».
SÓfOCLES
falar do poder cênico de íd ip o Rei, de sua p e rfo rm a n c e em um feafro
e m a t o , é, a q u i , no B rasil, c o n s i d e r á - l o s o b r e t u d o e m p o r t u g u ê s ,
q u e r d ize r, e m u m a t r a d u ç ã o e no q u e e la se m o s t r a c a p a z n ã o só de
restituir, co m o de vivificar, quand o colocad a nos lábios de um ator
q u e se e x p r i m e n e s t a l ín g u a e q u e d e v e f a z e r f a l a r o seu g e s t o , a sua
linguagem representativa neste m esm o idioma, sem perder a relação
com a fala de o rig e m , no caso o g reg o . E tal é ju s t a m e n t e um a
das p reo cu p açõ e s fu n d a m e n ta is de Trajano Vieira na sua m a r c a n te
transcriação da peca de Sófocles, que v em integrar a
Coleção Signos da Editora Perspectiva.
3. G u in s b u r g
Dcíde que deu à estampa o 22° vo
lume, írês tragédias úregas, de sua série, a
Coleção Signos vem promovendo a publica
ção de textos clássicos, caracterizados pelo
empenho "transcriativo" de sua versão para
o português. Ás três tragédias úregas h\m
organizadas por írajano Vieira, contendo,
como ponto focal, a reedição comentada
da Âniígone de Sófodcs, exemplarmente re
criada por Guilherme de Almeida (encenada
cm 1952). No mesmo volum e, duas
"transcriações" do próprio írajano, Ájax, de
Sófocles e Prometeu Prisioneiro, de Isquilo.
Do Prometeu foi também reposta em circu
lação a m eritória e pioneira versão do
helenista Barão de ttamiz Galvão.
írajano Vieira retomava, assim, um
filã o obscurccido pelo descaso da his
toriografia literária, ou seja, aquele repre
sentado pelas recriações homéricas e
virgilianas de Odorico Mendes (1799-1864),
repudiadas por Sílvio Romero com expres
sões como "monstruosidades" e português
"macarrônico" (avaliações pejorativas es
tas endossadas por certa crítica atual). Desde
meu ensaio "Da Tradução como Criação e
como C rítica", de 1961 (hoje em Me~
ÉDIPO REI de SÓfOCLES
C o íe çã o Signos D ir ig id a p o r A u g u s to d e C a m p o s
S u p e r v is ã o e d it o r ia l J . G u in s b u r g
R e v is ã o T r a ja n o V ie ir a
C a p a e p r o je to g r á fi c o A d r ia n a G a r c ia
P rodu ção R ic a r d o W . N e v e s
R aq u el F ern a n d es A b ran ch es
Trajano Vieira
ÉDIPO REI « SÓfOCLfS
apresentação
j. guinsburg
PERSPECTIVA
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIT)
(Câmara Brasileira do Livro, S!5, Brasil)
Vieira, Trajano
Édípo Rei de Sófoclcs /Trajano Vieira: apresentação
J. Guinsburg. - São Paulo : Perspectiva, 2011. ~ (S ig n o s;.31)
D reimpressão da 2. edição de 2009
isbn 978-85-273-0263-0
1. Sófoclcs, apr. 496-406 A.C. Édipo Rei - Crítica c
interpretação 2. Teatro grego (Tragédia) - História c crítica
i. Guinsburg, J. li. Título m. Série
01-3465 t'0 0 - 882.0109
índices para catálogo sistemático:
1. Grécia Antiga : Tragédia : História c crítica : Literatura 882,0109
2. Tragédia : História e critica : Teatro : Literatura grega antiga 882.0109
2" edição - Ia reimpressão
Direitos reservados em língua portuguesa à
EDITORA PERSPECTIVA S.A.
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01401-000 São Paulo SP Brasil
Tclefax: (011) 3885-8388
www.cditoraperspeetiva.eom.br
2011
Para Gaio Hungria
Sobre de impende a Esfinge,
armada de uníicís e dentes
e de todo o agrume da vida,
Edipo tombou ao seu primeiro bote:
esse porte e esse modo de falar,
sua fantasia nunca os figurara antes!
Embora o monstro no peito de Edipo
calcasse as duas patas dianteiras,
ele se recobra e desteme-o:
guarda a chave do enigma e sabe da vitória.
De alegria, porém, nenhum traço festivo,
nos olhos turvos de melancolia.
Do Édipo de Konstantinos Kaváfis,
Transcríação: Haroldo de Campos
Agrqdei iitii iif*
A Haroldo de Campos, pela genrnrad.t*U
com que leu as diferentes versões da u.aliuõ-’ 1
propôs numerosas soluções poéticas.
A Jacó Guinsburg, que comentou muuic
várias partes do trabalho e me auxiliou a drinm >
projeto do livro.
A Lucíana Suzuki e Gaio Hungria, qnr nu
ajudaram a repensar diversos trechos do n.ida-C
ÍN D ICE
13
Eclipo Rei: U m a Peça dc Teatro - J. G um sburg
17
Entre a Razão e o D aím on
39
Edipo Rei
163
M osaico Herm enêutico
183
C ronologia
IL U S T R A Ç Õ E S
37
M áscaras Teatrais
113
M áscara D ionísica dc Bronze
161
Édipo Rei na C ena M oderna Alemã
187
C ena de Édipo Rei no Teatro
N acional Grego
ÉDIPO REI:
UMA PEÇA DE TEATRO
]. Guins/mri;
Quando se fala em tragédia grega, três peças ocorrem de pronto ao
espírito: Édipo Rei, Antígone e As Bacctntes. Não que outras obras do.io
repertório clássico sejam menos relevantes. Mas, independentemente do ■pu
se perdeu para sempre nos desastres das transmissões históricas deste acri v<>,
e foi a quase totalidade de uma vasta produção da qual sobraram apen.r.
trinta e um textos, o fato é que, mesmo as fontes antigas e os documento-,
arqueológicos do teatro helênico apontam para a eminência destas po ,r.,
inclusive em seu contexto original. E, mais especificamente, para o lugai
privilegiado que a tragédia escrita por Sófocles gozava nos anfiteatros givg* o.
helenísdcos e romanos.
A pergunta que ocorre imediatamente, pondo-se de lado as considerai V h " .
sobre os significados filosóficos, poéticos, sócio-políticos, antropológin o,
psicanalíticos, religiosos e históricos de Édipo Rei, os quais têm sido obje-m
do debate crítico e da hermenêutica literária especializada ao longo destes
últimos dois milênios e meio, é o que torna esta dramatização de um mim
concebida para o teatro de um dado tempo, de um público, de uma
mentalidade, de um imaginário e de um padrão cultural determinados, uma
peça visível e receptível no palco de sucessivas épocas, até os nossos dia1.,
com tudo o que estas envolvem em termos de transformações nos modos do
existência das sociedades, nos valores e nos paradigmas intelectuais.
14 Êdipo Rei de Sôfccles
A resposta pode ir muito longe, percorrendo uma enorm e diversidade
de circunstâncias e fatores realmente operantes e significativos. Mas, não
obstante isso, e ainda que sejam de enorme ou mesmo de vital importância
para a compreensão e avaliação da obra-prima sofocliana, não se deveria
omitir um elemento que, no caso, em se tratando de uma arte do drama e
de uma arte da cena, é integrante essencial da função dramática, mesmo
que por vezes permaneça ocultado na sua modéstia de simples articulador
operacional.
A referência é sem dúvida ao elemento que a moderna análise crítica
designa por teatralidade. Sem ela, cabe pensar que nenhuma obra que
pretenda ser de teatro pode pisar por longo tempo o tablado. E, de fato, se
se tomar sob este ângulo o Êdipo Rei, ver-se-á que uma de suas principais
virtudes, não apenas enquanto lido como texto na intimidade de um leitor,
mas quando visto como espetáculo na comunhão de uma platéia, é a sua
extrema eficácia cênica, a despeito da singeleza ou, às vezes, até de sua
carência de recursos mais elaborados na sua construção teatral. E a questão
não se restringe à força ou ao brilho de seu verbo na exposição dialógica de
seu sujet, na figuração caracterizadora de suas personagens, na urdição
dramatológica de seu enredo e na dialetização enunciadora de sua reflexão,
embora estes fatores sejam necessariamente intrínsecos à sua qualidade
teatral. Isto, ainda que muito pouco seja consumado efetivamente no palco,
pois todos os atos de relevância decisiva cuja realização trança a rede fatídica,
convertendo o sujeito da ação em seu objeto, são apresentados em forma
de relatos. Mas a sucessão ininterrupta pela-qual são vencidos os espaços
temporais nos fatos narrados que motivam a atuação do protagonista, o
qual, na verdade, com exceção de um único momento, não sai de cena no
decurso de toda a ação, intensificando-a a cada novo acréscimo aos dados
de sua investigação até o desenlace final - esta sucessão constitui um
procedimento que prende os olhos do espectador, não menos do que o
seu espírito, ao que o ator lhe narra com a sua interpretação, isto é, na
incorporação dramática que um e outro fazem do texto, na cumplicidade
física da emissão e da recepção no teatro.
Êdipo Rei: Uma Peça de IV.iM" ! '<
E falar do poder cênico deste texto, de sua performance em um ícaf n 1
em ato, é, aquí, no Brasil, considerá-lo sobretudo em português, quer di;-ri,
em uma tradução e no que ela se mostra capaz não só de restituir, a mu u !»
vivificar, quando colocada nos lábios de um ator que se exprime nesta
língua e que deve fazer falar o seu gesto, a sua linguagem representaiiv.i
neste mesmo idioma, sem perder a relação com a fala dc origem, no i ,r.< *
o grego.
E tal é justamente uma das preocupações fundamentais de Trajam*
Vieira na sua, pode-se afirmar com legitimidade, “transcriação” da peça de
Sófocles. A primeira vista verifica-se que um dos principais intentos ilt* mm
projeto tradutório e estético é grecizar concretamente, com todos os rcnu .o
de uma poética moderna, a rearticulação vernacular de Êdipo Rei. Mas na(,
somente isto, como dar pelo léxico utilizado às metáforas e a to d o s 1(1
provedores lingüísticos e estilísticos do desempenho interpretante, a hn,,.i
im agística, mítica e dram ática, que fazem deste verbo trágico um.i
representação de ação e uma ação representada. Os demais elemcni.
naturalmente, correm por conta do imaginário projetado e da interpn-hu.u,
que o diretor e os atores, em conjunto com os demais criadores cèuim-,,
darão às matrizes que aí serão colhidas para definir o espetáculo. Ma-,
certo que estas matrizes aqui se apresentam numa versão na qual n.in
apenas a gente sente como vê materializadas, por suas palavras, as iVn ias t-
a arte da tragédia grega.
ENTRE A RAZÃO E O DAÍMON
o oráculo
em Delfos
tulo fala
nem cala
assigna
Heráclito (trad. Haroldu de Campos)
Aristóteles considerava o Êdipo Rei a maior tragédia do teatro grego,
opinião atualmente aceita de um modo geral, apesar de a peça não ter
passado de um segundo lugar no concurso em que foi original mente
apresentada em Atenas, derrotada por um drama do hoje obscuro Filocles.
O filósofo elogia aspectos estruturais da obra, como a coincidência entre a
reviravolta da ação (“peripécia”) c o reconhecimento da verdade (anagnômis),
a partir do momento em que o mensageiro corfntio noticia a morte de
Políbio (v. 924). E curioso observar que o autor da Poética, defensor da
noção de verossimilhança, crítico dos elementos irracionais na poesia (áloga),
de certo modo pratique, ao tratar do Êdipo, a coleridgeana “suspensão da
descrença” (suspension o f disbelief). A ssim , justifica o fato de Edipo
desconhecer as circunstâncias da morte de Laio (w . 112-13) com o
IS Edipo Rei de Sófocles
argumento de que se trata de um episódio “fora do enredo”. Ora, se fôssemos
adotar com rigor os parâmetros da lógica aristotéÜca, concluiriamos que a
“irracionalidade” não se encontra propriamente na situação da morte de
Laio, mas na ignorância que Edipo revela sobre o assunto, depois de mais
de uma década no comando de Tebas! Felizmente, o que prevaleceu na
recepção da peça não foi a avaliação baseada em regras de verossimilhança,
que levaram Voltaire a criticar duramente suas improbabilidades, antes de
escrever seu próprio Edipo, no qual procurou corrigir incongruências do
original, colocando a morte de Laio, por exemplo, a apenas quatro anos de
distância no passado...
Sófocles altera bastante as versões anteriores do mito de Edipo. A
mudança principal diz respeito ao deslocamento temporal dos dois episódios
causadores da ruína do herói: a tragédia inicia depois da ocorrência do
parricídio e do incesto. A investigação do assassinato de Laio e, num segundo
momento, a indagação sobre a própria identidade, por parte de Edipo,
ocupam lugar central na peça. A questão de não ser quem se pensa que é
e o poder de forças enigmáticas na constituição do destino substituem o
tema da maldição familiar, presente em obras anteriores. Num verso da
Iliada (23, 679-80), Homero diz que Édipo morreu em batalha, o que
exclui a hipótese do cegamento-, na Odisséia (11,271-80), refere-se ao suicídio
de Jocasta e ao sofrimento imposto pelas Erínias - divindades vingadoras
do mundo dos mortos - à família do herói. Não menciona a mutilação do
rei tebano, nem a consulta oracular, Da trilogia de Esquilo (467 a. C.),
composta de Laio, Edipo e Sete contra Tebas, seguida do drama satírico
Esfinge, só restou na íntegra a terceira tragédia. Fragmentos das duas peças
anteriores apresentam, contudo, dados interessantes: Pélops, cujo filho
Crisipo é seduzido por Laio, leva a maldição à família de Edipo. O ato de
Laio repercutirá não apenas nos crimes praticados por Edipo, como no
mútuo assassinato de seus dois filhos, Polinices e Etéocles, conforme lemos
em Sete contra Tebas. Se o cegamento de Édipo já está presente em Ésquilo,
o mesmo não ocorre com a peste, tema introduzido por Sófocles, sob
influência talvez da peste que assolou Atenas entre os anos 4 3 0 4 2 6 a. C .,
causa da morte de Péricles (429 a. C.) e do agravamento da situação na
Entre a Razão e o Píifiimn
cidade, já em conflito com Esparta, um ano depois do começo da guen.i
do Peloponeso (431-404 a. C.).
Outra particularidade da versão sofocliana do mito de Édipo concen n*
ao oráculo. Em Sete contra T ebas, o vaticínío é proferido em tom de
advertência - se Laio não tiver o filho, a cidade estará salva (740 s.) em
Sófocles, com o uma previsão inescapável - Laio encontraria a morte n;r.
mãos de Édipo. No primeiro caso, Laio morre por desconsiderar o aleit.i
apolineo; no segundo, em lugar da punição, a questão central passa a ser
a da previsibilidade divina.
Registre-se, quanto ao último ponto, que só na peça de Sófoclc.
menciona-se outro oráculo, mais importante para o desenvolvimento da
ação do que o de Laio: trata-se da visita de Édipo ao santuário délfiro,
quando ainda morador de C orinto. Nessa ocasião, fica sabendo que
cometerá parricídio e incesto, informações que o levam a abandonar a
cidade onde habitam os pais presumidos (Mérope c Políbio). Em lugar de
um único oráculo, Sófocles apresenta três, em momentos diferentes: num
passado remoto, o de Laio, citado por Jocasta; num passado mais recente,
o que prevê o parricídio e o incesto, na consulta de Édipo a Delfos; nn
presente da ação dramática, o proferido a Creon, através do qual se esclarece
o motivo da peste tebana.
Não se deve concluir, todavia, a partir das referências repetidas á
manifestação oracular, que Édipo c tratado como um joguete de forças
divinas. U m dos aspectos mais formidáveis da tragédia é justamente n
caráter paradoxal do personagem. Será difícil encontrar na literatura outro
exemplo que concentre, em igual medida, voluntarismo e fragilidade, talem o
intelectual e ignorância. Nossa admiração só aumenta quando nos damos
conta de que a destruição do herói não é causada por traço negativo de
caráter ou pelo cometimento de ato impiedoso, mas pela limitação comum
ao homem, decorrente de sua incapacidade de conhecer e dominar as
variáveis que configuram o destino. “O futuro é dado ou está ele na verdade
em permanente construção? A crença em nossa liberdade é uma ilusão? E
uma verdade que nos separa do mundo? É a maneira pela qual nós
participamos da verdade do mundo?” Essas questões, que poderiam ter
20 Édipo Rei de Só/ocíes
sido formuladas por Édipo no desfecho da peça, são de autoria do prêmio
Nobel de química Ilya Prigogine, em seu livro La fin des certitudes1. Cito-as
por me parecer que Sófocles construiu, de uma perspectiva mitológica, um
universo cujas indagações continuam a interessar o pensamento científico
de hoje. Aliás, é o próprio Prigogine que de certo modo chama a atenção
para esse fato, ao escrever:
A questão do tempo e do determinismo não está limitada às ciências; encontra-
se no coração do pensamento ocidental desde a origem do que denominamos a racio
nalidade e que situamos na época pré-socrática. Como conceber a criatividade humana
ou como pensar a ética em um mundo determinista? Essa questão traduz uma tensão
profunda no seio de nossa tradição que reivindica para si de maneira absoluta a pro
moção de um saber objetivo e a afirmação do ideal humanista de responsabilidade e
liberdade.
Apesar de esse trecho sugerir discussões diferentes, dele podemos
extrair a seguinte idéia central: a relação entre liberdade, definida pelo ato
criativo, e as limitações decorrentes de estruturas pre-fixadas. De certo modo,
essas são questões fundamentais do Édipo Rei.
Em bora as abordagens da vastíssima bibliografia sobre o drama
caracterizem-se pela variedade de pontos-de-vista e de fundamentos teóricos,
é possível destacar duas linhas principais nessa rede de comentários: há os
que privilegiam a liberdade de ação de Édipo e os que valorizam a função
dos deuses na ação dramática. Com o se vê, estamos aparentemente diante
de um paradoxo, similar ao apresentado por Prigogine cm termos de
“liberdade versus determinismo”. O s críticos que tratam da liberdade de
Édipo, notam que não há, na peça, uma epifania divina, como no Ajax,
em que Atena alucina o herói e direciona seus atos. Os que adotam a outra
perspectiva, comentam que a tragédia eclode quando Édipo percebe não
ser o responsável por suas próprias ações, reconhecendo a intervenção dc
uma potência divina em seu destino. De um lado, existe a tendência de
valorizar aspectos culturais da Atenas do V século dc algum modo presentes
1. Ilya Prigogine, La fin cies certitudes, Paris, 1996, 9 e s.
Entre a Razão e o Dafmon 21
no drama; de outro, os valores tradicionais que um homem religioso como
Sófocles buscaria preservar. Desse modo, mais que o elogio do espírito
filosófico-cíentífico da Atenas “iluminista”, a tragédia expressaria a crise de
uma sociedade submetida a mudanças profundas e traumáticas.
O caso dc Anaxágoras seria exemplar nesse sentido. Sabe-se que o
filósofo, amigo de Sófocles c de Péricles, foi perseguido e processado em
Atenas por atribuir ao Nous (“Inteligência”), e não aos deuses, o “conhe
cimento de todas as coisas”. Para alguns estudiosos, como W alter Burkert,
Sófocles teria sido influenciado por Anaxágoras, ao enfatizar o caráter eterno
e estável do conhecimento divino, por intermédio do oráculo, livre das
contingências e mudanças oriundas do Acaso (TyJdie), que governam as
ações humanas. Ao valorizar o pré-conhecimento divino, Sófocles estaria
antecipando postulados platônicos: “Alguns anos depois da representação
do Édipo Rei nasce Platão, que iria propor sua teoria das idéias, um reino
do significado absoluto, não gerado e indestrutível, que governa o mundo
em que vivemos, pressupondo na verdade o significante absoluto”2. Essa
análise privilegia o aspecto religioso da tragédia, sem considerar, com mesma
ênfase, a imagem heróica de Édipo. Comentemos primeiramente o segundo
ponto, antes de abordarmos o primeiro.
1 . Razão
Até onde chega o meu conhecimento da bibliografia crítica, nenhum
autor examinou de maneira tão exaustiva e original o traço heróico de
Édipo quanto Bernard Knox, em Oedípus at Tkebes-Sopkocles' Tragic Hero
and His T im e, livro publicado em 1 9 5 7 . Trata-se de uma obra que,
independentemente da tese que defende, destaca-se ainda hoje pela análise
da linguagem da peça. Para Knox, a questão central do Édipo Rei não é o
parricídio nem o incesto - cometidos antes do início do drama mas a
2, Walter Burkert, “Edipo, owero il senso degli oracolí. Da Sofoclc a Umberto Eco"
in Onginí selvagge (trad. it.), Roma-Bari, 1992, 105.
22 Édipo Rei cie Só/oc!es
investigação levada a cabo pelo personagem com o intuito de descobrir,
num primeiro momento, o assassino de Laio, e, num segundo, sua própria
identidade. O autor nega a atuação de potências divinas nos bastidores do
drama, constituído tão-somente das ações de Édipo: “A relação entre a
profecia e a ação do herói não é de causa e efeito. É a relação entre duas
entidades independentes que se igualam”. A meu ver, a tese de Knox é
mais interessante pelo que afirma do que pelo que nega. Com o pretendo
indicar a seguir, a atuação divina parece-me bem mais efetiva do que entende
o helenista norte-americano, embora esse ponto-de-vista não enfraqueça a
imagem que ele nos oferece do rei tebano.
De certo modo, Édipo seria a expressão da própria Atenas do V
século a. C .: inquieto, brilhante, corajoso, arrogante, perspicaz, imperial,
curioso, vaidoso, conseqüente, calculador, investigativo são alguns dos
adjetivos que caberíam também à cidade no seu apogeu, como sugerem
várias passagens de Tucídides. Para configurar seu personagem, Sófocles
introduz na tragédia, conforme examina Knox, conceitos, noções e termos
técnicos da ciência, da historiografia e da filosofia da cpoca. O verbo dzetein
e seus cognatos, por exemplo, são de uso corrente em Platão (to n>-n
dzetoúmenon, “o objeto atual de investigação”, é uma expressão do Eleata
no Sofista 223c; to dzetoúmenon, “a investigação”, diz Sócrates no Teeteto
201a), nos tratados de medicina (“para esta descoberta e investigação”,
dzetémati, Hp. V. M. 3), na historiografia (“a investigação - tí^étesis - da
verdade”, Tucídides I, 20). Sófocles emprega 8 vezes dzeteín no Édipo Rei,
3 no Ájax, 2 no Édipo em Colono e 1 nas Traçfumías. No verso 266, por
exemplo, escreve:
dzetôn tòn autákheira tu fónu lab em
procurando prender o autor do assassinato (trad, lit.)
Knox observa que a reviravolta do destino do personagem “reflete-se
na peripeda (reviravolta) de algumas de suas palavras características”. Édipo
é ora sujeito ora objeto de verbos característicos da linguagem científica.
Do mesmo modo que “examina” (s/íopeín, 68, 291, 407, 964), “indaga”
Entre a Razão e o Dcnmon 23
(historeín, 1150), é objeto da investigação (1180-1181); se, por um lado, é
quem “descobre” (heurein 68, 108, 120, 4 4 0 , 1050), por outro, é “o
descoberto” (1026, 1108, 1213, 1397, 1421). Um termo importante na
historiografia (Heródoto I, 57; II, 33; Tucídides I, 1) e nos tratados de
medicina (Hipócrates Prog. 24, Acwt. 68) é tekmaíresthai, que significa “formar
um julgamento a partir de evidências”, “inferir”. No verso 109, Édipo fala
da “dificuldade de inferir”, das marcas deixadas, o autor da morte de Laio.
No verso 916, segundo Jocasta, é o próprio Édipo quem não “infere” do
passado os acontecimentos presentes.
Se, no Prometeu, Ésquilo considera a matemática a ciência mais
importante (v. 459: “Inventei o prodígio das ciências/ - o cálculo”), Sófocles
incorpora de maneira extensiva, no Édipo, termos nela recorrentes. Cito
apenas alguns trechos em que isso ocorre, a título de exemplo. No verso
31, o sacerdote usa uma forma participial de isóo (“igualar”), numa
passagem que traduzi assim:
Édipo, igual a um. deus? Nem eu nem os
meninos incorremos nesse equívoco.
No verso 1507, o mesmo verbo (com o prefixo eks), no episódio em
que Édipo roga pelo futuro das filhas:
Não as rebaixes (líL; iguales) ao meu nível mau.
U m adjetivo com valor adverbial da raiz de isóo (íson: “igual”,
“igualmente”) aparece no verso 579:
Creon:
Entre os dois, no reinado, há isonomia (íson némon)?
Outra equação verbal, construída com ísos (“igual”, 1019):
Édipo:
E quem me fez seria igual a um zero?
24 Êdipo Rei de Sófocles
Cham a a atenção a presença de metréo (“medir”) na tragédia, Edipo
comenta a demora de C reon (7 3-5):
Medir o dia de hoje com o metro
do tempo dói: a ausência de Creon
supera o combinado e o razoável.
A seguir, quando o irmão de Jocasta se aproxima (84):
De onde ele está, sua voz já é mensurável.
No verso 963, o mensageiro coríntio esclarece a causa da morte de Políbio:
Édipo:
Enfermidade então levou o velho.
Mensageiro:
Além da macro medição de Cronos.
(mafcrô ge symmetrúmenos /diróno)
Com relação ao assassinato de Laio, há como que uma dança de
números no Edipo. Segundo informação do único sobrevivente da escolta
do rei, o crime teria sido praticado por vários homens, e não por um
apenas. As construções da passagem, observa K nox, lem bram um
“problema de aritmética”3 (w . 118-129):
Creon:
M orreram , menos um: fugiu de medo.
De certo nada disse, exceto um fato.
Edipo:
Diz qual fato! O um será matriz do múltiplo
se algo tiver de Elpis, a Esperança.
3 . Op. cit., 151.
Entre a Razão e o Díifmon
Creon:
Agiu de assalto o bando marginal:
não uma só, mas muitas mãos o matam.
Edipo:
E esse ladrão, se não o corrompessem
com a prata, teria tamanha audácia?
O uso idiomático explicaria a mudança do plural para o singular
(“muitas mãos”/(<o ladrão”)? A o empregar o singular, Edipo teria em mente
o líder do grupo, responsável pela tentativa de golpe de Estado, conforme
o rei imagina? São explicações possíveis que não impedem, contudo, de
levarmos em conta a hipótese de um lapso linguístico, concebido por
Sófocles (Edipo volta a usar o singular nos versos 139, 225, 230, 236; nos
versos 246-7, fala da ação de um grupo; no 277, o coro utiliza o singular;
no 715 s. Jocasta refere-se aos assassinos no plural).
Ocorre também, no Edipo Rei, o emprego de um termo filosófico, o
verbo oida, de interesse particular, pois está no centro de numerosos
trocadilhos. “Nenhuma tragédia é mais acerca da linguagem do que o
Oedípus Tyrannus”4. “Toda a tragédia de Edipo está, portanto, como que
contida no jogo ao qual o enigma de seu nome se presta”5. Também a
esse respeito, o livro de K nox revelou-se precursor, abrindo cam inho
para um grande número de estudos que examinam os jogos de linguagem
criados por Sófocles. Oidipous deriva de oideo (“inchar”) e pous (pés),
referência ao defeito físico que o herói traz dos primeiros dias de vida,
provocado pela trave com que Laio perfura-lhe os tornozelos, antes de
entregar o filho a um pastor, a fim de que o abandonasse em monte
ermo. Entretanto, o poeta associa freqüentemente o nome do herói a oiciu
(“saber”), sugerindo a condição ambígua do rei tebano que, se mostra
sabedoria ao solucionar o enigma da Esfinge, revela ignorância quanto à
4. Charles Segai, Tragedy and Ctfiiiçation. An interpretation of Sogfiocíes, Cambridge
Mass., 1981, 241.
5. Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, Mito e Tragédia na Grécia Antiga (tnul.
brasileira), Duas Cidades, 1977, 91.
26 Édipo Rei cie Só/bctes
própria identidade. Assim, é possível entrever, no sarcasmo com que Édipo
trata Tirésias, a ironia do próprio Sófocles, no episódio em que o rei
tebano recorda que ninguém fora capaz de derrotar a Esfinge, somente ele,
“Édipo, o que nada sabe”, conforme a tradução literal da expressão grega
ko mêden eidôs Oidipous (397), em que eidôs (particípio de oid a: “o que
sabe”) repercute em Oídi-pous. Ironia e ambigüidade estão também presentes
na decifração do enigma da Esfinge. A “cadela cantora” pergunta qual ser
possui dois, três e quatro pés -dípotts, tripous, tetrápous. Qidipous responde
acertadamente “homem”, isto é, okíipous (“os de dois pés”). “M as”, comenta
Vernant, “esta resposta só é um saber na aparência; ela mascara o verdadeiro
problema: o que é então o homem? O que é Édipo? A pseudo-resposta de
Édipo abre-lhe todas as grandes portas de Tebas. Mas, instalandoo na
chefia do Estado, ela realiza, dissimulando-a, sua verdadeira identidade de
parricida e incestuoso”6.
Outra passagem notável do ponto-de-vista da linguagem refere-se à
chegada do mensageiro coríntio. Enviado para comunicar a Édipo a morte
de Políbio, será o responsável pelo esclarecimento da identidade do rei
de Tebas. Podemos considerar esse personagem um emissário de Apoio.
Observe-se que ele entra em cena logo depois de J o casta recolher-se no
santuário apolíneo, onde roga pela lucidez do marido, atitude de certo
modo contrária a manifestações anteriores da rainha, até então cética quanto
à ciência oracular. Pois bem, esse mensageiro, cujo aspecto cômico, até
onde chega meu conhecimento, só recentemente foi apontado7, assim se
expressa, recém-chegado a Tebas (924-6):
A r’ an par’ hymòn ô ksenoi mathoim’ hopou
ta tou tyrannou d ôm af estin Oidipou
malista d’ auton eipaf ei katoisth' hopou.
6. Loc. cit.
7. “Intrigante, falastrão, oportunista, grosseiramente mentiroso desde que possa tirar
algum proveito... É antes um personagem da comédia que da tragédia, um tricííster..,”, de
acordo com Franco Maiullari, L’interprctaj;ione anamorfica deWEdipo Re, Istituti Editoriali e
Poligrafici Internazionali, Pisa-Roma, 1999, 24.
Entre a Razão e o Daímon 27
O rei é nomeado no caso genitivo: Oidipou (“de Édipo”). Pou e seu
correlato hopou significam “ond e”, sentido para o qual convergem as
questões formuladas pelo mensageiro; o verbo ícatoistld é uma forma de
kata-oida (“saber”) que, como observei, associa-se a Oidi-pows. “Saber onde”
(oida-pou, katoisth’ hopou) é uma interrogação formulada ironicamente a
respeito de um personagem que ocupa posição incerta no espaço8, Foi
pensando nesses elementos formais que imaginei as seguintes possibilidades
de tradução para esse trecho, tendo optado pela primeira:
A ndo no encalço de Édipo. Sabeis
dizcr-me onde se encontra seu palácio?
Indicai-me, estrangeiros, onde o acho!
Estrangeiros, sabeis dizer-mc acaso
por onde eu passo até chegar ao paço
do monarca? Melhor: onde eu o acho?
C om vossa ajuda encerrarei meu périplo:
onde se localiza o paço de Édipo?
Eu vos indago se ele está por perto,
Aperto o passo atrás do rei. Sabeis
com o é que eu faço até chegar ao paço?
Acaso alguém dirá onde cu o acho?
A passos largos venho atrás do rei.
Acaso alguém me diz com o é que eu faço
para chegar ao paço? Onde eu o acho?
Esse mesmo mensageiro, questionado, a seguir (1034-8), por Édipo,
fornece dados importantes sobre a identidade do rei. Pressionado, informa
que o pastor que lhe deu o recém-nascido sabe detalhes de sua origem:
ouk o i d h o dous (“não sei; quem deu”), profere o núncio, numa expressão
em que o nom e de Édipo volta a ecoar (oidTio dous / Oidipous). Registre-se
que essa fórmula podería ainda ser entendida diferentemente: ho dous (“o
8. Ver Knox, op. cit. 184.
25 Èdipo Rei de Sófocles
que deu”), pronunciado numa única silaba, significa “caminhos” (hociows).
Com o fizera anteriormente, ao chegar a Tebas, o mensageiro reafirma nas
entrelinhas (ou entreletras) os descaminhos que desgovernam a vida de
Edipo: ouk oúTÍioíÍous (“não sei os caminhos”)9.
Para Knox, não há intervenção direta dos deuses na peça, estando
sua presença restrita ao âmbito da previsão oracular. Desse modo, ao
cumprir o que fora previsto em Delfos, a frase de Protágoras, com a qual
o helenista caracteriza o perfil de Edipo - “o homem é a medida de todas
as coisas” ganha sentido platônico no desfecho da peça: “a medida de
todas as coisas é deus”101. Essa opinião poderia ser adotada sem restrição,
não fossem recorrentes no drama palavras como düfmon, cuja conotação
religiosa dificilmente pode ser apagada. O termo indica o controle limitado
de Édipo sobre o seu próprio destino, graças ao caráter enigmático da
ação divina, humanamente imprevisível. U m levantamento do uso de
íltífmon na obra de Sófocles mostra sua importância no Edipo. O autor
emprega-a 5 vezes no Ájax, 3 na Antígone, 5 na Eíectra, 14 em Edipo em
Colono, 12 no Édipo Rei, 7 no Filoctetes, 3 nas Traquínias.
2. D aím on
Não é fácil definir o sentido exato de daímon nessas tragédias. Se, por
um lado, a palavra significa “divino”, por outro, parece sugerir algo como
“marca individual” , particularmente depois de Heráclito - com cujo
pensamento Sófocles tem tantas relações - ter escrito cm seu conhecido
aforismo: ethos anthropo daím on , “caráter é para o hom em daímon”.
Kirkwood associa daímon à moira (“fado”) e à tykhe (“acaso”), registrando
a ocorrência de “uma qualidade pessoal - no sentido de daím on ; ela é
concebida como um força ativa, condutora”11:
9. Cf. Simon Goldhill, Remi mg Greeii Trcigedy, Cambridge, 1986, 218.
10. Op. cit. 184-
11. G. M. Kirkwood, A Stucfy of Sopkociean Drama, Ithaca e Londres, 1996Ç 2S4.
Entre a Razão e o Daímon 29
O “demoníaco” não fornece explanação moral ou teológica do sofrimento ou da
crueldade das circunstâncias. Ele significa, com o Reinhardt diz, a inclusão em si mes-
mo de algo estranho a si mesmo, um fado interno que c personalizado e em certo grau
externalizado. E o daímon que dirige um homem em seu curso ignorante, pois só os
deuses têm conhecimento da aiétheiú, O “demoníaco” é o modo de Sófocles deixar na
penumbra um elemento da experiência humana; a catástrofe descende inesperada e
inevitavelmente de algum lugar, Mas aparentemente não há razão moral para sua des
cida, nem a natureza divina nem a humana é o agente deliberado, Seria pedante insistir
na busca de precisão num reino que Sófocles deixa vago; “dem oníaco” não representa
nenhum conceito filosófico ordenado no pensamento sofocliano12.
Esse comentário preserva o caráter enigmático da intervenção do
daímon. Trata-se de um agente responsável pelo surgimento do inesperado
no destino. Talvez se possa apenas acentuar sua natureza divina. Mesmo
que não se aceite de maneira absoluta o tom categórico da afirmação
segundo a qual “Daímon é a interpretação religiosa de Ty/dxe”13, deve-se
ter em mente as numerosas vezes em que as duas palavras são relacio
nadas14.
N o verso 8 1 6 , Sófocles usa o composto elduhrodaímon, um hapax
legomenon: Edipo considera a hipótese de ter sido ele o assassino dc Laio;
nesse caso, “que homem seria mais odiado pelos deuses” (eJdit/irodaímon)?
Pouco depois, repete a mesma idéia, atribuindo seu destino a um ómou
daímonos tis, “um daímon cruel” (828), sobre cuja identidade os comentários
costumam convergir: “O homem é reduzido a um receptáculo da loucura
divina”15; “Édipo, então, atribui a um poder sobre-humano cruel c hostil o
destino, que será muito pior do que aquilo que ele já sabe”16.
C abe ainda citar, no que concerne à palavra ciatmon, uma bela
passagem, em que o coro apresenta Édipo, o seu daímon, como paradigma
(parádágm a) humano (1189-95). Esse episódio - como quase tudo na peça
12. /ciem, 285.
13. Pi erro Pucd, Oedtfms and lhe Fabrication of the Fathcr, Baldmore c Londres,
1992, 146.
14. Ver E. R. DodJs, The Greeks and the Irrational, Berkeley, 1951, 58 (80).
15. Jean Bollack, L'Oedipe Roi de Sophocle, Lille, 1990, vol, 2 , 511 .
16. Winnington-Ingram, Sophocles - An interpretation, Cambridge, 1980, 174.
30 Êâipo Rei cie Só/ocles
- tem sido objeto de diferentes comentários, inclusive da parte de Martin
Heidegger, que o analisa na Introdução à M etafísica:
Estirpe humana,
o computo do teu viver é nulo.
Alguém já recebeu de um demo um bem
não limitado a aparecer (doíceín)
e a declinar (apoMinm)
depois de aparecer (dólisant*)?
Es paradigma,
o teu demônio (ílutmond) é paradigma, Edipo:
mortais não participam do divino.
Jean Bollack assinala a importância do verbo apoklinai (“declinar”),
que, relacionado frequentemente ao movimento dos astros, indicaria aqui
o caráter cíclico da felicidade humana ou sua instabilidade. Acrescenta
ainda não haver conotação de ilusão subjetiva em doícein (“parecer”). A
questão fundamental seria a do tempo, cuja fugacidade revelar-se-ia na
incontornável dinâmica do “aparecer/declinar” da experiência de ple
nitude. A estabilidade desta, segundo Píndaro, só os deuses conheceríam.
“O parecer, colocado em balança com o desaparecer, não faz tanto ver o
‘inautêntico’ sobre um fundo de ser quanto apresenta seu êxito e prestígio
sobre um fundo de nada”17. Ao empregar o termo “inautêntico”, Bollack
alude criticamente à análise que Reinhardt e, a partir dele, Heidegger
fizeram da mesma passagem. Entretanto, não creio que o helenista francês
dê o devido peso à função de daímon no episódio, traduzindo-o por um
impreciso “destino”, que de certo modo enfraquece sua função ativa.
Na leitura de Reinhardt, daím on ocupa lugar central18. O filólogo
alemão observa que, no âmbito da experiência humana, “ser” e “aparência”
(alétheia e doxa) são mesclados, “numa união que não é exterior nem
formal, porém solicitada pelo detímon”. Edipo não seria uma tragédia do
17. Of>. cit., vol. 3, 782.
18. KarI Reinhardt, Sofocle (trad. it,), Gênova, 1989, 111 s.
Entre a Razão e o Daímon 31
destino, mas da “aparência”, a quaí não se confunde com o falso, mas se
apresenta como um modo de ser em cujo horizonte o homem vive a
precariedade do jú bilo. Em bora Reinhardt considere o movimento
temporal, uma vez que o “declinar” da aparência se confunde com o
momento da revelação trágica, o fundamentai em sua análise é apresentar
o daímon como elemento desencadeador da tragédia, o agente que faz da
felicidade humana um acontecimento aparente. Não será difícil notar -
registro de passagem - o motivo pelo qual essa análise iria influenciar
Heidegger que, na Introdução à Metafísica, observa que o movimento entre
“aparecer” e “declinar” confunde-se com a dinâmica do próprio Ser, que
se oculta ao se tornar visível no ente e se revela no declinar da aparência19.
Cham o a atenção do leitor para outras duas passagens em que Sófocles
emprega o termo daímon, São versos que se destacam pela densidade formal,
pela originalidade da imagem e pelo que esclarecem da própria noção de
daímon. No primeiro trecho (1297-1303), o coro dirige-se a Edipo, pouco
depois de ele cegar-se. Nas duas questões formuladas, empregam-se verbos
de movimento: prosbaíno (“colocar o pé contra”, “apoiar o pé em”, “avançar
para”, “recair sobre”, “come upon” na versão recente de Hugh Lloyd-Jones20)
e pedáo (“saltar”, “arrojar-se”, “spring upon”, segundo Lloyd-Jones, que
traduz a preposição prós do grego pelo upon inglês, “sobre”, sentido adotado
por editores da peça). O coro indaga sobre o responsável pelo cegamento:
“qual mania (“loucura”) avançou sobre ti?”, e reformula a questão a seguir,
restringindo o campo de mania, cujo sentido varia, dependendo do deus por
ela responsável: “que daím on lançou-se sobre tua m oira (“destino”)
dusdaímoniV' Esta última palavra é um adjetivo formado a partir de daímon,
com o prefixo de valor negativo dws, que os tradutores, sem levar em conta
o belo jogo de palavras daím on/dusdaím oni, vertem por “miserável” (Lloyd-
Jones) ou “desafortunado” (“infortune”, segundo Bollack21). Registro
19. Ver Martin Heidegger, introdução à Metafísica (trad. bras.), Rio de Janeiro, 1978,
133 s.
20. Hugh Lloyd-Jones, Sopfiocies, Ajax-Etectra-Oeclipus Tyrannus, Loeb, 1994.
21. Op. cit. vol. 1, 283.
32 Édipo Rei de Sôfocles
também a ocorrência nesse verso de outra expressão notável por seu caráter
enfático, em que um superlativo é relacionado ao comparativo de supe
rioridade de mégtis (“grande”): meidzona makiston, “que daím on 't retomo o
verso literalmente, “saltou mais do que o máximo sobre teu destino (moira)
desafortunado (dusdaímoni)”, ou, de acordo com a tradução que proponho:
Q ue delírio, infeliz, te atropelou?
Q ue deus-demônio, de um só salto,
transpassa uma distância máxima,
impondo os pés sobre tua moira demoníaca?
A essas questões, Édipo responde a seguir, identificando o deus
responsável por sua desgraça: Apoio. Também nesse trecho, destaca-sc o
desenho formal do verso, devido às repetições kaká kaká e em à tád ’ emá e
às assonâncias em /a/ e / e / i
ho hakà kaká telôn emà tád’ emà páthea.
Bollack apresenta a seguinte tradução (com referência a Apoio):
Uachevant, crime sur crime! Mes soufrances, mes soufranccs à-moi!
Na edição de Lloyd-Jones, aparece:
Apoio, who accomplíshed these cruel, cruel sufferings of mine!
Mário da Gama Kury22, por sua vez, traduz assim:
Foi Apoio o autor de meus males,
de meus males terríveis; foi ele!
Procurando manter algo das repetições expressivas e da assonância
do grego, vertí da seguinte forma o verso em questão e o anterior:
22, Mário da Gama Kury, A Trilogia Tebana, Jorge Zahar, 1989.
Entre a Razão e o Daímon 33
Apoio o fez, amigos, Apoio
me assina a sína má: pena apenas.
Cito a continuação da fala dc Édipo (1331-35), que revela aspectos
importantes da noção de daím on:
Ninguém golpeou-me,
além de minhas mãos.
Ver - por quê?
se só avisto amarga vista?
Para alguns comentadores havería oposição entre esses quatro versos
e os dois anteriores, relativos a Apoio. Édipo estaria afirmando que o
parricídio e o incesto foram causados por Apoio, enquanto o cegamento,
por cie próprio. A leitura de Dawe parece-me, entretanto, mais interessante
do que essa. Segundo o editor inglês23, intervenção divina c ação humana
são aspectos que se sobrepõem para os gregos, desde Homero. H lembra o
verso famoso da Odisséia, cm que o aedo Fêmio registra a Ulisses, que está
prestes a assassiná-lo: “Autodidata sou e um deus fez surgir em mim toda
sorte de canções” (Od. 22, 347).
Ao colocar Édipo entre a razão e o daímon, Sófocles reafirma o caráter
paradoxal do herói trágico, fascinante e frágil, arrogante e desarmado,
engenhoso e vulnerável. Não se deve perder de vista que, em relação às
versões anteriores do mito, Sófocles faz uma alteração significativa: quando
a peça tem início, o parricídio c o incesto já foram consumados e, antes
de consumados, previstos pelo oráculo. Com o disse antes, três referências
temporais apresentam-se, portanto: o tempo da revelação oracular, o do
parricídio e do incesto, o das investigações de Édipo sobre o assassino de
Laio e sobre si próprio. O herói c agente e paciente da ação, submetido às
forças do daím on e do acaso (tykhe). Sobre esse enredo, paira o pré-
conhecimento divino. Num ambiente cultural em que os sofistas ensinavam,
por exemplo, “a tornar forte um argumento fraco”, em que o relativismo
23. R. D. Dawe (cd.), Oedipus ííex, Cambridge University Press, 1982, 232,
34 Èdipo Rei de Sôfocles
avançava inclusive sobre o campo da ética, o coro sofòcliano evoca a “pureza
da linguagem” (863), regida pelas “leis de pés elevados” do O lim po (866)
em contraste com a “desgraça de terríveis pés” (418), na qual se coloca e é
colocado o rei de pés-inchados (Oicíl-pous). Mais importante do que procurar
determinar a posição exata de Sófocles nesse mundo, como se uma tese o
motivasse, talvez seja m anter presente a atitude interrogativa que a
ambigüidade dos diversos planos da tragédia desperta a cada leitura.
3 . O r á c u lo
Retorno à epígrafe de Heráclito, cujo verbo final, traduzido com
precisão por H aro Ido de Campos (semctinein, “emitir signos”: “as signa”),
nos remete a uma questão que desde cedo interessou os gregos: a natureza
ambígua da linguagem. No que concerne ao oráculo délfico, a literatura foi
além do registro histórico, dando razão a um conhecido comentário de
Aristóteles na Poética24. O que nos vem à mente quando pensamos no
santuário de Apoio é o aforismo de Heráclito e não o fato de nenhum dos
setenta e dois oráculos délficos de caráter histórico, registrados por
Fontenrose, apresentar ambiguidade25. O grande interesse dos gregos por
construções paradoxais, por argumentos polarizados, pela formulação de
enigmas indica que sc colocavam, em relação à linguagem, na posição de
decifradores. Pensemos, por exemplo, para situar a questão numa época
remota, nos versos 26-28 da Teogonici (séc. V III a.C.), segundo os quais as
musas afirmam saber, por um lado, “dizer muitas mentiras similares às
verdades” e, por outro, “cantar coisas verdadeiras”. Esse é um dos pri
meiros registros na literatura grega de uma questão que posteriormente
será abordada em termos de mímese. Trata-se de uma reflexão poética
24. Refiro-me à passagem (1451 b5) em que Aristóteles afirma que a poesia é mais
“filosófica e elevada que a história”.
25. Cf. J. Fontenrose, The Delpfuc Oracle, 1978. Ver, sobre o assunto, o estudo de
Pietro Pucci, Enigma segreto oracolo, Pisa-Roma, 1996.
Entre a Razão e o Daímon 35
sobre um tema recorrente: a possibilidade de formulações falsas re-
presentarem e substituírem as verdadeiras. “As aparências enganam”, reza
o ditado que poderia ter sido inventado por algum grego. Heráclito critica
Homero por não ter se deslocado do mundo aparente (tôn fcinerôn), quando
jovens que matavam piolhos o enganaram, dizendo: “o que vimos e pegamos
é o que largamos, o que não vimos nem pegamos é o que trazemos conosco”.
Em outra versão, referida por Plutarco (Vit. Hom. 4 6 4 9 e 62-71), mas
provavelmente anterior à de Heráclito, a anedota é formulada por pescadores
e, apesar do alerta do oráculo de Delfos para que Homero evitasse o enigma,
o poeta não é capaz de responder a charada, morrendo a seguir.
“A sabedoria grega é uma exegese da ação hostil de Apoio", escreveu
Giorgio C olli26, tendo em mente um dos símbolos apolíneos, o arco, cujo
nome é “vida" (bíos), mas cuja ação é “morte” (conforme Hos, “arco”),
segundo Heráclito. Ao colocar no centro do Éâipo Rei o oráculo apolíneo,
Sôfocles destaca a questão da significação verdadeira e da dccifração verbal.
No Ajax, Atena recomendava prudência frente à instabilidade do destino.
No Édipo Rei, o coro apenas constata a fragilidade incontornável da vida:
Atento ao dia final, homem nenhum
afirme: eu sou feliz1-, até transpor
- sem nunca ter sofrido - o umbral da morte.
Entre a razão e o cíaímon, ou melhor, acima deles, há o oráculo,
representando a préciência divina. O drama de Édipo reflete a presença
desses três planos que estabelecem relações complexas entre si, para além
da relação de causa e efeito. O problema de algumas interpretações do
passado foi terem privilegiado um desses aspectos, em detrimento dos
demais. Lembro, por exemplo, a opinião de que o Édipo seria uma “tragédia
do destino”, na qual o herói apenas levaria a termo a profecia. Se lemos a
peça desse ângulo, deixamos escapar traços marcantes do personagem -
caráter voluntarioso, grandeza heróica, talento intelectual responsáveis
26. O Nascimento da Filosofia (trad. bras.), Campinas, 1988, 33.
36 Êcíifio Rei de Sófocles
em grande parte pelo próprio enredo dramático. Que as ações de Édipo
ganhem sentido inesperado é algo que não tira o brilho do herói, mas
evidencia sua fragilidade. Essa fragilidade resulta da ação enigmática e
imprevisível dodazmon, agente divino que alguns comentadores aproximam
da noção de acaso (tykfie). A descoberta da identidade pelo indivíduo traz,
portanto, outras revelações: permite registrar a pré-cognição divina, não
afetada pelas contingências da experiência humana, e a ocorrência, na
dinâmica existencial, de um elemento de difícil definição. Esse último aspecto
tem despertado interesse de críticos recentes, particulannente dos adeptos
de teorias psicanalíticas. O daímon seria a expressão do Outro.
“A catástrofe de Édipo é que ele próprio descobre sua identidade”,
escreveu Bernard Knox, estudioso a quem devemos muito da caracterização
heróica de Édipo27. Sem discordar desse comentário, observo que a catástrofe
decorre da consciência, por parte de Édipo, de que a sua própria identidade
possui dimensões indecifráveis. Trata-se de uma constatação aparentemente
simples do ponto-de-vista formal, mas com desdobramentos de com
plexidade bastante conhecida. A tragédia de Édipo nasce não só do fato de
ele ser outro do que pensava, mas também de esse outro ser o que é: outro.
Essa conclusão não enfraquece absolutamente a dignidade intelectual do
personagem, antes, pelo contrário, a coloca em destaque: é o exercício
brilhante da razão que permite entrever a dinâmica inclassificável do enigma.
27. Op. cit., 6.
ÉBiPO REI
É D IP O :
D escendentes de Cadmo! C rianças, moços!
Por que trazeis à testa ramos súplices,
prostrados, nos assentos dos altares?
V apor de incenso assoma em meio à polis,
assom am cantos fúnebres, lam entos.
C onsiderei injusto ouvir dos n ú n cio s,
por isso eu vim, m eninos, pessoalm ente,
Edtpo, cujo nom e paivaclamam.
Fala, decano! T ens a primazia
da palavra. Q ue hum or vos põe assim?
Temor? Anseio? O meu intuito é dar
total auxílio. U m homem insensível
seria, alheio à ocupação das sédes.
SA C ER D O TE:
A corre ao teu altar, senhor de Tebas,
um grupo, cada qual com sua idade:
uns imaturos para o vôo solo;
outros, arcados, são os sacerdotes
40 Éílifjo Rei de Sófocles
- com o eu - de Zeus, além dos hom ens-m oços.
A multidão se prostra ju nto ao duplo
tem plo de Palas, ramo à testa, na .ágora,^ 20
em torno às cinzas do apolíneo augúrio.
Naufraga a pólis - podes conferi-lo
a cabeça, já é incapaz de erguê-la
por sobre o rubro vórtice salino:
m orre no solo - cálices de frutas; 25
morre no gado, morre na agonia
do aborto. O deus-que-porta-o-fogo esfola
a pólis - praga amarga despovoando
as moradas cadméias, O Hades negro
se enriquece de lágrima e lamento, 30
Édipo igual a um deus? Nem eu nem os
m eninos incorrem os nesse equívoco;
um ás te reputamos nas questões
da vida e no com ércio com os deuses.
Recém-chegado a T ebas, nos poupaste 35
do ônus que impôs a ríspida cantora,
a Esfinge, m esm o à míngua de outros dados
de nossa parte. U m nume - é voz unânim e -
acom panhou-te ao nos furtar da morte.
Sen h or suprem o, ajuda agora, Édipo, 40
pois todos clam am , todos te suplicam
uma saída: acaso um deus, um hom em
não disse com o nos m anterm os vivos?
As deliberações de alguém vivido
resultam em ações mais efetivas. 45
M elhor entre os m elhores, reergue a pólis!
M elhor entre os m elhores, lembra: sóter,
assim tc cham am , nosso salvador.
Não fique do teu reino esta memória:
para tom bar de novo nos erguemos. 50
àtip* Ra 4}
C om tua mão segura, aprum a a urbe!_
Já nos trouxeste o bom pendor da sorte,
nos augurando um bom agouro. Voltai
Se te in cu m be reinar, algo inconteste,
m elhor reger a pólis que o deserto.
A torre sem ninguém é nada, a nave 55
tam bém é nada se há o vazio hum ano.
É D IP O :
M eninos, ciente e não insciente estou
do afã que movimenta este cortejo.
_Eu reconheço o pan-sofrer; contu d o,
n en hum sofrente tem meu sofrim ento: 60
a cada um tão-somente a dor rem onta,
„a ele e â mais ninguém . M eu peito aperta
pela pólis, por mim , por ti tam bém .
Não me encontrais gozando a paz de H ipnos.
Sabei que muita lágrima chorei, 65
nas muitas vias do pensam ento eu me
perdi, e um só remédio me ocorreu:
a Delfos eu enviei C reon M enécio;
partiu o meu cunhado com o fito
de perguntar: a paz, com o a devolvo 70
a T cb as, com palavras ou com atos?
M edir o dia de hoje com o metro
do tem po dói: a ausência de C reon
supera o com binado e o razoável.
C om ele aqui, serei um hom em vil, 75
sc me furtar a quanto o deus prescreva.
SA C ER D O TE:
Palavras oportunas, ju sto quando
assinalam que o enviado está de volta.
42 Éáipo Rei de Sófocies
É D IP O :
Tykhe-Sóter, o acaso salvador 80
nos traga, ó A poio, C reon olhiesplendente!
SA C ER D O TE:
Policoroa de louros e de frutas
à fronte sinaliza boas notícias.
É D IP O :
De onde ele está, sua voz já é mensurável.
Filho de M eneceu, senhor, cunhado, 85
qual dito num ínoso a Tebas trazes?
CREON :
U m dito bom : se a adversidade acaso
corrige o passo, em bem resulta o acaso.
É D IP O :
Atém-te ao tema, pois o teu dizer
nem tranqüiliza nem atemoriza. 90
CREON :
Posso falar na frente dessa gente
ou, se preferes, no interior do paço.
É D IP O :
Inform a a todos! Sofro mais por eles
do que por m inha própria vida! Fala!
CREON :
Escutarás tal qual ouvi do deus. 95
Sem eircunlóquio, Foibos, plcniluz,
mandou-nos expulsar o miasma. Aqui
cresceu, e há de crescer, se não ceifado.
É D IP O :
C om o nos depurarmos? Q ual desgraça?
CREON :
C açar o réu, pagar com m orte o morto:
que escarcéu faz na pólis este sangue!
É D IP O :
Q uem teve o azar da sorte, o deus o indica?
CREON :
Em tem pos idos, Laio mandava aqui,
antes de com eçar o teu reinado.
É D IP O :
Sei por ouvir dizer; jam ais o vi.
CREON :
A ssassinado. O deus profere claro:
punir - não importa quem! - os matadores.
É D IP O :
O riundos de onde? O nd e buscarem os
pegadas foscas de um delito antigo?
CREON :
A qui, falou. Só se acha o que se caça;
o que negligenciam os nos escapa.
É D IP O :
No palácio, no cam po, no estrangeiro,
em que local elim inaram Laio?
44 É d ip o R ei de S ó/ oc!es
CREON :
Indagaria - nos disse ~ o deus em Delfos
e desde que partiu não retornou.
É D IP O :
Ninguém viu nada, núncio algum, factótum ,
que nos tivesse alguma utilidade?
CREON :
M orreram , m enos um: fugiu de medo,
D e certo nada disse, exceto um fato.
É D IP O :
Diz qual fato! O um será matriz do m últiplo,
se tiver algo de Elpis, a Esperança.
CREON :
Agiu de assalto o bando marginal:
não uma só, mas muitas mãos o matam,
É D IP O :
E esse ladrão, se não o corrom pessem
com a prata, teria tam anha audácia?
CREON :
Tam bém pensam os; mas, depois que Laio
morreu não houve quem o defendesse,
ÉD IP O :
D erruído o rei, que mal, travando o pé,
impede assim a solução do caso?
Êdipo Rei 45
CREON :
A Esfinge, canto-enigma: o que estiver 130
aos pés, olhar; deixar velado o opaco.
É D IP O :
Desato o nó de novo desde a origem.
Louvo o apuro de A poio e o teu apuro,
tom ando a peito o caso pelo morto.
Tam bém entro em com bate por justiça, 135
vingando a um só tempo o deus e Tebas.
Não ajo em nom e de um remoto amigo,
mas por mim mesmo eu m esm o afasto a máculji;
quem pôs as mãos em Laio logo pode
querer de mim vingar-se com seu golpe. 140
Socorro Laio, colho benefícios.
Sem mais delonga, abandonai, m eninos,
os altares, nas mãos os ramos súplices.
Alguém reúna aqui o povo cádmio.
Neste afazer me em penho. Atue o nume 145
e recolham os jú bilo ou catástrofe.
SA C ERD O TE:
M eninos, já podemos retirarmo-nos,
pois nos moveu o apalavrar do rei.
A poio nos enviou a profecia:
retorna, Sóter, e nos salva e cura! 150
CORO:
Suave fala de Zeus,
o que nos vem de Delfos, toda-ouro,
à bela Tebas?
Coração transido, o pavor
me oprim e, A poio D élio,
senhor do grito lenitivo!
A o teu redor, trem or:
Q ual meu tributo? U m novo rito,
rito refeito ao ciclo da estação?
Diz, filha de Elpis-ouro,
Voz am brósea!
Primeira invocação: A tena am brósea;
depois, sua irm ã, guardiã-do-solo, Á rtem is,
trono augusto no círculo da praça,
e A poio, bom-na-lança.
Defesa tripla contra M oira-M orte,
vinde! Se outrora - a urbe em ruína ~
lançastes longe o fogo da catástrofe,
voltai de novo agora!
Suporto males múltiplos.
A tropa adoece em bloco
e as armas do pensar, nenhum a nos
resguarda.
Não vinga o fruto no afamado campo;
sem dar à luz, esposas gritam dores.
C om o aves, belas-asas, mais
ágeis que o fogo indôm ito,
todos, um a um, lançam-se às encostas
do deus crepuscular:
Incontáveis. A pólis morre.
Portadores-de-Tânatos, tristíssim os,
os m ortos proliferam pelas ruas.
Ao pé do altar acorrem mães senis,
esposas, choram súplices
Édipo Rei 41
a dura agrura.
Fulgura o hino e o coro de lam entos
Envia, Palas, olhi-paz, dourada
filha de Zeus,
o jú bilo da ajuda.
Ares fulm inador,
sem o bronze do escudo, agora
arde e circum-troa.
G ira a espádua, retorna
rápido, sob a aura,
ao megatálamo de Anfitrite, 195
ao porto hostil a estranhos,
aos trácios vórtices!
Ao que sobra da noite,
o día assalta.
Rei do ígneo fulgor,
teu raio, ó Zeus, fulm ine Ares.
Sen h or da Lícia,
teu arco, nervo-ouro,
dispare invencivel, à vanguarda, 205
os dardos protetores. C om eles
cheguem as tochas flâmeas de Ártem is -
consigo a deusa as leva aos m ontes lícios.
Sen h or da mitra áurea,
epônim o de Tebas, 210
eu cham o Baco em cham as,
rosto-vinho,
Evoé quando evocado,
m inistro das M ênades,
com tocha ardente, contra
o deus que os deuses desestimam! 215
48 Êdipo R e i de Sófacles
É D IP O :
Rogas e o rogo ~ se ouves com apreço
m inha fala, se cuidas da moléstia - C
encontra proteção, além de alívio.
A lheio ao dito, alheio ao sucedido,
declaro: só e sem m elhor indício
será difícil prolongar a busca.
Na condição de cidadão tardio,
proclam arei aos cádmios o seguinte:
sje alguém souber que mãos mataram Laio,
filho de Lábdaco, a esse alguém ordeno
que se apresente a mim e conte tudo.
Se teme a punição ao pronunciar-se
contra si mesm o, afirmo que uma pena
sofrerá: parte ileso para o exílio.
Se o assassino for um outro, alguém
de fora, m esm o nesse caso, fale
e colha a recom pensa do hom em grato.
Não sendo aceita a m inha oferta, se,
receando pelo amigo ou por si m esm o,
alguém se cale, assim procederei:
seja qual for a identidade dele,
até onde meu trono e çetro imperem,
ninguém o deixe entrar, ninguém lhe fale,
ninguém se lhe associe em atos sacros,
ninguém a água lustrai - ninguém! - lhe oferte.
M erece o teto acolhedor um hom em
que nos piaçula a todos com seu ín íasma,
conform e revelou o deus em Delfos?
E quanto a mim, eu luto em prol do num e,
eu luto pelo nom e do hom em morto.
A o inferno - assassino! - esteja oculto
sozinho ou com o bando de com parsas.
49
Na m iséria, sem M oira, acabe o mísero!
E digo m ais: se acaso em meu palácio,
consciente, acontecer de recebê-lo,
recaia em mim a imprecação que faço.
A djuro todos a cum prir o dito,
pelo num e, por mim, por esta terra
sem fruto, sem o deus, sem vida, nada.
M esm o se o deus não nos forçasse à ação,
não conviria deixar impura a pólis:
quando o m elhor falece, o basileu,
mister é esclarecer. Aconteceu-m e
de herdar o mando que lhe pertencia,
de herdar seu leito e desposar-lhe a esposa;
não o privasse a sorte má de filhos,
teriam os nossos uma só matriz.
Sobre a cabeça dele pesa o azar.
Por isso, com o por meu pai, com bato.
Em m inha busca, nada me limita
até que eu prenda o autor desse hom icídio:
por Laio, rei, descendente de Polídoro,
Cadm o, A génor: ancestres ilustríssim os.
C ontra quem negue auxílio, deuses, peço:
não saiba o que é brotar no cam po o fruto, 270
não colha da m ulher senão aborto,
pereça de um flagelo pior do que este.
Q uantos cádm ios nos derem h oje escuta,
possa D ike ajudar, guerreira amiga,
com sua presença os deuses nos regalem. 275
CORO:
N o que me toca a im precação, afirmo:
o rei eu não matei nem sei quem o
matou. A poio nos enviou o enigma;
cabe-lhe, pois, nom ear o autor do crime.
50 Êdipo Rei <le Só/ocles
ÉD IP O :
C oncordo. Mas hum ano algum consegue
impor aos deuses o que não desejem.
CORO:
Pois faço uma segunda sugestão.
ÉD IP O :
E uma terceira. Não omitas nada!
CORO:
A um m agno o magno Foibos aguçou
a vista: obtém resposta mais certeira 285
quem exam ina os fatos com Tirésias.
É D IP O :
Não descurei nem m esm o desse ponto:
instado por C reon , enviei dois hom ens
ao seu encontro. O grande atraso intriga.
CORO:
Rum or antigo surdo repercute. 290
É D IP O :
Q ual rumor? Exam ino toda hipótese.
CORO:
Dizem que uns andarilhos 0 mataram.
É D IP O :
Ouvi dizer. Q uem presenciou, sumiu.
CORO:
Se lhe restar um pouco de pavor,
o u v in d o a im p re c a ç ã o , n ã o c a la rá . 295
Édif>o Rei 51
É D IP O :
Q uem não treme na ação, palavras teme?
CORO:
M as há quem o convença. A qui já trazem
o divino profeta. Nele só ^
se infunde o Desocultam ento: Alétheía. k l
É D IP O :
Tirésias, paivsenhor telúrio-urânico
do que se diz e cala no silêncio,
a pólis - cego em bora, o tens na mente -
está doente. Mais ninguém , senhor,
escudo, sóter, nos garante a sorte.
Apoio ~ não te disse o mensageiro? -
aos núncios anunciou haver apenas
uma saída ao mal que nos aflige:
matar os hom ens que mataram Laio,
ou acuá-los - que corram para o exílio!
O que o pássaro augura não ocultes,
nem os auspícios de uma outra via.
A urbe e a ti depura, a mim depura,
depura-nos dos miasmas do cadáver.
O desdobrar-se ao máximo por outrem ,
com pensa com beleza o em penho hum ano. 315
fk í c h Ç jriip *
T IR É S IA S :
Terrível o saber se ao sabedor
é ineficaz. Em bora ciente disso,
me descuidei: jam ais teria vindo.
52 Écltpo Ret de Sófocles
É D IP O :
O que ocorreu? Por que chegas sem ânimo?
T IR É S IA S :
Deixa que eu volte. Cada qual sopese
o próprio fardo. C rê: será m elhor.
É D IP O :
Renegas norm as; desamor revelas
pelo país natal, com fala estéril.
T IR É S IA S :
O s sons que emites são inoportunos;
não quero padecer da mesma sorte.
É D IP O :
Se algo sabes, não partas, pelos deuses!
Pan-suplicantes, nos prostramos todos.
T IR É S IA S :
Pois todos ignorais! O meu pesar
não apresentarei, expondo o teu.
É D IP O :
Será que entendo bem? Sabendo, calas? .330
Planejas nos trair, destruir a polis?
T IR É S IA S :
O meu sofrer não quero, nem o teu.
Inútil prolongar teu questionário.
É D IP O :
Seu miserável mor! Não falarás?
Édipo Rei 53
Até uma pedra encolerizas. Ficas 335
assim em pedernido, irredutível?
T IR É S IA S :
O meu tem peram ento recrim inas
por ignorares o que habita em ti.
ÉD IP O :
C om o posso manter-me calm o, se ■
palavras que à cidade só desonram 340
T IR É S IA S :
M esm o que eu silencie, os fatos falam.
É D IP O :
Um bom motivo para não calares.
T IR É S IA S :
Nada acrescentarei. O coração
inflama com tua fúria, se o quiseres.
ÉD IP O :
Já nada fica im plícito - motiva-me 345
a fúria; arquitetaste o assassinato,
m elhor, o com eteste, em bora com
as mãos de um outro. Se pudesses ver,
diría ser obra de um autor somente.
T IR É S IA S :
Verdade? Pois então assume os termos 350
do teu com unicado: de boje em diante,
não fales mais comigo nem com outrem,
pois com teu m iasma contam inas Tebas!
54 Édif>o Rei de Só/ocies
É D IP O :
O despudor motiva tua arenga;
acaso crê s f u g ir das c o n s e q ü e ríc ia s ? 355
!>
TIR H SIA S:
Sim , pois me nutre o vero, a própria Aíétfiem.
ED IP O :
E quem te instruiu, inepto para o augúrio?
VOK >
T IR É S IA S :
Tu m esm o, ao pressionar a m inha fala.
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É D IP O : J .V
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Q ual fala? Fala! A ssim eu me elucido. rT " / .fS r
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T IR É S IA S :
Não com preendeste ou queres me testar? y t y 360
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0 lO
É D IP O :
M into se digo ter certeza. Aclara!
T IR É S IA S :
A firm o que és o matador buscado.
É D IP O :
Duas vezes me insultaste. Pagas caro!
T IR É S IA S :
Devo seguir e saturar tua cólera?
É D IP O :
A o b e l-p ra z e r, p o is n u lo é o v a n iló q u io . 365
T IR É S IA S :
T e uniu aos teus, inadvertidamente,
- direi - um elo torpe. O mal não vês.
É D IP O :
Insistes nisso? Crês na impunidade?
T IR É S IA S : Y\ A
*? ' ✓
Se houver no vero um m ínim o de força. 5, vP
É D IP O ;
E tem para os demais, a ti não tem, ,1/370
pois que és cego na mente, ouvido e vista. ,f) ,c-íV
I'
\ '.p
T IR É S IA S : v > V y -f)
Triste; descarregar em outro injúrias
que o m undo em breve vai te proferir. v
É D IP O :
T e nutre Nyks - a noite. És incapaz
de fazer mal a quem com luz convive. 375
T IR É S IA S :
Não cabe à m inha M oira sobre ti
cair. D o fato A poio cuida. E basta.
É D IP O :
C reon armou o ardil ou é obra tua?
T IR É S IA S :
Teu mal provém de ti, não de C reon.
É D IP O :
Riqueza, reino, engenho uítraengenhoso, 380
56 Êdipo Rei cie Só/ocles
conduzem a um viver plurinvejado!
Q uanto rancor se fixa em torno a vós!
A pólis concedeu-m e o dom do reino;
sem meu em penho o pôs em m inhas mãos;
e o leal C reon , amigo desde o início,
cozia o plano sórdido em surdina,
sócio do mago nessa megatrama,
do charlatão m anhoso, de olho no
regalo das propinas, vate cego!
O nde im peram teus mânticos domínios?
Por que negaste auxílio ao povo quando
vivia a Esfinge, cadela de rapsódias?
Não de um desavisado a solução
do enigma dependia, mas de um profeta,
Ficou patente: nem as aves, nem 395
os deuses te inspiravam, E eu cheguei;
dei cabo dela, alguém sem crédito, Édipo;
vali-me do pensar e não dos pássaros,
A mim pretendes expulsar agora,
sonhando secundar C reon no cargo? 400
Lam entareis querer purgar a pólis.
Não fosses na aparência um ser decrépito,
conhecerías sofrendo os teus projetos.
CORO:
Segundo nos figura, rei, a cólera
inspira os dois pronunciam entos. Nós 405
não carecem os disso. Eis nosso escopo:
solucionar o vaticínio délfico.
T I R É S IA S:
És rei, mas nós nos igualamos nisto:
nossas palavras pesam igualmente.
Édipo Rei 57
Reclam o o meu poder! Não sou teu servo, 410
> 6
sirvo a A poio, e independo de C reon. v> ,r
Falo, pois meu olhar opaco hum ilhas: A / r*A
dotado de visão, não vês teu mal,
com quem m oras, em que lugar habitas. $
De onde vens? Sabes ser o horror dos teus, rr
415
desses que a terra encobre ou - sobre - vivem
Terror nos pés, a maldição te expulsa
daqui, mater-paterna, açoite duplo.
E a ortovisão de agora então se entreva.
Q ue golfo, que m ontanha do C itero 420
a sinfonia de teus gritos não
ecoará, quando saibas de tuas núpcias,
porto jn ó sp ito , ao fim de um navegar
tranqüilo? Nem suspeitas da desgraça
que atingirá a ti, com o a teus filhos. 425
A chincalha C reon c cada som ,y r
&'
que pronuncio. Ninguém conhecerá
um desm oronam ento pior que o teu.
\
>
É D IP O :
Ouvir o que ele diz é insuportável.
Vai para o inferno! Som e! V ai de retro n 430
à tua morada e deixa o meu palácio.
T 1R É S IA S:
Se vim, foi por ter sido convocado.
E D IP O :
Não podería prever as tuas sandices;
por isso me apressei em te cham ar.
58 Êdipa Rei de Sófocles
T IR É S IA S ;
Som os quem som os: te pareço tolo,
mas a teus pais alguém bem ponderado.
É D IP O :
Quem? Espera! Q uem são meus genitores?
\
T IR É S IA S :
O dia de hoje te expõe à luz e anula.
É D IP O :
Falas de m odo obscuro e por enigmas.
T IR É S IA S :
Não és o mestre das decifrações?
É D IP O :
Verás o meu valor no que me insultas.
T IR É S IA S :
Provém tua perdição dessa ventura.
É D IP O :
Pouco me im porta, se eu salvei a pólis,
T IR É S IA S :
Eu me retiro. V em me guiar, m enino.
É D IP O :
Será m elhor, pois, aos meus pés, me estorvas.
Eu recupero a paz com tua ausência.
T IR É S IA S :
Irei, mas antes digo o que me trouxe -
Êdipo Rei 59
r jr
teu cenho nada pode contra mim :
aquele cujo paradeiro indagas,
pela m orte de Laio, aos quatro cantos
vociferando, hem aqui se encontra;
tido e havido com o hom em forasteiro,
ira se revelar tebano autêntico,
um triste fato. Cego - em bora ele hoje
veja - , m endigo (ex-rico), incerto em seu 455
cetro, em terra estrangeira adentrará.
E então nós o veremos pai e irmão
dos próprios filhos; no que toca à mãe,
dela será o marido; e quanto ao pai,
sócio no leito, além de seu algoz. 460
No paço, pensa. A tua conclusão,
se for que eu m into, diz: fa ls o p ro feta !
CORO:
A pedra délfíca - profética -
increpa a quem de perpetrar.,
com mãos de sangue
o indizível do indizível? Urge 465
que ele ponha os pés em fuga,
com mais vigor
do que os eqüinos turbinosos.
H oplita do relâmpago e do fogo,
A poio, filho de Zeus, 470
avança contra ele.
No encalço vêm, terríveis,
as Fúrias implacáveis.
D esponta a voz e já lampeja
na neve do Parnaso: sigam 475
todos o rastro do hom em ignoto,
60 Êdipo Rei cie Só/bcies
um touro errante pelos antros, rochas,
florestas, desgarrado,
um desgraçado
que traz no pé a desgraça! v\~
Q uer se esquivar (inútil) \
do oráculo - õnfalo da Terra: ■ 480
este pervúye circum-voando. __
O sábio vate me desm onta, ' ■ \
terrível. Aceitá-lo ou refutá-lo?
Aporia: dizer o quê? 485
Nas asas da esperança, não vislum bro
presente nem pretérito.
Ignoro o pom o da discórdia entre
o filho de Políbio e os Labdácidas. 490
Em prol dos últim os, na questão
da morte obscura,
eu nada sei - agora ou no passado -
que desabone a fama de Edipo. 495
U nidos pelo tino, A poio e Zeus
conhecem o afazer hum ano.
Entre os mortais,
um vate conta mais do que eu?
E um juízo descabido. 500
Pode em saber um superar o outro.
Mas em acusador eu não me arvoro,
enquanto tudo for mera suspeita. 505
O utrora a virgem-
-de-asas, a Esfinge, lançou-se
abertam ente contra ele;
e ele foi sábio - todos vimos -
e a pólis o aprovou: era benquj_sto. 510
Édipo Rei 61
\
Jam ais em penharei
\:
meu coração em condená-lo!
V
CREON :
Inform am -m e, senhores, de que o rei
com term os duros me promove a réu.
Indigna-m e esse fato: se ele pensa 515
que no difícil quadro do presente
causei-lhe dano em ato ou em palavras,
não quero mais gozar a vida longa,
opresso por rum ores. Meu malogro
será trem endo a persistir o boato. 520
O uvir dc quem é caro ouvir
da polis me faz um mal enorm e.
CORO:
O insulto é fruto da explosão dc fúria,
antes que de um projeto arquitetado.
CREON :
Não dizem q u e o profeta se deixou 525
levar pelos meus planos e mentiu?
CORO:
D isseram ; mas com qual intuito? Ignoro.
CREON :
Mas havia retidão no olhar, no espírito
de quem lançou o agravo contra mim?
CORO:
Não reparo na ação dos poderosos. 530
Já vem do paço Edipo, em pessoa.
62 Édipo Rei de Súfocles
É D IP O :
Não posso acreditar! Personificas
a própria afronta vindo ao meu palácio, . \q )
m anifesto urdidor de m inha morte, ^ ^
usurpador visível do meu cetro! 4 535
Pelos deuses! Covarde ou insensato
te parecí, para que assim tramasses?
Achavas que eu não notaria o dolo
coíeando ou, ciente, que eu não reagiría?
Não é uma insensatez o teu ataque, 540
sem o apoio da massa c dos amigos?
Essa tarefa exige prata e povo.
CREON :
Se posso sugerir, escuta a réplica
que faço ao teu discurso. Então, me julga!
É D IP O :
És bom de prosa, mas sou mau de ouvido: 545
te revelaste um desafeto amargo.
CREON :
Sobre esse ponto, escuta-me primeiro.
É D IP O :
Sobre esse ponto, me dirás que és fiel?
CREON :
Se crês que a audácia destituída de
ra z ã o é u m b e m , in c o r r e s e m e q u ív o c o . 550
É D IP O :
Se crês que, agindo mal contra um parente,
D ike não puna, incorres em equívoco.
Étit/w Jvct 0
CREON :
C on cord o com tua justa afirm ação;
mas podes me explicar que mal te fiz?
É D IP O :
M e persuadiste - sim ou não? - da urgência
de aqui trazer o vate sacrossanto? t ...
CREON :
Meu parecer, agora o ratifico.
É D IP O :
Pois bem ; e Laio, há quanto tempo é que,„
CREON :
Q ue Laio fez o quê? Não te com preendo.
É D IP O :
Q ue esvaneceu. golpeado m ortalm ente. 560
CREON :
Só usando a m acrom edição de C ronos.
É D IP O :
O augure praticava então o ofício?
CREON :
E, com o agora, sábio e reputado.
É D IP O :
Naquele tempo, m encionou meu nome?
CREON :
N unca aludiu a ti na m inha frente. 565
64 Éííipo Rei de Sófodes
É D IP O :
A pólis não investigou o crime?
CREON :
Nos em penham os toclos, sem sucesso.
É D IP O :
E com o o sábio nada proferiu?
CREON :
Não sei. M e calo quando faltam dados.
É D IP O :
D o que te afeta, sabes. Leal, dirás?
CREON :
Não me nego a inform ante do que sei.
É D IP O :
Sem contigo tramar, o teu parceiro
não me teria acusado de assassino.
CREON :
Se foi o que ele disse, tu o sabes.
Tam bém tenho direito de indagar.
É D IP O :
Pergunta: não farás de mim um réu.
CREON :
Pois bem ; tens com o esposa m inha irmã?
É D IP O :
Não me é possível responder com não.
CREON :
Entre os dois, no reinado, há i$ongmia?
É D IP O :
O que ela quis, jam ais lhe foi negado.
CREON :
C om o terceiro, eu não me igualo aos dois?
É D IP O :
Eis onde te mostraste um mau amigo.
CREON :
Não, se aceitas, com o eu, raciocinar.
Exam ina prim eiram ente: quem
preferirá o com ando e os seus temores
à paz do sono, se o poder é o mesmo?
Não sou do tipo que am biciona o reino,
quando me è dado igual a um rei viver.
Discordará de mim quem for sensato?
D e ti eu recebo tudo e nada temo;
chefe, teria de agir conform e os outros.
Ser dono do poder não é mais doce
do que o m ando indolor e o seu prestígio.
Não me acho suficiente mente louco
para abrir mão do belo e vantajoso.
Agrado a todos, todos me saúdam.
A mim recorrem , se de ti precisam,
pois tenho a chave do sucesso deles.
Son har com outras regalias? Por quê?
Em má não se transmuda a m ente lúcida,
Não sou am ante desse pensam ento,
nem agiría ao lado de um golpista.
66 Édipo Rei de Sôfocles
Se posso comprovar? V ai logo a Delfos,
verás que fui veraz, se a A poio apelas.
Se dem onstrares que me associei ao 605
decifrador de enigmas num a trama,
meu voto som o ao teu pelo meu fim. \
A conjectura ofusca o julgam ento.
Se é grave de antem ão tomar o mau
por bom , do m esm o modo o inverso é grave. 610
Desprezar um amigo honesto é igual
a desprezar o bem maior: a vida.
Saberás do que falo com o tempo.
Som ente o tempo mostra quem é justo;
velhacos se revelam num só turno. 615
CORO:
Sensato, não escorregou na fala; ,t ^ o,:' .
pensar às pressas, rei, nos leva à queda. ’
V.' '
É D IP O : ; ' 7,
Q uando ágil um conspirador serpeia,
devemos decidir com rapidez. CQ
Se me acom odo à calmaria, os planos 620
dele dão fruto e os meus tão-só me frustram.
CREON :
Q ual é tua meta? M e banir de Tebas?
É D IP O :
Não quero teu exílio, mas tua morte.
CREON :
M ostra então o porquê do teu furor.
Édipo Rei 67
É D IP O :
Pareces resistir ou duvidar. 625
CREON :
Pois vejo claro que não pensas bem.
É D IP O :
M as não no que me toca.
CREON : V
r f."’ V
U m peso e duas medidas.
É D IP O :
Porque és mau de nascença.
CREON :
E se erras totalmente?
É D IP O :
Terei o aval do trono.
CREON :
Não para o mau governo.
É D IP O :
Pólis! Polis!
CREON :
Tebas tam bém é m inha, e não só tua!
CORO:
Basta, senhores! É oportuna a vinda
de Jocasta, que deixa agora o paço.
Q uiçá com ela a briga chegue ao fim.
É d ip o R ei de Sôfocle?
JO C A S T A :
O que move esse abúlico levante
de palavras? V ergonha: a pólís sofre
e estim ulais questiúnculas pessoais?
Retorne cada qual à própria casa!
Não transform eis em dor m edonha o nada.
CREON :
O teu marido julga justo, irmã,
fazer-me algo terrível: seu intento
é me expulsar da pólis ou matar-me.
ÉD 1PO :
Exatam ente, esposa, pois flagrei-o
arm ando contra mim o esquema sórdido.
CREON :
Sem mais vantagens, morra amaldiçoado,
se uma parcela eu fiz do que me imputas.
JO C A S T A :
Ele é m erecedor de crédito, Edipo!
o sacro juram ento impõe respeito,
m inha presença e a dos demais também,
CORO:
Em penha o coração e a mente; e cede!
É D IP O :
Em que devo ceder?
CORO:
Respeita um hom em que jam ais foi néscio
seu juram ento agora o engrandece.
É D IP O :
Sabes o que me pedes? ^
CORO:
Sim .
É D IP O :
Não deixes, pois, o dito por não dito.
CORO:
O amigo que jurou jam ais condenes,
fundam entado em boatos, à desonra.
É D IP O :
Pois sabes que com tal pedido estás
pedindo a m inha morte ou meu exílio?
CORO:
Por H élios-Sol, primaz divino, não!
M orra eu sem num e e sem amigo, acaso
eu pense nisso: tenha um fim tristíssim o!
Se amarga a m inha M oira: o coração
me aperta com o perecer de Tebas.
E a rixa atual agrava o mal antigo!
É D IP O :
D e ix a o partir, m esm o que eu me aniquile,
que prove, envilecido, à força o exílio.
Da fala dele eu não me apiedo, mas
da tua. O n d e ele vá, meu ódio o siga!
CREON :
Cedes e regurgitas ódio estígio.
70 Êdipo Rei de Sófocles
A ira passa, virá o pesar. Q uem tem
o teu perfil conhece o pior; é justo!
ÉD IP O :
Não vais partir? Deixar-me só?
CREON :
Partirei.
M e ignoras, outros têm-me por igual.
CORO:
Senhora, hesitas em levar Creon?
JO C A S T A :
A ntes quero saber do caso.
CORO:
O equívoco da suspeição surgiu
das palavras. Tam bém o injusto morde.
JO C A S T A :
Equívoco dos dois?
CORO:
Sim .
JO C A S T A :
E o que diziam?
CORO:
N ossa terra já sofre muito para
ficarm os repisando nesse assunto.
Êàipo Rei 71
ÉB&IPO:
Eis no que deu tuas nobres intenções! r y * '"
Não olhaste por mim, me entorpeceste.
CORO;
C on form e eu disse, rei, mais de uma vez,
seria um desatino (e eu um sem tino) 690
se abandonasse a quem de novo trouxe
à pátria, im ersa em dor, a boa brisa. 695
Rei, m ostram os de novo a via, alvíssara!
JO C A S T A :
Pelos deuses, explica-me, senhor:
qual fato provocou em ti essa cólera?
É D IP O :
D irei - ninguém merece tanto apreço - 700
o que planeja contra mim C reon.
JO C A S T A :
Serás bem claro ao denunciar-me a rixa?
É D IP O :
C reon afirm a: elim inei a Laio,
JO C A S T A :
C oncluiu por si ou foi por outro instruído?
É D IP O :
Enviou o vate para a ação nefasta; 705
pôde m anter assim sua língua limpa.
JO C A S T A :
Não deixes que esse assunto te aborreça.
72 Édipo Rei de Sófocles
não interfere nas questões hum anas.
Sucintam ente posso demonstrá-lo: 710
outrora Laio recebeu um oráculo 1 , ,, .
- senão do próprio A poio, de seus próceres ~
segundo o qual a M oira lhe traria
a m orte pelas mãos de um filho nosso. , '
í' ; >
■
Mas forasteiros - dizem - o mataram, ■ 715
ladrões na tripla interseção de estradas.
Q uanto ao m enino, em seu terceiro dia, , : ’
Laio amarrou-lhe os pés pelos artelhos,
mandou alguém lançá-lo a um m onte virgem.
Assim frustrou-se Apoio: nem o filho 720
assassinou o pai, nem padeceu
o rei - tem or maior! - nas mãos do filho,
tal qual fixara o vozerio profético.
Não te ocupes do nada. Q uando um deus
te m u m d e s íg n io , e le o e v id e n c ia . 725
É D IP O :
C in ese do pensar, errância psíquíca:
tua voz ecoa em m im , subitamente.
JO C A S T A :
Q ue afã te desgoverna enquanto falas?
É D IP O :
Tive a im pressão de ouvir de ti que Laio
tom bou na tripla interseção de estradas. 730
JO C A S T A :
Essa é a versão que desde então perdura.
Édipo Rei 73
É D IP O :
Indica o ponto exato da ocorrência.
JO C A S T A :
C ham am -no Fókis, onde se entrecruzam
veredas que vão dar em Dáulia e em Delfos.
É D IP O :
Q uanto tempo passou desde o assassínio? 735
JO C A S T A :
O an ún cio do ocorrido antecedeu V
um pouco tua chegada e o teu governo.
É D IP O :
\
Q ue decidiste, ó Zeus, fazer comigo?
JO C A S T A :
Q ue assunto, rei, ocupa o teu espírito?
É D IP O :
Pergunta-me depois! Fala de Laio: 740
Q ual seu aspecto físico? Q ue idade?
JO C A S T A :
D e porte grande, já com fios grisalhos,
os traços dele aos teus se assemelhavam,
É D IP O :
C on tra mim m esm o - creio - a maldição
acabo de lançar, sem o saber! 745
JO C A S T A :
C om o, senhor? Mirar-te o rosto assombra.
74 Édipo Reí de Sôfocles
É D IP O :
O -arúspice viu certo? - indago exânim e. A'
C onfirm arias, clareando um ponto apenas. - i
JO C A S T A : ' ; ■■
M e abala o m edo, mas direi, se o saiba. ' '
É D IP O :
Viajava com escolta reduzida, 750
ou com a tropa, com o cabe ao rei?
JO C A S T A :
No total eram cinco, o núncio incluído; ■
o único carro transportava Laio.
É D IP O :
Dor! D or! Tu d o se faz diáfano! Esposa,
quem vos passou a informação? Q uem foi? 755
JO C A S T A :
O servo que sozinho se salvou,
É D IP O :
Acaso ele se encontra agora em casa?
JO C A S T A :
O hom em , ao retornar a Tebas, quando
viu que reinavas em lugar do m orto,
to c a n d o as m in h a s m ã o s , v e io ro g a r-m e : 760
d e ix a s s e -o i r ao p a s to a trá s d o g a d o .
Bem longe dos demais, queria estar.
Em bora escravo, não lhe negaria
graça até maior. Dei meu sim. Partiu.
,/ / a ^
E D IP O :
, /f?
C om o trazê-lo aqui de volta, logo? . >, A ■ - » V ' 765
■
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\f-'x
JO C A S T A : ' ■t ... í v\ .. ■
■v
i -
■1
Não é difícil; mas com qual intuito? k i 1-
É D IP O :
O meu tem or, mulher, é ter falado
em deíaa&iãi- Por isso eu quero vê-lo.
JO C A S T A :
Ele virá, senhor. Nem m esm o a mim
é d a d o c o n h e c e r o q u e te a flig e ? 770
É D IP O :
Nada te ocultarei, chegado ao ápice
da expectativa. A o deparar-me com
o azar da sorte, quem m elhor me escuta?
Políbio, meu pai, era de C orin to;
m inha mãe, M érope, era dória. M áximo 775
na polis - viam-me assim - , até que o Acaso
impôs-me um caso digno de estug o r,
mas, para m im , indigno de desvelo.
U m hom em ébrio, já muito alto, num
festim, cham ou-m e filho putativo. 780
M uito abalado, a duras penas, eu
me contive esse dia, Alvoreceu.
Interroguei meus pais. Sentind o o ultraje,
reagiram contra quem o pronunciara.
Deixaram -m e feliz, mas logo aquilo 785
voltou-me a atorm entar, e sempre mais.
Fui em sigilo a Delfos, de onde - flâmeo -
Foibos, sem dar-me o prêmio da resposta,
76 Édipo Rei de Sófodes
me despediu, mas, num lam pejo, disse-me
o que previa: m iséria, dor, desastre.
Faria sexo com m inha própria mãe,
gerando prole horrível de se ver;
seria o algoz do meu progenítor.
Ouvi, fugi da pátria; mensurava
pelo estelário o quanto ela distava.
Q ueria achar um canto onde não visse
cumprir-se a infâm ia desse mau oráculo.
Em meu peram bular, cheguei ao ponto
em que m orreu, segundo afirmas, Laio.
Serei veraz, m ulher:, quando eu estava
perto de onde os cam inhos se trifurcam,
cruzei com um arauto; sobre o coche,
sentado, um hom em qual o já citado.
V indo de encontro a mim, o auriga_e..o_y.elho
me em purraram : devia dar passagem.
C olérico, esm urrei meu agressor
- o auriga - , e o velho, vendo-me ladear
o carro, à espreita, com chicotes duplos,
feriu-me bem no meio da cabeça,
Pagou preço m aior; no mesmo instante,
recebe um golpe do meu cetro. Rola
do carro, ao chão, decúbíto dorsal.
Executei o grupo. E, se o estrangeiro ^
tiver com Laio laços consangüíneos? ^
Alguém será mais infeliz do que eu,
a quem os Sem pi ternos mais execram?
Proibido ao cidadão e ao forasteiro
falar com igo ou receber-me em casa,
E clara a ordem : devem me expulsar!
C on tra m im m esm o impus a maldição.
Êdipo Rei 77
M anchei a tálamo do m orto com
as mãos que o assassinaram . V il, nasci?
Sou todo-nódoa? O exílio se me impôs
e, me exilando, os meus não mais rever,
não mais pisar C orinto, sob o risco 825
de unir-m e à m inha mãe, matar meu pai,
'O l r t ó 'i ij -p b l/’
de quem nasci, com quem eu aprendi.
Erra quem julgue que um dem ônio cru , r i i >5. 0 ' t ,J'
sobre o meu om bro fez pesar o azar? ) 7 „ >■
N ão, m agnitude imácula dos num es,
1 830
que eu não veja esse dia! A lheio ao mundo : ■1
prefiro estar, alguém já não-visível, r „ , , i j.. i r .-x
antes que sobre mim caia essa mácula.
CORO:
Nos angustiam os, rei. Mas a esperança
m antém , até que a testem unha chegue. 835
É D IP O :
\ y;
' V. A
Aguardar o pastor, som ente e só;
é o que me resta de Élpis - a Esperança.
JO C A S T A :
T ão logo chegue, qual tua expectativa?
É D IP O :
Explicarei: se com o teu relato
o dele coincid ir, já não me aflijo. 840
JO C A S T A :
O que eu falei de tão particular?
É D IP O :
Ladrões mataram Laio, ele afirmou,
78 Édt/JD Rei de Sôfocles
tu o disseste. Se confirm ar o núm ero
plural, concluo não ser o matador,
pois o um não pode ser igual a muitos.
Se m encionar um só viajante - um único
então a culpa incide sobre mim.
JO C A S T A :
Eu repeti som ente o que era público;
ele não pode, pois, voltar atrás:
toda cidade ouviu, além de mim.
Ainda que altere o seu relato prévio,
não provará, nem m esm o assim , o acerto
da profecia. A poio asseverou
que Laio m orreria às mãos do filho.
Sabem os bem que o pobre do garoto
já estava m orto quando o pai m orreu.
O ráculo nenhum , desde essa época,
me leva a olhar aqui ou acolá.
É D IP O :
Louvo teu raciocínio; m esm o assim,
envia alguém atrás do servo agora.
JO C A S T A : ic
Já cuidei disso. Entrem os no palácio.
Satisfazer-te sempre é a m inha meta.
CORO:
À sagrada pureza da linguagem
e do afazer, a M oira me destine:
leis - altos pés! - a fixam,
geradas através do urânio éter.
Delas o pai é o O lim po, e só o O lim po!
Nem as criou o homem perecível,
nem Lete - o oblívio - as adormece, 870
N elas, um megadeus nunca envelhece.
A desmedida gera a tirania.
A d e s m e d id a -
se a infla o excesso vão
d o in o p o r t u n o e i n ú t i l - 875
g a lg a n d o e x tre m o s c im o s , d e c a irá
n o p r e c ip íc io d a n e c e s s id a d e ,
o n d e o s pés n ã o tê m p ré s tim o .
Eu rogo ao deus:
perdure na cidade a bela pugna! 880
Que à frente eu sempre tenha o deus!
Q uem no falar ou no fazer
palm ilha a trilha da soberba,
valente contra o justo,
irreverente
com sédes sacras, 885
a M oira má o apanhe,
em paga pelo mal-fadado fausto -
se acaso lucre um lucro inju sto,
se não evite o sacrilégio, 890
se, desvairado, toque n o intangível.
Q uem nesse estado pode se gabar
de uma psique im une
aos dardos da fúria?
Se é honrosa essa conduta, 895
por que seguir o corifeu na dança?
Não mais irei em reverência
80 Édipo Rei de Só/ocies
ao inviolável ônfalo da Terra
- Delfos
ao tem plo de A be, à O lím pia,
se não se cum prem essas profecias -
se não servem de índice aos mortais.
Zeus Pai, senhor de tudo, não nos faltes,
não falhe o teu im pério semprevivo.
A voz-do-deus rejeitam :
não se perfaz o oráculo de Laio.
Já não reluzem glórias apolíneas.
O divino declina.
JO C A S T A :
O correu-m e, senhores, acorrer \
ao templo dos celestes, transportando
a dádiva dos ram os, dos incensos.
M últiplas dores hiperentorpecem
o ânim o do rei. Já não vê no novo
sinais do antigo, com o um hom em lúcido.
Cede a quem fala, se a fala é de horror.
Por não frutificarem meus conselhos,
rogo-tc, A poio, deus circunvizinho,
com dons votivos, trago m inha súplica:
a solução sagrada propicia-nos!
T ran storn o aterra a pólis toda quando
ao lem e vê um piloto acabrunhado.
M E N S A G E IR O :
A ndo no encalço de Édipo. Sabeis
dizer-me onde se encontra seu palácio?
Indicai-m e, estrangeiros, onde o acho!
CORO:
A li se encontra o rei, em sua morada.
Sua esposa é aquela, a mãe dos filhos dele.
M E N S A G E IR O :
Augúrio a ti, augúrio a quem te siga,
pleniperfeíta dama do m onarca.
JO C A S T A :
M ereces, forasteiro, os mesmos votos í
por tua linguagem tão cortês. Inform a:
o que te traz aqui, algum anúncio?
M E N S A G E IR O :
N otícia grata ao lar e ao teu m arido.
JO C A S T A :
Revela a nova! V en s de que cidade?
M E N S A G E IR O :
C orín to. O uvindo quanto eu com unico,
terás prazer por certo e dor, talvez.
JO C A S T A :
O que é? T em senso duplo o teu dizer.
M E N S A G E IR O :
Segundo corre, os ístm ios já se aprontam
para fazer do teu m arido rei.
JO C A S T A :
O ancião Políbio não governa mais?
M E N S A G E IR O :
Tânatos vela a sepultura dele.
JO C A S T A :
Estás dizendo que morreu Políbio?
M E N S A G E IR O :
Q ue m e atinja um raio, se propago o falso!
JO C A S T A :
Fâm ula, por que tardas a inform ar
o senhor? Profecias dos num es, com o
ficais agora? Há muito o rei fugiu,
para evitar assassinar Políbio;
e h oje levou-o o fado e não seu golpe.
É D IP O :
M inha cara Jocasta, esposa amada,
por que trazer-me aqui fora do paço?
JO C A S T A :
Ouve este mensageiro e considera
aonde o esplendor do oráculo nos leva.
É D IP O :
D o que se trata, o que nos vem dizer?
JO C A S T A :
O riu nd o de C orin to, nos inform a
o passam ento de teu pai Polibio.
É D IP O :
D esejo ouvir de ti, estrangeiro. Fala!
M E N S A G E IR O :
Irei direto ao cerne da mensagem:
Políbio para sempre nos deixou.
É D IP O :
O que o matou, moléstia ou foi complô?
r(iV'- Êdipo Rei 83
M E N S A G E IR O :
U m sopro fraco abate um corpo idoso. \bb>J
É D IP O :
Enferm idade então levou o velho.
M E N S A G E IR O :
Além da m acrom edição de C ronos.
É D IP O :
M ulher, qual o sentido de observar
o recinto profético de Píton, 965
as aves, com o ululam céu acima?
Não me cabia matar meu próprio pai?
Agora sob a terra jaz; sequer
toquei em m inha espada. A cau sa mortis
foi m inha ausência? Então serei culpado. 970
Políbio tais oráculos consigo
levou ao Hades, letra morta, nada.
JO C A S T A :
Não era o que eu hâ muito predizia?
É D IP O :
Mas à m ercê do medo eu me encontrava.
JO C A S T A :
Pois deixa de afligir teu coração! 975
É D IP O :
D orm ir com m inha mãe ainda me assusta.
JO C A S T A :
Fará sentido o padecer hum ano,
se o A caso impera e a previsão é incerta?
M elhor viver ao léu, tal qual se pode.
Não te am edronte o enlace com tua mãe,
pois muitos já dorm iram com a mãe
em sonhos. Q uem um fato assim iguala
a nada, faz sua vida bem mais fácil.
É D IP O :
N enhum reparo ao teu discurso, esposa,
se a mãe que me gerou não mais vivesse.
T u a fala bela não me anula o medo.
JO C A S T A :
A tum ba do pai, olho enorm e a guíar-te.
É D IP O :
Enorm e, eu sei. Mas ela vive e eu temo.
M E N S A G E IR O :
Mas qual m ulher vos am edronta tanto?
É D IP O :
M érope, velho, a esposa de Políbio.
M E N S A G E IR O :
E o que ela tem que vos atemoriza?
É D IP O :
D o deus provém um duro vaticínio.
M E N S A G E IR O :
É público ou dizê-lo não é lícito?
Édito Rei R5
É D IP O : , ,
É lícito. M eu fado - A poio disse - C /v' ^/! Av r ' ' 4 :
seria fazer amor com m inha mãe, Á í) ^ 995
das mãos vertendo o sangue de meu pai.
Eis o motivo pelo qual C orín to
virou lugar longínquo. Tive o bem
do acaso, mas rever meus pais, quem dera!
M E N S A G E IR O :
O exílio decorreu desse pavor? , 1000
É D IP O :
Q uis evitar também matar meu pai.
M E N S A G E IR O :
Por que não pus um fim no teu tem or,
se aqui cheguei com intenções honestas?
É D IP O :
D e m im receberás um prêmio digno.
M E N S A G E IR O :
Pois vim principalm ente para obter, 1005
quando ao lar retornares, uma dádiva.
É D IP O :
A m im jam ais verás no lar paterno.
M E N S A G E IR O :
É claro, filho: ignoras quanto fazes.
É D IP O :
C om o, ancião? Pelos num es, dá-me um norte!
86 Édipo Rei de Sôfocles
M E N S A G E IR O :
Se esse casal é a causa de tua fuga,..
É D IP O :
Eu tem o a flâmea lucidez de Foibos.
M E N S A G E IR O :
Tem es contrair o miasma de teus pais.
É D IP O :
Exatam ente: é a sina que me assombra.
M E N S A G E IR O :
Pois não tem fundam ento o teu pavor.
É D IP O :
M as com o, se eles são meus genitores? 1015
M E N S A G E IR O :
Não tinhas parentesco com Políbio.
É D IP O :
Com o? Políbio não me deu a vida?
M E N S A G E IR O :
Nem mais nem m enos que este com quem falas.
É D IP O :
Então devo concluir: ninguém me fez?
M E N S A G E IR O :
N em ele te gerou, nem eu gerei. 1020
É D IP O :
Por que Políbio me dizia: meu filho?
M E N S A G E IR O :
De m im - direi! - te recebeu: um dom. ' v y :.
É D IP O :
Por que tão grande am or se eu vim de um outro?
M E N S A G E IR O :
Falta de um filho explica-lhe o querer.
É D IP O :
Fui dom com prado ou fui um dom do acaso? 1025
M E N S A G E IR O :
T e achei no estreito escuro do Citero.
É D IP O :
C om qual escopo andavas por ali?
M E N S A G E IR O :
D o rebanho m ontês me encarregava.
É D IP O :
Eras pastor e pela paga erravas?
M E N S A G E IR O :
Teu salvador - diría - àquela altura. 1030
É D IP O :
Q uando me ergueste, eu tinha alguma dor?
88 Êdipo Rei de Sófocles
M E N S A G E IR O :
Teus pés dão, por si sós, um testem unho.
É D IP O :
Por que recordas esse mal remoto?
M E N S A G E IR O :
Livrei teus pés, furados nos extrem os.
É D IP O :
Infâm ia que me avilta desde o berço.
M E N S A G E IR O :
Fortuna assina no teu nom e a sina.
É D IP O :
E quem me deu o nome? Pelos num es!
M E N S A G E IR O :
Q uem me fez a doação talvez o saiba.
É D IP O :
A um outro coube o acaso de encontrar-me? |/.J /
M E N S A G E IR O :
T e recebi das mãos de outro pastor,
É D IP O :
Q uem é? Tu podes identificá-lo?
M E N S A G E IR O :
Segundo consta, um servidor de Laio.
Étiífjo Rei 89
É D IP O :
D o rei que outrora governava Tebas?
M E N S A G E IR O :
Precisam ente; a mais ninguém servia.
É D IP O :
Ele ainda vive? A m inha idéia é vê-lo. 1045
M E N S A G E IR O :
Devem sabê-lo os hom ens da cidade.
É D IP O :
Alguém presente pode me dizer
quem é o pastor por ele m encionado?
N inguém o viu no cam po ou na cidade?
Esta é a ocasião de esclarecerm os tudo! 1050
CORO:
O uso opinar que esse hom em e o pastor
buscado são idêntica pessoa.
M elhor do que ninguém dirá Jocasta.
É D IP O :
Esposa, quem há pouco procuravamos
é o m e s m o q u e e le a g o ra n o s m e n c io n a ? 1055
JO C A S T A :
Que te im porta saber de quem se fala?
Esquece! É vão rem em orar palavras,
É D IP O :
Im possível, com base em tais indícios,
deixar de elucidar a m inha origem.
90 Êdípo Rei de Sófocles
JO C A S T A :
Pelos deuses! Se tem valor tua vida,
im ploro, pára! Basta o meu sofrer.
É D IP O :
Tem brio! M esm o se eu for escravo ao
- de mãe da mae da mãe - , o mal é meu.
JO C A S T A :
M as eu, contudo, insisto: encerra a busca!
É D IP O :
Só encerro quando tudo esclarecer. 1065
JO C A S T A :
Desejo-te o m elhor, quando te falo.
É D IP O :
Há m uito esse m elhor só me angustia.
JO C A S T A :
Pudesses ignorar tua identidade!
É D IP O :
Alguém me traz aqui o pastor ou naol
Q ue ela se gabe de sua rica estirpe!
JO C A S T A :
A i, infeliz! É o termo que m elhor
contigo casa, agora e no porvir.
CORO:
Selvagem dor inquieta tua m ulher
É d ip o R ei 91
em sua partida. Q ual motivo? Eu temo
que do silêncio dela irrompa um mal. 1075
É D IP O :
Irrom pa o que ela queira! A mim me obceca
saber da m inha origem, mesm o baixa.
Talvez o orgulho - um traço fem inino -
explique o seu desprezo por meu berço.
Filho de Tykhe, assim me denom ino! 1080
M e deste o bem , não ficarei sem honra,
A casoT ykhe-M ãe. Me demarcaram
os meses de nascença: grande e m ínim o.
Nascido assim , não posso ser diverso,
deixando inexplorada a m inha gênese. 1085
r
CORO:
Pelo O lim po!
Se sou clarividente,
alguém dotado de intuição certeira,
C itero,
ao ^plenilúnio de am anhã, 1090
não mais serás espaço sem lim ites:
te exaltam - mãe, nutriz, a pátria de Édipo!
Dançarem os em tua honra -
de ti provém o jú bilo do rei. 1095
A poio,
senhor do grito lenitivo,
que te agrade a festa!
Q uem te gerou, menino?
Q ue ninfa sempreviva
acolheu Pã, 1100
em trânsito nos píncaros?
92 Édipo Rei de Sófocles
Q ue ninfa foi atrás do oblíquo Lóxias,
a quem a g p z o plaino das pastagens?
A H erm es, senhor C ilênio, ou
ao deus do frenesi bacante,
cuja morada é o pico das m ontanhas,
uma das ninfas do H élicon - seu par
no prazer - te ofertou, recém-achado?
É D IP O :
Senhores, eu jam ais travei contato
com o pastor há muito procurado.
A rriscarei dizer, porém, que o vejo.
V elh o na idade, àquele este é sim étrico.
M eus servos o conduzem. Reconheço-os.
M elhor do que ninguém deves sabê-lo,
pois o pastor o viste anteriorm ente.
CORO:
T e n h o total certeza de que é ele.
Pastor, mais que ninguém foi fiel a Laio.
É D IP O :
C orín tio, eu quero ouvir prim eiro a ti:
a ele te referias?
M E N S A G E IR O :
A quele é quem tu vês.
É D IP O :
O lh os nos olhos, velho, a quanto indague,
responde: pertenceste outrora a Laio?
Édipo Rei 93
SER V O :
C resci no paço, um servo, não comprado.
É D IP O :
Q ual afazer te garantia a vida?
SER V O :
T oqu ei por quase toda vida o gado. 1125
É D IP O :
Por onde preferencialm ente andavas?
SER V O :
Pelo C itero e suas imediações.
É D IP O :
Por acaso conheces aquele homem?
SER V O :
Se ocupava de quê? De quem tu falas?
É D IP O :
Daquele ali. Alguma vez o viste? 1130
SER V O :
Não me recordo assim abruptam ente.
M E N S A G E IR O :
Não me surpreendo, rei. Mas vou lembrá-lo
do que afirm a ignorar, pois é impossível
ter apagado da memória os tempos
do C itero. Eu tocava um só rebanho, 1135
e ele, dois. Três períodos de convívio,
94 Édipo Rei de Sófocles
da prim avera até surgir Arcturo.
No inverno, eu recolhia a grei ao estábulo,
enquanto ele abrigava os bois de Laio.
C onfere ou não confere com os fatos? 1140
SER V O :
M uito passou, mas não alteras nada.
M E N S A G E IR O :
Recordas que um m enino então me deste,
para eu dele cuidar, qual fora um filho?
SER V O :
O que pretendes com toda essa história?
M E N S A G E IR O :
Este senhor, meu caro, é aquela criança
SER V O :
V ai para o inferno! Cala tua matraca!
É D IP O :
Não o censures, velho! Tua linguagem
merece mais censura do que a dele.
SER V O :
O nd e eu errei, senhor inigualável?
É D IP O :
C alando sobre a criança m encionada.
SER V O :
Ele ignora o que diz, perde seu tempo.
Édipo Rei
É D IP O :
Por bem não falas? Falarás chorando!
SER V O :
Invoco os num es: poupa um hom em velho!
É D IP O :
Por que a dem ora em lhe am arrar as mãos?
SER V O :
Tristeza! A que vem isso? Q ual tua dúvida?
É D IP O :
O garoto em questão, a ele o entregaste?
SER V O :
Sim . Por que eu não m orri naquela data?
É D IP O :
Pois m orrerás, calando o que não deves.
SER V O :
E se eu falar, há de vir pior morte.
É D IP O :
O velho, ao que parece, ganha tempo.
SER V O :
D e m odo algum. Não disse que eu o dei?
É D IP O :
E qual a procedência do menino?
96 Édipo Rei de Sófocles
S E R V O :'
Não era meu; de alguém o recebi.
É D IP O :
De alguém da pólis? O nde ele reside?
SER V O :
Pára de invesdgar, suplico, mestre! 1165
É D IP O :
És hom em m orto, se de novo indago.
SER V O :
Pois bem ; de alguém do círculo de Laio.
É D IP O :
Nasceu escravo; é filho do palácio?
SER V O :
Estou a ponto de falar o horror.
É D IP O :
E eu de ouvi-lo; mas é preciso ouvir. 1170
SER V O :
Filho do rei, diziam. Lá dentro está
quem pode dar detalhes: tua mulher.
É D IP O :
Foi ela quem te deu a criança?
SER V O :
Exatam ente, rei.
É D IP O : Éd
C om que finalidade? ipo He
9?
SER V O :
Para dar cabo dele.
É D IP O :
A própria mãe? Incrível!
O
SER V O :
Tem ia um mau oráculo.
É D IP O : u 7s
Qual?
SER V O :
Seria o m atador dos pais - diziam.
É D IP O :
Por que motivo então o deste ao velho?
SER V O :
Me condoí. Pensei: ao seu país
de origem levará o m enino. Para
um mal m aior, salvou-o. Se és quem ele
diz, crê: nasceste para a desventura. . ^ o Ç lò ' 1 " ' ' I'
1 18o
É D IP O :
Tristeza! T u d o agora transparece!
Recebe, luz, meu derradeiro olhar!
De quem, com quem , a quem - sou tripl0 equívoco:
ao nascer, desposar-me, assassinar! 1185
98 Édipo Rei de Sófocles
CORO:
Estirpe hum ana,
o com puto do teu viver é nulo.
Alguém já recebeu do demo um bem 1190
não lim itado a aparecer
e a declinar
depois de aparecer?
Es p a ra d ig m a ,
o teu dem ônio é paradigma, Édipo:
m o r ta is n ã o p a r tic ip a m d o d iv in o . 1195
C om a hipérbole do arco,
lograste o plenifausto
do bom -dem ônio.
Por Zeus!
Tu abateste a Esfinge,
- a virgem de unhas curvas! - ,
com seu canto-vaticínio.
Em prol da pátria então se ergueu 1200
uma torre contra Tânatos.
E houve o clam or (também clamei):
Basileu!
T e coube a distinção extrema:
reinar em T ebas, a magnífica!
Q uem tem reputação mais triste agora?
Q uem sofre tanta dor, tão dura agrura, 1205
no revés da vida?
Inclito chefe, Édipo!
U m só porto, um único
bastou ao pai e ao filho
no serviço das núpcias -
cair, subindo ao tálam o.
Édipo Rei 99
r
C om o o cam po semeado pelo pai,
silente, te acolheu por tanto tempo? 1210
M algrado teu, C& j-O
a pan-visão de C ronos te descobre:
faz muito julga núpcias anti-núpcias
o gerar e o gerado. 1215
Filho de Laio,
jam ais quisera ver-te!
Lam ento sem limite:
da boca saem-me nênias.
Serei veraz: me deste alento, 1220
na escuridão meus olhos adorm eço.
ARAUTO:
M agnos senhores! Cidadãos eméritos!
Sofre a visão, o ouvido sofre, sofre
o coração de quem ainda m antém 1225
com os Labdácidas sinceros laços.
Purificar o paço do que oculta?
Nem o D anú bio - penso - , nem o Fásis.
M ales virão à luz em breve, males
voluntários e não-involuntários. 1230
A s piores dores são as auto-impostas.
CORO:
N os pesam dem asiadam ente os fatos
conhecidos. O que nos acrescentas?
ARAUTO:
A mensagem mais rápida a quem diz
e a quem ouve: morreu Jocasta, augusta. 1235
100 Édipo Rei de Sófocles
CORO:
Pobre m ulher! E com o faleceu? /ywJ ü J
ARAUTO:
Foi ela versus ela. Mas os olhos
não presenciaram o ato mais doído.
T an to quanto a memória me permita,
conhecerás seu triste padecer:
tão logo ultrapassou o um bral do tálamo,
jogou-se ao leito a dama enfurecida,
repuxando - am bidestra - a própria coma.
Entrou, por dentro aferrolhou a câmara,
cham ando Laio, apenas um cadáver.
E recordava a gravidez: dali
proviera a m orte dele e a gestação
de sua degenerada descendência.
C horava o leito em que gerara em dobro:
nato do esposo o esposo; de seu filho, 1250
filhos. Não sei com o ela faleceu.
U rran d o o rei entrou e não pudemos
testem unhar o perfazer da morte;
mirávamos os giros de seus passos.
N o vai-e-vem, demanda a própria espada 1255
e a esposa hão esposa, dupla seara
m aternal, dele e de seus filhos todos.
A o transtornado, um demo a indica, e não
qualquer de nós que estávamos presentes.
C om grito horrível, com o se o puxassem, 1260
arremessou-se contra as portas duplas
e entrou, forçando os gonzos dos encaixes.
A li, suspensa, a vim os, nossa rainha,
pela rosca da corda estrangulada.
U rro brutal à frente, o rei desata 1265
Édipo Rei 101
o laço aéreo. A pobre então repousa
e um espetáculo terrível se arma.
Ele arrancou das vestes de Jocasta
os fechos de ouro com que se adornava,
e, erguendo as mãos, o círculo dos olhos 1270
golpeou. Gritava então que não veríam
o mal causado nem o mal sofrido,
mas no porvir-negror veríam quem não
deviam, sem conhecer quem lhes faltava.
U m h in o funerário! E, abrindo as pálpebras, 1275
golpeava repetidam ente os olhos.
Pupilas rubras banham sua barba.
Não era um gotejar sangüíneo, mas
um chover de granizos-melanina.
O mal rom peu da dupla, e não de um único; 1280
o mal uniu os dois m aritalm ente.
O jú bilo de antanho fora um júbilo
veraz. Agora, choro, ruína, Tânatos,
vergonha, afronta, quanto se nom eie
da catástrofe, tudo está presente! 1285
CORO:
Dá trégua à dor agora o sem-ventura?
M E N S A G E IR O :
M anda abrir os portais aos gritos: mostrem
o parricida, alguém com cuja m ãe...
não ouso repetir-lhe os term os ímpios!
Q uer o desterro, quer deixar o paço, 1290
conform e a m aldição que proferira.
Falta-lhe força, além de um condutor;
o mal lhe pesa dem asiadam ente.
De mais ninguém se oculta: já destrancam
102 Édipo Rei de Sófocles
os portais. T u verás um espetáculo 1295
de causar pena até nos desafetos.
CORO:
Terrível presenciar o teu sofrer!
D e tudo quanto eu vi, o mais terrível!
Q ue delírio, infeliz, te atropelou?
Q ual deus-dem ônio, de um só salto, 1300
transpassa uma distância máxima,
im pondo os pés sobre tua moira demoníaca?
T riste Édipo!
Se te encaro, esm oreço. E havia
tanto a inquirir,
tanto a saber, 1305
tanto a sondar!
T rem or sem par em mim suscitas.
É D IP O :
Dor! Agrura!
A onde levam meu peso-morto?
M inh a voz voa longe: aonde? 1310
A onde me arrojas, deus-demônio?
CORO:
A um h orror não audível, não visível.
É D IP O :
M inh a nuvem-negror!
Teu vai-e-vem é intraduzível,
sem dom ador, sem norte! 1315
Desgraça e mais desgraça!
M e invade a fúria
do acicate e a m em ória da miséria.
Édipo Rei 103
CORO:
N ão surpreende que, em m eio a tanto horror,
chores em dobro, em dobro o fardo pese. 1320
É D IP O :
Amigo,
ainda m anténs por mim o teu apreço;
de um cego ainda te ocupas.
Tristeza!
Percebo tua presença. Da penum bra, 1325
tua voz eu reconheço claram ente.
CORO:
C om o pôdes ferir assim teus olhos?
Tua ação assom bra! U m deus te ensandeceu?
É D IP O :
Apoio o fez, amigos, Apoio
me assina a sina má: pena apenas. 1330
Ninguém golpeou-me,
além das m inhas mãos.
V er - por quê?
se só avisto amarga vista? 1335
CORO:
É exatam ente com o o dizes.
É D IP O :
A mim é dado ver, amar? O quê?
T irar prazer de uma conversa, amigos?
Levai-me para longe, agora! 1340
Levai-me, grão-nefando, amigos!
O m a ld it o - m o r , 1345
o m a is o d io s o fa ce aos d e u se s.
104 Êdipo Rei de Sófocles
CORO:
Fado infeliz, espírito infeliz.
M elhor que não soubesses nada! Nunca!
É D IP O :
A ntes m orrera quem meus pé.s
- seja quem for! - 1350
livrou das duras travas, no erm o campo.
O que ele fez não foi favor.
M orto, tam anha dor eu evitara
aos amigos e a mim. 1355
CORO:
C on cord o totalm ente.
É D IP O :
Não teria sido um parricida,
de m im ninguém diria: esposo
de quem lhe deu a vida.
Sem deus agora, filho de sacrílegos, 1360
em hom ogênese com quem me fez.
Se prévio a um mal existe um mal
m a io r , a m im c o u b e v iv ê -lo . 1365
CORO:
D ifícil aprovar tua atitude.
M elhor não ser do que viver na treva.
É D IP O :
Não venhas com um tom professoral
dizer-me o que é m elhor, me dar conselhos. 1370
C om que olhos poderia encarar meu pai,
além de m inha mãe, descendo ao Hades?
Édipo Rei 105
Estrangular-me não faria justiça
a quanto com eti contrário à dupla.
Poderia desejar à m inha frente
ter meus filhos, nascidos tais e quais?
Vedada é essa visão ao meu olhar.
E quanto à pólis, quanto ao m uro, quanto
aos deuses, sacro amálgama de estátuas?
Pan-infeliz, de tudo eu me privei, 1380
- alguém que ao máximo chegou em T e b a s .-,
ao decretar o isolam ento do ím pio,
de um hom em revelado im puro pelos
deuses e pelo clã de Laio. C om o
o lh a r a lg u é m n o ro s to , a s s im m a n c h a d o ? 1385
Im possível! Pudesse pôr no ouvido
lacre auditivo, e eu não hesitaria
em isolar meu pobre corpo: surdo,
além de cego. D oce é o pensam ento
q u e n ã o h o s p e d a o m a l e m su a m o ra d a . 1390
Por que, C itero, não me rejeitaste,
ou, me acolhendo, não me assassinaste?
O m undo ignoraria a m inha origem.
O Políbio, ó antigo paço pátrio
(me diziam), ó C orin to, belo príncipe 1395
criastes: velava um ser nefasto. E claro:
um hom em vil nascido de dois vis.
C am inhos trifurcados, vale fosco,
arvoredo, ju nção da rota tríplice,
bebestes sangue meu, sangue paterno, 1400
que m inhas mãos verteram. Recordais?
O s crim es com etidos ju nto a vós,
eu os m ultipliquei, chegando a Tebas.
Geraste-m e, conúbio, e germ inaste,
sem eando o m esm o sêm en. Revelaste 1405
106 Édipo Rei de Sófocles
pais, irm ãos, filhos - tribo hom ossangüínea
fêmeas, mulheres-mães, o quanto houver
de mais abom inável entre os hom ens.
O que não é belo de dizer, não é belo
de fazer. Pelos deuses, me ocultai
alhures, logo. M e arrojai à cripta
talássea, onde jam ais alguém me aviste.
Apavora-vos pôr as mãos num pária?
T em o r im procedente: o mal é meu;
além de mim , não há quem o suporte.
CORO:
C reon chegou e corresponderá
ao teu anseio em atos e em conselhos:
nosso único guardião, em teu lugar.
É D IP O :
D ifícil encontrar o tom correto.
Q ue lhe dizer, para legitimar-me,
se outrora fui com ele atroz em tudo?
C ct y \n ru A
CREON :
Não venho com intuito zombeteiro,
nem para reprovar-te o mal de outrora.
Se os hom ens não merecem mais respeito,
a H élios-Sol, pan-nutridor, honrai
- senhor-da-flama - , e não deixai a mácula
assim exposta. A Terra-Gaia e mais
a chuva sacra e a luz recusam Édipo.
C abe levá-lo à sua morada rápido.
O uvir e ver o mal de alguém restringe-se
- é lei divina - aos m em bros da família.
Édipo Rei 107
É D IP O :
Alívio! N ão se cumpre o que eu previa -
ao pior dos hom ens o m elhor acode.
Ouve-me; falarei em teu favor.
CREON :
Por q u e to d o esse e m p e n h o ? O q u e p re te n d e s ? 1435
É D IP O :
M anda-m e em bora logo desta terra,
aonde ninguém a mim dirija a voz.
CREON :
Teria sido esse o meu procedim ento,
não se devesse ouvir o deus prim eiro.
É D IP O :
Mas seu pronunciam ento foi claríssim o
elim inar o parricida, o im puro. 1440
CREON :
Assim o disse, mas a situação
é tal que dele espero a diretriz.
É D IP O :
Por que sondá-lo por um miserável?
CREON :
U m a ocasião de crer no deus terias.
1445
É D IP O :
E a ti ordeno e a ti exortarei:
enterra a que no paço jaz, cum prindo
108 Édipo Rei de Sófocles
tu m esm o, pelos teus, o que é devido.
E quanto a m im , enquanto eu viva, a pólis
pátria jam ais me julgue digno dela. 1'50
Q ue eu parta para o m onte cujo nom e
se liga a mim: C itero - meu sepulcro! - ,
com o meu pai e m inha mãe queriam .
O que em vida buscaram, tenham mortos!
Mas direi: nem me arruinará doença, 1-55
nem outra causa. A ntes, quase m orto,
se eu me salvei, foi para um mal terrível.
Q ue a M oira me encam inhe ao meu destino!
M inh a linhagem m asculina não
requer cuidados; hom ens, saberão 1-60
escapar à penúria, onde estiverem.
Já m inhas filhas tão am esquinhadas,
que à m inha mesa sempre se sentavam
perto de mim , comigo degustando
tudo o que me servissem no repasto, U65
precisam de atenção. Deixa eu tocá-las,
deixa com ambas lam entar a dor.
Senhor! Atende-me,
nobre nato! Se m inhas mãos as tocam,
será com o antes, quando ao lado as via.
Deliro?
Escuto as duas se desm anchando em lágrimas?
C reon condoeu-se e conduziu aqui
meu bem de mais valor, as m inhas filhas?
Será possível? W75
CREON :
T om ei a providência eu m esm o, certo
de propiciar a ti o prazer antigo.
Édipo Rei 109
É D IP O :
T e ajude o A caso e o num e em teu cam inho
coloque o bem do acaso que eu não tive.
Aproxim ai-vos, filhas - onde estais? 1480
tocai as mãos irmãs, as m inhas mãos,
que vos fizeram ver assim os olhos
antes radiosos de quem vos gerou.
Sem nada perceber ou suspeitar,
onde eu fora semeado fiz-me pai. - 1485
C h o ro por vós, pois não vos posso olhar,
pensando no amargor da vida que
o convívio com outros vos reserva.
A qual encon tro ou festa não ireis
na pólis, sem voltar à casa aos prantos, 1490
excluídas dos prazeres do espetáculo?
E quando vier a época das núpcias,
quem se apresentará, quem correrá
o risco de tam bém sofrer injúria,
desastre de meus pais, de m inhas filhas? 1495
Falta algum mal? A o pai o pai das duas
assassinou, semeou o cam po em que
fora ele m esm o fecundado. De onde
ele próprio nasceu, gerou as filhas.
Acum ulam -se injúrias. Q uem vos quer? 1500
Ninguém se com prom eterá. Espera-vos
um declinar estéril, sem noivado.
C reon M enécio, a paternidade de ambas
cabe som ente a ti: o par que as pôs
no m undo é m orto. Impede que sobrinhas 1505
andem ao léu, à míngua, sem m arido.
Não as rebaixes ao meu nível mau.
Tem pena! V ê: na flor da idade e falta-
lhes tudo, salvo o que de ti provier.
110 Édipo Rei de Sófocles
V ai! Pondo a mão em mim , senhor, diz sim.
M aduras no pensar, escutarieis
m il conselhos. Rogai, por m im , aos deuses!
V ivei, seja qual for a circunstância.
C olh ei de Bios o que eu não conheci.
CREON :
Põe fim ao teu lam ento e volta ao paço!
É D IP O :
Se não tenho outra escolha, volto.
CREON :
Tudo n o tem po certo é belo.
É D IP O :
M as, sabe, condiciono a volta.
CREON :
Saberei, se o disseres.
É D IP O :
M e expulsa do país.
CREON :
Pedes um dom divino.
É D IP O :
Sou quem os deuses mais odeiam.
CREON :
O que pedes terás então.
É D IP O :
C onsentes?
CREON :
Não falo em vão o que eu não penso.
E D IP O : 1520
Leva-me em bora já!
CREON :
V ai, mas tuas filhas ficam.
É D IP O :
Privar-me delas? Não!
CREON :
Não queiras poder tudo!
D o poder não ficou rastro em tua vida.
CORO:
O lh ai o grão-senhor, tebanos, Édipo,
decifrador do enigma insigne. Teve 1525
o bem do A caso - Tykhe - , e o olhar de inveja
de todos. Sofre à vaga do desastre.
A tento ao dia final, hom em nenhum
afirme: eu sou feliz!, até transpor
- sem nunca ter sofrido - o um bral da morte. 1530
'
v r'-- -
.
O lA in O Y I TYPANNOZ
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T£2 xéKvcx, KáÔpou xoG -rráXai véa xpoçrp
xtvaç Tto0" Môpocç xáaÔe poi GoócÇexe
ixxr)pioiç xXáôoiaiv èÇEOXEppévoi;
TtóXiç ô' ópoG pèv Gupiapáxcúv yépEi,
òpou ôè uaiávcov xe Kal oxEvaypócxcov s
áyà> ôixoucòv pf) mxp' áyyéXcov, xéxva,
<SXX<ov ókoóeiv aòxòç g5 ô’ èXi^Xu0a,
ó Ttccai k Xeivòç Oiôí-rrouç xocXoupEvoç.
áXX\ ô yEpaiè, cppáÇ’, èrcEi npé-rtcov Ê<j>uç
upò xcovÔe tpcovEÍv, xívi xpÓTtcp xaGéaxaxE, 10
ôeíoccvxeç, axép£,avxE<;; cbç GéXovxoç &v
èpou itpooapKEÍv ir â v ôuaáXyrixoç y à p ã v
EÍr]v xoiávÔE pf] xaxoixxipcov gôpav.
iEPEYZ
áXX’, & xpocxúvcov Oiôfotouç; xòpocç èprjç,
ópâç pèv f|pâç f|X(xoi upocr^pEGa 15
(3copoiai xotç aoít;' oi pèv ouôéirco paKpàv
itxéaGat aGévovxEÇ, oi ôè oòv yr|pçr {Japslt;
116 OlAinOYX TYPANNOZ
iepfjç, áyò pèv Z^voq, oI&e t’ fiGécov
Xekxoí' xò 5’ dXXo <pGXov èÇ&crreppévov
dyopaícn GaKEÍ, irpóp te FlaXXá&oc; ônrXoíç 20
vaotp, áu’ Mapr)voG xe pavxsta aitoBcò.
ttóXiç yàp, &cmep Kaòxòp EÍoopâp, áyav
fjõr] aaXEÚEi KdvaKOU<p[oai Kápa
puGwv et’ oí>x ola xe poivíou aáXou,
çGtvouoa pèv KáXuÇiv èyKápTtoic; yQovòç, 25
çGtvouaa 6’ áyÉXaip pouvópoiç, xókoioí. xe
áyóvoiç yuvaiKcSv áv &’ ó -rtupcpópoç Geòp
oK%aq èXaúvEL, Xoipòç ^Giaxot;, itóXiv,
òcf>’ o5 kevouxocl &cõpa KaSpetov' péXaç ô
“Ai5r)p oxEvaypoíç Kal yóoiq nXouxíÇExai. 30
GeoToi pév vuv oòk taoúpEvóv o' èyò
oòô’ oíôe iraí&EÇ èÇópEaG’ èpéaxioi,
dvôpôv &è Ttpõxov Mv xe auppopalq piou
KptvovxEc; £v xe ôaipóvcov E.uvaXXayaTc;
6ç y’ á^éXuoaq daxu Ka&peíov poXòv 35
OKXrjpâp áoi5oG ôaopòv ôv TtapEÍxopev,
kocI xocuG’ LKp’ fjpcov ou&ev è^Eiôcop uXéov
oò&’ áKÔi&axGek, dXXà -ripooG^Kfl Geou
XéyEi voptÇei 0’ f|piv òpGcòaai piov.
vuv x’, <S Kpáxioxov Ttâaiv Oiôtirou Kápa, 40
ÍK E X E Ú O p á v OE T td v X E p O Í& E TTpÓOXpOTTOl
dXKr)V xiv’ EÚpEÍv -fip.lv, eíxe xou Geôv
çf|pr]V dKoóoaç eíx’ àit’ àvõpòq oloGá -rrou.
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OIAinOYZ TYPANNOI 117
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MOSAICO HER MEN ÊUT ICO *
1. A p o io e F a lso O rácu lo
No Edipo, tanto Apoio quanto seus ministros são triunfantemente
justificados e o ceticismo de Jocasta e Edipo, condenado. Sófocles dá
suporte à religião tradicional contra ataques contemporâneos. A crítica
aos o rácu lo s era p articu larm en te com um na época da guerra do
Peloponeso. Oráculos falsos eram produzidos em larga quantidade, e o
mercador de oráculo tornou-se referência no teatro cômico. Tucídides
nos diz que só uma das profecias sobre a guerra do Peloponeso revelou-se
verdadeira, e Eurípides, em seu Filoctetes (produzido em 431), afirmou
que a profecia não passava de ilusão. Nessa atmosfera, Sófocles escreveu
o Edipo, para defender o que era para ele, como para Sócrates, um dos
fatos basilares da religião1.
* Como a própria palavra mosaico sugere, o critério de seleção dos textos apresentados
a seguir não se baseou numa idéia pré-concebida de unidade. Procurei não me restringir ao
campo helenístico, incluindo autores que analisam a peça e o mito de Edipo do ponto-de-
vista antropológico, filosófico, histórico, literário e psicanalítico. A dificuldade maior desse
tipo de seleção se deve ao fato de a bibliografia sobre o tema ser vastíssima e proliferante.
Apesar das lacunas inevitáveis, creio que as passagens que compõem a coletânea poderão
despertar no leitor o interesse de reler o drama de Sófocles de ângulos diferentes.
1. T. B. L. Webster, An lntroduction to Sophocles, Tire Clarendon Press, 1936.
164 Edipo Rei de Sófocles
2. S a b er e R u ín a Im erecid a
Edipo Rei apresenta a degradação de um homem notável e próspero
por causa dos deuses. Tal degradação é imerecida; não é uma punição
por insolência, nem decorre, em última instância, de alguma falha de
julgamento ou de caráter no homem. O s deuses exibem seu poder por
que assim o desejam. Mas, uma vez que o exibem, o homem pode aspi
rar, a uma lição salutar. Isso é mantido em suspenso até o final da peça,
quando o coro,- ou talvez o próprio Edipo, aponta a extensão de sua
queda e comenta:
Atento ao dia final, homem nenhum
afirme: eu sou feliz!, até transpor
- sem nunca ter sofrido - o umbral da morte.
... Após os eventos terríveis e mortificantes, esse final do Edipo Rei
pode parecer um pouco sem graça. Contudo, ele proporciona um final
tranqüilo, tal como os gregos apreciavam, e é a conclusão de Sófocles
sobre o que ocorreu anteriormente2.
3. T r a je tó r ia do H erói M a ra v ilh o so
C om o casamento e a ascensão ao trono, Edipo completa a trajetória
do herói do conto maravilhoso. O conto maravilhoso normalmente ter
mina nesse ponto. O herói no conto maravilhoso descende historicamen
te dos criadores originais da ordem do mundo, doadores da lei e funda
dores da cultura. Assim foi, por exemplo, Gabis, o legislador do Tartesso:
lançado às feras para ser devorado, é reconhecido mais tarde, ao retornar,
pelas marcas em seu corpo e pelos traços faciais, herdando o reino de seu
pai-avô; primeiro concede leis a seu povo, funda cidades, abole a escravi
dão, ensina o povo a arar a terra e a semear o trigo.
2. C. M. Bowra, Sophoclean Tragedy, The Clarendon Press, 1944.
Mosaico Hermenêutico 165
O herói menos remoto não concede leis ou ensina o povo a arar, se
mear, forjar o metal. Tudo isso ele já encontra feito. O herói do conto ma
ravilhoso somente ascende ao trono, não reina. Mas a estória de Edipo não
pode se concluir com a ascensão ao trono; Edipo reina. Esse elemento do
reinado entra relativamente tarde na evolução do conto, através da elabora
ção e extensão da apoteose do herói do conto maravilhoso. Edipo não só
reina, como alcança as sublimes altitudes na condição de rei. Está próxi
mo da divindade. “Edipo, cujo nome todos clamam” (8) é um rei-deus tal
como Frazer descreveu em The Golden Bough. Ele pode salvar o povo da
peste e ser o mediador entre deuses e homens.
...acaso um deus, um homem
não disse como nos mantermos vivos?
(42-3)
D o mesmo modo, na quarta ode o coro canta:
Com a hipérbole do arco,
lograste o plenifausto
do bom-demônio.
Por Zeus!
Tu abateste a Esfinge,
- a virgem de unhas curvas! - ,
com seu canto-vaticínio.
Em prol da pátria então se ergueu
uma torre contra Tânatos.
E houve o clamor (também clamei):
Basileu!
Te coube a distinção extrema:
reinar em Tebas, a magnífica!
(1 198-1203)
Traços de Edipo, o mágico-deus-rei-sacerdote, foram disseminados na
tradição3.
3. Vladimir Propp, “Édipo à luz do folclore” (original russo de 1944), incluído em
Oedipus, a Folklore Casebook, Lowell Edmunds e Alan Dundes (eds.), The University of
Wisconsin Press, 1983.
166 Édipo Rei de Sôfocles
4. F u n çã o D em on íaca
M as o que constitui a tensão dramática não é a descoberta em
curso, impiedosa e inexorável, nem o jogo de esconde-esconde entre
um destino que pertence ao passado e uma vítima que ainda nada
pressente; tampouco é o jogo de ilusões que freqüentemente se instau
ra no curso de um interrogatório, durante um julgamento; em resumo,
não é nada do que caracterizou tantos dramas que têm com o centro
uma “descoberta”. Schiller, com uma expressão desde então muito
citada, definiu o Édipo uma “análise trágica” e disse: “Tudo existe de
antem ão, e vai apenas se desenvolvendo. Some-se a isso o fato de que o
evento, enquanto irrevogável, é por sua natureza muito mais aterrador”
(carta a G oethe, 2 de outubro 1797). C om esse juízo expresso em fun
ção de seu W allenstein, Schiller fixou-se antes no aspecto formal do
drama do que em seu núcleo essencial. Mas para Sôfocles, como para
os gregos de uma época precedente, o destino não é jamais algo pre
determ inado, mas uma expressão espontânea da potência demoníaca,
mesmo quando vem pré-dito e se cumpre num ordenam ento imanente
ao curso do mundo. O destino concebido como algo -pré-determinado
não existe antes de Stoa e da vitória da astrologia. O essencial no dra
ma de Édipo não consiste na irrevogabilidade do passado que aos pou
cos se revela - uma afirmação como esta: “Mesmo se fosse possível, não
poderia mais agir com o gostaria” não faz qualquer sentido no Édipo
o essencial nesta tragédia consiste na luta ativamente conduzida pela
salvação, pela auto-afirmação e pela defesa de toda uma existência hu
mana prisioneira da aparência, tanto mais ameaçada quanto mais se
sente ligada a uma grandeza hum ana superior; e do ponto de vista
desse mundo e de sua ordem, sua “verdade” e preservação, as frontei
ras entre ser e aparecer devem ser invertidas em relação ao que se mos
travam no início. Diferentem ente das outras tragédias gregas, o Édipo
não é a tragédia do destino hum ano de que por tanto tempo foi consi
derada modelo; nela não tem lugar o contraste entre liberdade “subli-
Mosaico Hermenêutico Ir-
m e” e destino, com o queria o classicismo alemão, mas a contraposição
entre aparência e ser, “doxa” e “alétheia”, com o em Parmênides4.
5 . A u sên c ia D iv in a e L ivre A rbítrio
A ação da própria peça, portanto, é motivada pelo livre arbítrio do
herói, que culmina no ato de auto-cegamento. Bowra tenta mostrar que é
o daím on de Édipo que o dirige para essa ação, a fim de cumprir a vontade
dos deuses; mas não há vontade dos deuses, no que concerne a Édipo,
exceto pelo fato de que sua própria vontade possui uma força divina. Os
olímpicos não desejavam sua queda; eles a predisseram. Dizer que os deu
ses são responsáveis, como faz Édipo, significa no máximo que eles permi
tem que a vida seja o que ela vem a ser. O s deuses nas Traquínias e no
Édipo parecem pouco mais do que o poder animado da circunstância e
símbolos do nexo fatal das limitações, em cujo âmbito o homem age e sofre.
Q uando Édipo grita “A poio cumpriu esses males”, está se referindo à
concatenação completa dos eventos, incluindo o oráculo que simboliza seu
destino total. O elemento inelutável não é um misterioso, remoto, Fado
causai, ou a vontade de Apoio, mas a própria vida. Frente à predestinada
necessidade de viver nesse mundo, Édipo agiu com livre vontade: “N in
guém, só minhas mãos golpearam”, e fornece suas próprias razões. Ele ain
da tem razões, e é livre para tratar a si mesmo como deseja5.
6. L a n ce do A ca so
E antes de tudo a tykhe. Porque a tykhe que se opõe aos deuses e os
nega, a tykhe-acaso, na época em que o Édipo Rei foi escrito, qualquer que
4. Karl Reinhardt, Sofocle (trad. it. Maria Forgione), il melangolo, 1989.
5. Cedric H. Whitman, Sophocles - A Study o f Heroic Humanism, Harvard University
Press, 1951.
168 Edipo Rei de Sófocles
seja sua data, da mais alta à mais baixa, não faz parte da linguagem co
mum: pertence a um círculo restrito de homens cultos, e é um conceito
novo, atrás do qual há uma bem definida visão do mundo e das coisas; e
a posição em que ela aparece nesta tragédia, em momentos de particular
relevo, que são os momentos-chave da ação, exclui a hipótese de que
Sófocles, tão “hábil” como é, a adotasse sem intenção e sem um objetivo
preciso. E, na realidade, ele não o deixou oculto: com o uso sábio de
algumas palavras, que aos ouvidos doutos tinham significado definido,
indicou qual fosse o seu pensamento. Na boca de Jocasta, a menção de
tykhe é ligada a eiké dzên (“viver ao léu”, 979), que é uma expressão técnica,
se não na forma, na substância. E na boca de Edipo? Releiamos o trecho:
“Mas patda tês tykhes némon (“nomeio a mim mesmo filho de Tylche-aca-
so”, 1080), daquela que leva o bem, ouk atimasthésomai (“não serei deson
rado”, 1081). Esta é a mãe de quem nasci, e os meses que comigo nasce
ram, hoi dè syngeneís ménes, fizeram-me pequeno e grande”6.
7. Ser e A p a rên cia
A unidade e o conflito entre o Ser e a Aparência exercem originaria-
mente no pensamento dos primeiros pensadores gregos uma força pode
rosa. Todavia é nas tragédias gregas que tudo isso vai receber a exposição
mais alta e pura. Pensemos no Edipo Rei de Sófocles. Edipo, de início salva
dor e senhor da Cidade, no esplendor da fama e da graça dos deuses, vai
sendo deslocado dessa aparência (Schein), que não constitui de'forma al
guma um parecer meramente subjetivo de Edipo a seu respeito, mas a at
mosfera em que aparece a sua existência, até que se dê a re-velação
(Unverborgenheit) de seu ser, como assassino do pai e desrespeitador da mãe.
O caminho que vai daquele começo de glória até esse fim de horror, é um
único embate entre a aparência (Schein) (velamento e dissimulação) e a re-
6. Cario Diano, “Edipo, figlio delia Tyche”, Dionisio 15 (1952).
Mosaico Hermenêutico l nu
velação (o Ser). À Cidade está velado e oculto o assassino do então rei Laio.
C om a paixão de quem está na evidência do esplendor e é grego, empe
nha-se Edipo em descobrir esse velado e oculto. Passo a passo, tem que
pôr-se a si mesmo a descoberto. Re-velação que só pode suportar, perfu
rando-se os olhos. Afastando-se de toda luz. Fazendo cair sobre si o véu da
noite. Ofuscado e encoberto pela cegueira, põe-se a abrir todas as portas, a
fim de aparecer ao povo como aquele que ele é mesmo7.
8. E d ip o e Im p eria lism o A ten ien se
Edipo tyrannos, então, é mais que um herói trágico individual. Em
seu título - tyrannos - , na natureza e base de seu poder, em seu caráter, no
modo de sua ação dramática, ele se parece com Atenas, a cidade que pre
tendeu se tornar (e já estava prestes a consegui-lo) o tyrannos da Grécia, o
rico e esplêndido autocrata de todo mundo helênico. Tal semelhança, re
conhecida conscientemente ou não, lhe deve ter garantido a simpatia do
público ateniense e engajado firmemente a emoção desse público na ação
e no sofrimento do herói. Mas ela fez ainda mais. Acrescentou uma di
mensão extra de significado não só a seu êxito, como também à sua que
da, que sugere, em termos simbólicos, proféticos e enigmáticos, a queda
da própria Atenas. Com o Edipo, Atenas justifica a ação incessante e sem
pre mais vigorosa apelando ao sucesso prévio; como Edipo, Atenas recusa
se deter, transigir, voltar atrás; como Édipo, segue os ditames de sua energia
e inteligência com suprema confiança no futuro; e, como Édipo - a tragédia
parece sugeri-lo - , Atenas chegará a conhecer o malogro, a aprender a dizer
“devo obedecer” como diz agora “devo dominar”. Atenas, nas palavras de
seu maior estadista, pretendeu ser um exemplo para os demais... Édipo tam
bém é proclamado um exemplo, mas em sua queda8.
7. Martin Heidegger, Introdução à Metafísica (trad. bras. Emmanuel Carneiro Leão),
Tempo Brasileiro-UNB, 1978.
8. Bernard Knox, Oedipus at Thebes, Yale University Press, 1957.
170 Édipo Rei de Sófocles
9. In telig ên cia H u m an a
Alguns leitores do Édipo Rei disseram-me considerar sufocante e opres
siva a atmosfera da peça: sentem falta da exaltação trágica que experimen
tam na Antígone e no Prometeu Prisioneiro. Temo que meus comentários
anteriores não ajudem a remover essa sensação, muito embora não seja
uma sensação que eu partilhe. Certamente o Édipo Rei é uma peça sobre a
cegueira do homem e a desesperada insegurança da condição humana: de
certo modo, todo homem deve tatear no escuro como Édipo tateia, sem
saber quem é e o que tem a sofrer; vivemos todos num mundo de aparên
cia que oculta de nós quem-conhece-que terrível realidade. Mas certamente
o Édipo Rei é também uma peça sobre a grandeza humana. Édipo é grande,
não em virtude de uma grande posição no mundo - pois sua posição no
mundo é uma ilusão que irá esvaecer como um sonho - , mas em virtude
de sua força interior: força para perseguir a verdade a qualquer custo pes
soal, força para aceitá-la e suportá-la quando encontrada. “Esse horror é
meu”, ele grita, “e ninguém além de mim é forte o suficiente para suportá-
lo” (1414). Édipo é grande porque aceita a responsabilidade por todos os
seus atos, incluindo os que são objetivamente mais aterradores, embora
subjetivamente inocente.
Para mim pessoalmente Édipo é uma espécie de símbolo da inteli
gência humana, que não pode descansar até solucionar todos os enigmas
- mesmo o último, para o qual a resposta é que a felicidade humana é
construída sobre uma ilusão9.
10. M a ld iç ã o d a E sfinge
A Esfinge, com um corpo alado “fêmea/macho”, pertence ao mes
mo repertório imaginário que outros monstros míticos, guardiões de te
souros ocultos. Entretanto, a Esfinge parece ser a única variante, compará-
9. E. R. Dodds, “On Misunderstanding the Oedipus Rex" , Greece and Rome 13 (1966).
Mosaico Hermenêutico I //
vel somente ao flamejante Arcanjo com sua espada protetora da Árvore de
Vida, localizada no Paraíso junto à Árvore do Conhecimento. Os tesouros
ocultos do monstro não são de ouro. Nesse caso específico, o fabuloso te
souro é intelectual: o conhecimento. O segredo oculto e cuidadosamente
guardado é o Desconhecido do enigma sexual. Enquanto em outras estórias
o dragão deve ser morto a fim de que o tesouro passe a mãos humanas, a
Esfinge significativamente se mata quando seu segredo é quebrado na época
da maturação. Édipo, o herói de pés-inchados, não mata o monstro pela força
física, mas o derrota através da perspicácia e inteligência. A ansiedade pri
mária, associada ao enigma sexual, configura o padrão de toda subseqüente
ansiedade que procede do Desconhecido, especialmente se alguma é con
frontada com o enigma da existência e não-existência. O dragão assassino
vira herói se ganha a batalha contra seu próprio monstro - contra a sensa
ção de ansiedade e culpa que permanece oculta em suas fantasias inconsci
entes. A sabedoria psicológica dessas fantasias míticas consiste na percep
ção de que o desvelamento do enigma tanto quanto a aquisição do tesouro
oculto é, em última análise, nociva ao homem. A maldição encontra-se no
conhecimento que deriva da propensão, por um lado, aquisitiva, por outro,
inquisitiva. Essa maldição é mais forte que o herói vitorioso. Todo herói
assassino do dragão torna-se finalmente a vítima de sua vitória sobre as fan
tasias inconscientes. Édipo, exatamente por derrotar o monstro do Desco
nhecido, personifica, como veremos, o erro mais extremo, a derrota final
do pensamento consciente auto-evidente e a vitória da Esfinge, isto é, das
forças psíquicas ocultas no Inconsciente e no Desconhecido do próprio eu.
Ele é a vítima de sua enfatuação10.
11. V erd a d e O cu lta e U n id a d e D ra m á tica
No curso de toda a peça, não obstante o que está ocorrendo, quais
quer que possam ser as intenções presentes, desejos e suposições dos di-
10. Theodore Thass-Thienemann, The Subconsciouss Language, Washington Square
Press, 1967.
172 Édipo Rei de Sófocles
versos personagens, tudo quanto digam raivosos, triunfantes, deprimidos
ou alarmados, um grande pensamento é sempre mantido diante do públi
co: nenhuma das pessoas envolvidas (exceto o profeta cego e o velho pas
tor, evidentemente) tem a mais remota idéia da única verdade oculta, a
verdade que remove todo significado do que fazem ou dizem. E essa visão,
fornecida apenas para o público, que unifica as diversas ações e garante à
peça sua celebrada concentração - a sensação de que tudo resulta de uma
tremenda golfada, sem esquema prévio ou elaboração, sem uma única
cena ou fala supérflua. Muitas coisas parecem acontecer, mas apenas uma
acontece efetivamente. Sófocles consegue esse efeito de dois modos. Em
primeiro lugar, coloca Édipo muitas vezes frente a frente com toda a evi
dência, somente para mostrá-lo descobrindo explicações e hipóteses que
são de longe mais razoáveis e sensíveis do que a verdade. (Isso dificilmente
decorre de uma falha estrutural da peça, como Voltaire e outros pensaram.
É o que mantém o público ligado ao real problema.) Em segundo, todos os
personagens, mesmo os mais velhos, dizem coisas naturais e pertinentes,
com base no que conhecem, mas que simultaneamente lembram o públi
co da terrível distância entre a realidade e a compreensão que eles têm
dela. A nós é dada, pois, uma dupla visão: a falsa, no plano humano,
complexo e confuso; a verdadeira, no plano divino, apavorantemente sim
ples em sua ação11.
12. T ra g éd ia e C rise S a c r ific ia l
Tirésias, por seu turno, vai replicar. Diante da confusão crescente
de Édipo, incapaz de levar a termo o seu inquérito, ele vai jogar o mesmo
jogo que o outro. Tirésias ataca a autoridade de seu adversário para reafir
mar a sua. “O que foi feito” - grita - “de tua habilidade para resolver
enigmas?”
11. Thomas Gould, Oedipus the King, Prentice-Hall, 1970.
Mosaico Hernicníiitli
Cada um, no debate trágico, recorre às mesmas táticas, utiliza os
mesmos meios, visa a mesma destruição que seu adversário. Tirésias m
loca-se como defensor da tradição; é em nome dos oráculos desprezados
por Édipo que ele o ataca; não avança menos uma mão ímpia contra a
autoridade real. O s indivíduos são visados, mas as instituições, atingidas.
Todos os poderes legítimos vacilam sobre suas bases. Todos os adversários
contribuem com a destruição da ordem que eles pretendem consolidar. A
impiedade de que fala o coro, o esquecimento dos oráculos, a decadência
religiosa formam uma unidade com esse esgotamento dos valores familia
res, das hierarquias religiosas e sociais.
A crise sacrificial, isto é, a perda do sacrifício, é a perda da diferença
entre violência impura e violência purificadora. Quando essa diferença
se perde, não há mais purificação possível e a violência impura, contagio
sa, quer dizer, recíproca, se espalha na comunidade12.
13. A ç ã o de A p oio
Mas por que Apoio? Por que Édipo atribui o cumprimento de seus
males, incluindo (se a passagem foi corretamente interpretada) seu pró
prio ato de auto-cegamento, a Apoio? Apoio é a presciência divina do
que está fadado a acontecer. Tam bém é um agente? Ou Édipo se ilude?
Se é assim, trata-se de uma ilusão de que padeceram gerações de leitores.
É certamente impossível ler a peça sem sentir que, de um modo mais ou
menos incompreensível, Apoio está em ação; que o deus que conhece o
que está fadado a ocorrer está seguro de que ocorrerá mesmo e, tendo
ocorrido, está ciente de ter ocorrido. Mas Apoio está envolvido num pla
no mais profundo. Se ele está interessado na verdade de seus oráculos, o
deus em cujo templo está inscrito o mote gnothi sauton (“conhece-te a ti
mesm o”) ocupava-se do auto-conhecimento humano. É a seu próprio
respeito que Édipo mais ignora e aprende a mais terrível verdade. É o
12. René Girard, La violence et le sacré, Grasset, 1972.
174 Édipo Rei de Sófocles
conhecimento humano e a inteligência em que ele tem total confiança e
deve aprender como um é limitado e a outra, frágil. No momento em
que a verdade aflora e os oráculos revelam-se verdadeiros, é com seguro
discernimento que Édipo vê Apoio em ação. Ele continua para arrancar
os olhos que lhe deram o conhecimento falível do mundo externo13.
14. Rei D ivin o e B ode E x p iatório
Venerado como um deus, inconteste senhor da justiça, tendo nas
mãos a salvação de toda cidade, colocado acima dos outros homens, tal é
a personagem de Édipo, o Sábio, que, no fim do drama, se inverte, para
projetar-se numa figura contrária: no último degrau da decadência apare
ce Édipo - Pé-inchado, abominável polução, concentrando sobre si toda
a polução do mundo. O rei divino, purificador e salvador de seu povo,
encontra o criminoso impuro que é preciso expulsar como um pharmakós,
um bode expiatório, para que a cidade, de novo pura, seja salva.
[...] se a oposição complementar com que Sófocles joga, entre o tyrannos
e o pharm akós, como nos pareceu, está bem presente nas instituições e na
teoria política dos antigos, faz a tragédia outra coisa que apenas refletir
uma estrutura já presente na sociedade e no pensamento comum? Cre
mos, ao contrário, que, longe de ser um reflexo dela, a tragédia a contesta
e a põe em questão. Pois, na prática e na teoria sociais, a estrutura polar
do sobre-humano e do sub-humano visa a melhor delimitar, nos seus
traços específicos, o campo da vida humana definida no conjunto dos
nómoi que a caracterizam. O aquém e o além se respondem como duas
linhas que desenham claramente as fronteiras no interior das quais o
homem se acha incluído. Ao contrário, em Sófocles, sobre-humano e
sub-humano se encontram e se confundem na mesma personagem. E
como essa personagem é o modelo do homem, todo limite que permiti
ría delimitar a vida humana, fixar sem equívoco seu estatuto, se apaga.
13. R. P. Winnington-Ingram, Sophocles, An interpretation, Cambridge University Press,
1980.
Mosaico Hermenêutico /75
Quando ele quer, como Édipo, levar até o fim a pesquisa sobre o que ele
é, o homem se descobre enigmático, sem consistência nem domínio que
lhe sejam próprios, sem ponto de apoio fixo, sem essência definida, osci
lando entre o igual a um deus e o igual ao nada. Sua verdadeira grandeza
consiste naquilo que exprime sua natureza de enigma: a interrogação14.
1 5 . R ito de In ic ia ç ã o às A v essas
Para os gregos, a criança, não ainda um membro da cidade totalmente
civilizado, guarda certas afinidades com o mundo “cm ” externo. Irracional,
incapaz de falar, sem ainda dominar completamente suas funções corporais,
ela é, como a fâmula diz nas Coéforas, “um animal”. A maioria dos povos,
entre os quais o grego, tem ritos de iniciação mais ou menos elaborados para
marcar a passagem da infância para a maturidade, do reino selvagem para o
civilizado. A autodescoberta de Édipo na peça é uma espécie de rito de ini
ciação às avessas. Enquanto a passagem da criança da infância para a matu
ridade é geralmente uma passagem do selvagem para o civilizado, da nature
za para a cultura, Édipo, num conhecimento retrospectivo paralelo ao de
senrolar da trama, move-se da maturidade para a infância, e simultaneamen
te de seu lugar seguro na casa e na cidade para a montanha selvagem que é,
num certo sentido, seu parente (1092), “o lugar de onde nasceu” (1393). Sua
condição anômala confunde as rotas normais da passagem geracional. A
justaposição do “novo” ao “velho” no primeiro verso da peça e próximo do
clímax do reconhecimento (916) ganha progressivamente um significado
ameaçador. Quando o mensageiro coríntio pensa que está chamando Édipo
de volta para o lar (100-5-6), ele, de fato, o está chamando de volta não para
casa ou palácio mas para a estéril montanha15.
14. Jean-Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet, Mito e Tragédia na Grécia Antiga (trad.
bras. Anna Lia de A. Prado, Filomena Hirata Garcia, Maria da Conceição Cavalcante),
Perspectiva, 19992.
15. Charles Segai, Tragedy and Civilization, an lnterpretation of Sophocles, University
of Oklahoma Press, 19992.
176 Édipo Rei de Sófocles
16. P olissem ia do N om e
O nome ou o substantivo (onoma em grego, como nom em francês,
tem os dois sentidos), mais do que constituir meios estáveis de referência,
classificação, diferenciação, no caso do Édipo reflete o estatuto incerto do
próprio rei. O nom e do rei é sobredeterminado, excessivo em sua signi
ficação. Édipo é o solucionador de enigmas e questões, o leitor de signos
e mensagens: assevera querer investigar “todo logos” (291), em sua busca
pelo assassino. Mas uma palavra, pelo menos, que Édipo não pode ler é
seu próprio nome. O rei não pode ler o diferente, signos ambíguos de
sua identidade ambígua que são colocados na peça pelo seu nome. O
estatuto in certo do rei é m arcado na incerteza de seu n om e. O
questionamento sofocliano da relação do homem com o conhecimento e
a verdade é representado pelo caráter alusivo do onom a16.
1 7. Ig n o râ n cia N ecessária
A passagem (1237-86), terrível demais para ser encenada, parece
também apavorante demais para ser representada na linguagem. Édipo,
desejando transpassar o ventre de Jocasta com a espada, é conduzido por
“algum deus” para onde possa abrir caminho através de duas portas (es
tremeço ao lembrar o belo tropo de W alt W hitm an para a observação de
uma mulher em parto, “reclino-me nas soleiras de estranhas portas flexí
veis”). Deparando-se afortunadamente com o suicídio de Jòcasta, a fim
de não somar o crime contra a mãe ao parricídio e incesto, Édipo, golpe
ando repetidamente seus olhos com os broches de Jocasta, submete a
julgamento não tanto o ato de ver quanto o que é visto e, assim, a luz pela
qual vemos. Interpreto isso como seu protesto contra Apoio, que traz
igualmente a luz e a praga. O tropo freudiano da cegueira pela castração
parece-me menos relevante aqui do que o clamor contra o deus.
16. Simon Goldhill, Reading Greek Tragedy, Cambridge University Press, 1986.
Mosaico Hermenêutico
O protesto contra Apoio é necessariamente dialético, uma vez que a
arrogância e agilidade do intelecto de Édipo, que busca sem remorso a
verdade, em certo sentido é também de Apoio. Isso deve significar que a
queixa também se volta contra a natureza da verdade. Nessa visão da
realidade, você conhecerá a verdade, e a verdade fará de você um insano.
O que tornaria Édipo livre? Nada do que ocorre na peça - deve ser a
resposta - , e não parece que se transformar num deus oracular mais tarde
tampouco faz de você alguém livre. Se você não pode estar livre dos deu
ses, então não pode alcançar a liberdade, e mesmo agindo como se o seu
demônio for o seu destino, isso tampouco o ajudará.
A surpreendente ignorância de Édipo quando o drama tem início é
o dado da peça, e não pode ser questionado ou negado. Voltaire foi mor
daz quanto a esse ponto, mas a ignorância do sábio e cultivado permane
ce uma antiga verdade da psicologia, e nos atormenta diariamente. Creio
ser esta a verdadeira força do complexo de Édipo de Freud: não o sentido
inconsciente de culpa, mas a necessidade de ignorância, a fim de que o
princípio de realidade não nos aniquile. Nietzsche, antes do que Freud,
é o guia mais verdadeiro para o Édipo Rei. Possuímos a mais alta arte, o
drama de Sófocles e de Shakespeare, a fim de não perecermos em decor
rência da verdade17.
18. R elativ ism o e P ré-cognição
O drama de Sófocles declara abertamente o seguinte: se os deuses
sabem de antemão que se verificará o assassínio do pai e o incesto com
a mãe, demonstrar-se-á que eles não cometem erro, e o que depois
ocorre é o assassínio do pai e o incesto com a mãe, ainda que nenhum
ser hum ano tivesse ciência disso. E aqui vemos Édipo alinhar-se clara
mente ao lado de Apoio. Ele não procura dizer: “M as eu ignorava tudo
17. Harold Bloom (edição e introdução), Sophocles’ Oedipus Rex, Chelsea House
Publishers, 1988.
178 Édipo Rei de Sófocles
isso e, portanto, para mim não se tratava de incesto”, tampouco diz o
que poderia ter dito com um a linguagem dos contem porâneos de
Sófocles: “Q ue significado e im portância tem o incesto?” Foi exata
mente essa a questão colocada por Eurípides em seu drama sobre o
incesto, Eolo: “O que há de vergonhoso, se não parece assim a quem o
pratica?” (fr. 19). Protágoras havia de fato sustentado que tudo o que
“é” é de um certo modo somente para quem parece, negando com isso
o “significante universal”, enquanto outros sofistas do tempo discutiam
o estatuto arbitrário e mutável do nomos: “Se alguém pedisse que todos
os hom ens levassem para um único lugar tudo o que considerassem
vergonhoso e, depois, que erguessem do monte o que considerassem
honroso, no m onte todo não restaria nada” (Dissoi Logoi 2, 18). Não
existe neste mundo nada de vergonhoso que não seja moralmente acei
tável e portanto honroso, em algum outro lugar, de um ponto de vista
diferente. O que dizer então do incesto praticado por pessoas que o
ignoravam, para quem isso não “parecia” assim? A ode central do Édipo
Rei pronuncia-se evidentemente sobre questões com o essa, que está no
centro de toda a tragédia. Não, afirma explicitamente o coro, os nomoi
que regulam a pureza e a piedade religiosa (euseptos hagneia) são estabe
lecidos antes {prokeintai), “gerados através do A ither do céu”; o seu pai
é o O lim po, e um deus grande se manifesta neles; jam ais se tornam
“velhos” e superados. Essa ode dispõe com precisão o quadro em que
se insere Édipo: ele se adequa ao que os deuses sabiam de antemão. A
terrível queda de Édipo demonstra a veracidade da pré-cognição divina,
dem onstra a existência de uma inteligência que tudo com preende e
envolve este nosso mundo, demonstra a função de “significante univer
sal” e portanto o significado do universo. Essa demonstração vale o
sacrifício, a queda desse homem com o qual nos identificamos a contra
gosto, Édipo. Édipo, embora sofredor, possui enfim o secreto orgulho
dos que sabem 18.
18. Walter Burkert, Orígini selvagge, Sacrifício e mito nella Grécia arcaica (trad. it. Maria
Falivene), Laterza, 1992.
Mosaico Hermenêutico I 7')
19. A L in gu agem do O utro
A estrutura lingüística im plica várias facetas da outridade. N in
guém inventa a linguagem que fala, mas nós som os com pletam ente
tributários da linguagem en quan to outro que nós m esm os. Na in
terpretação lacaniana, o in con scien te, com o o reprim ido, funciona
com o a linguagem do O u tro - isto é, com o ex-cêntrico ao discurso
de um eu, da co n sciê n cia , cen trad o em d esejos (o n om e do pai
reprim e, recoloca e desloca o desejo pela mãe) - a linguagem que é
essen cialm ente dependente da relação dialógica (diálogo psicanalí-
tico) a fim de em ergir. Essa outridade da linguagem do in co n scien
te, Lacan lê no Édipo: o in con scien te de Édipo é configurado num
discurso que é literalm ente outro que ele m esm o - isto é, no dis
curso do oráculo.
C on sid ero sugestiva e estim ulante a ênfase de Lacan no processo
linguístico e narrativo, por meio do qual o sujeito afeta a si mesmo
em sua busca por dar um lugar, uma relação e um sentido à sua
própria biografia. Édipo Rei c a fascinante encenação de narrativas
interm ináveis sobre pai e filho. A questão edipiana não concern e
necessariam ente ao desejo do sujeito por seus pais, mas antes a seu
m al-entendido e mau reconhecim ento de sua própria história. A ssim ,
a situação edipiana na peça é responsável pelo mau reconhecim ento
da história de sua própria vida e pelo reconhecim ento ao qual ele
chega no m om ento da revelação. Para Lacan esse reconhecim ento não
tem a função constatativa que tem para Freud, mas performática: ao
nom ear seu desejo, o sujeito afeta a si mesm o com uma ação eficaz de
análise. Ele endossa a sua nova história, toma responsabilidade pelo
discurso do O utro em si m esm o, e sim ultaneam ente encontra rem is
são na outridade19.
19. Pietro Pucci, Oedipus and the Fabrication of the Father, Johns Hopkins University
Press, 1992.
180 Édipo Rei de Sófocles
2 0 . N a scim en to D ion isíaco
Édipo tem um segundo ouvido depois do cegamento, em Colono.
Mas já no Édipo Rei ele pode ouvir de outro modo. Exatamente na metade
matemática do texto, em seu eixo, Édipo conta que no passado em Corinto,
“o Acaso / impôs algo merecedor de espanto... Aconteceu de um ébrio,
num festim / vir me chamar de filho putativo... aquilo / me aborrecia
sempre, se insinuava” (776-86). Ele começou a ouvir a si mesmo diferen
temente, e isso continuou a ecoar. Um ambíguo elemento dionisíaco está
inconscientemente em ação. Muito disso estava presente em sua concep
ção, pois cabe lembrar que Laio concebeu Édipo à noite, bêbado. Existe
um outro espírito paterno na natureza de Édipo como a montanha mater
na do Citcro, um espaço dionisíaco também, que ressoa dentro e desfaz
a inflexível trajetória de seu heroísmo.
Se nós imaginamos um segundo sentido no oráculo, então Laio po
dería ter ouvido: “O lha teu filho atentamente, estuda seu coração, apodera-
te dos seus caminhos, pois ele tem potencial para dar fim em ti. Ele é al
guém que pode mostrar como tua vida finaliza, os desfechos de tua vida”.
O filho oferece um caminho diverso do pai. O filho é o potencial da mente
que traça um segundo sentido. Ele é a geração seguinte, a compreensão
gerativa além do literalismo do tipo de consciência do rei, que se enrijece
em sentidos únicos quando as divisas de todo reinado são definidas, unindo
num único domínio terra, Estado, povo, rei: tirano. A tirania da unidade20.
2 1 . E n con tro com Jo c a s ta M orta
Quando Édipo derruba as portas e “vê” finalmente o corpo de Jocasta
em seu quarto, a primeira coisa que faz, depois de “livrá-la” da corda, é
“arrancar de suas vestes os fechos de ouro que lhe serviam como adorno”
20. James Hillman, “Oedipus Revisited” in Karl Kerényi e James Hillman, Oedipus
Variations, Studies in Literature and Psychoanalysis, Spring Publications, 1995.
Mosaico Hermenêutico 181
(1268-69). Esta é a primeira das “coisas terríveis de serem vistas” (1267),
descritas a seguir. Peronai, os fechos que prendem as vestes, não são meros
“broches” decorativos, com o a palavra é freqüentemente traduzida. Sua
remoção pode sugerir o gesto de desnudamento da rainha em sua “câmara
nupcial” (ta num phika, 12 4 2 ), enquanto ela “repousa ali” (1267), uma
reatualização grotesca e horrível da primeira noite da união de ambos. Em
decorrência desse ato, ele “golpeia os próprios olhos”, conforme o verso
seguinte. Assim como o corpo do rei permite que a verdade invisível se
tom e realidade ao invés de aparência, o corpo de Jocasta aponta para algo
que permanece inacessível à visão e deve permanecer oculto.
C om o m ostrou V lad im ir Propp, em narrativas populares desse
tipo, a verdadeira identidade do marido/filho incestuoso é denuncia
da por uma cicatriz ou outra marca no leito durante a noite de núpcias.
Jean Cocteau joga brilhantem ente com esse motivo antigo da descoberta
na noite nupcial em sua M achin e infernale. Sófocles refreia esse reconhe
cim ento até que ele possa conduzir apenas ao reconhecim ento trágico
da polução indelével. O autor retém, todavia, o com ponente sexual des
se conhecim ento deslocando a união física para uma série de equivalen
tes sim bólicos: a penetração na câmara fechada da rainha e a remoção
dos fechos de seu corpo em repouso. Esses deslocamentos são, por seu
turno, parte do alargamento temporal e da complexidade da ação, de
corrente do modo com o Sófocles opera norm alm ente o mito. Ele sobre
põe ações presentes ao passado remoto; funde, ou confunde, os eixos
diacrônico e sincrônico. A o aprofundar a perspectiva temporal através
do motivo da descoberta e ao relembrar o passado há muito esquecido,
também cham a a atenção para o poder de representação do drama, atra
vés do qual uma simples ação que se desdobra à nossa frente no palco
pode co n ter sim bolicam ente o sentido de uma vida inteira. No
condensado arcabouço temporal da vida de Édipo, o dramaturgo encon
tra também uma imagem espelhada de sua manipulação do tempo na
construção artística de sua peça21.
21. Charles Segai, Sophocles’ Tragic World, Harvard University Press, 1995.
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„
*
CRO N O LO GIA (a. C.)
497 - Nascimento de Sófocles em Colono.
4 9 4 - Nascimento de Péricles.
4 8 0 '4 7 8 - O rei Xerxes da Pérsia é derrotado pela esquadra ateniense em
Salamina.
4 8 0 - O persa Mardônio, cunhado de Xerxes, líder de um contingente de
10 m il persas e 70 mil aliados, é derrotado em Platéia pelos
peloponésios e atenienses.
4 8 0 - O s persas incendeiam a Acrópole e massacram seus defensores.
4 8 0 - Nascimento de Eurípides.
4 7 8 - 4 7 7 - Fundação da Liga de Delos que, sob liderança ateniense, é
criada para combater os persas. Inicialmente recebe tributo de 265
cidades gregas.
4 7 2 - Esquilo encena Os Persas, drama sobre a vitória ateniense em
Salamina.
4 7 0 -4 6 9 - Nascimento de Sócrates.
4 6 8 - Sófocles ganha seu primeiro concurso dramático, com Triptóletno,
derrotando Esquilo.
4 6 3 - Esquilo vence o concurso de tragédia com a trilogia Su/iln iintns.
Egípcios, Danaides. Sófocles classifica-se em segundo lugar.
4 6 0 - O partido de Péricles consegue hegemonia em Atenas.
184 Édipo Rei de Sófocles
4 5 9 '4 5 4 - Tentativa de conquista do Egito por expedições atenienses.
45 6 - Morte de Ésquilo em Gela, Sicília.
45 4 - Transferência do tesouro da Liga de Delos para Atenas.
45 0 - Nascimento de Aristófanes.
447 - Péricles inicia a construção de Partenon em Atenas.
4 4 2 -4 4 1 - Representação da Antígone.
441 -4 4 0 - Sófocles é eleito um dos dez generais, encarregados de reprimir
a revolta da ilha de Samos.
43 8 - Morte de Píndaro.
432 - Fídias é acusado de roubar parte do ouro destinado à estátua de
Atena. Comprovada sua inocência, o escultor sofre uma segunda
acusação, desta vez por impiedade. Falece na prisão.
431 - Início da guerra do Peloponeso.
431 - Péricles profere a Oração Fúnebre, em honra dos mortos caídos no
primeiro ano de guerra do Peloponeso.
431 - Tucídides inicia a redação da História da Guerra do Peloponeso.
431 - Representação da M edéia de Eurípides.
4 3 0 - Grande peste assola Atenas.
4 2 9 - Morte de Péricles, decorrente da peste.
429 -4 2 5 (?) - Representação do Édipo Rei de Sófocles.
4 2 8 - Nascimento de Platão.
4 2 4 - Sócrates participa da batalha de Delos entre Atenas e Beócia.
4 1 6 - Conquista da ilha de Meios por Atenas, que escraviza a população
local e elimina os homens em idade adulta.
416 - Alcibíades vence a competição de quadrigas nas Olimpíadas. Eürípides
dedica-lhe um epinício pela vitória.
41 5 - Derrota da expedição ateniense, comandada por Nícias e Alcibíades,
em Siracusa.
4 1 5 -4 1 4 - O poeta Diágoras de Meios é condenado à morte por ateísmo.
4 1 4 - Aristófanes encena a comédia utópica As Aves.
4 0 9 - Sófocles, aos 85 anos de idade, representa Filoctetes.
4 0 6 -4 0 5 - Morte de Sófocles.
4 0 4 - Derrota de Atenas e fim da guerra do Peloponeso.
Cronologia (a. C.) 185
4 0 4 -4 0 3 - Sócrates recusa-se a colaborar com o governo dos Trinta (grupo
de oligarcas que domina por um período Atenas, arrasada pelos anos
de guerra). Os tiranos impedem o filósofo de ensinar.
40 3 - Restauração da democracia em Atenas.
401 - Encenação póstuma de Édipo em Colono.
399 - Morte de Sócrates.
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COLEÇÃO SIG N OS
HAROLDIANA
1. panarom a do HNNEGANS wake • James Joyce (Augusto e Haroldo de Campos, orgs.)
2 . m a llarm é • Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari
3 . prosa do observató rio • Julio Cortázar (Trad. de Davi Arrigucci Júnior)
4 . xad rez de estrelas • Haroldo de Campos
5. ka• Velimir Khlébnikov (Trad. e notas de Aurora F. Bernardini)
6 . verso , reverso , controverso • Augusto de Campos
7 . sig n an tia quasi co elu m : sig n ân cia quase céu • Haroldo de Campos
8. d o st o iév sk i : prosa poesia • Boris Schnaiderman
9. deus Eo diabo no fausto de goethe • Haroldo de Campos
1 0 . m aiakó vski - poem as • Boris Schnaiderman, Augusto e Haroldo de Campos
1 1 . o sso a o sso • Vasko Popa (Trad. e Notas de Aleksandar Jovanovic)
12. o visto e o im aginado • Affonso Á vila
1 3 . qohélet / o - que - sa be - poem a sapienciai . • Haroldo de Campos
1 4 . rim baud livre • Augusto de Campos
1 5 . nada feito nada • Frederico Barbosa
1 6 . ber e ' sh ith - A cena da origem • Haroldo de Campos
17. Despoesia • Augusto de Campos
18. prim eiro tempo • Régis Bonvicino
1 9 . oriki orixá • Antonio Risério
2 0 . iio p k in s : A beleza difícil • Augusto de Campos
21 . um encenado r de si m esm o : gerald thom as • Silvia Fernandes e J. Guinsburg (orgs.)
2 2 . três tragédias gregas • Guilherme de Almeida e Trajano Vieira
23. 2 ou + co rpo s no m esm o espaço • Arnaldo Antunes
2 4 . crisantem po • Haroldo de Campos
25. bissex to sentido • Carlos Ávila
2 6 . olho - d e - corvo • Yi Sáns (Yun Jung Im, org.)
2 7 . A espreita • Sebastião Uchôa Leite
2 8 . a poesia á ra be - a n d a lu za : ibn q uzm an de córdova • Michel Sleimnn
2<J. M U R IL O M E N D E S : EN SA IO C R ÍT IC O , A N TO LO G IA E C O RR ESPO N D ÊN C IA • L .IÍS < (II IIM lll' A r .lÚ jo
3 0 . co isa s e a n jo s de rilke • Augusto de Campos
3 1 . édipo rei de sóeocles • Trajano Vieira
3 2 . A lógica do erro • Affonso Ávila
3 3 . poesia r u ssa m o d ern a • Augusto e Haroldo de Campos e 13. Schnnidcrman
34. revisão de so u sân d r ad e • Augusto e Haroldo de Campos
3 5 . não • Augusto de Campos
3 6 . as bacan tes de eu rípid es • Trajano Vieira
3 7 . fracta : a nto lo g ia poética • Horácio Costa
38. éden: um tríptico bíblico • Haroldo de Campos
39. algo : preto • Jacques Roubad
4 0 . figuras m etálicas • Cláudio Daniel
41. édipo em co lo no de sófocles • Trajano Vieira
42. po esia da recusa • Augusto de Campos
43. so l so br e nuvens • Josely Vianna Baptista
44. po em as - estalactites • August Stramm
45. céu a cim a : um tombeau para haroldo de cam pos • Leda Tenório Motta (org.)
46. a ga m êm n o n de ésquilo • Trajano Vieira
COLEÇÃO SIG N O S
47 . escreviver • José Lino Grünewald (José Guilherme Corrêa, org.)
48 . entremilênios • Haroldo de Campos
4 9 . antícone de sófocles • Trajano Vieira
5 0 . guenádi aicui: silêncio e clamor • B. Scnhnaiderman e J. P. Ferreira (orgs.)
3 1 . poeta poente • Affonso Ávila
fa lirg u a g e m e Outras Metas, Perspectiva,
1 9 9 2 ) , t e n h o r e p r o p o s t o à c o n s i d e r a ç ã o da
crítica a im portân cia do trab alho pioneiro
de O d o r i c o , só c o m p a r á v e l , e m r a d i c a l i d a d e
" t r a n s - h e l e n í s t i c a " , a o d o a l e m ã o d e ] . tt.
Voss ( 1 7 5 1 - 1 8 2 6 ) .
Este fct/po R e ié a culm inação, até
a g o r a , da tare fa tran s criad o ra que está
e m p r e e n d e n d o í r a j a n o V ie ir a no c a m p o do
leatro Clássico Grego. E com satisfação que
abro, m ais u m a vez, a C o leç ã o Signos, por
m im dirigida, a este novo e elaboradíssimo
texto "transconfigurado ' em nosso idio
ma pelo jo v e m p r o f e s s o r de g r e g o da
U N I C A MP , r e c e n t e m e n t e g a l a r d o a d o c o m a
bolsa Guggenheim por seus m é r i t o s de
sctotar. 0 p refácio de l a c ó Guinsburg, di
retor da Editora Perspectiva e especialista
em Estética teatral, ressalta, com p ala
vras a b a liz a d a s e percu cie n te s, a i m p o r
tâ n c ia d r a m á t i c a do t e x t o do fd ip o Rei
sofocliano, aqui apresentado com um es
tudo muito bem informado e argutam en-
te e lu c id a tiv o de í r a j a n o Vieira.
b a r o ld o de Campos
fa la i do podei c e m c o de fd /p o dei, de sua p e rfo rm a n c e e m um fea fro
e m alo, c, aqui, no Biaiil, co n s id e rá -lo so b re fu d o e m p o rtu g u ês ,
q u e r d iz e r, e m u m a t r a d u ç ã o e no q u e e la se m o s t r a c a p a z n ã o só de
restituir, c o m o de vivificar, q u a n d o c o lo c a d a nos lábios de um ator
q u e se e x p r i m e n e s t a l í n g u a e q u e d e v e f a z e r f a l a r o seu g e s t o , a sua
linguagem representativa neste m esm o idiom a, sem perder a relação
com a fala de o rig e m , no caso o greg o , f tal é ju s t a m e n t e um a
das p reo cu p açõ es fu n d a m e n ta is de fra ja n o Vieira na sua m a r c a n te
transcríacão da peca de Só fo cle s, que v em integrar a
C oleção Signos da E d itora Perspectiva.
]. Guinsburg