RAZÃO TEÓRICA E RAZÃO PRÁTICA EM KANT
Legítimo filho do Iluminismo, aposta na autonomia da razão e na "maioridade" do
homem. Encontra no "uso público" da razão
a defesa incondicional da liberdade. (p. 913)
Sua filosofia moral deve, no entanto, ser devidamente situada a partir da filosofia
do conhecimento desenvolvida na Crítica da Razão Pura. Isto inclui uma clara
delimitação do âmbito da razão teórica e da razão prática; ou seja, deve-se
submeter a razão à avaliação de si mesma, isto é, à crítica. O problema, portanto,
é
investigar como pode uma razão pura ser prática, ou seja, como pode a razão
determinar não só as condições do conhecimento, mas também, imediatamente, a
vontade. (P. 913)
A delimitação do uso teórico e do uso prático da razão, em Kant, pode partir
de uma descrição inicial de sua concepção de ciência. (p. 913)
A lição aprendida é que "a
razão só compreende o que ela mesma produz segundo seu projeto" (p. 914)
Igualmente a razão prática só compreende a lei que ela mesma se dá. Por isso, o
homem só é livre quando cumpre a
lei moral que ele mesmo se dá. O conceito de autonomia da vontade está, como
veremos, intimamente ligado com este conceito de liberdade. Considerando que
não se pode buscar a lei moral ·em algum conteúdo material 'empírico, deve-se
determiná-la pela própria razão. (p. 914)
Como o a priori só é possível no sujeito que
investiga, é este que vai referir-se ao objeto. São dois os modos pelos quais o
conhecimento da razão pode referir-se ao seu objeto: a) para determinar este e seu
conceito; é o conhecimento teórico; b) para torná-lo real; é o conhecimento prático
(cf. C. R. Pura, p. 10). Ora, o a priori somente é possível na razão ou no sujeito
porque só daí poderá resultar a necessidade e a universalidade. Isto não é possível
partindo-se do objeto. Deste só se pode ter o particular e o contingente. (p. 914)
deram-se conta que só
estavam compreendendo aquilo que se adequava ao seu projeto.
O paralelismo entre a Critica da Razão Pura e a Crítica da Razão Prática indica
que se a razão determina a priori as condições de possibilidade do conhecimento
deve também determinar a priori a vontade dos sujeitos agentes através do
imperativo categórico, para que seus atos tenham valor moral. A primeira é a função
da
razão pura teórica, a segunda é a função da razão pura prática. É a mesma razão
pura com uma dupla função ou aplicação. A preocupação central de Kant é com a
parte pura de ambas. Na Crítica da Razão Pura demonstra como é possível uma
razão pura teórica, ou seja, mostra quais são as condições de possibilidade do
conhecimento. Na filosofia moral procura demonstrar como a razão pura pode ser
prática. Observe-se bem o segundo momento: a razão pura, e não uma razão empírica,
pode ser prática, porquanto já submetida a uma prévia crítica. Este é o
tema central da filosofia moral kantiana (cf. também Beck, 1980, p. 41). Se ao
nível
do conhecimento o sujeito não pode ser determinado pelo objeto, uma vez que
deste não pode resultar a necessidade e a universalidade, ao nivel do agir moral o
empírico não pode fornecer o princípio de determinação das vontades dos sujeitos
agentes, dado que dele (do empírico) só se origina o particular e o contingente. A
razão deve, portanto, poder determinar por si mesma as ações com verdadeiro
mérito moral. Convém salientar que os princípios nos quais se baseia a razão pura,
tanto teórica como prática, são sempre a priori, isto é, independentes da
experiência. Em outras palavras, se as condições de possibilidade do conhecimento
são a
priori, os princípios da razão prática também deverão ser proposições independentes
de toda e qualquer experiência, isto é, de qualquer intuição material. Esta
não poderá dar a universalidade e a necessidade que são as exigências da lei
moral. Ou seja, esgotados os limites do campo da experiência (razão teórica) não
se pode recorrer a ela para fundamentar as leis da razão prática. (p. 915)
unidade da razão (teórica e prática) O que faz com que se trate de uma só razão e
razão pura é que seus princípios são a priori.
Se o que há de comum é o a priori, o que as distingue, como dissemos, é
sua diferente aplicação. O caráter a priori, portanto, exige a
pureza da razão enquanto determinante da vontade do sujeito agente.
[MUNDO SUPRA-SENSÍVEL]
Se nos voltarmos um pouco mais sobre a "inversão copernicana" promovida
por Kant na Crítica da Razão Pura, podemos avaliar com mais precisão os resultados
que esta "crítica" traz para as pretensões da metafísica.' Verificamos de imediato
que, por um lado, é possível explicar a possibilidade do conhecimento a
priori; mas, por outro, "não podemos ultrapassar os limites da experiência
pos~ível", que é exatamente o interesse da metafísica (C. R. Pura, p. 13). Ou seja,
desta
crítica da razão (que mostra suas fontes e seus limites) resulta que só podemos
conhecer os fenômenos (as coisas na medida em que aparecem no âmbito do
espaço e do tempo e podem ser pensadas ao nível dos conceitos puros do
entendimento) e não as coisas em si mesmas. Mas a razão exige um incondicionado
para todo condicionado. Para os fenômenos ela exige a "completude da série das
condições". Só que o incondicionado somente pode ser encontrado nas coisas em
si mesmas, portanto não pode ser conhecido. Mas como sei que existe? É um salto
metafísico que leva a ele como resultado da síntese do pensamento. (p. 916)
[A NECESSIDADE DE DEUS PARA O FUNDAMENTO DA LIBERDADE]
É oportuno lembrar que o incondicionado tem, em Kant, uma dúplice significação: uma
que o considera como completude da série das condições, outra uma
causalidade por liberdade, uma causalidade que se determina por si mesma. (p. 916)
A distinção entre fenômeno e coisa em si (proporcionada pela crítica) permite
a Kant solucionar um grande problema no que se refere ao incondicionado, enquanto
idéia da razão. Se o nosso conhecimento se regulasse pelos objetos, tomados como
coisas em si mesmas, não se poderia pensar o incondicionado sem cair
em contradição. É que os objetos, na experiência, se manifestam sob diferentes
aspectos e o incondicionado, enquanto "completude da série das condições'', só
pode ser um. Por isso ele não pode ser encontrado nas coisas na medida em que
as conhecemos, isto é, nos fenômenos, mas deve poder ser pensado como completude da
série das causalidades. Por outro lado, se considerarmos o incondiconado como
aquilo que não é condicionado por algo externo ou por algum conteúdo material, isto
é, como causalidade por liberdade, também sob este aspecto
pode-se pensá-lo sem contradição. Enquanto participante do mundo fenomênico
(leis da causalidade natural) não sou livre. Estou submetido a estas leis. Posso e
devo, contudo, pensar a liberdade enquanto ao mesmo tempo sou parte do mundo
inteligível. Ela passa a ser uma Idéia da razão. Deve ser possível pensar uma ação
por vontade própria, por vontade autônoma, isto é, sem nenhum condicionamento
externo. Esta é condição para que a ação tenha mérito moral. (p. 917)
A indicação dos limites (restrição do uso teórico
da razão) é condição de possibilidade de acesso ao uso prático. A indicação dos
limites do conhecimento conduz a um outro nível que é o do pensamento. "Se não
podemos conhecer esses mesmos objetos como coisas em si mesmas, temos pelo
menos que poder pensá-los" (C. R. Pura, prefácio). Para todo efeito deve ser
procurada uma causa,
e para completar a série das causalidades (e esta é uma exigência da razão)
deve ser pensado um incausado (incondicionado). (p. 918)
Considerando que
os fenômenos são meras representações, devem ter um fundamento além deles.
Este fundamento é a coisa em si, da qual nada conhecemos mas que deve poder
ser pensada como base de todo fenômeno . Para o mundo dos fenômenos impõe-se
uma idéia reguladora que não pode ser conhecida, mas que deve ser pensada
enquanto exigência discursiva da razão. A crítica é que nos mostrou esta distinção
entre as coisas como objetos da experiência e as coisas como em si mesmas. Se
não posso conhecer as coisas em si mesmas devo poder pelo menos pensá-las, a
partir daquilo que podemos conhecer (os fenômenos). Se os objetos aparecem sob
diferentes aspectos é porque são muito mais do que aparece sob um determinado
aspecto. O conhecimento, no entanto, só se refere ao que aparece num determinado
aspecto, isto é,
diz respeito ao espaço e tempo, condições de possibilidade
da sensibilidade. (p. 918)
Há aqui uma separação em dois mundos: O mundo do conhecimento e o
mundo do pensamento; o mundo do saber e o mundo do ser. A razão prática situa-se no
nível do pensamento,
portanto, ao nível do incondicionado, isto é, da
"causalidade com liberdade"; da autonomia; do mundo inteligível. O acesso a este
requer, no entanto, uma prévia "crítica" dos limites da razão pura teórica. A razão
prática não pode buscar no mundo da experiência nenhuma fonte de determinação de
seus princípios,
uma vez que dele não resulta nenhum dever-ser. A experiência só diz o que é, mas
não indica os
princípios do que deve ser. Ou seja, exigem-se princípios para fundamentar algo
que já é - o "conhecimento moral ordinário". (p. 918)
Para o mundo dos fenômenos impõe-se
uma idéia reguladora que não pode ser conhecida, mas que deve ser pensada
enquanto exigência discursiva da razão. (p. 918)
A liberdaçie, portanto, não pode ser conhecida, mas deve poder
ser pensada como condição de possibilidade do valor moral dos atos humanos. Ela
passa a ser uma idéia reguladora, necessária para a razão prática. A idéia
reguladora tem a função de ser um dever-ser para tudo o que é. Só é possível emitir
um
juízo moral sobre o que é de fato a partir da idéia do que deve ser. Preciso,
portanto, determinar princípios (reguladores) do que "deve acontecer", mesmo que
não aconteça, mas que servem de referencial para julgar a (minha) situação
presente. Estes princípios servem como uma "bússola" através dos quais a razão
saberá distinguir o que é bom e o que é mau, o que é "conforme o dever" e o que
é contrário a ele (cf. F. M. C. p. 35). (p. 919)
É importante salientar que é o primeiro momento (o da restrição do uso teórico da
razão ao mundo dos fenômenos) que conduz e exige o segundo momento (o
mundo inteligível). Tanto a doutrina da natureza quanto a doutrina da moralidade
mantém, assim, o seu devido lugar. Esta delimitação é possível porque a "crítica"
nos "instruiu sobre a nossa inevitável ignorância acerca das coisas em si mesmas
e limitou a meros fenômenos tudo o que podemos conhecer teoricamente" (C. R.
Pura, p. 17). Os princípios da razão prática (as leis objetivas-práticas), que
dizem o
que deve ser e não o que é, não são objetos de conhecimento, porque não se originam
da experiência, mas são pensáveis, isto é, determináveis aprioristicamente,
dada a capacidade não só intuitiva da razão, mas também discursiva. Assim, a lei
moral, como veremos, vem a ser uma espécie de elo de ligação entre o "númeno"
(o "eu penso"), atemporal e supra-sensível, e os fenômenos de atuação prática,
que são temporais e sensíveis (cf. Caffarena, 1988, p. 180). A lei moral deve ter
efeitos sensíveis sobre o mundo fenomênico, embora não possa partir deste como
seu fundamento. (p. 919)
A insistência de Kant vai no
sentido de mostrar que todas as tentativas de fazer especulações no campo
suprasensível são ilegítimas enquanto antes não se submeter a razão ao crivo da
crítica;
isto é, enquanto não se indicar os limites do conhecimento no mundo sensível, ou
ainda, enquanto não se fizer um "exame prévio da capacidade ou incapacidade da
razão" (C. R. Pura, p. 25). (p. 920)
Estas indicações mostram que os princípios da ética kantiana, especificamente o
imperativo categórico e suas diferentes formulações, são resultado de um
processo de avaliação da razão humana e de suas capacidades e não produto de
um ponto de partida meramente arbitrário e dogmático.
Fazer uma crítica da razão pura teórica, isto é, uma crítica transcendental,
significa estabelecer as condições de possibilidade do conhecimento, portanto, as
condições de possibilidade da ciência, condições estas dadas pelo sujeito (razão
pura) e não pelo objeto. Este não pode dar o a priori. Fazer uma crítica da razão
prática significa mostrar que uma razão pura pode ser prática, isto é, que ela
pode,
por si mesma e independente de um conteúdo empírico, portanto a priori, determinar
a vontade dos sujeitos agentes. É a mesma razão pura com dupla função ou
duplo uso: uma teórica e outra prática. É a aplicação que as diferencia. Uma prévia
teoria do conhecimento, ao mostrar os limites da razão pura teórica, dá acesso
à razão pura prática. A segunda deve ser precedida pela primeira. Ambas são
razão pura. Em conjunto formam a filosofia transcendental. Há uma unidade entre
razão pura teórica e razão pura prática no que se refere ao caráter a priori de
seus
princípios. Estes são sempre independentes da experiência. O que as distingue é
sua diferente aplicação (cf. tb. Caffarena, 1988, p. 177). (p. 620)