100%(3)100% acharam este documento útil (3 votos) 232 visualizações15 páginasNordeste Encantado - o Culto Á Encantaria Na Jurema PDF
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Nordeste encantado:
© culto 4 encantaria na Jurema
ANDRE LUIS NASCIMENTO DE SOUZA*
LOURIVAL ANDRADE JUNIOR™
Com a chegada dos negros ao nosso pafs, o Brasil tornou-se uma referencia
fe também um grande celeiro da cultura negra no mundo, As mais diferentes
manifestagdes religiosas podem ser encontradas em todas as regides do pais, como por
exemplo, 0 culto aos Orixas da cultura Ioruba, 0s Voduns do povo Eué-Fom e também
05 Inquices dos Banto, estes tiltimos com menos forga, pois os Inquices so divindades
essencialmente ligadas a sua terra de origem n§o havendo entidades que as
representasse em terras Tupiniquins. Contudo, antes da presenga negra, os nossos indios
4 cultuavam seus deuses e ancestrais, mantinham seus rituais que em parte foram
preservados, mas que com o passar do tempo mesclou-se com as outras matrizes
religiosas que passaram a integrar © cenério cultural brasileiro. Alguns socidlogos ¢
antropélogos como Pierre Verger preferem o termo sincretismo para denominar esse
entremeado cultural, e mais especificamente, para designar a comparagdo dos Orixés
iorubanos aos santos do catolicismo popular (VERGER, 1984). Utilizaremos ao longo
deste trabalho 0 conceito de hibridagio sugerido pelo cientista social Néstor Garcia
Canclini, definido por ele como: “processos socioculturais nos quais estruturas ou
priticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas
extruturas, objetos © priticas.” (CANCLINI, 2001: 19). Hibridismo €, portanto,
conceito mais apropriado para definirmos © que aconteceu com as religides de matriz
afro-luso-indigena no Brasil.
Essa hibridagdo étnico-religiosa contou com diferentes fatores que se
entrelacaram resultando na diversidade religiosa que temos em nosso pais. Podemos
citar, por exemplo, os movimentos migrat6rios que acabaram aproximando as matrizes
~ UFRN/CERES- Graduando
* UPRN/CERES- Doutor e orientador3
culturais, contribuindo também para 0 proceso de expansiio desses cultos. O
Candomblé, comumente praticado na Bahia chegaria ao Sul, Sudeste ¢ no Norte do2
Brasil no final do XVII, inicio do XVIII, a Umbanda passou a ser conhecida no
Nordeste por volta de 1960, Essas “ondas” migratérias foram fundamentais para que
estas crengas se reelaborassem, readaptassem ¢ ganhassem novos significados, como
explicam Maria do Carmo Brandio e Luis Felipe Rios:
Ainda nessa perspectiva, juntaram-se na constituicao desta Jorma de
religiosidade popular outros elementos de origem europeia, como a magia e
0 culo aos santos do catolicismo popular. Da mairiz africana, incorporou 0
sacrificio de animais (..) além das divindades do pantedo ioruba. As
‘constantes ondas migratorias entre o interior € 0 litoral devem ter
ingluenciado nestes intercimbios de elementos simbélicos no culto. E com
essa configuragdo, se espalham em algumas capitals nordestinas (..)
(BRANDAO ¢ RIOS, 2004: 161)
Africanos de diferentes etnias vieram para o Brasil, destes, destacamos os
Haucds, Angola, Congo, Benguelas ¢ principalmente os Torubas, cultura predominante
na regio Subsaariana, conhecida também por Africa Atlantica, territério que
corresponde a atual Nigéria, Estima-se que cerca de noventa por cento da cultura afro
existente no Brasil seja de origem iorubana, uma das permanéncias mais notiveis é sem
duivida 0 culto aos Orixés, divindades associadas aos elementos da natureza, ¢ que em
seu contexto mitico-histérico, tornaram-se, ancestrais divinizados, passando a habitar
um mundo superior conhecido entre os Torubas como Orun ¢ manifestando-se durante
transes rituais para “ser novamente @ personagem com suas qualidades ¢ defeitos, seus
_gostos, sua tendéncia, seu carater agradavel ou agressivo”. (VERGER, 1984: 10).
© culto aos Orixés se popularizou e se expandiu para outras regides do
Brasil onde ocorreram algumas mudangas. Durante essas reelaboragdes, em alguns
lugares do Nordeste, a Umbanda e 0 Candomblé mantiveram contato com um culto
tradicionalmente praticado pelas populagdes indigenas, © Catimbé-Jurema aparece em
documentos escritos por viajantes © missiondrios europeus que visitaram a regido por
volta do século XVI, um desses foi o missionério calvinista Jean de Léry que esteve no
Brasil por volta de 1557, ele relata um ritual onde os maracas ou chocalhos, elementos
utilizados até hoje nas sessBes do Catimbé, sfio reverenciados como deuses:
Admitem certs falsos profetas chamados de caratbas que andam de aldeia
em aldeia como tiradores de ladainhas ¢ fazem crer nao somente que se
‘comunicam com os espiritos ¢ assim thes dao forga a quem thes apraz (..) 083
caraibas vido de aldeia em aldeia e enfeitam seus maracds com as mais
bonitas penas: em seguida, ordenam que thes sejam dados comida e bebida,
cesses embusteiros fazem crer aos pobres idiotas dos selvagens que essas
cespécies de cabacas assim consagradas realmente comem e bebem a noite ¢
como os habitantes acreditam nisso, ndo deixam de por farinha, carne e
‘peixe ao lado dos maracdis e nao esquecem o cauim (LERY, 1980: 210)
que Léry descreveu foi provavelmente um ritual do Catimb6-Jurema, pois,
identificamos no relato simbolos caracteristicos do culto como, por exemplo, a ingestio
da bebida feita com as cascas e a raiz da jurema (Mimosa hostilis), érvore considerada
sagrada por algumas tribos indigenas que ocuparam o Nordeste. A Jurema esti presente
em boa parte do cendrio religioso no Nordeste, a principio se tratava de um culto
baseado apenas na louvacio aos Mestres catimbozeiros, habitantes espirituais das
Cidades sagradas do Reino do Juremal. O pesquisador Sandro Guimaraes de Salles
definiu o Catimbé-Jurema como:
Um complexo semidtico, fundamentado no culto aos mesires, caboclos ¢ reis,
‘uja origem encontva-se nos povos indigenas nordestinas. AS imagens ¢ 08
simbolos presentes nesse complexo remetem a um lugar sagrado, descrito
pelos juremeiros como ‘um reino encantado’, os ‘encantos' ou as ‘cidades da
Jurema’. A planta de cujas rates ou’ cascas se produz a bebida
tradicionalmente consumida durante as sessdes, conhecida com jurema é 0
simbolo maior do culto. E ela a ‘cidade’ do mestre, sua ‘ciéncia’,
simbolisando ao mesmo tempo morte ¢ renascimento (SALES, 2010: 17-18
Jéo escritor e pesquisador Mario de Andrade, em um trabalho realizado por
volta de 1980, tomou contato com Catimbé, sendo um dos primeiros autores a
destacar a organizacao do universo juremeiro em “Reinos Encantados”. Em sua
pesquisa, observou a existéncia de onze “reinos”, as “Cidades Sagradas” que sio:
“Vajued, Cidade do Sol, Florestas Virgens, Fundo do Mar, Juremal, Vento, Rio Verde,
Cova de Salomio, Ondina, Urubé, Cidade Santa” (ANDRADE, 1983, p. 75). Existem
intimeras Cidades, ou Cigncias, impossiveis de se catalogar, neste sentido, podemos
aafirmar que existem também incontaveis Mestres espirituais habitando estas Cidades
provenicntes das mais diferentes origens, o que pluraliza ainda mais a atuagio destas
centidades.
E dificil precisar 0 momento exato do contato entre a Jurema ¢ as religides
de matriz africana, cntretanto, acredita-se que tenha sido por volta do século XVIII4
quando o Candomblé j4 era praticado em outras regides do interior do Nordeste, ainda
que sob forte e violenta perseguicdo.
No entanto, a adogio da Jurema por parte do
Candomblé foi mfnima, pelo menos num primeiro momento. No inicio do século XX
surge a Umbanda, religidio constitufda pelas matrizes africana, indigena, catélica
popular e kardecista, oficializada por Zélio Fernandino de Morais no Rio de Janeiro por
volta de 1908. A Umbanda chegaria ao Nordeste na década de 1960 juntamente com
uma onda de industrializagio e migragdo advinda do Sul e Sudeste. E provavelmente
neste momento que 0 Catimbé estabelece contato com a Umbanda, passando a adotar
alguns aspectos da doutrina. Estruturou-se de modo distinto daquela observada no Rio
de Janeiro, por exemplo.
A hibridagao entre 0 Catimb6 e os cultos afro-brasileiros se deu aos poucos,
mas de maneira contundente. Hoje notamos uma relagio indissocidvel entre elas, em
algumas regides do Nordeste, as préticas da Jurema coexistem harmoniosamente no
mesmo espaco onde se cultua a Umbanda. A este processo, alguns estudiosos chamaram
de “umbandizagio da Jurema”, todavia, nao podemos afirmar que o fato tenha
acontecido nesta ordem. O mais provdvel é que ambas tenham adotado caracteristicas a
fim de se expandirem € se afirmarem frente a nova conjectura que se formava, O
Catimb6, parece ter visto na Umbanda uma oportunidade de se legitimar como religitio,
tendo em vista que esta, j4 se encontrava representada institucionalmente. A criagdo da
Federagio Espirita Umbandista-FEU em 1939, proporcionou legalidade a religiio que
ainda era muito recente. Com o tempo, essas federagdes ramificaram-se em sedes
regionais, pasando a reconhecer as demais religiées ¢ religiosidades de caréter
meditinico. A Umbanda, por sua vez, parece nfo ter relutado em aceitar as
transformagdes trazidas pela Jurema, pois a flexibilidade c dinamismo presentes desde
suas origens faz parte de sua estrutura, além do mais, essa hibridagdo colaborou para a
cexpansio do culto umbandista para o interior do Nordeste.5
Na tentativa de compreender como se deu essa relagio, © projeto de
pesquisa Saravé-Axé | se propos a realizar estudos sobre as religides e religiosidade
meditinicas na regio do Serid6, focando a matriz afro-luso-indfgena. Realizando um
trabalho histérico-antropolégico, mantemos contato in locum com os terreiros e com os
seus praticantes, e depois de algumas anilises ¢ discussdes, chegamos a uma conclusio
prévia sobre o que temos visto: o Seridé possui terreiros e centros espiritas de Umbanda
Candomblé, em sua maioria, fundamentados no culto aos Mestres da Jurema. A
atuagaio do Catimb6 nao € coadjuvante nestes rituais, ndo ¢€ uma doutrina complementar,
mas representa uma parte importante e indispensdvel para a concretizagio das sessdes.
Luiz Assungdo discorre sobre a hibridagao que ocorreu entre as matrizes religiosas, ele
explica que:
Nos dias de hoje 0 culto da jurema esta presente tanto no litoral como no
interior nordestino. (..) No decorrer do tempo ocorreram alteragbes na
‘constituicao desse culto, advindas de diversas influéncias do universo afro-
brasileiro. Sao essas influéncias que vao dar forma it jurema praticada
‘atualmente no contexto dos terreiros de urabanda. E, portanto, a mistura de
‘elementos oriundos do candomblé, do espivtismo kardecista, do catolicismo
popular ¢ principalmente, da umbanda, que ao serem reelaborados, dao
frigem a um processo de criagao de uma nova prtica da jurema, onde os
elementos religiosos de outros cultos coexistem de forma dindmica,
reformulando o espaco religioso tradicional, assimilando-o e transformando-
‘en uma nova pratica (ASSUNCAO, 2004: 182)
© que © professor Luiz Assungdo chamou de. “reformulagao” ©
“wansformagio” de um culto € justamente 0 proceso pelo qual algumas religies
meditinicas do Nordeste passaram resultando em nomenclaturas distintas, mas. que
preservaram essencialmente suas marcas identitirias que as distingue das outras
ccrengas, como nos explica Alceu Maynard Arati
Quando afirmamos que toré € 0 mesmo que catimbs, pajelanea, fazemos
porque, neste vasto Brasil, as denominagdes de uma danca, de uma
‘ceriménia variam de regido para regido. Em Alagoas (.) toré € 0 mesmo, 0
‘mesmissimo catimbo, onde além das fungies medicinais fitoterapéuticas sao
encontrados os elementos fundamentais deste, herdado do indio: a jurema e
«@ defumacao curativa (ARAUJO, 1979: 61)
* Projeto de pesquisa desenvolvido na Universidade Federal do Rio Grande do Norte-UFRN — Campus
Caic6, pelo Prof. Dr. Lourival Andrade Jtinior ¢ pelo bolsista de iniciagio ciet
Nascimento de Souza,6
Luiz, Assungdo afirma que as “alteragdes” ocorridas no culto juremeiro S20
provenientes “das diversas influéneias do universo afro-brasileiro.” (ASSUNCAO,
2004: 182). Logo Umbanda seridoense assumiu algumas priticas do Catimbé, e este,
tomou determinadas concepgdes umbandistas, como a nogiio de Direita e Esquerda, ea
louvacdo aos Orixds, por exemplo. Outra consequéncia foi © aumento significative de
entidades que passaram a se manifestar nos terreiros, os Caboclos, Mestres © Reis da
Jurema coexistem nos terreiros com Pretos-Velho, Exus e Pombagiras, entidades
originalmente cultuadas na Umbanda, mas que logo foram adicionadas a0 Catimbé.
Suely Pereira Costa, Mie-pequena da Tenda Espirita Oxald Ololufam-
Reino de Oxum, nos explica que a relagio da Jurema com a matriz. africana pode ser
compreendida a partir da figura dos Pretos-Velho, ela diz:
sse Preto-Velho que hoje vem na Jurema, é 0 mesmo Preto que trouxe as
religides de matric africana, inclusive aquelas nagdes que eu te falei, a Nagd,
Ketu, Jeje ¢ Angola, Hoje eles sdo cultuados e trace toda uma ciéncia de
tudo que cles praticavam, (ciéncia) de cura, eles benciam (..). O Preto raz
essa ciéneia ¢ vem se juntar d Jurema, se junta uo cangago, ao Mestre, ao
Boiadeire, ao Cigano, as Pombagiras e aos Exus, ao Caboclo,e formar isso
(que 0 Nordeste chama de Jurema sagrada (...)"
Além dos Pretos-Velho e demais entidades supracitadas, outras vertentes se
juntaram ao Catimbé aumentando notadamente scu pantedo. A. “Encantaria” esté
presente em significativa parte dos cultos afro-luso-indigenas no Nordeste, os
Encantados so entidades que segundo a tradigao, nfo moreram, mas antes, se
uansformaram noutra forma de vida, material ou espiritual. Comum no Maranhio a
Encantaria esté repleta de personagens das mais diferentes regides, so brasileiros,
turcos e outras nacionalidades. Experiéncias de “encantamento” s
na Jurema, muitos Mestres niio experimentaram a morte, pois ainda em vida
“encantaram-se na flor da jurema”, Para entendermos 0 processo de encantamento,
recorremos a Francelino de Shapanan, fundador da Casa das Minas de Téia Jarina em
como evoluidas,
Direita: Faixa energético-vibratGria na qual se manifestam entidades espirituais ti:
Protos-Velho e Caboclos, por exemplo,
Exquerda: Paixa energético-vibratoria na qual se manifestam entidades espirituais tidas como menos
evoluidas, Exus e Pombagiras, por exemplo.
* Suoly Pereira Costa em entrevista concedida a0 projeto de pesquisa Sarav’-Axé no dia 16 de margo de
2013 na Tenda Espirita Oxali Ololufam- Reino de Oxum no municipio de Extremoz-RN7
Diadema, Sto Paulo ¢ Secretério-Geral da Federagaio de Umbanda © Cultos Afro-
brasileiros, um dos pioneiros a introduzir 0 culto aos Encantados na regio Sudeste.
Segundo Francelino, os Encantados podem ser definidos como:
Divindades que descem ao mundo dos vivos com o mesmo prestigio que 0s
deuses africanos (..). Para 0 povo do Tambor-de-Mina, 0 Encantado ndo é
tun humane que morrew, que perdeu 0 corpo fisice, nao sendo, por
‘conseguinte um Egum. Ele se ransformou, tomou outra feigdo, nova maneira
de ser. Encantou-se, tomou nova forma de vida, numa planta, num acidente
Jfisico-geogréfico, num pelxe, num animal, virou vento, famaca. Esto
‘presentes entre nds, mas ndo o vemos. Encantou-se permaneceu com a
‘mesma idade cronologica que tinha quando esse fato se deu (SHAPANAN,
2004: 318)
Diante do process de hibridagdo religiosa ocorrida entre as diferentes
matrizes culturais, alguns Encantados passaram a “baixar” nos terreiros € casas
cspiritas, como o Rei Salomao, De acordo com o imaginério, “o encantado habita em
varias praias de ilhas existentes ao longo do litoral entre Belém e Sao Luis, € a entidade
‘comum aos cultos da Pajelanca e de origem africana tanto no Par como no Maranhiio”.
(MAUES e VILLACORTA, 2004: 17). Salomio é também cultuado na Jurema como
Mestre catimbozeiro, manifestando-se como Rei. Essa “categoria” de entidades ja havia
sido observada por pesquisadores como Reginaldo Prandi, Sérgio e Mundicarmo
Ferretti além de outros estudiosos que mencionaram a Encantaria presente também na
Pajelanga, no Candomblé de Caboclo, Omolocé e noutras denominacdes.
A familia de Légua Boji Bud na Jurema sagrada
No Tambor de Mina, “manifestagao religiosa predominante em Sao Luis”
(FERRETTI, 200
em boa parte do Maranhio, essa vertente religiosa segue a tradigao de origem Fom
9) o trabalho com a Encantaria é ainda mais recorrente. Praticado
cultuando os Voduns, entretanto, assim como as diferentes matrizes africanas, a0
estabelecer-se no Brasil, gradativamente alguns terreiros adotaram elementos advindos
de outras tradigdes, 0 culto aos Encantados adentrou os terreiros onde antes havia
apenas a celebracio aos Voduns. Mundicarmo Ferretti destaca em seu trabalho de
pesquisa a organizaciio da Mata de Cod6, uma variagio do Tambor de Mina, Reginald8
Prandi ressaltou o cardter hibrido desta religio dizendo que “o tambor de mina, religido
alro-brasileira que se formou no Maranhiio no século passado (no XX), € uma religizio
de voduns, orixas ¢ encantados” (PRANDI ¢ SOUZA, 2004: 216). La, os Encantados se
dispdem fuilias *, so inémeras, entretanto, é a familia encantada de Légua Boji Bud a
mais conhecida entre os mineiros *. Este Encantado chamado também de “José Légua
Boji Bud da Trindade, é o pai e rei da familia de Cod6.” (PRANDI e SOUZA, 2004:
257). Assim como as demais entidades espirituais das religides afro-luso-indigena,
(Mestres, Caboclos, Orixés ¢ Voduns) a familia Bud também possui uma origem mitica
© hist6rica que se confunde em determinados momentos. Ainda de acordo com Prandi:
Possivelmemte esses encantados vieram para Sao Luise foram agrupados em
Codd, ndo sendo origindrias de la (..), dizem ter vindo “beirando 0 mar’,
talvec esta seja uma referéncia a sua chegada ao Brasil, endo a Codé,
cidade que nao & banhada pelo mar. Acredita-se que sejam de origem
Cambinda, mas aié mesmo a origem Cambinda € passivel de ser
‘guestionada, pois em nenhum momento, mem nos nomes, nem em suas
‘cantigas, fazem referéncia a alguma lingua Banto (PRANDI ¢ SOUZA 2004:
256)
Nao se sabe ao certo quando encantamento desta familia ocorreu, e nem se
este episodio aconteceu em Cod6, Mundicarmo Ferretti tem dedicado seus estudos em
compreender os Encantados da Mina maranhense, suas pesquisas sio de fundamental
importancia para o conhecimento dessa manifestagdo religiosa. De acordo com Ferretti,
Seu Légua comanda as entidades da Mata:
No Terecd, como no Tambor-de-Mina, as entidades espiviuais sto
forganicadas em familias, sendo a maior e mais importante a da
controvertida entidade espiritual Légua Boji Bud da Trindade, apresentado
‘em Codé como principe guerreiro, fitho de Dom Pedro Angasso (...) Embora
no Terecd sejam cultuados Voduns africanos jeje-nagd |...) 08 transes
ocorrem principalmente como Voduns da Mata ¢ com Caboclos comandados
pela entidade Légua Boji Bui da Trindade (FERRETTI, 2004: 64)
Na Jurema, encontramos transes meditinicos de pessoas que “recebem”
entidades que dizem vir do Cod6 e que sio da familia Bud. No Catimbé, Codé
transformou-se em cidade espiritual como nos explica Suely:
¢ Familia: Organizacdo das entidades da Mata de Cod6,
* Nome dado ao praticante do Tambor de Mina9
Existem cidades da Jurema, ¢ 0 Codé é uma cidade espiviual. 0 Cods € a
cidade do Mestre Luis, por exemplo, que é um mestre no Codé, ¢ de outros
mestres que vem dessa cidade, que vem dessa parte do Nordeste, assim como
«a Jurema do Acaio (Acais) vem da Paraiba (...)°
Em alguns terreiros de Catimbé os Encantados “baixam” como Mestres,
mas nao perdem o ‘status’ de encantados. Na Tenda Espirita Oxald Ololufam- Reino de
‘Oxum, conhecemos Francisco Neto, Pai-pequeno da casa ¢ médium que “recebe” a
cntidade codocnse Mestre Luis, embora nio seja um Eneantado, Mestre Lufs nos indica
«a presenga da Cidade espiritual do Cod6 na Jurema norte-rio-grandense. Os Encantados
‘comportam-se de mancira semelhante aos Mestres (as) juremeiros, realizando trabalhos
migico/curativo. Sao alegres, gostam de beber e falar palavrdes. Légua Boji é descrito
por Prandi como um espirito “muito alegre brincalhio e apreciador de bebida (...), mas
no Para, sempre se apresentou como um homem sério, tradicional e ranzinza” (PRANDI
e SOUZA, 2004: 257). “Baixam” para atender os consulentes, receitando banhos &
garrafadas caracterfsticos de uma medicina antiga. Mas vém também matar as saudades
do povo que continua por aqui, uma vez que muitos destes personagens sio, ou foram,
figuras conhecidas na regido onde hoje atuam. Prandi reforca:
Vem a terra, descem na gama (terrero), para dancar ¢ consiver com os
‘mortais, estabelecendo com todos 08 que comparecem aos terreiros uma
relagao de afeto e clienrela. Dancam, canta, bebem, conversam. Contam
suas historias, fazem amigos e protegidos, dirigem cerimanias rituals, fazem
‘cura, resolvem problemas de toda sorte (PRANDI e SOUZA, 2004: 218)
Depois de presenciar a um ritual de Jurema, recolhemos alguns relatos que
esto presentes neste trabalho. L4, encontramos Jedeilson Gomes, Baba-Jibona da
Tenda Espirita Oxald Ololufam- Reino de Oxum, que em entrevista nos falou do seu
Mestre Sete Légua, Encantado membro da familia Boji Bud, em depoimento nos disse
como havia sido a primeira vez que atuou ? com sua entidade:
E wm Mestre bom, toda vida que ew peco as coisas, ndo me fala, Me ensinow
muitas coisas, aprendi com ele muitas coisas, ele veio dizendo as coisas,
dando o recado dele e eu aprendendo. Melhorow bastante minha vida,
porque eu vivia num mundo ‘meio perdido’, ¢ gracas a ele (..) foi minka
© Suely Pereira Costa em entrevista concedida a0 projeto de pesquisa Saravs-Axé no dia 16 de marco de
2013 na Tenda Espirita Oxaki Ololufam- Reino de Oxum no municipio de Extremoz-RN
7 Atwar: estar incorporado10
sahucdo. (Certa vez) tinka ido alugar uns dvd’s (e escutei algo parecido)
‘com um toque de capoeira, ‘entrei cego’. Sé dei por visto que tava 1é dentro
quando ‘tornei” e vi Mae Id abragada comigo. Nao sei como entrei la, quem
‘me disse isso foi meu sobrinko que tava comigo do meu lado”
Mundicarmo Ferretti se refere a Légua Boji como a “entidade espiritual
mais controvertida”, (FERRETTI, 2001: 159). Acredita-se que ele possa se manifestar
como bem quiser, “ouvimos falar dele como 0 encantado mais velho do mundo, como
filho desobediente © como um Preto-Velho angolano (..) € visto pelos médiuns (que
tem vidéncia) como um Preto-Velho que usa chapéu, parecido com o falecido artista
nordestino Luiz Gonzaga” (FERRETTI, 2001: 160). Na Tenda Espirita Oxalé
Ololufam- Reino de Oxum, tivemos a oportunidade de presenciar uma répida
incorporagio de Seu Sete Légua, Jedeilson depois de “receber” seu Mestre, aparentava
estar ébrio, cambaleava, mas mantinha-se de pé. Na Jurema os Mestres (as) sto
descritos como entidades que tanto podem fazer o bem ¢ © mal, segundo uma légica
maniqueista. Luis Assung%o faz referencia a dubiedade dos Mestres juremeiros © diz
que, “a entidade mestre possui um cariter de espirito intermedidrio, podendo encontrar-
se tanto na dircita como na esquerda.” (ASSUNCAO, 2006: 245). Encontramos em
Lisias Negrdio uma referéncia sobre o que seria um “espirito intermedidrio”, segundo
ele:
Muitos os consideram de direita, mas suas earacteristicas poueo moralizadas
‘mpendem-nos de uma convivéncia mais estreita com os santos e orixds. Nao
se duvida que pratiquem o bem, mas também tém que ser doutrinados,
‘controlados pelos pais-de-santo, evitando que bebam, falem palavrbes ete.
‘pelo menos em excesso (NEGRAO, 1996, 339)
Percebemos entio, caracteristicas semelhantes no comportamento dos
Mestres e dos Encantados da familia de Légua Boji. Mais uma vez, as pesquisas de
Mundicarmo Ferretti se fazem imprescindiveis para corroborar com nossas
ponderacdes. Segundo Ferretti, o Encantado Lauro Boji Bud, irmao de Légua Boji,
“costumava dizer no saldo: Eu sou Lauro Boji Bud, uma banda branca ¢ outra preta,
metade de Deus e metade do diabo”. (FERRETTI, 2001: 161). Noutro encontro, ela cita
‘© contato com Coli Maneiro, de acordo com a tradigio, este seria 0 irmio mais novo de
5 Jedeilson Gomes, entrevista a0 Sarav’-Axé em 16 de margo de 2013 na Tenda Espirita Oxald Ololufam-
Reino de Oxum, Extremoz-RNat
Seu Légua Boji, incorporado em seu cavalo ° se apresentou dizendo “eu sou Coli
Maneiro de Amacedi, irmio de Légua Boji, u
(FERRETTI, 2001: 136).
i banda branca e outra preta
Podemos coneluir, portanto, que as semelhancas entre os cultos da Jurema ¢
do Tambor de Mina, destacando principalmente a Encantaria, tm a ver com a
caracteristica cm comum que une estes cultos, a flexibilidade, o dinamismo que fazem
destas religiGes particulares do Nordeste brasileiro. Os Encantados e os Mestres
representam muito mais que entidades espirituais dispostas a trabalharem (a favor ou
contra) os encarnados, eles simbolizam e contribuem também para a legitimagio de uma
identidade, tendo em vista que boa parte dessa Encantaria esta intimamente ligada com
‘© ambiente no qual se manifesta, Percebemos isto na propria constituigdo do Catimbé
enquanto religido. Alhandra, na Parafba abriga as primeiras Cidades. espirituais
plantadas por mestres catimbozeiros, ld estio as Ciéncias da Mestra Maria do Acai
Mestre Flésculo, Inécio Goncalves de Barros ¢ tantos outros juremeiros remanescentes
do Acais que passaram a fazer parte da mestria espiritual que c
mpOe a Jurema, ©
mantendo uma relagtio de proximidade (mesmo que indiretamente) com seus clientes ¢
consulentes. So entidades que representam o Nordeste, entendem a labuta do
nordestino que insiste em cultivar no solo seco ¢ infértil, sabem da dificuldade para
manter Viva a sua criagdo em meio © sol forte ¢ impiedoso de um Sertdo quase sem
chuva, pois muitos (as) Mestres (as) um dia viveram em circunstancias € ambientes
semelhantes.
Na Jurema, os Eneantados ganharam nova roupagem, Muitos rituais foram
reelaborados e a partir das adaptagdes feitas por seus diseipulos, 0 Catimbé ganhou
novos protagonistas, novo significado, H4, portanto, uma ressignificagdo no cendrio
religioso, tendo cm vista que © contexto moderno permite essas “bricolagens”
religiosas. E mesmo que se preserve ou tente se manter a fidelidade a sua estrutura
priméria, no podemos esquecer de que estamos diante de cultos extremamente
° Cavalo: termo usado para designar o médium. A palavra seria uma tradugiio aproximada do vocdbulo
iorubano elégin, que significa: aquele que tem o privilégio de ser montado.12
hibridos, dinamicos, ¢ a qualquer momento podem incorporar um novo elemento em
sua composicgdo para atender a demanda cada vez maior de pessoas que buscam nas
religides meditinicas uma solucdo prética para resolverem seus problemas. Essas
aproximagées, ou “filtragens” (REGINALDO, 2011: 39) de uma religiZio para com a
outra nado devem ser entendidas como atos desinteressados, ha claramente um intuito de
fortalecer e reafirmar a eficdcia de um culto aumentando sua capacidade religiosa. Essa
l6gica torna-se ainda mais visivel se atentarmos para 0 fato de que estamos falando de
religides ¢ religiosidades que se portam diante do cenério religioso, composto por
neopentecostais, catélicos carismaticos e afro-brasileiros que em determinados
momentos se portam como verdadeiras agéncias capazes de resolver problemas do
cotidianos através das solugées mégicas e onde a concorréncia para atrair mais
seguidores é constante.
A Encantaria presente na Jurema e na Umbanda nordestina pode ser
compreendida como o agente dinamizador que néio permite finalizagdes e que continua
«ase ampliar através de um processo integralizador que parece estar proporcionado mais
beneficios que prejuizos, ao expandir seu repertério de entidades espirituais, essa
religido ganha ainda mais notoriedade frente ao to mencionado, mereado religioso.
Vislumbramos na temtica afro-luso-indfgena uma oportunidade de dar continuidade a
esses estudos, sobretudo, destacando a regido Nordeste, © que propomos neste trabalho
foi, na verdade, somar nossas anilises a outras produgdes, contribuindo para que a
discussdo sobre as priticas culturais populares, prineipalmente as mais marginalizadas e
subalternas sejam aos poucos desmistificadas.3
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