http://dx.doi.org/10.22420/rde.v12i23.
844
A gestão democrática rumo ao óbito:
o assédio moral em uma escola pública
A democratic management en rout for doom:
moral harassment in a public school
La gestión democrática rumbo al óbito:
el acoso moral en una escuela pública
RAFAEL PETTA DAUD*
Universidade Estadual Paulista, Araraquara- SP, Brasil.
LIDIANE APARECIDA TEIXEIRA**
Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, Ribeirão Preto- SP, Brasil.
RESUMO: A partir da problemática “assédio moral nas relações de
trabalho”, esta investigação, um estudo de caso, objetiva verificar se
ela se manifesta no contexto de uma escola pública municipal de edu-
cação infantil situada em Ribeirão Preto/SP, assim como analisar seus
possíveis efeitos no corpo docente em duas instâncias da ordem do
psiquismo: as representações e seus afetos contingentes. O diagnóstico
por nós confirmado destoa dos pressupostos normativos estruturan-
tes da concepção de gestão democrática do ensino, mencionados de
modo explícito na legislação brasileira da educação.
Palavras-chave: Assédio moral na escola. Direção escolar e corpo
docente. Representações e afetos contingentes.
ABSTRACT: From the problem of "moral harassment in work rela-
tions", this research, a case study, aims to verify if it is manifested in the
context of a municipal public pre-school located in the city of Ribeirão
Preto / SP, as well as to analyze its possible effects on the faculty in two
* Doutorando em Educação Escolar pela Unesp/Araraquara e Mestre em Educação Escolar pela mesma ins-
tituição. Especialista em Ética, Valores e Cidadania pela Universidade de São Paulo. Possui Licenciatura
Plena em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Catarina. E-mail: <[email protected]>.
** Pedagoga, especialista gestão escolar e professora de educação básica I vinculada à Secretaria Municipal de
Educação de Ribeirão Preto/SP. E-mail: <[email protected]>.
Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 12, n. 23, p. 359-370, jul./out. 2018. Disponível em: <http//www.esforce.org.br> 359
Rafael Petta Daud e Lidiane Aparecida Teixeira
instances of the order of psychism: representations and their contingent
affections. The diagnosis confirmed by us differs from the structuring
normative assumptions of the conception of democratic management
of education, mentioned explicitly in the Brazilian education legislation.
Keywords: Harassment at school. School management and faculty.
Representations and contingent affects.
RESUMEN: A partir de la problemática "acoso moral en las relaciones
de trabajo", esta investigación, un estudio de caso, tiene como objetivo
verificar si este se manifiesta en el contexto de una escuela pública
municipal de educación infantil situada en Ribeirão Preto/SP, así como
analizar sus posibles efectos en el cuerpo docente en dos instancias del
orden del psiquismo: las representaciones y sus afectos contingentes.
El diagnóstico por nosotros confirmado difiere de los presupuestos
normativos estructurantes de la concepción de gestión democrática
de la enseñanza, mencionados de modo explícito en la legislación
brasileña de la educación.
Palabras clave: Acoso moral en la escuela. Dirección escolar y cuerpo
docente. Representaciones y afectos contingentes.
Introdução
E
ste trabalho se constitui a partir da hipótese de que o assédio moral – uma chaga
que incide em diversos contextos laborais desde que o trabalho passou a ser
trabalho (COSTA et. al., 2015) – pode se interpor no contexto das instituições
educativas não apenas como um inimigo dos postulados que incidem no ideal de gestão
democrática (DOURADO, 2001; PARO, 2017), mas também e sobretudo como impedi-
tivo da própria manutenção de um clima escolar favorável à boa convivência entre os
corpos docente e discente. Neste sentido, a auto evidência (ARENDT, 2000) implícita na
hipótese declarada produz as inquietações que culminam no objetivo desta pesquisa, ou
seja, verificar e analisar situações que podem apontar indícios de assédio moral no uni-
verso de uma escola púbica municipal que atende a alunos de educação infantil e que se
situa em uma região considerada “periférica” da cidade de Ribeirão Preto/SP. Elegemos,
portanto, um recorte da totalidade das relações interpessoais que fazem parte do uni-
verso da instituição mencionada e direcionamos nosso lócus para a relação estabelecida
entre seu principal gestor, que responde pelo cargo denominado por Direção Escolar, e
aqueles que, por dever inerente à docência, são imbuídos da tarefa de educar os que são
360 Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 12, n. 23, p. 359-370, jul./out. 2018. Disponível em: <http//www.esforce.org.br>
A gestão democrática rumo ao óbito: o assédio moral em uma escola pública
os “candidatos à humanidade”, conforme expressão arendtiana (ARENDT, 2009). Tra-
tamos, portanto, da relação diretor/professor, em direção descendente.
Neste momento, antes de adentrar de modo específico aos pressupostos metodoló-
gicos pertinentes a este trabalho, é necessário lançar luzes às relações que pretendemos
estabelecer, a partir das quais nossa categoria de análise poderá ser melhor delimitada.
Portanto, acerca da formulação conceitual de assédio moral assumida para este
trabalho, além do conceito em si, privilegiamos sua possível leitura à luz da dimensão
psicológica do sujeito que é o seu objeto, projetando os prováveis efeitos, principal-
mente, à subjetividade. Com isso, partimos da elaboração conceitual proposta por Jeong
e Kurcgant (2002), na qual podemos conceber assédio moral como uma forma de vio-
lência psicológica – na maioria das vezes velada – cometida por um sujeito investido de
poder a partir de uma posição privilegiada do ponto de vista da hierarquia administra-
tiva em uma dada organização contra outro situado de modo descendente com relação
às suas determinações, acarretando a este outro consideráveis prejuízos relacionados
principalmente ao estresse decorrente do caráter necessariamente repetido, intencio-
nal e prolongado das agressões. É a partir deste sentido, enfim, que se insere o segundo
movimento, sobre o fenômeno delimitado conforme sua manifestação: no cotidiano em
questão, o assédio moral adquire materialidade, por exemplo, através de atos de humi-
lhação, perseguições, exclusão ou intimidação, os quais tendem a gerar angústia no alvo
não apenas nos tempos e espaços que são pertinentes ao seu ambiente de trabalho mas,
também, nos momentos que lhes são anteriores e posteriores, já que a atividade psíquica
humana se caracteriza por sua transcendência com relação ao tempo e espaço (MOSCO-
VICI, 2003). Afinal, ontologicamente, o homem é ser representante, sendo que a atividade
espiritual de sua representação é necessariamente contingenciada pelo amálgama for-
mado pela memória do vivido, pela transitoriedade do vivente e pela projeção de seu vir a
ser (ARENDT, 2000). Logo, o objeto representado nem sempre corresponde ao objeto pre-
sente, podendo este ser invocado a qualquer momento pela atividade da representação.
Enfim, é na relação de simbiose entre os dois movimentos supracitados que sinteti-
zamos o assédio moral em sua extensão ao psiquismo a partir da seguinte pressuposição:
violência psicológica cometida de modo repetido e descendente do ponto de vista do
poder institucionalmente estabelecido e que, no psiquismo, transcende a relação espa-
ço-temporal do ato em si.
Depreende-se desta condição o fato de que o assédio moral na escola pode, aos pou-
cos, tanto causar prejuízos relacionados à constituição moral do “assediador” quanto
anular simbolicamente os sentidos desejáveis que são atribuídos ao “ser professor” por
parte de quem sofre com tal dinâmica de maltrato. Neste interim, é possível inferir os ris-
cos que a prática sistemática de assédio moral por parte de gestores de escolas com relação
aos seus professores pode oferecer não apenas aos sujeitos diretamente implicados mas,
também, àqueles que estão, ao mesmo tempo, sob a responsabilidade de ambos e que, no
Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 12, n. 23, p. 359-370, jul./out. 2018. Disponível em: <http//www.esforce.org.br> 361
Rafael Petta Daud e Lidiane Aparecida Teixeira
caso, correspondem aos alunos. Afinal, a priori a responsabilidade sobre a manutenção de
uma educação escolar de qualidade oferecida às crianças e adolescentes que frequentam
as escolas recai tanto naqueles que são seus gestores quanto naqueles que são os propo-
sitores das atividades pedagógicas voltadas à promoção do desenvolvimento humano,
tanto intelectual quanto afetivo (PIAGET, 1952), sendo tal responsabilidade atribuída
pela própria delimitação de papeis que é inerente à escola e, portando, não aleatória.
Estabelecidas nossas considerações iniciais, a partir das quais o presente estudo tem
consolidados os argumentos em prol de sua justificativa, passemos agora para os postu-
lados metodológicos desta investigação.
Metodologia
Compõem nossa amostra – escolhida de modo intencional sob a manifestação de
anuência através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – oito profissionais
de educação infantil do sexo feminino e atuantes no universo de investigação. A média
de idade das participantes foi calculada em 42,25 anos, sendo o tempo médio de exercí-
cio em docência na educação infantil calculado, com duas casas decimais, em 11,62 anos.
Todas as professoras frequentam a unidade escolar durante o período vespertino,
sendo que durante o período matutino trabalham em outras unidades, públicas ou par-
ticulares, principalmente como forma de complementar a renda.
O instrumento para esta investigação corresponde a um questionário semiestrutu-
rado composto por perguntas abertas e fechadas que visam captar dados da percepção
das docentes entrevistadas referentes à presença ou não de assédio moral no universo da
unidade escolar, assim como elementos relacionados a possíveis tensões que tal assédio
exerce na ordem afetiva das representações das professoras. Portanto, as questões inten-
tam: identificar a presença (ou não) e frequência correlata de situações de intimidação,
maltrato, ameaça, humilhação ou demais ofensas proferidas pela diretora da unidade
escolar contra as professoras pesquisadas, tanto a partir de experiências próprias quanto
através de testemunhos voltados a situações em que elas não estejam envolvidas dire-
tamente, mensurar a presença de sentimentos passivos – como, por exemplo, mágoa,
medo, insegurança etc. – e/ou reativos – como revolta, indignação, raiva etc. – como res-
posta à vivência ou testemunho diante das situações de assédio moral e verificar como
o assédio moral influi no apreço que as professoras podem ter com relação à profissão.
Como procedimento para coleta de dados, todas as profissionais foram contatadas
previamente e, após manifestarem concordância com a participação na pesquisa, res-
ponderam ao instrumento de investigação durante uma reunião de Trabalho Docente
Coletivo (TDC), na presença da pesquisadora responsável. Esta, por sinal, formalizou
sua disposição para o esclarecimento de eventuais dúvidas por parte das professoras
362 Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 12, n. 23, p. 359-370, jul./out. 2018. Disponível em: <http//www.esforce.org.br>
A gestão democrática rumo ao óbito: o assédio moral em uma escola pública
respondentes quanto ao preenchimento dos questionários, sendo que a formaliza-
ção, embora explícita no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foi reiterada
verbalmente.
Como procedimento para a análise dos dados, inicialmente as respostas obtidas foram
agrupadas em três categorias: percepção de assédio moral contra si, percepção de assé-
dio moral contra colegas de trabalho – ambas delimitadas conforme a frequência mínima
semanal dos eventos de assédio relatados pelas respondentes – e sentimentos resultantes
do assédio moral sofrido, sendo que para esta categoria também foram contabilizados os
casos em que, conforme relato próprio, houve algum tipo de agressão, porém sem fre-
quência regular. Em seguida, a partir do cruzamento entre as categorias “assédio moral
percebido contra si” e “assédio moral percebido contra colegas de trabalho”, buscamos
identificar se os índices pertinentes a cada uma delas seriam indicativos, do ponto de vista
diagnóstico, da presença do fenômeno pesquisado em nosso universo de investigação,
situação aparentemente confirmada mediante a constatação de que duas docentes indi-
caram frequência igual ou maior do que a semanal ao assédio percebido contra si e cinco
professoras atribuíram frequência igual ou maior do que a semanal ao assédio percebido
contra colegas de trabalho, conforme veremos mais adiante. Aliás, chama-nos a atenção
o fato adjacente no qual todas as docentes entrevistadas relataram ter presenciado, ao
menos uma vez em um período de seis meses, alguma situação de intimidação, maltrato,
ameaça, humilhação ou ofensa por parte da diretora da unidade escolar contra si ou con-
tra alguma colega de trabalho. Este panorama, apesar de, se tomado isoladamente, ser
insuficiente para classificar os relatos como assédio moral, reforça a hipótese de que esta
forma de violência está longe de ser incomum no contexto da escola em questão.
Por ser reduzida a amostra para a investigação, delimitada metodologicamente como
um estudo de caso, não houve necessidade de submissão dos resultados à análise com-
binatória estatística, visto que o cruzamento entre as variáveis “assédio moral sofrido” e
“sentimentos resultantes do assédio” – cujas relações nos interessam para este trabalho
– pôde ser analisado, para cada respondente, de modo individual. Deste modo, foi pos-
sível visualizar com mais detalhes tais relações para que pudéssemos, posteriormente,
melhor vislumbrar o modo com o qual o assédio moral sofrido pode ter agido como
mediador dos afetos contingentes ao psiquismo para gerar os sentimentos que foram
relatados, de modo espontâneo, pelas professoras respondentes – sem perder de vista o
fato de que, pela própria plasticidade que caracteriza a instância das representações, tais
sentimentos podem facilmente transcender a relação espaço/temporal que estabelecem
com seus fatos geradores, os quais, no caso específico desta investigação, correspondem
às experiências vividas com o assédio empreendido pela diretora da unidade escolar.
Passemos, portanto, à explicitação pormenorizada dos resultados que foram obti-
dos, atrelados às suas respectivas discussões.
Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 12, n. 23, p. 359-370, jul./out. 2018. Disponível em: <http//www.esforce.org.br> 363
Rafael Petta Daud e Lidiane Aparecida Teixeira
Resultados e discussão
Como relação à pergunta “você já se sentiu intimidada, maltratada, ameaçada, humi-
lhada ou ofendida nos últimos seis meses por parte de um ou mais representantes da
equipe gestora de sua unidade educacional?”, todas as docentes responderam de modo
afirmativo, embora com distintas frequências, conforme observamos em Tabela 1:
Tabela 1 – Situações que podem indicar a presença de assédio moral,
conforme frequência e percepção das docentes pesquisadas com
relação às experiências próprias
Você já se sentiu intimidada, maltratada, ameaçada, humilhada ou Docentes
ofendida nos últimos 6 meses por parte de um ou mais representantes
da equipe gestora de sua unidade educacional? (n= 8)
Não. 0
Sim. Pelo menos uma vez nos últimos seis meses. 5
Sim. Pelo menos uma vez por mês. 1
Sim. Pelo menos uma vez por semana. 0
Sim. Mais de uma vez por semana. 1
Sim. Praticamente todos os dias. 1
Fonte: Autores desta investigação
Sem desconsiderar o fato de que nem sempre é possível mensurar os danos às víti-
mas das situações descritas em Tabela 1 através da frequência com que as situações
ocorrem – pois estaríamos simplificando em demasia a complexidade que caracteriza os
sintomas que decorrem da mediação entre um ato de agressão, seu agente e seu receptor,
sendo que a proporção entre a frequência do ato e a intensidade do sintoma propriamente
dito não é, necessariamente, direta – entendemos ser presumível o fato de que se enqua-
dram na definição de assédio moral por nós assumida os eventos que se repetem, pelo
menos, semanalmente, visto que a repetição semanal coaduna com regularidade sobre
a qual se qualifica o viés sistemático das agressões (HIRIGOYEN, 2002). Por esta feita,
teríamos então duas professoras vitimizadas por esta forma de violência, ao menos con-
forme a representação que elas têm da relação entre si e o outro que, à luz da hierarquia
da instituição em questão, poderíamos denominar por “outro autoridade”.
Obviamente, dado o fato de que as respostas obtidas provêm da percepção dos
sujeitos respondentes – o que as sujeita aos limites inerentes ao gesto interpretativo
–, consideramo-las apenas como indícios a partir dos quais podemos nos aproximar
da realidade que pretendemos mensurar. Afinal, necessariamente devemos conside-
rar, além da percepção, algumas instabilidades que se devem à plasticidade da própria
364 Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 12, n. 23, p. 359-370, jul./out. 2018. Disponível em: <http//www.esforce.org.br>
A gestão democrática rumo ao óbito: o assédio moral em uma escola pública
representação confrontada com o cotidiano representado, dentre as quais (1) a possibi-
lidade de que atitudes a priori de não agressão sejam representadas como agressão e (2)
atitudes de agressão sejam representadas como não agressão.
Respeitada a advertência acerca das anuências do gesto representativo, é com base
nelas que nos orientamos para ponderar os dados referentes ao assédio moral percebido
sob testemunho, ou seja, sem que o sujeito observador esteja implicado diretamente na
cena observada, conforme Tabela 2:
Tabela 2 – Situações que podem indicar a presença de assédio moral,
conforme frequência e percepção das docentes pesquisadas com
relação às experiências testemunhadas
Você já se presenciou alguma colega ser intimidada, maltratada, Docentes
ameaçada, humilhada ou ofendida nos últimos 6 meses por parte de um
ou mais representantes da equipe gestora de sua Unidade Educacional? (n= 8)
Não. 0
Sim. Pelo menos uma vez nos últimos 6 meses. 2
Sim. Pelo menos uma vez por mês. 1
Sim. Pelo menos uma vez por semana. 3
Sim. Mais de uma vez por semana. 2
Sim. Praticamente todos os dias. 0
Fonte: Autores desta investigação
Pelo menos cinco docentes pesquisadas consideram ter presenciado, semanalmente,
uma ou mais situações dentre as supra descritas. Além disso, nenhuma professora res-
pondeu à questão de modo negativo, fato que sugere regularidade quanto a presença
de tais situações na conduta de quem responde pela equipe gestora da Unidade Educa-
cional, no caso, a diretora1. Em outros termos, aparentemente práticas de intimidação,
maltrato, ameaça, humilhação ou ofensas diversas são corriqueiras no modo com o qual
a profissional responsável pelo cargo de direção lida com o exercício do poder que lhe
é concedido por decorrência de sua posição na hierarquia institucional, fato que tende
a se comprovar quando perguntamos às professoras entrevistadas sobre a quantidade
de docentes que elas presenciaram sendo vítimas de tais formas de violência. Sobre esta
questão, duas professoras assinalaram, em nosso instrumento, a alternativa “de 2 a 5
docentes”. Três professoras indicaram ter presenciado “de 6 a 10 docentes” e outras três
responderam “mais de 10 docentes” à mesma questão. Ou seja, apesar de nem todas as
situações corresponderem, necessariamente, à classificação nos termos de assédio moral
conforme a definição por nós assumida nesta investigação, elas são indicadoras de uma
lógica de ação que é condição necessária, embora não única, ao seu exercício: sobrepujar,
Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 12, n. 23, p. 359-370, jul./out. 2018. Disponível em: <http//www.esforce.org.br> 365
Rafael Petta Daud e Lidiane Aparecida Teixeira
pelo exercício arbitrário de poder, quem se situa de modo descendente com relação a si
no horizonte da hierarquia institucional, sendo tal arbitrariedade mediada pela ausência
de conteúdos morais por parte do agente, dado que elementos como força, poder, into-
lerância e falta de respeito lhes são mais importantes do que a generosidade, a justiça e
o respeito no tratamento com o outro que se encontra sob sua chefia.
Ao assumir esta lógica como orientação de conduta, a diretora da unidade escolar
em questão se aproxima de práticas que, de acordo com a Organização Internacional do
Trabalho (OIT, 2003), podem afetar seriamente a saúde física e psíquica das professoras
que estão sob suas orientações administrativas, submetendo-as, inclusive, ao risco de
suicídio (IDEM). Para Oliveira (2013), do ponto de vista sintomático estes danos come-
çam a se revelar em suas vítimas por meio de problemas como:
(...) endurecimento ou esfriamento das relações no ambiente de trabalho; dificul-
dades de enfrentar as agressões ou interagir em equipe; dificuldades emocionais
como irritação constante, falta de confiança em si, cansaço exagerado, diminuição da
capacidade para enfrentar o estresse e pensamentos repetitivos; alterações do sono;
dificuldade para dormir, pesadelos, interrupções frequentes do sono, insônia; altera-
ção da capacidade de concentrar-se e memorizar (amnésia psicogênica, diminuição
da capacidade de recordar os acontecimentos); anulação dos pensamento ou senti-
mentos que relembrem a tortura psicológica, como forma de se proteger e resistir;
diminuição da capacidade de fazer novas amizades; morte social: redução do afeto,
sentimento de isolamento ou indiferença com respeito ao sofrimento alheio; tristeza
profunda; sensação negativa de futuro; vivência depressiva; mudança de perso-
nalidade; prática de violência moral; sentimento de culpa; pensamentos suicidas,
tentativas de suicídio; aumento do peso ou emagrecimento exagerado. Distúrbios
digestivos; hipertensão arterial; tremores; palpitações; Aumento de bebidas alcoóli-
cas e outras drogas; estresse; falta de equilíbrio quanto às manifestações emocionais,
por exemplo, com crises de choro ou de raiva; Pedido de demissão; Tensão nos rela-
cionamentos afetivos (OLIVEIRA, 2013, p. 138).
No caso dos depoimentos coletados por ocasião de nossa investigação, é possível
perceber, inclusive, que os danos mencionados são capazes de transcender a relação
direta entre agressor e vítima e incidir em quem, de fora, constantemente presencia as
situações de intimidação, conforme a fala de uma das professoras entrevistadas, aqui
denominada por P1: “Já me senti intimidada por assistir outros professores sendo intimi-
dados por vários motivos durante os últimos seis meses. Meu medo era que a qualquer
momento fosse acontecer comigo”.
Não obstante, sobre os sentimentos infligidos a partir de tais situações, pedimos para
que as docentes participantes desta pesquisa indicassem, em nosso instrumento de inves-
tigação, até três palavras representativas dos que, nelas, foram mais frequentes com relação
às agressões sofridas, sejam elas enquadradas nos termos do assédio moral em sua via de
repetição (lembremos do critério por nós adotado neste trabalho, ou seja, considerar como
assédio moral as agressões que se repetem, ao menos, semanalmente) ou não. Em seguida,
separamos as respectivas respostas sobre este item em três categorias: sentimentos que se
366 Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 12, n. 23, p. 359-370, jul./out. 2018. Disponível em: <http//www.esforce.org.br>
A gestão democrática rumo ao óbito: o assédio moral em uma escola pública
relacionam com uma postura tendencialmente mais passiva com relação às agressões (tais
como medo, ansiedade e insegurança, p.ex.), sentimentos relacionados com uma postura
tendencialmente mais ativa com relação às agressões (como indignação, raiva e revolta,
p. ex.) e sentimentos que podem se relacionar tanto com uma postura tendencialmente
mais passiva quanto mais ativa (como os mediados pela percepção de ter sido ofendida ou
desrespeitada, p. ex., cujas atitudes derivadas podem ser tanto de ação quanto de introspec-
ção). Deste modo, dos 24 termos citados (cada uma das oito professoras entrevistada citou
três), 16 (67%) se enquadram na primeira categoria, quatro (16,5%) na segunda e quatro
(16,5%) na terceira. Com isso, sentimentos como medo, desânimo ou impotência foram mais
prevalentes do que raiva, injustiça ou indignação, por exemplo. Esta prevalência, aliás, pro-
vavelmente não se restringe ao instante em que as atitudes de agressão são empreendidas
pela diretora da unidade educacional, já que uma das características centrais da estância
da representação no psiquismo se dá, como já mencionamos, por sua transcendência tem-
poral relacionada ao representado (ARENDT, 2000; MOSCOVICI, 2003).
Na prática, considerando esta premissa em sua projeção com relação ao objeto da
investigação, podemos afirmar que para as professoras as agressões sofridas provavel-
mente são rememoradas por diversas vezes após o instante em que ocorreram, assim
como os sentimentos lhes cindem de modo concomitante. Afinal, dada a conjectura do
trabalho escolar, no dia seguinte após terem sofrido uma agressão as professoras, obri-
gatoriamente, terão que conviver com o sujeito agressor, fato que é impeditivo de que
as expectativas mediadas pela angústia de estar diante de seu algoz possam cessar. Em
alguns casos, inclusive, esta condição pode afetar os próprios sentidos que elas atribuem
ao trabalho que desenvolvem, conforme nos indicam os dados em Tabela 3, referentes
às consequências do maltrato para a relação afetiva que estabelecem com a profissão:
Tabela 3 – Relação entre as agressões sofridas e as motivações relacionadas
com a profissão docente
Docentes
Com relação às consequências das ocasiões retratadas para a sua
profissão, assinale a alternativa que mais se aproxima da explicação
(n= 8)
Não geram nenhum efeito. 0
As situações me incomodam um pouco. Porém, sigo adiante, pois gosto do que faço. 6
Me abalam consideravelmente. Tenho vontade de desistir de minha profissão. 2
Fonte: Autores desta investigação
Percebe-se, portanto, que as agressões que foram relatadas pelas docentes pesqui-
sadas não são inócuas, sendo que, para duas delas, seus efeitos são fortes o suficiente
para assumirem o valor de causa à vontade de desistir do exercício da docência, fato cuja
Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 12, n. 23, p. 359-370, jul./out. 2018. Disponível em: <http//www.esforce.org.br> 367
Rafael Petta Daud e Lidiane Aparecida Teixeira
manutenção a longo prazo pode, sem dúvida, adquirir potencialidade suficiente para
acarretar prejuízos à integridade psíquica das profissionais.
Em todo o caso, embora tenhamos captado apenas um pequeno recorte de uma
realidade certamente mais complexa, os dados que obtivemos não nos deixam dúvi-
das quanto à natureza das ações provenientes da profissional responsável pelo cargo
de direção com relação às professoras sob sua administração, ou seja, ações demarcadas
por aquilo que se pode entender como abuso de poder, abuso este que, ao ser objetivado
por meio de intimidações, maltratos, ameaças, humilhações ou demais ofensas, nos ter-
mos de seus efeitos coloca as docentes em uma situação, no mínimo, desconfortável no
que tange a um ambiente considerado saudável para a própria realização da pedagogia.
Amiúde, correspondendo ou não tais ações ao constructo de assédio moral assu-
mido para este trabalho, elas não deixam de revelar tanto a carência de conteúdos morais
(como o respeito, a justiça, a solidariedade etc.) tão caros a qualquer relação interpes-
soal tida como desejável quanto a impossibilidade de que a ética venha a qualificar a
própria gestão escolar diante de um paradigma que, conforme a própria legislação bra-
sileira, necessariamente deve se orientar pelos princípios que são coerentes com a gestão
democrática (BRASIL, 19882, 19963). Sobre esta questão, questionamos: como é possível
o exercício da gestão democrática em um ambiente demarcado por relações de autocra-
cia, cujo autoritarismo desmedido e imoral se sobrepõe ao tratamento justo?
Tecidas estas observações, e certos de que a resposta à última questão não é de difícil
elaboração, dada a obviedade de sua negativa, passamos para nossas considerações finais.
Considerações Finais
Com este trabalho realizamos a incursão em um tema que, apesar de não inédito,
aparentemente tem sido pouco explorado pela produção científica da área da educa-
ção. Embora não consideremos ser significativa a representatividade que a amostra e a
instituição eleitas em nossa investigação têm com relação à educação em geral, esta con-
dição não retira a relevância que ela tem diante da necessidade de problematizar, com
as devidas refutações, a questão do assédio moral nas práticas de gestão escolar, prática
esta que fere não apenas os postulados atrelados à gestão democrática de ensino mas,
também, a própria moral que, para qualquer relação interpessoal desejável, se impõe
como condição. Sobretudo em uma instituição cuja justificativa da própria existência
se dá, justamente, pela responsabilidade que tem no que se refere à formação humana,
cuja essência, obrigatoriamente, deve erigir sobre os valores morais para que se pro-
duza a “boa educação”. Nesse sentido, atitudes empreendidas axiologicamente a partir
da lógica da intolerância, humilhação, menosprezo e demais formas de maltrato devem,
sem dúvida, ser passíveis de reprovação em qualquer instituição educativa, sejam elas
368 Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 12, n. 23, p. 359-370, jul./out. 2018. Disponível em: <http//www.esforce.org.br>
A gestão democrática rumo ao óbito: o assédio moral em uma escola pública
restritas à relação estabelecida entre gestores e professores ou expandidas para outras
instâncias de convivência. Finalmente, sendo a escola um local onde a convivência é fato
dado à sua natureza, outorga-se a ela zelar pelo bom convívio de todos os personagens,
sejam eles gestores, professores, alunos ou funcionários. No caso de nossa investiga-
ção, ao verificar que a maioria das professoras pesquisadas manifesta como resposta
às agressões sofridas sentimentos como angústia, desmotivação ou desânimo, dentre
outros, comprovamos os riscos que as situações apresentam à sua sanidade psíquica.
No entanto, considerando os limites metodológicos sob os quais desenvolvemos esta
pesquisa, não é possível mensurar com mais precisão o quanto realmente estes riscos
podem afetá-las. Para isso, seria necessário o estabelecimento de um estudo longitudi-
nal, a fim de que os efeitos do assédio moral possam ser melhor depurados, a partir de
uma perspectiva a “longo prazo”.
Outra limitação que merece ser destacada se deve ao nosso próprio instrumento
de investigação, cujas perguntas fechadas nos permitem, apenas, captar fotografias de
uma realidade certamente mais complexa. Para imergir nas nuances subjacentes aos
fatos representados e aos sentimentos mais profundos deles decorrentes, teríamos que
recorrer ao método clínico, utilizado por autores como, por exemplo, Jean Piaget (1932),
Lawrence Kohlberg (1992) e Carol Gilligan (1982). No entanto, além da demanda maior
por tempo, teríamos que optar por entrevistas de caráter aberto, situações estas pratica-
mente impraticáveis diante das condições para a realização de nosso estudo, no qual a
própria coleta de dados não se deu sem resistência por parte da administração escolar.
Por fim, apesar de assinaladas tais limitações, as quais reconhecemos de antemão,
assumindo-as como causa do caráter não conclusivo de nosso estudo, estamos certos
de que, a partir dele, é possível a abertura para outros de maior dimensão, a fim de que
a prática de assédio moral por parte dos gestores escolares possa ter sua imoralidade
embasada e comprovada pela produção científica da educação e, com isso, sejam con-
solidados os argumentos sobre os quais podemos refutar, sem hesitar, o mau uso do
poder por parte de quem não pode prescindir de seu bom uso. Para o bem da educação...
Recebido em: 19/04/2018, reapresentado em: 30/08/2018 e aprovado em: 12/09/2018
Notas
1 No caso da unidade educacional pesquisada, devido à ausência de um profissional responsável pela coor-
denação pedagógica ou pelo cargo de vice direção – ausências estas que, nas instituições públicas muni-
cipais responsáveis pela educação infantil de Ribeirão Preto/SP, são comuns – a diretora da escola é quem
exclusivamente responde pela equipe de gestão.
Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 12, n. 23, p. 359-370, jul./out. 2018. Disponível em: <http//www.esforce.org.br> 369
Rafael Petta Daud e Lidiane Aparecida Teixeira
2 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 206, de 05 de outubro de 1988.
3 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), inciso VIII do art. 3º, de 20 de dezembro de 1996.
Referências
ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer, o julgar. Trad. de César Antônio Abranches.
4 ed. Rio de Janeiro: Relume Domará, 2000.
______. Entre o passado e o futuro. Tradução: Mauro W. Barbosa. 5. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal: Centro Gráfico,
1988. 292 p.
______. Lei 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Disponível em < www.planalto.
gov.br >. Acesso em: 08 de abril de 2018
COSTA, Isabelle Cristinne Pinto et. al. Produção científica acerca de assédio moral em dissertações e
teses no cenário brasileiro. Revista da Escola de Enfermagem da USP, São Pulo: USP, v. 49, n. 2, p.
267-276, 2015.
DOURADO, Luiz Fernandez. Progestão: como promover, articular e envolver a ação das pessoas no
processo de gestão escolar? Brasília: CONSED, 2001.
GILLIGAN. Carol. Uma voz diferente. Rio de Janeiro: Editora Rosa dos Tempos, 1982.
HIRIGOYEN, Marie-France. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. 5ª ed. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2002.
JEONG, Deborah Ju Yong; KURCGANT, Paulina. Factors of work dissatisfaction according to the
perception of nurses of a university hospital. Rev. Gaúcha Enferm, Porto Alegre: UFRGS, v. 31, n. 4, p.
655-61, 2010.
KOHLBERG, Lawrence. Estádios morales y moralización. El enfoque cognitivo-evolutivo. In: TURIEL,
Eliot; ENESCO, Ileana; LINAZA, Josetxu. (compilación). El mundo social en la mente infantil.
Madrid: Alianza Editorial, 1989.
______. Psicologia del desarrollo moral. Bilbau: Biblioteca de Psicologia/ Desclée de Brouwer, 1992.
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. Rio de Janeiro, Vozes, 2003.
OLIVEIRA, Euler Sinoir. Assédio Moral: Sujeitos, Danos à Saúde e Legislação. Assédio Moral e
Assédio Sexual, Rev. Eletrônica: TRTPR, v. 23, n.184, p. 128-147, 2013.
ORGANIZATION INTERNACIONAL DEL TRABAJO. Um informe de la OIT. Disponível em: http://
www.ilo.org/public/spanish/bureau/inf/pr/2000/37. htm. Acesso em: 10 mai. 2003.
PARO, Vitor Henrique. Gestão democrática da escola pública. São Paulo: Cortez, 2017.
PIAGET, Jean. O juízo moral na Criança. São Paulo: Summus, 1932/1994.
______. Las relaciones entre la inteligencia y la afectividad en el desarrollo mental del ninõ. In:
DELAHANTY, G. PERRËS (Comp). Piaget y el psicoanálisis. México: Universidade Autonoma
Metropolitana, 1952/1994, pp. 181-290.
370 Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 12, n. 23, p. 359-370, jul./out. 2018. Disponível em: <http//www.esforce.org.br>