0% acharam este documento útil (0 voto)
193 visualizações5 páginas

A Consolidação Acadêmica Da Bioética

O relatório Belmont estabeleceu três princípios éticos para pesquisas com seres humanos: beneficência, não maleficência e justiça. Esses princípios se tornaram fundamentais para a bioética e para a proteção dos participantes de pesquisas. O livro Princípios da Ética Biomédica consolidou a abordagem principialista ao aplicar esses princípios a dilemas médicos.

Enviado por

Lenovo Moto G7
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato DOCX, PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
193 visualizações5 páginas

A Consolidação Acadêmica Da Bioética

O relatório Belmont estabeleceu três princípios éticos para pesquisas com seres humanos: beneficência, não maleficência e justiça. Esses princípios se tornaram fundamentais para a bioética e para a proteção dos participantes de pesquisas. O livro Princípios da Ética Biomédica consolidou a abordagem principialista ao aplicar esses princípios a dilemas médicos.

Enviado por

Lenovo Moto G7
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato DOCX, PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 5

RELATÓRIO BELMONT

Todo esse processo de transformação social e, especialmente, de mudança nos


padrões morais de relacionamento entre o profissional de saúde e o paciente ocorreu
entre as décadas de 1960 e 1970, um período fundamental para a consolidação
acadêmica da bioética. Foi também nesse período que o Governo e o Congresso
estadunidenses decidiram instituir, em resposta a uma série de acusações e
escândalos envolvendo a pesquisa científica com seres humanos, um comitê nacional
com o objetivo de definir princípios éticos norteadores para pesquisas. Após quatro
anos, o resultado do trabalho da comissão ficou conhecido como Relatório Belmont, um
documento que ainda hoje é um marco histórico e normativo para a bioética. Para eles,
os princípios éticos escolhidos pertenciam à história das tradições morais do ocidente,
havendo uma relação de dependência mútua entre eles, fato que garantiria sua
harmonia quando aplicados.

A beneficência deve ser vista como um compromisso do pesquisador na pesquisa


científica para assegurar o bem-estar das pessoas envolvidas direta ou indiretamente
com o experimento. O apelo à beneficência objetiva, ainda, idéias como não causar
qualquer dano ou mesmo maximizar os benefícios previstos. A eqüidade social,
entendida tal como o filósofo John Rawls vinha propondo, isto é, como o princípio do
reconhecimento de necessidades diferentes para a defesa de interesses iguais, era
uma das grandes novidades apresentadas pelos membros da comissão. Dentre
inúmeras implicações práticas, a referência a esse princípio exige, por exemplo, um
cuidado redobrado na escolha dos participantes da pesquisa científica.

Em nome disso, a divulgação do relatório, e especialmente a inclusão desse princípio,


foi decisiva para a proteção dos seres humanos envolvidos em pesquisas. No contexto
de incertezas éticas que dominava a pesquisa científica do período, a divulgação do
Relatório Belmont representou um verdadeiro divisor de águas para os estudos de ética
aplicada. A estruturação mínima proposta pelo relatório, representada pela eleição dos
três princípios éticos, foi o pontapé inicial que a bioética necessitava para sua definitiva
organização nos centros universitários e acadêmicos. Foi, então, a partir da publicação
do relatório que teve início a formalização definitiva da bioética como um novo campo
disciplinar.

AS PRIMEIRAS PUBLICAÇÕES

Os anos 1970 marcaram o início da era acadêmica da bioética. Foram publicados os


primeiros livros e artigos sobre o tema, e propostas teóricas específicas para os
conflitos morais característicos da bioética foram discutidas. O livro Problemas Morais
na Medicina, organizado pelo filósofo Samuel Gorovitz e publicado pela primeira vez em
1976, foi o precursor de uma série de estudos que correlacionavam os estudos éticos
às situações médicas conflituosas, tais como o aborto ou a eutanásia. Dentre os
autores da coletânea, alguns se tornaram referência para os estudos da bioética nos
anos 1990, como foi o caso de Ruth Macklin e Susan Sherwin .

« Era preciso, portanto, que os pressupostos de responsabilidade e arrogância da


técnica fossem postos em dúvida, pois, como regra geral, eram eles que justificavam a
autoridade médica em situações de conflito. » Como é possível perceber por essa
publicação, desde muito cedo questões relacionadas aos limites da vida mobilizaram a
atenção dos pesquisadores da bioética. Infelizmente, as situações que impulsionaram
seu surgimento, como a vulnerabilidade dos indivíduos decorrente das estruturas
sociais de dominação, fossem elas de raça, gênero ou classe, foram grosseiramente
abandonadas.

A TEORIA PRINCIPIALISTA

A coletânea organizada por Gorovitz teve o mérito de ter sido pioneira no assunto,
porém foi somente com a publicação de Princípios da Ética Biomédica, de autoria do
filósofo Tom Beauchamp e do teólogo James Childress, em 1979, que a bioética
consolidou sua força teórica, especialmente nas universidades estadunidenses.
Princípios da Ética Biomédica foi a primeira tentativa bem-sucedida de instrumentalizar
os dilemas relacionados às opções morais das pessoas no campo da saúde e da
doença ou, nas palavras dos autores, «...este livro oferece uma análise sistemática dos
princípios morais que devem ser aplicados à biomedicina...»5. A proposta teórica de
Beauchamp e Childress seguia a trilha aberta pelo Relatório Belmont alguns anos
antes, defendendo a ideia de que os conflitos morais poderiam ser mediados pela
referência a algumas ferramentas morais, os chamados princípios éticos. « As
novidades, portanto, o princípio da não-maleficência, que para muitos autores seria uma
declinação do mandamento hipocrático de beneficência, e a substituição do princípio de
respeito às pessoas pela autonomia foram duas mudanças de forte impacto para a
bioética dos anos 1970.

Vale lembrar que muitos autores consideram um erro conceitual denominá-la teoria
principialista, uma vez que as teorias de ética prática ou aplicada farão sempre
referência a princípios éticos como bases norteadoras para os conflitos morais, ou seja,
em alguma medida, quase todas as teorias da bioética seriam também teorias
principialistas. Alguns pontos conceituais do Relatório Belmont mereceram críticas por
ocasião da publicação de Princípios da Ética Biomédica - a definição do princípio de
respeito às pessoas foi o de maior importância. Em nome disso, e no intuito de
demarcar a fronteira entre os dois preceitos éticos, o princípio de respeito às pessoas
transformou-se especificamente no princípio da autonomia. Na verdade, na primeira
edição de Princípios da Ética Biomédica, a referência era ao princípio da autonomia e
não ao princípio de respeito à autonomia, tal como, hoje, Beauchamp e Childress o
denominam.

Para Ezekiel Emanuel, resenhista da última edição do livro, fica evidente o quanto os
autores rejeitaram o modelo original da teoria principialista, sendo oferecida uma
compreensão diferente e até mesmo mais adequada da teoria dos quatro princípios.
Dessa forma, os dois princípios propostos pelo documento transformaram-se em três.
Por fim, o princípio da justiça foi o que menor força adquiriu na proposta teórica do
principialismo. Dentre uma gama possível de razões, Beauchamp e Childress sugerem
que a ausência se deve ao fato de o princípio da justiça ser um referencial de maior
peso argumentativo e teórico entre outras áreas do conhecimento, tais como a saúde
pública, a economia ou a política.

Seguramente, enfrentar o paradigma da justiça no campo dos conflitos morais é uma


tarefa infinitamente mais dura e dramática que a defesa dos três outros princípios
citados. Tendo por base a primeira edição de Princípios da Ética Biomédica, é possível
obter um panorama geral da proposta dos autores. Essa variedade de perspectivas que
a obra acreditava poder alcançar já reforçava de certa maneira o espírito multidisciplinar
da bioética e também apontava para a falência da autoridade da técnica no campo
ético, legitimando a presença dos estrangeiros no debate biomédico. Eles sugerem que
a teoria principialista teria assumido como orientação básica os modelos éticos
utilitarista, de que David Hume, Jeremy Bentham e John Stuart Mill teriam sido a
inspiração, e deontológico, baseado nas idéias de certos filósofos gregos, tais como
Aristóteles e Hipócrates, e mais profundamente em Immanuel Kant?.

Certamente, essa dupla opção teórica, uma combinação frágil que permitiu a entrada
dos primeiros críticos à teoria principialista na bioética, não se deu por acaso. A análise
dos quatro princípios deve, então, ser feita à luz dessas considerações. O primeiro
princípio, e o que maior peso assumiu na bioética desde então, o da autonomia, sugere
que o pré-requisito para o exercício das moralidades é a existência de uma pessoa
autônoma. Seguramente, são valores, assim como o próprio princípio da autonomia,
difíceis de serem definidos.

O princípio da autonomia baseia-se nos pressupostos de que a sociedade democrática


e a igualdade de condições entre os indivíduos são os pré-requisitos para que as
diferentes morais possam coexistir. Nessa construção ideal de sociedade, vários
entraves morais podem ser levantados - o mais importante deles é a definição do que
viria a ser um comportamento intolerante para determinada sociedade, ou seja, até que
ponto o indivíduo poderia exercer sua autonomia. A existência da noção moral de
respeito à autonomia significa que a autodeterminação do agente moral só poderá ser
considerada desde que não ocasione danos ou sofrimentos a outras pessoas. Além
disso, é preciso fazer uma diferenciação entre a autonomia e o respeito à autonomia
dos indivíduos.

As pessoas tradicionalmente consideradas dependentes e, muitas vezes, vulneráveis,


como as crianças, os deficientes mentais, os idosos e mesmo os pacientes dentro de
uma hierarquia rígida e de estruturas fechadas dos serviços de saúde, devem ter sua
integridade e desejos protegidos, muito embora não sejam capazes de exercer
plenamente a autonomia. Em nome disso, o debate sobre a defesa e o respeito à
autonomia tornou-se um ponto-chave para a bioética. Formou-se até mesmo um certo
consenso entre as mais variadas correntes teóricas da bioética de que a preservação
da autonomia de cada indivíduo, e aí incluem-se suas opções morais sobre os padrões
de bem-viver, deveria ser um dos carros chefes da disciplina. A introdução do termo de
consentimento informado foi, então, a saída formal encontrada para que se pudesse
garantir os interesses e a proteção dos pacientes, tanto em situações de pesquisa como
de atendimento clínico.

O consentimento livre e esclarecido como estratégia burocrática de salvaguarda teve


seus méritos, mas também se mostrou contraditório pela própria definição. O fato é que
a capacidade de agir livremente de certos grupos, ou mesmo de indivíduos vulneráveis,
é proporcional ao respeito à autonomia das pessoas que as »protegem«, sejam elas os
cuidadores ou os profissionais de saúde. Muito embora os autores de Princípios da
Ética Biomédica apresentem uma proposta que enfatiza o exercício da liberdade de
todos os atores envolvidos no processo, nas situações concretas esse projeto tem-se
demonstrado praticamente inviável, principalmente no que concerne aos indivíduos em
situação de vulnerabilidade. Já o princípio da não-maleficência, um herdeiro da tradição
deontológica hipocrática, está associado à máxima primum non nocere - acima de tudo,
não cause danos».

Por ser considerado um princípio negativo, em contraposição à positividade da


beneficência, sua aplicação a algumas situações da prática biomédica vem sendo
contestada. Os limites mal definidos entre os dois princípios, beneficência e não-
maleficência, ainda hoje suscitam grandes e acalorados debates. Nesses e noutros
casos, a dúvida moral que surge é derivada da indefinição sobre os valores que
estariam embasando os princípios, como o que viria a ser o bem e o mal para cada
indivíduo. Sendo assim, não é possível dizer se a interrupção da gestação em casos de
graves anomalias fetais será sempre uma atitude baseada no princípio da beneficência
ou da não-maleficência.

Nesse sentido, a fragilidade dos princípios não é derivada de um deslize da teoria


principialista, mas decorrente da impossibilidade de encontrarmos saídas boas ou más,
universalmente válidas. Mas, diferentemente dos três princípios acima discutidos, o
princípio da justiça seria o que aponta com maior ênfase para o papel das sociedades e
dos movimentos sociais organizados na bioética. Seguramente, apesar de o princípio
da justiça estar dentre aqueles que maior importância vem assumindo na bioética desde
os anos 1990, sua aplicabilidade é ainda bastante limitada. A maior dificuldade para o
desenvolvimento de políticas públicas baseadas no princípio da justiça está na
existência de sérias dúvidas sobre o que poderia ser necessário para a sociedade e
que, ao mesmo tempo, também garantiria os interesses individuais.

Em nome dessas dificuldades, o princípio da justiça foi, dentre os quatro princípios


enumerados pela teoria principialista, o que menor repercussão gerou entre os
pesquisadores da bioética. Os princípios lançados na bioética por Beauchamp e
Childress diziam respeito diretamente à relação médico-paciente. Nos anos 1980,
vários pesquisadores, críticos da teoria principialista, empenharam-se em demonstrar a
falácia argumentativa das ideias expostas em Princípios da Ética Biomédica. O
idealismo que permitiu a rápida difusão da teoria entre os pesquisadores da bioética
também determinou sua fragilidade.

O indivíduo idealizado por Princípios da Ética Biomédica é um ser humano sem


contrapartida no mundo real. Mas o fato é que essas ressalvas serviram antes para
reforçar o valor da autonomia como algo intrínseco ao ser humano e, por tanto,
absolutizável, e assim permitiram análises críticas em torno do princípio. E para se
referir à liberdade ou mesmo à autonomia é preciso que a pessoa esteja livre de todas
as formas de opressão social. Definitivamente é preciso uma certa dose de crítica à
hegemonia da autonomia em contextos de desigualdade.

Mas foi exatamente esse idealismo universalizante da teoria o que seduziu os primeiros
teóricos da bioética. A fórmula mágica, «os quatro princípios éticos», converteu-se em
uma espécie de mantra capaz de mediar grande parte dos conflitos morais listados
como típicos da bioética. Nesse sentido, durante quase vinte anos a bioética
demonstrou sua fraqueza em enfrentar a crueldade inerente aos conflitos morais, aos
interesses e desejos das pessoas. Mas, antes disso, como parte dessa guinada teórica
no espírito da bioética, surgiram as primeiras correntes críticas à teoria principialista,
que revigoraram o espírito de dúvida da bioética, preparando o terreno para o
renascimento dos anos 1990.

Você também pode gostar