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Conflito de Visões - Origens Ideológicas Das Lutas Políticas - Thomas Sowell

Conflito de Visões - Origens Ideológicas das Lutas Políticas - Thomas Sowell

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Thomas Sowell cOIO JE VISUES Origens Ideoldgicas das Lutas Politicas [at Prefadcio a Edi¢ao de 2007 Esta é uma edigdo revisada da minha obra favorita dentre as de minha autoria, principalmente por abordar uma questao funda- mental que raramente desperta a atengdo que merece: Quais pres- supostos fundamentais existem por tras das tao variadas visées ideolégicas de mundo em disputa nos tempos modernos? O pro- pésito aqui nao sera determinar qual dessas visdes é mais valida. Trata-se, antes, de revelar a légica inerente por tras de cada um desses conjuntos de visdes e as ramificagGes de seus pressupostos que levam nao somente a varias conclusdes sobre questées especi- ficas, como também a significados completamente diferentes para palavras tao fundamentais quanto “justiga”, “igualdade” e “po- der”. Embora este seja, por um lado, um livro sobre a histéria das conflito de visées é tao acirradamente disputado hoje quanto foi leias, também trata muito de nosso préprio tempo, pois esse nos dois ultimos séculos. Dois outros livros meus buscam examinar a validade de visées diferentes — The Vision of the Anointed e The Quest for Cosmic Jus- tice -, porém este nao é 0 objetivo de Conflito de Visdes. Esses trés livros juntos podem ser vistos como uma trilogia informal, embora cada um tenha sido escrito como uma unidade, Nao posso dizer, contudo, que preparei sozinho esta edigdo revisada, pois minhas duas assistentes, Na Liu e Elizabeth Costa, deram contribuigées Conflito de Visées | Prefacio a Edigao de 2007 importantes no sentido de achar erros ¢ inconsisténcias ¢ preparar o trabalho computadorizado para a publicagao. Thomas Sowell Institute Hoover Universidade Stanford 12) 13 Prefacio a Edigao de 1987 Um conflito de vis6es é diferente de um conflito entre interesses opostos, Quando ha interesses em jogo, as partes diretamente envol- vidas costumam entender claramente qual é a questéo e 0 que cada uma esta posta a ganhar ou perder. A maioria das pessoas pode nao compreender — e, de fato, pode ser confuso exatamente por causa da propaganda das partes adversarias -, mas essa confusdo € conse- quéncia direta da clareza das proprias partes interessadas. Entretanto, quando ha um conflito de vis6es, aqueles que so mais afetados por uma visio em particular podem ser os que tém menos consciéncia de seus pressupostos fundamentais — ou os menos interessados em parar para examinar essas questes tedricas quando ha questdes urgentes de ordem “prdtica” a serem confrentadas, cruzadas a serem empreen- didas, ou valores a serem defendidos a qualquer prego. Porém vis6es nao sdo simples impulsos emocionais. Pelo contrario, elas tém uma consisténcia légica surpreendente, mesmo que aqueles dedicados a essas visGes raramente tenham estudado essa légica. As vi- ses tampouco sao limitadas a fanaticos e idedlogos. Todos nés temos visGes. Elas so as moldadoras silenciosas de nossos pensamentos. As visdes podem ser morais, politicas, econdmicas, religiosas ou sociais. Nestes ou em outros campos, nés nos sacrificamos por nossas visdes ¢, As vezes, quando necessario, preferimos enfrentar a derrota a trai-las, Quando visées entram em conflito de forma Canflito de Visoes | Prefacio a Edicdo de 1987 irreconciliavel, sociedades inteiras podem se dilacerar. Conflitos de interesses predominam por periedos curtos, porém conflitos de vi- ses dominam a histéria. Fazemos praticamente qualquer coisa por nossas visGes, exceto pensar a respeito delas. O propésito deste livro é pensar a respeito dessas visdes. Thomas Sowell Instituto Hoover Universidade Stanford PARTE! Padrées 117 Capitulo 1 | O Papel das Visées Uma coisa curiosa sobre opinides politicas é a frequéncia com que as mesmas pessoas se posicionam em lados opostos acerca de diferentes questdes. As proprias questes podem nao ter uma ligagao intrinseca entre si. Podem cobrir questées que vao de gastos milita- res a leis sobre drogas, politica monetaria e educagao. Contudo, os mesmos rostos conhecidos podem ser vistos entrealhando-se de lados opostos da trincheira politica, repetidamente. Isso ocorre com muita frequéncia para ser uma mera coincidéncia e, de forma muito descon- trolada, para ser uma conspiragdo, Um olhar mais atento aos argu- mentos utilizados pelos dois lados mostra que, em geral, essas pessoas esto raciocinando a partir de premissas fundamentalmente diversas. Sao essas diferentes premissas — em geral, implicitas - que dao coerén- cia A constante oposi¢ao de individuos e grupos sobre varias questées sem relagdo umas com as outras. Eles tém visdes distintas sobre como o mundo funciona. Seria bom poder dizer que poderiamos prescindir completamente de visdes e lidar somente com a realidade. Porém essa pode ser a vi- sao mais ut6pica entre todas. A realidade é muito complexa para ser compreendida por qualquer mente. VisGes sio como mapas que nos guiam através de um emaranhado de complexidades desconcertantes. A exemplo dos mapas, as visGes devem deixar de lado muitos fatores concretos para podermos nos concentrar em alguns caminhos-chave Conflito de Visées | Parte |- © Papel das Visdes Para atingirmos nossos objetivos. As visGes sio indispensdveis, mas Petigosas, precisamente porque nés as confundimos com a prépria realidade. © que tem sido deliberadamente negligenciado pode de fato se revelar insignificante quanto ao efeito que causa nos resulta- dos. Isso deve ser testado com provas. co”! Uma visao foi descrita como um “ato cogni E 0 que percebemos ou sentimos antes de construirmos qualquer © pré-anal raciocinio sistematico que poderia ser chamado de teoria, e muito menos antes de deduzirmos quaisquer consequéncias especificas como hipéteses que devem ser testadas mediante provas. Uma vi- sao é nossa percepgao de como o mundo funciona. Por exemplo, a percep¢ao do homem primitive do porqué de as folhas se mo- verem pode ter sido que algum espfrito as movia, e sua percepgdo da razao de as marés subirem ou os vulcées entrarem em erupgao pode ter percorrido caminhos semelhantes. Newton tinha uma vi- sGo muito diferente de como o mundo funcionava, e Einstein tinha outra. No que tange aos fendmenos sociais, Rousseau tinha uma visio muito diferente da de Edmund Burke a respeito da causali- dade humana. Vises so a base sobre a qual as teorias se constroem, A estru- tura final depende nao sé da base, mas também do cuidado e da coe- réncia com que a estrutura da teoria é construida e como est bem sustentada por fatos slidos. As visdes s30 muito subjetivas, contudo, teorias bem construidas tm implicagGes claras, e fatos podem testar . O mundo aprendeu em Hiroshima que e medir sua validade objetiv: a visao da fisica de Einstein nao era sd a visdo de Einstein. A logica é um ingrediente essencial no processo de transforma- sao de uma visdo em teoria, da mesma forma que uma prova empi- rica é essencial para determinar a validade de uma teoria especifica. * Joseph A. Schumpeter, History of Economic Analysis. Nova York, Oxford University Press, 1954, p. 41. 18] 19 Entretanto, é a visdo inicial que é fundamental para vislumbrar como © mundo funciona. Segundo Pareto: A Logica util para a prova, mas quase nunca para fazer descobertas Um homem recebe certas impressdes; influenciado por estas, ele afirma = sem ser capaz de dizer como ou por qué, e se tentar proceder dessa forma, engana a si mesmo — uma proposicdo, que pode ser verificada experimentalmente..2 Todas as visGes sio até certo ponto simplistas — embora se tra- te de um termo normalmente aplicado as visées de outras pessoas, nao as nossas préprias. O caleidoscopio permanentemente mutante da crua rea lade derrotaria a mente humana por sua complexidade, exceto no que diz respeito 4 capacidade da mente de abstrair, pegar partes ¢ pensar nelas como um todo. Em nenhum outro lugar isso é mais necessario do que nas visdes sociais ¢ na teoria social, que lidam com interagGes complexas e, frequentemente, subconscientes de mi- Ihdes de seres humanos. Independentemente da visio em que nos baseamos, ela nunca justificara “cada detalhe”. As visdes sociais, em particular, devem deixar muitos fendmenos importantes sem explicagao, ou explicados somente para um fim especifico, ou por meio de hipéteses incon- istentes de mais de uma visao. A visio mais pura pode nao ser a base das teorias mai pressionantes, muito menos das mais va- lidas. Entretanto, as visées mais puras podem ser mais reveladoras em relagdo as premissas tacitas do que as teorias mais complexas. Para entender o papel das visdes, o livro Enquiry Concerning Politi- cal Justice (1793), de William Godwin, pode nos dizer mais do que O Capital, de Marx. De fato, podemos entender mais sobre O Ca- pital depois de vermos como premissas semelhantes funcionam no modelo menos complicado de William Godwin. Da mesma forma, * Vilfredo Pareto, Manual of Political Economy. Nova York, Augustus M. Kelley, 1971, p. 22. Conflito de Visbes | Parte |- © Papel das Visdes a visio da causalidade social subjacente as teorias dos fisiocratas era em sua esséncia muito parecida com a visdo elaborada de uma forma muito complexa e sofisticada por Adam Smith e, mais tarde (e ainda mais complexa ¢ sofisticada), por Milton Friedman. Uma visdo, como o termo é usado aqui, nao é um sonho, uma esperanga, uma profecia ou um imperative moral, embora qualquer uma dessas coisas possa finalmente provir de alguma determinada visio. Aqui, uma visdo tem um sentido de causalidade. FE mais como um palpite ou um “instinto” do que um exercicio de ldgica ou de ve- rificagao factual. Essas coisas chegam mais tarde e¢ alimentam-se do material bruto fornecido pela visdo. Se a causalidade procede como a nossa visio a concebe, entdo, algumas outras consequéncias derivam, ea teoria é a elaboragao do que sao essas consequéncias. A evidéncia € 0 fato que diferencia uma teoria da outra. Os fatos nado “falam por si mesmos”. Eles falam a favor ou contra teorias concorrentes. Fatos orciados da teoria ou da visdo sdo meras curiosidades isoladas. Por ultimo, ha tantas visGes quanto seres humanos — se nao mais-—, e mais de uma visio pode ser compativel com um determinado fato. As teorias podem ser destruidas por fatos, mas nunca se mostrara0 corretas por fatos. Os fatos obrigam-nos a descartar algumas teorias — ou, entao, torturam a nossa mente tentando reconciliar o irreconci- liavel — porém nunca podem ser a aprovagao final de uma verdade ultima sobre uma determinada teoria. O que a verificagio empirica pode fazer é revelar qual das teorias concorrentes em pauta é mais adequada ao que se conhece factualmente. Outra teoria pode surgir amanha e mostrar-se ainda mais coerente com os fatos ou explicar os fatos com menos pressupostos, de modo mais claro e razoavel; ou uma nova teoria pode ser conveniente para um ou outro fendmeno empirico explicado até o momento por uma teoria isolada. ‘Visdes sociais sao importantes de varias formas. O mais evidente é que politicas baseadas em uma determinada visio de mundo tém consequéncias que se espalham pela sociedade e reverberam durante 20/21 anos, ou mesmo por geracées ou séculos. Visdes determinam os temas tanto para 0 pensamento quanto para a agao. Elas preenchem neces- sariamente as grandes lacunas do conhecimento do individuo. Por exemplo, alguém pode agir de determinada forma em alguma area em que tenha grande conhecimento, mas de uma maneira completamen- te diferente em outra situagdo, na qual se baseia em uma visao que nunca testou empiricamente. Um médico pode ser conservador em questées médicas e liberal em relagao a questGes sociais e politicas, ou vice-versa. As batalhas politicas didrias sao um pot-pourri de interesses es- pecificos, emogoes coletivas, conflitos de personalidade, corrupgao e varios outros fatores. Mesmo assim, tendéncias historicas duradouras tém certa coeréncia que reflete em algumas visGes. Em geral, interes- ses especificas prevalecem, uma vez que podem mobilizar apoio do publico em geral a vis6es que podem ser evocadas a favor ou contra uma determinada politica. Do ponto de vista da motivagao pessoal, as ideias podem ser simplesmente as pecas com que os interesses espe- cificos, demagogos e oportunistas de varios tipos fazem o jogo politi- co. Porém, a partir de uma perspectiva mais ampla da historia, essas pessoas e organizagdes podem ser vistas como simples veiculadoras de ideias, muito semelhantes a abelhas que carregam inadvertidamen- te o pdlen, desempenhando um papel vital no grande esquema da na- tureza enquanto buscam um propésito individual muito mais estrito. O papel das ideias racionalmente articuladas pode ter um ef 0 bem modesto em uma determinada eleigdo, um voto legislative ou sobre a aco de um chefe de Estado. Mesmo assim, a atmosfera em que essas decisdes ocorrem pode ser dominada por uma determina- da visio — ou por um conflito particular de visdes. Em que se note a participagao dos intelectuais na histéria, esta nao se deu tanto por conselhos murmurados nos ouvidos dos soberanos politicos, mas bem mais por meio de sua contribuigao com grandes e pode- rosas ideias e equivocos que tanto impulsionam a agao do homem. Conflite de Visdes | Parte |-O Papel das Vistes Os resultados das visées nado dependem de elas serem articuladas ou mesmo do fato de os tomadores de decisiio terem consciéncia delas. Eles geralmente desprezam teorias ¢ visdes, pois esto muito ocupa- dos para verificar o principio fundamental sobre o qual estado agin- do. Entretanto, o objetivo deste livro sera precisamente examinar as vises sociais basilares, cujos conflitos moldaram nossos tempos e, também, podem moldar o futuro. 22 | 23 Capitulo 2 | Visées Restritas e Irrestritas No cere de tede codigo moral ha uma imagem da natureza humana, um mapa do universo e uma versdo da historia. Para a natureza humana (do tipo cancebido), em um universo (do tipo imaginado), depois de uma histéria assim compreendida), aplicam-se as regras do cédigo.. ‘Walter Lippmann Vises sociais diferem em suas concepgdes basicas sobre a natureza humana. Uma criatura de outra galaxia que buscasse informagao so- bre seres humanos a partir da leitura de Enquiry Concerning Political Justice, de William Godwin, publicado em 1793, dificilmente reconhe- ceria o homem, tal como aparece na obra, como o mesmo ser descrito na obra Os Artigos Federalistas, publicada apenas cinco anos antes. O contraste seria somente um pouco menor se essa criatura compa- rasse o homem descrito por Thomas Paine e Edmund Burke, ou, mais recentemente, por John Kenneth Galbraith ¢ Friedrich A. Hayek. Mes- moa pré-histéria especulativa do homem, como uma criatura selvagem na natureza, difere drasticamente do ser livre, inocente, concebido por Jean-Jacques Rousseau, e o participante selvagem da guerra sangrenta de um contra todos, concebido por Thomas Hobbes. As capacidades ¢ limitagdes do homem sao vistas de forma im- plicita em termos radicalmente diferentes por aqueles cujas teorias filos6ficas, politicas ou sociais explicitas se baseiam em diferentes visdes. A natureza moral e mental do homem sao vistas de formas tio distintas que seus respectivos conceitos de conhecimento ¢ de Conflito de Visées | Parte I VisOes Restritas e lnrestritas instituigdes também necessariamente diferem. A prépria causali- dade social é concebida de maneira diversa, tanto no que se refere 4 sua mecanica quanto aos seus resultados. O tempo e seus fend- menos secundarios — tradi¢des, contratos, especulagio econémica, por exemplo - também sio considerados de forma bem diferente em teorias baseadas em visdes diversas. As abstragdes que fazem parte de todas as teorias tendem a ser vistas como mais reais por seguidores de algumas visdes do que por seguidores de visdes opos- tas. Finalmente, aqueles que acreditam em determinadas visdes se veem em um papel moral muito diferente daquele papel em que os seguidores de outras visdes veem a si mesmos. As ramificagées dessas visdes conflitantes estendem-se a decisdes econémicas, judi- ciais, militares, filoséficas e politicas. Em vez de tentar a tarefa impossivel de seguir todas essas ramifi- cagées na miriade das visées sociais, a discussao aqui classificard essas visées em duas grandes categorias — a visio restrita e a visio irrestrita. ‘Trata-se de abstragGes de conveniéncia, reconhecendo que ha grada- g6es nas duas visdes, que um continuum foi dicotomizado e que no mundo real frequentemente ha elementos de cada uma inseridos na outra de maneira inconsistente, bem como inimeras combinagoes ¢ tracas. Com todas essas ressalvas, agora é possivel pensarmos em um esbogo das duas visdes ¢ sobre as especificidades da natureza humana, a natureza do conhecimento ¢ a natureza de processos sociais, tais como sao vistas na visGes restrita e irrestrita. A NATUREZA HUMANA A VISAO RESTRITA Adam Smith concebeu uma imagem do homem que pode ajudar a tornar concreta a natureza de uma visao restrita. Ao escrever como 24) 25 fildsofo em 1759, quase vinte anos antes de se tornar famoso como eco- nomista, Smith escreveu em seu livro Teoria dos Sentimentos Morais: Suponhamos que o grande império da China, com suas mirfades de ha- bitantes, fosse subitamente engolido por um terremoto € consideremos como um homem benevolente na Europa, que nao tivesse nenhum tipo de conexio com aquela parte do mundo, reagiria ao ter conhecimen- to dessa horrivel calamidade. Creio que primeiramente ele expressa- ria com muita forga seu pesat pela desgraca desse povo infeliz e teria muitas reflexdes melancélicas sobre a precariedade da vida humana ¢.a vaidade de todos os trabalhos do homem, que poderia assim ser aniquilado repentinamente. Ele também, possivelmente, se fosse um homem dado a reflexdo, desenvolveria varios raciocinios em relagdo aos efeitos que esse desastre poderia produzir no comércio da Europa, no mercado ¢ nos negécios do mundo em geral. E quando toda essa refinada filosofia acabasse, quando todos esses sentimentos humanos tivessem se expressado completamente, ele buscaria seus negécios ow prazeres, descansaria ou se divertiria, com a mesma facilidade € tranquilidade, como se aquele desastre nao tivesse acontecido. O mais frivalo desastre que pudesse acontecer provocaria um distirbio real maior. Se tivesse que perder seu dedinho amanha, nao dormiria esta noite; porém, se nunca visse seus dedos, roncaria com a mais profunda seguranga sobre a ruina de cem milhdes desses irmaos..." As limitagées morais do homem em geral e seu egocentrismo em particular ndo foram lamentadas por Smith nem vistas como coisas a serem modificadas. Foram tratadas como fatos inerentes 4 vida, em sua visio, como a restrigao basica. O desafio moral e social fundamental consistia em se fazer o melhor possfvel dentro dessa limitagdo, em vez de gastar energias em uma tentativa de se mudar a natureza humana — uma tentativa que Smith tratou tanto como va quanto sem sentido. Por exemplo, se fosse de alguma mancira possi- vel fazer com que os europeus se sentissem tocados pela dor daqueles ' Adam Smith, The Theory of Moral Sentiments. Indianapolis, Liberty Clas- sies, 1976, p. 233-34. Conflito de Vis6es | Parte I - Vises Restritas Iestritas que sofreram na China, esse estado de espirito seria “perfeitamente sem sentido”, segundo Smith, a nao ser para que se sentissem “mal” ,” sem que isso beneficiasse os chineses de qualquer forma. Smith disse: “Parece que a natureza, quando nos colocou o fardo de nossos in- forttinios, pensou que eram suficientes, e, por isso, nao nos mandou suportar © das outras pessoas, ou seja, mais do que era necessdrio para nos instigar a alivid-los”.? Em vez de considerar a natureza do homem como algo que po- deria ou deveria ser modificado, Smith tentou averiguar como os desejados beneficios morais e sociais poderiam ser produzidos da forma mais eficaz dentro daquele limite. Ele abordou a questao da produgao e distribuicdo do comportamento moral de maneira muito semelhante a sua forma de tratar, mais tarde, a produgao e distribui- Gao de bens materiais. Embora fosse um professor de filosofia moral, seus processos intelectuais ja eram os de um economista. Entretanto, a visdo restrita nao se limita de forma alguma a economistas. Na po- litica, um contemporaneo de Smith, Edmund Burke, foi talvez quem melhor resumiu a visdo restrita a partir de uma perspectiva politi- ca quando falou de “uma doenga radical em todas as conspiracdes humanas”,‘ uma doenga inerente 4 natureza fundamental das coisas. Vises semelhantes foram expressas por Alexander Hamilton em Os Artigos Federalistas: £ proprio de todas as instituigdes humanas, mesmo aquelas mais per- feitas, ter defeitos assim como qualidades - tanto propensées ruins quanto boas. Isto decorre da imperfeigao do Instituidor, o Home. a 2 Ibidem, p. 238. + Ibidem, p. 108. + Edmund Burke, The Correspondence of Edmund Burke. Chicago, U sity of Chicago Press, 1967, ¥. VI, p. 48. # Alexander Hamilton, Selected Writings and Speeches of Alexander Hamit- tom. Ed. Morton J. Frisch, Washington, D.C., American Enterprise Institute, 1985, p. 390. 26|27 Voltando ao exemplo de Adam Smith, uma sociedade nao pode funcionar humanamente, se é que é possivel, quando cada individue age como se scu dedinho fosse mais importante que as vidas de cem milhdes de outros seres humanos. No entanto, a palavra fundamental aqui é agir. Nao pedemos “preferir a nds mesmos sobre os outres de forma tio descarada e cega” quando agimos, disse Adam Smi th,® mesmo quando esse comportamento se mostra como a tendéncia na- tural de nossos sentimentos. Na pratica, em muitas ocasides, as pes- soas “sacrificam seus proprios interesses em beneficio dos interesses maiores dos demais”, de acordo com ele,’ mas isso decorre de fatores intervenientes, como devogao a principios morais, conceitos de honra e nobreza, em vez de amar 0 outro como a si mesmo." Mediante esses instrumentos artificiais, seria possivel convencer o homem a fazer por sua propria autoimagem ou por necessidades internas 0 que ele nao faria para o bem do seu proximo. Resumindo, esses conceitos foram vistos por Smith como 0 caminho mais eficaz de realizar o trabalho pelo menor custo psiquico. Apesar de ser uma questo moral, a resposta de Smith foi essencialmente econémica: um sistema de incentivos morais, um conjunto de trocas em vez de uma solu¢do real para mudar o homem. Uma das marcas da visao restrita é que cla lida mais com trocas do que com solugées. Em seu tltimo trabalho classico, A Riqueza das Nagdes, Smith foi além. Em sua grande maioria, os beneficios econ6micos para a sociedade nao foram buscados intencionalmente pelos indivi- duos, mas surgiram sistematicamente de interagées do mercado, sob pressdes da concorréncia ¢ impulsionados pela motivagao do ganho individual.’ Sentimentos morais eram necessdrios somente © Adam Smith, op. cit., p. 235. ? Ibidem, p. 234, # Ihidem, p. 135. ° Adam Smith, An Ingitiry into the Nature and Causes of the Wealth of Na- lova York, Modern Library, 1937, p. 423. tions. Conflito de Visdes | Parte I - Visdes Restritas e Irrestritas para moldar a estrutura geral de leis dentro da qual esse processo sistémico poderia prosseguir. Esse foi ainda outro caminho no qual o homem, com todas as limitagées concebidas por Smith, poderia ser induzido a produzir beneficios para outros, por razées, no fim das contas, reduziveis ao interesse proprio, Nao era uma teoria atomistica fazendo com que interesses proprios individuais se somassem ao interesse da sociedade. Pelo contrario, o funcionamento da economia ¢ da sociedade exigia que cada individuo fizesse coisas para as outras pessoas; cra simples- mente a motivagdo — moral ou econdmica — por tras desses atos que, no fim das contas, era egocéntrica. Tanto em suas andlises morais quanto econémicas, Smith confiava mais em incentives do que em inclinagdes para fazer com que 0 trabalho fosse feito. A VISAO IRRESTRITA Talvez nenhum outro liyro do século XVIII apresente tamanho contraste em relagao a viséo do homem de Adam Smith quanto En- quiry Concerning Political Justice, de William Godwin, uma obra surpreendente tanto por seu contetido quanto por seu destino. Teve sucesso imediato quando foi publicada na Inglaterra, em 1793; uma década mais tarde, deparou-se com o efeito assustador das hostis reacées britanicas as ideias popularmente associadas a Revolugio Francesa, especialmente depois que a Franca se tornou um inimigo de guerra. Na época, duas décadas de guerra entre os dois paises termi- naram em Waterloo; Godwin e sua obra foram relegados a periferia da vida intelectual - e depois se tornaram mais conhecidos por sua in- fluéncia sobre Shelley. Contudo, nenhuma obra da “Idade da Razao” do século XVII elaborou com tanta clareza ¢ coeréncia e de forma sistemética a visdo irrestrita do homem quanto 0 tratado de Godwin. Se na obra de Adam Smith o comportamento moral e socialmente benéfico poderia ser despertado no homem somente por incentivos, 28 | 29 na obra de William Godwin a compreensao ¢ a inclinagao do homem foram capazes de criat intencionalmente beneficios sociais. Godwin viu a intengao que beneficia outros como fazendo parte “da esséncia da virtude”," e a virtude, por sua vez, como sendo o caminho para a felicidade humana. Beneficios sociais involuntarios foram tratados por ‘Godwin como se mal valesse a pena serem notados.'! Era sua a visdo irrestrita da natureza humana, segundo a qual o homem era capaz de sentir diretamente as necessidades das outras pessoas como mais im- portantes do que as suas préprias ¢ de agir, portanto, de forma impar- cial, mesmo quando estavam presentes seus proprios interesses ou Os. de sua familia." Isso nao significava uma generalizag4o empirica sobre a forma como a maioria das pessoas se comportava no momento. Sig- nificava uma afirmagao da natureza basilar do potencial humano. Reconhecer 0 comportamento egocéntrico do momento nao sig- nificava que este era uma caracteristica permanente da natureza hu- mana, visto que a natureza humana foi concebida na visao irrestrita. Godwin disse: “Homens sdo certamente capazes de preferir um inte- resse inferior que seja seu a um interesse superior que seja de outros; no entanto, essa preferéncia vem de uma combinagao de circunstan- cias e nao é a lei necessaria e invaridvel de nossa natureza”.'’ Godwin referiu-se a “homens como podem ser daqui em diante”," ao contra- rio da opinido de Burke: “Nao podemos mudar a natureza das coisas € dos homens, mas devemos agir sobre eles da melhor forma possivel”.'* Incentivos socialmente fabricados eram subestimados por Godwin como expedientes desnecessdrios, sendo que era possivel “ William Godwin, Enquiry Concerning Political Justice. Toronto, University of Toronto Press, 1969, v. I, p. 156. " Ibidem, p. 433, 435. " Tbidem, p. 421-38, “ Thidem, p, 434-35 ¥ Ibidem, v. II, p. 122. \ Edmund Burke, op. ¥. VL, p. 392. Conflito de Visées | Parte I Visdes Restritas e Irrestritas alcangar diretamente 0 que os incentives de Smith podiam alcan- gat indiretamente: “Se mil homens devem ser beneficiados, devo lembrar-me de que sou somente um atomo na comparagao € devo raciocinar de acordo com isso”.!® Ao contrario de Smith, que consi- derava o egoismo humano uma dadiva, Godwin via-o como fomen- tado pelo préprio sistema de recompensas usado para lidar com esse egoismo. A verdad a solugao em relagao 4 qual esforgos deveriam ser empreendidos era fazer com que as pessoas agissem corretamen- te porque era certo, néo por causa de recompensas psiquicas ou econémicas, ou seja, nao porque alguém “acrescentou a isso uma grande dose de interesse préprio”.'” Por ter uma visdo irrestrita do potencial moral, ainda inexplo- rado, dos seres humanos, Godwin nao se preocupava como Smith em saber qual é 0 incentivo mais imediatamente eficaz na situagao do momento. O yerdadeiro objetivo era o desenvolvimento a longo prazo de um sentido superior de dever social. Uma vez que incentivos imediatamente eficazes retardavam o desenvolvimento a longo prazo, seus beneficios eram efémeros ou ilusdrios. O “desejo da recompen- sa” e o “medo do castigo” eram, de acordo com Godwin, “errados em si mesmos” e “hostis para o desenvolvimento da mente”."* Nesse sentido, Godwin era apoiado por outro exemplar contemporaneo da visdo irrestrita,o Marqués de Condorcet, que rejeitava qualquer ideia de “transformar preconceitos e vicios em boas causas em vez. de ten- tar dissipa-los ou reprimi-los”. Condorcet identificou esses “erros” na visio da natureza humana de seus adversdrios — em sua confusao en- tre “o homem natural” e seu potencial e o homem real, “ orrompido por preconceitos, paixdes artificiais e costumes sociais”.” ag a 1 Thidem, v. Hl, p. 308. 1 Thidem, vel, p. 172. ** Tbidem, p. 171. Antoine-Nicolas de Condorcet, Sketch for a Historical Picture of the Prog- ress of the Human Mind. Westport, Gonn., Hyperon Press, 1979, p. 52-53. 30/31 CONTRAPARTIDAS VERSUS SOLUGOES Prudéncia - a ponderacao cuidadosa das compensagdes - € vis- ta em termos muito diferentes dentro da visao restrita e irrestrita, Na visdo restrita, em que tudo o que esperamos s4o as contrapartidas, a prudéncia é uma das tarefas mais elevadas. Edmund Burke chamava-a de “a primeira de todas as virtudes”.” “Nada é bom”, afirmou Burke, “se nao for em sua devida proporcao e referéncia”*' —resumindo, como uma contrapartida. Ao contrario, na visdo irrestrita, em que o aper- feigoamento moral nao tem limite fixo, a prudéncia tem uma ordem de importancia menor. Godwin tinha pouca utilidade para “aqueles moralistas” — é bem provavel que se referisse a Smith - “que s6 pensam. em estimular homens para boas agées por meio de consideragdes de prudéncia fria ¢ interesses pessoais mercendrios”, em vez de estimular o “sentimento generoso e magnanimo de nossas naturezas” > Na visao irrestrita esta implicita a ideia de que o potencial € mui- to diferente do que é real, e isso significa que existe para aprimorar a natureza humana rumo a seu potencial, ou que tal recurso pode ser desenvolvido ou descoberto, para que o homem faga a coisa certa pela razdo certa, em vez de agir por posteriores recompensas psiquicas ou econémicas. Condorcet expressou uma visio semelhante quan- do declarou que o homem pode, enfim, “realizar por uma inclinagao natural as mesmas tarefas que hoje Ihe custam esforgo e sacrificio” 2? Portanto, uma solugdo pode substituir meras contrapartidas. 2” Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France. Londres, J. M. Dent & Sons, 1967, p. 60. 4 Idem, The Correspondence of Edmund Burke. v. VI, p.47.*Prudéncia... em todas as coisas uma Virtude, na Politica a primeira das virtudes...” (Ibidem, p. 48). A prudéncia era de fato a virtude “governante” que dd “ordens* a todas as outras virtudes, segundo Burke, ibidem, v. VI, p. 220. 2 William Godwin, op. cit., v.1, p. 438. » Citado em Keith Michael Baker, Condorcet: From Natural Philosophy to Social Mathematics. Chicago, University of Chicago Press, 1975, p. 217. Conflito de Visdes | Parte I Visdes Restritas ¢ Irrestritas Resumindo, o homem é¢ “perfectivel” - 0 que significa que est4 em permanente aperfeigoamento € nao que seja capaz, de fato, de atingir a perfei¢ao absoluta. “Podemos chegar cada vez mais perto,” segundo Godwin,™ embora “nao seja possivel determinar limites” Messe processo.** Basta, para seu propésito, que os homens sejam “eminentemente capazes de justica ¢ virtude”*5 — nado somente os individuos isoladamente, mas “toda a espécie”.”” Esforcos devem ser feitos para “despertar as virtudes adorm Recompensar padrées de comportamento existentes para esse obje- ivo era visto como antiético, Também nesse ponto, Condorcet chegou a conclusées se- melhantes. A “perfectibilidade do homem”, disse, era “de fato irrestrita”.” “© progresso da mente humana” era um tema recor rente na obra de Condorcet.*® Ele admitia que havia “limites para a inteligéncia do homem”,>! bem como que ninguém pensava que © individuo pudesse conhecer “todos os fatos da natureza” ou “atingir os meios definitivos da precisio” em seu exame ou and- lise. Porém se de um lado havia finalmente um limite para a ca- pacidade mental do homem, de acordo com Condorcet, ninguém podia dizer exatamente qual era. Ele achava ultrajante que Locke “ousasse estabelecer um limite para a compreensdo humana”.? Como um devoto da matemiatica, Condorcet considerava a * William Godwin, op. cit. v. L, p. 448. * Ibidem, p. 451. % Tbidem, v. Il, p. 193. ¥ Ibidem, p. 211. * Tbidem, p. 313. * Antoine-Nicolas de Condorcet, op. cits, p. 4. * Ibidem, p. 49, 65, 99, 117, 150, 169, 175, 193. " Ibidem, p. 185. * Ibidem, p. 184. » Ibidem, p. 133. 32] 33 perfectibi impor um limite matematico.™ Ao passo que o, uso da palavra “perfectibilidade” se perdeu idade uma abordagem assintética interminavel para se ao longo dos séculos, o conceito sobreviveu, amplamente intacto, até hoje. A ideia de que “o ser humano é um material extrema- mente plastico”®* ainda é fundamental para muitos pensadores contemporaneos que sdo adeptos da visao irrestrita. O concei- to de “solugdo” continua sendo capital para essa visao. Chega- se a uma solucdo quando nao é mais necessdrio realizar uma contrapartida, mesmo quando o desenvolvimento dessa solugéo envolveu custos que nao existem mais. O objetivo de chegar a uma solugao é de fato o que justifica os sacrificios iniciais ou as condigées transitérias que, de outra forma, seriam considerados ceitaveis. Condoreet, por exemplo, previu a derradeira “re- conciliagao, identificagao dos interesses de cada individuo com ‘os interesses de todos” — e, nesse momento, “o caminho da vir- tude deixa de ser arduo”.** Pode-se agir sob a influéncia de uma inclinagdo socialmente benéfica em vez de simplesmente reagir a incentivos posteriores. MORALIDADE SOCIAL E CAUSALIDADE SOCIAL As acdes humanas foram classificadas por Godwin em benéficas e prejudiciais, e estas, por sua vez, foram classificadas em inten- cionais ¢ nao intencionais. A criagdo intencional de beneficios foi chamada de “virtude”,;” a criagdo nao intencional de prejuizos foi Thidem, p. 200 3 Robert A, Dabl e Charles E. Lindblom, Politics, Economics and Welfare. Chicago, University of Chicago Press, 1967, p. 522. % Antoine-Nicolas de Condorcet, op. cit. p. 192. * William Godwin, op. cit., v. I, p. 156, 433. Contlito de Vises | Parte | ~ Visdes Restritas e Irrestritas chamada de “vicio”,?* a criago no intencional de danos de “ne- gligéncia”, uma subcategoria do vicio.”” Essas definigdes podem ser representadas esquematicamente: INTENCIONAIS Vicio NAO INTENCIONAIS Negligéncia A categoria que esta falrando é 0 beneficio nao intencional. Era precisamente essa categoria que faltava para Godwin — por sua vez, fundamental para toda a visio de Adam Smith, especialmente como foi desenvolvida em sua obra classica A Riqueza das Na- ¢es. Os beneficios econdmicos para a sociedade produzidos pelo capitalista nao faziam, segundo Smith, “parte de sua intengdo”.‘° ‘As intengdes do capitalista eram caracterizadas por Smith como “voracidade mesquinha”,"' os capitalistas, enquanto grupo, eram definidos como pessoas que “raramente se retinem, mesmo por motivo de alegria ou diversdo, ¢ quando isso acontece a conversa acaba em conspiragdo contra o piblico ou em algum tipo de estra- tagema para aumentar precos”.” Porém, apesar de suas represen- tagdes repetidamente negativas dos capitalistas,*? sem rival entre os economistas até Karl Marx, Adam Smith tornou-se o padroeiro do capitalismo do laissez-faire. As intengdes, cruciais na visdo irrestri- ta de Godwin, eram irrelevantes na visao restrita de Smith. O que * Ibidem, p. 152. » Tbidem, + Adam Smith, The Wealth of Nations, op. cit., p. 423. ‘\ Thidem, p. 460. © Ibidem, p. 128. 4 Tbidem, p. 98, 128, 249-250, 429, 460, 537. 34135 importava para Smith eram as caracteristicas sistémicas de uma economia competitiva, a qual ele via como geradora de beneficios sociais a partir de intengdes individuais repugnantes. Enquanto Adam Smith e William Godwin tém sido citados como escritores particularmente claros e diretos ao adotar visées opostas, cada um faz parte de uma vasta tradig¢do que continua sendo poderosa ¢ competindo pela dominagao ainda hoje. Mesmo entre seus contempordneos, Smith e Godwin tinham muitos intelec- tuais compatriotas com visées semelhantes, que se expressavam de forma distinta ¢ se diferenciavam em graus e detalhes, A obra Re- flections on the Revolution in France, de Edmund Burke, de 1790, talvez tenha sido a aplicag3o polémica mais retumbante da visao ir- restrita. A igualmente polémica resposta de Thomas Paine, Direitos do Homem (1791), antecipou, em muitos aspectos, o desenvolvi- mento mais sistematico da visao irrestrita quae Godwin manifestaria dois anos mais tarde. Godwin atribuiu a Rousseau o fato de “ser o primeiro a ensi- har que as imperfcigGes do governo eram a tinica fonte perene dos vicios da humanidade”.* Certamente, Rousseau foi o mais famoso entre aqueles que argumentaram com base em uma natureza hu- mana nao inerentemente restrita a suas limitagdes existentes, mas restrita e corrompida por instituigdes sociais - uma visao tam- bém presente na obra de Condorcet e de Baron d’Holbach, dentre outros de sua época. No século XIX, John Stuart Mill disse que a “miseravel educacao atual” ¢ “os miserdveis arranjos sociais” eram o “tnico verdadeire obstaculo” para que os seres humanos atingissem a felicidade geral.*’ A retérica mais retumbante de Mill refletia a visdo irrestrita, apesar de seu ecletismo em muitas reas William Godwin, op. cit. v. Il, p. 129n. * John Stuart Mill, “Utilitarianism”, Collected Works. Toronto, University of Toronto Press, 1969, v. X, p. 215. Isso serd ilustrado em discusses ulteriores de Mill nos Capitulos 3 e 5 Conflito de Visées | Parte I - Visdes Restritas e Irrestritas ter sido responsavel por incluir condigées desoladoras mais com- pativeis com a visdo restrita.* Muito do liberalismo dos séculos XIX e XX (no sentido norte- americano do terme) esté construfdo sobre essas bases, modificado e varidvel em graus ¢ aplicado a areas tao dispares quanto educacao, guerra e justica criminal. O marxismo, como veremos, era um hibrido especial, aplicando uma visao restrita sobre grande parte do passado € uma visao irrestrita sobre grande parte do futuro. Quando Harold Laski disse que a “insatisfa¢ao” era uma “ex- pressio de um grave mal no corpo politico”,*” referia-se 4 esséncia da visdo irrestrita, na qual nem o homem nem a natureza tém essas res- trigdes inerentes para desapontar as nossas esperancas, de modo que as instituigGes, tradigdes ou regras existentes devem ser responsaveis pela insatisfacio. Ao contrério, quando Malthus atribuiu a miséria humana 4s “leis inerentes 4 natureza do homem e absolutamente in- dependente de tadas as regras humanas”,* ele falava das formas mais extremas da visdo restrita, englobando limitagées arraigadas tanto na natureza quanto no homem. A resposta de Godwin a Malthus, de forma nao surpreendente, “Homens nascem no mundo, em cada pafs onde o cultivo da terra € praticado, com a faculdade natural de cada individuo de produzir mais comida aplicava a visao irrestrita sobre a natureza e sobre o homem: 4 Todavia, 0 estilo de Mill de fazer declaragdes rerumbantes com base em um. conjunto de premissas € colocando ressalvas devastadoras de outro sistema de pensamento também se aplicava a doutrinas econémicas. Ver, por exem- plo, Thomas Sowell, Classical Economics Reconsidered. Princeton, Princeton University Press, 1974, p. 95-97; idem, Say’s Law. Princeton, Princeton Uni- versity Press, 1972, p. 143-54. © Harold J. Laski, “Political Thought in England: Locke to Bentham”, The Burke-Paine Controversy: Texts and Criticisms. Nova York, Harcourt, Brace and World, 1963, p. 144. “Thomas Robert Malthus, Population: The First Essay. Ann Arbor, Univer- sity of Michigan Press, 1959, p. 67. 36 | 37 do que consome, uma faculdade que nao pode ser controlada se nao pelas exclusées prejudiciais da instituicao humana”.’ Tendo em vista as possibilidades irrestritas do homem ¢ da natureza, a pobreza ou outras fontes de insatisfacao somente poderiam ser o resultado de imtengdes maldosas ou de cegueira diante de solugées rapidamente alcangaveis por meio da mudanga das instituigdes existentes. Ao contrario, Burke considerava as queixas sobre presente ¢ os governantes parte das “enfermidades gerais da natureza humana”, e a “verdadeira sagacidade politica” era necessdria para separar essas queixas perenes dos reais indicadores de um certo mal-estar.“* Hobbes foi adiante, argumentando que é justamente quando os homens estao “a vontade” que sao politicamente mais incOmodos.*! As restrigGes da natureza sao por si mesmas importantes em grande parte por meio das restrigdes da natureza humana. A restri- ¢4o natural inerente 4 necessidade de comida, por exemplo, torna- -se um problema social somente até 0 momento em que os seres humanos se multiplicam e fica dificil garant a subsisténcia para uma populagao cada vez maior. Portanto, para Malthus, essa res- trigdo central da natureza torna-se socialmente importante somente por causa de sua visdo extremamente restrita sobre a natureza hu- mana, que ele via agindo inevitavelmente no sentido de povoar a Terra até chegar aquele ponto em que a subsisténcia fosse dificil de se conseguir. Porém Godwin, que imediatamente admitiu a restri- ao natural, tinha uma visdo muito diferente da natureza humana, de que esta nado superpovearia a Terra sem que fosse necessario. ” William Godwin, Of Population. Nova York, Augustus M, Kelley, 1964, p. 554. °° Edmund Burke, “Thoughts on the Cause of the Present Discontent”, Burke’s Politics: Selected Writings aitd Speeches of Edmund Burke on Reform, Revo- lution and War, Eds. R. J. . Hoffman e P. Levack, Neva York, Alfred A. Knopf, 1949, p. 5. ® Thomas Hobbes, Leviathan. Londres, J. M. Dent & Sons, 1970, p. 89. Conflito de Vis6es | Parte I~ Vises Restritas e Inrestritas Por conseguinte, a possibilidade de um aumento demografico geo- métrico nao era uma questaéo para Godwin, pois “homens imagina- rios N40 comem, enquanto homens reais, sim”. " Malthus, por outro lado, via a superpopulagao nado como uma possibilidade abstrata no futuro, mas como uma realidade concreta ja manifesta. De acordo com Malthus, “o momento em que o ntimero de homens ultrapassa seus meios de subsisténcia ja chegou faz tempo... existiu desde os primérdios da raga humana, existe hoje e continuara a existir para sempre”. Seria dificil conceber uma declaracdo mais absoluta da visdo restrita. O ponto em que Malthus e Godwin se dife- renciavam nao era sobre um fato natural - a necessidade de comida - era mais sobre teorias comportamentais baseadas em visdes muito diferentes da natureza humana. A maioria dos seguidores da visio irrestrita reconhecia a morte da mesma forma, por exemplo, como uma restricdo inerente da natureza (embora Godwin e Condorcet nao excluissem uma conquista no final da morte), mas simplesmente nao viam isso como uma restri¢ao ao desenvolvimento social da humani- dade, que continua a existir apesar da morte dos individuos. Os grandes males do mundo - guerra, pobreza e crime, por exemplo — sao vistos de forma completamente diferente pelos adep- tos da visao restrita e da visao irrestrita. Se as opcdes humanas nao sdo inerentemente restritas, entao a presenga desses fendmenos re- pugnantes e desastrosos exige explicacdes — e solugdes. Entretanto, se as limitagdes ¢ paixdes do préprio homem estado no 4mago des- ses fendmenos doloroses, entéo o que requer explicagdo é a forma como foram evitados ¢ minimizados. Enquanto adeptos da visio irrestrita buscam as causas especificas da guerra, da pobreza e do c ¢; adeptos da visdo restrita buscam as causas especificas da paz, da riqueza ou de uma sociedade pacifica. Na visdo irrestrita, nao ha ® William Godwin, Of Population, op.cit., p. 480. © Thomas Robert Malthus, Population: The First Essay, p. 54. 38 | 39 razées insoliveis para os males sociais, portanto, ndo ha razao para que estes nao sejam resolvidos, com suficiente comprometimento moral. Contudo, na visao restrita, independentemente de artificios ‘ou estratégias que reprimam ou melhorem, os proprios males huma- nos terdo custos, alguns na forma de outras doengas sociais criadas por essas instituigGes civilizadoras. Sendo assim, tudo o que é possi- vel € uma contrapartida prudente. As duas grandes revolugées do século XIX — na Franga e na Amé- rica — podem ser vistas como aplicagées dessas visdes distintas, embo- ra com todas as reservas necessarias sempre que a natureza de fatos histéricos complexos ¢ comparada a modelos tedricos reducionis- tas. As premissas fundamentais da Revolugdo Francesa refletiram de forma mais clara a visao irrestrita que prevaleceu entre seus lideres, ‘Os fundamentos intelectuais da Revolugdo Americana eram mais mes- clados, incluindo homens como Thomas Paine e Thomas Jefferson, cujas ideias cram mais semelhantes em varios aspectos as da Franga, mas incluindo também, como influéncia dominante na Constitui¢do, a visdo restrita classica do homem expressa na obra Os Artigos Fe- deralistas. Enquanto Robespierre desejava o fim do derramamento de sangue revolucionario, “quando todos os homens se dedicarem da mesma forma a seu pais ¢ suas leis”, Alexander Hamilton via em. Os Artigos Federalistas a ideia de agées individuais “imparciais por consideragdes nao ligadas ao bem piiblico” como uma perspectiva “a ser desejada mais ardentemente do que a ser esperada seriamente”.** Robespierre buscou uma solugdo; Hamilton, uma contrapartida. 5 Citado em Lewis Coser, Men of Ideas, Nova York, The Free Press, 1970, p. 151 8 Alexander Hamilton et al., The Federalist Papers. Nova York, New Ameri- can Library, 1961, p. 33. Em outro lugar, Hamilton disse: “Podemos pregar até nos cansarmos do tema, a necessidade da imparcialidade nas repabli- cas, sem fazer um s6 prosélito” (Alexander Hamilton, Selected Writings and Speeches of Alexander Hamilton, op. cit., p. 63). Conflito de Visdes | Parte |= VisOes Restritas e Irrestritas A Constituicao dos Estados Unidos, com seu equilibrio de pode- tes elaborado, mostrou claramente a ideia segundo a qual ninguém poderia ser completamente investido de poder. Isso contrastava ra- dicalmente com a Revolugao Francesa, que deu amplos poderes, in- cluindo o poder de vida e morte, aqueles que falavam em nome do “povo™, expressando a “vontade geral” de Rousseau. Mesmo quan- do amargamente decepcionados com certos lideres, que eram entao depostos e executados, adeptos dessa visdo no mudaram substan- cialmente seus sistemas politicos ou crencas, considerando que o mal estava presente nos individuos que haviam traido a revolucao. Os autores da obra Os Artigos Federalistas tinham bastante cons- ciéncia da visio humana escorada na Constituigao dos pesos e con- trapesos que eles defenderam: E possivel que seja uma reflexio sobre a natureza humana a ideia de que esses mecanismos deveriam ser necessérios pata controlar os abu- 03 do governo. Porém o que é © proprio governo senio a maior refle- xo sobre a natureza humana? * Para os federalistas, o mal era inerente ao homem, ¢ as institui- gOes eram simplesmente formas de se tentar lidar com isso. Da mesma maneira, Adam Smith via 0 governo como “um remédio imperfei- to” para a falta de “sabedoria e virtude” do homem.*” Os autores de Os Artigos Federalistas deram uma resposta ao problema: Por que 0 governo foi instituido? Porque as paixdes dos homens nio se adequario aos ditames da razao e da justiga sem restri¢ao.* Para aqueles sem essa visao restrita do homem todo o elabora- do sistema do equilibrio constitucional de poderes era uma com- plicag¢do ¢ um impedimento desnecessdrios. Condorcet condenava % Alexander Hamilton et al., The Federalist Papers, op. cit., p. 322. *” Adam Smith, The Theory of Moral Sentiments, op. cit., p. 308. ** Alexander Hamilton et al., op. cit., p. 110. 40}41 esses “contrapesos” por criarem uma maquina politica “excessi- vamente complicada” “que pesa sobre 0 povo”.* Ele no acha- va necessdrio que a sociedade fosse encurralada entre poderes opostos”*” ou contida pela “inércia” do equilibrio constitucional de poderes.™ A visio restrita € uma visdo trigica da condigao humana. A visio irrestrita é uma visdo moral das intengdes humanas, que sao vistas como finalmente decisivas. A visao irrestrita promove a busca dos mais altos ideais e as melhores solugées. De forma con- trdria, a visdo restrita vé o melhor como o inimigo do bom — uma tentativa va de alcangar o ser inatingivel vista ndo somente como fatil, mas também, com frequéncia, como contraproducente, sendo que os mesmos esforcos poderiam ter produzido uma contraparti- da mais vidvel e benéfica. Adam Smith aplicou esse raciocinio nao somente na economia, mas também na moral e na politica. O refor- mador prudente, segundo Smith, respeitard “os costumes e precon- ccitos confirmados das pessoas” e quando nao puder estabelecer © que € certo, “ele nao deixara de melhorar o que estd errado”. Seu objetivo nao é criar o ideal, mas “estabelecer o melhor que as pessoas podem suportar”.® Contudo, Condorcet, ao expressar a visdo irrestrita, rejeitou toda nocdo que dizia que as leis deveriam “mudar com a temperatura € adaptar-se 4s formas do governo, as praticas que a superstigao consa- grou € mesmo a estupidez adotada por cada povo...”* Dessa forma, ele achava a Revolugdo Francesa superior 4 Revolugao Americana, Keith Michael Baker (cd.), Condorcet: Selected Writings. Indianapolis, ‘The Bobbs-Merrill Company, 1976, p. 80. © Ibidem, p. 87. * Ibidem, p. 157. Adam Smith, op. cit., p. 380. Vises muito semelhantes sao expressas em The Correspondence of Edmund Burke, op. cit.,v. VIl, p. 510. ** Keith Michael Baker (ed.), op. cit., p. 80. Contlito de Visbes | Parte Visdes Restritas e Inrestritas. pois “os prineipios a partir dos quais provém a constituicao e as leis francesas eram mais puros” ¢ permitiram que “as pessoas exercessem seu direito soberano” sem restrigao. Também ha a esse respeito a questo de saber se as instituigées de uma sociedade podem ser trans- feridas para outra, ou se determinados planos para a construgio de sociedades melhores podem ser aplicados a paises bem diferentes. Jeremy Bentham era conhecido por produzir tanto reformas especifi- cas quanto principios gerais destinados a serem aplicados a sociedades muito diferentes. Todavia, para Hamilton, “o que pode ser bom na Filadélfia pode ser ruim em Paris e ridiculo em Petersburgo”. Cada uma dessas conclusdes ¢ coerente com a respectiva visao de onde veio. Enquanto a visdo restrita vé a natureza humana como essencial- mente inalterada ao longo do tempo e em todo o mundo, as expres- s6es culturais especificas das necessidades humanas peculiares a de- terminadas sociedades nao s4o vistas como pronta e beneficamente varidveis mediante intervengao forgada. Ao contrario, os adeptos da visdo irrestrita tendem a ver a natureza humana como beneficamente mutavel, e habitos sociais como resquicios supérfluos do passado. Na visao restrita, os ideais sio avaliados em rela¢ao ao custo de alcangd-los. Na visdo irrestrita, por sua vez, prefere-se uma maior ago aquilo que é ideal. Custos so lamentaveis, porém, de apro: modo algum, decisivos. Thomas Jefferson responde as pessoas que criticaram a Revolugao Francesa por causa dos inocentes que ela ma- tou, exemplificando com a seguinte ideia: Meus proprios sentimentos foram profundamente feridos por alguns martires dessa causa, mas se tivesse fracassado eu teria visto metade da terra devastada. Amtoine-Nicolas de Condorcet, op. cit., p. 147. Alexander Hamilton, Selected Writings and Speeches of Alexander Hamilton, op. cit. p. 455. “ Thomas Jefferson, “Letter of January 3, 1793", The Portable Thomas Jefferson. Ed. Merrill D, Peterson, Nova York, Penguin Books, 1975, p. 465. 42 | 43 Acreditar na irrelevancia dos custos do processo na busea de jus- tiga social dificilmente poderia ser expresso de modo mais claro ou categorico. Todavia, no fim, Jefferson também foi contra a Revolugio Francesa, visto que seu custo humano foi além do que ¢le poderia aceitar. Jefferson nao estava completa e irrevogavelmente comprome- tido com a visdo irrestrita. A importancia relativa dos custos do processo continuou, ao lon- go dos séculos, a diferenciar a visao restrita da irrestrita. Os defenso- res modernos dos tecnicismos juridicos que permitem que criminosos escapem da punicao ¢ declaram “Esse € 0 prego que pagamos pela liberdade”, ou defensores de revolugdes que dizem “Nao se fazem omeletes sem se quebrarem os ovos”, sao exemplos contempordneos de uma visao irrestrita que considerou historicamente como secunda- rios os custos do processo: “A paz e a ordem da sociedade sao mais importantes até do que o alivio dos miserdveis”.*” A batalha continua entre ideais ¢ os custos de alcanga-los é somente uma parte do conflito de visdes de hoje. RESUMO E CONCLUSOES Visdes baseiam-se, afinal, em algum sentido da natureza do ho- mem - nao simplesmente suas praticas, mas seu potencial final e suas limiragGes tltimas. Aqueles que veem as potencialidades da nature- za humana como muito além do que se manifestam em um dado momento tém uma visao social bem diferente daqueles que veem os seres humanos como criaturas tragicamente restritas, cujos impulsos egoistas ¢ perigosos podem ser contidos somente por estratagemas so- ciais, que, por sua vez, produzem efeitos colaterais infelizes. William ‘Godwin e Adam Smith sao dois dos mais claros ¢ constantes exemplos * Adam Smith, op. cit., p. 369, Conflito de Visbes | Parte I~ Visdes Restritas e Irrestritas dessas respectivas vis6es sociais — a irrestrita ea restrita. Contudo, ne- nhum dos dois é o primeiro ou o ultimo nessas duas longas tradig6es do pensamento social. Quando Rousseau disse que o homem “nasceu livre”, mas “esta acorrentado por todas as partes”,“ ele expressou a esséncia da vi- sao irrestrita, na qual o problema fundamental nao é a natureza ou © homem, mas as instituigdes. De acordo com Rousseau, “homens nao sdo naturalmente inimigos”.® A visdo diametralmente oposta foi apresentada na obra Leviata, de Hobbes, em que 0 poder armado das instituigdes politicas foi o que evitou a guerra de cada um con- tra todos” que existiria entre os homens em seu estado natural, em on que a vida seria “solitaria, pobre, repugnante, selvagem e curta”. Enquanto a visdo irrestrita de Condorcet o levou a procurar uma sociedade na qual a “propensao natural” do homem coincidiria com o bem social,” a visio restrita de Hayek levou a conclusio de que as “regras indispensaveis da sociedade livre exigem de nds muito do que é desagradavel”,” ou seja, a natureza inerente do homem poderia coincidir com o bem social, porém deve ser deliberadamente subordi- nada a ele, apesar do desprazer que isso implica. Visto que as capacidades do homem na visao irrestrita sio mais amplas, as intengdes que guiam essas capacidades so especialmente importantes. Palavras € conceitos que giram em torno da intengao — “sinceridade”, “comprometimento”, “dedicagao” - tém-se mostrado fundamentais para discussGes no contexto da visdo irrestrita a0 longo Jean-Jacques Rousseau, The Social Contract. Nova York, Penguin Books, 1968, p.49. © Ibidem, p. 55. ™ Thomas Hobbes, op. cit., p. 64, 70, 87. ”'Thidem, p. 65. 7 Keith Michael Baker (ed.), op. cit., p. 8. ™ RA. Hayek, Law; Legislation and Liberty. Chicago, University of Chicago Press, 1979, p. 168. 44 | 45 dos séculos, e as politicas perseguidas por essa visao frequentemente tém sido descritas em termos dos objetivos a serem alcangados: “li- berdade, igualdade, fraternidade”, “acabar com a exploragae do ho- mem pelo homem” ou “justiga social”, por exemplo. Porém, na visio restrita,em que a capacidade do homem de consumar suas intengdes é muito limitada, as intengGes significam muito menos. Burke referiu-se aos “efeitos Benéficos das falhas humanas” e as “mas consequéncias que acompanham as mais inquestiondveis Virtudes”. Toda a doutri- na econémica do laissez-faire de Adam Smith supunha a mesma falta de correspondéncia entre intengao e efeito, pois 6s beneficios sistémi- cos do capitalismo no faziam parte da intengdo dos capitalistas. Na visao restrita, processos sociais sao descritos ndo em termos de intencdes ou de objetivos finais, mas de caracteristicas sistémicas consideradas necessdrias para ajudar a alcangar esses objetivos - “di- reitos de propriedade”, “livre iniciativa” ou “estrutura rigorosa” da Constituigao, por exemplo. Nao quer dizer, simplesmente, que ha ob- jetivos diferentes nas duas visdes, porém, fundamentalmente, que os objetivos se referem a coisas diferentes. A visdo irrestrita fala direta- mente em termos de resultados desejados; a visao restrita, em termos de caracteristicas de processo consideradas propicias para resultados desejados, mas nao diretamente ou sem muitos efeitos colaterais infe- lizes, que so aceitos como parte de uma contrapartida. Com todas as diferengas complexas entre pensadores sociais de um dado momento, e mais ainda ao longo do tempo, todavia é pos- sivel reconhecer alguns pressupostos fundamentais sobre a natureza humana e sobre a causalidade social que permitem o agrupamento de alguns deles como pertencentes 4 visio restrita, e outros, 4 visao ir restrita. Embora esses agrupamentos ndo englobem todos os tedricos sociais, envolvem muitos personagens importantes ¢ conflitos ideolé- gicos dos dois ultimos séculos ¢ que ainda perduram. ™ Edmund Burke, The Correspondence of Edmund Burke, op. cit., v. IX, p.449. Conflite de Visées | Parte I— Visées Restritas e Irrestritas Dentro da tradigéo da visdo irrestrita, temos a conviccdo de que escolhas estipidas e imorais explicam os males do mundo = e de que as politicas sociais mais sabias ou morais e humanas sio a solugdo. A claboragéo da visio irrestrita de William Godwin, em seu Enquiry Concerning Political Justice, inspirou-se e sistematizou essas idcias encontradas em varios pensadores do século XVIII — Jean-Jacques Rousseau, Voltaire, Condorcet, Thomas Paine ¢ Holback so exemplos notaveis. Essa abordagem geral perdurou ao longo do século XIX, em suas diversas versées, por Saint-Simon, Robert Owen, George Bernard Shaw e outros fabianos.”’ Seus ecos no século XX sao encontrados em tedricos politicos como Harold Laski, em economistas como Thorstein Veblen e John Kenneth Galbraith, e no direito com uma escola inteira de defensores do ativismo judicial, personificado, na teoria, por Ronald Dworkin e, na pratica, por Earl Warren. A visao restrita, pelo contrario, vé os males do mundo como re- sultado das escolhas restritas ¢ infelizes disponiveis em fungao das limitaSes morais e intelectuais inerentes aos seres humanos. Para me- Ihorar esses males ¢ promover 0 progresso, os individuos confiam em caracteristicas sistémicas de certos processos sociais, tais como tradi- ges morais, mercado ou familias. Consideram esses processos mais como evoluidos do que concebidos - e confiam mais nesses padrées gerais de interagao humana do que em politicas especificas concebi- das para produzir diretamente certos resultados para determinados individuos ou grupos. Essa visio restrita das capacidades humanas encontrada em Adam Smith também esta presente em uma longa sé- tie de outros pensadores sociais, desde Thomas Hobbes, no século XVII, passando por Edmund Burke ¢ os autores de Os Artigas Fede- ralistas, contemporaneos de Smith, até figuras do século XX, como *§ Adeptas do sacialismo fabiano, corrente surgida na Gra-Bretanha no fim do século XIX. (N. 46 | 47 Oliver Wendell Holmes no direito, Milton Friedman na economia € Friedrich A. Hayek na teoria social geral. Nem todos os pensadores sociais se encaixam nessa dicotomia es- quematica. John Stuart Mill e Karl Marx, por exemplo, nao se encai- xam por diversas raz6es, como sera observado no Capitulo $. Outros assumem posigées intermediarias entre as duas visGes, ou vao de uma para outra. Contudo, o conflito de visées nao é menos real, pois nem todos tomaram um partido ou se comprometeram irrevogavelmente. Apesar dos avisos necessarios, continua sendo um fenémeno im- portante e surpreendente a grande relagao entre a maneira como a natureza humana é concebida no inicio ¢ toda a concep¢ao do conhe- cimento, moralidade, poder, tempo, racionalidade, guerra, liberdade € lei que compée uma visdo social. Essas correlagdes sero exploradas nos capitulos a segui: Como varias crengas, teorias € sistemas de pensamento social se estendem por meio de um continuum (talvez possamos falar mesmo de um continuum multidimensional), seria de certo modo mais apropria- do falar de visGes menos restritas e de visdes mais restritas, ao invés da dicotomia usada aqui. Entretanto, a dicotomia é nado somente mais conveniente, mas também capta uma distingao importante. Quase nin- guém acredita que o homem seja 100% limitado. O que coloca um determinade pensador mais na tradigao de uma visao do que em outra nao é simplesmente se ele se refere mais aos limites do homem ou ao seu potencial inexplorado, ou até que ponto as limitagdes sao cons- truidas dentro da propria estrutura e funcionamento de determinada teoria, Aqueles cujas teorias incorporam essas limitagées como uma caracteristica fundamental tém uma visio restrita; aqueles cujas teo- rias nao fazem dessas restrigdes uma parte integral ou fundamental da andlise tém uma visao irrestrita. Cada visdo, por definigao, exclui algo ~de fato, exclui.a maioria das coisas. A dicotomia entre a visao restrita e irrestrita baseia-se em saber se as limitagdes inerentes ao homem se encontram ou niio entre os elementos centrais incluidos na visao. Conflito de Visbes | Parte I Vis6es Restritas e Irrestritas A dicotomia justifica-se ainda em outro sentido. Essas formas distintas de conceber 0 homem e o mundo nao levam simplesmente a conclusées diferentes, mas a conclusées extremamente divergentes, em geral, diametralmente opostas, relativas a questées que vao da justica A guerra. Nao se trata simplesmente de diferencas de vis6es, mas de conflitos de visdes. 48 | 49 Capitulo 3 | Vis6es de Conhecimento e de Razao A visio restrita ¢ a visdo irrestrita tendem a divergir em sua propria definicao do conhecimento, assim como em suas concepgdes de quantidade, concentragio ou dispersao e, ainda, em seu papel no processo social. Da mesma maneira, a raz4o ganha significados com- pletamente diferentes nas duas visdes. A MOBILIZACGAO DO CONHECIMENTO. A VISAO RESTRITA Na visao restrita, qualquer conhecimento proprio do individuo é io social, e, frequente- extremamente inadequado para o processo deci mente, mesmo para suas proprias decisdes pessoais. Uma sociedade com- plexa e seu progresso sao possiveis, portanto, somente por causa de va- rias organizacdes sociais que transmitem € coordenam o conhecimento a pattir de intimeros contempordneos, assim como a partir de um nimero ainda maior de antepassados. © conhecimento, tal como é concebido na visao restrita, significa predominantemente experiéncia — transmitida socialmente de maneiras amplamente desarticuladas, variando de precos que indicam custos, caréncias ¢ preferéncias, a tradigdes que evoluem a Conthito de Vis6es | Parte | - Visdes de Conhecimento e de Razdo partir de experiéncias cotidianas de milhdes de pessoas de cada geragao, selecionando o que funciona ¢ que nao funciona por meio de uma con- na. Friedrich A. Hayek observou que: corréncia darwi © desenvolvimento do conhecimento ¢ o desenvolvimento da civili- zagao sio o mesmo se considerarmos 0 conhecimento como algo que inclui todas as adaptac6es humanas ao meio ambiente ao qual toda a experiéncia passada foi incorporada. Nem todo conhecimento nesse sentido € parte de nosso intelecto, tampouce nosso intelecto consti- tui a totalidade de nosso conhecimento. Nossos habitos e habilidades, nossas atitudes emocionais, nossas ferramentas ¢ nossas instituigdes — todos sao, nesse sentido, adaptagdes 4 experiéncia passada que evoluiu por eliminagio seletiva de uma conduta menos adequada. Sao uma base indispensavel para uma agao bem-sucedida tanto quanto nosso conhecimento consciente,' Para essa visa0, nao se trata simplesmente de individuos que es- colhem de forma racional o que funciona e o que nao funciona, mas também - e mais fundamentalmente - que a competigdo de institui. gGes e sociedades inteiras leva a uma sobrevivéncia geral de colegdes mais eficazes de tragos culturais, mesmo quando nem os vencedores ou os perdedores entenderam racionalmente o que era melhor ou pior sobre um ou outro. Valores que podem ser eficazes no plano tribal tendem a ser dominados por valores que permitem ou promovem o funcionamento de maiores agregagdes de pessoas. A partir dessa perspectiva, “o homem certamente aprendeu com mais frequéncia a fazer a coisa certa sem compreender por que era a coisa certa ¢ ain- da é mais bem servido pelo habito do que pelo entendimento”. HA, dessa forma, “mais ‘inteligéncia’ incorporada no sistema de regras de conduta do que nos pensamentos do homem sobre 0 que o cerca”.? ‘BA. Hayek, The Constitution of Liberty. Chicago, University of Chicago Press, 1960, p. 26. 2 Idem, Law, Legislation and Liberty, Chicago, University of Chicago Press, 1979, v. UII, p. 157. 50/51 © conhecimento é, portanto, a experiéncia social de muitos, in- corporado ao comportamento, aos sent entos e aes costumes, mais do que a razao especialmente articulada de poucos, por mais talen- tosas e inteligentes que essas poucas pessoas possam ser. Quande 0 conhecimento € concebido mais como experiéncia social do que uma concepg.io solitdria, entdo, “ganha-se muito pouco no segredo”, de acordo com Hamilton.* Segundo Burke: “Receamos que os homens vivam e facam ne- gécios com sua prépria reserva de razdo, porque suspeitamos que ‘essa reserva seja pequena em cada homem e que seria melhor os individuos fazerem uso do banco geral e do capital das nagGes e das épocas”.* Por raza, Burke nao quis se referir simplesmente 4s palavras escritas por pessoas notaveis, mas a toda a experiéncia dos povos, resumida nos sentimentos, nas formalidades e até nos pre- conceitos incorporados a sua cultura e comportamento. Essas essén- cias culturais do conhecimento nao eram consideradas infaliveis ou imutdveis - o que teria sido uma solugao, em vez de uma compen- sacdo -, mas eram, antes, um conjunto testado de experiéncia que funcionou e que tinha de ser modificado somente depois do mais cauteloso ~ e talvez até relutante - exame. Deveriamos cuidar dos defeitos da ordem social, segundo Burke, com o mesmo entusiasmo que temos ao cuidar dos ferimentos de nosso p: Nao devem ser ignorados, tampouco séo uma determinacdo para experimentos ou inspiragao precipitados. Se nao houvesse nenhuma anilise, nao ha- veria processo evolutivo. Por conseguinte, nessa visio, ndo haveria base para confianga na tradigdo e em instituigdes duradouras que } Alexander Hamilton, Selected Writitigs and Speeches of Alexander Hamil ton. Ed. Morton J. Frisch, Washington, D.C., The American Enterprise In: tute, 1985, p. 222. ‘dmund Burke, Reflections on the Revolution in France. Nova York, Every- man’s Library, 1967, p. 84. * Ibidem, p. 93. Conflito de Visdes | Parte | — Visées de Conhecimento e de Razo eram a marca distintiva de Burke ¢, em diferentes graus, de outros partidarios da visao restrita. A perspectiva de compensagio da visdo restrita trata os defeitos como inevitaveis, portanto, nado séo em si mesmos uma razdo para a mudanga, a ndo ser que sua magnitude merega os Custos inevitd- veis que as mudangas implicam. “Conservando meus principios ina- balaveis”, disse Burke, “reservo minha atividade a empreendimentos racionais”.* Em outra ocasiao ele disse: “Devo tolerar debilidades até que se corrompam em crimes”.” Nao era simplesmente um verniz ver- bal sobre um caminho apatico, como mostrou sua perseguicao impla- cdvel em relagio a Warren Hastings pela suspeita de ma conduta em seu governo da India, ou pela posigo impopular de Burke no Parla- mento pela libertagio das colénias norte-americanas rebeldes, ou por suas propostas antiescravagistas.* Adam Smith também encorajava a libertagao das colénias americanas — ¢ de outras colénias -, além de sugerir uma série de reformas nacionais e de se opor a escravidio.® Nos Estados Unidos, os homens que escreveram Os Artigos Federalis- tas — Alexander Hamilton, James Madison e John Jay — mostraram-se ao ptiblico primeiramente como lideres na revolta contra o dominio britanico. A visao restrita nao era sindnimo de (ou camuflagem para) aceitagao do statu quo. § Idem, Speeches and Letters on American Affairs. Nova York, E. P. Dutton and Company, 1961, p. 198. 7 Idem, Reflections on the Revolution in France, op. p. 140. * Gerald W. Chapman, Edius Burke: The Practical Imagination, Cam- bridge, Mass., Harvard University Press, 1967, cap. Il, VI; Isaac Kramnick, The Rage of Edmund Burke: Portrait of an Ambivalent Conservative. Nova York, Basic Books, 1977, cap. 7; Edmund Burke. The Correspondence of Ed- mund Burke. Chicago, University of Chicago Press, 1968, v. VII, p. 122-25; ibidem, v. VII, p. 451n. * Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Na- tions. Nova York, Modern Library, 1937, p. $53-555, 559-560, 684, 736- 737, 740, 777, 794, 899-900; Adam Smith, The theory of Moral Sentiments. Indianapolis, Liberty Classics, 1976, v. II, p. 172. 5253 A VISAO IRRESTRITA. A vis4o irrestrita nao tinha uma visdo tao limitada do conhe- cimento humano ou de sua aplicagéo por meio da razdio. Foram os modelos da visio irrestrita do século XVIII que criaram “a idade da raz4o”, como ficou expresso naquela época no titulo do famoso livro de Thomas Paine. A raz4o era tao fundamental em sua visio quanto a experiéncia para a visao restrita. De acordo com Godwin, a experién- cia era muito superestimada — “insensatamente engrandecida”, se- gundo suas palavras — quando comparada a razao ou ao “poder geral de uma mente culta”."” Portanto, a sabedoria das épocas era vista por Godwin principalmente como as ilusdes do ignorante. A idade de uma crenga ou pratica nao a isenta do teste crucial da validagao em termos especificamente articulados. Conforme as palavras de Godwin, “de- vemos levar tudo para o padrao da razao”. Ele acrescentou: Nada deve ser mantido pelo fato de ser antigo, porque nos acostuma- mos a vé-lo como sagrado ou por ser incomum colocar sua validade em questéo." De forma semelhante, de acordo com Condorcet, “tudo que suporta a marca do tempo deve inspirar mais desconfianga do que respeito”.!* £ “somente pela reflexao”, disse Condorcet, “que pode- mos chegar a qualquer verdade geral na ciéncia do homem”,'? Dada a habilidade de uma “mente culta” em aplicar diretamente arazao a fatos disponiveis, nao havia necessidade de se mostrar defe- réncia aos processos sistémicos desarticulados da visao restrita, como ‘ William Godwin, Enquiry Concerning Political Justice. Toronto, University of Toronto Press, 1969, v. Il, p. 172, " Tbidem, v1, p. 85. Keith Michael Baker (ed.), Condorcet: Selected Writings. Indianapolis, The Bobs-Merrill Company, 1976, p. 86. ' Antoine-Nicolas de Condorcet, Sketch for a Historical Picture of the Prog- ress of the Human Mind. Westport, Conn., Hyperion Press, 1955, p. 11. Conflito de Visées | Parte | - Visées de Conhecimento e de Razao manifestado na sabedoria coletiva decorrente do passado. “O simula- cro da sabedoria coletiva é a mais palpavel de todas as imposturas”, segundo Godwin." A legitimagdo nao deveria ser indireta, coletiva e sistémica, mas direta, individual e intencional. A racionalidade articu- lada deveria ser o modo de legitimagao, nao a aceitacao geral baseada na experiéncia pragmatica. De acordo com Godwin, “pessoas de opi- nides e de observacao estreitas” rapidamente aceitam o que quer que acontega para levarem a melhor em sua sociedade.'* Por conseguinte, esse ndo pode ser o método pelo qual questées sao decididas. Ha uma profunda desigualdade implicita na visao irrestrita das conclusées de “pessoas com visées estreitas” ¢ daquelas que tém men- tes “cultas”. A partir dai temos a ideia de que o progresso envolve aumentar o nivel da primeira categoria para alcangar o da ultima. De acordo com Godwin: A verdadeira evolugao intelectual requer que a mente, assim que possivel, alcance o nivel do conhecimento ja existente entre os membros iluminados da comunidade ¢ comece, a partir dai, a bus- car mais aquisigdes." Também esta implicita na viso irrestrita a ideia de que existe uma Ccomparag¢ao pertinente entre as crengas de um tipo de pessoa e de outra - entre x ¢ y, em vez de existir entre (1) processos sisté- micos que funcionam através de geragdes sucessivas de individuos a até x, como se pode ver através da geragdo viva x, versus (2) a racionalidade articulada de y isoladamente. A rejeicéo do conceito de sabedoria coletiva faz das comparagées individuais 0 padrao de julgamento. Visto que as experiéncias de a até w nao contam mais, a questao se reduz a racionalidade articulada de x versus a de y. Por- tanto, a visdo irrestrita favorece necessariamente a “mente culta” ¥ William Godwin, op. cit, v. 1, p. 206. Thidem, v. 1, p. 34. * Ibidem, v I, p. 299, 54] 55 de y, enquanto a visao restrita favorece necessariamente as visées expressas por x, entendida como representativa da experiéncia de- sarticulada de muitas outras pessoas (de a a w). As duas visGes le- vam, portanto, a conclusdes opostas no que se refere a que opiniao deveria prevalecer e por qué. O préprio Burke claramente se viu no papel de x mais do que de y: Dou opiniges que foram accitas entre nés, desde os primérdios até 0 momento presente, com aprovagio continua e geral, ¢ que de fato sio trabalhadas dessa forma na minha mente, de modo que sou inca- paz de distinguir 0 que aprendi com outros dos resultados de minha propria reflexio.”” O tipo de conhecimento ou entendimento a que Burke se refere foi concebido como um fundo comum do qual ele fez parte. O de Godwin era 0 conhecimento ou entendimento das “mentes cultas” - um conhecimento que, por sua natureza, se concentrava em poucos, em vez de ficar disperso entre muitos. O proprio significado do conhe- cimento também era desigual, raz4o pela qual era distribuido de forma tio diferente nas duas visdes. Na visao restrita, para a qual © conheci- mento era uma multiplicidade de experiéncias demasiadamente com- plexas para a articulagao explicita, ele se insinuava ao longo de ge- ragdes em processos culturais e tragos tio profundamente enraizados a ponto de se transformar em reflexos praticamente inconscientes — amplamente compartilhados, Nas palavras de Burke, era isso que sig- nificava a “sabedoria sem reflexao”."* A sabedoria ser reflexdo era um conceito completamente estra- nho para a visdo irrestrita, de acordo com a qual os seres humanos tém tanto a capacidade quanto a obrigagio de aplicar a razio expli- cita em todas as questées. A “razio”, segundo Godwin, “é o instru- mento adequado, c o instrumento suficiente, para regular as agdes da © Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France, op. ™* Thidem, p. 31. 1-95-96. Conflito.de Vises | Parte | Visbes de Conhecimento e de Razao humanidade”.'’ As paixées ¢ a parcialidade podem existir, porém, “se utilizarmos nossas faculdades racionais, nao podemos deixar, dessa maneira, de dominar nossas propens6es erréneas”.”? Visto que o conhecimento explicitamente articulado é especial ¢ concentrado, na visao irrestrita, a melhor conduta das atividades sociais depende do conhecimento especial de poucos usado para cutir “visGes guiar as agées da maioria. O que é necessario é i justas da sociedade” em “membros (da sociedade) com educagao liberal e capazes de reflexdo” que, por sua vez, serio “guias ¢ ins- trutores das pessoas”, diz Godwin.”! Esta ideia nao era de forma alguma exclusiva de Godwin, e foi particularmente fundamental e duradoura para a visao irrestrita. Junto com isso, ha frequente- mente a ideia de intelectuais como consclheiros desinteressados. Voltaire declarou, “o fato de os filésofos nao terem nenhum in- teresse particular a defender faz com que falem somente a favor da razdo e do interesse piblico”.* Condorcet também se referia a “filésofos verdadeiramente iluminados, desconhecedores da ambicao”." Rousseau pensava que essa “era a melhor organiza- ¢do ¢ a mais natural para os mais sabios governarem a maioria”.* Mesmo quando homens que no sao intelectuais fazem funcionar co verdadeiro aparato do governo, de acordo com D’Alembert, “a maior felicidade de uma nagao se realiza quando aqueles que go- yvernam concordam com aqueles que a instruem”.** » William Godwin, op.cit., ¥.1, p: 70. ® Tbidem, p. 82. 4 |bidem, p. 104. ® Citado em Lewis Coser, Men of Ideas. Nova York, The Free Press, 1970, p. 232. % Antoine-Nicolas de Condoreet, op. cit. p. 109. # Jean-Jacques Rousseau, The Social Contract. Nova York, Penguin Books, 1968, p. 115. 2 Citado em Lewis Coser, op. cit., p. 231. 56 | 57 Esses temas do século XVIII foram repetidos, pelo menos com vigor semelhante, por John Stuart Mill no século XIX. Para Mill, um papel especial foi reservado aos “intelectos mais cultos no pais”, as “mentes pensantes”,”” aos “melhores e mais sabios”,”* aos “intelectos € pessoas de carater verdadeiramente superiores”.?? Muito poderia 39 seas univer- ser conquistado “se os espiritos superiores se unissem sidades produzissem “uma sucessio de mentes, nao as pessoas de sua época, mas capazes de ser seus aperfeigoadores ¢ regeneradores” 3! ia, Em pou- Prescrigdes semelhantes sdo comumente usadas hoje em cas palavras, o papel especial das “pessoas pensantes”, ou dos “mais brilhantes ¢ melhores”, tem sido, durante séculos, um tema central da visdo itrestrita. Para os adeptos da visao restrita, porém, a ideia de um papel especial para os intelectuais no governo de uma sociedade durante muito tempo foi vista como um grave perigo. Nas palavras de Burke: Melhor que 0s instruidos, nao corrompidos pela ambigio, tivessem se contentado em continuar sendo instrutores, e no tivessem aspirado.a Ser os mestres!* John Randolph rejeitou da mesma forma a ideia de “professores universitarios se tornarem homens de estado”.*> No mesmo estilo, Hobbes via as universidades como lugares em que palavras elegantes, * John Stuart Mill, Collected Works. Toronto, University of Toronto Press, 1977, v. XVII, p. 86. * Thidem, p. 121. ** Ibidem, p. 139. » Ibidem, v. XV, p. 631. ® Ibidem, v. XVII, p. 86, *' Ibidem, p. 129. # Edmund Burke, op. cit., p. 76. * Russell Kirk, Jobn Randolph of Roanoke, Indianapolis, Liberty Press, 1978, p. 57. Conflito de Visdes | Parte | —Visbes de Conhecimento e de Razao mas insignificantes, floresciam,™ e acrescentou que “nado ha nada tao absurdo que nao se possa encontrar nos livros dos Filésofos”.*° O perigo central, a partir da visao dos adeptos da visao restrita, é a concepgao limitada de intelectuais a respeito do que constitui conhecimento e sabedoria. Eles estio, nas palayras de Burke, “ten- tando limitar a nogao de sentido, aprendizagem e gosto a si mesmos ou a seus adeptos”, e sao capazes de “conduzir a intolerancia da lingua ¢ da pena a uma perseguicao” de outros. Adam Smith falou do “homem de sistema” doutrindrio que é “sdbio em sua prépria presuncdo” € que “parece imaginar que ele pode organizar os varios membros de uma grande sociedade com a mesma facilidade que a mao ao dispor de varias pegas em um tabuleiro de xadrez”.*” Toda a nogdo de um filésofo-rei era detestdvel para Smith, que declarou que “de todos os pensadores politicos, os principes soberanos sao de longe os mais perigosos”.** A superioridade dos especialistas em uma fatia fina do vasto es- pectro do entendimento humano no foi banida. O que foi negado é que esse conhecimento conferiu uma superioridade geral capaz de su- plantar mais amplamente tipos dispersos de conhecimento. “Pode-se admitir que, no que se refere ao conhecimento cientifico, um grupo de especialistas, convenientemente escolhidos, pode estar na melhor po- sigdo para comandar da melhor maneira o conhecimento disponivel”, de acordo com Hayek. Porém, acrescentou, em relacao a outros tipos de conhecimento, “praticamente qualquer individuo tem alguma van- tagem sobre todos os outros porque ele dispée de informacio dife- renciada sobre que uso benéfico se pode fazer, mas cujo uso se pode fazer somente se as decis6es que dependem dele sao feitas por ele ou ¥ Thomas Hobbes, Leviathan. Londres, J. M. Dent & Sons, 1970, p.4. Tbidem, p. 20. Edmund Burke, op. cit.,.p. 108 » Adam Smith, op. cit., p. 380-81. 3 Ybidem, p. 381. 58 | 59 com sua cooperagao ativa”.*” Ao se conceber o conhecimento tanto fragmentado quanto amplamente disperso, a coordenagao'sistémica entre muitos suplanta a sabedoria especial de poucos. Tampouco essa coordenacao sistémica deveria ser planejada ou imposta por poucos sdbios. Era uma ordem evoluida natural, nas pa- lavras de um dos fisiocratas* do século XVIII, o grupo que cunhou a expresso Jaissez-faire. Encontramos o mesmo tipo de raciocinio em Adam Smith, o expoente mais famoso dessa doutrina: © homem de Estado que tentasse dirigir pessoas a respeito de que maneira deveriam utilizar seu capital ndo somente ficaria com 0 peso de uma atengio muito desnecesséria, mas também assumiria uma au- toridade que no se poderia confiar com seguranga, no somente a ninguém individualmente, bem como a nenhum tipo de Cdmara ou Senado, ¢ que nao seria em nenhum outro lugar mais perigoso do que nas méos de um homem que tivesse loucura e presungio suficientes para se imaginar adequado para exercé-la," O mercado era um dos intimeros processos sistémicos desenvol- vidos para tomar decides. A familia, as linguas, as tradi¢des siio ou- tros exemplos, entre muitos. Os adeptos da visio restrita confiam plenamente nesses processos para tomar decisées melhores do que qualquer individuo poderia fazer, por mais talentoso ou culto que fosse em comparagiio com outras pessoas. Em resumo, a partir de concepgées diferentes sobre o quanto um determinado individuo pode saber ou entender, as duas visdes, a restrita € a irrestrita, chegam a conclusGes opostas sobre se as me- thores decisdes sociais devem ser feitas por aqueles que tém 0 maior “conhecimento individual de um determinado tipo ou por processos » BA. Hayek, Individualism and Economic Order. Chicago, University of Chicago Press, 1948, p. 80. © Pierre Joachim Henri le Mercier de la Riviere, ’Ordre Naturel et Essentiel des Sociétés Politiques. Paris, Jean Nourse, Libraire, 1767. Adam Smith, The Wealth of Nations, op. cit. p. 423. Conflito de Visdes | Parte | — Visbes de Conhecimento e de Razao. sistémicos que mobilizam e coordenam o conhecimento disperse en- tre muitos, em quantidades individualmente inexpressivas. RACIONALIDADE SISTEMICA VERSUS RACIONALIDADE ARTICULADA O poder da racionalidade especificamente articulada é fundamen- tal para a visdo irrestrita. O poder de processos sociais desarticulados no sentido de mobilizar e coordenar o conhecimento é fundamental na visao restrita. Na visao irrestrita, agir sem “razado explicita” € agir com ideia “preconcebida e preconceituosa”.”” De acordo com Godwin, “a discussio é o caminho que leva 4 descoberta e 4 demonstragio”." “A preciso da linguagem é o pré-requisito do conhecimento sélido”, segundo ele, para quem o conhecimento é sindnimo de racionalidade articulada. A virtude é promovida quando os homens devem “confes- sar suas ages ¢ indicar as razées em que esto fundadas”.* Se fosse possivel “fornecer os ditames simples do nivel de justiga a todas as capacidades”, ainda segundo Godwin, “pode-se esperar que toda a espécie se tornara sensata e virtuosa”.** Também para Condorcet, a tarefa é “tornar comum para praticamente todos os homens os prin- cipios de justiga rigorosa ¢ imaculada”.” A raz4o tem pelo menos dois significados muito diferentes. Um € o de causa € efeito; ha uma razio pela qual a agua expande quando vira gelo, mesmo que a maioria de nds nao seja fisico para saber - William Godwin, op. cit., v. I, p. 66. * Ibidem, p. 315. “ Ibidem, p. 385. * Thidem, ¥. II, p. 320. + Ibidem, p. 211. # Antoine-Nicolas de Condorcet, op.cit., p. 192.

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