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TROVADORISMO
(1198-1418)
PRELIMINARES
‘As primeiras décadas desta época transcorrem durante a guerra
de reconquista do solo portugués ainda em_parte sob dominio mou-
risco, cujo derradeiro ato se desenrola mn) aun Afonso IIT se
apodera de Albufeira, Faro, Loulé, Aljezut€ Porches, no extremo sul
do Pais, batendo definitivamente os ltimos baluartes sarracenos em
Portugal. E apesar de to absorvente a pritica guerreira durante esses
anos de consolidag4o politica e territorial, a atividade literdria benefi-
ciou-se de condigdes propicias e pode desenvolver-se normalmente. Ces-
sada a contingéncia bélica, observase o recrudescimento das manifes-
tag&es sociais tfpicas dos perfodos de paz e trangiiilidade ociosa, entre
as quais a literatura.
Em resultado desse clima pés-guerra, a poesia medieval portuguesa
alcanga, na_segunda metade do_século XUIJ, seu ponto mais alto. A ori-
‘gem remota~dessa poesia constitui ainda assunto controvertido; admi-
tem-se Aosta) fundamentais teses para explicdla: a_tese ardbica, que
considera w-cultura ardbica como sua velha raiz; a t8%e folclérica, que a
julga criada pelo povo; a tes tinista, segundo a qual essa poe-
sia ter-se-ia originado da literatura latina produzida durante a Idade Mé-
dia; a_tese litdrgica,considera-a fruto da poesia litargico-crist® elaborada
na mesma época. Nenhuma delas é suficiente, de per si, para resolver
© problema, tal a sua unilateralidade. Temos de apelar para todas, ecle-
ticamente, a fim-de abarcar a.multidio de aspectos contrastantes apre-
sentada pela primeira floracdo da poesia medieval.
Todavia, é da Provenga que vem o influxo proximo. Aquela re-
gifo meridional da Franca tomarase no século XI um grande centro
de atividade lirica, mercé das condigdes de luxo e fausto oferecidas aos
artistas pelos senhores feudais. As Cruzadas, compelindo os fiéis a pro-
curar Lisboa como porto mais proximo para embarcar com destino a
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|Jerusalém, propiciaram a movimentagfo duma_fauna humana mais ou
menos parasitaria, em meio & qual iam gs“jograis. Estes, penetrando pe-
Jo chamado “‘caminho francés” aberto ios Pirineus, introduziram em
Portugal a nova moda postica —s
————Fécil-for sa adaptagao & realidade portuguesa, gracas a ter encon-
trado um ambiente favoravelmente predisposto, formado por uma es
pécie de poesia popular de velha tradigGo. A intima fustio de ambas as
correntes (a provencal ¢ a popular) explicaria o carter proprio. assumido
pelo trovadorismo em terras portuguesas———
- Epoca incase
dedicada por Paio Soares
em 1418, quando Femao Lopes ¢ nomeado Guarda-Mor da Torre do
{. Tombo, ou seja, conservador do arquivo do Reino, por D. Duarte.
APOESIA TROVADORESCA
Na Provenga, o poeta era chamado de [troubadour, éuja forma
correspondente em Portugués ¢ trovador, da qual deriva Movadorismo,
trovadoresco, trovadorescamente. No norte da Franca, 0 poeta recebia
© apelativo trouvére, cujo radical € igual a0 anterior: trouver (=achar)
os poetas deviam ser capazes de compor, achar sua cangao, cantign ou
cantar, ¢ © poema assim se denominava por implicar 0 canto e 0 acom-
panhamento musical
Duas espécies principais apresentava a poesia trovadoresca: a i-
rico-amorosa ¢ a satirica. A primeira divide-se em cantiga de amor ¢ can-
tiga de~amigo; a segunda, em cantiga de escérnio e cantiga de maldizer.
ma empregado era o galego-portugués| em virtude da ento uni-
iglistica entre Portugal e @
CANTIGA DE AMORI— Neste tipo de cantiga, 0 trovador empre-
end®& confissio, dolorosa © quase elegiaca, de sua angustiante expe-
rigncia passional frente a uma dama inacess(vel aos seus apelos, entre
outras razdes porque de superior estirpe social, enquanto ele era, quando
muito, fidalgo decaido. Uma atmosfera plangente, suplicante, de litani
varte a cantiga de ponta a ponta. Os apelos do trovador colocam-se alto,
num plano de espiritualidade, de idealidade ou contemplagio plato
mas entranham-selhe no mais fundo dos sentidos; 0 impulso
situado na raiz das siplicas transubstancia
Tudo se passa como se 0 trovador “fingis
do espiritualismo, obediente as regras de conve
literéria vinda da Provenga, 0 verda
goes dirigidas a dama. A custa de
ingidos” ou incorrespondidos, os
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estimulos amorosos transcendentalizamsse: repassa-os um torturante softi-
‘mento interior que se segue a certeza da indtil siiplica e da espera dum
bem que munca chega E+ cal (=iaTGMEROT Ye amor que, fina, ele
confessa.
‘As mais das vezes, quem usa da palavra é 0 proprio trovador, dirt
gindo-a com respeito e subserviéncia & dama de seus cuidados (mia se-
nhor ou mia dona = minha senhora), e rendendodhe o culto que o “ser:
vigo amoroso” Ihe impunha. E este orienta-se de acordo com um rigido
codigo de comportamento ético: as regras do “amor cortés”, recebidas
da Provenga. Segundo elas, o trovador teria de mencionar ‘comedida-
mente 0 seu sentimento (mesura), a fim de ndo incorrer no desagrado
(sanha) da bemvamada; teria de ocultar 0 nome dela ou recorrer a um
pseud@nimo (senhal), prestarthe uma vassalagem que apresentava qua-
fo fases: a primeira correspondia 4 condicdo de-fenhedor, de quem se
consome em suspiros; a segunda € 2 de_precador, de quem ousa decla-
arse ¢ pedir; entendedor € 0 namorado; drut, 0 amante. O lirismo tro-
vadoresco portuguéS apenas conheceu as dUaSUtimas fases, mas o drut
(drudo em Portugués) se encontrava exclusivamente na cantiga de es-
cémnio e maldizer. Também a senhal era desconhecida de nosso trova-
dorismo, Subordinando 0 seu sentimento as leis da corte amorosa,
trovador mostrava conhecer e respeitar as dificuldades interpostas elas
convengdes ¢ pela dama no rumo que o levaria a consecugdo dum bem
impossivel. Mais ainda: dum bem (e “fazer bem” significa correspon-
der aos requestos do trovador) que ele nem sempre desejava alcancar,
pois seria por fim ao seu tormento masoquista, ou inicio dum outro
maior. Em qualquer hipotese, s6 the restava. softer, indefinidamente,
2 colta amorous eo Lpirke rete
E ao tentar exprimirse, a plangéneia da confissio do sentimento
que 0 avassala, — apoiada numa melopéia propria de quem mais mur-
mura suplicantemente do que fala —, vai num crescendo até a tltima
estrofe (4_estrofe erachamada na lirica trovadoresca de cobra; podia
ainda receber 0 nome de cobla ou de talk). Viste uma idéia obsessiva
estar empolgando 0 trovador, a confissio gira em tomo dum mesmo
nicleo, para cuja expresso 0 enamorado no acha palavras muito va-
riadas, to intenso € macigo € 0 sofrimento que 0 tortura. Ao contré-
tio, acorrente emocional, movimentando-se num circulo vicioso, acaba
por se repetir monotonamente, apenas mudado o grau do lamento, que
aumenta em avalanche até o fim. O estribilko ou refrdo, com que 0 tro-
vador pode rematar cada estrofe, diz bem dessa angustiante idéia fixa
para a qual ele nfo encontra expressio diversa. +
Quando presente o estribilho, que é recurso tipico da poesia po- ihe
pular,_a_cantiga chama-se de refrdo, Quando ausente, a cantiga recebe
© nome de cantiga de maestria, por tratarse dum esquema estrofico mais
Sige ie eee
2complexo, intelectualizado, sem o suporte facilitador daquele expediente
repetitivo,
CANTIGA DE AMIGO — Escrita igualmente pelo trovador que
compée cantigas de amor, ¢ mesmo as de escirnio e maldizer, esse ti
po de cantiga focaliza 0 outro lado da relagao amorosa: 0 fulcro do poe-
ma € agora representado pelo sofrimento amoroso da mulher, via de
regra pertencente as camadas populares (pastoras, camponesas, etc.)
trovador, amado incondicionalmente pela moga humilde ¢ ingénua
do campo ou da zona ribeirinha, projeta-selhe no intimo e desvenda-lhe
(© desgosto de amar e ser abandonada, em razo da guerra ou de outra
mulher. O drama é o da mulher, mas quem ainda compée a cantiga €
© trovador: 1) pode ser ele precisamente 0 homem com quem a moga
vive sua histéria; 0 sofrimento dela, o trovador ¢ que 0 conhece, me-
Thor do que ninguém; 2) por ser a jovem analfabeta, como acontecia
mesmo as fidalgas
© trovador vive uma dualidade amorosa, de onde extrai as duas
formas de lirismo amoroso préprias da época: em espiri ek
dama aristocratica; com os sentidos, & camponesa ou a pastora. Por isso,
pode expressar autenticamente os dois tipos de experiéncia passional,
fe sempre na primeira pessoa (do singular ou plural), 1) como agente
amoroso que padece a incorrespondéncia, 2) como se falasse pela mu
Iher que por ele desgracadamente se apaixona. E digno de nota que essa
ambigilidade, ou essa capacidade de projetar-se na interlocutora do epi
sédio e exprimirhe o sentimento; extremamente curiosa como psico-
logia literdria ou das relagdes humanas, no existia antes do trovadoris-
‘mo nem jamais se repetiu depois.
No geral, quem ergue a voz € a propria mulher, dirigindose em
confissdo 4 mie, as amigas, aos pissaros, aos arvoredos, as fontes, 20s
riachos. O conteédo da confissio é sempre formado duma paixo in-
transitiva ou incompreendida, mas a que ela se entrega de corpo e alma.
‘Ao passo que a cantiga de amor é idealista, a de amigo é realista, tra
duzindo um sentimento espontaneo, natural e primitivo por parte da
mulher, e um sentimento donjuanesco ¢ egofsta por parte do homem
Uma tal paixio haveria de ter sua historia: as cantigas surpreen-
dem “momentos” do namoro, desde as primeiras horas da corte até
as dores do abandono, ou da auséncia, pelo fato de o bem-amado estar no
fossado ou no bafordo, isto é, no servigo militar ou no exercicio das
‘armas. Por isso, a palavra amigo pode significar namorado ¢ amante.
‘A cantiga de amigo possui cardter mais narrativo e descritivo que
ade amor, de feigfo analitica e discursiva. E classifica-se de acordo com
6 lugar geogrifico e as circunstancias em que decorrem os acontecimen-
tos, em serranitha, pastorela, barcarola, bailada, romaria, alba_ou alvo~
2
noite de amor).
CANTIGA DE ESCARNIO E CANTIGA DE MALDIZER — A
cantiga de escérnio é aquela em que a sétira se constréi indiretamen-
te, por meio da ironia e do sarcasmo, usando “palavras cobertas, que
hhajam dois entendimentos para the lo no entenderem”, como reza a
Poética Fragmentéria que precede 0 Cancioneiro da Biblioteca Nacio-
nal (antigo Colocei-Brancuti). Na de maldizer, a é feita direta-
‘mente, com agressividade, “mais descobertamente”, com “palavras que
querem dizer mal € nao haverdo outro entendimento senfo aquele que
querem dizer chdmente”, como ensina a mesma Poética Fragmentéria.
Essas duas formas de cantiga satiica, nfo raro escritas pelos mes-
‘mos trovadores que compunham poesia lirico-amorosa, expressavam,
como ¢ facil depreender, o modo de sentir e de viver proprio de ambien-
tes dissolutos, e acabaram por ser cangdes de vida boémia ¢ escorra-
gada, que encontrava nos meios frascérios e taberndrios seu lugar ideal.
‘A linguagem em que eram vazadas admi
ciosas ou de baixo-calfo: poesia “maldita", descambando para a po:
nografia ou 0 mau gosto, possui escasso valor estético, mas em contra
partida documenta os meios populares do tempo, na sua linguagem ¢
‘nos seus costumes, com uma flagrincia de reportagem viva.
Visto constituir um tipo de poesia cultivado notadamente por
jograis de ma vida, era natural propiciasse e estimulasse o acompanhe-
mento de soldadeiras (= mulheres a soldo), cantadeiras ¢ bailadeiras,
cuja vida airada e dissoluta fazia coro com as chulices que iam nas le-
tras das cangdes.
ACOMPANHAMENTO MUSICAL — Como jé sabemos, as can-
tigas implicavam estreita alianca entre a poesia, a misica, 0 canto a
danca. Para tanto, faziam-se acompanhar de instrumentos de sopro,
corda percussio (a flauta, a guitarra, o alaide, o saltério, a viola, a
harpa, o arrabil, a gige-e-bandurra, # dogaina, a exabeba, o-anafil, a tor
a, a gaita, o tambor, o adufe, o pandeiro). O proprio trovador tangia
6 instrumento, especialmente quando de corda, enquanto cantava, ou
reservava-se para a interpretago da cantiga, deixando a parte instru-
‘mental a um acompanhante, jogral ou menestrel. A parte musical da-
vva-se 0 nome de son (= som).
CANCIONEIROS — Sendo transmitida oralmente, natural que
muito da poesia trovadoresca acabasse desaparecendo, sobretudo an-
tes de 1198. Com o tempo, a fim de avivar a meméria ineapaz de re-
ter diferentes composigies, as letras passaram a ser transcritas em pe
B‘quenos cadernos de apontamentos. Mais adiante, com 0 objetivo de res-
guardé-las definitivamente contra qualquer extravio, foram postas em
cancioneiro, isto é, coleténeas de cangées, sempre pot ordem ¢ graga
de um mecenas, notadamente 0 tei.
Dos varios cancioneiros que nos ficaram (na biblioteca de D. Duar-
te havia 0 Livro de Trovas de D. Afonso ou de El-Rei ¢ 0 Livro de Tro-
vas de D. Dinis, mas perderam-se), trés merecem especial relevo, por
sua importancia numérica e qualitativa:
Cancioneiro da Ajuda, composto no reinado de Afonso III (fins
do século XIII), 0 que exclui a contribuicdo de D. Dinis (reinou entre
1268 e 1325 e foi chamado Rei Trovador); contém 310 cantigas, qua-
se todas de amor;
Cancioneiro da Biblioteca Nacional (também chamado Colocci-
ianos, dos quais Bran-
mente
0s ti-
de original do século anterior; contém 1647 cantigas, de tod
pos, e engloba trovadores dos reinados de Afonso III e de D. Dinis;
Cancioneiro da Vaticana (o nome lhe vem de ter sido descober-
to na Biblioteca do Vaticano, em Roma), também c6pia italiana do sé-
culo XVI, de original da centiiria anterior, inclui 1205 cantigas de es-
cimnio e de maldizer, de amor e de amigo.
PRINCIPAIS TROVADORES — Dos trovadores enfeixados nes-
ses cancioneiros, 0 mais antigo é Jodo Soares de Paiva, nascido em 1141,
mas o primeiro de importincia € Paio Soares de Taveir6s, pela canti
ga de amor de 1198. Os principais trovadores foram: D. Dinis, relevan-
te pela extensdo e qualidade de sua obra (escreveu cerca de 140 cant
gas Iiricas e satiricas), Joo Garcia de Guilhade (deixou $4 com
{oes Iiricas e satiricas, e foi dos mais originais trovadores do século XIII),
Martim Codax (trovador da época de Afonso Ill, legou 7 cantigas de
‘amigo, as quais tm o mérito de constituir as tinicas pegas da litica tro-
vadoresca cuja pauta musical se preservou até hoje), Afonso Sanches
(filho de D. Dinis), Jodo Zorro, Aires Nunes, Aires Corpancho, Nuno
Fernandes Torneol, Bernardo Bonaval, Paio Gomes Charinho e outros.
TERMINOLOGIA POETICA — Apesar da aparéncia primitiva
€ espontinea, e de ser composta com os olhos voltados para a mésica,
a poesia medieval utilizava requintados recursos formais, sobretudo na
cantiga de amor, os quais, na maior parte, acabaram desaparecendo com
a moda do trovadorismo. Nao sendo, obviamente, ocasiio para tratar
de todos, trazem-se para aqui os mais frequentes:
verso era chamado palavra, e quando fosse branco, isto é, sem
rima, denominava-se palavra-perduda.
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Cobras singulares exam estrofes com rimas proprias. Quando as
rimas eram comuns, as estrofes recebiam 0 nome de cobras unissonas.
A fiinda era uma estrofe de estrutura propria, mas ligada pela 1-
‘ma ao resto da cantiga e servindo-lhe de remate.
‘A atafinda era 0 que modernamente recebe 0 nome de encadea-
mento (ou “enjambement”): 0 final de um verso, ou de uma estrofe,
liga-se diretamente ao seguinte, sem interrupedo de sentido ou de ritmo.
(0 dobre e 0 mordobre designavam a repetigdo duma palavra ou
mais dentro da mesma estrofe, exatamente como tal ou em uma de suas
formas derivadas.
Denominava-se leixa-pren (= deixa-prende) 0 recurso formal que
consistia em paar 6 TRO Te ‘iltimo verso de uma estrofe (que néo 0 reftio)
com ele iniciar a estrofe seguinte, inteiro ou com ligeira variago.
‘Quando o sentimento poético se mantinha inalterado em todas
as estrofes, e para exprimilo o trovador recorria as mesmas expressOes,
apenas utilizando sindnimos nas rimas, tinhamos o paralelismo, ¢ a can
tiga recebia o nome de paralelistica,
Tenedo era a Cantiga dialogada: as tengdes “se podem fazer de
amor, ou de amigo, ou de escdrnio, ou de maldizer, pero que devem de
ser de maestria”. (Poética Fragmentiria).
Cantiga de atafinda era 2 que utilizava 0 processo da atafinda,
{sto é, cujas estrofes estavam ligadas sintaticamente.
Por fim, vejamos o sentido hierérquico atribuido as palavras
vador, jogral, segrel e menestrel Nem eta muito precisa nem im
i diferenga a grav entre eles, pois obedecia a oscilagdes que dependiam
do nivel social e do talento artistico dos trovadores ¢ acompanhantes.
Simplificando a questo, terfamos que o trovador era o artista comple
to: compunha, cantava e podia instrumentar as cantigas; as mais das
vezes, era fidalgo decaido. Jogral era uma designagio menos precisa:
podia referir 0 saltimbanco, trufo, o ator mimico, 0 misico ¢ até mes-
‘mo aquele que compunha suas melodias; de extragdo inferior, por seus
méritos podia subir socialmente e ser tido como trovador. Segrel de-
signava um artista de controvertida condicdo: colocado entre 0 jogral
0 trovador, era o trovador profissional, que ia de Corte a Corte inter-
pretando cantigas proprias ou nfo, a troco de soldo. Menestrel era 0
miisico da Corte.
VALOR DA POESIA TROVADORESCA — Incontestavelmente,
grande parte do vasto fifo poético trovadoresco encontra-se hoje ul
trapassada, envelhecida para 0 gosto do leitor modemo. Todavia, hé
que usar de cautela a fim de nfo supor que tudo quanto caracterizou
a lirica trovadoresca esta fadado ao esquecimento: seu primitivismo,
a naturalidade dum lirismo que parece brotar exclusivamente da sen-
25lade, constitui nota viva e permanente; e a agudeza an
tiga de amor, com o seu platonismo a encobrir calorosos apelos sensuais,
je entcontra eco entre of leitores dessa espécie de poesia. Os “‘in-
linguagem (que servem de campo fecundo pa-
ra filélogos e graméticos) colaboram na formacio de uma peculiar at-
mosfera de espontaneidade, quase totalmente perdida com a Renascen-
ga. Por isso, 0 trovadorismo exige do leitor de nossos dias um esforgo
de adaptagdo e um conhecimento adequado das condigées hist6rico-so-
ciais em que 0 mesmo se desenvolveu, sob pena de tornar-se impermes-
vel A beleza e & pureza natural que evolam dessa poesia. Aceito nesse mundo
poético de estranha seducdo, descobriré algo mais: localizaré a fonte prime
ra de onde promana muito daquilo que constitui o patriménio lirico em
Lingua Portuguesa. Acabard compreendendo ndo ser para menos que cer-
tos poetas, brasileiros e portugueses (como, por exemplo, Manuel Ban-
deira e Afonso Duarte), ld se abeberaram: estes poetas, para exprimir de-
terminada e involuntéria consangiinidade lirica, subjacente em certos
estados de alma comuns mas provocados por motivos diversos, nao ti
veram sengo que voltar & origem, no encalco das formas adequadas de
expresso. E que, para algumas situagdes e sentimentos amorosos, os tro-
vadores encontraram palavras que ainda continuam a vibrar, por sua fla-
grante limpidez e precisio, compondo imagens duma beleza achada es-
pontaneamente, quase sem dar por isso, antes fruto do instinto, ou da
intuigdo, que da artesania. Af o seu valor, ainda hoje.
NOVELAS DE CAVALARIA
Além dessa magnifica floragio rica, a época do Trovadorismo ain-
da se caracteriza pelo aparecimento e cultivo das novelas de cavalaria
Origindrias da Inglaterra ouje da Franca, e de cariter tipicamente me-
dieval, nasceram da prosificagdo e metamorfose das canedes de gesta (poe-
sia de temas guerreiros): estas, alargadas e desdobradas a um grau que
transcendia qualquer meméria individual, deixaram de ser expressas por
meio de versos para o ser em prosa, e deixaram de ser cantadas para ser
lidas. Dessa mudanga resultaram as novelas de cavalaria, que penetraram
em Portugal no século XIII, durante o reinado de Afonso III. Seu meio
de circulagdo era a fidalguia e a realeza. Traduzidas do Francés, era na-
tural que sofressem alteragdes com 0 objetivo de aclimatélas a reali-
dade hist6rico-cultural portuguesa. Nessa época, nfo hé noticia de no-
velas de cavalaria autenticamente portuguesas: eram todas vertidas do
Francés.
Convencionow-se dividir a matéria cavaleiresca em trés ciclos: ci-
clo bretdo ou arturiano, tendo 0 Rei Artur e seus cavaleiros como pro-
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tagonistas; ciclo carolingio, em tomo de Carlos Magno e 0s doze pares
de Franca; ciclo cldssico, referente a novelas de temas greco-latinos. Tra-
tando-se da Literatura Portuguesa, essa divisio ndo tem cabimento, pois
86 0 ciclo arturiano deixou marcas vivas de sua passagem em Portugal.
Sabe-se que os demais ciclos foram conhecidos ¢ exerceram influéncia,
mas apenas na poesia do tempo, visto que ndo se conhece em vernéculo
rnenhuma novela de tema carolingio ou clissico.
Sabe-se, ainda, que na biblioteca de D. Duarte (1391-1438) exis-
tiam exemplares de novelas como Tristdo, o Livro de Galaaz, 0 Mago Mer-
lim, o que tevela 0 alto aprego em que eram tidas ¢ o impacto que exer-
ceram sobre os hébitos ¢ costumes palacianos da Idade Média portuguesa.
Excetuando o Amadis de Gaula, que sera tratado no capitulo do
Humanismo, das novelas que entio circularam, somente permaneceram
as seguintes: Historia de Merlim, José de Arimatéia e A Demanda do San-
to Graal.
‘A versio portuguesa da Histéria de Merlim desapareceu: da nove-
la $6 temos a traduefo espanhola, calcada sobre a portuguesa. O José de