Franz Rosenzweig
e o Pensamento Dialógico
Mendo Castro Henriques
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Índice
Introdução7
Capítulo 1 – O jovem Franz Rosenzweig12
A formação cultural 12
O estudioso de filosofia e da história 15
O mais antigo programa de sistema do idealismo alemão 16
Capítulo 2 – Entre a terra e o céu18
Conversão e revelação 18
O embrião do pensamento dialógico 21
A relevância do segundo Schelling 25
O trauma da Grande Guerra 29
Pensamento Doente, Pensamento Saudável 30
Capítulo 3 – A Estrela da Redenção e a criação de sentido33
Sistema e singularidade 33
A introdução à Estrela35
Os primeiros passos: A Criação 40
O dialético e o dialógico 41
Capítulo 4 – Revelação e Amor43
Questões de método 43
Afirmar a vida e não o sistema 46
Reversões e factualidade: o significado existencial 48
Pensamento narrativo 51
Capítulo 5 – A promessa da redenção56
Amor e Anseio 56
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Promessa e Cumprimento 61
A forma da Estrela 63
Rituais da vida judaica 64
Rituais da via cristã 66
A Visão, a Vida e a Via 68
Capítulo 6 – O legado dialógico73
Novo e Velho Pensamento 73
O senso comum e a filosofia da educação 74
A teoria da tradução 77
Considerações biográficas 79
Filosofia e política 79
Capítulo 7 – Quantas formas tem uma estrela?86
O diálogo entre judaísmo e cristianismo 86
O judaísmo 89
Sobre o cristianismo 91
O regresso contemporâneo do paganismo 94
As Religiões Orientais 95
Reflexões sobre o Islão 96
Questões pós-rosenzweigianas: do holocausto ao fundamentalismo 98
Novo Pensamento e Trindade 101
Capítulo 8 – O pensador da pós-modernidade104
Rosenzweig e os filósofos 104
Categorias do pensamento dialógico 109
Chegou o tempo de Franz Rosenzweig? 115
Bibliografia116
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Introdução
Franz Rosenzweig é um autor quase desconhecido, escreveu Stéphane Mosès,
na abertura da sua monografia (1982, p. 17). Apesar dos estudos de Karl
Löwith (1942 e 1958), Jürgen Habermas (1971) e, especialmente, E. Lévinas
(1959, 1965); apesar de dois congressos internacionais dedicadas ao pensa-
mento de Rosenzweig – em 1979 em Jerusalém e em 1986 em Kassel – co-
memorando, respetivamente, o meio século da sua morte e um século do
nascimento; e de múltiplas teses sobre o seu pensamento, a situação é ainda
esta em Portugal, onde uma monografia como a presente corresponde a
uma receção tardia, mas merecida, de quem ocupa um lugar cimeiro entre
os filósofos; o conhecimento, profundidade, originalidade e compaixão da
sua visão marcaram decisivamente autores como Emmanuel Lévinas, Mar-
tin Buber, Eric Fromm, Leo Strauss, Walter Benjamin e Gersom Scholem,
entre outros.
A sua obra fundamental publicada em 1921 – A Estrela da Redenção – foi
reeditada em várias ocasiões (1930, 1954, 1974) e com uma grande tiragem
na Suhrkamp Verlag (1988). Começou a ser traduzida em várias línguas
– inglês em 1970, hebraico em 1972, francês em 1982, italiano em 1985 –
mas continua quase ignorada em Portugal. No entanto, é um dos livros
mais importantes do século xx, em tudo comparável ao Ser e Tempo de Hei-
degger ou ao Tratado de Wittgenstein. Além de antecipar a problemática
da filosofia existencial, está na génese do que chamamos o “pensamento
dialógico”, mais conhecido através de Buber e Lévinas.
Nele propôs um novo pensamento que podemos sintetizar em cinco
princípios, em confronto com o velho pensamento. O ser humano nasce
para a sua própria existência pela descoberta da alteridade absoluta; não é o
absoluto que move o mundo. A revelação é o apelo de outrem para a inclu-
são, seja esse outro tão pobre de ser quanto um migrante ou tão rico de ser
como Deus; não é uma mera outorga de tábuas da lei. A finitude define a
experiência da humanidade; esta não é absorvida nem pelo mundano nem
pelo divino. O diálogo é a relação com um tu em que o eu se descobre; não
existe um cogito avassalador. As vozes da narrativa são a forma de descrever
a realidade e não o discurso monológico.
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Deveria ter iniciado esta constatação quando, em 1983-1984, estudei
uma descoberta académica de Franz Rosenzweig, intitulada O mais antigo
programa de sistema do idealismo alemão, um manuscrito de Hegel redigido em
Estugarda em 1796 1. Ainda assim, e apesar de conhecer Rosenzweig como
autor do livro Hegel e o estado, e de possuir o meu exemplar de A Estrela da
Redenção desde 2004, passei ao lado da sua mensagem até 2011. Comprova-
damente, filosofar não é construir teorias mas reconstruir a vida. A partir
desse ano, a leitura partilhada do livro Eu e Tu de Martin Buber levou-me
a sondar a fundo o pensamento dialógico de Rosenzweig com resultados
apresentados ao longo do ano de 20162.
A Estrela da Redenção é uma obra difícil, escrita com o propósito decla-
rado de romper com a filosofia da totalidade, mas que, à primeira vista,
nem parece abandonar o jargão hegeliano. Apenas a leitura meditada de
uma prosa genial e altamente idiomática permite descobrir as inovações do
pensamento dialógico, uma poderosa alternativa ao pensamento dialético,
mas que permaneceu reservado a especialistas e discípulos, sem influenciar
suficientemente o curso das ideias no século xx3.
O caso deve ainda ser mais ponderado, pois sendo Franz Rosenzweig
alemão e judeu tinha os ingredientes idiossincráticos para ser globalmente
reconhecido. Mas nem o destino do mundo, nem a pessoa de Rosenzweig,
nem o divino assim quiseram. Primeiramente, as duas guerras mundiais e
o holocausto que se abateu sobre os judeus germânicos fizeram desaparecer
1
No âmbito de um Seminário de Mestrado orientado por M. J. Carmo Ferreira. Cf.
AA.VV. (1984); Bubner, Rüdiger (1973).
2
“Franz Rosenzweig e o Deus Reconhecido”, comunicação in Congresso Filosofia
e Experiência de Deus, UCP, Braga, 2015 (no prelo in RPF); “Franz Rosenzweig e o novo
pensamento dialógico”, comunicação in Congresso Filosofia, Crise e Consciência Social, Lis-
boa, UCP, 29/1/16; “Franz Rosenzweig and the new dialogical thinking”, comunicação in
Congresso Comunicare si Relatii Publice, Romenia, Iasi, 6/3/2016; Lisboa, Romenia; “How
many shapes has a star? Human experience and theological diversity: the contribution of
Franz Rosenzweig”, comunicação in Congresso Inter-religious and Inter-cultural Dialogue
in a Pluralistic World, Ovidius University, Constanza, Romania, 3 de junho de 2016 (no
prelo in Atas do Congresso); “Saudades do futuro e anti-saudosismo; apontamentos sobre
a saudade na Estrela de Franz Rosenzweig”, comunicação in Colóquio Afonso Botelho –
7/6/2016 [publicado in Nova Águia, 18 (2016)]; “Categorias existenciais no pensamento de
Rosenzweig”, Lisboa, comunicação no Seminário CEFI de Filosofia Dialógica, 16 de junho
de 2016; “A utopia na Estrela da Redenção de Franz Rosenzweig”, Comunicação de 14 de
setembro de 2016, Congresso do Espírito Santo, Lisboa.
3
Buber (2001). Sobre pensamento dialógico cf. Casper (1967b) e Bergman (1991).
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da face da terra a maior parte dos herdeiros naturais da obra. Em segun-
do lugar, Rosenzweig preferiu o diálogo com pessoas comuns em vez de
procurar o reconhecimento académico do seu pensamento, e foi vítima de
uma paralisia em 1922, falecendo sete anos depois.
Uma vez criada, a filosofia dialógica foi sedimentada por discípulos –
em 1933, surge a primeira monografia sobre Rosenzweig, escrita por Else
Freund. Nas décadas de 1950 e 1960, Rosenzweig foi central no pensamen-
to teológico judaico. Amigos e admiradores de como Buber e Scholem re-
fugiaram-se em Israel. Durante décadas, o principal recurso para conhecer
globalmente Rosenzweig foi o livro de Nahum Glatzer (1953), Franz Rosen-
zweig; Sua Vida e Pensamento. Esta excelente introdução foi entretanto suple-
mentada por obras de filósofos, teólogos, críticos literários e estudiosos da
cultura, da política e religião.
Nesta monografia surge interligada a obra de Rosenzweig com o seu
desenvolvimento como filósofo, e a sua importância para a cultura. O que
emerge é uma personalidade que enfrentou os desafios da história e cultura
europeias do século xx de um modo lúcido e heroico, mas cujo significado
e propósito ainda está por reconhecer. Cedo desaparecido, a obra de Ro-
senzweig continua a ter um destino ingrato. Será uma vítima da ocultação
da revelação bíblica que René Girard considerou o mecanismo subjacente
da moderna cultura ocidental? Ou, pelo contrário, terá chegado o tempo
de Rosenzweig numa época em que se agudizam as tensões entre religiões?
Rosenzweig desempenhou um papel breve mas notável no renascimento
neo-hegeliano na década de 1910. Nos anos que se seguiram à Primeira
Guerra Mundial, propôs uma síntese de filosofia e teologia, a que chamou
«o novo pensamento». A sua visão da revelação como apelo do outro ajudou
a moldar o curso da filosofia e teologia. As suas reflexões sobre a finitude e
os contornos temporais da experiência humana tiveram um impacto dura-
douro; o diálogo apresenta a relação entre o eu e o tu como constitutiva da
individualidade e com consequências redentoras. Colaborou com Martin
Buber numa tradução alemã das Escrituras e fundou um centro de educa-
ção judaica de adultos em Frankfurt que atraiu os jovens alemães da época.
O interesse por Rosenzweig renovou-se na cultura pós-moderna em to-
das as disciplinas académicas bem como na literatura, na música, no cinema
e em temas de cultura geral. Nestas dimensões, a pós-modernidade cha-
mou a si categorias de alteridade e diferença, narrativa, história e memória,
temporalidade e noção messiânica, todas elas categorias rosenzweigianas.
Por isso, o mesmo movimento que trouxe à ribalta figuras europeias como
Heidegger, Gadamer, Benjamin e Blumenberg, Foucault, Derrida, Ricoeur,
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Lévinas e Agamben e outros, chamou por Rosenzweig a partir dos anos 80.
Apresentava-se como contemporâneo e promotor de um pensamento desa-
fiador da tradição filosófica. Romântico do início do século nuns aspetos,
modernista noutros, apontava ainda para além do modernismo, para algo
novo e desconhecido.
A reputação de Rosenzweig decorre, em grande parte, de uma vida fas-
cinante, com quase-conversão ao cristianismo, um retorno ao judaísmo e a
composição de A Estrela da Redenção, seu opus magnum, redigido em cartões-
-postais enviados da frente de guerra dos Balcãs. Abandonou uma promis-
sora carreira académica, a fim de viver e ensinar na comunidade judaica de
Frankfurt, e fez esforços heroicos para prosseguir o trabalho depois de se ter
manifestado a paralisia que o vitimou. Esta vida, partilhada com um círculo
de amigos íntimos e sua mulher Edith Hahn, bem como a doença prolongada
que o vitimou falam poderosamente das ironias da existência humana.
Qualquer estudo da obra de Rosenzweig deve centrar-se na Estrela, um
livro de filosofia focado nas relações da experiência humana e com impli-
cações éticas, estéticas e metafísicas. É uma abordagem em que a revelação
desempenha um papel vital, e em que o judaísmo e o cristianismo oferecem
vislumbres, cada um com o curso de seu calendário litúrgico, da unidade
redentora da humanidade.
Podemos afirmar que a obra é escrita num idioma já desaparecido, a lin-
guagem do idealismo alemão, transformada pela introdução de categorias
que emanam das Escrituras. Assim, a primeira parte da Estrela apresenta os
elementos fundamentais com que a realidade se manifesta: Homem, Mun-
do e Deus. Os três livros da segunda parte introduzem o percurso ao longo
do qual esses elementos avançam em direção à unidade, mediante relações
de criação, revelação e redenção. A terceira parte propõe os caminhos do
judaísmo e do cristianismo como as duas vias que espelham a redenção e a
experiência do todo.
Apesar desta tonalidade religiosa, Rosenzweig emergiu como um pre-
cursor de ideias poderosas e provocadoras da pós-modernidade. Para ele,
a religião não é uma confissão mas o quadro em que se desenrola o drama
de ser. Deus não criou a religião, criou o mundo, escreveu e, aliás, a palavra
religião quase não ocorre em A Estrela da Redenção. Convém salientar que
ninguém é mais hostil do que ele ao espírito untuoso da religião, no sentido
nietzscheano. Sem a revelação do amor, qualquer instituição religiosa está
condenada à decadência.
O pensamento dialógico de Rosenzweig procura o todo do ponto de
vista do ser humano finito, situado no tempo, num percurso que começa
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no outro e que avança através das relações entre os elementos para uma
promessa redentora. Criação é o divino a transformar-se em relação com o
mundo do qual emerge o ser humano. Revelação é o humano a transfor-
mar-se pela relação com o divino. Redenção é a transformação do mundo
pela relação com a humanidade. A Estrela percorre esta cadeia de relações
em que são determinantes as escolhas da vida entre tudo e nada, entre amor
e negação.
Em todo este discurso, a Estrela herda a rotura dos filósofos dissidentes
do século xix que romperam com o pensamento monológico dos velhos
sistemas de metafísica. Contra esse ponto de vista do absoluto que liquida-
va os entes particulares, reagiram Schelling, Schopenhauer, Kierkegaard e
Nietzsche, tal como Feuerbach e Marx e, na verdade, todos os que contra-
puseram factos da existência a sistemas abstratos.
Rosenzweig recolhe, amplia e transforma essa herança dos filósofos dissi-
dentes num pensamento pós-moderno que crismou figuras marcantes. É a
sua voz que escutaremos nas páginas que se seguem, numa interpretação
pessoal e com uma legitimidade que advém de uma profunda admiração
por um pensador que é também uma testemunha da revelação. Como es-
creveu Naum Glatzer, as reflexões de Rosenzweig podem ser contrariadas; a sua
vida, não.
Lisboa e Praia do Carvoeiro, agosto de 2016
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