16 Perguntas Sobre o PCC
16 Perguntas Sobre o PCC
O que é o PCC e qual o seu tamanho? Qual o seu papel dentro e fora das prisões? O que
aconteceu depois que Marcola assumiu a liderança da facção? Por que os ataques aconteceram?
Além disso, o debate é riquíssimo e o assunto, pouco conhecido. Como verão aqueles que chegarem até
o fim, as opiniões estão longe de serem consensuais e ainda existem muitas dúvidas sobre esse
fenômeno social que não cansa de surpreender e de assustar aqueles que vivem em São Paulo.
Segue uma pequena apresentação dos entrevistados e depois as perguntas e respostas na íntrega. Parte
delas foi publicada no Estadão de domingo (24/01), no Caderno Metrópole.
***
A antropóloga Karina Biondi, de 32 anos, atualmente faz doutorado na UFSCar. Começou a estudar o
PCC depois que o marido foi preso, em 2003. Durante as visitas, fez pesquisas de campo cujo material
deu origem à dissertação Junto e Misturado: uma etnografia do PCC, que em março será publicada em
livro pela Editora Terceiro Nome. O marido dela, depois de cinco anos preso à espera de julgamento, foi
inocentado.
A dissertação da socióloga Camila Nunes, A igreja como refúgio e a Bíblia como esconderijo: religião e
violência na prisão, concluída na USP, também virou livro (Editora Humanitas). Agora, ela finaliza
doutorado com base em pesquisas em presídios paulistas. O antropólogo Adalton Marques, de 27 anos,
defende sua dissertação em Antropologia na USP em fevereiro, chamada Crime, proceder, convívio-
seguro – um experimento antropológico a partir de relações entre ladrões. Na semana passada, eles
travaram com o Estado o debate abaixo:
1)É possível dimensionar o tamanho e a influência do PCC? Quantos integrantes existem? Eles
têm influências sobre quantas prisões?
Karina – De acordo com minha pesquisa, o PCC está presente na grande maioria das instituições
prisionais paulistas, mesmo em prisões que, eventualmente, não conta com a presença de “irmãos” (seus
membros batizados). Narrei um desses casos em minha dissertação, um Centro de Detenção Provisória
recém-inaugurado que foi conquistado para o PCC por presos que não eram seus membros. O número
de “irmãos” é desconhecido até por eles próprios. Surpreenderia-me saber que algum deles tem esse
controle, já que um “irmão” sequer conhece todos os seus outros “irmãos”. O PCC, como procuro
descrever em minha dissertação, não se restringe à soma de “irmãos”; é um fenômeno muito mais amplo,
complexo e, sobretudo, múltiplo.
Camila – É muito difícil dimensionar o tamanho do PCC, mas de acordo com minha pesquisa, realizada
em unidades prisionais, com entrevistas com diretores, funcionários e presos, o PCC tem influência em
cerca de 90% das 147 prisões paulistas. Essa influência é um tanto quanto diversificada em cada uma
das unidades, a depender das relações que se estabelece com a administração do local, na qual se
estabelecem seus limites. No Estado inteiro há cerca de 6 ou 7 unidades aproximadamente, que são
controladas por outros grupos ou que são chamadas “neutras” designando, assim, a inexistência das
chamadas “facções”. Essas unidades, contudo, não permitem a entrada de presos que pertencem às
facções e para elas são transferidos os presos que anteriormente ficavam no “seguro”. Ou seja, se um
preso que se encontra numa penitenciária controlada pelo PCC sente-se ameaçado e pede “seguro”, ele
provavelmente será transferido para uma dessas unidades “neutras” que são, de fato, unidades de
“seguro”, tal como a definem diretores e os presos que nelas se encontram. Enfim, excetuando-se essas
unidades e umas poucas controladas por outras facções, as demais se encontram sob a influência –
maior ou menor – do PCC.
Gabriel – do lado de fora das prisões a lógica é exatamente a mesma. Ouço relatos de que “agora é tudo
PCC”, referindo-se ao “mundo do crime” nas periferias há alguns anos. Mas quando vamos olhar os
detalhes, aparecem situações curiosas. Por vezes, como diz a Karina, o PCC está mesmo onde não há
um “irmão”. Por exemplo, um ponto de venda de maconha e cocaína, numa das favelas em que estudo,
não é gerenciado por nenhum “irmão” (os outros pontos são). No entanto, quem gerencia esse ponto,
uma pessoa respeitada na favela, lida bem com a presença do PCC e diz também concordar com “a lei”
dos “irmãos”. Não saberia dizer o quanto casos como esse são freqüentes, e também me surpreenderia
se alguém soubesse fazê-lo, mesmo entre os integrantes da facção.
Adalton – Considero um equívoco pensar o PCC a partir de quantificação dos “batizados”, bem como de
mensuração da extensão dos efeitos provocados por suas ações. Definitivamente, o PCC não é isso! O
PCC não é somente um aglomerado de membros e de ações. Antes, se trata de um conjunto singular de
enunciados, forte (o que não quer dizer necessariamente violento) o bastante para afirmar a “paz dos
ladrões” – “ladrões” são aqueles “considerados” como tais, é claro – e a “disposição pra bater de frente
com os polícia” e “pra quebrar cadeia, pra fugir”. Imprescindível dizer que a efetuação dessas coisas não
depende da presença de um “batizado”. Portanto, as ações dos membros do PCC não são condições
necessárias para a atualização do PCC.
Em minha dissertação arrisco os mesmos 90% afirmados por Camila – Karina também teve essa
impressão em seu campo. Contudo, entendo que, mais decisivo que a mensuração de extensões, é
perceber que isso que se chama PCC se efetua nos quatros cantos da cidade, onde se fala e se escuta,
por exemplo, as já clássicas expressões “veja bem, fulano”, “[en]tendeu?” e “sumemo” (isso mesmo).
Esse modo específico de travar conversas é uma marca registrada do PCC, que substitui os “palavrões” e
as ofensas banais por um novo jargão “do crime”, especialmente preocupado com as “palavras”,
exatamente por saber da veracidade do dito popular “peixe morre pela boca”.
Um último ponto. Esse modo de travar conversas é efetuado também por crianças de 7, 8, 9 anos, que já
sabem que não devem mandar seus colegas “tomar no cu”. Já preferem dizer: “Veja bem, fulano, essa fita
não tá certa. Vamo debater essa fita”.
Karina – Minha pesquisa de campo dentro de algumas prisões revelou que o PCC tem dois grandes
papéis ali: ao mesmo tempo em que regula a relação entre os prisioneiros, é uma instância representativa
da população carcerária frente ao corpo de funcionários das prisões.
Gabriel – Minha pesquisa tem mostrado que, fora das prisões, e muito especificamente em algumas
regiões das periferias urbanas, o PCC tem um papel de regulação das normas de conduta internas ao
“mundo do crime”, que em algumas favelas também operam como regra geral de conduta. Nesses
espaços, os “irmãos” são percebidos como uma instância regradora – que pode gerar medo, porque tem
acesso à violência letal – mas à qual se pode recorrer no caso de injustiças sofridas. A depender da
situação de injustiça experimentada, se pode recorrer ao Estado, a uma igreja, à imprensa, ou aos
“irmãos”.
Camila – dentro das prisões entendo que o PCC exerce um papel muito similar ao apontado pelo Gabriel,
para o caso da periferia. Constitui-se como instância reguladora, não só na relação presos/administração
prisional, mas, sobretudo, na relação entre a população carcerária, intervindo diretamente na resolução
de conflitos e exercendo o papel de árbitro e juiz, inclusive impondo punições, quando se considera que
seja o caso.
Adalton – Entendo que o papel do PCC, nos dias de hoje, está intimamente ligado à manutenção do que
compreendem por “Paz”, “Justiça”, “Liberdade” e “Igualdade”. As forças despendidas para assegurar
esses valores passam pela efetuação de suas duas políticas centrais. A primeira consiste em esforços
para estabelecer a “paz entre os ladrões”, a “união do crime”, acabar com a matança que tinha lugar no
“mundo do crime”, fazer com que os “ladrões” sejam “de igual”. A segunda se divide em duas frentes: 1ª)
“bater de frente com os polícia” – categoria que abarca policiais, agentes prisionais, diretores e outros
operadores do Estado – a fim de protestar contra a situação imposta aos presos, considerada “injusta” por
eles; 2ª) “quebrar cadeia”, manter ativa a “disposição” (“apetite”) para fugir, enfim, cultivar a vontade de
“liberdade”.
3) Quais as principais mudanças que aconteceram na facção ao longo dos anos?
Karina – O sistema prisional do Estado de São Paulo sofreu um crescimento vertiginoso durante as
décadas de 1990 e de 2000. O número de presos, bem como o número de unidades prisionais triplicou
nos últimos 20 anos. Mas o impacto visual dessa política de encarceramento em massa foi amenizado por
um processo de pulverização dessa população, com a construção de prisões em regiões mais afastadas
dos centros urbanos. Acompanhando essa política estatal, vimos também mudanças na política operada
pelos prisioneiros. As pessoas costumam utilizar o termo “política” se referindo à política partidária, mas
utilizo-o aqui de forma mais ampla, para me referir ao modo como os prisioneiros conduzem suas
existências e suas lutas. Minha pesquisa aponta para duas mudanças fundamentais nessa política
operada pelos prisioneiros: uma relacionada ao nascimento e expansão do PCC e outra a uma revolução
interna, a introdução do “ideal de igualdade” em seu lema e suas práticas.
Camila- Entendo que está perguntando as mudanças no PCC ao longo dos anos. Do meu ponto de vista
o PCC mudou bastante. Para responder de forma mais sintética, eu diria que houve uma racionalização
do seu modo de operar. Nos primeiros anos de sua existência, quando havia ainda a necessidade de
expansão e “conquista” de territórios, além do discurso de necessidade de união da população carcerária
para lutar contra a opressão do Estado, era necessária a imposição de seu domínio a partir da
demonstração da violência explícita contra aqueles que rejeitavam ou eram recalcitrantes em aceitar esse
domínio. Por isso, na década de 1990 – até o início dos anos 2000 – assistia-se cenas grotescas de
violência no sistema carcerário, muitas delas protagonizadas pelo PCC que fazia questão de explicitar a
sua capacidade de imposição da violência física, especialmente durante as muitas rebeliões ocorridas no
período. Essa explicitação da violência era importante para demonstrar o seu poder para os presos e
também para o Estado. A partir de 2003, 2004, o PCC alcança uma relativa hegemonia no sistema
prisional – e, talvez, em algumas atividades fora dele – o que torna o exercício expressivo da violência
física, como forma de punição aos “traidores”, desnecessária. Ou seja, não era mais preciso demonstrar
publicamente sua capacidade de imposição da violência física, uma vez que o PCC já tinha seu domínio
consolidado na ampla maioria das prisões paulistas, e não havia mais “rivais” a serem combatidos. Era
possível, portanto, “gerenciar” a população carcerária – que já havia “aderido” às novas regras vigentes
no sistema prisional – a partir de formas menos violentas, inclusive com o estabelecimento de instâncias
de diálogo, debate e participação nas decisões que envolviam não apenas a cúpula, mas os diversos
segmentos que compõem o PCC, além de alguns presos que não fazem parte do grupo.
Adalton – Houve uma mudança decisiva entre o final do ano de 2002 e o início de 2003. Geléião e
Césinha, os dois últimos “fundadores” vivos, foram “escorraçados” – essa é a palavra utilizada – pelos
“presos” e mandados para o “seguro”. Segundo se diz, os “presos” perceberam que estavam sendo
“extorquidos” e “lagarteados” – tornar-se “lagarto” de alguém é o mesmo que permanecer sob seu jugo,
convertendo-se em mero instrumento de sua vontade – pelos dois e reagiram ao estado de coisas então
vigente. Diz-se, também, que Marcola teve um papel decisivo, tanto para mostrar aos “presos” a situação
a que se submetiam, quanto na “guerra” travada contra os dois “fundadores”. É comum ouvir de meus
interlocutores que Marcola “bateu de frente” com os “fundadores” e recebeu “apoio total da população
carcerária”.
Esse acontecimento, segundo meus interlocutores, foi decisivo para “o PCC aprender com os erros do
passado”. Desde então, conforme compreendem, foi extirpada a posição política “fundador”, bem como a
figura de “general” – última variação de mando no seio desse coletivo –, pondo fim à diferença
imensurável (infinita, portanto) que os separavam dos “irmãos” (para não falar dos “primos”). Desde
então, está dito que não mais pode haver diferenças absolutas entre os relacionados ao PCC – antiga
prerrogativas dos “fundadores” –, mas somente diferenças de “caminhadas” – entre “pilotos”, “irmãos” e
“primos”. Esse é o movimento político guardado na adição da quarta orientação basilar do programa do
PCC: “Igualdade”. Trata-se de uma renovação profunda do antigo lema, que trazia três princípios
fundamentais: “Paz, Justiça e Liberdade”. Enfim, de acordo com essa nova diretriz, as diferenças de
“caminhada” não podem mais ser confundidas com quaisquer relações de mando. Todos os preso de
“cadeias do PCC”, sem exceções, devem ser efetuações do signo “de igual”.
4) Marcola, apontado como liderança do PCC, exerce realmente essa função? O que mudou no
PCC com a saída de Geléião (antigo líder) e chegada do Marcola?
Karina – Não só Marcola não exerce, como não existe no PCC uma forma de liderança que pressuponha
uma hierarquia piramidal, uma estrutura rígida ou formas de mando e obediência. Isso justamente porque,
com a saída do Geleião, Marcola promoveu a inserção da “igualdade” ao lema e às práticas do PCC que,
com isso, sofreu profundas transformações, dentre elas a extinção de lideranças que exerceriam poder
sobre os demais integrantes. Essas transformações – que não param de se transformar – são como
antídotos a quaisquer manifestações de mando ou de qualquer relação que venha a ferir o princípio de
“igualdade”.
Camila – Na minha concepção, a ascensão de Marcola coincidiu com o momento em que o PCC
conquista a hegemonia e estabilidade nos locais onde exerce seu controle, o que permitiu o processo de
racionalização citado na pergunta anterior. Acredito, no entanto, que o Marcola teve uma importante
influência nesta mudança no PCC a partir da priorização de formas mais racionais de “controle”, com
menos recurso à violência e a difusão de instâncias de participação, a fim de conferir mais legitimidade ao
domínio do PCC, buscando a adesão e a manutenção desta adesão dos membros ou “simpatizantes” a
partir desta nova forma de ação – supostamente mais democrática – e não mais pelo medo ou ameaça.
Adalton – Se ousarmos ceder, ao menos por um instante, ao ponto de vista dos “ladrões”, perceberemos
o quanto lhes é detestável aquele que “quer mandar”, comumente chamado de “bandidão”. Marcola, ao
contrário dos “bandidões”, é considerado “de igual” por meus interlocutores. É “respeitado” por todos
interlocutores com quem tive contato porque é considerado “humilde” e por que se mostrou “cabuloso”
todas as vezes que foi preciso (quando “bateu de frente” com Geléião e Césinha, por exemplo).
Nesse sentido, o posto que lhe é atribuído pela grande mídia – “Líder máximo do PCC” – não encontra
sentido nas práticas cotidianas dos presos. Trata-se de um grande equívoco. Se os
presosobedecessem a uma Liderança desse tipo (do tipo que manda), segundo seus próprios pontos de
vista, converter-se-iam em “lagartos”! Basta saber o que aconteceu com tantos outros presos que
quiseram ascender à posição de mando, inclusive alguns “fundadores” do PCC: morreram ou foram
“escorraçados”.
5) Como funciona o PCC? Como as ordens chegam das lideranças até os linhas de frente? Como
podemos hierarquizar o PCC: torres, disciplinas, etc?
Karina – Como o Gabriel disse, não se trata de ordens, mas de “salves”, que possuem um estatuto mais
de orientação e recomendação do que de ordem ou de lei, de decreto. O que o preso quer dizer com
“ninguém é mais do que ninguém”, “ninguém é obrigado a nada”, “é de igual”? Não basta ouvir o que eles
têm a dizer, é preciso levá-los a sério. Foi isso que procurei fazer em minha dissertação e que permitiu
que eu enxergasse no PCC uma formação que, por um lado, não pode ser caracterizada como
hierárquica, mas que por outro lado tem a hierarquia como um fantasma que não pára de aparecer em
seu interior. Os prisioneiros tecem reflexões riquíssimas a esse respeito, reflexões que são indissociáveis
de suas próprias experiências cotidianas. Esta questão é muito complexa e não há espaço aqui para
respondê-la, mas trabalhei-a em minha dissertação de mestrado, que será publicada em março pela
Editora Terceiro Nome.
Camila: O PCC possui uma hierarquia que não é de tipo “piramidal”. Até onde pude compreender, há uma
“cúpula” que figura como instância máxima e que conta com cerca de 18 membros e que são chamados
de “finais”. Abaixo deles há as “torres”, que controlam grandes áreas, geralmente divididas a partir do
código DDD; abaixo das “torres” essa grande área é dividida e essa divisão será de acordo com o
tamanho da área, que será controlada por um disciplina. Mais uma vez o tamanho da área definirá se
abaixo desse “disciplina” haverá outras subdivisões. Essa estrutura – da torre para baixo – se duplica uma
vez que uma se refere ao sistema carcerário e a outra às regiões fora do sistema. Abaixo dos “disciplinas”
(que podem ser responsáveis por uma cidade do interior, um bairro, uma unidade prisional ou um raio da
prisão) há os irmãos. Com exceção da cúpula todas as demais “instâncias” são inteiramente
intercambiáveis, a depender da necessidade. Ou seja, todos os irmãos devem estar preparados para
assumirem o posto de disciplina e/ou torre. Claro que tudo isso é um tanto quanto fluido e essa forma de
organização pode mudar – e muda muito – a qualquer momento, a depender da ação das forças
repressivas ou das necessidades e interesses da facção. Mas, essa foi a estrutura – aproximada – que
consegui apreender na minha pesquisa.
Karina – São muitas e conhecidas as mudanças que ocorreram nas prisões após o nascimento do PCC:
diminuição no número de homicídios e das agressões entre prisioneiros, fim do consumo de crack e dos
abusos sexuais, não se vende mais espaço na cela, não se troca favor com agentes penitenciários em
benefício próprio em detrimento de outros, não se fala palavrões. Mas é importante lembrar que essas
mudanças não são frutos de leis, decretos ou imposições. Suas propostas nascem de amplos debates e
são expandidas e adotadas paulatina e assistematicamente, não sem resistências e diferenciações na
condução dessas políticas. É muito comum uma unidade prisional funcionar de forma diferente de outras,
principalmente no que diz respeito a mudanças ainda não tão cristalizadas.
Camila – A mudança fundamental foi a criação de uma instância de regulação das relações sociais na
prisão. Antes (do PCC) as regras eram impostas – e quebradas – por líderes individualizados que
alcançam essa posição a partir da imposição da violência física, do medo e da ameaça, além da formação
de pequenos grupos que se utilizavam dessa superioridade física para dominar os mais fracos. Essa
forma de domínio era extremamente efêmera e precária, uma vez que recorrentemente surgiam outros
presos ou outros grupos que buscavam ocupar este espaço. Com o surgimento do PCC, este se
constituiu como essa instância reguladora, de imposição e controle do cumprimento das regras, assim
como de punição aos transgressores. Não se tratava mais de um domínio baseado puramente na
violência e na ameaça e nem mais era uma dominação individualizada: trata-se agora de um grupo,
organização, ou seja, lá como se chame o PCC; o fato é que a regulação das relações sociais passou a
ser mais “institucionalizada”, menos dependente de indivíduos e, portanto, muito mais estável. Assim,
muitas regras foram criadas, entre elas a proibição do uso do crack (provavelmente no início dos anos
2000), a proibição de matar um companheiro sem prévia autorização do PCC, a proibição do porte de
facas e outros instrumentos cortantes, dentre muitas outras (essa última mais recentemente, a partir de
2006).
Karina – sobre lideranças, ver resposta à pergunta 4. De qualquer forma, os presos não vêem como
barganha as negociações feitas com as autoridades das prisões. Trata-se, para eles, de reivindicações do
que consideram seus direitos. O sucesso de tê-las atendidas não tem relação com uma suposta posição
de um irmão dentro do PCC, mas depende exclusivamente da habilidade dos presos – “irmãos” ou não –
em reivindicar e negociar.
Camila – Uma das funções das lideranças do PCC nas prisões – não só deles, mas sobretudo deles – é o
estabelecimento de diálogo com a administração prisional, fazendo a ponte entre esta e a população
carcerária. Neste sentido, o grupo que constitui a chamada “linha de frente” da unidade prisional
(piloto/disciplina, faxinas) concentra as reivindicações dos presos e estabelece canais de diálogo com
administração, que podem ser mais ou menos tensos. Como dito antes, os diretores pode ter uma maior
ou menor tolerância com esse papel exercido pelos irmãos. Há unidades, por exemplo, que o diretor não
admite que cresça muito o número e “irmãos” e passa a transferi-los quando entende que eles estão em
quantidade muito grande ou quando eles “incomodam”, ou seja, explicitam demais o papel que exercem;
em outras unidades, a tolerância é maior e o PCC pode ter uma influência maior também.
Gabriel - Certa vez o Mano Brown disse: “o Estado defende a favela, dá segurança ao favelado, com a
sua polícia? Não. Então a favela tem que se defender de outra forma”. Há que se entender o que ele diz.
Se a frase causa estranhamento a quem acredita na universalidade da democracia, ela é perfeitamente
inteligível na perspectiva de quem morou numa favela. Pois, nessa perspectiva, existe um repertório
amplo de instâncias de justiça, autoridade e uso da força, para além do Estado.
Ora, quando a justiça estatal funciona, não é preciso criar outra: ninguém da favela recorre ao PCC para
ganhar horas-extras não pagas. Por quê? Porque a justiça do trabalho tem funcionado bem nesses casos.
E em diversas outras áreas – infra-estrutura urbana, moradia, saúde, assistência social – há avanços nas
políticas voltadas às periferias. O PCC não cuida de nenhuma dessas áreas. Mas na questão da
segurança pública, e do emprego, as coisas pioraram muito para os favelados ao longo dos últimos 30
anos. E não por acaso, especialmente entre os mais pobres o “crime” disputa legitimidade tanto com o
trabalho lícito, pois gera renda, quanto com a justiça estatal, pois pode-se obter reparação de danos a
partir do recurso a ele.
Se alguém é agredido ou roubado na favela, e sente-se injustiçado, não chama a polícia, chama os
“irmãos”. E se não consegue trabalho, ou não tem os requisitos mínimos para obtê-lo, sempre pode
ocupar postos nos mercados ilícitos.
A aparição do PCC do lado de fora das prisões, a partir do início dos anos 2000, é um passo a mais no
estabelecimento de atores extra-estatais de regulação dessa dinâmica social. Sofistica-se, por
especialização de funções, o que o “crime” já vinha fazendo de modo menos estruturado. Trata-se
portanto de uma conseqüência da cristalização de deficiências de garantia de direitos de uma parcela da
população, ao longo de décadas. Tentando resolver essa questão com encarceramento massivo, desde
os anos 1990, o Estado jogou mais lenha nessa fogueira. O paradoxo político que essa dinâmica expõe, e
que exploro na minha tese de doutorado (a ser publicada como livro ainda esse ano), é que isso se dá ao
mesmo tempo em que se consolida a democracia institucional no Brasil.
Adalton – O papel do PCC fora das prisões segue a mesma “sintonia” de suas políticas dentro do cárcere,
e vice-versa. Suas diretrizes visam a “paz entre os ladrões”, “justiça” nos “debates” realizados, “correria”
para trazer à “liberdade” os “irmãos que estão no sofrimento” (“estar no sofrimento” é o mesmo que “estar
preso”) e “igualdade pra ser justo”.
Gabriel – Não se trata de “ordens”, mas de “salves”, diferença sutil mas relevante. Os “salves”
representam uma posição a ser considerada, mas é no “debate” que eles podem se transformar em ação
prática, ou não. E os “salves” circulam por dentro e fora das prisões, como se sabe muito bem, por meio
de telefones celulares.
Karina – o PCC não é externo aos territórios, ele brota no interior deles.
Gabriel – concordo com a Karina, e acrescento que em cada território da cidade há uma tradição de
atividades criminais específicas, e uma dinâmica social também específica que interage com ela. O PCC
atua nesses territórios negociando e/ou usando a força, a depender do caso, para estabelecer sua
legitimidade. Sem pensar essas relações, caímos no equívoco de pensar que o PCC domina
tiranicamente esses territórios, o que é uma bobagem. A análise de um ator complexo como o PCC, numa
cidade imensa como São Paulo, é uma empreitada muito desafiadora e ainda estamos engatinhando na
compreensão desse fenômeno.
11) As lideranças realmente exercem poder efetivo sobre a massa de integrantes ou as decisões
são tomadas em níveis mais baixos de hierarquia?
Karina – Gilles Deleuze e Féliz Guattari escreveram um texto magnífico chamado “Um só ou vários
lobos?”, uma crítica a um famoso caso freudiano, o Homem dos Lobos. Os autores chamam a atenção
para as reduções que o psicanalista elabora sobre o relato do paciente. Apesar das constantes
referências a matilhas, Freud as despreza, reduzindo sempre a matilha (o múltiplo) ao lobo (a unidade).
Essa redução foi fundamental para suas construções teóricas, que cada vez mais se distanciavam dos
problemas relatados pelo paciente. Todos os relatos dos pacientes se transformavam em substitutos,
regressões ou derivados de Édipo. Não importa o que se relatava; de antemão, Freud sabia que era o pai.
O mesmo ocorre com o PCC. Não importa o que seus participantes dizem, alguns analistas só vêem
hierarquia, só enxergam lideranças, ordens, leis e decretos. Onde vêem diferenças, as tratam como
contradições que anseiam em solucionar. “É o pai!”, diria Freud. “É a Lei! É o Marcola!”, dizem esses
analistas, sempre em busca de um soberano, de uma unidade. Matam as diferenças, desprezam as
multiplicidades que dão forma ao PCC. E se distanciam cada vez mais do fenômeno múltiplo e complexo
que pretendem analisar.
Camila – a maioria das decisões, que envolvem a “administração” cotidiana das unidades prisionais – e,
acredito que também da periferia – como resoluções de conflitos simples, negociações com a
administração prisional etc. são realizadas pelos irmãos e disciplinas responsáveis pelo próprio local,
normalmente a partir do “debate” entre os mesmos que, algumas vezes, inclui outros presos que não são
irmãos, mas são muito próximos deles. Quando se trata de algo mais sério ou importante – como
agressões entre irmãos, delação, estupros, roubos – e que demandaria uma punição mais rigorosa, como
a exclusão do PCC, a agressão ou a morte, então as discussões são levadas até as instâncias superiores
e que, depois de ouvir todos envolvidos, tem papel decisivo na “sentença”.
Adalton – Mais uma vez devo dizer que essa noção de liderança, tão dependente de um princípio
hierárquico, não funciona no caso em tela. Os “presos de cadeias do PCC” não endossam essa
externalidade entre lideranças e massa. Senão, veriam a si mesmos numa relação entre “bandidões” (um
avatar para essa liderança imperiosa) e “lagartos” (um avatar para essa massa destituída de força e
bastante obediente). O que, por certo, lhes é uma relação odiosa.
12) Qual a importância do tráfico de drogas para o PCC? Quais são as principais formas de
financiamento?
Karina – É mais o objetivo de minha pesquisa indagar sobre “qual a influência do PCC no tráfico e no
consumo de drogas” do que procurar saber qual a importância do tráfico de drogas para o PCC.
Interessa-me mais o que o PCC promove do que o que o financia. Pois a resposta a essa pergunta seria
óbvia: se há alguma importância, é monetária. Mas isso não diz muito sobre meu objeto de pesquisa. É
muito mais interessante investigar qual a relação da presença do PCC nas periferias de São Paulo e a
concentração de consumidores de crack na região central da cidade. Para tanto, é preciso, novamente,
levar a sério o que dizem sobre os “nóias”, sobre o porquê deles não serem bem aceitos nas “quebradas”,
sobre o porquê de eles migrarem para o centro da cidade, sobre por que o centro é permitido. Essas sim
são questões que eu gostaria de aprofundar.
Gabriel – em minha tese de doutorado levanto a hipótese de que, nos lugares em que faço pesquisa, a
acumulação de capital pelo tráfico de drogas permitiu nas últimas décadas a diversificação, a
especialização e a profissionalização de outras atividades criminais – roubo de carros, cargas, assaltos de
grande especialização, etc. O PCC está em todas essas atividades, pelos depoimentos que obtive. Mas
não tenho dados suficientes para comprovar essa hipótese, ou dizer que é assim em toda a cidade.
Camila – De acordo com as entrevistas que realizei, o PCC é hoje um dos principais distribuidores de
drogas (maconha, cocaína e o material para fabricação do crack) no estado de São Paulo (mas não o
único), agindo também em outros Estados mas com uma participação menor. Além desta importante
participação o PCC também exerce uma regulação da venda de drogas no varejo, intervindo nas disputas
por pontos de venda, nas relações credor/devedor etc. a partir dos disciplinas que estão presentes em
vários bairros e cidades do Estado. No comércio de drogas nas prisões o PCC também exerce essa
regulação.
Adalton – Essas questões não foram consideradas por mim durante minha pesquisa.
Adalton – Entendo que a diminuição da violência no Estado está atrelada a múltiplos fatores. Em minha
pesquisa não tomei esse fenômeno como objeto. Portanto, não tenho como traçar uma resposta
abalizada aqui. Posso dizer, apenas, que nas periferias que percorro – “quebradas” localizadas nos
bairros Cidade Ademar, Pedreira, Capão Redondo, Sacomã, Sapopemba, Jardim Brasil, entre outros, e
também em “quebradas” localizadas nas cidades de Diadema, São Bernardo do Campo e Santo André –,
comumente escuto vozes que apontam as políticas do PCC como causa principal, às vezes única, para a
diminuição das mortes.
Camila – concordo com o Gabriel e Karina, acrescentando que, para mim, a regulação do comércio de
drogas no varejo pelo PCC é um dos principais responsáveis pela diminuição dos homicídios no Estado
de São Paulo. Todos os entrevistados, sem exceção, mencionaram o fato de “não poderem mais matar”
se referindo tanto ao interior das prisões quanto aos bairros controlados pelo PCC. Essa proibição se
estende, inclusive, a um fator que sempre se constituiu como um dos principais motivadores de mortes
violentas na prisão, a dívida de drogas.
Karina – Muitos prisioneiros e moradores das favelas atribuem ao PCC a responsabilidade pela queda do
número de homicídios. O “não pode mais matar” (nas “ruas”) me foi dito pela primeira vez em meados de
2006, por prisioneiros. Logo depois, ouvi de uma moradora de uma favela da cidade de São Paulo que, se
antes ela se deparava diariamente com um cadáver na porta de sua casa, hoje, “graças ao PCC, isso não
acontece mais”. As informações sobre a influência do PCC na diminuição do número de homicídios no
Estado de São Paulo, que antes apareciam para mim apenas em relatos de experiências como essa,
foram reforçadas pelas estatísticas oficiais. Se há outros motivos para esta queda, não os encontrei nos
relatos daqueles que vivem nas áreas onde ocorrem a maioria dos homicídios.
Gabriel – Tenho trabalhado nisso há algum tempo. O primeiro ponto a considerar é que não há diminuição
da “violência” em geral, mas dos homicídios e, muito especialmente, dos homicídios chamados no senso
comum de “acertos de conta” entre indivíduos inscritos no “mundo do crime”. Há muitas evidências
empíricas de que o PCC pode ter interferido diretamente na queda dos homicídios, tanto no meu trabalho
quanto em outras pesquisas recentes. Durante a pesquisa de campo, quando se comenta porque é que
não morrem mais jovens como antes – o que é patente em todos os depoimentos e conversas – as
explicações oferecidas são três. A primeira é: “porque já morreu tudo”; a segunda é: “porque prenderam
tudo”, e a terceira, mais recorrente, é: “porque não pode mais matar”. Eu levei bastante tempo para
compreender essas três afirmações, entender que elas me falavam de uma modificação radical na
regulação da violência – e do homicídio – nas periferias de São Paulo, nos últimos anos. E que essa
regulação tem a ver com a presença do PCC.
“Morreu tudo” significa dizer duas coisas, na perspectiva dos moradores: a primeira e óbvia é que
morreu gente demais ali, e que portanto uma parcela significativa do agregado dos homicídios era de
gente das periferias, ou seja, de gente próxima. Aqueles que as estatísticas conhecem de longe – jovens
do sexo masculino, de 15 a 25 anos, pretos e pardos, etc. – são parte do grupo de afetos de quem vive
ali. A segunda é que aqueles jovens integrantes do “mundo do crime” que se matavam, antigamente, já
morreram há tempos; ora, se esse “mundo do crime” persiste ativo, e inclusive se expande, só podemos
concluir que seus novos participantes não se matam mais como antigamente. Houve uma mudança, que
as duas outras respostas ajudam a entender.
“Prenderam tudo” significa dizer que aqueles que matavam, e não foram mortos, não estão mais na rua.
Houve uma política de encarceramento em massa nos últimos quinze anos, em São Paulo. Há um
problema pouco comentado, no entanto, entre os defensores dessa política. O que esse encarceramento
fez foi retirar uma parcela significativa dos pequenos criminosos das vielas de favela, diminuindo a
conflitividade delas e os inserindo em redes bastante mais complexas e especializadas do mundo
criminal, que operam nos presídios. O período do encarceramento crescente corresponde, quase
exatamente, com o período de aparição e expansão do PCC.
É aí que a terceira afirmação, a mais freqüente de todas, ganha mais sentido. Quando me dizem na
favela “porque não pode mais matar”, está sendo dito que um princípio instituído nos territórios em que o
PCC está presente é que a morte de alguém só se decide em sentença coletiva, e legitimada por uma
espécie de “tribunal” composto por pessoas respeitadas do “Comando”. Esses julgamentos são
conhecidos como “debates”, podem ser muito rápidos ou extremamente sofisticados, teleconferências de
celular de sete presídios ao mesmo tempo, como escutas da polícia já mostraram. Há uma série de
reportagens de imprensa e estudos acadêmicos tratando deles. O que importa é que esses debates
produzem um ordenamento interno ao “mundo do crime”, que vale tanto dentro quanto para fora das
prisões. Evidente que a hegemonia do PCC nesse mundo facilitou sua implementação. Com esses
debates, aquele menino que antes devia matar um colega por uma dívida de R$ 5, para ser respeitado
entre seus pares, agora não pode mais matar.
Isso impacta na queda dos homicídios muito mais do que se imagina, porque o irmão daquele menino
morto pela dívida se sentiria na obrigação de vingá-lo, e assim sucessivamente, o que gerava uma cadeia
de vinganças privadas altamente letal, muito comum ainda em outras capitais brasileiras. Agora,
entretanto, nesses tribunais do próprio crime, mesmo que o assassino seja morto, interrompe-se essa
cadeia de vingança, porque foi “a lei” (do crime) que o julgou e condenou. E como a lei, nesses “debates”,
só delibera pela morte em último caso – há muitas outras punições intermediárias – toda aquela cadeia de
vinganças que acumulava corpos de meninos nas vielas de favela, há oito ou dez anos atrás, diminuiu
demais.
Nossos dados indicam que o PCC seria a principal causa da queda dos homicídios, mas eles não têm
capacidade de comprovação cabal. Uma parcela muito pequena dos homicídios é oficialmente
esclarecida, e justamente a parcela menos esclarecida é a composta daqueles jovens pobres,
supostamente assassinados em conflitos internos ao “crime” ou com a polícia. Entre esses casos, não há
dúvida nenhuma de que a redução expressiva dessa década é resultado dessa regulação interna ao
“mundo do crime”, que tem muito a ver com o PCC. Para medir esse impacto com mais exatidão,
cruzando com outras possíveis causas aventadas por aí, seria preciso ver o quanto os assassinados
nesse tipo de conflito representavam do agregado dos homicídios.
É evidente e relevante dizer, mais uma vez, que não estamos dizendo que essa regulação é boa,
evidentemente não é. Só estamos alertando, como cientistas sociais, que esse processo vem
ocorrendo em São Paulo, há pelo menos uma década, e que não podemos fechar os olhos para ele.
Gabriel - aqui eu gostaria de subverter a pergunta e dizer que os riscos não são “do PCC para a
sociedade”, porque não há externalidade entre ambos. O PCC também é sociedade, e a dinâmica social
como um todo não cansa de gerá-lo. Creio que sem a política de encarceramento dessa década, o PCC
não seria tão forte quanto é hoje, por exemplo. Para pensar com mais rigor a questão há que se
abandonar, o que é difícil, a polaridade entre o bem e o mal. Seria tudo mais simples, e palatável para os
“bons cidadãos”, se houvesse um “submundo” que pudéssemos reprimir até o fim, liberando a “boa
sociedade” para viver em paz. Mas infelizmente não é assim que as coisas funcionam.
Camila – concordo com Gabriel. Acho que o fortalecimento do PCC coloca constrangimentos importantes
para o Estado, que é incapaz de lidar com o problema fora da chave da repressão. E, desta forma, ocorre
o efeito contrário, ou seja, o fortalecimento.
Adalton – Isso que chamamos de PCC são múltiplas posições de embate (por que não existe o PCC,
único e homogêneo) no seio do que se chama de sociedade. Assim como são a Universidade, a Polícia
Militar, os Comerciantes, a Polícia Civil, os Sindicatos (nenhum desses corpos políticos são
homogêneos). Compreender o jogo de riscos nesse solo de posições múltiplas e variantes, em embates
móveis, não é tarefa fácil. Só para termos uma idéia dessa complexidade, o avanço do PCC é visto de
forma positiva por uma parcela considerável de moradores das periferias paulistas, mal visto por outra e
não visto por outra. Ao que tudo indica, as agências de segurança pública e os “comandos” inimigos do
PCC consideram alto o risco de seu avanço. E o que pensar de uma micro-empresário, numa situação
hipotética (porém bastante comum), que conseguiu recuperar seu carro roubado através de um “irmão”
que toma cerveja com seu filho na padaria do bairro?
15) É possível enfraquecer ou acabar com o PCC? Como?
Karina – Não é uma questão que cabe a mim, mas diria que seu fortalecimento está diretamente ligado às
formas de opressão que o Estado dirige à população carcerária.
Gabriel – Nem a mim. Gostaria de comentar, entretanto, que como minha análise identifica o desemprego
e a fragilidade da garantia do direito à segurança dos mais pobres, nas últimas décadas, como elementos
que fortaleceram a identificação, por eles, do “mundo do crime” como instância legítima de geração de
renda e obtenção de justiça, radicalizar a repressão e o encarceramento só me parecem colocar mais
água nesse moinho.
Camila – Não sei como acabar com o PCC mas, como falei antes, de uma coisa tenho certeza: o aumento
da repressão dentro e fora das prisões, a carta branca que parece ter a polícia para matar na periferia e
outras formas mais de desrespeito aos direitos da população pobre da periferia e dos presos, são
elementos que fortalecem o PCC, conferem mais legitimidade ao seu domínio enquanto enfraquece cada
vez mais a confiança nas instituições públicas de segurança.
Adalton – Questão bastante apropriada à intelligentsia policial paulista. Como antropólogo, não tenho
como respondê-la.
16) O que representaram os ataques? Como repercutiram no PCC? Podem ocorrer novamente?
Gabriel – Representaram uma manifestação de força da facção frente às forças policiais, que estabelece
novos parâmetros para a negociação entre elas. Ouvi diversas vezes, em pesquisa de campo, que há
negociação entre PCC e funcionários do Estado e das polícias. Evidentemente essa negociação se dá em
bases distintas depois de uma demonstração como a de 2006.
Mas os ataques também demonstraram o que significa colocar em xeque a força do Estado – segundo
dados colhidos em 23 Institutos Médico-Legais, e divulgados pelo NEV e pelo Estadão, os eventos
contabilizaram 493 mortos, em uma semana! Mais ou menos 50 mortes foram atribuídas ao PCC, cento e
poucas oficialmente à polícia. Mais de 200 mortes permaneceram sem sequer hipótese investigativa. No
distrito de São Mateus, do lado de onde faço pesquisa de campo, seis rapazes que iam trabalhar numa
fábrica em Santo André, no sábado seguinte aos ataques, foram executados sumariamente. Segundo os
moradores ao autores foram policiais à paisana. Suas mortes foram computadas entre os “suspeitos”.
Espanta perceber que as mortes dessas pessoas não foram consideradas um descalabro num Estado
democrático. O contrário, matar “suspeitos”, sejam eles quem forem, contribui para fazer crer que as
forças da ordem retomavam o controle da situação.
Se outros ataques vão ocorrer seria futurologia, não há como dizer. Estava em campo em maio de 2006 e
não consegui prever os eventos. As causas de eventos como esses são complexas e dependem de
negociações às quais temos muito pouco acesso, em pesquisa. No entanto, não me surpreenderia se
voltassem a ocorrer, já que os atores principais seguem em cena.
1) Por que vocês quiseram estudar o PCC e como o trabalho se tornou viável?
Gabriel – Sinceramente, eu nunca quis estudar violência, crime ou PCC. Sou um pesquisador das
periferias urbanas – estudo as transformações desses territórios, as relações com o Estado, os
movimentos sociais, associações de bairro, famílias etc. O problema é que a questão da violência e do
crime – e mais recentemente do PCC – atravessou as histórias de vida das pessoas com quem eu
convivo em pesquisa. Tenho muitos conhecidos que perderam maridos, filhos, irmãos assassinados nos
anos 1990. Outros tantos que vivem de atividades ilícitas e, por vezes, violentas. Não foi possível desviar
do tema. E todos eles relataram mudança importante nessa dinâmica a partir da aparição do PCC nos
territórios. Isso me interessou e, a certa altura, estava metido nessa discussão mesmo sem querer. Sigo
sentindo isso, aliás.
Karina – Em 2003, quando meu marido foi preso, eu já era estudante de graduação em Ciências Sociais
na USP. Depois de alguns meses, sob o incentivo do Prof. José Guilherme Magnani, decidi transformar a
experiência involuntária à que fui submetida em instrumento para uma pesquisa sobre instituições
prisionais. À época, ainda não era meu interesse estudar o PCC, mas para onde eu olhava, via-o em
funcionamento. O estudo do PCC decorreu de uma impossibilidade de estudar uma instituição prisional
sem falar do PCC. Todos os aspectos das vidas dos prisioneiros que por lá passaram estavam
permeados, em maior ou menor intensidade, pelo fenômeno-PCC. A pesquisa que realizei durante a
graduação foi premiada pela Associação Brasileira de Antropologia e publicada em uma coletânea
organizada pela mesma. Naquele texto, a sigla PCC não aparece, embora seja dele que eu estivesse
falando. Eu só me senti confortável a mencioná-la após enviar um exemplar daquele trabalho para que os
presos pudessem ler e avaliar que minhas intenções não eram as de investigar crimes ou delatar
pessoas. Com sua anuência, pude então me debruçar especificamente sobre o PCC em pesquisa de
mestrado, que só foi viabilizada graças ao apoio de meu orientador, Prof. Jorge Luiz Mattar Villela.
Adalton – Em 2004, ainda na graduação, iniciei uma pesquisa sobre conversão religiosa na prisão. Logo
nas primeiras conversas que tive com ex-presidiários percebi que a noção “proceder” lhes era central para
descrever suas experiências prisionais, fossem relacionadas às conversões, às visitas, às trocas
materiais, às avaliações de condutas e de posturas, às considerações sobre crimes cometidos ou às
definições de punição aos presos que “não tinham proceder”. A propósito, me chamou a atenção o fato de
que a palavra “proceder” raramente era utilizada como verbo, indicando ações. Quase sempre era
utilizada como atributo (“esse cara tem proceder”, “o proceder desse verme é zero”) ou como substantivo
(“o proceder”). Quando me dei conta, já estava muito mais preocupado com essa categoria do que com
as conversões religiosas.
O PCC também me apareceu logo nessas primeiras conversas. Era difícil um ex-presidiário não marcar
diferenças entre o “proceder do PCC” e o “proceder das antigas” ou o “proceder” de outros “comandos”. A
partir de então, procurei perseguir essas diferenças e os desdobramentos que elas provocaram em minha
pesquisa inicial.
Gabriel – Me perguntam muito isso, pressupondo que faço um trabalho de campo “perigoso”, quase uma
“aventura”. Não é. Em minha opinião não é mais difícil estudar o crime ou a violência do que qualquer
outro tema. No nosso tipo de pesquisa, a etnografia, estamos encontrando pessoas e conversando sobre
as vidas delas durante períodos de tempo longos; convivemos com as pessoas, assim não nos
preocupamos em “arrancar” informações delas, como se não fôssemos encontrá-las nunca mais. É todo o
contrário, da convivência cotidiana e do método as informações aparecem. Como em qualquer relação, o
fundamental é ter respeito. E como em qualquer pesquisa, é preciso ter rigor e método. Assim se pode
pesquisar qualquer tema em ciências sociais. A maior dificuldade, na verdade, é conseguir fazer isso –
falar como deve ser, como faço aqui, é sempre mais fácil.
Karina: Geralmente as pessoas me perguntam a respeito das dificuldades, pensando que eu estaria
submetida a algum risco ao estudar criminosos. Eu nunca tive esse tipo de problema, também porque
sempre contei com a ajuda de meu marido que, sem ser membro do PCC, nunca economizou esforços
para tornar minha pesquisa viável. É claro que, como toda pesquisa, me deparei com algumas
dificuldades. A maioria delas foi teórico-metodológica. Por exemplo, no que diz respeito a uma pesquisa
de campo pouco ortodoxa, que não se fixava em um só lugar. Mas ao contrário de constituir obstáculo, as
freqüentes transferências de unidade prisional a que meu marido era submetido potencializavam a
pesquisa, pois se por um lado permitia que eu visse o PCC sendo operado em diferentes lugares, pude
também enxergar as diferenças que se manifestam no interior do PCC, pois seu funcionamento se dava
de maneiras diferentes em cada prisão que eu conhecia. Na dissertação, exponho muitas outras
dificuldades que encontrei no meu caminho, mas a principal, sem dúvida, está ligada a uma preferência
teórico-metodológica que prioriza as falas, as práticas e reflexões das pessoas que estudo. É muito difícil
vencer a tentação de tentar impor alguma ordem exógena ao que eles dizem/fazem/pensam e lutar contra
vícios de pensamento que pertencem ao pesquisador e não aos pesquisados. Mas só com a superação
desses vícios e tentações é possível acessar a riqueza que o objeto de pesquisa apresenta.
Adalton – Em determinado momento de minha pesquisa, vi-me com dados etnográficos que produzi a
partir de escolhas teóricas (que são escolhas políticas). Essa situação me colocou duas grandes
dificuldades, exatamente porque eu não queria escrever uma dissertação que trouxesse ao final de cada
parágrafo o endosso de um grande autor; geralmente um endosso exógeno às relações de meus
interlocutores. A primeira dificuldade, foi intensificar as descrições sobre as relações de meus
interlocutores nos instantes em que parecia inevitável a citação mágica (porque exógena) de um grande
autor. Elas parecem ajudar na explicação, mas quase sempre interrompem o que há de mais importante
nos dados etnográficos: um novo modo de explicar. A segunda dificuldade, foi explicitar essa estratégia
metodológica e dizer que poderia ser proficiente não ceder espaços para teorias externas durante a
descrição das relações que eu estudava.
3) Por que em São Paulo, ao contrário do Rio, os trabalhos sobre crime organizado são mais
escassos?
Karina – Sinceramente, não sei responder a essa pergunta.
Gabriel – Há autores muito importantes nas duas cidades – Michel Misse, Alba Zaluar, Machado da Silva,
entre outros no Rio, e Sérgio Adorno, Robert Cabanes e Vera Telles em São Paulo, para citar poucos. O
fato é que as dinâmicas da violência e do crime são muito distintas no Rio e em São Paulo, muito mais do
que se pensa. E elas também têm também temporalidades distintas. Creio que essa é a principal causa
pela qual a produção acadêmica sobre os temas ter perfis também muito distintos nas duas cidades. Mas
há outras causas: uma pouco comentada é que em São Paulo os movimentos sociais das periferias
urbanas foram muito mais expressivos que no Rio, e sua tematização acadêmica foi enorme desde os
anos 1980. Isso de certa forma ocultou o problema do crime e da violência naqueles territórios – julgava-
se que a democratização política inseriria os pobres na representação política, por via dos movimentos
sociais, e isso geraria distribuição de renda e integração social. A diminuição da violência seria caudatária
desse processo, e portanto o tema da violência seria menos importante que o dos movimentos sociais. No
Rio isso não ocorreu, e talvez por isso a produção carioca sobre crime e violência tenha saído muito na
frente. Atualmente há pesquisadores jovens, nas duas cidades, fazendo trabalhos fantásticos sobre esses
temas, e com grande interlocução.