasita, incapaz de lembrar a
humanidade que um dia rejeitou com crimes tão nefastos. Será fuligem, sujeira, terra, lama,
excremento, viverá dos restos de gemidos, choros e gritos, o peito um vazio imenso que parecerá
consumi-la dia a dia, enlouquece-la como nunca imaginou. Serás punida até que possa dar de volta
o que tirou... Até que Tupã feche o círculo da vida, trazendo para o seu caminho aquela que
poderá lhe redimir”.
A voz de Jaci, capaz de falar uma língua e todas ao mesmo tempo, parecia ressoar de
todos os cantos, punindo Maria com tão cruel – e justa – sentença. Bela, a deusa Lua ascendeu aos
céus, deixando a mulher, agora o anjo que já havia conhecido, perdida em sua própria
monstruosidade.
Tentou pedir socorro daqueles que a conheciam, mas por todos foi enxotada, entre gritos
e persignações de um povo cheio de crenças. Pelas crianças foi apedrejada, pelos cheios de fé,
vista como um demônio, e pelos homens como algo que deveria ser destruído. Cheia de temor do
que poderia surgir em seu caminho, a criatura subiu aos céus assim como a sua criadora, em busca
de redenção, quiçá fosse para preencher esse vazio de sensações que se avolumava em seu peito.
– IV –
Eis que, ao presenciar esta última cena, me vi novamente fora do espelho. No meu
reflexo, sumira a Princesa da Lapa, ou até mesmo a menina ambiciosa transformada em criatura
sombria. Via à minha frente a bela Jurecê, a índia de cabelos dourados como o sol, fios parecidos
com aqueles que adornaram a minha cabeça tanto tempo atrás.
Tupã, ou quem seja o deus que brincara conosco cumprira o prometido. O ciclo do
destino se fechava. Pois aquela que sucumbira a loucura do anjo há tantos séculos, era eu.
–V–
Assustada, abri os olhos e me vi novamente diante do anjo, como se ela tivesse acabado
de me marcar com aquele seu beijo revelador. Comecei a fitar tão sofrida criatura sob uma nova
ótica, castigada e presa nos porões daquela casa, alimentando-se dos prazeres e sofrimentos de
outrem, que a cada noite povoam nossos quartos.
Como forma de recompensar seu algoz, aquela que também aprendi a odiar, mantém a
Casa dos Prazeres encapsulada, fora do tempo, um lugar fantástico onde o passar das primaveras
se mostra vagarosamente pelos nossos corpos. Passei a mão pelo seu rosto marmóreo, imaginando
o tamanho do abismo que a consumia através de eras, alimentando-se de egoísmos alheios,
tornando-se a própria sombra da humanidade, beleza e temor ondulando sob um tecido negro,
recoberto de estrelas.
– Como seu destino veio se unir ao desse lugar? – indaguei, disposta a ouvir a história
até o final. A criatura fitou-me, séria, parecendo buscar em sua memória as palavras certas para
terminá-la.
– Essa parte da história já não lhe pertence, minha cara menina sem nome. O que posso
adiantar-lhe é que, após vagar tanto tempo em busca de humanidade, fui atraída pela alma suja de
Mercedes. Nela me reconheci, plena e simplesmente. Como mosca atraída pela chama, me
coloquei diante dela, encantada. Ao fita-la, revia a menina que havia sido tantas épocas atrás,
ansiosa por mais.
No fundo, queria salvá-la da iniquidade que poderia sufoca-la e puni-la, como
acontecera comigo. Nesse gesto, esperava ser perdoada por Jaci, impedindo uma alma de carregar
o fardo de uma existência tal qual a minha. Mas acabei por encontrar uma inimiga, em um duelo
que perdura por anos e me aprisiona dentro destas paredes, vivendo de migalhas...
O que seria minha salvação, tornou-se tormento, o vazio incomensurável de quem busca
pela própria humanidade, sem nunca encontrá-la. Mas isso está prestes a mudar... Finalmente.
Porque eis que você está pronta para entrar em cena. Como eu disse, o restante não lhe diz
respeito.
–Você sabe de onde eu venho? Por que fui abandonada na porta dessa casa cercada de
prazer e dor? – afastei-me dela com um tapa e, por fim, disse, aumentando a voz – O que tenho eu
a ver com esta pérfida história, devassa criatura?
Quem era eu para julgar tão mística figura? A sereia, a ninfa, a encantadora que com
seus cabelos dominava as vontades daqueles que a rodeavam. A devassa, a santa e a puta,
incutidas em uma mesma pele. Na minha memória, ainda residia a imagem impressa no espelho, na
qual eu me transformara na mulher por ela destruída. Mas o que eu era na verdade? Alguém
saberia me dizer?
Mais uma vez, como se lesse meus pensamentos, o anjo me deu as respostas.
– Não sei de tuas origens, princesinha, se é isso que me indaga. Mas reconhece em mim
a fagulha fantástica que há em você, não é verdade? É a divindade ressurgida para finalmente
redimir minha alma amaldiçoada. – Com os olhos em chamas fixos em mim, ela indagou: –Você
fitou a sua própria essência no espelho, não foi?
Permaneci em silêncio, mas não consegui evitar um estremecimento. Percebendo minha
reação, ela sorriu, em sinal de assentimento.
– Sabia que reconheceria em seu cerne aquela que tão injustamente destruí séculos atrás.
O dom é o mesmo, trazido de volta pelo ocaso do tempo... Como ela, carrega dentro de si a
liberdade incessante da alma, a perder-se em meio ao mundo e usufruir de tudo, sem pudor ou
receios.
A fome de vida transbordava pelos seus fios de cabelo, contradizendo o vazio que me
consome continuamente, por todo o tempo em que eu conviver com esta maldição.
Por um momento ela parou, como se voltasse a buscar algo em seu passado. Quando as
palavras voltaram a surgir entre seus lábios rubros, foi num tom sagrado, quase em uma
confidência.
–Recordo-me quando escutei a sua voz pela primeira vez, há poucos anos. Foi na
ocasião que a sua mãe a abandonou na porta desta casa. Antes que me indague, já declaro que eu
não a vi, princesinha, apenas escutei os passos ligeiros depois que você, recém-nascida, foi
abandonada nesta porta. Momentos antes que seu choro rompesse o silêncio desta minha tumba,
onde agora nos encontramos, um raio de luar atravessou a janela e, oscilante, atingiu-me.
Mediante repentina e convidativa claridade, algo em mim se retorceu, vibrou. Era como se a
escura fome que havia me consumido durante eras diminuísse um pouco, pela primeira vez,
regredindo diante de algo novo, quem sabe um milagre divinal. Ou algo tão lendário quanto eu...
Pensei emocionada se aquilo seria um sinal de perdão, originado da prateada deusa que me
condenara. Minutos depois, o seu choro irrompeu, tão perto e tão longe de mim. Uma pequenina e
mirrada criatura, pronta para cumprir o seu destino de sangue e dor.
– Pode ter sido uma mera coincidência...
– Nada sabe dos mistérios que circundam o céu e a terra, tola criança – ela me cortou,
bruscamente. – Você trilha esses caminhos durante parcos anos, enquanto eu tive eras para
conhecer os mistérios do mundo em minhas caminhadas. Atrás do véu tênue que os humanos
chamam de realidade, existem divindades múltiplas, algumas já adoradas pelos homens desde
tempos imemoriáveis, outras que a humanidade não é sequer capaz de sonhar. Em todas as lendas
que nos circundam, há um sutil toque ou detalhe de verdade, imerso em fábulas, para que a
realidade sobre os enigmas do mundo perdure através dos séculos.
–Repito então: o que tudo isso tem a ver comigo?
–Você conhece a lenda da Fênix?
–O pássaro mítico que ressurge das próprias cinzas? Uma lenda conhecida até por
crianças...
–Mas que esconde em sua essência uma verdade bem maior... Em meio aos mortais, os
humanos comuns, há pessoas especiais, tocados de alguma forma por algo sobrenatural. Alguns
por nascimento, como é o seu caso. Outros, por mérito ou castigo.
–Como você – retruquei. Ela assentiu e continuou, com um olhar reprovador diante do
meu comentário.
–E mesmo tão diferentes, nós duas temos algo em comum: poder. Não importa de onde
tenha vindo ou de qual forma ele se exponha, temos essa energia latente se manifestando à nossa
volta. Força sobrenatural que podemos utilizar em nosso favor, ou roubar de nossos algozes, em
momentos de maior necessidade.
–Roubar? – indaguei, cada vez mais curiosa com as suas explicações. – Como é
possível fazer isso?
–Quando estamos perto da morte, alcançamos um estado único, entremeados por um fio
tênue que une ambos os lados da existência. No momento em que a alma está mais fraca, o coração
em carne viva, é quando nos tornamos mais fortes... No momento em que o seu destino está selado
e você o aceita, é permitido a nós, seres diferenciados, nos apropriar da força daqueles que nos
rodeiam, renascer nas chamas como o pássaro da analogia. Nunca ouviu falar da santidade dos
mártires, a paz embevecida em que fazem milagres em seus últimos estertores? É desta maneira
que o poder é trocado de mãos, fazendo aqueles que iriam perecer conhecer a vitória.
–E quem é aquela que está pronta para aceitar o sacrifício?
–Você, Princesa da Lapa.
Parei, tentando conter um grito. Quer dizer que finalmente a morte viria me buscar,
exatamente no instante em que pensava ter chances de sobreviver? Me recordava de Lucas, os
seus beijos, o toque suave sobre meu corpo e suas palavras generosas. Qual a artimanha do
destino que permitia que minha vida findasse após sentir o gosto do amor?
–Não! – gritei, sem me conter – Pela primeira vez, eu quero viver! Me dispo de todos os
poderes, renuncio a todos os olhares, apenas para poder fugir com aquele que eu amo. Quero
esquecer este antro de horrores, lugar de dores inimagináveis. Que Mama Mercedes morra
sufocada em seu próprio veneno, junto com aquela sua maldita sombra.
– O Marechal está vindo te buscar, princesinha. Na verdade, ele estará à porta da Casa
dos Prazeres em poucos minutos, para conduzi-la aos recantos escuros do prédio militar. Dentro
daquelas paredes geladas você será abusada de todas as formas, emocional e fisicamente, até que
a morte seja um alívio para sua alma atormentada. Sinto em você a marca da foice consumindo seu
cerne, princesinha. A não ser que esteja pronta para se tornar a Fênix, e cumprir o seu destino.
Sentia a verdade em suas palavras. Por mais que quisesse me enganar, meu coração me
dizia que estava condenada após tantos contratempos. Mama Mercedes me encontraria facilmente
ali e quando pusesse as mãos em mim, faria tudo que passara até aquele instante parecer uma
brincadeira de criança.
Se havia uma maneira de me salvar e acabar com aquilo de uma vez por todas, teria de
me munir de coragem e sair do meu ilusório conto de fadas. Deixar de ser a princesa, iludida em
um mundo de alegrias efêmeras, e me tornar a rainha, para governar o meu destino.
–E como podemos fazer isso? – O sorriso do anjo se alargou e, por um momento, vi que
passou a fitar-me com respeito.
–Basta permitir que eu volte a usufruir da humanidade que há tanto tempo estou isenta de
sentir. Abrace o meu dom e expulse a morte que está à sua procura. Permita que algo que lhe é
importante morra e, assim, você estará pronta para tomar para si o poder que existe em mim. Após
isto será divinal, lua e sol entrelaçados em forma de mulher, pronta para cumprir o seu destino e
punir aqueles que destruíram o que de bom cultivou... O poder que até agora residira em seus
cabelos transbordará por você inteira, permitindo que todos aqueles que se prostrarem diante de ti
lhe obedeçam em apenas um piscar de olhos. Será juíza e executora, destruindo de vez qualquer
vestígio da princesa que ainda há em você. Esta será a hora em que eu lhe devolverei a divindade
há tanto tomada. O círculo por fim se fechará... Eu poderia abdicar a minha divindade para tantas
outras, como a própria Norma, que segundos antes de perecer, ouviu o meu canto lamentando a sua
morte. Mas só você, princesinha, tem em si o poder suficiente para tomar a energia que me
amaldiçoa. Torno-me então humana, torna-se você divinal.
Algo começou a me inquietar. Uma sensação crescente em meu peito, dizendo que
deveria escolher sabiamente, mas com rapidez, o meu fardo. Iria ser derrotada após tantas
humilhações? Ou seria o mítico pássaro e ressurgiria, para o desespero daquela que se tornara
meu algoz?
–O que eu devo fazer, anjo cruel? Que história é essa que uma parte minha deve morrer?
–Conquistar o poder requer sacrifícios, minha cara menina sem nome – mais uma vez o
anjo se ergueu. Abriu as asas em todo o seu esplendor e destruiu o pouco que me restava com uma
única frase. – Para que eu possa entregar-me à você, um sacrifício deve ser feito. Aquele que lhe é
mais caro ao coração deve entregar sua vida à mim, como um cordeiro entregando-se
passivamente ao sacrifício.
– VI –
Caí no chão, com lágrimas nos olhos. Seria capaz de abdicar de Lucas, entrega-lo as
mãos frias da morte por poder ou vingança? Teria eu coragem de pedir que o meu homem se
sacrificasse por mim? Derrotada, de cabeça baixa, decidi pôr fim a minha sentença.
– Não, prefiro a morte! – disse, entre soluços. – Como posso pedir a ele uma coisa
dessas, que abdique do amor que pela primeira vez eu sinto? Sem ele, morrerei eu e sem mim,
morrerá ele. Pois que se cumpra o meu destino.
Levantei-me com dificuldade, o corpo dolorido, rosto latejante devido as feridas. Com
a parca dignidade que me restava, comecei a caminhar trôpega em direção a saída. Foi quando
uma figura esguia, mas imponente, assomou à porta, impedindo-me de fugir dali.
–Só o amor verdadeiro é capaz de fazer tamanhos sacrifícios. Por isso, eu me ofereço a
você, tenshi.
Gritei ao ver Kyo na minha frente, ainda fraca, andar hesitante em direção ao seu anjo,
que estendia os braços para recebê-la, vestindo um quimono negro, cabelos soltos, rosto pálido e
tomado pela tristeza. O que ela estava fazendo?
–Não se atreva a me deixar – corri em sua direção e segurei-a em meus braços, tentando
impedi-la de cometer tal gesto de loucura.
– Quem disse que a Flor do Oriente foi tomada pela insanidade, princesinha? Tamanho
gesto de amor verdadeiro para com você só poderia vir dela... Ou achou que o sentimento do
pobre jovem cego seria o maior amor de sua vida? – O anjo começou a sorrir. – O que Kyo sente
por você ultrapassa a carne. Está acima do amor dos amantes, entre pessoas comuns, mãe e filha
ou cúmplices. É a perfeita união de almas, minha menina. Afinal, quem ficou ao seu lado o tempo
todo, acalentou suas dores e ouviu suas lamúrias? Melhor ainda, quem lhe treinou nos prazeres da
carne e, ao mesmo tempo, com o coração cheio de dor, encontrou uma forma de entregar-lhe ao
único homem que poderia levá-la para sempre?
Impossibilitada de me deixar tomar pela apatia, testemunha passiva dos acontecimentos,
apertei Kyo mais ainda entre os meus braços. Pedia, implorava, gania como um animal ferido, a
cabeça afundada em seu ombro, negando a me despedir daquela que era parte imprescindível de
minha existência.
–Por favor, não faça isso, Kyo! Prefiro morrer e aceitar o meu destino do que vê-la se
sacrificar... – ajoelhei-me, sem forças, e abracei suas pernas, desconsolada. Kyo não parecia
reagir, parada, silente, à espera de que meu choro se extinguisse. Eu, a princesa em tantas ocasiões
mimada, aquela que gostaria de ter tudo, acabaria por ficar sem nada. Se não conseguisse
convencê-la do contrário, carregaria comigo uma culpa que consumiria a minha consciência o
resto dos dias.
–Esqueceu que fui eu quem lhe falou do tenshi, querida nakama[53]? Segui os seus
passos até aqui e vi o que era necessário para que cumprisse o seu unmei. Para vê-la alçar voo,
devo abraçar o que era destinado a você. Viva, minha querida. Por mim... Não se entristeça... Irei
me unir às estrelas.
–Para que precisa sacrificar-se por mim, minha Kyo? – Indaguei, grudada à ela como se
abraçasse a própria vida. A delicada japonesa, tão frágil e encantadora quanto uma flor de lótus,
pegou meu rosto entre suas mãos e beijou-me levemente nos lábios. Fechei os olhos e me permiti
sentir o seu delicado gosto de cereja.
–Porque se eu ficar encontrarei a minha morte de qualquer forma. Sendo assim, que eu
parta de forma honrada. – Kyo argumentou, determinada.
–Do que você está falando? – disse, o sal das lágrimas misturadas ao doce dos lábios
dela que ainda restavam entre os meus.
–Ela já está condenada, princesinha – declarou, por fim, a criatura. – Nada o que fizer
mudará isso...
Fitei os olhos de Kyo, à procura da verdade. Uma cruel certeza assombrando o meu seio
de sobressalto.
–É verdade isso? – perguntei, ignorando os comentários do anjo. Ela assentiu, os olhos
brilhando pelas lágrimas prestes a cair, acompanhando o meu choro. – Você está morrendo, minha
amada? – conclui, tarde demais para fazer qualquer declaração de afeto por aquela que me amava
sem reservas.
– Ao contrário do que pensa, a flor do Oriente não foi condenada por doença alguma, R.
Tudo foi parte de um plano, arquitetado pela ardilosa Mercedes, para punir Kyo por tê-la ajudado.
Por mais que a felicidade a tenha cegado, outros olhos a observavam. Mariana delatou cada um
dos seus atos à dona deste antro nefasto, em detalhes. Assim, na mesma semana que você declarou
seu amor à Lucas, Mercedes começou a envenenar Kyo vagarosamente, de forma que parecesse à
vocês que ela estivesse doente. Todos os dias, sem que percebesse, a sua amada – Kyo olhou-a de
forma indecifrável, misto de amor e ódio brigando em sua face – ingeria pequenas gotas de um
veneno fatal, indetectável e misterioso, com efeito lento, mas extremamente doloroso.
Chacoalhei a cabeça, como se pudesse desfazer tamanha maldade.
–Por quê? – perguntei ao Anjo. Mas foi Kyo quem respondeu.
–Você é a grande atração da Casa dos Prazeres, princesa. Acha que ela te perderia para
quem quer que fosse?
Procurava negar hediondo gesto, vindo de uma mulher tão mesquinha como Mercedes.
Olhei para Kyo, que apenas assentia, fitando-me em silêncio, lágrimas escorrendo pela face.
Abri os braços e deixei que ela se aninhasse em mim, como eu mesmo fizera tantas
vezes, envolvida por seus braços alvos. Contive o choro, já que desta vez os papeis se
inverteriam e seria eu a consoladora. Eu era dor, mágoa, ódio. Voltei os meus olhos para a única
que podia acusar.
– Como você sabe disso, criatura monstruosa? Por acaso colaborou com esse tão
ignóbil ato?
O Anjo assentiu, tomado pela tristeza. – O veneno utilizado foi o meu sangue. – disse-
me, estendendo os braços e mostrando pequenos cortes em seus antebraços. – Junto ao seu maldito
demônio, ela adentrava nesse lugar aos primeiros raios de luar e cortava minha carne, com uma
pequena faca de prata.
Eu tentava fugir, gritar, impedir que fosse utilizada para ato tão cruel, mas ao sentir o
metal abrindo minha carne acabava por me render, mutilada. O que poderia eu fazer?
Não adiantava lançar meu ódio por tal criatura, já destroçada por tantos anos na sua
busca por redenção, aprisionada e transformada em um ser recoberto de culpa. Nós éramos todas
vítimas, prisioneiras de circunstâncias opressoras, sermões e discursos vindos de um mundo
opressor.
Independente de que lado estávamos nesse jogo de damas, se entre as heroínas ou as
vilãs, o segredo para sobreviver era o mesmo; sermos objetos de desejo, invólucros para a paixão
e despojos, força maternal para homens frágeis e solitários. Impedidas de sentir, sorrir ou se
lamentar. Será que naquele ato que se desenrolava diante dos meus olhos havia uma única
culpada?
Antes que tirasse minhas próprias conclusões, Kyo parou aos poucos de chorar, tão
silenciosa como sempre. Ergueu os olhos para mim e, num arroubo, tomou os meus lábios com os
seus, fome e paixão irrompendo, quebrando barreiras que nunca antes imaginara.
Fechei os olhos, ainda úmidos pelas lágrimas e entreguei-me ao movimento da boca
dela sobre a minha, um gosto delicado, mas cheio de fome, mescla de limão, canela e sálvia.
Joguei-me em seus braços, perdi as mãos em seus cabelos negros, lambi a pele em volta do seu
pescoço e, se pudesse, naquele instante, deixaria de lado todo o tempo que urgia e as convenções
sociais para fazer amor com ela, ali naquele chão sujo de lodo.
Afinal, a pior morte é aquela anunciada, poucos instantes antes que ela aconteça.
– Não vá, Kyo. Por favor, não me deixe!
– Pedaço da minha seishin, não vê que já estou condenada? O Anjo já tinha me
encontrado, falado comigo em sonhos, me contado a sua história. Via a dor do que havia feito em
seus olhos e sabia que precisava de meu gomen[54]... Eu a perdoei, assim como fiz com tudo que
me aconteceu até agora. Mas nunca ficaria em paz se a deixasse sofrer, perdê-la por puro medo de
shinu[55]. Por isso, segui você para acabar com isso de uma vez por todas. Preciso apenas que
nunca me esqueça...
–Não preciso que você morra para que eu nunca te esqueça, Kyo.
– Eu já estou morta, princesa. Se ficar e você morrer, o que será de mim? E se
sobreviver e fugir com Lucas, o que restará de Kyo? Sei que ele é um homem bom e a fará feliz.
Amar também é libertar, minha eterna tenshi...
– Sempre vou te amar, Kyo. – Ela assentiu e beijou suavemente a minha testa. Caí no
chão, já sem forças de reagir, dando em sacrifício o meu amor, o sentimentalismo e parte de minha
humanidade. Tudo por um poder além das minhas forças, capaz de me salvar ou me destruir.
Fitei-a enquanto seguia adiante, pela primeira vez altiva, poderosa e cheia de presença.
Em vez de acalmar a alma, Kyo parecia ser capaz de devassar e enlouquecer de paixão quem a
visse caminhar de encontro ao seu destino. Despiu-se do quimono e nua abriu os braços em
direção ao anjo negro que a levaria a morte.
Tentei gritar, mas a minha voz quebrou-se em um soluço no instante em que a flor do
oriente que perfumava a Casa dos Prazeres aconchegou-se entre os braços da criatura, que a
beijou nos lábios, como eu havia feito instantes antes.
Entre o temor e o assombro, assisti Kyo enlaçar o pescoço daquele ser e as asas negras
a envolverem, aceitando por fim o sacrifício.
Chorando, vi Kyo por fim relaxar nos braços de seu Anjo, corpo aos poucos se
dissolvendo, caindo ao chão no formato de diversas pétalas azuis de flor de lótus.
Deitei no chão, braços estendidos em direção a algo que não tinha mais, recoberta pelo
cheiro pungente de flores.
Já estava cansada de chorar, mas não conseguia parar, fonte jorrando incessante
diretamente do peito, na busca de curar as dores por tamanha perda. Mas um barulho me fez erguer
a cabeça: o som das algemas e correntes alcançando o chão.
O Anjo, após receber a sua oferta, se desfazia, também transformando-se em algo novo,
o vento entrando magicamente pelo recinto, tomando força, levando tudo. Parecia que estávamos
em meio a um temporal, chuvas de penas negras e pétalas azuis ao nosso redor, cegando a vista.
Antes de me perder naquele turbilhão, vi que as asas do anjo haviam se desfeito e os
cabelos, outrora brancos, estavam loiros, fios dourados tomando forma. Ela sorria, braços
abertos, os rubis dos olhos se tornando claros, humanos.
Foi nesse instante que ela me fitou pela última vez e me deu sua sentença.
–Será portadora dos poderes que um dia foram meus. Terá em seu corpo uma benção, ou
uma maldição... Isso dependerá da maneira como utilizará esse dom. Possuirá o mundo aos seus
pés, se assim desejar. Mas cuidado, seja sábia em suas decisões. A partir de hoje, irei me sentir
humana. Caminharei em meio aos homens, para reaprender as venturas da mortalidade. Coisas
como o amor, o prazer, o gozo, o ódio e a dor voltarão a ocupar o meu peito, repleto de bem
aventurança. Mas para as minhas últimas lições, R, a Princesa da Lapa, iremos nos reencontrar.
–E quando será isso? – indaguei. Mas não obtive resposta, pois logo em seguida a
misteriosa mulher, outrora chamada de Anjo, desapareceu da minha vista. As penas negras,
misturadas às pétalas, me rodearam, me elevaram pelo ar, transformada em alegria, testemunha de
um grandioso milagre que se desenrolava diante dos meus olhos.
Meus braços foram abertos, bandagens jogadas ao chão. Voltava a ser criança, embalada
pelo misterioso e glorioso som que me levara até ali. Eram como se minúsculos dedos tocassem o
meu corpo, beijavam-me a pele, fazendo com que eu me sentisse única, especial, prometida para
os céus.
Os lábios foram abertos e tal mistura que me sustentava no ar adentrou meu corpo,
convertendo-me em espasmos, dor e fúria. O poder prometido povoava minhas entranhas, tomando
força, mordendo e arranhando.
O ar me sumiu por um momento, enquanto eu caía no chão e me transformava em algo
que nunca fora. Abandonava-se a ingênua, a amante, a apaixonada... Minha pele empalidecia,
quase translúcida, fogo correndo nas veias, a cabeça ardia, cobrindo com novos fios vermelhos
que ali surgiam, desenfreados, ferindo a pele, ultrapassando o limite das costas.
Daquela vez, não iria mais nutrir paixões... Iria sim me alimentar delas. Como a outra
princesa, àquela condenada aos borralhos, eu também me transformava após ser rechaçada por
aquelas que deveriam me ver como uma igual. Tudo passara a ser mais vívido, onde cada detalhe
visto anteriormente abria-se em múltiplos novos nuances. Meu corpo brilhava, coberto por uma
extensa luz. Tudo era demais, como se em mim o mundo se expandisse, contendo em meu peito
infinitas estrelas. Assim como a outra, que através de um belo vestido e um par de sapatos de
cristal encontrou o seu destino, eu me transformei para desenhar os meus próprios caminhos,
tocada pelo poder de uma sombria fada-madrinha.
Me tornara divina, mas para isso tivera de pagar um preço alto demais, onde perdera
partes da minha alma e do meu coração que nunca poderia conseguir de volta.
A Casa dos Prazeres inteira estremecia. Paredes se trincavam a minha volta e conseguia
ouvir, acima de mim, os murmúrios de seus habitantes, altas vozes gritando em minha cabeça.
Sabendo para onde deveria ir, deixei-me guiar, perdendo completamente o controle
sobre a minha vontade.
Será que conseguirei descrever em detalhes o que aconteceu em seguida, Jonas?
É possível discernir sobre o poder divino que me possuíra?
Não sei dizer como, mas em menos de um piscar de olhos, eu estava novamente na sala
central da Casa dos Prazeres, o chão transformado em chaga aberta sobre os meus pés, expondo a
nefasta prisão onde o poder de Mama Mercedes estava aprisionado. Via as meninas recolhidas em
um canto, entre gritos, e Mariana, rosto assombrado em reconhecer a vítima de sua inveja naquele
ser que flutuava no espaço. O barulho atraiu Mama Mercedes, que apareceu no topo da escada,
vestes claras em contraste com seu guardião pessoal, que estava de prontidão, como sempre, às
suas costas. Passos atrás, meu “amado” sogro puxava Lucas, que imediatamente voltou o rosto em
minha direção.
–Você está salva, minha princesa... – murmurou, olhos fitos em mim como se me
enxergasse.
Assenti, alegria pura tomando o meu peito ao vê-lo também salvo. Mas aquela não era a
hora de gestos de piedade. A fraqueza e humanidade, naquele instante, deveriam ser deixados de
lado.
A princesa deposta havia voltado ao seu lar, e destruiria toda a iniquidade que ali
reinava à revelia. De uma vez por todas.
Não tinha dúvidas ou receios sobre os meus atos. Na minha mente, tudo se desvelava.
Nós eram desfeitos, excessos eram reduzidos a nada, indecisões tiradas do caminho. O ato final,
como tanto ansiara o Anjo, havia finalmente chegado.
– Como você conseguiu...? – não deixei que Mama Mercedes terminasse. Com um
simples gesto de mãos, fechei a boca dela, abruptamente.
–Você já falou demais, Mama. – Olhei para todos os que estavam ali presentes, as mais
diferentes reações ao me reconhecerem. – Agora é a hora de acabar de vez com os véus da ilusão
que nos cobriram até agora. Que a verdade se revele – estendi a palma de uma das mãos diante
dos meus lábios e assoprei.
Um pequeno brilho, raio fúlgido saiu de meus lábios, tomando força e tamanho,
correndo o salão.
Uma a uma, as lâmpadas da casa se acenderam, os quartos encheram-se de vozes,
suspiros e música. Podia-se ouvir o burburinho da plateia afoita de cada noite: o espetáculo
estava prestes a se iniciar.
– II –
Apontei para Ninete e Marialva, que olhavam com espanto para a casa que parecia
viva.
– Meninas, peguem as suas roupas e o dinheiro de vocês. Coloquem em uma mala e
sumam desta casa. Atravessem aquela porta e não voltem mais.
Marialva me saudou, como se eu fosse uma de suas deusas, com reverência. Na
verdade, me sentia como Oxum, brilhante e sedutora, imersa em ouro e vontades. Respondi ao
cumprimento e permiti que fosse embora. Ninete, por sua vez, aproximou-se e perguntou, insegura.
– Madam, como vamos embora se não temos dinheiro? Todos os nossos ganhos foram
guardados pela Bête[56] – disse, apontando para Mama, cujos olhos exalavam ódio em minha
direção.
– Isso não será mais um problema – disse, concentrando minhas forças em um só lugar:
o famoso escritório da bruxa... De olhos fechados, estalei os dedos e todos ouvimos uma
explosão. Marialva parou na porta do seu quarto, e não conseguiu esconder um sorriso.
– Que Oxalá me guarde. A porta do escritório do egum abriu-se! – disse a negra, com
seu sotaque enviesado.
– Não só ele, o cofre também – garanti. Os olhos de Ninete se arregalaram e, de cabeça
baixa, disse milhares de “muito obrigados” antes de subir a escada. – Mas não esqueça de pegar
só o que lhe pertença por direito. – Um “podexá” ressoou na parte de cima da casa, me
impossibilitando de permanecer séria.
Olhei para Lucas, com carinho, que pareceu compartilhar do meu estado de espírito.
Éramos mesma alma e coração, unidos por sentimentos e gestos que não conseguiria decifrar. Com
ele, passaria ainda toda a minha vida e compartilharia do seu amor e sua humanidade.
Mas esse não é o momento da história. Agora não é a hora dedicadas às musas, e sim às
fúrias.
– III –
– Marechal Rubens, aquele que já foi tão amado, tão temido... A que devemos a honra
de sua visita? – dirigi minha atenção àquele que seria o meu primeiro alvo.
– Vim buscar meu filho, sua desgraçada! E livrá-lo de uma vez por todas de você,
imunda. – disse, apontando o dedo em minha direção. – Criatura maldita, por fim mostra sua
verdadeira face. É uma cria do demônio, pronta a disseminar a contravenção entre as pessoas de
bem.
Lucas tentava se livrar dos braços do pai, sem sucesso. Os olhos do Marechal estavam
arregalados, saltando das órbitas, a razão perdida diante de uma situação que fugia da realidade e
ordem que ele tanto prezava – Vamos, Lucas, devemos sair desse antro maldito.
– Antro que muitas vezes você chafurdou, Marechal, não se esqueça – revidei,
rancorosa. – Com todas as meninas, sem exceção, o senhor se lambuzou. Afinal, não há cliente
mais preferencial que vossa excelência, o senhor da guerra. Porque não diz a verdade para todos
aqui presentes? Ou para o seu filho?
– Não se atreva! – gritou o Marechal, colérico.
– Sabe porque ele está aqui, Lucas? Para me matar. Acabar de vez com a prostituta que
se recusou a ser sua no momento em que ele veio se vangloriar, dizendo-se melhor que o filho. E
isso é apenas o começo desse emaranhado de mentiras em que baseia a sua vida...
– Como assim? Do que ela está falando, pai? – Vi Lucas procurar pelo pai, em resposta.
Eu era ódio, dor, amargura. Na figura do Marechal Rubem, via não apenas a mãe de Lucas, morta
de maneira injusta. Via cada alma torturada, gotas de sangue derramadas em busca de uma justiça
que não existia.
– Cale a boca, agora! – gritou o homem mais uma vez, antes de torcer o corpo sem ar, a
mão no peito. Via o desespero de Lucas e seus gritos, tentando acudir o pai. Por mais que
quisesse, não poderia acabar com tudo. Não na frente do homem que eu amava.
– Não, Marechal. Ainda não é sua hora de encontrar a morte. Vai pagar vagarosamente
por cada uma das vidas que ceifou. – Calmamente, alcancei o chão e caminhei em direção à
escada onde ambos se encontravam.
Mama Mercedes tentou se aproximar, mas eu a repeli com um gesto, jogando ela e
Brucutu onde Mariana se encontrava. Criaturas malignas que iam encontrar em pouco tempo o seu
destino. Alcancei Lucas e o beijei, aninhando-o em meus seios, chamas envolvendo nossos corpos
sem nos machucar.
– Você tem de sair daqui, amor. Espere-me em sua janela, fitando o Rio Carioca, como
sempre me disse... Durma e esqueça essa tarde, que a sua Princesa da Lapa irá em breve ao seu
encontro. Ande como se a sua visão nunca tivesse lhe deixado, deixe que sua alma lhe diga o
caminho.
Lucas me beijou pela última vez e começou a descer as escadas, levando o que restava
da minha bondade, o último resquício que em mim havia. Marialva e Ninete apareceram, malas
abarrotadas de vestes e dinheiro.
Se prostraram no alto da escada, indecisas se deveriam passar ou não.
–Vão embora, meninas, não tenham medo. Permita que a felicidade as encontre.
–Como podemos agradecê-la, Iyabá[57]? – disse Marialva, sem me encarar.
Pensei por um momento, antes de pedir.
– Lucas acabou de sair daqui, em direção ao Cosme Velho. Peço que velem a sua
caminhada, para que chegue bem.
Ambas as meninas assentiram e correram para fora da Casa dos Prazeres. Ouvi o grito
indignado de Mama Mercedes.
–Ingrata! Maltrata aquela que te criou e permite que a roubem? Em que demônio se
transformou, menina?
–Você nunca me deu ao menos um nome, Mama! Quanto mais coisas como respeito e
dignidade. É mentirosa, dissimulada, odiosa... Você sabe no que me transformei... Ou esqueceu
que os poderes pertencentes agora a mim foram cativos às suas vontades durante tantos anos? Que
com esse mesmo dom que me povoa agora, trouxe o brilho e fascínio a esta casa e as suas
meninas?
Mama Mercedes compreendeu como o destino se voltara contra ela. Olhou para cima, e
perguntou, despindo afinal a máscara de vítima.
– Onde está a feiticeira?
– É assim que a chama? Kyo a chamava de Anjo... – Me perdi um momento em
lembranças antes de continuar. – Bom, ela já não é mais sua vítima, bruxa, e isso é o mais
importante. Está livre, desfez as amarras que a impediam de alcançar a humanidade. Kyo imolou-
se por mim... Ofereceu-se como sacrifício para que a sua feiticeira – disse, cheia de desprezo
aquele que me fitava – passasse para mim os seus dons.
– Não, é impossível! – gritou, inconformada.
– Eu desconheço como fez para aprisioná-la, com quais artimanhas você a algemou
àqueles porões, mas de uma coisa eu sei... Como te destruir de uma vez por todas. Por Norma, por
Kyo, por mim e por todas as meninas que foram utilizadas para o seu bel-prazer dentro destas
paredes... Para que fim cometeu tantos crimes?! – ressaltei, indignada.
– Pelo poder, víbora! Pela beleza! Como acha que uma mulher como eu sobrevive neste
mundo?! Através dos poderes dela, esta casa era mágica, recanto de prazeres inacreditáveis. As
meninas alimentavam àquela coisa que prendi nos porões, e ela, em recompensa, permitia que eu
nem sequer adoecesse. Quer prêmio melhor? Nunca pobre ou imunda... Não seria como minha
mãe, uma coitada, lavadeira tomada pela varíola... Vítima de um homem que a espancava e saía
porta afora toda noite, em busca da próxima dose. Tenho um homem que me deseja e se submete
aos meus caprichos sempre que quero. Neste lugar eu governava, absoluta...
– E utilizava as pessoas como queria. Como fez com Mariana, seus olhos e lábios
dentro deste antro – ao citar seu nome, vi a loira estremecer. Será que vislumbrava finalmente
como fora manipulada? Dirigi-me então a ela. – Acha que ninguém sabia dos seus atos, Mariana?
A sua ganância e inveja a corroeu tanto que a impediu de alcançar o que tanto queria. Poderia ter
sido a mulher mais poderosa desta casa, para os homens mais requintados... E o que sobrou?
Escória, capacho, reflexo do que se transformou.
– Mentira! Você que é a culpada de tudo. Roubou o meu lugar e.... – eu a cortei. – Quem
te disse isso, a Mama? – comecei a gargalhar. – Garota inocente, para ela não existem preferidos.
O reino dela é o do poder, o do dinheiro, como ela mesma acabou de dizer. O posto – e cargo – de
Princesa da Lapa, a mais cobiçada entre as mulheres, nunca foi algo que eu quis. Acha que a
magia dos meus cabelos foi um dom? Para mim era uma maldição, que me impedia de sair de
casa, conhecer a vida lá fora. Era um pássaro engaiolado, a Rapunzel dos contos de fadas presa
em sua torre de véus e brocados, tentando encontrar o seu príncipe encantado em cada homem que
abrisse a porta e fosse gentil com ela. Só agora eu percebo como era fraca, mesmo me fingindo
forte. Depois de ver Norma ser morta apenas por amar, achava que me apaixonar era algo
pernicioso, sujo e imoral. Mas vi que era diferente, Mariana... Nós todas, sozinhas em nossos
quartos, sonhávamos com uma história de amor. Mesmo que Mama Mercedes nos tolhesse,
invertendo os papéis...
– Eu sempre tratei vocês como uma mãe faria. Você sabe disso melhor do que ninguém,
Mariana... – Mama voltou a dissimular, tentando velar novamente a razão da bela loira. Brucutu,
por outro lado, parecia um robô, impassível a me fitar.
– Mentirosa! Que mãe inibe as filhas, exigindo que elas se prostituam noite após noite?
Você perverteu o amor e atenção na sua mais eficiente arma, iludindo cada uma das meninas para
que elas a obedecessem. Tornou-se a salvadora, aquela que cuidou de cada uma delas em
momentos difíceis, como se não quisesse nada em troca. O que ganhamos na verdade? Homens
suados e agressivos que nos tratavam como carne, um simples pedaço a ser amassado e
descartado em seguida. Para que sentir se existe o dinheiro... Não é verdade, Mama?
Por um momento ela se calou. Só então me recordei que o nobre marechal ainda estava
presente, destilando o seu ódio contra mim em voz baixa.
–Vaca, ardilosa, demônio em forma de mulher... Quer destruir a mim e a tudo aquilo que
represento... Vocês não são nada... Puta não é nada.
– Mal consegue ficar de pé, meu querido sogro, quanto mais me inibir com suas
lamúrias. – Como se me desafiasse, ele se ergueu, com a pouca dignidade que lhe restava. Olhou-
me com desdém. Aproveitei a cena para continuar a desmascarar Mama Mercedes.
– Você ouviu, Mariana. É isso que somos para eles... Não mais do que putas. Esse é o
maior prêmio que pode obter, alegria de uma noite para homens solitários. Prato para apenas uma
refeição. Abra os olhos! Não queira defender a quem é indefensável. – Dirigi-me então a Mama
Mercedes. – Olhe o que eu faço com os homens que você utiliza para nos punir.
Toquei delicadamente a mão no peito do Marechal. Aproximei-me, vagarosamente, e
sussurrei a minha maldição para aquele homem capaz de me enojar.
–Não morrerá aqui, seu verme. Pelo seu filho, não por você, quero esclarecer-lhe desde
já. Engolirá cada uma das atrocidades que cometeu. As mortes, os estupros, todos os crimes que
realizaste falsamente em nome dos valores pátrios. Dentro de você, elas se expandirão como uma
gosma negra, um câncer que irá corroê-lo e fazê-lo sofrer. Penará com dores incalculáveis e
morrerá por fim, sozinho, faminto por algo que não conseguirá definir. Falecerá, meu caro, pelo
desamor com o qual tratou todos os seus.
Rubem me fitou, os olhos arregalados, a garganta proeminente, inchada, com se algo ali
estivesse preso. Ele engoliu, o que quer que fosse aquilo e uma palidez tomou sua fronte.
– Vai embora agora, homem. Sua presença não me interessa mais.
Obedecendo-me, ele começou a descer a escada, hesitante. Ao abrir a porta, tremia,
dando o seu adeus derradeiro à última cena desta pantomina. Assumo adiantar-lhe, Jonas, que não
cheguei a vê-lo novamente.
O Marechal Rubem Pontes foi encontrado, no dia seguinte, em uma das ruas do Centro
do Rio, o rosto roxo e a língua negra pendendo para fora da boca. Seus atos acabaram por
consumi-lo.
Mas vejo que seus anseios pedem pelo derradeiro final desta história. Pois naquele
instante, restavam apenas os meus verdadeiros algozes naquele lugar. Mama Mercedes, seguida de
seu impassível e perigoso capanga... E Mariana, que por mais que eu tentasse abrir seus olhos
para a verdade, me via como a verdadeira vilã daquele lugar.
– IV –
Fitava aqueles três seres que, cada um ao seu modo, cometeram tantos atos ruins contra
as pessoas ao redor, apenas para proveito próprio. Mercedes, aquela que mesmo com todo o ódio
que cabia dentro do meu peito direcionado à ela, ainda chamava de Mama, a única mãe que tive na
minha vida; Brucutu, que por amor e fidelidade a esta mesma mulher era capaz de cometer os
maiores crimes e odiosidades; e Mariana, capaz de mentir, iludir e delatar apenas por um
momento de atenção, de se sentir querida.
Quem eu era para desejar puni-los? O que me fazia diferente deles? Fui várias mulheres
em uma única vida, sempre cuidada pelos mais diversos anjos, para cumprir os meus objetivos.
Tive Norma, Kyo, Lucas, a criatura que um dia chamara-se Maria... Todos, a sua forma, como
guardiões, arautos da minha mudança e transformação na mulher que desabrochara, pronta para
amar e punir na mesma intensidade. Será que aquelas pessoas, tão perdidas e egoístas como eu
fora, não precisavam apenas disso... Mudança?
Mas se eu sentia algo parecido com piedade por eles se desvaneceu no momento que
Mama Mercedes, em um arroubo, gritou para Mariana.
– Agora! Jogue o cinzeiro, ele é de prata.
Vislumbrei apenas os olhos recoberto de ódio de Mariana, no instante em que ela pegou
um cinzeiro de prata que havia em cima da mesa e jogou em minha direção. A dor explodiu em
meu ombro, o objeto atingindo-me em cheio, queimando a minha pele. Lembrei-me do Anjo me
dizendo como Mama era capaz de feri-la com a lâmina do mesmo metal.
Caí no chão com um estrondo, o braço inteiro queimando devido ao ferimento. Gemi,
assustada e segurei o braço, tentando me controlar.
– Acabe com ela, Brucutu. Quero vê-la em pedaços! – O monstro de ébano, capacho e
eterno adorador da mulher mais cruel do Rio de Janeiro veio em minha direção.
Consegui me desviar a tempo, antes que suas mãos gigantescas se fechassem sob o meu
pescoço. Levantei-me em um salto e comecei a correr, a fim de aumentar a distância entre nós.
Foi naquele instante que vi a verdade absoluta, aquela que tentava negar: nenhum deles
merecia perdão. A maldade era fator atuante de suas naturezas. Nada que eu fizesse mudaria isso.
Se me mostrasse benevolente, seria eu a vítima. E nenhum deles pararia, sempre em busca de
mais, uma fome incessante de cumprir os seus objetivos, sombra escura a consumi-los, até que
nada mais restasse.
–V–
– VI –
– VII –
Respirei fundo e abri os braços, deixando que o poder pulsasse em mim, com toda a sua
intensidade, uma última vez. Deixei que a fantasia, a mágica que os homens atualmente tanto
desacreditam fosse livre, alcançando espaços, reverberando por toda a sala.
O sol parecia refulgir em minha alma, descendo pelos cabelos que, como chamas,
reverberavam indóceis, vivos. Era Medusa, a portadora das serpentes, pronta para transportar a
minha inimiga em pedra.
– É chegado o momento de atender o seu desejo, Mama Mercedes – disse a deusa que
morava em mim. Mas ela interrompeu-me, pronta a dar a última palavra.
– O condenado não deve sempre ter direito ao último discurso?
Assenti.
– Serei caridosa, diferente de você, Mama. Diga o que deseja...
Neste momento, ela se ergueu do chão, vagarosamente. Ajeitou o vestido e mexeu nos
cabelos, tentando se recompor da melhor forma. Por fim deixou que o sorriso morresse e a sombra
que a rodeava durante toda a minha existência, até o momento oculta, se mostrou.
– Um desejo por outro, minha querida princesa. O que me diz? – antes que eu
respondesse, ela apontou seu dedo de unhas longas em minha direção. – Eu te amaldiçoo, R, a
mais famosa princesa que a Lapa já teve. Terás grandes venturas, seguidas de gigantescas
desgraças... Poderá mudar o mundo aos seus pés, mas nunca trará a visão aos olhos do seu amado.
Conseguirá a riqueza, dinheiro multiplicando entre os dedos, mas será seca, fria e oca, incapaz de
ter descendentes, sentir a alegria dos filhos pela casa. Do que adianta ter belos cabelos se a
cicatriz de sua face nunca se apagará? Propagarás a vida, mas sempre caminhará ao lado da morte.
Este é o meu desejo e minha vontade. Que os anjos caídos guiem o meu último lamento as mais
densas chamas do inferno.
Senti em meu peito toda a força daquelas palavras, alojando-se no coração como uma
mancha, algo que nunca mais sairia da minha alma, como uma farpa eternamente a me incomodar.
Suspirei por um momento, sentindo todo o peso da cruel sentença sobre a minha vida, a
vitória estampada nos olhos de Mama Mercedes. Neste instante, pego toda a dor em mim e a
transformo em desejo de destruição, centrada na figura daquela responsável por todos os atos de
maldade que eu vira durante a minha vida.
– Tudo que deseja para mim, terás em dobro. Melhor dizendo, em triplo, minha cara
Mercedes – estendi os braços e pronunciei as minhas malditas bênçãos para aquela que amara e
odiara com todas as forças vivas em mim – Eis que o poder e a glória que tanto almeja caia sobre
o seu coração e se una as suas sombrias e egoístas vontades e gestos. Deseja jamais ser
esquecida, amada e idolatrada por multidões. Faça assim a sua vontade... Vinde a mim os pobres
da Lapa – gritei, e todas as portas e janelas da Casa dos Prazeres se abriram com um estrondo. –
Benditos sejam os famintos, os leprosos, os ladrões que aqui adentrarem este antro de perdição e
morte. Venham adorar aquela que reinou absoluta sobre vocês. Toquem-na, abracem-na, possuam-
na, carreguem ela como um troféu pelas ruas, deixem que todos a vejam. Abram portas,
arrebentem janelas, atendam ao meu chamado.
Meu pedido virou som, convertendo-se em música e alcançou as ruas. Maravilhada,
permiti que o poder me consumisse, hipnotizando, convocando a escória das ruas, pedindo que
cedessem ao meu canto.
Em poucos segundos, já éramos capazes de ouvir o murmurinho nas ruas dos transeuntes
que se aproximavam, o cheiro de sujeira, os gemidos de fome e dor povoando o ar. Meus lábios
pronunciavam palavras antigas, entoando cânticos para mim desconhecidos, trazendo até a Casa
dos Prazeres os proscritos da região.
Eles chegaram de uma só vez. Uma turba enlouquecida por Mama Mercedes, só por
ela... Permaneci indiferente enquanto homens e mulheres, velhos e crianças, rasgavam suas roupas,
tocavam-na, beijavam-na, a mordiam para sentir o seu sabor. Deixei que a minha alma se esvaísse
enquanto a dama mais conhecida da Lapa rendia-se aos gritos, sumindo em meio à multidão que
aumentava, querendo um pedaço daquela mulher para si, por menor que fosse. Fiquei ali,
observando tudo, até que nada mais restasse. Nem gemidos, gritos ou sussurros.
Quando todos saíram, da mesma forma que haviam chegado, nada mais restava. De
Mama Mercedes, só as lembranças das maldades que ela fizera aos outros. De sua presença, nem
ao menos um fiapo de pano, nem uma pequena gota de sangue pelo chão.
Finalmente o pássaro estava livre. A gaiola se quebrara e eu me permitiria sair e alçar
os céus.
– VIII –
Vazias. Assim estávamos eu e a Casa dos Prazeres. Olhei o salão, onde vira passar
tantos momentos da minha vida. A menina, de cabelos loiros, inocente criança, risonha e peralta,
no seu incessante vai e vem nas escadas, correndo pelos quartos... Perdida entre rendas, lingeries
e perfumes... Correndo pela casa, passeando no alto da escada e, ao descer, se transforma na
jovem-mulher, a encarnação de Afrodite, com seus cabelos vermelhos diante de clientes famintos,
com maços de cruzeiros nas mãos, dispostos a tomá-la para seus prazeres de uma noite. Vem ao
meu encontro a apaixonada, cabelos de graúna, escondendo de si mesma os segredos do seu
coração. Face pálida, começa a sonhar com a liberdade de uma vida que acha impossível de ter.
Por fim, resta a deusa, vitoriosa, mas sem saber como dar o primeiro passo. Seu
coração anseia por mais, só que, pobre divindade, tem o poder do mundo nas mãos, mas não a
receita de como seguir adiante. Encontrar a paz que tanto pediu, noite após noite.
Sentei-me no chão, frágil e mortal, e finalmente chorei. Por tudo aquilo que havia
perdido, e ganhado. Por sair finalmente do mundo que me cercava, mas temerosa do que ia
conseguir... Já era difícil lidar apenas com a questão dos cabelos, como seria viver com os
poderes ofertados a mim pelo Anjo? O que eu me tornara?
Tomada de medo, chorei copiosamente. Lágrimas brilhantes escorrendo pelas minhas
faces, cruzando as mãos e alcançando o chão. Uma, duas, três vezes... E então...
– IX –
– X–
Não sei quanto tempo demorei para chegar ao Cosme Velho e encontrar aquela que seria
a minha primeira morada, inicialmente como hóspede, depois como esposa. Avistei Lucas de
longe, emocionada. Ele estava como eu imaginara em meus sonhos, apoiado na sacada, olhos
fechados, apreciando os barulhos da cidade, quem sabe do Rio Carioca, cujas marolas não
chegavam aos meus ouvidos. Estava cansada, fraca e dolorida, mas consegui sussurrar o seu
nome, repleta de felicidade, no instante em que cheguei ao portão do palacete de sua família.
Por mais baixo que minha voz tenha soado, ele a escutou. Fiquei ansiosa pelo toque de
suas mãos sobre mim, mais receosa de que ele se machucasse tentando me encontrar.
Assim que Lucas me tomou em seus braços, permiti-me tirar as armaduras, abaixar as
defesas, ser apenas a mulher que deseja os cuidados do seu amado. Ele suspirava, tocando minha
fronte magoada com seus suaves beijos, suas lágrimas se derramando sobre minhas feridas, ódio e
dor por minha situação duelando-se em sua voz.
– O que fizeram com você, meu amor? – acariciava-me com cuidado, receoso de
machucar-me. As minhas pernas mal se aguentavam de pé, mas eu não queria sair dali, daquele
abraço que tanta alegria me trouxera. Peguei sua mão entre a minha e a beijei, delicadamente.
– Acabou, Lucas. É só isso que importa agora, meu amado. Acabou-se a princesa, a
rainha, a sedenta por prazeres e noites infames. Quero me encontrar em meio as muitas que fui,
permitir amar e ser amada por você durante o resto dos meus dias. Ressurgir em meio as ruínas e
ser nova, nua, pronta para viver o que até agora me neguei...
Meus lábios encontraram os dele e, naquele contato, a verdadeira mágica começou. Não
a de fantásticas experiências ou demonstrações sobrenaturais de poder. Iniciou-se a vida que
sempre desejei, pássaro de asas abertas rumo ao infinito, a partir do momento que o olhei e disse:
– Eu te amo!
Lucas sorriu, o rosto se iluminando como o de um menino, trêmulo de felicidade e
receoso de que o presente por tanto tempo desejado sumisse, se desvanecesse em meio ao tempo.
Amparando-me com todo cuidado, Lucas me levou para dentro de casa.
– Mãe, me ajude... Por favor, corra aqui!
Foi assim que conheci Heloísa, a mãe de Lucas, aquela que assumiu pela primeira vez o
papel de verdadeira mãe na minha vida. Mas isso foi um pouco depois. Pois naquela ocasião, seus
olhos encheram-se de espanto ao ver-me em estado tão lastimável.
– Chame o doutor Macedo, mamãe. Ela precisa de cuidados.
– Mas quem é essa jovem, meu filho?
– Esta é a minha futura esposa – respondeu Lucas, sem pestanejar. Olhei para ele,
lutando contra as dores que pareciam aumentar. – É uma longa história, mamãe, que no momento
certo eu lhe contarei. Agora precisamos socorrê-la. Ela só tem a nós...
Aquiescendo, ambos me levaram com cuidado para o andar de cima. Dona Heloísa me
despiu, olhos marejados por como eu me encontrava, e colocou-me deitada, coberta por lençóis,
como uma mãe faz com sua filha antes de dormir. Sabendo que finalmente meu coração
encontrava seu pouso, fechei os olhos, pronta para dormir, quem sabe sonhar. Mas antes, quando
só um fiapo de consciência residia em mim, ouvi ela perguntar a Lucas.
– Qual o nome desta pobre menina, meu filho?
– Larissa, mamãe... Larissa...
Assim R perdeu-se no mundo, desvanecida em um lindo sonho. Quem sabe povoa as
fantasias dos incautos ou dos poetas. Da Princesa da Lapa, sobraram as histórias, as lendas que
ainda se contam.
A Casa dos Prazeres tornou-se um esqueleto de concreto, abandonado e cheio de mato,
dando espaço depois a uma famosa casa de shows... Pois é, os lugares mudam, mas o espetáculo
continua até hoje a iluminar a Lapa dos boêmios e turistas. Nunca mais voltei lá, aquela existência
não era mais a minha.
Me adaptei à pele de Larissa, aquela “cheia de alegrias”, como o próprio Lucas me
explicou tempos depois o significado do nome. No quarto, entre braços e gemidos, era os únicos
momentos que R ainda se sobressaía, a suavidade da minha pele contra a rigidez da dele, pelos e
pele misturados enquanto ele abria espaço dentro de mim, as unhas cravadas em suas nádegas
firmes e rígidas.
Nesses momentos, permitia me despir das vestes de boa moça e ser novamente a
Princesa da Lapa, só para ele.
Esta história aos poucos se acaba, meu caro Jonas, pois a partir daí deixamos a fantasia
de lado e voltamos a era da razão. Mentiria se dissesse que o meu poder me abandonou...
Ainda estava lá, para ser utilizado nas horas necessárias. Em cada reunião de negócios,
em cada decisão a ser tomada, eu estava lá, ao lado de Lucas, seus olhos em todas as ocasiões,
pronta para discretamente manipular as situações ao nosso favor. Os cabelos voltaram a crescer,
comuns, mas algo do Anjo ainda residia em mim, gerando poder nas palavras, nos gestos, nas
vontades.
Por isso, por anos, crescemos muito. Cuidando do legado deixado pelo Marechal,
ficamos ricos além do que possa imaginar... Mas nossos sucessos nunca passaram dos materiais. A
maldição de Mama Mercedes me perseguiria até o fim dos meus dias... Como pode imaginar,
crianças nunca correram por essa casa. Me tornei seca, estéril, incapaz de segurar uma criança em
meu ventre.
Quantas vezes choramos juntos, com falsas esperanças que aquela gestação se findaria?
Risos e lágrimas moldaram a minha vida, assim como a maldita bruxa predisse.
A cicatriz também permaneceu, cobrindo minha face como pôde ver. Nunca me
incomodou. Ao contrário, me divertia ver as diversas expressões de espanto que as pessoas
podiam conter. Afinal, que me importava o mundo se Lucas era o único que verdadeiramente me
via? Com seus sentidos, até o fim dos nossos dias juntos, ele enxergava além da minha alma.
Parei por um momento, os olhos marejados... Era o último fôlego antes que tudo
finalmente terminasse. Encostei-me à cadeira e abri a gaveta da escrivaninha. Em meio aos papéis
peguei o retrato de Lucas entre os dedos trêmulos e mostrei a Jonas. Tentaria não deixar que a
minha voz soasse trêmula e me desfizesse em lágrimas. Estava tão próxima de terminar. Precisava
ir em frente.
– XI –
Parei de falar, o silêncio reinando absoluto entre nós, contador e ouvinte, histórias ainda
pairando no ar, tentando ser absorvidas. Relaxei a alma mais leve diante do decorrer dos fatos.
Não me importava se Jonas iria crer ou não na história por mim apresentada. Desdenhava se
aqueles fatos por um momento parecessem inverossímeis. Era preciso que as palavras se
propagassem, crescessem e, de alguma forma o mudassem, para que assim ele transformasse a
vida dos outros.
Já vou, meu amado. Em breve estarei ao seu lado, e nada mais nos separará.
– Preciso te perguntar uma coisa, Larissa. – Assenti, à espera do questionamento. –
Porque acha que eu deveria ouvir a sua história?
– Não acha que é uma bela história de amor, meu caro Jonas?
– Concordo com você que é um belo conto de fadas aquele que você me relatou... Mas o
que isso tem a ver comigo? Como essa sua trama, cheia de elementos fantásticos com almas
gêmeas, criaturas aladas e superpoderes podem ajudar um homem no momento em que só deseja
desdenhar as tolas histórias românticas?
– Porque tudo que lhe relatei vai além do amor entre duas pessoas, Jonas. Contei-lhe
essa história para que descubra o amor que deve sentir por si, aquele perdido entre tantas coisas
que lhe ocupam o dia. Quis mostrar-lhe que o caminho para nos encontrarmos é árduo, muda
constantemente e nos transforma. Permiti que ouvisse tudo isso não porque desejava que
aprendesse a amar ao próximo, mas sim que se amasse, sem reservas ou limites. Vejo que foi só
quando deixei de lado as várias versões de mim mesma que povoaram a minha vida e assumi
minha essência, que consegui finalmente derrotar aquilo que me afligia. Na vida, meu querido
menino, não basta sermos românticos ou devassos, ingênuos ou dominadores, devemos nos postar
diante do espelho e mergulhar nele, abraçando aquela que é a nossa verdadeira natureza. Eu já fui
a idolatrada Princesa da Lapa, mas só quando me vi sem nada pude ser eu mesma. Você é o
Grande Autor Romântico, mas se esquece de que, antes de procurar no outro o que sente, deve
procurar em si mesmo.
Ele foi imediato na resposta, em tom acusatório.
– Mas você teve o Lucas ao seu lado, não foi?
Aquiesci antes de responder-lhe.
– Só que antes de mostrar o que eu sentia por ele, Jonas, deixei que meu corpo
externasse o que na verdade sentia. Meus cabelos foram o que na verdade me salvaram. E mesmo
quando tudo parece estar no fim, todos nós sempre temos duas centelhas que insistem em nunca
nos deixar, duas pétalas azuis que lutam bravamente para voltar a nossa alma, mesmo quando tudo
parece desistir. Por um momento, podemos chamá-las de mágica. Eu, hoje, as chamo de fé e
vontade. Com elas dentro de você, será capaz de conter o mundo em um abraço.
Agora não me restava mais nada a dizer. Fechei os olhos e me recolhi às sombras.
Sentia o peso dos anos nas minhas costas de forma que nunca acontecera antes.
A cabeça latejava em um último alento, vultos do passado tomando forma ao meu redor,
caminhando pela sala, desfilando por minha lembrança. Personagens que brotavam entre as minhas
ideias, galeria povoada de memórias, adentrando por aquele quarto, cumprimentando-me e
perdendo-se no esquecimento. Era hora de ficar só com meus fantasmas, antes de me juntar aos
mortos e seus despojos.
– Agora é hora de nos despedirmos, Jonas. Peço que, ao chegar em casa, escreva como
se o próprio demônio estivesse em seu encalço. – Jonas sorriu e eu o acompanhei. – Permita-se...
Que no ato íntimo de escrever consiga devassar sua alma, colocando não só o seu ponto de vista
sobre a minha história no papel, mas que ela venha entremeada de seus pensamentos. Cresça
enquanto me recria, converte-me em exercício da sua imaginação, leva-me na tua lembrança para
sempre, menino.
–Tentarei fazer da melhor forma possível, amada e temida Princesa da Lapa.
Estendi a mão, o canto dos lábios formando um sorriso, desejando, por um momento ser
jovem novamente e ter o mundo aos meus pés. Ele a beijou, demorando quem sabe um momento
mais que o necessário sobre a minha pele fina, marcada pela velhice.
Emocionada, tirei a mão tão rapidamente quanto ofereci e gesticulei para que ele se
fosse.
–Vá, Jonas. Pois o tempo ressoa pela casa, implacável. Se ficar um momento a mais,
quem sabe ele não nos encontra e nos leve para sempre em seus braços?
Jonas encaminhou-se para a porta, despedindo-se pela última vez, a cabeça repleta de
dúvidas e pensamentos de como agira até aquele momento da sua vida.
No derradeiro instante, antes de desaparecer em meio ao mundo ele parou, pareceu
hesitar por um momento, mas voltou-se; olhou-me nos olhos e indagou.
–E o Anjo? Voltou como prometido para aprender as últimas emoções humanas que lhe
faltavam?
–Pode ser que sim, pode ser que não, Jonas. Quem sabe um dia o próprio não lhe
responda? –Ele assentiu, compreendendo que nunca mais nos veríamos. Em um gesto insensato,
ele correu em minha direção e abraçou-me, erguendo o meu corpo franzino da cadeira.
Não precisávamos de palavras, tínhamos o silêncio que nos completava, preenchia os
vazios, respondia aos mais diversos questionamentos.
Gentilmente, ele me largou. Fitou-me nos olhos e carinhosamente selou os meus lábios
com os seus.
– Obrigado por ser a primeira mulher a me amar de verdade, bela Princesa da Lapa!
Então, e só então, ele saiu.
– XII –
Foi assim, meus queridos, que a Princesa da Lapa recebeu o seu último cliente. Havia
chegado a hora derradeira, o momento de abandonar-se, correr em direção às brumas de que tanto
fugira.
Dentro da névoa encontraria os meus, abraçaria aquela que tanto insistente me rondara,
à minha espera, acompanhando meu amado a velar o meu sono.
Meu amado, poderei agora ser sua novamente. Nossa história foi contada, sentimentos
minunciosamente revirados fazendo-me sorrir e chorar, tornando-te vivo, feliz, ao alcance das
minhas mãos. Tive de te ganhar e perder-te novamente, coração e alma em carne e flor.
Leve-me, pegue-me pelas mãos e corramos pelas brumas. Que a transformação desfaça
nossas carnes, refaça nossos desejos, torne-nos jovens mais uma vez. Espero beijar-lhe e fazer
amor com você no jardim como tantas vezes fizemos.
Mas agora, neste exato momento, desejo apenas ficar no escuro até que tudo silencie.
Lidando com os fantasmas que libertei entre as lembranças.
Revivendo as fantasias incutidas nos desejos... Sozinha. Quase, na verdade. Em minha
companhia ainda resta o passado, esperando pacientemente que tudo se acabe.
Se me perguntarem como eu voltei para casa, depois de tudo que havia escutado,
afirmo que não sei.
Dias depois, o Circo Voador ficou em festa com o lançamento da Princesa da Lapa.
Entre sorrisos, autógrafos e cumprimentos, tentava imaginar como seria a Lapa daquele
tempo, terra de prazeres e boêmia, promessas de amor e dívidas cobradas com sangue. Andava e
tentava imaginar se ali, onde existia a famosa casa de shows, fora um dia a famosa Casa dos
Prazeres.
Ainda não conseguia discernir o que acontecera em meu último encontro com Larissa.
Se eu realmente vivenciara aquilo ou fora devaneio, fruto de uma mente que está criando
constantemente. A única certeza que tenho, é de que também passei por uma metamorfose, e serei
eternamente grato a ela por isso.
Descobri que para encontrar a luz do meu caminho, não tinha que peregrinar dias na
escuridão. Era preciso apenas tirar a venda que cobria os meus olhos para verdadeiramente me
ver.
Consegui destruir a visão deturpada de amor que tinha, o coração entre as mãos, e
permiti-me recomeçar. Permiti-me colocar no lugar do outro, e ontem mesmo consegui ligar para
Luiza. Combinamos um café, e como dois amigos, soubemos perdoar as falhas alheias e desejar o
melhor para o outro.
Agora queria continuar em frente, após encerrar tantos ciclos. Que as novidades
venham! Não sei se já estou pronto para começar uma nova história, sequer à procura de criar
laços. Mas desejo que, quando aquela que eu chamarei de amada finalmente aparecer, seja algo
diferente de tudo que senti. Não quero a estabilidade das pontes. Desejo caminhar na corda
bamba, correndo riscos e aprendendo com eles. Sempre atento, ciente dos meus sentimentos. Isto
torna as coisas mágicas.
Cansado de cumprimentar pessoas, resolvo sentar em um canto, meio escondido do
público. Fecho os olhos, pedindo por um minuto de quietude em meio a tanto barulho.
Minha paz é interrompida repentinamente, quando um par de pequenas mãos chacoalha
meu braço. Fico atento, assustado a deparar-me ali com uma criança, de cabelos ruivos cacheados
até o meio das costas. A pequena me olha, sorridente, a face repleta de sardas e uma engraçada
janelinha entre os dentes superiores. Tento fechar os olhos novamente, mas ela me cutuca
insistentemente.
–Tio, tio, tio, tio.
–Oi.
–Conta uma história para mim, por favor...
–Como assim, pequenina? Quem trouxe você aqui essa hora da noite?
–Minha mãe, tio. – ela fez uma cara de irritada, que só me fez rir mais. – Não muda de
assunto! Quero que você me conte uma história – e se apoderando de meus gestos, já sentou-se no
meu colo.
Rendido àquela espontaneidade, perguntei.
–Me diz primeiro o seu nome.
–Manuela, tio. Agora a minha história. Minha mãe disse que você é contador de
histórias. Por isso quero ouvir uma agora – disse, me dando todas as explicações de porque estava
ali.
–Que tipo de história quer ouvir?
–Uma que tenha princesa, bruxa e príncipe...
–Sabe quais são as melhores histórias?
Ela negou com a cabecinha antes de perguntar.
–Quais?
–As que começam com Era uma vez...
Foi assim que comecei uma nova história em minha vida. Fugindo dos holofotes e
procurando nos pedidos de uma criança o encantamento para fazer da minha vida o melhor.
Espero que um dia nos encontremos, eu e você, em uma noite dessas, quem sabe cercado
por livros, algo que tanto amamos. Que nesse dia, eu possa te abraçar, como um velho conhecido,
e contar como estou feliz. Que a vida segue em frente, e que se estiver em um momento difícil,
pode ficar tranquilo, pois tudo há de melhorar. As dores passam, a alma cura, a ausência se
consome, tudo que é mal sempre vai embora.
Até posso te adiantar que a Manuela, a linda menininha de cabelos vermelhos, ainda
insiste que eu conte uma história para ela todos os dias. E eu faço, antes de colocá-la na cama... E
que tem os mesmos cabelos vermelhos da mãe, e os mesmos olhos, que quando me fitam, fazem de
mim o que desejar...
Mas isso te contarei mais para frente. Não aqui, nem agora. É hora de caminhar agora.
Não hesite, há milhares de possibilidades à sua espera. Basta um pouco de fé, ver o que
há de fantástico na vida, por onde passar. E o mais importante, nunca esquecer de que somos
capazes de construir os nossos próprios contos de fadas.
E também o Felizes para sempre.
FIM
Quando começamos a primeira linha do Era uma Vez até que cheguemos ao ponto final,
muita coisa acontece. Pessoas que entram e saem da sua vida e que, de alguma maneira,
influenciam em sua escrita de uma forma marcante. E com A Princesa da Lapa não poderia ser
diferente. Foram momentos únicos, tristes e alegres, de um livro que me mudou enquanto estava
sendo escrito. Por isso, agradeço demais à esta força motriz que me move, não importa que nome
às pessoas deem. Seja Deus, Oxalá, Destino ou Divino, não importa. Obrigado por me mostrar
como o fantástico nos circunda, mesmo nos piores momentos.
Lílian Farias, nunca vou esquecer como você me perguntou, aos gritos, o que eu tinha
tomado para criar esta história tão louca. Vanessa Bosso e Carina Rissi, obrigado por terem lido
partes desta história e todas as palavras que me deram em troca. À cada uma das Ursetes, que já
passaram da categoria de leitoras e passaram a ser amigas, confidentes e parte intrínseca da minha
vida, amo demais vocês. Michael Josh e Erik Gabriel Thomazi, obrigado por me ajudarem a trazer
essa história de volta à luz, agora através do digital.
À vocês, leitores e amigos, lhes entrego o meu coração. Não existirão palavras capazes
de descrever todo esse sentimento que explode em mim ao pensar em cada um. Sou fã número um
de todos, que permitem que não só as minhas histórias, mas de todos os escritores, entrem em suas
vidas. O que seria de nós sem vocês, leitores?
Sou apaixonado por vocês. E desejo que o fantástico nunca abandone à vida de todos.
[1] Filme clássico lançado em 1950, citado como um dos filmes mais notáveis do cinema americano.
[2] Cara mia – minha querida.
[3] Questa – nesta.
[4] Appassionata – apaixonada.
[5] Principessa – princesa.
[6] Vitta – vida.
[7] Maltrattare molto – maltratar muito, demais.
[8] Uma donna – uma mulher
[9] Merce – bem, produto, mercadoria.
[10] Una favola – uma fábula, conto de fadas.
[11]Libre do mondo dal male – Livre do mundo de mal.
[12]Soldi, potenza, sesso – dinheiro, poder e sexo.
[13] Qualcuno – alguém.
[14] Lattaio – leiteiro.
[15] Nascosto – escondido.
[16] Sporcizia - sujeira
[17] Lontano da qui – longe daqui.
[18] No mai tornare qui – nunca mais voltarei aqui.
[19] Foco – fogo.
[20] Troppo tarde – tarde demais.
[21] Ora non si capisce – agora você não entende.
[22] Davanti dei occhi – diante dos olhos.
[23] Infatti – de fato.
[24] il suo corpo sudato – seu corpo suado.
[25] O apelido de Madame Satã para João Francisco dos Santos surgiu quando desfilou, em 1942, com uma fantasia baseada no
filme do mesmo nome, lançado em 1930, dirigido por Cecil B.de Mille.
[26] Bienvenue, mon cher – bem-vinda, minha querida.
[27] Tenshi – anjo.
[28] Père du ciel – Pai do céu.
[29] Sauvafe monde – mundo selvagem.
[30] Itai – dor.
[31] Seishin – alma.
[32] Hito – ser humano, homem.
[33] Unmei - destino
[34] Hi - dia
[35] Tenshi - anjo
[36] Amai – doce