Jacqueline Ziroldo
Jacqueline Ziroldo
Ao Prof. Dr. Leonildo Silveira Campos, pela orientação e pelo carinho com que nos
conduziu em todos os momentos desse trabalho;
Aos pastores e membros das igrejas locais pelo desenvolvimento da pesquisa de campo;
RESUMO
O culto presbiteriano brasileiro se cristalizou de forma peculiar em relação ao seu estilo
litúrgico. A exclusão de elementos mais ritualísticos somados ás condições de inserção
deram um contorno bem específico a esse culto no Brasil. A sua forma pode ser reduzida a
dois pilares de sustentação: a prédica e a música. A música também se desenvolveu de um
modo peculiar dentro da denominação. Porém, desde início dos anos 90 essa musica
tradicional tem sido abalada com a consolidação do mercado de música gospel. Surgiu
então no Brasil um novo tipo de produção musical, relacionada com o louvor
congregacional, que pelo aspecto emocional e performático, contraria a produção
tradicional. Esse novo modelo de louvor, fomentado pela mídia especializada, pelo
mercado gospel e em acordo com as tendências culturais atuais, tem plena aceitação do
público jovem e dos novos conversos, dificultando a manutenção da tradição. Muitos são os
motivos para tal fato, entre eles a atração que o mercado exerce sobre o jovem presbiteriano
e o papel litúrgico da música nesse culto, que sempre gerou um grande clima de
insatisfação religiosa de alguns sub grupos do laicato. Assim, a produção e reprodução
musical do culto presbiteriano têm sofrido modificações que podem contribuir diretamente
para uma das maiores mutações cúlticas que o presbiterianismo já sofreu desde a sua
inserção entre nós. Esse novo modelo de louvor propiciou uma ruptura com a hinódia
tradicional, que há muito já estava se enfraquecendo. Esta tese discute as mudanças
ocorridas na produção e reprodução da música litúrgica do presbiterianismo e a sua
conseqüência direta no perfil desse culto, bem como os motivos que sustentam tais
mudanças, tanto em uma perspectiva micro como macro social.
ABSTRACT
The Brazilian Presbyterian service has assumed a fixed and peculiar form referring to its
liturgical style. The exclusion of more ritualistic elements, as well as the conditions for
their insertion, gave a very particular outline to the religious service in Brazil. Its shape can
be reduced to two pillars: sermon and music. The music has also been developed in a
peculiar manner within the denomination. Nevertheless, from the early 1990s, traditional
music has been shaken with the fast-growing and consolidation of the gospel music market.
Then, a new format of musical production related to congregational praise emerged in
Brazil, which counteracting with the traditional productions due to its emotional and
performatic aspect. This new model of congregational praise was totally accepted by young
people and new converted ones because it was promoted by the specialized media and the
gospel market and was in harmony with current cultural trends, somehow complicating the
idea of preserving religious tradition. This fact occurred for many reasons, and among
them, we can mention the appeal exerted by the musical market upon Presbyterian youth
and the liturgica l role music played in this service, which has always created an atmosphere
of religious frustration for some laic subgroups. Therefore, musical production and
reproduction of Presbyterian service suffered modifications that can contribute directly to
one of the biggest modifications which the Presbyterian service has suffered since its
insertion in Brazil. This new model of congregational praise facilitated the rupture with the
traditional hymnody, which has ever been weakened long ago. The present study deals with
the modifications that occurred in Presbyterian liturgical music production and
reproduction and the direct results on the religious service profile, as well as the motives
that support those modifications on micro and macro social perspectives.
RESUMEN
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 11
INTRODUÇÃO
Assim, surge um ponto importante a ser ressaltado, pois quando falamos em música
cúltica, atrelamos esta produção às condições possíveis para que isso aconteça. Sendo o
culto o espaço onde a produção e a reprodução musical acontece, ele é o lócus
privilegiado da análise, porquanto estabelece tais condições de produção, reprodução e
consumo do bem religioso. Contudo, ao analisarmos o lócus de produção e reprodução,
temos de situá- lo dentro dos contextos sociais e culturais que cercam, constantemente, a
religião. Trata-se, enfim, de estudar a música de um culto específico localizado em
determinada situação social. Logo, examinaremos a música do culto presbiteriano no
Brasil dentro do panorama de mercado religioso no qual a religião protestante encontra-
se inserida.
Aqui, no Brasil, cujo modelo estrutural de culto protestante veio na América do Norte,
os pastores protestantes, sem dúvida, adotaram a consagração de um modelo
antilitúrgico e informal, mas que se consolidou em exclusividade sacerdotal. O
presbiterianismo insere-se nesse quadro maior e não trouxe, em si, nenhuma oposição
ao panorama geral que aqui se implantou. Por esse motivo, torna-se complexo estudar o
“culto presbiteriano” no país. A problemática existe desde o momento da escolha de
modelo original: por onde começar, Europa ou Estados Unidos? Podemos comparar o
culto presbiteriano brasileiro ao culto calvinista de Genebra do século 16 e, a partir de
12
Assim sendo, esta análise não defende o modelo original considerado “correto”, mas,
partindo do método da sociologia compreensiva, tem o intuito de verificar como os
agentes institucionais e os leigos vêem e vivenciam tal questão. Em outras palavras,
importou-nos conhecer os modelos cúlticos tidos como legítimos e examinar os motivos
pelos quais foram legitimados e as conseqüências advindas dessas posturas. O mesmo
tipo de análise cabe para a própria compreensão do que seja culto protestante em solo
nacional. Não questionamos se o conceito é valido ou não: até que ponto uma reunião
em lares pode ser definida como culto? Antes, abordamos o sentido dado pelos agentes
sociais e, com isso, esclarecemos que este trabalho não é teológico ou litúrgico. Essa
abordagem, no entanto, não elimina o senso crítico pessoal ou a discussão litúrgica.
Aliás, todos os autores que utilizamos para compor o cenário sociológico do culto
protestante no Brasil discutiram criticamente sua liturgia. É o caso de Émile Leonard
(2002), Carl J. Hahn (1989), Jaci Maraschin (1996), Prócoro Velasques (1990) e
Antônio G. Mendonça (1990), pesquisadores que ressaltaram o vazio estético e litúrgico
que o culto assumiu no país.
Não se contesta que, embora a base musical fosse a mesma dos hinos folclóricos do
hinário tradicional, os novos cânticos eram mais alegres, vibrantes e com ritmos mais
marcados. A introdução de novos instrumentos musicais também serviu para alardear
ainda mais o conflito. A guitarra elétrica, o contrabaixo e a bateria eram instrumentos
marginalizados e hostilizados pelo protestantismo brasileiro. A relação com o mundo
secular criou um discurso de inviabilidade do uso de tais instrumentos no louvor a Deus.
A partir de então, o canto congregacional viu-se dividido em uma produção hinódica
oficial, os hinos, e uma produção marginalizada, a dos corinhos e cânticos. Esse clima
de tensão entre a produção oficial e a marginalizada permeou toda a atividade musical
cúltica do protestantismo desde a década de 60 e foi-se intensificando com base na
proliferação de novos modelos musicais.
Destacamos dois pontos dessa condição. O primeiro é que a produção dos cânticos
rompia, parcialmente, com a condição de subordinação da música à predica devido ao
caráter quase totalizante dos novos grupos musicais no culto – que deixaram de
assessorar o sermão, passando a agir de maneira independente. Entretanto, havia ainda,
15
e esse é o segundo aspecto que ressaltamos, uma função pedagógica nesta produção
musical. Ela continuava tipicamente evangelística e tinha por objetivo ensinar.
Com isso, traçamos o objetivo principal de verificar em que medida a produção musical
cúltica do presbiterianismo brasileiro tem sido influenciada pelas novas tendências
mercadológicas da música gospel. Formulamos a hipótese de que o mercado gospel, por
oferecer bens musicais ajustados e compatíveis às novas demandas sociais e religiosas,
está causando um deslocamento da centralidade cúltica da prédica para a música, e isto
se deve à nova função que a música assumiu no culto: a de evocar e despertar emoções.
distinguimos dois lócus de análise, um interno e outro externo ao campo religioso, que
devem estar relacionados a fim de explicar as novas produções musicais com demandas
e condições internas e externas ao grupo religioso. Inclusive, encontramos a própria
condição do campo religioso, de pluralismo e mercado que, por sua vez, vincula-se às
situações da sociedade contemporânea ou pós- moderna. Portanto, as teorias aqui
expostas pressupõem o constante movimento dialético entre o campo religioso e a
sociedade.
Como o nosso objeto de análise é a música cúltica, as teorias de Pierre Bourdieu (1987)
fundamentaram todo o trabalho. A partir delas, procuramos perceber as condições
internas ao campo que envolviam os agentes de produção. Segundo essa teoria, a
música cúltica é considerada um bem religioso reproduzido durante o culto, no qual é
consumido pelos leigos. As teorias de Bourdieu partem do pressuposto da religião como
produtora de bens simbólicos e, por sua vez, estão calcadas na discussão já realizada por
Peter Berger (1985), que anuncia a nova condição da religião: a de secularização.
Assim, a análise do culto inseriu-se no contexto pós- moderno da religião. Por isso,
quando adotamos alguns conceitos de Bourdieu – como “especialistas da religião”,
“produção religiosa” e “consumo religioso” –, situamos a discussão na teoria mais
abrangente do mercado religioso de Peter Berger (1985). Esta teorização mostra como a
religião passou a assumir a característica do mercado. Aqui, o mercado religioso
analisado por Berger gerou a possibilidade de pensar a religião como produtora de bens
simbólicos e produto mercadológico. Portanto, a religião assumiu os novos aspectos da
sociedade atual, o que, porém, precisa ser entendido como um movimento social
inerente ao campo, visto que este não se encontra isolado dos novos contextos pós-
modernos. Para mostrar a dinâmica entre a religião e a sociedade pós- moderna,
utilizamos as contribuições de Stefano Martelli (1995).
A teoria do mercado religioso faz uma espécie de costura das partes em todo o trabalho.
O seu pressuposto aparece em diversos momentos: quando discutimos o culto como
produção religiosa e produtor de bens simbólicos, as diversas formas de oferecimento
de religiosidades e o mercado de música gospel. Este será abordado não só com base
nas teorias da sociologia da religião aqui pontuadas, mas também na relação com as
áreas da comunicação e cultura.
A música gospel é aqui entendida como um produto cultural híbrido (Cunha, 2004). O
híbrido do gospel se revela na sua particularidade de conseguir criar algo novo, o que
chamamos de “salto conceitual”, a partir da co-presença do novo - enquanto novas
tendências musicais e performáticas - e do velho - enquanto a manutenção de um
mesmo tipo de discurso religioso e moral (Dolghie, 2002). Essa caracterítica híbrida do
gospel também foi analisada a partir da perspectiva de resistência que tal produção pode
significar, dependendo de condições específicas, internamente ao campo religioso.
Além disso, o gospel se insere em um quadro maior que chamamos de hegemonia
cultural. Isso porque o consumo desse bem, não só religioso, mas também cultural, está
atrelado aos meios de comunicação, que, por sua vez, são investigados a partir das
mediações sociais que influenciam a atitude do receptor. Essas idéias encontram
fundamentação teórica nos chamados Estudos Culturais do Centre for Contemporary
Cultural Studies (CCCS) da Universidade de Birminghan na Inglaterra. A partir de tais
considerações, analisamos a formação e a expansão do mercado música gospel, contudo
sempre o ligando às condições do campo religioso e, portanto, utilizando-nos da área
das Ciências da Religião.
Quando falamos em consumo e mercado na sociedade pós- moderna, logo vêm a mente
as teorias marxistas que colocariam tanto a música gospel, quanto seus consumidores,
sob a força da produção capitalista e, dessa forma, teríamos um movimento determinista
em nossa análise. Logo, justificamos a escolha em adotar o conceito de “hegemonia
cultural” do CCCS ao invés do termo “indústria cultural”, criado pelos frankfurtianos
que, a nosso entender, denota um determinismo de análise.
mercado gospel. Por isso, foi necessário estabelecer um recorte sobre o campo analisado
– o presbiterianismo brasileiro –, e optamos por estudar especificamente a produção
musical cúltica da Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB).
Porém, como nossa hipótese é a de que a produção musical presbiteriana está sendo
influenciada pelo mercado de música gospel, foi necessário outro recorte que se baseou
na presença efetiva deste mercado junto à denominação estudada. Com isso,
delimitamos o exame aos centros urbanos onde o mercado gospel é altamente difundido.
Certamente, o fenômeno do mercado de música gospel é nacional, porque se vale das
novas comunicações massivas; mas, por motivos de viabilidade da pesquisa de campo,
não pudemos observá- lo por todo o país. Assim, fizemos uma amostragem do que está
acontecendo e analisamos os centros urbanos de São Paulo (SP), Londrina (PR) e Belo
Horizonte (MG). O critério foi totalmente aleatório, buscando-se apenas uma
aproximação local para facilitar as observações in loco. Logo, tanto o recorte
denominacional quanto o geográfico deveram-se à viabilidade da pesquisa de campo.
A base de nosso trabalho de campo se fez a partir das observações in loco nos cultos
locais. A partir dessas observações construímos tipos puros de modelos cúlticos da IPB.
Esses modelos cúlticos foram buscados em todas as regiões de São Paulo, ou seja, em
todas as zonas: norte, sul, leste e oeste. Procedemos assim, para verificarmos a expansão
do gospel e a sua ifluência no culto da IPB, independente da classe social dos jovens e
das igrejas. Buscamos nesse procedimento verificar os vários formatos de culto, que,
sob nossa hipótese, estariam sendo influenciados pelo consumo gospel. Portanto, o
primeiro procedimento metodológico junto às igrejas foi o de perceber, por meio das
observações, as variedades dos modelos cúlticos.
A partir dos modelos cúlticos construídos é que selecionamos algumas igrejas para a
aplicação dos questionários. Estes não nos ajudaram na construção dos modelos
cúlticos, mas na comparação entre os modelos e o consumo de música gospel e na
20
mensuração de qual era a atividade cúltica preferida dos jovens. A vinculação das
entrevistas aos modelos cúlticos foi essencial para que nossa hipótese pudesse ser
intensificada. Isso porque, dados das observações in loco já nos forneciam informações
suficientes para comprovarmos que a música estava assumindo uma preferência em
relação à prédica. Isto pode ser observado nas formas de culto, no tipo de louvor usado,
no número de membros, na interação e na participação das igrejas na hora do louvor.
Entretanto, a aplicação do questionário veio contribuir para a verificação da preferência
da música em relação à prédica, por meio de uma questão específica que buscava
pontuar o “que mais agradava no culto”.
Assim, como o questionário estava vinculado aos modelos cúlticos, nos utilizamos de
questões principais para a tabulação, que foram usadas no trabalho. Foram elas: Você
ouve rádios evangélicas? Você compra CDs de música gospel? Qual seu estilo
preferido? Você já participou de eventos gospel? De quais eventos gospel você já
participou? Indique o que você mais gosta no culto de sua igreja. Caso você goste do
louvor da sua igreja, o que mais lhe atrai nele? Verificação da função do dirigente de
louvor1 .
1
Vide questionário completo nos anexos finais.
21
Como as falas dos pastores foram pouco usadas, devido ao sigilo pedido, utilizamos a
análise do discurso institucional e das “outras falas” para construirmos o texto. Assim,
buscamos mostrar a tensão entre uma ala mais conservadora da IPB, que se entende
como guardiã da tradição da denominação e uma ala mais liberalizada, articulada por
pastores de igrejas com um culto mais contemporâneo e pelos agentes musicais que se
utilizam da música gospel.
É importante explicar ainda que quando afirmamos que o fenômeno do mercado gospel
é geral ao protetantismo histórico, não estamos com isso dizendo que os meios e
mecanismos da influência da música gospel foram idênticos entre as denominações.
Estas necessitariam ser estudadas de forma individual para que se pudesse analisar os
efetivos movimentos internos que favorecem a influência da música gospel nos
respectivos cultos.
Mesmo evitando o uso do termo evangélico, ele aparece algumas vezes no trabalho,
quando, de fato, queremos mostrar a relação desse campo com o mercado gospel.
Dentro da classificação de igrejas evangélicas, estão as “neopentecostais”. Este termo já
é notoriamente usado na área acadêmica, e não temos a intenção de desconstruí- lo. No
entanto, o neopentecostalismo é geralmente entendido e analisado como um subcampo
evangélico, cuja maior característica encontra-se no caráter empresarial das igrejas. As
igrejas neopentecostais têm grande repercussão nacional, utilizam- se da mídia, possuem
um corpo sacerdotal altamente hierarquizado e administrativamente recorrem a
estratégias de marketing. Muitas vezes, fazemos referência a estas igrejas e, quando
aplicamos o termo neopentecostal, trazemos implícito todos os pontos que levantamos
aqui.
Contudo, em alguns momentos do trabalho, referimo- nos a igrejas que não estão nessa
categoria, mas também não se enquadram no protestantismo, quer de imigração ou de
missão, ou no pentecostalismo clássico. Basicamente, tais igrejas incorporaram do
neopentecostalismo o novo comportamento religioso de inserção cultural, mas não
adotaram seus posicionamentos empresariais. Por isso, passamos a chamá- las de
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“comunidades autônomas”. Estas não são denominacionais, não possuem filiais e são
igrejas bem menores do que as que usamos na categoria de neopentecostal.
Resta ainda uma última explicação. Como o presente trabalho não é litúrgico, utilizamos
o termo “cúltico” para fazermos referência à todas as práticas que acontecem nesse
espaço – daí, a terminologia “música cúltica”, que significa música produzida com a
finalidade de ser usada no culto. Evitamos o uso da palavra “liturgia”, porque
consideramos que esse termo traz o sentido semântico da palavra para a prática cúltica.
Com isso queremos dizer que não conferimos à toda produção cúltica a qualificação de
produção litúrgica. Ao procedermos assim, embora não discutamos a respeito de
liturgia, mostramos o nosso posicionamento do que consideramos litúrgico. A palavra
liturgia provém do termo grego leitourgia, composto pelas palavras ergon, que significa
trabalho, e laós, que significa povo. Na Grécia Antiga, liturgia significava trabalho
público, serviço em prol da cidade. Segundo James White (1997, p. 20), a liturgia podia
significar tanto a realização de um serviço para a cidade quanto o pagamento de
tributos. O termo secular ganhou significado religioso, e o Novo Testamento relaciona a
palavra com o ato cúltico. Nesta concepção, a liturgia seria o serviço cúltico.
Todavia, no cristianismo, esse serviço é realizado por todos uma vez que o sacerdócio é
instituído para todos os conversos. Por essa razão, a liturgia torna-se tão contraditória no
culto cristão: ela seria o exercício, o serviço prático do culto, mas deveria ser realizado
por todos os participantes. “Denominar ‘litúrgico’ um ofício é indicar que ele foi
concebido de modo que todas as pessoas que participam do culto tornem parte ativa na
oferta conjunta do seu culto” (White, 1997, p. 20). Veremos, entretanto, que esse
princípio semântico foi perdido em muitos momentos da história do culto cristão.
Assim, pedimos licença aos especialistas na área, porque não poderemos dar a devida
atenção à discussão da liturgia em si - nosso olhar sobre o culto é sociológico. Desse
modo quando usamos a expressão “música cúltica” ao invés de “música litúrgica”,
assim o fazemos porque consideramos que a primeira revela o caráter sociológico da
produção religiosa no culto, enquanto a segunda denota o sentido teológico e semântico
do termo. Porém, mesmo tendo claramente esta distinção, não podemos aplicá- la em
todos os casos. É o que ocorre quando, por força de conceitos já fixados historicamente,
precisamos usar as expressão “liturgia”, “elementos litúrgicos” ou “modelos litúrgicos”.
24
Apresentação
implantado no país e de como a produção musical cúltica foi formada e fixada. Uma vez
que o protestantismo histórico trouxe uma unidade cúltica entre as denominações,
examinamos, primeiro, a fixação do modelo geral e, no segundo momento, estudamos
como o presbiterianismo apropriou-se deste modelo. Essa discussão divide-se em três
capítulos.
A terceira parte do trabalho fecha, enfim, a discussão das variáveis que aparecem no
tema: culto e tendência mercadológica gospel. Como o culto já foi discutido na segunda
parte, iniciamos a análise com as discussões sobre o mercado de música gospel. A
separação é indiscutivelmente metodológica, pois mostramos a relação dialética entre as
26
tensões na área da hinódia e a formação deste mercado. Desse modo, dividimos esta
parte em dois capítulos. No capítulo seis, denominado O mercado de música gospel,
mostramos como se deu a formação desse mercado no Brasil e quais suas principais
características. O mercado é abordado com base nos conceitos teóricos macro-sociais
que situam a religião nas novas concepções pós- modernas e já introduzem a discussão
com as especificidades do campo brasileiro.
PARTE I
REFERENCIAIS TEÓRICOS E HISTÓRICOS DA
PRODUÇÃO MUSICAL CÚLTICA
O tema do presente trabalho relaciona a produção musical religiosa com dois espaços.
No primeiro, encontramos a música inserida no contexto de culto protestante e, no
segundo, a análise enfoca o mercado de música gospel, fora das fronteiras eclesiásticas.
Assim, atualmente, a produção e reprodução musical no culto estão vinculadas à
produção e à reprodução do mercado de música gospel. Portanto, para a análise desta
relação, necessitamos de referenciais teóricos para ambos os espaços.
dessa denominação, que são trazidas aqui um uma construção histórica. O entendimento
do funcionamento cúltico do protestantismo, a partir dos referenciais teóricos expostos,
devem ser compreendidos pela luta que se desenvolveu dentro do campo religioso
cristão.
29
CAPÍTULO 1
UM OLHAR TEÓRICO SOBRE A PRODUÇÃO MUSICAL
CÚLTICA
O culto é o espaço que propicia a produção de expressões religiosas que têm sentido
para o grupo. Ao mesmo tempo, constitui-se a partir da produção de expressões que
podem torná- lo delimitado em um espaço e tempo. Ou seja, o culto define-se a partir
das próprias expressões que produz, expressões religiosas que só podem ser analisadas
porque se manifestam de forma objetiva e externa ao sujeito que vive a experiência
religiosa. Só se pode realizar a análise sociológica nestas expressões objetivadas. A
produção cúltica é objeto da sociologia à medida que esta analisa objetivamente todos
os processos que constituem as produções. Isto é, a sociologia da religião não examina
apenas o tipo de produto que existe em um culto, mas também a maneira como este
produto foi elaborado, qual o sentido que adquire para o grupo e quem, de fato, é
encarregado por tal produção.
Ora, no culto cristão, a música, adquire uma das formas mais elaboradas da expressão
religiosa. A força intrínseca dessa arte proporciona, com muita facilidade, o sentido
comunitário da experiência religiosa. A música estimula corpo e mente e ativa a emoção
e a sensibilidade. O grupo que canta as mesmas canções compartilha das mesmas idéias
e sentimentos e, assim, fortalece os laços comunitários tão essenciais à sobrevivência do
próprio grupo religioso. Assim como outras formas de expressão, a música é uma
30
Portanto, música cúltica é experiência religiosa objetivada e, apenas nos processos que
envolvem a objetivação, a sociologia pode atuar analiticamente. Desse modo, podemos
falar em uma sociologia da produção e reprodução musical cúltica que analisa todo o
contexto no qual ela acontece, o culto e as instâncias que permeiam essa atividade antes,
durante e depois de sua efetiva realização. As instâncias da atividade cúltica, por sua
vez, interagem com processos que não estão apenas relacionados ao campo religioso,
como doutrina e tendência litúrgica, mas também com outros campos sociais –
principalmente, a cultura e a comunicação – visto que o culto religioso é a expressão
religiosa. Para que exista expressão comunicável, o grupo religioso utiliza, mesmo sem
pensar previamente, os mecanismos culturais, comunicacionais e, logo, expressivos de
que dispõe.
Assim, passamos à análise dos aspectos tanto internos quanto externos do culto que
interagem com os processos de produção cúltica. Destarte, embora nosso interesse seja
propriamente a produção musical cúltica, todos os outros tipos de expressões religiosas
produzidas no culto passam pelo mesmo processo. Por isso, trataremos da produção
cúltica de forma geral, utilizando-nos dos referenciais da sociologia da religião.
O culto, antes de tudo, pode ser definido como um ritual. No ritual, estão presentes os
ritos que, interligados de forma coesa e simbólica, dão sentido aos celebrantes. O rito é
a repetição gestual que traz à memória o ato fundador que o originou. Portanto, trata-se
de um movimento que se exterioriza ou a partir de algo subjetivado, a experiência
religiosa, ou pode levar a ela. Nesse sentido, dizemos que o rito é a manifestação
objetivada da religião, e, por conseguinte, o culto também o é. O culto é o espaço no
31
Por meio do rito, o indivíduo pode ter uma experiência religiosa ou emocional naquele
momento. O que acontece? O rito foi construído a partir da experiência individual, ou é
o que permite a construção desta experiência subjetiva? Propomos uma resposta
dialética entre os movimentos de exteriorização e interiorização dos ritos, partindo do
princípio de que o ser humano constrói e é construído pela sociedade e todas as suas
formas ideológicas e institucionais.
Peter Berger (1985, pp. 15-41) mostrou esse processo dialético do ser humano com a
sociedade, identificando três divisões dessa dinâmica: “exteriorização’, “objetivação” e
“interiorização”. A exteriorização seria a “necessidade antropológica” do ser humano,
que não pode ser entendido como um ser que, primeiro, concebe, recebe informações e,
depois, expressa-se com o mundo, nem tampouco como um ser que só concebe idéias
subjetivas de modo totalmente autônomo e, logo em seguida, exterioriza-as. Berger diz
que o ser humano é, desde sempre, exteriorizante, e assim o é por uma essência
antropológica. Ou seja, já nascemos com o ímpeto de nos comunicar, expressar-nos com
o exterior. Nesse processo de interação com o que nos é exterior que o ser humano de
fato “se torna” humano – não um movimento primeiro, mas uma imediata comunicação
com o exterior desde que nascemos. Nessa interatividade, o ser humano cria, transforma
e constrói o mundo em que vive. O fato de ser exteriorizante possibilita que atue sobre a
cultura; aliás, que a construa e recrie. Por tal motivo, “a cultura consiste na totalidade
dos produtos do homem. Alguns destes são materiais, outros não” (Berger, 1985, p. 19).
A exteriorização é, portanto, aquela natureza antropológica e social que permite ao ser
humano construir seus mitos e ritos, doutrinas e cultos, como formas distintas da
expressão religiosa. As idéias e as linguagens – e, aqui, todos os tipos de linguagem são
importantes tais como gestos corporais, palavra e música – são construídas pelo ser
humano como forma de exteriorização da religiosidade.
Quando o processo de exteriorização ocorre, o que foi exteriorizado, seja o que for,
torna-se quase autônomo do ser humano que o criou. Em outras palavras, ganha vida
própria, desvinculando-se de seu criador: é o processo de objetivação. Pensemos na lei:
os seres humanos a criam, mas, ao ser exteriorizada, assume uma força e vitalidade fora
do ser humano e age em sua direção, forçando-o a cumpri- la. A objetivação é um
32
processo social fortíssimo exatamente porque o que foi construído e idealizado adquire
autonomia em relação ao ser humano como se sempre tivesse existido, bem ali, sem a
presença de quem o criou. Não é difícil perceber tal processo no campo religioso: a
doutrina, exteriorizada pela capacidade humana, torna-se algo fora do ser humano e age
em sua direção, forçando a sua total incorporação. Ou seja, o que foi objetivado, o que
está externo ao indivíduo, compele um movimento de interiorização; é quando o ser
humano absorve, internaliza as idéias, expressões e criações e passa, de certa forma, a
sujeitar-se a elas. O exemplo mais tranqüilo para entender este processo é o da própria
cultura. Desde a infância, os padrões culturais – e aqui se inclui, com muita força, o
padrão moral – são introduzidos de forma que o comportamento individual, na
realidade, seja o comportamento esperado pelo grupo.
No campo religioso, ocorre o mesmo. Quando afirmamos que doutrinas e ritos são
construídos, queremos dizer que ocorrem os processos de exteriorização, objetivação e
interiorização das formas doutrinárias e ritualísticas. A grande questão, e que julgamos
essencial nesse trabalho, é entendermos que essa dinâmica é inerente à vida social do
grupo humano. Isso quer dizer que existe uma necessidade antropológica e social que
permite ao grupo construir as crenças, os ritos e as instituições religiosas. Somente
podemos assumir a postura de analisar tais elementos partindo da premissa da dialética
proposta por Berger. Ou seja, há um construto constante em direções opostas e
dependendo de várias circunstâncias um desses processos poderá ser minimizado ou
maximizado.
Focando a teorização para o culto, notaremos que os ritos que o compõem estão
objetivados e têm a função, quase premeditada, da interiorização. É como um método de
reprodução didática: o rito deve ativar um processo de memória, de lembrança da
experiência religiosa. Sem dúvida, a objetivação e a interiorização são fortes no rito,
porque ele cumpre exatamente o papel de socializar a experiência. A tendência do grupo
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No caso do cristianismo, como de ouras religiões fundadas, o rito tem a função de trazer
à memória o líder religioso, do qual se originou o grupo. A objetivação do rito acontece
à medida do processo de institucionalização do movimento, e a sistematização de uma
atividade cúltica faz parte inerente desse processo. O cristianismo pode ser situado na
classificação que Joachim Wach (1990, p. 168) fez como um “agrupamento
especificamente religioso”. O maior critério desse tipo de grupo é o reconhecimento do
carisma religioso. Mais peculiarmente, isso se dá nas religiões fundadas, que se
desenvolvem a partir da experiência religiosa do fundador ou líder carismático. Este
líder arregimenta discípulos em torno de si, cujos sentimentos de solidariedade e
fidelidade, criam uma nova forma de organização social. Neste agrupamento, a
admissão no grupo requer o rompimento com o passado, processo chamado de
conversão à nova religião. Pode até mesmo significar um rompimento com as atividades
cotidianas, bem como mudanças nas relações sociais e religiosas antes estabelecidas. O
grupo torna-se separado do mundo, no sentido de criar para si novas maneiras de
comportamento, dirigido a partir do líder. Por tal motivo, Wach salientou o caráter
missionário desse tipo de associação religiosa que deseja arrebanhar o ma ior número
possível de pessoas.
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O líder carismático, segundo Max Weber (2000b, p. 159), é tido pelo grupo como
dotado de qualidades extracotidianas e, por tal motivo, são-lhe atribuídas características
sobrenaturais ou sobre- humanas. Este líder carismático é o que provê a experiência
religiosa. Os discípulos formam o círculo mais próximo, e a força de coesão do grupo
baseia-se, no momento inicial do movimento, na força livre e autônoma do carisma.
Nesse primeiro momento, há o que Weber (1999, p. 325) chamou de “carisma puro”.
Em torno dos discípulos, os seguidores da nova religião começam a surgir. O grupo é
estruturado socialmente pela figura do líder a tal ponto de que seu sistema econômico
gira em torno da experiência religiosa. Weber falou sobre o caráter tipicamente
socialista desse início de associação, cujo princípio se faz pela solidariedade e amor
fraternal que unem os discípulos e seguidores em torno da figura carismática.
Com a morte do líder, o grupo sofre a ausência do provedor da experiência, que, então,
tem de ser revivida. É estabelecida uma crise imediata que marcará o surgimento de
uma nova fase do grupo, sofrendo assim, uma transformação estrutural. A unidade e
solidariedade dos discípulos e seguidores encontram-se ameaçadas, e, para a
manutenção do grupo e da experiência religiosa do fundador, acontece uma mudança
radical no carisma. A dominação pura do carisma é rompida, e, nisto, ocorre o processo
de institucionalização por meio da rotinização da experiência carismática. Segundo
Weber (1999, p. 332), as motivações para tal mudança são os interesses do grupo em
transformarem o carisma em uma propriedade permanente da vida cotidiana. Contudo,
com isso, muda-se radicalmente o seu caráter.
A sistematização doutrinária e o culto são as ferrame ntas mais estratégicas para que a
experiência religiosa possa cristalizar-se. Ou seja, a continuidade da experiência
religiosa se expressa nas formas doutrinárias e cúlticas, sendo o líder fundador
transformado em objeto do culto. Em geral, a sistematização inicia-se com os próprios
discípulos, que são, nessa fase do grupo, as autoridades máximas da religião pré-
concebida (Wach, 1990, p. 172). A partir desta autoridade é que ocorre a formação do
que Wach denominou de irmandade, que se desenvolve em torno de um serviço
religioso organizado, isto é, cada vez mais objetivado. A organização religiosa,
portanto, é o produto da tentativa de perpetuar a experiência religiosa carismática. Não é
difícil percebemos que, no caso do processo de institucionalização, um movimento
muito forte de interiorização tem de ser feito para que a permanência da experiência
35
religiosa seja garantida. Culto, doutrina e organização institucional são mais do que
nunca objetivados e interiorizados. Nas palavras de Wach (1990, p. 174):
Queremos dizer, com isso, que o culto é um local de relações humanas, realizado por
seres humanos. O que quer dizer que ele é produzido pelo grupo religioso com o fim de
adorar uma divindade específica. Tal definição sociológica permite que a expressão
“prática religiosa” seja entendida e analisada por essa área. Assim, tornamos a própria
definição de religião em uma definição sociológica. É, na essência, a idéia básica que
tomamos de Otto Maduro (1983, p. 31), que entende por religião:
A definição que tomamos de Maduro é parcial e não tem intenções de englobar todo o
fenômeno religioso. Ela é metodologicamente operacional e “procura recolher e
expressar um aspecto das religiões: o aspecto de fenômeno social presente em todo fato
religioso” (Maduro, 1983, p. 41). O que significa dizer fenômeno social no fato
religioso? É assumir que toda forma de expressão religiosa, tanto a teórica (doutrinária)
quanto a prática (cultual), realiza-se por meio de convenções humanas e não sagradas.
Aqui, não entramos na discussão sobre a “verdade’, o divino ou a fé. À parte das
considerações a respeito do fenômeno religioso, a expressão é vivenciadamente
construída entre e por seres humanos. Estamos, assim, analisando o que objetivamente é
produzido a partir da experiência religiosa, formas concretas, culturais e sociais.
Essa definição de religião tem ligação direta com o conceito de campo social,
desenvolvido por Pierre Bourdieu (1983, p.89) de que “os campos se apresentam à
apreensão sincrônica como espaços estruturados de posições (...) cujas propriedades
dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independente das
características de seus ocupantes (...)” O limite de um campo é determinado pelos
agentes internos, que ajudam a construir a identidade do campo. Mas, de acordo com
Bourdieu isso não é tarefa fácil, ao contrário, o campo é um espaço de luta constante. À
38
medida que um campo vai sendo desenhado pelas lutas interna, vai se estruturando e
adquirindo relativa autonomia em relação à outros campos. É a partir dessa dinâmica
que um campo cria suas próprias tradições e valores, nem sempre aceitos por outros. Por
isso Bourdieu (1983, p.89) afirma que exitem leis gerais sobre os campos, como por
exemplo, a luta constante, como leis específicas, próprias de cada campo, que são seus
valores internos.
O que se pode constatar, sem dúvidas, é a inter-relação existente entre culto e doutrina
que, segundo Wach (1990, pp. 37,38) consiste na pequena subordinação do primeiro em
relação ao último. Ele escreveu que “aquilo que é formulado na declaração teórica da fé
realiza-se em atos inspirados religiosamente”. Isto não implica em uma ordem de atos,
mas na relação entre eles. Wach declarou a falácia comum de se acreditar “que a teoria
é a parte mais significativa ou essencial da religião”. Ao contrário, o autor acredita que
o culto seja o eleme nto que mantenha viva a religião (1990, p. 40).
2
Sobre esse assunto, indicamos a leitura da obra As Tribos de Iahweh: Uma Sociologia da Religião de
Israel liberto- 1250-1050 a.C.de Norman K. Gottwald (2004).
40
então, concluir que o culto cristão tem a dupla função social de promover a integração
do grupo religioso e, ao mesmo tempo, excluir os que não pertencem a mesma religião.
Portanto, une e inclui o grupo religioso internamente e, ao mesmo tempo, torna-se o
espaço que delimita a separação com o mundo – o espaço sagrado.
Em certa medida, podemos identificar que, quanto mais nacional for a religião, menos
força de coesão social haverá no culto. Não porque ele não tenha esta força ou
capacidade, mas porque não necessita ser o espaço para tal experiência social. Já nas
religiões que exigem conversão, quanto mais minoritário for o grupo em relação à
sociedade na qual está inserido, mais o culto exercerá um papel integrador sobre os
membros da religião. No caso do cristianismo, este papel pode ser muito bem percebido
pela transformação que sofreu, de grupo minoritário à religião nacional. Nessa dinâmica
inerente ao culto, constrói-se a relação deste com a sociedade e suas várias instâncias.
Bourdieu, à medida que uma sociedade mantém relações mais complexas, como a
divisão social do trabalho e a divisão do trabalho intelectual, há, no campo religioso,
uma desapropriação da produção religiosa das mãos dos leigos passando para o controle
de um corpo especializado, o clero. O processo, acima de tudo, acompanha o tipo de
sociedade na qual está inserida a religião.
Dentro desse contexto, segundo Bourdieu (1987) e Otto Maduro (1983) há um ponto
crucial em todo o processo da produção religiosa: o produto religioso tem de ser
efetivamente consumido para que a ideologia religiosa seja propagada. Isso significa
afirmar que a cosmovisão produzida pelos especialistas/clérigos, de acordo com a
ideologia religiosa, precisa ser recebida e incorporada pelos leigos. É a esta situação que
denominamos consumo religioso. Para que se efetue o consumo religioso, é necessário,
42
porém, existir uma relação entre a procura religiosa – ligada aos leigos – e a oferta
religiosa – relacionada ao produto oferecido pelo clero.
religioso é realizado pelo leigo na maneira mais pura de controle institucional. No culto,
são reproduzidos os discursos teológicos, os símbolos, os sacramentos e as diversas
formas de expressão prática da vida religiosa como cânticos, orações, intercessões e
unções. É nesse terreno que o grupo de leigos consome, por meio da aceitação passiva
das práticas litúrgicas, a ideologia religiosa. É nesse espaço, portanto, que o clérigo
(sacerdote) tem de manter habilmente a satisfação religiosa dos leigos sem prejudicar a
ideologia religiosa da instituição.
Acontece que o culto também é local de produção religiosa, e isso se deve à sua
dialética com a doutrina. Podemos facilmente presumir que a leve subordinação do
culto à doutrina encontre explicação na categoria de reprodução religiosa. Esse processo
é relativamente fácil de ser verificado. Porém, como o culto não está totalmente
submisso à doutrina, surge uma tensão entre as práticas cúlticas e as expressões
doutrinárias. Existe até mesmo a possibilidade de que a prática cúltica seja desviante da
doutrina. Tal situação pode ser exemplificada a partir dos estudos de Mendonça, que, na
obra O Celeste Porvir (1995), mostrou a diferença entre a teologia oficial e a teologia
cantada do protestant ismo brasileiro.
Essa proposta analítica nos leva para fora do campo religioso, porque os interesses
religiosos dos leigos se transformam devido às suas interações e vivências em outros
campos sociais. Portanto, o que acontece em outros campos pode interferir na demanda
religiosa. Se isso acontece é porque a religião é mais um campo social doador de sentido
e não o único. É por isso que ela, inclusive, necessita dispor de bens simbólicos que
sejam eficientes para satisfazer o grupo de leigos e nisso ela disputa com outros campos
e com ela mesma. Essa situação se faz pela condição de pluralismo religioso, que
segundo Berger é o resultado do processo de secularização pelo qual passou a
sociedade.
Os dois pontos levantados não estão separados, mas tão somente os ressaltamos a fim de
mostrar que não estudamos a religiosidade em nível individual, mas como as
instituições religiosas constroem as possibilidades de experiência com o sagrado e
produzem bens simbólicos que garantem a salvação. Nisso, os pontos ressaltados
45
Contudo, independentemente das demandas dos leigos, a lei interna das organizações
religiosas sempre obedece ao princípio de manutenção da tradição. Este é um princípio
institucional muito forte no campo religioso e que causa uma das grandes oposições
com o indivíduo que vive em constante contato com inovações tecnológicas e mudanças
abruptas dos bens de consumo. Sem dúvida, trata-se de um dos impasses que a religião
cristã, como igreja institucional, enfrenta nos dias atuais.
Essa discussão, que aborda o campo da religião e a posição dos sujeitos neste campo,
ora pensando na organização, ora nos sujeitos, ou seja, na dinâmica dialética entre eles,
encontra-se na discussão da secularização. Na realidade, nenhuma teoria sociológica a
respeito da religião pode ignorar tal paradigma, mesmo que seja para refutação total ou
parcial de suas teorizações. Propomos, assim, analisar o paradigma da secularização
para, somente depois, situarmos as novas demandas dos sujeitos religiosos às condições
da sociedade pós- moderna.
46
Há, de fato, muitas teorias sociológicas que estudam a religião na sociedade pós-
moderna a partir dos pressupostos da secularização. Mas, a despeito das variadas
tendências teóricas, Martelli (1995, p. 272) mostrou o aspecto que pareceu se consolidar
tanto na opinião pública quanto nos meios de comunicação: foi a idéia do “declínio
irreversível da religião, à qual se contrapunha a ascensão irresistível da modernidade”.
Esta idéia já não encontra tantos seguidores, e, atualmente, a sociologia da religião
questiona tal processo secularizante, tido como contínuo, unilateral e evolucionista,
sobre o qual falavam os teóricos modernos e que, por um positivismo acadêmico,
acabaram por impor um fim à religião por meio da secularização.
Berger (1985) é um dos estudiosos que afirma que a religião perdeu o poder de
explicação do mundo, a força de plausibilidade com o fenômeno de secularização. Em
3
O termo secularização sofreu transformações ao longo da história que o levaram a sair do aspecto
semântico para o simbólico. Embora sua origem seja jurídico-política, o termo sofreu intersecção com as
áreas da filosofia, história e sociologia e, na categoria acadêmica, acabou imbuído da pretensão de
interpretar a história ocidental da Idade Moderna. Na língua francesa do século 16, o termo indicava a
passagem de um clérigo regular ao estado laical (leigo). Posteriormente, o conceito foi empregado para
designar o processo de subtração de um território ou instituição da jurisdição e do controle eclesiástico.
Foi na época napoleônica, na Alemanha, por volta de 1800, que o termo foi ampliado, passando a indicar
a perda de direitos e bens religiosos – a espoliação de direitos e propriedades da igreja. Nesse período, o
conceito ganhou sentido pejorativo em relação à igreja: o sentido de emancipação da tutela e do controle
da mesma. Foi no século 19 que houve a passagem do campo jurídico-político para o campo filosófico-
ideológico devido a vários fatores tais como o processo de afirmação político e social da burguesia, a
inspiração positivista e o número crescente das diversas associações culturais dispostas a reduzir
drasticamente a influência e controle por parte da igreja nas diversas atividades sociais. Nesse processo de
evolução do conceito para o campo filosófico e ideológico, a secularização chegou até a pós-modernidade
ligada aos processos de laicização, interpretados como autonomia em relação ao campo religioso.
Portanto, ao analisarmos os significados do termo, sempre o encontraremos associado à presença –
caracterizada pelo tipo de forma e força – da religião na sociedade. Desde já, pode-se perceber que a
secularização questiona a legitimidade social da religião institucional, isto é, da organização religiosa. Em
outras palavras, a secularização indaga sobre a sobrevivência da religião-igreja na sociedade atual e em
que condições se dá esta sobrevivência.
47
Entretanto, precisamos pensar não apenas no foco do consumidor, mas também nos
acordos institucionais que a organização pode fazer para vencer a concorrência. Há uma
constante negociação entre a instituição e o leigo consumidor: a negociação precisa ser
maior, em medida proporcional, à concorrência. Nessa dinâmica, o tipo de reação das
organizações dependerá muito da ideologia e do grupo detentor do capital simbólico; o
corpo clerical é que, de fato, responsabiliza-se pela instituição, e, apenas quando faz
concessões, novos produtos podem surgir no mercado.
48
Caso a organização religiosa ignore as demandas, Berger (1997, p. 43) mostrou que ela
seria um local de “minorias cognoscitivas” e teria sérios entraves para a sua
sobrevivência institucional. Podemos perceber com essa argumentação que a opção
institucional de não querer entrar em concorrência com outras igrejas pode levar a
organização à falência. Ora, nitidamente o presbiterianismo brasileiro enfrenta na
atualidade a discussão entre ser ou não uma igreja ajustada as condições impostas pelas
demandas dos sujeitos. O grande pluralismo religioso no qual está inserida essa
denominação e as mais variadas ofertas religiosas relacionadas à música-cúltica traz um
impasse para a organização. O seu dilema baseia-se nas estratégias de sobrevivência
institucional.
Esta é uma análise que, embora não identifique secularização com o fim da religião,
deixa esta em grande dilema sob o aspecto institucional. O foco está nas escolhas do
consumidor, e, portanto, a discussão torna-se institucional: organização burocrática e
preferências do consumidor. Nessa perspectiva a tese da secularização gerou a crise da
religião institucional que, por sua vez, é a crise de autonomia e poder de influenciar e
determinar a ideologia religiosa. Pode-se, assim, presumir que com estratégias
adequadas, a sobrevivê ncia institucional da religião também não esteja fadada ao fim.
De fato, Martelli (1995, p. 294) concluiu que a secularização, para Berger, não leva ao
fim da religião institucional, mas a “presença simultânea de Igrejas e grupos religiosos,
com resultados abertos e até inesperados”. Com o processo de globalização, que
favorece o rápido encontro de culturas e trocas de informações, inclusive as instituições
religiosas podem assumir variadas formas para expressar novas modalidades de
experiência religiosa.
Nesse sentido, o pluralismo religioso não afetaria esta função interpretativa da religião
na sociedade, mas apenas possibilitaria a escolha entre significados diferentes. A
instituição religiosa é, portanto, quase uma necessidade organizacional a fim de que
exista a condição de gerar significados para os outros subsistemas. Por isso, Luhmann
acredita que a condição da religião na sociedade atual é a condição de religião- igreja:
50
somente como subsistema, a religião pode produzir generalizações simbólicas para todo
o sistema social.
Uma nova geração de sociólogos americanos liderados por Rodney Stark, George Fink
e Laurence Iannaccone que, na década de 1990, criaram uma abordagem chamada de
“Paradigma do Mercado Religioso”, encara esta situação do mercado a partir das
considerações de Berger, mas aponta para outras conseqüências do pluralismo religioso.
Sob este novo paradigma, as instituições religiosas são analisadas, debaixo da ótica
mercadológica, como fornecedoras de produtos para consumo religioso, atuando sob
regras específicas de competição. Na lógica competitiva, o grau de regulação ou
abertura do mercado influencia o nível de mobilização religiosa dos indivíduos. Em
outras palavras, existe uma relação direta entre o grau de regulação do mercado
religioso e os níveis de mobilização religiosa. Por sua vez, estes níveis não são apenas
determinados por demandas dos consumidores, mas também por mudanças nas
condições relacionadas às estruturas dos fornecedores (Iannaccone, 1992b; Finke e
Stark, 1992). Resumidamente, este novo paradigma coloca o olhar sobre as condições
de oferta das firmas religiosas e não nas demandas dos consumidores. As categorias
mais empregadas passam a ser: estrutura organizacional, qualificação do vendedor,
adequação do produto e técnicas de marketing. Esta teorização conclui que o êxito
religioso depende da estrutura organizacional das empresas religiosas.
51
Não aceitamos por completo que o sucesso da instituição religiosa aconteça apenas por
meio do uso correto de estratégias. Antes, acreditamos que o consumo religioso só
ocorre quanto oferta e demanda se coadunam. Entretanto, este novo paradigma teórico
expõe uma análise específica das estratégias organizacionais que são de extrema
relevância para o estudo do pluralismo religioso seja entendida como um fenômeno que
pode criar o fortalecimento institucional. Na perspectiva institucional as igrejas podem,
a partir de estratégias eficientes, manter maior vínculo com seus adeptos. Para explicar
tal situação, os estudos de Finke, Stark e Iannaccone (1994) são esclarecedores, porque
apontam para um maior grau de mobilização religiosa nas condições de grande
competição do mercado. Os autores afirmam que o caráter mercadológico das
organizações religiosas não indica o enfraquecimento da religião no nível dos
indivíduos, exatamente porque a submissão é voluntária e não imposta autoritariamente.
Iannaccone (1991, 1992a), por meio de estudos históricos, mostrou que em sociedades
onde ocorre o monopólio religioso, a indiferença religiosa, por parte do indivíduo, é um
fato. Isso se deve à própria condição pós-moderna da sociedade, que não confere força
aos discursos únicos. Sobre essa questão, também Finke e Stark (1992) explicaram os
motivos do enfraquecimento da mobilização religiosa em caso de monopólio. O
primeiro é que, ao se ter uma situação de monopólio, apenas um segmento da sociedade
teria suas necessidades supridas, ou seja, boa parte dos indivíduos daquela sociedade
viveria na situação de insatisfação religiosa por não ter as demandas atendidas. O
segundo motivo estaria relacionado mais com a capacidade institucional de produzir
ofertas. Segundo os autores, o monopólio deixaria a instituição religiosa mais
preguiçosa e acomodada na produção de novos produtos. Tal quadro não condiz com o
sujeito pós- moderno, que busca, incessante e cotidianamente, novas tecnologias e
produtos. Portanto, a situação de monopólio não traz benefícios à instituição religiosa,
porque esta não se encontra em concordância com as novas perspectivas
organizacionais.
Martelli (1995), partindo das considerações de Luhmann, propõe uma solução analítica
para a religião na sociedade pós-moderna. O autor mostra os efeitos perversos da pós-
modernidade, conclui que não se pode mais falar em secularização como um fenômeno
53
Sem dúvida, a Europa e os EUA são os cenários sobre os quais se debruçaram estes
teóricos, incluindo Berger, para as análises sociológicas. O “retorno do sagrado” na
Europa, principalmente depois da década de 70, e o denominacionalismo protestante
americano foram os palcos para o desenvolvimento das teorias aqui esboçadas.
Entretanto, considerando as formas culturais híbridas favorecidas pela globalização, não
fica difícil perceber que existem demandas universalmente fragmentadas. Ou seja, a
pós-modernidade é algo presente em todo o globo ocidental, e suas conseqüências são
similares a todos os sistemas sociais embora os níveis de experiências possam
apresentar diferentes intensidades. Isso quer dizer que, mesmo com características
religiosas peculiares, as teorias sociológicas da secularização podem ser aplicadas nos
estudos sociológicos do cristianismo no Brasil. As características da sociedade pós-
moderna podem ser verificadas no cotidiano brasileiro, e, nesse caso, as instituições
religiosas do país sofrem a mesma pressão social dos países nos quais se originaram as
teorizações da secularização.
centros de história do mundo como efeito do fim da rivalidade ideológico- militar entre
Leste e Oeste.
Os pontos, considerados por Martelli como principais para uma caracterização das
condições pós- modernas, afetam toda a estrutura organizacional da religião e também a
produção de produtos religiosos. Por esse motivo, a teoria de Luhmann da religião como
sistema auto-referencial e interpretativo merece consideração ao percebermos que todos
os subsistemas criam para si uma auto-referenciabilidade que se impermeabiliza às
vontades dos sujeitos. A questão é controversa, porque, se os sistemas “anulam” o
sujeito, este tem condições de formar para si, em um plano subjetivo, os próprios ideais
e buscas. Porém, essa segmentação institucional pode criar um falseamento de
autonomia do sujeito. Este, na realidade, encontra-se sempre impelido a escolher entre
os produtos institucionais, e, portanto, não há autonomia total.
Essa idéia, defendida, sobretudo, pelos teóricos da pós- modernidade como David
Harvey (2005), parece- nos reducionista, mas não pode ser marginalizada ou banalizada.
A crescente autonomização e especialização dos sistemas tornaram o sujeito uma
espécie de consumidor que tem apenas a possibilidade de consumir o que lhe é
oferecido. As novas teorias comunicacionais, entretanto, mostram a possibilidade de
reação do sujeito frente às ideologias colocadas no me rcado. Em outras palavras, se, por
um lado, o sistema anula os sujeitos, por outro, estes se valem da condição encontrada
na própria pós-modernidade para buscar autonomia.
O segundo ponto levantado por Martelli está associado à rapidez com que acontecem as
mudanças. O fator que propicia esse fenômeno é o desenvolvimento da técnica, que, à
todo momento, encontra novas alternativas e cria novos produtos para as situações
cotidianas. Esse movimento produz um efeito desistoricizante. A perspectiva de
constante novidade não permite um armazenamento da história: o novo é buscado
sempre.
A comunicação é o grande meio para que o terceiro ponto destacado por Martelli
aconteça: a desrealização. A comunicação em tempo real desloca e desrealiza a
experiência, porque pode ser vivenciada por meios midiáticos, tornando a realidade de
um local numa realidade de todos os que compartilham da informação. A informação
em tempo real permite a multiplicidade de visões de mundos existentes, alterando as
55
Enfim, o último ponto é a multiplicação dos centros de história no mundo. Assim como
os sujeitos e espaços, a história não está mais centrada, como o era antes, na Europa.
Não existe mais o sentido evolutivo e unívoco da história; existem histórias em vários
pontos do globo e que são, devido à informação, vivenciadas de forma não-real por
todos os indivíduos. De fato, se pensarmos nessas condições macro-sociais, chegaremos
novamente às considerações de descentralização do sujeito, que se sente inserido, pela
comunicação massiva e quase instantânea, nas várias histórias e culturas.
Essa constatação não tem o objetivo de banalizar o aspecto religioso, mas, ao contrário,
permite explicar que é possível existir demanda pela transcendência junto com as
racionalidades secularizantes da sociedade. Nisto, usamos a hipótese de Martelli de que
56
subsistema especializado. Como tal, a presença dos especialistas é vital. Sendo assim, a
autoridade eclesiástica ainda é mantida e reproduzida no campo católico, guardando-se
os limites – nos movimentos neopentecostais do Brasil. A manutenção da religião-igreja
encontra convergência no aumento do grau de organização interna, a saber, a
organização burocrática-clerical.
Por esse motivo, não acreditamos que, pela perda do poder de integração e relativa
perda de plausibilidade, a religião ficou reduzida a meras negociações simbólicas. No
nosso entender, a situação de pluralismo delimitou, de forma clara, o que é produto
religioso do que não é e mantém uma reserva simbólica interpretativa que não é
encontrada em outros subsistemas sociais. Com isso, queremos salientar que, embora
admitamos que o pluralismo religioso coloque a religião institucional em uma lógica de
mercado, os bens procurados não são apenas secularizados, mas também religiosos, e,
muitos deles com um grau de transcendência elevado.
58
Admitir que existem demandas leigas, burocracia organizacional, luta pelo monopólio
da produção religiosa e pluralidade de ideologias religiosas não significa subtrair da
religião seu aspecto religioso. Significa situá- la em um contexto social de pós-
modernidade, multiplicidade de subsistemas auto-referenciais, variedades de campos
sociais semi- autônomos e hipercomplexibilidade social. Implica em entender que as
necessidades humanas não conseguem serem respondidas de forma totalizante e
centrada, porque o próprio sujeito já não o é. A dialética é a dinâmica imprescindível
para explicar tal movimento.
Nesse quadro referencial, notamos que é impossível estar situado em uma sociedade
pós-moderna e não sentir seu impacto e influência. Isso implica dizer que as expressões
religiosas são intersectadas por influências sociais e culturais. Como o objeto que nos
propomos estudar – a produção musical cúltica do presbiterianismo brasileiro – também
é um bem cultural, a discussão teórica precisará ser traçada, agora, sob o enfoque da
produção cultural na sociedade pós- moderna.
Como podemos ver tais questões englobam a atual situação da religião de igreja na
sociedade secularizada e pós- moderna. Nesta, o mercado de bens culturais adquiriu
tamanha força que discussões teóricas na área da cultura e da comunicação se debruçam
para analisá-lo. Partindo do pressuposto que a religião não opera no vácuo e, que o
objeto religioso que analisamos é um bem cultural altamente consumido na sua versão
secular, não há como não trazermos para o presente estudo as contribuições teóricas que
auxiliem na compreensão do fenômeno de consumo cultural.
O bem cultural religioso - música gospel - não pode ser entendido fora das categorias
analíticas surgidas nos novos referenciais em estudos da cultura. Esta, por sua vez,
colocada em forma de produto e consumida por meio de serviços e bens se insere nos
estudos de comunicação. Assim, a comunicação e a cultura formam um conjunto de
categorias que se entrecruzam constantemente e a explicação do que acontece com um
campo necessita do conhecimento do outro. Por esta razão, embora as teorias
comunicacionais já existissem em solo norte-americano, antes da chamada Escola de
Frankfurt, iniciaremos nossa explanação por esta escola, pois foi a partir de seu marco
teórico que a cultura começou a ser analisada pelo viés da comunicação.
Pode-se falar em uma cultura? O que está relacionado com esse termo atualmente? Ora,
a cultura, tal como é entendida atualmente, ganhou novos significados a partir de sua
relação intrínseca com a comunicação de massa e a grande força da mídia. Essa relação
foi analisada criticamente por um grupo de estudiosos alemães, cujo período de
produção correspondeu ao período de 1920 a 1960. Os estudiosos da Escola de
Frankfurt, assim denominada pela sua localização, tinham como foco de análise a
discussão da cultura e da comunicação massiva, que se fazia presente de forma bem
forte por toda a Europa, nas propagandas de guerra. Segundo Clóvis Barros Filho e Luís
Mauro Sá Martino (2003, p.191) a condição social da época de avanço do capitalismo e
a ascensão de regimes totalitários, junto com o crescimento da comunicação social,
60
Além de conferir a distinção entre cultura erudita e popular, a Escola de Frankfurt via na
comunicação de grande alcance uma forma de manipulação, cujo único objetivo era a
manipulação das massas na obtenção dos bens culturais ditados pelo mercado. Dessa
forma, os meios de comunicação nada mais seriam, senão ferramentas de manipulação
para a manutenção do domínio capitalista, que se fazia pela ostensiva divulgação dos
bens simbólicos da classe dominante. Nessa visão marxista, o receptor era praticamente
anulado diante do poder da comunicação de massa e das regras do mercado de bens
culturais. Disto, essa tendência teórica resultou em um extremo pessimismo frente às
novas formas de comunicação e à cultura, de forma geral. Para Adorno e Horkheimer
(1995) tanto a cultura erudita como a popular perderiam seu valor ao serem adaptadas
pela indústria cultural que visava o consumo de massa. O conceito de cultura passa,
então, a ser entendido a partir dos processos de comunicação e como um produto, como
um resultado, sempre manipulado ideologicamente pela classe dominante.
Foi a partir das teorizações do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS) que os
fenômenos culturais e comunicacionais passaram a ser analisados como processos
sociais em si mesmos, desvinculando-se do conceito marxista de super-estrutura. Essa
Escola foi denominada de “Estudos Culturais”, cujos pesquisadores faziam parte da
Universidade de Birminghan, na Inglaterra. Seu período de maior produção situa-se na
década de 1970, mas desde os anos 50 o novo modelo começava a se formar. Stuart Hall
(2003b, p.131) no início de sua explicação sobre os Estudos Culturais, revelou a
necessidade de rupturas e renovações, com uma clara alusão do papel desempenhado
pelo CCCS:
Uma categoria de Gramsci muito usada pelos Estudos Culturais foi a de “hegemonia”.
Esse termo foi aplicado à sociologia da cultura por Williams em Marxismo e literatura
(1979). O foco da análise está na constante tensão na luta pelos modos de vida (no
plural) e, contrariando uma visão estruturalista, enfatiza atividade humana e
constitutiva. Por isso o receptor ganha um papel ativo no processo cultural. Willians
rompeu com uma tradição reducionista do marxismo, colocando a cultura como algo
dentro da sociedade, possibilitando assim, o seu estudo com outros campos sociais.
Dessa forma, o conceito de cultura não é mais o de superestrutura, como simples reflexo
das condições e mediações econômicas. Os produtos culturais não são reduzidos pela
imposição econômica, mas, são resultados de relações sociais complexas entre os
receptores e com a própria indústria cultural, também numa perspectiva dialética. Daí o
status que ganha o receptor, não mais sendo encarado como simples instrumento de
manipulação da cultura dominante. Em Williams o receptor tem um papel ativo no
processo cultural (1979, p.113):
As possibilidades de decodificação são colocadas como posições ideais típicas e são: (1)
posição hegemônica dominante, quando a leitura preferencial é totalmente apropriada
pelo receptor e assim ele se mantém dentro do código dominante; (2) código negociado,
que traz a possibilidade de posições diversas que questionam em parte a mensagem, e,
portanto, não realizam a leitura preferencial; (3) código de oposição, quando o que era
normalmente lido de maneira negociada começa a ter um caráter contestatário. Neste
último caso se trava de uma política de significação, a luta no discurso.
Na mesma direção, Jesús Martin- Barbero, inicia na década de 1980 essa linha de análise
comunicacional na América Latina. A sua busca para entender o comportamento do
consumidor é a compreensão das mediações e não dos meios. A mediação seria todo o
espaço social, e as outras formas de comunicação que se colocam entre a mensagem e o
receptor. Há inúmeros elementos e expressões cotidianas que se fazem presentes, como
crenças, anseios, dificuldades e que são fatores importantes para a compreensão da
mensagem. Ou seja, se o receptor tem um papel ativo na decodificação, esta se realiza
de uma forma ou de outra, em detrimento de várias condições sociais, culturais,
políticas e até religiosas.
Martin- Barbero (2003, p.281) propõe mudar o foco da análise dos meios para as
mediações para estudarmos exatamente o que durante muito tempo ficou incógnita - a
distância entre as ofertas da indústria e os modos de apropriação e conduta. Ele destacou
a apropriação das mensagens com bases nas relações de poder e nas produções de
sentido, vinculadas às condições sociais. Segundo Barbero (2003, p.292):
O estudo da cultura, por sua vez, mostra que algo novo está acontecendo, a
possibilidade de rebeldia e resistência. Por isso Martin-Barbero (2003, p.297) ao
constatar que o cultural mostra novas dimensões do conflito social, afirma a necessidade
de pensar os processos de comunicação a partir da cultura, e não das disciplinas e
meios. Para o autor isso significa romper com a redução da problemática da
comunicação com as condições das tecnologias. Assim, Martin-Barbero (2003, p.299)
mostra como os processos que conferem significados - os culturais - são importantes
mediadores para a análise da comunicação:
Como podemos verificar, Martin-Barbero, busca uma compreensão das mediações que
nas quais estão situados os sujeitos que possibilitam os arranjos significativos dos bens
consumidos. Assim, o consumo de um bem simbólico não é analisado só na perspectiva
do poder relacionado à produção, mas na ótica do consumidor, que trava a luta pela
apropriação desse bem. Novamente as mediações, como condições sociais, darão o
ritmo de tal luta que estará diretamente ligada com as demandas reprimidas e os
dispositivos de ação do grupo.
66
Desse modo, o consumo de música gospel pelos jovens do protestantismo histórico tem
que ser analisado não apenas como uma condição de consumo cultural massivo e
hegemônico. Esse consumo pode significar que novas leituras simbólicas estão sendo
realizadas nesse campo, não mais comandadas pelos detentores da produção religiosa
oficial. Assim, internamente ao campo, e esse seria a mediação, o consumo de música
gospel pode significar uma luta no terreno simbólico, onde ocorre a desapropriação dos
antigos valores da hinódia tradicional e novos são inseridos.
Hall (2003b, pp. 246-263), afirmou que cultura popular é “o terreno onde as
transformações são operadas” (2003, p.249). Com isso Hall mostra que a cultura
popular sofre transformações continuamente, ou seja, sofre o processo de incorporação
de novos elementos, que passam a ser considerados como populares. Pelo mesmo
processo pode existir a resistência à incorporação de elementos estranhos, como a
contenção, de não se deixar substituir elementos específicos já existentes. O que se pode
ver na história é uma constante renovação/transformação da cultura popular.
67
Assim, quando utilizamos o termo “popular” a diferenciação se faz entre os que detêm e
os que não detêm o poder; nas palavras de Hall “ as forças populares versus o bloco de
poder”. Essas forças populares não são encontradas apenas em uma classe específica,
antes suas práticas são intercambiadas constantemente. Hall, ao conceber que o
“popular” é o próprio campo onde as batalhas se travam, desconstrói algumas
concepções de cultura popular, que gostaríamos de trazer aqui, porque de certa forma,
68
tais concepções interferem nos discursos mais comuns sobre o consumo de música
gospel.
O primeiro significado criticado por Hall é aquele que relaciona “popular” com a
definição comercial de mercado. Isto é, se diz que algo é popular quando é intensamente
consumido pelas massas. Essa noção está diretamente ligada à teoria de Frankfurt, que
coloca o povo debaixo de total manipulação dos meios de comunicação e associa
popular à massa. Hall faz duas restrições a essa concepção. A primeira está relacionada
com o que acabamos de dizer: o autor não acredita em total passividade de todos os
sujeitos e grupos sociais em relação à dominação cultural e comunicacional. Segundo
ele, para que isso pudesse acontecer, as massas deveriam viver em um estado total de
falsa consciência, termo esse, aliás, muito questionado por Hall em outros estudos.Tal
fato nos levaria para uma análise determinista.
No mesmo sentido, Jesus Martin-Barbero (2003, p.321) critica as análises culturais que
tentam criar uma idéia de popular desvinculada das forças que operam sobre esse
campo:
A terceira forma de conceber cultura popular é a compartilhada por Hall. Essa definição
considera, em qualquer época, “as formas e atividades cujas raízes se situam nas
condições sócias e materiais das classes específicas” (2003b, p.257). Essa definição tem
um caráter descritivo, mas inclui as relações sociais nas práticas específicas. Com isso o
essencial da análise fica focado na tensão dialética entre cultura popular e cultura
dominante. Nesse prisma, o importante não é discutir as práticas enquanto tais, ou seja,
nos seus conteúdos, mas nas relações de força e de subordinação; em outras palavras, na
relação entre a cultura e a hegemonia.Tal compreensão da cultura permite analisar as
mudanças de conteúdos das práticas, a partir do poder e da luta. Ou seja, há um trânsito
entre a cultura popular e dominante. Elementos podem ser rebaixados e migrarem para o
lado popular, ou outros podem alcançar um valor dominante e irem para o outro lado.
Isso se dá por meio da luta cultural. Segundo Hall (2003b, p.259) essa luta pode assumir
diversas formas: incorporação, distorção, resistência, negociação ou recuperação.
Bourdieu insere essa discussão baseado na hierarquização dos bens culturais. É o que
permite hoje distinguir a música erudita dos outros estilos que não cabem nesse
conceito. Ou seja, há uma classe nobre de bens culturais, tais como música clássica,
pintura, escultura, literatura e teatro, bem como esportes mais finos e requintados como
o golfe. Em abaixamento hierárquico, existem os bens e as práticas culturais menos
nobres como cinema, jazz, fotografia, pequenos romances, história em quadrinhos e
futebol. A partir dessa separação, existem outros níveis de distinção. No meio da música
clássica, por exemplo, pode se notar um gosto popular (Pour Elise de Beethoven),
médio (Rhapsody in Blue), ou um gosto totalmente distinto (O cravo bem temperado de
Bach).
Essa distinção pelo gosto é construída a partir do acúmulo dos capitais adquiridos pelas
classes sociais e pelo hábitus cultural. Os gostos são facilmente incorporados pelo
hábitus que segundo Bourdieu (2000, p.477) formam classificações originárias e
orientam as práticas, por menores que sejam. Esse hábitus portanto, esconde que
71
existem dispositivos que constroem um gosto como legítimo. Esse é o poder do hábitus:
a repetição automática de valores pré-concebidos e considerados como certos. Por isso
Bourdieu (2000, p.477) declara que o “gosto é uma disposição adquirida, para
‘diferenciar’ e ‘apreciar’”. A mudança de gosto em um determinado grupo significa
então, que houve uma luta entre antigos hábitus e a incorporação de novos. Surgem
novas disposições de apreciação com novos julgamentos, contudo isso não acontece
sem um profundo conflito entre as forças
Se a cultura popular não pode ser entendida como algo puro e que delimitaria uma
condição autônoma de práticas de classes sociais, de igual modo, a cultura nacional não
pode ser entendida como uma cultura totalmente autônoma. Novamente o grande marco
teórico para discutirmos essa questão foi desenvolvido por Stuart Hall. Como vimos, a
autenticidade e autonomia de uma cultura são traços impossíveis de serem assinalados,
ao trazermos em mente as relações de troca entre culturas. Sem dúvida, a troca sempre
existiu, mais a novidade se encontra na ampliação dessa possibilidade pelos dispositivos
comunicacionais da atualidade.
4
O problema da pureza étnica já foi analisado por Weber (2000b. p269) quando ele estudou o
“nascimento da idéia de coletividade étnica”. Segundo o autor, a idéia de etnicidade pura é construída
socialmente, por diversos motivos dependentes de condições específicas. Geralmente essa crença na
afinidade sanguínea de origem pode ter força para construir uma comunidade. Weber mostrou o quanto a
lembrança de uma colonização, ou de emigrações individuais, pode ser importante fator para a busca de
uma legitimação da unidade étnica. As diferenças com outros grupos são fundamentais para a construção
do sentimento de unidade porque o sentido de identidade se faz na relação interna e externa. Dessa forma,
alguns elementos são repudiados pelo grupo – e esses elementos são relacionados a outros povos –
enquanto os elementos internos tornam-se motivos de honra e dignidade. Uma série de proibições é
constatada, como no caso da proibição do casamento entre povos diferentes, baseando-se na pureza
étnica. Para Weber não importa se, de fato, existe ou não a comunidade de sangue, o importante é que o
grupo assim se identifique. A idéia da comunidade étnica cria força política para o grupo e as relações
72
Martin- Barbero (2003, p.271) analisou a questão da mestiçagem na América Latina que
necessita ser reconhecida não como algo que aconteceu no passado, mas que está
presente no cotidiano, que é “àquilo mesmo que nos constitui, que não é só um fato
social e sim razão de ser, tecido de temporalidades e espaços, memórias e
imaginários...”. Em um espaço tão miscigenado, o etnocentrismo aparece com força nos
discursos ideológicos, como uma tentativa de manutenção de coesão de forças. Porém,
afirma Martin-Barbero (2003, p.275) a afirmação étnica está camuflada, “obstaculizada
pelos pré-conceitos , os pressupostos de um etnocentrismo que penetra com igual força
no discurso do antropólogo e no do militante político, sobre o qual se apóia
secretamente nossa própria necessidade de segurança cultural”
Por esse motivo, a identidade nacional foi mais difícil de ser construída no Brasil e
encontrou concepções diferentes em vários períodos da história. Renato Ortiz (1994, p.
8) ao mostrar as diversas mane iras como a identidade nacional e a cultura brasileira
foram analisadas, afirmou que “a problemática da cultura brasileira tem sido, e
permanece até hoje, uma questão política”, concluindo que “na verdade, falar em
cultura brasileira é falar em relações de poder”.
associativas são importantes para manter uma unidade de identificação. O exemplo de “povo” que Weber
usa para sua análise de construção étnica é o mesmo usado por Hall: a história do povo Judeu.
73
Isso nos remete à batalha cultural! Ao mostrar os vários momentos históricos que
tentaram definir a identidade nacional e a sua legítima cultura, Ortiz mostrou que essas
concepções sempre foram produzidas por uma política que tentava impor seu poder. O
autor termina a sua obra declarando que são “os interesses que definem os grupos
sociais que decidem sobre o sentido da reelaboração simbólica desta ou daquela
manifestação” (1994, p.142). É necessário então entender cultura nacional sempre como
uma construção simbólica, inscrita em um campo de relações de poder de quem pode
dizer o que é ou não nacional.
Esse quadro, de difícil análise, não pode mais ser visto com uma visão
compartimentada. É nesse sentido que a proposta de novo conceitos, que não neguem o
caráter hegemônico da globalização nem seus efeitos de subordinação, devem surgir
para que o homogêneo e o heterogêneo, o novo e o velho, possam ser avaliados a partir
das novas vivências sociais cotidianas. Canclini utiliza o conceito de hibridismo para
analisar os aspectos culturais da América Latina. O autor, não só mostra a
inevitabilidade do processo de hibridação, como a necessidade de referencias teóricos
que dêem conta dessa nova perspectiva na análise da cultura(2003, p.19):
Ora, o olhar transdiciplinar não pode ser ingênuo. Canclini (2003, p.19) completa seu
pensamento, construindo uma hipótese da qual partilhamos: esse novo olhar sobre os
“circuitos híbridos” pode revelar processos políticos. Em outras palavras, o estudo do
processo de hibridação não se trata apenas de verificação de como o artesanato subsiste
com a indústria. A análise também deve investigar o convívio da busca da ética
igualitária em uma crescente desigualdade de direitos, o liberalismo religioso
convivendo com o fundamentalismo, os movimentos sociais democráticos convivendo
com despotismo e paternalismo. Assim, coloca o autor, “encontramos no estudo da
heterogeneidade cultural uma das vias para explicar os poderes oblíquos que misturam
instituições liberais e hábitos autoritários”. A “ciência social nômade” possibilita o
entendimento do comportamento social contemporâneo nas suas mais variadas esferas.
A proposta de Canclini é que os campos não sejam departamentados, porque os
fenômenos não o são.
A música gospel é um produto cultural híbrido, o que já afirmou Magali Cunha (2004),
e como tal mostra uma nova feição da música evangélica. Nesse princípio de hibridismo
encontramos o “novo produto”! Esse novo produto foi o encontro de estilos seculares e
religiosos, do novo e do velho, que resultou no formato que permite atualmente
distinguí- lo. Entendemos que o caráter interno ao campo religioso permite que
encontremos a categoria de hibridismo também na reapropriação dos significados do
que era a música evangélica. O traçado histórico da hinódia protestante brasileira
permite verificar que a nova configuração ou o novo produto “gospel” é fruto de lutas e
tensões, e, portanto, de reapropriações de significados. Por tal motivo até mesmo o
caráter de resistência da noção de hibridismo pode ser usada, quando o olhar se volta ao
espaço interno do campo religioso.
76
Cremos, que à essa altura da exposição teórica, ficou claro que as questões culturais e
comunicacionais que envolvem o consumo de bens simbólicos devem ser analisadas
não apenas na perspectiva da produção – produtores e produto – mas na perspectiva da
luta simbólica que privilegia a possibilidade de resistências e subversões, que por sua
vez estão perpassadas pelas condições dos espaços sociais - as mediações.
Isso posto, fica então a necessidade de verificar, dentro do campo religioso, quais os
agentes detentores de uma produção legítima, quais as batalhas simbólicas travadas e
acima de tudo, como a produção musical se construiu nesse campo de batalha. Sendo a
produção que analisamos uma produção cúltica, no sentido de que é um bem religioso
oferecido no momento de culto, cabe entender os processos e os conteúdos desse espaço
social. Nisso a discussão recai para uma análise histórico-social que ajuda na
compreensão de como as estruturas cúlticas do cristianismo foram estruturadas a partir
das tensões e lutas do campo. Tais discussões serão trazidas no próximo capítulo.
78
CAPÍTULO 2
A PRODUÇÃO MUSICAL CÚLTICA DO
PROTESTANTISMO
O que é um culto cristão? Como identificá- lo? Embora nossa busca seja um
levantamento histórico-social do culto cristão, é preciso inicialmente tentar defini- lo.
79
Falamos “tentar” porque a tarefa extata seria buscar uma delimitação inicial, do que
propriamente uma definição. Isto porque as concepções do que seja um culto cristão
foram mudando no devenir histórico, e hoje, no Brasil, algumas noções que estavam
ligadas intimamente ao termo precisam ser alargadas ou, ao contrário, abandonadas.
Destarte, embora a tarefa de uma definição seja difícil, o culto cristão não pode ser
analisado no aspecto sociológico sem que um mínimo de preceitos religiosos seja
pontuado. Isso se faz necessário, porque é preciso delimitar o objeto da análise. Em
outras palavras, antes de qualquer procedimento analítico, temos que entender o que é
um culto cristão e quais os elementos constitutivos dele. Este procedimento, entretanto,
parte mais de uma abstração genérica do que de uma prática cúltica. Isso posto,
passamos a analisar alguns elementos estruturantes do culto cristão que geraram
princípios gerais desta prática religiosa.
Tal fato é fácil de ser explicado, visto que o cristianismo reivindica a continuidade da
religião judaica. Jesus Cristo era judeu e freqüentou o templo em Jerusalém, bem como
as sinagogas espalhadas por toda Israel. Estes locais cúlticos também foram
freqüentados pelos judeus convertidos ao cristianismo durante muito tempo. Podemos,
então, pressupor que as práticas cúlticas judaicas, tanto da sinagoga quanto do templo,
não causavam constrangimento para a instalação da nova fé. Os novos elementos do
culto cristão foram fundidos com os elementos do culto sinagogal, e parece que este fato
não causou nenhum alarde. Portanto, o judaísmo ofereceu aparato cúltico ao
desenvolvimento do culto cristão e era receptivo, no sentido simbólico-formal, às novas
propostas do cristianismo. Por isso é que Di Sante (2004, p. 14) considera que as
categorias cristãs são, em sua origem, judaicas.
Mas, o que dizer dos não-judeus que se converteram ao cristianismo? Houve alguma
influência cultual de suas antigas religiões? Sem dúvida influência houve, mas não
temos como avaliar em que medida essa questão porque as fontes de que dispomos para
estudo foram escritas dentro de um contexto judaico e não pagão. A alusão simbólica a
termos usados no Novo Testamento sempre é feita em relação aos elementos do
81
Em suma, para entender o culto cristão é preciso buscar suas orige ns nos dois modelos
judaicos da época de Jesus: o da sinagoga e o do templo. A respeito do culto do templo,
o Antigo Testamento (A.T.) é repleto de informações. O modelo cúltico do templo
significava a fixação do local, de tempos para festas e sacrifícios e de regras
ritualísticas, realizadas por um corpo clerical dividido entre levitas e sacerdotes. Por
outro lado, o A.T. traz poucas referências que possam dar informações precisas de como
se desenvolveu o culto sinagogal. Embora se saiba que sua grande atividade ocorreu no
período intertestamentário, não há dados exatos sobre as origens da sinagoga. Segundo
Humberto Porto (1977, p. 55), a opinião mais provável é que a sinagoga “começou a
existir na Babilônia, durante o exílio, como substitutivo do serviço do templo, ou talvez
como imediata necessidade para os exilados se reencontrarem”. O mesmo autor colocou
a data do retorno do exílio, relatado no livro de Esdras, como um possível início para a
prática do modelo de culto sinagogal, mas reconheceu existirem outras especulações
teóricas a respeito 5 .
Michael Tilly (2004, p. 90) esclareceu que o termo sinagoga era usado fora do judaísmo
para “designar a reunião social ou religiosa de membros de todo o tipo de associação,
mas dificilmente era aplicado a um determinado prédio ou até a um tipo de prédio”. Em
hebraico, a palavra sinagoga significa “casa ou local da assembléia”. Na Septuaginta, o
termo faz referência tanto à reunião de homens em assembléia destinadas a decisões em
geral quanto à reunião religiosa. Ou seja, a palavra sinagoga tem o sentido de reunião,
assembléia, não precisando ser especificamente religiosa nem tampouco cúltica. O
termo foi reapropriado pelo judaísmo e ganhou conotação religiosa, mas, como no
5
A tradição rabínica defende a idéia de que a sinagoga é bem mais antiga ao período exílico, remontando
suas origens a Moisés (Targum Pseudo-Jônatam, ref. a Êx 18, 20). Para Tilly (2004, p. 93), a
argumentação rabínica quer mostrar a natureza filosófica do judaísmo, tentando estabelecer a reunião
sinagogal como uma reunião esporádica que acontecia em todas as tribos de Israel. De fato, o termo
“sinagoga” pode ser encontrado em fontes que datam do período anterior ao exílio, em Êxodo 11:16 e
Neemias 8:1-8, em que a palavra aparece relacionada ao culto de comunidades locais. Portanto, não há
condições de estabelecer uma data precisa do surgimento da sinagoga, nem tampouco quais os propósitos
originais dessa reunião. Entretanto, todos os estudiosos do campo não negam que o exílio foi o momento
em que tala prática cúltica ganhou notoriedade devido às circunstâncias específicas.
82
sentido original da palavra, significa mais a reunião entre os indivíduos do que o local
da reunião, cujo exemplo claro desse último significado é encontrado no templo.
Contudo, mesmo não existindo uma data precisa dessa prática cúltica, é sabido que ela
foi altamente desenvolvida no período exílico e trazia uma liturgia baseada no ensino
das leis, que era transmitido por homens conhecedores da mesma, os rabinos. Tilly
(1997, p. 92) salientou bem que “a leitura da Torá, como elemento fundamental do culto
sinagogal, ganhou sua forma atual uniforme não antes do século V a.C.”. O
fortalecimento do modelo cúltico sinagogal significou, em parte, um desdobramento dos
ritos do templo. Com o culto sinagogal, foi possível estabelecer o ensino de forma
isolada, separada dos sacrifícios do templo.
ser realizados por qualquer homem que tivesse no mínimo 12 anos de idade. Disso,
resulta a segunda característica apontada pelo autor que é o sentido de igualdade. Na
sinagoga, não existia hierarquia, porque todos tinham os mesmos direitos e deveres. A
terceira característica refere-se ao agrupamento. Para sua realização, era necessário um
mínimo de dez homens adultos (minyan). Esta era a única condição para a celebração do
culto sinagogal realizado diariamente.
Pedro 2:5: “Também vós mesmos, como pedras que vivem, sois edificados casa
espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais
agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo” (o grifo é nosso).
Em outro texto, agora em Pedro 1:19, a idéia de sacrifício se completa, porque Cristo foi
considerado “o cordeiro sem defeito e sem mácula”. Assim, os ritos sangrentos javistas
foram substituídos por um único rito, que se realizou por intermédio de Cristo,
considerado, ao mesmo tempo, o cordeiro oferecido em sacrifício e sumo sacerdote que
o realiza (Hb 8:3). Este sacrifício perene de Cristo passou a simbolizar uma “nova
aliança” entre Cristo e seus adoradores. Tal como no culto judeu, que trazia a tradição
histórica mostrando a aliança entre a divindade e o povo, o culto cristão fundamenta-se
na noção histórica de reviver a nova aliança consumada no sacrifício. Segundo Von
Allmen (1968, p. 21) “o sentido profundo do evento litúrgico (...) consiste em
recapitular a história da salvação”. Este sentido é teologicamente entendido como
anamnese. Logo, o culto cristão baseia-se em um ato memorial de sacrifício.
O ato memorial do sacrifício foi instituído durante a “Última Ceia” (I Cor 11:24), e, por
isso, a eucaristia é, por excelência, o fundamento do culto cristão sobre o qual se
desenvolvem outros ritos. Segundo White (1997, p. 176), a eucaristia tem as raízes em
concepções judaicas muito enraizadas na Palestina de Jesus. Esse ato conseguiu unir
ritos dos três locais mais importantes da vida religiosa judaica: o templo, a sinagoga e a
família (refeições familiares). São eles: os ritos sangrentos dos cultos sacrificiais do
templo, unificados no sacrifício de Cristo, as orações sinagogais, que deram forma para
a oração eucarística cristã e a reunião em torno da refeição que, segundo o autor, era
sempre um evento sagrado. É ao redor deste ato memorial que a história da salvação
85
Nesse sentido o culto também traz à tona outra categoria, a ekklesia, que representa a
assembléia do “povo salvo”. 6 Segundo Von Allmen (1968, p.48) ekklesia significa
“povo reunido por iniciativa de Deus (...) para encontrar-se com o seu Senhor, para
adquirir identidade própria, para confessar-se povo particular”. De acordo com essa
definição a igreja é reunida por iniciativa de Deus. A ligação com o sentido de já
pertencer à comunidade é enfocada nessa perspectiva. Em síntese, tal afirmação indica
que o culto cristão é, antes de tudo, uma resposta humana à ação divina 7 . Ele seria uma
devoção realizada a partir do reconhecimento da atuação do divino na vida pessoal e
comunitária. Esse sentido teológico do culto cristão reafirma a posição sociológica de
que o culto é um espaço, geográfico e temporal, de uma comunidade específica, com
experiências religiosas comuns.
6
O termo ekklesia também foi reapropriado pelo o campo religioso. Ele denotava simplesmente uma
reunião específica para serem tratados assuntos em comum.
7
Autores de tradições teológicas distintas concordam com essa idéia, e, só a título de exemplo,
pontuamos Peter Bruner, teólogo luterano; Georg Florovsky, teólogo ortodoxo e Jean-Jacques Von
Allmen, teólogo reformado.
86
de exclusão, que é socialmente explicado, a teologia fixa suas regras e impõe limites ao
campo, orientando e separando os que são cristãos dos que não o são. Logo, o culto
consiste na celebração realizada pela igreja, que, por sua vez, é delimitada pela inclusão
dos conversos, os que foram batizados. Esse é o limite que contrapõe o espaço religioso
do espaço cotidiano; é o processo de ruptura.
Pode-se pensar que o culto gera a separação, já colocada por Durkheim (1989), de
sagrado e profano. O culto, nesta perspectiva, é o espaço sagrado, que separa a
comunidade do mundo e agrega internamente os indivíduos. Por isso é que Von Allmen
(1968, p. 48) considerou a tendência teológica missionária, de tornar o culto um local de
evangelismo, como uma distorção de seu princípio: “Essa é a razão porque,
contrariamente à pregação missionária, o culto não é público: os que o celebram são os
que passaram pelo batismo”.
Mas a anamnese também é vivenciada por outros ritos que trazem sempre à lembrança a
salvação em Jesus Cristo. Nisto, encontramos o rito oral do culto cristão herdado do
judaísmo. O princípio de recordar os feitos da divindade, pela exposição das escrituras e
cânticos, é outro modo de estender temporalmente a obra de salvação. Deparamo-nos
novamente com o sentido histórico do culto cristão, herdado do judaísmo, que perpetua
as ações de Jesus Cristo. Mas não é apenas essa a função que cumpre a leitura das
Escrituras: aqui se encontra o princípio doutrinário do culto cristão, que, tal como o
antigo culto javista, instrui moralmente a comunidade. O culto cristão, portanto,
também é normativo.
É claro que a ausência de liturgia fixa estava relacionada com a posição na qual se
encontrava o cristianismo dos primeiros séculos, de não ser ainda a religião institucional
do império romano. Todavia, o próprio caráter racionalizante e subjetivo do
cristianismo, observado nos evangelhos sinótico, encontra-se em oposição ao
estabelecimento de liturgias muito fixas e, por conseqüência, à presença de um corpo
88
8
Alguns livros do Novo Testamento indicam o que escrevemos. Em I Cor.14:26 a idéia de uma
democratização da prática cúltica é facilmente verificada na expressão do autor: “...um tem salmo, outro
doutrina, este traz revelação....” . O sentido de sacerdócio enquanto grupo separado para o trabalho cúltico
também é enfraquecido no livro de Hebreus, que difunde a concepção de “sacerdócio universal”.
9
A missa maior era o modo tipicamente pontificial da celebração eucarística. Era uma missa cantada,
celebrada por um bispo e assitida por vários clérigos, hierarquicamente diáconos, subdiáconos e
servidores. Para a celebração era necessária a presença de cantores especializados para entoarem as partes
dos corais. Na falta de especialistas cantores e ministros assitentes, celebrava-se a missa menor, na qual o
celebrante detinha a maoria das funções, necessitando apenas de um ou dois assistentes. A missa menor
era recitada e não cantada. As orações em ambas eram inaudíveis à congregação, sendo compreendidas
apenas pelos clérigos.
89
Nesse processo de expropriação da produção cúltica dos leigos, o corpo clerical tornou-
se cada vez mais especializado, distanciando-se e diferenciando-se do povo. Como um
exemplo que nos interessa particularmente, citamos a música, que foi uma prática
cúltica de extrema importância exercida por um tipo de especialista clerical que se
desenvolveu prodigiosamente no culto cristão, o cantor 10 . Embora a música não tenha
sido a única prática a tomar conta da complexidade litúrgica medieval, assinalamos que
a produção musical litúrgica teve grande participação na alta especialização e
complexidade litúrgica. Os clérigos músicos se tornaram altamente especilizados nessa
arte e a produção musical cristã seguia normas de composições elaboradas e fixadas.
Nisso o catolicismo mantinha toda a produção cúltica restrita ao grupo de sacerdotes de
religião.
10
Destacamos nesse contexto o início da clericalização musical com o papa Gregório Magno, que
inaugurou o sistema musical conhecido como “canto-chão” ou “canto-gregoriano”, especificamente para
o culto. O canto chão tinha regras bem definidas e austeras e foi um marco na tradição cúltica do
cristianismo.
11
Indicamos a leitura de William D.Maxwell (1963) para a compreensão do desenvovlimento litúrgico do
culto cristão. O autor, a partir de fontes documentais, traz exemplos de liturgias modificadas no decorrer
da história, realizando uma análise comparativa entre elas, que permite verificar o que chamamos de
desenvolvimento da complexibilidade litúrgica.
90
Todavia, o catolicis mo, altamente hierarquizado e com uma estrutura cúltica complexa,
recebeu um embate profundo no início do século 16 com a Reforma Protestante 12 . As
concepções teológicas dos reformadores não eram únicas, mas similares quanto à
oposição que faziam à acentuada ignorância religiosa do povo. Por tal motivo, um dos
marcos principais do Protestantismo foi a tradução da Bíblia em língua vernácula e a
mudança da forma de realização do culto. O modelo cúltico do catolicismo era
questionado principalmente pela exclusão do povo. Para este, em última instância, ir à
missa era o que importava, porque não havia nela algo que fosse compreendido a não
ser o próprio dever religioso de lá estar. Foi contra essa postura religiosa e,
conseqüentemente cúltica, que se levantaram os reformadores. Em um sentido geral,
mesmo tendo modelos diferentes, a Reforma marcou uma nova forma de culto: o culto
entendido pelos fiéis. Acima de tudo, buscava-se a compreensão do que era o culto e o
que representava cada ato desta cerimônia religiosa.
Mas, o pensamento protestante, que não se limitava a Lutero, buscava não só uma
reforma do cristianismo, mas também uma ruptura com catolicismo e suas práticas
religiosas, consideradas, pelos reformadores, como supersticiosas, hereges e malignas.
De fato, não há como negar, que o culto cristão medieval assumiu uma forma puramente
clerical em seu serviço, desconsiderando, por completo, o povo leigo que ia à missa. O
que aconteceu foi que o protestantismo ao opor-se radicalmente ao modelo cúltico
católico assumiu uma posição antilitúrgica, que resultou em um esvaziamento
ritualístico de seu culto. Quase todos os ritos foram abandonados; elementos, expressões
e locais foram substancialmente eliminados. Mesmo a eucaristia e o batismo,
sacramentos mantidos pelo protestantismo, sofreram uma perda significativa de
expressão simbólica na maioria das igrejas. Se o culto católico havia-se tornado um
culto clerical, exacerbado em ritos distantes do povo, o protestantismo, por outro lado,
teve consideráveis perdas cúlticas ao abandonar uma tradição ritualística.
12
Martinho Lutero (1483-1546) foi o grande personagem da Reforma Protestante. Ele foi um monge
agostiniano que se revoltou contra o abuso do clero católico, dentre outras coisas, ao pagamento de
indulgências imputado ao povo. A luta de Lutero teve seu marco histórico quando ele fixou suas noventa
e cinco teses na porta da Igreja do Castelo de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517. O movimento
ganhou adeptos por toda a Alemanha e contou com a força política e econômica dos príncipes, que
desejavam a independência da Igreja Católica. Lutero, entretanto, não foi o único reformador de seu
tempo. Na Suíça surgiram outros movimentos contra o papado, cujo pioneiro foi Ulrico Zwínglio (1484-
1531). Tais movimentos, cujos centros foram Alemanha e Suíça, propiciaram que a Reforma Protestante
fosse difundida por toda a Europa, sendo o século 16 marcado pelas lutas e perseguições religiosas
advindas do rompimento com a hegemonia católica. Igrejas protestantes surgiram por todo o continente
europeu, divulgando a nova religiosidade cristã e difundindo seu ensino religioso.
91
Entretanto, ao tornar-se tão radical contra seu oponente, o culto protestante acabou por
fazer o que sempre contestou e tornou-se um script rígido que tolhia a liberdade e a
criatividade litúrgica. A diferença básica entre os dois scripts de culto – o católico e o
protestante – é que, no último, a rigidez se fazia pelo viés negativo da proibição: tudo
que lembrava o culto católico era proibido. Do mesmo modo, mesmo se opondo a alta
clericalização católica, os sacerdotes continuaram a existir distintamente dos leigos, no
protestantismo. Os pastores-teólogos assumiam o novo formato do corpo clerical, que
mantinha, como no catolicismo, o poder de determinar a produção religiosa.
Tudo o que rapidamente vimos até aqui foi um esboço bem geral da concepção
protestante de culto. Mas, se essa era a idéia geral do protestantiso, não faremos justiça
à história do culto protestante se, pelo menos, não esboçarmos alguns de seus principais
modelos, que representam pensamentos de admiráveis teólogos da época. Infelizmente,
não há como pontuar, mesmo que de forma breve, todas as liturgias ou modelos de culto
que se instalaram pela Europa protestante. Por outro lado, não há como falar em apenas
um modelo cúltico, porque todos tinham interferências que podiam resultar em
incorporações ou abandonos de certas práticas. Por esse motivo nos empenhamos em
fazer um breve resumo dos principais modelos cúlticos do protestantismo. Cabe, antes
de expô- los, salientar que embora tenham sido motivados por posicionamentos
teológicos, nem sempre foram resultado apenas dessa área. Condições peculiares como
guerras, perseguições e política estiveram entrelaçadas, nos primórdios do
protestantismo europeu, de forma que posições cúlticas nem sempre eram derivadas
apenas de concepções teológicas.
92
Se suas idéias parecem contraditórias às práticas, isso pode ser conseqüência de uma
tentativa de reformulação não radical que deveria ser realizada em tempo mais longo e
de tal maneira que pudesse ser “digerida” pelos leigos. A preocupação em não cometer
o erro do catolicismo, de impor uma rigidez ao culto, é um traço que pode ser apontado
em Lutero. Talvez, por essa razão, há uma mistura entre a conservação e a inovação da
missa católica. Gordon W. Lathrop (1994, p. 124) mostrou tal tendência conservadora
de Lutero em relação ao culto, vinculando esse posicionamento às características
culturais da época da Reforma.
Para o autor, Lutero vivia a tensão de um conflito cultural e procurou estabelecer uma
linha mediana como alternativa. Esse fato fica mais claro quando lembramos a origem
93
católica de Lutero, que, provavelmente, encontrava nos ritos significados dos quais não
desejaria se desvencilhar. Seu discurso preconizava a reforma e não o abandono da
missa romana. Lathrop (1997, p. 124) apontou algumas preocupações litúrgicas de
Lutero que demonstram seu apego e seu conflito cultural:
Por esse motivo é que receou trazer novidades que fossem totalmente estranhas ao povo.
Ele pediu cautela e moderação aos ministros e não fixou nenhum modelo litúrgico de
forma absoluta para as igrejas da Alemanha (Hahn, 1989, p. 91). Essa era uma
característica de Lutero: a situação de certa autonomia cúltica que ele conferiu aos
ministros, os quais, por sua vez, deveriam estar atentos às condições culturais e
religiosas de cada região.
Embora suas críticas fossem severas à falta de compreensão da missa, seus cultos
mantinham muitas partes em latim, que, com o tempo, foi abolido por seus seguidores, e
o uso de elementos simbólicos como luzes, velas e incensos. A grande contribuição de
Lutero foi a ampliação e o aprofundamento do espírito de adoração, dando à
congregação uma parte mais inteligível nos ritos e possibilitando, assim, que os leigos
soubessem o significado das partes do culto.
94
Segundo Justo Gonzalez (1989, v. 6, p. 89), Zwínglio foi um reformador muito distinto,
“pois nele os princípios reformadores, o sentimento patriótico e o humanismo se
conjugaram em um programa de reforma religiosa intelectual e política”. Com essa
afirmação, Gonzalez aponta para uma diferença fundamental entre ambos os
reformadores: em Lutero, a experiência religiosa que o levara à Reforma foi mística,
enquanto, em Zwínglio, tal experiência foi intelectual.
Grande intelectual e exímio músico, Zwínglio deixou sua vida de estudos e tornou-se
clérigo em 1506. Entretanto, questionava constantemente os dogmas e práticas da Igreja
Católica, ao passo que, quando foi instituído Cura de Zurique, adotou preceitos
diferentes do catolicismo e foi apoiado pelo governo local. Sua chegada a Zurique
corresponde aos períodos de turbulência alemã causados pela Reforma Luterana.
Gonza lez (1989, v. 6, p. 91) concluiu que as idéias de Zwínglio foram autônomas das
idéias luteranas, e que sua reforma foi uma “reforma paralela a da Alemanha, que logo
começou a estabelecer contatos com ela, cuja origem, porém, era independente”.
A teologia de Zwínglio, ainda que tivesse muito em comum com a de Lutero, divergia
da mesma em alguns aspectos. Ele era extremamente racionalista em sua perspectiva
teológica, traço da formação humanista. Tal postura refletiu-se diretamente no culto,
que se tornou extremamente didático em todas as suas partes. De acordo com Gonzalez
(1989, v. 6, p. 95), o racionalismo de Zwínglio mesclava-se com elementos do
neoplatonismo cristão de séculos anteriores, sendo o mais notável destes elementos “a
tendência a menosprezar a criação material e estabelecer um profundo contraste entre
ela e as realidades espirituais” (o grifo é nosso). Essa concepção foi decisiva para o
modelo de culto: a ênfase estava no racionalismo, encontrado na experiência subjetiva e
não nos atos exteriores, que, por sua vez, não tinham nenhuma eficácia na vida
95
religiosa. Desse modo, o culto deveria ser desprovido de formas exteriores que
pudessem deslocar o sentido racional do evangelho.
Havia, portanto, uma diferença básica entre Zwínglio e Lutero que originou, no
protestantismo, duas vertentes cúlticas bem distintas. Lutero procurava, por meio dos
ritos, criar dispositivos para a compreensão religiosa. Para ele, os ritos tinham uma
função didática e não mágica, mas estavam presentes no culto, porque eram dotados de
significado. Em Zwínglio os ritos não podiam nem mesmo existir, porque desviavam a
racionalidade do momento do culto. Esse posicionamento, por exemplo, distanciou-o
muito da noção da centralidade da eucaristia, porque o reformador, diferentemente de
Lutero, não via na Ceia, em si mesma, um meio de graça ou uma norma de culto
estipulada pela igreja primitiva (Maxwell, 1963, p. 101). Houve uma racionalização do
aspecto místico da eucaristia e, por isso, não existia ênfase à comunhão freqüente.
Seu maior ataque foi ao cânon da missa romana, que considerava incoerente em
conteúdo e estilo. Porém, seu marco maior, em termos de práticas litúrgicas, foi a
proibição da música. Em 1525, na publicação do primeiro rito de alemão de Zurique, a
música foi abolida e substituída pela recitação dos salmos e cânticos. Essa prática
cúltica não perdurou por muito tempo, e, no final do século 16, o culto zwingliano já
havia introduzido os salmos e hinos cantados em sua ordem.
Contrário ao mistério que pode ocorrer durante o culto, Zwínglio dissipou o que sobrara
no protestantismo como meio de se obter um mínimo de emoção. A negação à música
mostra uma linha de pensamento que o aproxima de Calvino: o medo de que ela
obscureça, pela linguagem estética, a mensagem a ser ensinada. O elemento estético
aqui representa o trivial, o supérfluo, o descartado e o indesejado. Essa posição
pressupõe que a expressão religiosa possa realizar-se fora do contexto cultural, como
uma “forma pura”, não intersectada por outras instâncias da expressão humana. O
grande questionamento passa a ser, então, como obter prática cúltica desprovida de
formas de expressão. Parece que, em Zwínglio, a resposta veio favorecendo uma forma:
a forma didática e racional.
96
Após cinco anos em Genebra, Calvino saiu da cidade por desentendimentos com os
burgueses locais e instalou-se em Estrasburgo, onde se deparou com um grupo de
exilados franceses. Estes foram entregues aos seus cuidados pelo reformador que lá se
encontrava, Martin Bucer. Foi ali que Calvino fez a segunda edição das Institutas, em
1539, produziu a primeira liturgia francesa e traduziu salmos e hinos para a sua língua
natal. Em meados de 1941, Calvino, a pedido do governo, retornou para Genebra e, ao
chegar lá, uma de suas primeiras ações foi redigir as “Ordenanças Eclesiásticas”, que,
aprovadas pelo governo genebrino, estabelecia, dentre outras coisas, que o governo da
Igreja ficaria nas mãos do Consistório, formado por cinco pastores e 12 leigos. Com isso
Calvino instaurou uma nova forma de governo no protestantismo; o governo
representativo composto igualmente por clero e leigos. Embora houvesse a
possibilidade de uma democracia no Consistório, a influência e autoridade de Calvino
eram grandes o suficiente para que este órgão aceitasse suas ordenanças sem
questionamentos. O maior problema de Calvino eram os intermináveis conflitos do
97
Consistório com o governo de Genebra e com a ala da alta burguesia que questionava
seus métodos e sua rigidez.
Maxwell (1963, pp. 120, 121) indicou as principais mudanças realizadas por Bucer na
missa luterana e mostrou-se crítico à maioria das revisões que, segundo ele,
empobreceram a liturgia. As orações aumentaram, mas se tornaram didáticas pela busca
da inteligibilidade e racionalidade no culto; desapareceu a maior parte das respostas da
congregação, ficando praticamente apenas o amém; as músicas foram eliminadas,
restando apenas o texto recitado em prosa e verso; todos os dias dos santos foram
eliminados, e as vestimentas clericais foram abolidas. Tais mudanças tornaram o culto
cansativo, extremamente didático e muito racional. Segundo Maxwell (1963, p. 123), o
rito de 1539 de Bucer, intitulado Psalter mit alter Kirchenunbung, foi muito importante
para a história das liturgias reformadas, porque dele “derivam os ritos e serviços
calvinistas e escoceses”.
tinha a finalidade quase única de ensinar a Palavra de Deus. Portanto, os dois modelos
cúlticos de Calvino, o de Estrasburgo e o de Genebra, foram adaptações de cultos, cuja
influência racionalista e didática de Zwínglio se fazia presente. Não é possível afirmar
se Calvino aceitou e adaptou-se às condições do culto de Bucer e de Zwínglio ou se, de
antemão, já concordava com esses modelos. Tendo Calvino respeitado as tendências
regionais que encontrou, não podemos deixar de relacioná- las ao seu próprio
pensamento, que, por certo, facilitou a adaptação dos modelos.
Ao verificarmos o que John Leith (1997, pp. 286-288) chamou de princípios básicos do
pensamento de Calvino a respeito do culto, encontramos algumas semelhanças entre ele
e o pensamento de Zwínglio. De acordo com Leith, são quatro os princípios do culto em
Calvino: 1) integridade bíblica e teológica; 2) ênfase na inteligibilidade; 3) liturgia a
serviço da edificação; 4) simplicidade litúrgica. O primeiro princípio pontuado por Leith
parece-nos extremamente abrangente, mas, analisando-o com base em outros princípios,
pode indicar uma rejeição a elementos que não são bíblicos. Desse modo, o pensamento
de Calvino aproxima-se muito mais do pensamento de Zwínglio do que do de Lutero.
Isso pode ficar mais nítido quando verificamos os princípios de inteligibilidade e
simplicidade que, de modo muito especial, levam à discussão dos elementos estéticos do
culto, como a beleza da música ou da arquitetura. Assim como em Zwínglio, tais
elementos, para Calvino, seriam obstáculos à verdadeira adoração, que deveria ser pura
e incontaminada por formas humanas.
Esse é um ponto crucial no culto calvinista: nada da liturgia poderia desviar a atenção
ou atrair os sentidos a não ser aquilo que Deus desejava fazer. Dessa maneira, Calvino
fez inúmeras simplificações litúrgicas, despojou o culto de qualquer rito pomposo,
99
A influência de Calvino foi grande por toda a Europa. Maxwell (1963, p. 142) relatou
que seu culto converteu-se em modelo para as igrejas calvinistas na França, Suíça,
Alemanha do Sul, Holanda, Dinamarca e outros lugares. Embora existissem variantes
locais todas as igrejas calvinistas européias seguiram a mesma família litúrgica
100
Segundo Jaci Maraschin (1996, p. 47), “em nenhuma parte do mundo reformado
apareceu com tanta coerência e beleza, obra semelhante ao primeiro Livro de Oração
Comum...”. Para Maraschin, a produção do Livro equivale ao aparecimento da obra
teológica de Lutero, na Alemanha, e de Calvino, na Suíça e na França. Por isso,
Maraschin afirma que a Reforma Anglicana foi “essencialmente uma reforma litúrgica”.
A Reforma foi possível na Inglaterra após 1536, quando, por me io das Conferências
Anglo-Luteranas, Henrique VIII permitiu o acesso à teologia luterana. Com sua morte,
em 1547, Eduardo VI intensificou as idéias protestantes e incumbiu o então Arcepisbo
Cranmer a promover reformas na missa. Dois anos depois, o Livro de Oração Comum já
estava elaborado.
O Livro de Oração Comum significou o início de novas práticas religiosas no culto que
privilegiavam, dentre outras coisas, o culto na língua vernácula e a contextualização dos
ritos cristãos. Essa contextualização se deu principalmente pelo uso de alguns elementos
medievais que foram adaptados para a Inglaterra. O maior exemplo é a tradução para o
inglês de alguns cantos gregorianos realizada pelo músico anglicano Merbecke, que, ao
mesmo tempo, valorizava a tradição musical cristã e caminhava com o princípio de
inteligibilidade cúltica da Reforma. Resumidamente, o Livro preservava o caráter das
coletas, revisava profundamente o cânon e mantinha a Santa Ceia como parte essencial
do rito. Entre todos os modelos de culto do protestantismo, o culto anglicano era o mais
extenso e complexo liturgicamente embora a participação da congregação fosse grande.
Hahn (1989, p. 80) escreveu que a influência da Formula Missae de Lutero no Livro
inglês mostra que ele se constitui “de fato numa liturgia reformada”. O uso do Livro era
uma exigência política contra o romanismo estabelecida pelo “Ato de Uniformidade”.
Este Ato foi o centro das polêmicas posteriores sobre o uso ou não do livro. Partidos
101
opostos iniciaram confrontos litúrgicos que discutiam, antes de tudo, a falta de liberdade
que o Ato proporcionava.
Por pressões extremistas, o primeiro livro não chegou a ser usado, e, assim, um segundo
livro, com uma drástica revisão, foi feito em 1552, eliminadas muitas partes da primeira
versão. Nesta versão, foi retirada a palavra missa do título, e aboliram-se as vestimentas
eucarísticas, alguns momentos musicais e de oração. A terceira revisão, a de 1559, teve
alterações ligeiras como a permissão das vestes eucarísticas e a restauração de algumas
orações. Depois de um período no qual a Inglaterra adotou o Diretório de Westminster,
o Livro de Oração Comum voltou a ser usado em 1662 na tradição da Igreja Anglicana
com uma nova revisão, que só foi alterada em 1928.
o catecismo de Calvino e alguns salmos metrificados em inglês que, com o passar dos
anos, foram aumentando até chegar à versão completa do saltério genebrino.
Embora o modelo de Knox tenha sido usado por quase 80 anos na Escócia, havia muitas
divergências sobre as formas de culto pelos partidos da Reforma. Alguns desejavam
uma aproximação maior com o Livro de Oração Comum, usado na Inglaterra, enquanto
outros o repudiavam totalmente. Entretanto, não é possível falar apenas em diferenças
de opiniões litúrgicas; talvez, nem mesmo teológicas. As lutas sobre liturgia envolviam
questões políticas e sociais específicas de cada região.
Como vimos, a Reforma Protestante gerou vários modelos de culto que variavam
segundo a concepção teológica dos reformadores, e, assim, as regiões européias
acabaram criando certa autonomia litúrgica. Se, por um lado, podemos encontrar a
diferenciação regional ligando os locais à ação dos reformadores da região, por outro, as
103
Na realidade, o protestantismo passava por condições difíceis por romper com uma
condição dominante do campo religioso, o catolicismo. Por isso mesmo, entende-se que
o culto era o reflexo e a vivência de tais condições. Ele se tornara também uma forma de
resistência, quer entre uma situação de oposição ao catolicismo, quer como uma postura
de afirmação de concepções mais específicas das condições políticas locais.
A partir dos principais modelos cúlticos, versões e adaptações foram feitas em relação
aos posicionamentos com os modelos praticados. Movimentos antilitúrgicos, resultantes
de posicionamentos teológicos, surgiram pela Europa nos séculos 16 e 17. Entre eles, os
que mais influenciaram os cultos locais foram o puritanismo inglês, o pietismo e o
racionalismo alemão.
Sobre o Diretório, Maxwell (1963, p. 102) escreveu que significou “uma amálgama” e
um compromisso com certa unidade. O Diretório, relatou Hanh (1989, p. 108), foi
produzido com “um padrão de uniformidade mínima de liturgia para as igrejas nacionais
da Inglaterra, Gales, Irlanda, Escócia, assim como para a Episcopal e Independente”.
Leith (1997, p. 306) relatou que uma das questões levantadas pelo Sínodo foi que o
Livro de Oração Comum não privilegiava a palavra nem o ensino. Por isso, o Diretório
tinha a intenção de trazer esse elemento para o centro do culto, constituindo-o em seu
principal momento. É marcante, na liturgia do Diretório, o lugar concedido à leitura e à
pregação. O estilo é bem simples e aproxima-se dos modelos puritanos. O Diretório foi
usado pelo presbiterianismo de fala inglesa durante três séculos.
Outra tentativa puritana que criar um modelo que, ao mesmo tempo, agradasse aos
puritanos e afastasse o modelo anglicano veio diretamente da Inglaterra, com Richard
Baxter. Conhecida como a Liturgia de Savoy, por ter sido apresentada na Conferência
de Savoy, este modelo seguia as linhas do Diretório, mas, aparentemente, nunca foi
usado. Produzido em 1661, o modelo de Baxter foi sufocado pela imposição do uso do
Livro de Oração Comum por Carlos II. Novamente, houve muita reação por parte do
partido dos não-conformistas, e nenhum modelo cúltico foi adotado, apenas a negação
do ato absolutista tomou conta deste grupo.
O Diretório foi usado na Escócia apenas no início de 1700, como forma de resistência à
união dos parlamentos. Por tal motivo, Hahn (1989, p. 106) declarou que o Diretório
tornou-se a Escócia na época em uma espécie de “salvaguarda e brado de guerra contra
o perigo de ser engolida pela Inglaterra”. Como pode ser notado a Escócia teve uma
postura litúrgica que foi construída em meio às lutas internas, e todas as imposições de
105
modelos cúlticos que sofreu tiverem uma conotação de posições dominantes. Por isso,
os escoceses desenvolveram aversão às formas fixas de liturgia, e tal pensamento
passou a ser fortemente difundido pelos imigrantes que foram para os Estados Unidos.
Hahn (1989, p. 108) afirmou que, no final do século 18, o culto escocês era “desnudo” e
o “sermão tornara-se tudo”. Paulo Anglada (1997, pp. 14, 15) relatou:
Mesmo não encontrando tantas tensões como na Inglaterra, por ter adotado um política
litúrgica mais flexível, a Alemanha também sofreu drásticas alterações no culto
protestante. No início do século 19, o culto alemão já se encontrava desprovido dos
sacramentos, tornando-se extremamente racional e didático. Essa situação foi
desenvolvida historicamente após a Guerra dos Trinta Anos, que trouxe conseqüências
terríveis à nação como pobreza, doenças e ignorância às novas gerações. Os pastores
protestantes foram mortos ou se encontravam em condição semelhante à da maioria, de
extrema pobreza e dificuldades para o desenvolvimento de seus ministérios.
Um dos grandes problemas enfrentados pelo clero protestante da época foi sanar a
grande superstição da geração pós- guerra. Para trabalhar com essa situação, o culto
legalista tornou-se um paliativo. A liberdade luterana foi quase esquecida por parte dos
ministros. Estes não encontravam outra solução para reeducar religiosamente o povo a
106
Depois da Guerra dos Trinta Anos, a busca de uma racionalidade no culto já pode ser
notada na Alemanha, porque esse momento deveria ser, acima de tudo, um momento de
reeducação. Razão e didática são inseparáveis, uma vez que a primeira encontra seu
exercício na atividade cognitiva dos agentes. É fácil perceber, então, que a conseqüência
107
Esses movimentos litúrgicos da Europa que tiveram, basicamente, suas ações nos
séculos 17 e 18, criaram certa homogeneidade no culto que foi intensificada ainda mais
com os movimentos avivalistas, que trouxeram um “novo”elemento ao culto: a emoção.
Tais movimentos tiveram dois focos: a Inglaterra e os Estados Unidos.
Atingida por movimentos que acabaram por romper com a tradição litúrgica anglicana,
a Inglaterra sofreu, no século 19, o que Maraschin (1996, p. 30) chamou de
reavivamento litúrgico e musical. O chamado Movimento de Oxford pretendeu restaurar
as antigas formas tradicionais mais vinculadas ao culto católico, resgatando os ofícios
108
latinos e o uso do canto-chão. De fato, se a Europa viu uma espécie de declínio litúrgico
nos séculos 18 e 19, houve um retorno aos modelos mais tradicionais posteriormente.
O primeiro ofício protestante realizado na América do Norte foi em 1579, na costa oeste
da Califórnia, pelo capelão Francis Fletcher, que se utilizou do Livro de Oração
Comum. Segundo Hahn, (1989, p. 113), o livro inglês sempre esteve por detrás do culto
nos EUA, não pelo uso, mas porque os não-conformistas que foram para o novo país
traziam sempre à mente a sua relação, nada favorável, a esse livro. Porém, o novo
território modificou consideravelmente as estruturas tradicionais do culto protestante.
As condições de fronteira legitimavam a flexibilidade dos modelos cúlticos, e as
discussões, que não eram poucas, chega vam a conclusões abertas, recomendando a
observação das circunstâncias. Não há dúvidas de que o diálogo com o ambiente abalou
profundamente os modelos litúrgicos europeus.
Além das condições especiais encontradas nos Estados Unidos, muitos imigrantes que lá
chegaram levaram consigo as influências do movimento puritano. Hahn (1989, pp. 114,
115) observou que muitos destes puritanos ingleses entraram na América entre 1628 a
1640 e tornaram-se congregacionalistas na forma de governo embora calvinistas na
doutrina.
13
Sobre esse assunto, indicamos a leitura dos livros A religious history of the american people, de Sydney
Ahlstrom (1973), e Revivalism in America, de Willian Sweet (1944).
14
Jonathan Edwards (1714-1770) era pastor congregacional norte-americano.
15
George Whitefield (1703-1770) era um teólogo calvinista, mas influenciado pela prática metodista de
pregação. Foi missionário nos EUA e liderou o primeiro reavivamento das igrejas do país junto com
Jonathan Edwards. Sobre sua biografia, indicamos a leitura de George Whitefield: the life of the great
evangelist of the eigteenth-century revival, de Arnold A. Dallimore (1975).
16
O termo “arminianismo” vem do nome Jakobus Arminius (1560-1609). Arminius era teólogo
reformado holandês e foi grande crítico da teologia calvinista sobre a predestinação. Ele enfatizava o
liv re-arbítrio na salvação. As teologias avivalistas muito se baseavam na idéia de Arminius e, por tal
motivo, empenhavam-se sobremaneira para convencer o indivíduo de sua condição pecaminosa. Na
prática, essa atitude resultou nos extensos sermões dos pregadores avivalistas.
17
Indicação histórica de J.Gould Hayman, History of the methodist revival (s/d).
110
santificação, e o resultado cúltico foi a ênfase nos sermões emocionais. Assim, o culto
norte-americano, que já se mantinha distante dos parâmetros litúrgicos da Europa,
sofreu o embate dos avivamentos e tornou-se um modelo que basicamente privilegiava
os sermões emocionais, acompanhados por hinos também emocionais.
Inserido em todos esses fatos e circunstâncias, o culto norte-americano não teve, como
nos exemplos europeus, modelos litúrgicos que privilegiassem os sacramentos e os ritos
mais objetivados. As igrejas luteranas e anglicanas, pela origem mais ritualística de seus
cultos, não sofreram tantos abalos quanto as outras denominações, mas, mesmo assim,
tiveram de adaptar-se às novas condições.
18
Para estudar o denominacionalismo norte-americano, indicamos a leitura de Nieburh: “As origens
sociais das denominações cristãs”. Nesta importantíssima obra, o autor mostra as divisões
denominacionais da América do Norte e como as questões sociais, específicas às condições desse país,
ajudaram na construção dessas denominações. Ainda sobre a estrutura denominacional do protestantismo
americano, indicamos a obra American protestantism, de Winthrop Hudson (1961).
111
específicas. Esse amálgama cúltico é uma característica presente nos missionários norte-
americanos que chegaram ao Brasil.
O catolicismo tentou criar uma produção musical religiosa pura, ao criar escolas
especificas para essa arte, destinada à uma parte especializada do clero. O resultado
dessa tentativa foi o canto-chão, que significou a criação e a separação de um estilo
técnico e formal para o canto religioso. Acontece, porém, que o canto-chão utilizou
modos musicais gregos para a constituição melódica dos cânticos. O que dizer então?
Existe uma música genuinamente religiosa? Ora, é premissa deste trabalho que
nenhuma forma de expressão religiosa seja pura. Ao contrário, afirmamos que todas as
expressões cúlticas estão inseridas em um contexto social e cultural. Entretanto, a
despeito de opiniões, a discussão de uma genuína música sacra se faz presente no
campo religioso protestante.
Maraschin (1983, p. 15), ao deparar-se com essa questão, afirma que a definição de
“música religiosa” não passa pelos aspectos estilísticos, mas sim pela mensagem
referencial dessa produção. O autor escreveu:
A referência feita à música sacra é a mesma feita à música religiosa. Maraschin deixa
clara a preocupação extrema com a mensagem poética, e, portanto, teológica, da música
religiosa – esta é a parte que a distingue da que não é. A partir de uma referência poética
é que o estilo musical passa a ser questionado. Nasce daí a tentativa de criar um tipo
puro de música religiosa estilisticamente distinta.
O culto medieval do catolicismo tinha criado uma especificação clerical que era a de
músico. Os clérigos músicos detinham o monopólio da produção musical. O clero era de
fato quem detinha o capital e produzia os mais variados bens religiosos, inclusive a
música. Acontece que o protestantismo não se preocupou com a formação de clérigos
especializados em música. Sua preocupação inicial foi essencialmente teológica, e essa
foi a única preparação e formação dos ministros protestantes. Assim, a separação entre
leigos e clero ocorreu, no protestantismo, pela distinção do versado em teologia, o
pastor, a partir do acréscimo de conhecimento teológico, ou seja, do acúmulo de
conhecimento de um lado e da ignorância leiga de outro. Esse conhecimento teológico
do clérigo protestante permitia- lhe – e ainda permite – dizer que tipo de produção
musical era adequada ao culto. Em outras palavras, o teólogo determinava o que era
música litúrgica e, de forma geral, sua concepção teológica interferia na produção.
Sabemos, entretanto, que a produção musical é, acima de tudo, produção cultural, e, por
tal motivo, é impossível não existir ligação de culturas musicais locais com o que é
produzido para o culto. Quando Gregório Magno quis criar uma música para o culto,
usou toda a concepção da época de resgate das idéias filosóficas gregas, as quais eram
114
Com a Reforma, não foi diferente, e a esse fato deve-se somar a atitude anticatólica, que
rejeitava as formas musicais eruditas produzidas para a missa. O anti-catolicismo tinha
timbres diferentes, como já vimos, e nisso se inclui mais uma variável às possibilidades
de produção. De fato, por uma série de fatores, a música ganhou no protestantismo uma
gama de variações locais e denominacionais. No entanto, independentemente das
circunstâncias, era uma produção que dependia da ação leiga.
Desse modo, o que se viu formar na área musical do protestantismo foi que, embora o
teólogo tivesse a legitimação de dizer o que deveria ser produzido, não era especialista
musical e precisava da ação de um agente externo ao círculo de produtores. Sem dúvida,
essa situação não acontecia em todos os casos, sendo o maior exemplo o do próprio
Lutero, compositor de vários hinos alemães conhecidos até hoje. Mas, tal fato, acontecia
com a maioria das liturgias protestantes, e, dessa forma, embora o protestantismo
tivesse tido uma preocupação até mesmo rígida com a questão da música, em alguns
casos o seu clero não era preparado para dar conta de tal produção.
Não há como detectar um motivo para a não- formação musical para o clero protestante.
Isso pode parecer positivo, uma vez que coloca a participação leiga como efetiva para
que o culto aconteça. E de fato, isso acontece de certo modo não só com a produção,
115
Não temos como mostrar o que essa situação causou e tem causado no protestantismo
europeu. Talvez lá, por questões teológicas e principalmente culturais, a participação
leiga seja totalmente harmonizada com o tipo de produção formatada pelo clero.
Paralelamente à produção musical católica, que no século 16 baseava-se essencialmente
no Canto Gregoriano e na Polifonia Vocal, o protestantismo europeu, libertando-se dos
princípios pedagógicos de Lutero e Calvino, produziu formas musicais consagradas pela
história como corais, motetos, missas, cantatas, paixões, oratórios, salmos, hinos e
antífonas.
Contudo, mesmo o protestantismo tendo esse legado musical na história que por
diversos momentos, inclusive, ditou tendências estéticas, seus exímios produtores não
eram especialistas cúlticos. Basicamente, os músicos protestantes eram reconhecidos
pela técnica no meio secular e aproveitados para a produção religiosa. O queremos
enfatizar não é a produção musical em si, mas o sentido inverso que o processo de
produção religiosa assume nessa área. No protestantismo, a produção musical religiosa
saiu das mãos dos clérigos e passou a depender do trabalho religioso leigo. Trata-se,
portanto, de um terreno onde as possibilidades de tensões e insatisfações tornaram-se
maiores.
De qualquer forma, não temos a intenção de pontuar lutas específicas, mas mostrar a
contradição nesta área do culto que, dependendo de condições internas e externas ao
campo, pode resultar em grandes tensões. Por enquanto, levantamos apenas uma
questão dessa tensão, procurando detectar sua gênese estrutural.
Martinho Lutero apropriou-se tanto de hinos latinos e medievais, todos traduzidos para
o alemão, até canções populares da época, cuja letra era substituída por uma religiosa.
Henriqueta Braga (1958, p. 19) transcreveu o texto escrito por Lutero em uma coletânea
publicada em 1571, na qual, junto ao título, vem a expressão que demonstra a função da
música nas mãos do reformador:
19
Sugerimos a leitura do livro de Jaci Maraschin A Beleza da Santidade, que traz especificamente os
desenvolvimentos da música na Igreja Anglicana.
117
Então, qual a diferença entre a música sacra e a profana na visão de Lutero? Com a
intenção de fazer o povo cantar a nova fé, Martinho Lutero valeu-se de diferentes estilos
musicais, cujas letras determinavam a “sacralidade”. Portanto, desde o início da música
protestante, podemos notar a presença marcante das canções populares lado a lado com
músicas mais complexas e eruditas. Também sobre esse fato, escreveu o hinólogo
Edmund Keith (1960, p. 58), que afirmou que Martinho Lutero:
(...) deu ao povo alemão não somente a Bíblia na sua própria língua,
mas o hinário também, e estas duas contribuições foram mais
poderosas contra a Igreja Católica do que todos os seus sermões e
teses... Ele cria que a música era uma dádiva boa e benévola de Deus e
não hesitou em usar qualquer melodia ou cântico digno nos seus
cultos.
Compositor de vários hinos, Lutero não se opôs à criatividade musical, antes delegou ao
protestantismo a origem da hinódia, que inevitavelmente se desenvolveu posteriormente
em outros estilos musicais. Como vimos, Lutero não tinha uma postura radical contra o
culto católico. Deste, aboliu apenas o que, segundo seu critério, estava contra os
princípios bíblicos e assim procedeu com a música católica, substituindo-a, uma vez que
se apresentava em uma difícil arte do contraponto e estava nas mãos apenas dos clérigos
que dominavam essa técnica. Lutero trabalhou harmonicamente com a música e levou-a
novamente para o seu local de origem, a congregação, que, por sua vez, era ajudada a
cantar pelo coral.
20
Institucion de la religion cristiana (1967), III, XX. 32, p. 702; tradução nossa.
119
Em 1539, Calvino publicou o Saltério Genebrino, com 150 salmos metrificados; livro
que, a seu pedido, contou com o preparo musical de compositores famosos da época,
tais como Claudio Goudimel, Claudino Lejeune, Luís Bourgeois, Clement Marot e
Teodoro de Beza. Seguindo os mesmos passos do Coral Luterano e opondo-se às
prerrogativas de Calvino, não tardou a surgirem edições com as melodias harmonizadas.
Braga (1958, p. 24) destacou Claudio Goudimel (1510-1572), que trabalhou por três
vezes os 150 salmos nas formas musicais de contraponto a quatro vozes, harmonia a
quatro vozes e moteto.
influência do ideal calvinista no canto congregacional. Keith (1960, p. 76) relatou 326
versões de saltérios publicados até 1886. Entretanto, mesmo com tanta força inicial, os
saltérios foram substituídos pela hinódia ou cantados, mas não com exclusividade.
A passagem da salmódia para a hinódia moderna, com a forma do hino que hoje
conhecemos, não foi simples e nem fácil. Fatores, como a versão musical e literária
inferior dos saltérios ingleses, a prática do lining-out 21 e a falta de contextualização dos
salmos às realidades do cristão inglês, exigiram a mudança. Igrejas independentes (não
anglicanas) foram as pioneiras na elaboração da hinódia, que teve em Isaac Watts22
(1674-1748) o grande impulso para se alicerçar definitivamente nos cultos protestantes
ingleses. Enquanto a igreja oficial lutava contra a nova forma litúrgica do canto
congregacional, hinistas de outras denominações, como a batista e congregacional,
produziam milhares de hinos que, até hoje, perduram nos hinários modernos do
protestantismo mundial.
21
O pastor da igreja designava uma pessoa para ler, linha por linha, o salmo a ser cantado. A congregação
seguia cantando, linha por linha, em tons mais graves. Tal prática foi iniciada para ajudar aqueles que não
sabiam ler e foi difundida na Escócia e América
22
Isaac Watts é conhecido como “o pai da hinódia inglesa”. Clérigo da Igreja Anglicana, tornou-se,
posteriormente, pastor da Igreja Congregacional. Compôs mais de 600 hinos, alguns ainda cantados
inclusive no Brasil.
121
tradução literária da Bíblia. Outros passos anteriores já tinham sido tomados na direção
da hinódia, como a introdução de paráfrases bíblicas neotestamentárias, numa tentativa
de ajustamento dos salmos de Davi ao cristianismo. Nas palavras de Keith (1960, p. 86),
era a intenção de “fazer Davi falar como um cristão”.
Com a hinódia já estabelecida pelas igrejas independentes, a Inglaterra viu esse estilo
desenvolver-se fortemente no Movimento Metodista de reavivamento espiritual. A
produção musical do período de reavivamento foi enorme, pois somente Charles Wesley
escreveu cerca de 6 mil hinos. John Wesley, além de pregador fervoroso, também foi
poeta e músico. Escreveu hinos próprios, traduziu muitos outros e trabalhou
exaustivamente nas poesias do irmão, tanto na compilação quanto em algumas
adaptações. A efervescência da produção hinódica estava à tona, mas a Igreja Anglicana
não abraçou a causa dos irmãos Wesley e rejeitou a produção musical de tal movimento.
Outro movimento, este dentro da Igreja Anglicana, que marcou a música protestante
inglesa foi o já citado “Movimento de Oxford”, que restaurou a hinódia latina,
baseando-se nas descobertas de hinos não traduzidos ou, simplesmente, ignorados na
compilação do Livro de Oração Comum. Essa descoberta trouxe à vista um tesouro de
hinos antigos, gregos e latinos e despertou o gosto da igreja oficial pelo hino. Esse
movimento, também conhecido como “Movimento Litúrgico”, deu oportunidade para
que composições mais eruditas de hinos começassem a fazer parte na liturgia da igreja
oficial. De fato, o Movimento de Oxford restringiu-se à reforma litúrgica da Igreja
Anglicana, não sendo aproveitado pelos outros movimentos que se valiam das
composições mais populares e de uma teologia voltada para o evangelismo.
O que podemos concluir, com base nos historiadores desses movimentos, é que a
hinódia inglesa teve, como em toda época da música sacra, a influência da música
popular. Os hinólogos afirmam que o tipo de música mais popular achava-se
diretamente ligada aos movimentos de evangelismo e avivamento, que tinham a
produção musical voltada para as massas, para o grande emocionalismo e eram
musicalmente mais pobres e inferiores. São os conve ncionalmente chamados “hinos
folclóricos” ou “hinos evangelísticos”, marginalizados pela maioria absoluta dos
hinólogos.
Esta hinódia inglesa mais popular, influenciada pelo carol, teve seu maior
desdobramento na América do Norte. Na verdade, o carol, canção de caráter jubiloso
originalmente acompanhado de danças, deu origem a dois gêneros de cânticos; um de
caráter mais alegre e jubiloso, mais próximo do hino, e outro de caráter mais lírico,
dando origem às baladas românticas. Contudo, em que nível se deu essa contribuição
popular é difícil dizer, pois, como os hinos populares foram sempre marginalizados, a
falta de informações não permite uma verificação adequada dessa influência. Entretanto,
ela existiu e até hoje permeia e influencia a produção musical protestante. Segundo
Simei Monteiro (1991, p. 27): “não é difícil perceber a aproximação estilística entre
muitos cânticos religiosos populares, ou seja, entre carols e baladas ou canções
românticas”. Esta influência popular se dá, com mais ênfase, principalmente no
território que mais se mostrou favorável à efervescência dos movimentos avivalistas: a
América.
colonos. O próprio hinário de John Wesley, feito para a Igreja Anglicana em Charleston,
em 1739, influenciado diretamente pelo grupo de colonos moravianos alemães, não teve
uso e logo caiu no esquecimento. Desse modo, foi a salmódia métrica, trazida pelos
colonos ingleses, que deu a base para a produção hinística americana.
Usando as versões inglesas dos saltérios já existentes, os colonos foram produzindo, aos
poucos, saltérios próprios. O primeiro destes saltérios foi conhecido como Bay Psalm
Book (Saltério da Baía), publicado em 1640 e feito por Richard Mather e Jonh Eliot. Foi
publicado 27 vezes e tornou-se o livro de louvor mais usado na América.
Contudo, a luta pela sobrevivência na nova terra fez com que a preocupação inicial de
alguns poucos músicos e poetas da primeira geração de colonos fosse esquecida. O
canto congregacional americano teve, no período seguinte a essa geração, um nível de
empobrecimento musical devido a fatores tais como a prática do lining-out, trazida da
Inglaterra, e o uso do Saltério da Baía, que trazia consigo problemas métricos com as
traduções diretas do hebraico.
A influência dos acampamentos (camp meetings) também contribuiu para uma produção
musical de caráter popular. Quando os acampamentos tornaram-se reuniões para
evangelismo com o foco no sermão emocional, a música seguiu a mesma tendência,
favorecendo a informalidade e a emoção. Segundo Keith (1960, p. 163):
Outros movimentos aproveitaram o estilo do hino popular tais como a Associação Cristã
de Moços 23 , considerada uma entidade precursora do hino evangelístico. É difícil a
separação do hino folclórico do evangelístico, pois obviamente este último se refere a
uma intencionalidade buscada pelo reavivamento do século 19. Mas é preciso entender
que, nesse momento histórico, a hinódia popular, chamada de folclórica, ganhou
componentes novos na letra e na simplificação musical. Keith (1960, p. 165) fez uma
distinção, não muito clara, do hino evangelístico, ligando-o às baladas e aos hinos
folclóricos, usando as seguintes palavras: “Foi então das 'baladas sacras' dos dias
coloniais, dos 'hinos folclóricos' dos acampamentos e das coletâneas das escolas
dominicais que surgiu o hino evangelístico da Associação Cristã de Moços”. Ora a
Associação Cristã de Moços, citada pelo autor, também buscava o avivamento religioso
e o evangelismo das massas. Muitos evangelistas estavam ligados a essa associação;
dentre eles, merecem destaque Dwight L. Moody24 (1837-1899), parceiro inseparável de
23
A Associação Cristã de Moços é uma associação interdenomincaional fundada em 6 de junho de 1844
em Londres, Inglaterra. O propósito da associação era promover o estudo e a meditação bíblica. A ACM
foi para os Estados Unidos no contexto dos movimentos de reavivamentos e foi trazida para o Brasil, no
final do século 19 e início do 20, pelas empresas missionárias norte-americanas. Para detalhes sobre sua
atuação no Brasil, indicamos a tese de Ary de Camargo Segui: A relação entre a religião e a educação
física na ACM de São Paulo (1998).
24
Moody era um evangelista leigo que se sobressaiu na atuação em escolas dominicais da cidade de
Chicago (EUA). Em 1861, foi residir na Inglaterra e viajava constantemente entre os dois países,
promovendo reuniões de avivamento. Para saber mais sobre sua atuação e as influências posteriores de
sua teologia e modelo de pregação avivalista, indicamos as leituras de Dwight Moody: American
evangelist, de James F. Findlay (1969) e A vida de Dwight Moody: evangelista e pregador leigo, de Paul
Eugene Buyers (1940).
125
Um dos primeiros hinários evangelísticos foi publicado por Phillip P. Bliss denominado
Cânticos Sacros. A produção tinha a intenção de servir às necessidades do novo tipo de
evangelismo que se instaurou nos Estados Unidos. Simultaneamente, Ira Sankey fazia
sucesso como solista na Inglaterra, interpretando canções do hinário de P. Bliss e de sua
autoria, estas sendo publicadas na Inglaterra em forma de panfleto e, posteriormente nos
EUA, com grande sucesso em todas as denominações protestantes destes países.
Hinários como o de Bliss e Sankey, que obtiveram sucesso imediato, propiciaram
composições do mesmo gênero e publicações de hinários evangelísticos posteriores.
Muitos foram os cantores dessa época que, seguindo o modelo de Bliss e Sankey, indo
de igreja em igreja, ajudaram a implantar, definitivamente, na liturgia de várias
denominações protestantes, o cântico evangelístico, geralmente em forma de solo. Keith
(1960, p. 167) descreveu a conseqüência desse fato:
O quadro descrito até aqui mostra uma produção de hinos destinada especificamente a
um objetivo – o evangelismo vigente na época. É certo que um movimento religioso,
seja ele qual for, necessita de uma produção musical própria que consiga incorporar
expressivamente o novo tipo de religiosidade que pressupõe. Em outras palavras, a
expressão musical religiosa estará sempre atrelada ao tipo de religiosidade que
representa. Como, então, evangelizar as massas sem cantar a música do povo? Assim,
entende-se, num primeiro mome nto, que os movimentos de avivamento e os grupos e
associações evangelísticas que surgiram nos Estados Unidos, no século 19, eram grupos
que se sentiam compelidos a pregarem salvação e arrependimento ao maior número de
pessoas. Por esse motivo, a pretensão musical desses movimentos não poderia estar
calcada em valores estéticos clássicos e eruditos, distantes do público a que se
destinavam, mas sim nas novas massas de consumidores. É dessa forma que se explica a
126
Nessa mesma direção, Braga (1961, p. 27) descreveu a relação dos hinos evangelísticos,
enfatizando o caráter simplista de tais composições:
O interessante, nesta citação, é a relação quase sinônima que Braga faz dos hinos
evangelísticos com os hinos gospel. Não se trata da produção musical gospel tal como
hoje é conhecida, mas era um momento embrionário no qual a grande influência do
spiritual já se fazia presente nas composições hinísticas do revival americano. Foi na
virada do século 19 que a música gospel surgiu, já como um resultado do movimento de
reavivamento e como um desenvolvimento posterior do spiritual, o que veremos em
outra parte deste trabalho.
A produção musical, por sua vez, também foi moldada com todas essas variáveis
teológicas e sociais. Nem sempre, entretanto, a música manteve-se fiel aos princípios
que a originaram de determinado modo. Nisso encontramos o princípio dialético entre o
culto e a doutrina, no qual não aconteceu sempre a subordinação do primeiro à última.
127
PARTE II
PRODUÇÃO MUSICAL DO PRESBITERIANISMO
BRASILEIRO
CAPÍTULO 3
O CULTO PROTESTANTE NO BRASIL
exclusividade sacerdotal e sua autoridade diante do leigo. Se, conforme salientou Jean-
Paul Willaime (2002, p. 46), a prédica é o mecanismo que traz a presença da divindade,
o pastor tornou-se o mediador exclusivo desta presença. Por esse motivo é que James
White (1997) escreveu que o protestantismo priorizou apenas um rito, o rito da palavra.
O sacerdócio protestante habilitou-se para desenvolvê- lo e criou o monopólio dessa
produção. Logo, paradoxalmente, o conhecimento libertou o leigo das mãos de um clero
e colocou-o nas mãos de outro, que encontrava legitimidade não mais na celebração dos
ritos, mas na destreza da oratória.
Isto posto, trazemos a afirmação de que não há culto que não seja realizado por meio do
monopólio da produção religiosa. Mesmo quando observamos o exemplo norte-
americano, no qual tendências leigas e avivalistas conferiram o contorno formal ao
culto, não há como excluir a atividade sacerdotal que legitima e concede status de
religioso a determinado contexto estrutural. Em outras palavras, mesmo quando o culto
assume o leigo como agente importante para a realização, a autoridade que referenda tal
posicionamento é a sacerdotal. Resta- nos, então, conhecer quais foram os modelos de
culto protestante transplantados para o Brasil.
missionário que se instalou no país, mas foi posterior a três fases protestantes 25 . Apenas
no século 19, a presença do protestantismo se fez definitiva, mas a presença inicial foi
classificada em duas grandes categorias: protestantismo de missão e protestantismo de
imigração. Tal distinção entre ambos os protestantismos foi defendida, dentre outros
estudiosos do campo, por Émile Leonard (2002), Duncan Reily (2003), Antonio G.
Mendonça (1995), Prócoro Velasques (1990) e José Bittencourt Filho (2003). Este, por
ter realizado a pesquisa depois dos outros, conseguiu elaborar tipologias do campo
evangélico até os anos atuais, classificando-o de forma bem ampla.
25
No período de 1557 a 1560, ouve a primeira tentativa de colonização protestante que resultou em
fracasso. Esta tentativa pioneira começou com a chegada da expedição de Villegaignon, em 1555,
trazendo consigo huguenotes calvinistas, que pretendiam fundar a França Antártica e construir um lugar
onde o culto reformado pudesse ser praticado livremente. Entretanto foi frustrada devido a perseguição
aos calvinistas pelo catolicismo. A segunda tentativa de implantação do protestantismo no Brasil ocorreu
durante a dominação Holandesa, no século 17, de 1630 a 1645. Durante esse período, reformados
holandeses estabeleceram-se no nordeste, principalmente em Pernambuco. Contando com o incentivo de
Mauricio de Nassau, a primeira Igreja Reformada Holandesa foi organizada no país. O século 18 foi
marcado pela presença das visitações do Santo Ofício no Brasil. Estrangeiros foram proibidos de entrarem
no país a não ser à serviço da Coroa ou da Igreja. Nesse período, até a vinda da família real, não houve
mais protestantes ou protestantismo no Brasil. Foi com a presença da Família Real e a abertura dos portos
às nações amigas que protestantes anglo-saxões começaram a chegar e estabelecer-se no Brasil. Assim,
por questões políticas entre Portugal e Inglaterra, a hegemonia católica foi sendo reduzida pouco a pouco
no país, abrindo espaço para que protestantes de diversos paises aqui se instaurassem. Até mesmo a
constituição teve que rever questões relacionadas à religião, sendo que, de 1824 a 1891, foram revistos
temas como culto, casamento, enterro e batismo de protestantes. As denominações luteranas e anglicanas
foram as que mais progrediram nessa faze de imigração. De forma geral, suíços, franceses e alemães
fixaram-se no sul do país e formaram o grupo protestante com culto próprio, na língua natal, o que
corresponderia a um terceiro momento do protestantismo no Brasil, o primeiro que conseguiu de fato
instalar-se definitivamente.
26
Embora utilizemos a tipologia “protestantismo de missão”, por mu itas vezes substituído por
protestantismo histórico ou tradicional, as denominações desse grupo que mais são influenciadas pelo
mercado de música gospel são a presbiteriana (IPB e IPI), a metodista e a batista.
132
De fato, as tipologias de Bittencourt dão o mesmo nome “evangélico” a igrejas que não
são reconhecidas como protestantes por outros pesquisadores. Independentemente de
concordarmos ou não com essa proposta, algo essencial é revelado nesta tipologia: a
pluralidade do campo religioso cristão não-católico no Brasil. Segundo Bittencourt
133
(2003, p. 123), essa variedade indica que “não existem apenas as igrejas tradicionais de
um lado e as pentecostais de outro”. Entre essa distância, há variedades plurais que
podem ser inseridas.
Acontece que esta pluralidade não é nova, mas veio da concepção denominacionalista
dos Estados Unidos desde o período de inserção do protestantismo missionário.
Entretanto, a plur alidade denominacional tem um percurso histórico contraditório. No
início, o denominacionalismo missionário gerou a homogeneização do campo. No
entanto, passou a revelar diversidades até mesmo dentro da mesma denominação. Tais
fenômenos fazem parte de uma mesma estrutura que se mostra em versões
aparentemente contraditórias. A estrutura a que nos referimos encontra-se na tipologia
do protestantismo de missão, mas, de forma geral, alastra-se, nos dias atuais, a outros
tipos evangélicos de igrejas, conferindo a esse campo um aspecto de diversidade que,
contudo, não pode ser delimitado pela instituição denominacional. Assim, quando
falamos em presbiterianismo, não é possível encontrarmos apenas um modelo, fato que
tem origem exatamente no processo inverso do protestantismo histórico, que consistia
numa homogeneização de teologia e culto entre as denominações.
27
Sugerimos a leitura de Mendonça (1990, p. 31) para conhecimento das organizações missionárias tanto
nos Estados Unidos quanto fora dele. È bom lembrar que o século 19 foi marcado pelo crescimento e pela
proliferação de agências missionárias por todo o mundo, incluindo a Inglaterra e a Alemanha. Além do
caráter mundial, as agências também tinham um caráter de extensão denominacional. Todas as
denominações do protestantismo do século 19 tiveram representantes nesta área de evangelização.
134
28
Para saber a cronologia histórica da instalação das denominações do protestantismo de missão, bem
como do campo evangélico no país, sugerimos a leitura de Émile Leonard (2002) e Duncan Reily (2003).
135
não havia dúvida de qual era o povo eleito para a propagação e construção do Reino, as
vertentes teológicas para a implantação desse projeto eram distintas, estando o
calvinismo muito enfraquecido.
29
O fundamentalismo teve como marco referencial, no Brasil, a obra de Alfredo Borges Teixeira
Maranata, em 1921, sendo intensificado, em 1940, com a presença do fundamentalista Carl MacIntyre.
Dentre as várias conseqüências desse movimento, destacamos: fé passiva, voltada para o a-histórico e em
busca de sinais, dogmatismo escolástico, autoritário e conservador sem diálogo com o mundo social.
30
As organizações ou instituições paraeclesiásticas são organizações evangelísticas e trabalham com a
tendência do interdenominacionalismo. Este, por sua vez, pressupõe o convívio, para estudos e práticas
cúlticas, de várias denominações protestantes. As paraeclesiásticas contam com o trabalho de
missionários enviados por diversas denominações e com uma estrutura interna baseada na divisão de
ministérios. A parceria entre as denominações e as paraeclesiásticas ainda é muito forte no protestantismo
histórico do país. Congressos, seminários, acampamentos e projetos missionários são algumas das
atividades desenvolvidas por esta parceria. Das paraeclesiásticas que chegaram ao Brasil nos anos 50 e
60, destacamos as três principais. A primeira é a Organização Palavra da Vida, que chegou ao país em
1957 com os missionários Ari Bolback e Haroldo Heimer, que iniciaram seus trabalhos com a formação
do acampamento em Atibaia, SP. Desde 1965, conta com um instituto bíblico transformado em seminário
teológico. Atualmente, tem sede em Atibaia, São Paulo, e filiais nos outros estados brasileiros.
Informações pelo site: www.opv.org.br . A segunda é a Mocidade Para Cristo (MPC), integrante do
ministério Youth for Christ International. Estabeleceu-se definitivamente no Brasil, na cidade de
Campinas, São Paulo, em 1952, com o pastor Donald Philis , evangelista e avivalista. Atualmente, sua
137
Outros motivos podem ser elencados para estudar o fenômeno do crescimento desses
novos movimentos religiosos, mas o isolacionismo é o que nos interessa no presente
estudo. Por quê? Porquanto não podemos falar em culto sem falar em cultura. Então, a
sede localiza-se na cidade de São Paulo, e a organização tem mais de 30 modelos de ministérios
espalhados por todo o país. Informações pelo site: www.mpc.org.br . A terceira é a SEPAL, Serviço de
Evangelização para a América Latina, que faz parte da missão internacional O.C.I. Ministries,
estabelecida no Brasil desde a década de 60. A SEPAL realiza encontros regionais e seminários, promove
reciclagem e coordena equipes de pastores que se ajudam mutuamente. Informações pelo site:
www.sepal.org.br .
138
indagação que colocamos é a seguinte: até que ponto o protestantismo missionário teve
força simbólica para manter-se afastado dos elementos culturais que tanto desprezava?
Imediatamente, surge outra dúvida: o que o fortaleceu para manter os elementos da
cultura local afastados da manifestação cúltica?
Para resolver tais questões, temos de percorrer um longo caminho, que, na realidade,
será desenvolvido em todo o trabalho. É preciso contrapor o modelo isolacionista da
inserção e início do século 20 com os fatos histórico-sociais do campo religioso
evangélico brasileiro que mudaram a configuração até então existente a partir dos anos
80. Trata-se de buscar o modelo cúltico protestante e os motivos pelos quais ele assumiu
tal formato, pois, ao procedermos desse modo, encontraremos sentido para as
posteriores inclusões edificadas sobre a mesma base. A fim de prosseguirmos com a
análise, propomos, então, um estudo da cristalização de um modelo cúltico, ou seja, a
primeira estrutura cúltica protestante no país, relacionando o diálogo existente entre os
modelos originários com a cultura local.
De forma geral, o culto que se implantou no país foi fielmente um reflexo da teologia
missionária, ajudando a consolidá- la. Logo que chegou, esta teologia, ideologicamente
construída sobre o Destino Manifesto, identificou a cultura local e a religiosidade
encontradas com a noção de demonização. O inimigo único – o catolicismo – deveria
ser expurgado da nação a qualquer custo. Tal empreendimento missionário possibilitou
139
Sérgio Buarque de Holanda, no livro Raízes do Brasil (2002, pp. 149-151), trouxe dois
trechos de “visitantes protestantes que aqui estiveram”, Kidder e Thomas Ewbank, que
comentaram sobre as formas cúlticas da religiosidade, chamada por eles de nativa.
Holanda assim escreveu (2002, p. 151):
31
Mendonça (1988, p. 42) mostra que existe uma dificuldade em definir religiosidade e religião. Segundo
ele, a religiosidade nem sempre está relacionada a uma religião organizada e instituída. Ele definiu
religiosidade como “a sensação generalizada de que o mundo está sujeito a poderes ameaçadores da
ordem (...) sejam de amplitude universal ou simplesmente localizados no espaço e no tempo, estes quando
se referem a grupos humanos isolados sócio e geograficamente”. No mesmo texto, Mendonça apresenta
uma segunda definição de religiosidade, que seria “a existência na consciência daqueles traços culturais
de crença em poderes benéficos e maléficos que, de alguma forma, regem a vida nos mínimos detalhes e
que podem estar subjacentes na aceitação de qualquer religião organizada, introduzindo nelas
modificações”. Na segunda definição, Mendonça relaciona a religiosidade com a crença culturalmente
construída e que pode, inclusive, interferir nas religiões organizadas. Tal definição de religiosidade é a
que empregamos aqui e que foi muito bem explorada por Bittencourt (2003).
141
O “velho catolicismo” é enfocado no capítulo em que Holanda examina uma das mais
brilhantes categorias culturais do brasileiro: a “cordialidade”32 . O homem cordial
manifestava-se também pela religiosidade. Trata-se, portanto, de um aspecto cultural de
grande relevância que permeou toda a relação do brasileiro com o sagrado e com a
divindade. A cordialidade produziu os aspectos intimistas e anti-ritualísticos que estão
entrelaçados com a expressão religiosa – o culto.
Ligado a essa característica, o culto tornou-se o local que, por primazia, desviava a
reflexão consciente, a autocrítica e a reflexão. Por tal motivo, a ostentação e a pompa
eram elementos priorizados nas reuniões religiosas. Assim, o anti-ritualismo não
significa a ausência de elementos festivos ou estéticos – que podem muito bem ser
usados liturgicamente –, mas, ao contrário, o esvaziamento de significados profundos e
conscientes nestes elementos. Em outras palavras, os elementos estéticos poderiam estar
presentes, mas não significavam nada mais do que bela exteriorização de afetos e
apegos, desviantes da conscientização.
32
Quinto capítulo do livro Raízes do Brasil, intitulado “O homem cordial” (Holanda, 2002, pp. 141-151).
142
aliado à cultura é dizer, nas palavras de Bittencourt (2003, p. 41), que ele aceitou, sem
problemas, a “presença e influência da Matriz Religiosa Brasileira”, sendo que esta,
prossegue o autor, “nunca representou um problema a ser enfrentado; quando muito
representou apenas uma dificuldade a ser contornada sutilmente”.
33
Outros estudiosos se debruçaram sobre o mesmo objetivo de construir uma caracterização da
religiosidade brasileira. Dentre eles, destacamos André Droogers (1987, p 62-87), que trabalhou com a
categoria de “religiosidade mínima”, que segundo o autor seria um substrato mínimo que se apresenta em
todas as religiões brasileiras.
144
expressão dessa religiosidade. Bittencourt (2003, p. 42) chega a falar de “uma criação
de identidade efetuada por meio de mediações simbólicas capazes de manter o vínculo
com as entidades ancestrais que lhes deram origem, ‘trazidas’ para o presente por
intermédio dos ritos e das festas de caráter religioso”. Em suma, o processo de
construção de identidade cultural, ou na controversa categoria de identidade nacional,
forjava-se com a construção de uma matriz religiosa que se revelava em suas formas de
expressão.
Não ficou difícil, portanto, para os missionários que aqui chegaram encontrar o seu
oponente: o catolicismo significou toda a encarnação do mal tanto da religiosidade
quanto dos costumes locais. Culto e moral, religião e frouxidão ética eram termos
usados conjuntamente nos documentos dos missionários protestantes. O anti-
catolicismo tornou-se marcante no estilo dos primeiros missionários e em muitos de
seus documentos; o culto católico era uma aberração para a mente protestante. Para o
protestantismo, o catolicismo não conseguia libertar o povo de sua condição, mas, ao
contrário, reproduzia, nos cultos, as características dos nativos incompatíveis com o
cristianismo. Um excerto da carta do capelão inglês Boys (In: Reily, 2003, p. 55),
datada de 1819, revela o pensamento protestante da época. O culto é o ponto de onde
surge a crítica ao catolicismo e aos nativos:
34
Sugerimos a leitura da obra “História Documental do Protestantismo no Brasil”, de Duncan Alexander
Reily. O autor selecionou inúmeros trechos de cartas dos missionários da época em questão que, por sua
vez, faziam severas críticas à vida cotidiana, política e moral do brasileiro.
145
brasileiro, com suas frouxidões morais, também eram repugnantes aos protestantes
imigrantes europeus que vivenciaram a influência do puritanismo e do pietismo.
Nesse cenário, o racionalismo conseguiu ser o contraponto mais estratégico para que
não houvesse o mínimo de identificação com a cultura local. O culto que representava a
religiosidade do povo brasileiro era emocional, pomposo, espetacular, festivo, intimista
e, portanto, desviava a ação consciente, significava a síntese da religião nativa que se
devia expurgar. O culto missionário, ao contrário, pretendia ser um culto racional, que
convenceria as mentes do pecado. Nesse aspecto, parece-nos que o protestantismo
desejou ser diferente, exógeno, para a nação que pretendia ganhar para Cristo. Sua
atitude cúltica revelava tal intenção objetiva ao manter afastados todos os elementos que
lembrassem as práticas cúlticas cristãs locais.
Como o catolicismo era a religião formal da nação, o ataque ao “inimigo comum” era
um discurso plenamente satisfatório, além de conter o escape teológico para que o
diálogo com a cultura não necessitasse ser discutido na expressão do culto. Dessa
forma, se o catolicismo tinha-se tornado a própria identidade cultural da nação, o
protestantismo de missão, por sua vez, gerou tamanha rejeição à cultura brasileira que
esta acabou por se tornar um “elemento constitutivo da identidade evangélica”
(Bittencourt, 2003, p. 43).
Entretanto, como pode existir um culto que se estabeleça em um povo sem considerar
suas expressões culturais? Pensamos que, sobre esse aspecto, duas coisas
surpreendentemente convergiram naquele momento histórico: a ideologia dominante de
uma nação que queria impor sua religião contra o grande individualismo alienante
daquele que se pretendia dominar. Cada modelo cúltico trazido para cá pelos
missionários de diferentes denominações continha a questão da hegemonia cúltica.
Contudo, não podemos supor que estes modelos, por si só, seriam capazes de manter,
com tamanha força, essa posição anticultural. Foi exatamente porque já existia uma
típica religião individualista e anti-ritualista no país que tais modelos ganharam força
em solo nacional. Somente a partir de tais considerações, cabe a análise dos modelos
cúlticos que influenciaram a estruturação do culto do protestantismo histórico no país.
146
Essa redução litúrgica do culto protestante no Brasil atingiu todas as denominações que
aqui chegaram por meio das missões norte-americanas. Hanh (1989) falou sobre a
“unidade” do culto protestante no Brasil para descrever o fenômeno de similaridade
entre as diferentes denominações protestantes aqui estabelecidas. Porém, deixou de fora
da análise as igrejas luteranas e anglicanas, cujos cultos mantêm a liturgia tradicional;
nesse sentido, somente as outras denominações – metodistas, congregacionais,
presbiterianas e batistas – assumiram formas semelhantes de culto no Brasil. Ora, esta
“unidade” – segundo as palavras de Hanh – ou “similaridade” cúltica, além de já ser
praticada nos Estados Unidos e legitimada pelo interdenominacionalismo teológico do
pensamento missionário, encontrou respaldo na grande frente de trabalho iniciada por
Robert Kalley e seguida de perto pelos missionários que chegaram depois.
35
Robert Reid Kalley (1809-1888), médico escocês ordenado pastor pela Sociedade Missionária de
Londres em 1839, e sua esposa, Sarah Kalley, chegaram ao Brasil em10 de maio de1855. Em 19 de
agosto do mesmo ano, Sarah Kalley iniciou as atividades da Escola Do minical em terras brasileiras.
147
Segundo Hahn (1989, pp. 132-152), Kalley tinha a mentalidade de que as verdades do
evangelho precisavam ser apresentadas de forma racional, e sua teologia era uma
mistura de pietismo e racionalismo. Ele trabalhava em artigos e traduções, mostrando
sempre a íntima ligação da fé cristã com a razão. Assim, o modelo cúltico de Kalley
privilegiava a questão racional e foi seguido pelos missionários posteriores. A
concepção teológica de evangelização dos missionários, somada à concepção racional
de Kalley, fortalecia ideologicamente o combate à falsidade do catolicismo. O modo
eficaz de realizar tal tarefa era expor, lógica e racionalmente, a falácia da religião
hegemônica do país. O objetivo central do culto passou a ser, então, o convencimento
de que a nova religião trazia a verdade!
Se essas questões podem ser consideradas circunstanciais, não há como não vinculá- las
às tendências anteriormente desenvolvidas nos movimentos ocorridos após o século 16
148
Sobre o que acontecia nesses cultos, os registros de diários de missionários como Robert
Kalley, Simonton, Blackford e outros mostram a presença eficaz do ensino doutrinário
da nova religião que se instalava no país e poderia ser aplicado pelo pastor missionário
ou, na ausência deste, por um leigo que lia trechos da Bíblia (Hahn, 1989). Estes
registros contêm, na esmagadora maioria, apenas relatos de leituras bíblicas, algumas
orações e cânticos. Assim sendo, podemos concluir que esses cultos domésticos eram,
na realidade, reuniões para o ensino do evangelho. Em termos litúrgicos – se é que
podemos usar tal palavra –, a conseqüência posterior seria a grande preocupação com a
importância e o espaço da prédica no culto protestante brasileiro.
Esse modelo simplista de culto que se fixou no país tem de ser analisado por dois
aspectos que se misturam no panorama nacional: não só Kalley já havia instaurado o
culto doméstico no Brasil com sucesso, mas também o próprio modelo norte-americano
negligenciava as demais partes litúrgicas. Portanto, a matriz cúltica do protestantismo
brasileiro, quer a partir das reuniões dos Kalley, quer a partir do modelo dos
reavivamentos, era a da música assessorando a palavra – os dois elementos que
forneciam a estrutura do culto protestante no Brasil.
149
Se, nos avivamentos, o longo sermão, sempre emocional, era assessorado pela música
com tendências populares e também emocionais, no Brasil, o modelo foi copiado, mas a
intenção, substituída. A música religiosa estava, aqui, a serviço do elemento menos
emocional do culto: o sermão pedagógico. De fato, ao que tudo parece, o pressuposto
racional de Kalley conviveu, sem nenhum conflito, com as teologias e as formas
musicais mais populares dos avivamentos estudinenses; em outras palavras, um
pressuposto racional desenvolvido em moldes avivalistas!
Havia pouca gente para converter por isso a carga emocional já não
era essencial; o importante era reforçar as convicções intelectuais dos
fiéis e fazer com que permanecessem na Igreja. Neste sentido, o
conteúdo emotivo do culto, embora secundário, acabou sendo cada
vez menor, se é que em muitas circunstâncias não desapareceu
completamente. É por isso que Emile -G. Léonard, observando nossas
Igrejas na passagem da década de 1940 para a de 1950, disse que os
protestantes brasileiros vão a Igreja para “aprender”.
Essa idéia nos remete ao período posterior da estrutura bipolar do culto, que, a partir
desse formato, transformou-se em um modelo que conseguiu englobar tudo o que foi
pontuado: o modelo didático e pedagógico. Por isso mesmo, os evangélicos dirigem-se
para os cultos pensando no que vão aprender. O que notamos, assim, é que o modelo
kalleyano cristalizou-se no país a ponto de, nos anos 30 e 40, a racionalidade ter-se
intensificado no culto. A inicial concepção de convencimento racional levou à
inevitável concepção pedagógica analisada por Leonard (2002,p.146), que relatou:
Uma possível resposta a essa indagação não poderia ser encontrada no isolacionismo
conversionista? Ao fazer da negação cultural um princípio de identidade, o
protestantismo não deveria guardar as formas cúlticas que contribuíam para esta
negação? Sem dúvida, muitas especulações podem ser feitas, mas acreditamos que a
posição anticultural do protestantismo seja base para especulações posteriores. O fato é
que esse modelo inicial fixou-se no país e resultou no modelo antilitúrgico que existe,
até hoje, nas denominações históricas do protestantismo brasileiro, mantendo
características específicas e criando o convívio contraditório entre alguns elementos.
Veremos as principais características presentes no culto protestante no que chamaremos
de segunda fase do culto protestante histórico no Brasil.
A centralidade da prédica no culto protestante é fato que não necessita mais ser
explicado. No Brasil, a negação aos “pomposos” cultos católicos, que resultou em um
culto que priorizava excessivamente a racionalidade, reforçou ainda mais essa
tendência. Segundo Velasques, a conseqüência direta da centralidade da prédica foi a
abertura total do culto. O autor ressaltou que “o culto teve que se tornar totalmente
aberto, o que é em si, um princípio desviante da própria concepção de culto. Em um
culto aberto há cada vez menos sentido existirem símbolos litúrgicos, e os elementos de
mistério são eliminados definitivamente.
Essa primeira crítica ao culto protestante, portanto, está diretamente relacionada com a
essência do que seja o culto cristão. Liturgicamente inferimos que os atos sacramentais,
como, por exemplo, a Ceia Eucarística, perderam totalmente o sentido que lhes era
atribuído. Nas palavras de Velasques (1990b, p. 161), “o espaço litúrgico é sacrificado
no altar da argumentação”.
Mas a produção musical protestante que se fixou no país foi a que veio com o
protestantismo de missão. Assim, como a teologia trazida pelos missionários era a dos
avivamentos, o mesmo se aplicava à música entoada congregaciona lmente. Isso quer
36
“Huguenote” era o nome atribuído aos calvinistas franceses.
155
dizer que a produção musical que se consolidou no país foi a baseava nas hinódias
inglesas e norte-americanas.
Os hinos entoados na era metodista dos Estados Unidos afastavam-se das tendências
mais litúrgicas do protestantismo e, principalmente, do presbiterianismo europeu, cuja
tradição musical era calcada na salmódia. O hino evangelístico tinha basicamente duas
funções, a de evangelização propriamente dita e a de intensificar o emocionalismo dos
encontros avivalistas. Sermão e música eram emocionais.
Nesse ponto, reside o que consideramos primordial para entender o modelo cúltico
bipolar do protestantismo: os dois elementos são contraditórios. Ao analisarmos a
função dos hinos avivalistas e evangelísticos, veremos que auxiliavam um sermão
caloroso e emocional dos avivamentos, facilitando a conversão e fomentando até
mesmo o êxtase religioso. Contraditoriamente, a hinódia avivalista estava, aqui no
Brasil, a serviço do elemento menos emocional do culto: o sermão racional-pedagógico.
Logo, quando o culto protestante histórico manteve, como base de sua estrutura
litúrgica, um elemento originariamente emocional, guardou, dentro de si, algo que
potencialmente poderia destruir sua maior característica, a racionalidade. Por isso, há
uma intrínseca contradição entre o modelo musical usado e sua função cúltica.
Dessa maneira, restou à hinódia avivalista no Brasil cumprir apenas uma função
pedagógica. Era preciso convencer, e a música ajudava nesse processo. Os cultos
156
domésticos valiam-se dessa estratégia bipolar, a qual deu resultados positivos. O sermão
explicava, e a música reforçava e auxiliava a mensagem. Sem dúvida, a mensagem
musical era a que mais facilmente se impregnava na mente e nos ouvidos dos indivíduos
reunidos nos lares.
Logo, como o culto do protestantismo teve o modelo original com Robert Kalley, foi
com Sarah Kalley, sua esposa, que o modelo hinódico do protestantismo brasileiro
estruturou-se 37 . Entre as várias atividades que Sarah desenvolvia, duas merecem
destaque: o ensino e a música. A ligação entre elas era grande, e Sarah, por meio das
atividades da escola dominical, conseguiu realizar no país o início dos estudos musicais
no protestantismo. Henriqueta Braga (1961, p. 109) acreditava na possibilidade de que
os primeiros hinos em português cantados no Brasil tenham sido entoados nas escolas
37
Recomendamos o trabalho de doutoramento de Douglas Nassif Cardoso “Sarah Kalley: professora,
missionária e poetisa” para mais detalhes da vida dessa personagem de extrema importância na inserção
do protestantismo missionário no Brasil. Sobre sua atividade especificamente musical, o mesmo autor
publicou o livro Convertendo através da música: a história dos salmos e hinos, que foi um dos capítulos
de sua tese de doutorado.
157
dominicais dirigidas por Sarah. A hipótese de Braga era que tais hinos haviam sido
compostos na Ilha da Madeira por Robert Kalley.
Sua atuação na área musical foi marcante: ela traduzia, compunha, ensinava e adaptava
diversos hinos aos brasileiros. As melodias, pela cadência simples, deviam ser
facilmente incorporadas pelo grupo de fiéis e, assim, estes hinos ajudavam
pedagogicamente na fixação doutrinária dentro e fora do culto. Nesse trabalho, Sarah
não se preocupava com a originalidade musical. Suas adaptações causam certo
estranhamento por parte dos musicistas. Em entrevista cedida a Douglas Nassif Cardoso
(2005, p. 58), Simei Monteiro declarou que “chama a atenção como ela (Sarah) traduz
um hino de Isaac Watts, o pai da hinódia inglesa, fazendo profundas modificações no
texto original”.
Do mesmo modo, Sarah procedia com os poemas de sua autoria. Muitos deles eram
“encaixados” em melodias já existentes, obviamente européias e americanas, e, por
vezes, algumas traduções eram colocadas em melodias diferentes das compostas
originalmente. As adaptações de Sarah Kalley mostravam a total liberdade que ela
encontrava para atuar em solo nacional.
Ainda que não existam registros específicos, os hinos ensinados por Sarah Kalley
foram, provavelmente, durante décadas, as únicas fontes hinódicas do protestantismo de
missão no Brasil. A partir de sua dedicação à área musical, surgiu a compilação de um
hinário protestante brasileiro, o Salmos e Hinos. A primeira edição do hinário, usada por
Sarah no Brasil, foi editada em Londres, em 1855, antes de chegar ao país (Cardoso,
2005, p. 21). Em 1861, foi feita a primeira edição brasileira, que continha o total de 50
hinos. A primeira edição de Músicas Sacras data de 1869 e já passou a trazer 100 hinos,
incluindo músicas para crianças e coro. Após o falecimento de Robert Kalley, o filho
adotivo do casal, João Gomes da Rocha encarregou-se, com a mãe, das edições
posteriores – respectivamente 1889, 1899, 1919; a última englobava 608 hinos além de
antífonas, canto-chão e índices (Monteiro1991, p. 28).
ser cantado”. Mas qual teologia? E com que música? Mendonça (1995, p. 225)
demonstrou a convivência das várias tendências teológicas tradicionais do
protestantismo de missão no mesmo hinário e classificou-as como protestantismo
“pietista”, “peregrino”, “guerreiro” e “milenarista”.
Sobre a parte musical dos Salmos e Hinos, Mendonça (1995, p. 221) afirmou que os
hinos selecionados para compor esse hinário retratam o estilo musical dos movimentos
de avivamento a partir de Sankey e Moody, ou seja, hinos inspirados em melodias
populares:
Cardoso (2005, pp. 56, 57) mostrou a origem melódica dos 53 hinos que Sarah traduziu
para o português. De acordo com a pesquisa de Cardoso, Sarah teve um gosto eclético
na escolha dos hinos e traduziu desde clássicos europeus até hinos gospel. Entretanto, se
havia um ecletismo musical em Sarah, “a ênfase teológica foi mantida”.
Contudo, embora seu gosto eclético tenha- lhe permitido incorporar algumas canções
clássicas européias nos Salmos e Hinos, segundo Cardoso (2005, p. 59), “a inclusão de
autores como Fanny Crosby (1820-1915) e Ira David Sankey (1840-1908) denunciam
uma identificação com os hinos avivalistas utilizados nas igrejas ‘Holiness’ e nas
campanhas evangelísticas de Moody”. O autor destaca o acréscimo de uma estrofe no
hino de Fanny Crosby, “Desejos da Alma”, no qual Sarah parece desejar que o
avivamento americano chegue ao Brasil:
Maravilhas soberanas
Outros povos vêm;
Oh! Derrama a mesma benção
Sobre nós também.
A análise realizada até aqui nos permite destacar dois aspectos que consideramos
normativos para toda a produção hinódica posterior do protestantismo no Brasil: a
despreocupação com a originalidade musical e a presença marcante da teologia
evangelística e individual dos avivamentos. Essas tendências seguirão todo o estilo
musical e teológico dos hinários posteriores a Salmos e Hinos 38 e, depois, dos chamados
corinhos e cânticos espirituais.
38
Para dados históricos dos hinários posteriores, indicamos a obra de Simei Monteiro O cântico da vida
(1991).
160
Braga (1961, p. 115) relacionou a segunda publicação de Salmos e Hinos com Música
Sacra, de 1869, com uma atividade musical desenvolvida por Sarah Kalley e concluiu
que tal publicação deveria supor a presença de um coral. Sabemos que Sarah Kalley
desenvolvia o ensino nas escolas dominicais, onde também ensinava música para as
crianças. Contudo, a constituição de um coro que, em 1869, já tivesse conhecimento de
leitura musical e fosse atuante nos “cultos domésticos” não é fato que podemos afirmar
com precisão. O primeiro relato de um coro organizado e com participação ativa nos
cultos foi mencionado pela mesma autora e data de 1876, na Igreja Evangélica
Fluminense 39 , que, na época, estava aos cuidados do rev. João Manuel Gonçalves dos
Santos. Braga (1961, p. 116) informou que, durante 28 anos, esta igreja teve atividades
musicais que incluíam a efetiva participação do coro no culto e aulas de música.
Não se sabe quando o canto coral (...) foi introduzido nas Igrejas
brasileiras. É de supor que tenha sido desde os primórdios, uma vez
que em suas primeiras edições o Salmos e Hinos com música já trazia
melodias escrita para quatro vozes. No interior do estado de São
Paulo, pastores ensinavam a grupos de pessoas vocalmente bem-
dotadas alguns hinos do Salmos e Hinos, tradicionalmente cantado em
39
Igreja fundada por Robert Kalley, em 1858, no Rio de Janeiro.
161
De qualquer forma, mesmo sem uma precisão do início das atividades corais, Dorotéa
Kerr e Samuel Kerr40 afirmam que esta atividade compôs “ao lado do canto
congregacional uma das marcas dos evangélicos no Brasil”. Eles escreveram que, desde
os anos 30, já existiam escolas de música em torno dos seminários teológicos com o
objetivo focalizado na educação de líderes musicais e na criação de coros locais.
Podemos mesmo afirmar que o coral foi o primeiro elemento musicalmente elaborado
do culto protestante brasileiro.
Embora não tenhamos uma exatidão de quando tal atividade começou – provavelmente,
nos primórdios do hinário Salmos e Hinos, ainda com Sarah Kalley –, conseguimos
detectar a época da consolidação efetiva do coral no culto protestante a partir da
constatação de uma produção musical específica para esse fim, as duas coletâneas
Coros sacros e Os céus proclamam.
Compilada pelo batista Arthur Lakschvitz, Coros sacros foi publicado em 1931 e
amplamente usado por todas as denominações protestantes do Brasil. Porém, a atividade
coral desenvolveu-se sobremaneira com a missionária presbiteriana Evelina Harper41 .
Segundo Mendonça (1990a, p. 193) “foi grande a influência de Evelina Harper no
desenvolvimento de um novo estilo da música coral no Brasil”. Sua obra, que começou
na década de 40, foi continuada por João Wilson Faustini, que, em 1958, lançou o
primeiro volume da coletânea Os céus proclamam. Tal coletânea marcou uma forte era
do coral nas igrejas protestantes e, principalmente, nas presbiterianas. Encontros de
40
KERR, Dorotéa e KERR, Samuel. In: www.organistasbrasil.triang.net/edicao14.htm. Acessado em
24 de setembro de 2005.
41
Evelina Harper, nascida em Des Moines, no estado de Iowa, em 15 de março de 1899, era esposa do
missionário Charles Roy Harper, natural do estado do Kansas e nascido em 15 de março de 1895. O casal
de missionários era membro da antiga Missão Presbiteriana do Brasil Central e, a mando desta, em 1925,
realizou seu primeiro trabalho nas regiões do Mato Grosso. Ambos eram músicos: ele tocava pistão, e ela,
harmônio. Em 1927, foram enviados para o Instituto José Manoel da Conceição (JMC) em Jandira. O
JMC tinha o objetivo de preparar a liderança das igrejas evangélicas e, em 1928, inaugurou o “Curso
Universitário José Manoel da Conceição”. Roy e Evelina eram professores do Curso Universitário; ele
ensinava grego e hebraico, e ela lecionava inglês e música. Seu brilhante trabalho na área deveu-se à
criação da “Caravana Evangélica Musical” (CEM). Viajando pelo país, o CEM proporcionava a
propagação da música evangélica por meio de coros organizados com os alunos do JMC. Por esse
programa, muitos músicos, regentes e organistas eram preparados para atuarem nas igrejas. Evelina
esteve à frente do CEM até 1952, ano em que Roy assumiu a tesouraria do Instituto Mackenzie, em São
Paulo. O casal retornou aos Estados Unidos em 1962.
162
42
Realizamos trabalho de campo em reuniões da SOEMUS durante o ano de 2006. Segundo informações
do atual presidente, a SOEMUS administra todo o acervo de publicações do Rev. João Wilson Faustini
que consta na coletânea Os Céus Proclamam, em 5 volumes, músicas corais avulsas para Natal, Páscoa e
demais temas do calendário litúrgico, para casamento e evangelização. Dentre os vários trabalhos
editoriais que fez, editou os dez volumes da coletânea Ecos de Louvor e tem reeditado diversas músicas.
Em 1996, lançou a 2ª edição revista e ampliada do livro Música e Adoração, de autoria de J.W.Faustini, e
Hinos Tradicionais de Natal. Em 1997, lançou a coleção Louvemos a Deus, que hoje consta de três
volumes. Em 2000, lançou a série Música e Adoração, com 11 músicas avulsas e, em 2001, a coletânea
25 Hinos Novos para um Novo Dia e a série Laudamus, com sete hinos avulsos para coral. Desde 1999,
tem produzidos CDs com a agravação do Culto de Encerramento dos Seminários de Música e Adoração.
A SOEMUS é uma pessoa jurídica composta administrativamente por uma Diretoria, um Conselho de
Administração e um Conselho Fiscal. É mantida por ofertas, doações, vendas de livros e partituras e pelo
produto dos eventos que promove. No ano de 2006, lançou a publicação de um periódico com
informações sobre suas programações e discussões gerais à respeito da música erudita nas igrejas.
163
não pode ser explicado apenas pelas circunstâncias brasileiras, mas deve ser inserido no
contexto de alguns modelos litúrgicos protestantes europeus que não usaram, desde os
primórdios, a música coral como atividade litúrgica. De modo geral, as igrejas
protestantes que não eram de tradição luterana aboliram a prática coral. Temos o
exemplo dos cultos calvinistas e da extremada posição de Zwínglio.
Todavia, qual seria a função do coral no culto? Está relacionada com a utilização
inicialmente feita pela igreja católica do responso litúrgico. Em Lutero, a atividade
inicial do coral tinha a função de acompanhamento congregacional substituído, depois,
pelo órgão. Neste exemplo, a função era ajudar no canto congregacional e, ao mesmo
tempo, conferir- lhe beleza. No primeiro caso, a prática coral conduzia, de forma estética
e litúrgica, a congregação nas respostas ao dirigente do culto. Portanto, o coral tinha,
acima de tudo, papel ritualístico, pois permitia a expressão coletiva da adoração.
Mendonça (1990a, p. 191) escreveu sobre essa proeminente função do coral:
Contudo, no culto protestante brasileiro, o desvio da função litúrgica do coral foi nítido.
Essa atividade musical acabou por incorporar todo o discurso anticultural, racional e
pedagógico e, assim, não contribuiu para o que poderia significar um desenvolvimento
na área litúrgica. A crítica de Mendonça (1990, p. 192) é que “a prática do canto coral
no culto brasileiro generalizou-se como um erro litúrgico a mais”, porque não cumpria a
função litúrgica, mas apenas a de embelezamento estético. Isso se deve principalmente
ao fato de que o coral não auxiliava no canto congregacional ou possibilitava as pontes
entre os momentos litúrgicos do culto.
(...) esse entrave que o coral representa é, na maioria das Igrejas, ainda
agravado pelos numerosos conjuntos vocais que voluntariamente se
organizam e exigem espaço no culto. O que se vê, com freqüência,
além do que se devia esperar, é o culto se transformar em espetáculo
lítero-musical em que o fiel é mero espectador.
O que nos mostra esta citação? O primeiro ponto que destacamos é o surgimento de
“numerosos conjuntos vocais” citados por Mendonça. Supostamente, eram grupos que
faziam arranjos mais livres e improvisados dos corais. O segundo aspecto é que tais
grupos vocais mantiveram a característica antilitúrgica de apresentação. Ou seja, o tipo
de prática coral acabou por influenciar as demais atividades musicais que trabalhavam
com a música vocal. Por fim, trazemos um terceiro ponto de análise: a fragmentação do
espaço cúltico pela atividade musical. Assim, temos a estruturação de um modelo
cúltico em que a bipolaridade – prédica e música – assumiu uma característica
fragmentária e totalmente antilitúrgica, porque impedia a participação dos fiéis. Estes
ouviam a pregação e a música.
Logo, o modelo de culto protestante histórico que se fixou no Brasil utilizou uma
estrutura bipolar, cujas bases eram a prédica e a música. Ambas as partes tinham função
pedagógica, o que levou o culto protestante em geral ao afastamento da noção de
mistério e adoração. Nesta estrutura bipolar, a música cumpria a função auxiliadora da
prédica com o objetivo de preparar as mentes e ressaltar a mensagem. Foi nesse
43
Esse fato foi constatado pela realização do trabalho de campo. Em todas as igrejas que estivemos e que
ainda mantinham a atividade coral, a característica única era a de apresentação.
165
CAPÍTULO 4
O CULTO PRESBITERIANO NO BRASIL
Quase tudo o que foi discutido sobre teologia e culto do protestantismo de missão vale
para a análise do presbiterianismo, nome dado às igrejas oriundas do calvinismo
europeu do século 16. Isso é possível devido à unidade teológica e cúltica implantada
pelo protestantismo missionário no país. Porém, especificamente nessa denominação, tal
característica de unidade causa muito estranhamento e chega a ser contraditória. Afinal,
a teologia pietista-arminiana e o modelo cúltico, baseado na hinódia avivalista, são
elementos que fazem oposição às concepções calvinistas. De fato, no primeiro período
da Igreja Pesbiteriana no Brasil, a fidelidade ao nome “presbiterianismo” só exis tiu
mesmo no tipo de governo eclesiástico. Assim, todas as concepções teológicas e cúlticas
do protestantismo de missão foram vivenciadas pelo presbiterianismo brasileiro e
ganharam um caráter mais contraditório nesta denominação.
Como a Igreja Presbiteria na viu-se inserida neste contexto de unidade cúltica, cujo
modelo é arminiano e avivalista? Para obtermos a resposta, cabe lembrar que o
presbiterianismo que chegou ao Brasil não foi o modelo genebrino original, mas um
modelo já adaptado às condições norte-americanas. Trata-se de um momento do
presbiterianismo brasileiro que chamamos de inserção. Todavia, o modelo cúltico
presbiteriano já se encontrava estruturado e consolidado na segunda fase do
protestantismo no Brasil que, segundo Carl J. Hahn (1989) e Émile Leonard (2002),
situa-se em meados dos anos 30.
Simonton foi enviado ao Brasil pela Igreja Presbiteriana do Norte, a PCUSA. Um ano
mais tarde, chegava ao país o segundo missionário da denominação, Alexander Latimer
Blackford, casado com a irmã de Simonton, e que, depois de sua morte, assumiu a
missão presbiteriana.
Nos Estados Unidos, o presbiterianismo sofria uma forte tensão, que o dividia em duas
correntes voltadas a questões teológicas e políticas. O conflito interno havia-se iniciado
por conta da oposição da Velha Escola e da Nova Escola. Esta apoiava a causa libertária
dos escravos e tendia ao avivamento além de posicionar-se, de bom grado, a união com
168
Somente no ano da morte de Simonton, 1867, é que a Igreja Presbiteriana do Sul enviou
missionários para cá, dentre outros motivos, pela possibilidade de encontrar uma
política escravista. Os primeiros missionários desta igreja foram George Nash Morton e
Edward Lane, que se instalaram em São Paulo. Com a permissão das Juntas
Missionárias das respectivas igrejas, ocorreu a fusão, em 1888, das duas tendências
presbiterianas a fim de formar uma única igreja nacional, a Igreja Presbiteriana do
Brasil (IPB).
Segundo Mendonça (1990b, p. 35), a Igreja Presbiteriana foi a que mais cresceu no
século 19, sendo a primeira igreja protestante a obter autonomia formal das igrejas
norte-americanas. O Sínodo da IP foi organizado em 1888 e contou com quatro
presbitérios e 60 comunidades locais.
44
Para aprofundamento da história do Mackenzie e sua relação com a Igreja Presbiteriana, indicamos as
leituras das tese de doutoramento: Mackenzie College e o ensino superior brasileiro: uma proposta de
universidade, de Osvaldo H. Hack (2001), e Mackenzie em movimento: conjunturas decisivas na história
de uma instituição educacional, de Marcel Mendes (2005), e o livro Religião, educação e progresso, de
Antonio Máspoli de Araújo Gomes (2000).
170
Esta frase, dita pelo historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil, o reverendo Alderi de
Souza Matos 47 , resume o aspecto cúltico do presbiterianismo brasileiro ao mesmo
tempo em que o insere no esvaziamento litúrgico do protestantismo de missão. A
unidade teológica gerava a unidade cúltica. Aqui, no Brasil, o presbiterianismo agregou
valores que não eram seus e quase transformou o culto em uma inversão de seus
fundamentos teológicos. Os missionários presbiterianos que chegaram ao país
vivenciaram o clima teológico e cúltico dos avivamentos. Eram pessoas simples, vindas
de cidades pequenas ou zonas rurais dos Estados Unidos que, ao chegarem, fixaram-se
também em regiões afastadas das grandes cidades, nas zonas rurais, não tendo
conhecimento de grandes aparatos litúrgicos (Matos, 2005).
45
Por motivos metodológicos, não discutiremos o processo que originou a cisão. Indicamos a leitura
preliminar sobre o assunto em Hanh (2002, pp. 145- 183).
46
Os pastores que saíram da igreja, liderados por Eduardo Ca rlos Pereira, foram: Alfredo Borges, Bento
Ferraz, Caetano Nogueira Junior, Ernesto Luiz de Oliveira, Othoniel Motta e Vicente Themudo Lessa.
47
MATOS, Alderi de Souza. Entrevista realizada em maio de 2005 a Jacqueline Z. Dolghie.
172
Dessa maneira, tanto os missionários quanto o povo que se pretendia evangelizar eram
pessoas simples, e a elaboração de um culto mais formal não cabia em tais
circunstâncias. De fato, a formalidade litúrgica poderia vir a ser até um impedimento
para que o presbiterianismo se expandisse pela zona rural. Essa situação, entretanto,
perpetuou-se, e, na migração da zona rural para a urbana, houve o conservadorismo de
um modelo passageiro. Ela passou a ser tradição! Por quê?
As variadas respostas que podem surgir sempre ficarão em dívida com as minúcias da
história – infelizmente, no caso citado, minúcias de uma história não-contada. Sua
construção se dá pela costura de informações fragmentadas de um ou outro historiador
do presbiterianismo brasileiro. Aliás, foi um deles, Alderi Matos, que nos falou a
respeito da escassez de pesquisas que tratam especificamente do culto presbiteriano no
Brasil. Para ele, isso é sintomático, porque mostra que o culto nunca foi assunto de
relevância para a denominação. Ao que tudo indica, as intermináveis discussões sobre
liturgia e música entre os calvinistas europeus não chegaram ao Brasil.
O trabalho pioneiro que conseguiu pontuar algumas características sobre o culto entre os
primeiros missionários presbiterianos no país foi, sem dúvida, o de Carl J. Hahn. O
autor trabalhou com enxertos de cartas, diários e documentos dos missionários. Nestes,
analisados por Hahn, pode-se observar a ausência de uma discussão específica sobre
culto e música. Na maioria esmagadora, missionários como Simonton e Blackford
registraram a leitura e o ensino bíblico das reuniões que faziam.
Segundo Hahn (1986, p. 165), Simonton fez descrições muito breves sobre o culto, o
que obscurece o conhecimento de sua prática. O missionário registrou, em seu diário,
por exemplo, que, devido à sua dificuldade de entoar os cânticos, usou o Livro de
Oração Comum. Fez referência ao fato, mas não deu detalhes sobre quanto tempo
adotou essa prática. Encontramos, neste registro, o que já foi ressaltado diversas vezes:
o despreparo dos pastores de arcarem com todos os momentos do culto e a falta de
especialistas para ajudá- los.
Todavia, outro detalhe chama-nos a atenção: o contato de Simonton com Robert Kalley.
Em seu diário, datado de 11 de abril de 1860, Simonton mencionou ter ficado na casa
dos Kalley, em Petrópolis, e participado de seus cultos domésticos. No relato, ressaltou
a simplicidade dos discursos de Robert Kalley, algo que lhe chamou a atenção.
173
Blackford, da mesma forma que Simonton, não deixou registro de ordem de culto, ou
qualquer ordem litúrgica que eventualmente acontecesse. Hahn (1986, p. 168) chega a
dizer que “sua contribuição para o culto tem de ser detectada no que ele não registrou e
no que ele escreveu”. A personalidade de Blackford, para Hahn, pode revelar suas
contribuições cúlticas. A adaptabilidade às condições de fronteira nos Estados Unidos e
no Brasil e a cooperação com os anglicanos indicavam uma abertura às idéias da Nova
Escola, embora Blackford tivesse forte apego aos princípios da Velha Escola. Mais uma
vez, caracteriza-se a convivência, quase sincrética, de posições teológicas diferentes!
Blackford, assim como Simonton, teve contato com o tipo de culto realizado por Kalley,
e, assim, o modelo de culto kalleyano difundiu-se entre os primeiros missionários
presbiterianos. Havia um trânsito comum entre freqüentadores dos cultos presbiterianos
e os de Kalley que, muito provavelmente, provocou aproximações entre os modelos –
que, de certo modo, eram bem similares.
que leitura, sermão e uma breve oração? Independentemente do que tenha ocorrido, a
despreocupação em registrar adequadamente os momentos do culto foi um fator
desencadeante para a consolidação do modelo pedagógico no presbiterianismo.
No prefácio do Manual (1892, pp. 18, 19), Carvalhosa mostra como as igrejas que não
tinham um ministro oficial deveriam prosseguir:
Hahn (1986, p. 315) relatou o triste destino do culto presbiteriano na segunda fase do
protestantismo histórico no país, que o autor situou a partir dos anos 30. Neste período,
as denominações protestantes já começavam a criar discursos de identidade na tentativa
de se diferenciar na unidade teológica e cúltica. Mesmo assim, a presença da
Confederação Evangélica no Brasil ainda era fator de agregação. Desta confederação,
inclusive, surgiu o Hinário Evangélico 48 , que representava a prática costumeira do
interdenominacionalismo na hinódia. A chegada, nos anos 50, das instituições
paraeclesiásticas também contribuiu para a manutenção da unidade protestante no Brasil
cuja influência, na área cúltica, foi muito grande.
48
Segundo Monteiro (1991, p. 28), o Hinário Evangélico originou-se dos esforços da Confederação
Evangélica do Brasil para unificar a então hinódia em uso nas igrejas evangélicas do país. Foram reunidos
cânticos dos hinários Salmos e Hinos e Cantor Cristão.
177
O segundo ponto merece uma análise mais crítica e refere-se ao tipo de hinódia adotada
no Brasil. De acordo com Mendonça (1995, pp. 211-239), o culto presbiteriano
curiosamente usava o Salmos e Hinos e cantava, sem qualquer conflito teológico,
muitos hinos de inspiração arminiana. Se o uso da hinódia em lugar da salmódia não
causou conflitos entre os missionários presbiterianos ou tampouco alguma indignação
posterior por parte da denominação, o que dizer do tipo hinódico arminiano adotado no
178
país? Essa contradição é latente e, a nosso ver, gerou as mais profundas confusões no
meio desta igreja. Em um primeiro momento, a adoção dessa hinódia foi justificável; ao
que parece, a popularidade dos Salmos e Hinos tomara conta de toda a denominação no
país.
O próprio historiador não entende “porque então, que tendo um hinário bem maior que
os Salmos e Hinos, e com teologia calvinista a igreja optou pelos Salmos e Hinos?”.
Muitos fatores podem ter influenciado – tais como a falta de uma edição com partituras
ao passo que Salmos e Hinos já estava com a publicação musicada, o conhecimento dos
hinos, que certamente levavam muito tempo para serem aprendidos, a veiculação e a
rapidez de publicação do hinário de Sarah Kalley. Sejam quais forem as dificuldades
pontuadas para que o hinário calvinista não fosse adotado, permanece a dúvida se a
denominação, de fato, importava-se com o que era cantado desde que não tivesse
nenhuma semelhança com os ritmos e melodias brasileiras. Todavia, por que, em uma
fase posterior do presbiterianismo, a IPB não tentou reestruturar sua hinódia? Por mais
que, nesse período, a atividade coral se desenvolvesse, os mesmos paradigmas musicais
se mantiveram, e a hinódia, entoada congregacionalmente, não foi questionada.
Basicamente, a atividade coral na IPB foi popularizada nas igrejas locais graças ao
trabalho de Evelina Harper e, posteriormente, de J. W. Faustini que, embora
presbiterianos, aproveitaram recursos e programações interdenominacionais como a
SOEMUS. O presbiterianismo conhece a prática coral em seus cultos desde o final do
179
século 19. Segundo Dorothéa Kerr e Samuel Kerr 49 , tal atividade já existe na
denominação desde 1876, quando o pastor Antonio Pedro Cerqueira Leite organizou o
primeiro coral evangélico do Brasil na Igreja Presbiteriana de Sorocaba. O mais
interessante é que este mesmo pastor havia sido aluno do seminário fundado por
Simonton, no Rio de Janeiro, em 1867, o Seminário Teológico da Corte. Segundo os
autores,
Em suma, a música cúltica oficial da IPB, ou seja, a que foi considerada a hinódia
oficial, estava fortemente vinculada às concepções de culto de missão que aqui se
instalou. Estas concepções eram pedagógicas e racionais, e, assim, a produção musical
estabeleceu-se a partir de uma função de apoio pedagógico ainda que,
contraditoriamente, mantivesse a teologia e o estilo dos avivamentos norte-americanos.
Essa produção musical sofreu o mesmo processo de cristalização pelo qual passou o
culto. Ou seja, embora os modelos musicais usados pudessem ser considerados
passageiros e específicos de tendências avivalistas e evangelísticas, eles se perpetuaram
no Brasil. Mendonça (1995, p. 221) mostrou como esse engessamento musical foi,
provavelmente, uma especificidade brasileira, considerando “muito atrativa a hipótese
de que o protestantismo brasileiro seja talvez o último reduto de um momento histórico
do protestantismo mundial a conservar vivos os cânticos dos avivalismos e do
movimento missionário”.
49
Fonte: google www.organistasbrasil.triang.net/edicao14.htm. Texto em cache –acessado em 24 de
setembro de 2005
180
A teoria de Bourdieu (1987) esclarece que toda instituição religiosa tem um grupo de
especialistas encarregado de sua produção, e, nesta, inclui-se a produção cúltica. Quem
compõe este grupo na Igreja Presbiteriana?
A diferença básica entre esses dois tipos de presbíteros está na distinção entre o “saber
sagrado” e a “ignorância profana”, distinção feita por Bourdieu (1987) entre sacerdotes
181
Estrategicamente, a figura do pastor é realçada no meio deste grupo, porque seu status é
sacerdotal e garante uma maior legitimação de sua atividade. Em outras palavras, ele
tem uma força simbólica muito maior na igreja, a força sagrada. Entretanto, mesmo
tendo a atividade clericalizada, o pastor presbiteriano é relativamente subordinado aos
demais especialistas. É a típica figura weberiana do sacerdote que se encontra como
funcionário da organização religiosa. Ou seja, o pastor está submisso, em grande parte,
aos órgãos hierárquicos da denominação compostos por presbíteros regentes. Na própria
igreja, o conselho local pode, dependendo das condições, intervir no trabalho pastoral.
No caso da IPB, essa situação é latente. A igreja mantinha, até o ano de 2006, os
Princípios de Liturgia do Manual Presbiteriano, que foi promulgado em 20 de julho de
1950. O capítulo III dos Princípios de Liturgia dita as seguintes considerações a respeito
do culto público:
A despreocupação com o culto não podia se mais notável! A IPB não formula
delimitações claras sobre a atividade litúrgica, deixando sua supervisão nas mãos do
pastor, com o agravante de não lhe passar conteúdos necessários para tal atribuição.
Esse quadro foi considerado pelo rev. Alderi Matos como extremamente
“desconfortável para a grande maioria dos pastores presbiterianos”, concluindo:
“Eu achava que o nosso culto devia ser mais estruturado, não como o
culto católico onde tudo é pré-determinado, tudo é pré-estabelecido
nos mínimos detalhes e o povo só fica repetindo o que está no papel...
mas que a gente podia ter um pouco mais de coisas estruturadas e não
deixar o culto tão informal, tão a cargo do pastor.”
Dessa forma, a denominação trata dos assuntos cúlticos pelo antigo método já
conhecido do protestantismo histórico: pelo viés da negação. As medidas do Supremo
Concílio em relação ao culto 51 , na época de sua consolidação, foram vagas e só
causavam preocupação quando pudessem provocar cismas. Como o governo
eclesiástico do presbiterianismo é mediador entre o episcopado e o congregacionalismo,
os governos locais podem assumir atitudes distintas em relação ao culto, e o
posicionamento do pastor torna-se determinante nessa dinâmica. Assim, instaura-se uma
difícil relação entre conselho local e pastor, fomentada pela estrutura do governo
eclesiástico da igreja.
50
Entrevista realizada em fevereiro de 2006 em São Paulo. O referido pastor pede que sua identidade seja
mantida em sigilo, pois já teve inclusive “brigas” com o presbitério devido aos assuntos “culto e louvor”.
51
Vide no Digesto Presbiteriano as resoluções que abrangem as decisões do Supremo Concílio. Ao
buscarmos as resoluções específicas sobre o culto, à procura do assunto “culto e liturgia”, apareceram
apenas situações trazidas por presbitérios para serem solucionadas pelo SC. Na maioria das vezes, eram
discutidos pequenos incidentes que causavam confusão como, por exemplo, o uso de velas e paramentos e
outros assuntos do gênero. Nos registros posteriores a 1950, o SC adverte para que os Princípios de
Liturgia sejam seguidos nas igrejas.
185
Entretanto, a atividade musical da IPB é exercida por agentes musicais leigos que
executam as determinações do grupo de especialistas. Tais agentes musicais estavam
divididos em dois grupos distintos na segunda fase da igreja no Brasil. A divisão se
dava entre os músicos profissionais/eruditos e os músicos leigos. O primeiro grupo era
formado, como ainda o é, por profissionais que atuavam na regência de grandes corais,
como coralistas e solistas, e organistas, que acompanhavam as grandes peças musicais
dos corais e colaboravam no acompanhamento instrumental do canto congregacional.
Este grupo, imbuído de boa vontade e muita qualidade musical, por ser composto de
profissionais da área, garantia uma reprodução de qualidade da hinódia oficial da igreja,
187
No entanto, para exercer essas mesmas atividades musicais, a IPB contava com o agente
musical profissionalmente leigo. Este era o indivíduo que, devido às habilidades
naturais, encarregava-se da música na igreja, mas não possuía nenhum tipo de
qualificação na área. As poucas escolas de música colocadas ao lado de seminários para
instruir basicamente nessa arte 52 não foram suficientes para qualificar a atividade
musical na IPB. Além do mais, estes cursos eram pouco incentivados pelas igrejas
locais, que, sozinhas, precisavam investir financeiramente em tal recurso. Na grande
maioria, isso ficava a critério do agente musical, que também contava com sua condição
econômica para poder aperfeiçoar-se na área.
Não podemos esquecer que presbiterianos de destaque como Evelina Harper e João
Wilsom Faustini trabalharam arduamente na área musical, mas os trabalhos não
alcançaram âmbito denominacional, crítica inclusive feita pelo próprio Faustini. Um dos
maiores expoentes da hinódia protestante do país, ele nos declarou a oposição clara
entre a preparação teológica para a prédica e o total despreparo na música 53 :
“Um pastor leva anos para aprender a construir o sermão. Ele estuda,
faz seminários, é treinado. Mas, e os músicos? Eles não são
preparados, são leigos na sua atividade. Não há interesse em passar a
mesma seriedade que a gente encontra no sermão. Os grupos ensaiam
meia hora antes do culto e está tudo bem.”
52
Sobre o período em questão, destacamos a citada organização do curso livre de música no antigo
Instituto José Manoel da Conceição, em Jandira, sob a responsabilidade de Evelina Harper. Já em tempos
atuais, a IPB contou com outros cursos. Na década de 9,0 foi organizado o Bacharelado de Música Sacra,
sob a responsabilidade de Parcival Módolo, no Seminário José Manoel da Conceição, na cidade de São
Paulo, cuja atividade foi encerrada em 2004. No Seminário Teológico Presbiteriano do Rio de Janeiro, foi
organizado, em 1990, o Bacharelado em Música Sacra sob a coordenação de Célia Campelo.
53
FAUSTINI, João W. Entrevista realizada em São Paulo em 26 de novembro de 2006.
188
que foi feito, então, o Hinário Presbiteriano: Novo Cântico. Alderi de S. Matos criticou
duramente o trabalho: “Os mesmos hinos foram mantidos, apenas com uma ou outra
mudança de letra, que não significou muito. A única coisa que aconteceu é que o nome
foi mudado”.
Portanto, a bipolaridade cúltica da IPB caminhou, por um lado, com a preparação cada
vez mais eficiente do orador e, por outro, com a despreocupação institucional em
sistematizar a atividade musical e conceder preparo adequado ao agente musical,
executor da produção exigida pelos especialistas.
Conforme vimos, a hinódia da IPB usou a hinódia do protestantismo brasileiro, que, por
sua vez, teve como base a composição de canções populares, fáceis melodicamente e
harmonicamente. Partindo dessa formação, seria viável que a hinódia da IPB se
expandisse com a agregação de outros valores musicais populares que poderiam estar
vinculados aos países de origem e ao Brasil. Ou seja, novas canções populares norte-
americanas e inglesas poderiam ser assimiladas, adaptadas e introduzidas na hinódia
oficial da igreja. Outra possibilidade de expansão da hinódia seriam acréscimos
musicais feitos a partir de composições de canções brasileiras, algo totalmente coerente
com o sentido popular e folclórico dos hinos tradicionais. Nenhuma destas
possibilidades, porém, conseguiu ser inserida na hinódia oficial da IPB.
O problema gerado por esse posicionamento foi que a hinologia acompanhou a posição
ortodoxa da igreja. Assim, fez-se uma contradição na análise hinológica na IPB: ela
negou a produção popular como hinódia ao sacralizar uma cultura específica e temporal.
A hinologia, como ciência que estuda a hinódia, deveria manter-se o mais longe
possível das considerações ortodoxas a fim de que toda a produção musical de
determinado grupo religioso pudesse ser analisada. Contudo, segundo afirmou Monteiro
(1991, p. 9), em uma dura crítica à hinologia, ocorre com esta o que, por muitas vezes,
acontece com a história oficial e “muitos aspectos importantes deixam de ser levados
em conta porque certos movimentos são considerados marginais e, portanto, não cabem
em estudos especializados”. Com isso, a hinologia torna-se uma “ciência manca”,
obscurecida por preconceitos e que não permite um estudo aprofundado de questões que
poderiam dar novos direcionamentos e rumos a outras perspectivas.
A discussão sobre o real significado da palavra “hino” ainda não foi esgotada, e essa
questão ficou mais complexa a partir da incorporação de novos estilos musicais ao
culto. Entretanto, reconhecer a dificuldade da distinção não justifica a posição de
190
Aliás, toda pesquisa hinológica feita até agora está comprometida com
certo conceito de hino que sempre, ou quase sempre, é definido sob
critérios de hinólogos que não aceitam como objeto de estudo a
totalidade do acervo de cânticos da Igreja Cristã. Ignoram a produção
de origem popular como, por exemplo, os gospel hymns, ou os
choruses. Autores como McCutchan tentam conceituar “hino” a partir
de qualidades totalmente arbitrárias e constroem, desse modo,
imagens e conceitos de “hino ideal” ou de “bom hino”, supostamente
donos de qualidades de reverência, sinceridade, dignidade, beleza,
simplicidade e verdade.
A crítica de Monteiro é a mesma feita neste trabalho. O estilo musical mais ou menos
popular não pode determinar, sozinho, o que é ou não um hino. Se assim fosse,
negaría mos boa parte dos hinários protestantes brasileiros! O desenvolvimento mais
popular de uma música religiosa não a desclassifica como hino. Esse posicionamento é
central para entender que existe algo mais do que estilo musical definindo o que é
legitimament e um hino: esse conceito está atrelado ao princípio do monopólio da
produção religiosa.
espaço no culto, e o agente musical não-erudito foi o que mais se destacou nesse
momento histórico.
O conflito entre as duas produções musicais está relacionado com o que Bourdieu
(1987) chamou de “produção de heresias”. De acordo com o princípio de monopólio da
produção religiosa, o grupo de especialistas sempre tenderá a considerar herege a
produção que não lhe pertence. Em outras palavras, tudo o que fuja ao estereótipo de
música estabelecido pelos especialistas será considerado produção musical herege.
Quando isso acontece, a ortodoxia se fortalece para impor os limites institucionais da
denominação.
Como os que desempenhavam a atividade musical na IPB eram leigos, a tensão tornou-
se maior, e a instituição enfrentou, como ainda enfrenta, muitas dificuldades para
contornar a situação. Isso porque a tensão instaurada não foi apenas entre demandas
leigas e produção institucional, mas também entre os especialistas e os executores da
produção. O agente musical leigo passou a rejeitar o padrão musical imposto pelos
especialistas.
Aqui, a tarefa única era a conversão, e, assim, o culto foi deixado em segundo plano,
revelando uma despreocupação institucional em sistematizar essa área de grande
vivência religiosa. O mesmo aconteceu com a música, que embora contasse com certo
desenvolvimento, não obteve a sistematização de sua atividade pela denominação –
atividade esta que se fez e ainda faz por leigos, os quais, muitas vezes, não são
qualificados musicalmente. Entretanto, independentemente das qualificações técnicas
do agente musical, o espaço cúltico foi dividido pelo pastor, responsável pela prédica, e
pelos agentes musicais, encontrados nas formas de serviços musicais adotados pela
192
CAPÍTULO 5
MÚSICA GOSPEL E A HINÓDIA PROTESTANTE DO
BRASIL
Esse primeiro momento histórico foi cristalizado, e, já em uma fase posterior, culto e
hinódia protestantes ainda se baseavam nos valores da fase de instalação do
protestantismo de missão. Não faltaram críticas e questionamentos. Culto e hinódia
mostraram-se servidores da cultura americana, mantendo os elementos culturais
brasileiros à distância, com a retórica da heresia. A análise hinológica acompanhou a
ortodoxia e firmou-se de maneira preconceituosa e excludente no Brasil. Apenas a
produção musical desenvolvida a partir de um núcleo comum, da fase de implantação,
foi considerada litúrgica. Criava-se, assim, a diferenciação entre hinódia oficial e
hinódia não-oficial.
populares, a música gospel pode, por razões estilísticas, ser parte integrante desta
hinódia brasileira. No entanto, caracterizar gospel como hino é também uma questão
simbólica. Nesse âmbito, a discussão é sociológica e permite aproximar produção
religiosa e poder religioso. Assim, abordaremos a trilha histórica das raízes da música
gospel no Brasil, sempre trazendo a relação de conflito entre as duas hinódias, a oficial
e a não-oficial. Logo, trata-se de uma análise, no primeiro momento, que se faz
internamente ao campo religioso.
O primeiro aspecto a ser observado é que a música gospel brasileira não tem relação
com o estilo musical do gospel americano originado dos spirituals. Daí, ganharem
sentido perguntas como estas: o que é música gospel no Brasil? Por que o nome gospel?
Quais os fatores responsáveis para a sua existência? Qual o seu lócus na hinódia do
protestantismo brasileiro? Tais perguntas auxiliam o que se pretende neste capítulo, a
saber, uma definição do que seja música gospel no Brasil e sua posição no campo do
protestantismo brasileiro. A intenção é caracterizar a música gospel como uma produção
religiosa do protestantismo brasileiro e, que, portanto, faz parte de sua hinódia, aqui
chamada de “hinódia não-oficial”. Se a produção da música gospel pode ser considerada
uma produção do protestantismo, nele também são encontrados elementos que ajudaram
na gênese do mercado fonográfico desta música. Para provar tal argumentação, são
mostrados os antecedentes do gospel, localizados no campo protestante do Brasil que,
desde os anos 50, alimentam uma construção mus ical paralela à tradicional.
O que é música gospel no Brasil? O que vem à mente das pessoas quando empregam a
palavra “gospel”? Em que pensamos quando ouvimos ou falamos em “gospel”? Para
responder tais questões, será necessário pontuar o tipo de produção musical do gospel
numa tentativa de identificação estilística com o termo. Contudo, a definição do que
seja a música gospel será construída ao longo do capítulo, porque as condições
195
históricas e atuais, dent ro e fora do campo religioso protestante, são primordiais para
que a definição se revele fundamentada.
O termo “gospel” não se limita à música propriamente dita e já foi tratado por Ricardo
Mariano (1999, p. 13) como um movimento devido às proporções com que atingiu os
jovens evangélicos do país e passou a simbolizar um novo estilo de ser crente. O autor
declarou que o gospel é “um movimento que veio para ficar, cuja importância ultrapassa
a sua natureza musical”. Magali Cunha (2004, p. 144) explorou o movimento em sua
função comunicacional e caracterizou-o como uma “cultura gospel”:
funk, rap, samba, axé, pagode, balada, sertanejo e assim por diante. Especificamente, o
uso do nome “gospel” foi popularizado na década de 90 e teve relação direta com o
surgimento e a atuação da Igreja Apostólica Renascer em Cristo (Renascer), como já
tivemos a oportunidade de estudar (Dolghie, 2002). A Renascer patenteou a marca no
Brasil e criou um contingente de produtos gospel: Gospel Records, Revista Gospel, TV
Gospel e outros. A atuação desta igreja foi muito importante para a constituição de um
mercado fonográfico brasileiro que abrangesse a juventude evangélica. O mercado
firmou-se definitivamente no país, e aqui encontramos a caracterização da música
gospel que é exatamente a sua concepção mercadológica. Assumimos o pressuposto de
que a música gospel é uma produção do protestantismo e do neopentecostalismo, cuja
característica distintiva está na relação intrínseca com o mercado.
No Brasil, o termo “gospel” foi reaproveitado para mostrar o status mercadológico que a
música gospel adquiriu nos Estados Unidos. De fato, quando aliamos a música gospel
ao mercado, unimos duas características do que acontece sob a égide da cultura norte-
americana. Primeiro, a concorrência secular de um estilo musical evangélico, o gospel;
segundo, um mercado específico de música evangélica, que tem diversidades musicais
estilísticas, o Contemporary Church Music – CCM (Música Cristã Contemporânea). A
música cristã norte-americana, CCM, movimenta um mercado fonográfico para os
evangélicos e foi referência para o modelo implantado no Brasil. Nos EUA, bandas
evangélicas dos variados estilos musicais, grupos de louvor e adoração e cantores
solistas já fazem sucesso há muito tempo, praticamente desde o início dos anos 80, e
têm repercussão mundial. Nomes como Ministério Hosana Music, Doe Moem, Ron
Kenolly, Michel Smith e diversas bandas de rock e outros estilos musicais, já veteranos,
compartilham a fama com novos artistas gospel que surgem a cada ano. Este mercado
fonográfico da música evangélica nos EUA tem relação histórica com o estilo musical
gospel e sua posterior comercialização em meios seculares. No entanto, música gospel e
CCM são produtos distintos nos EUA. O primeiro caracteriza-se por um estilo musical
disponibilizado em meios seculares, enquanto o segundo faz referência a um mercado
evangélico, com um público específico cristão e que possui uma variedade de estilos
musicais. O que os une é a relação com o mercado fonográfico. Por isso, para uma
melhor compreensão da situação americana, é preciso buscar as origens do estilo
musical gospel e a sua relação com o campo protestante daquele país.
Portanto, sem uma análise cuidadosa, o termo pode causar confusão! Isso porque está
relacionado com um estilo musical da música norte-americana, estilo que se libertou
historicamente do campo religioso e compete mercadologicamente com outros estilos
198
5.2.1- O spiritual
O estilo musical denominado spiritual está relacionado diretamente com a produção
musical dos negros escravos dos EUA 54 , que produziam uma música capaz de expressar
fé, sentimento, realidade e esperança dos afro-descendentes. O spiritual, com o
worksong, eram as únicas expressões permitidas ao negro escravo do sul dos EUA, no
início do século 19, porque os escravos eram proibidos de usar seus instrumentos
tradicionais, como tambores e flautas, sob a alegação de que isso poderia levá-los a
lembrar-se da África, incitando-os a revoltas. Tal proibição fez os negros
desenvolverem um tipo de canção, que era entoada enquanto trabalhavam nos campos e
tinha por base um solo com a resposta do coro, ritmando o trabalho pesado: eram os
54
Os dados históricos da música dos negros sulistas dos EUA foram baseados em Herzhaft (1989) e
Oderigo (1962).
199
Com o fim da guerra civil e a ocupação do sul pelos nortistas, o desmembramento das
grandes fazendas mudou a estrutura da exploração agrícola. Os negros deixaram de ser
escravos e transformaram-se em empregados ou arrendatários. Da mesma forma que as
fazendas se dividiram em pequenos pedaços de terra, o canto do grupo também se
dividiu e foi, aos poucos, sendo substituído pelo canto solitário do cultivador, o holler.
Contudo, nem todos os negros permaneceram no trabalho agrícola. Iniciou-se, assim,
uma corrente de migração contínua das plantações para as cidades, onde eles
procuravam trabalho como operários em pequenas fábricas, ou nas proximidades como
lenhadores, mão-de-obra para obras de grandes construções como estradas de ferro e
outras atividades. Com o tempo, foi-se formando um subproletariado, com pouca
condição de disputa com o homem branco, culto e estudado. Os grandes grupos de
negros, espalhados pela distribuição das terras, voltaram a reunir-se, como miseráveis,
morando em cabanas, às portas das cidades. Foi nesse contexto que os worksongs
ressurgiram.
Por outro lado, fora dos estabelecimentos, uma espécie de músico, chamado songster,
proliferou-se sobremaneira nessa situação. Freqüentemente, o songster era um “mau
negro”, inapto para o trabalho manual por alguma deficiência física, uma espécie de
menestrel que caminhava de vilarejo em vilarejo, divertindo, enquanto buscava um
pouco de comida, pouso ou bebida.
Mas, com a evacuação das tropas do norte, estacionadas no sul, em 1877, a condição de
vida do negro ficou ainda pior. As perseguições racistas rapidamente se espalharam por
todo o sul do país. Grupos extremistas do sul, como a Ku Klux Klan, começaram a gerar
um número assombroso de linchamentos de negros. Tal situação adversa contra o negro
foi crescendo progressivamente, tanto que, no final do século 19, a maior parte dos
estados sulistas tinha adotado legislações constitucionais negando qualquer direito
político ao negro. Segundo Herzhaf (1989), em 1896, as leis segregacionistas foram
consideradas constitucionais, e, assim, o negro não podia mais ter acesso a qualquer
recinto ocupado por brancos.
Nesse cenário social, por volta de 1895, seitas religiosas negras surgiram como formas
de resistência à opressão e afirmação da cultura negra. Elas floresceram em todo o sul e
sudoeste do país. Assim, ao som do gospel song, herdeiro direto do spiritual,
desenvolveu-se a idéia que de o “homem negro é melhor que o homem branco”, na
tentativa de resgatar a cultura e a identidade desprezadas pelo branco americano.
Líderes religiosos, os preachers negros, eram notáveis na habilidade com que
inflamavam os cultos. Eram, na maioria, “pregadores músicos” que conduziam a
congregação a êxtases e grande emocionalismo.
Desse modo, mesmo com frases sem nenhum sentido, ele podia levar a congregação a
um estado de transe e êxtase espiritual.
Contudo, foi no início do século 20 que o gênero gospel firmou-se tal como o
conhecemos hoje. Seu mais importante pioneiro foi Charles A. Tindley (1851-1953),
que produziu muitas canções no primeiro decênio do século 20 e influenciou
diretamente as composições de Thomas A. Dorsey (1899-1991), considerado o pai do
movimento gospel (Spencer, p. 1994). Dorsey era filho de pastor e foi fortemente
influenciado pelos hinos de Watts, o blues e o jazz. Desde jovem, compunha e
acompanhava nomes talentosos do blues e teve contato com as composições de Tindley.
Abandonando as letras seculares, Dorsey passou a compor apenas música religiosa, mas
o contato com o blues e o jazz influenciou suas novas composições de forma marcante.
Com toda a sua experiência musical, ele intensificou o gênero, criou e dirigiu vários
corais gospel e escreveu mais de 500 canções do gênero.
O gospel de Dorsey era marcado pela mistura de música religiosa – spirituals e hinos –
e de música secular – jazz e blues. As igrejas tradicionais condenaram o novo estilo
musical pelo sincretismo com o profano, mas, mesmo assim, o gênero ganhou força, e, a
partir das décadas de 30 e 40, o gospel, típico da cultura negra americana, já extrapolava
sua condição religiosa – se bem que essa nunca foi sua única condição! Nomes
reconhecidos por todo o mundo mostram a força do novo estilo musical que se
202
propagava. Dentre muitos, podemos citar: Mahalia Jackson, Sallie Martin, Clara Ward,
James Cleveland e outros, com numerosos grupos vocais tais como The Caravans, The
Mighty Clouds of Joy, The Blues Chips e Harmonettes.
Nos anos 50, a música gospel já estava secularizada e representava a força da cultura
negra. Não faltaram grupos gospel locais que copiavam os grandes nomes do gênero, e,
dessa forma, a popularidade do gospel cresceu sobremaneira. As gravadoras talvez
tenham sido as mais eficazes ferramentas para que esse fenômeno extrapolasse as
igrejas. O status que a música gospel ganhava no meio secular também mostrava a
ascensão social da cultura negra em solo norte-americano, sendo a mola propulsora para
o crescimento espetacular desse gênero musical. A música gospel passou a ser
reconhecida, não mais como música religiosa, mas como música da cultura negra norte-
americana e totalmente integrada à música secular. Em outras palavras, o gospel
americano é hoje um segmento musical. A maior prova de sua integração com a cultura
americana é o fato de esse estilo concorrer à premiações seculares como qualquer outro
gênero musical. O Prêmio Grammy, que premia os melhores músicos do país, inclui o
segmento gospel, o que mostra seu alcance secular.
No cená rio atual norte-americano, se, por um lado, existe a secularização de um estilo
musical religioso, que alimenta uma fatia do mercado fonográfico americano, por outro
lado, há o próprio mercado fonográfico religioso representado pela Contemporary
Church Music – CCM. A música religiosa evangélica ganhou, nos dois movimentos,
uma caracterização de mercado fonográfico. Resumindo, é preciso distinguir o “gênero
musical gospel”, segmento do mercado fonográfico secular, do “mercado fonográfico
religioso”, que cont empla diversos gêneros musicais. Embora a distinção não seja tão
clara até nos EUA, é fundamental para que se entenda a música gospel do Brasil. Isto
203
55
Podemos facilmente identificar a proliferação dos corinhos e cânticos em todo o campo evangélico
brasileiro. De certo modo, o termo “evangélico” seria mais abrangente e mostraria a amplitude da
produção e reprodução musical desse período histórico. Contudo, ainda assim, preferimos focar essa
situação no protestantismo histórico, ou seja, no protestantismo missionário, porque a música gospel tem
uma relação direta com as denominações históricas visto o grande número de bandas e compositores
destas denominações. Outro motivo pelo qual optamos pela análise delimitada ao campo do
protestantismo histórico é que o pentecostalismo clássico – subcampo que estaria abaixo do termo
204
corinhos e dos cânticos, que a música gospel foi ganhando configuração até o
surgimento de um novo conceito de música religiosa no Brasil.
5.3.1- Os corinhos
Quanto aos corinhos, pode-se afirmar que, apesar de serem elaborados dentro dos
moldes das cantigas americanas, representaram a primeira tentativa no Brasil, pelo
menos de que se tem relato, de ruptura com o modelo convencional dos hinários
tradicionais. Datando dos anos 50, essas cantigas faziam parte de uma produção musical
autônoma, usadas principalmente para encontros, reuniões e congressos de jovens e, em
algumas igrejas, nas escolas dominicais. Éber Lima (1991, p. 48) registrou que os
corinhos chega ram ao Brasil nos anos de 50 e 60 e alcançaram o apogeu no período da
ditadura militar pós-64. Eles foram trazidos e inseridos no Brasil por instituições
paraeclesiásticas como a Organização Palavra da Vida e a Mocidade Para Cristo
(MPC).
Mas o que é um corinho? Segundo João Wilson Faustini (1973, p. 15), “os corinhos são
cânticos de cunho evangelístico, que se caracterizam por uma estrutura melódica
evangélico – teve um desenvolvimento musical muito diferente das denominações históricas. Somente
com o surgimento do neopentecostalismo é que as aproximações entre protestantes históricos e
pentecostais puderam ser percebidas na área musical, pela situação de mercado que passou a imperar
desde então.
205
Santo Espírito enche a minha vida Aleluia, aleluia, aleluia dou a Cristo Rei
Pois por Cristo eu quero brilhar
5.3.2- Os cânticos
Estes grupos iam de igreja em igreja, tais quais os cantores solistas do movimento
evangelístico dos EUA, e levavam o estilo de cântico e louvor às diversas
denominações. Em geral, ofereciam-se oportunidades apenas em reuniões ou cultos de
jovens, nos quais todas as partes eram realizadas pelos componentes dos grupos. Na
década de 70, o estilo foi fortemente incorporado à cultura dos jovens protestantes.
O estilo musical ainda estava preso ao norte-americano, mas duas coisas aconteceram
nesse período: o surgimento de músicos brasileiros que iniciaram a carreira de
composição, como, por exemplo, o JV, e o início de composições estilisticamente
brasileiras. No último exemplo, o VPC timidamente deu início a uma proposta de
composição de música brasileira. Embora teologicamente o grupo não representasse
nenhuma novidade, ritmos brasileiros como o baião, por exemplo, começavam a ser
explorados. Contudo, ainda assim, a influência norte-americana era marcante. O cântico
descrito abaixo era cantado em quase todas as denominações:
Entretanto, houve uma ruptura interna ao campo protestante com os antigos padrões
musicais da tradicional hinódia. Alderi Matos, em seu depoimento, mostrou o que foi
sentido pelos agentes do campo em relação ao surgimento dos corinhos e cânticos. Ele
declarou: “Quando os corinhos chegaram, eles não eram os hinos cantados pelos nossos
pais, pelos nossos avós, eles simbolizavam uma ruptura com o passado”.
Ora, a organização religiosa entra, assim, na dinâmica de negociar a nova produção com
a ideologia institucional. É nesse momento que as adaptações e introduções são
realizadas de modo a atender as demandas leigas e manter a força institucional. Embora
não tenhamos como avaliar de que maneira isso foi realizado em todas as denominações
protestantes históricas, na IPB tal dinâmica institucional foi confusa. A IPB utilizou
todos os novos recursos musicais disponíveis pelas paraeclesiásticas.
56
Indicamos a leitura da dissertação de mestrado intitulada A canção de fé no início dos anos 70:
harmonias e dissonâncias, de Laan Mendes de Barros (1988). Nessa pesquisa, Barros mostra o caráter
alienante do grupo Vencedores Por Cristo (VPC) e como esse tipo de produção musical acabou por
dissipar-se por todas as denominações protestantes do país. Dentre as muitas críticas do autor, ele mostra
o VPC aliado aos slogans governamentais da época da ditadura militar no país.
210
Alderi Matos: “as questões eram mais locais e não chegavam aos concílios maiores da
Igreja, a não ser em casos extremos onde a coisa se pendia para um lado pentecostal ”.
igrejas protestantes. O grupo guardião da tradição fez tanto alarde quanto as guitarras e
baterias da nova geração, mas não foi só esse movimento que ele teve de combater. Isso
porque, em oposição a uma hinódia calcada em valores americanos e não-nacionais, um
tipo de reação veio sob a forma de canções de engajamento social, gerando um novo
estilo de música no campo protestante. Tal movimento, denominado por alguns de seus
participantes como MPBR – Música Popular Brasileira Religiosa – era fruto da
politização da juventude estudantil de classe média e, posteriormente, da teologia da
libertação 57 . A MPBR, tal como os corinhos, também fez muito estrondo nos ouvidos
mais conservadores. Na época, nomes como Jaci Maraschin, Simei Monteiro, Daniel V.
Ramos, Flávio Irala, Hermes M. Rangel, Laan Mendes de Barros, Sérgio Marques
Lopes, Ernesto Barros Cardoso, Valdomiro Pires de Oliveira e grupos como Novo
Alvorecer e CAFÉ, além de outros representaram o movimento, que buscou a inserção
de valores nacionais na música protestante brasileira.
57
Os dados históricos do movimento MPBR foram cedidos em entrevistas que realizamos com dois de
seus representantes, Jaci Marashin e Valdomiro Pires de Oliveira, em agosto de 2001, em São Paulo.
212
surgiram com mais força, e poetas, como João Dias de Araújo, com textos
teologicamente voltados para problemas sociais ligados à ação social dos cristãos,
apresentavam uma temática que apareceu em cânticos como “Que estou fazendo se sou
cristão?” e “Megalópolis”. Além disso, músicos como Umberto Cantoni, em 1968, já
prenunciavam o movimento que se estabeleceu como tal na década seguinte.
A obra que melhor mostra o espírito da tendência nacionalista é O novo canto da terra,
trabalho que teve Maraschin como grande incentivador. Em 1985, na sua residência em
Campos do Jordão, ele reuniu músicos e poetas engajados no movimento, que lá
ficaram cinco dias, gravando suas composições. Esse material foi, posteriormente,
escrito em partituras por Marco Antonio Bernardo e Wagner Amorisini, ambos ligados
à Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. Depois de uma revisão
musical e teológica realizada por um grupo pré-estabelecido, as composições foram
selecionadas e chegaram ao total de 199 cânticos. Contando com o apoio financeiro da
Paróquia da Trindade de Nova York, estas canções foram publicadas em 1987 pela
IAET – Editora do Instituto Anglicano de Estudos Teológicos.
Uma análise das letras destas canções revela o quanto eram um protesto contra a hinódia
folclórica americana, instalada em nosso país desde a “era missionária”. Essa reação era
tanto no aspecto musical, rítmico e melódico, quanto no aspecto teológico, indo contra o
forte individualismo e a alienação social das letras dos cânticos importados. A fonte
inspiradora das poesias era a teologia da libertação, e podemos mesmo dizer que, se
213
Até quando?
Até quando vamos entoar ao Senhor
um cântico estranho na terra brasileira?
Até quando seremos um povo carbono?
Até quando seremos uma Igreja copiada?
Quando vamos acordar esse sono,
cair do berço e seguir este verso?
Porém, esse tipo de cântico mais engajado socialmente, que trazia elementos da cultura
brasileira, não encontrou lugar para florescer no espaço litúrgico protestante. Na
214
No entanto, não foi só a questão do estilo musical, propriamente dito, mas a mensagem
de tais cânticos, que também preocupou os conservadores. O próprio Maraschin (1983,
p. 21) constatou que “a nova letra era também dependente da nova teologia da
libertação. E a teologia da libertação não tinha passagem livre na maioria das igrejas
evangélicas”. Dessa forma, o movimento, frente a tantas oposições, foi-se dissolvendo
como tal. Em depoimento, Maraschin descreveu o fim do movimento, atrelando-o ao
que interpretou como final da teologia da libertação:
Nesse sentido, a produção musical nacionalista não conseguiu atrair um número muito
grande de “consumidores”. Por outro lado, algumas igrejas neopentecostais, na década
de 80, como a Renascer em Cristo, por exemplo, investiram estrategicamente no “outro
tipo de canção”, que interagia com as teologias dos novos movimentos religiosos e
identificava-se plenamente com a música comercial secular dos jovens brasileiros.
Desde então, a MPBR começou a perder para o gospel! É isto o que analisaremos a
seguir.
como a terceira geração dos corinhos no Brasil – uma vez que a música gospel
estabeleceu-se como tal somente na década de 90, mas, ainda assim, de forma
embrionária e ligada ao neopentecostalismo. Isso posto, pode-se dar andamento a
análise da hinódia não-oficial e, desse modo, explicar o gospel como a “terceira geração
dos corinhos”.
A música gospel firmou-se como tal, nos anos 90, quando a Igreja Renascer em Cristo
patenteou a marca “gospel” e começou um amplo trabalho de divulgação na mídia. Para
a compreensão do que difere o gospel de seu antecessor, o cântico, é necessário
conhecer o processo musical das canções dos anos 80 e 90 que marcaram o período de
transição desses estilos.
Para uma melhor análise, a produção musical autônoma destas décadas será dividida
em, pelo menos, duas linhas gerais como o “o cântico evangelístico”, falando de
conversão, arrependimento, amor de Deus, e o “cântico de adoração”, cujas letras
exaltam Deus Pai como poderoso, terrível, majestoso e Deus Filho como salvador e
libertador de pecados e opressões. O cântico evangelístico, entoado fora dos templos,
em escolas, faculdades, praças e teatros, foi o que encontrou maior resistência por parte
das igrejas, porque seu estilo musical costumava ser mais ritmado e inaceitável nos
meios tradicionais. Além disso, as letras eram contextualizadas, o que feria o princípio
de estratificação de linguagem do culto protestante.
Em depoimento, Mauro Araújo 58 contou- nos sobre as várias apresentações que sua
banda fazia nas escolas. Eles mesclavam músicas evangelísticas, algumas composições
da própria banda, com a apresentação de músicas seculares. A pequena pregação era
feita por algum pastor ou missionário do Clubão, e os jovens convertidos em tais
reuniões passavam automaticamente a participar dos encontros.
Assim, no período dos anos 80, consolidou-se um tipo de cântico que não buscava o
louvor congregacional, mas era produzido diretamente para o público de jovens
protestantes. A MPC também se desatacou com a criação do Som do Céu, realizado
anualmente em Belo Horizonte, no acampamento da MPC. Nesse encontro, que
geralmente durava um final de semana, várias bandas, com estilos musicais variados,
concentravam-se em uma espécie de acampamento e atraíam centenas de jovens de
diversas denominações históricas. De quartetos vocais, cantando estilo MPB, a rock
pesado, bandas pop, solistas e grupos do estilo VPC da década de 70, o Som do Céu
erguia seu local de apresentações em uma estrutura de circo e impregnava os jovens
com música evangélica quase todo o dia. As palestras eram voltadas para o louvor, e já
se fazia presente a gênese dos fãs-clubes. Parece-nos que esse momento buscava uma
mobilização e concentração de músicos de diferentes calibres e estilos à procura do
reconhecimento direto do público.
Porém, embora esse tipo de reunião e concentração de músicos tenha se tornado muito
difundida nos anos 80, o estilo de reunião escapava da hegemonia das organizações
paraeclesiásticas. Paralelamente às programações promovidas por tais organizações,
houve, nos principais centros urbanos do país, o surgimento de “comunidades
58
ARAÚJO, Mauro, Entrevista concedida em outubro de 2005 em São Paulo. O entrevistado pertencia à
banda Louvor, Arte e Companhia, que ganhou o primeiro Festival Gospel patrocinado pela Renascer.
218
Estas comunidades alternativas tinham por objetivo principal cooptar novos jovens para
o meio religioso por meio da fomentação de outro estilo musical: o rock. Tais
comunidades, como por exemplo, a mais famosa delas, em São Paulo, a Igreja Cristo
Salva, foi fundada, em 1975, por Cássio Colombo e atraía até jovens de outros estados.
As reuniões do “tio Cássio ”, como era conhecido, eram freqüentadas por jovens não
evangélicos, muitos deles drogados, e por evangélicos, que se sentiam com plena
liberdade de expressão por não sofrer nenhum tipo de censura quanto à aparência, ao
comportamento e à preferência musical.
Aliás, a maioria dos jovens freqüentadores de tais reuniões era formada por roqueiros,
evangélicos ou não, mostrando que a juventude evangélica tinha suas preferências
iguais aos de sua geração independentemente da fé que professava. Es tas reuniões eram
carismáticas, pois contavam com manifestações místicas como a glossolalia e a
revelação, o que favorecia o aspecto fervoroso e emocional. Com isso, os jovens viviam
um clima de intensa liberdade, e as experiências individuais e espirituais eram trocadas
sem nenhum limite doutrinário. Sem dúvida, estas reuniões foram os principais
instrumentos para a divulgação do rock no meio dos jovens protestantes além de serem
uma estratégia de evangelismo. Um dos participantes da Comunidade Raízes, de São
Caetano do Sul, falou- nos sobre a música e o estilo da reunião, que acontecia na
residência de um dos líderes da comunidade, todos jovens e roqueiros 59 :
59
KERR, Paulo Péricles. Entrevista realizada em julho de 2001,em São Paulo.
219
suas igrejas locais ou das instituições paraeclesiásticas, cujo discurso já não agradava
tanto assim. Os jovens saíam de suas igrejas locais e iam, em uma espécie de caravana,
para os salões, garagens ou casas nas quais as reuniões aconteciam60 . A princípio,
podemos ter a impressão de que a presença de grupos tradicionais nas reuniões de
cristãos roqueiros nada influenciou no culto das igrejas dos mesmos, uma vez que estas
reuniões eram acontecimentos que não tinham como finalidade a prática cúltica. Eram
reuniões de evangelismo, comunhão, apresentações e, muitas vezes, puro
entretenimento. No entanto, acreditamos que o contato com o estilo musical e a
informalidade de tais reuniões influenciava os jovens, mesmo que de forma indireta,
ajudando a fomentar sua insatisfação religiosa com a área litúrgico- musical de suas
respectivas igrejas. Em outras palavras, embora houvesse um senso comum de que tais
reuniões não eram cultos, a agradável sensação de identificação com a forma de reunião
distanciava o jovem cada vez mais do estilo formal da liturgia das igrejas tradicionais,
aumentando a tensão nessa área.
A aparição de bandas que grava vam discos e alcançavam fama com o estilo musical do
rock foi o marco para que a tendência musical saísse dos limites das comunidades
alternativas. Dentre elas, uma que merece destaque especial e que, por várias revistas
especializadas, é apontada como precursora do gospel no Brasil é a banda Rebanhão.
Esta banda foi formada nos anos 80 por Pedro Bracconot e Carlinhos Félix, que, a partir
de 1990, seguiu carreira solo e hoje é conhecido internacionalmente, realizando shows
com artistas gospel internacionais. O estilo da banda era arrojado para a época:
vestimentas irreverentes, instrumentação diferente como a guitarra com som distorcido
e o estilo musical do pop-rock. O grupo gravou, até 1994, oito discos, dois deles em
gravadoras seculares como a Polygram e a Continental. Seus integrantes eram de igrejas
diferentes, Presbiteriana e Nova Vida, seguindo a tendência interdenominacional dos
primeiros grupos.
60
Conversamos e entrevistamos integrantes das equipes de louvor das igrejas visitadas e que hoje se
encontram na faixa etária dos 40 anos, buscando entender o percurso musical destas pessoas. Todos os
entrevistados tiveram em comum a história da presença nas reuniões do Tio Cássio ou em outras
comunidades alternativas, como as que citamos no texto. Dentre os entrevistados, destacamos Marcos
Pontes, atual baterista de uma IPB em São Paulo, Wagner Carminatti, atual guitarrista e dirigente de
louvor de uma IPB em São Paulo, e Michelle Romera, atual tecladista e dirigente de louvor da IPB em
São Paulo. Os depoimentos foram coletados em vários períodos, englobando julho de 2005 a setembro de
2006, após a observação dos cultos nas igrejas.
220
rompimento com o estilo tradicional não só quanto à questão musical, que trazia, pela
primeira vez, o pop-rock na música evangélica, mas também na postura mais
liberalizada em relação aos usos e costumes e à forma de apresentação. Tanto o estilo
musical quanto o visual já apresentavam certa aproximação com as bandas seculares.
Assim, a mensagem referencial assumia um papel mais importante para identificar a
música como evangélica. Nos anos posteriores, várias bandas de “rock evangélico” e
outros estilos musicais surgiram no cenário da música evangélica. A propagação ainda
se fazia basicamente por meio da venda de LPs e reuniões com o objetivo de divulgar os
novos estilos musicais.
Por meio de reuniões como estas, os antigos acampamentos, em que os cânticos jovens
apareciam em um momento, foram substituídos por encontros que tinham a reprodução
musical como objetivo central. As bandas e cantores tornaram-se mais importantes do
que os palestrantes e os temas escolhidos para as reuniões e acampamentos. Assumia-se
o lúdico como o fator mais importante destes encontros.
Não podemos esquecer que o lúdico faz parte do aspecto da vida humana, sendo um
“dos elementos essenciais da sua existência” (Glaber, 1999, p. 27), e a religião traz essa
idéia. Conforme relatou Mendonça, o lúdico também faz parte da expressão religiosa.
Nas religiões institucionalmente organizadas, o lúdico sofre um processo de
expropriação. Segundo Mendonça (1970, p. 33), “O rearranjo do campo religioso
transtorna, até certo ponto as espontaneidade do lúdico religioso que sofre uma relativa
regulamentação e compartimentação”. Dependendo da religião, o lúdico estará presente
com mais ou menos controle, ou totalmente eliminado, condição esta em vigor no
protestantismo, no qual foi expulso do culto por completo, havendo, assim, o que Peter
Berger (1985, p. 139) chamou de “redução dos conteúdos religiosos”. Nesse contexto, a
produção de reuniões musicais onde a presença do lúdico é marcante contraria uma
tendência protestante e, por tal motivo, gera problemas ao campo.
Muitos eventos que podem ser caracterizados como lúdicos surgiam pelos principais
centros urbanos do país, cujo público contava com grande participação da juventude do
protestantismo histórico. Assim, festivais de música, encontros de louvor, concurso e
vários outros tipos de eventos que tinham por objetivo a reunião dos estilos musicais
fomentavam a descontração e a informalidade entre os jovens. O rock pesado não era a
preferência geral, mas fazia parte dessas reuniões, e outros estilos de ritmos brasileiros
221
O depoimento aponta para algo comum aos vários grupos locais: eles freqüentavam as
reuniões de louvor, compravam os LPs e, algumas vezes, as partituras cifradas e
tentavam reproduzir, o mais fielmente possível, o que escutavam e vivenciavam em tais
61
Carminatti, Wagner. Entrevista realizada em julho de 2005, em São Paulo.
222
reuniões. Como na década de 70, os grupos musicais jovens inovavam em tudo: houve
uma mudança de repertório e comportamento ao mesmo tempo em que novos
instrumentos musicais foram introduzidos.
O novo estilo mais alegre de cânticos de louvor convivia com o estilo mais
contemplativo e introspectivo que, geralmente, eram traduções americanas. Porém, o
que de fato marcou esse período de transição foi a inclusão de cânticos mais alegres no
culto que permitiam os gestos, as palmas e, às vezes, até alguma coreografia.
Colocamos como exemplo o cântico abaixo:
Homem de Guerra
Letra e música: Adhemar de Campos
Como cantar uma letra assim se não for com uma melodia alegre e vibrante? Como
cantar que tenho poder para guerrear, segurando o hinário e permanecendo formalmente
parado sem se mover? Fica fácil perceber que as comunidades, ao distribuírem essa
produção de cânticos, também promoviam uma característica que muito incomodava os
mais tradicionais: a informalidade no louvor. Acreditamos que foi nessa época que o
chamado “momento de louvor”, introduzido nos cultos das igrejas históricas, recebia a
função de ser um momento mais alegre e festivo: o momento dos jovens. Assim, o tom
223
Assim, se, desde os anos 70, Mendonça (1977, p. 5) já denunciava os jovens que tinham
um momento quase autônomo de participação no culto, este momento já estava então
estruturado liturgicamente na maioria das igrejas do protestantismo histórico do país. É
difícil perceber uma data precisa de quando tal fato se realizou, mas o momento de
louvor se impôs à liturgia protestante com tamanha força que, ainda hoje, é difícil
desvincular a idéia de que o louvor só deve acontecer neste momento. Daí, a dificuldade
de desvencilhar a idéia do louvor da participação dos jovens no culto. Parece- nos que o
estilo festivo e descontraído deste momento é uma característica que ajuda na
construção dessa relação.
Portanto, o momento de louvor não apareceu do nada, não veio sozinho, nem foi cópia
do que havia em outras igrejas. Muito pelo contrário, refletia uma árdua negociação
entre as demandas dos jovens das igrejas tradicionais e a ideologia institucional da
igreja. As demandas já existiam há muito, e o acesso aos mais variados meios de
distribuição da nova produção musical não-oficial favoreceu a abertura por parte de
algumas igrejas para esse momento. A abertura não significou apenas ter um “momento
de louvor”, pois este veio acompanhado pela inserção de ritmos e instrumentos. Desse
modo, o protestantismo viu-se dividido em igrejas locais que se modernizavam com
microfones, mesas de som, retro-projetores, teclados e baterias, enquanto outras
combatiam, e ainda combatem, tais inovações com extremo vigor. Ta l fato pode ser
comprovado a partir do trabalho de campo que realizamos em diversas igrejas da IPB.
Entretanto, para não generalizar a questão, trazemos o ocorrido em uma reunião do
Presbitério Paulistano na qual duas igrejas pediam a liberação do uso de palmas no
momento de louvor, enquanto as outras enfatizavam o caráter pentecostal dessa
prática62 . O momento de louvor e seu estilo celebrativo causaram divisão nas
comunidades protestantes brasileiras em relação à produção musical cúltica e,
conseqüentemente, à área da liturgia. Depois disso, as coisas não voltariam mais ao
estágio anterior.
62
Trabalho de campo em reunião realizada na IPB de Vila Formosa, São Paulo, em maio de 2003.
224
O conflito entre as partes por causa do culto deu-se desde posturas extremas de
proibição do uso de cânticos no culto até aceitação completa do estilo. Desse modo,
muitos modelos de louvor foram criados. Algumas igrejas aceitaram, com poucas
ressalvas, as inovações, tolerando o uso da bateria e das palmas durante o louvor. Outras
proibiram totalmente o uso de qualquer instrumento de percussão e não toleraram o
acompanhame nto congregacional com palmas. Em algumas, passaram a existir apenas o
violão e o piano, com um grupo de jovens à frente liderando o cântico, sem nenhum
apoio tecnológico de som. Mesmo nas igrejas onde o momento de louvor era uma
realidade cúltica, a questão da música para os jovens sempre provocava discussões.
Sem dúvida, o rock foi o grande vilão da história, com reações mais radicais por parte
das lideranças conservadoras. Este estilo chegou a ser denominado “música feita pelo
diabo”. Em discursos mais amenos, o rock era considerado desviante da moralidade e
relacionado diretamente com o uso de drogas. Mas, em todo caso, o rock em si não foi a
principal discussão que permeou a legitimação litúrgica dessa inovação cúltica. A
discussão era focada no uso da bateria e na descontração do louvor.
63
SILVA, Hélio Menezes. “Palmas, ritmos e instrumentos dançantes; balanços; danças; etc” In:
www.SolaScriptura.com.br TT/ LiturgiaMusicaLouvorCulto.
225
Em uma palestra que tivemos a oportunidade de realizar, cujo assunto era o louvor atual
nas igrejas protestantes, uma professora de música clássica, presbiteriana independente,
quase em um acesso de indignação à nossa fala, declarou: “É preciso esclarecer que o
que você chama de músico não é músico de verdade”. Ela se referia aos grupos musicais
de jovens encarregados de boa parte da liturgia do culto. Entretanto, a função musical
destes não era, como ainda não é, reconhecida pelo subgrupo erudito como uma função
musical e litúrgica. A distância entre o campo erudito e o campo popular se reproduz
internamente na igreja, e, dessa forma, com poucas exceções, o jovem vê-se cada vez
mais afastado do que considerava ser o bom gosto musical.
Resumindo, nos locais onde houve alguma aceitação dos cânticos, foi porque um
processo de tensa negociação substituiu a guerra entre as partes. Isto significa duas
coisas: primeiro, que o gosto musical dos jovens foi sendo inserido no culto, mas nunca
sem conflitos. Segundo, que as negociações cúlticas não passavam pelas discussões do
papel litúrgico da música. Aliás, não podemos esquecer que a despreocupação musical
sempre foi característica da liderança sacerdotal do protestantismo brasileiro. Desde
Sarah Kalley, a produção musical dos leigos era introduzida ou rejeitada sem que
houvesse uma postura capaz de definir o que se desejava como produto. Com a inserção
dos cânticos, não foi diferente. Se, por um lado, houve resistência, por outro, o
momento de louvor foi incluído como uma bricolage, um momento isolado na liturgia
do culto. Parcival Módulo 64 chamou este momento de parênteses do culto. Em
entrevista 65 , um pastor da IPB declarou desconfortavelmente: “...Eu tento fazer uma
liturgia mais consciente, comemorar as datas, mostrar que o culto todo é um momento
de louvor... Mas não teve como, não consegui tirar a equipe dos jovens, eles estão lá,
com o momento de louvor deles”. A entrevista tratava de uma questão atual do culto,
mas a fala do pastor retrata uma realidade construída há mais de duas décadas que
impregnou o modelo do culto protestante em geral.
O relato de Marcos Pontes 66 , ex- membro da IPB e atual membro da IPI, mostra o outro
lado, o da posição dos jovens que enfrentaram a resistência de pastores e lideranças
oficiais. Em 1991, Marcos sentia-se tolhido em fazer aquilo de que mais gostava: tocar
64
Pequena biografia e fonte internet.
65
Entrevista realizada em São Paulo, em maio de 2006. O entrevistado pediu sigilo do seu nome e da sua
igreja.
66
Pontes, Marcos. Entrevista realizada em agosto de 2005.
227
O confronto perpassa toda a fala do entrevistado. Segundo ele, o grupo persistiu em seu
objetivo, que, com muita briga, foi realizado embora não por completo, pois não houve
a liberação de palmas. No caso de Pontes, a migração para outra igreja aconteceu por
causa da rigidez do conselho em relação ao louvor. A igreja para qual ele foi, não tem
reservas quanto ao uso de palmas, bateria, e ocorrem até danças na hora do louvor.
históricas. As presbiterianas não conseguiram ficar fora de tal situação, e seu governo
eclesiástico dificulta, ainda mais, a posição pastoral das igrejas locais.
Nesse contexto, já bem tenso e de difícil negociação, o cântico ganhou, nas mãos hábeis
do especialista de marketing e líder da Igreja Renascer em Cristo, Estevam Hernandes,
o salto conceitual e transformou-se em “música gospel”. Esta foi o carro-chefe na
atuação da Renascer no cenário religioso do Brasil.
Até então, nossa preocupação foi comprovar tal afirmação. Para isso, foram usados
conceitos como “demandas”, “hinódia não-oficial”, “resistência”, “insatisfação
religiosa”, “ideologia institucional” dentre outros. Eles, com base nas teorias de
Bourdieu (1987; 1983), serviram metodologicamente para exemplificar a tensão interna
na área musical, que entendemos como uma arena para a luta pelo monopólio da
produção religiosa. A partir do pressuposto teórico de que há uma constante luta interna
no campo religioso, constatou-se a existência de uma produção musical marginal, que,
nesse primeiro momento, é suficiente para provar que os antecedentes do gospel não
vieram de fora do campo religioso protestante, mas se desenvolveram internamente, em
um contexto de confronto e luta pela busca de legitimação na produção musical.
Também afirmamos que a música gospel é igualmente produto do neopentecostalismo.
Com base nessa afirmação, continuaremos a tarefa de investigar a música gospel em seu
processo de construção no cenário musical-religioso brasileiro.
Todo trabalho religioso tem a tarefa de transformar a visão de mundo que o grupo
religioso tem em um código entendível. Portanto, é bastante fácil compreender que uma
instituição religiosa separe o que é genuinamente religioso, “santo”, do que não é
229
Ora, toda instituição religiosa normalmente tende à preservação de sua doutrina, o que
implica na preservação do habitus e na manutenção do capital religioso acumulado.
Isso, entretanto, pode ocorrer de forma diferente, dependendo, em grande medida, do
tipo não só de teologia, mas também da eclesiologia adotada pela instituição. É aqui que
podemos localizar dois modelos institucionais de religião que, no Brasil, encontram-se
em contradição em termos de concepções ideológicas e com relação aos os outros
sistemas simbólicos: o neopentecostalismo e protestantismo tradicional. Este, como já
vimos, firmou-se no Brasil como um gueto social, criando o discurso da
incompatibilidade entre a cultura local e a vida religiosa. Ao contrário, o
neopentecostalismo buscou sua identidade religiosa exatamente na aparência secular, a
qual, para esse grupo, não deve ser vista como heresia ou algo impuro. Esse tipo de
visão religiosa de mundo, que gerou a conseqüência direta de um novo comportamento
dentro do campo evangélico no país, atraiu a atenção de pesquisadores, que apontaram a
tendência amigável desse grupo religioso com as questões da vida social, cultural e
econômica.
Mas o que fez Estevam Hernandes? Percebendo a demanda religiosa na área da hinódia
tradicional, ele atraiu milhares de jovens insatisfeitos com a condição litúrgico- musical
de suas igrejas por meio de eficientes propagandas e realizações de eventos gospel na
cidade de São Paulo. Não se tratava mais do velho conhecido Cântico, mas, ao
contrário, o Gospel era inovador, fomentava a liberdade, o lúdico e a descontração. Em
outras palavras, valendo-se de estratégias de marketing, Hernandes adaptou um antigo
produto musical, transformando-o em um novo conceito que trazia em si uma conotação
desvinculada da idéia “cafona” de ser crente. Tratava-se, na verdade, de uma mudança
comportamental.
Por que afirmamos isso? Porque, se formos pontuar o que distingue o Gospel do
Cântico, veremos que os pontos levantados estarão relacionados diretamente com a
relação de aproximação estética e cultural com o secular. Assim, numa tentativa de
identificação da música gospel em relação ao que lhe é peculiar e, portanto, diferente
das outras produções musicais que a antecederam, a sua principal característica seria a
configuração totalmente secularizada dos grupos musicais.
231
Sob esse aspecto, as novas bandas gospel distanciaram-se das antigas bandas de versões
evangélicas quer pela aparência ou pelo estilo performático, pois, enquanto estas faziam
questão de opor-se ao “estilo mundano”, próprio, segundo eles, das bandas seculares, as
bandas gospel usavam exatamente a aproximação com o secular. Assim, elementos
como vestimentas, perfo rmance de apresentações e aparato técnico deixaram de
distinguir o que é ou não evangélico. Em outras palavras, os limites e fronteiras foram
rompidos, mantendo-se apenas um elemento capaz de distinguir uma banda gospel de
uma secular: a letra evangélica.
É dentro dessa similaridade com o secular que todos os estilos musicais passaram a ser
considerados próprios para a música evangélica. Ora, o rock e a balada romântica já
eram conhecidos no meio jovem protestante; os ritmos mais brasileiros já eram
buscados em composições desde os anos 70; e o sertanejo já era velho companheiro do
pentecostalismo. Entretanto, a música gospel incorporou não só estes estilos musicais,
mas também abriu a possibilidade para novos ritmos que até então não haviam sido
utilizados na música evangélica como o axé, o Olodum, o funk, a Timbalada e outros.
Bandas dos mais variados estilos musicais surgiram, e ainda surgem, no cenário
protestante e trazem todo o aparato performático necessário para acompanhar o estilo
que cantam. Assim, as bandas de rock trazem roqueiros vestidos de roqueiros, os grupos
de axé exibem os passos do ritmo com grupos de danças, os sertanejos românticos são
apaixonados nas apresentações, e não falta nenhum estilo. Nesse sentido é que temos
afirmado que o estilo de composição musical, em si, não é o centro do conceito gospel,
mas conseqüência direta da aproximação do secular. Os próprios espaços nos quais
ocorrem as apresentações gospel ajudam a criar o clima de similaridade com o secular,
pois são espaços seculares tais como estádios, praças públicas ou locais adequados para
shows como danceterias, bares e cafés.
Por isso é que as estratégias iniciais de difundir a música gospel ocorreram em espaços
seculares: eles proporcionavam simbolicamente a fusão entre o religioso e o secular
além de visibilizar a produção musical. O gospel tornou-se o retrato fiel das tendências
seculares e reproduzia-se em instâncias seculares como rádios, gravações ao vivo de
CDs, programas em estádios e apresentações de bandas em boates. As estratégias da
Renascer em Cristo para a divulgação do conceito estavam firmadas nesse novo
comportamento. As estratégias de Hernandes já se faziam presentes na montagem de
232
Além dessa característica visível de aproximação com o secular, que pode ser analisada
de dois modos, estilo de apresentação e estilo musical, a música gospel, assim como os
seus antecessores, pode ser bifurcada em sua produção: música para evangelismo-
entretenimento e música para louvor e adoração. Neste último gênero, veio substituir o
espaço de louvor no culto ocupado pelos antigos grupos musicais de jovens. Agora, as
233
bandas gospel de adoração são referências para um novo estilo de louvor associado ao
espetáculo, ao show, ao lúdico e ao emocionalismo. Portanto, outra característica da
música gospel, ressaltada aqui, é a condição litúrgica, pois, além de atender o
consumidor jovem por meio dos mais variados estilos musicais e performáticos de
novas bandas, atende, também, à necessidade desse mesmo público na nova forma de
expressão religiosa, a adoração. Esta é o ponto nervoso da relação do protestantismo
com a música gospel, e, por isso, trabalharemos especificamente com o que
chamaremos de adoração gospel. Antes, porém, dessa análise específica, precisamos
entender em que contexto houve o desenvolvimento desse tipo de produção cúltica: o
contexto mercadológico.
Desde o início deste capítulo, procuramos relacionar a música gospel com o mercado de
música gospel. De fato, a condição mercadológica desse bem é sua principal
diferenciação. A princípio, admitimos que esta característica fosse a semelhança com o
secular, e, de fato, o é. Acontece, porém, que tal semelhança com o secular faz a ligação
entre música gospel e mercado, e é isto o que possibilita a divulgação, distribuição e
venda desse produto por todas as denominações evangélicas do país. Por tal motivo,
pode-se afirmar que o conceito gospel surgiu com estratégias de formação de um
mercado voltado para esse bem. A condição mercadológica, como produto oferecido e
acessível a todos, é intrínseca à música gospel. Nesta altura, seria conveniente
completar a definição de música gospel identificando-a como uma produção religiosa
do protestantismo e do neopentecostalismo brasileiro que se caracteriza pela condição
litúrgico- musical para o culto religioso e pela condição de entretenimento e consumo
autônomo – direto ao público. A partir dessa definição, fica claro que, a fim de
compreender todo o processo de produção, reprodução e consumo da música gospel,
temos de entender a dinâmica mercadológica desse bem religioso. Por isso, o próximo
capítulo apresenta as estratégias de formação e a consolidação do mercado de música
gospel no Brasil.
234
PARTE III
O MERCADO DE MÚSICA GOSPEL E A PRODUÇÃO
MUSICAL DO PRESBITERIANISMO
A música gospel embora tenha se construído no próprio campo protestante saiu deste e se
projetou para fora do domínio institucional. Isso se fez à medida da formação de um
mercado específico para esse bem religioso: o mercado de música gospel. Não há como
falar em música gospel sem situá-la nesse novo espaço de produção e reprodução musical.
O mercado tem suas próprias leis e por isso não se prende a nenhum tipo de controle
institucional. Com isso, devido ao grande consumo de música gospel por meio dos jovens
presbiterianos, essa denominação se vê confrontada pelas novas situações advindas com o
mercado. Nisso o maior conflito entre a IPB e o mercado de música gospel se faz na área da
produção musical cúltica, devido a um novo tipo de produção direcionada para o louvor,
que acaba por mudar significativamente o culto presbiteriano. Nessa última parte do
trabalho analisamos o mercado de música gospel e sua influência sobre a produção musical
cúltica presbiteriana. Dividimos essa análise em dois capítulos. No primeiro analisamos o
mercado e sua dinâmica própria e no segundo mostramos os pontos de conflito existentes
entre as novas tendências musicais gospel e o culto da Igreja Presbiteriana do Brasil
235
CAPÍTULO 6
O MERCADO BRASILEIRO DE MÚSICA GOSPEL
Mas o que é o mercado de música gospel? Para nós, toda produção simbólica, cujo
monopólio do trabalho religioso seja oriundo de um grupo de especialistas, gera, dentro do
sistema religioso do qual faz parte, a possibilidade da produção e do consumo. No entanto,
essa terminologia é recente e, talvez, mostre a força que o mercado tem na sociedade
contemporânea, o que faz com que todos os tipos de bens se transformem em mercadoria.
De qualquer modo, a teoria da produção e consumo de bens religiosos encontra sua base no
paradigma da secularização, discutido por Berger (1985), que coloca a religião dentro do
mercado, possibilitando situá- la como produtora de bens simbólicos. Na teoria de Berger,
há um enfraquecimento simbólico da religião por não ter mais o controle hegemônico da
produção do nomos social. Entretanto, nesse quadro de pluralismo, a religião, dentro do
âmbito institucional, produz uma quantidade significativa de bens simbólicos, consumidos
pelos fiéis que aderem a uma ou outra forma de religiosidade. Isso quer dizer que,
independentemente da força social da religião, toda produção religiosa tem por objetivo
gerar o consumo de doutrinas, ritos, liturgias, costumes. Enfim, tudo está inserido no
contexto de produção-consumo.
Como, então, afirmar que a música gospel não pode ser desvinculada de sua característica
mercadológica? Não seria esta característica algo comum a todo produto religioso uma vez
236
que todos são destinados ao consumo? Neste ponto, cabe uma explicação da distinção que
fazemos em relação à música gospel: estar atrelada a uma lógica de mercado significa dizer
que essa produção musical religiosa é produzida fora dos âmbitos institucionais e oferecida
secularmente, como qualquer outra produção musical, em um espaço de comercialização
específico para este bem. Por isso, o mercado de música gospel abrange a oferta direta ao
público, não tendo, necessariamente, de passar pelo espaço institucional das igrejas.
É aqui que temos de inserir a Igreja Renascer em Cristo, ressaltando seu papel na formação
do mercado de música gospel. Sendo esta igreja um das principais produtoras desse bem
religioso, ela trabalhou objetivamente para conseguir lançar seu produto em um espaço de
projeção secular e comercial. Foi assim que a Renascer contribuiu para a formação e a
consolidação de um mercado de música gospel, valendo-se de estratégias de marketing para
alcançar sua meta.
237
ser entendidos como uma ação situada socialmente. Campos (1997, p. 204) chamou a
atenção para esse aspecto da sociedade atual, com a atomização de agentes e instituições
religiosas que fez “com que o caminho para o marketing surgisse como uma opção prática
de sobrevivência e não, como resultado de um conjunto de discussões teóricas e de um
cálculo racional” 67.
Por outro lado, há necessidade de recordar que estas igrejas, em sua mudança
comportamental com relação à cultura local, utilizam todos os meios de comunicação
disponíveis para a divulgação de seus produtos, e isso se faz pelos meios “não-religiosos”, a
saber, os seculares. Isto projeta a produção religiosa para fora do âmbito puramente
institucional, o que é uma intenção objetiva das neopentecostais. Ao procederem dessa
forma, projetam-se para a sociedade e se incluem socialmente; conseguem visibilidade
social. Foi assim que a Renascer em Cristo utilizou-se do marketing, não só estendendo um
produto para fora de suas paredes, mas para se projetar socialmente por meio deste produto.
Sem a compreensão de tal dinâmica, seria difícil explicar o que leva uma igreja a criar a
possibilidade de concorrer com seu produto. Em outras palavras, se o mercado de música
gospel propicia a concorrência fonográfica evangélica, também possibilita a projeção social
e secular da igreja que contribuiu para a sua formação.
67
Para os que desejarem conhecer mais sobre marketing religioso no neopentecostalismo, indicamos a leitura
da obra Teatro, templo e mercado (1997) do autor citado, Leonildo Silveira Campos.
239
Os termos usados por Henandes, tais como “produto adequado” e “público-alvo”, mostram
a incorporação do marketing como ferramenta estratégica para alcançar o objetivo de
extrapolar as fronteiras do segmento evangélico. O que significa isso senão a intenção dos
religiosos de se projetarem para além dos limites convencionais reservados para a religião
em um mundo secular? Essa ampliação realizou-se no gospel. A capa da revista da qual
240
extraímos os trechos citados traz a foto de Estevam Hernandes com a frase que mostra a
inserção cultural que o novo conceito proporcionou: “Ele colocou o gosple no topo da
música brasileira”
A intenção de alcançar o mercado secular também foi expressa pelo então radialista da
Gospel FM, Duda Baguera, que, em entrevista, mostrou toda a sua expectativa de ver a
música gospel atingir os meios de comunicação e mídia seculares:
Outro exemplo de como a projeção secular foi (e ainda é) uma forte idéia no mercado
gospel encontra-se no primeiro número da revista Show Gospel: O guia da música
evangélica, de 2000. Trata-se de uma revista setorizada, específica para empresas, agentes
promocionais e artistas que visam à atuação no mercado de música gospel. O editorial da
primeira revista mostrava a intenção de expandir o mercado e sair do âmbito religioso :
O editorial de Show Gospel mostra que a idéia inicial para a formação de um mercado
fonográfico evangélico foi seguida de perto por todos os agentes que se envolveram no
mercado. Sem dúvida, o novo conceito “gospel” criou condições para que isso acontecesse.
Em outras palavras, a música gospel possibilitou a projeção secular da música religiosa, e
isso se deu por meio de um mercado que viabilizou a divulgação, em meios religiosos e
seculares, da nova produção musical. Esta estratégia de divulgação do gospel em meios
seculares foi a que mais atendia às necessidades de visibilidade social buscadas pelos
neopentecostais.
Porém, não foi só pensando na demanda neopentecostal que Hernandes estruturou seu
plano de marketing. É possível que ele tenha e tivesse fortes razões para apostar que o
consumo de música gospel também se realizaria no campo do protestantismo tradicional –
até porque lhe pareceu ser este campo portador de uma demanda reprimida e,
242
conseqüentemente, uma insatisfação religiosa. Portanto, se por um lado, havia uma clara
demanda no grupo dos novos pentecostais, por outro havia uma nítida insatisfação religiosa
no campo protestante histórico, atingindo grupos específicos de leigos, músicos e
consumidores.
Parece-nos, além disso, que o consumo de música gospel pelo público protestante mostra
que uma mudança comportamental atingiu parte do pentecostalismo tanto quanto do
protestantismo tradicional. Não teria o jovem protestante a necessidade de inserção social?
Será que a separação entre igreja e mundo, articulada pelo protestantismo tradicional dentro
de uma sociedade globalizada, ainda consegue ser um discurso religioso eficiente? O
músico protestante não necessitava do reconhecimento de sua produção? Ora, foi
percebendo também a demanda dos jovens protestantes que Hernandes conseguiu oferecer
um produto adequado aos anseios então existentes. Em termos de marketing, ele captou o
“nicho mercadológico” comum nos campos aqui analisados: o pentecostal, neopentecostal e
protestante histórico.
A história da produção musical cúltica mostrou-nos a inserção dos estilos musicais mais
populares no culto, mas como resultado da luta de duas esferas musicais distintas. Apesar
de “estarem no culto”, os cânticos continuavam não agradando, e a produção ainda era
relacionada à desqualificação ou à inadequação para uso cúltico. Portanto, se houve um
espaço cúltico para tal produção, esta ainda era simbolicamente marginalizada, e o que
dominava era uma espécie de tolerância prática permeada pela luta simbólica. Neste
contexto, os agentes musicais sentiam-se desmotivados e confrontados tanto pela
instituição quanto pelos músicos eruditos.
das igrejas visitadas 68 , o pastor revelou-nos que o grupo de louvor que participara do culto
daquela noite não era bem uma equipe de louvor, mas apenas “o grupo da mocidade”, que
tocava “todo terceiro domingo no culto”. Em contrapartida, aquela congregação paga
salários de R$1.500,00 para o pianista e o regente, que são os “músicos oficiais” da igreja.
A distinção tem raízes históricas e mostra o quanto a produção do chamado momento de
louvor ainda é marginalizada. Ora, se a produção é marginalizada, logo o músico produtor
também o é.
Nesse exemplo, o agente musical em questão reproduz as músicas que não fazem parte do
repertório tradicional. Entretanto, se a condição deste agente já era difícil no protestantismo
tradicio nal, ainda mais a condição do compositor musical, cuja criatividade era tolhida, e
não tinha direito a discutir ou interferir na "desejada" produção musical do grupo
dominante. Quase sempre, as composições populares, geralmente caracterizadas pelo estilo
pop ou rock balada, eram rejeitadas no momento cúltico. O resultado foi a criação de um
espaço fora da instituição destinado à divulgação e ao consumo de tais produções.
O quadro parece antagônico, porque, novamente, podemos falar sobre o descaso com tal
produção musical, que representa uma ameaça à produção tradicional. O protestantismo
não se mobilizou para entender a nova produção, inserir o músico no contexto cúltico ou
dar-lhe condições musicais melhores. Ou seja, a produção hinódica não-oficial só era
lembrada quando incomodava. Essa condição especial de descaso causou um tipo de
comportamento envolvendo todos os agentes quer fossem clérigos, músicos ou leigos em
geral. Tal situação gerou uma insatisfação religiosa nesse subgrupo de leigos muito bem
percebida por Estevam Hernandes.
68
Entrevista realizada após a observação do culto, em junho de 2006. O pastor não permitiu que a igreja fosse
identificada.
69
O termo levita é usado, no Antigo Testamento, para referir-se a uma tribo de Israel, a Tribo de Levi, cujos
homens, a partir de certa idade, eram destinados e separados para todo tipo de serviço no Templo. Dentre os
variados serviços, encontrava-se a música. O termo começou a ser explorado no meio neopentecostal e
confere ao músico a mesma atribuição de 'separado' para o serviço. Trata-se, portanto, de um grupo com
função específica dentro da igreja estabelecida segundo critérios teológicos.
245
nível, mesmo com liberdade estilística, o músico ainda está a serviço dos especialistas que
buscam sempre oferecer o produto adequado à demanda. Todavia, mesmo assim, o músico
ganhou uma posição privilegiada no culto. Nas igrejas neopentecostais, os líderes das
equipes recebem o nome de ministros de louvor ou adoradores e são responsáveis por
grande parte do culto. Assim, não apenas os compositores ganharam prestígio, mas os
agentes musicais que reproduzem as mais variadas canções de louvor puderam ter um lugar
de destaque na liturgia. O que aconteceu nos cultos neopentecostais teve repercussão no
mercado, e o estilo gospel de adoração acabou reproduzindo-se em vários DVDs e CDs e já
representa uma grande fatia do consumo evangélico. Embora as igrejas protestantes ainda
estejam em negociação com o que o mercado oferece, o fator preponderante é a
importância atribuída ao louvor, e, em conseqüência, aos músicos responsáveis por esse
momento. Mesmo que não exista um reconhecimento interno na igreja, há uma força de
mercado atestando a importância do louvor.
O outro sub grupo de leigos que a Renascer analisou foi o dos jovens, e, neste grupo, dois
nichos mercadológicos foram explorados: a insatisfação litúrgico- musical e a insatisfação
do discurso que separava a cultura do mundo da igreja. Neste último, o ponto crucial para
entender o descontentamento é o fator social. Seguindo a tendência de visibilidade social e
abandono da atitude ascética e contracultural das igrejas neopentecostais, o jovem cristão
buscou, na música gospel, uma interação com o mundo secular. Tal necessidade de inserção
social, aliada ao desejo de sentir-se pertencente a algum tipo de grupo social, foi
proporcionada pela música gospel, que pode, assim, satisfazer os desejos dos jovens.
Logo, o jovem passou a ter uma prática social esquizofrênica caracterizada por um tipo de
comportamento na igreja e outro fora dela. Quando os jovens, articulados entre si, iam a
lugares com programações próprias para sua faixa etária, ouviam aquilo que lhes era
proibido na igreja. Tal hiato entre o que era vivenciado no cotidiano e o que a igreja
247
permitia vivenciar já é antigo, mas se acentuou demasiadamente nos anos 90. O discurso do
isolacionismo cultural do protestantismo histórico criou este distanciamento, que ficou
maior devido às novas condições de comunicação do mundo contemporâneo.
O jovem está inserido na cultura local, recebe novas informações a cada minuto, está
“conectado” nos sites de relacionamento, canais de bate-papo e todo tipo de interação
comunicativa do momento. A cultura massiva, veiculada pelos novos meios de
comunicação, é a principal fonte de informação. Segundo Roxana Morduchowicz (2003,
p.12) “a televisão, o cinema, a música, o rádio e as novas tecnologias afetam e influenciam
sobre a maneira em que os jovens percebem a realidade e interagem com o mundo”.
Morduchowicz (2003, pp. 29, 30) descreveu a ligação que existe atualmente entre a cultura
jovem e a cultura popular, mostrando que o jovem configura-se como tal a partir do contato
com a cultura popular, a freqüência em determinados lugares, o consumo e o acesso a bens
simbólicos e culturais considerados típicos da idade. É como se a identidade fosse
construída a partir de sua relação com a cultura popular. Nesse sentido, Giroux (1996)
propõe exatamente a construção da identidade juvenil nos espaços da cultura popular,
porque são nestes espaços que acontecem as relações com outros da mesma idade. O jovem
tem, portanto, ligação direta com a cultura popular.
Bernard Rosenberg e David White (1975, pp. 474, 475) também mostraram a relação da
identificação do jovem com a música popular, sendo o seu consumo uma ação que lhe
248
permite identificar-se com algum grupo social de sua idade. O adolescente e o jovem têm
duas atitudes distintas em relação ao tipo de música que lhes é oferecid a:
... uma de maioria, que aceita a imagem adulta com pouco ou nenhum
espírito crítico, e outra minoria, em que são encapsulados temas
socialmente rebeldes. (...) a maioria dos adolescentes que constitui a
categoria majoritária tem um gosto não discriminativo pela música
popular; raras vezes expressam eles preferências bem articuladas. Formam
o público das maiores estações de rádio, das orquestras 'de nome', dos
cantores famosos, da parada de sucesso, e assim por diante. As funções da
música para esse grupo são sociais - a música lhes proporciona assunto
para falar ou brincar com os amigos; uma oportunidade para espírito de
competição na avaliação das melodias que se tornaram sucessos,
acompanhada de uma falta de interesse pela maneira de como realmente
são feitos os sucessos; uma oportunidade de identificação com os cantores
famosos ou dirigentes de orquestras como 'personalidades', com diminuto
interesse do próprio meio do rádio.
Estando a cultura vinculada cada vez mais à comunicação, a tensão no campo protestante
aumentava segundo o desenvolvimento dos meios de comunicação. Captada por Estevam
Hernandes, tal questão foi resolvida, porque o gospel proporcionou a liberação psicológica
para o consumo de bens simbólicos e culturais, que, embora idênticos aos estilos seculares,
mantinham o discurso religioso. Não só o consumo, no sentido puramente comercial de
comprar CDs, mas também a participação nos shows e diversos espetáculos gospel,
inseriram o jovem na cultura secular, possibilitando a identificação do mesmo com tribos
urbanas sem tirar-lhes o aspecto da religiosidade. Esta possibilidade ocorre por meio do
entretenimento proporcionado pelo mercado de música gospel. Da mesma forma que o
mercado deu ao músico a oportunidade de profissionalização, ofereceu ao jovem a
possibilidade de entretenimento social, o “entretenimento gospel”. A insatisfação religiosa
dos jovens fazia-se presente, porque, além de não poderem freqüentar lugares comuns a
outros da mesma faixa etária como bares, danceterias e shows, as igrejas protestantes não
lhes ofereciam opções de entretenimento que proporcionasse essa aquisição cultural.
assemelha-se ao estado de euforia de fãs. Tudo isso, no entanto, debaixo do grande guarda-
chuva gospel, torna-se permitido e até incentivado.
Entretanto, a insatisfação dos jovens não se referia apenas ao aspecto social, mas também
era litúrgica, embora as demandas reprimidas nessa área estejam diretamente relacionadas à
cultura. Já constatamos que a insatisfação religiosa dava-se na proibição do tipo de música
ligada aos gêneros populares como cântico congregacional. Assim, na igreja, o jovem era
obrigado a cantar aquilo de que não gostava e proibido de cantar algo que lhe fosse
agradável e culturalmente acessível. A principal estratégia da Renascer em Cristo foi
colocar esta música, que sempre foi produzida à margem da hinódia oficial, como central e
oficial em sua liturgia. Dessa forma, o culto da Renascer adotou completamente o estilo da
música popular ao mesmo tempo em que renunciou a antiga e tradicional hinódia
protestante, criando, assim, um novo produto litúrgico. Porém, a grande estratégia não foi
criar um produto litúrgico para o culto, mas sim um produto litúrgico para o mercado.
A música para louvor, ou, como podemos chamar, o canto congregacional, era reproduzida
em lugares específicos, reuniões que atraíam jovens de várias denominações. No entanto,
detectando um público consumidor desse gênero, a Renascer ampliou o espaço do louvor,
colocando-o no mercado. Não havia como tal tipo de música não ser consumido, uma vez
que, há décadas, a produção de cânticos de louvor era prestigiada por jovens de todas as
denominações protestantes do país. As demandas que estavam associadas à liberação
corporal, como bater palmas e mexer o corpo ritmadamente, à busca da emocionalidade e à
variação de estilos musicais foram amplamente atendidas em cultos neopentecostais que,
hoje, valem-se do estilo gospel. Mas uma diferença primordial é que, agora, os diversos
CDs e DVDs de louvor e adoração permitem que a expressão religiosa seja liberada
totalmente das instâncias de controle que existem no culto.
A concorrência com o mercado secular ainda não aconteceu da mesma forma que há nos
EUA, mas a formação de um público segmentado e cada vez mais fiel é facilmente
comprovada por meio da análise do crescimento do mercado. Há rádios evangélicas para
todos os gostos e faixas etárias. Podemos citar, por exemplo, a diferença de programações e
estilos musicais entre a Rádio Cidade Gospel e a Rádio Aleluia. Na primeira, os jargões
estão voltados para as gírias seculares dos jovens, e o estilos musical predominante é o Hip -
Hop. Já na Rádio Aleluia, a linguagem é mais restrita ao meio evangélico, e os estilos
musicais mais tocados são os regionais. Do mesmo modo, as gravadoras se diferenciam
pelos produtos musicais que colocam no mercado, e as mais famosas, como a MK, a
Gospel Records e a Line Records, fazem sucesso nas vendas com os principais artistas
gospel do momento.
Se as estrelas do mundo gospel ainda podem ser pontuadas, assim como se dá no mercado
fonográfico secular, já não há mais como pontuar o número de músicos e bandas que
surgem a cada momento no mercado. Há público para todos os gostos musicais, e muitos
buscam o sonho de sair do anonimato para a projeção da vida artística. Repete-se no campo
do mercado religioso o que acontece no mercado secular. A facilidade para alugar um
estúdio e gravar o próprio CD favorece o crescimento das produções autônomas.
252
Nada falta, nem mesmo as famosas premiações. Por exemplo, o Troféu Talento é o prêmio
da categoria gospel que, anualmente, divulga, pela mídia especializada, a lista das
principais bandas e solistas do mundo da música gospel nacional. Isso indica que o
mercado de música gospel criou regras próprias, assimilando o modelo secular.
70
Site: www.vencedoresporcristo.com.br
253
Há, também, estilos musicais mais contextualizados, mas, embora já haja referencial para
problemas sociais como fome, violência, drogas, política, etc., a saída para tais condições é
colocada apenas em Jesus Cristo. Desse modo, as letras, que se iniciam com um discurso
aparentemente engajado, terminam com uma solução quase mágica: a intervenção de Jesus
Cristo. De forma geral, há um grande enfoque na subjetividade pessoal e na experiência
individual com Cristo. Enquanto as músicas mais engajadas são tocadas em estilos musicais
como rock dos anos 70, rock atual, funk e rap, o estilo sertanejo-romântico, a balada e o
pop rock tratam de assuntos mais subjetivos.
Outro estilo musical que seguiu a trilha dos roqueiros dos anos 70 e 80 é o underground,
consumido por um público bem específico que engloba as diferentes tribos musicais
urbanas. Shows em lugares menores e comunidades para este público são freqüentados
assiduamente, e até mesmo tribos inimigas convivem. Vestidos de negros, tatuados, cheios
de piercings pelo corpo e com os cabelos que distinguem a tribo – cabeludos, carecas,
pontiagudos –, os jovens evangélicos assumem sua identidade musical e liberam-se
totalmente no consumo desse estilo .
254
Até mesmo o público infantil tem um produto específico. Este segmento de mercado
despertou quase todas as gravadoras para uma produção específica de CDs e DVDs. As
produções abrangem uma faixa etária que vai desde os mais pequeninos até os mais
juvenis, e artistas de todos os níveis estão produzindo para este público. Alguns, como
Mara Maravilha, que já trabalhava secularmente com este segmento, entraram no mercado
gospel com uma produção específica dirigida ao público infantil enquanto outros, como,
por exemplo, Ana Paula Valadão, cuja produção encontra-se no segmento de louvor,
expandiram suas possibilidades e também começaram a produzir para tal audiência. As
músicas não inovaram em nada os já conhecidos estilos seculares, e toda a forma de
apresentação contida nos DVDs segue um modelo tradicional que já faz sucesso entre o
público infantil. A confiança em um Pai amoroso e a certeza de um amigo que sempre está
por perto – Jesus –, são temas comuns. As histórias bíblicas são reproduzidas, só que, ao
invés do antigo modelo evangélico, agora são encenadas com coreografias, danças e muito
movimento.
O próximo exemplo é de um estilo de rock “pesado”, o heavy metal. A banda Skymetal tem
o aspecto de qualquer banda secular do gênero. As letras revelam a realidade dos roqueiros
viciados e que são tratados como perdidos no mundo. Os termos usados para mostrar tal
realidade são densos, como “vida maligna”, “podridão”, “maldição” e “sepultura”, e a
alusão ao inferno é constante.
O último exemplo faz parte do gênero infantil. A música escolhida é do ministério Diante
do Trono, que lançou no mercado materiais escolares e brinquedos dos personagens da
Turminha Diante do Trono. Entre as animações dos personagens com Ana Paula Valadão,
as músicas são apresentadas sempre com crianças dançando e fazendo backing vocal. Este
exemplo é de um alegre rap, com crianças diferentes fazendo solo em cada estrofe.
As variedades de estilos não se esgotam. Por tal motivo, o mercado só tende a crescer. Cada
vez que estilos seculares fazem sucesso, o mercado pode – dentro dos limites do tolerado
pelo evangélico – apropriar-se dos mesmos e produzir para o próprio público, que está
acostumando-se a consumir seus gostos atrelados à sua visão religiosa do mundo.
Por isso, cada vez mais, o mercado gospel está convivendo com profissionais não
evangélicos, que já perceberam a fidelidade do público, desejoso de encontrar um produto
que o identifique como evangélico. Muito há de revelador nesta constatação, pois o que
vemos é um novo comportamento do campo evangélico buscando uma infinidade de bens
simbólicos que lhe possibilitem uma identificação com a religiosidade. Por tal motivo, o
fenômeno do mercado de bens religiosos não se restringe à música gospel embora o
259
A Expo Cristã revela uma nova relação do consumo religioso, que tal como na música
gospel, baseia-se muito mais na relação direta produto-consumidor do que na relação
igreja- leigo. Esse quadro tem assustado os mais conservadores, que encontram apenas uma
explicação, verdadeira mas reducionista, do lucro que o mercado proporciona. De fato, não
há como não pensar no giro de capital que uma feira realizada em pavilhões do Anhembi –
na cidade de São Paulo – pode proporcionar. O espaço escolhido, um dos mais usados por
expositores da área comercial, mostra a força lucrativa e rentável que os produtos religiosos
podem oferecer. Utilizando-se de espaços e lógicas comerciais seculares, toda espécie de
serviço e bem religioso é oferecida, desvinculando-se da distribuição restrita da instituição
religiosa e possibilitando uma relação totalmente pacífica com comerciantes de outros bens
não religiosos.
Os bottoms, camisetas, bonés e pulseiras que estampam a fé em Jesus Cristo estão expostos
junto com revistas e jornais especializados, confecções e editoras. Sem dúvida, o número de
stands da feira é majoritariamente de gravadoras, rádios e distribuidoras musicais, mas se
260
encontram até “perfumes ungidos” e degustação de vinho para a Santa Ceia ou Eucaristia.
Além do aquecimento interno do mercado evangélico, o produto evangélico passa a ser
confeccionado e distribuído por agências não evangélicas. Na Feira de 2005 71 , constatamos
editoras, livrarias e confecções seculares que trabalham com o segmento gospel como uma
linha de produtos específicos. Pode ser esse o caminho sonhado com a concorrência
secular? De qualquer forma, tal situação denota que o consumo dos produtos
evangélicos/gospel já foi sendo percebido pelo mercado secular como uma fatia lucrativa.
O Jornal Viver Cristão (2004), anunciava a 3ª Expo Cristã na primeira página, trazendo a
chamada: “Mercado Abençoado: Evangélicos movimentam 500 milhões por ano e são
responsáveis pela geração de mais de um milhão de empregos”. Na reportagem de capa, o
jornal anuncia um público esperado de 70 mil pessoas para aquele ano e mostra como o
investimento no segmento evangélico passa a ser um negócio lucrativo:
Os evangélicos estão cada vez mais satisfeitos com as novas oportunidades oferecidas pelo
mercado, que possibilita o acesso com mais facilidade aos bens religiosos. Os “interessados
no segmento” percebem que a religião pode ser incorporada aos negócios e que lhe oferece
um público fiel e constante. A lógica mercadológica está fechada, e os bens religiosos
escapam das mãos dos produtores oficiais, porque os mesmos já não detêm a exclusividade
de sua produção e circulação.
Embora não haja como negar o aspecto comercial que perpassa todo o mercado, o consumo
não se realiza apenas por uma questão materialista, mas, ao contrário, existe uma motivação
71
Trabalho de campo realizado no local.
72
Jornal Viver Cristão, setembro de 2004 – ano I- n.8, p.4.
261
religiosa em adquirir tais bens. Perguntando a uma jovem senhora da IPB73 sobre o que
achava da Expo Cristã, a resposta foi taxativa: “Graças a Deus temos um lugar onde
podemos comparar aquilo que é do agrado de Deus e que vai edificar nossos filhos”. A
jovem fazia referência aos produtos da Turminha Diante do Trono e estava comprando
cadernos com a capa dos personagens da Turminha para a filha de 10 anos. Continuou sua
fala: “Veja só a bênção: minha filha não precisa ir à escola com cadernos com aquelas
modelos de mini-saia e blusinhas decotadas e apertadinhas ou com a turma da
“Rebelde”74 ”.
Todo tipo de serviço para a realização de eventos e produções, tais como arranjadores, artes
gráficas, assessoria de imprensa e fonográfica, barracas e coberturas para apresentações,
brindes, bufês, distribuidoras, duplicadores de CDs, efeitos especiais, espaços para shows,
estúdios, filmagens, fotografia, geradores, instrumentos musicais, luz e som, marcas e
patentes, masterização, móveis para camarins, palcos, produção de vídeo, produção visual,
segurança, técnico de som, telões, transporte terrestre e aéreo, trios elétricos, web design,
workshop, montagem de sites e outros, é oferecido nos vários stands espalhados nos
corredores.
73
O depoimento foi realizado no stand do Ministério Diante do Trono, em 16 de setembro de 2006, na 5ª
Expo Cristã. A depoente foi membro da Renascer em Cristo e, no momento, freqüentava a igreja IP Jardins,
em São Paulo.
74
Novela mexicana transmitida pela rede SBTno ano de 2006.
75
Criamos essa separação de produtos com base nas três feiras consecutivas que visitamos desde 2004.
Trouxemos, neste trabalho, os exemplos encontrados na mais recente feira de que participamos, a 5ª Expo
Cristã, realizada de 12 a 17 de setembro nos pavilhões branco, verde e vermelho do Expo Center Norte.
262
Outro tipo de serviços, voltado especificamente para os líderes das igrejas é outra tendência
de mercado. Nessa categoria, encontramos: serviços na área de música, desde arranjos até
cursos de adoração; cursos para ministérios específicos, como de evangelismo, infantil e
dança; aluguel de espaços com infra-estrutura para congressos e acampamento; realização
de congressos por organizações paraeclesiásticas e seminários teológicos com o foco de
discussão na área de ensino e seminários e conferências visando à capacitação de líderes e
pastores. Este último foi o destaque da 5ª Expo Cristã. A capa da Revista Igreja mostra que
o mercado está investindo em uma mídia que aposta no lado empresarial e administrativo
dos pastores. A chamada da capa diz: “Fé com motivação: Cada vez mais líderes
participam de seminários e conferências de treinamento”. Completando a chamada:
“demanda por eficiência aumenta sem parar; pregadores usam recursos motivacionais;
ministérios especializam-se em treinamento”. Parece-nos que o mercado assumiu, sem
reservas, a concorrência institucional religiosa e oferece estratégias empresariais para as
igrejas.
O outro bloco contém produtos que não têm especificidade religiosa, mas criam os laços de
identificação evangélica. São produtos que apenas inserem o rótulo de gospel ou evangélico
e são oferecidos direto ao público. Nessa categoria, encontramos: camisetas, bonés,
bijuterias, agendas, produtos escolares como cadernos, canetas, lápis borrachas, perfumes,
porta-jóias, brinquedos, decoração para festa, artesanatos em geral e produtos de limpeza.
Há também o oferecimento de serviços não-religiosos, mas que trazem a identificação
evangélica, como, por exemplo, temporadas em hotéis com programações evangélicas,
incluindo a monitoria infantil e passeios em navios a vários pontos turísticos nacionais e
internacionais que incluem no pacote a realização de shows com artistas gospel e cultos
durante a viagem.
Obviamente, encontramos os bens específicos para uso religioso que são a parte da
literatura e da música. Tais produtos são oferecidos diretamente ao público e movimentam
o maior número de pessoas na feira. Os stands das livrarias e gravadoras são lotados, e a
diversidade é característica marcante nas duas áreas. Há produtos para todos os tipos de
gosto. Na literatura, é possível encontrar livros de auto-ajuda, ficção evangélica e versões
variadas da Bíblia para mulheres, crianças, surfistas, jovens e demais públicos. Na área da
música, todos os estilos musicais encontram-se representados na feira. Até mesmo grupos
antigos como o VPC e produções da hinódia tradicional, como Arauto s do Rei, estão
dividindo o espaço com as estrelas gospel.
264
O que existe por detrás desse comércio? A resposta parece estar ligada à busca de
visibilidade social que marco u a mudança de comportamento do evangélico, a partir da
entrada das igrejas neopentecostais no cenário religioso brasileiro. Existe um consumo que
mais pode ser definido como simbólico do que materialista. O que se procura não é um
produto específico, mas sim uma identificação religiosa com o que se está consumindo. Se
não existem objetos sacros, todos os objetos podem ser incorporados no consumo, o que
quer dizer que todos os objetos podem ser sacralizados. Todos podem oferecer uma ligação
simbólica com a religião contanto que carreguem a simples frase como “Deus é Fiel” ou o
nome “Jesus Cristo”. A identificação se faz imediatamente, e o consumo traz uma sensação
de pertença, que pode ser socializada, porque não utiliza meios excludentes. Colin
Campbell (2001) mostrou que a sociedade consumista atual, não consume por uma
motivação puramente materialista. Segundo o autor, o consumismo se insere em um quadro
maior da constante busca pelo prazer, que está não no objeto em si, mas no que ele pode vir
a significar. Sua análise é extremamente útil para explicarmos o consumo de um tipo
específico de mercado que está em crescimento no Brasil, o “mercado da adoração”.
mercado mais amplo, procuramos elaborar uma lista de produtos evangélicos que têm uma
função social de identificação com o grupo religioso sem criar o isolamento com a
sociedade e as diversas culturas locais. Praticamente, há uma fusão de elementos seculares
com elementos religiosos na qual os primeiros dão a forma ao produto enquanto os últimos
cuidam do conteúdo da mensagem. O mesmo acontece com a música gospel, que, ao ser
lançada no mercado, utiliza formas estilísticas seculares, mas mantém o conteúdo poético,
ou seja, a mensagem religiosa.
A maior atração das feiras, que ocorrem desde 2001, tem sido a música gospel. No centro
da exposição, os gigantescos stands das mais famosas gravadoras gospel expõem seus
artistas, que distribuem autógrafos e deixam-se fotografar com os fãs. As filas são longas, e
a expectativa dos consumidores pode ser comparada com o fenômeno similar no campo da
música secular. Os músicos distribuem sorrisos, as gravadoras vendem os CDs
autografados, e os telões exibem os shows dos mais famosos. Muitas revistas
especializadas, espalhadas pelos stands, trazem as novas tendências do mercado, entrevistas
com músicos e bandas tanto nacionais quanto internacionais, listagem de serviços,
propagandas de gravadoras, etc. Folhetos dos mais variados anunciam shows de música por
todo o país, congressos de adoração e estudos direcionados à técnica musical. Não faltam
também stands com aparelhagem de som e instrumentos musicais, e ocorrem shows
simultâneos por toda a exposição.
Não podemos limitar o mercado de adoração à Feira do Consumidor Cristão, mas esse
espaço tornou-se um exemplo do que acontece no campo, porque condensa as tendências e
mostra as diversidades dos produtos musicais. Em termos de louvor, o mercado inovou com
266
os chamados “ministérios de adoração”. Agora, não são mais as “bandas” que têm o
reconhecimento junto ao público. Essa nomenclatura foi abandonada, para ser substituída
pelo qualitativo de “ministério”, que tem um simbolismo muito mais forte em relação ao
termo “adoração”. Os dois são basicamente elementos encontrados no culto; aliás, termos
que se referem à própria noção de culto – adoração – e ao próprio exercício cúltico -
ministério. Uma das diferenças ressaltadas pelos grupos que formam os ministérios, e
inclusive pelo público, é que os músicos, ao contrário das bandas gospel, não são artistas,
mas ministros. O termo remete-nos à tendência neopentecostal de denominar o exercício
musical como exercício levítico, ou seja, denominar o músico de levita. Assim, o sucesso
comercial não é buscado pelos ministério s – segundo o discurso dos mesmos. Tal fato,
entretanto, é contrastado na Expo Cristã, onde os ministros distribuem autógrafos aos fãs
que toleram filas imensas para consegui- lo. O depoimento a seguir mostra a fusão
(confusão?) entre o mercado e a religião, o espetáculo e o louvor. Ao perguntarmos qual o
motivo de pedir um autógrafo a Aline Barros, a estudante de 19 anos relatou: “Ela é uma
bênção, sou ministrada quando ouço ela cantar, quero um autógrafo e uma foto com ela,
para registrar esse momento para sempre”76 .
Essa aparente confusão entre o que é adorar e o que é a vida profissional tem preocupado
alguns cantores gospel no Brasil. Embora, estejam vendendo seus produtos cada vez mais,
os discursos tendem a afastar a idéia do consumo, do sucesso e da fama.
Músicos renomados e que , desde os anos 80, já atuavam no meio musical evangélico são os
que mais se preocupam com a forte tendência de profissionalização. Uassyr (Vencedores
por Cristo) declarou em entrevista a CCM Magazine (Foffu, 1999, p.26):
Na mesma linha, João Alexandre, compositor e arranjador que atua desde a década de 80,
afirmou na mesma entrevista: “a música está profissional, mas ao meu ver, até demais,
porque acabou virando um mercado como outro qualquer”(Foffu, 1999, p.28)
76
Trabalho de campo realizado na 4ª Expo Cristã em setembro de 2005, Pavilhão , em São Paulo.
267
Entretanto, a despeito dos temores, o gênero tem criado musas, estrelas e pop stars, fato
inevitável pelo tipo de mídia e atuação em um mercado fonográfico. Altamente explorados
na Feira de 2005, os stands dos ministérios de adoração ganharam uma ênfase significativa,
mostrando como a tendência do estilo adoração tem crescido no mercado. Esta feira trouxe
a novíssima “Rua da Adoração” – uma rua específica para a exposição de stands dos
“Ministérios de Adoração ” já consagrados pelo público evangélico. É a simbiose total entre
o louvor e o mercado.
No site, o slogan da Rua da Adoração era o seguinte: “mais de 3.000 pontos de venda; mais
de 10.000 orquestras em igrejas; mais de 10.000 igrejas com ensino de música, mais de
100.000 corais, bandas e grupos de louvor; mais de 1.000.000 de pessoas ligadas
diretamente à música; mais de 150.000.000 de cristãos (sic)”77. Percebe-se que o público-
alvo é o que atua musicalmente dentro das igrejas, ou seja, na atividade cúltica, mas que
passa pela lógica do mercado.
Os números revelam a preocupação que as igrejas evangélicas sempre tiveram com relação
à atividade musical. Daí, a grande repercussão que o novo estilo gospel de adoração tem
causado em todas as igrejas, é claro, por intermédio da mídia, mas se valendo de uma
antiga tradição. O mercado, portanto, ao usar um slogan como este, mostra que seu alvo
baseia-se em uma tradição antiga do protestantismo brasileiro: o uso da música no culto.
Ao analisar como essa experiência religiosa acontece no campo evangélico, podemos
77
Site www.supergospel.com.br – acessado em 6 de setembro de 2005.
268
perceber um caminho que explica o grande consumo da música de adoração: ela sempre foi
um produto cúltico institucional do protestantismo. Com essa afirmação, pensamos de
forma comparativa com outros produtos religiosos que não são tão consumidos pelo
público protestante e que, assim, não causam tantos “problemas” às igrejas locais.
Pensemos, por exemplo, nos óleos ou nos artefatos judaicos. Podemos ampliar nossa noção
de consumo e pensar no número de protestantes históricos que freqüentam lugares cuja
glossolalia é fator principal – ou nos cultos de cura interior, nas vigílias nos montes e nos
cultos de quebra de maldição. Se todos estes serviços religiosos estão disponibilizados no
mercado, a diferenciação com a música é substancial. Todos são “estranhos” à prática
protestante, mas a música é velha conhecida. Em uma palavra bem simples, o protestante
gosta de cantar! Logo, os ministérios de adoração representam o terreno mais conflitante
entre o protestantismo e o mercado de música gospel.
78
Pesquisa realizada pelas palavras ministério + adoração na internet do Brasil; acesso em 20 de setembro de
2006.
269
Calma!
No tempo da calamidade
Ela não te alcançará
No meio de uma tempestade
A chuva só virá pra abençoar
Eu te levanto por cabeça, filho Meu
E não por cauda
Em meio a crise te sustento
E te faço prosperar
Outro representante do gênero adoração é David Quinlan. Holandês, casado com uma
brasileira, Quinlan desenvolve um estilo de adoração intimista. O nome de seu ministério,
Paixão, fogo e glória, dá a noção do caráter de sua concepção. O slogan do ministério –
“Seja um adorador radical” – também indica uma realidade nas apresentações ou
ministrações de Quinlan. O público emociona -se com as declarações de amor feitas a Jesus
e se expressa com choro e movimentos corporais como se encurvar, abraçar-se, levantar as
mãos e balançar-se de olhos fechados. A igreja tem um propósito determin ado, o de adorar,
e há uma posição radical de que o louvor aplacará as forças malignas. A letra do CD
gravado ao vivo em São Paulo, em 2006, mostra a igreja cristã como a noiva apaixonada e
270
fascinada pelo esposo, enquanto que no outro exemplo transparece a relação de intimidade
individual com Jesus.
O ministério Clamor pelas Nações tem um estilo bem específico, cujas letras falam sobre a
estagnação da Igreja de Cristo, que não cumpre seu papel de testemunha na Terra. O eixo
básico é a expressão de amor ao próximo, na manifestação da Igreja, assumindo seu papel
de levar a salvação. Embora a temática seja bem diferenciada, em termos de não buscar
apenas um estilo contemplativo de adoração, não existe contextualização social das letras,
ficando esse caráter da obra da igreja em um plano mais subjetivo e espiritual. Escolhemos
dois exemplos que darão bem essa noção:
As virgens dançarão
Na realidade, foi o Renascer Praise que inovou a adoração no Brasil com estilo
performático, altos investimentos em tecnologia de ponta em matéria de equipamentos e
palco, escala de músicos, profissionais, utilização de orquestra, coral e bailarinos, por
exemplo. Tudo isso proporcionou que o louvor se apresentasse em forma de show, criando
o que denominamos de show cúltico. Basicamente, seu estilo busca uma similaridade com
o ministério Hosana Music, dos Estados Unidos, cujo principal líder é o conhecido ministro
Ron Kenoly. Com DVDs e CDs consumidos por todo o mundo, Ron Kenoly uniu o
espetáculo e o culto em um só momento, utilizando, para isso, músicos altamente
272
Muito consumido pelos jovens protestantes na década de 1990, o Renascer Praise perdeu
posição no mercado de adoração para um ministério surgido em meados dos anos 90, o
Ministério Diante do Trono, da Igreja Batista da Lagoinha, de Minas Gerais. Esta Igreja,
dissidente da Convenção Batista Brasileira, tem uma linha carismática e, desde os anos 90,
tem crescido significativamente.
Ana Paula Valadão Bessa é filha do pastor- presidente da igreja, Márcio Valadão, e líder do
ministério de adoração, que se projetou nacionalmente após o grupo ter feito um “curso de
adoração” na Faculdade da Igreja Australiana HillSong. O ministério Hillsong foi o grande
inspirador do estilo de adoração do Diante do Trono, cuja adoração é conduzida, como em
273
todos os outros grupos, de forma altamente carismática, por Ana Paula. No momento da
apresentação, ela realiza uma prática ritual que classifica como “ministração de cura e
libertação”. Em todas as gravações ao vivo dos CDs, há um momento no qual são
proferidas palavras de cura. No oitavo CD, gravado ao vivo em Minas Gerais, a
“ministração” fala, dentre outros problemas que afligem o ser humano, sobre cura,
restauração de casamentos, restituição de visão para os cegos, libertação das drogas. Entre
uma música e outra, e sem que os instrumentos parem de tocar, Ana Paula consegue, com
extraordinária habilidade, levar o público a um estado muito próximo do êxtase.
As letras variam entre diversas temáticas que podem ser mais subjetivas ou textos retirados
da Bíblia, principalmente do Antigo Testamento. A diversidade de assuntos tratados pode
ser a explicação do acolhimento protestante. É possível escalar músicas específicas que
combinam muito bem com o tipo de culto protestante do país. Para os que mantêm a idéia,
um tanto reducionista, de que a música gospel é uma típica produção neopentecostal, o
ministério Diante do Trono quebra esse senso comum ao apresentar uma teologia do
protestantismo histórico que aborda a onipresença de Deus ao mesmo tempo em que mostra
que Ele será louvado apesar das dificuldades presentes. Acreditamos que essa postura
teológica, somada aos fatores já citados, contribui diretamente para o consumo e o
aproveitamento das composições nos cultos protestantes.
274
Este é um tempo de festa Quem quiser vir após mim negue-se a si mesmo
Este é um tempo de louvor Quem quiser me seguir tome a sua cruz
Pra celebrar Aquele que primeiro nos amou Dia pós dia negue -se a si mesmo, dia pós dia tome
sua cruz
Transformou nosso choro em riso Quem quiser vir a mim negue-se a si mesmo
Nos deu novas vestes de louvor
Pra celebrar Aquele que primeiro nos amou Ainda existe uma cruz pra você carregar
Não se deixe enganar a porta é estreita
Nos tirou do império das trevas O caminho é árduo pra você trilhar
E nos deu perdão e paz Não se deixe enganar, ainda existe uma cruz
Arrancou todas as feridas Ainda existe um preço a pagar
Nos fez felizes demais
Quem achar a sua vida a perderá
Festa, alegria E quem perder sua vida por amor de mim, a
É uma dança de celebração encontrará
Ao único digno Dia após dia negue-se a si mesmo, tome a sua cruz
Jesus. Seu nome é Jesus Quem perder sua vida por amor de mim a
Festa, alegria encontrará
É um povo que se reúne aqui Ainda existe uma cruz, ainda existe um morrer
Diante do trono Ainda existe uma cruz, uma batalha a vencer
Do Rei, do Rei dos reis Ainda existe uma cruz
Seu nome é Jesus(...)
Os exemplos dados registram um recorte das tendências que, de modo algum, não são
excludentes. Um ministério que privilegia a “batalha espiritual” não tem problemas em
cantar um louvor intimista, e vice-versa. Entretanto, as diferenças apontam para
preferências teológicas e demandas religiosas específicas. Esta ênfase no louvor, que o
privilegia como experiência, pode ser explicada pelo simples fato de que, sendo a música
um bem cultural, é o elemento mais explorado pelo mercado. Não descartamos essa idéia,
mas existe, nas falas, o senso comum de que um novo avivamento paira sobre a nação e
realiza-se por meio da renovação no louvor, que, por tal motivo, assume uma característica
profética. Essa tendência pode ser vista pelas inúmeras letras que enfocam o avivamento da
nação. Tal discurso, que pode ser fomentado pela indústria da adoração, encontra guarida
no meio tradicional. Isso tem uma explicação religiosa, ou seja, uma motivação religiosa
que pode ser ligada à segunda característica: a busca de elementos emocionais na religião.
Eliminando o protestantismo tudo o que possa desviar a racionalidade, que outro elemento
275
conduziria à emoção senão a música? Assim, parece- nos possível afirmar que a música é
um meio de encontrar a emoção reprimida pelo protestantismo.
Todos esses elementos puderam ser apropriados pelo louvor principalmente com o
deslocamento do local da adoração, que permitiu transformar o palco em um púlpito móvel,
com a diferença primordial de que a música, e não a prédica, passou a ser o centro da
experiência religiosa. Isso acontece no que denominamos de “shows de adoração”. Nestes
a condução carismática da adoração está relacionada a essa demanda emocional, mas não se
esgota nela. O carisma do ministro de louvor pode representar, entre muitas coisas, a busca
de elementos mágicos dispensados pelo protestantismo histórico. Acima de tudo, o ministro
é o “ungido” de Deus que não representa – embora isso, de fato, não aconteça – a
instituição e seus controles. Por meio dessa condução é que o momento de adoração torna-
se carismático.
Neste momento, como em todo culto evangélico, a palavra não é dispensada, mas falada,
salmodiada e invocada pelas formas mais carismáticas e emocionais. Além do mais, em
meio a tudo isso, há orações e confissões, ao som dos instrumentos, choro, arrependimento
e ações de graça. Seguindo o estilo carismático, as curas e os milagres são aclamados como
realizados ainda que não apareçam! O culto em forma de espetáculo fecha seu circuito. O
show de adoração é totalmente autônomo em sua possibilidade litúrgica. Não é um
momento do culto, como sempre foi entendido na história do culto brasileiro, mas o próprio
culto, um novo estilo de culto que se realiza fora do âmbito da igreja.
Tal realidade litúrgica no show só pode ser explicada com um elemento que vincula o
espetáculo ao culto: o elemento estético, que fornece coesão e possibilidade de unir os
momentos, criando a sensação de dramatização acima de tudo litúrgica, pois necessita do
público como agente interativo e não só observador. Nisso, a relação com a estetização é
276
inevitável. Tal como no drama, a liturgia aqui é, antes de tudo, um momento prazeroso, que
proporciona satisfação.
O consumo desse novo estilo de louvor, e entendemos consumo no seu sentido ampliado
referente à participação em tais eventos, pode estar aliado não só à força do mercado e as
demandas religiosas reprimidas, mas também a um novo comportamento de consumo de
bens culturais na sociedade contemporânea. Esse comportamento foi chamado por
Campbell (2001) de “hedonismo imaginativo”.
Acontece que os estímulos sensoriais que causam prazer nas sensações podem ser
intensificados com estímulos externos. Dentre dos variados estímulos externos , Campbell
(2001, p.99, 100) mostrou a importância da “dimensão estética”. Esta possibilita o aumento
dos estímulos sensoriais. Dentro desse encadeamento de idéias, o estímulo estético pode
ajudar o sujeito contemporâneo na produção do devaneio.
Dessa forma, o show de adoração pode, pela sua característica altamente estetizada,
contribuir para a produção do devaneio. É assim que entendemos, por exemplo as
incessantes “ministrações” de cura e libertação nesses shows. O prazer está no sonho de
alcançá- las e não na realização das mesmas. Aumenta-se o estímulo estético, aumenta-se o
sonho e conseqüentemente o prazer. Dessa forma, estetização, emoção e devaneio formam
um conjunto de elementos discutidos por Campbell que justificam o alto grau de consumo
de música de adoração. Esse tipo de consumo simbólico se encontra em acordo com a nova
“sociedade do espetáculo” em que vivemos.
O lúdico também contrib uiu para a intensificação de sensações. A interação lúdica é, sem
dúvida, facilitada pelos espaços abertos e seculares – logo, não-institucionais – onde os
shows de adoração acontecem, mas não está atrelada ao espaço uma vez que muitas igrejas
apresentam a mesma característica. Porventura, o momento de louvor como celebração e
espaço para a juventude no culto já não significaria uma presença encoberta do lúdico no
culto protestante?
Nisso existe no show de adoração três discussões a serem realizadas no campo da cultura e
comunicação. São elas referentes ao caráter cultural híbrido da produção musical, o caráter
hegemônico do mercado e as mediações. O hibridismo se revela em vários momentos do
show gospel e se realiza na desterritorialização das experiências culturais, relacionadas com
a produção musical. Stuart Hall (2003) mostra a impossibilidade do purismo musical na
contemporaneidade. A partir de suas considerações a música nacional não pode mais ser
entendida no sentido antigo de uma identidade que remete a um núcleo comum, rígido e
estático. Assim, não podemos aqui falar de uma cultura puramente nacional ou puramente
norte-americana. A partir do pressuposto da hibridação musical podemos entender o
cruzame nto de estilos musicais, que se valem dos mais variados recursos técnicos
disponíveis por meio da tecnologia. Assim, o híbrido se caracteriza tanto na junção de novo
e do velho, ou seja no aproveitamento dos novos recursos tecnológicos em antigas
produções, como na convivência de culturas musicais diferentes.
Mas o caráter híbrido do show de adoração não se revela apenas na produção estilística
musical. Especificamente na música gospel já tivemos a oportunidade de mostrar que ela
traz o antigo discurso religioso revestido nas novas formas musicais, similares as seculares
(Dolghie, 2002, p.110). No mesmo sentido, Magali Cunha (2004) enfatizou o caráter
híbrido do movimento gospel, exatamente porque ele se vale de antigos valores
protestantes, como o discurso pietista, mas com uma roupagem nova, que se apropriou de
novos valores tanto culturais como religiosos.
279
O mercado, portanto, não envolve apenas um puro consumismo de música, mas também
revela uma demanda sócio-religiosa. Mas, diante dessa constatação, como fica o culto
presbiteriano no Brasil? Como essa Igreja reage às produções musicais oferecidas pelo
mercado e que são consumidas por uma nova geração de leigos? Sendo a música um bem
religioso tão forte nessa denominação, o mercado de música gospel tem afetado
280
diretamente o perfil do culto presbiteriano. Entretanto essa questão não está vinculada
somente aos aspectos relacionados ao mercado, mas também por condições peculiares
dentro dessa denominação. Essas questões serão analisadas no próximo capítulo.
281
CAPÍTULO 7
O MERCADO GOSPEL E A PRODUÇÃO MUSICAL
CÚLTICA DA IPB
A Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB) tem sofrido alterações litúrgicas importantes devido
ao fenômeno do mercado de música gospel. No entanto, o consumo da música gospel não
pode desvincular-se da insatisfação religiosa desse subcampo do protestantismo histórico
que sempre marginalizou as produções musicais dos Corinhos e dos Cânticos, antecedentes
ao Gospel. Nesse sentido, podemos afirmar que a produção da mús ica gospel é também
produção do protestantismo. Conforme observado, esta produção ocorreu nas condições de
resistência e luta pelo exercício de uma produção musical que fosse reconhecida como
legítima. Os especialistas da produção religiosa geraram estratégias para a manutenção de
um tipo de produção, usando a força da ortodoxia e criando o discurso da “produção
herege”.
Entretanto, as discussões sobre a inserção de uma produção musical não-oficial no culto não
encontraram uma resposta única em toda a IPB. Assim, a tensão na denominação não
conseguiu deter a produção autônoma dos cânticos que se tornava cada vez maior. Embora
com tendências diferentes, estes cânticos estavam diretamente ligados aos movimentos
jovens que tinham em comum o descontentamento com a música litúrgica oficial. Sob um
clima de conflito, alguns destes cânticos, após muita resistência, conseguiram ser
incorporados ao canto congregacional de algumas igrejas locais. É claro que a aceitação não
foi de forma total pelo público desta igreja e, por isso, continuou gerando situações de
descontentamento e conflitos.
Até aqui, a análise restringe-se ao campo religioso evangélico, sendo- lhe interna. No
entanto, os próprios referenciais teóricos em Ciências Sociais e Religião utilizados neste
trabalho apontam para a concepção de campo religioso como campo com autonomia parcial
– “relativamente autônomo”. Isso implica na influência recíproca e permanente sobre as
variadas esferas sociais, e, assim, é possível reconhecer que o tipo de produção musical
gospel e toda a força simbólica que tal produto representa têm ligação direta com outras
esferas da vida social e, de maneira mais abrangente, com as novas tendências pós-
modernas.
Desse modo, a insatis fação religiosa litúrgica também está aliada às transformações externas
ao campo religioso nas áreas políticas, sociais, culturais e comunicacionais. Nesse processo,
283
existe o agravante de que as novas formas de produção cultural, tanto no sentido técnico
quanto simbólico, vão de encontro à tendência perpetuante das tradições cúlticas. Por isso, a
tentativa de perpetuação da tradição torna-se cada vez mais ameaçada à medida que a
velocidade e a influência midiática-comunicacional intensificam-se na sociedade hodierna.
Estamos diante, portanto, do entrecruzamento de vários fatores que mostram a
complexidade do fenômeno cúltico estudado; as novas produções musicais-cúlticas da IPB.
Quando nos referimos ao mercado de música gospel, estamos, na realidade, falando sobre o
mercado de bens religiosos. Duas análises fazem-se presentes nesse contexto: a análise
macro, que apresenta as teorizações do mercado religioso e sua conseqüência, o pluralismo
religioso, e a análise específica de uma fatia do mercado de música gospel, o “mercado de
adoração”. De fato, caminhamos no sentido de mostrar que essas são circunstâncias que
abalam as estruturas cúlticas do presbiterianismo, porque perpassam a condiç ão institucional
da IPB, e a prática cúltica do canto congregacional.
Uma das primeiras características que vemos em tais comunidades é a abertura ao diálogo
com a cultura local. A partir daí, outros elementos da religiosidade brasileira aparecem,
porque não existe mais o discurso do protestantismo histórico de negação, heresia ou
demonização da cultura. Isto é, a inserção social e cultural que os neopentecostais desejaram
foi um caminho aberto para a incorporação dos elementos da Matriz. Dessa maneira, o culto
destas igrejas também se correlata com as formas de expressão usadas na religiosidade
brasileira e encontradas na matriz religiosa. Em suma, o culto entrou em diálogo com a
cultura e tornou-se mais dinâmico, atraindo um público desejoso em ter, no momento,
acesso às novas ofertas cúlticas ajustadas às condições sociais e culturais.
A forma de expressão cúltica das igrejas neopentecostais é muito semelhante ao que foi
descrito por Sérgio Buarque de Holanda (2002) como espetacularização e pomposidade dos
ritos entre os brasileiros dos tempos do Império. O apego intimista à divindade também é
algo marcante nestas igrejas e muito se assemelha ao tipo de prática religiosa do brasileiro.
Além disso, os diversos cultos sobre temas específicos – libertação, finanças, família,
prosperidade, empresários, vida sentimental e outros – mostram a aproximação com a
atividade mágica de coação sobre a divindade. A relação das neopentecostais com a magia é
um fato a ser ressaltado. As orações pastorais logo se transformam em coações mágicas, nas
quais se exigem atitudes determinadas da divindade. E as unções com óleo típicas do
catolicismo e então incorporadas ao culto neopentecostal? E as imposições de mãos? O que
dizer? O neopentecostalismo utilizou-se de todas essas expressões cúlticas que haviam sido
rechaçadas pelo protestantismo histórico.
Dentre todas as inovações dos cultos neopentecostais, a área musical é a que mais tem
afetado o presbiterianismo em termos de concorrência religiosa. Isso porque a música
utilizada por essas igrejas foi a da hinódia não-oficial do protestantismo histórico. Tal
produção, portanto, é familiar aos ouvidos do leigo presbiteriano, só que passa a ser
acrescida de novos elementos: o lúdico, o espetáculo e a emoção. Segundo Berger (1963),
como característica do pluralismo religioso, há a uma padronização de bens religiosos. As
igrejas sentem-se compelidas a padronizar seus produtos com a finalidade de adequá-los às
demandas e, por conseguinte, manter-se no mercado. Assim, a música gospel é padronizada
principalmente na versão de adoração lúdica, espetacular e emocional!
merecendo destaque a Igreja Renascer em Cristo. Isso quer dizer que as igrejas passaram a
lançar no mercado de música gospel o produto musical gerado por seus cultos. A partir de
então, a instituição religiosa, embora não consiga controlar o consumo dos membros, pode
aproveitar-se desse espaço.
Nessa dinâmica entre mercado e igrejas, a padronização tem de ser contrabalançada para que
a instituição não desapareça no ato do consumo. Para isso é necessário que ocorra uma
estratégia que Berger (1963) chamou de “modificações marginais”. Ou seja, se a adoração é
padronizada, as igrejas aproveitam situações marginais para se diferenciar e permanecer na
concorrência mercadológica. Muitas ações podem ser exploradas tais como infra-estrutura
da igreja, utilização da mídia, forma da liturgia, tipo de espaço e a que se destina seu uso. A
Bola de Neve Church, em São Paulo, pode ser um grande exemplo do que afirmamos. Tendo
uma adoração padronizada pelo mercado, esta igreja atua sobre um público diferenciado: os
surfistas. Assim, embora a padronização da adoração seja visível, uma vez que é
performática e carismática, a igreja renova no estilo musical, com preferência pelo reggae,
com linguagem diferenciada própria para surfistas, e na utilização do espaço que, bem
arrojadamente, traz no palco o púlpito em forma de prancha de surfe. Tudo isso são
diferenciais que conferem ao produto “adoração” identificação com a igreja.
79
Pouquíssimos pastores admitem a situação de concorrência religiosa. Para a grande maioria, o fenômeno de
relação da igreja com o mercado é tido como um desvio das coisas de Deus. Somente dois pastores, ambos de
São Paulo, admitiram essa idéia e declararam a intenção objetiva de concorrência, sem considerá-la uma
atitude pejorativa. Um deles, que nos concedeu licença para divulgar seu nome, o pastor Jonathan Jr., veio de
287
Ao proceder assim, a IPB cria uma barreira maior ainda às tentativas de negociação com
expressões cúlticas mais ligadas à religiosidade brasileira. Fugindo à padronização, a oferta
musical desta denominação mantém-se dentro dos padrões antigos e não atende às
expectativas dos leigos mais jovens. Por tal motivo, a presença de jovens presbiterianos em
shows de adoração é marcante. Dentre o público jovem80 , 82% já participou de algum
evento gospel, sendo que, dentro deste percentual, mais de 80% foi a algum show de
adoração 81 . Como já visto, a compra de CDs do gênero é altíssima entre os jovens
presbiterianos e ultrapassa os 85% dos consumidores de música gospel da denominação.
Se tais fenômenos podem ser separados de forma tão simples no texto, na prática cúltica
estão estreitame nte relacionados e intersectam-se constantemente. A estetização do culto,
categoria usada por Jean Paul Willaime (2002), já se encontrava presente no “velho
uma tradição pentecostal e é mantido pela Redimer Presbiterian Church, que tem por objetivo a implantação
de igrejas em centros urbanos voltadas para um público específico de empresários e profissionais autônomos.
80
Faixa etária que corresponde a adolescentes, jovens e jovens adultos entre 14 e 30 anos de acordo com
questionário aplicado. Vide anexo 1.
81
Pesquisa realizada nas igrejas que visitamos ao longo de 2005 e 2006. O questionário aplicado encontra -se
no anexo deste trabalho.
288
catolicismo” analisado por Holanda (2002), mas, apesar disso, é uma tendência mundial.
Guy Débord (1997) apontou a característica da sociedade pós- moderna de exatamente
constituir-se na “sociedade do espetáculo”. Esta característica, por sua vez, encontra-se
relacionada com o que Martelli (1995) chamou de desrealização da realidade. Ou seja, na
espetacularização, a realidade é substituída por imagens e símbolos que produzem sensações
e sentimentos independentemente de sua ação real. A estetização é um desvio da função do
rito na liturgia e não se apresenta mais organizada com símbolos referenciais, mas com
plasticidade estética, que, como o nome já diz, é auto-referente.
Entretanto, nas igrejas neopentecostais, o pastor assume outras funções além da de pregador.
Nesse processo, há uma espécie de catolicização dessa personagem, que se transforma em
mediador do sagrado. Havendo sacerdócio, há a hierarquização do clero. Por esse motivo é
que a clericalização do culto relaciona-se com uma das metáforas utilizadas por Martelli
(1995) no desenvolvimento da religião institucional: a de sua eclesiasticização, na qual as
funções do pastor passam a ser mais especializadas. Por isso, quase todas as igrejas
neopentecostais que se utilizam do modelo de “adoração gospel” tem pastores designados
para assumir essa área. Isso é, com a presença do novo tipo de louvor, surgiu também a
presença de um clérigo especializado na realização de ta l prática.
Além desses dois fenômenos pertinentes ao campo religioso, a busca da emoção é outra
característica marcante nos cultos neopentecostais, e essa atitude aproxima-se do
comportamento hedonista pós- moderno, analisado por Campbell (2001). Não podemo s
esquecer que, segundo o autor, os estímulos estéticos aumentam a capacidade sensorial de
produzir sensações, que estão diretamente relacionadas com a emoção. A produção do
devaneio é estimulada, consistindo na manutenção da busca do milagre e da capacidade de
construir uma realidade não-existente. A espetacularização do culto facilita o
289
desencadeamento emocional que leva a esse processo. Com isso, aproximamo- nos da
desrealização proporcionada pelo espetáculo, visando a favorecer que o real não seja sentido
nem tampouco importante. Em outras palavras, o real não precisa ser concretizado. Ora, não
é isso exatamente o que acontece em muitos cultos neopentecostais? O que faz com que,
semana após semana, as pessoas busquem a prosperidade, a saúde e o sucesso já prometidos,
mas, em muitos casos, não alcançados? A contínua busca do milagre e do sobrenatural
independentemente de sua realização. Logo, o culto passa a ser o local do consumo
hedonista e da produção do devaneio, processo semelhante com o que acontece nos shows
de adoração.
No mesmo artigo, o subtítulo revela que houve uma mudança comportamental em relação ao
tipo de consumo de música gospel, cuja nova preferência está no gênero adoração: “Louvor
82
Consumidor Cristão, ano IV, n. 40, pp. 78- 83, 2005.
290
e Adoração é o preferido pelas igrejas e tem mudado até o comportamento dos crentes e das
gravadoras”. Já em outra parte, a reportagem traz o depoimento de Asaph Borba, compositor
renomado no meio evangélico de cânticos de louvor desde os anos 70, que afirma ser esse
um movimento instaurado em todo o país e chama-o de “mover de Deus”, concluindo:
“Enquanto houver Igreja, haverá esse mover” (p. 78).
Como todo campo evangélico do país, a IPB acabou por incorporar, com significativos
diferenciais, esse movimento de louvor e adoração que impera no meio evangélico. Não
podemos esquecer que, se hoje existe a força do mercado sobre a igreja, a relação entre
ambos é dialética e deve ser abordada todo tempo neste trabalho. Por isso, quando
afirmamos que o mercado está influenciando o culto da IPB, pressupomos que o próprio
mercado nasceu de demandas leigas desta denominação.
Mas, então, quais as influências dessa nova tendência gospel de louvor nos cultos
presbiterianos? Independente do que é incorporado nos cultos, é importante ressaltarmos
que nesses espaços de louvor e adoração coletivos há sempre uma intensificação das
experiências. Nos cultos, mesmo nos neopentecostais, existe o controle institucional, assim,
o show de adoração pode proporcionar sensações não encontradas no espaço cúltico. Por
isso mesmo, o mercado aquece também a venda dos CDs de adoração que, por serem
gravações ao vivo dos shows, reproduzem o êxtase e a euforia desses momentos.
Um dos aspectos do show e que pode influenciar no culto presbiteriano está relacionado
com a atuação do dirigente do louvor. Nos shows de adoração, o líder do grupo, o chamado
“ministro de adoração”, exerce uma dominação carismática sobre o público. Prega,
profetiza, “ministra” a cura e a “libertação de opressão maligna”. Acontece, porém, que, tal
como nos cultos neopentecostais, as curas e ministrações nem sempre são visíveis, mas,
independentemente disso, o público sente profunda emoção e vivencia tais fatos como se
fossem reais 83 .
83
Cabe registramos que, ao analisar sociologicamente este fenômeno, não lhe conferimos qualquer atribuição
de valor. A fé no acontecimento de milagres e a crença nas ministrações proféticas não são elementos que
podem ser abordados em uma análise sociológica. Por isso, dizer que um grupo religioso produz o sonho ou
devaneio em reuniões coletivas de louvor, não lhe tira o caráter especificamente religioso. Lísias Negrão
(2000) já aconselhou que os cientistas da religião devem evitar a armadilha de descaracterizar determinadas
291
Outro ponto a ser ressaltado é o tipo de experiência proporcionada pelos shows. A alta e
requintada performance espetacularizada proporciona que o show aconteça na interação
público-banda. Com isso, a participação é mais enfatizada. Os jovens presentes interagem
com as bandas que se apresentam com todo tipo de manifestação. Nisso outro ponto que
destacamos é a ampla liberdade de expressão em tais eventos, que inclusive gera um
sincretismo entre a adoração e o lúdico. Assim, descontração, louvor e emoção compõem
hibridamente tais espaços de show, freqüentados pelos jovens presbiterianos do país.
Ora, se a dinâmica entre mercado e igreja é dialética, como fica a situação do culto
presbiteriano? Este culto encontra-se em uma situação muito difícil, porque, a fim de
satisfazer as demandas da área musical-cúltica, tem de negociar com tendências que fogem à
antiga versão de culto pedagógico e racional, modelo típico do puritanismo calvinista. Não
podemos esquecer que, na circunstância de mercado e, conseqüente mente, de pluralismo
religioso, a “escolha racional” (Iannaccone, 1992) é um dos fatores que contribui para a
adesão institucional. Na realidade, esta escolha, segundo esclarece Iannaccone, não precisa
ser tão “racional” no sentido exato da palavra, mas tem como princípio uma maximização
dos comportamentos. Iannaccone (1992, p. 123) esclarece que “o aspecto definidor da teoria
racional é sua suposição de comportamento maximizado. Indivíduos pesam os custos e
benefícios antecipados de suas ações e agem deste modo para maximizar benefícios
líquidos”84 . Nesse contexto, a “microeconomia do sacrifício” pode ser o ponto crucial
enfrentado pelo presbiterianismo. Para toda a nova geração, que tem, a seu dispor, uma
variedade de igrejas coadunadas com as tendências co ntemporâneas e culturais, por que o
presbiterianismo atrairia? Qual seria o “lucro” em participar de tal denominação?
A rigidez moral exigida pelo presbiterianismo, e, de modo geral, por todo o protestantismo
histórico, também se encontra em muitas igrejas neopentecostais e comunidades menores.
Podemos supor que existe um mesmo grau de sacrifício nessa área, por parte dos jovens em
todo o campo evangélico do Brasil. Daí, inclusive o hibridismo do Gospel: as novas
produções musicais continuaram trazendo os antigos valores morais e rígidos do
religiões como se estas não o fossem. O autor fazia referência à inserção de algumas igrejas no mercado e à
utilização do marketing religioso. Em suma, vale lembrar que, sociologicamente, só podemos examinar os
fatos objetivados e passíveis de uma análise teórico-científica.
84
Tradução da autora.
292
Assim, o Gospel enfoca a rigidez moral que condena o sexo fora do casamento, drogas,
bebedeiras e outras práticas do gênero. Tal como nos Cânticos, a “vida de santificação”
também é o tema. Contudo, se o neopentecostalismo e as comunidades alternativas exigem
esse comportamento, oferecem em troca a possibilidade de inserção cultural do jovem,
promovendo programações para que isto aconteça. Por tal razão, muitas igrejas patrocinam
as atividades oferecidas pelo mercado gospel.
85
Show realizado em 23 de setembro de 2006 no Estádio Canindé (Estádio da Portuguesa) em São Paulo. O
trabalho de campo foi realizado das 13 horas à meia-noite e meia. A abordagem consistiu na interação com os
grupos que estavam nas filas esperando a abertura do portão. Como o mesmo foi aberto depois das 18 horas,
mantivemos contato com os jovens por quase seis horas. Durante o show, tivemos a oportunidade de verificar
o comportamento dos grupos diante das três bandas que se apresentaram: Diante Do Trono, Hillsong e
Renascer Praise, registrando fotograficamente o evento.
293
padrão moral típico do protestantismo, mas liberado em relação à inserção social e cultural
pertinente à sua idade.
Enganosamente, pode-se supor que o público era apenas neopentecostal, mas, assim como
aconteceu com o Cântico e com as comunidades de roqueiros dos anos 80, a participação
dos jovens do protestantismo histórico era um fato. Pontuamos as denominações tradicionais
das quais tivemos oportunidade de colher depoimento antes do início do show: Assembléia
de Deus do Bom Retiro, Assembléia de Deus (PR), Batista Ágape, IPI do Ipiranga, IPB de
Campinas, IPB de Higienópolis, IP Jardins, IPB de Vila Mariana e IPB de Alphaville. Além
destas, outras igrejas neopentecostais e autônomas compunham o público presente. Na hora
do show, o apóstolo Rina fez uma pequena identificação das igrejas presentes, pedindo para
que o público se manifestasse. A presença de todas as denominações históricas pôde ser
constatada então.
Qual é, de fato, o posicionamento da IPB frente ao mercado de adoração? Como ele tem
interferido na produção musical cúltica da denominação? Sabemos, e isso é teoricamente
sustentado, que não há como o culto presbiteriano deixar de sofrer algum tipo de influência
deste mercado. Isso está implícito nas relações entre os campos da religião e da cultura em
86
Tradução da autora.
295
Para respondê-la, é imprescindível reconhecer que, embora as influências existam por força
da situação mercadológica, o modelo cúltico do presbiterianismo no Brasil também é
responsável pelas transformações internas nesse culto. A condição de um tipo de culto ideal,
somada às circunstâncias históricas de luta na área hinódica e às novas demandas leigas, deu
um aspecto heterogêneo à denominação. Basicamente, o que se vive hoje é um embate entre
a produção musical do culto e a racionalidade buscada por meio da prédica. Todo esse
quadro não se formo u apenas por circunstâncias atuais, mas foi conseqüência de vários
processos internos à denominação. As dinâmicas da produção e reprodução religiosas da
teorização de Bourdieu (1987) são extremamente eficazes para compreendê- lo. À luz dessa
teoria, trazemos a análise da produção cúltica da IPB, recapitulando alguns de seus pontos
principais.
Desde então, o espaço cúltico vem sendo dividido pelo pastor, responsável pela prédica, e
pelos “agentes musicais”, divididos em várias formas de atuação: corais, grupos vocais,
grupos musicais de condução congregacional de cânticos, grupos e solistas que se
apresentam com play -back e outros. Não é difícil perceber que, com tamanha variedade de
produção musical no culto, a relação de subordinação da mús ica à prédica foi- se
enfraquecendo, o que rapidamente se transformou em confronto. Isso se acentuou à medida
que a proliferação de novos grupos musicais foi sendo sistematicamente subsidiada pelas
organizações paraeclesiásticas na produção do Corinho e do Cântico.
87
O termo é usado, ainda hoje, em algumas igrejas e significa dar o tom da música, iniciar o canto, para que,
depois, a congregação entre cantando junto.
297
Com base nesse novo formato, o modo mais eficaz de combater um possível
enfraquecimento da prédica foi, obviamente, o apelo à tradição. Assim, a música que não
servia aos propósitos da prédica passou a ser marginalizada pela liturgia oficial. Os hinos,
oriundos dos vários hinários evangélicos que seguiam a tendência dos Salmos e Hinos,
formavam a hinódia oficial do protestantismo brasileiro, porque legitimavam o caráter
racional da prédica. Contudo, as novas produções musicais, marginais à hinódia oficial, não
retrocederam e sempre tiveram um público que as reconheceu como cúlticas. Dessa forma, a
tensão entre o hino oficial e o Cântico retratava também a tensão entre a música e a prédica
devido à relação de subordinação da primeira à segunda.
Na década de 90, com a chegada das igrejas neopentecostais e das várias comunidades
evangélicas alternativas, a tensão entre a prédica e a música tornou-se maior, porque o
músico leigo passou a ganhar o status de “levita” nestas igrejas. A atuação do agente
musical podia acontecer de duas formas: como um leigo diferenciado ou sacerdote da
instituição incorporado ao corpo clerical. Com a proliferação e a expansão do mercado de
música gospel, o agente musical deu um salto rumo ao reconhecimento de sua atividade, que
não mais estava atrelada apenas à instituição religiosa.
Assim, os músicos, ora denominados “levitas”, ora “artistas gospel”, passaram a revezar-se
entre cultos e shows. O trabalho sempre voluntário nas igrejas mescla-se aos cachês
cobrados para a realização de shows. Já ganhando um status de levita e o reconhecimento
direto do público, o mercado de adoração proporcionou uma inversão entre a antiga relação
de subordinação da musica à prédica. Nos shows de adoração, a prédica é que serve como
auxiliadora da música, e a figura do ministro de louvor e adoração torna-se totalizante,
porque consegue atuar sozinho nas diversas áreas religiosas, como oração, intercessão,
profecia e assim por diante.
Dentro de sua atuação, o agente musical, que realiza a função de ministro de adoração,
realiza uma atividade carismática e performática que lhe garante total domínio de palco e
sobre o público. Portanto, seu tipo puro pode ser construído pela junção dos seguintes
elementos: carisma e performance. A reprodução desse modelo de agente musical é
realizada nos inúmeros encontros e congressos destinados aos ministros de louvor
298
88
É importante ressaltar que esta tipologia distinta está sendo realizada a fim de analisar as questões
completamente atuais do contexto de culto presbiteriano no Brasil. Isso porque a música pode ser servidora do
299
Porém, por que a prédica é apontada como meio de dominação tradicional? Tal ligação só
pode ser feita a partir da função que essa atividade assumiu no contexto do culto protestante,
principalmente no presbiteriano. Ao analisá- la sociologicamente, Willaime (2002, p. 43)
disse que esse estudo “(...) não se limita, no entanto, ao estudo de como ela é recebida, mas
analisa também suas condições de enunciação e a encara como uma prática discursiva
específica”. As condições de enunciação revelam três características importantes da prédica:
a institucional, a comunitária e a ritual. Dependendo de condições específicas, a prédica
pode tender a realçar uma destas características.
Segundo Willaime (2002, p. 46), a função maior da prédica, no culto protestante, é trazer a
presença da divindade:
Estando a prédica no centro do dispositivo que leva a presença da divindade aos fiéis, torna-
se indispensável para que o culto aconteça. Portanto, para o protestante, a presença divina
encontra-se na própria “palavra”, é a religião da Sola Scriptura. Logo, constatamos a íntima
ligação da prédica com a teologia. Ora, a prédica, sendo totalmente atrelada à teologia, traz
em si a visão de mundo construída por um grupo religioso e constantemente veiculada na
hora do sermão. A partir daí, concluímos que a prédica assume uma função quase sempre
institucional, porque é servidora da teologia que determina a doutrina religiosa do grupo. O
culto protestante brasileiro, sendo estritamente voltado ao ensino, reforça ainda mais o
caráter institucional da prédica.
poder institucional, assim com a prédica pode ser utilizada de forma carismática,quando assume sua função
profética (Willaime, 2002). Contudo, o contexto atual da função da música no culto da IPB passa pela
discussão do mercado de adoração e neste a música de adoração assume função carismática. Portanto,
propormos uma tensão entre as duas formas puras a partir de tal contexto histórico. As dinâmicas e forças
envolvidas nesse processo atual podem ser atenuadas dependendo de desenvolvimentos posteriores na
denominação.
300
A legitimação do público pode ser notada em algumas igrejas onde o dirigente de louvor
recebe o título de “ministro de louvor”, o que é uma inovação para a denominação 89. A
figura do ministro de louvor, ou do dirigente de louvor, é reconhecida como uma pessoa
especial e vocacionada por Deus. Nas igrejas onde o momento de louvor e adoração
aproxima-se da padronização do mercado, quase 70 % do público jovem pesquisado
considera que o dirigente tem uma “função espiritual” e não apenas musical na hora do
culto. O termo mais usado para expressar o reconhecimento deste líder, como dotado de
poder sobrenatural, é “unção”. É assim que o público manifesta suas comparações entre os
ministérios e seus líderes, classificando-os em mais ou menos ungidos. Em outras palavras,
89
A figura do ministro de louvor já existe, há muito tempo, na Igreja Batista. Nesta denominação, a arte
musical sempre foi muito desenvolvida, e os músicos que trabalham na igreja recebem um alto preparo técnico
e teológico. Cursos, seminários e faculdades compõem as possibilidades oferecidas pela instituição. A
denominação acompanhou as mudanças no campo religioso brasileiro e, atualmente, além de manter a
tradicional Faculdade de Música Sacra, oferece o curso “Gestão em Ministério de Louvor e Adoração” pela
Faculdade Teológica Batista de São Paulo.
301
o grupo reconhece que o ministro de louvor é portador de uma “unção espiritual” que o
diferencia dos demais: ele pode profetizar, libertar e curar enquanto ministra o louvor. A
dominação carismática é inegável e, nesse caso, está “baseada na veneração extra-cotidiana
da santidade, do poder heróico ou do caráter exemplar de uma pessoa e das ordens por esta
revelada ou criada” (Weber, 2000, p. 141).
No contexto analisado, existe uma nítida separação entre o exercício dos tipos de dominação
no culto. No caso da IPB, a ação carismática do dirigente de louvor é uma constante ameaça
ao poder do pastor e, conseqüentemente, da prédica, no culto presbiteriano. O que houve foi
que uma nova produção musical, que já não era bem- vista sob a ótica institucional, ganhou a
força de uma liderança carismática. Ou seja, se, em determinado momento histórico, o
pastor viu-se dividindo o espaço cúltico com as equipes de louvor, agora, passou a conviver
com a ameaça do louvor carismático.
É bom esclarecermos que a luta ou concorrência pelo poder não acontece de maneira
totalmente consciente pelos agentes sociais envolvidos. Otto Maduro (1983, p. 18) adverte-
nos sobre o fato da ação inconsciente dos atores sociais envolvidos na luta pela legitimidade
da produção religiosa. Assim também se procede nas circunstâncias analisadas aqui. Não se
trata apenas de “jogos de poder” no sentido banal que tal expressão pode assumir. O que
acontece é que os atores sociais são envolvidos em tramas próprias do campo em que estão
inseridos, de tal forma e com tal complexibilidade, que as ações não podem ser
caracterizadas como “ações pessoais”. Essa idéia baseia-se na concepção de campo social,
de Bourdieu, como um espaço de luta constante.
Ora, desde os anos 70, a música tenta assumir uma função diferente no culto, buscando não
se restringir à condição de auxiliadora da prédica. Isso já se fazia notar na presença dos
grupos musicais que conseguiam atuar em todas as áreas do culto. Portanto, tal situação não
só foi reforçada pelo mercado, mas também intensificada pela ação carismática. A respeito
dessa autonomia dos agentes musicais no culto da IPB, Alderi Matos 90 declarou em
entrevista:
90
Entrevista realizada em maio de 2005, em São Paulo, no Centro de Pos-Graduação Andrew Jumper, no
campus da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
303
As palavras de Matos mostram a luta pelo espaço cúltico entre pastores e músicos e o poder
destes, pois conseguem influenciar mais as práticas cúlticas do que o pastor. Essa influência
ocorre, porque o novo momento de louvor está em acordo com as novas tendências da
sociedade. As palavras de Matos foram endossadas por outros pastores, que se sentem
desconfortáveis com o poder que os dirigentes de louvor vêm adquirindo no culto. Os
pastores mais flexíveis ao tipo de atividade do agente musical também não se sentem
totalmente confortáveis com a situação, visto que o momento de louvor pode assumir um
papel mais importante do que a prédica, fato que constatamos na pesquisa de campo.
dirigentes. Esta é a maior influência do mercado de música gospel sobre a produção musical
cúltica da IPB – produção esta que está tornando-se central, autônoma e carismática!
Preferência
80
Percentuais
60
40
20
0
louvor prédica outros
Sob a perspectiva que analisamos, cabe o exemplo de uma das igrejas pesquisadas onde
pudemos constatar um percentual alto de jovens e adultos no culto que ultrapassava os 50%
dos presentes. Após o culto, um dos presbíteros informou- nos que, nas reuniões do conselho
realizadas para a aceitação de novos membros, 100% dos que estavam entrando na igreja
naquele ano relataram optar por lá permanecer por causa do louvor. O momento de louvor a
que assistimos durou mais de meia hora, período no qual a dirigente proferiu palavras de
“cura de opressões” e “restauração espiritual” e orou entre os cânticos 91 . Esse quadro
mostra, inclusive, a autonomia da dirigente.
91
Trabalho de campo realizado em maio de 2004.
305
Já vimos que a IPB tem resistido às novas demandas do louvor e adoração congregacional.
Contudo, quais têm sido suas estratégias institucionais para contê- las? Basicamente, o
assunto é tratado em instâncias locais e, com algumas exceções, chega a ser discutido pelos
órgãos mais altos na hierarquia burocrática. É o caso, já relatado por Alderi de Sousa Matos,
de abordar o assunto em concílios menores e presbitérios apenas quando há problemas que
não conseguiram ser solucionados nas instâncias inferiores. Isso acontece, porque, conforme
percebemos, a constituição da Igreja delega ao pastor a responsabilidade e supervisão da
liturgia da congregação que pastoreia. Diante de pedidos e solicitações na área de culto e
música, o órgão superior da Igreja, o Supremo Concílio (SC), sempre lembra a
responsabilidade pastoral pela liturgia, contrapondo-a com os princípios de Westminster que
devem dar os devidos parâmetros para a ação pastoral.
92
Todo o Digesto Presbiteriano é encontrado em www.executivaipb.com.br/digesto.
93
O Brasil Presbiteriano, abril de 2006, pp. 8, 9.
306
não deve ser adorado segundo imaginações e/ou invenções dos homens ou
sugestões de Satanás, nem sob qualquer representação visível ou de
qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras. (O grifo é
nosso.)
Ora, a partir dessa consideração, que proíbe o uso de qualquer representação que não esteja
na Bíblia, a IPB mantém a postura, desde o período de inserção do protestantismo de missão
no Brasil, de não considerar a intervenção das expressões culturais no culto. Muitos pastores
da denominação têm posição contrária e, tal como em Lutero, afirmam que o que não é
condenado pela Bíblia pode ser utilizado no culto. Assim, os posicionamentos são
contraditórios na mesma denominação. No mesmo artigo, enquanto o reverendo Ashbell
Simonton, na famosa discussão sobre o uso de instrumentos na igreja, recomenda
moderação a fim de se “evitarem excessos” (p. 9), o pastor reve la não concordar com a
tendência atual de se tocarem os variados estilos musicais com o objetivo de evangelização e
mostra, por meio do seu depoimento, como o afastamento da cultura ainda rege muitas
discussões litúrgicas da IPB. O reverendo declarou: “O critério de avaliação nunca deveria
ser o gosto musical do ser humano, afetado por influências culturais e sociais contaminadas
pelo pecado”94.
Institucionalmente, a IPB tem uma comissão responsável por cuidar de assuntos específicos
na área musical: trata-se da “Co missão de Hinologia, Hinódia e Música”, antiga “Secretaria
Geral de Música e Comissão de Liturgia”, organizada em 1999 e formada por cinco
membros e três suplentes, todos com formação na área de música. Segundo o Brasil
94
O Brasil Presbiteriano, abril de 2006, p. 9.
307
Presbiteriano 95 , esta comissão tem por objetivo “fazer com que se mantenha a intenção
educativa ao preservar cantos tradicionais” (o grifo é nosso).
A necessidade da função antiga dos hinos está relacionada, segundo o mesmo artigo (2006,
p. 9), com a preservação da identidade da denominação. Extraímos um trecho da matéria
que mostra o quanto a música pedagógica torna -se importante para assegurar o modelo
cúltico tradicional do presbiterianismo:
95
O Brasil Presbiteriano, abril de 2006, p. 9.
308
(...)
2) estruturação da função, do lugar e do desempenho do Ministro de
música na IPB, para que este ministério, que já vem sendo adotado em
algumas igrejas, à semelhança do que acontece em outras denominações,
venha a se implantar de modo correto.
A segunda sugestão do documento é reveladora, porque constata que, desde 1994, o ministro
de louvor já era uma realidade na IPB. A preocupação do presbitério em estruturar essa
atividade revela o que já falamos exaustivamente neste trabalho: a falta de sistematização
institucional nessa área. Por certo, o presbitério que encaminhou o documento buscava um
maior controle da atividade desses agentes, mas, mesmo assim, é notável que a resolução do
SC nada tenha instruído a respeito, resolvendo encaminhar as sugestões para os “Concílios,
Juntas, Comissões ou Secretarias Gerais da IPB”.
Sobre o que afirmamos, o Digesto SC-2006 – Doc 121 é esclarecedor. Neste, o Supremo
Concílio analisa documentos anteriores, cuja ementa solicita o “reconhecimento da função
de Bacharel em Música Sacra”. Os considerandos do SC relatam:
Assim, a tensão entre música e prédica pode ser percebida nas resoluções do Supremo
Concílio da IPB que não conferem ao músico a possibilidade de incorporação ao grupo de
especialistas. Na realidade, a tensão não se refere apenas ao confronto “música e prédica” ou
aos modelos musicais propriamente ditos, mas também, conforme vimos, está
primordialmente vinculada ao modelo de culto presbiteriano que impõe uma função
pedagógica da música. Como a pedagogia do culto revela-se na atividade da prédica, tudo
precisa estar atrelado a essa ação. Assim, o pastor-teólogo, que tem a função sacerdotal
relacionada à instituição, é o que proporciona a racionalidade do culto e tem de garantir que
esse elemento racional não seja perdido, controlando, assim, a atividade musical. Por tal
razão, a música não pode ganhar nenhum status que venha a colocá- la numa situação de
igualdade com a prédica. Contraditoriamente, entretanto, a IPB possibilita que sua atuação
tome rumos não- institucionais ao impedir este status ao agente musical.
qualquer mudança nesse sentido. Se não há unidade de opiniões entre os sínodos (reunião de
presbitérios), não há tampouco consenso de idéias no mesmo presbitério. Este é o caso do
Presbitério “X” da IPB em São Paulo que, em maio de 2003, ajuntou-se, em reunião
extraordinária, com os representantes das igrejas locais para discutir o procedimento de
bater palmas durante o louvor.
O assunto foi levantado por duas das igrejas, cujo rol de membros contava com um grande
número de jovens que inclusive participavam ativamente das programações do mercado
gospel como a Marcha Para Jesus96 . Elas solicitavam, ao presbitério, a liberação de palmas
durante o louvor. Os pastores solicitantes tiveram a oportunidade de levar considerações
teológicas para fundamentar seus pedidos. Do outro lado, pastores contrários ao
procedimento das palmas também apresentaram argumentações teológicas. Basicamente, as
duas vertentes baseavam-se na discussão do Princípio Regulador do Culto. Depois de um dia
inteiro de discussão, dividido em exposição de temáticas anteriormente solicitadas e na
abertura para perguntas pelos presbíteros presentes, o presbitério chegou a admitir que o uso
de palmas poderia contribuir para a “heresia” e, assim, manteve a proibição desse uso nos
cultos públicos.
As duas igrejas que defendiam o uso de palmas no louvor cantavam, quase exclusivamente,
o Gospel, tinham – e ainda têm – bandas equipadas com instrumentos e aparatos técnicos de
última geração e estendiam o momento de louvor por quase meia hora. Além disso, uma das
igrejas patrocinava, uma vez por mês, o “sábado gospel”, no qual participavam músicos
reconhecidos naciona lmente como Mara Maravilha. Nestes sábados, as apresentações das
bandas da igreja contavam com clima de show e muita descontração. Não faltavam nem
mesmo gelo seco e luzes. Contraditoriamente, o presbitério proibiu o uso de palmas no
culto, mas não interferiu nas reuniões que aconteciam fora dele. Provavelmente, a idéia de
que aquele não era um espaço de culto sustentava a posição do presbitério, mas, em tais
encontros, o modelo do mercado gospel fortalecia-se cada vez mais entre os jovens da
igreja.
96
Uma das igrejas das igrejas solicitantes ,na Marcha para Jesus de 2003 fez camisetas para os jovens,
identificando a denominação e igreja local.
311
Podemos notar essa falta de unidade da IPB, exemplificando, mais uma vez, o trabalho de
campo realizado no show com a banda Hillsong em São Paulo. Durante nossas conversas
pela extensa fila que se formava fora do estádio, encontramos dois pastores da IPB de São
Paulo acompanhando a mocidade de suas igrejas. Segundo o depoimento de um deles, sua
igreja havia-se programado antecipadamente para o evento, e inclusive houve propaganda
interna.
Em outro presbitério de São Paulo, constatamos a conseqüência de uma cisão local por
motivos relacionados ao momento de louvor. Segundo depoimento dos membros que
permaneceram “fiéis à denominação” após o cisma, o antigo pastor estava adotando uma
liturgia pentecostal por meio do momento de louvor, no qual eram permitidas até danças.
Entretanto, com sua transferência para outro presbitério e o envio de um pastor mais
tradicional para a igreja, a liturgia sofreu uma transformação radical. A equipe de louvor e o
novo pastor não tinham a mesma concepção, e os conflitos foram inevitáveis. Na entrevista
concedida pelo co-pastor da igreja97 , este nos relatou a discussão que teve com o dirigente
de louvor. Segundo o depoente, o líder teria ameaçado o pastor ao dizer- lhe que o momento
de louvor era o que “fazia o culto acontecer”.
Após tal discussão, na qual não houve acordo entre as partes, a banda desligou-se da igreja e
levou consigo mais da metade dos membros. Como a visitamos logo após essa divisão, o
pastor não sabia dizer o paradeiro dos membros que se retiraram com a equipe de louvor.
Naquele domingo, havia uma pequena banda composta por um guitarrista, um tecladista e
um baterista, todos de uma igreja vizinha neopentecostal que estavam ajudando a igreja que
ficara sem músicos. Nessa situação, notamos que existia um número de leigos descontentes
com o louvor mais carismático da igreja. Embora os pastores não tivessem tido tempo para
estruturar um novo modelo cúltico, a esposa de um presbítero da igreja declarou o que
estava sentindo, dizendo: “Finalmente, teremos liturgia nessa igrej a”.
No caso de ocorrer divisão de opinião entre os leigos, quando esta é mais ou menos
igualitária, geralmente a demanda conservadora sai vencedora, pois está legitimada pela
tradição institucional. Nessas situações, o trânsito religioso é inevitável, e muitos dos
97
Entrevista realizada na própria igreja após participação no culto, em maio de 2006, na cidade de São Paulo.
312
Ora, se todas essas situações diferentes ocorrem, não podemos esquecer que, nas igrejas
locais, existe uma variedade de demandas leigas em geral separadas por faixa etária e novos
adeptos. Sem dúvida, a divisão de opiniões dos especialistas da IPB, representados pelas
instâncias administrativas da igreja, revela a divisão de opiniões dos leigos. Ou seja, além
das novas demandas, há também aqueles que ainda preferem o modelo tradicional de culto.
Para esse grupo conservador, as novas tendências de louvor são consideradas desviantes do
presbiterianismo e ligadas à pentecostalização.
Esses exemplos mostram como a denominação está dividida e, às vezes, toma atitudes
antagônicas. O governo eclesiástico, as tendências leigas e a luta pela manutenção do
monopólio da produção cúltica são fatores que justificam tal quadro. Com a divisão de
opiniões, há a diferenciação dos modelos cúlticos, que por sua vez, estão baseados
basicamente pelos diversos modelos de produção musical cúltica. Resta, então, analisar
quais modelos estão sendo adotados nos cultos da IPB. Categorizamos os modelos cúlticos a
partir da produção musical e, para isso, utilizamos o método weberiano da construção dos
tipos puros.
Os modelos cúlticos que apresentamos foram construídos a partir da função dos elementos
prédica e música e, conseqüentemente, da dinâmica dos agentes envolvidos nessas
atividades. Isso quer dizer que focamos nossa análise nessas duas áreas do culto e deixamos
as demais atividades em segundo plano. Por exemplo, não nos detivemos em explicar o rito
313
Dessa forma, encontramos três tipos puros de culto na IPB: o culto tradicional-pedagógico,
o culto entusiasta e o culto contemporâneo. O culto tradicional- pedagógico é o culto solene,
que mantém as atividades musicais dos hinos oficiais no canto congregacional, do momento
de louvor e da participação do coral. O sermão constitui a parte mais enfatizada, e pode ser
notada uma divisão maior nas partes do culto. Ou seja, a ordem cúltica estabelece uma
interação entre leitura bíblica, canto congregacional, momentos de oração silenciosa como
intercessão e confissão, oração audível, geralmente feita pelo pastor ou presbítero, oferta,
apresentação do coral, e, entre essas partes interligadas, aparece o “bloco” do momento de
louvor. Geralmente, antes do sermão, a equipe de jovens dirige alguns cânticos
congregacionais, cujo repertório desmembra-se entre canções antigas dos anos 80 e 90 e
novas canções de adoração – cuja preferência está de acordo com os outros modelos cúlticos
e traz canções de artistas e bandas famosas do mercado gospel como Marcos Witt, Vineyard
e Diante do Trono, por exemplo.
Em tais igrejas, o momento de louvor é uma espécie de bricolagem, pois, desde o início do
culto até o louvor, a igreja tem pequenos momentos em que se coloca de pé, senta para ouvir
o coral, levanta-se para cantar, lê responsivamente a Bíblia, ora e assim por diante. Ou seja,
314
Foi neste modelo de culto que encontramos o maior número de apresentações de grupos
vocais – divididos entre grupos a capela, com uso de play-back, de jovens, adolescentes,
corais masculinos e corais de senhoras. Ou seja, a atividade musical é grande, mas está
dentro da antiga função pedagógica e racional. Em igrejas de maior porte econômico, o coral
destaca-se pela qualidade e participação no culto que pode chegar até cinco ou seis
apresentações. Nestas igrejas, a diferença de aparato técnico entre o coral e a equipe de
louvor foi o que mais nos chamou a atenção. Nesse sentido, 90% dos regentes e pianistas
são pagos pela atuação no culto, enquanto 0% da equipe de louvor recebe esse tipo de
incentivo 98 .
Os dados mostram a preferência por um tipo de produção musical ainda vinculada aos
antigos padrões clássicos e de apoio pedagógico. Nas igrejas com renda média, o coral não
tem o mesmo brilho participativo, mas a divisão de pequenos grupos musicais também
acontece. Nestas igrejas, o agente musicalmente leigo é que desempenha tais atividades;
logo, a diferença de produção está, obviamente, na qualidade da apresentação e no
repertório. Comprovando o que já foi dito em todo o trabalho, estes músicos não-
profissionais não recebem nenhum tipo de incentivo da igreja da mesma forma que os
ministros de louvor.
98
O questionário aplicado aos músicos encontra-se no anexo 2.
315
A presença de jovens nessa igreja é baixa, e, basicamente, o percentual está entre 10% e
20%. Trouxemos os dados relacionados à parte preferida do culto nesse modelo:
Preferência
60
50
Percentuais
40
30
20
10
0
louvor prédica outros
70
60
Percentuais
50
40
30
20
10
0
Religiosa/Espiritual
Espiritualidade do
Estilo Musical
Técnica do Grupo
Liberdade de
Grupo e Dirigente
Ministração do
Expressão
Experiencia
Louvor
316
O número de leitura bíblica, orações e hinos tradicionais é menor, o que confere um caráter
menos fragmentado ao culto. Em muitas igrejas, já não há mais a participação do coral, e o
número de conjuntos vocais é muito reduzido por terem sido substituídos pelas bandas de
louvor. Isso faz com que a música mais entoada seja a de louvor e adoração. De fato, nesse
modelo de culto, este momento é alargado, podendo chegar aos 30 minutos. Embora exista
ainda um caráter de bricolagem no momento de louvor, ele é substancialmente enfraquecido
pela diminuição de outras partes do culto. Assim, louvor e sermão basicamente dividem o
espaço do culto.
99
Questionário contido no anexo 3.
317
45
40
35
Percentuais
30
25
20
15
10
5
0
l
o
ica
or
up
l
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uv
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Re
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do
L
nc
de
rie
da
pe
ali
Ex
itu
pir
Es
318
Preferência
60
50
Percentuais
40
30
20
10
0
louvor prédica outros
Aliás, as atividades culturais das igrejas que adotam este modelo cúltico são muito intensas.
Abrangem grupos de teatro, grupos de dança para várias idades e de diversos estilos além de
contar com inúmeras bandas tanto de louvor quanto de entretenimento. Encontramos até
mesmo “banda presbiteriana de “heavy metal” 100. Assim, além dos cultos já espetaculares,
os jovens têm acesso a uma variedade de opções culturais externas, tudo patrocinado pela
igreja local. Não há dúvida de que a demanda do jovem contemporâneo é atendida nestas
igrejas. Isso pode ser notado em dois aspectos: no primeiro, pelo número percentual da
participação dos jovens nos cultos contemporâneos. Eles perfazem mais de 50% da presença
geral. O segundo aspecto vincula-se ao tamanho destas igrejas, que geralmente fazem mais
de um culto por domingo, pois os templos ficaram pequenos para atender ao público,
indicando o crescimento. Portanto, o culto contemporâneo atende às novas demandas da
sociedade pela incorporação das produções musicais de adoração.
100
Banda Vestigium Dei da IPB de Londrina, Paraná.
320
70
60
Percentuais
50
40
30
20
10
0
Religiosa/Espiritual
Espiritualidade do
Estilo Musical
Grupo e Dirigente
Liberdade de
Técnica do Grupo
Ministração do
Expressão
Experiencia
Louvor
Esse momento de louvor é a parte do culto preferida pelo jovens. A pesquisa revelou um
percentual comparativo deste momento com o momento do sermão.
Preferência
80
60
Percentuais
40
20
0
louvor prédica outros
321
Sem dúvida esses dados mostram que o culto contemporâneo traz ao pastor e a própria
instituição um risco.Por isso, há uma tendência de cooptar clericalmente a atividade
carismática e performática do louvor. Em quase todas as igrejas que adotam este modelo
cúltico, o responsável pelo louvor é um pastor, ou um seminarista, designado para exercer
tal função. Curiosamente, no entanto, o pastor do louvor não tem, necessariamente que ter
formação musical, sua atuação é focalizada na direção congregacional do louvor. Diga-se,
direção carismática do louvor.
Assim, o que acontece é que a função carismática do ministro de louvor foi cooptada pelo
corpo clerical da igreja, mas o agente musical, em todas as suas formas de atuação no culto,
ainda não conseguiu ter reconhecimento institucional. O reconhecimento se faz em um tipo
de agente musical: o dirigente do louvor. Isso revela que o momento de louvor e o novo tipo
de liderança exercida foram estrategicamente colocados debaixo do poder institucional.
Embora, os instrumentistas e demais cantores tenham sido negligenciados nessa ação
institucional, a presença do pastor liderando o momento de louvor, acabou por finalizar com
a tensão gerada pela marginalização de um tipo de produção musical não oficial. Esta agora
se tornou oficialmente produção cúltica.
Com essa estratégia, evita-se o conflito entre os tipos de dominação religiosa e elimina-se a
concorrência com o sacerdote, porque tanto a música quanto a prédica são dirigidas por ele.
Por tal motivo, mesmo a exorbitante diferença entre a preferência do louvor de 70% em
relação à predica em 15% não representa uma ameaça ao sacerdócio. Sem dúvida, a
dominação tradicional vinculada à prédica está enfraquecida, mas o carisma é usado
institucionalmente.
Com isso, podemos verificar a dinâmica interna do culto da IPB que é reveladora, porque
mostra a inevitável discussão do poder religioso dentro do campo e a relação da religião
com outros campos sociais. Demandas leigas e conflitos internos são o que confere
complexidade à situação cúltica atual da IPB. A sua produção musical, notadamente
transformada em vários aspectos, é a grande responsável pelo estabelecimento de um novo
modelo cúltico, contrário ao antigo princípio pedagógico e racional. A influência do
mercado de música gospel, principalmente no gênero louvor e adoração, é comprovada pela
322
incorporação do modelo padronizado. A prédica diminui seu poder de ser o centro do culto
que proporciona a experiência religiosa. Cada vez mais, um novo público de jovens vai à
igreja para louvar e não para aprender. Essa mudança de comportamento em relação ao culto
se revela proporcional à medida da incorporação das novas tendências musicais gospel. A
título de comparação trazemos os resultados dos três tipos de culto analisados:
Comparativo de Preferências
80
70
60
Percentuais
50 Culto Tradicional
40 Culto Entusiasta
30 Culto Contemporâneo
20
10
0
Louvor Prédica Outros
323
70
60
50
Percentuais
Culto Tradicional
40
Culto Entusiasta
30
Culto Contemporâneo
20
10
0
cal
or
up
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pe
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pir
Es
CONCLUSÃO
Não há como negar que a proposta calvinista, de tamanha rigidez e austeridade, não
estivesse atrelada às condições do protestantismo europeu de seu tempo inserido no contexto
religioso e político da Reforma. Assim, as propostas cúlticas relacionavam-se com as novas
demandas racionais da modernidade e estavam ajustadas às condições do campo religioso do
protestantismo, que necessitava veicular e propagar seus novos bens religiosos, numa árdua
campanha contra os exageros místicos do catolicismo. Nesse panorama, a proposta de culto
e da produção musical cúltica de Calvino cumpria os propósitos da nova religião. O culto
revelou, portanto, a confluência do humanismo racional de Calvino, típico da época, como a
ostensiva doutrinação do protestantismo contra o misticismo e o ritualismo católico. O
modelo de culto pedagógico e racional foi o resultado obtido. Neste modelo, a música não
poderia desempenhar outro papel a não ser o de doutrinação e racionalização.
Ora, da mesma forma, não podemos afastar o mercado de música gospel das novas
condições sociais, culturais e comunicacionais da contemporaneidade. Estas, causadas por
uma série de fatores – dentre eles, o alto desenvolvimento tecnológico, a comunicação
massiva e o hibridismo cultural – proporcionam novos comportamentos aos sujeitos. Na
mesma lógica, a religião situa-se em um novo contexto de mercado e, conseqüentemente, de
325
Assim, é possível que duas produções musicais tão distintas possam relacionar-se? Ora, não
só se relacionam, mas também interagem uma com a outra. Isso porque o presbiterianismo
brasileiro e o mercado de mús ica gospel estão socialmente localizados no mesmo contexto.
Ou seja, se houve um período que justificou um tipo de produção musicalcúltica formatada
em determinados princípios, esta produção, seja ela como for, passou a ser confrontada e
adaptada às novas condições sociais, culturais e religiosas. Em outras palavras, a produção
musical presbiteriana não conseguiu isolar-se das outras produções religiosas nem musicais.
Em tempos de globalização, transnacionalização, desterritorialização e hibridismo, mais
difícil se torna a possibilidade de isolamento.
Acontece, porém, que o presbiterianismo não deseja a interação com as novas produções
musicais do mercado gospel, posição esta calcada exatamente na oposição de princípios
entre as produções musicais em questão. Assim, o discurso da “identidade presbiteriana” é o
que legitima o afastamento da IPB das novas produções musicais gospel. Ou seja, o
presbiterianismo procura manter intacta a produção musical pedagógica e racional proposta
pelo calvinismo.
Por essa razão, o crescimento do mercado de música gospel, nas mais variadas concepções,
atingiu, de forma veemente, o presbiterianismo brasileiro. Mas, se o mercado não criou a
demanda, com certeza acentuou a insatisfação com a denominação. Tal intensificação de
descontentamento revela-se de forma mais imediata no culto devido ao desenvolvimento de
um mercado específico de música cúltica: o mercado de adoração.
Ora, nos shows freqüentados pelos jovens presbiterianos, vários tipos de ritmos e
performances são possíveis. As grandes reuniões em espaço público ora realizadas por
igrejas específicas, ora por bandas de louvor autônomas, mobilizam milhares de jovens que
se expressam livremente com danças, choro, palmas, glossolalia e revelações em meio ao
327
A força que assume a cobrança pela mudança litúrgico- musical está relacionada à força do
mercado e à sua capacidade de infiltração na vida cotidiana dos jovens, uma vez que o
público jovem não só freqüenta tais espaços livremente, mas também, por meio do mercado
de música gospel, leva para casa sua banda ou cantor favorito. Leva também seu “louvor
favorito”! A possibilidade de escolha é riquíssima, e o consumo de CDs dos grupos de
Ministérios de Adoração é enorme. Em suma, os bens oferecidos no mercado fomentam
continuadamente a insatisfação religiosa na área musical cúltica.
Que o mercado é uma nova realidade na vida religiosa do protestantismo não se pode negar.
Essa realidade existe independentemente da vontade desse campo, tão ávid o em
desqualificar o fenômeno. Não há mais como pensar a instituição sem levar em conta as
forças que operam no mercado. Por mais que o presbiterianismo, assim como as instituições
religiosas do protestantismo tradicional, resista a esta situação, e por mais que as igrejas
optem por condições limites em relação ao mercado – como ignorar sua existência ou criar o
discurso da contaminação –, ele se faz presente na realidade de boa parte dos fiéis que se
sentam, todo domingo, nos bancos de seus templos.
Todavia, ao nos referirmos à força do mercado, voltamos ao consumo religioso que lhe
confere tal força! Ora, qual tem sido o maior bem musical consumido pelo público
presbiteriano? Não é, porventura, exatamente a produção musical cúltica de louvor e
adoração, cujas características são o alto emocionalismo e a experiência carismática? Não é
esta produção o modelo oposto do presbiterianismo? Portanto, estamos diante de um
fenômeno que, embora se intensifique pelas possibilidades e ofertas do mercado de música
gospel, encontra a origem na própria denominação, especificamente na área cúltica. O que
existe é um alto grau de insatisfação com a função pedagógica e racional do culto.
Esta situação leva-nos a identificar o novo inimigo da IPB: não mais a glossolalia do
pentecostalismo clássico ou as curas milagrosas do Movimento de Tendas 101 , mas a
“adoração gospel” do mercado fonográfico evangélico. Diante disso, em nome da tradição e
a fim de legitimá- la, o poder institucional tenta inibir as forças deste mercado totalmente
nocivas às tradições históricas da denominação. Dá-se o caminho normal do exercício de
poder, que já se é esperado por denominações do protestantismo histórico: com a ameaça
externa, constrói-se uma unidade ideológica fortemente baseada na racionalidade típica
dessa religião. Assim, o discurso institucional ergue-se no sentido de identificar o mercado
de música gospel como “a lienante”, “massivo ”, “passageiro”, “desviante da sã doutrina ” e,
portanto, ilegítimo.
Acontece, porém, que se o discurso institucional é tão claro e enfático, a situação se revela
bem diferente na prática. A Igreja Presbiteriana do Brasil não tem unidade de pensamento
sobre o mercado de música gospel. De certo modo, a crítica ao tratamento mercadológico
dos bens religiosos encontra eco de unidade na denominação. Logo, o bem religioso
oferecido pelo mercado divide as opiniões. Muitas igrejas locais e presbitérios têm- se valido
dessas novas produções de “adoração gospel”, cujo modelo foi padronizado pelo mercado.
Tais posturas podem ser explicadas pela necessidade de manter a denominação na
concorrência religiosa. Trata-se de uma dinâmica própria ao campo religioso no novo
contexto no qual está inserido. Entretanto, o fato que causa espanto não é a incorporação ou
101
O Movimento de Tendas, também conhecido como “Cruzada Nacional de Evangelização” foi trazido ao
Brasil no final dos anos 40 por Harold Willians e Raymond Boatrigth, missionários da International Church of
the Foursquare Gospel (Igreja do Evangelho Quadrangular). O movimento levava uma mensagem de
avivamento espiritual e de cura divina. No início as reuniões eram realizadas em igrejas protestantes históricas,
em São Paulo e Paraná. Contudo atraindo multidões e o interesse da imprensa, essas campanhas de cura divina
começaram a gerar conflitos internos nas igrejas históricas, que reagiram fechando as portas ao movimento.
Diante disso, os pregadores da cura divina passaram a realizar as suas reuniões em tendas de lona; por esse
motivo foram apelidados de “tendeiros” e o movimento ficou conhecido como “movimento de tendas de lona”
ou “movimento das tendas” (Dolghie, 2002, p.17)
329
A antiga unidade cúltica que se via não só no presbiterianismo, mas também em todo o
protestantismo de missão, transformou-se em total heterogeneidade dentro da denominação.
Esse fato não aconteceu apenas em âmbitos maiores, como em presbitérios e sínodos, mas
em igrejas próximas de um mesmo presbitério. É impossível identificar a denominação IPB
pelo culto. Não é o caso, aqui, de verificar pequenas distinções como bater palmas ou não no
louvor, ter atividade coral, usar o hinário, priorizar determinados repertórios musicais ou ter
mais ou menos momentos de leitura bíblica e oração. A questão é que alguns modelos são
totalmente antagônicos, conferindo à denominação um aspecto de total instabilidade.
Esse cenário não pode ser compreendido apenas pelas condições atuais de mercado,
pluralismo religioso e demandas mais carismáticas. Ele foi formado graças ao
posicionamento interno da instituição de sempre dialogar com as condições externas pelo
viés da negação. Ora, não é a música cúltica de louvor motivo de tensão há décadas? Quais
as estratégias para que essa tensão seja solucionada? Quando a IPB contrapôs sua produção
musical, que entendia como genuinamente calvinista, com as inúmeras produções
marginalizadas dentro da igreja, seu posicionamento institucional ocorreu pelo confronto e
não pela orientação.
Além disso, qual a ingerência das decisões oficiais do Supremo Concílio nas igrejas locais?
Ora, ao conferir a responsabilidade do culto ao pastor, a IPB enfraqueceu seu poder de
decisão institucional e, ao mesmo tempo, possibilitou que conflitos locais entre pastores,
presbíteros e leigos fossem constantemente vivenciados. O próprio tipo de governo local,
não em sua estrutura, mas no grau de representatividade, pode influenciar as decisões sobre
as práticas cúlticas. O pastor pode ser mais centralizador e ter em mãos o controle do
conselho, ou, ao contrário, estar totalmente submetido às suas decisões. No mesmo
raciocínio, o próprio conselho local pode ter um caráter mais ou menos representativo; uma
atitude mais democrática e levar à discussão os desejos e as insatisfações da congregação ou
de um grupo específico, ou, ao contrário, ignorar por completo a situação do leigo. Essas
questões podem mostrar a dificuldade denominacional em tratar questões de insatisfação
330
leiga. Por causa da condição interna, a IPB se vê atualmente em fragmentação cúltica. Sem
dúvida, existem tendências mais fortes, mas a resolução dos impasses parece envolver uma
complexidade muito grande.
Este modelo de adoração, ao ser incorporado parcialmente pela IPB, alterou em muito a
antiga função da música no culto presbiteriano. Ela não é mais auxiliadora da mensagem
nem cumpre papel pedagógico; ao contrário, tornou-se independente da prédica e
proporciona o emocionalismo ao culto. Nisto, atende às novas demandas religiosas ávidas
por experiências emocionais e não racionais. Ora, a centralidade do culto presbiteriano, pela
sua inexorável busca de racionalidade, sempre foi a prédica, porque nesta se encontra o
331
No entanto , mesmo reconhecendo que todo esse novo quadro existe a partir das novas
demandas religiosas, cabe a indagação de por que outros elementos e ações igualmente
carismáticas, estetizadas e emocionais não influenciaram o culto da IPB. Sobre isso,
gostaríamos de destacar ainda alguns pontos que julgamos relevantes. O primeiro diz
respeito à atividade totalmente leiga do agente musical no culto presbiteriano. Como vimos,
o momento de inserção do culto histórico no Brasil acabou por consolidar uma estrutura
litúrgica de bipolaridade, uma vez que este culto não trouxe elementos litúrgicos mais
elaborados e com apropriações simbólicas típicas da construção de rituais. O modelo de
“esvaziamento litúrgico” cristalizou-se no país e se efetivou na prática cúltica do
presbiterianismo; a falta de modelo foi o modelo sacralizado.
Entretanto, mesmo se baseando em dois elementos, a prédica e a música, esta foi entregue
nas mãos de leigos não especializados e que não foram preparados pela igreja para o
exercício da atividade. Embora o quadro não fosse novo em termos de protestantismo,
porque este nunca contou com o músico-clérigo, a situação agravou-se no Brasil uma vez
que o culto fundamentava-se na bipolaridade prédica- música. Como , então, abandonar o
preparo especializado de um elemento com tamanha força cúltica? O que houve foi o
descompasso entre a preparação cada vez mais efetiva dos teólogos/pastores e o quase
abandono do agente musical/leigo. Assim, surgiu grande contradição no culto brasileiro: o
aparato musical que assessorava a prédica foi desenvolvido por um grupo de leigos com
pouca qualificação musical e quase nenhuma qualificação teológica.
332
Outro ponto que justifica a assimilação dos novos modelos de louvor e adoração mais
carismáticos no culto da IPB vincula -se a um fator histórico: a presença dos hinos
avivalistas que se constituiu inclusive em sua hinódia oficial. A hinódia do presbiterianismo
sempre esteve ligada a movimentos avivalistas. A presença desta hinódia em um culto que
se autodenomina “puritano-calvinista” é contraditória, o que acabou por acobertar uma
emoção contida que, por demandas exter nas, foi revelada e tomou corpo. Assim, a presença
desse tipo de hinódia avivalista e tipicamente arminiana, sobrecarregada de jargões
emocionais, intimistas e individualistas, pode ter propiciado que a emoção surgisse
exatamente na prática do canto congregacional. Os novos momentos carismáticos de louvor
e adoração parecem finalmente ter feito justiça ao tipo de modelo musical avivalista que se
cristalizou no culto presbiteriano. A questão é que a emoção desta produção, que havia sido
contida pelo modelo racional, ganhou força externa e explodiu, ganha ndo legitimação dos
presbiterianos. Dessa forma, como proibir os jovens de participarem de shows de adoração e
continuarem cantando o avivalismo de Fanny Crosby?
Isto posto, tendo-se constatado uma mudança sensível na função da música no culto da IPB,
o culto caminha para a mudança de seu princípio básico. Junto à possibilidade tão
impensada pelo presbiterianismo, a antiga tensão na área hinódica desta denominação enfim
pode ser encerrada. Isso já está acontecendo parcialmente, porque, em igrejas que adotaram
o modelo de adoração, essa produção musical cúltica vem sendo exercida por um novo
grupo de pastores designados para tal função: o pastor do louvor.
Com isso, as novas demandas são adaptadas pela denominação e devolvidas ao leigo por
intermédio do representante legítimo da instituição, o sacerdote. Embora o pastor de louvor
ainda necessite do agente musical leigo para a execução da música, a proposta é inovadora,
porque nunca foi experimentada historicamente pela denominação e propõe considerar as
demandas culturais e sociais da produção da música cúltica. Com a atividade pastoral
dividida entre a prédica e a música, a IPB assume o enfraquecimento do sermão e, ao
mesmo tempo, volta a controlar a ação central do culto.
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2. REVISTAS
3- ENTREVISTAS
ARAÚJO, Mauro
CARMINATE, Wagner
FAUSTINI, João Wilson
MARASCHIN, Jaci
PONTES, Marcos
ROMERA, Michelle
353
ANEXOS
1-Questionário jovens
Sexo ( ) Feminino ( ) masculino
Idade ( ) 14 a 18 ( ) 19 a 25 ( )26 a 30
Escolaridade
( ) não estudou
Ocupação
TV ( ) sim ( )não
Igreja:_______________________________
( ) sim. Qual?__________________________________________
( ) sim. Qual?___________________________________________
( ) não
( ) sim
( ) não
( ) sim
( ) louvor e adoração
( ) música evangelística
( ) rock
( ) outros.________________________________________________
2._________________________________________________________
( ) sim.
355
2.____________________________________________
3.____________________________________________
4.____________________________________________
( ) não
( ) sim
( ) eventos de adoração
Caso tenha participado de eventos musicais gospel, que coisas foram mais marcantes
para você? (você pode indicar mais de uma opção)
( ) a multidão reunida
( ) a performance do grupo ( o show, as coreografias, o visual , etc)
( ) a diversão proporcionada
( ) a liberdade de expressão
( ) a experiência religiosa/espiritual
( ) a adoração em conjunto
( ) não.
356
( ) solistas
( ) outros. _____________________________
Caso você goste do louvor da sua Igreja, o que mais lhe atrai nele? (você pode escolher
mais de uma opção)
( ) o estilo musical
( ) a “ministração” do louvor
( ) outros
( ) não
( ) sim
Você considera que o dirigente de louvor ou líder de louvor:(pode escolher mais de uma
opção)