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W38
Web 2.0 : participação e vigilância na era da comunicação distribuída /
Henrique Antoun (org.). - Rio de Janeiro : Mauad X, 2014.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7478-661-2
1. Internet - Aspectos sociais. 2. Participação social. 3. Redes de rela-
ções sociais. 4. Tecnologia - Aspectos sociais. I. Antoun, Henrique.
08-4483. CDD: 303.484
CDU: 316.42
SUMÁRIO
Apresentação – As transformações da participação
na sociedade hiperconectada
Henrique Antoun
Perspectiva histórica – De uma teia à outra:
a explosão do comum e o surgimento da vigilância participativa
Henrique Antoun
PARTE 1 – NOVAS CONFIGURAÇÕES DA PARTICIPAÇÃO:
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E JOGO
Por um novo conceito de comunidade:
redes sociais, comunidades pessoais, inteligência coletiva
Rogério da Costa
Comunicação e práticas sociais no espaço urbano:
as características dos dispositivos híbridos móveis
de conexão multirrede (DHMCM)
André Lemos
G.A.M.E.S. 2.0 – Gêneros e gramáticas de arranjos
e ambientes midiáticos moduladores de experiências
de entretenimento, sociabilidades e sensorialidades
Vinícius Andrade Pereira
PARTE 2 – PRODUÇÃO PARTICIPATIVA:
CAPITAL SOCIAL E GERAÇÃO DO COMUM
Modelos de colaboração nos meios sociais da internet:
uma análise a partir dos portais de jornalismo participativo
Fábio Malini
O aspecto relacional das interações na Web 2.0
Alex Primo
Práticas de sociabilidade em sites de redes sociais:
interações e capital social nos comentários do Fotolog.com
Raquel Recuero
O seu buscador lhe satisfaz? A folksonomia como alternativa
de representação e recuperação de informação na Web 2.0
Maria Clara Aquino
PARTE 3 – PARTICIPAÇÃO E MONITORAMENTO:
A NOVA FACE DA VIGILÂNCIA
Monitoramento, classificação e controle
nos dispositivos de vigilância digital
Fernanda Bruno
Quem procura, acha? O impacto dos buscadores
sobre o modelo distributivo da World Wide Web
Suely Fragoso
PARTE 4 – PARTICIPAÇÃO E VIOLÊNCIA TRANSPOLÍTICA
Visibilidade mediática e violência transpolítica na cibercultura:
condição atual da repercussão social-histórica do fenômeno
glocal na civilização mediática avançada
Eugênio Trivinho
PARTE 5 – A PAIXÃO PARTICIPATIVA: VISIBILIDADE E MEMÓRIA
Crônicas da boneca desejada: fantasias da vida virtual
Beatriz Jaguaribe
Em busca da aura perdida:
espetacularizar a intimidade para ser alguém
Paula Sibilia
Cérebro, corpo e subjetividade na tecnocultura contemporânea
Maria Cristina Franco Ferraz
WEB 2.0
Apresentação
As transformações da participação
na sociedade hiperconectada
Henrique Antoun
Desde que a internet emergiu para o público em 1984 através das BBS,
e se popularizou a partir de 1995 com a emergência da web, muitas previ-
sões e especulações circundaram suas manifestações. Uma recorrente crô-
nica da revolução eletrônica e da comunicação libertária rondou a rede a
partir de seu surgimento. Entretanto, a partir da virada do milênio, a teia
eletrônica traçada na internet pela web vai conhecer um crescimento de pú-
blico e manifestações que a colocam entre as mais surpreendentes mídias
já feitas pelo homem.
Hoje, o enigma do poder dessa rede esbarra na explosão participativa
proporcionada por ela, gerando uma inumerável produção de conhecimen-
to, entretenimento e experimentação criativa com a qual está envolvido o
homem comum do meio social. Para compreender as transformações im-
pulsionadas pela radicalização da participação na rede propiciada pela nova
fase da web, reunimos alguns dos principais pesquisadores da cibercultura
para mapear este rico universo de mudanças sociais e individuais.
Em um primeiro esforço de compreensão, Antoun vai traçar uma pers-
pectiva histórica que ressalta as mudanças sofridas pelas mídias com a
entrada em cena da rede. Nesse delineamento, mas diferentes fases são
abordadas para sublinhar a estranheza do fenômeno da participação a partir
de sua conexão com a rede e a necessidade de se estudar o amplo espectro
de suas modificações.
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AS TRANSFORMAÇÕES DA PARTICIPAÇÃO NA SOCIEDADE HIPERCONECTADA
A primeira parte vai tratar das novas configurações trazidas pela partici-
pação na rede para a comunidade, o território e o jogo. Costa procura enfo-
car a importância do interesse – o que se passa entre os seres – para a nova
face da comunidade formada pelas práticas da rede. A parcialidade das pai-
xões proposta por Hume vem em seu auxílio para explicar as novas relações
sociais. Lemos, por sua vez, tematiza as novas territorialidades produzidas
pelos dispositivos móveis conectados em rede. A cidade será profundamente
modificada pela apropriação feita através dos novos dispositivos, gerando
novos meios de reterritorialização urbana pelos coletivos. Pereira, por sua
vez, fala das transformações sensoriais que os jogos em rede proporcionam,
reordenando o universo sensível do homem conectado.
A segunda parte está focada na vasta produção que a participação na
rede efetua pondo em relevo a geração do comum e o novo lugar do capital
social. Malini trabalha os diferentes modos de se apropriar da produção
em rede e os riscos inerentes às suas formas. Primo, por sua vez, procu-
ra compreender a mudança trazida pelas interações nas redes peer-to-peer
para os papéis constantes nos aspectos relacionais do interacionalismo sim-
bólico. Recuero aborda as práticas de sociabilidade nos fotologs, visando
demonstrar que eles constituem redes sociais produtoras de rico capital
social. Aquino abraça a tese da folksonomia como uma alternativa para a
navegação em face da comercialização desenfreada dos resultados obtidos
nos buscadores tradicionais.
A terceira parte enfrenta o problema da nova face da vigilância atra-
vés do monitoramento dos dados produzidos pela participação. Bruno vai
tematizar as novas formas de vigilância de dados, ligando-as à produção
dos perfis e às novas questões surgidas desse enlace. Fragoso, por sua vez,
aborda o falseamento de resultados obtidos nos buscadores a partir da tor-
ção introduzida pelo monitoramento das buscas com fins publicitários.
Na quarta parte, Trivinho chega à compreensão da violência transpolíti-
ca, construindo o conceito de visibilidade mediática para avaliar sua reper-
cussão social e histórica como parte do fenômeno glocal.
Na última parte, a participação é avaliada como uma paixão constituída
pelo entrelaçamento da visibilidade com a memória. Jaguaribe vai refletir a
paixão pelo indiscernimento entre real e virtual através do investimento das
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WEB 2.0
ciberbonecas, ocasionando uma forte torção no território da fantasia. Sibi-
lia ressalta a espetacularização da intimidade como estratégia de penetra-
ção na memória para habitar a lembrança. Ferraz vai abordar a concepção
fisicalista da memória para encurralar seus pressupostos através da atitude
de guardar e apagar que a caracterizariam.
Embora não tenha pretensão de esgotar o tema, esta coletânea vem
contribuir, decisivamente, para a compreensão das modificações da par-
ticipação social. Para tanto, conta com a qualidade e a seriedade dos pes-
quisadores aqui reunidos. Sua ampla abordagem de tão recente e instigante
fenômeno da comunicação certamente auxiliará seu entendimento, permi-
tindo fazer face a seus desafios. A Web 2.0 e sua explosão participativa são,
hoje, o vivo convite para a decifração da relevância social da comunicação
distribuída e sua nova era.
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WEB 2.0
Perspectiva Histórica
De uma teia à outra: a explosão do comum e o
surgimento da vigilância participativa
Henrique Antoun*
Introdução
A discussão sobre a transformação produzida pela internet no modelo
centralizado de produção e comunicação massiva remonta ao final dos anos
1980 e início dos 1990. Mas a discussão sobre o que será chamado de Web
2.0, por Tim O’Reilly (2005), emerge na virada do milênio, quando o sítio,
posteriormente transformado em livro, chamado Cluetrain Manifest – ain-
da sob o impacto da manifestação de Seattle de novembro de 1999 –, resol-
ve encarar o desafio de conversar sobre a mudança na comunicação e nos
negócios a partir do surgimento de um público auto-organizado e participa-
tivo. O consumidor tornara-se um usuário cada vez mais exigente, capaz de
interagir e se comunicar através da internet usando os mais diferentes tipos
de dispositivos de comunicação. A mediação da publicidade ou dos gran-
des mídia estava sendo trocada pelas interações e recomendações obtidas
através das redes sociais (Levine, Locke, Searls & Weinberger, 2000). A
* Professor associado da ECO–UFRJ (1998) e pesquisador do núcleo principal
do Programa de Pós-graduação de Comunicação da UFRJ (2001). Desenvolve
pesquisa com Bolsa de Produtividade do CNPq (2007) no Ciberidea – Núcleo
de Pesquisa em Tecnologia, Cultura e Subjetividade. Este trabalho faz parte do
projeto de pesquisa que o CNPq financia.
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DE UMA TEIA À OUTRA
mediação tinha fugido da mão dos grandes mediadores e agora estava em-
butida no código das interfaces através dos protocolos (Galloway, 2004),
programas (Lessig, 1999) e agentes (Johnson, 2001), privilegiando os pro-
cessos interativos de parceria informal dos sistemas peer-to-peer típicos
das redes sociais (Bauwens, 2002; Minar & Hedlund, 2001).
Antes da internet ocupar o centro do debate comunicacional, havia se
tornado um lugar comum considerar o modelo indutivo hermenêutico da
mídia de massa um padrão para o estudo da mediatização na sociedade
contemporânea. O caráter hipnótico da emissão de uma mensagem com
frequência intensa e amplamente distribuída casa-se com a sua sonâmbula
recepção de extensa ressonância, configurando uma massa estúpida que
reproduz a disposição que lhe foi sugerida nesse processo feito à base de
redundância. Empiricamente, isso se traduz pela repetição regular de ideias
associadas, expressões ou tipos de imagens através de diferentes meios
concorrentes, gerando a sensação de realidade amparada na familiaridade
trazida pela regularidade da repetição (Deleuze & Guattari, 1980).
O funcionamento desse modelo em um ambiente democrático implicou
um realinhamento de toda a mídia feito pela televisão e uma transforma-
ção na organização empresarial das grandes corporações comunicacionais,
similar ao modelo que já funcionava na indústria de entretenimento. As
fusões e aquisições dos anos 70 na esfera das grandes empresas de comuni-
cação vão gerar as grandes redes corporativas globais de informação, cujo
novo gerenciamento se faz baseado nos interesses financeiros da empresa
através da participação acionária de seus editores e da entrada do marketing
no círculo de decisão editorial. O compromisso das editorias com o bran-
ding e a lucratividade da rede empresarial corporativa ocasiona uma mega
homogeneidade de temas e assuntos em escala global, alinhando a grade de
notícias, mesmo nas mais remotas localidades, em um efeito de imitação em
cascata. O tema da tirania da comunicação (Ramonet, 1999) encontra nesse
quadro sua fonte de inspiração, embora os tradicionais críticos da comunica-
ção de massa prefiram atribuí-lo às velhas vicissitudes do imperialismo.
A abordagem feita pela teoria da recepção e dos estudos culturais pro-
cura abrandar uma visão apocalíptica desse fenômeno, lembrando-nos
que ninguém pode sonambular indefinidamente, e mesmo um sonâmbulo
precisa acordar de vez em quando. Essa teoria vai valorizar a capacidade
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WEB 2.0
do receptor de construir seus próprios nexos e significados fazendo uma
leitura original do que lhe é enviado pelo emissor. O processo comunica-
cional seria, de fato, parte do processo cultural, tendo o receptor o mesmo
tipo de liberdade que um novo membro formado em alguma cultura. De
qualquer maneira, uma liberdade de leitura e interpretação não é o mesmo
que uma liberdade de construção e emissão. Mesmo o leitor mais ativo é
ainda passivo na perspectiva da luta para produzir a informação capaz de
transformá-lo em um sujeito com atividade e autonomia. Sobretudo quan-
do a homogeneidade da atividade editorial se presta à condução das guerras
de informação que hoje orientam a competição na política e nos negócios
(Kopp, 2000; Arquilla & Ronfeldt, 2001).
O fato que sobressai é o quanto a teoria da recepção parece ingênua
em face da realidade da guerra da informação, que tem, como um de seus
fundamentos, a disciplina do gerenciamento da percepção, dirigido, essen-
cialmente, para o uso da informação com o fim de confundir, decepcionar,
desorientar, desestabilizar e desbaratar uma população ou um exército ad-
versário (Kopp, 2000). O importante, nessa guerra, é a inserção de falsi-
dades na percepção do adversário, prevenindo-se de que ele possa fazer o
mesmo, e a adivinhação de seus segredos, garantindo um domínio na con-
dução da ação pelo poder de decepção adquirido. Em termos gerais, toda
operação conduzida para explorar informações para obter uma vantagem
sobre um oponente e para negar ao oponente informações que poderiam lhe
trazer uma vantagem faz parte da guerra de informações (Kopp, 2000).
Não há muitas dúvidas de que a massa é um alvo de mafuá para as
grandes redes de comunicação e de que estas últimas são um meio indefeso
para a resistência às guerras de informação travadas diariamente através
delas (Schwartau, 1995). Não se vive mais em sociedades de cultura uni-
ficada ou hegemônica, cuja reprodução social se faz através de processos
culturais homogêneos, como supõe uma bolorenta hipótese antropológi-
ca. Vive-se na fábrica social onde as populações lançam mão dos mais
diferentes processos culturais em conflito. Enquanto os diversos proces-
sos culturais procuram reproduzir os meios e os modos de vida capazes
de ampará-los, as populações misturam diferentes partes desses diversos
processos, misturando-as e recombinando-as em busca de sua autonomia
(Negri & Hardt, 2001).
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DE UMA TEIA À OUTRA
A conversa no Cluetrain Manifest realinhava toda essa temática, pen-
sando a comunicação na internet como uma profunda transformação nas
relações entre público e empresas. O público estaria farto dos caras-de-pau
risonhos que impulsionam a venda nas televisões e desconfiaria cada vez
mais do que as empresas lhe endereçariam através dos canais de propagan-
da e marketing. A internet teria emponderado uma demanda de participa-
ção, produção e honestidade incompatível com as comunicações invasivas
e unilaterais (Levine, Locke, Searls & Weinberger, 2000).
A proliferação do comum
A discussão sobre a internet dos anos 90 envolvia o debate sobre o esta-
tuto das comunidades virtuais – se eram comunidades “por assim dizer” ou
reais – e as transformações que o nascente espaço das páginas web traziam
para essa realidade. Isso, porque o modelo para entender as manifestações
comunicacionais sediadas no ciberespaço permanecia preso às hipóteses
correntes para as mídias de massa irradiadas. Enquanto alguns teóricos vão
querer ver no ciberespaço uma mera plataforma para o desenvolvimento da
mídia de massa tradicional (Cole & Suman, 2000), outros vão ligar os fenô-
menos da hipermídia à comunicação interpessoal, por ser esse o lugar tradi-
cional da interatividade no campo do conhecimento (Katz & Aspden, 1997).
Os grupos de discussão que vão emergir nos anos 80, constituindo a rede
Usenet e a base das comunidades virtuais então nascentes, se organizavam
em torno da partilha do conhecimento sobre algum tópico ou tema de inte-
resse (Rheingold, 1993). Essa maneira de se ordenar constrói redes sociais
visíveis e duradouras, contribuindo para o seu crescimento e proliferação.
Diferentes das instituições ou dos grupos, as redes sociais fazem circular,
através de seus canais, notícias, dicas, interesses no seio de uma comunidade
que partilha certas atividades e age coletivamente. O canal de uma rede social
é formado pela interação entre seus membros. Em termos do conhecimento,
uma grande economia se faz quando os problemas da ação coletiva podem
ser resolvidos de modo simples e econômico por alguma tecnologia de co-
municação (Kollock & Smith, 1996). As redes sociais promovem comunida-
des de atividade ou interesse, em vez dos grupos de opinião da imprensa ou
das massas de consumo da mídia irradiada (Antoun, 2004a).
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WEB 2.0
Já as páginas web foram construídas a partir da necessidade de se fazer,
de forma simples, fácil e dinâmica, a produção de um documento virtual
com o material produzido de modo independente e disperso sobre certo
assunto. Tim Berners-Lee criou o universo das teias de comunicação para
automatizar a confecção de documentos a partir do material espalhado na
rede. Desse modo, o endereço virtual do sítio atrairia e ordenaria textos,
imagens, sons e vídeos, disponibilizando um documento organizado in-
formacionalmente (Berners-Lee, 1989; Berners-Lee & Cailliau, 1990). As
páginas web fizeram da internet um espaço hipermediatizado, gerando um
local concentrador de informações sobre alguém, algo ou algum assunto.
Esse espaço foi apropriado pelos participantes das comunidades virtuais,
criando os sítios das comunidades ou seus anexos que disponibilizavam
seus diversos materiais (Gillies & Cailliau, 2000).
Há quem considere o sítio Slashdot o antepassado dos blogs e do tipo
de comunicação coletiva da Web 2.0. Nesse sítio, era proposta alguma dis-
cussão sobre algum tema ligado à tecnologia computacional. Para propor
a conversa, conectavam-se alguns documentos com alguma notícia atual.
O sítio era formado por programadores envolvidos com o movimento liga-
do ao sistema operacional GNU/Linux e a programação com fonte aberta
(open source) à modificação pelos usuários. Embora o sítio tenha começa-
do como uma ação entre uns poucos amigos participantes do movimento
open source, foi tendo sua leitura e participação ampliada e obrigou seus
criadores a inventarem modos de possibilitar essa expansão sem sacrificar
seu caráter autônomo e informal. Eles criaram, então, os elementos que
vão caracterizar a comunicação coletiva da internet. Além do já existente
espaço para os comentários dos participantes, surgiu a enquete automatiza-
da, em que cada participante podia pontuar a participação dos outros, atri-
buindo uma nota para cada comentário. Com isso, aparecia um instrumento
capaz de avaliar o valor e o peso das opiniões na comunidade, gerando um
grupo de produtores e opinadores com valor acumulado para se tornarem
moderadores temporários dos materiais diariamente propostos. Além disso,
foram criadas páginas para que os frequentadores pudessem dar livre vazão
a suas opiniões (Rheingold, 2002; Martins, 2006). Quando a bolha eco-
nômica dos investimentos em negócios da internet estourou, foram sítios
como a Amazon ou o E-bay que haviam adotado instrumentos como os do
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DE UMA TEIA À OUTRA
Slashdot aliados à implementação de mina de dados e uso de agentes de
rede, que se revelaram como negócios rentáveis. Ao contrário dos proces-
sos irradiativos comunicacionais, o público se alimentava do resultado de
sua própria participação na comunicação distribuída.
Desde os 80 que os movimentos de advocacia social e a geração das
organizações não-governamentais estavam fortemente condicionados ao
uso dos grupos de discussão e da utilização das BBS. E foi a gestão de in-
formação impulsionada por essas redes interativas que fez da comunicação
distribuída uma das principais armas na luta contra os governos disciplina-
res e as megacorporações nesse período (Rheingold, 1993). A eficácia da
reunião da ação militar desmanteladora com o controle total da distribuição
da comunicação, que mantinha os governos disciplinares do bloco sovi-
ético subjugados, vai conhecer seu colapso funcional com a entrada em
cena da internet na comunicação globalizada (Arquilla & Ronfeldt, 1996;
Antoun, 2004). Por outro lado, as guerras de informação dos Estados e cor-
porações contra as redes dos movimentos sociais vão esbarrar na dinâmica
transversal dos grupos de discussão, que vão garantir a integridade dessas
redes nesse desigual embate (Arquilla & Ronfeldt, 1996; Rheingold, 1993,
Cleaver, 1995).
Nos anos 90, o poder integrador das páginas web e do universo que
formavam trouxe para a comunicação distribuída a reunião dos diferentes
movimentos em ações coletivas, seja para empreender uma luta comum,
seja para construir uma atividade comum. A dinâmica da distribuição das
informações e dos debates desenvolvidos pelos grupos de discussão se alia
à gestão do conhecimento como um bem comum de todos das páginas web
e sítios virtuais. A paixão dispersiva das opiniões e ideologias e a paixão
concentradora do consumo e dos gostos encontram sua remediação na mí-
dia interativa de comunicação distribuída (Bolter & Grusin, 1999). Nasce
a guerra em rede (netwar), que permite aos movimentos sociais lutarem
vantajosamente contra Estados e corporações (Arquilla & Ronfeldt, 1996).
O movimento zapatista, nascido em 1994, será o principal exemplo desse
poder e a principal escola de aprendizado para ONGs e movimentos sociais
(Arquilla, Ronfeldt, Fuller & Fuller, 1998; Cleaver, 1994).
Duas novas modalidades de ação emergiam com a guerra em rede. A
primeira nasce da reunião dos grupos de discussão com as páginas web,
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WEB 2.0
reunião que vai trazer segurança para a comunicação anônima entre par-
ceiros na rede – pois os instrumentos interativos de busca e enquete da
comunicação distribuída tornam o anonimato reputável. Na medida em que
me mantenho no âmbito da ação empreendida pela rede, sei que posso con-
fiar em meu desconhecido parceiro através das informações que a rede me
oferece automaticamente a seu respeito, produzidas pelo histórico de sua
participação e pelas enquetes feitas com o resultado das interações passa-
das de outros membros da rede com ele (Rheingold, 2002). Esse tipo de
informação impulsiona as organizações sem líder (leaderless) como for-
ma privilegiada de ordem nas comunidades virtuais (Arquilla & Ronfeldt,
2001; Starhawk, 2000; Armond, 2000; Cleaver, 1994).
A segunda é a zoação, ou enxameamento (swarm), e o movimento de
afluência (swarming) como táticas de luta. Através desse tipo de ação posso
transformar, instantaneamente, qualquer lugar em uma praça de guerra. A
rede, sobretudo a rede sem fio, permite coordenar a reunião e a dispersão
dos participantes anônimos de uma ação distribuídos em pequenos agrupa-
mentos (Arquilla & Ronfeldt, 2000; Starhawk, 2000; Armond, 2000). Como
previsto no projeto original da internet, era possível manter a segurança, o
anonimato e a integridade da comunicação entre aliados em um processo
de luta qualquer. O rosto eternamente encoberto do subcomandante Marcos
exprimia essas qualidades na rede zapatista, fazendo dos seus comunicados a
voz anônima do coletivo, pois o rosto e a voz de Marcos eram os de qualquer
um que pertencesse à rede (Cleaver, 1999; Antoun, 2004b).
Teria essa primeira web sucumbido ao seu sucesso participativo? Pois
foi o sucesso dessa primeira web que gerou o zapatismo em 1994, culmi-
nando com a marcha zapatista de Chiapas à cidade do México em 2001, ou
os Fóruns Sociais Mundiais, iniciados no Brasil e tendo uma apoteose em
2001 na cidade de Gênova, sem mencionar as grandes manifestações con-
tra as redes globais de regulamentação, iniciadas em Seattle em 1999 (Antoun,
2004b). O atentado de 11 de setembro põe esse sucesso na contramão, rachando
a instável aliança desses movimentos com seus participantes e a opinião pública
globalizada.
A Web 2.0 e os blogs vão se tornar a principal maneira de se comunicar
na internet, logo depois dos sítios e dos grupos de discussão enfrentarem
seu colapso comum no seio do processo da radicalização da guerra em
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DE UMA TEIA À OUTRA
rede. Foi a partir do recrudescimento do zapatismo, por um lado, e dos mo-
vimentos globais de resistência iniciados em Seattle, por outro, que a velha
teia sem aranha esbarrou em sua fronteira. Era como se o atentado de 11 de
setembro impetrado pelo Al Qaeda revelasse um limite para a primeira in-
ternet, mas, ao mesmo tempo, apontasse a necessidade de ultrapassar esse
limiar com a transformação de suas práticas. Pois, desde o início, a internet
dera aos movimentos e às atividades sociais uma crescente emancipação em
face das instituições e das comunidades tradicionais, permitindo que a in-
formal fluidez dos movimentos sociais ganhasse força e duração através dos
processos interativos da comunicação distribuída em rede (Cleaver, 1999).
Mas os limites dessa expressão serão apropriados pelas empresas e Es-
tados e voltados violentamente contra esses movimentos a partir do final
de 2001. As violentas e intermináveis guerras verbais (flame wars), os pa-
lhaços que falam de tudo para aparecer, os ególatras que acham que sabem
mais do que ninguém sobre algo, os trogloditas (trolls) que gostam de ofen-
der e humilhar os participantes das discussões dos grupos de interesse, as
desfigurações (defacements) dos sítios por seus antipatizantes, os ataques
de negação de serviço (DDOS) aos sítios tornados alvos, as derrubadas e
sequestros de redes, computadores e salas de bate papo (chat rooms) do
universo web, tudo isso refluiu no seio dos movimentos da multidão, esfa-
celando suas práticas.
Um exemplo significativo pode ser visto através do colapso do tradicio-
nal grupo de discussão formado para organizar os congressos hackers da
série Hope, em 2001/2002, sob o impacto dos efeitos do atentado. Até o con-
gresso de 2000, a lista de discussão capitaneada pelo grupo 2600 mantinha
uma coesão em suas posições, mas, após o atentado, o grupo rachou, e os
hackers a favor de cooperar com a guerra e os EUA contra os fanáticos e os
comunistas vão se chocar violentamente com os libertarianos anárquicos e os
vegetarianos indies contrários à guerra e ao Governo Bush. A lista naufragou
em meio ao ódio, racismo e intolerância generalizados. Para o congresso dos
hackers de 2004, um blog substituiu a tradicional lista de discussão, abrigan-
do um fórum de debates. Em julho de 2008, foi realizado o último congresso,
pondo um ponto final na principal atividade do 2600.
Após o atentado, os grupos foram submersos pela avalanche de pa-
lhaços, ególatras e trogloditas, e as páginas web sucumbiram aos desfi-
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WEB 2.0
guradores e invasores. Isso, acrescido aos spams decreta a morte da Web
1.0, abrindo espaço para a nova web e seus filtros eficientes, mineração de
dados miraculosa e redes sociais promissoras.
A revolução do controle
A conversa a partir do início do novo século vai girar em torno da Web
2.0 com seus blogs, wikis, folksonomics, youtubes, formando redes sociais:
teria a rede construído uma mídia totalmente democratizada e acessível
para os homens comuns publicarem suas produções, seus conhecimentos e
exprimirem suas opiniões? Há mesmo quem diga que a Web 2.0 é o blog
e que o universo www começou na internet como web logs – as páginas
hipertextuais que remetiam para os sítios e seus conteúdos. Não fosse a
emergência das interfaces de redes sociais e uma vaga sensação de engodo
que nos acomete, poderíamos nos entregar cegamente a essa interpretação.
De fato, chama a atenção que no blog haja certa fusão de elementos fun-
damentais dos grupos de discussão com características determinantes das
páginas web temperadas pelos novos instrumentos de controle.
Como já havíamos apontado, o movimento da Web 2.0 começa em
2000 no blog do Cluetrain Manifest, onde publicitários, marketeiros e em-
preendedores pensam a internet como um lugar capaz de revolucionar a pu-
blicidade, o marketing e os negócios (Levine, Locke, Searls & Weinberger,
2000), desgastados com a violência e a estupidez da mídia proprietária de
massas e seu modelo invasivo, caro e coercitivo (Rushkoff, 1999). A inter-
net devia ser como o blog: uma plataforma na qual programas open sour-
ce tornariam o conhecimento de programação desnecessário e tornariam o
usuário um produtor e cooperador das empresas (Levine, Locke, Searls &
Weinberger, 2000; Rheingold, 2002).
Na nova web, a publicidade encontraria a nova voz dos grupos da cul-
tura da mídia que transformariam a publicidade em uma honesta recomen-
dação crítica dos usuários. Os usuários se transformariam em sócios das
empresas através de sua cooperação interessada, na mesma medida em que
as empresas reconhecessem seu valor e garantissem sua livre expressão e
participação. Mercados seriam espaços públicos repletos do som da vida:
as conversações. Mercados não seriam a produção em massa do mundo
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DE UMA TEIA À OUTRA
industrial conduzindo as grandes corporações a se engajarem no marketing
de massa, entregando “mensagens” para uma horda indiferenciada que não
quer recebê-las. A cooperação, a colaboração e a livre expressão seriam os
instrumentos dessa nova web, que uniria empresários e usuários através da
livre comunicação em um poderoso ambiente de negócios cooperativos e
integrados (Levine, Locke, Searls & Weinberger, 2000).
O atentado de 11 de setembro contra as torres gêmeas faz refluir as
manifestações contra as redes de poder do mundo globalizado. Ao mesmo
tempo, uma série de novas ferramentas e aplicações povoa a internet. Os
blogs se multiplicam e crescem em importância como fonte de informação.
As redes peer-to-peer se disseminam e a troca de arquivos torna-se incon-
trolável. A escrita coletiva das wikis se multiplica na esteira do sucesso
da enciclopédia online Wikipedia. Inúmeros serviços tornam-se sítios, fei-
tos pela mescla de comandos de outros sítios para criar serviços originais.
Inúmeros pequenos aplicativos (add on) se adicionam modularmente aos
grandes programas, fazendo os aplicativos proliferarem, gerando uma eco-
nomia própria apelidada de addonomics.
O caráter participativo da rede se radicaliza, fazendo florescer o inves-
timento em seu filão cooperativo e colaborativo. Os negócios da rede que
procuram explorar a propriedade privada da informação fracassam em sua
maioria, enquanto os que se baseiam na potência da comunicação e no jogo
das parcerias crescem e se disseminam (Antoun, 2004a). Se considerarmos
que as participações comunitárias das populações em atividades coletivas
voluntárias constituem um capital social, a internet parecia estar gerando as
novas mídias de promoção desse capital, para fazer frente ao capital finan-
ceiro característico do caráter parasitário do capitalismo na nova produção
globalizada (Negri & Hardt, 2001).
Desde os anos 80 que a luta política democrática terminava no confron-
to de dois tipos de candidatura: uma impulsionada pela fartura de dinheiro,
e a outra pela participação dos grupos sociais. Por outro lado, o trabalho
imaterial (Lazzarato & Negri, 2001) arregimentava contingentes cada vez
maiores em projetos colaborativos, como o GNU/Linux e a Wikipedia, em
contrapartida aos projetos altamente monetizados. Mesmo estes últimos,
a exemplo da Amazon ou do E-bay, precisavam gerar uma grande partici-
pação voluntária para fazer sucesso. Para muitos, o peer-to-peer havia se
20
WEB 2.0
tornado a base de uma nova economia de compartilhamento (sharing eco-
nomy), constituindo a riqueza das redes (Benkler, 2006; Bauwens, 2005).
A vigilância participativa
Na esteira dessa participação, grandes fluxos de dados eram produzidos
diariamente na rede em todo o mundo, ganhando visibilidade nas ferramen-
tas de busca através do monitoramento das pesquisas. Esses fluxos consti-
tuem a matéria-prima da criação das imensas minas de dados que vão gerar
a base da riqueza dos sítios, na medida em que agentes de rede fossem cria-
dos para explorá-las. Os blogs e, depois, os sítios de rede social emergem
como locais capazes de promover essa nova corrida do ouro. Perfis ricos
em informação nas redes sociais eram capazes de fazer aparecer padrões
inusitados, unindo dados aparentemente desconexos. Essas amplas grades
de tendências fazem com que a característica de perfil “se julgar atraente”
venha a se conjugar com livros de negócio, filmes eróticos, música-disco e
atividade física, podendo resultar na escolha de uma carreira em relações
internacionais ou ciência política (Adamic, Buyokkokten & Adar, 2003).
Mas esse fenômeno da vigilância de dados está longe de se confundir
com a antiga vigilância panóptica. Ela se conjuga com uma profunda mu-
dança nas formas de fazer negócio e se funda nos movimentos de participa-
ção. Na esteira dessa participação, vai emergir uma economia fundada na
cauda longa dos gráficos de distribuição de energia, que vieram substituir
a popular curva de sino, formada pela curva de Gauss. Até há bem pouco
tempo, a curva de sino era sinônimo da justeza da democracia represen-
tativa e do bom funcionamento do mercado de massas. Ela amontoava a
maioria dos dados em sua região central com queda súbita e acentuada nas
laterais. Essa característica era interpretada como reveladora da grande ho-
mogeneidade dos indivíduos entre si e da pouca importância de suas discre-
pâncias individuais. Desse modo, os poucos produtos de agrado da maioria,
assim como a representação de muitos por poucos, podiam ser apontados
como adequados para exprimir o gosto e o desejo geral. A maioria, ou a
massa, habitaria o centro e não os extremos da curva.
Já o gráfico de distribuição de energia parecia guardar um significado
profundamente antidemocrático, associando-se com a curva do economista
21
DE UMA TEIA À OUTRA
italiano Pareto e sua fórmula de que, em qualquer ramo de atividade, 20%
dos produtores fazem 80% dos produtos. A modelização matemática vai
revelar a correção dessa fórmula para todos os campos de atividade, sejam
eles constituídos por células, neurônios ou sítios da web. Esse tipo de grá-
fico supõe que o rico ficará mais rico e que o vencedor poderá ganhar tudo,
monopolizando o mercado (Barabási, 2002). A internet, porém, mudara o
sentido desses gráficos. À medida que a atenção se desloque dos poucos
dominantes para a cauda contínua e ilimitada que o gráfico traça, surge uma
oportunidade diferente para a organização do mercado. Como o comércio
em rede pode oferecer uma vasta quantidade de produtos sem sofrer com
os custos de estocagem, e pode fornecer sistemas eficazes de busca e oferta
inteligentes através das minas de dados e agentes, o verdadeiro tesouro do
negócio se transfere para o que habita a cauda do gráfico. A cabeça do grá-
fico se achata e a cauda cresce consideravelmente. Entra-se em uma econo-
mia de nicho, na qual a vasta diferença entre as coisas se conjuga com sua
qualidade e reputação (Anderson, 2006). Mudamos de uma produção de
poucos produtos para uma massa, para uma produção de muitos produtos
para muitos nichos.
A Web 2.0, entretanto, está longe de ter sua principal significação cir-
cunscrita à transformação mercadológica, como muitas vezes a discussão
capitaneada por O’Reilly (2005) parece sugerir. Em 2003, essa nova web
mostra seu poder político, auxiliando os movimentos contra a guerra do
Iraque a promoverem a primeira manifestação internacional descentrali-
zada de massas através do blog do Move On. Pouco depois, ela mostra
sua força novamente, arrecadando, através do blog Dean for América, 40
milhões de dólares em contribuições de 50 e 100 dólares para o candidato à
indicação do partido democrata Howard Dean (Trippi, 2004). Independen-
temente de serem considerados os espaços de uma personalizada “escrita
de si”, os blogs guardavam o poder organizador das páginas web reunido
ao poder noticiador dos grupos de discussão. E os códigos impulsionados
pelos programas de fonte aberta permitiam que novas aplicações fossem
inventadas a partir dos fluxos de comunicação de base produzidos pelos
usuários (Antoun & Pecini, 2007).
Se, em 2003, o New York Times vai celebrar a opinião pública global
como quarto poder por sua manifestação contra a guerra, capitaneada pelo
22
WEB 2.0
Move On, que vai formar uma parceria com os ativistas mais atuantes em
todo o mundo (Antoun, 2006), em 2006 a tradicional revista Times vai ele-
ger o anônimo “você” como homem do ano, pela cooperação generalizada
promovida através da nova web entre usuários e empresas, com o YouTube
sendo apresentado como principal exemplo (Antoun & Pecini, 2007).
Uma coisa chama de imediato a atenção: tudo na Web 2.0 já nasce com
filtros de palhaço, derrubadores de ego, pesquisadores de opinião, contro-
ladores de spam e mineradores de dados – todos os antídotos contra as ma-
zelas da primeira web (Martins, 2006). Um sítio como o Digg pode surgir
como uma promissora empresa da nova economia, tendo todo o seu traba-
lho realizado pela interação entre os instrumentos de classificação e enque-
te da interface e a produção dos blogs na web. Um trabalho inteiramente
colaborativo, com a cooperação emergindo da conexão dos blogueiros com
as ferramentas da interface (Antoun & Pecini, 2007).
A revolta no Digg, quando da divulgação da chave criptográfica das
mídias de alta definição, revelou um estremecimento nessa imagem idílica.
Em uma nova versão das antigas revoltas de trabalhadores, os pretensos
“sócios,” que até então trabalhavam graciosamente para o empreendimento
bilionário, resolveram pôr de lado a cooperação e partiram para a guerra,
forçando a empresa a fazer várias reviravoltas até acomodar a situação. Era
como se o espírito da velha web se insurgisse e trouxesse de volta todo o
conflito varrido para debaixo do flash, com direito a hackers, protestos e
revoltas (Antoun, Lemos & Pecini, 2007).
A Web 2.0 sempre parecera um modo de exorcizar a revolução demo-
crática da multidão despertada em Seattle. Os protestos de então traziam a
internet para as ruas, bradando contra o modelo irradiativo e massivo da in-
dústria, do comércio, da mídia e dos governos (Antoun, 2001). O atentado
de 11 de setembro autorizou o forte controle dos aeroportos que bloqueou
os ataques de afluência (swarming), enquanto a brutal repressão policial
aos protestos e a institucionalização da tortura em Guantanamo fizeram a
multidão refluir para a web javanizada (Negri & Hardt, 2005).
A nova aliança entre interfaces de redes sociais e blogs, entretanto, co-
meça a ensaiar sua revanche, conduzindo uma revolta de dimensões plane-
tárias que transformam o negro Barack Obama em candidato a presidente
do partido democrata dos Estados Unidos. Essa mesma aliança auxiliou a
23
DE UMA TEIA À OUTRA
derrota do conluio das elites católicas e da mídia proprietária de massas
brasileira nas eleições de 2006. Parece que os velhos métodos de mesme-
rização e repetição ininterrupta funcionam de outro modo na web. Pois os
republicanos nos EUA, assim como as elites brasileiras, despejaram milha-
res de agentes na rede com o seu dinheiro, fazendo-os repetir suas piadas e
insultos infames contra seus adversários. Ao mesmo tempo, orquestraram
um milionário uníssono na mídia proprietária de massas, afinado com seus
interesses. Entretanto, as poucas vozes dissonantes puderam se fazer ou-
vir e soaram fortes o suficiente para neutralizar a irradiação endinheirada.
Diante de tudo isso, parece difícil negar que o capital social pareça ter
encontrado sua mídia na internet para auxiliar a luta do trabalho imaterial
contra o domínio do capital monetário.
Permanece, entretanto, a questão sobre essa curiosa vigilância partici-
pativa, que pode tanto encontrar o livro que busco sem saber em um sítio
ou autorizar uma sanção por precaução contra alguém apontado como pos-
sível futuro criminoso. O banco de dados ainda é da disciplina. Mas ele
não modula mais os exames sofridos pelo corpo – feitos pelos médicos,
professores, chefes, oficiais –, gerando para esse corpo uma história que
lhe empresta a individualidade. O exame foi substituído pelos programas
e processamentos.
A grande novidade, hoje, emerge com a mina de dados, porque ela ex-
trai dos fluxos de informações móveis os bancos de dados dinâmicos e
autorreguláveis. A mina de dados é completamente opaca, completamente
invisível para o sujeito. Ela se faz com agentes de rede que trabalham sem
cessar o fluxo de dados, procurando, através da conexão dos dados, formar
instantaneamente grupos em uma multidão qualquer, tornando essa multi-
dão interativa. Não é mais a história o que interessa para operar a sociedade.
Muito mais importante é o quanto se pode adivinhar a partir dos padrões ge-
rados pelas minas de dados nos fluxos de informação. Importa saber o que
se pode esperar de alguém que é visto em algum lugar determinado, a partir
daquilo que ele apresentar diante do olhar, utilizando os padrões preditivos
existentes sob a forma de perfis. O entendimento deixa de ser uma questão
hermenêutica para se tornar oracular. Essas tecnologias performativas e predi-
tivas funcionam instrumentalizando e controlando as escolhas individuais.
24
WEB 2.0
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28
WEB 2.0
PARTE 1 – NOVAS CONFIGURAÇÕES DA PARTICIPAÇÃO:
COMUNIDADE, TERRITÓRIO E JOGO
Por um novo conceito de comunidade: redes
sociais, comunidades pessoais, inteligência coletiva
Rogério da Costa*
A atual interconexão generalizada entre as pessoas, particularmente no
ciberespaço, tem despertado o interesse dos estudiosos de redes sociais,
dos sociólogos, etnógrafos virtuais, dos ciberteóricos e dos especialistas
em gestão do conhecimento e da informação. Será que a atual vertigem
da interação coletiva pode ser compreendida dentro de uma certa lógica,
dentro de certos padrões? E isso já não teria sido proposto, nos anos 1980,
pelos analistas estruturais de redes sociais, como Barry Wellman e Mark
Granovetter? Quais as diferenças entre os estudos conduzidos pelos teó-
ricos daquela época e as pesquisas realizadas atualmente, inclusive pelos
mesmos autores?
Temas como “inteligência emergente” (Johnson, 2001), “coletivos in-
teligentes” (Rheingold, 2002), “cérebro global” (Heylighen et al., 1999),
“sociedade da mente” (Minsk, 1997), “inteligência conectiva” (Kerckhove,
1997), “redes inteligentes” (Barabási, 2002) e “inteligência coletiva” (Lévy,
2002) são cada vez mais recorrentes entre teóricos reconhecidos. Todos
eles apontam para uma mesma situação: estamos em rede, interconectados
*
Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Semiótica da Pon-
tifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Artigo publicado original-
mente na Revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação. v. 9, n. 17, Botu-
catu, mar.-ago. 2005. A presente publicação contém algumas modificações.
29
POR UM NOVO CONCEITO DE COMUNIDADE
com um número cada vez maior de pontos e com uma frequência que só faz
crescer. Além disso, a forte adoção de dispositivos móveis reforça a ideia
dessa interconectividade, mas incluindo nela a mobilidade dos indivíduos.
A partir disso, torna-se claro o desejo de compreender melhor a atividade
desses coletivos, a forma como comportamentos e ideias se propagam, o
modo como notícias afluem de um ponto a outro do planeta, etc.
Neste breve artigo, sustentamos que a percepção da inteligência coleti-
va e das redes sociais emerge, de forma mais clara, para a consciência dos
indivíduos, quando situações de interação social demonstram que há in-
terdependência entre suas ações. A integração dessas ações é resultado de
um processo de socialização concomitante, processo que integra simpatias,
afetos, interesses, estima. É a essa dinâmica de integrações que chamamos
colaboração. Para a compreensão desses processos, é preciso que se con-
siderem alguns pontos sobre a mudança atual no emprego da ideia mais
tradicional de “comunidade”. De fato, tornou-se mais comum, hoje, en-
contrarmos referências às expressões “comunidades pessoais”, “redes so-
ciais” e, mais recentemente, “individualismo conectado”. Outro ponto a ser
considerado é o conceito de capital social, que nos permite compreender o
tipo de apropriação que temos da ideia de colaboração e como um ambiente
colaborativo pode emergir em várias dimensões na vida das pessoas.
Comunidades
Em meio a todo esse alvoroço no ciberespaço, um termo tão consoli-
dado como o de “comunidade” vem sendo discutido e mesmo questionado
por alguns teóricos. Alguns reclamam sua falência, com um certo tom nos-
tálgico, lamentando seu desgaste e perda de sentido no mundo atual. Outros
apontam para os focos de resistência que comprovariam sua pertinência,
mesmo em meio a nossa sociedade capitalista individualizante. Mas há os
que acreditam, simplesmente, que o conceito mudou de sentido.
Num livro publicado em 2003, intitulado Comunidade: a busca por
segurança no mundo atual, Zygmunt Bauman, sociólogo reconhecido por
seus trabalhos sobre o fenômeno da globalização, procura analisar o que
estaria se passando atualmente com a noção de comunidade. É possível
perceber uma série de conceitos em jogo no texto do autor: individualismo,
30
WEB 2.0
liberdade, transitoriedade, cosmopolitismo dos “bem-sucedidos”, comuni-
dade estética, segurança. Bauman supõe que haja uma oposição entre liber-
dade e comunidade. Considerando-se que o termo “comunidade” implique
uma “obrigação fraterna de partilhar as vantagens entre seus membros,
independente do talento ou importância deles”, indivíduos egoístas, que
percebem o mundo pela ótica do mérito (os cosmopolitas), não teriam nada
a “ganhar com a bem-tecida rede de obrigações comunitárias, e muito que
perder se forem capturados por ela” (Baumann, 2003, p.59).
O texto defende a ideia de que, hoje, comunidade e liberdade são con-
ceitos em conflito:
(...) há um preço a pagar pelo privilégio de ‘viver em comunidade’. O
preço é pago em forma de liberdade, também chamada ‘autonomia’,
‘direito à autoafirmação’ e à ‘identidade’. Qualquer que seja a escolha,
ganha-se alguma coisa e perde-se outra. Não ter comunidade significa
não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto ocorrer, poderá em
breve significar perder a liberdade. (Baumann, 2003, p.10)
É interessante perceber que a aparente oposição entre liberdade e comu-
nidade que encontramos em Bauman deve-se, de fato, ao sentido que ele
atribui à noção de “comunidade”:
(...) tecida de compromissos de longo prazo, de direitos inalienáveis
e de obrigações inabaláveis (...). E os compromissos que tornariam
ética a comunidade seriam do tipo do ‘compartilhamento fraterno’,
reafirmando o direito de todos a um seguro comunitário contra os er-
ros e desventuras que são os riscos inseparáveis da vida individual.
(Baumann, 2003, p.57)
Como é possível notar, para o autor, a vida individual está envolta em
riscos, e querer viver em liberdade deve significar viver sem segurança. Já
a comunidade, o lugar da segurança, remete-nos ao sentido mais tradicional
que conhecemos, em que os laços por proximidade local, parentesco e soli-
dariedade de vizinhanças seriam a base dos relacionamentos consistentes.
31
POR UM NOVO CONCEITO DE COMUNIDADE
Comunidades pessoais
Barry Wellman e Stephen Berkowitz (1988) fazem uma análise bem
mais complexa do conceito de comunidade, que nos traz elementos para
pensarmos diferentemente esse problema. Eles partem do princípio de que
estamos associados em redes, mas por meio de comunidades pessoais. “En-
quanto a maioria das pessoas sabe que elas próprias possuem laços comu-
nitários abundantes e úteis”, dizem,
elas com frequência acreditam que muitas outras não os têm. Como
evidência, invocam imagens comuns de massas de indivíduos se em-
purrando e se acotovelando no caminho em ruas abarrotadas, pessoas
solitárias sentadas diante da televisão, hordas caminhando nas ruas em
manifestações ou fileiras de empregados diante de suas máquinas ou
computadores. (Wellman & Berkowitz, 1988, p.123)
Isso significa que cada um de nós possui uma visão clara da rede de
relacionamentos à qual pertence, mas não é possível perceber facilmente
a rede à qual os outros pertencem. Isso inclui não apenas aqueles que não
conhecemos, mas também os que fazem parte de nossas relações. Pessoas
que conhecemos e com quem temos laços fracos, como afirma Granovetter
(1974), possuem, muito provavelmente, laços fortes com uma rede outra
que desconhecemos.
Wellman e Berkowitz (1988, p.124) lembram que, até 1960, muitos
sociólogos compartilhavam essa crença popular no desaparecimento da
“comunidade” em grandes cidades e gastaram uma grande quantidade de
energia tentando explicar por que isso teria ocorrido. Muito dos seus esfor-
ços centraram-se no aparente cataclismo das mudanças dos últimos dois
séculos, associadas à revolução industrial. Essa revolução teria conduzido,
por exemplo, às novas formas de exploração, à ausência de laços comunitá-
rios e à emergência de novas formas de patologia social, bem como à perda
da identidade pessoal.
Wellman e Berkowitz (1988) afirmam que várias análises recentes so-
frem de uma “síndrome pastoral”, que compara nostalgicamente as comu-
nidades contemporâneas com os supostos velhos bons tempos. É assim que
sociólogos urbanos dizem que o tamanho, a densidade e a heterogeneidade
32
WEB 2.0
das cidades contemporâneas têm alimentado laços superficiais, transitórios,
especializados e desconectados nas vizinhanças e ruas. Com isso, os laços
de família extensos têm se esvaziado e deixado os indivíduos sozinhos
com seus próprios recursos, além de poucos amigos, transitórios e incer-
tos. Como consequência, indivíduos solitários sofrerão mais seriamente de
doenças devido à ausência de suporte social de amigos e parentes. Mas os
autores perguntam-se: essas coisas de fato se desfizeram? Será mesmo que
os laços interpessoais são agora provavelmente em número menor, curtos
em duração e especializados em conteúdo? As redes pessoais estariam se
esgotando tanto assim que os poucos laços restantes serviriam apenas de
base para relações desconectadas entre duas pessoas, no lugar de servirem
como fundação para comunidades mais extensas e integradas?
Novas técnicas de coleta de dados mais sistemáticas, desenvolvidas
desde os anos de 1950, mostraram que as comunidades contemporâneas
não estavam tão mortas quanto se pensava. Por outro lado, e igualmente
importante, pesquisadores começaram a demonstrar que as comunidades
pré-industriais não eram tão solidárias quanto se acreditava. Analisando-se
sociedades de países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos, constata-
se que muitas localidades não possuem comunidades de suporte, redes so-
ciais ou laços de parentesco consistentes. Para Wellman e Berkowitz (1988,
p.125), esses estudos mostram que
as relações dentro dessas sociedades pré-industriais são em geral hie-
rárquicas, com laços de exploração especializados, com uma profunda
divisão separando facções. Além disso, historiadores têm sistematica-
mente usado fontes demográficas e de arquivo para demonstrar que
muitas comunidades pré-revolução industrial eram menos solidárias
do que se pensava.
Ou seja, se respeitarmos o conceito tradicional de comunidade, elas
nem estariam completamente condenadas nas sociedades industriais, e
tampouco seriam encontradas em abundância nas sociedades pré-indus-
triais. O que os recentes analistas de redes apontam é para a necessidade de
uma mudança no modo como se compreende o conceito de comunidade:
novas formas de comunidade surgiram, o que tornou mais complexa nossa
relação com as antigas formas.
33
POR UM NOVO CONCEITO DE COMUNIDADE
De fato, se focarmos diretamente os laços sociais e sistemas informais de
troca de recursos, em vez de focarmos as pessoas vivendo em vizinhanças
e pequenas cidades, teremos uma imagem das relações interpessoais bem
diferente daquela com a qual nos habituamos. Isso nos remete a uma trans-
mutação do conceito de “comunidade” em “rede social”. Se solidariedade,
vizinhança e parentesco eram aspectos predominantes quando se procurava
definir uma comunidade, hoje são apenas alguns dentre os muitos padrões
possíveis das redes sociais. Atualmente, o que os analistas estruturais procu-
ram avaliar são as formas nas quais padrões estruturais alternativos afetam
o fluxo de recursos entre os membros de uma rede social. Estamos diante
de novas formas de associação, imersos numa complexidade chamada rede
social, com muitas dimensões e que mobiliza o fluxo de recursos entre inú-
meros indivíduos distribuídos segundo padrões variáveis.
Individualismo conectado
É dentro dessa nova perspectiva que um artigo mais recente de Bar-
ry Wellman, The glocal village (2004), aponta para uma nova forma de
interatividade, identificada como individualismo conectado. Claro que as
comunidades pessoais foram amplificadas com a emergência das novas
tecnologias de comunicação, mas essas tecnologias também permitiram
que as pessoas pudessem interagir com desconhecidos mais facilmente do
que até então. Assim, em vez de nos deslocarmos apenas entre redes de co-
nhecidos, como nos movemos de um contexto que conhecemos para outro,
o que ocorre hoje é que lidamos com diferentes pessoas (conhecidas ou
não) numa série de contextos, relacionadas com diferentes redes ao mesmo
tempo, eventualmente, e muitas vezes sem nenhuma prioridade específi-
ca. Nesse mesmo cenário, devemos acrescentar as tecnologias móveis, que
também estão mudando os fatores distância e frequência de contatos. De
fato, o que o estilo de vida móvel vem provocando é uma reorganização na
forma de as pessoas se encontrarem, trocarem e comunicarem entre si.
Como assinala Wellman (2004), essa mudança para um individualis-
mo conectado teria acontecido recentemente. Até 1990, os lugares físicos
ainda eram o principal contexto de interação da maior parte das pessoas. E
também os tipos de laços eram, sobretudo, os de sua comunidade pessoal
34
WEB 2.0
(parentes, colegas de trabalho, amigos, colegas em sindicatos, clubes, etc.).
Mas com a revolução das tecnologias de comunicação, houve uma mudan-
ça no padrão de relação entre as pessoas. Digamos que, anteriormente, os
indivíduos se deslocavam de um lugar a outro para interagir com sua rede
pessoal, mas, atualmente, eles vivem uma dinâmica de relação em que sal-
tam de uma pessoa a outra numa rede virtual de contatos. Wellman ressalta
que isso não aponta para uma mudança em direção ao isolamento social, e
sim na direção de uma maior flexibilidade no uso de redes sociais.
Isso significa que, atualmente, os indivíduos expandem sua rede de con-
tatos através de seu próprio networking, como em encontros em almoços,
congressos ou em listas de e-mail, nos quais novas pessoas são introduzi-
das em seu círculo de conhecidos. Mas esses laços são muito específicos,
ou seja, tendem a ficar restritos a um ponto de contato num networking, que
pode ou não ser acionado em outro momento. Esses contatos não tendem
a evoluir em direção à comunidade pessoal do indivíduo e não há aqui
uma cobrança, por parte do meio social, de que esses contatos venham a
ser entendidos no sentido de pertencimento ao grupo. Justamente, o novo
conhecido não amplia um grupo, e sim, simplesmente, aumenta a lista de
contatos.
Individualismo conectado
35
POR UM NOVO CONCEITO DE COMUNIDADE
O capital social
Na corrente dessa mudança de perspectiva do conceito de “comuni-
dade” para “redes sociais”, vários autores das Ciências Sociais passaram
a investigar, desde os anos 1990, o conceito empírico de capital social
(Lyn, Cook & Burt, 2005; Narayan, 1999; Portes, 1998; Grootaert, 1997;
Fukuyama, 1996; Putnam, 1993; Coleman, 1990). Essa noção poderia ser
entendida como a capacidade de interação dos indivíduos, seu potencial
para interagir com os que estão a sua volta, com seus parentes, amigos, co-
legas de trabalho, mas também com os que estão distantes e que podem ser
acessados remotamente. Capital social significaria, então, a capacidade de
os indivíduos produzirem suas próprias redes, suas comunidades pessoais.
Cabe lembrar que James Coleman (1990) e Robert Putnam (1993), que
estão entre os primeiros a analisar a noção de capital social, procuraram
defini-lo como a coerência cultural e social interna de uma sociedade, as
normas e os valores que governam as interações entre as pessoas e as ins-
tituições com as quais elas estão envolvidas. A importância do papel das
instituições é muito clara aqui, pois estas funcionam como mediadoras da
interação social, uma vez que propagam valores de integração entre ho-
mens e mulheres. Escolas, empresas, clubes, igrejas, famílias ainda funcio-
nam como referência para as relações sociais, apesar de todas as crises que
vêm enfrentando. Compreender seus papéis e sua influência numa comuni-
dade faz parte do processo de avaliação do capital social. Países arrasados
por guerras civis ou invasões (Ruanda e Iraque1, por exemplo) percebem
uma degeneração acentuada de seu tecido social, causada, justamente, pela
ausência do papel ativo das instituições. Reconstruí-las é o meio mais se-
guro para se restaurar parte do capital social perdido (que é, basicamente,
a confiança perdida).
Contudo, as instituições, como apontamos, exercem um papel regu-
lador e mediador de processos mais profundos. O que nos interessa, no
caso de uma análise do capital social, são as variáveis microssociológi-
1
Nem mesmo a Cruz Vermelha, que se acreditava ser uma instituição imune às
convulsões sociais, foi poupada de ataques no Iraque.
36
WEB 2.0
cas, como a sociabilidade, a cooperação, a reciprocidade, a proatividade,
a confiança, o respeito, as simpatias. Daí o fato de muitos estudos sobre
capital social apontarem para a necessidade do levantamento de uma série
de informações sobre o cotidiano das pessoas, como, por exemplo, saber
se elas conversam com seus vizinhos e recebem telefonemas, mas também
se frequentam clubes, igrejas, escolas, hospitais, etc. Exemplo de outra for-
ma, é preciso levantar a implicação dos indivíduos em associações locais e
redes (capital social estrutural), avaliar a confiança e a aderência às normas
(capital social cognitivo) e, igualmente, analisar a ocorrência de ações co-
letivas (coesão social). Esses seriam alguns indicadores básicos do capital
social de uma comunidade.
Mas por que seria isso considerado, precisamente, como “capital”? Ora,
as relações sociais passam a ser percebidas como um “capital” justamente
quando o processo de crescimento econômico passa a ser determinado não
apenas pelo capital natural (recursos naturais), produzido (infra-estrutura e
bens de consumo) e financeiro. Além desses, seria ainda preciso determinar
o modo como os atores econômicos interagem e se organizam para gerar
crescimento e desenvolvimento. A compreensão dessas interações passa a
ser considerada como riqueza a ser explorada, capitalizada. Como assina-
lam Grootaert e Woolcock (1997, p.25):
Um dos conceitos de capital social, que encontramos nos sociólogos
R. Burt, N. Lin e A. Portes, refere-se aos recursos – como, por exem-
plo, informações, ideias, apoios – que os indivíduos são capazes de
procurar em virtude de suas relações com outras pessoas. Esses re-
cursos (‘capital’) são ‘sociais’ na medida em que são acessíveis so-
mente dentro e por meio dessas relações, contrariamente ao capital
físico (ferramentas, tecnologia) e humano (educação, habilidades),
por exemplo, que são, essencialmente, propriedades dos indivíduos.
A estrutura de uma determinada rede – quem se relaciona com quem,
com que frequência, e em que termos – tem, assim, um papel funda-
mental no fluxo de recursos através daquela rede.
Há, contudo, uma forte tendência de a economia neoclássica rejeitar
as análises que procuram introduzir variáveis de ordem social nas teorias
econômicas contemporâneas. Francis Fukuyama (1996) critica, em seu fa-
37
POR UM NOVO CONCEITO DE COMUNIDADE
moso livro Confiança, a perspectiva dominante da economia neoclássica
e suas consequências para uma autêntica reflexão sobre capital social. Ele
discorda radicalmente dos pressupostos que alimentam essa teoria, funda-
mentalmente baseada numa visão de natureza humana egoísta:
Todo o imponente edifício da teoria econômica neoclássica contem-
porânea repousa num modelo relativamente simples da natureza hu-
mana: os seres humanos são “indivíduos maximizadores da utilidade
racional”. Isto é, os seres humanos procuram adquirir o maior número
possível de coisas que julgam úteis para si. Fazem isso de maneira
racional, e fazem esses cálculos como indivíduos que buscam maxi-
mizar o benefício para si próprios sem se preocupar com o benefício
de quaisquer grupos de que façam parte. Em suma, os economistas
neoclássicos postulam que os seres humanos são indivíduos essencial-
mente racionais, mas egoístas que procuram maximizar seu bem-estar
material. (Fukuyama, 1996, p.33)
Sua crítica é de que tal perspectiva é insuficiente para explicar a vida
política, com todos os seus desdobramentos emocionais, como também não
é suficiente para explicar muitos aspectos da vida econômica: “Nem toda
ação econômica deriva do que é tradicionalmente conhecido como motivos
econômicos” (Fukuyama, 1996, p.33). A tese de que os indivíduos exercem
suas escolhas com base na maximização da utilidade, agindo, assim, de
forma racional, não parece resistir a uma análise que leve em conta a vida
em redes e associações que caracteriza a grande maioria dos homens. Essa
é também a perspectiva de Mark Granovetter (2000), que vê nessa tese a
enorme dificuldade dos economistas para incluírem em sua visão as inúme-
ras variáveis do campo social.
Simpatia parcial e confiança
O que Fukuyama (1996) e Granovetter (2000) estão, no fundo, critican-
do é a crença dos economistas numa natureza humana fundamentalmente
egoísta. Tal crença, que alimentou e ainda alimenta muitas filosofias, en-
contra uma de suas mais importantes críticas na tese do filósofo David
Hume (1983). Para ele, a visão do egoísmo como fundo da natureza huma-
38
WEB 2.0
na é a saída mais fácil para quem procura pensar a sociedade. O que Hume
sustenta é outra posição, que não exclui o egoísmo, mas o coloca como
caso particular de algo mais geral: a parcialidade de nossa natureza. Na
afirmação de Deleuze, em sua interpretação de Hume:
Caso se entenda por egoísmo o fato de que toda tendência persegue
sua própria satisfação, coloca-se apenas o princípio de identidade, A =
A, o princípio formal e vazio de uma lógica do homem, e ainda de um
homem inculto, abstrato, sem história e sem diferença. Concretamen-
te, o egoísmo designa apenas alguns meios que o homem organiza
para satisfazer suas tendências, em oposição a outros meios possíveis.
Esses podem ser a generosidade, a hereditariedade, os costumes, os
hábitos. Jamais a tendência pode ser abstraída dos meios que se orga-
niza para satisfazê-la. (Deleuze, 1953, p.34)
A tese central de Hume (1983) é a de que nossa generosidade é limitada
por natureza. O que nos é natural é uma generosidade limitada. O homem
seria, então, muito menos egoísta do que parcial. A verdade é que o homem
é sempre o homem de um clã, de uma comunidade. Sendo assim, a essência
do interesse particular não é o egoísmo, mas a parcialidade. Com efeito, os
egoísmos apenas se limitariam. Daí a necessidade de invocarmos os con-
tratos sociais, exatamente porque eles seriam uma forma de limitação de
um egoísmo supostamente “natural” dos homens. Já com relação às simpa-
tias, o problema seria outro: é preciso integrá-las numa totalidade positiva.
Como nos lembra Deleuze (1953, p.26), o que Hume reprova precisamente
nas teorias do contrato é o fato de
nos apresentar uma imagem abstrata e falsa da sociedade, de definir
a sociedade de modo apenas negativo, de ver nela um conjunto de
limitações dos egoísmos e dos interesses, ao invés de compreendê-la
como um sistema positivo de empreendimentos inventados.
O problema da sociedade, nesse sentido, não é um problema de limita-
ção, e sim de integração. Integrar as simpatias é fazer com que a simpatia
ultrapasse sua contradição, sua parcialidade natural. A estima, o respeito e
a confiança são a integral das simpatias. Nosso desafio é estender as sim-
patias para que seja possível constituir grupos maiores do que aqueles en-
39
POR UM NOVO CONCEITO DE COMUNIDADE
volvidos pela simpatia parcial. Trata-se de inventar os meios e artifícios
para que os homens consigam estender suas simpatias para além de seu clã,
família, vizinhança. Ou seja, trata-se de estender as simpatias para além
daquilo que se configura, ainda, como uma parcialidade: as “comunidades”,
em seu sentido mais tradicional. Para nos constituirmos em sociedade, preci-
samos empreender a integração das simpatias de forma a constituir um todo
maior. Os sentimentos de estima, respeito e confiança são exemplos práticos
que apontam para os meios de integração de nossa simpatia com as simpatias
de outros. Conquistar a estima, o respeito e a confiança de um estranho sig-
nifica trabalhar na construção de um laço afetivo mais amplo que aquele de
nossas parcialidades. E esse é um dos papéis, senão o mais importante, das
instituições: não exatamente o de governar ou regular as relações entre os
homens, mas o de mobilizar suas tendências, integrando-as num todo maior,
utilizando, para tal, o artifício dos valores e das normas. É nesse sentido que
Fukuyama (1996, p.41) pode afirmar: “O capital social difere de outras for-
mas de capital humano na medida em que é geralmente criado e transmitido
por mecanismos culturais, como religião, tradição ou hábito histórico”.
Um dos aspectos essenciais para a consolidação de comunidades pes-
soais ou redes sociais é, sem dúvida, o sentimento de confiança mútua que
precisa existir, em maior ou menor escala, entre as pessoas. A construção
dessa confiança está diretamente relacionada com a capacidade que cada
um teria de entrar em relação com os outros, de perceber o outro e incluí-lo
em seu universo de referência. Esse tipo de inclusão ou integração diz res-
peito a uma atitude tão simples e, por vezes, tão esquecida, que é justamente
a de reconhecer, no outro, suas habilidades, competências, conhecimentos,
hábitos, etc. Quanto mais um indivíduo interage com outros, mais ele está
apto a reconhecer comportamentos, intenções e valores que compõem seu
meio. Inversamente, quanto menos alguém interage (ou interage apenas
num meio restrito), menos tenderá a desenvolver plenamente esta habilida-
de fundamental que é a percepção do outro. Em outras palavras, reconhecer
é a aptidão que um indivíduo desenvolve para perceber, detectar e localizar
numa outra pessoa uma característica que não havia sido percebida antes
e que, por isso mesmo, simplesmente não tinha existência no campo de
sua percepção. Mas reconhecer é também, e ao mesmo tempo, dar valor a
alguém, aceitá-lo em seu meio, integrá-lo como colega ou parceiro.
40
WEB 2.0
Essa dinâmica do reconhecimento é, com certeza, uma das bases para
a construção da confiança não apenas individual, mas coletiva. Redes so-
ciais só podem ser construídas com base na confiança mútua disseminada
entre os indivíduos. Isso pode se verificar em maior ou menor grau, mas,
de qualquer maneira, a confiança deve estar presente da forma mais ampla
possível.
Num livro valioso intitulado Construa confiança, Robert Solomon e
Fernando Flores (2002, p.31) insistem em que a confiança é uma dinâmica.
Apesar de muitos agirem como se fosse um estado,
Ela é de fato parte da vitalidade, não da base inerte, dos relacionamen-
tos. A confiança é uma prática social, não um conjunto de crenças. É
um aspecto da cultura e o produto de uma prática, não só questão de
psicologia ou de atitude individual. O problema da confiança é práti-
co: como criar e manter a confiança, como se mover da desconfiança
para a confiança, de um abuso na confiança para a sua recuperação. A
confiança é questão de relacionamentos recíprocos, não de previsão,
de risco ou de dependência. A confiança é questão de tecer e manter
compromissos, e o problema da confiança não é a perda da confiança,
mas sim o fracasso em se cultivar o tecer de compromissos.
Quando Fukuyama (1996, p.41) afirma que “o capital social é uma ca-
pacidade que decorre da prevalência de confiança numa sociedade ou em
certas partes dessa sociedade”, não se deve esquecer que, para se incre-
mentarem os laços sociais, é preciso investir na construção e no desenvol-
vimento de relações de confiança; e isso requer, no mínimo, anos de en-
contros e interações. É fato que a confiança é mais facilmente destruída do
que construída e que sua produção não é sem custos; requer investimento,
pelo menos de tempo e esforço, se não financeiro. Manter o capital social
também é dispendioso.
Mais profundamente, pode-se constatar que o nível do capital social de
uma comunidade, além de ser um fator que aponta para o potencial de inter-
relação das pessoas e para essa capacidade de construção da confiança coleti-
va, é também um indicador do nível de negociação das preferências de cada
indivíduo. Nesse sentido, avaliar o capital social de um coletivo é compre-
ender em que etapa ou estágio se encontra a negociação das pessoas naquele
41
POR UM NOVO CONCEITO DE COMUNIDADE
momento: se ele é precário, com instituições fracas e violência social, ou se
ele é rico, com ações coletivas claras e nível de confiança elevado.
As redes digitais
As redes digitais representam, hoje, um fator determinante para a com-
preensão da expansão de novas formas de redes sociais e da ampliação
de capital social em nossa sociedade. Testemunhos como os de Howard
Rheingold, por exemplo, vêm comprovando que a sinergia entre as pessoas
via web, dependendo do projeto em que estejam envolvidas, pode ser mul-
tiplicada com enorme sucesso. As diversas formas de comunidades virtuais,
a estratégia P2P, as comunidades móveis, a explosão dos blogs e wikis e a
recente febre do Orkut são prova de que o ciberespaço constitui fator crucial
no incremento do capital social e cultural disponíveis.
Essa compreensão, na verdade, vem se consolidando gradativamente
desde o início da década de 1990. O próprio Rheingold, em seu livro Co-
munidade virtual (1996), já percebia naquele momento que as comunida-
des virtuais não eram apenas lugares onde as pessoas se encontravam, mas
também um meio para se atingirem diversos fins. Ele antecipou que “as
mentes coletivas populares e seu impacto no mundo material podem tornar-
se uma das questões tecnológicas mais surpreendentes da próxima década”
(Rheingold, 1996, p.142). Bem antes disso, em 1976, o pesquisador ameri-
cano Murray Turoff – idealizador do sistema de intercâmbio de informação
eletrônica (EIES), considerado o ponto de partida das atuais comunidades
online – prenunciava que a conferência por computador poderia fornecer aos
grupos humanos uma forma de exercitarem a capacidade de “inteligência co-
letiva”. Segundo ele, um grupo bem-sucedido exibirá um grau de inteligência
maior em relação a qualquer um de seus membros (Turoff apud Rheingold,
1996). Estava lançada, assim, a ideia de que a interconexão de computadores
poderia dar nascimento a uma nova forma de atividade coletiva, centrada na
difusão e na troca de informações, conhecimentos, interesses, etc. Steven
Johnson (2001, online) compartilha, igualmente, dessa visão:
Podemos ver os primeiros anos da web como uma fase embrionária,
evoluindo através de seus antepassados culturais: revistas, jornais,
shoppings, televisões, etc. Mas hoje já há algo inteiramente novo, uma
42
WEB 2.0
espécie de segunda onda da revolução interativa que a computação
desencadeou: um modelo de interatividade baseado na comunidade,
na colaboração muitos-muitos.
Rheingold (1996), motivado em especial pela questão do excesso de infor-
mação que já caracterizava a jovem web, não só constatou a emergência das
comunidades virtuais, como também viu nelas uma relação mais profunda.
Com efeito, um dos problemas da rede era o da “oferta demasiada de informa-
ção e poucos filtros efetivos passíveis de reterem os dados essenciais, úteis e
do interesse de cada um” (Rheingold, 1996, p.77). Mas enquanto os programa-
dores se esforçavam para desenvolver agentes inteligentes que realizassem a
busca e a filtragem de toneladas de informações que se acumulavam na rede,
Rheingold já detectava a existência de “contratos sociais entre grupos humanos
– imensamente mais sofisticados, embora informais – que nos permitem agir
como agentes inteligentes uns para os outros” (Rheingold, 1996, p.82).
Começava a se consolidar uma ideia de mente coletiva, ou de inteligência
coletiva, que poderia não apenas resolver problemas em conjunto, em grupo,
coletivamente, mas, igualmente, trabalhar em função de um indivíduo, do
seu benefício. Rheingold (1996) lembra que as comunidades virtuais abri-
gam um grande número de profissionais que lidam diretamente com o co-
nhecimento, o que faz delas um instrumento prático potencial. Quando surge
a necessidade de informação específica, de uma opinião especializada ou da
localização de um recurso, as comunidades virtuais funcionam como uma
autêntica enciclopédia viva. Elas podem auxiliar os respectivos membros a
lidarem com a sobrecarga de informação. As comunidades virtuais estariam
funcionando, portanto, como verdadeiros filtros humanos inteligentes.
Junte-se a isso a possibilidade real de mensurar e cartografar a atividade
coletiva por meios digitais, seja de forma direta, com pesquisas online, de
forma indireta, via agentes inteligentes, ou, ainda, de forma concedida, via
tracking. Atualmente, são várias as análises de redes sociais que se valem
da internet para realizar mapeamentos e pesquisas2. Há um enorme esforço
2
Podem-se consultar, por exemplo, os sites Social Network Analysis (<http://
www.sfu.ca/~insna>) e Cyberatlas (<http://www.cyberatlas.guggenheim.org/
home>).
43
POR UM NOVO CONCEITO DE COMUNIDADE
de construção de uma Teoria das Redes empreendido por vários teóricos da
atualidade, e que tem como um dos inspiradores mais conhecidos a figura
do psicólogo americano Stanley Milgram. Lembremos que, nos anos 1960,
Milgram propôs uma descrição da rede de conexões interpessoais que liga
os indivíduos numa comunidade (Milgram, 1967). Sua hipótese impulsio-
nou as formulações matemáticas de Duncan Watts e Steven Strogatz (1998)
sobre a teoria do “mundo pequeno” e a dinâmica coletiva em rede (teoria
dos seis graus de distância ou seis passos). Também o físico Albert-László
Barabási tem se destacado por suas pesquisas sobre o papel que os nós
“especialistas” (hubs) desempenham nas redes, em geral, e no ciberespaço,
em particular, da mesma forma que Rheingold, Barabási (2002) tem se
referido, com frequência, a uma sociologia de afluência na web, promovida
pela forma como os links entre páginas se estabelecem3. Essa relação entre
a Sociologia e a Teoria das Redes tem motivado inúmeras pesquisas, como
nos mostra Mark Buchanan (2002), que estabelece, em seu livro Nexus,
uma série de associações entre os trabalhos de Granovetter e Fukayama,
por exemplo, e as teses matemáticas de Watts e Strogatz.
Pierre Lévy (2002) também tem defendido a participação em comuni-
dades virtuais como um estímulo à formação de inteligências coletivas, às
quais os indivíduos podem recorrer para trocar informações e conhecimen-
tos. Fundamentalmente, ele percebe o papel das comunidades como o de
filtros inteligentes que nos ajudam a lidar com o excesso de informação,
mas, igualmente, como um mecanismo que nos abre às visões alternativas
de uma cultura. “Uma rede de pessoas interessadas pelos mesmos temas
é não só mais eficiente do que qualquer mecanismo de busca”, diz Lévy
(2002, p.101), “mas, sobretudo, do que a intermediação cultural tradicio-
nal, que sempre filtra demais, sem conhecer no detalhe as situações e ne-
cessidades de cada um”.
Da mesma forma que Rheingold, Lévy está profundamente convencido
de que uma comunidade virtual, quando convenientemente organizada, re-
presenta uma importante riqueza em termos de conhecimento distribuído,
de capacidade de ação e de potência cooperativa.
3
Cf. <http://www.nd.edu/~alb>.
44
WEB 2.0
Conclusão
O conceito de redes sociais responde a uma compreensão da interação
humana de modo mais amplo que o de comunidade. Se as análises socioló-
gicas de Granovetter (2000) e Wellman (1988) caminharam nessa direção
já no final dos anos 1970, as proposições filosóficas de Deleuze e Guatta-
ri (1982) também seguiram esse caminho nessa mesma época. Conceitos
como rizoma e agenciamento coletivo procuravam traduzir o sentimento
de que a sociedade do final do século XX já não se organizava mais segun-
do parâmetros convencionais de localidade, parentesco, vizinhança, etc.
(Deleuze & Guattari, 1982). Essas reflexões surgiram, de fato, ao mesmo
tempo que se desencadeava uma profunda revolução nos meios de comu-
nicação. Tal revolução acabou por provocar uma mudança determinante na
forma de interação entre os indivíduos, no modo como cada um poderia in-
teragir e estar em contato com outros ao seu redor. É isso que vivenciamos
hoje, com o surgimento do ciberespaço, a multiplicação das ferramentas de
colaboração online, as tecnologias de comunicação móvel integrando-se às
mídias tradicionais, etc.
O resultado mais conhecido de todo esse processo são as comunidades
virtuais. Desde seu início, elas sempre foram criticadas pela ausência de
contato físico entre seus participantes. O que raramente se perguntou foi
sobre o próprio conceito de comunidade em jogo. Cobrar das comunida-
des virtuais aquilo que se entendia romanticamente por “comunidade”, tal
como Baumann (2003) o faz, seria simplesmente impedir de se ver o que
vem acontecendo nos movimentos coletivos de nossa época. Como afirma
Pierre Lévy (2002), as comunidades virtuais são uma nova forma de se
fazer sociedade. Essa nova forma é rizomática, transitória, desprendida de
tempo e espaço, baseada muito mais na cooperação e nas trocas objetivas
do que na permanência de laços. E isso tudo só foi possível com o apoio das
novas tecnologias de comunicação.
É exatamente essa ambiguidade produzida pelo conceito de comunida-
de que a noção de rede social vem contornar. Não se trata mais de definir
relações de comunidade exclusivamente em termos de laços próximos e
persistentes, e sim de ampliar o horizonte em direção às redes pessoais.
Cada indivíduo está apto a construir sua própria rede de relações, sem que
45
POR UM NOVO CONCEITO DE COMUNIDADE
essa rede possa ser definida precisamente como “comunidade”. Mais pro-
fundamente, é no bojo da revolução tecnológica atual que se percebe a
força de um conceito como aquele de Hume, o de simpatia parcial. A pos-
sibilidade de integração de simpatias dentro da cibercultura é da ordem
do jamais visto em nossa história. Os homens conseguem encontrar zonas
de proximidade lá onde isso pareceria impossível: pessoas compartilham
ideias, conhecimentos e informações sobre seus problemas, dificuldades
e carências. O que na maior parte dos casos não seria possível fazer entre
“próximos”, simplesmente porque as redes locais são, por definição, limi-
tadas no tempo e espaço. As redes locais ou “comunidades”, no sentido
mais tradicional, são, justamente, o resultado da parcialidade natural do ser
humano. Expandi-las é o que enfrentamos como desafio.
Há muito ainda a se aprender sobre a formação de redes sociais e a aflu-
ência de ideias e informações por meio de associações humanas no cibe-
respaço. O que já está claro, para a multidão que povoa o mundo virtual, é
que estamos diante de um fenômeno que nos força a pensar diferentemente
a maneira como nos organizamos em grupos e comunidades.
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48
WEB 2.0
Comunicação e práticas sociais no espaço
urbano: as características dos dispositivos
híbridos móveis de conexão multirrede (DHMCM)
André Lemos*
DHMCM
O telefone celular é a ferramenta mais importante de convergência mi-
diática hoje. Para ilustrar, podemos citar o uso do celular como instrumento
para produzir, tocar, armazenar e circular música; como plataforma para
jogos online no espaço urbano (os wireless street games); como dispositivo
de “location based services” para “anotar” eletronicamente um espaço, ver
“realidades aumentadas”, monitorar o meio ambiente e possibilitar o mape-
amento ou a geolocalização por GPS; ou, ainda, como meio para escrever
mensagens rápidas (SMS), tirar fotos, fazer vídeos e acessar a internet.
Podemos afirmar que o celular é hoje, efetivamente, muito mais que um
telefone e, por isso, vamos insistir na ideia de dispositivo híbrido.
Pensar o celular como um “dispositivo híbrido móvel de conexão mul-
tirredes” (DHMCM) ajuda a expandir a compreensão material do apare-
lho e tirá-lo de uma analogia simplória com o telefone. A denominação de
* Professor associado do Programa de Pós-gradução da Faculdade de Comuni-
cação da Universidade Federal da Bahia (Facom/UFBA) e pesquisador do CNPq.
Professor visitante da University of Alberta e McGill University e coordenador do
projeto de pesquisa “Cibercidades: cidade e tecnologia da comunicação”.
O artigo foi publicado originalmente na Revista Comunicação, Mídia e Consumo,
São Paulo, v.4, n.10, p.23-40, jul. 2007. Este trabalho faz parte do projeto de
pesquisa que o CNPq financia.
49
COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS SOCIAIS NO ESPAÇO URBANO
DHMCM permite delimitá-lo melhor e com mais precisão. O que chama-
mos de telefone celular é um dispositivo (um artefato, uma tecnologia de
comunicação); híbrido, já que congrega funções de telefone, computador,
máquina fotográfica, câmera de vídeo, processador de texto, GPS, entre
outras; móvel, isto é, portátil e conectado em mobilidade funcionando por
redes sem fio digitais; e, por tudo isso, de conexão e multirredes, já que
pode empregar diversas redes como: bluetooth e infravermelho (para cone-
xões de curto alcance, entre outros dispositivos), celular (para as diversas
possibilidades de troca de informações), internet (Wi-Fi ou Wi-Max) e re-
des de satélites para uso como dispositivo GPS.
Os DHMCM aliam a potência comunicativa (voz, texto, foto, vídeos),
a conexão em rede e a mobilidade por territórios informacionais4 (Lemos,
2006), reconfigurando as práticas sociais de mobilidade informacional pe-
los espaços físicos das cidades. Isso significa a ampliação da conexão, dos
vínculos comunitários, do controle sobre a gestão do seu espaço e tempo5
na fase pós-massiva6 da comunicação contemporânea. Com os DHMCM,
4
Por territórios informacionais compreendemos áreas de controle do fluxo in-
formacional digital em uma zona de intersecção entre o ciberespaço e o espaço
urbano. O acesso e o controle informacional realizam-se a partir de dispositivos
móveis e redes sem fio. O território informacional não é o ciberespaço, mas o
espaço movente, híbrido, formado pela relação entre o espaço eletrônico e o
espaço físico.
5
No Brasil, temos hoje mais de 100 milhões de telefones celulares em funciona-
mento. De acordo com a Acel (Associação Nacional das Prestadoras Celulares), o
total de celulares corresponde a 51,7% da população e cresceu cerca de 15,9%
em 2006. Há diferentes tecnologias nos telefones celulares: a primeira geração
(1G), analógica, desenvolvida no início dos anos 80; a segunda geração (2G),
digital, desenvolvida no final dos anos 80 e início dos anos 90 (GSM, CDMA e
TDMA); a segunda geração e meia (2,5G), que utiliza uma tecnologia superior ao
GPRS, o EDGE, além do padrão HSCSD e 1XRTT; e a terceira geração (3G), digi-
tal, com mais recursos, em desenvolvimento desde o final dos anos 90 (UMTS e
W-CDMA). Ver Wikipedia <http://pt.wikipedia.org/wiki/Telefone_celular>. Aces-
so: 08/08/2008.
6
As mídias de função pós-massiva funcionam a partir de redes telemáticas em
que qualquer um pode produzir informação, “liberando” o polo da emissão. As
funções pós-massivas não competem entre si por verbas publicitárias e não es-
tão centradas sobre um território específico, mas virtualmente sobre o planeta.
O produto é personalizável e, na maioria das vezes, insiste em fluxos comunica-
50
WEB 2.0
emergem formas de contato permanente, contínuo e em mobilidade, pro-
piciando novas vivências do espaço e do tempo nas (ciber)cidades. Trata-
se da mobilidade em espaços intersticiais (Santaella, 20077), eletrônicos e
físicos, transformando a vivência das cidades em “práticas híbridas por
excelência” (Beiguelman, 2005, p.154).
Exploraremos as principais características de produção de conteúdo
pelos DHMCM. Em primeiro lugar, vamos mostrar, rapidamente, alguns
exemplos de uso dos DHMCM na escrita, na leitura e no mapeamento do
espaço urbano, que se caracterizam como novas formas de apropriação8 do
espaço público. Em seguida, analisaremos as práticas de produção de fotos
e vídeos através desses dispositivos.
DHMCM e espaço urbano
Vários projetos com DHMCM têm colocado em jogo a relação de apro-
priação do espaço público. Trata-se, como venho insistindo, de formas de
apropriação dos espaços das cidades a partir das quais os usuários podem
reconhecer outros usuários, anotar eletronicamente um espaço (deixando
sua marca com um texto, foto, som ou vídeo), localizar ou mapear lugares
ou objetos urbanos, ou mesmo jogar, tendo como pano de fundo ruas, pra-
ças e monumentos.
O projeto “Mobotag. connecting your city with mobile tags”, por
exemplo, permite que, por envio de e-mail, qualquer pessoa possa anexar
informação a um espaço urbano. Consiste na apropriação do espaço por
“anotação eletrônica”, criando um “lugar” no meio do vazio de sentido do
cionais bidirecionais (todos-todos), diferente do fluxo unidirecional das mídias de
função massiva. As mídias de função pós-massivas agem não por hits, mas por
“nichos” (Lemos, 2007).
7
O termo foi utilizado por Lúcia Santaella em conferência realizada no Ciclo
de Debates sobre Cibercultura, em 18 de maio de 2007, na Reitoria da UFBA,
Salvador, Bahia.
8
Pensamos apropriação como formas emergentes de leitura e escrita das ci-
dades a partir dos dispositivos móveis digitais. As práticas de geolocalização e
tagueamento, assim como as de “anotações eletrônicas”, podem ser vistas nesse
contexto como formas de significar os espaços anônimos das cidades.
51
COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS SOCIAIS NO ESPAÇO URBANO
espaço urbano das grandes cidades. Como diz o projeto: “Tag any street
address in NYC with your mobile phone! Send a text message to nyc@mo-
botag.com with your address. Add tag with picture, text, video, or sound”9.
Aqui as práticas de anotação das mídias locativas (Lemos, 2007) são muito
próximas daquilo que os surrealistas, dadaístas e situacionistas buscavam
pela deriva e pela ocupação de espaços das cidades nas décadas de 1950 e
1960. Eles realizavam pequenas performances (como leituras, por exem-
plo), transformando o andar no espaço público em uma arte. Essas práticas
– como as atuais com celulares, laptops, GPS ou etiquetas RFID – buscam
criar formas de apropriação dos espaços das cidades, cada vez mais impes-
soais, frias e racionalizadas. Talvez possamos pensar nessa nova maneira de
“publicação” e de “contato permanente” com o outro como uma apropriação
pela “superfície”, como formas de escrita e de leitura das relações sociais e
dos espaços: uma experiência, ao mesmo tempo, social e estética.
Da mesma forma, no projeto Flagr10, o usuário pode, pelo celular, enviar
um e-mail com suas impressões sobre lugares da cidade. Esses locais aparecem
em mapas e passam a formar uma leitura livre e coletiva do espaço público.
Trata-se, com efeito, de uma espécie de bookmark do mundo real. Mais uma
vez, vemos aqui formas de criar e de dar sentido a lugares da cidade, como uma
marca do “ver” colocada em mapas para que outros “vejam” também.
Simmel (1984) mostra como o estrangeiro é a figura mesmo do urbano
na relação que aí se institui de aproximação e distanciamento. O habitante
da cidade está em um estado de “indiferença flutuante”, e é nesse sentido
que podemos ver a superfície das cidades como um lugar de sentido na
experiência do passante, do flâneur, dos situacionistas, mas também dos
novos conectados a dispositivos móveis e redes sem fio. Cria-se, nesse
movimento, um “lugar”, algo dotado de sentido, na indiferenciação dos
espaços urbanos.
Outro projeto interessante é o Dodgeball11, que cria contato permanente
entre membros de uma comunidade. O sistema permite que o usuário man-
9
Cf. <http://turbulence.org/Works/mobotag/>
10
Cf. <http://www.flagr.com/>
11
Cf. <http://www.dodgeball.com/>
52
WEB 2.0
de SMS para uma lista de amigos cadastrados, dizendo onde ele está em um
determinado momento. Assim, pessoas de sua lista que estiverem por perto
serão avisadas e podem saber onde encontrá-lo. O mesmo ocorre com o pro-
jeto Radar12, que mapeia e identifica os celulares cadastrados, criando zonas
de acesso e de contato permanente, indicando onde estão os possíveis cor-
respondentes. Por criar e potencializar redes de sociabilidade, esses projetos
buscam significar o espaço urbano a partir do reforço comunitário.
O projeto Imity13, similar aos dois anteriores, coloca pessoas em conta-
to, identificando-as por redes bluetooth e telefones celulares. O interessante
é que o projeto permite que pessoas que só se conhecem online possam,
caso estejam no mesmo lugar por acaso, identificar-se. Assim, se você esti-
ver em um bar e um amigo virtual (que você não sabe quem é fisicamente)
estiver por perto, os telefones celulares se reconhecerão um ao outro e vo-
cês poderão se encontrar pessoalmente.
Diferentes dos anteriores, os projetos da HP, MScapers14 e da Nokia15,
com realidade aumentada, mostram sistemas que permitem a navegação
por informações das cidades apenas apontando o telefone celular para lu-
gares ou objetos. Apontando o dispositivo, informações eletrônicas “colam”
ao local. Projetos similares usam também esses dispositivos para auxiliar as
pessoas (como guias turísticos) a encontrarem e a se localizarem no espaço
urbano16. Trata-se não apenas de escrita dos espaços por anotações e/ou de
reforçar laços sociais, mas de ampliar a leitura do espaço urbano através da
superposição de camadas informacionais aos lugares do espaço público.
Os projetos citados permitem criar sentido por anotações do espaço
público, por leituras de “realidades aumentadas”, por colocar pessoas em
contato “permanente” no meio do ambiente anônimo das grandes cidades.
12
Cf. <http://www.celldorado.com/AT/ADS/923303638/index.php?trackid=
474153321&source=webgains&clickid=TFsF2jyyXWQ.AG0rAGpcI3meM0qt-
mSmUdg>. Acesso: 08/08/2008.
13
<http://www.imity.com/>
14
<http://www.mscapers.com/>
15
<http://www.technologyreview.com/Biztech/17807/>
16
Ver “Your Phone as a Virtual Tour Guide”, em <http://www.techreview.com/
Infotech/18746/>. Acesso: 08/08/2008.
53
COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS SOCIAIS NO ESPAÇO URBANO
Busca-se dar origem, na superfície do tecido urbano, a uma zona de contato
e de acesso, além de criar, recriar e fortalecer as redes de sociabilidade e
apropriação do espaço. Os “estrangeiros” do espaço urbano podem vivenciar
novas experiências nos espaços das metrópoles, insistindo em formas de na-
vegação por informações nos territórios informacionais, nos interstícios do
espaço eletrônico e dos espaços públicos das cidades contemporâneas.
Definitivamente, à medida que vamos “desplugando” nossas máquinas
de fios e cabos, à medida que redes de telefonia celular, bluetooth, RFID
ou Wi-Fi fazem das nossas cidades máquinas comunicantes “desplugadas”
e sem fio, paradoxalmente, vamos criando projetos que buscam exatamen-
te o contrário: territorialização, ancoragem no espaço físico, acoplagem
a coisas, lugares, objetos, pessoas. Vejamos agora as formas de produção
imagética acopladas a espaços urbanos e a redes de sociabilidade.
Uma câmera na mão e... conexões na cabeça
Vídeos e fotos feitos por pessoas comuns em DHMCM servem como
testemunho de eventos quotidianos, desde pessoas falando sobre suas vidas
até usos mais importantes em momentos de catástrofes ecológicas, atenta-
dos ou guerrilhas urbanas. O fenômeno é um exemplo dessa potência das
mídias pós-massivas, do mass self communication, como propõe Castells
(1996). É um exemplo dos três princípios da cibercultura17 (Lemos, 2004):
qualquer um pode fazer vídeos e fotos; essa produção só faz sentido em
conexão (princípio em rede), e essa conexão modifica práticas sociais e
comunicacionais (princípio de reconfiguração), como veremos a seguir.
O uso de câmeras de vídeo e de foto em telefones celulares alia ubi-
quidade e conectividade para criar e distribuir imagens18. A ubiquidade e a
17
Em pesquisa feita no Japão, “the keitai is a personal, private, and intimate
portal to the self, a device attached to an individual rather than a place. (…)The
portability of the keitai ensures that the device can be always close at hand (…).
Finally, the keitai is a pedestrian device, held in one hand while walking, biking,
or engaging in other activities, pervading a wide range of settings and locations
with the logic of personal communication” (Ito & Okabe, 2000, online).
18
Podemos ver aí uma crise da ideia debordiana de sociedade do espetácu-
54
WEB 2.0
conectividade generalizadas por meio de textos, fotos, sons e vídeos feitos
e disseminados pelos DHMCM, aliadas à facilidade de produção e à por-
tabilidade, fazem desses produtos (textos, fotos, vídeos, sons) vetores de
contato, de testemunho jornalístico e político sobre diversas situações quo-
tidianas. Os vídeos e as fotos feitos em telefones celulares foram impor-
tantes, por exemplo, como testemunho das explosões à bomba nos metrôs
em Londres, das tsunamis no Oceano índico, do furacão Katrina em Nova
Orleans, do atentado a bombas em Madri e da guerrilha urbana em Paris.
Buscando ainda uma particularidade e uma poética, os vídeos e as fotos
em celulares podem fazer da portabilidade, da mobilidade, do tempo ime-
diato, da conexão e da difusão em rede diferenças fundamentais em relação
aos filmes e vídeos com câmeras portáteis. Não é cinema, e sim a reconfi-
guração do cinema, uma remediação. Não é foto instantânea, e sim a reme-
diação da fotografia. Os DHMCM impõem uma outra experiência social e
estética. Os vídeos e as fotos assim produzidos podem trazer uma forma de
hierofania quotidiana visual. Isso difere de outras práticas de “uma câmera
na mão e uma ideia na cabeça”.
Muitas experiências são apenas transposições (como no jornalismo on-
line, nos blogs, nos podcasts) do cinema. Isso é normal e compreensível
dada a novidade e o pouco tempo de maturação da tecnologia. Mas deve-
mos pensar na particularidade do artefato. Qual a diferença entre um filme
feito no celular (com uma história, argumento e edição) de um outro feito
com qualquer outra câmera portátil (tipo super 8 ou Mini-DV)? Talvez pos-
samos dizer que a prática de fazer e difundir filmes por meio de telefones
celulares é bem diferente de ficar em uma sala escura e fruir uma narrativa
fílmica do cinema. Além dos fatores mobilidade e portabilidade, há a dis-
seminação massiva do artefato, que faz de qualquer um, virtualmente, um
produtor, distribuidor e consumidor de imagens. As diferenças fundamentais
são, efetivamente, a rede e a potência de conexão e de colaboração, que, no
lo. Se as imagens da sociedade do espetáculo eram, como afirmava Debord
(1992), uma arma para anestesiar e controlar as massas pelo capital, talvez
possamos dizer que, agora, com a profusão de imagens geradas por pessoas
comuns, estamos vendo um excesso imagético que parece colocar em xeque a
linearidade dessa visão.
55
COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS SOCIAIS NO ESPAÇO URBANO
caso da disseminação da fotografia popular ou do vídeo/cinema, não existiam.
Essas diferenças criam elementos que implicam uma fruição estética particular.
Pequenos excertos do dia-a-dia, em mobilidade e disseminados, exploram as
potencialidades da portabilidade, da mobilidade, da conectividade e da ubiqui-
dade. Agora, a lógica é “uma câmera na mão e conexões na cabeça”.
As novas imagens devem ser enquadradas a partir das características espe-
cíficas do dispositivo: suas funções de portabilidade, multifunções, hibridismo,
conexão, momento, dessolenização, socialização pelo olhar rápido (Shields,
2005) e imediato. Trata-se assim, de uma mudança fundamental na função so-
cial da fotografia, como vista por Pierre Bourdieu e Roland Barthes (Rivière,
2006), por exemplo. Na fotografia tradicional, o uso está aliado a formas sub-
jetivas da Modernidade, buscando reforçar o indivíduo. Esse reforço se dá, por
exemplo, ao tornar eterno o momento, ao valorizar a função social familiar e a
marcação de momentos solenes e formais (a pose), e ao reforçar a integração
do grupo familiar. Envolve, portanto, funções objetivas e racionais. Há clara-
mente intenções de arquivo (memória), buscando o que Bourdieu chamava
de “verdade da lembrança” e Barthes, de “ratificação do passado”. A prática
também requisita o momento solene, o tempo de revelação do filme, o arqui-
vamento em álbuns, a volta ao álbum em momentos familiares (uma “volta ao
passado”) para reforçar a memória. A foto era considerada um meio mnemôni-
co de socialização em um pequeno círculo, basicamente familiar. Como afirma
Rivière, o celular
a pour effet de banaliser l’acte photographique en autorisant chacun à
s’en servir quotidiennement, n’import quand, n’import comment. Sa va-
leur au quotidien devient celle d’une rencontre avec l’inattendu, le for-
tuit, la magie de l’instant présent et le désir d’expression dans l’instant,
pour lui-même, par opposition à une pratique traditionnelle occasionnel-
le, d’anticipation d’événements, avec des intentions soit esthétique soit
d’archive. L’acte photographique se dissocie par ailleurs de la posses-
sion d’un objet spécifique et singulier, l’appareil photo, dont l’existence
et la représentation elles-mêmes renforçaient la perception d’une prati-
que spécifique, réservée à des occasions, des événements particuliers.
(2006, p.121-122)
56
WEB 2.0
Hoje, com a difusão de fotografias e vídeos por celular, talvez possamos
falar de produtos imagéticos, que refletem o que alguns autores chamam de
subjetividade pós-moderna, ou seja, uma subjetividade desterrritorializada,
aberta, presenteísta e esfacelada. As características do dispositivo já encar-
nam essa subjetividade: as fotos são tiradas, vistas e descartadas imediata-
mente. Circulam como forma de fazer contato: são enviadas, por exemplo,
a amigos, mostrando onde as pessoas estão e os momentos banais e fora
da solenidade. As fotos (e os vídeos) se bastam nessa circulação. Elas são
imagens imediatas (aparecem na tela), cuja circulação se apresenta como for-
ma de sociabilidade (“Olha o que estamos fazendo agora!”), além de serem
presenteístas (o que vale é o momento, a olhadela rápida), pessoais e móveis
(ver, circular, apagar, postar em um blog em “tempo real”, sem precisar espe-
rar o tempo da revelação e da exibição). O que importa é, como diz Rivière
(2006), marcar o presente banal, e não os momentos especiais e solenes.
As fotos ou vídeos não são produzidos para marcar a memória como
um arquivo, para ficar no dispositivo, imprimir e guardar em um álbum. O
consumo se dá pela circulação na rede, por meio do envio rápido e imedia-
to. Trata-se de circular e não memorizar, para reforçar laços sociais. Vemos
aí como os princípios de emissão e conexão trazem novas dimensões para
a fotografia e para o vídeo, podendo mesmo reconfigurá-los como ferra-
mentas de comunicação interpessoal. Consequentemente, o uso e a prática
associados a fotos e vídeos por celulares são completamente diferentes da
prática e do uso com câmeras fotográficas e de vídeos tradicionais. O que
importa é tocar o outro, distante na rede ou ao meu lado (“Veja essa foto
que fiz agora!”). A ideia não é a exibição na sociedade do espetáculo para
o “público” ou a “massa”, mas para a “minha comunidade individual”,
através da circulação.
Podemos ver aqui mais uma diferenciação de formas tecnomidiáticas
de função massiva e pós-massiva. Embora o celular possa ser usado para
momentos solenes, ou para fazer filmes e exibi-los em festivais para uma
audiência (ou seja, podendo desempenhar funções massivas), o que im-
pera, na prática quotidiana, é o uso para criar e reforçar redes de socia-
bilidade; um uso não-massivo e não-temporal (já que se esgota no aqui e
agora), cujo objetivo maior é tocar o outro: busca-se o nicho e não o hit. Os
DHMCM agem como artefatos para suporte de sociabilidade, de formas de
57
COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS SOCIAIS NO ESPAÇO URBANO
“estar-junto” típicas das formas sociais que surgiram com as TICs e redes
telemáticas. As intenções estão mais próximas do captar a “magia” do pre-
sente e do desejo de expressão individual. Busca-se captar o imprevisível
da banalidade do sujeito ou das relações quotidianas; ver, apagar, circular,
conectar, lançar uma comunicação que se constitui mais pela forma (for-
mante) do que pelo conteúdo. É por isso que a qualidade pouco importa.
Não se quer a pose bem enquadrada ou uma qualidade fotográfica ou vi-
deográfica superior. O que conta é o momento presente e sua circulação.
Menos resolução poderia até ser mais interessante, já que revelaria “a vida
como ela é”.
Talvez estejamos vendo emergir, pela primeira vez, funções verdadeira-
mente comunicacionais e dialógicas dos produtos fotográficos e videográfi-
cos. Esses produtos passam a funcionar, efetivamente, como mídia de comu-
nicação, já que me colocam em contato com outro e permitem diretamente a
troca entre consciências – e não a função de fruição estética em uma galeria
ou na sala escura do cinema. Mais do que exposição, busca-se o que é vivido
junto, a cumplicidade. Não mais sociedade do espetáculo, mas o espetáculo
da vida banal do dia-a-dia compartilhado.
O vídeo do enforcamento de Saddam Hussein19 – feito por um celular
(escondido e ilegal) –, por exemplo, reflete a pregnância e a circulação de
imagens crescentes na cultura pós-massiva contemporânea. Como vimos
até aqui, as fotos e os filmes produzidos com os DHMCM são quase como
os seus similares feitos e popularizados em máquinas portáteis (Polaroids,
Super8, Cassete e MiniDVs). Mas aparece agora uma diferença crucial: a
possibilidade de disponibilização imediata, de produção, circulação e co-
nexão planetária individualizada, e de transformação em fonte para pautar
a mídia de função massiva. Foi o que aconteceu nos atentados do metrô
em Londres, quando as capas dos principais jornais do mundo estamparam
fotos feitas com telefones celulares, ou no enforcamento de Saddam, cujas
imagens circularam pelas emissoras de televisão.
As fotos e os vídeos feitos com os DHMVM têm a potência do registro
(como no exemplo do enforcamento de Saddam), mas o que os diferencia
19
Cf. <http://www.liveleak.com/view?i=863ce7d4a3>. Acesso: 08/08/2008.
58
WEB 2.0
são a produção individualizada, a circulação imediata e a conexão planetária,
fazendo de todos nós, queiramos ou não, testemunhas virtuais, partícipes da
experiência de tudo e de qualquer coisa. O vídeo de Saddam nos fez teste-
munhas da sentença (e dos insultos e provocações que aparecem ao fundo).
A imagem do enforcamento nos causa estranhamento (por ser um enforca-
mento, por ser Saddam e por ser um evento de dimensões políticas planetá-
rias); porém, ao mesmo tempo, ela é facilmente absorvida, já que nos traz a
sensação do banal. Nessa circulação, tornamo-nos testemunhas virtuais para
além da nossa vontade. E também prisioneiros do olhar do outro, que pode
agora tudo registrar e circular. O vídeo do enforcamento de Saddam Hussein
é um marco, e nos coloca diante de questões que vão desde a discussão sobre
o conflito no Oriente Médio e seus impactos (o vídeo gerou questões sobre a
justeza do julgamento, o papel americano na questão, a barbárie dos insultos
na hora da morte, a dignidade da pessoa) até a vigilância e o controle a que
estamos sujeitos hoje (poderia ser filmado? Poderiam ser distribuídas as ima-
gens de um enforcamento ou da morte de alguém?).
Novos dispositivos e velhos rituais
Observamos, no caso dos DHMCM, como as tecnologias de comunica-
ção móvel estão se tornando artefatos de função pós-massiva, de transfor-
mação da representação de si e da ligação espaço-temporal ao espaço urba-
no e ao outro na atual cibercultura. Trata-se, ainda, de formas de controle
nos territórios informacionais nas cibercidades contemporâneas. Vimos
como esses DHMCM trazem funções pós-massivas que estão transforman-
do a paisagem comunicacional da sociedade da informação. Os exemplos
mostrados anteriormente afirmam o caráter da informação móvel como um
signo de não-separação, como o ideal de uma comunicação fusional que
traz alguma garantia contra o abandono e a solidão.
Essa nova subjetividade não estaria sendo construída como desinves-
timento das relações presenciais (embora ele exista evidentemente), e sim
como relações sociais dessa nova cultura da mobilidade, que investe no uso
maior do tempo assíncrono e fluido e na circulação de informação – crian-
do autonomia, liberdade pelo controle e maior domínio informacional so-
bre o mundo. Não se trata apenas de “se informar” (pelas funções massivas
59
COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS SOCIAIS NO ESPAÇO URBANO
dos meios), mas de produzir, conectar e reconfigurar a cultura e as formas
de sociabilidade através das novas funções pós-massivas emergentes das
TICS e das redes telemáticas. E isso não mais no ciberespaço, mas em mo-
bilidade pelo espaço urbano nos territórios informacionais (Lemos, 2007)
e intersticiais (Santaella, 2007).
Assim, cada foto, SMS ou vídeo produzido em dispositivos móveis,
cada blog ou comunidade em redes sociais eletrônicas, cada informação
recebida, produzida e transmitida cria uma temporalidade curta de contato
sem jamais ser satisfeita. Essa circulação é uma forma de fazer contato, co-
municar, construir um pacto pela banalidade do quotidiano. Esse “mostrar
e ver” estabelece uma forma de ligação social, um modo de pertencimento
efêmero, flutuante, empático e tribal que vai configurar a visão de si e a
identificação do outro – formas características da sociabilidade e da subje-
tividade pós-modernas (Maffesoli, 1997; Bauman, 2001; Urry, 2000).
Essa cibersocialidade se dá a partir de novas formas de vivência nas
cidades contemporâneas, onde mobilidade e controle informacional tor-
nam-se práticas do dia-a-dia. O uso de tecnologias móveis interfere, como
toda mídia, na gestão do espaço e do tempo. Essa subjetividade exteriori-
zada, desterritorializada, efêmera e empática cria novos formatos sociais,
que visam compartilhar, a distância e em tempo real, a vida como ela é. A
vida comum transforma-se em algo espetacular (atrai e prende o olhar) e,
ao mesmo tempo, especular (reflete o olhar, o espelho). Não há histórias,
aventuras, enredos complexos ou desfechos maravilhosos. Na realidade,
nada acontece, a não ser a vida banal.
As tecnologias móveis e sem fio estimulam novos e velhos rituais sociais:
trocas, geração de informações, cooperação, reforço da coesão, práticas co-
muns, coordenação de atividades. O uso de tecnologias móveis já está asso-
ciado diretamente a formas de relação social informal (como ir ao café, en-
contrar amigos, ir ao cinema, ao shopping, etc.). Isso mostra como essa rede
de “socialidade” por celular ou por ferramentas da Web 2.0 pode aumentar
o capital social, ou seja, os mecanismos de confiança, de reciprocidades, de
compartilhamento de normas e de valores nas redes sociais (Putnam, 1995).
Podemos ver aqui os pontos principais da coesão social discutidos por
Durkheim (1999) sendo obedecidos no uso de tecnologias móveis: co-pre-
60
WEB 2.0
sença; interação focada; pressão para manter a solidariedade social; e honra
em relação a objetos sagrados (cada vez mais tecnológicos). Vemos novas
tecnologias, velhos rituais, novas subjetividades. Os novos rituais, com as
tecnologias móveis e as formas sociais que se baseiam nessa mobilidade,
estruturam-se em comportamentos sociais que são repetitivos e estabele-
cem as fronteiras e a manutenção de laços sociais.
A produção e a circulação de fotos e vídeos, além das práticas sociais de
anotação urbana, wireless games, “realidade aumentada”, geolocalização e
mapeamento pelos DHMCM, são formas técnicas que exprimem relações
sociais atuais em expansão, como vimos ao longo desse artigo. Em todos os
casos, temos gestão informacional multimodal, ocupação do espaço urbano
e mobilidade, transformando os espaços físicos das cidades e constituindo
uma nova urbanidade. O desafio hoje é compreender essas novas dimen-
sões massivas e pós-massivas da cibercultura e os tipos de relações sociais
que daí emergem.
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63
WEB 2.0
G.A.M.E.S. 2.0 – Gêneros e gramáticas de
arranjos e ambientes midiáticos moduladores de
experiências de entretenimento, sociabilidades e
sensorialidades
Vinícius Andrade Pereira*
Culture is an evolutionary process that find
new uses for the basic biologic abilities.
Peter Brown
Com a crise da metafísica e com as críticas à razão científica moderna, a
ideia de realidade perde sua legitimidade como uma experiência percepto-
cognitiva comum, garantida seja por um princípio transcendental, seja por
um conjunto de condições cognitivas a priori. Assim, ao menos desde o sé-
culo XIX, a ideia de a realidade ser admitida como uma construção social
e, desse modo, como uma experiência parcial e relativa, impõe-se progres-
sivamente nas sociedades laicas ocidentais. Hoje, é amplamente difundida
a ideia de que os diversos aparatos culturais existentes são variáveis deci-
*
Professor do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Comunicação Social
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCS/Uerj), pesquisador do Centro
de Altos Estudos de Propaganda e Marketing da Escola Superior de Propaganda
e Marketing (CAEPM-ESPM) e pesquisador associado do Programa McLuhan em
Cultura e Tecnologia, da Universidade de Toronto, Canadá. O presente artigo é
uma versão ligeiramente modificada do texto apresentado no GT “Comunicação
e Cibercultura” do XVII Encontro da Compós, na Unip, São Paulo, SP, em junho
de 2008.
65
G.A.M.E.S. 2.0
sivas nos modos de apreensão e de representação do que se entende como
realidade, tornando-a múltipla20.
Contudo, ainda que a ideia de realidade seja forjada a partir de um com-
plexo processo que implica um conjunto de construtos sociais, há variáveis
que devem ser consideradas como decorrentes das condições materiais dos
meios e dos corpos humanos em interação e que deveriam ser mais bem
compreendidas pelos estudiosos de comunicação. Dessa mesma relação
material entre meios, corpos e mentes, conjeturamos, transformações sen-
soriais importantes podem ocorrer, contribuindo decisivamente para a sus-
tentação da nova experiência de realidade que se apresenta em cada tempo
e lugar.
Ou seja, se por um lado aceitamos a ideia de que o que tomamos por
realidade deve ser entendido como resultado de um complexo processo
sociocultural, por outro acolhemos a perspectiva que defende que – como
parte intrínseca desse mesmo processo – as formas como recortamos, per-
cebemos e representamos nossos mundos interiores e exteriores são forte-
mente marcadas pelo conjunto tecnológico de cada época, capaz de deixar
marcas sensoriais em corpos que irão, por sua vez, contribuir na sustenta-
ção da realidade engendrada.
Assim, os conjuntos tecnológicos, especialmente os conjuntos midiá-
ticos, que incidem sobre os modos de percepção e de representação das
coisas, das ideias e das experiências, de cada momento histórico e socie-
dade, devem ser considerados como importantes agentes no processo de
construção e de proposição de mundos, de realidades. É legítima, portanto,
a elaboração de um exercício investigativo que tenha como objeto a his-
tória das realidades, estudadas a partir dos diferentes conjuntos e apara-
tos midiáticos hegemônicos de cada momento histórico (Havelock, 1963;
McLuhan, 1964; Kerckhove, 1997; Benjamin, 1985, Innis, 1986 e 1999;
Simmel, 1987).
20
Realidade, para efeitos deste texto, deverá ser entendida como um con-
junto de padrões sensoriais e cognitivos e como um sistema de crenças e de
linguagens simbólicas que, somados, organizam e significam as percepções,
orientando as ações de um grupo nos jogos e nas interações permanentes com
o seu meio ambiente.
66
WEB 2.0
O que se conjectura aqui é a ideia de que os meios de comunicação possuem
lógicas que estruturam suas gramáticas e suas linguagens e que, na contempo-
raneidade, articulados a outros meios de comunicação e espaços previamente
existentes, são capazes de propor novos arranjos e ambientes midiáticos, pro-
movendo novas experiências sensoriais e gerando, enfim, novas realidades.
Tal ideia se inspira, é bem sabido, em Marshall McLuhan, quando afirma que
toda nova tecnologia reconfigura o(s) meio(s) em que estamos inseridos e re-
programa nossa vida sensorial (McLuhan, 1964; Pereira, 2004c)21.
Não se trata aqui de bancar a aposta em um determinismo tecnológico,
que viesse considerar os meios de comunicação como os fatores únicos
determinantes daquilo que se entende como realidade, e sim de tentar com-
preender, com clareza, o papel que desempenham nos processos de subjeti-
vação, de produção de novas sensorialidades e de representações sociais22.
A partir dessas ideias iniciais, podemos delinear o que este artigo pro-
põe explorar. Em primeiro lugar, destacar a perspectiva de que a cultura
contemporânea, marcada pelo excesso de tecnologias digitais, desenvolve
novos arranjos midiáticos que geram novos ambientes e modos de per-
cepção e, assim, novos modos de comunicação que precisam ser mais bem
compreendidos. Essa perspectiva nos daria um conjunto de objetos a serem
investigados, que, apostamos, constituem um novo cenário para as práticas
de comunicação na contemporaneidade. Esse conjunto de novos objetos
nomeamos com a sigla G.A.M.E.S. 2.0 – Gêneros e Gramáticas de Arran-
jos e Ambientes Midiáticos Moduladores de Experiências de Entretenimen-
to, de Sociabilidade e de Sensorialidades.
Como o acrônimo evidencia, ao mesmo tempo que valorizamos a cul-
tura dos games (jogos eletrônicos) como emblemática dos novos tempos,
apostamos que há um conjunto de operações de comunicação que se efe-
tivam menos através de um meio único e mais pela emergência dos am-
bientes e arranjos midiáticos, especialmente quando se trata de práticas de
21
O jogo entre singular e plural aqui se faz como menção aos diversos sentidos
que o termo meio ganha na obra de McLuhan. A respeito, ver Pereira (2004b).
22
Para uma reflexão mais aprofundada dessa perspectiva, particularmente
sobre o tema do determinismo tecnológico e suas relações com as tecnologias
de comunicação, ver Pereira (2006).
67
G.A.M.E.S. 2.0
entretenimento e de sociabilidades mediadas – as quais se confundem, com
frequência, com as práticas de comunicação na contemporaneidade.
O escopo do artigo aponta, portanto, para a análise de novas formas de
interações sociais e de entretenimento que se efetivam através de arranjos
e ambientes midiáticos, sistemas complexos de comunicação que espelham
a cultura dos gamers (jogadores de games) e parecem alterar, de alguma
forma, o campo sensório-perceptivo humano.
Meios e “realidades”
Como contextualização para a ideia acerca da plausibilidade de meios
de comunicação atuarem ativamente na proposição de novas realidades,
recuperemos, ainda que de forma breve, momentos da história da evolução
das tecnologias de comunicação23.
A experiência da entrada da humanidade no mundo das letras resultou em
todo um conjunto de diferentes vivências capaz de afetar profundamente as
formas de percepção, de cognição e de comunicação, engendrando um modo
muito específico de perceber e de representar os acontecimentos sociais. Ape-
sar das muitas e variadas formas de sociedades letradas – desde as primeiras
formas de escrita na Mesopotâmia, com os sumérios, por volta de 3.600 a.C.,
passando pela Grécia, no século V a.C. e pela escrita da Europa, no início da
era Cristã; e considerando os diferentes suportes para a escrita, tais como cinzel
e argila, pena e pergaminho, caneta e papel, máquina de escrever, dentre outras
formas –, algumas características dessa realidade poderiam ser agrupadas em
torno dos seguintes pontos: a emergência da ideia e da percepção de um tempo
progressivo e linear, de um tempo transformador e diferenciador das coisas; a
emergência do ponto de vista individual e singular, isto é, o ponto de vista da-
quele que pode se distanciar do grupo, da coletividade na qual se está imerso; e,
em decorrência disso, o aparecimento de uma percepção de si como indivíduo,
e não mais como corpo coletivo de uma mesma sociedade, como era típico das
sociedades orais (Havelock, 1963; McLuhan, 1964; Goody, 1986; Ong, 1987;
Kerckhove, 1997; Pereira, 2004c).
23
Para uma análise mais detalhada desta evolução, ver Pereira (2006).
68
WEB 2.0
Para McLuhan, a emergência da visão especializada/espacializada
se deu como consequência direta da difusão da tecnologia escrita e, com
isso, a emergência de todo um mundo visual – monossensorial, sequencial,
fragmentado, analítico, progressivo – sobrepôs-se à realidade multissen-
sorial, simultânea e holística, típica do mundo oral ou do espaço acústico
(McLuhan, 1964). Veículos de comunicação como o telégrafo, o rádio, o
cinema e a TV propiciariam novos modelos de realidade.
O mundo eletrônico, das mídias massivas, pode ser recortado em dife-
rentes experiências, a partir dos meios aos quais se faz alusão. Os pontos
em comum que podem aproximar as diferentes experiências e, dessa for-
ma, permitir a compreensão da construção de uma nova realidade elabora-
da a partir desses meios24 são a velocidade da transmissão das mensagens,
a simultaneidade com que os processos de comunicação e de percepção
começam a se dar, o envolvimento de mais de um sentido na experiência
comunicacional e, assim, a retomada de um envolvimento sensorial maior
24
Neste ponto, é importante observar que não iremos negligenciar todo o
conjunto de estudos e teorias que se construíram em torno das análises e
investigações das dinâmicas de recepção de mensagens em meios massivos,
especialmente os estudos da chamada Escola Latino-Americana de Comunica-
ção (Barbero, Canclini, Veron, dentre outros). Tais teorias nos ensinam como
as diversas e ricas malhas simbólicas de cada grupo cultural são capazes de
promover elaborações de conteúdos singulares para uma única e mesma men-
sagem massiva, criticando, desse modo, a ilusão de uma mensagem que se
imponha por um meio, de modo onipotente e onipresente, a diferentes grupos
sociais. Como resultado desse processo, podemos reconhecer, por exemplo,
que a mesma telenovela a que assistimos no Brasil pode permitir a elaboração
de outras mensagens quando assistida em diferentes regiões. Contudo, en-
tendemos que aquele modelo de análise recorta a questão dos processos de
construção de realidades em um outro nível, distinto da perspectiva material
que nos inspira. Acreditamos que aquele modelo de análise se restringe ao que
podemos chamar de dimensão simbólica do processo de produção de realidade,
dimensão esta que coopta ferramentas exclusivas do campo das Ciências So-
ciais para a descrição e a análise dos objetos e problemas comuns ao universo
da comunicação. Reconhecemos a legitimidade e força dos modelos sociais nos
estudos de recepção, mas desconfiamos que, diante dos novos desafios pro-
postos pelas tecnologias e dinâmicas de comunicação contemporâneas, novos
modelos, como aquele que investiga as dimensões materiais da comunicação,
também possam se mostrar úteis.
69
G.A.M.E.S. 2.0
nos processos de comunicação, que parecia banido com o mundo letrado
(McLuhan, 1964; Lévy, 1997; Barret & Redmont, 1997). Mas essa realidade
ganhou novos planos e adornos a partir do final do século XX e início do sé-
culo XXI, com a emergência das tecnologias digitais e dos G.A.M.E.S. 2.0.
G.A.M.E.S. 2.0
A proposição da sigla G.A.M.E.S. 2.0. é mais do que um exercício
meramente retórico. Em primeiro lugar, é importante salientar que a so-
noridade da sigla busca a homofonia com a palavra games, considerando
a importância que essa modalidade de entretenimento ganha nos estudos
contemporâneos de comunicação.
Há no termo G.A.M.E.S. 2.0, ainda, com o recurso do uso dos signos
gráficos (pontos) e numéricos, o apêndice “2.0”, que, além de ser uma refe-
rência ao duplicar das letras que formam a sigla G.A.M.E.S., é uma explíci-
ta referência à cultura 2.0., ou melhor, à cibercultura 2.0 (Piscitelli, 2002),
entendida como a cultura na qual se observa a ativa participação do público
na geração de conteúdos e produtos midiáticos (O´Reilly, 2005).
Trata-se, contudo, de acolher o termo G.A.M.E.S. 2.0 como um convite
para pensarmos como algumas das características das mídias contemporâ-
neas – como mobilidade, velocidade de acesso a volumes enormes de da-
dos, portabilidade, memória expandida, banda larga de conexão, interfaces
gráficas cada vez mais amigáveis (aumentando o potencial de usabilidade),
ubiquidade e multifuncionalidade – tornam complexa a ideia de meio, pro-
movendo arranjos e ambientes midiáticos os mais variados, que se trans-
formam em moduladores tecnológicos de ações e práticas cotidianas de en-
tretenimento e de sociabilidades, reprogramando sensorialidades e, assim,
redefinindo os espaços até então destinados a essas práticas.
Arranjos midiáticos
Como arranjos midiáticos entendemos todo um conjunto de novos modos
de diferentes mídias se associarem a outras mídias para efetivar práticas de co-
municação. Por exemplo, quando alguém se conecta à internet com um laptop,
via celular; ou quando um blog é acessado e atualizado via celular; ou, ainda,
70
WEB 2.0
quando um outdoor transmite informações ao celular de um transeunte, via
bluetooth. Em todos esses casos, as análises de um meio específico, tomado
isoladamente – o celular, o laptop, o outdoor –, parecem não mais dar conta da
complexidade das dinâmicas comunicacionais em questão.
Ambientes midiáticos
Os ambientes midiáticos podem ser entendidos, inicialmente, através
de dois tipos de espaços. O primeiro seria aquele constituído como um
espaço híbrido, físico e tecnodigital, sensível às ações de pessoas e de si-
nais de diferentes mídias que cruzam o seu interior. Típicos de espaços
de entretenimento, como parques temáticos, ou de espaços publicitários,
como lojas e salas voltadas para branding experience (experiências de pro-
moção de marcas ou produtos), esses espaços reagem e se comunicam com
pessoas e mídias que se introduzem nos seus interiores, respondendo com
mensagens físicas (tais como mudanças de cores, temperatura, sons e es-
tímulos físicos), enviando mensagens para o celular, ou, ainda, recebendo
informações das mídias em movimento (mídias locativas, RFDIs, etc.). Há
todo um conjunto de propostas de arte digital interativa que se utiliza dessa
ideia de ambientes midiáticos, como no caso dos ambientes imersivos e de
tecnologias como o Mscape da HP, por exemplo, conforme será visto.
Um outro modo de entender os ambientes midiáticos diz respeito à
constituição de ambientes virtuais como os metaversos25 ou os espaços vir-
tuais 3D, típicos de games do tipo MMORPGS.26 Nesses casos, a comuni-
cação se dá a partir de uma relação de exploração do ambiente através de
um avatar ou na forma de um caminhar, como nos jogos de tiro em primei-
ra pessoa, e é mediada por uma interface gráfica em que a pessoa interage
diretamente com os objetos e atores presentes no referido ambiente.
25
Metaversos são mundos virtuais online que, através de avatares, permitem a
frequentação e a constituição de grupos que exploram o ambiente, o qual pode
ganhar ou não dinâmicas de jogo e de comunidade. Exemplos: Gaia Online,
Zwinktopia, Habbo Hotel, Second Life, World of Warcraft, Galaxies, etc.
26
Sigla para as palavras Massive Multiplayer Online Role Playing Games ou
Multi Massive Online Role Playing Game.
71
G.A.M.E.S. 2.0
Como dito, os games ganharão destaque na análise desse novo cenário
de comunicação por serem considerados excelentes exemplos de como se
formam arranjos e ambientes midiáticos mediadores de experiências de
entretenimento e de sociabilidade, capazes de gerar novas sensorialidades.
Podendo ser uma prática individual ou compartilhada, como em um
jogo de múltiplos usuários (MMORPG), os games promovem entreteni-
mento e, em muitos casos, sociabilidade (Andrade, 2007) e novas sensoria-
lidades – aspectos que serão vistos adiante.
Na sequência, exploraremos duas apostas da indústria dos games, mais espe-
cificamente, de consoles de games27 – apresentadas por dois dos maiores gigan-
tes da indústria do entretenimento –, que, acreditamos, ajudam a compreender a
emergência do novo cenário de comunicação traduzido com os G.A.M.E.S. 2.0.
Guerra dos consoles/Guerra dos sentidos
Um projeto implementado por uma importante empresa do ramo dos
games, há cerca de dois anos, pode ser considerado um divisor de águas
no universo dos gamers. Trata-se de mais uma estratégia para enfrentar o
que podemos chamar de a guerra dos consoles: o lançamento do PlaySta-
tion III (PS3) pela Sony e o lançamento do Wii pela Nintendo, ambos em
200628. O que nos interessa aqui – para além de questões como diferenças
de preços, estratégias de marketing e filosofia de cada uma das empresas
na concepção dos seus consoles, que dariam um estudo à parte – é explorar
como as apostas que cada uma das empresas faz na lógica de funcionamen-
to dos seus consoles podem revelar, ainda que por caminhos distintos, as
apostas em diferentes modelos de dinâmicas sensoriais e a emergência de
uma nova realidade na cultura contemporânea.
Sem querer entrar em detalhes técnicos em relação ao PS3 da Sony ou
ao Wii da Nintendo, iremos apenas salientar uma distinção fundamental
27
Um console é, basicamente, uma espécie de hardware mais os controles de
comando que permitirão que os jogos possam funcionar.
28
Embora o PS3 tenha sido divulgado na E3 – Electronic Entertainment Expo de
2005, o console só apareceu efetivamente no mercado em 2006.
72
WEB 2.0
entre ambos que interessa para as reflexões que se encaminham. O que vai
marcar distintamente as concepções de consoles desenvolvidos pelas duas
empresas de games é o desvio que a Nintendo fez em relação ao que pa-
recia ser a escalada de desenvolvimento dos consoles. Essa escalada pode
ser entendida como uma busca contínua por um padrão de resolução de
imagem e de som cada vez mais próximo da realidade, tal como se encontra
nos projetos das TVs digitais. Podemos chamar essa busca de escalada hi-
per-realista, isto é, a busca da simulação da realidade através de imagens e
sons tão mais próximos da experiência não simulada quanto seja possível.
O hiper-realismo29 deve ser entendido, assim, como o conjunto de ex-
periências audiovisuais que é possível simular, da forma mais próxima
possível, de um acontecimento do mundo – seja uma corrida de carros, um
jogo de basquete ou uma batalha.
Entretanto, apesar de a Nintendo ter tecnologia para correr pari passu
com a Sony, e mesmo com a Microsoft (Xbox 360), a empresa resolveu que
poderia apostar em outra direção30. Não seguiria, necessariamente, a via
audiovisual para tentar chegar ao cume do hiper-realismo, mas a via tátil
ou, mais especificamente, a propioceptiva31.
29
Usamos essa expressão inspirados no movimento de arte hiper-realista, do
final dos anos 60 e início dos anos 70, especialmente nos EUA e na Inglaterra,
também chamado de fotorrealismo ou realismo fotográfico, que consistia em
pinturas e/ou esculturas tão detalhistas nas suas expressões que causavam a
sensação paradoxal de serem realistas demais para serem reais. Na pintura,
teve representantes como Duane Hanson, Chuck Close, Richard Estes e George
Segal; e na escultura, nomes como De Andrea, David Hanson, Ron Mueck e
Jorge Felício.
30
Este texto evitou apresentar mais um console nas considerações desenvolvi-
das, no caso o Xbox da Microsoft, em função desse console não trazer nenhuma
novidade em relação aos pontos tratados com a análise dos consoles da Sony
e da Nintendo. Dentro do conjunto de atributos que estamos considerando,
podemos dizer que o Xbox se aliaria àquele apresentado pelo PS3 da Sony, ou
seja, atributos que privilegiam as sensações audiovisuais, em vez das táteis e
propioceptivas.
31
Propiocepção pode ser entendido como o sentido que nos dá a percepção do
nosso corpo em relação ao seu interior e ao exterior. Próximo da cinestesia, que
seria a percepção do movimento do corpo, a propiocepção deve ser entendida
como mais um sentido corpóreo. Conforme a Wikipedia, propriocepção “é a
73
G.A.M.E.S. 2.0
Assim, a grande novidade do console Wii é menos os efeitos audiovisuais
que pode simular e mais as sensações físicas que oferece a quem esteja parti-
cipando de alguns dos seus jogos. Exigindo que o gamer manuseie o console
de forma muito próxima daquela que manusearia um taco de golfe ou de
bilhar, uma espada ou uma bola de boliche, em uma experiência física real,
a Nintendo aposta menos em definição audiovisual e mais na simulação do
mundo pela via tátil-propioceptiva-cinestésica32, com riqueza de detalhes33.
Com a aposta da Nintendo, temos um passo considerável em direção à
constituição do que chamaremos de mídias propioceptivas, ou seja, mídias
que sejam operadas e que respondam a partir de um conjunto de infor-
mações que se relacionam aos movimentos dos corpos dos usuários e das
mídias em questão.
Enquanto o PS3 é capaz de produzir vídeo HD de alta resolução (HD -
hight definiton, de até 1080p), aproximando-se dos blockbusters de padrão
Hollywood34, a Nintendo, com o Wii, apresenta boa parte dos seus jogos
com bonequinhos algo toscos e infantis – que podem ser avatares constru-
ídos pelos usuários a partir de um dos canais oferecidos pelo console (Mii
capacidade em reconhecer a localização espacial do corpo, sua posição e orien-
tação, a força exercida pelos músculos e a posição de cada parte do corpo em
relação às demais, sem utilizar a visão. Esse tipo específico de percepção per-
mite a manutenção do equilíbrio e a realização de diversas atividades práticas.
Resulta da interação das fibras musculares que trabalham para manter o corpo
na sua base de sustentação, de informações táteis e do sistema vestibular, loca-
lizado no ouvido interno, responsável pelo equilíbrio”. Cf. <http://pt.wikipedia.
org/wiki/Propriocep%C3%A7%C3%A3o>. Acesso: 10/08/2008.
32
Conjugaremos, por vezes, os termos tátil, propiocepção e cinestesia, bem
como os seus variantes [táteis, propioceptiva(o)s, cinestésica(o)s], como senti-
dos próximos, que lidam com mensagens de mesma natureza física.
33
Para uma ideia de como funciona o console Wii e seu apelo tátil, ver o fil-
me de demonstração da Nintendo no YouTube. Cf. <http://www.youtube.com/
watch?v=8qfhikLalek>. Acesso: 10/08/2008.
34
Nomeamos padrão Hollywood-blockbuster aquele que se impõe na maioria
dos filmes de ação produzidos pela indústria de Hollywood, nos quais a alta
definição das imagens e o som estereofônico de alta performance são requisi-
tos fundamentais para a eficiência do filme. Para ver uma demonstração dos
efeitos hiper-realistas do PS3 à imagem do padrão Hollywood-blockbuster, Cf.
<http://www.youtube.com/watch?v=YJsvE_L0Pzw&mode=related&search=>.
Acesso: 10/08/2008.
74
WEB 2.0
channel) – e cenários com deficiências de imagens, muitas vezes distantes
da experiência real, aproximando-se desta, basicamente, através dos efei-
tos físicos simulados.
Mas o que tudo isso pode indicar ou interessar? Até aqui, o que isso
tudo pode indicar, no mínimo, é um aumento da complexidade das práti-
cas de games. Um conjunto de práticas que vem demonstrando, em alguns
casos, efeitos concretos sobre o aparato sensorial humano, como o desen-
volvimento de certas habilidades visuais em praticantes de games de ação,
conforme demonstraram estudos que atestaram o incremento da atenção
visual central e periférica em praticantes de games de ação violentos (Gre-
en & Bavelier, 2003; Riesenhuber, 2004). Nesse caso, embora os autores
chamem a atenção para quão errônea possa ser a generalização desse ex-
perimento para outras áreas cognitivas sem os devidos testes laboratoriais,
parece evidente, por si só, o incremento das atividades motoras que vem
com o tempo para todos que desempenhem ações táteis refinadas, como o
uso de celulares, de canetas-mouse ou de consoles de games específicos,
como o próprio Wii, por exemplo. Não parece totalmente absurdo espe-
cular, assim, que possíveis alterações motoras possam ser deflagradas em
processo, a partir de práticas de jogos do tipo Wii. Aliás, tal perspectiva
tem sido aventada, considerando os diferentes usos que o Wii tem ganhado
em clínicas de reabilitação motoras e mesmo com pacientes com mal de
Parkinson e mal de Alzheimer35.
Novas sensorialidades? Para quê?
Diante do cenário da guerra dos consoles, é possível conjeturar que a
escalada hiper-realista poderia indicar que, a partir dos usos dos diferentes
modelos de consoles propostos pela Sony e pela Nintendo, afetações – se
não da visão, da audição e do tato – das visualidades, das audibilidades e
das tactilidades estariam em processo nos praticantes de games36.
35
Cf., por exemplo, a matéria “Hospital usa videogame Wii para tratar pacien-
tes”, publicada no portal G1 e disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/
Tecnologia/0,,MUL208743-6174,00.html>. Acesso: 10/08/2008.
36
Ao efetuarmos essa distinção, abrimos espaço para a ideia de que certas
75
G.A.M.E.S. 2.0
O aumento da complexidade dos games parece revelar uma cultura na
qual práticas de entretenimento e de comunicação são voltadas, cada vez
mais, para a hiperestimulação dos sentidos. Sob certa perspectiva, a guerra
dos consoles parece ser a metáfora de uma cultura que visa nos preparar
sensorialmente para uma nova realidade, ainda em gestação, que traria como
marcas uma alta performance das percepções visuais e auditivas e das ações
finas táteis, cinestésicas e propioceptivas. Ora, mas onde, ou para quê, tais
competências sensoriais poderiam ser úteis na cultura contemporânea?
Em primeiro lugar, nos usos das próprias tecnologias que são geradas
e aperfeiçoadas continuamente, especialmente aquelas que utilizam telas
sensíveis ao toque (touch screen), como o celular iPhone, players do tipo
iPod, palms diversos e a plataforma Surface37 da Microsoft. Ou seja, nesse
sentido, parece que a cultura estaria treinando, através dos diferentes apara-
tos midiáticos, corpos e mentes para a manutenção de sensorialidades que
sustentem toda essa mesma cultura altamente sensorial (Singer, 2001).
Em segundo lugar, novas sensorialidades, que possam emergir a partir do
uso de mídias propioceptivas e de mídias que se expressem através de lin-
guagens com altas definições audiovisuais e táteis, podem ser requeridas para
um bom desempenho em espaços virtuais imersivos e em espaços digitais do
tipo 3D (três dimensões), ou seja, nos novos ambientes midiáticos.
A ideia de espaços digitais 3D comparecerem como uma outra tendên-
cia da cultura contemporânea pode ser constatada em diferentes episódios
e acontecimentos hodiernos. O principal deles é, sem dúvida, a emergência
e o incremento das práticas dos games de última geração. Mas essa mesma
tendência é anunciada como projeto futuro das TVs, em espaços e tecnolo-
gias de ensino que recorrem às tecnologias digitais para simular situações
reais nas quais os conhecimentos do aprendiz possam ser testados – simu-
ladores de voo e testes de direção que reproduzem fielmente condições e
ambientes para a condução do aeroplano e do veículo, por exemplo, além
operações sensoriais podem se efetivar menos por alterações físicas dos con-
juntos sensoriais corporais e mais por controle e práticas específicas sobre esses
conjuntos, como sugerem os trabalhos de Michel Foucault e Jonathan Crary.
37
Para o conhecimento desta plataforma, Cf. <http://www.microsoft.com/sur-
face/index.html>. Acesso: 10/08/2008.
76
WEB 2.0
de toda uma série de games educacionais, chamados jogos sérios (serious
games) – e em variadas peças publicitárias na internet38.
Bolter e Grusin (1998) falam de algo parecido quando propõem a ideia
de imediação (immediacy) como uma busca que os meios de comunicação
revelariam, hoje, ao tentarem dar a impressão de que não há mediação nas
suas operações. Ou seja, na busca da simulação de uma relação direta com
o objeto representado, através de interfaces que não se deixassem mostrar
como mediadoras ou como interfaces – interfaceless-interface, de acordo
com os autores; ou inter-face-a-face, conforme propomos –, o meio de co-
municação acabaria proporcionando vivências através das quais seria pos-
sível experimentar as dimensões tridimensionais dos objetos e dos espaços
com os quais se queira interagir.
Um outro bom exemplo da adoção de espaços digitais 3D como uma
tendência da cultura contemporânea é a plataforma eXplo, proposta pela
Gemini Mobile Technologies. Trata-se de uma interface 3D, que estará dis-
ponível para alguns modelos de celulares e computadores de bolso, na qual
será possível, através de um avatar, conversar, comprar, assistir a video-
clips, partilhar fotos, etc. com outros usuários, em um ambiente 3D, online
e wireless. Uma primeira aplicação dessa plataforma já está sendo testada
para a empresa japonesa de telefonia e computação móvel Softbank (ex-
Vodafone Japan), com o projeto S!Town39.
Por fim, reafirmamos que essa tendência das mídias de buscar lingua-
gens tridimensionais ganha suas melhores expressões nos ambientes mi-
diáticos, especialmente naqueles modelos que congregam espaços físicos
com espaços tecnodigitais. Nesses casos, a tridimensionalidade do espaço
está tanto na parte midiática – os aparelhos que são disponíveis ou portados
enquanto se frequenta o espaço em questão – quanto na parte não midiática
do ambiente – construções físicas, relevos, móveis e todo tipo de cultura
material que o ambiente apresente.
38
Cf., por exemplo, os sites Agency Net <http://www.agencynet.com> e Dori-
tos <http://www.doritos.com>.
39
Veja demonstração da proposta em <http://www.geminimobile.com/explo-
Demo.html>. Acesso: 10/08/2008.
77
G.A.M.E.S. 2.0
Para essa ideia ser visualizada, pensemos nos usos das holografias em
variados ambientes – desfiles de moda, shopping centers, teatro, etc. – ou
em aparatos como o Mscape, um dispositivo lançado pela HP que permite
explorar ambientes físicos com informações visuais que só estão disponí-
veis através da conjunção aparelho/ambiente. Os usos desse tipo de device
vão desde jogos com multiusuários em espaços públicos até expedições
turísticas em uma cidade histórica40. Tanto no caso das holografias quanto
do Mscape é a composição ambiente mais mídia que define as mensagens
e efetiva as práticas de comunicação.
Dos meios aos ambientes de comunicação
Diante da plausibilidade de a cultura contemporânea, através das suas ex-
periências de entretenimento e de sociabilidades mediadas, estar promoven-
do a especialização das sensorialidades para melhor lidarmos com os novos
arranjos e ambientes midiáticos, que indicações poderíamos tirar disso?
Uma primeira conjetura que apresentamos é que, com a tendência na cultura
contemporânea de valorizar os espaços digitais 3D, entramos em uma era na qual
as dinâmicas de comunicação não deverão mais ser analisadas, exclusivamente,
através da ideia de veículos ou meios de comunicação, mas contando com a ideia
de ambientes de comunicação ou, como dito, ambientes midiáticos.
Críticos poderão se manifestar, argumentando que os tais ambientes
midiáticos 3D só podem ser garantidos através de meios de comunicação
específicos, como o computador de bolso ou o celular, por exemplo, o que
garantiria a sobrevivência da ideia de meio/veículo de comunicação. Con-
tudo, observando com mais cuidado o cenário midiático que se delineia,
constatamos que não se trata de um único veículo garantindo a emergência
de uma nova realidade, na forma de cenários 3D. Trata-se de todo um
conjunto de meios que se associam – o dispositivo midiático em questão
com outros meios (celulares, computadores de bolso, laptops, etc.), as tec-
nologias para transmissão de dados sem fio, a própria web, programas de
40
Veja exemplo em: <http://www.youtube.com/watch?v=BUOHfVXkUaI&eurl
=http://www.tecnosensorial.blogspot.com/>. Acesso: 10/08/2008.
78
WEB 2.0
informática, etc. –, formando os arranjos midiáticos e, através destes, os
ambientes midiáticos. Nesse sentido, o meio parece perder a especificidade
como tal, passando a se apresentar apenas como uma das muitas vias para
o acesso a um ambiente midiático 3D, onde se efetivarão as experiências
de entretenimento, de sociabilidades e de comunicação.
É como a própria Gemini descreve parte da sua missão como empresa
de tecnologias móveis de comunicação: “Together, we are working to ena-
ble a new wireless world where the mobile device is not just a means of
communication but a way to experience and connect socially with commu-
nities around the corner – or around the world (grifos nossos)41.
(In)conclusões
O percurso trilhado, ao considerar as práticas contemporâneas de co-
municação através da ideia dos G.A.M.E.S. 2.0, exige-nos um esforço final
em busca de algumas indicações e questões (in)conclusivas.
Em primeiro lugar, seria importante deixar evidenciada a necessidade
de se pensar um método que possa dar conta da classificação dos arranjos e
ambientes midiáticos, apesar das dificuldades que tal empreitada apresenta,
considerando as características de fluidez e instabilidade dos objetos em
questão. Sem uma resposta mais completa, no momento, apenas apontaría-
mos que tal possibilidade deveria cotejar as teorias dos sistemas (Bertalan-
ffy, 1975) capazes de lidar com conjuntos de objetos que formam estruturas
instáveis, como parece ser o caso em foco.
Quanto às gramáticas dos arranjos e ambientes midiáticos, algumas
pistas já foram apresentadas. Tais gramáticas parecem se estruturar a partir,
especialmente, de uma sintaxe tridimensional e multissensorial, como visto
através dos exemplos e casos expostos.
41
Cf. em <http://www.geminimobile.com/customer/> Acesso: 10/08/2008.
Tradução do autor: “Juntos, estamos trabalhando para possibilitar um novo
mundo sem fio, onde o dispositivo móvel não seja apenas um meio de comuni-
cação, mas um meio de vivenciar e conectar socialmente comunidades, ali na
esquina, ou ao redor do mundo”.
79
G.A.M.E.S. 2.0
No que diz respeito às linguagens, os referidos arranjos e ambientes si-
nalizam uma mudança importante. Através, especialmente, das linguagens
dos games, o cenário midiático contemporâneo parece promover um novo
modelo de expressão, transformando, aos poucos, a linguagem audiovisual –
que, guardando as devidas diferenças e particularidades, era comum à TV, ao
cinema e a uma certa modalidade de games no ponto em que mobilizavam,
hegemonicamente, a visão e a audição conjugadas como sentidos principais
– em uma linguagem mais complexa, que agrega dimensões físicas em suas
dinâmicas, e a qual poderíamos chamar de linguagem visuaudiomotora. Esse
modelo de linguagem, uma espécie de síntese das apostas das empresas de
games que participam da guerra dos consoles, reunirá os elementos audiovi-
suais de alta resolução 3D com os elementos táteis-proprioceptivos-cinesté-
sicos, conjugando-os em uma expressão multissensorial.
Por fim, considerando o conjunto de objetos e desafios novos que a pro-
posição dos G.A.M.E.S. 2.0. apresenta, faz-se necessário reexaminarmos o
valor de proposições materialistas para o estudo da comunicação, em busca
de métodos que possam dar conta do conjunto de questões e afetações sen-
soriais que a cultura contemporânea parece promover.
Mais estímulos. Mais sensorialidades em jogo. Se, de fato, é esse o
movimento da cultura midiática atual e vindoura, precisaremos aproximar
cada vez mais o campo da comunicação de áreas antes distantes, como a
das neurociências, por exemplo. Se, então, essa aproximação se der, talvez
propostas como a de pesquisas neuroculturais (Kerckhove & De Vos, 1991)
comecem a fazer sentido para o campo da comunicação e, mais especifi-
camente, para o campo da cibercultura. Propostas que arriscariam aproxi-
mações entre matéria e espírito; tecnologias midiáticas e corpos; palavras,
imagens e redes neurais; luzes, sons, vibrações e sensorialidades.
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82
WEB 2.0
PARTE 2 – PRODUÇÃO PARTICIPATIVA:
CAPITAL SOCIAL E GERAÇÃO DO COMUM
Modelos de colaboração nos meios sociais da
internet: uma análise a partir dos portais de
jornalismo participativo
Fábio Malini*
A nova paisagem midiática da internet
Em sua configuração atual, a internet transita para uma nova paisagem
midiática. Desde a radical napsterização da rede42, em 1999, quando os
usuários passam a determinar livremente o seu comportamento e ligações
sem intermédio de centros de difusão de informação, a internet passou a ser
um ambiente atravessado por um conjunto de meios sociais online baseado
na lógica peer-to-peer. Após o aluvião Napster, construído globalmente pelos
usuários da internet, o termo peer-to-peer passou a designar múltiplos pro-
cessos e práticas sociais relacionadas com a livre possibilidade de construção
autônoma de novos meios de expressão da cultura (Malini, 2007).
Como analisou Bauwens (2005), o termo peer-to-peer não se restrin-
ge ao sentido de “computadores abertos compartilhando informação entre
eles” (Lemos, 2002, p.111). O sistema peer-to-peer é, para ele, um terceiro
42
Sobre isso, ver Lemos (2002).
*
Professor adjunto no Departamento de Comunicação Social na Ufes. Coordena
o Laboratório de Estudos em Internet e Cultura. Este texto é produto de pes-
quisa financiada pelo CNPq.
83
MODELOS DE COLABORAÇÃO NOS MEIOS SOCIAIS DA INTERNET
modo de produção social – uma nova economia política – que se alicerça
em cinco infra-estruturas: a primeira é o acesso ao capital fixo, particu-
larmente, aos computadores; a segunda é a disponibilização de sistemas
públicos de publicação da informação e de comunicação, que possibilitam ao
usuário participar hospedando todo tipo de conteúdo, conectando-os a outros
conteúdos e a outros sujeitos – os chamados dispositivos de webcasting; a
terceira é a existência de um sistema de software destinado à cooperação
autônoma. É o caso de softwares que facilitam a publicação de vídeos,
wikis, textos, imagens, arquivos, etc.; o quarto é a existência de uma infra-
estrutura legal – aqui se destaca a lógica do copyleft e do creative com-
mons; o quinto, e último, o requisito social, o que significa a aceleração da
capacidade, em massa, por parte dos cidadãos, de participar da criação e
divulgação de suas próprias obras (Bauwens, 2005).
Assim, o que vemos hoje, de novidade, é que a internet interliga os indiví-
duos e lhes possibilita formar o seu próprio habitat de comunicação sem, para
isso, ter de passar por qualquer mediação. É, de fato, um plano de antagonis-
mo com os sistemas de comunicação que a antecederam. Esse antagonismo
ocorre porque a colaboração crescente dos usuários na produção de conteúdos
para sites públicos e comuns na internet gera uma “nova audiência” em “no-
vos meios de comunicação”, que contêm conteúdos multimídia que comple-
mentam, subvertem ou, ainda, divergem daqueles emitidos pelos veículos da
mídia de massa. A novidade, portanto, está na existência de sites e sistemas de
informação populares que só funcionam graças à colaboração dos usuários na
publicação, troca e avaliação de conteúdos. Esses sites e sistemas, portanto, são
autorregulados, editados, moderados, comentados, ranqueados e administrados
pelos próprios usuários (ou com a colaboração deles). E já foram batizados de
meios sociais ou meios cidadãos, pois é a sociedade que ativa tais meios e cria
uma cultura generalizada de colaboração. Segundo Cavazza (2008, online),
tais meios sociais podem ser considerados como:
ferramentas de publicação de blogs, wikis e portais de jornalis-
mo cidadão;
ferramentas de troca de vídeos, imagens, links, músicas, sli-
deshows;
ferramentas de discussão, como fóruns, videofóruns, instant
messaging e voz sobre IP – voip;
84
WEB 2.0
redes sociais, como o Orkut, o Facebook e o MySpace;
ferramentas de micropublicação, como o Twitter;
ferramentas de agregação de feed, como o FriendFeed;
plataformas de games sociais, como o Doof e o ImInLikeWi-
thYou;
ferramentas de mundos virtuais, como o Second Life.
Mesmo assim, contudo, não há somente meios sociais baseados em pro-
cessos emergentes (bottom up). Também se popularizam outros que são
estruturados em modelos top down, haja vista a adoção geral de formas de
jornalismo participativo nos grandes portais de informação (nos quais o
usuário produz um contingente vasto de informações exclusivas em dife-
rentes formatos para os jornalões, a custo praticamente zero).
Essa realidade de disputa entre esses modelos traz uma questão abso-
lutamente vital: a colaboração em rede, como indaga Rheingold (2004,
p.223), cria condições propícias para um contrapoder ou se trata de um si-
mulacro a mais, uma simulação de contrapoder que realmente não muda o
essencial, isto é, o regime de controle monopolista da produção midiática?
A partir desse problema, este artigo busca analisar a atual paisagem mi-
diática da internet, problematizando os modos de colaboração nas chama-
das mídias sociais, através de uma reflexão teórica sobre os conceitos de
“colaboração” e “comum” na literatura acadêmica sobre cibercultura. E, em
seguida, partindo da análise das formas de atuação colaborativa dos usuários
na produção de notícias em portais de jornalismo participativo – de grupos
tradicionais e independentes de mídias –, examinar os conflitos e clivagens
entre o jornalismo profissional e a produção amadora em mídias sociais.
Internet, colaboração e produção coletiva do comum
O comum baseia-se na comunicação entre singula-
ridades e se manifesta através dos processos sociais
colaborativos da produção. (Antonio Negri e Micha-
el Hardt, Multidão, 2005, p.266)
85
MODELOS DE COLABORAÇÃO NOS MEIOS SOCIAIS DA INTERNET
Ao analisar as relações entre a produção estética dessa internet partici-
pativa, o diretor de teatro francês e ativista cultural Marc le Glatin (2007)
observa que o modus operandi do processo criativo, nos dispositivos inte-
rativos em rede, transmutou o sentido vigente de criação cultural. No lugar
de uma criação que resulta em um objeto pronto, com as novas tecnologias
da informação, verificamos a emergência do processo colaborativo entre
grupos para criar um trabalho, performance, evento ou projeto. Dentro da
lógica da criação colaborativa, opera um modo de trabalho baseado na co-
leta, na classificação e na associação dos trabalhos preexistentes, dentro de
um universo bastante variado. Nesse sentido, criar é reunir fragmentos de
estéticas disponíveis na rede para que se atribua a estes novos significados
e valores. O fundamento da colaboração em nova mídia é a reinterpretação
coletiva, portanto. Essa serviria como uma proposição rítmica original para
que uma sugestão inicial possa ser modificada ou complementada. Assim,
certas obras disponíveis na rede não corresponderiam mais ao conceito de
obra acabada; ao contrário, a obra é “resultado provisório de um processo
coletivo em certo momento dado” (Le Glatin, 2007, p.57).
Esse processo de colaboração criado pela rede não afeta somente o domínio
da arte, sendo uma condição geral da produção social. Como argumenta o artista
francês, a internet tem “desinibido o indivíduo de criar”. E, em parte, isso se
dá porque “sobre a internet, a criatividade nasce da fricção com as atividades
mais cotidianas, das interações entre os internautas que são, ao mesmo tempo,
leitores, espectadores, ouvintes e produtores de textos, de imagens e de sons”
(Le Glatin, 2007, p.57). É extraído disso o dinamismo da internet, de um desejo
de comunicação transparente, em que “os atores dominam, ao mesmo tempo, a
informação e a mídia que a faz circular” (Weissberg, 2004, p.123).
A cultura da colaboração em rede tece uma comunicação horizontal, “sem
passar pelos poderes, sem passar pelas hierarquias”. Daí que seu efeito colateral
é a crise do profissional da mediação dos meios de comunicação de massa. O
fato de, tendencialmente, todos poderem comunicar e criar faz com que as com-
petências desses profissionais estejam, ao mesmo tempo, em destaque e difusas
nas mãos de muitos (em crise, portanto). A aceleração da socialização dessas
competências acaba por reduzir o valor do trabalho do jornalista e do crítico,
por exemplo, mas potencializam a emergência de inúmeros mediadores da
cultura.
86
WEB 2.0
A cultura colaborativa em rede se acelera por causa, segundo Anderson
(2006), de três forças. A primeira é a da democratização das ferramentas de
produção. “O melhor exemplo disso é o computador pessoal, que pôs todas
as coisas, desde as máquinas de impressão até os estúdios de produção de
filmes e de músicas, nas mãos de todos” (Anderson, 2006, p.52). Isso fez
com que o universo de conteúdos disparasse, aumentando a oferta de bens
e de produção de comunicação. A força difusa dessa produção é visível ao
serem obervados os números do Youtube, por exemplo: cerca de 70 mil
vídeos são hospedados diariamente e os usuários assistem a 100 milhões de
vídeos por dia em seus servidores. E os dados são de 2006.43
Uma segunda força é a de redução dos custos do consumo pela demo-
cratização da distribuição. “O fato de qualquer um ser capaz de produzir
conteúdo só é significativo se outros puderem desfrutá-lo. O PC transfor-
mou todas as pessoas em produtores e editores, mas foi a internet que con-
verteu todo o mundo em distribuidores” (Anderson, 2006, p.52). E uma
terceira força é a ligação, cada vez mais próxima, entre oferta e demanda.
Milhares de usuários, em seus blogs, são capazes atualmente de formar pre-
ferências, que chegam até a eles graças a tecnologias de busca. O contato
entre consumidores acaba por gerar um efeito colateral positivo: a conver-
sação entre eles, na medida em que descobrem “que, em conjunto, suas
preferências são muito mais diversificadas do que sugerem os planos de
marketing” (Anderson, 2006, p.55).
De outra perspectiva, Weissberg (2003) corrobora com o diagnóstico tra-
çado por Anderson, acrescentando que a cultura colaborativa ainda fez vir
à tona novas formas autorais distribuídas, concretizadas em manifestações
como: assinatura coletiva, recusa a exibir-se, impossibilidade de distinguir o
que é de quem, assinatura coletiva com atribuição individual pelo todo pela
parte. Isso, paralelamente à intensidade de novos autores únicos que surgem
nas redes por conta da novidade de suas linguagens singulares.
Graças às novas tecnologias de informação e comunicação, os conhecimen-
tos podem circular independentemente do capital e do trabalho. Porém, ao
43
Sobre isso, ler INFO ONLINE, disponível em: <http://info.abril.com.br/aber-
to/infonews/072006/ 17072006-2. shl>. Acesso: 01/08/2008.
87
MODELOS DE COLABORAÇÃO NOS MEIOS SOCIAIS DA INTERNET
mesmo tempo, esses conhecimentos nascem e se difundem por heterogêne-
se (ou seja, ao longo de trajetórias desenhadas por aportes criativos cumula-
tivos, cooperativos e largamente socializados) nos contextos de produção e
uso. É por isso que se pode falar a justo título de produção de conhecimento
por conhecimentos, o que traduz e denota a ideia de que se passa de um
regime de reprodução a um regime de inovação. (Corsani, 2003, p.27)
Por outro lado, na concepção estética de Manovich (2004, p.251) a in-
teração entre autor e usuário é falsa. Porque o autor não possui a dimensão
das intenções e pressuposições do usuário em contato interativo com sua
obra online. E, do ponto de vista do usuário, este não reconhece os propó-
sitos e o processo de criação envolvido em uma obra em nova mídia. Nesse
sentido, não haveria colaboração alguma entre esses dois sujeitos. E a au-
toria, na infoesfera, se reduziria a uma “seleção de menu”, ou seja, a uma
“produção dirigida por software”.
Numa radical crítica à lógica colaborativa da produção em rede, o soció-
logo inglês Andrew Keen argumenta que a dimensão participativa da inter-
net diluiu as linhas divisórias entre fato e ficção, entre invenção e realidade,
obscurecendo o princípio da objetividade. A criação generalizada em rede se
trata, para o autor, de um culto ao amadorismo. E o culto ao amadorismo aca-
ba por “dificultar a determinação da diferença entre o artista e o marketeiro
(spin doctor),44 entre a arte e a propaganda, entre o amador e o especialista.
O resultado? O declínio da qualidade e da credibilidade da informação que
recebemos” (Keen, 2007, p.30-1). Na sua visão, é ilusório crer que todos
44
Espécie de especialista de mídia nos EUA que tem como função pôr efeitos
positivos (spinning) nas mensagens de políticos, com frequência, durante as
campanhas eleitorais (após um debate, por exemplo, procuram jornalistas e
mostram a eles como seu candidato foi melhor que o adversário). Para Keen, a
acepção pejorativa de spin doctor para o usuário da internet se refere ao fato
de que, na web, a atribuição do efeito de uma obra (texto, vídeo, etc.), através
de comentários, links, etc., acaba por popularizar seu autor em detrimento de
qualquer competência estética que possui. Nesse sentido, a atuação na cons-
trução do que os marketeiros denominam de buzz marketing online – o bochi-
cho em rede – seria parte da construção da própria obra. Nesse sentido, arte
e marketing passariam a se confundir não somente no momento de divulgação
de uma obra, mas, antes, no processo de criação de um trabalho.
88
WEB 2.0
somos autores, que colaboramos o tempo inteiro para um processo coletivo
de criação. “Todo mundo tem algum talento, mas a maioria de nós realmente
não tem muito a dizer. Somos melhores lendo um jornal ou assistindo à tele-
visão do que tentando nos expressar na internet” (Keen, 2007b, p.46).
Ainda na seara dos estudos sobre cibercultura, Arquilla e Ronfeldt
(2003) corroboram com o raciocínio de Keen, mas a partir de outra pers-
pectiva: na crítica à análise de redes sociais – método teórico empregado
por muitos pesquisadores para analisar o fenômeno dos dispositivos inte-
rativos atuais. Para eles, os analistas de redes sociais se interessam muito
mais pela verificação do capital social dos indivíduos (suas propriedades
interpessoais ou de relações dentro de uma rede) do que pelo capital huma-
no (suas competências e habilidades pessoais). Se a análise das redes é útil
para compreender o grau de reciprocidade e mutualidade que caracteriza os
fluxos e o intercâmbio que se produzem nelas, não consegue compreender
como um trabalho talentoso é produzido e disseminado dentro dela. Nesse
sentido, no âmbito da cibercultura, produzir obras em rede depende do grau
de capital humano de indivíduos e grupos. O fato de se possuírem mais
relações não significa, a priori, obtenção de mais capital humano, que, para
autores como Manovich (2004), ainda estaria ligado ao investimento pes-
soal em livros, filmes e artes visuais (“nossos softwares culturais”).
A análise de Rheingold (2004, p.58) ultrapassa o dualismo capital so-
cial/capital humano ao apontar que o indivíduo deposita na internet parte
de seus conhecimentos e estados de ânimo para obter, em troca, maiores
quantidades de conhecimento e oportunidades de sociabilidade.
Nessa acepção, o perigo, dentro de uma cultura colaborativa, não se
refere à busca incessante de visibilidade através de mecanismos de rating
online (ter mais amigos, ter mais pageviews, ter mais comunidades, ter
mais blogs, fotologs, realizar muitos comentários em muitos sites, etc.), os
quais, porventura, reforçariam uma cultura de um “eu exibicionista” em
nichos de audiência, como se a própria lógica midiática de massa se alas-
trasse na rede de pequenos mundos da web. Ao contrário, não se trata de
compreender a colaboração em rede como um fenômeno subjetivista e psi-
cologizante. A adoção dessa visão constitui um “modelo de realidade” que
exclui a própria natureza comutativa das redes, expressa na realização de
trocas simbólicas e informacionais, em um sentido dialógico, sem a presença
89
MODELOS DE COLABORAÇÃO NOS MEIOS SOCIAIS DA INTERNET
de qualquer intermediário e realizada em tempo real. O que há de inovador
nessa nova “lógica da visibilidade” é que ela é construída pelo próprio objeto
perceptível. Não há mediação; o sujeito que constrói a si próprio cava a sua
própria reputação ou a falta dela, pois ele é construído dentro de uma lógica
que é mais pública que de si – por isso que até a imagem de si é um bem co-
letivo. O conhecimento hospedado nessas redes sociais torna-se insumo para
que haja criações e recriações, que, depois de produzidas, retornam em parte
para as mesmas redes de onde saíram suas bases e referências. Isso gera um
rendimento em escala sempre crescente: quanto mais se sabe, mais se é capaz
de saber. Assim, a colaboração dos usuários em rede resulta numa produção
do comum. E, por isso, o dilema dessa colaboração então resulta em resistir
à apropriação privada ou à desaceleração da socialização desse comum (os
conhecimentos que na rede são depositados, criados e/ou distribuídos).
Na perspectiva da análise contemporânea de Antonio Negri e dos cha-
mados operaístas45, resistir, portanto, à expropriação desse comum é impe-
dir a expropriação da linguagem e da cooperação social. Como analisam
Negri e Hardt (2005, p.257):
(...) só podemos nos comunicar com base em linguagens, símbolos,
ideias e relações que compartilhamos, e por sua vez os resultados de
nossa comunicação constituem novas imagens, símbolos, ideias e re-
lações comuns. Hoje essa relação dual entre a produção e o comum –
o comum é produzido e também é produtivo – é a chave para entender
toda atividade social e econômica.
Assim, quando o produto da cooperação entre cérebros é tornado comum,
haverá uma garantia para que a riqueza cognitiva seja expandida. O espaço
45
O operaísmo é uma corrente franco-italiana que analisa as transformações
dos modelos de acumulação econômica, mostrando, fundamentalmente, que a
crise aberta pelo “Maio de 68” liberou as forças sociais não somente para con-
testação dos valores culturais, mas também para não aceitar o modo fordista
de produção, estruturado na repetição e no automatismo como condições da
produtividade humana. O operaísmo italiano torna o movimento da classe uma
variável que independe da relação de capital para se constituir. O operaísmo
vai, portanto, reler o próprio marxismo virando-o do avesso: são as lutas o
motor de qualquer desenvolvimento. “São as lutas, dentro e contra o comando
capitalista, que fazem a história”, insiste Negri (Negri, 2003, p.54).
90
WEB 2.0
da produção em comum (commons) torna-se um espaço liso – “um espaço
aberto a todas as travessias e modificações” (Blondeau, 2004, p.17) –, em que
não está presente nem o sistema mercantil de concorrência, nem a soberania
antiga e burocrática do Estado. A esse sistema o comando capitalista respon-
derá com a privatização do próprio comum – equivale dizer, transformá-lo
em raridade –, consubstanciada na ampliação das patentes e da propriedade
intelectual das formas de vida que constituem o comum – a cultura, o pensa-
mento, o conhecimento, etc. –, o principal fator econômico produtivo da cul-
tura colaborativa das redes, ou seja, o verdadeiro meio de produção de nossa
época. Quanto mais se aumenta o regime das patentes, menor é a capacidade
produtiva do trabalho em produzir futuras inovações.
Os direitos sobre a propriedade intelectual intervêm então para asse-
gurar àquele que a detém uma “freagem” do processo de socialização.
Todavia, os conhecimentos desmaterializados se enriquecem perma-
nentemente com os aportes criativos, ao longo de todo o seu processo
de difusão/socialização. E é justamente este processo que assegura uma
dinâmica de crescimento de riquezas. Consequentemente, os direitos
sobre a propriedade intelectual introduzem um princípio de raridade em
um mundo possível da “não-raridade”. (Blondeau, 2004, p.30)
Não é à-toa que a literatura sobre cultura colaborativa, no âmbito da
cibercultura, debate o direito aos commons (bens públicos) como condi-
ção para a cultura ser livre (Lessig, 2005; Benkler, 2007; Lemos, 2004;
Barbrook, 2003; Amadeu, 2007; Gillmor, 2005; Stallman, 2003; Antoun,
2004, entre outros). Para esses autores, a condição de uma livre circulação
da cultura é proporcional ao aumento da flexibilidade das leis de direi-
tos autorais, que parecem como uma nova clausura social, na medida em
que, sendo as ideias e o conhecimento as bases pelas quais se processam a
própria sobrevivência econômica, a norma do todos os direitos reservados
– em que modela o copyright – acaba por frear a inovação e a renovação
cultural e científica, ao mesmo tempo que instala uma “cultura da permis-
são”, montada no subterfúgio no qual “todos os criadores só criam com a
permissão dos poderosos ou dos criadores do passado” (Lessig, 2005, p.
26). Uma nova regulação não cria a colaboração, mas mantém protegida
e aberta uma cultura da recombinação, do remix, típica da internet. Sem
proteção, o comum caminha para uma tragédia, simbolizada pela figura
91
MODELOS DE COLABORAÇÃO NOS MEIOS SOCIAIS DA INTERNET
dos oportunistas que captam os excedentes e os mantêm sob a sua tutela –
os chamados free riders, oportunistas que desfrutam do bem público sem
aportar nada em troca ao coletivo, ou consomem tais bens em excesso, com
o risco de esgotar todos os recursos coletivos.
Modelos de colaboração em rede: uma análise
a partir dos portais de jornalismo participativo
Ao analisar as características colaborativas da atual fase da internet,
Dan Gillmor (2005) antecipou uma tendência no âmbito do jornalismo
contemporâneo: a emergência do cidadão-repórter (ou do jornalismo ci-
dadão ou participativo). “As normas por que se regem as fontes, e não só
os jornalistas, mudaram graças à possibilidade de toda a gente produzir
notícias” (Gillmor, 2005, p.55). Para ele, o jornalismo se democratizará
cada vez mais e se tornará uma conversação, à medida que a própria práxis
jornalística se abre fortemente à participação dos leitores nas mais distintas
fases da produção da notícia. “O crescimento do jornalismo participativo
nos ajudará a ouvir. A possibilidade de qualquer pessoa fazer notícia dará
nova voz às pessoas que se sentiam sem poder de fala” (Gillmor, 2005,
p.55). Assim, a publicação não é apenas o ponto final, mas, sim, a parte que
deverá ser completada pela conversação.
Na sua visão, essa nova prática jornalística é diretamente influenciada
pelo aparelhamento tecnológico da sociedade, que, principalmente através
da internet, possibilita às pessoas produzir informações e conteúdos mul-
timídia e distribuí-los em diversos formatos, em redes sociais online, em
wikis, em sites independentes de publicação peer-to-peer (p2p), através dos
telefones móveis e, sobretudo, através dos blogs.46
Para Varela (2007), o jornalismo cidadão diz respeito mais a um desejo
coletivo de participação na produção de informação do que à ampliação de
mecanismos de interação online. Não se trata, portanto, de um movimento
derivado de um aumento da oferta de meios sociais online (nesse sentido,
escapa-se de uma explicação mais tecnicista); ao contrário, a oferta dos
46
Sobre a genealogia dos blogs e as interfaces com o jornalismo, ver Malini (2008).
92
WEB 2.0
meios é condicionada, em termos, por uma demanda crescente de partici-
pação social na produção de mídia. Nesse sentido, o jornalismo cidadão é
“uma ação por meio da informação”, porque, segundo Varela (2008, p.80),
o cidadão-repórter informa algo porque quer que algo seja feito, “que seu
bairro esteja limpo, que a prefeitura proporcione melhor atendimento, que
o professor ensine com mais dedicação ou que a coleta de lixo seja mais
organizada e eficiente”. Essa visão, assim, localiza o “jornalismo cidadão”
como uma narrativa local, dentro daquilo que se denominou como esfera
do jornalismo hiperlocal.
Nesse sentido, os grandes jornais online leem esse cenário de maneira am-
bivalente. Por um lado, como um momento de oportunidade, por outro, como
um instante de crise. No primeiro caso, o jornal constituiria um espaço mais
elástico de visibilidade e diálogo público, pois agregaria as mais diversas notí-
cias advindas da cobertura feita pelo cidadão e editada pelo jornalista.
No segundo caso, o jornal passaria por uma séria crise porque sua força
em constituir uma “opinião pública” estaria diminuindo, graças à diversi-
dade de versões sobre os significados dos fatos produzidos, novamente,
no âmbito da internet. Assim, a facilidade de produção e a velocidade de
circulação da informação que estão disponíveis ao cidadão recompõem o
jogo de forças no âmbito contemporâneo midiático. Isso por dois aspectos
fundamentais: a atenção aos meios, tendencialmente, se fragmenta, pois as
pessoas dividem o seu tempo entre ler notícia em um jornal e vê-la no You-
tube, lista de discussões, blogs e outras mídias sociais; e o fato noticioso
não fica preso à versão única do fato – agora, este é objeto de um intenso
diálogo público nas listas de discussão, de uma crítica nos blogs ou mesmo
é remixado em sites online, como o Youtube.
Nesse impasse, grandes jornais online decidiram se abrir à participação
dos usuários, criando “canais de jornalismo cidadão” – uma forma de trazer
os conteúdos circunscritos a blogs e sites independentes, que, com frequência,
gera audiência e complementa as informações dos jornais online. Além dis-
so, dá mais capilaridade a esses, tornando-os ainda mais locais, na medida
em que boa parte do noticiário se concentra em notícias locais e opiniões
sobre temas de forte apelo público.
93
MODELOS DE COLABORAÇÃO NOS MEIOS SOCIAIS DA INTERNET
O modelo de jornalismo participativo nos
portais tradicionais: a lógica do “tudo é meu”
Em estudo realizado anteriormente47, quando analisamos três portais de
jornalismo participativo, o do El País (Yo, Periodista), o do Globo Online
(Eu, Repórter) e da CNN (I Report), constatamos que as três publicações
online adotam um modelo de jornalismo participativo baseado na lógica do
“tudo é meu” – que é a lógica empreendida pelos jornais online tradicionais.
Nesse “modelo do tudo é meu”, os usuários são mobilizados para publicar
conteúdos sem a salvaguarda da propriedade desses conteúdos, que passam
a pertencer exclusivamente a esses portais. Estes podem utilizar determi-
nada informação exclusiva na capa do jornal, mas sem remunerar nenhum
dos cidadãos-repórteres. Isso acontece porque, no termo de uso aceito pelo
usuário, ele é avisado de que “para enviar material, deverá concordar com o
Termo de Compromisso e Cessão de Direitos Autorais”. Assim, o pacto dos
grupos tradicionais com os usuários se alicerça no sequestro da produção
de linguagem social. A operação afirma uma lógica de inclusão abstrata ao
circuito jornalístico (“você pode ser um dos nossos!”), ao mesmo tempo
que exprime uma exclusão concreta (na medida em que aquilo que é pro-
duto da singularidade e da criatividade de cada um é retirado de si e tornado
propriedade privada alheia). Essa operação excludente acaba por criar uma
dimensão de conflito curiosa: se o usuário-autor da notícia compartilhá-la
com outros portais, ou mesmo se publicá-la em seu blog pessoal, pode ser
acionado por violação de direitos autorais.
O “modelo do tudo é meu” adota perspectivas distintas em termos de
gestão dos conteúdos colaborativos. Um grupo defende a perspectiva ob-
jetiva do jornalista, atribuindo a este o trabalho de filtragem e de estabe-
lecimento daquilo que é notícia, dentro do aluvião de textos, imagens ou
sons encaminhados pelos usuários. É o caso de experiências de jornalismo
participativo do Globo Online, do Terra ou do Estadão. Outro grupo adota
uma espécie de centralismo cínico, sugerindo a não-edição do conteúdo do
usuário a partir da lógica “publicou-subiu”, como é o caso do I Report, da
CNN. Esse cinismo consiste no fato de que a ausência de edição libera a
47
Cf. Malini & Frossard (2008).
94
WEB 2.0
quantidade de informação, mas inunda a base de inúmeros abusos, como
a presença de releases, autopromoções, spinning, opiniões desajeitadas,
anúncios e vandalismo de todo tipo, que, no final das contas, são geridos –
ou, no limite, excluídos – pelo proprietário do site. A existência desse poder
de exclusão de um só grupo (os donos do site) então continua a ser aquilo
que amalgama as experiências de jornalismo participativo nesses grandes
portais de informação jornalística. O resultado desse centralismo recai visi-
velmente na política editorial desses canais, marcada pelo flagra, pelo fait-
divers (tipos curiosos), pelo testemunho ou pela denúncia de fonte única.
Sem contar que o noticiário participativo segue a agenda estabelecida pelo
jornalão, que usa da artimanha de convocar seu “esquadrão da verdade” (os
leitores) para reforçar o viés editorial de determinado fato semanal (“este-
ve no olho do furacão!”, “comente como cidadão repórter!”), o que acaba
criando um ciclo vicioso: já não se sabe se é o jornal que estimula no leitor,
nesses canais interativos, uma agenda noticiosa já traçada, ou se é o leitor
que, experiente em saber “o que passa” na filtragem, envia notícias dentro
do perfil desejado pela agenda do jornal. De qualquer forma, não se encon-
tra nos canais participativos desses portais nenhum dossiê mais investigati-
vo, em termos jornalísticos; há, sim, um predomínio de fotos-legenda e de
notas curtas sobre a vida local.48
O jornalismo participativo fora da mídia tradicional:
o modelo aberto e autorregulado
Não há somente experiências de jornalismo participativo dentro dos gru-
pos tradicionais de mídia. Há uma infinidade de experiências que atuam de
48
Na questão do gênero das notícias, das 188 matérias analisadas no Eu, Re-
pórter, 60% eram foto-denúncia, foto-legenda ou galeria de fotos. Em segundo
lugar, com 22%, entravam as notícias, seguidas de posts de blogs redirecio-
nados para o canal, com 10% do total e 8% de reportagens. É interessante
perceber o predomínio da fotografia no portal brasileiro. No Yo, Periodista, há
um destaque para as notas, com 61% das 122 matérias analisadas; há também
a presença de notícias, com 32%, reportagens com 5% e vídeos com 2%. Já
o americano I Report tem 64% das 86 matérias analisadas como notícia; em
segundo lugar, com 32%, entram os vídeos, e, por último, com 4%, as notas
(ver Malini & Frossard, 2008; p.11).
95
MODELOS DE COLABORAÇÃO NOS MEIOS SOCIAIS DA INTERNET
forma independente através de modelos abertos (sem a presença de jorna-
listas profissionais) ou híbridos (usuários e jornalistas profissionais), inven-
tando um conjunto de novas práticas para a produção noticiosa. Iniciativas49
como o Overmundo (Brasil), o Wikinews (EUA), o BottomUp (Espanha),
o ÁgoraVox (França) ou, ainda, o já reconhecido OhMyNews (Coreia do
Sul) curto-circuitam o modus operandi midiático ao dar visibilidade a um
conjunto de notícias que não aparecem em grandes jornais. A maior parte
dessas experiências é caracterizada como “processos emergentes”, em que
todo o sistema de publicação e divulgação de notícias se organiza em me-
canismos de auto-organização, autocoordenação e livre troca de saber. Há
entre eles modelos de regulação baseados na concepção de edição adminis-
trada de forma coletiva. Mas são distintos: ou uma equipe de redatores pro-
fissionais realiza a tarefa de hierarquizar as informações a partir de critérios
estabelecidos pela comunidade de repórteres-cidadãos, ou há espaços de
moderação, nos quais cada usuário tem o mesmo poder para sugerir pautas
e aprovar notícias, destinando aos redatores profissionais somente a tarefa
de revisão e publicação final. Nos dois casos, o objetivo é a precaução de van-
dalismos e oportunistas. Aliás, em muitos momentos, é a própria comunidade
de repórteres-cidadãos que reporta possíveis abusos aos redatores. Em ambos os
sistemas de edição, há um predomínio das licenças públicas creative commons,
que funcionam como “não-proprietário” da produção noticiosa.
Contudo, o primeiro modelo de edição é mais híbrido, porque destina um
poder maior aos redatores profissionais (é o caso de sites como Overmundo,
Digg e BottomUP – em que há o conceito de grupo dirigente, do qual podem
fazer parte os repórteres-cidadãos que mais contribuem para o sistema, os cha-
mados superusuários). E o segundo caso radicaliza o conceito de abertura (está
presente em sites como ÁgoraVox, Wikipedia, Slashdot e Newsvine), possibili-
tando uma edição que tem suas decisões construídas sempre coletivamente pela
comunidade de produtores.
Do ponto de vista da edição colaborativa, tanto no modelo aberto quanto no
híbrido há, com frequência, a existência de quatro atores:
49
Há um ótimo blog que armazena experiências de jornalismo participativo: o
Periodismo Ciudadano. Cf. <http://www.periodismociudadano.com/>
96
WEB 2.0
o consumidor de informação (visitante): não publica, so-
mente consome notícias;
os redatores/administradores (profissionalizados ou não):
cuidam de revisar, alterar ou até mesmo excluir o conteú-
do mediante decisões em espaços de moderação ou quando
outros usuários reportam determinados abusos. No modelo
aberto, só têm poder de moderação aqueles que contribuem
com o site. É a lógica trazida dos sites de compartilhamento
de arquivo p2p – quem disponibiliza mais tem maior prio-
ridade e poder. A participação só faz sentido se o sujeito
colaborar com o sistema. Quão maior for sua participação
– na forma de doação de artigos e notícias –, maior reputa-
ção obterá e, logo, mais prioridade o sistema lhe concederá.
O contrário também é verdadeiro;
o jornalista-cidadão: é o usuário registrado, que participa
da construção do ambiente através de upload de notícias e
comentários próprios, além do relacionamento com outros
repórteres-cidadãos;
o colaborador: espécie de colunista, mas também podendo ser
blogueiro. Sua característica é uma escrita especializada.
Considerações finais
Se a primeira geração dos portais de jornalismo participativo indepen-
dente trabalhava na tentativa de criar uma comunidade própria, mobilizando
seus próprios usuários a escrever dentro do sistema, hoje, a segunda geração
desses portais já agrega os conteúdos produzidos em blogs, a partir de tecno-
logias de RSS. Assim, tais portais funcionam como uma dupla mídia: produ-
zem conteúdos e temáticas para animar os blogs, ao mesmo tempo que são
produzidos por estes. A convergência com outras mídias sociais também faz
nascer a criação de espaços audiovisuais próprios nesses portais de jornalis-
mo participativo independente. O ÁgoraVox tem a TVágora; o Bottup, a Bot-
TV. Os vídeos advêm de ferramentas como o Youtube ou o Dailymotion.
97
MODELOS DE COLABORAÇÃO NOS MEIOS SOCIAIS DA INTERNET
Assim, as diferentes linguagens jornalísticas passam a habitar um espa-
ço marcado pelas singularidades que atuam em rede, compondo um novo
campo de atuação comunicacional – apesar de que, como diz Couchot
(2007, p.6), “certamente, estas fórmulas novas de escritura colaborativa
colocam problemas sobre a validade das informações, a responsabilidade
dos autores, a pretensa ausência de linha editorial, as temáticas umbilicais,
etc. E o debate está vivo entre os defensores e os detratores destes sites”.
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100
WEB 2.0
O aspecto relacional das interações na Web 2.0
Alex Primo*
Introdução à Web 2.0
A Web 2.050 é a segunda geração de serviços online e caracteriza-se por
potencializar as formas de publicação, compartilhamento e organização de
informações, além de ampliar os espaços para a interação entre os parti-
cipantes do processo. A Web 2.0 refere-se não apenas a uma combinação
de técnicas informáticas (serviços web, linguagem Ajax, web syndication,
etc.), mas também a um determinado período tecnológico, a um conjunto
de novas estratégias mercadológicas e a processos de comunicação media-
dos pelo computador. Este artigo dedicar-se-á a esta última dimensão, sem
que se possa descartar a inter-relação entre todas aquelas listadas.
50
O termo, que faz um trocadilho com o tipo de notação em informática que
indica a versão de um software, foi popularizado pela O’Reilly Media e pela Me-
diaLive International como denominação de uma série de conferências que teve
início em outubro de 2004 (O’Reilly, 2005).
* Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Informação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS), coordenador do Laboratório
de Interação Mediada por Computador (LIMC) e pesquisador do CNPq. Este ca-
pítulo é uma versão modificada do artigo “O aspecto relacional das interações
na Web 2.0”, publicado em 2007. Esta nova versão é publicada nesta coletânea
com permissão do periódico e-Compós.
101
O ASPECTO RELACIONAL DAS INTERAÇÕES NA WEB 2.0
A Web 2.0 tem repercussões sociais importantes, que potencializam
processos de trabalho coletivo, de troca afetiva, de produção e circulação
de informações51, de construção social de conhecimento apoiada pela infor-
mática. São essas formas interativas, mais do que os conteúdos produzidos
ou as especificações tecnológicas em jogo, que serão aqui discutidas.
A proposta de estudo que será apresentada neste capítulo parte de uma
preocupação com a aplicação acrítica de muitos métodos e conceitos da
Análise de Redes Sociais (SNA)52 na investigação de fenômenos da Web
2.0. Apesar do poder das métricas dessa tradição, o uso apressado de tais
procedimentos e o deslumbre com as ilustrações de redes sociais muitas ve-
zes acabam por trivializar o fenômeno social, deixando de lado tudo o que
se refere à cultura, ao discurso, às ideologias e, curiosamente, aos aspectos
relacionais que supostamente estão em estudo. Em virtude desse problema,
a SNA, não raro, é criticada como um método em busca de uma teoria.
O artigo de Granovetter (1973), no qual propõe a tipologia de laços
fortes e fracos, permanece sendo um dos mais influentes no estudo de redes
sociais. Nesse trabalho, o autor demonstrou empiricamente a importância
que conhecidos (laços fracos) podem ter na indicação de potenciais em-
pregos. A pesquisa é referencial ao indicar que não apenas amigos íntimos
(laços fortes) são importantes nas relações sociais e que cada laço social,
forte ou fraco, desempenha funções diferenciadas em cada contexto.
O que se torna problemático é a apropriação superficial que alguns es-
tudos de SNA fazem a partir do trabalho de Granovetter, gerando conclu-
sões ligeiras e maniqueístas das interações em redes sociais online. Após
o mapeamento de redes de blogs, por exemplo, são gerados gráficos que
demonstram qual blogueiro aponta link para quem. Após se analisar a di-
reção desses links e se são recíprocos em dado instante, define-se qual a
intensidade da relação entre os interagentes. Tal procedimento, no limite,
51
O que seria chamado por Hardt e Negri (2005) de trabalho imaterial ou pro-
dução biopolítica.
52
A Análise de Redes Sociais (SNA), grosso modo, ocupa-se do estudo das
relações entre os pontos de uma rede. Para uma introdução sobre Ciência das
Redes e Análise de Redes Sociais, ver Barabási (2003), Scott (2000) e Garton,
Haythornthwaite e Wellman (1997).
102
WEB 2.0
acaba por considerar como laços fortes a simples troca automatizada de
links recíprocos em blogs gerados por mecanismos informáticos de spam.
As relações de poder entre os atores sociais são também reduzidas ao
número de links que uma pessoa recebe. Diante de tal perspectiva, pode-se
perguntar: quando alguém interage com muitas pessoas de forma recor-
rente, ela adquire alto poder persuasivo? E em virtude da interação diária,
aquela primeira pessoa transformar-se-á em amigo íntimo das outras? Para
utilizar o jargão da Ciência das Redes, tais questões poderiam ser refor-
muladas da seguinte forma: um nó com muitos links deve ser considerado
um poderoso influenciador na rede? Links recíprocos e recorrentes reve-
lam laços fortes? Diante de tais questões, considerem-se as interações de
um porteiro de um grande prédio. Ele cumprimenta os moradores todos os
dias, guarda e entrega encomendas, resolve problemas ao ser solicitado,
etc. Contudo, apesar desses contatos diários, e até informais e divertidos
quando o porteiro discute futebol com alguns condôminos, será que ele se
torna um amigo íntimo de todos os moradores do prédio? Será que ele pas-
sa a ser convidado para todos jantares e festas de aniversário? E qual a pro-
babilidade de os condôminos contarem com o porteiro, com quem mantêm
interações mútuas diárias, para discutir problemas familiares, sentimentais
e dificuldades de relação no trabalho? Ainda que essas circunstâncias pos-
sam ocorrer, não é preciso aqui provar que se trata de exceções. A partir
dessa ilustração53, pode-se observar que interações recorrentes não garan-
tem laços fortes entre os interagentes. O mesmo é válido em redes sociais
online. Considerar qualquer par de blogueiros que incluam links recíprocos
em seus blogrolls como bons amigos é trivializar uma forma relacional (a
amizade) ao simples intercâmbio de links.
O ideal de quantificar qualquer fenômeno, segundo Felinto (2007, onli-
ne), é característico do imaginário cibercultural: “A cibercultura promoveu
uma radical ‘informatização’ do mundo – uma visão na qual toda a natureza,
53
Uma outra ilustração, ainda mais radical, pode contribuir para este debate:
que poder tem sobre a pessoa X um pedinte que todas as manhãs entra no
mesmo ônibus distribuindo pequenos bilhetes pedindo dinheiro? E que intimi-
dade tem o interagente X com o pedinte, mesmo que todos os dias ele devolva
os recortes de papel e, até mesmo, eventualmente ofereça algumas moedas?
103
O ASPECTO RELACIONAL DAS INTERAÇÕES NA WEB 2.0
incluindo a subjetividade humana, pode ser compreendida como padrões in-
formacionais passíveis de digitalização em sistemas computadorizados”.
Muitas metáforas passam a ser utilizadas como “provas” explicativas,
tomando a representação pela coisa real. Veja-se, por exemplo, a compara-
ção da comunicação humana com epidemias virais. Mas, conforme defendi
alhures (Primo, 2007c, p.139), a transmissão de uma epidemia, diferente-
mente do fenômeno conversacional (considerando-se os condicionamentos
discursivos), é um processo aditivo:
Um sujeito, depois de ter contraído o vírus, pode retransmiti-lo a ou-
tras pessoas, que, por sua vez, podem passar para outras, e assim por
diante. O processo de comunicação humana não segue a mesma lógi-
ca. Por exemplo, minha conversa com um físico nuclear durante um
jantar (portanto, com o estabelecimento de “links recíprocos”) não me
converte em um novo colega da área. Mesmo que ele busque explicar
didaticamente seu atual projeto de pesquisa, nada garante que eu con-
siga compreender o que ele diz.
Outra comparação corrente busca equipar os relacionamentos humanos
com o trabalho de insetos sociais, como abelhas e formigas. Para compreender
a sociedade bastaria acompanhar a organização de um formigueiro! Diante da
popularização dessas metáforas, Nightingale (2007) aponta que essas expli-
cações fundamentam-se em um determinismo biológico que reduz a agência
humana às respostas intuitivas dos insetos sociais. Para ela, o perigo de tais
analogias, que naturalizam as relações sociais e descrevem a cibercultura como
sendo determinada biologicamente, reside no fato de que elas ignoram as estru-
turas de poder que limitam a expressão e os relacionamentos.
É importante que fique claro que as críticas aqui apontadas não se
voltam contra a chamada Ciência das Redes. Visam, isso sim, alertar que
muitos postulados de estudos contemporâneos sobre redes sociais online
trivializam o fenômeno social, reduzindo a historicidade relacional, a sub-
jetividade, o processo discursivo e as relações de poder ao número de links
apontados.
104
WEB 2.0
Interações na Web 2.0 quanto a sua forma relacional:
uma proposta de análise
Certamente a Web 2.0 tem um aspecto tecnológico fundamental. Mas
não se reduz a isso. De fato, as interações sociais são sensíveis a certos
condicionamentos trazidos pelo aparato tecnológico em jogo. Porém, a di-
nâmica social não pode ser explicada pela mediação informática. E para
repetir o que deveria ser óbvio: uma rede social não é qualquer rede. Con-
forme Garton, Haythornthwaite e Wellman (1997, online),
(q)uando uma rede de computadores conecta pessoas ou organizações,
ela é uma rede social. Da mesma forma que uma rede de computadores
é um conjunto de máquinas conectadas por cabos, uma rede social é
um conjunto de pessoas (ou organizações ou outras entidades sociais)
conectadas por relações sociais, como amizades, trabalho conjunto,
ou intercâmbio de informações54.
Como se vê, uma rede social online não se forma pela simples conexão
de terminais. Trata-se de um processo emergente que mantém sua existên-
cia através de interações entre os envolvidos. Essa proposta metodológica,
porém, focar-se-á não nos participantes individuais, e sim no “entre” (inte-
ração = ação entre). Isto é, busca-se evitar uma visão polarizada da comuni-
cação, que opõe emissão e recepção e se foca em uma ou noutra instância.
Uma rede social não pode ser explicada isolando-se suas partes ou por suas
condições iniciais. Tampouco pode sua evolução ser prevista com exatidão.
Como fenômeno sistêmico, sua melhor explicação é seu estado atual55.
Os membros do processo interativo serão aqui chamados de “interagen-
tes”. Como um estudo sobre as interações no ciberespaço não pode levar
em conta apenas os participantes humanos, serão considerados também os
54
No original: “When a computer network connects people or organizations, it
is a social network. Just as a computer network is a set of machines connected
by a set of cables, a social network is a set of people (or organizations or other
social entities) connected by a set of social relations, such as friendships, co-
working, or information exchange”.
55
Essa afirmativa baseia-se na discussão de Watzlawick, Beavin e Jackson
(1967) sobre interação social e Teoria dos Sistemas.
105
O ASPECTO RELACIONAL DAS INTERAÇÕES NA WEB 2.0
aparatos tecnológicos como interagentes. Ou seja, quer-se abarcar tanto as
interações entre pessoas quanto entre um sujeito e um mecanismo digital56
(ainda que este último tipo de interação não seja, a rigor, social). Além
disso, o intercâmbio de uma pessoa com um grupo e com uma coletividade
será diferenciado. Para tanto, será preciso avaliar a qualidade do relacio-
namento entre os participantes, se eles possuem intimidade entre si, se os
envolvidos mostram-se abertamente ou preferem manter-se anônimos ou
protegidos por um apelido.
Como se vê, essa proposta quer ir além da simples análise de links en-
tre pontos da rede. Com esse objetivo, torna-se necessário observar quem
são os interagentes e que relacionamento mantêm entre si. Tendo em vista
que os serviços da Web 2.0 permitem a participação de lurkers, anônimos,
robôs (mecanismos informáticos automatizados) e fakes, e sabendo-se
que muito se discute hoje sobre a “sabedoria das multidões” (Surowiecki,
2006), todos esses aspectos precisam ser considerados e diferenciados em
um estudo sobre redes online.
Para que se possa distinguir o relacionamento entre os interagentes, este
trabalho basear-se-á nas características qualitativas da comunicação interpes-
soal apresentadas em Fisher e Adams (1994). As características primárias da
comunicação interpessoal referem-se à interação em termos de eventos. Têm
como propósito avaliar o encadeamento das ações no tempo e seu impacto no
próprio relacionamento. São elas57:
a) descontinuidade – as interações sociais entre duas pessoas podem
ocorrer com intervalos no tempo. Mesmo os parceiros de relaciona-
mentos duradouros não estão sempre interagindo entre si;
b) recorrência – conforme Fisher e Adams (1994), a repetição de pro-
cessos interativos subsidia ações futuras em situações com alguma
semelhança. É preciso destacar, porém, que encontros recorrentes
56
Este último interagente pode também ser chamado de reagente, em virtude
de seu “comportamento” determinístico limitar-se ao par estímulo-resposta.
57
Reproduz-se aqui, ainda que sob nova sistematização, a descrição das carac-
terísticas da comunicação interpessoal de Fisher e Adams (1994), apresentadas
anteriormente em Primo (2007b).
106
WEB 2.0
não são suficientes para o desenvolvimento de maior intimidade.
Essa característica primária da interação não pode, por si só, trans-
formar laços fracos em laços fortes. Em ambientes de trabalho, por
exemplo, colegas que interagem por várias horas durante a semana
podem jamais se encontrar fora do ambiente profissional nem se
ligar para conversar sobre outros temas;
c) sincronia – refere-se aos padrões interacionais desenvolvidos no tem-
po que permitem que cada interagente consiga prever, com chan-
ces maior que o acaso, como seu parceiro irá reagir. Ou seja, existe
uma alta porcentagem de acerto na antecipação das ações do outro.
Além disso, a competência em compreender que comportamentos
são mais apropriados em diferentes situações é própria de relacio-
namentos de alta sincronia;
d) reciprocidade – quando um interagente reage à ação do outro de forma
equivalente, diz-se haver uma interação recíproca. Mais do que isso,
os participantes percebem seu relacionamento de maneira congruente:
tanto se amando, por exemplo, quanto se odiando reciprocamente.
As características secundárias da comunicação interpessoal decorrem
daquelas primárias e se referem a sentimentos que um parceiro tem pelo
outro:
a) intensidade – trata-se, segundo Fisher e Adams (1994), da força ou
potência de um relacionamento. Não se pode supor que se faz aqui
referência apenas às relações entre cônjuges ou melhores amigos.
Dois inimigos, por exemplo, podem manter um relacionamento
odioso muito intenso;
b) intimidade – busca-se observar quão próximos são os interagentes e
que familiaridade existe entre eles;
c) confiança – pode ser abordada avaliando-se quanto cada parceiro
aceita correr riscos em virtude do outro. Como lembram Fisher e
Adams (1994), os relacionamentos são dinâmicos e envolventes e,
portanto, são frágeis. Existe sempre o risco de que o outro possa
não corresponder às expectativas acordadas. Nesse sentido, a con-
fiança emerge a partir do conhecimento de tal possibilidade. Quanto
à reciprocidade, é preciso salientar que a confiança pode ser muito
107
O ASPECTO RELACIONAL DAS INTERAÇÕES NA WEB 2.0
recíproca (João confia em Maria, que confia nele) ou apresentar um
baixo grau de reciprocidade (João confia em Maria que, pelo con-
trário, não confia nele);
d) compromisso – trata-se da dedicação de cada interagente ao rela-
cionamento compartilhado e a sua própria continuidade. O que
demonstra uma identificação dos sujeitos com o relacionamento
mantido. Fisher e Adams comentam, contudo, que o compromis-
so mútuo não garante necessariamente alta intimidade. Para ilus-
trar esse dado, lembram que alguns casamentos duradouros podem
exibir compromisso mesmo que o casal já não mantenha a mesma
intimidade dos primeiros anos de convívio.
Vale observar que as características propostas por Fisher e Adams per-
mitem que se aprofunde a análise da força dos laços sociais e se ultrapasse
a simples análise da quantidade, direção e frequência de links, típica de tan-
tos estudos de SNA. Boa parte dessas investigações limita-se à observação
da recorrência e intensidade, deixando de avaliar as outras dimensões para
as quais os autores chamam atenção.
Tendo em vista o exposto até o momento, o método a ser apresentado
a seguir defende que o estudo da Web 2.0 deve levar em conta não apenas
os aspectos tecnológico e de conteúdo, mas também as interações sociais
quanto a sua forma: o aspecto relacional (Bateson, 1980; Rogers, 1998;
Fisher & Adams, 1994; Watzlawick, Beavin & Jackson, 1967). Para ope-
racionalizar essa discussão, delimitar-se-ão alguns interagentes das redes
sociais: eu, tu (vós), ele (eles), it, nós, nós/todos. Além disso, pretende-se
analisar as interações de eu com a coletividade. Essa proposta de estudo
partirá sempre da perspectiva de eu. Ou seja, os interagentes serão defini-
dos e as interações observadas a partir da perspectiva de eu.
108
WEB 2.0
Eu, tu (vós), ele(eles), it, nós, nós/todos
O interagente eu pode ser um blogueiro, um redator na Wikipédia58, um
fotógrafo no Flickr59, etc. Quando eu conversa diretamente com quem já
mantém um relacionamento próximo, este segundo ator será chamado de
tu (ou vós, no caso de um grupo de “tus”). Porém, quando eu mantém al-
gum tipo de interação com um ou mais interagentes que ainda não conhece
ou com quem mantém um relacionamento distante, sem intimidade, estes
serão aqui referidos por ele ou eles.
Este artigo utilizará o pronome neutro inglês it para referir-se a pro-
gramas com os quais eu interage e a pessoas ou mecanismos que enviam
mensagens “massivas”, como spam e vírus, e cujas respostas de eu são
normalmente ignoradas ou resultam no disparar automático de um sof-
tware “maligno” ou de um website. It pode, inclusive, se apresentar com
tu ou ele, mostrando nome, e-mail ou foto destes como remetente. Esses
dados podem ser coletados através de um vírus de tipo “cavalo de Troia”,
de spyware ou através de phishing60. Enquanto as relações descritas no pa-
rágrafo anterior podem estabelecer-se como interações mútuas, tendo em
vista sua invenção compartilhada e sua recursividade, os últimos casos não
passam de interações reativas, em virtude de sua progressão determinística,
as quais perseguem o estrito modelo ação-reação (Primo, 2007a), mesmo
que eu deseje o contrário.
Chamar-se-á de nós o grupo formado por eu e vós. Neste relaciona-
mento, todos os participantes se conhecem; em virtude do relacionamento
próximo, reconhecem-se como parte de um mesmo grupo que compartilha
não apenas interesses, mas também afetos de maior intensidade; a conver-
sação pode ser conduzida levando-se em conta a singularidade dos outros
com quem se fala. Porém, quando eu interage em um grupo no qual nem
todos se reconhecem ou mantêm um relacionamento próximo, dir-se-á que
faz parte de nós/todos. Trata-se de um grupo de menor coesão cujos limites
58
Cf. <http://www.wikipedia.org>
59
Cf. <http://www.flickr.com>
60
Site falso, parecido com outro real, que busca roubar informações pessoais
como usernames e senhas.
109
O ASPECTO RELACIONAL DAS INTERAÇÕES NA WEB 2.0
são criados, basicamente, em torno de interesses. Neste caso, a afetividade
não tem o mesmo impacto no ingresso e na permanência no grupo que teria
entre nós61. Finalmente, existe um “macrointeragente” com quem eu pode
interagir, ao mesmo tempo que o compõe, que será denominado coletivi-
dade62. Esta é constituída por vós, eles, pelo próprio eu e pela estrutura
informática de interconexão e estoque.
Deve-se observar que tanto eu quanto tu e ele podem ocultar suas identi-
dades na web. No primeiro caso (chamado no jargão da internet de lurking),
tu/oculto pode ler o blog de eu sem fazer qualquer comentário durante um
dado período de tempo. Ou seja, eu não pode perceber a presença de tu.
Eu/oculto pode visitar diariamente o Flickr de ele sem que sua visita seja
registrada. Diferentemente desses casos de presença silenciosa, existe outra
forma de interação anônima, mas cuja participação é ativa e cooperativa.
Eu/anônimo pode participar da escrita coletiva de verbetes na Wikipédia
sem que precise se “logar” no sistema. De fato, trata-se da maneira mais co-
mum de participação naquela enciclopédia online, sem que isso seja visto
como problema. Na verdade, a maior parte da produção registrada pode ser
entendida como sendo da coletividade e é para ela que cada contribuição
de eu é direcionada.
Finalmente, uma forma de interagir explicitamente, ainda que man-
tendo o verdadeiro nome em sigilo, é utilizar um apelido e talvez até de-
sempenhar um papel ficcional. Esses interagentes serão aqui referidos por
/fake. Um ele/fake63 não é necessariamente alguém que visa prejudicar os
debates. Mesmo que este interagente adote uma postura polêmica, prote-
gido pela “máscara” adotada, ele pode servir de elemento dinamizador de
61
As chamadas comunidades virtuais podem ser criadas e atualizadas por nós
ou por nós/todos.
62
A coletividade não pode ser vista como sinônimo do conceito de “multidão”
(Hardt & Negri, 2005), pois este tem implicações políticas e econômicas que
fogem ao escopo deste trabalho. Além disso, a multidão opera não apenas atra-
vés da coletividade, mas também via nós e nós/todos.
63
Utiliza-se aqui a forma ele/fake, pois eu ou tu também podem assumir uma
identidade falsa para interagir. Ou seja, quer-se aqui não apenas demonstrar
a máscara utilizada na interação, como também a característica relacional do
relacionamento de eu com aquele interagente.
110
WEB 2.0
debates. Com a recorrência de sua participação, os outros interagentes da
rede podem inclusive criar um relacionamento com o ele/fake a partir da
personalidade ficcional que mantém.
Relacionamento e recursividade
A interação social é caracterizada não apenas pelas mensagens trocadas
(o conteúdo) e pelos interagentes que se encontram em um dado contexto
(geográfico, social, político, temporal), mas também pelo relacionamento
que existe entre eles64. Portanto, para estudar um processo de comunicação
em uma interação social não basta olhar para um lado (eu) ou para o outro
(tu, por exemplo). É preciso atentar para o “entre”: o relacionamento. Trata-
se de uma construção coletiva, inventada pelos interagentes durante o pro-
cesso, que não pode ser manipulada unilateralmente nem predeterminada.
Mas como podem ser estudadas as interações interpessoais, como entre
eu e tu ou eu e vós? Para tanto, será aqui utilizada a proposição de Fisher e
Adams (1994) sobre as características qualitativas dos relacionamentos.
Em virtude da recorrência das interações (mesmo que descontínuas),
através da qual alguns padrões interativos vão sendo desenvolvidos en-
tre os parceiros, a sincronia entre eu e tu (ou vós) pode ser percebida: os
interagentes podem antecipar, com cada vez mais sucesso, que ações são
apropriadas em dado momento, o que pode ofender e quando65. Tal relacio-
namento apresenta reciprocidade, intensidade e intimidade. O relaciona-
mento entre eu e tu pode, ainda, ser caracterizado em virtude dos graus de
confiança e compromisso em cena. É claro que tais características citadas
variam constantemente durante o tempo, em função dos atos interativos
investidos. A partir disso, a forma com que cada interagente define seu
relacionamento com o outro pode flutuar. Durante o processo, o relaciona-
64
Essa abordagem se ergue em torno da proposta original de Gregory Bate-
son (1980) de uma epistemologia da forma, que busca destacar os padrões
de interação em vez dos atos individuais, os inter-relacionamentos em vez da
causalidade unilateral.
65
Em situações de conflito, contudo, a ofensa pode ser justamente a estratégia
escolhida.
111
O ASPECTO RELACIONAL DAS INTERAÇÕES NA WEB 2.0
mento pode tanto se fortalecer quanto perder intensidade, chegando até o
limite de seu rompimento.
Portanto, eu e tu mantêm contato repetido, recursivo e íntimo. A historici-
dade dessa interação tem impacto sobre os interagentes e o próprio relaciona-
mento entre eles. Em outras palavras, a interação entre eu e tu não é atomizada.
Mais do que um acúmulo de ações sequenciais ou uma troca “bancária” (de
tipo “toma-lá-dá-cá”), os interagentes constroem entre si um relacionamen-
to. As ações manifestas e a interpretação dos comportamentos (do outro e
de seus próprios) se desenvolvem também em virtude da relação “inventada”
em conjunto durante o percurso da interação, mesmo que haja grandes lapsos
temporais entre cada encontro. Cada novo intercâmbio atualiza esse relacio-
namento, que exercerá novos condicionamentos nos atos futuros. Trata-se,
pois, de um processo recursivo. Contudo, não se podem apagar atos ante-
riores como se deleta um arquivo que deixa de interessar. Outrossim, atos
subsequentes podem motivar ressignificações de interações anteriores.
Sendo uma interação social, o relacionamento entre eu e ele tem também
evolução recursiva, mas apresenta pouca intimidade e menor sincronia. Isso
não quer dizer que não possa existir confiança entre aqueles interagentes. O
relacionamento pode, inclusive, apresentar grande reciprocidade: ambos prefe-
rem manter o relativo distanciamento e a roteirização das ações. Com o tempo,
ele pode se tornar tu, em virtude da evolução dos atos interativos que passam a
dar novo significado para a natureza do relacionamento construído.
A coletividade
Quando eu faz download de um arquivo da rede P2P, quando encontra
um texto na Wikipédia ou um bookmark que lhe são relevantes em um
serviço de social bookmarking, pode-se perguntar: quem fez tais ofertas?
Com quem ele interage? A resposta para essas questões é a coletividade.
Invertendo-se a situação: quando eu oferece um arquivo na rede, quando
edita um verbete ou sua página de webpages favoritas no del.icio.us, com
quem ele contribui? Mais uma vez, com a coletividade.
É preciso esclarecer, contudo, que nós/todos e coletividade não são
equivalentes. Nós/todos podem manter uma conversação de tipo um um
(em que cada falante direciona sua atenção a outro específico, enquanto
112
WEB 2.0
todos os outros participantes podem testemunhar o diálogo), um todos
e todos todos. Já entre eu e a coletividade, não existe um processo rigo-
rosamente conversacional. Em seus intercâmbios, não existe um encade-
amento discursivo, uma troca de turnos, ainda que de forma fragmentada
como ocorre em interações na janela de comentários de blogs (Primo &
Smaniotto, 2006). Sim, o trabalho coletivo, a produção e a circulação de
bens públicos podem produzir efeitos em rede, mas não se pode confundir
esse processo com uma conversação entre nós/todos, sob o risco de triviali-
zar-se a dinâmica conversacional como metáfora generalista para justificar
qualquer tipo de troca (e que, portanto, passa a nada explicar).
Apesar dos participantes da coletividade não se conhecerem e uma con-
versação que os envolva não ser possível, os recursos e bens produzidos
são públicos, compartilhados por todos os membros. Cada verbete da Wi-
kipédia possui vinculada uma página para debate, mas a produção coletiva
não depende dessa discussão. Um verbete pode ser escrito colaborativa-
mente por diversos coautores sem que eles precisem planejar cada passo
ou atualização. As decisões vão sendo tomadas durante o processo e não
por antecedência. Erros, imprecisões e informações incompletas podem ser
corrigidos durante a sequência de contribuições.
Mas quem iniciou a produção dos bens públicos compartilhados pela
coletividade? Isso pouco ou nada importa. Quando eu encontra links de seu
interesse através de uma busca no del.icio.us, pode obter informações sobre
quem o registrou. Mas pode prescindir desse dado, já que o que interessa é
o endereço (URL) e as tags registrados. Na Wikipédia, cada verbete possui
um histórico de alterações. Os textos das edições anteriores encontram-se
ali disponíveis, além de dados sobre o dia e a hora em que foram feitas e
sobre quem as produziu66. Mas é improvável que eu consulte o histórico
antes de fazer sua edição67. Importa conhecer o estágio atual do texto.
66
Tratando-se de autor registrado, podem-se obter informações sobre seu userna-
me e perfil. Caso contrário, sendo o mais comum nesse processo, obtém-se apenas
a informação sobre o número IP do computador de onde partiu o acesso e edição.
67
Por outro lado, a recuperação no histórico de estados anteriores do verbete é
útil e até necessária para a correção de atos vândalos, como o apagamento de
trechos ou substituição por conteúdo pornográfico, por exemplo.
113
O ASPECTO RELACIONAL DAS INTERAÇÕES NA WEB 2.0
Apesar de tais esclarecimentos, pode-se ainda perguntar: que tipo de
relacionamento é mantido entre eu e a coletividade? Robert Kaye (2004,
online), analisando interações em redes P2P, entende que o que se estabe-
lece não seriam nem laços fracos, mas, sim, laços randômicos, pois não se
sabe e não importa de quem se está baixando um arquivo. Embora o último
argumento esteja correto, Kaye equivoca-se em sua conclusão. Ora, não
existe qualquer laço entre eu e a coletividade, apesar de estarem participan-
do de um processo social.
Quando eu busca arquivos em alguma rede P2P, não importa quem são
as pessoas que dispõem daqueles dados em seus computadores. O que eu
oferece em troca são os arquivos que baixou anteriormente, ampliando o
estoque da rede. Nesse tipo de rede, esse retorno é normalmente compul-
sório: eu só pode baixar arquivos se oferecer os seus, e/ou a velocidade de
seus downloads varia em relação ao quanto disponibiliza68. Tal interação
progride como “troca bancária”, de maneira burocrática, sem que se de-
senvolva um relacionamento social. Ocorre apenas uma interação reativa
(Primo, 2007a), regulada por protocolos digitais.
Enquanto entre nós/todos as reputações são construídas socialmente,
sendo resultantes da historicidade relacional, das contribuições e do com-
promisso de cada participante com o grupo, no site de webjornalismo parti-
cipativo69 Slashdot70 elas são tratadas de forma quantitativa. Embora possa
parecer que a historicidade da interação seja considerada, a “reputação”
(usada aqui de forma bastante metafórica, ainda que tenha efeitos na cole-
tividade) é calculada em virtude do ato imediatamente anterior (o último
comentário escrito ou notícia submetida) e do valor numérico de sua “re-
putação” naquele momento. Se a interação social apresenta a característica
sistêmica de não-somatividade (é diferente da mera soma das ações ou das
características individuais de cada interagente), no sistema de gestão do
Slashdot não se percebe um impacto realmente recursivo, já que basta a
atualização quantitativa de um número isolado no instante. Sendo assim, eu
68
Existem alguns programas que permitem que essa determinação seja ultra-
passada, burlando a arquitetura de participação.
69
Ver Primo e Träsel (2006).
70
Cf. <http://slashdot.org>
114
WEB 2.0
é visto como um valor numérico, enquanto a notícia ou comentário que en-
viou e sua “reputação” são julgados pelos moderadores da coletividade71.
Se nas interações entre nós/todos o aspecto relacional tem um impac-
to na produção e interpretação dos enunciados (aspecto de conteúdo), isso
não ocorre nos intercâmbios entre eu e a coletividade. Eu pode, inclusive,
demonstrar algum tipo de emoção pela coletividade72, mas a coletividade
não o reconhece. Por exemplo, não importa quem opera o programa-cliente
de acesso à rede P2P em dado momento73 nem como se sente. Se a conexão
entre eu e a coletividade via BitTorrent for quebrada e o primeiro demonstrar
irritação com a situação, tal fato não apresentará qualquer efeito nos atos
futuros, tão logo o problema técnico seja resolvido. Mais um exemplo: a
ausência de eu na criação da Wikipédia, causada por sua insatisfação quanto
ao encaminhamento do verbete “aborto”, não fará com que a coletividade se
desinteresse e suspenda a produção coletiva. Não se pode, pois, equiparar o
impacto recursivo da historicidade interacional atual ou futuro que ocorre en-
tre nós ou nós/todos com o processo de interação entre eu e a coletividade.
E como fica a questão da confiança nessa última forma interacional? Não
há garantias de disponibilização e atualização de bens específicos nem que
ocorram a todo momento. Ciente disto, eu sabe que não pode confiar que a
coletividade lhe assegurará qualquer oferta que espera encontrar. Certos bens
podem existir em um momento e não em outro. Por outro lado, eu pode delibe-
radamente oferecer um certo conjunto de arquivos que ainda não existiam na
rede. No caso P2P, tal oferta só ficará disponível enquanto eu estiver conectado
ou se a coletividade propagar os arquivos para outros servidores. Neste último
caso, eu não pode querer acabar com tal oferta, pois não pode retirar um bem
quando ele passa a ser público e compartilhado de forma distribuída.
Como interagente virtual, sua existência é mantida apenas enquanto um co-
letivo de pessoas participar desse processo constante de atualização. Entretanto,
71
Nos fóruns relacionados a cada notícia no Slashdot, o capital social pode ser cons-
truído e reconhecido através das interações conversacionais mantidas no tempo.
72
Algo do tipo: “O que seria de mim sem esta rede fantástica?”, “Adoro a Wikipédia!”.
73
Várias pessoas podem suceder-se no uso de um mesmo cliente de P2P ins-
talado em um computador compartilhado. Mas a interação com a coletividade
não se altera do ponto de vista relacional.
115
O ASPECTO RELACIONAL DAS INTERAÇÕES NA WEB 2.0
a coletividade não pode ser prevista nem rigidamente determinada. Nem eu, nem
tu, tampouco ele podem determinar como a coletividade reagirá. Em outras pa-
lavras, não se pode impor como deve ser: a coletividade apenas é. Apesar de ser
uma criação coletiva, a coletividade desenvolve uma relativa autonomia. Eu, vós,
eles e outros sujeitos desconhecidos de eu inventam e atualizam a coletividade,
mas também são, em certa medida, inventados pela coletividade.
Quanto às contribuições de eu para a coletividade, não se pode supor que
o faça sempre de forma consciente e deliberada – situação esta que caracteri-
zaria a grande maioria das interações entre nós ou nós/todos. Evidentemente,
em muitos casos eu quer colaborar; por exemplo, criando um verbete ainda
inexistente na Wikipédia. Em outros casos, contudo, a contribuição de eu
para a coletividade é indireta e não intencional. Veja-se o caso de quando
eu acrescenta certas referências a sua página no del.icio.us. Tais atos podem
partir de uma necessidade individualista de eu. A criação dessa listagem de
links pode, por outro lado, ser voltada para vós ou eles: eu pode sugerir o en-
dereço de sua página de referências como sugestão de leituras para um grupo
de amigos ou alunos. Mesmo assim, esses registros acabam refletindo de
forma global, convertendo-se em bem público da coletividade e não apenas
em uma posse privada de eu. Eu pode, inclusive, cooperar com a coletividade
sem saber, de forma compulsória, ao usar um software P2P, por exemplo, que
automaticamente compartilha uma das pastas em seu computador. Ou seja, a
cooperação pode ser anônima, não deliberada ou incidental.
É preciso notar que a “arquitetura de participação” (O’Reilly, 2005)
pode impor certos condicionamentos à coletividade. Os sistemas de ges-
tão de reputações e avaliação de comentários no Slashdot e a proteção
ou semiproteção74 de certos verbetes por administradores na Wikipédia
apresentam formas de regulação da produção da coletividade. Como se
viu anteriormente (Primo, 2007a), os ambientes abertos de cooperação
online atraem não apenas colaboradores comprometidos com a produção
e a circulação de bens públicos, mas também aproveitadores (free-riders) e
vândalos. Para evitar ou contornar prejuízos, os sistemas de regulação cita-
74
Cf. <http://en.wikipedia.org/wiki/Wikipedia:Semi-protection_policy>. Aces-
so: 04/08/2008.
116
WEB 2.0
dos atribuem o status de moderador ou administrador75 a qualquer partici-
pante com um histórico de colaboração regular. Esses interagentes ganham
poderes de julgamento de textos e participantes, podendo bloqueá-los ou
até mesmo eliminá-los76. Esses recursos e a hierarquia desenvolvida não
prejudicam o trabalho colaborativo. Ora, a coletividade não é composta
apenas de altruístas. Não se pode associar a ela um certo padrão moral
necessário nem supor que sua produção seja sempre valiosa ou precisa. Por
outro lado, seria incorreto concluir que os processos comunais acabam com
qualquer hierarquia ou relação de poder, ou, inversamente, que estas sejam
uma ameaça fatal para aqueles.
Enfim, a coletividade não é apenas um mecanismo tecnológico e um
estoque digital77. O conteúdo oferecido pela coletividade é, em sua maior
parte78, produzido por eu, vós, eles e por outros sujeitos com quem eu nunca
interagiu. Quando eu escreve em um verbete na Wikipédia, ele está, a princí-
pio, interagindo com a coletividade. Ele passa a participar de um texto cole-
tivo escrito pela coletividade. As alterações que eu efetuar no texto ocorrem
em cooperação com a coletividade. Por outro lado, se eu passa a discutir o
verbete no fórum a ele vinculado com pessoas registradas no sistema, intera-
ções eu-tu e eu-ele se estabelecem79. Quanto a redes P2P, quando eu conecta
seu computador à rede e passa a disponibilizar arquivos, ele coopera com a
coletividade. Já no Slashdot, pode-se dizer que a gestão das publicações e das
próprias interações e reputações em jogo é efetuada pela coletividade.
75
Cf. <http://en.wikipedia.org/wiki/Wikipedia:Administrators#Protected_pages>.
Acesso: 04/08/2008.
76
Os chamados administradores na Wikipédia podem também editar textos
protegidos (normalmente sobre temas ou personalidades muito polêmicas, al-
vos frequentes de ataques vândalos).
77
Nem se pode confundir um sistema informático (a Wikipédia, o del.icio.us)
com a coletividade.
78
Outras informações podem ser geradas automaticamente por serviços
informáticos.
79
Eu/oculto pode também observar debates entre eles e vós nessa página de
fórum.
117
O ASPECTO RELACIONAL DAS INTERAÇÕES NA WEB 2.0
Considerações finais
O método aqui apresentado foi desenvolvido a partir das seguintes neces-
sidades. Primeiramente, buscou-se utilizar um procedimento para o estudo da
qualidade das interações que permitisse uma ultrapassagem na simples identi-
ficação de pontos e links nas redes em observação. Como redes sociais online
envolvem certos interagentes que distinguem as interações no ciberespaço da-
quelas presenciais (como lurkers, anônimos, fakes, robôs80), buscou-se identifi-
cá-los e analisar suas interações. Procurou-se, pois, identificar os participantes
da interação (tanto humanos quanto informáticos; com participação explícita
ou silenciosa), incluindo a abstração coletividade, e analisar o relacionamen-
to entre os envolvidos. Como se pôde destacar, a variação entre as diferentes
características qualitativas de interação demanda um olhar que aprofunde o
debate sobre a construção e a manutenção de laços sociais no tempo81.
Apesar das críticas encaminhadas no início deste capítulo, entende-se
que o método para análise relacional de redes sociais online que aqui se
propõe não rivaliza com os procedimentos da SNA. Serve, isso sim, como
processo complementar.
Mas como se pode operacionalizar a categorização dos interagentes e
a avaliação da qualidade das interações entre eles? Em outro lugar (Primo,
2007c), através da análise das interações no blog Martelada82, de Marcelo
Träsel, apresentei um procedimento para tal fim. Após a seleção de intera-
gentes que haviam publicado comentários em posts do blog, pediu-se ao
blogueiro que respondesse a algumas questões em relação a cada comenta-
rista. Ao se associar cada característica proposta por Fisher e Adams (1994)
a uma pergunta sobre uma situação hipotética, buscou-se investigar como
Träsel definia seu relacionamento com aqueles interagentes, sem que os
80
Vale lembrar que o trabalho de Granovetter não considera esses interagentes.
81
Uma troca entre um interagente humano e um mecanismo automatizado de
spam, por exemplo, não ultrapassa a interação reativa (Primo, 2007a). Logo,
características como intimidade relacional não podem ser consideradas, já que
não existe um desenvolvimento recursivo entre eles. O software reage sempre
da mesma forma, conforme as linhas de código que regem seu desempenho, não
importando com quem interage, a personalidade ou estado de espírito do outro.
82
Cf. <http://www.insanus.org/martelada>
118
WEB 2.0
conceitos lhe fossem apresentados diretamente (o que poderia prejudicar
os resultados da pesquisa). A seguir, apresentam-se as questões83 utilizadas
para operacionalizar as características qualitativas de interação:
a) descontinuidade – “Suponha que você foi trabalhar em outro país, em
uma empresa que proibisse você de ter blog, Flickr, Orkut. Quando
retornasse após um período de três anos, você lembraria de avisar
esta pessoa que está de volta ao país e que criou um novo blog?”;
b) recorrência – “Quantas vezes em um mês você conversa com esta
pessoa? Presencialmente (P)? Online (O)?”;
c) sincronia – “Qual a chance (0-100%) de você conseguir antecipar as
reações desta pessoa em uma conversação?”;
d) intensidade – “Ao adicionar esta pessoa no Orkut, como você a clas-
sificaria? (1) melhor amigo; (2) bom amigo; (3) amigo; (4) conheci-
do; (5) não conheço”84;
e) intimidade – “Qual o mínimo de convidados que sua festa de aniver-
sário deveria ter para que esta pessoa fosse convidada?”;
f) confiança – “Quantos reais você emprestaria para esta pessoa, se ti-
vesse R$ 5 mil economizados?”;
g) compromisso – “Você fica sabendo que esta pessoa está deprimida e deve-
rá ficar hospitalizada por 30 dias. Nesse período, por quantas noites você
estaria disposto a dormir no hospital, fazendo companhia para ela?”
Mesmo que as questões tenham sido facilmente compreendidas pelo
entrevistado, trata-se apenas de uma forma possível de operacionalização
do método. No artigo que relata os resultados da pesquisa (Primo, 2007c),
comentam-se possíveis problemas que algumas questões poderiam ter acar-
retado e aperfeiçoamentos que poderão ser efetuados em futuras pesquisas.
Vale reconhecer que, como apenas o blogueiro foi entrevistado, só se pôde
83
Estas questões constavam de uma tabela apresentada ao blogueiro. As ques-
tões constavam da primeira coluna e os nomes de cada comentarista seleciona-
do na primeira linha da tabela.
84
Essas alternativas utilizam o mesmo padrão adotado no site de relaciona-
mento Orkut.
119
O ASPECTO RELACIONAL DAS INTERAÇÕES NA WEB 2.0
avaliar sua percepção individual sobre seus relacionamentos no blog. Ou
seja, na pesquisa referida, não se efetuou o cruzamento da definição de Trä-
sel de seus relacionamentos com aquelas dos outros participantes. E, como
os outros interagentes não foram ouvidos, tampouco foi possível investigar
a característica “reciprocidade”. Ainda que uma investigação possa entre-
vistar apenas um dos interagentes sobre como ele define suas relações com
cada participante, futuras pesquisas deverão ouvir todos os envolvidos para
uma observação mais ampla do processo relacional.
Apesar daquelas questões poderem ser aplicadas para o estudo de in-
terações com /anônimos e /fakes, para a análise do contato de Träsel com
/ocultos e com a coletividade buscou-se investigar o volume de acessos e a
totalidade da interface do blog (blogroll, imagens, etc.).
Enfim, entende-se que o método aqui proposto pode contribuir para o
estudo relacional das interações em rede, qualificando o que, em análises
de redes centradas em ego (ego-centered networks)85, se chama apenas de
alter. Para além das dicotomias ego/alter e laços fracos/laços fortes, procu-
rou-se aqui demonstrar a variedade de relacionamentos que um interagente
pode estabelecer e manter com tantos outros.
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FISHER, B. Aubrey; ADAMS, Katherine. Interpersonal communication: prag-
matics of human relationships. Nova Iorque: McGraw Hill, 1994.
85
Trata-se de uma rede pessoal cuja análise parte de um indivíduo central
(chamado de ego).
120
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122
WEB 2.0
Práticas de sociabilidade em sites de redes
sociais: interações e capital social nos
comentários do Fotolog.com
Raquel Recuero*
Introdução
Este trabalho tem por objetivo discutir as práticas de sociabilidade apropria-
das pelos usuários do Fotolog86, um sistema de publicação de fotografias na web.
A partir da definição do Fotolog como um site de rede social, procuramos discutir
as suas apropriações interacionais, bem como as apropriações de capital social, a
partir de um estudo de caso dos comentários de 18 fotologs.
O Fotolog, objeto deste trabalho, foi criado em 2002 por Scott Heifer-
man e Adam Seifer. Conta, atualmente, com mais de 14 milhões de contas
e mais de 350 milhões de fotos novas por dia87. Inicialmente, o Fotolog
foi rapidamente adotado pelos usuários brasileiros, que durante os anos
de 2003 e 200488 mantiveram o primeiro lugar em número de usuários do
86
Cf. <http://www.fotolog.com>
87
Dados de 7 de janeiro de 2008.
88
O Fotolog não mais disponibiliza os números de acesso dos países para o
*
Professora do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Católica
de Pelo (PPGL/ UCPel) e pesquisadora vinculada ao CNPq.
123
PRÁTICAS DE SOCIABILIDADE EM SITES DE REDES SOCIAIS
sistema (Recuero, 2007). Hoje, no entanto, o Brasil ocupa apenas o terceiro
lugar, de acordo com o ranking do próprio sistema89. Apesar de o país não
ser mais o primeiro em número de fotologs, sistemas de publicações de
imagens são muito populares entre os brasileiros. De acordo com dados do
Ibope/Net Ratings, por exemplo, havia 3,94 milhões de usuários de sites de
fotografias no Brasil90 (sites dos quais o Fotolog é o mais popular91), dos
quais mais de 50% com menos de 24 anos.
Como se vê, o uso do fotolog é um fenômeno de razoável amplitude para os
usuários de internet no Brasil. E é um fenômeno popular especialmente entre
os jovens. Por conta disso, parece-nos fundamental compreender como se dá a
apropriação do sistema e como ele é utilizado pelos brasileiros. Com o objetivo
de sistematizar observações que possam indicar como se dão esses usos é que
construímos este trabalho. Nele, focaremos uma pequena questão: a apropria-
ção dos fotologs como espaços sociais a partir de seus comentários.
O Fotolog como site de rede social
Para que possamos discutir o Fotolog como um espaço social, iniciare-
mos mostrando como o sistema pode ser compreendido como um site de rede
social. Para tanto, descreveremos rapidamente o seu funcionamento.
Já dissemos que o Fotolog é um sistema de publicação de fotografias.
Cada usuário pode cadastrar-se e criar para si um fotolog. Cada fotolog cons-
titui-se em um site identificado por um apelido único. Cada nova fotografia
público. No entanto, um recente estudo realizado pela Faculdad de Ciencias
Sociales da Universidad Central do Chile apontou para um público de 2.869.322
usuários chilenos, o que deixa o Chile em primeiro lugar, suplantando outros
países com grande adoção do sistema, como o Brasil. Cf. <http://www.fcsucen-
tral.cl/home/entregan-resultados-iii-informe-fenomeno-fotolog-generacion-
20-radiografia-de-los-nuevos-usuarios/>. Acesso: 08/01/2008.
89
Cf. <http://geo.fotolog.com/directory?continent=SA/>. Acesso: 08/01/2008.
90
Dados de maio de 2007. Cf. <http://www.ibope.com.br/calandraWeb/serv-
let/CalandraRedirect?temp=5&proj=PortalIBOPE&pub=T&db=caldb&comp=No
ticias&docid=7A4A46881CA302B6832572D60064957B>. Acesso: 08/01/2008.
91
O Fotolog é o primeiro site voltado para fotografias a aparecer entre os mais acessados
do Brasil no ranking do Alexa (19° lugar). Cf. <http://www.alexa.org>.
124
WEB 2.0
publicada aparece em tamanho grande, no centro da página. À esquerda, há
um pequeno arquivo das últimas seis fotografias publicadas em ordem cro-
nológica (a mais recente primeiro), com as respectivas datas de publicação.
Abaixo da lista, há um link para uma seção de fotografias mais antigas, em
que é possível ver todas as já publicadas pelo usuário. À direita da fotogra-
fia principal, há uma lista de fotologs “amigos”, os quais são acrescentados
pelo usuário e que aparecem em ordem de atualização (os mais atualizados,
primeiro). Abaixo, há um link para os demais fotologs “amigos” e, logo após,
uma lista dos fotologs de “grupo” (apesar de criados por um único usuário,
são mantidos por vários, uma inovação recente do sistema) e, novamente,
um link para outros fotologs de grupo. Ao final, ainda há um espaço para os
links externos (para outros sites que não o do Fotolog) do usuário. Acima da
foto principal ainda há o título do fotolog e um link “about” com informações
do usuário dono do fotolog. Por fim, abaixo da foto principal, há um espaço
para comentários. Esse espaço pode ser aberto (qualquer um pode comentar),
moderado (apenas usuários com conta no Fotolog podem comentar) ou com-
pletamente fechado (comentários não são aceitos). Há dois tipos básicos de
fotolog: o fotolog comum e o fotolog gold camera. O “gold” é pago e permite
funcionalidades a mais, como uma maior personalização da página, maior
número de fotos publicadas diariamente e um espaço maior de comentários.
O fotolog comum permite apenas um limite diário de 20 comentários e uma
única foto publicada por dia.
O estudo de sites de publicação de fotografias é associado ou com o
contexto das imagens publicadas (Sibilia, 2005; 2006), ou com o processo
de produção e publicação das fotos (Miller & Edwards, 2007), ou mesmo
com a construção de história através das imagens (Vronay, Farnhan & Da-
vis, 2001). No entanto, poucos trabalhos referenciam esses sistemas como
sites utilizados não apenas para publicar fotografias, mas, principalmente,
como espaços sociais onde são criadas e mantidas redes sociais92.
92
Um trabalho que toca marginalmente a questão é aquele desenvolvido por
Marlow et al. (2007) a respeito do processo social de folksonomia e tagging das
fotografias no Flickr, um sistema semelhante ao do Fotolog. Embora tenha o
mérito de aprofundar uma apropriação social do sistema, o trabalho, no entan-
to, não aprofunda essa questão.
125
PRÁTICAS DE SOCIABILIDADE EM SITES DE REDES SOCIAIS
Neste trabalho, defendemos que o Fotolog é apropriado pelos brasi-
leiros observados como um espaço fundamentalmente de trocas e de in-
terações sociais, constituindo-se em um site de rede social. A definição de
Boyd e Ellison (2007, online) será aqui utilizada para apresentar o conceito
de site de rede social.
Definimos site de rede social como serviços baseados na web que
permitem aos indivíduos (1) construir um perfil público ou semipú-
blico dentro de um sistema limitado, (2) articular uma lista de outros
usuários com quem esses usuários dividem uma conexão e (3) ver e
navegar em suas listas de conexões e naquelas feitas por outros no
sistema. A natureza e a nomenclatura dessas conexões podem variar
de site para site93.
O Fotolog pode ser compreendido como um site de rede social a partir
de seu funcionamento. Ele permite a seus usuários a criação de um perfil
individual público ou semipúblico (como defenderemos a seguir), que é
unicamente identificado através de um apelido ou nickname único. Tam-
bém permite que se veja a lista de fotologs “amigos” e que, dentro desses
fotologs, possa o usuário também observar quem são os “amigos” dos de-
mais. Além disso, os fotologs possuem um espaço de interação – através
dos comentários que são permitidos a cada nova foto publicada –, o que
permite as trocas sociais, gerando, assim, uma segunda percepção da rede
social conectada ao mesmo. Antes de irmos adiante, no entanto, é necessá-
rio discutir o que se compreende como rede social.
Uma rede social é uma metáfora estrutural para a representação de um
conjunto de atores e suas conexões (Degenne & Forsé, 1999). O diferencial
da comunicação mediada por computador é justamente o fato de que esses
novos espaços parecem explicitar os rastros deixados pelas redes sociais,
tornando esses grupos mais perceptíveis (Boyd & Ellison, 2007), especial-
93
Tradução da autora para: “We define social network sites as web-based ser-
vices that allow individuals to (1) construct a public or semi-public profile within
a bounded system, (2) articulate a list of other users with whom they share a
connection, and (3) view and traverse their list of connections and those made
by others within the system. The nature and nomenclature of these connections
may vary from site to site”.
126
WEB 2.0
mente através dos sites de rede social. Esses sites não apenas auxiliam a
construção de novas redes, como também contribuem para a manutenção
dos grupos sociais já estabelecidos pelos atores. Fornecem, assim, um es-
paço para a interação social, como um terceiro lugar94 virtual (Oldenburg,
1989). Assim, o estudo dos sites de redes sociais na internet tem gerado
todo um novo foco por parte dos pesquisadores, principalmente no que diz
respeito ao modo de apropriação dessas ferramentas (Boyd, 2004; Boyd &
Herr, 2006; Fragoso, 2006; Recuero, 2005).
O Fotolog como espaço social:
interação e capital social
Os fotologs são sites que focam redes sociais. É por isso que enquadra-
mos o sistema como um site de rede social. Ele é baseado na individualiza-
ção, tida como fundamento para a constituição da interação mediada pelo
computador (Donath, 1999), construída através da transformação do foto-
log em um perfil pessoal (Recuero, 2006a) e da mostra da rede associada na
lista de amigos, mas mais fundamentalmente, nos comentários do sistema.
Embora os fotologs sejam focados nas imagens publicadas, as interações
entre os atores constituem-se em sistemas predominantemente textuais95. Há
o papel da imagem como agregadora da interação, como constituinte do
“self” que está sendo manifestado pelo autor do fotolog96, mas o espaço de
trocas é o espaço dos comentários, que só permite imagens (e mesmo as-
94
Os terceiros lugares são compreendidos por Oldenburg como aqueles espa-
ços que tornam a socialização possível. Eles proporcionam um espaço diferen-
ciado do lar (primeiros lugares) e do trabalho (segundo lugares). É um espaço
informal, que estaria desaparecendo com a Modernidade, a violência e a urba-
nização das grandes cidades.
95
No entanto, há autores como McDonald (2006) que analisam os sistemas de pu-
blicação de fotografias como formas de conversações visuais e demonstram que as
pessoas podem construir interações sociais através das imagens.
96
Utilizaremos, neste trabalho, o termo “autor do fotolog” – na falta de melhor
indicativo – para apontar o usuário que cria e mantém cada um dos fotologs
analisados. Embora a questão da autoria seja discutível – no sentido de que os
leitores também podem construir informações no sistema –, tal questão não é
objeto desta análise.
127
PRÁTICAS DE SOCIABILIDADE EM SITES DE REDES SOCIAIS
sim praticamente incompreensíveis, devido a seu tamanho muito pequeno)
daqueles que possuem gold camera.
O espaço de comentários já foi apontado por outros autores como espa-
ços de interação. De Moor e Efimova (2004), por exemplo, demonstraram
que os weblogs97 são capazes de suportar diferentes tipos de conversação
entre autor/leitores. Tais conversações também foram observadas por Pri-
mo e Smaniotto (2005) em outra “comunidade de blogs” brasileiros. Essas
trocas interacionais podem sair de um único blog e migrar para diversos
outros (Recuero, 2003). Essas interações podem ser seguidas, muitas ve-
zes, apenas por quem percebe a rede social na qual cada blog está inserido,
pois nem sempre há a referência da discussão.
Mishne e Glance (2006), em um estudo parecido, analisaram os co-
mentários dessas trocas entre weblogs e apontaram-nas como essenciais
para que a blogosfera pudesse ser constituída como um espaço de trocas
sociais. Além disso, os autores mostraram que tipos de trocas estão cons-
tituídas e como elas contribuem para elementos como a popularidade dos
weblogs analisados. Stefanone e Jang (2007) apontaram, ainda, para o fato
de que weblogs são usados para manter laços sociais fortes (Granovetter,
1973; 1983) decorrentes, justamente, de sua construção como um espaço
de interação.
Fotologs são funcionalmente semelhantes aos weblogs. Eles auxiliam
os atores a publicar imagens e texto de forma facilitada na web e agregam
um sistema de comentários. Assim, fotologs são capazes de suportar trocas
interacionais.
Parsons e Shill (1975, p.125) explicam que a interação compreende
sempre o alter e o ego como elementos fundamentais, de maneira que um
se constitui em elemento de orientação para o outro. A ação de um depende
da reação do outro, e há orientação com relação às expectativas. Para os
autores, a interação, como tipo ideal, implicaria sempre uma reciprocidade
de satisfação entre os envolvidos e compreende também as intenções e
atuações de cada um. A interação é, portanto, a ação que acontece entre
97
Sistemas de publicação facilitada na web, cujo foco é predominantemente
textual.
128
WEB 2.0
indivíduos, como aponta Alex Primo, que representa um processo sempre
comunicacional, “uma série de mensagens trocadas entre pessoas” (Wat-
zlawick, Beavin & Jackson, 2000, p.18). Essas interações constituem os la-
ços sociais que conectam os atores na rede social (Garton, Haythornthwaite
& Wellman, 1997; Wasserman & Faust, 1994).
Laços sociais podem ser fortes e fracos. Os fortes são aqueles que ex-
primem intimidade (Granovetter, 1973, 1983), que são capazes de suportar
trocas frequentes e com maior carga de capital social. Em uma rede social,
esses laços apontam quais atores estão mais próximos do ator central da
análise (Wasserman & Faust, 1994). Já os laços fracos são aqueles que
indicam atores mais distantes socialmente, que contêm menos interações,
menor carga de capital social. São os laços que temos com os nossos “co-
nhecidos”. Quan-Haase e Wellman (2002) apontam para a capacidade da
comunicação mediada pelo computador de gerar e auxiliar na manutenção
do capital social e dos laços sociais dos atores envolvidos.
O espaço interacional dos fotologs, por excelência, é o espaço dos co-
mentários, pois é o único que permite que o feedback entre os atores aconteça
em cada fotolog; e são eles o objeto deste trabalho. É nos comentários que é
possível a troca comunicativa mais perceptível, pois neles os leitores podem
se manifestar. No entanto, é bom salientar que os autores dos fotologs podem
ainda utilizar o texto publicado junto com o fotolog e mesmo as imagens
como parte da interação e, muitas vezes, segundo McDonald (2006), como
um espaço conversacional com outros autores de fotologs. Do mesmo modo,
a interação será analisada a partir dos usos dos comentários.
Essas trocas nos comentários podem indicar a construção ou a manuten-
ção de algum tipo de laço social (Garton, Haythornthwaite & Wellman, 1997)
através das interações que são estabelecidas entre os atores envolvidos.
Como um espaço com grande potencial de trocas interacionais, o fo-
tolog pode ser também compreendido como um espaço onde essas trocas
constituem capital social entre os atores da rede. Neste trabalho, compreen-
deremos o capital social como foi definido por James Coleman. Para ele,
O capital social é definido por sua função. Não é uma entidade única,
mas uma variedade de entidades, com dois elementos em comum: con-
sistem em um aspecto das estruturas sociais e facilitam certas ações
129
PRÁTICAS DE SOCIABILIDADE EM SITES DE REDES SOCIAIS
dos atores – tanto corporações quanto pessoas – dentro da estrutura.
Como outras formas de capital, o capital social é produtivo, fazendo
com que seja possível atingir certos fins que, em sem ele, não seriam
possíveis de ser atingidos. (Coleman, 1988, p.59)98
Para Coleman, assim, o capital social não está nos atores em si, mas em
sua estrutura de relações. De posse dessa definição, observaremos o capital
social como todos aqueles recursos que podem ser percebidos como troca-
dos e constituídos dentro da rede social, através do conteúdo das interações
(Gyarmati & Kyte, 2004). Como espaços capazes de suportar interação entre
os atores, os fotologs podem ser, também, espaços onde o capital social pode
ser constituído e trocado entre os atores. Esse capital social será analisado a
partir dos valores observados nos usos dos comentários em questão.
Procedimentos metodológicos e dados observados
Para atingir os objetivos deste trabalho, buscamos a construção de um estu-
do qualitativo, de viés empírico. Foram então selecionados, de forma aleatória,
20 fotologs. Esses fotologs foram escolhidos através da página de entrada do
Fotolog, que apresenta sempre quais fotologs foram atualizados mais recente-
mente de forma randômica por território geográfico – no caso, foram seleciona-
dos apenas fotologs mantidos por usuários brasileiros99. Uma vez selecionados
os 20 fotologs, eles foram analisados durante um mês, em dezembro de 2007.
No entanto, no decorrer do período, dois dos fotologs observados tiveram seus
comentários fechados. Uma vez fechado o espaço de comentários, todos os co-
mentários realizados pelos usuários desaparecem; assim, esses fotologs foram
descartados, ficando o trabalho com 18 fotologs100.
98
Tradução da autora para: “Social capital is defined by its function. It is not a
single entity but a variety of different entities, with two elements in common:
they all consist of some aspect of social structures, and they facilitate certain
actions of actors – whether persons or corporate actors – within the structure.
Like other forms of capital, social capital is productive, making possible the
achievement of certain ends that in its absence would not be possible.”
99
Tal método possui a limitação de agregar apenas fotologs que estão sendo
atualizados e descartar fotologs que não o são.
100
Esse número não corresponde a uma amostra estatística e tem por finalida-
130
WEB 2.0
Cada um dos 18 fotologs restantes foi observado com relação aos co-
mentários que eram trocados entre os usuários no espaço estabelecido.
Dessa forma, foram analisados os elementos: comentários, comentaristas,
frequência dos comentários, conteúdo dos comentários e atuação do usuá-
rio no sentido de provocar as interações. Esses elementos foram verificados
através da observação diária dos fotologs selecionados e da análise de con-
teúdo das interações verificadas.
Foram, assim, analisados, no período, 1583 comentários e 518 comen-
taristas – a totalidade encontrada. Os dados obtidos nessas duas abordagens
serão fundamentais para a discussão do fotolog como um site de rede social
e de sua apropriação como tal. A tabela abaixo sumariza numericamente os
dados observados nos fotologs:
Tabela 1: Dados gerais dos comentários e comentaristas
Comentaristas
Comentários/
comentários/
comentários/
Comentários
Máximo
Fotolog
usuário
usuário
Média
Média
Fotos
Foto
1 19 33 1,73 10 7 3.3
2 23 77 3,34 17 29 4,52
3 24 33 1,37 7 16 4,71
4 5 4 0,8 1 3 1,33
5 9 28 3,11 8 10 3,5
6 8 142 17,75 51 11 2,78
7 3 5 1,66 1 5 5
8 24 171 7,12 68 13 2,51
9 15 96 6,4 58 18 1,65
10 10 60 6 19 19 3,15
11 3 45 15 25 5 1,8
de, unicamente, uma análise qualitativa. Assim, portanto, o número foi arbitraria-
mente escolhido pela pesquisadora dentro de suas possibilidades de análise.
131
PRÁTICAS DE SOCIABILIDADE EM SITES DE REDES SOCIAIS
12 31 465 15 100 22 4,65
13 6 79 13,1 22 7 3,59
14 7 15 2,14 11 9 1,36
15 23 197 8,56 65 14 3.03
16 17 12 0,70 6 4 2
17 5 61 12,2 27 6 2,59
18 6 60 10 22 16 2,72
Total 242 1583 6,7 518 - 3,05
Os fotologs observados foram identificados apenas por números para
proteger seus autores, uma vez que são compreendidos como páginas pes-
soais, com informações que, embora públicas, podem constranger seus
autores. Para os comentários computados, foram desconsiderados aqueles
realizados pelos autores dos próprios fotologs101, que foram observados
apenas em alguns casos e como modo de impedir que outras pessoas conti-
nuassem a comentar depois de outra imagem publicada.
Também foram analisados os comentários quanto a seu conteúdo. Nes-
se sentido, foi selecionada uma pequena amostra, da qual, através do con-
teúdo dos comentários, foram criadas as seguintes categorias:
a) Assertivo: comentário cujo conteúdo é relacionado a um suporte so-
cial do autor do fotolog. São comentários em que há uma concor-
dância, elogio, apoio emocional e declarações sentimentais que têm
como conteúdo uma dose de assertividade, “fazer bem ao ego”. Nes-
sa categoria também foram enquadrados comentários que desejavam
coisas positivas ao autor do fotolog e que exprimiam sentimentos
relacionados ao mesmo (exemplos: “Esse dia foi muito legal, mes-
mo!”, “não fica assim, tudo vai melhorar, estou do seu lado”, “tá
linda na foto!”, “T amo”).
b) Negativo: comentário cujo conteúdo é depreciativo ou ofensivo com
relação ao autor do fotolog.
101
Tal fato explica algumas discrepâncias na tabela, como o fato de alguns fo-
tologs terem menos comentários na análise do que o total observado.
132
WEB 2.0
c) Informativo: comentário cujo conteúdo é uma informação destinada
ao autor do fotolog ou aos demais leitores. Pode ser constituído de
uma frase, uma letra de música, um aviso de festa ou mesmo uma
propaganda.
d) Conectivos: comentários com pedidos de adição ao autor do fotolog
(exemplo: “Add aí?”).
e) Conversacional: comentário cujo conteúdo está diretamente relacio-
nado a uma conversação que se inicia ou que está em andamento.
Faz referência a algum fato ou informação que não está presente
na postagem, nem no texto nem na imagem (exemplo: “vamos no
shopping hoje?”).
Com base nas categorias construídas, os comentários foram então ana-
lisados em sua totalidade e classificados de acordo com o seu conteúdo,
como explicitado na tabela abaixo.
Tabela 2: Conteúdo dos comentários102
Conversacional
Informativo
Conectivo
Assertivo
Negativo
Fotolog
1 26 0 2 0 20
2 58 2 3 1 44
3 24 1 6 0 19
4 4 0 0 0 2
5 21 0 3 0 12
6 91 6 5 19 85
7 4 0 0 0 3
8 148 0 27 36 59
102
Os comentários observados, muitas vezes, classificavam-se em mais de
uma categoria.
133
PRÁTICAS DE SOCIABILIDADE EM SITES DE REDES SOCIAIS
9 86 0 5 25 46
10 46 2 3 4 37
11 30 0 0 2 29
12 379 7 8 7 178
13 50 0 0 14 29
14 17 1 1 4 4
15 132 1 6 16 96
16 8 1 1 1 3
17 13 0 1 0 25
18 46 0 2 0 39
Total: 1183 21 73 129 730
Em cima dos dados obtidos pela observação dos fotologs e pelos da-
dos sumarizados nas tabelas, faremos a análise das apropriações desses
fotologs.
Apropriações nos comentários dos fotologs
Inicialmente, observamos que, em todos os fotologs da amostra, exis-
tiam comentários (mesmo nos que tiveram a parte dos comentários fechada
depois de algum tempo). Esse fato revelou-se interessante porque mostra
que esse espaço é relevante para os autores dos fotologs. Mesmo os dois fo-
tologs cujos cometários haviam sido fechados foram, posteriormente, rea-
bertos. Para analisar esses comentários, foram criadas algumas categorias
referentes aos usos desses observados na amostra, a partir dos dois focos
centrais da pesquisa: a interação e o capital social.
Apropriações de modos de interação
Essa categoria refere-se aos modos de interação e suas regularidades
observadas entre os fotologs selecionados.
134
WEB 2.0
Frequência de comentaristas
A primeira categoria observada foi a frequência dos comentários e
comentaristas. Outros autores já haviam verificado que a frequência é
importante nos comentários dos weblogs (Mishne & Glance, 2006) e que
pode ser um indicativo dos tipos de laços ali constituídos (Stefanone &
Jang, 2007).
De acordo com a Tabela 1, percebe-se que há uma média geral de 3,05
comentários por usuário em cada fotolog da amostra. Essa média indica
que há uma determinada frequência de comentaristas no mesmo fotolog.
De fato, como o número máximo de comentários indica, muitos atores co-
mentam com muita frequência, e isso foi observado comumente entre todos
os fotologs analisados. Todos continham um grupo de atores que comenta-
va com muita frequência.
Além disso, como na tabela apresentada não foram considerados em
separado os comentários de propaganda (que são razoavelmente comuns),
uma vez que muitos usuários respondem a tais comentários e passam a
relacionar-se com os autores de tais fotologs, é possível que a média por
usuário seja ainda mais alta. Apenas para efeitos de ilustração, por exem-
plo, no fotolog n° 8, que tem uma média de 2,51 comentários por ator, fo-
ram identificados como potenciais spammers 39 usuários e 40 comentários.
Se esses usuários fossem retirados da média (uma vez que um spammer
normalmente comenta apenas uma vez, dá a propaganda e desaparece),
seriam 4,55 comentários em média por cada um dos demais atores. O que
percebemos, portanto, é que há um grupo de comentaristas que retorna com
frequência ao fotolog.
Quando observamos o conteúdo dos comentários, essa frequência pare-
ceu ser um indicativo do grau do laço construído entre os atores envolvidos.
Em muitos fotologs, foi possível depreender que os principais comentaris-
tas eram, na verdade, atores muito próximos do autor do fotolog analisado
(por exemplo: namorado(a), colega de sala de aula, melhor amigo, etc.).
Quanto mais comentários, mais próximos pareciam os mesmos, inclusive,
com indicativos de encontrarem-se offline.
135
PRÁTICAS DE SOCIABILIDADE EM SITES DE REDES SOCIAIS
Fotolog 3 said on 12/1/07 2:00 PM …
Galeeeega (LL)
te aamo mi amore. e aii. vc vai terça ?
:**
Fotolog 4 said on 12/5/07 1:37 PM …
tas de férias guria, esquece essas fotos no colégio
hauhauahuh
;* tiia
te amo
O fato de os comentaristas com maior frequência no fotolog estarem
conectados à rede social do ator offline agrega a característica da multimo-
dalidade, típica dos laços sociais mais fortes.
Parece-nos, assim, que os comentaristas com maior número de parti-
cipações eram também aqueles que conheciam o autor do fotolog fora da
rede. Tal fato indicaria um possível uso do fotolog para manter a rede
social offline, mais do que criar uma nova rede social online.
Troca de comentários
Outra prática identificada pela observação em todos os fotologs foi a da
troca de comentários. Essa troca constitui-se na obrigação “moral” de res-
ponder aos comentários recebidos por outros atores, como forma, também,
de garantir que eles comentarão.
Fotolog 7 said on 12/12/07 2:35 PM …
nem passa mais no meu fotolog =/
No exemplo, vemos a cobrança de um ator a outros que não têm feito co-
mentários em seu fotolog. Essa prática é vista, com frequência, como neces-
sária: para receber comentários, o autor do fotolog precisa, também, investir
seu tempo comentando outros fotologs. Assim, aqueles que “desaparecem”
dos comentários frequentemente retornam desculpando-se pelo “sumiço”.
Fotolog 1 said on 12/24/07 10:03 AM …
Finalmente consegui comentar aqui! Sua pop!
:*
136
WEB 2.0
No exemplo, vemos um ator que, no início do mês, comentava frequen-
temente, mas que passou quase uma semana sem comentar, explicando seu
sumiço. Vemos que ele atribui à falta de espaço (apenas 20 comentários são
permitidos por imagem) o seu desaparecimento. Esse fato foi observado
com frequência nos fotologs e pode, igualmente, auxiliar na compreensão
dos dados obtidos na Tabela 1, pois os comentaristas frequentes seriam
aqueles que o autor do fotolog observado mais comenta.
Essa prática de troca também foi observada em outros trabalhos como
um indicativo da qualidade do laço social que conecta os atores nos we-
blogs (Marlow, 2004) e no Orkut103 (Recuero, 2005). Também fortalece
observações com relação ao estabelecimento de conversações (De Moor &
Efimova, 2004; Primo & Smaniotto, 2005).
Estabelecimento de conversações
Os comentários feitos por um ator são respondidos (de um modo ge-
ral) pelo autor do fotolog no fotolog do próprio comentarista, que retorna
posteriormente para responder àquele segundo comentário. Essa prática dá
origem às conversações, que podem ser seguidas nos vários fotologs. O
conjunto de comentários abaixo, por exemplo, retirado de um dos fotologs
observados, mostra fragmentos de uma conversação que acontece nos co-
mentários do mesmo dia.
Fotolog 1 said on 12/12/07 9:05 PM …
saudades tb cocotaa;/
vamoo marcaa de sair pra stroondaaaaaaaaaaar na
night (H)
sakjsalksasa
Fotolog 1 said on 12/12/07 9:08 PM …
vamooooooooooo (H)
pra ondee?
103
Site de rede social muito popular no Brasil. Cf. <http://www.orkut.com>
137
PRÁTICAS DE SOCIABILIDADE EM SITES DE REDES SOCIAIS
Fotolog 1 said on 12/12/07 9:14 PM …
posso posso,
tá no MSN ?
a gente marca direito por lá (H)
vamo que vamo gatinha que eu to encapetada (666)
sakjslajkslaa
Essa conversação acontece entre os dois fotologs em questão, pois é
possível observar as respostas ao fotolog 12 no mesmo dia, no espaço de
seu fotolog:
Fotolog 12 said on 12/12/07 9:05 PM …
sexta ou sabado, vamo vamo em em?
(666)³
Fotolog 12 said on 12/12/07 9:10 PM …
sair bebederas, pode pode?(66)³
Fotolog 12 said on 12/12/07 9:18 PM …
hunrrum, vamos marca o//
quero farra
Tais trocas interativas são bastante comuns. É possível observar que
muitos comentários são respostas a outro comentário, como conversas que
se desenrolam não apenas em um fotolog, mas em vários. Essas práticas já
tinham sido observadas de forma semelhante por Recuero (2003), Efimova
(2005), De Moor e Efimova (2004) e Primo e Smaniotto (2005) em grupos
de weblogs. Tais diálogos conseguem ser observados por outros atores jus-
tamente pelo rastro que deixam e pela percepção da rede social através da
observação dos comentários (Recuero, 2003; 2007). Ou seja, assim como
observadores são capazes de depreender as conversas e os comentários en-
tre indivíduos da mesma rede social, da mesma forma o são os demais
membros da rede. Essa prática pode justificar também os dados observados
na Tabela 1 a respeito da frequência dos comentaristas e do número de
comentários.
138
WEB 2.0
Comentários assertivos e conversacionais
Finalmente, quanto ao conteúdo das interações indicado na Tabela 2,
podemos observar que a expressiva quantidade de comentários é assertiva
(na verdade, quase a totalidade de comentários tinha características asser-
tivas), ou seja, comentários a respeito das qualidades do autor do fotolog,
bem como de seu texto e/ou de sua imagem. Também foi igualmente ob-
servada uma quantidade grande de comentários conversacionais que teriam
por finalidade iniciar ou continuar um fluxo de interações. É importante
notar que a grande maioria dos comentários observados foi, na verdade, um
conjunto de assertividade e conversação, com elogios ao autor do fotolog
e convites à interação, como se observa no exemplo abaixo. Vemos que o
usuário faz um comentário que convida à conversação e, ao mesmo tempo,
elogia a fotografia publicada.
Fotolog I said on 12/25/07 5:15 PM …
Não agento mais panettoneeeess!
=/
Curtiii a foto! =]
Smaaack~
Já os comentários pertencentes às categorias informacional e conectivo
foram bem menos observados, assim como os comentários negativos. A
maioria dos comentários negativos foi realizada pelo próprio autor do foto-
log, no sentido depreciativo de si mesmo (mas, possivelmente, como uma
forma de estimular os demais comentaristas a discordar dele).
Fotolog 6 said on 12/5/07 5:00 PM …
CARA DE CÚ
Também observamos que a maioria dos comentários do tipo informa-
tivo contém algum tipo de propaganda. Tais comentários não foram sim-
plesmente classificados como spam porque, como já explicamos, muitos
usuários os respondem e os adicionam, passando a trocar comentários.
Comentários do tipo conectivo parecem ser respondidos em dois casos:
(1) quando o usuário parece conhecer anteriormente o comentarista, que
avisa que trocou de fotolog; ou (2) quando o usuário parece estar disposto a
aumentar a quantidade de conexões de sua rede e, assim, sua popularidade.
139
PRÁTICAS DE SOCIABILIDADE EM SITES DE REDES SOCIAIS
No primeiro caso, observamos que os comentários do usuário adicionado
tornam-se frequentes. Já no segundo caso, os comentários do usuário adi-
cionado parecem continuar extremamente esporádicos, quando acontecem
novamente.
Multimodalidade quanto à plataformas de interação
Outro elemento observado no conteúdo dos comentários foi a referên-
cia a outros sites de redes sociais ou sistemas de interação mediada pelo
computador. O primeiro deles é o MSN104, sistema de mensagens muito
popular no Brasil. O segundo foi o Orkut, outro site de rede social muito
popular no país. Esses elementos foram citados em comentários de seis dos
fotologs analisados.
Os comentários a respeito do Orkut relacionam-se a interações menos
síncronas (recados, de forma semelhante ao Fotolog) ou à exploração do
perfil do outro (conhecer mais sobre o ator). Já os comentários a respei-
to do MSN relacionam-se a interações mais síncronas, mais rápidas, mais
semelhantes a uma conversa face a face. Esses comentários parecem de-
monstrar uma migração da interação para outros sistemas como forma
de fortalecer os laços sociais e de conhecer mais sobre os interagentes. Os
fotologs, como espaços de interação, não conseguem, por exemplo, supor-
tar longas trocas sociais como o MSN, no qual se pode conversar de forma
privada por muitas horas. Os fotologs proporcionam unicamente interações
públicas e limitadas (apenas 20 comentários), que podem ser observadas
por qualquer pessoa que tenha acesso ao sistema. Talvez por conta disso, o
fotolog seja utilizado simplesmente como um site que inicia interações que,
posteriormente, migrarão para outros sistemas.
Apropriações quanto ao capital social
Os vários modos de interação vão gerar práticas de criação, acúmulo
e busca de capital social pelos atores através de suas redes. Com base na
104
Sistema de troca de mensagens. Cf. <http://www.msn.com>
140
WEB 2.0
análise do conteúdo das interações (Gyarmati & Kyte, 2004), é possivel
verificar as funções do capital social, que vão indicar os tipos observados
na amostra (Coleman, 1988).
Busca pela popularidade
Essa categoria foi observada também em estudos de weblogs (Mish-
ne & Glance, 2006). A popularidade parece ser buscada por muitos atores
através de seus fotologs e constituída através de duas estratégias: a troca de
comentários e a adição à lista de fotologs “amigos”.
Em quatro dos fotologs da amostra, observamos a prática dessas estra-
tégias. Esses atores respondiam a todos os comentários recebidos e adi-
cionaram todos os usuários que solicitaram a sua rede de amigos, inde-
pendentemente de conhecê-los ou não (inclusive, spammers). Na maioria
dos fotologs observados, a prática de adicionar outros usuários à lista de
“amigos” só acontecia depois de várias interações, ou se os usuários faziam
referência, nos comentários, a um laço social previamente estabelecido.
Além disso, comentários de propaganda ou de adição de atores desconhe-
cidos não eram respondidos. No entanto, esses quatro fotologs agiam de
modo diferente, adicionando todos os usuários que solicitavam e respon-
dendo os comentários recebidos.
O exemplo abaixo mostra dois comentários realizados pelo mesmo usu-
ário, no mesmo dia. O primeiro solicita a adição (add) e o segundo agrade-
ce e elogia o autor do fotolog.
Fotolog 8 said on 12/7/07 6:13 AM …
ta add
depois acc la x3?
Fotolog 8 said on 12/8/07 7:43 AM …
ook
valewwww gata
(L)
Essa prática parece ser utilizada pelos atores que desejam aumentar a
visibilidade e a popularidade do seu fotolog, com um consequente aumento
do número de comentários (quanto mais visível na rede social, maiores as
141
PRÁTICAS DE SOCIABILIDADE EM SITES DE REDES SOCIAIS
chances de obter comentários). Isso, porque um fotolog que foi atualizado
recentemente aparece em cima da lista de “amigos” de todos aqueles que
fazem parte de sua rede social no Fotolog. Assim, torna-se visível a todos
os demais “amigos” e visitantes daqueles fotologs, amplificando sua visi-
bilidade na rede. Essa visibilidade também pode ser adquirida através das
conversações estabelecidas entre os fotologs, com os links para o fotolog
do autor, de forma semelhante à observada por Efimova (2005).
Ter um fotolog com o número máximo de comentários atingido em to-
das as fotografias parece ser visto como valor por alguns usuários obser-
vados, que se engajaram ativamente na prática de troca de comentários e
adição de novos “amigos”. Esse uso parece ser relacionado à obtenção de
popularidade pelos usuários do Fotolog. Apesar disso, essa prática não foi
observada na maioria dos fotologs selecionados, que ignorou os pedidos de
adição que recebeu, optando por manter a rede social.
Busca pelo apoio social
A Tabela 2 mostra que a expressiva maioria dos comentários nos foto-
logs observados é do tipo assertivo. Esse elemento pode mostrar, conjun-
tamente com a prática da troca de comentários, que há um acordo tácito de
troca de comentários que apoiam o autor do fotolog. Nesse sentido, parece
ser corrente a troca de elogios, declarações de amor e amizade, apoio explí-
cito, etc., como destacamos nos exemplos abaixo.
Fotolog 11 said on 12/4/07 10:17 PM …
linda tbm;D
amoo vc
:**
Fotolog 18 said on 12/28/07 1:24 AM …
agora sao 10h22 aki pm.. eu vo comecar a orar
por vc, melhor por nos, pq seus p;roblemos tb sao
meus,ne? Nao fica assim. Bj
Assim, a manutenção de um fotolog é associada também à manutenção
de um repositório de capital social relacionado ao apoio social facilmente
acessável. Embora não se possa dizer que tal seja a motivação dos atores, é
fato que essa prática ocorre, existindo, assim, a possibilidade de que esteja
142
WEB 2.0
relacionada às próprias práticas de interação observadas no sistema. Tal
prática relaciona-se diretamente com a criação e manutenção de laços fra-
cos, que vão centralizar o usuário na rede (Freeman, 1979).
Manutenção de laços sociais previamente estabelecidos
Ter um fotolog também parece estar relacionado à manutenção de la-
ços sociais previamente existentes. Como já explicamos, a maior parte dos
comentaristas frequentes que aparecem nos dados da Tabela 1 parece cons-
tituir laços estabelecidos no offline. Nesse sentido, o fotolog atua como
um espaço de manutenção desses laços, no qual é possível interagir com
aqueles amigos geograficamente próximos. A observação da multimodali-
dade nas interações também é um forte indicativo de que o sistema possa
refletir redes sociais estabelecidas offline (embora as práticas de busca de
popularidade também indiquem que é possível complexificar essa rede)
com a adição de novos laços (mais fracos) online. Tal fato já apareceu em
outros trabalhos (Recuero, 2006a).
Conclusões
Este trabalho teve por objetivo a observação dos comentários de um
grupo de 18 fotologs e a identificação de práticas de interação e capital
social nessa amostra. Assim, verificamos, através da observação e da aná-
lise, formas de apropriação na interação, a saber, a troca de comentários, a
frequência dos comentaristas, o estabelecimento de conversações e a mul-
timodalidade. Tais elementos podem ser indicativos do uso dos fotologs para
o estabelecimento ou a manutenção de laços fortes, mas parecem relacionar-
se, em seu conteúdo, à manutenção de laços fortes estabelecidos no plano
offline. No entanto, o uso dos fotologs como ferramentas de popularidade
também indica um uso para o estabelecimento de laços fracos (Granovetter,
1973; 1983) que vão conectar o ator a outras redes de fotologs.
Dentre as apropriações de capital social, identificamos a busca pela po-
pularidade, o que indica a popularidade como uma forma de capital e um
valor da rede (Efimova, 2005), de forma semelhante à observada no Orkut
(Recuero, 2005; Fragoso, 2006) e no Friendster (Boyd, 2004); a busca pelo
143
PRÁTICAS DE SOCIABILIDADE EM SITES DE REDES SOCIAIS
apoio social, que também indica que o apoio é um valor apreciado e tro-
cado na rede, de forma semelhante à observada nos weblogs por Recuero
(2003); e a manutenção dos laços sociais previamente estabelecidos, que
indica que o espaço social provido pelo Fotolog auxilia na manutenção da
rede social estabelecida em outros sistemas ou mesmo no plano offline, o
que também coincide com a indicação da multimodalidade e das trocas de
comentários. Tal observação aproxima-se do que foi verificado por Stefa-
none e Jang (2007), Marlow (2004) e Lento et al. (2006) nos weblogs.
Como vemos, os fotologs observados, apesar de se constituirem em sis-
temas de publicação de imagens, parecem reunir muitas características já
observadas em outros sites de redes sociais e nos weblogs. Esse fato parece
ser relevante, pois poderia indicar uma busca pelo espaço social na rede –
principalmente, no que diz respeito ao uso do sistema como uma forma de
manter redes sociais já existentes (maioria dos fotologs observados), mais
do que para criar ou complexificar uma nova rede (fotologs que buscam a
popularidade). Além disso, verifica-se que essas redes sociais parecem ser,
no Fotolog, um grande repositório de capital social de apoio aos usuários,
relacionado tanto com laços fortes quando fracos, e que podem ser utiliza-
das para a popularidade através dos laços fracos acrescidos à rede.
Assim, verificamos alguns dos tipos de apropriação dos fotologs como
espaço social pelos seus usuários. Certamente, os dados aqui discutidos não
podem ser tomados como regra da apropriação do sistema pelos usuários
brasileiros – justamente pelo pequeno tamanho da amostra observada e por
sua abordagem qualitativa. Também as categorias elencadas não podem
ser tomadas como exaustivas, e sim meramente como constatações a partir
dos dados obtidos. No entanto, esperamos que o trabalho ofereça algumas
pistas a respeito da apropriação do sistema como um espaço social.
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147
WEB 2.0
O seu buscador lhe satisfaz? A folksonomia como
alternativa de representação e recuperação de
informação na Web 2.0
Maria Clara Aquino*
Introdução
Ao final dos anos 90, Fragoso (2007, online) destaca que a populariza-
ção da web estendeu as possibilidades de comunicação muitos-muitos a um
número sem precedentes de pessoas e ressalta que – embora uma pequena
parcela da população mundial tenha pleno acesso às redes digitais – é ine-
gável que a comunicação mediada por computador (CMC) elevou o nú-
mero de indivíduos que assumem o papel de emissor, provocando, assim,
alterações no cenário midiático e aumento da quantidade de informação
online. Em 2005, Gulli e Signorini (2005, online) apontaram a existência
de cerca de 11,5 bilhões de páginas web e Fragoso (2007, online) ressalta
que “não bastasse a grandeza desses números, é preciso lembrar que a web
é essencialmente dinâmica e auto-organizada”, além de empregar várias
linguagens nas páginas.
*
Jornalista e doutoranda do Programa de Pós-graduação em Comunicação e
Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRS). Trabalho
apresentado ao GT “Comunicação e Cibercultura” do XVII Encontro da Compós,
na Unip, São Paulo, SP, em junho de 2008.
149
O SEU BUSCADOR LHE SATISFAZ?
Para guiar os internautas, surgem os buscadores, como os mais conheci-
dos Google105, Yahoo!106 e MSN Live Search107. Mas a proliferação desses
mecanismos não é sinônimo de solução. Deters e Adaime (2003, online)
explicam que um dos principais motivos das dificuldades em buscar in-
formação na web, hoje, é que a maioria dos usuários é inexperiente e não
utiliza os buscadores corretamente. Para extrair todo o potencial dos siste-
mas, Branski (2004) explica que é preciso conhecer como a informação é
estruturada nos bancos de dados, as características, as formas de interação,
as limitações do sistema e suas linguagens de busca.
Paralelamente às dificuldades de uso dos buscadores, Dreyfus (2001)
acredita que os links também são um problema. Se tudo pode ser linkado
a tudo, desconsiderando o significado, o autor acredita que o crescimento
do tamanho da web e a arbitrariedade dos links dificultam a recuperação de
informações.
No início da década de 1990, os internautas ficavam limitados a nave-
gar pelas páginas devido à ausência de ferramentas de publicação e de co-
nhecimento de linguagens de programação. Na Web 2.0, além de publicar,
os internautas podem gerenciar o conteúdo que inserem na rede através
da folksonomia. Em sistemas como del.icio.us108 e Flickr109, pioneiros da
folksonomia, os usuários adicionam tags às informações e passam a recu-
perá-las através dessas tags. Assim, processos de representação e recupe-
ração de informação, que antes eram prerrogativa exclusiva de programa-
dores e profissionais da informação, passam às mãos dos internautas, que
podem desvencilhar-se dos buscadores e gerenciar conteúdo com base não
em padrões fixos e vocabulários controlados, mas em uma prática colabo-
rativa e aberta.
Diante da evolução da web, a partir da trajetória das formas de repre-
sentação e recuperação de informação na rede e abordando problemas de-
correntes de pesquisas em buscadores, propõe-se a folksonomia como um
105
Cf. <http://google.com>
106
Cf. <http://yahoo.com>
107
Cf. <http://live.com>
108
Cf. <http://del.icio.us.com>
109
Cf. <http://flickr.com>
150
WEB 2.0
novo processo de representação e recuperação de informação realizado por
internautas. Através de um levantamento bibliográfico sobre folksonomia,
caracteriza-se a prática apontando vantagens e problemas de uso, demons-
trando sua utilização como alternativa aos buscadores e apontando as mo-
dificações que acarreta no hipertexto da Web 2.0.
O seu buscador lhe satisfaz?
Os problemas dos buscadores
Em sistemas nos quais o gerenciamento de documentos impressos é
feito por profissionais da informação, Feitosa (2006) destaca a importância
da indexação110, pois dela depende a qualidade dos resultados de operações
de busca e recuperação. De qualquer forma, para o autor, seja a indexação
automática ou manual, o principal problema dos sistemas de recuperação
é que documentos relevantes não são encontrados, devido à ausência de
termos de busca em vocabulários controlados, o que gera resultados irrele-
vantes ou insuficientes.
A eficiência de um buscador, de acordo com Branski (2004), depende
da capacidade de apresentar, nas primeiras colocações, informações que
supram as necessidades dos usuários, os quais devem fornecer ao banco
de dados elementos suficientes para que o sistema apresente resultados re-
levantes. No entanto, Céndon (2001, online) lembra que embora as bases
de dados de cada sistema sejam enormes, elas são diferentes e, quando não
encontra o que procura em um buscador, o usuário é obrigado a acessar em
outros, e assim proceder até encontrar o que procura. A falta de atualização
dos bancos de dados também pode frustrar uma pesquisa. A dinamicidade
da web torna imprescindível para a eficiência de um buscador a atualização
constante, segundo Céndon (2001, online). Caso contrário, os resultados
podem apresentar endereços inexistentes ou desatualizados. Diferenças de
critérios de busca dos sistemas também ocasionam problemas, já que acar-
110
A indexação objetiva a obtenção de termos que representem corretamente
os conceitos contidos em um documento (Feitosa, 2006).
151
O SEU BUSCADOR LHE SATISFAZ?
retam diferentes formas de pesquisa e nem sempre os usuários consultam pá-
ginas de ajuda. Segundo Branski (2004), a maioria dos internautas não domina
controles básicos e não explora todas as potencialidades dos buscadores.
O grande número de páginas web gera resultados extensos e, por isso,
a sequência em que são mostrados torna-se importante para o usuário, que
considera melhor a ferramenta que lista primeiro os itens mais relevantes.
Para construir o ranking de resultados, os buscadores utilizam algoritmos
de ordenação. Céndon (2001, online) cita os critérios mais utilizados por
esses algoritmos: localização e frequência de ocorrência de palavras em
um site. O PageRank111, que define os resultados de busca de acordo com o
número de links que apontam para um documento de sua base de dados, co-
loca nos primeiros lugares sites que mais recebem links. O problema desse
critério é, segundo Branski (2004), a premissa de que sites mais populares
contêm informações de melhor qualidade. Assim, ainda que oriundos de
conexões e não apenas de vocabulários controlados, os resultados listados
podem apresentar, nas primeiras posições, páginas irrelevantes, obrigando
o usuário a efetuar novas pesquisas em outros sistemas.
Lawrence e Giles (2003, online) alertam que diferenças de limites de
tamanho das páginas indexadas, de tempo de processamento da pesquisa
e restrições de palavras mostram que apenas comparar o tamanho das ba-
ses de dados de cada buscador pode levar a resultados enganadores. Gulli
e Sgnorini (2005, online) estimaram o percentual de cobertura dos prin-
cipais buscadores: ainda que ultrapassem 50%, nenhum é capaz de cobrir
toda a web, como era de se esperar, devido à dinamicidade da rede112.
Diante da promessa de democratização do acesso à informação pela web,
Laurewnce e Giles (2003, online) questionam se os buscadores fornecem
um acesso igualitário, já que o uso de técnicas baseadas na popularidade
dificulta a visibilidade de páginas que podem conter informações de alta
qualidade.
111
Cf. <http://www.google.com/technology/> - Sistema utilizado inicialmente
pelo Google.
112
O Google alcançou a marca de 76,16% de cobertura da web, seguido pelo
Yahoo! com 69,32%, MSN Beta com 61,90% e Ask/Teoma com 57,62%.
152
WEB 2.0
A concentração do uso de poucos buscadores que utilizam técnicas baseadas
na popularidade preocupa Fragoso (2007, online). A autora afirma que, segundo
objetivos comerciais, os sistemas mais utilizados indexam mais sites dos EUA
do que dos demais países, manipulam algoritmos, misturam resultados pagos,
etc., tornando-se uma espécie de “gatekeepers digitais” que criam uma “pres-
são verticalizadora, capaz de aproximar do modelo massivo a experiência da
maioria dos usuários da www”. Um estudo sobre usuários americanos de bus-
cadores, realizado por Fallows (2005, online), mostra que a maioria, embora
muito “positiva” sobre suas pesquisas online, é ingênua sobre o funcionamento
e os resultados dos sistemas. Enquanto 92% dos entrevistados afirmaram que
estão seguros de suas habilidades com os buscadores, apenas 38% está ciente
da distinção entre resultados pagos e não pagos.
A crítica aos links
Os problemas dos buscadores listados no item anterior somam-se à crí-
tica de Dreyfus (2001) sobre a organização hipertextual da web. Compa-
rando sistemas de vocabulários controlados com os links da web, Dreyfus
(2001) diz que, em vez de uma organização baseada em relações de classe,
a organização da web é baseada na interconexão generalizada, sem hierar-
quia e num único nível. Se tudo pode ser linkado a tudo, ele acredita que
o usuário não pode utilizar o significado dos links para encontrar informa-
ções. A ausência de hierarquia se torna um problema, já que a quantidade
tem importado mais do que a qualidade de conexões. Dreyfus (2001) argu-
menta que, sem restringir o que pode ser linkado a que, os links proliferam
de maneira descontrolada, dificultando a recuperação dos dados.
Dreyfus (2001) chama a organização da web de diversificação: uma
disposição flexível, num único nível, permitindo toda e qualquer associa-
ção, como se fosse desordenada, ao contrário de sistemas de classificação
estável e hierarquicamente organizada. Ele argumenta que, num sistema
tradicional de informação, a qualidade das edições é mais alta, assim como
a autenticidade dos textos, e que existe eliminação de material desatualiza-
do. Já na web, aponta a pouca abrangência de novas edições e disponibili-
dade dos textos e o armazenamento generalizado, sem nenhuma seleção do
material desatualizado.
153
O SEU BUSCADOR LHE SATISFAZ?
Por fim, Dreyfus (2001) critica os buscadores por não considerarem o
significado das palavras contidas nos documentos. Ao mencionar os esfor-
ços da Inteligência Artificial em fazer computadores entenderem o signi-
ficado das informações, para que os buscadores forneçam resultados mais
eficientes, acusa o fracasso da área, já que, por mais que se insiram conjun-
tos de fatos e regras para que o computador os relacione e ofereça resulta-
dos relevantes, as máquinas não captam significados por não entenderem
o senso comum.
Para repensar a crítica de Dreyfus (2001), o próximo item apresenta
a folksonomia como uma nova forma de representação e recuperação de
informação na Web 2.0.
Folksonomia versus taxonomia:
as vantagens e o propósito do uso das tags
A folksonomia surge na Web 2.0 para que os internautas representem e
recuperem informação, independentemente do uso de buscadores. Vander
Wal (2006, online), criador do termo, define a prática como o resultado de
processos livres de “etiquetamento”113 de páginas e objetos, realizados em
um ambiente social por pessoas que consomem as informações, objetivan-
do posterior recuperação.
Quintarelli (2005, online) apresenta diferenças entre folksonomias e ta-
xonomias: folksonomias emergem de conjuntos de tags sem organização
hierarquicamente estruturada e são criadas por usuários ao mesmo tempo
que publicam, inserem ou catalogam itens; taxonomias são geradas antes da
catalogação dos itens e oficializadas por profissionais que tentam adivinhar
as necessidades de conteúdo dos usuários; folksonomias pressupõem uma
visão colaborativa descentralizada; taxonomias pressupõem uma visão auto-
ritária centralizada; folksonomias não possuem precisão e controle de sinôni-
mos; taxonomias possuem alto grau de precisão, são construídas para evitar a
ambiguidade e suas estruturas hierárquicas contribuem para contextualizar
os termos. A partir daí, o autor distingue dois tipos de folksonomia: largas e
113
Etiquetamento é utilizado neste artigo como tradução e sinônimo de tagging.
154
WEB 2.0
estreitas. Folksonomias largas têm como exemplo o del.icio.us e resultam
de várias pessoas etiquetando o mesmo item. Folksonomias estreitas têm
o Flickr como exemplo, e resultam de um pequeno número de pessoas eti-
quetando, com uma ou mais tags, itens para posterior recuperação. O autor
explica que as largas mostram que várias pessoas concordam em utilizar
um pequeno conjunto, porém popular, de tags, ainda que pequenos gru-
pos optem por termos menos conhecidos para descrever seus itens. Assim,
uma folksonomia larga seria útil para investigar os termos mais usados
por grandes grupos de pessoas que descrevem itens ou para a extração de
vocabulários controlados. Já as folksonomias estreitas perdem a riqueza da
massa, mas beneficiam o etiquetamento de objetos que não são facilmente
encontrados com ferramentas tradicionais e fornecem alvos de audiências,
ou seja, pessoas que compartilham vocabulários próprios e que, assim, po-
dem recuperar os itens de forma mais simples e eficiente.
A popularização da folksonomia insere os internautas na representação
e recuperação de conteúdo online, e esses processos, que são hipertextuais,
sofrem alterações na Web 2.0 que implicam o repensar dos problemas dos
buscadores e da crítica aos links. Mathes (2004, online) considera que a
folksonomia representa uma mudança fundamental ao configurar processos
que não derivam de profissionais, e sim de usuários de informações, permi-
tindo que suas escolhas em dicção, terminologia e precisão se evidenciem.
Assim, a folksonomia reconfigura os padrões hipertextuais e traz um novo
tipo de link, que constitui o hipertexto 2.0 (Aquino, 2007, online). Os links
desse hipertexto são as tags, que se diferenciam de outros links por serem
criadas por qualquer internauta com base no significado das informações
etiquetadas. O valor da folksonomia, segundo Vander Wal (2006, online),
deriva de vocabulários próprios dos usuários e de significações oriundas de
entendimentos inferidos sobre a informação etiquetada.
Fichter (2006, online) afirma que enquanto a taxonomia pode ficar de-
satualizada, a folksonomia acomoda facilmente novos conceitos que não
são incluídos em taxonomias. Essa dinamicidade é apontada como um
feedback imediato da prática por Udell (2004, online), Quintarelli (2005,
online) e Mathes (2004, online). Udell lembra que ao se adicionar uma tag
a um item, logo é possível visualizar um cluster de itens etiquetados com
155
O SEU BUSCADOR LHE SATISFAZ?
a mesma tag114, e explica que se o indivíduo adiciona uma tag e percebe
que não é muito utilizada por outros usuários que etiquetam o mesmo item,
pode modificar a tag ou acrescentar outras. Para Mathes (2004, online),
essas atitudes demonstram a comunicação assimétrica existente entre usu-
ários de folksonomias, que negociam os significados com outros usuários
a partir da criação individual de tags. Assim, por mais que os usuários não
dialoguem nos sistemas e até nem mesmo se conheçam, suas atividades
de etiquetamento influenciam a criação de tags por outros usuários. É um
processo coletivo, ainda que, muitas vezes, sem contato dialógico entre
os participantes, mas que, ainda assim, se baseia num processo interativo
através das tags.
A casualidade da folksonomia é apontada por Mathes (2004, online) e
Quintarelli (2005, online) e relacionada pelos autores com sua dinâmica de
atualização. Mathes explica que enquanto usuários de taxonomias preci-
sam seguir regras e inserir termos específicos para encontrar o que buscam,
navegar em folksonomias e conexões de tags estabelecidas pelos usuários é
mais vantajoso pelo material inesperado que se encontra. Quintarelli (2005,
online) explica que a natureza desprovida de controle e o crescimento orgâ-
nico de sistemas folksonômicos agregam a capacidade desses sistemas de
rápida adaptação a mudanças de vocabulários e necessidades dos usuários.
Além disso, o tempo e o esforço gastos em folksonomias são menores do
que em taxonomias, assim como o custo para o usuário, ou o sistema, adi-
cionar novas tags, pois a partir de uma tag é possível descobrir todos os
itens etiquetados por todos os usuários com a mesma tag.
O contexto de uso em sistemas folksonômicos não é apenas individual,
mas colaborativo. Mathes (2004, online) atribui ao feedback instantâneo
desses sistemas a natureza comunicativa das tags. A discussão em torno do
caráter individual e/ou coletivo de sistemas folksonômicos reflete a hetero-
geneidade dos sistemas. Mathes (2004, online) diz que Flickr e del.icio.us
são utilizados individualmente e que tags como me e toread115 mostram o
114
O del.icio.us fornece, ao lado de cada tag, o número de bookmarks etique-
tados com a mesma tag. A maioria dos sistemas folksonômicos fornece a tag
cloud que agrupa as tags mais populares do sistema.
115
Tradução da autora: eu e paraler.
156
WEB 2.0
uso dos sistemas para representação e recuperação individual de conteúdo.
Porém, explica que ambos foram criados para o compartilhamento e que
comportamentos organizacionais individuais estão tomando lugar em es-
paços públicos virtuais nesse tipo de sistema. O autor suspeita que o com-
portamento dos usuários possa ser influenciado por grupos de usuários que
compartilham tags e pelos relacionamentos que os usuários mantêm nos
sistemas, mas que não é suficiente atestar um modelo de uso definitivo atra-
vés de um simples exame do uso de tags. Porém, acredita na forte evidência
de comunicação e até mesmo de formação de comunidades através das
tags. Para Quintarelli (2005, online), a folksonomia não é apenas a criação
de tags para uso individual, pois os usuários também são, como as infor-
mações, objetos de agregação. “The power of folksonomy is connected to
the act of aggregating, not simply to the creation of tags”116, afirma o au-
tor, justificando que sem um ambiente social que sugira agregação, as tags
não passam de palavras-chave soltas com significado apenas para quem
as criou. O poder da folksonomia, para o autor, são as pessoas e a relação
termo-significado emergente de um contrato implícito entre usuários.
Marlow et al. (2006, online) relacionam o caráter individual e/ou coleti-
vo da folksonomia com a motivação de uso dos sistemas. Eles mostram que
nem todas as tags emergem com o intuito de terem audiência, caracterizan-
do, assim, um uso individual movido por uma motivação organizacional.
Para eles, muitos começam com a ideia de que estão adicionando tags em
benefício próprio em termos de recuperação, e outros permanecem sem o
mínimo interesse em compartilhar suas tags. No entanto, a motivação or-
ganizacional pode se transformar em motivação social quando se percebe a
possibilidade de contribuir para o funcionamento de um sistema folksonô-
mico e passa-se a criar tags para aperfeiçoar a organização dos dados.
116
Tradução da autora: “O poder da folksonomia é conectado ao ato de agre-
gação e não simplesmente à criação de tags.”
157
O SEU BUSCADOR LHE SATISFAZ?
Os problemas da folksonomia e algumas
sugestões para os impasses
Xu et al. (2006, online) alertam que pessoas diferentes podem usar ter-
mos diferentes para o mesmo conceito ou, como preferem Begelman, Kel-
ler e Smadja (2006, online), “people think and tag differently. This creates
a noisy tagspace and thus makes it harder to find material tagged by other
people”117. O tagspace é o problema mais comum da folksonomia e ocorre
quando a mesma tag é usada em dados diferentes. Golder e Huberman
(apud Marlow, 2006 online) especificam os problemas de prática em: a)
polissemia: quando uma palavra tem múltiplos significados relacionados;
e b) sinonímia: quando diferentes palavras têm o mesmo significado. Guy
e Tonkin (2006, online) alertam para tags com erros cometidos pelos usuá-
rios; mais de uma palavra sem espaço entre elas; tags com significado pes-
soal e tags que aparecem em um único banco de dados.
Marlow et al. (2006, online) apontam como solução a sugestão de tags,
funcionalidade já oferecida pelo del.icio.us. Porém, Guy e Tonkin (2006,
online) alertam que o oferecimento de tags já existentes favoreceria deter-
minadas tags e forçaria usuários novos a se familiarizarem com as tags já
existentes. A utilização do plural, visando a recuperação mais eficiente, é
mencionada por Spiteri (2007, online) e por Guy e Tonkin (2006, online).
Os dois últimos autores sugerem o uso de sinônimos e bundles, que permi-
tiriam a construção de folksonomias hierárquicas. As bundles são conjun-
tos de tags118 utilizados no del.icio.us – formato que poderia ser inserido
em outros sistemas sem prejudicar o propósito original da folksonomia e
sem restringir a criação de tags pelos usuários. Seria uma forma de organi-
zar o sistema, mas sem impedir a inserção de novas tags.
Embora não existam guias para a construção de tags, Spiteri (2007, online)
lembra que guias para construção de taxonomias podem auxiliar folksonomias.
117
Tradução da autora: “pessoas pensam e etiquetam diferente. Isso cria um tagspa-
ce que torna mais difícil a recuperação de material etiquetado por outras pessoas.”
118
O usuário cria uma bundle e define quais tags farão parte dela. Cada vez que
etiqueta um bookmark com uma tag que faz parte de uma bundle, o del.icio.us
automaticamente insere o bookmark dentro daquela bundle.
158
WEB 2.0
A sugestão da autora remete a Noruzi (2007, online), que propõe o uso de
tesauros num sistema folksonômico, para que este possa fornecer uma padro-
nização aos termos de um tema; localizar conceitos que fizessem sentido aos
usuários; fornecer hierarquias classificadas para que a busca possa ser refei-
ta, no caso de resultados iniciais longos ou curtos; promover a escolha entre
singular e plural; corrigir erros tipográficos dos usuários; e fornecer um guia
aos usuários que, assim, poderiam escolher o termo correto para a pesquisa e
guias para termos que estão relacionados a qualquer tag. Noruzi reconhece
que a sugestão nem sempre é aceita, mas é enfática na argumentação, dizendo
que não há como manter a consistência de uma folksonomia sem um tesauro.
A inclusão de tesauros em sistemas folksonômicos é contraditória: incluir es-
quemas de vocabulários controlados em folksonomias soa como retrocesso à
taxonomia. Segundo Spiteri (2007), folksonomias são criadas em ambientes
nos quais, mesmo que as pessoas não colaborem na criação e assinatura de
tags, elas podem acessar tags assinadas por outras pessoas. A vantagem da
folksonomia sobre a taxonomia é a dinamicidade decorrente da participação de
qualquer internauta. Quando sentem a necessidade de inclusão de novas tags
para representar informação, os próprios usuários podem criá-las. Em taxono-
mias, a inclusão de novo termo depende dos responsáveis pelo sistema.
Assim, como controlar a criação das tags sem limitar a atividade dos usu-
ários? Os sistemas folksonômicos não perderiam seu propósito e até mesmo
sua audiência ao exercer controle sobre a representação e a recuperação de in-
formação? Mecanismos que restringem a criação de tags, além de irem contra
a proposta da folksonomia, prejudicam o hipertexto 2.0. As tags, como links,
deixariam de ser um produto coletivo com base no significado compartilhado,
e seriam produto de usuários presos a regras de uso para um formato que, ori-
ginalmente, como afirma Vander Wal (2005, online), é coletivo e aberto.
As recomendações de Spiteri, ao contrário das de Noruzi, não restrin-
gem a atividade dos usuários. Ela sugere o uso do plural no lugar do singu-
lar, a permissão de palavras compostas, o uso de espaços entre os termos
e o oferecimento de um link direcionando os usuários para dicionários ou
para a Wikipédia119, a fim de resolver problemas de ambiguidade, reconhe-
119
Cf. <http://wikipedia.org.>
159
O SEU BUSCADOR LHE SATISFAZ?
cer o significado dos termos e determinar a forma, abreviada ou não, para
criar a tag. A inclusão de links pelo sistema surge para guiar os usuários,
visando uma organização das tags, porém, sem perder o propósito de dei-
xar o sistema aberto e passível de alteração por qualquer usuário. Trata-se
de um auxílio fornecido pelo sistema que não limita os usuários, e que atua
enxugando a estrutura de tags, tornando mais fácil a recuperação tanto por
quem atua criando tags, quanto por quem apenas navega pelas tags em
busca de novos dados.
O impacto da folksonomia sobre os problemas
dos buscadores e sobre o hipertexto na Web 2.0
A concentração do tráfego na web em torno de poucos buscadores (Fra-
goso, 2007, online), os problemas do uso desses mecanismos e a crítica
de Dreyfus (2001) aos links são argumentações a serem repensadas com o
surgimento da folksonomia.
Quanto ao problema do fornecimento de resultados deficientes devido
à limitada abrangência de termos de busca, lembra-se aqui o destaque de
Feitosa (2006) à importância da indexação, que interfere na qualidade da
recuperação. A folksonomia se constitui em alternativa aos usuários que
buscam informação na web, desvencilhando-os do poder verticalizador
exercido pelos buscadores, já que a representação das informações pode
ser realizada por eles mesmos, que podem criar tantas e quaisquer tags que
considerarem necessárias. Ao contrário de taxonomias, cujos resultados são
atrelados a vocabulários controlados, a abrangência dos resultados de uma
busca em um sistema folksonômico é estendida, pois todos os itens podem
ser etiquetados com mais de uma tag e, assim, os resultados de uma pesqui-
sa fornecem todos os itens etiquetados no sistema com a mesma tag.
A falta de atualização dos resultados dos buscadores (Céndon, 2001, on-
line; Dreyfus, 2001) é uma dificuldade amenizada pela dinâmica de atua-
lização da folksonomia, que é realizada pelos usuários e, assim, permite a
ocorrência de um feedback instantâneo (Mathes, 2004, online; Udell, 2004,
online; Quintarelli, 2005, online; Fitcher, 2006, online) através da inserção
e/ou modificação de tags, logo que os usuários sentem a necessidade da
inclusão de novos termos, sem depender do sistema para tal.
160
WEB 2.0
A prática da folksonomia refuta a ideia que Dreyfus (2001) tem dos
links quanto à questão semântica. Para ele, “since hyperlinks are made for
all sorts of reasons […], the searcher cannot use the meaning of the links
to arrive at the information he is seeking”120 (Dreyfus, 2001, p.12). As tags,
como links do hipertexto 2.0, são criadas por qualquer usuário com base no
significado do conteúdo do documento etiquetado (Vander Wal, 2006, onli-
ne; Mathes, 2004, online; Quintareli, 2005, online). Ainda assim, se a ideia
das tags é que cada um adicione a que melhor lhe convier no momento de
recuperar as informações, essa liberdade de representação não reforçaria a
afirmação de Dreyfus (2001) de que, sem controle para a criação de links,
a web ficaria mais desorganizada e a recuperação mais complicada? Os
estudos sobre folksonomia ainda não fornecem resultados sólidos sobre
esse aspecto, porém, autores como Spiteri (2007, online) demonstram que a
maioria das tags em determinados sistemas é criada por usuários que estão
seguindo, espontaneamente, regras estabelecidas para vocabulários controla-
dos. A autora analisou logs diários das tags mais populares no del.icio.us, no
Furl121, sites de bookmarking social e no Technorati122, que permitem a pes-
quisa e a organização de blogs. A análise foi conduzida aplicando o Guia para
a Construção de Tesauros NISO, conjunto de regras mais reconhecido para a
construção de vocabulários controlados. Apesar dos problemas comumente
encontrados em folksonomias, a pesquisa concluiu que a maioria das tags de
cada sistema está de acordo com as regras do NISO e, assim, de acordo com
regras para a construção de vocabulários controlados.
Quanto às diferenças de critérios de busca dos buscadores (Branski,
2004), sistemas folksonômicos funcionam com base no processo de ta-
gging e, geralmente, não possuem diferenças marcantes entre si no que
se refere à utilização da folksonomia, permitindo que o internauta possa
utilizar o sistema sem precisar aprender regras e esquemas complexos de
pesquisa.
120
Tradução da autora: “desde que hiperlinks são criados sem razão definida
[…], o pesquisador não pode usar o significado dos links para chegar à infor-
mação que procura.”
121
Cf. <http://furl.com>
122
Cf. <http://technorati.com.>
161
O SEU BUSCADOR LHE SATISFAZ?
A ordenação de resultados, que nos buscadores é feita com base na
popularidade de termos e links, funciona de forma diferente na folksono-
mia. Um sistema folksonômico possui uma variedade de tags para cada
item que é constantemente aperfeiçoada pelos usuários. Assim, os resulta-
dos se modificam de acordo com a movimentação das tags realizada pelos
usuários, além de serem mais abrangentes por apresentarem todos os itens
etiquetados com a mesma tag. Se nos buscadores algumas páginas com
informações relevantes para um usuário ficam escondidas, pois não são tão
linkadas quanto outras (Guy & Tonkin, 2006, online), na folksonomia o
item etiquetado com várias tags pode aparecer em resultados de diferentes
buscas, ganhando, assim, maior visibilidade no sistema.
A conexão generalizada da web – criticada por Dreyfus (2001) por im-
pedir o uso do significado dos links na recuperação de informação – ganha
força na folksonomia em razão da liberdade de criação de tags; porém, é
positiva. Cada item podendo ser etiquetado de forma ilimitada, e com base
no significado da informação, aumenta o número de conexões, fatores que
elevam o número de resultados de uma pesquisa. Já em sistemas taxonômi-
cos, os resultados são em menor número devido à restrição na abrangência
dos termos de busca.
Considerações finais
Este artigo buscou expor a folksonomia como um processo compartilha-
do e aberto, que não pressupõe ordem e controle rígido sobre os usuários.
As ferramentas da Web 2.0 que utilizam a prática comportam esse tipo de
funcionamento e ainda permitem a formação de agrupamentos de pessoas
em torno de informações. Independentemente dos problemas que apresen-
tam, os estudos mencionados mostram que, ao contrário do esperado, os
sistemas evidenciam um nível de organização emergente da atuação dos
usuários, que não seguem regras e padrões estabelecidos, mas atualizam e
adaptam o sistema a usos individuais, porém, com base nas atividades de
outros usuários.
As possibilidades de publicação online, surgidas até mesmo antes de se
ouvir falar em Web 2.0, reconfiguraram a prática hipertextual e deram mar-
gem ao estabelecimento de uma inteligência coletiva através do hipertexto,
162
WEB 2.0
como propunha Lévy (1993) no início dos anos 90. A inteligência coletiva
sempre existiu na sociedade humana, alertam Cavalcanti e Nepomuceno
(2007), mas foi potencializada através da internet. Quinterelli (2005, on-
line) coloca como questão central a passagem para uma massa crítica de
conectividade entre os indivíduos, que introduziram uma habilidade de
comunicação baseada no compartilhamento através de ferramentas de co-
nexão, as quais estão permitindo a produção de informação distribuída,
que precisa ser linkada e organizada para que o conhecimento possa ser
extraído.
A folksonomia poderia ser considerada como um vocabulário descon-
trolado, o que não significa uma desordem total, e sim um processo aberto,
coletivo e feito com base nas significações apreendidas pelos usuários das
informações que etiquetam, seja com intuito estritamente individual ou de
colaboração. A folksonomia é produto da web, que é formada por informações
inseridas por internautas e, agora, por eles gerenciadas e recuperadas, abrindo
assim novas opções para a busca de informações. Cabe agora aos buscadores,
que precisam ser mantidos pela publicidade estampada em seus sistemas, correr
atrás do prejuízo. Com a possibilidade de pesquisar informações em outros si-
tes, os usuários – ao migrarem para bases de dados que utilizam a folksonomia
– contribuem para a queda dos lucros dos buscadores. O Yahoo! saiu na frente e,
em padrão beta, está oferecendo, em seus resultados de busca, um ícone do del.
icio.us, permitindo a visualização das páginas etiquetadas no sistema, quantas
tags possuem e quantos usuários as etiquetaram. Como os buscadores abrange-
rão informações com tags sem desestabilizar o sistema – o que ocorreu na época
em que os blogs se tornaram populares e começaram a dominar os primeiros
lugares nos resultados de uma busca – é um questionamento que surge com a
folksonomia, porém, ainda sem resposta. Como afirma Xu et al. (2006, online),
“the number of tags in a social network multiplies like rabbits”123; resta saber
como internautas e buscadores tomarão conta da ninhada.
123
Tradução da autora: “o número de tags numa rede social se multiplica como
coelhos.”
163
O SEU BUSCADOR LHE SATISFAZ?
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166
WEB 2.0
PARTE 3 – PARTICIPAÇÃO E MONITORAMENTO:
A NOVA FACE DA VIGILÂNCIA
Monitoramento, classificação e controle nos
dispositivos de vigilância digital
Fernanda Bruno*
Em novembro de 2007, o Facebook, uma das redes sociais mais po-
pulares dos EUA, tornou visível parte da vigilância digital inscrita em di-
versos ambientes na internet. Essa vigilância, usualmente quase invisível,
foi parcialmente revelada por um novo sistema de publicidade, o Beacon
Ads. Segundo essa nova “publicidade social”, os membros do Facebook
podem ter a sua atividade nos sítios associados (The New York Times Co.,
Blockbuster, General Motors, Ebay, etc.) monitorada e divulgada aos seus
“amigos” na rede social, simulando uma propaganda “boca a boca”. Se, por
exemplo, um membro compra um filme num site associado ao Facebook,
a sua rede de amigos pode receber uma notificação sobre a compra que
fez, links para o produto, preços, etc. O mecanismo publicitário permite,
ainda, que empresas parceiras do Facebook tenham um perfil124 similar aos
124
Na sessão “Facebook pages”, própria para os anunciantes.
*
Professora adjunta do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Escola
de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ) e coor-
denadora do Ciberidea: Núcleo de Pesquisa em Tecnologia, Cultura e Subjeti-
vidade. Este texto é produto de pesquisa financiada pelo CNPq. Trabalho apre-
sentado ao GT “Comunicação e Cibercultura” do XVII Encontro da Compós, na
Unip, São Paulo, SP, em junho de 2008, tendo recebido menção de destaque.
167
MONITORAMENTO, CLASSIFICAÇÃO E CONTROLE NOS DISPOSITIVOS DE VIGILÂNCIA DIGITAL
dos demais membros e façam, destes, seus “amigos”, ofertando produtos
condizentes com seus perfis pessoais.
Em outros trabalhos (Bruno, 2006; Bruno et al., 2006), mostrei como
uma série de ambientes e serviços no ciberespaço, com finalidades diver-
sas – sociabilidade (Orkut, Faceebook), consumo (Amazon.com, E-bay),
busca (Google Search Engine), entretenimento (YouTube, Second Life),
informação (Google News, Google Zeitgeist) –, continham, em seus pró-
prios sistemas de funcionamento, meios de monitorar e classificar ações e
comunicações dos indivíduos. Chamei esses mecanismos de dispositivo de
vigilância digital e analisei os seus elementos centrais seguindo indícios
mais ou menos seguros, dado que boa parte das ações desse dispositivo
permanece pouco visível e conhecida. O Beacon Ads, entre outros casos,
permitiu ver que as hipóteses propostas em trabalhos anteriores estavam
bem trilhadas. Contudo, não é a aplicação publicitária da vigilância di-
gital que me interessa, mas, sim, os seus mecanismos de monitoramento,
classificação e controle dos indivíduos, que encontram no consumo e na
publicidade apenas uma de suas muitas aplicações.
Na ocasião em que o Beacon Ads foi lançado, as notícias que circularam
na grande mídia e na mídia independente tinham como preocupação central
a privacidade dos usuários. Aliás, vale notar que o ano de 2007 foi farto
em notícias e protestos contra a vigilância de dados e os seus atentados
à privacidade. Essa vigilância discreta começa a entrar na pauta das dis-
cussões sociais e políticas, e o ano de 2007 foi significativo nesse sentido.
No entanto, o foco na privacidade, embora legítimo, é limitado se não for
acompanhado de uma problematização mais ampla dos processos caracte-
rísticos da vigilância digital. Vejamos por quê.
Dois argumentos, para ser breve: primeiro, é preciso ter em mente que a
noção de privacidade está em disputa. Ou seja, a definição tradicional, fun-
dada nos princípios de proteção ao anonimato, à solidão e ao segredo, não
é suficiente no contexto da vigilância digital (Gibbs et al., 2005; Dholakia
& Zwick, 2001). E mesmo a definição de informação individual do Privacy
Act, já concebida nesse contexto, é insuficiente:
Information or an opinion (including information or an opinion for-
ming part of a database), whether true or not, and whether recor-
168
WEB 2.0
ded in a material form or not, about an individual whose identity is
apparent, or can reasonably be ascertained, from the information or
opinion. (The Privacy Act 1988, Sect 6)
A insuficiência, nesse caso, reside no princípio de identidade aparen-
te ou passível de averiguação, pois muitas vezes pode-se prescindir dessa
identificação. O próprio Facebook tornou anônimos seus bancos de dados
antes de repassá-los às empresas associadas, e não se pode dizer que, com
isso, tenha respeitado a privacidade de seus membros. Em suma, é possível
respeitar os princípios mencionados exercendo formas de monitoramento e
uso de dados pessoais que colocam em risco o controle do indivíduo sobre
as informações por ele geradas.
O segundo argumento: recolocar a questão da privacidade implica re-
forçar a sua dimensão coletiva, e não simplesmente privada e particular.
Essa dimensão coletiva só pode ser problematizada se analisarmos os pro-
cessos mais amplos de monitoramento, classificação e controle da informa-
ção individual, apreendendo o modo como os indivíduos e as identidades
estão sendo produzidos, bem como as implicações ético-políticas em jogo.
Este artigo pretende dar alguns passos nessa direção. Dando continuidade
a textos anteriores, objetiva aprofundar a análise dos processos indicados e
mostrar como eles constituem um modelo taxonômico, epistêmico, identi-
tário e preditivo, próprio às tecnologias de controle contemporâneas.
Definições e posições
Comecemos propondo a seguinte definição de vigilância digital: moni-
toramento sistemático, automatizado e a distância de ações e informações
de indivíduos no ciberespaço, com o fim de conhecer e intervir nas suas
condutas ou escolhas possíveis. Tal vigilância é aqui analisada segundo a
noção de dispositivo, que conjuga três traços centrais: um conjunto de ele-
mentos heterogêneos, uma função estratégica, jogos e formações de poder
e saber (Foucault, 1979, p.244). O dispositivo de vigilância digital tem,
entre seus principais elementos, as tecnologias de monitoramento de ações,
informações e comunicações dos indivíduos no ciberespaço, a montagem
de bancos de dados e a elaboração de perfis computacionais (Bruno, 2006).
169
MONITORAMENTO, CLASSIFICAÇÃO E CONTROLE NOS DISPOSITIVOS DE VIGILÂNCIA DIGITAL
A compreensão desses elementos, das suas funções estratégicas e das relações de
poder e saber que os atravessam depende de uma análise mais ampla dos seus
processos constitutivos. Destaco quatro processos que, embora não se restrin-
jam à vigilância digital, se atualizam nela de forma singular: os mecanismos de
coleta, monitoramento e arquivo de informações; os sistemas de classificação e
conhecimento dos dados; os procedimentos de individualização e produção de
identidades; e as formas de controle sobre as ações e escolhas dos indivíduos.
Esses quatro processos são constitutivos dos sistemas de vigilância ao
menos desde o século XVII. Supõe-se, assim, tanto a continuidade de alguns
mecanismos modernos quanto a emergência de novas formas de vigilância
e controle, ressaltando os contrastes entre a vigilância disciplinar e a digital.
Esta última não é pensada segundo as metáforas sombrias do panoptismo e
do Big Brother, em que se destacam a coerção e a dominação, mas segundo
outras formas de governo da conduta humana, em que vigora uma ética de
capitalização da liberdade e autonomia individuais (Rose, 1999).
Monitorar, coletar, arquivar
Nos últimos 40 anos, aproximadamente, vimos crescer, vertiginosamen-
te, a capacidade de monitoramento e coleta de dados sobre indivíduos em
diversos setores: trabalho, habitação, consumo, saúde, comunicações, des-
locamentos, segurança, entretenimento, vida social, vida privada, etc. Essa
bulimia de dados individuais é notável também na proliferação de tecnolo-
gias que já incluem em seu funcionamento mecanismos de monitoramento
e coleta de dados individuais: cartões de crédito e de fidelidade, telefonia
móvel, etiquetas RFID, cartões de transporte, sistemas de geolocalização por
satélite, navegações e buscas online, participação em redes sociais, jogos ou
ambientes colaborativos na internet, etc. Os sistemas de informação e co-
municação da cibercultura se tornam tecnologias de vigilância potenciais.
Lessig (1999), interrogado sobre o que há de novo na vigilância da era com-
putacional, responde que é a facilidade de estocar e recuperar informações
que derivam do monitoramento cotidiano das ações dos indivíduos.
A novidade não deve ocultar o longo histórico de coleta de dados sobre
indivíduos e populações, elemento político importante de diversas tecnolo-
gias de governo. A história social dos números mostra que o termo “censor”
170
WEB 2.0
(do qual deriva o nosso “censo estatal”) data da antiguidade romana: o cen-
sor era tanto aquele que contava os homens para fins de taxação, obrigações
militares e status político quanto aquele que censurava e se encarregava do
controle dos hábitos (Rose, op. cit.). A partir dos séculos XVII e XVIII,
estreita-se a aliança das funções de vigilância e censura com as de cálculo
e conhecimento. O termo “estatística” surge na Alemanha no século XVII,
significando “ciência dos Estados” e consistindo na coleta e tabulação sis-
temática de dados sobre cidadãos e fatos (Hacking, 1990), sendo, poste-
riormente, decisiva na máquina burocrática dos Estados modernos. Somos
herdeiros dessa maquinaria, ainda presente entre nós; mas ela é atravessada
por novos processos e tecnologias que não apenas apontam a intensificação
de mecanismos passados, mas também a emergência de modelos diferen-
ciados de monitoramento e coleta dos dados.
Passemos a essas características diferenciais, iniciando pela pergun-
ta sobre quem ou que instâncias são hoje capacitadas e/ou autorizadas a
coletar dados individuais. A resposta poderia ser, no limite, qualquer um
que tenha interesse e recursos técnicos para tanto, sendo estes cada vez
mais acessíveis, automatizados e de baixo custo. Hoje é corriqueiro, por
exemplo, tornar um simples sítio eletrônico um sistema de monitoramento
dos seus visitantes e montar um razoável banco de dados sobre estes. Tanto
o setor público quanto o privado podem, hoje, respeitando regras mínimas
de proteção à “privacidade”, coletar, monitorar e estocar dados individuais.
Não são necessários um saber específico, um posto de autoridade, uma
autorização de centros de decisão. Até os anos 1970, aproximadamente, a
coleta e a estocagem de dados individuais pelo setor privado eram pontu-
ais e eventuais (Solove, 2004). A maior parte dos bancos e arquivos sobre
indivíduos e populações era de domínio estrito e secreto dos Estados, cons-
tituindo um modelo centralizado, hierarquizado e exercido por figuras de
autoridade científica ou administrativa. O cenário, hoje, é bastante distinto
e vemos aumentar exponencialmente os bancos de dados tanto públicos
quanto privados, bem como o cruzamento entre eles, constituindo uma
Personal Infomation Economy – ramo bastante lucrativo de trocas infor-
macionais (Lace, 2005). Além disso, essa massa de dados circula por uma
rede descentralizada e com finalidades as mais distintas – da publicidade ao
controle do crime, da promoção da saúde ao entretenimento.
171
MONITORAMENTO, CLASSIFICAÇÃO E CONTROLE NOS DISPOSITIVOS DE VIGILÂNCIA DIGITAL
Uma segunda característica diferencial consiste no tipo de dados cole-
tados, ou seja, no que hoje se define como dado relevante e significativo.
Podemos, grosseiramente, falar de dois conjuntos de dados: os relativa-
mente estáveis, com pouca ou nenhuma variação ao longo do tempo, e os
dados móveis ou circunstanciais. No primeiro, estão, por exemplo, dados
geodemográficos, biométricos, relativos a gênero, etc. No segundo, cons-
tam dados comportamentais (comunicação, consumo, deslocamento, lazer),
“transacionais” (uso de cartão de crédito e serviços, navegações em ambien-
tes digitais), psicológicos (autodeclarações sobre personalidade, gostos),
sociais (comunidades e amigos em ambientes digitais), entre outros.
É neste segundo conjunto que residem dados próprios à vigilância digi-
tal. Embora alguns não sejam novidade, muitos só se tornaram “coletáveis”
de forma sistemática e ampla a partir da incorporação das novas tecnolo-
gias informacionais ao cotidiano. Estas permitiram uma coleta a distância e
automatizada, capaz de capturar os dados em tempo real ou in the wild, sem
as tradicionais mediações de entrevistadores e questionários. Além dessa
facilitação, há um deslocamento do foco de interesse, que se volta menos
para os atributos estáveis, do que para os móveis e circunstanciais, cada
vez mais particularizados. Esse deslocamento reflete um modo próprio de
individualização em que se tornam significativos e estratégicos os traços
de superfície, provisórios e contingentes. Traços próprios às identidades
modulares contemporâneas, distintos dos traços profundos e relativamente
duráveis das identidades modernas.
Um último aspecto diferencial concerne à estocagem, cujo custo baixou
enormemente nos últimos 30 anos, ampliando as capacidades de arquivo de
toda sorte (Gandy, 2002). Detalhes de nossas vidas cotidianas e pessoais,
antes perdidos no fundo de nossas memórias falhas, tornam-se hoje dados
perenes e indefinidamente estocáveis. O termo lifelog surge para definir e
questionar esse arquivamento minucioso da existência mediante tecnolo-
gias de “computação pervasiva”125 (Allen, 2007). Os tradicionais arquivos
e próteses mnemônicas têm sempre limites de custo, espaço, duração e
recuperação que abriam vacúolos de esquecimento em nossas memórias.
125
Tradução literal do termo em inglês “pervasive computing”.
172
WEB 2.0
Doravante, a potencial perenidade do arquivo o torna indefinidamente su-
jeito à interpretação e à utilização futuras, o que tem efeitos nas formas de
controle e predição da vigilância digital, conforme veremos. Na etimologia
da palavra arquivo – arkhê – já estão os sentidos de começo e comando,
como nota Derrida (2001). Dois princípios em um: o lugar em que as coisas
começam e o ali onde os homens e os deuses comandam, onde se exerce
a autoridade e a ordem social. Mas o sentido do arquivo também reside na
classificação de seus conteúdos.
Classificar e conhecer
Qualquer conjunto de dados só ganha sentido se for analisado e classifi-
cado de modo a produzir conhecimento sobre a realidade ou os indivíduos
a que se referem. No campo da vigilância, a história está repleta de vínculos
entre o ato de inspecionar indivíduos e a produção de classificações e co-
nhecimentos que permitam governar as suas condutas. Os procedimentos
disciplinares criaram uma intensa acumulação de dados individuais que
expressavam médias, fixavam normas e efetuavam, num mesmo gesto, “a
liberação epistemológica das ciências do indivíduo” (Foucault, 1983, p.
169). A estatística e o cálculo das probabilidades, por sua vez, buscavam
apreender as leis do homem e fundar uma “física social” a partir das quais
se criam, num só tempo, o ideal do “homem médio” e a era das massas
(Ewald, 1996).
Os sistemas de classificação da vigilância digital inscrevem-se nessa
linhagem, mas geram uma taxonomia própria com outras formas de indi-
vidualização. Do mesmo modo, os grupos e populações não cabem con-
fortavelmente nos termos modernos da massa. Os bancos de dados e perfis
computacionais envolvem um sistema particular de classificação e conhe-
cimento de indivíduos e grupos.
Os bancos de dados, em sua maioria, ordenam os dados provenientes
de indivíduos em categorias infraindividuais (Bruno, 2006), podendo estas
ser ou não atreladas a identificadores pessoais (como nome, endereço e nú-
mero de CPF). Ressalto, retomando a questão da privacidade, que o caráter
anônimo ou não do banco de dados pouco interfere nos seus efeitos sociais,
taxonômicos e identitários. Vejamos.
173
MONITORAMENTO, CLASSIFICAÇÃO E CONTROLE NOS DISPOSITIVOS DE VIGILÂNCIA DIGITAL
As categorias infraindividuais podem ser criadas segundo um modelo top-
down, utilizando classes preestabelecidas – idade, gênero, profissão –, ou se-
gundo um modelo bottom-up, gerando classes a partir da análise dos dados,
como “frequentadores do site Y que clicam nos links de tipo X”; “mulheres
solteiras que usam pílula anticoncepcional e frequentam sex shops”. Essa
categorização é submetida a um tratamento de segunda ordem, cujos méto-
dos mais usuais são a mineração de dados (data minig) e a produção de per-
fis computacionais (profiling), os quais são complementares. A mineração
de dados é uma técnica estatística aplicada que consiste num mecanismo
automatizado de processamento de grandes volumes de dados cuja função
central é a extração de padrões que geram conhecimento. Não por acaso,
esse procedimento é chamado Knowledge-Discovery in Databases (Gandy,
op.cit). Tais padrões são constituídos a partir de mecanismos de geração de
regras, sendo mais comuns as de tipo associativo (similaridade, vizinhança,
afinidade) entre pelo menos dois elementos, que depois diferenciam tipos
de indivíduos ou grupos. Esses tipos correspondem a perfis computacionais
gerados pelo mecanismo designado profiling. A geração de perfis segue
uma lógica indutiva que visa “determinar indicadores de características e/
ou padrões de comportamento que são relacionados à ocorrência de certos
comportamentos” (Bennett, 1996, p.41).
Os padrões e regularidades daí extraídos permitem visualizar domínios
com certa homogeneidade interna e fronteiras externas – de interesses,
comportamentos, traços psicológicos – que, de outro modo, ficariam in-
definidos ou fora do nosso campo de atenção. Assumem assim um forma-
to mais dócil, calculável, legitimando e orientando intervenções diversas.
Perfis de criminosos, consumidores, profissionais, doentes físicos ou men-
tais, tipos psicológicos ou comportamentais, apresentam-se como padrões
que, ao mesmo tempo, ordenam e objetivam a multiplicidade humana, le-
gitimando formas de governá-la.
Mas que “ordem” humana e social está implicada nesse conhecimento
gerado pela mineração de dados e perfis computacionais? Não se repetiria
aí o tradicional meio de extrair normas e médias da diversidade social e hu-
mana, já que se trata, mais uma vez, de determinar padrões e regularidades?
Apostamos que não. A norma e a média são apenas um modo, moderno,
de produzir padrão e de conceber a natureza e as leis humana e social. Os
174
WEB 2.0
perfis são padrões que não representam nem a média nem a norma de um fator
numa população – como o tamanho médio dos franceses de 25 anos (Quételet)
ou o coeficiente médio de inteligência dos homens e mulheres (Binet). Não se
trata, pois, de extrair uma regularidade (média) no seio de uma população e
transformá-la num regulamento a ser seguido e avaliado (norma).
Diferentemente, os perfis encarnam múltiplas microrregularidades no
seio de inúmeras variáveis heterogêneas e, de modo algum, apresentam-se
como regulamentos. A divisão norma/desvio não se aplica aos perfis, pois
eles são padrões resultantes de combinatórias e regras associativas de tipo
não valorativo entre muitas variáveis, podendo ser aplicáveis a potencial-
mente todas as qualidades e comportamentos humanos. O perfil não é nem
uma medida nem um valor, e sim um padrão de ocorrência de um certo fa-
tor (comportamento, interesse, patologia) num dado conjunto de variáveis.
As médias e normas eram a referência comum das massas; os perfis são as
microrregularidades dos nichos, tribos, grupos.
Além disso, essas regularidades expressam tendências e potencialidades,
em vez de refletirem uma natureza ou uma lei. Ainda que os perfis sejam pa-
drões de similaridade interindividuais, eles não pretendem valer como leis do
homem médio ou normal, e sim como potencialidades dos mais variados tipos
de indivíduos, dos mais gerais aos mais específicos. A taxonomia e o conheci-
mento não revelam aí um conjunto de características intrínsecas aos indivíduos,
e sim padrões de conduta e escolha na presença de fatores que constituem uma
circunstância. Desse modo, a inadequação ao perfil não representa um desvio, e
sim uma contingência, uma particularidade a ser, não corrigida, mas incorpora-
da ao próprio cálculo de determinação do perfil.
Teorias que utilizam o profiling para explicar a ocorrência de comportamen-
tos criminosos, por exemplo, concebem o crime não mais como o resultado de
uma patologia individual ou uma disfunção social, e sim como um evento em
que se articulam padrões motivacionais e “situações criminogênicas” (Garland,
2001). As teorias do criminoso ou da criminalidade cedem lugar à produção de
perfis de ocorrência do evento criminal, o qual deve ser evitado por um controle
das circunstâncias e oportunidades.
Todas essas diferenças entre os padrões presentes nos perfis computacionais
e aqueles presentes nas noções modernas de média e norma ficarão mais claras
se analisarmos a produção de identidades e individualizações em jogo.
175
MONITORAMENTO, CLASSIFICAÇÃO E CONTROLE NOS DISPOSITIVOS DE VIGILÂNCIA DIGITAL
Individualização e identidade
Os bancos de dados e sua taxonomia não são apenas máquinas epistê-
micas, mas também máquinas identitárias. As identidades aí produzidas
encontram nos perfis sua forma-padrão, que implicam procedimentos es-
pecíficos de individualização.
Como se viu, o perfil é um conjunto de traços que não concerne a um
indivíduo particular, mas, sim, expressa relações entre indivíduos, sendo
mais interpessoal do que intrapessoal. O seu principal objetivo não é pro-
duzir um saber sobre um indivíduo identificável, e sim usar um conjunto de
informações pessoais para agir sobre similares. O perfil atua, ainda, como
categorização da conduta, visando à simulação de comportamentos futuros.
Tenho afirmado que os perfis são simulações de identidades (Bruno,
2006), tanto no sentido de antecipação quanto no de modelização. Viu-se
que os perfis são padrões estimativos que antecipam potencialidades – pre-
ferências potenciais de consumo, valor econômico potencial, tendências e
inclinações comportamentais, capacidades profissionais, doenças virtuais.
Um exemplo e uma visualização mais concretos da natureza dos perfis nos
são dados por uma série de tabelas montadas a partir dos bancos de dados da
rede social Club Nexus (Adamic et al., 2003). Listo alguns elementos, uma
breve amostra do modelo taxonômico em curso na cultura contemporânea,
que deve ser semelhante ao da plataforma publicitária do Facebook.
Numa das tabelas que associava a forma como as pessoas usavam o
seu tempo livre e os seus interesses acadêmicos, vemos padrões como:
aqueles que passam o tempo livre estudando tendem a se interessar por
física, filosofia ou matemática; se preferem ver TV, demonstram interesse
por relações internacionais; se passam a maior parte do tempo cumprindo
compromissos, tendem a gostar de psicologia. Na tabela que associa traços
de personalidade à escolha profissional, temos: aqueles que se declaram in-
teligentes optam por física ou informática; os bem-sucedidos preferem in-
formática; já aqueles que se julgam atraentes tendem a se interessar por re-
lações internacionais ou ciência política. Numa grade mais ampla de nexos
entre traços de personalidade e interesses diversos, encontramos: pessoas
que se julgam atraentes costumam ler livros de negócios, assistir a filmes
eróticos, ouvir música-disco e fazer atividade física; os que se declaram
176
WEB 2.0
pouco amáveis se interessam por livros de filosofia, escutam funk e veem
filmes eróticos ou independentes; os irresponsáveis gostam de filmes eró-
ticos, GLS e independentes, costumam andar de skate e ouvir funk, jungle,
reggae e trance; os socialmente adaptáveis gostam de livros de sociologia,
praticam waterpolo e esqui, ouvem house, rap e hip-hop; os que se julgam
bem-sucedidos preferem os livros de negócios, jogam tênis, fazem ativida-
des físicas para perder peso e gostam de fazer churrasco.
Vale notar que esses padrões não são baseados numa suposição de
causalidade – ler livros de sociologia não leva ninguém a ouvir house ou
hip-hop –, mas, sim, de correlação entre elementos. A determinação histó-
rica, tão marcante da individualidade moderna, dá lugar à contingência das
identidades contemporâneas. Noutros termos, o dossiê dá lugar ao perfil.
Os aparatos disciplinares de vigilância constituíam dossiês com detalhes
da trajetória de um indivíduo, suas falhas, evoluções, médias. Em nossas
redes de vigilância digital, as trajetórias individuais interessam menos em
sua unidade evolutiva do que em sua distribuição, fragmentação e combi-
natória. Isto é, interessam na medida em que podem gerar perfis, um agre-
gado de características interpessoais que projetem tendências e padrões
aplicáveis a comportamentos, personalidades e competências individuais.
No dossiê, o indivíduo está presente ab initio; no perfil, o indivíduo e sua
identidade surgem a posteriori.
As vigilâncias disciplinares criaram seus modelos de individualização
descendente, em que aqueles sobre quem o poder se exercia eram os mais
vigiados, examinados e registrados. Crianças, loucos, histéricas, perversos
e delinquentes preenchiam de detalhes a arquivística inglória dos dossiês
e eram ainda mais individualizados que os medianos e normais (Foucault,
1983, p.171). A vigilância digital desenha um outro eixo de individualiza-
ção, que não apaga o anterior, sobrepondo-se a ele. Podemos chamá-lo de
individualização transversal ou combinatória, em que são mais vigiados,
arquivados e classificados os indivíduos mais conectados às redes informa-
cionais; e, especialmente, os que nelas são mais visíveis, participativos ou
inseridos nos circuitos de consumo e civilidade. Estes serão mais classifi-
cados em bancos de dados e mais acessados por perfis de saúde, seguran-
ça, consumo, entretenimento, etc. Surgem também, claro, novas formas de
classificar criminosos, delinquentes, doentes físicos ou mentais a partir de
177
MONITORAMENTO, CLASSIFICAÇÃO E CONTROLE NOS DISPOSITIVOS DE VIGILÂNCIA DIGITAL
perfis, mas estes indicarão menos uma identidade a ser reformada do que
uma potencialidade a ser conjurada. Este ponto ficará mais claro adiante.
Mas os perfis são simulações também porque são modelizações da
identidade. Como tais, não são representações fiéis ancoradas num referen-
te, mas modelos que simulam uma realidade e encontram sua eficácia no
efeito de real que produzem. Podemos falar aqui em efeitos de identidade,
os quais não atendem a critérios de verdade e falsidade, mas, sim, de per-
formatividade. O perfil é uma simulação pontual de identidades que, ao se
anunciar, tem uma efetividade performativa e proativa, fazendo passar à
realidade o que era apenas uma potencialidade. Aí reside uma última ca-
racterística importante – a performatividade do perfil, que opera segundo
um formato próximo ao oracular (Bruno, op. cit). Anuncia-se aqui a forma
privilegiada de intervenção sobre as ações e escolhas dos indivíduos na
vigilância digital.
Predição, controle e performance
Monitorar, arquivar, classificar, conhecer, individualizar, todos esses
processos se conjugam a modos específicos de ação sobre os indivíduos,
dentre os quais destacam-se os processos preditivos, constituindo uma sé-
rie de “biografias futuras” (Bogard, 1996).
Que modalidade de futuro é aí produzida? Pode-se dizer que o perfil é
uma espécie de oráculo, na medida em que ele não implica uma acuidade
na previsão de um futuro certo e necessário, e sim a efetuação de uma
realidade antecipada. Tanto no perfil quanto no oráculo, trata-se menos de
previsão do que da capacidade performativa da antecipação – o futuro an-
tecipado torna-se efetivo ao ser enunciado.
Ao se montarem, por exemplo, perfis de crianças hiperativas ou de jo-
vens delinquentes em áreas urbanas (Garland, op. cit), justificam-se cam-
panhas de prevenção nos grupos de indivíduos que se “enquadram” nesse
perfil. Como se trata de uma virtualidade e não do diagnóstico de uma
condição atual, o perfil só tem um efeito de verdade quando anuncia essa
potencialidade, transformando tais crianças e jovens em doentes e delin-
quentes que eles não eram antes da projeção do perfil. E se tais indivíduos
e suas famílias acolhem esta projeção, efetiva-se mais fortemente o que
178
WEB 2.0
se antecipou: eles passarão a se comportar, a se cuidar e a orientar suas
escolhas “como se” fossem, de fato, doentes ou delinquentes por antecipa-
ção, ainda que seja, paradoxalmente, para evitar a doença e a transgressão
futuras. Se não acolhem, isso não significa que o perfil não tenha efeitos,
pois uma série de acessos ou benefícios ligados à saúde, à educação ou ao
trabalho podem ser dificultados ou negados a esses indivíduos.
O exemplo ajuda a compreender o tipo de intervenção que resulta dessas
predições, que pretendem ser estratégicas em diversos setores. De um lado,
essas simulações visam a redução de riscos nas políticas de investimentos, de
publicidade, de saúde, de contenção do crime, etc. De outro lado, elas visam
agir sobre o campo de ações e escolhas possíveis dos indivíduos, ofertando
a eles perfis que projetam cenários, produtos, riscos, interesses e tendências
que devem incitar ou inibir comportamentos. Torna-se secundário reformar a
alma, sendo a conduta e a ação os verdadeiros focos das tecnologias de con-
trole e governo implicadas na vigilância digital. As identidades projetadas
pelos perfis não visam tanto as consciências que sustentam a ação; elas dão
um passo à frente e visam diretamente a própria ação. A “recompensa” e a
“punição” que tais identidades trazem consigo são menos da ordem do ser
do que da ordem do acesso. Quanto maior a adequação ao perfil, maior é o
acesso a circuitos de consumo e civilidade e mais perfis são gerados.
Não é de surpreender que um tal regime de predição e intervenção se
constitua numa cultura em que o controle social se dá menos por coerção
e prescrição de valores do que por simulação e incitação à realização
e à obtenção de resultados. Segundo Rose (op. cit), uma das principais
características das tecnologias de controle atuais é a sua pulverização em
redes não hierarquizadas, em que a conduta dos cidadãos é continuamen-
te modulada por uma lógica imanente ao conjunto de práticas sociais,
“de acordo com princípios de otimização dos impulsos benignos e mi-
nimização dos malignos” (idem, op. cit., p.325). O controle é exercido
em regime de parceria pelos diversos agentes sociais, obedecendo a uma
ética de compartilhamento de responsabilidades e riscos, de autocontrole
e autogestão. Vale notar, ainda, que o caráter preditivo-performativo dos
perfis conjuga-se a uma cultura da performance e nela atua tanto como
tecnologia de capacitação das escolhas individuais, quanto como tecno-
logia de controle.
179
MONITORAMENTO, CLASSIFICAÇÃO E CONTROLE NOS DISPOSITIVOS DE VIGILÂNCIA DIGITAL
A valorização da performance em nossa cultura tem uma trajetória lon-
ga e complexa, que ultrapassa os limites deste artigo. Resumiremos ao má-
ximo essa trajetória, considerando o desenvolvimento, desde os anos 1960,
de uma dinâmica de emancipação – constituída tanto pelas reivindicações
identitárias no plano político-social (mulheres, homossexuais) quanto pela
incitação à iniciativa pessoal e à autonomia – que, a partir dos anos 1980,
estende o modelo de superação de si da competição esportiva e do em-
preendedorismo empresarial aos modos de vida individuais (Ehrenberg,
1999). Esse duplo movimento põe em crise os modelos disciplinares de
gestão de si, dando progressivamente lugar a um pluralismo normativo em
que o indivíduo é cada vez mais proprietário de si mesmo. Emancipado
das interdições que o impediam de escolher a própria vida, ele se vê atre-
lado ao imperativo oposto – o da autonomia, da iniciativa, da superação
e da escolha continuada. O empreendedorismo na vida privada e pública
torna-se regra e a performance torna-se um modelo de estilo e sucesso das
existências individuais.
Desde a década de 1990, com a difusão das mídias digitais e da internet,
a valorização da performance e da autonomia ganha novo fôlego com a
possibilidade de os indivíduos passarem a produzir e distribuir informação
e conteúdos diversos – música, literatura, vídeo, vida pessoal, etc. Há bem
pouco tempo, não mais que cinco anos, mais um impulso à iniciativa digital
vem sendo anunciado como um novo modelo de produção de conteúdos
em que participação e colaboração são centrais. Esse impulso é, em gran-
de parte, identificado com os ambientes da Web 2.0, cujas potencialidades
são múltiplas e certamente não se reduzem a uma mera capitalização das
performances individuais. As chamadas culturas livres e seu espírito cola-
borativo estão aí para mostrar que vias alternativas estão sendo traçadas, e
esse é apenas um entre muitos exemplos. Mas no que tange ao tema aqui
em questão, esse impulso participativo pode ir de par com as tecnologias
de vigilância e controle.
Rose (op. cit.) observa que tais tecnologias operam através da instrumen-
talização de uma forma particular de liberdade. O autor sugere que as formas
de poder e governo nas sociedades pós-industriais dependem cada vez mais
da mobilização das capacidades pessoais e subjetivas dos indivíduos, enten-
didos como “livres para escolher” (idem, op. cit.). Conforme Lianos,
180
WEB 2.0
O controle forma, assim, um dos componentes da liberdade pós-indus-
trial. Ele se exprime nas regras de produção e utilização de sistemas, pro-
cessos e objetos que são desejáveis como meios consagrados à construção
autônoma da biografia individual e da ação coletiva. (2001, p.18)
As taxonomias e identidades produzidas pelos bancos de dados e a
atuação dos perfis como tecnologias performativo-preditivas de controle
e instrumentalização das escolhas individuais merecem ser incluídas nas
reflexões sobre os efeitos da vigilância digital, atestando o quanto a viola-
ção à privacidade é apenas um dos aspectos que, embora relevante, é mais
imediato e superficial. Sem problematizar essa dimensão pública e coletiva
do dispositivo de vigilância contemporâneo, os jogos de saber, poder e con-
trole aí implicados restarão confinados aos embates jurídicos e monetários
de interesses privados.
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182
WEB 2.0
Quem procura, acha? O impacto dos buscadores
sobre o modelo distributivo da World Wide Web
Suely Fragoso*
Cuando se proclamó que la Biblioteca abarcaba
todos los libros, la primera impresión fue de extra-
vagante felicidad. Todos los hombres se sintieron
señores de un tesoro intacto y secreto. No había pro-
blema personal o mundial cuya elocuente solución
no existiera: en algún hexágono. El universo estaba
justificado, el universo bruscamente usurpó las di-
mensiones ilimitadas de la esperanza. (....)
A la desaforada esperanza, sucedió, como es natu-
ral, una depresión excesiva. La certidumbre de que
algún anaquel en algún hexágono encerraba libros
preciosos y de que esos libros preciosos eran inacce-
sibles, pareció casi intolerable.
Jorge Luis Borges, A Biblioteca de Babel
O século XX foi o século da comunicação de massa, durante o qual a
imprensa, o cinema, o rádio e a televisão floresceram conforme o modelo
irradiativo (um-muitos) de distribuição. Tecnologias de comunicação ori-
ginalmente vocacionadas para funcionamento epidêmico (muitos-muitos)
∗
Professora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e pesquisadora do CNPq.
183
QUEM PROCURA, ACHA?
chegaram a ser reencaminhadas para o modo irradiativo126. Ao final dos
anos 1990, entretanto, uma nova prática emergiria das instalações milita-
res e dos campi universitários: a comunicação mediada por computador
(CMC). À primeira vista, parecia não se tratar de muito mais que a transpo-
sição para um novo ambiente tecnológico de alguns modos preexistentes de
comunicação interpessoal (um-um), como o correio ou o telefone. Entre-
tanto, a configuração tecnológica (em rede) e o ambiente cultural (tanto o
espaço universitário quanto a proximidade entre a comunidade hacker e os
movimentos da contracultura) eram altamente propícios à comunicação epi-
dêmica (muitos-muitos), que, de fato, viria a florescer. Com a popularização
da internet, e em especial através da World Wide Web, as possibilidades de
comunicação muitos-muitos estenderam-se a um número sem precedentes de
pessoas. Em um contexto até então marcado pela hegemonia aparentemente
intransponível do modelo massivo de comunicação, à época, era praticamen-
te impossível não saudar o potencial ‘subversivo’ da CMC.
Embora os números absolutos obscureçam o fato de que apenas uma
reduzidíssima parcela da população mundial tem pleno acesso às redes di-
gitais de comunicação, é inegável que a CMC elevou, exponencialmente,
o número de indivíduos capazes de desempenhar o papel de emissor em
processos comunicacionais de grande escala, provocando um rearranjo no
cenário midiático. Sem deixar de louvar os méritos dessa nova modalidade
de comunicação tecnológica, é importante atentar também para os desdo-
bramentos negativos do modelo muitos-muitos.
Antes de mais nada, um grande número de emissores implica um ele-
vado número de mensagens. Em um texto que já se tornou um clássico do
tema, Lawrence e Giles (1999, p.2) estimaram em 800 milhões o número
de páginas indexáveis127 disponíveis na web em 1999. Um ano mais tar-
126
O exemplo clássico é o rádio, originalmente uma tecnologia bidirecional cuja
transformação em meio de comunicação de massa demandou significativos es-
forços políticos e expressivos investimentos financeiros.
127
A expressão “páginas indexáveis” designa o conteúdo da web normalmente
acessível às ferramentas de busca. As páginas não-indexáveis compõem a web
profunda (deep web), que agrega as páginas que não enviam (ou recebem) links,
o conteúdo dinâmico – gerado em resposta a consultas a bancos de dados – e o
material de acesso restrito.
184
WEB 2.0
de, Murray (2000, p.3) calculava que o número de páginas indexáveis já
teria ultrapassado os dois bilhões. Em janeiro de 2005, Gulli e Signorini
(2005, p.1) calcularam a existência de pelo menos 11,5 bilhões de páginas.
Não bastasse a grandeza desses números, é preciso lembrar que a web é,
essencialmente, dinâmica e auto-organizada. No mesmo ano de 2000, em
que o incremento diário no número total de páginas era estimado em cerca
de 7,3 milhões (Murray, 2000, p.3), Arasu et al. (2001, p.3) constataram
que a meia-vida das páginas com domínio “.com” não ultrapassava dez
dias128. Além disso, é preciso considerar a imensa variedade de linguagens
empregadas nas páginas (textos, sons, imagens estáticas e dinâmicas) e o
dinamismo de seu conteúdo.
O cenário assim constituído é de uma tal exuberância que traz para o
primeiro plano a diferença crucial entre a multiplicação das pessoas capa-
zes de “publicar” na World Wide Web e a visibilidade de cada uma delas. A
questão não se resume à qualidade ou à pertinência do material disponibi-
lizado, mesmo porque é fundamental respeitar as diferentes concepções de
pertinência. Na hipótese – altamente fantasiosa – de que todos os milhões
de terabytes da web interessassem a todos e a cada um, o problema do
excesso não se resolveria, pelo contrário. Na ausência de um controle por
gatekeeping, “na entrada”, como é de praxe nos meios de comunicação
analógicos, o ambiente muitos-muitos da web favorece a emergência de
mecanismos de filtragem e de seleção “na saída”. Nesse cenário, os siste-
mas de busca configuram uma solução óbvia e, aparentemente, inócua. En-
tretanto, não é exagero dizer que seus desdobramentos, sobretudo quando
se leva em conta a configuração que assumiram nos últimos anos, põem em
risco o próprio formato epidêmico da WWW. Para esclarecer devidamente
esta última colocação, que corresponde à proposição fundamental deste
texto, vale a pena revisitar algumas passagens da história dos sistemas de
busca na internet.
128
Ou seja, em dez dias, metade das páginas “.com” observadas não estavam
mais nos endereços consultados.
185
QUEM PROCURA, ACHA?
Uma breve (e incompleta) história (comentada)
dos buscadores
A necessidade de orientação em meio à profusão de material dispo-
nibilizado na internet é anterior à World Wide Web: o primeiro indexador,
denominado Archie, surgiu em 1990129. Reunia informações de arquivos dis-
poníveis em servidores ftp anônimos e mantinha-os atualizados checando os
dados em intervalos de até 30 dias. Os usuários do Archie procuravam por
sequências de caracteres nos nomes dos arquivos ou pastas disponíveis no
índice. Inicialmente destinado a uso departamental, Archie foi anunciado pu-
blicamente quando abrangia pouco mais de 200 servidores (Deustch, 1990).
A facilidade na localização dos arquivos disponíveis para ftp pelo Ar-
chie inspirou a criação de um indexador semelhante para Gopher, que foi
chamado Veronica130. Tratava-se de um banco de dados que reunia os me-
nus dos servidores Gopher, permitindo a realização de buscas por tópico
(com palavras-chave), em vez de por servidor (como era inerente ao siste-
ma). Pouco depois, apareceu Jughead131, que teve o mérito de introduzir a
possibilidade de realizar buscas booleanas132 (Salient Marketing, s.d.133).
Um outro sistema, em vários aspectos mais avançado e reunindo carac-
terísticas do próprio Gopher e dos buscadores que nele operavam, já estava
em operação desde o ano anterior. Era o WAIS (Wide Area Information
Server), desenvolvido por iniciativa conjunta de quatro empresas134. Com o
WAIS, era possível realizar buscas em bases de dados remotas, cujos resul-
129
Alan Emtage, Bill Heelan e Peter Deutsch, na McGill University Montreal,
Canadá, 1990.
130
Steve Foster e Fred Barrie, na University of Nevada, System Computing
Services Group, EUA, 1992.
131
Rhett Jones, na University of Utah, Computer Centre, EUA, 1993.
132
Buscas em que os operadores AND, OR e NOT são utilizados para formar
combinações lógicas com palavras ou expressões-chave, formulando condições
que os sistemas booleanos de busca procurarão satisfazer levando em conta
quais termos estão presentes ou ausentes em um documento ou conjunto de
documentos.
133
Incluímos a indicação “s.d” nas referências sem data explícita.
134
A saber: Thinking Machines Corporation, Apple Computer, KPGM Peat Mar-
wick e Dow Jones Co., em 1992.
186
WEB 2.0
tados eram organizados em ordem decrescente de frequência das palavras-
chave. Clientes WAIS foram criados para vários sistemas operacionais, in-
cluindo Windows, Macintosh e Unix, mas a propriedade privada “segurou”
a popularização do WAIS. De fato, poderia ser arriscado, à época, contra-
dizer o caráter público da internet. Diversas boas ideias e implementações
competentes sucumbiram devido à insistência em comercializá-las. Mesmo
assim, é de se duvidar que o CERN135 tivesse ideia da escala que assumi-
riam as consequências de sua decisão de abrir mão, em 1993, do direito
de propriedade dos códigos básicos do projeto de um sistema global de
hipertexto, que havia sido iniciado por Tim Berners-Lee, em 1989 (CERN,
1993), e que viria a tornar-se a World Wide Web como a conhecemos hoje.
Combinado com a decisão de tornar a WWW um sistema de domínio pú-
blico, o lançamento do primeiro browser para Windows, o X Windows Mo-
saic136, e a sua posterior adaptação para plataformas Macintosh ajudaram
a popularizar a web numa escala sem precedentes para todos os demais
sistemas de informação.
Poucos meses após o lançamento do Mosaic, a primeira aranha come-
çou a rastrear a web. Era o World Wide Web Wanderer137, o primeiro we-
brobot138. O Wanderer percorria a web mapeando cada página de um site e
prosseguindo para uma das páginas conectadas a ela, para, então, mapeá-la
e prosseguir para a próxima; e assim sucessivamente139. Além disso, arma-
zenava os endereços que encontrava num banco de dados. A ideia inicial
era mapear toda a web (Gray, 1995) e partia da premissa de que todas as
135
Cf. <http://www.cern.ch>
136
Marc Andreesen e Eric Bina, na University of Illinois at Urbana-Champaigne,
EUA, 1993.
137
Matthew Gray, no MIT, EUA, 1993.
138
Webrobots, também chamados crawlers, spiders, e, daqui para a frente,
referidos como rastreadores ou bots, são programas que percorrem a web pas-
sando de um documento para outro através dos hiperlinks.
139
Esse tipo de rastreamento é conhecido como depth-first (em profundidade)
e implica que o rastreador retorna à página inicial diversas vezes, o que coloca
grande demanda sobre os servidores, comprometendo seu desempenho. Uma
outra abordagem possível é a breadth-first (em abrangência), em que o rastre-
ador segue todos os links de uma página e, só depois, prossegue para os links
das páginas seguintes.
187
QUEM PROCURA, ACHA?
páginas estariam conectadas a pelo menos uma outra, de modo que seria
uma questão de tempo até que o Wanderer percorresse a web inteira140.
Apesar da controvérsia causada pelo impacto da operação do WWW-
Wanderer sobre os servidores da rede, antes do final de 1993, pelo menos
mais três outros bots rastejavam pela web: JumpStation, World Wide Web
Worm e RBSE. O Worm141 indexava os títulos e endereços das páginas, en-
quanto o JumpStation142 inovou ao arquivar também os cabeçalhos. Ambos
apresentavam os resultados na ordem em que os encontravam. O RBSE143
foi o primeiro a implementar um sistema de ranqueamento baseado na rele-
vância da expressão utilizada para a busca (Mauldin, 1997; Wall, 2006).
Ainda em 1993, surgiu o primeiro indexador projetado especificamente
para a web, o Archie-Like Indexing of the Web, ou Aliweb144. Fortemente ins-
pirado pelo Archie, o Aliweb não possuía um rastreador, mas compunha seu
banco de dados a partir das informações fornecidas diretamente pelos webmas-
ters. Isso permitia que o sistema arquivasse descrições das páginas, que eram
alimentadas pelos próprios criadores, mas, por outro lado, tornava a qualidade
e a atualidade do banco de dados dependentes da boa vontade de terceiros.
Também contando com um banco de dados construído sem o apoio de
rastreadores, surgiu, no ano seguinte, o primeiro diretório web pesquisável,
o Galaxy145. Como listava apenas URLs que tinham sido fornecidas dire-
tamente, o Galaxy pôde organizar os endereços em categorias e subcate-
gorias, permitindo que os usuários restringissem a busca a subáreas de sua
base de dados, o que acelerava e tornava mais preciso o processo.
140
A crença de que todos os endereços estão ao alcance de quem – ou do que
– percorresse os links perdurou até recentemente, quando foi matematicamen-
te demonstrado que a natureza direcional das hiperconexões da web implica,
necessariamente, sua fragmentação. No processo, certos endereços melhor co-
nectados ganham em acessibilidade, enquanto outros podem chegar a formar
pequenos núcleos inacessíveis (Barabási, 2002, p.167).
141
Oliver McBryan, na University of Colorado, EUA, 1993.
142
Jonathon Fletcher, na University of Stirling, Reino Unido, 1993.
143
David Eichmann, na University of Houston, Repository Based Software En-
gineering Program, EUA, 1993.
144
Martijn Koster, no NEXOR, 1993.
145
Na University of Texas, MCC Research Consortium, EUA, 1994.
188
WEB 2.0
Não demorou a surgir um bot capaz de associar o registro do conteúdo
completo das páginas à funcionalidade do rastreamento automático. Para
fazê-lo, o WebCrawler146 adotou a indexação vetorial147. A estratégia foi um
grande sucesso: após seis meses de uso, o WebCrawler já havia indexado
milhares de documentos e efetuado quase um quarto de milhão de buscas,
atribuídas a mais de 23 mil usuários diferentes (Pinkerton, 1994). Em no-
vembro do mesmo ano, o número de buscas realizadas chegou à marca de
um milhão (Pinkerton, s.d.). Logo o sistema da universidade de Washing-
ton deixou de ser capaz de dar suporte ao buscador, um problema que só
seria resolvido com a venda do WebCrawler.
Outros sistemas de busca aperfeiçoaram ainda mais a combinação de
funcionalidade e abrangência inaugurada pelo WebCrawler. Um dos mais
significativos foi o Lycos148, que, além de organizar os resultados das bus-
cas conforme sua relevância, permitia consultas por prefixo e dava bônus
por proximidade entre palavras (Mauldin, 1997). Um dos atrativos iniciais
do Lycos foi o tamanho de seu banco de dados:
em agosto de 1994, o Lycos havia identificado 394 mil documentos;
em janeiro de 1995, o catálogo já tinha 1 milhão e meio de documen-
tos; e em novembro de 1996, o Lycczos já havia indexado mais de
60 milhões de documentos – mais que qualquer outra ferramenta de
busca na web. (à época) (Mauldin, 1997, online)
O peso desse banco de dados era aliviado pela estratégia de não arquivar
o conteúdo completo das páginas, mas apenas um resumo, que era constru-
ído automaticamente considerando as 100 palavras-chave mais frequentes
em cada página, combinadas com as palavras do título, do cabeçalho e
as 20 primeiras linhas ou os primeiros 10% do documento. Os resumos
146
Brian Pinkerton, na University of Washington, EUA, 1994.
147
No modelo vetorial de indexação, documentos em linguagem natural são re-
presentados através de vetores (no caso, palavras-chave, que funcionam como
termos de indexação, aos quais são atribuídas características vetoriais). O sis-
tema avalia a relevância dos documentos conforme sua relação espacial com as
palavras-chave utilizadas para a busca.
148
Michael Mauldin, na Carnegie Mellon University, EUA, 1994.
189
QUEM PROCURA, ACHA?
podiam ser vistos junto com a lista dos resultados e ajudavam o usuário a
decidir qual das páginas encontradas visitar primeiro.
Outro diferencial importante do Lycos foi o funcionamento de seu rastrea-
dor, que não operava depth-first nem breadth-first, e sim conforme uma estraté-
gia que Mauldin (1997) denominou best-first. Para definir qual era a “melhor”
página e, portanto, a próxima a ser rastreada, a aranha do Lycos levava em con-
ta o número de links que cada página recebia de outros servidores (inlinks).
Em meados dos anos 1990, a capacidade da web para atrair volumes
significativos de tráfego começava a chamar a atenção de novos investido-
res. Os buscadores foram considerados particularmente atraentes pelo ca-
pital publicitário, inicialmente interessado em incluir banners e pequenos
anúncios nas páginas de início. Logo os sistemas de busca descobriram que
a intensificação do fluxo de público era o caminho para atrair mais anun-
ciantes. Com vistas a gerar seu próprio tráfego e incrementar o tempo de
permanência dos usuários em seu domínio, muitos assumiram o formato de
portal, passando a oferecer uma variedade de serviços. Um dos primeiros e
mais bem-sucedidos portais da web foi, sem dúvida, o Yahoo!
O Yahoo! começou, muito modestamente, como uma lista de sites fa-
voritos de dois primeiranistas de Doutorado da Universidade de Stanford,
Jerry Yang e David Filo, em 1994. A prática de publicar listas de favoritos
na web era bastante comum na época, e o grande diferencial do índice de
Yang e Filo era a disponibilização de breves descrições das páginas lis-
tadas. Com o aumento do número de indicações, a lista tornou-se pouco
amigável e os autores criaram uma estrutura de árvore (categorias e subca-
tegorias), conferindo ao Yahoo! o perfil de um diretório. Para responder ao
crescimento da popularidade da lista, adicionaram também uma ferramenta
de busca e passaram a aceitar inscrições de websites que desejassem figurar
em seu banco de dados. Com menos de um ano de funcionamento, a página
do Yahoo! celebrou seu milionésimo acesso, com visitantes vindos de qua-
se 100 mil endereços distintos (Yahoo! Media Relations, 2005).
Tendo estreado tarde, o AltaVista149 enfrentou uma competição feroz.
Era, no entanto, extremamente mais rápido que as outras ferramentas dis-
149
Digital Research Laboratories, Palo Alto, California, 1995.
190
WEB 2.0
poníveis à época e prometia aos webmasters atualizar as informações re-
cebidas em, no máximo, 24 horas. Foi também a primeira ferramenta que
permitiu buscas a partir de perguntas formuladas em linguagem natural,
buscas em newsgroups e buscas específicas por palavras associadas a ima-
gens, títulos e outros campos do código html. Além disso, foi a primeira
ferramenta a disponibilizar buscas por inlinks (Sonnenreich & Macinta,
1998), uma possibilidade que tendia a passar despercebida dos usuários
comuns, mas com importantes implicações para o marketing. Além disso,
o AltaVista acrescentou um campo de “dicas” embaixo da área de busca, o
que ajudou a aumentar a fidelidade à ferramenta.
A essa altura, novas formas de integrar o conteúdo publicitário aos re-
sultados das buscas, adaptando-se ao caráter push150 da web, começavam
a se popularizar. A “inclusão paga” (paid inclusion), em que o webmaster
paga a ferramenta de busca ou o diretório para garantir que seu site seja
incluído no banco de dados, já era comum quando surgiu uma versão mais
elaborada, a “classificação paga” (paid placement), que consiste em pagar
o buscador para garantir que o site figure entre os melhor classificados em
buscas por uma determinada palavra (ou várias). Em 1997, o GoTo (Idea-
lab!, 1997) inaugurou um novo modelo de vendas, introduzindo o modelo
de “seleção paga” (pay-per-click), em que os anunciantes só pagam ao bus-
cador quando o link para o seu site é selecionado. Rapidamente, os siste-
mas de busca se tornaram os principais veículos para a publicidade online
(FutureNow, Inc, 2003, p.15).
O próprio sucesso do negócio de buscas fomentou a concorrência, e
logo havia dezenas de buscadores diferentes na rede. Cada um deles ope-
rava com interface e algoritmos próprios e seus bancos de dados cobriam
diferentes porções da web. Por conseguinte, consultas a sistemas diferentes
produziam resultados diferentes e os usuários passaram a repetir as mesmas
consultas em várias ferramentas, buscando maior amplitude de resposta.
Para atender a essa nova demanda, surgiram as ferramentas de meta-busca,
que permitem buscar em vários sistemas de busca ao mesmo tempo. Os dois
150
Em que o conteúdo não é empurrado (pulled) para o usuário, e sim solici-
tado (pushed) por ele.
191
QUEM PROCURA, ACHA?
primeiros sistemas de meta-busca apareceram quase simultaneamente, em
1995. O Savvy Search151 realizava buscas em até 20 outros buscadores por
vez e, inclusive, permitia acesso a alguns diretórios temáticos. No entanto,
simplesmente ignorava as opções avançadas dos vários sistemas. Já o Meta-
Crawler152, que se tornaria mais popular, enfrentava as diferenças de sintaxe
entre as opções avançadas dos sistemas de busca, criando sua própria sintaxe
e convertendo o input do usuário no comando correspondente em cada siste-
ma acessado. No sentido inverso, os resultados encontrados eram converti-
dos para um formato único na página de resposta (Selberg & Etzioni, 1995).
Do ponto de vista dos sistemas de busca originais, os meta-buscadores
eram uma péssima ideia, pois desviavam o público de suas páginas e, por
conseguinte, afastavam os anunciantes. Junto aos usuários, entretanto, fi-
zeram grande sucesso – em especial o MetaCrawler, que logo ultrapassou
a capacidade dos servidores do campus da Universidade de Washington,
tendo sido, então, licenciado para a go2net, que mais tarde se tornaria In-
foSpace. Sob a gestão da InfoSpace, o MetaCrawler encontrou um modelo
compatível com a meta-busca, passando a disponibilizar os resultados das
várias ferramentas acompanhados dos anúncios originais de cada site. O
grande impulso comercial para os meta-buscadores adveio, entretanto, da
publicidade pay per click, que permitia a diferenciação entre o tráfego ori-
ginado pela ferramenta original e o oriundo do meta-buscador.
Em paralelo à manipulação dos resultados das buscas pela inserção de
resultados pagos, surgiu também o search spam153. Do ponto de vista dos
buscadores, era fundamental evitar o spam, pois a ocorrência de resultados
improcedentes ou malclassificados afastava o público e, dessa forma, os
anunciantes. Para isso, os sistemas de busca passaram a desenvolver estra-
tégias de indexação e classificação cada vez mais sofisticadas. Por outro
lado, o número de inclusões pagas nas listas de resultados era cada vez
maior. Logo a disseminação dessas práticas começaria a comprometer a
confiança dos usuários nos sistemas de busca de um modo geral.
151
Daniel Dreilinger, na Colorado State University, EUA, 1995.
152
Eric Selberg e Oren Etzioni, na University of Washington, EUA, 1995.
153
Search spam consiste em configurar o site de modo a “enganar” os sistemas
de busca para obter melhor classificação.
192
WEB 2.0
Àquela altura, a disputa pelo mercado parecia girar em torno do tama-
nho dos bancos de dados dos diferentes sistemas. Números portentosos
eram exibidos como argumento para a existência de grandes quantidades
de usuários. Devido aos altos custos envolvidos na compilação de bancos
de dados com tamanho competitivo, a sobrevivência das pequenas ferra-
mentas tornou-se praticamente impossível. Muitas foram compradas pelos
buscadores maiores, interessados tanto em aumentar ainda mais seus ban-
cos de dados quanto, muitas vezes, em particularidades dos rastreadores e
sistemas de classificação, que, como de praxe na indústria da busca, eram
mantidas em sigilo pelas pequenas empresas. A competição por maiores
fatias do mercado publicitário era pesadíssima, mas as possibilidades de
lucro também o eram. Os usuários, entretanto, haviam ficado em segundo
plano, reduzidos, sob a forma de fluxo de público, à matéria-prima para
negociação com os anunciantes.
No mundo acadêmico, estava em gestação um sistema de classificação
que recolocava no centro da cena uma das características mais interessantes
do Lycos: a “heurística de popularidade” (Mauldin, 1997). A estratégia foi
aperfeiçoada no BackRub, que classificava os resultados de acordo com o
número de back links que cada site recebia. O projeto cresceu rapidamente
e foi renomeado Google154. A princípio, Page e Brin não pareciam estar
interessados em criar uma empresa em torno de seu novo buscador; tanto
que tentaram vendê-lo, ainda em 1998, sem sucesso. Um ano mais tarde, o
Google continuava em versão beta, mas a reputação de ser um novo sistema
que fornecia resultados bastante mais confiáveis que as outras ferramentas
e que não apenas não incluía resultados pagos entre os resultados orgâni-
cos, mas também utilizava um algoritmo de classificação inovador – cuja
forma de atuação era de conhecimento público155 – já começava a torná-lo
um sucesso. Outros pontos fortes do Google eram a velocidade das buscas e a
simplicidade da interface (começando pela ausência de banners e outro mate-
rial publicitário, o que levava a página inicial a carregar muito mais rápido que
154
Larry Page e Sergey Brin, na Stanford University, EUA, 1998.
155
O algoritmo PageRank foi divulgado no artigo The anatomy of a large-scale hy-
pertextual web search engine, apresentado na Seventh International Conference on
World Wide Web, Brisbane, Australia, 1998. Cf. Brin e Page, 1998.
193
QUEM PROCURA, ACHA?
a dos outros sites de busca). Logo o Google pôde enfrentar a concorrência tam-
bém na batalha pelo maior banco de dados e passou a anunciar a quantidade de
páginas indexadas imediatamente embaixo do campo de buscas.
Ao final de 2000, o Google começou a exibir alguns resultados pagos, mas,
ao contrário da maioria das outras ferramentas, não os mesclou com os resul-
tados orgânicos. Àquela altura, o Google já havia se estabelecido como o me-
lhor sistema de buscas na mente do público, que aceitou bem a diferenciação
gráfica entre os resultados orgânicos e os pagos. Os demais buscadores foram
obrigados a encarar a superioridade da relevância dos resultados fornecidos
pelo Google e a lealdade que aquela qualidade gerara entre os usuários: mui-
tos outros sistemas de busca, inclusive alguns grandes, como o Yahoo!, fariam
acordos para incluir resultados vindos do Google em suas próprias páginas. Ao
final de 2003, chegou-se a estimar que dois terços de todas as buscas realizadas
na web retornavam resultados oriundos do Google (Thies, 2005).
Em setembro de 1999, o Microsoft MSN Search começou a aplicar seu
próprio método de classificação aos dados obtidos junto a diferentes bancos
de dados (Sullivan, 1999), dando início ao processo de desvinculação dos
terceiros que até então impulsionavam suas buscas (LookSmart, Inktomi/
Yahoo). Em 2003, a Microsoft anunciou a intenção de construir seu próprio
rastreador (Sullivan, 2003), que só seria oficialmente anunciado dois anos
mais tarde (Sullivan, 2005). Pouco mais de um ano depois, em outubro de
2006, a Microsoft lançou o Windows Live Search, uma nova plataforma de
busca com interface mais customizável e que permite, inclusive, algum
controle sobre o ranqueamento dos resultados (restrito à classificação por
mais recente, mais popular e mais exato) (Murray, 2006).
Em paralelo à vinda da análise de hiperlinks para o centro do palco e
à entrada da Microsoft no negócio de buscas, os primeiros anos da década
de 2000 vêm sendo marcados também pela redescoberta do potencial da
criação colaborativa de listas de favoritos156. A prática, que está na origem
de buscadores importantes, como o Yahoo!, ressurgiu aperfeiçoada pela
156
Neste texto, as palavras “social” e “colaborativa” são utilizadas indistintamen-
te para denominar as práticas coletivas de criação de listas de favoritos (social ou
collaborative bookmarking) e marcações (social ou collaborative tagging).
194
WEB 2.0
marcação colaborativa, que consiste na associação de palavras-chave ao
site apontado como favorito. Ferramentas baseadas em marcação social
procedem buscas em bancos de dados alimentados pelos próprios usuários,
tomando como base as marcações que os membros da comunidade esco-
lheram associar aos elementos indexados. Um dos sites de social tagging
mais populares é o Del.icio.us157, mas existem inúmeros outros.
Os sistemas colaborativos são típicos da chamada Web 2.0 e apostam no
poder subversivo da “cauda longa”, uma característica há muito conhecida
dos estatísticos e recentemente popularizada158. A ideia da cauda longa se
aplica perfeitamente à web, cuja estrutura de linkagem obedece a um padrão
em que poucos sites são muito conectados, enquanto a maioria dos sites re-
cebe poucos links159. Na contramão dos algoritmos, que apostam na maior
popularidade dos sites que concentram maior número de inlinks, a hipótese
da cauda longa põe em foco justamente o enorme poder dos pequenos sites,
cuja audiência pode, cumulativamente, superar a de um grande portal.
A força da grana
(...) 1998 - Lycos comprou o HotBot; 2000 - Ter-
ra comprou o Lycos 2001 - AskJeeves comprou a
Teoma; 2002 - Yahoo! comprou a Overture; 2003
- Yahoo! comprou o AltaVista; 2003 - Yahoo! com-
prou o Alltheweb; 2003 - Google comprou o Blog-
ger; 2004 - Google comprou o Picasa; 2005 - Yahoo!
comprou o del.icio.us; 2005 - AskJeeves comprou o
Bloglines; 2006 - Google comprou o YouTube (...)
Infelizmente, no extremo oposto da cauda longa, bocas vorazes avan-
çam sobre as esperanças de pluralização do poder na indústria das buscas.
É por essa razão que, ao abordar a internet pelo ponto de vista da economia
157
Cf. <http://del.icio.us>
158
A popularização é atribuída a um artigo de Chris Anderson, publicado na revista
Wired (The long tail), e, mais recentemente, ao livro do mesmo autor, The long tail:
why the future of business is selling less of more. Cf. Anderson, 2004.
159
Representados em um gráfico, os muitos sites pouco conectados formam a
referida “longa cauda”.
195
QUEM PROCURA, ACHA?
política, van Couvering enxerga na rede a mesma estrutura que caracteriza
o modelo irradiativo dos meios de comunicação de massa:
Pode-se argumentar que a internet não é um meio de massa no sentido
clássico, que os milhares ou mesmo milhões de sites visíveis na web não
são resultado de um processo industrial de produção e nem representam
um substrato comum da vida cotidiana. (...) Eu sugiro que, ao aceitar o
argumento de que algum conteúdo é produzido em pequena escala [e
escolher concentrar sua atenção nesse conteúdo], os acadêmicos estão
negligenciando o estudo de um importante novo meio de comunicação
de massa. (van Couvering, 2004)
De fato, o alcance global das ferramentas de busca e a sua concentração
nas mãos de um reduzidíssimo número de empreendedores, majoritaria-
mente estadunidenses, ajudam a configurar um cenário extremamente seme-
lhante ao dos grandes impérios midiáticos tradicionais160. O movimento de
concentração dessas ferramentas nas mãos de alguns poucos grupos acelerou
após o estouro da bolha da internet, em 2000, e pode ser observado nas repre-
sentações gráficas disponibilizadas por Bruce Clay, Inc. (Figura 1).
160
Há que se destacar, entretanto, que não se trata dos mesmos grandes gru-
pos empresariais da mídia analógica.
196
WEB 2.0
Figura 1 - Nas representações gráficas disponibilizadas por Bruce Clay, Inc.,
é possível visualizar a redução do número de grupos empreendedores envol-
vidos com o negócio das buscas na web, entre os anos 2000 e 2006. ADAP-
TADO DE BRUCE CLAY, INC., 2006.
A concentração aparece de forma ainda mais intensa quando se passa do
número geral de players para as relações existentes entre os 11 principais
buscadores identificados em janeiro de 2007: os resultados de todos provêm
de apenas quatro fontes: Google, Ask.com, MSN e Yahoo! (Figura 2).
197
QUEM PROCURA, ACHA?
Figura 2 – Relações entre os buscadores: o Google fornece resultados pri-
mários para Netscape e AOL Search, e fornece resultados pagos para Netsca-
pe, AOL Search, iWon, Lycos, Ask.com e HotBot. Ask.com fornece resultados
primários para Lycos, HotBot e iWon, e recebe dados secundários do Google.
Yahoo! alimenta AltaVista e Alltheweb com resultados primários e com re-
sultados pagos. MSN Search fornece resultados secundários para HotBot.
ADAPTADO DE BRUCE CLAY, INC., 2007.
Evidentemente, há uma variedade de pequenos empreendimentos de
busca que não estão representados nos gráficos acima e não são levados
em conta nas análises mercadológicas de van Couvering. São ferramentas
experimentais ou temáticas, em sua maioria operando com bancos de dados
pequenos e, muitas vezes, incubadas em universidades. Não seria inédito se
algum deles viesse a tomar a frente da indústria das buscas no futuro – isso
já aconteceu em ocasiões anteriores, por exemplo, com o AltaVista e com o
198
WEB 2.0
Google. No entanto, a crescente consolidação do negócio das buscas torna
esse tipo de ocorrência cada vez mais difícil. Como o capital da indústria
das buscas provém majoritariamente da publicidade, a sobrevivência no
mercado atual depende da capacidade de conquistar grandes afluxos de pú-
blico. Os usuários, por sua vez, tendem a se concentrar nas ferramentas
mais conhecidas, conforme pode ser visto na Figura 3.
Figura 3: Porcentagens do total de buscas realizadas por usuários estaduni-
denses em diferentes buscadores, em novembro de 2006. As buscas restritas
ao conteúdo do site em que o usuário se encontra (buscas internas) não
foram computadas. Google inclui todos os sites da marca Google (Google.
com, Google.com.br, Google Images, etc.). Yahoo! inclui todos os sites da
marca Yahoo! (Yahoo.com, Yahoo.com.br ou Yahoo.local), mas não inclui
dados de sites que pertencem ao Yahoo!, como Altavista ou Allteweb. MSN
mostra dados de todos os sites da marca MSN, como o MSN Search, mas não
do Windows LiveSearch (que corresponderia a cerca de 0,02% do total). AOL
inclui todos os sites da marca AOL. Ask inclui buscas no Ask.com, mas não
nos demais sites do Ask/IAC (MyWay.com, iWon e My Search). A categoria
“outros” inclui todas as buscas realizadas em sites não mencionados acima e
não nomeados no gráfico. Nenhum site não nomeado no gráfico possui mais
que 2,5% do público. REPRODUZIDO DE SULLIVAN, 2006.
Incapazes de competir com as grandes no que diz respeito ao tamanho
de seus bancos de dados, as ferramentas pequenas tendem a se especiali-
zar, concentrando-se em temas específicos ou na web dinâmica. Conforme
uma dessas pequenas ferramentas se destaca, atrai a atenção das maiores,
199
QUEM PROCURA, ACHA?
tornando-se uma aquisição em potencial161. Avanços nesse sentido já estão
bastante consolidados nas ferramentas locais162. Sites colaborativos tam-
bém já começaram a ser adquiridos pelas grandes empresas de busca163.
Os tentáculos dos maiores players não se restringem às outras ferra-
mentas de busca. Inclusive o Google, originalmente uma alternativa ao mo-
delo de portal, avança na direção da diversificação de atividades. A pletora
hoje oferecida pelo Google é tão variada que sua grandeza chega a passar
despercebida pela maioria dos usuários. Para além das buscas especiali-
zadas (GoogleFinance, Froogle), inclui serviços como Google Checkout,
Google Calendar e Google Talk, Gmail, além de aplicativos como Google
web Accelerator, Google Earth, Picasa e Google Desktop. A essa altura,
o acúmulo das buscas em torno do Google, seus parceiros e subsidiários
aponta para um perfil monopolista que tem conferido à empresa a reputa-
ção de “Microsoft da internet” (Mohney, 2003; Maney, 2005).
Num cenário altamente desregulamentado, o Google e seus concor-
rentes mais poderosos começam, inclusive, a ensaiar movimentos de con-
vergência. Ao final de 2006, Google, Yahoo! e Microsoft anunciaram uma
primeira ação conjunta, com a adoção do Google SiteMaps Protocol como
padrão comum às três empresas. Com essa unificação, os webmasters dei-
xam de ter que informar separadamente os bancos de dados do Google,
Yahoo! e MSN sobre suas páginas, passando a fazê-lo de forma unificada
(Mills, 2006). Na prática, isso integra uma parcela dos bancos de dados das
três empresas.
161
Como aconteceu, por exemplo, com os portais Civil Engineer (Cf. <http://
www.icivilengineer.com>) e Insectclopedia (Cf. <http://www.insectclopedia.
com>), ambos atualmente vinculados ao Google.
162
Por exemplo, os portais franceses Trouvez.com (Cf. <http://www.trouvez.
com>), Mozbot (Cf. <http://www.mozbot.fr>) e Swissguide (Cf. <http://www.
swissguide.ch>) trabalham em parceria com o Google; o Cadê (Cf. <http://
www.cade.com.br>) pertence ao Yahoo!; e o Terra (Cf. <http://terra.com.br>)
opera em parceria com Google e Ask.com. O UOL (Cf. <http://www.uol.com.
br>) trabalha com o Google desde 2001.
163
Por exemplo, o Blogger pelo Google, em 2003; o Del.icio.us e o Flickr pelo
Yahoo!, ambos em 2005.
200
WEB 2.0
À mercê dos buscadores
Ano após ano, Google, Yahoo! e MSN figuram entre os dez sites mais
visitados em todas as nações pesquisadas pela Nielsen/Netratings164. Mais
de 80% das buscas se concentram sobre essas mesmas empresas. Os usuá-
rios, por sua vez, utilizam essas ferramentas, inclusive, para navegar até os
sites mais conhecidos:
Existem dois tipos de usuários que digitam a URL no sistema de
busca, ao invés de no campo de endereços do browser: aqueles sufi-
cientemente inexperientes para não compreender a diferença entre os
dois e aqueles que são tão experientes que estão habituados a usar os
buscadores como um portal para a internet. (...) Não importa se este
comportamento é motivado por ignorância ou destreza, o resultado
final é o mesmo: o buscador é o ponto focal da experiência online para
todos os tipos de usuários da internet. (Ken Cassar in Nielsen/Netra-
tings, 2006, online)
Outros dois modos de encontrar os sites – digitando a URL diretamente
na barra de endereços e atravessando os links de um site para outro – são
praticados em escala bem mais modesta. Para a maioria dos usuários, tudo
se passa como se a web se restringisse ao conteúdo dos bancos de dados dos
grandes buscadores. Embora estes tenham dimensões expressivas, cobrem
apenas uma parcela da WWW. Mesmo desconsiderando o conteúdo priva-
do, estimado entre quinhentas (Cohen, 2006) a duas mil (Bergman, 2001)
vezes maior que a web indexável, Gulli e Signorini (2005, p.2) calcularam
que, em 2005, os bancos de dados dos principais buscadores não cobriam
mais que 76,2% da web – índice atingido pelo Google (o alcance do Yahoo!
seria 69,3%; do MSN, 61,9%; e do Ask, 57,6%). As taxas de sobreposição
entre os bancos de dados dos quatro sistemas mais populares é também
significativa (Figura 4):
164
Cf. <htpp:/www.nielsen-netratings.com>.
201
QUEM PROCURA, ACHA?
Figura 4: Representação gráfica das porcentagens da web indexável nos
bancos de dados das maiores empresas de busca, com as respectivas inter-
secções. REPRODUZIDO DE GULLI & SIGNORINI, 2005, p.2.
Mesmo indexados, muitos sites não chegam jamais a constar entre os
resultados das buscas. Uma das razões para isso é a restrição do intervalo
que as ferramentas efetivamente dedicam às consultas: para evitar que o
usuário desista da busca e vá realizá-la em outro sistema, após um certo
tempo de acesso, a pesquisa é interrompida, independente da cobertura da
consulta (o Google, inclusive, indica o tempo dedicado à busca junto ao
número de resultados encontrados). Essa restrição de tempo perde impor-
tância quando se verifica que, apesar de anunciar quantidades enormes de
resultados para os usuários, os grandes buscadores, de fato, disponibilizam,
no máximo, os mil primeiros. Além disso, apesar dos algoritmos de des-
clusterização, mais de uma página de um mesmo site, por vezes, figura
entre os resultados apresentados (Fragoso, 2006).
A maioria dos usuários não chega a perceber o limite de páginas efe-
tivamente exibidas pelos buscadores, pois concentra sua atenção nos pri-
meiros classificados. Verificações empíricas indicam que não mais de 10%
dos usuários prosseguem para além da terceira página de resultados, sendo
que 62% tendem a selecionar um resultado que figura na primeira página
(iProspect, 2006). O efeito é uma acentuadíssima canalização de tráfego
em alguns poucos endereços, convergindo para os que se classificam me-
lhor junto às principais ferramentas de busca.
202
WEB 2.0
Finalmente, é preciso dizer que os resultados podem ser bastante in-
consistentes: buscas com os mesmos parâmetros realizadas em ocasiões
diferentes, muitas vezes, apresentam resultados diferenciados, sobretudo
no Google (Fragoso, 2006). Os usuários, no entanto,
(s)entem-se no controle das buscas; quase todos expressam confiança
em suas habilidades para utilizar os buscadores. Estão felizes com
os resultados que encontram; mais uma vez, quase todos dizem ser
bem sucedidos e encontrar o que estavam procurando. Além disso,
os usuários confiam muito nos sistemas de busca: a grande maioria
declarou que os buscadores são fontes de informação justas e neutras.
(Fallows, 2005, p.2)
Evidentemente, os sistemas de busca não podem deixar de proceder
seleções e estabelecer hierarquias, afinal, esta é sua primeira finalidade. É
verdade que sua operação não representa um reaprisionamento do polo da
emissão e, portanto, não compromete a liberdade de expressão na WWW.
Entretanto, é preciso estar alerta para o fato de que os buscadores funcio-
nam como verdadeiros gatekeepers digitais – com o agravante de que ope-
ram conforme critérios cuidadosamente mantidos em sigilo e com objetivos
estritamente comerciais. É amplamente sabido que as ferramentas de busca
tendem a indexar mais sites dos EUA que dos demais países (Thellwall &
Vaughan, 2004), misturam resultados pagos e orgânicos, seus algoritmos
podem ser manipulados interna ou externamente, etc. Apesar disso, os usu-
ários confiam candidamente nos buscadores, garantindo a condição final
para que a web se organize em um modelo de distribuição verticalizado,
cujo funcionamento tende a ser ainda mais centralizado e tendencioso que
o dos meios massivos de comunicação.
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207
WEB 2.0
PARTE 4 – PARTICIPAÇÃO E VIOLÊNCIA TRANSPOLÍTICA
Visibilidade mediática e violência transpolítica
na cibercultura: condição atual da repercussão
social-histórica do fenômeno glocal na civilização
mediática avançada
Eugênio Trivinho*
Nota introdutória
A trajetória de reflexão a que pertence este texto permitiu levar a pú-
blico, em 2007, uma contribuição teórica para a dissecação do fenômeno
da existência em tempo real (Trivinho, 2007b). Tratava-se, naquela opor-
tunidade, de fazer a caracterização e crítica da significação social-histórica
desse modo de existência em rede na civilização mediática atual, supe-
rando-se, no quanto possível, a lacuna devida à pouca atenção tensional
concedida a respeito pela teoria social e pela teoria da comunicação.
O aprofundamento da reflexão, com efeito, somou dados empíricos e
conceituais em favor da melhor contextualização do fenômeno: a existên-
cia em tempo real se enquadra em processo sociotecnológico e cultural de
maior magnitude – a visibilidade mediática. Cumpre-se, pois, no presen-
*
Professor e vice-coordenador do Programa de Estudos Pós-graduados em Comu-
nicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e
coordenador do Cencib – Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Comunicação e
Cibercultura (PUC-SP). Texto apresentado ao Grupo de Trabalho “Comunicação e
Cibercultura”, no XVII Encontro Nacional da Compós, na Unip, São Paulo, SP, em
junho de 2008. O artigo resulta do projeto de pesquisa em desenvolvimento no
PEPGCOS-PUC/SP, com apoio do CNPq.
209
VISIBILIDADE MEDIÁTICA E VIOLÊNCIA TRANSPOLÍTICA NA CIBERCULTURA
te estudo, o procedimento teórico de caracterização desse processo – sua
natureza, suas estruturas de base, seu modus operandi social-histórico, sua
tipificação e diversidade epocais, sua hibridação tecnológica imanente, suas
consequências culturais, enfim, seu estado da arte e suas tendências, com
a especificação do aludido enquadramento –, no contexto da cibercultura,
entendida como categoria de época, vale dizer, como estirão social-histórico
avançado da civilização glocal (Trivinho, 2001, p.209-227; 2007a; 2007b).
Como ninguém desconhece, a expressão “visibilidade mediática”, embo-
ra inserida na agenda de reflexão de vários autores brasileiros e estrangeiros
– ela que já se encontra incorporada à própria agenda jornalística diária, figu-
rando em artigos opinativos e editorais de periódicos impressos e online165 –,
carece, ainda, dos rigores do pensamento teórico sistemático: ainda não foi
objeto de dissecação conceitual adequada, exclusiva e intensiva, em conju-
gação ao tratamento de seus aspectos fundamentais, mormente no que toca
à sua lógica e às suas reverberações socioculturais. Certamente, a expressão
viceja em estudos sobre estratégia política e eleitoral, atuação de movimen-
tos sociais, governos e corporações, marketing de carreira de profissionais da
arte e do esporte e demais figuras do show business, e assim por diante. Não
obstante, vigora, nesse âmbito, majoritariamente, como “conceito-espelho”
– quando não apenas en passent – para a abordagem prioritária de outro as-
pecto social ou cientificamente relevante do processo civilizatório mediáti-
co, sobretudo em sua injunção massificada. Carecendo, per se, de densidade
conceitual própria, figura aí na modalidade de dispositivo operatório comple-
mentar. Como tal, permanece, portanto, aberto a iniciativas de esclarecimen-
to público voltadas para a cobertura da mencionada lacuna166.
A argumentação esculpe três categorias nucleares: glocal/glocalização
e violência transpolítica, além de visibilidade mediática, tais como se con-
figuram vetores do processo civilizatório atual. Trata-se de conceitos recentes,
165
O resultado de simples pesquisa na internet provê disso alentada demonstração.
166
Não constitui, de toda forma, propósito deste trabalho fazer recensão bi-
bliográfica a respeito. Realiza-se, aqui, precipuamente e em linhas gerais, a
interpretação extensiva do fenômeno, correspondente a estrato expressivo dos
resultados intelectivos atingidos até o momento, em estrita sintonia com o
mapa teórico e epistemológico consolidado na investigação em curso.
210
WEB 2.0
senão bastante novos em ciências humanas e sociais, com os quais venho tra-
balhando a bom par de anos, a título de contribuição sistemática à renovação
epistemológica no âmbito da teoria social e da teoria da comunicação. Os três
conceitos são relacionados à violência da técnica como modo de arranjamento
do social contemporâneo (Trivinho, 2007a, p.39-40), violência heterodoxa e
silenciosa que, não raro, deixa, em seu rastro, de se pôr socialmente como vio-
lência e, por isso, é pouco percebida.
Fique assente, desde já, o fato de, no que tange à temática da visibili-
dade mediática, interessar, fundamentalmente, a própria existência do fe-
nômeno como problema de reflexão. Em outras palavras, interessa menos
a “armadura” ou “casca” em rede do fenômeno; vale, acima de tudo, o que
lhe é a priori, o que lhe é, por constituição, intrinsecamente prévio, o que
lhe configura as condições sine qua non de base e, nesse caminho, a sua
significação social-histórica, para além de todo olvido teórico nas áreas de
Comunicação e afins – ambas as vias firmadas à luz da categoria da críti-
ca como princípio apriorístico de constituição epistemológica do conheci-
mento e questionamento incondescendente do real.
Visibilidade mediática
Glocal e visibilidade mediática
Antes de conceder tratamento específico à natureza da visibilidade
mediática, convém evocar o aspecto principal das estruturas tecnocul-
turais nas quais ela se assenta. A visibilidade mediática radica, essen-
cialmente, na fenomenologia do glocal como ambiente de aculturação
social-histórica da civilização mediática. A dinâmica dessa visibilidade,
de par com a da existência em tempo real, conflui, no que lhe é fundamen-
tal e predominante, para esse contexto híbrido de existência e experiência
cultural, bem como para o seu processo derivativo e estendido, a gloca-
lização planetária do território geográfico e do simbólico,167 sob a tutela
167
Na perspectiva do pós-estruturalismo e do pós-modernismo, com livre lastro
na teoria de Lacan e nas concepções do imaginário social, então aproximadas da
211
VISIBILIDADE MEDIÁTICA E VIOLÊNCIA TRANSPOLÍTICA NA CIBERCULTURA
do valor de troca na esfera da cultura e da sociabilidade.
A categoria do glocal foi dissecada em etapa anterior ao presente ensaio
(Trivinho, 2007a, p.239-320). Recuperam-se, a seguir, sucintamente, os
traços necessários à autonomia e à coerência desta argumentação.
O glocal é um resultado organizado e imprevisto do processo histórico
de dromocratização técnica e tecnológica (Trivinho, 2007a, p.45-87) que
culminou na formação infra-estrutural e simbólica aleatória da civilização
mediática. Precisamente, o glocal resulta da fase mais recente da tendência
tecnológica de aceleração, fragmentação, saturação e hibridação observada
na dimensão simbólica da cultura168. Ao mesmo tempo, o glocal reescalona,
em retorno, todos os domínios constitutivos dessa civilização.
Do ponto de vista epistemológico, glocal – nem global, nem local, antes
alternativa de terceira grandeza, doravante univocamente vigente – equiva-
le à representação conceitual da lógica de mixagem tecnocultural típica do
contexto de acesso e recepção a ou de retransmissão de signos ou produ-
tos mediáticos. Nessa perspectiva, inexiste separação, qualquer que seja o
grau, entre global e local ou globalização/globalismo e localização/localis-
mo. A simbiose semântica derivada da justaposição (auto-obliterante) das
duas metades significantes não se reduz à mera somatória. Ambas as vias
restam amalgamadas e dissolutas em idêntico processo; são um e mesmo
fluxo de realidade.
Em sua composição empírica stricto sensu, o glocal compreende a exis-
tência de cinco elementos basilares: [1] tecnologia comunicacional (não
importa a natureza ou finalidade em jogo), [2] tempo real (isto é, o tempo
preocupação semiótica, o conceito de simbólico equivale à dimensão da cultura ar-
ticulada pelo complexo tecido de significantes (verbais, imagéticos e/ou sonoros) e
significados em espiral. Num processo civilizatório marcado pela aceleração e satu-
ração do ciclo da produção e do consumo de signos, o estado da arte do simbólico
incorpora o predomínio absoluto do significante, em detrimento do significado.
Veja-se, a respeito, Baudrillard (1976).
168
O argumento sedimenta, em sua concisão terminológica, propostas teóri-
cas que, embora distintas em natureza e escala, vêm-se, por recurso de livre
inspiração, confluentes na temática. Mencionem-se, em particular – e nesta
ordem –, Virilio (1993a; 1993b; 1995), Baudrillard (1981; 1983); Canevacci
(1996) e Canclini (2003).
212
WEB 2.0
tecnologicamente forjado que simula o tempo ordinário da vida prática e
que articula instantânea e simultaneamente contextos sociais pulverizados
no território geográfico), [3] fluxo sígnico (a esteira de sentido circulante
nas redes), [4] sujeito [não importa também aqui a sua forma social, se gru-
pal (massa ou público), individual (telespectador, rádio-ouvinte ou usuá-
rio), institucional ou não, e assim por diante], e [5] relação de acoplamento
entre subjetividade/corpo e tecnologia/rede.
Na dinâmica social desses cinco elementos, o glocal corresponde a um
vórtice invisível de enlaçamento inextricável entre o contexto concreto e
vicário do campo próprio e da existência (locus da experiência ordinária
do mencionado acoplamento) e o universo imaterial e infinito das redes
áudio/visuais (de massa ou interativas) em tempo real, condição sateliti-
zada do planeta após a Segunda Guerra Mundial. O glocal totaliza, pois,
a ambiência de condutibilidade sociomediática integral de fluxos sígnicos
em espiral, regida pela lógica aleatória do mercado.
Do estirão de desenvolvimento da tecnologia telefônica, radiofônica e
televisiva ao advento consecutivo de diferentes espaços de atuação bidi-
recional no cyberspace, a invenção sociotécnica irredutível aí presumida,
a do glocal e da glocalização, como dispositivos tecnoculturais originais
e sempre em estado progressivo de diversificação e sofisticação interna
da era em curso, não obedeceu senão às necessidades de formação e des-
dobramento social-histórico ampliado da civilização tecnológica avan-
çada e de sua cultura típica, a mediática (em seu modelo massificado e/
ou interativo). A banalização cotidiana irreversível do glocal coincide
com o processo histórico de imaterialização completa do capitalismo tar-
dio (Mandel, 1985).
Conceito de visibilidade mediática
Se a visibilidade mediática e o modo de existência em tempo real pro-
manam da fenomenologia do glocal – são, na verdade, a sua principal re-
percussão social-histórica estrutural –, a recíproca, mesmo se macrorrees-
calonada, é obviamente verdadeira: inexiste glocalização da vida humana
sem que esta seja continuamente lançada em seu horizonte simbólico cor-
respondente e dominante.
213
VISIBILIDADE MEDIÁTICA E VIOLÊNCIA TRANSPOLÍTICA NA CIBERCULTURA
No contexto do presente estudo, o conceito de visibilidade mediática assume
três sentidos diferentes e conexos. Ela se configura como (uma espécie de):
[1] “espaço socioesférico longitudinal” invisível, imaterial, tecnoes-
pectral (eletromagnético, se se quiser, no jargão técnico, aqui reducionista),
de circulação/migração intermediática imprevisível de signos (representa-
tivos de acontecimentos e fatos, práticas e atitudes, indivíduos e grupos,
instituições e corporações, marcas e produtos, etc., e que, signos como tais,
se apresentam autorreferenciais); em outras palavras, “estrato-corredor”
simbólico dinâmico e majoritário da cultura contemporânea para circu-
lação intermediática da produção simbólica regida pelas leis do valor de
troca corporativo e das audiências (estejam em jogo redes live ou online) e
modulada por peculiaridades sociais relativamente estáveis [migração in-
termedia/redes: de jornais e revistas impressos para o cyberspace, da TV e
do rádio para celulares, de livros para o cinema, de câmeras de vigilância
e controle para a TV, e assim por diante, em espiral que abrange até écrans
de bolsas de valores, lapso de passagem e fuga para todos os media; mi-
gração interprodutos/formas culturais: do noticiário televisivo/radiofônico
para talk shows e programas de variedade, das novelas para a publicidade,
dos comics e games para filmes, de e-mails para blogs, do YouTube ou
reality shows para o noticiário impresso, deste para sites, e vice-versa, em
miríade];
[2] dimensão-“superfície” cultural polissêmica de projeção dos re-
sultados de estratégias e práticas de (auto-)exposição e (auto)promoção;
macroesteira competitiva na qual os signos equivalentes a tais resultados
se projetam, se justapõem e se completam, se atropelam e explodem, se
fagocitam e se autoflagelam, se subdividem, se excluem e se dissolvem,
para, eventualmente, retornar uma ou mais vezes, refazendo o ciclo semio-
degradável de tensão para, não raro, desaparecerem sem deixar vestígios;
como tal, megazona simbólica de colonização e povoamento permanente,
portanto, de disputa agonística por visibilidade (tanto nos media, redes e
produtos de massa, quanto nos interativos), regida pela lógica do aparecer/
desaparecer (ou do fazer aparecer/desaparecer) como suposta forma de
poder e garantia de obtenção de hipervaloração social (prestígio, reconhe-
cimento, reputação e fama como bens simbólicos), ao calor de interesses
socialmente previsíveis (confessos ou não);
214
WEB 2.0
[3] condição ou “estado” de algo (em sentido genérico) que se joga
“à luz” (no tocante exclusivamente ao diapasão percepcional e subjetivo
humano), que se põe à existência, que assim se mostra e se autopromove,
enfim, que é segundo os axiomas autolegitimatórios da silenciosa “lei me-
diática” da existência (e que, como tal, pode ser constatado, embora não
empírica ou fisicamente, pelo que não importa, a rigor, com qual valor ou
estatuto vigora, se na berlinda ou não de um processo social ou época);
(condição ou estado) de algo que, assim inscrito ou projetado no mundo, se
faz percebível como um existente (real/concreto ou fictício/imaginário), e
que, se assim não for, não existe.
Em se tratando de um fenômeno mediático, essas três acepções abar-
cam a natureza de um processo (não, obviamente, de algo com “forma”
e/ou “conteúdo” ou, pior, de uma “coisa”), cujo “metabolismo” – nunca
é demais lembrar – pressupõe evidentemente (e somente se realiza via)
intenção e ação social voltada para media, sobretudo os eletrônicos.
Não por outro motivo, a visibilidade mediática é – numa metáfora a
essa altura capciosa, mas, de todo modo, não menos verdadeira e adequada
ao momento – a “macroprotuberância” sociocultural obliterada do fenô-
meno glocal, como tal “presente” necessariamente em todos os contextos
glocais de recepção/acesso/retransmissão (instância invisível, mas efeti-
va), na qual e pela qual o glocal na verdade se entrega fenomenologicamen-
te, se integraliza e se faz (ele mesmo) “visível”, e a partir da qual, portanto,
ele pode ser apreendido como “ambiência” de povoamento e experiência
humana, não-lugar civilizatório típico de produção e reprodução de um
imaginário vicário – o imaginário glocal unidimensional (Trivinho, 2007a,
p.300-301) –, em promiscuidade com a profusão internacional de signos
nômades.
A visibilidade mediática – na realidade, multimediática, na qual, para-
doxalmente, tudo se joga no trânsito, no entre, na intermediaticidade – se
configura, assim, como uma espécie de universo simbólico canônico da
civilização mediática, perfazendo (juntamente com o glocal), na quase to-
talidade da autopoiésis dessa fase histórica do capitalismo, o fundamento
de sua respectiva dinâmica cultural hegemônica.
215
VISIBILIDADE MEDIÁTICA E VIOLÊNCIA TRANSPOLÍTICA NA CIBERCULTURA
Lógicas socioculturais da visibilidade mediática
Como se pode deduzir, a lógica sociocultural desse fenômeno genérico,
à semelhança de um fato social total (Mauss, 1974, p.39-184), sofre, per-
manentemente, a interveniência concatenada, cumulativa e omeostática de
três lógicas específicas, na qualidade de configurações culturais:
[1] a lógica dromocrática da história ocidental [fincada no princípio
diacrônico da velocidade técnica e tecnológica como eixo descentrado de
articulação e modulação da vida humana];
[2] a lógica pós-moderna do social e da cultura [fragmentação, satu-
ração, ausência de finalidade e incerteza estrutural da produção mediática
de signos]; e
[3] a lógica cibercultural do presente [dinâmica resultante do uso social
das tecnologias digitais, tal como apreendida na categoria da dromocracia
cibercultural (Trivinho, 2001, p.219-227; 2007a)].
Não por outra razão, este ensaio pressupõe, em seu arco temático de
fundo, [1] as fases da massificação cultural (mormente posterior à Segunda
Guerra Mundial), da informatização social e, mais recentemente, da im-
bricação das duas; [2] o modo pelo qual essas fases incorporam os traços
idiossincráticos da pós-modernidade (Lyotard, 1896, 1993; Harvey, 1992;
Jameson, 1997; Vattimo, 1991; Trivinho, 2001), e [3] o modo como tais
fases e fatores implicam, intrinsecamente, a instantaneidade, a tautologia e
a efemeridade dos signos e do sentido.
Sobredeterminação da visibilidade mediática
pelas características da cibercultura
O fato sociotécnico mais recentemente significativo dessa visibilidade
multi- e intermediática diz respeito a um aspecto ulterior. Estabilizados
socialmente os efeitos da lógica dromocrática e do advento do pós-moder-
no, e passadas quase duas décadas de enraizamento do cyberspace na vida
cotidiana, a visibilidade mediática tem sido, há bom par de anos, sobrede-
terminada por traços basilares da cibercultura. Na esteira civilizatória do
glocal, desde o alvorecer mediático do século XX, essa sobredeterminação
constitui processo historicamente inédito. Seus sintomas proliferam sobe-
216
WEB 2.0
jamente, conforme a seguir discriminados e exemplificados (em apreensão
preliminar, a ser desdobrada a posteriori):
[1] sobredeterminação pelo modelo tecnológico de base: todos os media de
massa dependem dos media e redes interativos; o glocal telefônico, radiofônico
e televisivo adquiriu versão digital (celular, web-rádio, TV interativa);
[2] sobredeterminação por absorção operacional: todos os media, com
exceção relativa do teatro, foram enredados pela flexibilidade da lingua-
gem hipermediática e hoje operam (também) a partir do cyberspace;
[3] sobredeterminação da relação de demanda: os media eletrônicos pro-
curam flexibilizar o mais possível as possibilidades de participação do recep-
tor, em flagrante tentativa de mimese em relação aos media e redes digitais,
vale dizer, de espelhamento na lógica bidirecional instantânea e simultânea
da interatividade, como forma de inserção no mainstream tecnológico mo-
delar e ocultação compensatória da extemporaneidade de sua linguagem e
modo de transmissão (para massas, a partir de um centro de comando);
[4] sobredeterminação cronológica: a ultraflexibilidade das linguagens
informáticas e o tempo real próprio do cyberspace contraíram, ao máximo,
o hiato de produção, circulação e recepção de informações e imagens, oxi-
genando a agenda noticiosa diária dos media convencionais; muito mais
lentos (porque complexos e de alto custo operacional), TV à frente, esses
media tendem, assim, a recuperar e processar dados já tautologicamente
disponíveis, e a transmiti-los (somente) quando chega a hora planejada de
relação direta (e majoritariamente unilateral) com a audiência;
[5] sobredeterminação discursiva: elementos socialmente consagrados
da terminologia pragmática da cibercultura são paradoxalmente apropria-
dos e utilizados por programas de TV e rádio, na tentativa, legitimada (tam-
bém) por tautologia, de “provar” que os media de massa são capazes de
interatividade (pelo que, com isso, jogam com o fictício emparelhamento
com os signos em voga, igualmente para encobrir o descompasso temporal
de modelos sociomediáticos);
[6] sobredeterminação remissiva (derivada da anterior): os media de
massa se valem do expediente do link cultural para seus respectivos nichos
no cyberspace, em insistente “demonstração” de que este é mero apenso de
redes eletrônicas precedentes e de que, na quebra-de-braço intermediática
217
VISIBILIDADE MEDIÁTICA E VIOLÊNCIA TRANSPOLÍTICA NA CIBERCULTURA
em curso, ela propende em favor dos media convencionais, quando, na
verdade, tal procedimento de remissão, doravante compulsório, revelando
a falácia (também camufladora do atraso) da tal “demonstração”, não prova
senão a referencialização subordinativa dos media de massa nas tecnolo-
gias e redes hipertextuais;
[7] sobredeterminação estética: estratégias de diagramação utilizadas por
jornais e revistas impressas e por programas televisivos esposam soluções
gráficas da linguagem digital e da lógica da virtualidade, em claro esforço de
atualização tecnocultural sintomática, entre outros sinais e tendências rele-
vantes de idêntica sobredeterminação hipertextual, que não perfazem senão
o trecho inicial de um extenso novelo de dados emergentes.
As senhas infotécnicas de acesso à cibercultura (Trivinho, 2001; 2007a),
de par com todos os seus traços modelares – do tipo e linguagem de rede
à lógica do tempo e da estética online –, funcionam, pois, mais que fonte
operacional inspiradora, como “motor” contemporâneo (quase osmótico)
da visibilidade mediática.
A cibercultura rearranjou e reescalonou a lógica comunicacional do
processo civilizatório em favor de sua própria reprodução no horizonte, a
ponto de ela mesma, em seu típico modus operandi social-histórico – como
dromocracia cibercultural (Trivinho, 2007a) –, vigorar, num só fôlego,
como a fase atual da condição glocal, da visibilidade multimediática e do
capitalismo tardio.
Não sem motivo, no trecho mais desenvolvido dos indícios apontados,
comparece o dado certamente mais relevante: a consolidação sociotécnica,
a diversificação interna e a consagração cultural da visibilidade mediática
estritamente virtualizada, típica do cyberspace. A atratividade internacio-
nal desse braço renovado de visibilidade – mesmo que amplamente cumu-
lativa ao cultivo social da audiência a produtos culturais de massa – sela
a sobredeterminação correspondente, aquela que se realiza pela expansão
sociomediática de novos campos de atuação em tempo real.
Para além da reescritura tecnossimbólica da visibilidade mediática
herdada, o advento da cibercultura significou, na verdade, uma explosão
em miríade no caleidoscópio de canais e filtros concentracionários dos
media de massa socialmente destinados à lógica da (auto-)exposição e da
218
WEB 2.0
(auto)promoção. Mailing lists e listas de discussão, blogs e fotoblogs, Orkut
e MySpace, cenários de web cams, YouTube e Second Life, para destacar o
mais importante nesse aspecto, representam a veloz multiplicação de cam-
pos online para a (auto)manifestação pulverizada (regida por autocensura)
mediante texto, imagem e/ou som.
Em que pesem tais traços distintivos, sublinhe-se que, mesmo fincada
em rede dotada de lógica interacional própria, a visibilidade ciberespacial
obedece às mesmas regras de base da visibilidade massificada: o que nela
circula atende, igualmente, à regra da (super)exposição como afirmação de
suposto poder simbólico.
Violência transpolítica
Transpolítica do glocal e da visibilidade mediática
Com efeito, o problema teórico fundamental do fenômeno glocal e da
visibilidade mediática (bem como de seus processos vinculados, a gloca-
lização e a existência em tempo real) – vale enfatizar, o problema basilar
de seu desdobramento e perdurabilidade socioculturais – reside, eviden-
temente, mais que em qualquer outro fator, em seu caráter ôntico, em sua
própria existência efetiva, mas, mais profundamente, numa franja de reali-
dade bastante sui generis. O fato de o glocal e de a visibilidade mediática
não poderem mais deixar de existir tal como são em sua natureza, em suas
estruturas de base, em sua função social-histórica e em suas repercussões
simbólicas, melhor ainda, o fato de não haver possibilidade de cessarem de
existir tais como são em sua costura indissolúvel com o tecido dos merca-
dos, em particular o da vida cotidiana, não significa senão o quanto o vetor
mediático (de massa, ciberespacial e híbrido) constitui matéria historica-
mente indecidível, por escapar, por assim dizer, do esteio administrativo e
controlador da racionalidade política e da jurisprudência. Em perspectiva
antropológica, trata-se de dois fenômenos que ultrapassaram os marcos do
sujeito (individual ou coletivo) e das instituições; transcendem, pois, o pro-
priamente humano, no que ele congrega(va) de potência de decisão e de
mudança das estruturas de existência.
219
VISIBILIDADE MEDIÁTICA E VIOLÊNCIA TRANSPOLÍTICA NA CIBERCULTURA
A questão elementar atual dessa empiria processual irrompe na percepção
teórica somente quando se a associa ao caráter inexorável, inelidível e, portanto,
incontornável das engrenagens de base da civilização glocal, dinamizadas e per-
petuadas pelo mercado de bens simbólicos e da interação digital. Esses aponta-
mentos encerram, na totalidade, a fenomenologia da transpolítica em jogo.
O conceito de transpolítica – tal como aqui se o utiliza – foi caracteriza-
do em outro lugar (Trivinho, 2007a, p.181-212) e não precisa ser novamen-
te recenseado. Para efeito do presente ensaio, o conceito nomeia o estado
social de impossibilidade racional e técnica de administração, gerencia-
mento e controle de fenômenos, processos, circunstâncias, acontecimentos
e tendências por parte das instâncias políticas e jurídicas herdadas da mo-
dernidade, sobretudo em seus desenvolvimentos mais recentes, vinculados
ao século XX. Diz-se de transpolítica, pois, a empiria processual epocal
que, em sua instauração social e em seu desdobramento histórico, trans-
cende a capacidade executiva acumulada do imaginário instituído nessas e
dessas instâncias multilaterais, seja em âmbito regional, nacional ou inter-
nacional. Nesse aspecto, tudo se apresenta como se a transpolítica cobrisse,
no âmbito social-histórico, processos tão indecidíveis quanto, por exemplo,
a própria vida (vale dizer, a vida per se, em sua manifestação cabal, há
bilhões de anos no planeta), que a ciência e todos os demais saberes, na au-
sência de alternativa cognitiva mais consistente, tomam, majoritariamente,
como fato evidente, consumado e, por isso, positivo (em termos jurídicos
e idealistas), e como tal acima de qualquer discussão. A comparação nada
tem de esdrúxula: o modus operandi da transpolítica como fenômeno social
é o de simular, em terreno social-histórico, para a percepção, a natureza, em
sua autopoiésis absoluta e irrecorrível; é o de, assim, vigorar pretensamen-
te como processo naturalizado, sub-reptício, surdo.
Esse feixe de fatores talha, no estágio digital de desenvolvimento
comunicacional, a condição do fenômeno glocal e da visibilidade me-
diática: socialmente processados sob a cláusula sine qua non, eles são,
cabalmente, transpolíticos. Idêntica característica se projeta, evidente-
mente, para a civilização mediática como um todo, para o seu estirão
social-histórico tecnologicamente mais avançado, a cibercultura, e para a
lógica dromocrática que mantém esta última como sistema tecnocultural
predominante.
220
WEB 2.0
Uma vez que a decisão sobre a existência ou não do glocal e da visi-
bilidade mediática põe-se aquém ou além da esfera da racionalidade e do
imaginário político legado, as tendências fáticas propendem, assim, para
a afirmação consuetudinária de uma única opção possível: garantidos por
teia complexa de interesses, é como se eles tivessem, necessária e definiti-
vamente, de existir, pelo que a obviedade dessa condição demarca o sentido
da absurdidade do contrário.
A diferença para com outros processos sociais de mesma característica
– a comunidade, o Estado, a família, o capital, etc. – é que, no caso do glocal
e da visibilidade mediática, trata-se de fenômenos sociotecnológicos de al-
cance intercontinental e desdobrados fragmentariamente em rede, à imagem
identitária da glocalização fractalizada do território e do simbólico.
Violência transpolítica
Fosse essa a dimensão mais crucial do problema, estar-se-ia, ainda e de
certa forma, no reduto das constatações e descrições. O exame mais detido
do objeto, não obstante, permite depreender – em prol de seu tratamento
crítico, da tensão necessária com o social-histórico – que, no seio das con-
siderações anteriores, radica dupla violência, tão pré-simbólica e heterodo-
xa quanto invisível e esquecida, conforme exposto abaixo.
Em primeiro lugar, urge, no arranjamento social da empiria em jogo,
justamente o que se apresenta como violência fenomenológica típica, pri-
meira e inexpugnável da civilização mediática, válida para as suas três
configurações sociotécnicas de base: a cultura de massa, a cibercultura e
a resultante da hibridação de ambas. Trata-se, em suma, de uma violência
transpolítica, aleatória, não-programada, não centralmente operacionaliza-
da, proveniente direta e diuturnamente da existência mesma do fenômeno,
no caudal de sua inexorabilidade e inelidibilidade; vale dizer, violência
fundante da técnica sofisticada e do social glocalizado no qual ela se per-
petua e se reescalona.
Nesse sentido – nunca é demais explicitar, para reforço da tônica po-
lêmica da argumentação –, a civilização glocal, mormente o seu estirão
cibercultural, constitui, em bloco, violência transpolítica em estágio avan-
çado, obliterada em sua celebrada ciberespacialização emergente.
221
VISIBILIDADE MEDIÁTICA E VIOLÊNCIA TRANSPOLÍTICA NA CIBERCULTURA
Em segundo lugar, essa inexorabilidade e inelidibilidade sociofenomê-
nica como violência autopoiética pressupõem, obviamente, castração his-
tórica insolúvel do direito e do poder (individual, grupal ou institucional)
de alterar, estruturalmente, a rota da aventura antropológica ou os rumos ci-
vilizatórios – seja pela gradual racionalidade reformista institucional, seja
por qualquer ruptura revolucionária ou heterodoxa –, sem que se necessite
levar em conta o vetor glocal e suas principais repercussões no simbólico,
visibilidade mediática à frente.
Visibilidade mediática como destino
A perduração do estado fenomenológico germinal dessa violência trans-
política, dada a sua imanente pressão prática e pré-simbólica, e a evidência
do mencionado sequestro da possibilidade histórica de redefinição racio-
nal e técnica coletivamente planejada do processo civilizatório, exceto se e
quando implementado nos marcos multiglocais acumulados e sedimentados,
formam, por pressuposto, a cadeia de injunções que, por sua vez, institui –
até prova razoável em contrário – a visibilidade mediática como destinação
(à falta de melhor termo) social-histórica do simbólico e, como tal – para o
bem e/ou para o mal –, do humano (embora a este sempre restem alternativas
de escape, excepcionais no caso, quando não laterais, a seu contento, tempo
e uso), indicando-se, nesse rastro, como sói parecer – novamente até moção
consistente em contrário –, que ou a civilização será glocal ou não o será.
Não seria equivocado aventar que, em razão da costura do fenôme-
no glocal e dos fluxos da visibilidade mediática com desejos sociais mais
profundos, doravante pode até haver mudança substancial no modo de
produção econômico, mas não se afigura mais possível alterar o modo tec-
nológico estrutural de mediação do social, isto é, o modo glocal, com sua
visibilidade típica, de articulação da cultura. Nessa condição, não pode-
riam prevalecer senão – como a ninguém escapa – os horizontes de reafir-
mação tautológica diuturna do sempre-igual (para lembrar uma expressão
cara a Adorno), paradoxalmente num contexto de ostensiva e exuberante
expressão do diferente. Quando a violência autopoiética do enredamento
técnico atingiu o estágio digital da glocalização planetária e da cibera-
culturação alargada da visibilidade mediática, o amanhã na civilização
mediática tende sempre a clonar o dia anterior no que respeita – bem dito
222
WEB 2.0
– às estruturas sociomediáticas de base do social, da cultura, da economia
e da moral prática.
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224
WEB 2.0
PARTE 5 – A PAIXÃO PARTICIPATIVA:
VISIBILIDADE E MEMÓRIA
Crônicas da boneca desejada:
fantasias da vida virtual
Beatriz Jaguaribe*
O efeito Barbie
Lançada no mercado americano em 1959, a boneca Barbie, criada por
Ruth e Elliot Handler e batizada com este apelido em homenagem à filha
do casal, Barbara, gerou um furor no mundo dos brinquedos. Afinal, a bo-
neca de fartos seios, cinturinha e pés em arco representava algo fundamen-
talmente diverso dos bebês rechonchudos, das meninas de cachos e saias
rodadas ou das achatadas bonecas de papel com seus acessórios de roupas.
Dotada de anatomia sexy, a Barbie assinalava a aceitação triunfal da ma-
terial girl feita de plástico cujo corpo esbelto podia ser despido e também
revestido com inúmeros modelitos criados especialmente para ela. Pouco
tempo após sua aparição, Barbie ganhou um boyfriend, embora este fosse
encarnado no insosso boneco Ken. Ambos, Ken e Barbie, não tinham o
sexo de plástico nitidamente delineado, mas, enquanto a anatomia sexual
de Ken era praticamente uma tábula rasa, Barbie compensava a ausência
do sexo esculpido com a fartura dos seus seios elevados. De fato, a criação
de Barbie foi inspirada por uma boneca erótica alemã – a Lili, uma boneca
*
Professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Escola de Co-
municação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ) e pesquisado-
ra do Ciberidea – Núcleo de Pesquisa em Tecnologia, Cultura e Subjetividade.
225
CRÔNICAS DA BONECA DESEJADA
semipornográfica criada para o uso masculino. O casal Handler amenizou a
sexualidade de Lili na confecção da Barbie, mas a mensagem estava dada.
Daquele momento em diante, menininhas do mundo inteiro não se limita-
riam a brincar somente com bonecas bebês que as preparariam para seus
papéis maternos, nem precisariam apenas se projetar em bonecas infanti-
lizadas. Barbie apareceu para estimular o ideal da jovem sexy, divertida e
consumista. Entretanto, diversamente das pin-ups das revistas, das starlets de
calendário, das bonecas de papel moldadas em estrelas de cinema, a boneca
Barbie possui presença tridimensional no mundo. Não é apenas uma imagem,
mas um artefato lúdico que estimula projeções, diálogos, fantasias e compras
de apetrechos que variam do secador à casa com piscina cor-de-rosa.
O sucesso fulminante da Barbie não somente enriqueceu de forma as-
sustadora seus criadores, como também propagou os encantos da beleza
plástica teen em todos os recantos do mundo. Além de ser vendida em 140
países, o ritmo das vendas da Barbie é estarrecedor, já que duas bonecas
Barbie são vendidas a cada segundo169. Desde sua aparição, a boneca se
adaptou aos novos estilos de vida. Sua anatomia ainda conserva os seios,
a cinturinha, os pés em arco e as feições mimosas, agora um tanto mais ju-
venis e sorridentes. Mas, ao sabor dos ventos multiculturais, agora também
existem Barbies negras, asiáticas, latinas, morenas, além de Barbies em
cadeira de rodas e óculos. Fora a diversidade do cardápio étnico e físico, a
Barbie indolente e loura de antes também se profissionalizou e proliferam
Barbies enfermeiras, cantoras, estilistas, atletas, etc. Creio que não exista
uma Barbie leitora ou escritora, mas pode ser que tenham fabricado uma
Barbie bibliotecária. Evidentemente que, logo após sua aparição fulgurante,
empresários do setor de brinquedos de outros países também se apressaram
em criar “barbies” locais. Basta lembrar a pouco saudosa Suzi, fabricada
pela Estrela, uma barbie com cabeção, pernas de tronco, tornozelos grossos
e ínfimos seios. Entretanto, a prova de que o modelo anatômico Barbie
reina supremo pode ser vista no furor de automodelação de adolescentes e
169
Ver o ensaio de Dubin (1999, p.19). Conferir também o instigante ensaio
de Paula Sibilia (2007), no qual a autora comenta as medidas anatomicamente
impossíveis da boneca e as repercussões disto no mundo da moda e na auto-
imagem de meninas e adolescentes.
226
WEB 2.0
modelos do mundo inteiro que tentam ajustar-se às medidas impossíveis da
boneca consumista170. Adeus, Suzi.
Como objeto material técnico, a Barbie modificou-se ligeiramente. As
pernas rígidas dos primeiros modelos foram substituídas por pernas flexí-
veis e as novas Barbies também ganharam uma cintura móvel. Embora as
vendas de Barbies continuem sendo um booming business, a boneca teve
que se acoplar aos novos cenários da realidade virtual. Desde o advento
da internet e a criação de realidades virtuais, a agora já velha boneca de
plástico também se transformou em boneca virtual para concorrer com um
vasto panteão de belezas digitais. Criadas para vender desde sandálias de
plástico, sistemas telefônicos e softwares de jogos virtuais, ou inventadas
como heroínas de histórias ou apenas como musas virtuais, as belezas digi-
tais povoam as telas dos internautas. Existem também bonecas virtuais – tal
como a versão virtual da própria Barbie no site Barbie Girls171 – que foram
criadas para ser vestidas, batizadas e trocadas por meninas navegantes no
espaço virtual.
Nas páginas a seguir, quero explorar as representações das bonecas di-
gitais que cintilam nas telas dos computadores e também analisar as bone-
cas eróticas materiais anunciadas na internet como novas configurações de
Barbies para adultos. Essas indagações possuem um caráter experimental
ensaístico; exploram, portanto, mais perguntas do que respostas. Em termos
sucintos, o que me interessa enfocar na análise da representação dessas bo-
necas são três perguntas/questões correlatas. A primeira é se os novos dis-
positivos técnicos das bonecas virtuais inauguram novas estéticas, formas
de vendagem e de relações subjetivas ou se essas técnicas encontram-se
também a serviço de modelos de fantasia, imaginação e identificação que
170
A Barbie é também um fetiche de colecionadores e estilistas. Como sinal
do seu destaque no mundo da moda, Alexandre Hercovitch foi o único estilista
brasileiro convidado a desenhar um vestido fashion para a boneca. No blog Es-
tilo de Viver, Marcella Brum comenta pesquisa realizada pela Universidade de
Bath na Inglaterra, na qual se revela que a boneca Barbie é o brinquedo mais
torturado pelas crianças de todas as idades e sexos. Além do usual corte dos
cabelos, rabiscos e desmembramentos, as Barbies também já foram cremadas
no microondas.
171
Cf. <http://www.barbiegirls.com/>
227
CRÔNICAS DA BONECA DESEJADA
já foram trilhados. A segunda pergunta é centrada na estética e vendagem das
bonecas eróticas hiper-realistas – as famosas Real Dolls, fabricadas por uma
pequena empresa na Califórnia. Embora as Real Dolls possuam presença tan-
gível no mundo e são sofisticadas descendentes de linhagens anteriores de bo-
necas sexuadas, elas participam do mundo cibernético, na medida em que não
somente são vendidas pela internet172, como também, tal como as bonecas di-
gitais, traduzem uma forma de subjetividade fantasiosa que tem enorme relevo
nas comunicações eróticas da internet. Trocas essas marcadas pelo incorpóreo
e por jogos lúdicos ao redor de subjetividades inventadas por meio de másca-
ras, identidades apócrifas, etc. Em outras palavras, nos e-mails, chats eróticos
e Orkuts, os usuários, de certa forma, brincam com bonecas, com imagens
manequins/personas que constroem para si e para os outros. Finalmente, em
ambas as bonecas digitais e as bonecas materiais quero examinar o deleite da
boneca como figura de estranhamento cuja duplicação da figura humana borra
as fronteiras entre o orgânico e o inorgânico, entre o real e o hiper-real173.
Em busca da boneca desejada
Qualquer pessoa que excursione pela internet à procura da “boneca desejada”
encontra um panteão imenso de figuras digitais, bonecas materiais fotografadas
digitalmente e, finalmente, sites eróticos nos quais mulheres reais são projetadas
como bonecas sedutoras. Proliferam também os sites de bonecas digitais que
existem para serem trocadas, vestidas e adornadas pelos usuários. Existem con-
cursos de Miss Beleza Digital, tal como o patrocinado pela revista Wired em
2004. Mas é no Japão, sobretudo, que as virtual idols ganharam uma dimensão
insólita. Bonecas projetadas por Jun Kubota – com nomes tais como Miharu,
Silvie, Hikari, Misty e Hitomi –, a boneca Sayaka, feita por Kakomi, e, especial-
mente, a ídolo virtual Reiko Nagase, criada por Kei Yoshimizu, foram projetadas
por seus criadores para serem figuras pop midiáticas que inexistem fora do es-
172
Cf. <http://www.realdoll.com/>
173
Em um ensaio intitulado “Bonecas hiper-reais: o fetiche do desejo”, publicado no
livro O choque do real: estética, mídia, cultura (2001), examino, seletivamente, as re-
presentações da boneca enquanto artefato material, objeto técnico e erótico, e como
figura de automodelação representada na literatura, artes plásticas, moda e mídia.
228
WEB 2.0
paço virtual (Wiedeman, 2001). No caso da boneca digital Nana, cujos criado-
res permanecem anônimos, a boneca foi patrocinada pela Japan Audio Visual
Workshop e projetada para ser uma humanóide. Nas palavras de Wiedeman:
É realmente fascinante ver como as barreiras entre o real e o virtual
estão sendo desmontadas e como a aceitação de personagens virtuais
começa a ser um fato cotidiano. Nana teve sua vida planejada desde o
início, do seu nascimento à fama, seus feitos se assemelham inteira-
mente ao modelo clássico da exposição pela mídia. (2001, p.378)
Nana apareceu em inúmeras capas de revistas e foi exposta na televisão.
A ideia era precisamente criar um “efeito de realidade” numa vida de total
simulacro. Mas qual é o “efeito de realidade” de Nana? É o efeito de estar
sob o signo da mídia; é equacionar a vivência na modernidade tardia como
uma experiência processada pela estetização da vida cotidiana; é enfatizar
como vivemos através de imagens e o quanto a realidade midiática e virtual
assume uma dimensão constitutiva da nossa subjetividade cotidiana.
Apesar da repercussão das virtual idols japonesas na vida cotidiana –
leia-se nisso não somente a emulação de modelos de beleza, compra e venda
de indumentárias e cosméticos, como também a compra de produtos asso-
ciados à boneca –, as virtual idols japonesas são quase todas bonecas que
enfatizam o aspecto de boneca. Diversamente da modelo virtual brasileira
Kaya, que possui extraordinária verossimilhança realista, as idols japoneses
refletem a estética dos mangás, a artificialidade das bonecas de plástico e a
beleza irreal das manequins. Tal como os personagens da ficção literária, as
virtual idols não existem no mundo real, não possuem lastro fora do habitat
virtual e são simulacros “autênticos”. Mas, contrariamente aos personagens
literários, as bonecas virtuais possuem escassa interioridade. Fascinam mais
pela aparência, seduzem pela imagem e pelo jogo projetivo de empatia, de-
sejo ou identificação que os usuários depositam nelas. Evidentemente, espe-
lham uma relação fetichista, no sentido de que são objetos irreais que ativam
sentimentos subjetivos e fantasias que as preenchem de conteúdo174.
174
Para uma discussão sobre o fetiche da boneca e as acepções do termo fetiche,
ver novamente o ensaio “Bonecas hiper-reais: o fetiche do desejo”.
229
CRÔNICAS DA BONECA DESEJADA
Além das virtual idols que vendem música, atuam como garotas pro-
paganda e eventualmente como atrizes de simulacro, existe também um
repertório considerável de bonecas virtuais que não são ídolos e de bone-
cas feitas materialmente que são fotografadas e exibidas na internet. No
caso das primeiras, o objetivo não é tanto introduzir a boneca no mundo
cotidiano, mas potencializar um mundo de fantasias. As bonecas virtuais
existem também para revelar a perícia do desenhador gráfico em projetar
figuras míticas, supra-humanas e irreais que destilam um efeito encantató-
rio justamente por conta da sofisticada técnica que as torna tão hiper-reais.
As bonecas virtuais, nesse sentido, superam qualquer encarnação humana.
Basta ver a indignação dos internautas quando a atriz Angelina Jolie foi
escolhida para representar a guerreira sedutora Laura Croft175.
Já nas bonecas digitais projetadas pelo artista Ichiriduka, o motivo da
Lolita, da ninfeta teenager sedutora, é revelado na imagem da menina com
roupa de escola, a clássica saia azul-marinho plissada e as meias soque-
tes. Mas, diversamente das pin-ups glamourosas dos anos 1950, as bonecas
virtuais de Ichiriduka são retratadas sob o enfoque sádico. Algumas são in-
teiramente belas, mas possuem um detalhe desconcertante ou monstruoso,
tal como uma perna amputada ou deformada, ou o corpo cicatrizado ou
ensanguentado. Ichiriduka brinca com a própria fabricação do fetiche ao
mostrar uma boneca que retira sua máscara humana para revelar o circuito
eletrônico de sua verdadeira caveira digital. Já com as bonecas que exis-
tem enquanto objetos e que são fotografadas para sites na internet, há uma
ambiguidade que colapsa o mundo virtual com a realidade cotidiana. Ao
esculpir sua bela estátua Galatea, Pigmaleão desejou ardentemente que
seus membros marmóreos se transformassem em palpitante carne rosada.
Em contraste, as bonecas japonesas de Tomizaki Nori, embora possuam
encarnações variadas, são todas projetadas para revelar um detalhe que as
situa como bonecas. Várias bonecas possuem feições de jovens mulheres
ou adolescentes japonesas. São belas, verossímeis, mas todas têm as arti-
culações expostas, revelando as dobradiças de bolas que as articulam. Na
boneca que lê mangás no seu quarto decorado, na boneca fashion vestida
175
Ver dissertação de Mestrado de Elaine Zancanella (2004).
230
WEB 2.0
de negro recostada contra uma parede, e na boneca nua deitada numa caixa
de madeira, o efeito da beleza é tingido por um estranhamento deliberativo
que acentua o espanto da percepção da boneca enquanto boneca. Nori real-
ça a aparência realista da boneca, as situa em âmbitos cotidianos e, ao mes-
mo tempo, enfatiza o efeito de “bonequice”. Tanto no imaginário da bela
boneca que possui um defeito horripilante ou que é sadicamente torturada,
como na configuração da boneca hiper-real que enfatiza sua condição de
boneca, vemos a popularização do imaginário do insólito surrealista.
Assim como os escritores românticos, os surrealistas tinham particular
fascínio pela boneca, representada, sobretudo, pela manequim de moda,
pelos velhos autômatos e pelas bonecas de porcelana. Esse fascínio advém
do estranhamento da duplicação da figura humana, em que a presença ma-
terial, mas também espectral da boneca, gera uma atmosfera de incerteza,
do belo sinistro, do morto vivo, do inorgânico confundindo-se com o or-
gânico. Embora tivesse tirado fotografias das ruas desertas de Paris, dos
parques com estátuas meditativas e das bonecas manequins sorrindo na
vitrine de moda antes da existência propriamente dita de uma estética sur-
realista, Atget foi considerado um extraordinário precursor pelos próprios
surrealistas. Já Man Ray, que participou diretamente dos grupos ao redor
de André Breton, realizou várias imagens com manequins. Em algumas de
suas fotografias de moda, o manequim exala um estranhamento irreal. Em
outras imagens, há uma criação da “beleza convulsiva” na justaposição
incongruente entre as feições de papel da boneca acopladas ao corpo de
carne e osso de uma figura feminina176. Entretanto, no imaginário surrea-
lista, a técnica não assinala o triunfo do domínio sobre a vida orgânica. A
técnica é aqui entrevista sob a ótica do mágico, do insólito, do maravilhoso
e do irracional que rompe os ordenamentos da razão instrumental. Diver-
samente do futurismo com o seu deslumbramento pela máquina e diferen-
temente dos relatos de ficção científica – tais como o romance pioneiro A
Eva Futura (1866), de Villiers D’Isle Adam, que preconiza a superação da
mulher orgânica pela andreida, idealizada como um robô pedagógico que
inaugura uma nova era da pureza maquínica –, os inventários surrealistas
176
Para uma discussão sobre a noção da “beleza convulsiva” no surrealismo,
ver Foster (1995).
231
CRÔNICAS DA BONECA DESEJADA
da mulher mecânica ou da boneca manequim enfatizam o assombramento.
A boneca é um espectro fantasmático que borra as divisórias entre vida e
morte177. De forma diversa, a aparição da mulher robô no famoso filme Me-
trópolis (1927), de Fritz Lang, desestabiliza a ordem social. Não só revela
a ansiedade em torno do poder desumanizador da técnica numa sociedade
onde os operários encontram-se atrelados ao funcionamento das máquinas,
como também, tal como assinala o crítico Andreas Huyssen, o robô Ma-
ria é projetado como uma vamp mecânica de sexualidade perturbadora e
descontrolada178. Numa cena particularmente evocativa, a robótica Maria
dança sensualmente entre ídolos, estabelecendo uma equiparação não mais
entre técnica e racionalidade, mas entre técnica e o libertar de forças ocul-
tas e perigosas. O olhar surreal se identifica com essa percepção da técnica
enquanto mágica, mas não realça a mensagem conservadora do filme de
Lang, que prevê a derrota da máquina em prol da conciliação sentimental
em que a prédica do coração semeia a concórdia entre os operários, os
braços trabalhadores e o cérebro, representado pelo comando empresarial.
Sobretudo, o estranhamento surreal não se vale da beleza convencional do
robô Maria. A máquina não somente enfeitiça, mas também é derrotada
pelo inesperado, pelo acaso e pela pulsação do inconsciente liberto.
O insólito, o estranhamento, o sinistro e o morto vivo se combinam de
forma particularmente alucinatória nas bonecas que o alemão Hans Bellmer
fabricou ao longo da década de 1930. Aclamado pelos surrealistas, Bellmer
expressou, de forma perturbadora, o lado obscuro do fetiche da boneca eró-
tica e da figura do feminino. Construiu uma variedade de bonecas e foto-
grafou-as. As bonecas de Bellmer são criaturas desmembradas, mutiladas,
monstruosas e incongruentemente sexuadas. São figuras que possuem a ana-
tomia de jovens meninas púberes, e algumas até usam os sapatos de boneca
e as meias soquetes características de adolescentes em fase escolar. Mas o
desmembramento dos seus corpos em que tudo se recombina e se quebra,
as pernas e os seios sem rostos, os rostos sem braços, o tronco sustentando
177
A boneca técnica como precursora do robô tem forte presença na literatura
fantástica e nos livros de ficção científica. Para uma breve análise, ver o ensaio
“Bonecas Hiper-reais: o fetiche do desejo”.
178
Ver o ensaio de Andreas Huyssen (1986).
232
WEB 2.0
dois conjuntos de pernas, enfim, todo o esfacelamento e a remontagem
traduzem o espanto do sinistro. As bonecas de Bellmer, que podem ser
interpretadas como uma crítica à eugenia nazista ou como uma revelação
das ambiguidades surreais sobre o reprimido e o feminino, foram acolhi-
das no marco do repertório vanguardista. Elas buscavam, entre outras coi-
sas, dissolver o encantamento publicitário da boneca manequim de loja,
da boneca erótica dos cartões-postais e da boneca do reclame publicitário.
Mas o alcance dessa crítica foi relativamente modesto, na medida em que
suas imagens não obtiveram ampla popularização. As bonecas vitimadas
de Bellmer mostram, nos corpos desmembrados e no sexo esfolado, o sa-
domasoquismo da posse e a pulsão da morte. O que diferencia as bonecas
de Bellmer do imaginário midiático do terror é a presença aguda do estra-
nhamento, do insólito que não se domestica.
Na sua configuração insólita, essas bonecas foram derrotadas porque seus
corpos estranhados davam pouca margem ao consumo. Sobretudo, possuem
uma antiestética mórbida e sinistra de complexa absorção. As bonecas de
Bellmer, inclusive, distanciam-se das imagens sadomasoquistas de bonecas
produzidas em revistas das décadas de 1940 e 50, tais como Bizarre e outras
publicações do gênero. Nessas coleções de Bizarre e em outros desenhos
afins, o sadomasoquismo, o fetiche, as práticas torturantes e obscuras do sexo
são palpáveis, mas ganham uma pátina estética. Atendem a um nicho de con-
sumo que se expressa na compra de acessórios e na criação de bares temáti-
cos ou salões de sexo moldados para atender aos anseios específicos de uma
clientela. Ou seja, as bonecas do obscuro desejo empacotadas em mercadoria
de consumo proliferam; e as bonecas da beleza mainstream, as bonecas digi-
tais, assim como as Real Dolls da sedução feminina, não só se multiplicam,
como que constituem uma rede inteira de automodelações femininas179.
Na internet, as Real Dolls talvez sejam o fenômeno mais chamativo
do fetiche da fantasia erótica projetado sobre um objeto. As Real Dolls,
tal como o nome indica, não são bonecas digitais. Elas são bonecas mate-
riais feitas para representar mulheres eróticas com o sexo esculpido, seios
179
Existe uma variedade grande de sites eróticos que vendem bonecas hiper-
reais. Além das Real Dolls, há também as Digital Dolls (Cf. <http://homepage2.
nifty.com/digidoll/>.
233
CRÔNICAS DA BONECA DESEJADA
palpáveis, língua e membros maleáveis. São encomendadas pela internet e
o internauta pode escolher, num variado cardápio étnico e fisionômico, a
boneca que lhe apetece. As Real Dolls são a última edição e encarnação de
Barbies feitas para servir de brinquedo erótico de adultos, particularmente,
homens. Nota-se que existem pouquíssimos modelos de Real Dolls mas-
culinos, embora exista até uma boneca hermafrodita; mas a produção é es-
magadoramente de bonecas femininas. Apócrifas ou não, as declarações no
site dos usuários da boneca revelam de modo singular a legitimidade dada
a um novo tipo de relação fantasiosa e fetichista. Todos declaram a paixão
pela boneca, enfatizam o deleite de fazer sexo com ela e se encantam com
sua extraordinária aparência estetizada e verossímil. Sobretudo, tratando-
se das declarações dos homens casados, há uma dupla mensagem a ser
vendida. As bonecas são superiores às suas esposas porque não reclamam,
envelhecem, menstruam, falam ou têm qualquer exigência enfadonha. Ao
mesmo tempo, as Real Dolls são bonecas; portanto, fazer sexo com elas
não se configura com um ato adúltero, na medida em que não são pessoas,
mas objetos. Finalmente, os homens podem brincar de boneca. A questão
central que permeia as Real Dolls é que a fantasia depositada no objeto não
somente o humaniza, mas também gera um mundo autorreferenciado no
qual a vida sempre está em outra parte. Se há o desejo da transmutação da
matéria inerte em carne viva, tal como no mito de Pigmaleão, este desejo
logo se cancela mediante a possibilidade de que a boneca tornada mulher
viva possa vir a expressar sentimentos, desejos, ou reivindicações que as-
sustam ou fatigam o parceiro. O que está em pauta é que o desejo seja
vivenciado vicariamente numa encenação masturbatória, em que o sexo
com a boneca é, afinal, o sexo do desejo espelhado sobre si mesmo, sem
surpresas, ruídos, ajustes ou intervenções.
O documentário da BBC Guys and Dolls (2007), dirigido por Nick Holt,
oferece alguns depoimentos de usuários das Real Dolls. Com exceção do
texano Mike, que mantinha relações eróticas com suas oito bonecas Real
Dolls e também tinha uma namorada – namorada esta, aliás, que encontrou
na internet –, os outros usuários eram homens extremamente solitários que
tinham praticamente desistido de manter relações com mulheres orgânicas.
Todos os usuários, inclusive Slade, o reparador das bonecas, enfatizaram
o prazer do sexo com as Real Dolls. No caso do jovem Davecat, a boneca
234
WEB 2.0
já não era apenas um objeto sexual, mas uma paixão amorosa. Para ele, a
boneca realçava a diferença entre estar sozinho e sentir-se sozinho. Sobre-
tudo, Davecat enfatiza que com a boneca ele sabia o que esperar e que ela
era uma âncora e uma dádiva. Já o inglês Everard se esmerava no cuidado
de suas duas bonecas, fotografando-as para compor um álbum de família.
Everard também mantinha, na sua casa, o quarto da finada mãe intacto,
como uma espécie de memorial post mortem. Um outro usuário, o ame-
ricano Gordon, residente na zona rural de Virginia, cultuava suas bonecas
e a paixão por armas. Afirmava que as relações com seres humanos não
eram duradouras, enquanto a boneca estaria sempre ali para ele. Enfati-
zou, assim como Everard, que as mulheres não tinham interesse por ele.
Já Slade, o técnico que reparava as bonecas, comentou que sua namorada,
inicialmente, se sentia intimidada pela presença delas. A namorada decla-
rou que, efetivamente, no princípio, se sentia diminuída porque não tinha
a perfeição física da boneca, mas que sabia que o namorado não era um
usuário, apenas um profissional que as consertava. Mas essa declaração foi
desmentida pelo técnico quando ele afirma que manteve relações sexuais
com algumas bonecas tidas como particularmente irresistíveis. Finaliza sua
declaração afirmando, entretanto, que o sexo com a boneca não deixava de
ser uma masturbação de alta qualidade.
Na empresa californiana que fabrica as Real Dolls, a recepcionista de-
clara que as bonecas são exportadas para o mundo inteiro e que são in-
teiramente fabricadas de acordo com os gostos dos clientes. Entretanto,
dentro do cardápio de feições e estilos, somente houve um único pedido de
uma Real Doll com a aparência de uma mulher de 80 anos. Praticamente
todas as bonecas Real Dolls têm a estética das modelos: seios avantajados,
corpos esbeltos, narizes bem modelados, lábios carnudos e olhos grandes.
Seus usuários as maquiam, compram roupas, perucas e acessórios.
Em seu extraordinário romance Las Hortênsias (1949), o escritor uru-
guaio Felisberto Hernández já havia antecipado a existência das Real Dolls.
O romance narra a história da obsessiva paixão e progressiva loucura de
Horacio, dono de uma fábrica de roupas, pelas manequins que encomenda-
va ao inventor de bonecas Facundo. No início, fechados em sua casa, Ho-
rácio e a esposa Maria Hortensia se deleitavam com os quadros compostos
pelas bonecas em vitrines espalhadas pela casa. Cada boneca no seu cená-
235
CRÔNICAS DA BONECA DESEJADA
rio falso representava uma alegoria, uma espécie de charada que deveria
ser decifrada pelo casal. Diversamente dessas bonecas meramente alegóri-
cas, o casal também possuía uma boneca feita na imagem e semelhança de
Maria Hortensia. A boneca Hortensia vivia com o casal e era tratada pela
Maria Hortensia como uma filha. Com o passar do tempo, Horácio pede
que Facundo reforme a boneca e esta vai adquirindo, cada vez mais, um
aspecto realista e uma textura mais orgânica. Finalmente, Facundo cumpre
com o desejo máximo de Horácio e modela o sexo de Hortensia. Maria
Hortensia descobre o segredo da boneca sexuada e sente-se traída. Mas a
sexualização desta primeira Hortensia enseja uma nova linhagem de bone-
cas sexuadas: as Hortensias. Essas bonecas sexuadas passam, inclusive, a
ser comercializadas e anunciadas em reclames publicitários que alardeiam:
“Você é feio? Não se preocupe. Você é tímido? Não se preocupe. Numa
Hortensia você terá um amor silencioso, sem brigas, sem rixas agonizantes,
sem reclamações” (Hernandez, 2005, p.218). As Hortensias do romance
de Hernández eram moldadas nas figuras tanto dos manequins de moda
quanto nas imagens das starlets do cinema. No romance, a aparição da
boneca sexuada gera inquietação, curiosidade e desejos, e os habitantes
de Montevidéu correm para ver as bonecas exibidas nas vitrines da loja de
moda Primavera, buscando discernir, por baixo das roupas fashion, qual
das manequins seria uma Hortensia sexuada. Por meio de uma narrativa
imaginativa que embaça a fantasia e a realidade, o delírio e o cotidiano,
Hernández questionou e explicitou o fetiche da boneca sexuada. Um fe-
tiche que revela a transferência simbólica de emoções, paixões e desejos
para objetos inanimados. Ao mesmo tempo, o voyeurismo desse desejo
assinala novas fabricações de subjetividade num mundo crescentemente
mesmerizado pela imagem.
O que o romance instigante de Hernández denota não é somente a fácil
patologização do desejo fetichista, mas a emergência de uma cultura visual
inaugurada sob o fascínio da imagem. Assim como os usuários reais da
Real Doll, os compradores ficcionais de Hortensias tinham uma fixação
em mulheres esteticamente belas. Mulheres esteticamente lindas cujas ima-
gens brilhavam no cinema, nas fotografias e nos anúncios publicitários.
Mulheres fora do alcance do cidadão medíocre. As bonecas Hortensias,
assim como as Real Dolls, acoplam o desejo e o anseio do estético à plena
236
WEB 2.0
passividade da boneca silenciosa. Um tanto diverso foi o conhecido episó-
dio do pintor austríaco Oskar Kokoschka, que encomendou, em 1918, uma
boneca idêntica à sua ex-amante, Alma Mahler. Para escândalo da peque-
na cidade de Dresden, Kokoschka exibia sua boneca à imagem de Alma,
comprou-lhe as mais finas roupas francesas, deu jantares com a boneca
sentada à mesa. Finalmente, numa noite de bebedeira com amigos, arrasta
a boneca até o jardim e a decapita derramando uma garrafa de vinho tinto
sobre o “cadáver”. Procurado pela polícia, Kokoschka revela que a suposta
morta era uma boneca. Mas, nas suas próprias palavras, ele assinala que de
fato, naquela noite, ele havia assassinado Alma Mahler e havia se curado
de sua obsessão180. No caso de Kokoschka, a vivência com uma pessoa,
seu arrebatamento passional e a rejeição final de Alma levaram-no a criar
o fetiche da boneca substituta. Tinha que recriar com a boneca Alma as ex-
periências que tivera com a Alma mulher. Com toda sua verossimilhança, a
boneca, nesse caso, não consegue superar a Alma orgânica. E mesmo que a
relação amorosa de Kokoschka possa ter tido – como tantas relações amo-
rosas – elementos de ficcionalização engendrados por ele, a “Alma mulher
orgânica” reagia e se distanciava ou não desse emaranhado de projeções.
Já com os usuários das Real Dolls, as bonecas são uma tábula rasa, não
repetem relações anteriores, mas preenchem o vazio de relações inexisten-
tes. Confeccionadas de acordo com um cardápio selecionado pelo cliente,
elas, entretanto, possuem uma diversidade relativa. São equivalentes aos
mostruários de tapetes, estofados, objetos que são feitos em série e que
carecem, portanto, da “aura” singular. Com as Real Dolls, temos a popula-
rização massiva dos imaginários da literatura fantástica.
No site, as Real Dolls são fotografadas em posições sensuais tais como
as modelos da Playboy. Parecem mulheres e são bonecas. Já nos sites que
vendem os serviços eróticos de mulheres de carne e osso, essas parecem
bonecas, mas são mulheres. Novamente, a técnica se encarrega de embaçar
fronteiras, já que o “bisturi do software” apaga celulites, gordurinhas ou
flacidez181. Por outro lado, no documentário Guys and Dolls, a imagem
180
Sobre a paixão de Kokoschka por Alma Mahler, ver Weidinger (1996).
181
Ver o ensaio de Paula Sibilia “O bisturi de software: como fazer um ‘corpo
belo’” (2006, p.271-289).
237
CRÔNICAS DA BONECA DESEJADA
do técnico Slade consertando as bonecas se assemelha aos procedimentos
dos cirurgiões plásticos desenhando as novas feições e contornos corporais
de suas pacientes. Na medida em que as Real Dolls espelham ao máxi-
mo mulheres orgânicas, até a terminologia anatômica é semelhante. Slade
menciona a necessidade de reparar o afrouxamento das juntas, recauchutar
os lábios vaginais, etc.
Neste breve percurso pelo mundo cotidiano e insólito das bonecas
digitais, hiper-reais e materiais, nota-se que novas técnicas são acio-
nadas para sedimentar desejos de posse, projeções e estetizações já
presentes nos velhos autômatos do século XVIII, nas bonecas de cera
do século XIX, nas sex dolls infláveis e nos manequins de moda do
século XX. As belezas digitais podem provocar o espanto causado pe-
las bonecas técnicas, tais como andróides, andreidas e outros perso-
nagens da literatura de ficção científica. Mas as bonecas digitais se
distanciam das mulheres robôs, como a Actroid Der, porque inexistem
fora do mundo virtual. Seu fascínio se revela por meio dos modos de
socialização do ciberespaço que independem de presença corporal, es-
paço geográfico e identidades fixas e ancoradas. Na rede, todos somos
“bonecos”, personas, máscaras que revelam intimidades; somos fan-
tasmagorias clicadas em fotologs, espectros escrevinhadores de blogs
e assombrações virtuais. Dessa forma, as belezas digitais serão sempre
veículos dos pensamentos e fantasias dos seus inventores e usuários e
nunca terão o dilema dos seres de inteligência artificial que, nos ima-
ginários da ficção científica, revelam uma autoconsciência filosófica.
Já no percurso das Real Dolls, as implicações da interação entre ho-
mens e bonecas denotam recortes de gênero radicais. As Real Dolls
são a encarnação acessível de miragens de mulheres idealizadas que
reluzem nas telas, nos outdoors e nas passarelas da moda. Para as mu-
lheres orgânicas de carne e osso, assemelhar-se a esses ideais de beleza
significa uma incessante automodelação ou uma frustração constante.
Para os homens que interagem com as Real Dolls, o sexo torna-se um
assunto auto-espelhado e a passividade da boneca, sua incapacidade
de inaugurar carícias, de responder ao beijo, de falar ou pensar são
compensados pelo ato mecânico da penetração masculina. Esse é um
mundo de homens solitários e seus tristes objetos encantados.
238
WEB 2.0
Mas, seja em telas cintilantes, no espaço virtual, em vitrines ou em
fotografias, as bonecas digitais, materiais e hiper-reais são habitantes
também de um “admirável mundo novo” de fantasias e subjetividades
que ainda nem começamos a desvendar.
Referências bibliográficas
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MCDONOUGH, Yona Z. The Barbie Chronicles. New York: Touchstone
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ZANCANELA, Elaine. Belezas digitais: as representações do feminino e as
novas tecnologias da comunicação. Dissertação (Mestrado em Comunicação e
Cultura) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ), 2004.
239
WEB 2.0
Em busca da aura perdida: espetacularizar a
intimidade para ser alguém
Paula Sibilia*
Escolher a própria máscara é o primeiro
gesto voluntário humano, e é solitário.
Clarice Lispector
A coisa mais comum pode se
tornar deliciosa, basta ocultá-la.
Oscar Wilde
“Aparecer me faz feliz, não o faço por dinheiro”, conta uma adolescente
que publica suas fotos eróticas em um blog. “Ainda nem consigo acreditar
que os rapazes falam de mim”, confessa a mesma garota, emocionada, alu-
dindo aos comentários que recebe de seus espectadores na internet. “É como
ter fãs!”, resume, orgulhosa. “Passo o dia inteiro no computador do meu
quarto”, explica outra menina de 13 anos de idade. “Tenho 650 contatos no
MSN, com os quais converso o dia inteiro; além disso, tenho três fotologs
pessoais, onde publico minhas fotos e escrevo sobre minha vida”182. Apesar
182
Os jovens usuários de blogs e fotologs foram entrevistados no contexto de
uma matéria jornalística sobre o assunto. Cf. Tosi (2007).
*
Paula Sibilia é professora do Programa de Pós-graduação em Comunicação da
Universidade Federal Fluminense (UFF).
241
EM BUSCA DA AURA PERDIDA
da estranheza que ainda podem provocar esses costumes dos usuários mais
jovens da internet, de algum modo tudo isso está deixando de surpreender.
Já virou mais uma rotina da cultura contemporânea, e não se trata de algo
restrito aos cintilantes canais interativos da chamada Web 2.0.
Algo semelhante ocorre quando as emissoras de televisão de diversos
países colocam em cena uma nova edição de seus reality shows baseados
no modelo do programa Big Brother, por exemplo, como é o caso da TV
Globo no Brasil. Aquilo que, no início, podia espantar por sua insólita bi-
zarrice, como mostrou em 1998 o sucesso internacional do filme O show
de Truman, agora passou a fazer parte da paisagem habitual. A cada nova
temporada, despeja-se uma enxurrada de informações e imagens a respeito
de tudo o que acontece entre as paredes daquela casa infestada de câmeras
de vídeo, onde os protagonistas desse “espetáculo da realidade” mostram o
sonolento transcorrer de suas vidas. E, ao contrário do que ocorria naquele
drama protagonizado já faz uma longa década pelo desesperado Truman da
ficção cinematográfica, agora todos parecem muito interessados não ape-
nas em bisbilhotar as trivialidades do cotidiano alheio, mas também em se
mostrar nessas novas vitrines midiáticas.
Essas ânsias tão atuais de se exibir em todas as telas dão conta, portan-
to, de certo clima de época. “Muitos jovens não parecem ter instintos de
proteção da privacidade”, justificou um especialista ao avaliar os lucros
bilionários que o MySpace – um desses sites em que os adolescentes derra-
mam boa parte de suas vidas – prevê abocanhar com o envio de publicidade
direcionada para seus milhões de usuários do mundo inteiro183. O sistema
que estava sendo anunciado dessa forma visava orientar os anúncios de
diversas empresas em função dos dados supostamente privados dos partici-
pantes, porém ostensivamente divulgados por eles próprios em seus blogs,
perfis e conversas online. Todo um acervo de detalhes miúdos ou grandio-
sos que, em outros tempos, teriam sido avaliados como “íntimos” sem he-
183
Os depoimentos pertencem a Beth Givens, diretora de uma instituição cali-
forniana que se dedica à defesa dos direitos à privacidade. Trata-se de um dos
especialistas consultados pela agência de notícias Associated Press a respeito
do novo sistema de publicidade implementado pela mais importante rede social
da web.
242
WEB 2.0
sitação e, portanto, teriam permanecido resguardados no pequeno universo
secreto de cada um. Agora, porém, convertem-se em material publicamente
disponível e podem se capitalizar, também, no valioso combustível que
alimenta a voracidade consumista.
Da solidão do privado às vitrines midiáticas
Nesta época de condomínios fechados e pânico pela (in)segurança, é
curioso que esses jovens tão representativos do espírito da época pareçam
viver em casas de vidro, não por trás de cortinas de renda ou de veludo,
como constatava David Riesman em seu livro A multidão solitária. Claro
que esse autor não fazia referência aos adolescentes hiperconectados de
hoje em dia, mas àquela geração de norte-americanos das classes média e
alta que, em meados do século XX, se anunciava como algo completamen-
te novo. Publicado originalmente em 1950, o livro de Riesman é um estudo
sociológico sobre a “transformação do caráter” que teria ocorrido nesse
momento histórico, especialmente nos Estados Unidos. Uma mutação que
revelava um deslocamento dos eixos em torno dos quais cada sujeito edifica
o que ele é. Um deslizamento de “dentro” de si para “fora” daquela antiga
interioridade que se ocultava nas próprias entranhas. Ou, mais precisamen-
te, um deslocamento daquele núcleo do eu situado nas profundezas íntimas
do “caráter” individual em direção a tudo aquilo que os outros podem en-
xergar como sendo a “personalidade” do sujeito que se mostra. Por isso, o
pesquisador aludia ao iminente abandono de um modelo de subjetividade
introdirigida e ao surgimento de um novo tipo alterdirigido.
Essa segunda modalidade de auto-estilização não se assenta mais na-
quela densa base constituída pela própria “vida interior”, como costuma-
va ocorrer nas sociedades ocidentais ao longo do século XIX e no início
do XX. Em vez disso, o novo tipo de personalidade investe todas as suas
munições nas aparências, apostando todas as suas fichas nos efeitos que o
próprio aspecto físico pode provocar nos outros. Por que essa transforma-
ção se deslanchou na segunda metade do século passado? É claro que a
resposta à tamanha questão não poderia ser simples. No entanto, algumas
pistas se deixam vislumbrar: o modo de vida e os valores privilegiados pelo
capitalismo em auge teriam sido primordiais nessa transição, por exemplo,
243
EM BUSCA DA AURA PERDIDA
ao propiciar o desenvolvimento de habilidades de autopromoção em cada
indivíduo e suscitar um verdadeiro mercado aberto de personalidades, no
qual a imagem pessoal e a reputação da própria marca se tornaram o prin-
cipal valor de troca.
“Os americanos sempre procuraram uma opinião favorável”, explica
Riesman, “e sempre tiveram que procurá-la em um mercado instável, onde
as cotações do eu poderiam variar, sem a restrição de preços de um sistema
de castas ou de uma aristocracia” (Riesman, 1995, p.34). Porém, apesar
dessa tradição já cimentada pelo percurso nacional tão característico do
american way of life, foi somente em meados do século XX que ocorreu
essa genuína “redefinição do eu”. O novo rebento se caracteriza por ser,
acima de tudo, uma subjetividade que procura ser amada e desejada, que
busca desesperadamente a aprovação alheia e, para obtê-la, tenta tecer con-
tatos e relações íntimas com os outros. Não é casual que, sessenta anos
depois da enunciação dessa tese pelo sociólogo norte-americano, mais da
metade dos adolescentes daquele país possuam blogs e fotologs, além de
participarem intensamente das redes sociais da web. Pois nessas ferramen-
tas para a exposição de si e a sociabilidade mediada pelos computadores
interconectados não parecem vigorar as velhas inquietudes com relação à
defesa da própria privacidade – e nem a dos amigos, inimigos, parentes e
colegas que também costumam habitar todas essas confissões multimídia.
Em um aparente retorno aos modos de vida nas zonas rurais e peque-
nos vilarejos prévios à urbanização do Ocidente, nesta “aldeia global” do
século XXI é impossível preservar os segredos. Aqui, porém, o anonimato
pode ser útil para consumar certas estratégias individuais, mas a discrição
está longe de constituir um dos valores mais prezados. Ao contrário até:
nos cenários virtuais do ciberespaço, a mera possibilidade de passar des-
percebido pode constituir o pior dos pesadelos. Pois, independentemente
da quantidade de espectadores que de fato consigam recrutar, os adeptos
desses recursos da Web 2.0 costumam pensar que seu presunçoso eu tem
o direito de possuir uma audiência. À sedução desse público, dedicam-se
todos os dias com seus relatos, fotos e vídeos de tom intimista e cotidiano,
nos quais o protagonista exclusivo é sempre o mesmo: eu. Um sujeito que
é, simultaneamente, autor, narrador e personagem “principalíssimo” de to-
das as peripécias.
244
WEB 2.0
Nada disso deixa de fazer sentido, pois no império das subjetividades
alterdirigidas, tudo o que se é deve ser visto para poder realmente ser. Cada
um é tudo aquilo que mostra de si, e tão somente isso. Não por acaso, vários
estudiosos desses fenômenos contemporâneos de auto-exibição os analisam
recorrendo ao conceito de “capital social”, segundo o qual a popularidade
tão procurada nas áreas interativas da internet é definida como “uma forma
de capital e um valor em rede”. Nesse sentido, os blogs e fotologs pessoais
operariam como espaços para a “obtenção de um grande repositório de
capital social de apoio aos usuários” (Recuero, 2008, p.14). O mercado
das personalidades visíveis perde, assim, sua condição metafórica, e a web
se apresenta como uma estrutura das mais adequadas para hospedar essas
estratégias de autopromoção e as cotações voláteis de cada eu.
Ressoam, aqui, alguns ecos longínquos que valem a pena trazer à tona,
a fim de tentar compreender quais são os sentidos dessas novas práticas. Há
muito tempo, no outono de 1928, a escritora Virginia Woolf foi convidada
para ministrar uma série de conferências sobre a relação entre a mulher e
o romance. O convite partiu de duas instituições universitárias for ladies
– pois as outras, as boas, na época ainda eram restritas aos gentlemen. A
célebre ficcionista aproveitou a ocasião para tentar responder, longa e bela-
mente, a uma pergunta: por que as mulheres não tinham escrito, até então e
salvo pouquíssimas exceções, bons romances? Eis uma síntese da resposta:
porque não tinham um quarto próprio. Faltava-lhes um espaço privado:
uma habitação exclusiva para elas, onde teriam podido ficar a sós. Por isso,
se as dificuldades sempre foram grandes para todos aqueles que decidissem
criar uma obra literária, pelo menos até aquele momento tudo tinha sido
infinitamente mais complicado para as mulheres. Em primeiro lugar por-
que, para elas, “até o início do século XIX, ter um quarto próprio, para não
falar de um ambiente realmente tranquilo e sem barulho, era inconcebível”
(Woolf, 1993, p.72).
A resposta é justíssima, embora o diagnóstico não deixe de ser correto
também para a maioria dos homens, pelo menos até algum tempo antes
da data assinalada pela romancista inglesa. “No século XVI era raro que
alguém tivesse um quarto só para ele”, explica Witold Rybczynski, em seu
livro sobre a história da casa. Seria necessário aguardar mais de cem anos
ainda, até bem avançado o século XVII e iniciado o XVIII, para que come-
245
EM BUSCA DA AURA PERDIDA
çassem a aparecer “os ambientes nos quais era possível se retirar da visão
do público” (Rybczynski, 1991, p.29). Mas a noção de que tais quartos
deviam ser confortáveis e silenciosos só apareceria no século XVIII; pelo
menos para os homens mais afortunados. De todo modo, a defasagem alu-
dida por Virginia Woolf implicou uma enorme desvantagem para as damas,
pois o âmbito privado logo se impôs como um requisito fundamental para
que o eu do morador pudesse ficar à vontade e aflorar. Somente assim,
sozinha e a sós consigo mesma, a subjetividade moderna podia se expandir
sem reservas e se autoafirmar em sua individualidade.
Naqueles tempos em que a autora britânica erguia sua voz, tão inflama-
da como majestosa, esse espaço da privacidade já tinha assumido um papel
primordial. Era necessário dispor de um recinto próprio, separado do mun-
do público e da intromissão de outrem por sólidos muros e portas fechadas,
não apenas para poder se tornar uma boa escritora, mas também para poder
ser alguém. Para se tornar um sujeito, para ter condições de produzir a
própria subjetividade – que era um modo de ser, obviamente, introdirigido.
Além de constituir um requisito básico para o desenvolvimento do eu, o
ambiente privado também era a jurisdição onde transcorria a intimidade.
Nesses espaços se engendravam, em pleno auge da cultura burguesa, os
relatos de si: as cartas e os diários tradicionais, todas essas escritas íntimas
que proliferaram no século XIX e que deram vazão ao intenso furor de “de-
ciframento de si”, tomando conta não apenas dos homens, mas também das
mulheres e das crianças daquela época (Corbin & Perrot, 1991, p.162).
Para escrever esses textos confessionais e, nesse gesto, criar-se como
um eu que é, ao mesmo tempo, autor, narrador e personagem, era necessá-
rio estar a sós. Esses escritos demandavam, também, uma distância espacial
e temporal com relação ao destinatário das cartas e aos eventuais leitores
dos diários. Estes últimos, aliás, só tinham acesso aos textos após a morte
do autor, caso este fosse alguém excepcional, capaz de despertar o interesse
póstumo dos possíveis leitores. As atuais versões cibernéticas dessas escri-
tas de si, por sua vez – tais como os blogs e fotologs –, também costumam
ser práticas solitárias, embora seu estatuto seja bem mais ambíguo porque
se instalam no limiar da publicidade total. A tela de nossos computadores
não é tão sólida e opaca como os muros dos antigos quartos próprios. Além
disso, a distância espacial e temporal com relação aos leitores tem enco-
246
WEB 2.0
lhido sensivelmente: agora tudo acontece na vertigem do tempo real, que é
simultâneo e igualmente veloz para todos.
Por tudo isso, a fim de tentar compreender os sentidos dessas mutações,
é preciso considerar que a separação entre o âmbito público e o domínio
privado da existência é uma invenção histórica e datada; uma convenção
que em outras culturas não existe e, entre nós, é bastante recente. A esfe-
ra da privacidade só ganhou consistência na Europa dos séculos XVIII e
XIX, ecoando o desenvolvimento das sociedades industriais modernas e
do modo de vida urbano. Foi precisamente nessa época que começou a ser
construído, entre quatro paredes, um espaço que pudesse servir de refúgio
para o indivíduo, fornecendo aos novos sujeitos aquilo que tanto almeja-
vam: um território a salvo das exigências e perigos do ambiente público
das ruas. Todo esse aconchego estava ausente das habitações medievais,
com suas moradias nas quais todos compartilhavam quase tudo. Entre os
estímulos para fundar essa cisão público-privado e para a gradativa expan-
são desta última esfera em demérito da primeira, figuram vários fatores: a
instituição da família nuclear burguesa, a separação entre o espaço-tempo
do trabalho e o da vida cotidiana, além dos novos ideais de conforto, do-
mesticidade e intimidade. É significativo que, hoje, quase tudo isso esteja
em crise – e, provavelmente, também em mutação –, como insinuam tanto
a casa escancarada do programa Big Brother quanto os recantos do ciberes-
paço nos quais os jovens costumam mergulhar e se exibir.
Naqueles tempos remotos, porém, foi um desses fatores – a paulatina
aparição de um mundo interno em cada indivíduo – o detonante para que
o lar se tornasse um lugar adequado ao acolhimento dessa vida interior,
que já brotava com todo o vigor e que logo iria florescer. Assim, as casas
foram se tornando lugares privados e logo se definiram funções específicas
e fixas para os diversos cômodos, aparecendo inclusive um quarto mais
íntimo para atividades consideradas privadas, como a escrita e a leitura.
Esses recintos não se destinavam apenas ao prazer solitário de se debruçar
nos romances e nas ficções literárias, mas também à escrita e à leitura de
cartas e diários. De preferência, esse aposento gloriosamente individual
estaria situado no coração de uma confortável casa burguesa, mas sua es-
sência não mudaria se fosse um pequeno quarto alugado em uma pensão
qualquer. Como frisara Virginia Woolf, o importante era que se tratasse de
247
EM BUSCA DA AURA PERDIDA
“um alojamento independente, por miserável que ele for”, pois somente
nesse cubículo fechado e isolado do mundo exterior, seu morador poderia
ficar à vontade, a salvo não apenas do barulho das ruas, mas também “das
cobranças e tiranias de suas famílias” (Woolf, 1993, p.72). Somente nessas
condições, esse sujeito absolutamente moderno poderia se concentrar em
sua obra – caso se tratasse de um escritor ou uma escritora – e, sobretudo,
em seu eu finamente introdirigido.
Assim, em contraposição ao protocolo hostil da vida pública, o lar foi
se transformando no território da autenticidade e da verdade: um refúgio
onde o eu se sentia seguro, um abrigo onde era permitido ser si mesmo.
A solidão, que na Idade Média tinha sido um estado raro e não necessa-
riamente apetecível, nesse novo contexto se converteu em um verdadeiro
objeto de desejo. Pois apenas entre essas paredes consideradas próprias
era possível desdobrar um conjunto de prazeres até então inéditos e agora
vitais, ao resguardo dos olhares intrusos e sob o império austero do decoro
burguês. Somente ali era possível desfrutar do deleite – e do labor – de estar
consigo mesmo. Foi assim como se configuraram, no despontar da Moder-
nidade, dois âmbitos claramente delimitados: o espaço público e o privado,
cada um com suas funções, regras e rituais que deviam ser prudentemente
respeitados. E foi também assim como germinou um tipo de subjetividade
particular, dotada de um atributo muito especial: interioridade psicológica.
Nesse cerne vagamente localizado nas próprias profundezas, fermenta-
vam pensamentos e sentimentos privados. Esse repertório afetivo merecia
todos os cuidados: devia ser cultivado, sondado e enriquecido constante-
mente. É por isso que alguns autores se referem a essa criatura como homo
psychologicus. Um tipo de sujeito que, como afirma o psicanalista Benilton
Bezerra, “aprendeu a organizar sua experiência em torno de um eixo situ-
ado no centro de sua vida interior” (Bezerra, 2002, p.232). Eis o caráter
introdirigido, cuja transformação e consequente eclipse analisara David
Riesman: um tipo de subjetividade voltada para dentro de si e que, portan-
to, precisava se abrigar por trás de cortinas de renda ou de veludo, longe
da indiscrição das janelas de vidro e dos orifícios das fechaduras, para não
mencionar as câmeras de televisão ou mesmo as mais modestas webcams
que, algumas décadas depois, começariam a se popularizar. Tudo isso con-
firma, justamente, que esse tipo de auto-estilização está ficando obsoleta.
248
WEB 2.0
Hoje, nas telas da TV ou na internet, pessoas desconhecidas costumam
acompanhar, com fruição o relato minucioso de uma vida qualquer, com
todas as suas ocorrências registradas e exibidas o tempo todo. Eis “a vida
como ela é”, irradiando todo o seu fascínio e toda a sua irrelevância.
Mas o que está ocorrendo é paradoxal, ou tem pelo menos duas fa-
ces. Por um lado, continua vigente a zelosa preservação de certos dados
pessoais sob senhas e cadeados contra possíveis invasões da privacidade
– especialmente, as informações bancárias e comerciais. Por outro lado,
promove-se uma verdadeira evasão da privacidade em campos que outrora
concerniam à pudica intimidade pessoal. É nesse sentido que o romancista
Jonathan Franzen (2003) ou o sociólogo Richard Sennett (1999) clamam
pela defesa do acuado espaço público na atualidade, pois a intimidade se
evadiu do espaço privado e passou a invadir aquele universo que outrora se
considerava público. Quanto aos supostos perigos da invasão, que se apre-
sentam nas mídias como o risco iminente de se ter “a identidade roubada”,
por exemplo, o mais habitual é que se refiram apenas aos dados financeiros
de cada um. Bem diferente é a evasão da intimidade, ou seja, a própria
exposição voluntária na visibilidade das telas globais. Nesse caso, o que
se busca é outra coisa: mostrar-se abertamente e sem remorsos, a fim de
constituir um eu visível.
Portanto, as tendências de exibição da intimidade e de espetacularização
da vida cotidiana, que hoje proliferam por toda parte, não parecem denotar
qualquer receio pelo temor a uma irrupção indevida na privacidade de cada
um. Em vez disso, as novas práticas dão conta de um desejo de extravasar
a própria intimidade, um anseio de se exibir e falar de si para que todo o
mundo veja. Uma vontade de forçar os limites do velho espaço privado
para mostrar o que se é, para tornar público e visível esse eu supostamente
íntimo. Nesse gesto, a nova legião de “confidentes” e “confessandos” que
preenchem todas as telas promete satisfazer outra vontade bastante estendi-
da na contemporaneidade: a avidez de bisbilhotar e consumir vidas alheias
(Foucault, 1980, p.59).
Por todos esses motivos, os muros que costumavam proteger a priva-
cidade individual estão sofrendo sérias rachaduras. As paredes daqueles
lares burgueses e dos quartos próprios que agasalhavam o delicado eu do
homo psychologicus ou do homo privatus da era burguesa, hoje, parecem
249
EM BUSCA DA AURA PERDIDA
estar desabando. Aqueles muros outrora sólidos, opacos e intransponíveis
subitamente se tornam translúcidos. A função das velhas paredes do lar
consistia, precisamente, em extrair o máximo proveito dessas caracterís-
ticas: eram maciças porque deviam servir como um casulo para ocultar
seu morador da intromissão alheia. Esses muros, porém, agora se deixam
infiltrar por olhares tecnicamente mediados ou midiatizados, que flexibili-
zam e alargam os limites do que se pode dizer e mostrar. Das webcams aos
paparazzi; dos blogs e fotologs aos ainda mais novos nano-blogs, como
Twitter, Pownce ou Jaiku; dos vídeos caseiros que inundam o YouTube e
outros sites do gênero às conversas escancaradas nas redes sociais, como
Orkut, MySpace ou FaceBook; das câmeras de segurança que pontilham
prédios e ruas aos reality shows e talk shows da televisão.
A velha intimidade se transformou em outra coisa, e agora está à vista
de todos. Por isso, para ilustrar essa mutação, não é necessário recorrer ao
exemplo gritante daquela casa cravejada de câmeras que há vários anos faz
sucesso nos televisores do mundo inteiro. Embora se trate de um simulacro
do típico lar burguês, os muros da casa do Big Brother são transparentes, e
tudo quanto ocorre dentro deles é testemunhado por milhões de pessoas que
assistem à televisão em seus quartos próprios. Apesar de ter menos ibope,
uma minúscula webcam caseira desenvolve idêntico papel: abre uma janela
virtual no aconchego do lar e mostra, a quem quiser dar uma olhada, tudo o
que ali acontece – e também tudo o que, de fato, não acontece. Algo que, sem
dúvida, teria horrorizado Virginia Woolf, que, há exatas oito décadas, defen-
dia ardorosamente o direito à privacidade para as damas modernas.
Ser, ter ou parecer?
O que resta, então, nesse novo quadro, daquele homo psychologicus
com seu caráter secretamente introdirigido? Em que se converteu o velho
homo privatus? Nos primórdios do século XXI, pelo visto, esses persona-
gens transmutaram no brother e na sister da televisão, aquelas celebridades
visíveis do “espetáculo da realidade” que todos queremos ver e ser. Ou,
pelo menos, parecer – e, sobretudo, aparecer. Um antigo chavão diz que “as
aparências enganam”; será uma verdade ainda válida? Após as turbulências
atravessadas pelas sociedades ocidentais nos últimos anos – e, muito espe-
250
WEB 2.0
cialmente, na última década –, vale a pena colocar em questão a atualidade
desse clichê. Afinal, já faz mais de quarenta anos que Guy Debord deu a co-
nhecer sua obra intitulada A sociedade do espetáculo, um longo manifesto
acompanhado por um filme homônimo, dois dignos frutos da revolta con-
tracultural que culminaria nas insurreições parisienses em maio de 1968.
Uma das teses mais famosas desse livro afirma que a primeira fase da
“dominação da economia sobre a vida social” entranhou, na definição de
toda realização humana, “uma evidente degradação do ser em ter” (Debord,
1995, p.17). No capitalismo do século XIX e início do XX, a capacidade de
acumular bens e o fato de possuir determinados pertences podiam definir o
que cada um era. De algum modo, todos aqueles objetos que acolchoavam
a privacidade individual no auge da era burguesa davam conta de uma certa
essência do seu dono: falavam de quem ele era. Agora, porém, no atual es-
tágio de “colonização total da vida social pelos resultados acumulados da
economia”, na sociedade do espetáculo, enfim, ocorre “um deslizamento
geral do ter em parecer”. É precisamente desse parecer, dessas aparências
e dessa visibilidade que “todo real ter deve extrair seu prestígio imediato e
sua função última”, concluía Debord (1995, p.17). Em outras palavras: se
não for para mostrá-lo, se não aparecer à vista de todos e se os outros não o
enxergarem, então de pouco serve ter seja lá o que for.
Assim, curiosamente, ainda no modo de produção e consumo capitalista
em que continuamos imersos, o conceito de propriedade chega a perder boa
parte de sua antiga nitidez. Nos compassos de todas as outras transformações
que estão em andamento, essa noção também se metamorfoseia em proveito
de formas mais flexíveis de apropriação e acesso a experiências, sensações
e universos exclusivos. E essas novas regras do jogo desenham, justamente,
o instável território das aparências. “A propriedade é uma instituição lenta
demais para se ajustar à nova velocidade da nossa cultura” – assevera o
economista Jeremy Rifkin em seu livro intitulado A era do acesso –, pois se
baseia na ideia de que possuir um ativo físico durante um longo período de
tempo é algo valioso (Rifkin, 2001, p.5). Entretanto, em uma economia na
qual as mudanças são a única constante, em uma sociedade na qual mudar
se tornou uma obrigação permanente, verbos como ter, guardar e acumular
perdem seus antigos sentidos – ou, pelo menos, sua carga valorativa diminui
face a outras modalidades de relacionamento com os objetos e sujeitos.
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EM BUSCA DA AURA PERDIDA
Enquanto os indivíduos contemporâneos parecem se livrar, enfim, do
pesado vínculo de propriedade com relação a todos aqueles objetos empo-
eirados que envelheciam em suas casas sem nunca expirar, outros verbos
se valorizam hoje em dia, tais como parecer e acessar. E também outros
substantivos, que, de repente, passam a ocupar o centro da cena: as aparên-
cias, a visibilidade e a celebridade. Walter Benjamin já apontara o germe
desses processos na longínqua década de 1930, ao detectar a emergência de
uma novidade que julgou significativa: as casas de vidro. Completamente
diferentes de tudo o que se conhecia até então em matéria arquitetônica, os
novos prédios construídos pelas vanguardas modernistas prescindiam de
qualquer ornamento. Eram montagens de superfícies planas e geométricas:
uma síntese precisa de peças ajustáveis, que celebravam tanto a praticidade
da máquina como a economia da produção industrial.
Mas o que implicava tamanha inovação? O vidro é um material não
apenas transparente, mas também duro e liso, no qual nada se fixa. Junto
com o frio do aço, o vidro criava ambientes nos quais era difícil deixar
rastros. Nada mais oposto às necessidades e aos sonhos abrigados na típica
casa burguesa do século XIX, por exemplo, onde a subjetividade do mo-
rador podia repousar à vontade. Naqueles ambientes remotos onde o eu se
sentia protegido pelas paredes do lar, os sujeitos se permitiam transbordar a
sua delicada interioridade para plasmá-la nos objetos cotidianos. Pois essa
tarefa de deixar rastros e preencher todo o espaço com os próprios vestí-
gios fazia parte das regras implícitas daquele universo. Algo certamente
inviável, porém, em uma casa de vidro como as que surgiram em meados
do século XX.
E hoje, o que acontece? Cabe lembrar que as telas que, cada vez mais,
habitamos, também são de vidro. “As coisas de vidro não têm nenhuma
aura”, constatava, há quase um século, o filósofo alemão: “O vidro é, em
geral, inimigo do mistério” (Benjamin, 1994, p.115). Hoje sabemos que
a transparência lisa e brilhosa da tela de um monitor conectado à internet
pode ser ainda mais inimiga dos segredos, mais loquaz e indiscreta que
qualquer janela modernista. Nada mais afastado, portanto, daqueles espa-
ços recobertos de veludo e rendas que eram os clássicos lares do século
XIX, aqueles ambientes carregados de mobília, tapetes e bibelôs nos quais
os sujeitos modernos recriavam sua intimidade. Benjamin evoca, inclusi-
252
WEB 2.0
ve, a “indignação grotesca” do morador desse tipo de lugares quando, por
acaso, se quebrava algum daqueles preciosos objetos colecionados nas inú-
meras prateleiras. Esse desespero era a reação típica de alguém que via seus
bens mais familiares se estilhaçarem, alguém “cujos vestígios sobre a terra
estavam sendo abolidos” (Benjamin, 1994, p.118).
Já em um mundo de pura transparência e visibilidade total, como aquele
com o qual se atreviam a sonhar os arquitetos modernistas, a opacidade era
um problema a ser eliminado. Causava certo mal-estar tanto a espessura
das paredes quanto a densidade dos infinitos ornamentos do salão burguês.
Mas talvez o que mais incomodava mesmo era a opacidade enigmática do
seu morador: aquele tipo de sujeito que protagonizou o século XIX e cujo
reino era o espaço íntimo do lar – precisamente, o homo psychologicus ou o
homo privatus que ainda expandia suas dobras em pleno século XX.
Em 1975, por exemplo, várias décadas depois dessas primeiras ameaças
ao império da velha privacidade burguesa, Andy Warhol (1998, p.155) dis-
parou a seguinte bomba: “Deveríamos viver em um grande espaço vazio”.
Para isso, o ícone da arte pop recomendava, justamente, as enormes vanta-
gens de se livrar de todos os pertences: deixar de ter para poder ser. “Você
deveria comprar uma caixa a cada mês, enfiar tudo lá dentro e, no final do
período, fechá-la”. Após colar uma etiqueta com a data nessa embalagem
de papelão, o conselho era enviá-la para Nova York e tentar acompanhar
seu rumo. “Porém, se você não conseguir e a caixa se perder, não importa,
porque é algo a menos no que pensar: você elimina outro peso da sua men-
te” (Warhol, 1998, p.155). Inspirado no costume japonês de “enrolar tudo e
guardá-lo em armários”, Warhol (1988, p.155) afirmava que mais adequa-
do ainda seria prescindir inclusive da hipocrisia dos armários. Tudo o que
costumamos possuir em casa “deveria ter uma data de validade, como o
leite, o pão, as revistas e os jornais, e uma vez ultrapassada essa data, você
deveria jogar tudo fora” (Warhol, 1998, p.155). O próprio artista confessou
fazer isso a cada mês com seus objetos. E, como detestava a nostalgia, de
fato esperava que se perdessem todas essas caixas, “para não ter que voltar
a vê-las jamais” (Warhol, 1998, p.155).
Vale imaginar, diante do tom provocador dessas frases, o semblante atô-
nito e a indignação daqueles personagens oitocentistas evocados por Walter
Benjamin em seus salões cheios de bibelôs: uma profusão de objetos pes-
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EM BUSCA DA AURA PERDIDA
soais cuja fragilidade era preciso preservar eternamente para continuar a
ser quem se era. Alguns anos depois, ainda na década de 1980 e no início
dos 90 – épocas de abundância no consumo desenfreado e desejos de dis-
tinção blasé –, ganhou um ar chique esse desapego do qual Andy Warhol
debochara. Nascia, assim, junto com os lofts pós-modernistas e as recicla-
gens arquitetônicas, uma extravagância do luxo: o minimalismo. Espécie
de anorexia da decoração, esse estilo gera ambientes vazios, claros e muito
limpos, dos quais exala uma pureza inumana. Nesses espaços, não há, e
nem pode haver, vestígio algum. Por isso, eles parecem consumar o sonho
impossível das casas de vidro modernistas – pelo menos na atitude e no
estilo, pois esses ambientes do final do século XX nasceram esvaziados da
ideologia antiburguesa que vinha aderida àqueles outros recintos bem mais
sisudos que tinham sido criados várias décadas antes.
Nas versões mais atuais, toda a ênfase é colocada no efeito visual de
cenário clean, como relata o historiador da arquitetura Witold Rybczynski
ao descrever os interiores impecáveis das revistas de decoração contempo-
râneas: palcos imaculados nos quais “elimina-se laboriosamente todo ves-
tígio de que são habitados por seres humanos” (Rybczynski, 1991, p.202).
Nesses ambientes minimalistas, que brilharam no ocaso do século XX e ain-
da deslumbram com sua luminosidade inerte, todos os pertences pessoais
passam a ser inservíveis e, por isso, devem ser escondidos em armários dis-
simulados nas paredes brancas – recriando aquela hipocrisia japonesa des-
prezada por Andy Warhol. Embora possa resultar pouco confortável viver
nessa severa perfeição tão cuidadosamente ensaiada, parece valer a pena
fazê-lo em nome de um estilo de vida tão refinado – ou, pelo menos, que
assim pareça.
Seguindo essa tendência, uma das imagens do luxo extremo no que
tange às “máquinas para viver” mais desejáveis, ainda hoje em dia, seria
um grande apartamento vazio localizado em um andar impossivelmente
alto, com enormes janelas que dão para o nada: vidros transparentes e lim-
píssimos, porém sempre hermeticamente fechados. Tudo é translúcido nes-
ses espaços, salvo o teto e o piso, rigorosamente pintados do branco mais
branco. Em geral, trata-se de um só ambiente indevassável, pulcramente
iluminado e climatizado, cujos únicos habitantes são uma multidão de telas
gigantescas, cada vez maiores e mais planas, nas quais é possível ver tudo,
254
WEB 2.0
fazer tudo, mostrar tudo: ter acesso a tudo. Porém, nesse requinte que inti-
mida e acusa ao mesmo tempo, não surpreende que tudo deva desaparecer.
Pois não é apenas a sufocante acumulação de ornamentos o que se suprime
nesses novos lares – aqueles móveis recarregados, a profusão de adornos e
os tapetes bordados que atolavam os lares burgueses. Também devem de-
saparecer todos os indícios de descuido e fragilidade humana, como afirma
Rybczynski ao concluir seu longo passeio pela história da casa.
Para completar esse quadro e a fim de melhor compreender esses sutis
deslizamentos do ser no ter e do ter no parecer, cabe mencionar ainda
outro elo dessa trajetória. Trata-se da mostra de uma série de projetos de
moradias apresentados em uma exposição no Museu de Arte Moderna de
Nova York, em 1999, significativamente intitulada The Un-private House.
Essas novíssimas casas não-privadas usam e abusam da transparência do
vidro, tanto nas paredes como na onipresença de telas digitais que reprodu-
zem uma paisagem ou transmitem informações sem cessar, que facilitam
o encontro com visitantes virtuais ou permitem se auto-observar de todos
os ângulos possíveis. De acordo com o curador dessa exposição, Terence
Riley, hoje a casa tende a se tornar “uma estrutura permeável, apta a rece-
ber e transmitir imagens, sons, textos e informação em geral” (Riley, 1999,
p.XX). Por isso, o lar contemporâneo deveria ser tratado como “uma exten-
são dos eventos urbanos e como uma pausa momentânea na transferência
digital de informação” (Ferraz, 2001, p.29-43).
Essa reformulação do espaço doméstico evidencia um radical distan-
ciamento daquela vida privada de outrora, que transcorria sob a cautelosa
discrição de quatro paredes opacas. Benjamin lembra que, no típico am-
biente burguês de finais do século XIX, não havia “um único ponto em
que seu habitante não tivesse deixado seus vestígios” (Benjamin, 1994,
p.118). Eram espaços saturados do eu do morador, cheios de marcas da
sua história e da sua interioridade laboriosamente exteriorizada, tudo
aflorando em objetos que se guardavam deste lado das portas fechadas
à rua. Um dos últimos estágios dessa profunda transformação já entre-
vista pelo filósofo alemão nos anos trinta, e abertamente denunciada há
quatro décadas por Guy Debord, porém, talvez possa ser ilustrado com
o sucesso recente de outro novo gênero midiático: os reality shows de
transformação.
255
EM BUSCA DA AURA PERDIDA
Como compreender o fascínio suscitado por esses programas de televi-
são, nos quais alterações radicais são efetuadas não apenas no aspecto físi-
co, mas também nos ambientes em que os voluntários moram? O programa
Queer eye for the straight guy, por exemplo, acompanha cinco especialistas
em suas tarefas de transformação de uma casa e seu proprietário. Cada um
desses transformadores é responsável por um segmento da vida do sujeito
a ser reformado: aparência, gastronomia e vinhos, moda, cultura e decora-
ção de interiores. E os cinco peritos “estão sempre correndo, literalmente,
como se estivessem participando de uma gincana”, aponta Ilana Feldman
em um ensaio sobre esse gênero televisivo. “Entram nas casas apressados e
ansiosos, colocando abaixo o que puderem – mobiliário, objetos pessoais,
guarda-roupa –, enquanto fazem uso de seu repertório de comentários feri-
nos, por vezes cruéis” (Feldman, 2004, p.2).
Se em alguma dessas residências houver, por acaso, bibelôs e cortina-
dos de veludo, sem dúvida serão rapidamente descartados com a oportuna
“indignação grotesca” por parte dos agitados profissionais da transforma-
ção. Porém, nesse caso, contrariamente ao que teria ocorrido com aquele
burguês de final do século XIX evocado por Benjamin, o proprietário não
afundará no desespero ao ver os cacos de seus prezados objetos sumindo
na lixeira. Em vez disso, poderá até mostrar um sorriso de aprovação e um
arroubo da futura felicidade ao constatar que os vestígios do que ele foi são
abolidos ou deletados nesse gesto extremo. Porque o final desses progra-
mas de televisão é sempre feliz: os participantes agradecem pela nova vida
que lhes foi concedida junto com a mudança do visual pessoal e ambiental.
Em todos os casos, propõem-se a esquecer quem foram para recomeçar do
zero, em uma nova casa e com outra aparência física.
Construir para si uma aura de vidro
Dir-se-ia que os participantes desses programas de TV emergem “li-
berados” dessas mutações: liberados de quem foram até então, após terem
se desvencilhado de seus antigos pertences e após terem trocado sua velha
subjetividade-lixo por uma reluzente subjetividade-luxo, como diria Sue-
ly Rolnik (2007). Livres, enfim, das aflições infringidas por suas antigas
formas corporais e por aqueles ambientes nos quais até então moravam,
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WEB 2.0
cujas paredes os pressionavam, obrigando-os a adquirir o máximo possível
de hábitos, como também desconfiara Benjamin. Porém, cabe perguntar:
liberados do encarceramento de seus velhos objetos e de tudo o que foram
até então para devir o quê? Para fazer coincidir perfeitamente seu ser com
seu parecer, poderia responder Guy Debord. Para celebrar o triunfo das
reluzentes aparências, que, no império da visibilidade e da celebridade, se
comprazem em devorar as antiquadas essências.
Não surpreende, portanto, que os lares estejam perdendo sua velha fun-
ção de refúgio privado para proteger a intimidade, como espaços saturados
de uma miríade de objetos significantes que se amarravam às mais pro-
fundas raízes de cada eu. Aos poucos, liberadas das tiranias implícitas na
estabilidade do ter, nossas casas se convertem em belos palcos nos quais
se realizam todas as fantasias do parecer. De preferência, tratar-se-á de
um décor mutante ou pelo menos mutável, muito adequado para servir de
cenário às nossas intimidades visíveis que sonham com transcorrer como
belos filmes de não-ficção.
Somente nesse contexto é possível entender o seguinte relato a propó-
sito de uma das casas não-privadas expostas na mostra arquitetônica do
MoMA. Um dos jovens proprietários comentou que, por ocasião da primei-
ra visita de seus pais, precisou lhes explicar que em sua nova casa não havia
uma série de quartos, mas apenas um conjunto de “situações”. Se os lares
são dispositivos que operam como efeitos de determinado modo de vida,
mas também funcionam como instrumentos para a produção de certo tipo
de subjetividades, cabe sondar quais são as modalidades do eu e as formas
de sociabilidade que tendem a se constituir nesses novos ambientes. Espa-
ços que continuam a acolher a privacidade individual, porém abandonaram
a velha lógica do quarto próprio – e, junto com ela, foi-se também boa
parte das tiranias associadas ao verbo ter – para subscrever às novas regras
do parecer. Tornam-se, assim, palcos translúcidos e abertos aos olhares
alheios, onde é possível colocar em cena o precioso jogo das aparências.
Chama a atenção, contudo, neste contexto em que a solidez das anti-
gas essências interiores parece definitivamente perdida, a repetida alusão à
autenticidade como uma característica considerada valiosa para as subjeti-
vidades contemporâneas. Isso não ocorre apenas nas vitrines interativas da
Web 2.0, mas também nos reality shows, nos quais esse atributo se apresen-
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EM BUSCA DA AURA PERDIDA
ta como um ingrediente dos mais prezados na própria constituição subjeti-
va. A autenticidade se impõe como um fator imprescindível para conquistar
o público e acumular, assim, o tão cobiçado “capital social”, e também
como um requisito para vencer o jogo em que esses programas de televisão
se baseiam. Casualmente, porém, trata-se de um dos termos a que Walter
Benjamin recorreu em seu célebre ensaio de 1935, com o intuito de definir
o que seria a “aura”, aquela singularidade do aqui e agora que tornava única
a obra de arte original e a dotava de qualidades próximas do sagrado. Essa
autenticidade, porém, teria agonizado com o desenvolvimento da reprodu-
tibilidade técnica aplicada aos objetos artísticos.
Se a extrapolação for tolerável, seria possível acrescentar que a autenti-
cidade pessoal também teria expirado com o desvanecimento da interiori-
dade psicológica que tornava cada sujeito moderno intrinsecamente único.
Assim, a aura pessoal também teria se apagado com a proliferação de có-
pias, simulacros e falsificações de subjetividades descartáveis na sociedade
do espetáculo, um regime capaz de produzir personalidades alterdirigidas,
instáveis, flexíveis e mutantes. Daí a ansiedade atual por recompor de al-
gum modo essa aura perdida, uma vontade de se apropriar de qualquer
coisa que pareça aparentada com aquela auréola de unicidade tão difícil de
conseguir hoje em dia. E daí também o deslocamento da aura, que aban-
donou a obra de arte, mas agora é procurada, com crescente insistência, na
figura estilizada do artista ou de “qualquer um”.
Nesse novo quadro, o corpo e os modos de ser constituem superfícies
lisas nas quais todos os sujeitos devem exercer suas artes de criação de si
para poderem se transformar em um personagem o mais aurático possí-
vel. Alguém capaz de atrair os olhares alheios e, com isso, valorizar sua
imagem e posicionar a marca do seu eu no competitivo mercado das apa-
rências. Por isso, é necessário ficcionalizar o que se é, como se cada um
estivesse sendo constantemente filmado: essas operações são cada vez mais
necessárias para poder realizar o próprio eu, para conceder realidade ao
que se é. Pois as subjetividades alterdirigidas de hoje em dia só parecem
se tornar reais quando são emolduradas pelo halo luminoso de uma tela de
cinema ou de televisão, como se vivessem dentro de um reality show ou
nas páginas multicoloridas de uma revista de celebridades, ou como se a
vida transcorresse sob a lente incansável de uma webcam. É assim como
258
WEB 2.0
se encena, todos os dias, o show do eu. Fazendo da própria intimidade um
espetáculo e convertendo a própria personalidade em uma criatura orien-
tada aos olhares dos outros – como se estes constituíssem a audiência de
um espetáculo capaz de legitimar que o protagonista desse show, de fato,
existe e é alguém.
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Cérebro, corpo e subjetividade
na tecnocultura contemporânea
Maria Cristina Franco Ferraz*
Pensem naquilo que poderia ter dito o príncipe Ha-
mlet, se ele tivesse podido
contemplar suas próprias três libras de cérebro
agitadas por pensamentos confusos, em vez do
crânio vazio que lhe estendeu o coveiro.
António Damásio
O uso de uma perspectiva exclusivamente
naturalista consiste seja em colocar no mesmo
plano o ser considerado a partir de seu corpo
(neste caso, o cérebro) e o ser considerado
como um ser pensante e atuante, seja em fazer do
segundo a consequência do primeiro.
Alain Ehrenberg
Cultura somática e tecnologias
No século XXI, assistimos a uma progressiva alteração nos modos de
pensar e experienciar o corpo e a subjetividade. O modo de subjetivação
centrado na configuração psicológica do “eu” vai sendo paulatinamente
parasitado (e, no limite, substituído) por um amplo processo de somatiza-
∗
Professora titular do Instituto de Artes e Comunicação da Universidade Federal
Fluminense (IACS/UFF) e pesquisadora do CNPq.
261
CÉREBRO, CORPO E SUBJETIVIDADE NA TECNOCULTURA CONTEMPORÂNEA
ção do “eu”. No âmbito desse debate, Nikolas Rose propôs o conceito de
“individualidade somática” (Rose, 2006, p.481), remetendo a uma forma
de subjetivação intimamente vinculada à expansão do campo das ciências
(em especial, as neurociências e as pesquisas em genética) na cultura con-
temporânea. Individualidades somáticas ou “bioidentidades” (Ortega, 2008)
referem o que se é ao que se expõe visivelmente, à imagem de si, aos no-
vos modelos de autodefinição e descrição pautados em critérios corporais de
base científica. Tais modelos tendem a privilegiar três vetores que, a partir
de pesquisas científicas, têm se disseminado nas últimas décadas na cultura
de entretenimento e nos mídia: cérebro, hormônios (moduladores de ativida-
des neuronais) e genes. Nos limites deste artigo, detenhamo-nos, sobretudo,
na difusão cultural de dois desses aspectos: a inflexão cerebral atribuída a
complexos fenômenos humanos (tais como memória e esquecimento) e a
determinação do que somos (ou seremos) a partir do código genético.
O vínculo desse tema da cultura somática com tecnologias informacio-
nais e comunicacionais revela-se bastante pregnante, caso não se proceda,
como frequentemente, a uma autonomização das máquinas com relação a
movimentos culturais historicamente determinados. No caso aqui privile-
giado, ressalte-se de que modo o cérebro e a computação são entendidos um
pelo outro e remetidos um ao outro. Não por conta de um mero nexo causal
extrínseco, mas em função de aproximações em mão dupla – por adjacência
histórica (Crary, 2000, p.61) – entre o funcionamento cerebral e o cibernéti-
co. A analogia cérebro-computação é marcada pelo privilégio concedido ao
conceito de informação. Metodologicamente, nosso gesto supõe, portanto, o
estabelecimento de “conexões transversais” (Crary, 2000, p.9) entre tecnolo-
gias, a forma-sujeito e o modo de viver e de habitar o corpo.
Se no século XIX o sistema nervoso central foi entendido por uma analo-
gia frequente com o telégrafo, e este associado àquele (Otis, 2001), o funcio-
namento do cérebro é atualmente entendido por analogia com as máquinas
computacionais e vice-versa. Por outro lado, as neurociências baseiam suas
pesquisas empíricas em tecnologias de imageamento cerebral (ressonâncias
magnéticas nucleares, petscans, tomografias computadorizadas), que passa-
ram a viabilizar o acesso visível a nosso órgão mais intrigante e misterioso.
Não esqueçamos que o cérebro, oculto na caixa craniana, permaneceu invi-
sível ao raio X e que só se tornava acessível através de anatomias (logo, não
262
WEB 2.0
em pleno funcionamento). As neuroimagens, supostamente aptas a revelar os
enigmas do cérebro, apoiam a crença em um novo “self objetivo” (Ehrenberg,
2004). Eis o que afirma o neurocientista Ivan Izquierdo, autor de inúmeros
livros de vulgarização científica de ampla disseminação midiática:
Um passo adiante na determinação das áreas envolvidas nas memórias
foi dado pelas modernas técnicas de imagens, das quais a mais usada
hoje é a ressonância magnética nuclear. Essas técnicas medem indi-
retamente a ativação metabólica de uma ou outra região do cérebro...
(Izquierdo, 2002, p.41)
No caso da genética, a vida passa a ser equacionada em termos de infor-
mação, aplicando-se a noção de “código”, remetida aos estudos modernos
de linguística. No caso das pesquisas sobre memória, entendida por ana-
logia com a computação, a noção de código também comparece, aliada à
ideia de informação estocada e armazenada. Conforme explica Izquierdo
(2002, p.16-17, ênfase minha), “(t)alvez seja sensato reservar o uso da pa-
lavra ‘Memória’ para designar a capacidade geral do cérebro e dos outros
sistemas para adquirir, guardar e lembrar informações (...) o cérebro con-
verte a realidade em códigos e a evoca por meio de códigos”.
A fim de investigar essa densa temática, serão aqui privilegiados dois
produtos culturais recentes: no caso da associação cérebro-computação, no
âmbito da problematização acerca dos fenômenos da memória e do esque-
cimento, o filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, de 2004; e
no caso do código genético, do cérebro e de seus moduladores bioquími-
cos, o romance Sábado, de Ian McEwan, de 2005. Veremos então de que
modo ambos se inserem na cultura somática, há algumas décadas em ampla
disseminação (também midiática).
Lembrar/salvar; esquecer/deletar
Dirigido por Michel Gondry, bem-sucedido criador de comerciais e de
videoclipes, e escrito por Charlie Kaufman, ganhador de um Oscar por esse
trabalho, o filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças (Eternal
sunshine of the spotless mind, 2004) oferece um material instigante para
se discutir a problemática da memória e do esquecimento em um cenário
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CÉREBRO, CORPO E SUBJETIVIDADE NA TECNOCULTURA CONTEMPORÂNEA
em que se altera a maneira de forjar e de pensar o corpo e a subjetividade.
Meu intuito é, de início, retomar certos elementos do filme, enfatizando
três problemáticas interligadas: o esgotamento da matriz moderna da sub-
jetividade, ancorada no campo psi, em favor da tendência culturalmente
disseminada de reduzir tudo o que somos ao cérebro; o vínculo entre essa
ênfase atual e a referência crescente a imagens do cérebro tecnologicamen-
te produzidas; a alteração do tratamento do fenômeno da memória e do
esquecimento nesse novo contexto.
Cabe lembrar, de modo breve e necessariamente simplificador, o enredo
central do filme, reconstruindo-o em uma ordem narrativa que passa ao
largo do interessante jogo narrativo e temporal que ele instaura. Esse jogo
narrativo requer, aliás, um trabalho de reconstrução a ser efetuado pela me-
mória do próprio espectador, enquanto vai assistindo ao filme e recompon-
do seu quebra-cabeça para entender o enredo184. O personagem principal,
Joel Barish (Jim Carrey), descobre incidentalmente que sua ex-namorada,
Clementine Kruczynski (Kate Winslett), recorreu aos serviços da empresa
Lacuna Inc. para apagar de sua memória o namorado e o relacionamento
amoroso malsucedido. Desolado, procura então a empresa para também
passar pelo mesmo processo de eliminação de lembranças.
Juntamente com o personagem, somos informados acerca do procedi-
mento oferecido por Lacuna, empresa dirigida pelo Dr. Howard Mierzwiak
(Tom Wilkinson). Joel é inicialmente instruído a recolher todos os objetos
que teriam vínculos com Clementine e com a relação amorosa – fotografias,
presentes, CDs que compraram juntos, páginas de diário, etc. – e a levá-los
para o médico. De posse de vários objetos, Joel volta ao consultório, cuja
agenda está significativamente lotada às vésperas do Valentine Day (Dia dos
Namorados americano), tal como na época das festas de fim de ano. O drama
e sofrimento de Joel é caracterizado, portanto, como o de um homem co-
mum, à mercê de sentimentos social e culturamente determinados.
184
O DVD de outro filme em torno de tema afim – Amnésia, de Cristopher
Nolan (2001) – inclui, ironicamente, uma versão do filme editada para espec-
tadores “amnésicos”, pouco afeitos à construção temporal fragmentada e não
linear do filme. Leva, portanto, em conta a provável debilitação da “capacidade
de memória” dos espectadores atuais.
264
WEB 2.0
Na sala de espera do consultório-empresa, o filme mostra humorada-
mente (humor, aliás, sublinhado pelo som matreiro de um fagote que so-
bressai por vezes na trilha sonora do filme185) uma senhora com objetos
ligados a um presumível cão, bem como um senhor trazendo algo como um
troféu, indicando outro tipo de fracasso na vida passada a ser eliminado da
memória. Joel é então encaminhado à sala do médico. Em primeiro lugar,
tem sua fala sobre Clem (como chama sua ex-namorada), e sobre o rela-
cionamento com ela, gravada em fita cassete. Posteriormente, pedem-lhe
que reaja mentalmente (evitando qualquer verbalização) a cada objeto-lem-
brança trazido ao consultório. A suposta trajetória neuronal de suas lem-
branças é, então, mapeada e transferida para um programa de computador.
Como se pode notar, o processo de mapeamento cerebral da memória acaba
por prescindir do velho sujeito falante, narrador de sua própria história.
Por meio de uma espécie de capacete – como observou Fernando Vi-
dal (2007, p.97), lembrando um anacrônico secador de cabelo dos anos 60
– conectado a uma tela digital, em um processo que remete parodicamente a
tomografias computadorizadas ou petscans, as memórias ligadas aos objetos
são assim mapeadas em seu cérebro. A partir desse mapa – com seus pontos
coloridos e trajetórias em rede traçadas sobre os tons de cinza, branco e preto
da imagem –, durante o sono induzido por fármacos à noite em seu aparta-
mento, Joel terá suas lembranças paulatinamente apagadas por funcionários
da empresa. Colocam-lhe, então, outro engraçado capacete metálico ligado
a um laptop, em que o mapa digital de Clem servirá para rastrear e ir, aos
poucos, deletando sua lembrança. O tom caricatural de todo o procedimen-
to é acentuado ainda pela atitude totalmente irrespeitosa, cínica e antiética
dos jovens funcionários de Lacuna, que colocam o programa no piloto au-
tomático, tiram as roupas, dançam, bebem e puxam fumo em cima da cama
em que Joel dorme para ser curado de sua memória torturante.
185
A trilha sonora de John Brion acentua o tom melancólico e hibernal do filme,
também evidenciado pelos cabelos tingidos de Clementine em sua primeira
aparição: a tinta azul usada por Clem chama-se Blue Ruin (ruína azul/triste),
nome igualmente do drinque que a personagem prepara e toma com Joel. Esse
pathos de ruínas tristes é balanceado pelo humor do fagote que se introduz,
vez por outra, na trilha.
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CÉREBRO, CORPO E SUBJETIVIDADE NA TECNOCULTURA CONTEMPORÂNEA
Conforme o Dr. Mierzwiak explica a Joel, esse processo de apagamento
das lembranças corresponde a um dano cerebral, mesmo que de pequena
amplitude. Como o médico acrescenta, tão inofensivo quanto uma noite de
bebedeira. Quando os funcionários colocam toda a parafernália para funcio-
nar no quarto de Joel, um deles comenta que eles têm de tomar cuidado para
não fritar o cara. Essa relação entre a queima de circuitos e o apagamento
de lembranças também está presente em outros filmes recentes, como, por
exemplo, O pagamento (John Woo, 2004). Nesse filme, para deletar a lem-
brança de projetos sigilosos no cérebro do personagem central (vivido por
Ben Affleck), também ocorre um “aquecimento” cerebral, que não pode ul-
trapassar a marca dos 43 graus, sob pena de transformá-lo “em um vegetal”.
O tema da eliminação de lembranças por meio de queima de circuitos
e dano cerebral não deixa, aliás, de evocar outras práticas de destruição da
memória através do aquecimento. Tanto a ominosa história do século XX
(por exemplo, as cenas de queima de livros pelo Terceiro Reich) quanto
Fahrenheit 451 (1966), filme de François Truffaut, desenvolvido a partir
do romance de ficção científica de mesmo nome, escrito por Ray Bradbury.
O título desse filme alude à temperatura de combustão do papel em livros.
Os créditos são significativamente apresentados apenas por meio de uma
voz em off, realizando cinematograficamente a proibição da escritura que
assombra essa sociedade “futura”. Nesse filme inglês de Truffaut, medi-
camentos e imagens de TV são os meios utilizados para produzir efeitos
de esquecimento. Mas um televisor oco também funciona, logo no início,
como local para ocultar o proibido: livros. A memória interditada será
preservada por homens-livros que, após incorporarem e decorarem obras,
também as queimam. Ou seja: queimar servia tanto às práticas de censura
política quanto à resistência a elas. Talvez Truffaut não tivesse previsto que
os novos bombeiros, especialistas em softwares, pudessem dispensar ritos
espetaculares e públicos de queima, passando a atuar, de modo privado, em
empresas cujos serviços domiciliares passam a ser bastante requisitados – e
pagos. Um evidente efeito de esvaziamento da esfera política acompanha,
portanto, o modo como lembrar e esquecer tendem a ser tematizados em
nosso século.
Em Brilho eterno..., a memória a ser deletada se vale dos mais diversos
suportes, todos eles servindo ao processo de mapeamento cerebral, refe-
266
WEB 2.0
rência evidente à expansão do campo das neurociências na cultura contem-
porânea. Além de objetos impregnados de afetos e de lembranças, as mais
variadas técnicas de registro e memória confluem para o mapa digital da
Clem que vive na lembrança de Joel. Muitas dessas tecnologias de registro
têm o sabor melancólico de épocas recentes, algumas já passadas ou em
vias de se tornarem ultrapassadas: diários em que Joel escreve e desenha,
imagens fotográficas em papel, gravações em obsoletas fitas cassete.
Todas essas tecnologias de registro, cada uma delas ligada a temporalida-
des próprias e potencialmente distintas, passam a servir a uma espécie de di-
gitalização da memória, que as integra, ao mesmo tempo que as subordina. O
processo de digitalização alia-se à atual sedução exercida por imagens com-
putadorizadas (petscans, tomografias computadorizadas, ressonâncias mag-
néticas nucleares), que revelariam supostamente com precisão, e de modo
transparente, complexos processos cerebrais a partir dos quais se explicam
todos os fenômenos humanos. Essas imagens apoiam-se no forte efeito de
crença (Duden, 1993) que imagens científicas continuam a suscitar, a despei-
to da mudança do regime analógico para o digital – este último implicando
a transferência de dados algorítmicos (e não miméticos ou “visíveis”) para
a ordem da imagem. A imagem digital parece atrair para si o forte efeito de
crença, a ilusão de verossimilhança que imagens analogicamente produzi-
das, por motivos mais evidentes, promoveram desde o século XIX.
Certa ambiguidade atravessa, entretanto, nesse sentido, o filme186. Em-
bora os registros de cunho analógico sejam submetidos e subordinados ao
processo de mapeamento digital da memória, quando a personagem Mary
Svevo, abalada por descobrir que passou pelo tratamento, volta ao consul-
tório, ela recolhe as fichas arquivadas de todos os casos tratados. Ou seja: a
mesma empresa que utiliza um sofisticado aparato cibernético mantém seus
arquivos em pastas, papéis e fitas cassete – suportes de registro vinculados
à lógica analógica. O processo de denúncia e desmontagem dos serviços de
Lacuna vai se valer desses arquivos em papel e fita cassete, enviados pelo
correio tradicional – já estigmatizado como snail mail (“correio caracol”),
face ao veloz e eficiente e-mail – a todos os antigos clientes a fim de que
186
Devo essa sugestão a minha colega e amiga, Paula Sibilia.
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CÉREBRO, CORPO E SUBJETIVIDADE NA TECNOCULTURA CONTEMPORÂNEA
se lembrem do tratamento pelo qual passaram e do que lhes foi suprimido
da memória.
A resistência ao processo de apagamento de lembranças se vale de uma
memória consignada no velho e bom papel, em pastas de arquivo guarda-
das em gavetas (com seu volume e portabilidade) – verdadeiros guardiões
de uma verdade que jamais poderia ser, de fato, apagada e que é, então,
restabelecida. Se o procedimento de Lacuna é eficaz, ele tanto falha, como
veremos, por conta da complexidade do fenômeno “humano” da memória
(de que não dá conta), como também por conta da arquivação não digita-
lizante que a empresa Lacuna, anacrônica e paradoxalmente, preserva. Os
arquivos em papel se revelam como brecha no sistema que permite sua
destruição. Funcionam, portanto, como anacrônicos vírus potenciais, aptos
a serem ativados para atacar e destruir o próprio sistema.
Simultaneamente, e de modo mais evidente, o filme explora, por meio de
vários detalhes, indícios do declínio dos registros escritos da memória ou gra-
vados em antigos suportes, em favor de tecnologias digitalizantes. Às refe-
rências tecnológicas caricaturais se acrescentam também certos ingredientes
pop: “Clementine” também é o nome da namorada de um popular personagem
de cartoon dos anos 60, o sorumbático Dom Pixote, que costumava repetir
uma melancólica cantiga lembrada no filme: “Oh, querida!/ Oh, querida!/ Oh,
querida Clementina!/ Você foi embora para sempre/ Mas que pena, Clementi-
na…”. A cultura pop está presente em outro expressivo detalhe: em certa cena,
Clementine veste uma camiseta na qual aparece um reconhecível (para certa
geração, pelo menos) par de bonequinhos seguido da expressão “Amar é...”,
ícones, na cultura popular de décadas passadas, dos lemas e ditames acerca
do ideal do amor privado, ligado à figura do casal. Como sugerido no filme, o
modelo de amor buscado remete, como veremos, tanto à “alta” cultura letrada
quanto aos lemas e afetos disseminados e reforçados pela cultura de massa.
A essa associação da memória ligada à cultura de massa dos anos 60 –
no caso do cartoon, muito vinculada à forte influência da televisão – vem
ainda se somar o fato de Clem ser vendedora na cadeia de livrarias ameri-
cana Barnes & Nobles. Embora cercada por livros, não lhe ocorre, em mo-
mento algum, lançar mão da cultura letrada para lidar com seu sofrimento
amoroso. Aliás, não é à-toa que Clem trabalha em uma conhecida rede
americana de livrarias comerciais.
268
WEB 2.0
O esgotamento cultural da referência letrada, vinculada a uma tempo-
ralidade mais dilatada, menos contraída, é sugerido em diversos outros de-
talhes e momentos do filme. Por exemplo, durante o tratamento; quando
Joel desenvolve uma inusitada “resistência” ao processo de deletação das
lembranças e resolve escapar ao rastreamento cerebral para preservar a
lembrança de Clementine, em certa cena, penetra em um angustiante local
todo branco, repleto de estantes com livros cujas capas e lombadas também
estão apagadas, em branco. Além da evidente associação, inscrita em nossa
linguagem corrente, entre o branco e o apagamento da lembrança, o proces-
so de esquecimento parece ameaçar tanto o personagem quanto a memória
cultural tradicionalmente consignada em livros.
A referência ao declínio da cultura letrada comparece também, de outro
modo irônico, no filme: a secretária do Dr. Mierzwiak, Mary Svevo (Kirsten
Dunst), ciosa por impressionar o chefe por quem está apaixonada (desconhe-
cendo o fato de ter tido uma história amorosa com ele e de também ter passado
pelo processo de apagamento), cita uma passagem de Nietzsche sobre esqueci-
mento. Retira essa referência de um livro de citações de filósofos e escritores187
deslocadas de seu contexto, para rápido consumo e uso imediato. Esse tipo de
livro pode hoje ser encontrado à venda com o sugestivo título de “vitaminas
filosóficas”, plenamente adequado à subordinação da cultura letrada à lógica
da cultura somática. Essas citações isoladas funcionam apenas como moeda de
prestígio cultural e social, perdendo todo o seu vigor reflexivo.
187
No caso do filme, o livro citado é uma referência tradicional, remetendo a
uma famosa compilação de citações literárias modernas e antigas pioneiramen-
te produzida pelo americano John Bartlett (1820-1905), cuja primeira edição
data de 1855 e que não cessou, desde então, de ter versões ampliadas suces-
sivamente reeditadas. Atravessando mais de um século, esse livro de familiar
quotations foi, sem dúvida, mudando de uso e função. Na contemporaneidade,
adequa-se plenamente à pressa e imediatez que vão tornando a leitura efetiva
e completa de obras literárias e filosóficas quase um gesto de resistência face à
política do tempo otimizado. Cada vez se encontra menos tempo, por exemplo,
para ler todo Proust (a não ser que se contraia alguma doença que exija longo
tempo de repouso). Que dirá para escrever obras de porte semelhante. Assim
como as terapêuticas procuram se submeter a pressões por eficiência temporal,
a escrita (por exemplo, e não por acaso, em meio eletrônico) também parece
buscar vias mais rápidas e imediatas – o que tende a ir alterando e reconfigu-
rando o próprio regime cognitivo.
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CÉREBRO, CORPO E SUBJETIVIDADE NA TECNOCULTURA CONTEMPORÂNEA
O filme articula, portanto, de modo irônico, a singular valorização
nietzschiana do esquecimento a um contexto de apagamento da própria
obra, de ausência de sua leitura e ruminação, em favor do rápido alívio do
mal-estar por meio de um tratamento cerebral imediato, indolor, high tech,
cuja eficácia estaria garantida. Em uma espécie de mise en abîme, o próprio
esquecimento nietzschiano passa, também ele, por um processo de esque-
cimento, por esvaziamento e banalização por conta de sua apropriação no
âmbito do circuito do consumo cultural. No filme, a empresa Lacuna Inc.
presta seus serviços ocupando o vácuo deixado por outras modalidades de
“tecnologias da alma”188, tornadas obsoletas e inoperantes.
Outro detalhe do filme vincula-se ainda ao paradoxo do esvaziamento
da cultura letrada, de sua persistência apenas de forma mercadológica e
pasteurizada. O filme tem como epígrafe as linhas, de 207 a 210, de um
poema de Alexander Pope, escrito em 1716 e intitulado Heloísa e Abelar-
do189. O casal Abelardo e Heloísa é matriz e referência tradicional do tema
do amor infeliz, impossível, elaborado pela literatura e cultura ocidentais.
O próprio título do filme (Eternal sunshine of the spotless mind) foi dire-
tamente extraído desses versos. O filme retira o texto do esquecimento,
prestando tributo à cultura letrada, e, no mesmo gesto, indica ironicamente
sua derrocada.
Em certa passagem do filme, quando deseja impressionar o Dr. Mier-
zwiak, a secretária Mary Svevo cita os mesmos versos, afirmando que se-
riam do “Papa” Alexandre (Pope também quer dizer, em inglês, “papa”),
em uma bem-humorada referência à ausência total de conhecimento acerca
da tradição letrada, a não ser sob a forma de citações isoladas, que podem
ser encontradas tanto em antologias de frases célebres, como em revistas
populares (por exemplo, a revista brasileira Caras). O filme sugere que,
apesar da tendência declinante da cultura letrada, a problemática da in-
188
Devo essa expressão deliciosamente anacrônica (e extemporânea) ao cole-
ga argentino Christian Ferrer, em palestra proferida na UFF. Cf. também Ferrer
(2007).
189
A saber: “How happy is the blameless vestal’s lot!/ The world forgetting,
by the world forgot./ Eternal sunshine of the spotless mind!/ Each prayer ac-
cepted, and each wish resigned.”
270
WEB 2.0
felicidade amorosa foi de tal maneira incorporada (mesmo em sua forma
mais mercadológica ou pop) que este velho tema persiste, reconfigurado e
banalizado, no século XXI, moldando ainda desejos, anseios e suscitando,
ao mesmo tempo, tristeza e frustração.
Ainda a respeito do papel dos livros nesse cenário de crise da cultu-
ra letrada, observe-se que, em certa cena do filme, Joel entra na livraria
Barnes & Nobles e pergunta a Clem pela sessão de autoajuda, nicho de
mercado, como se sabe, altamente lucrativo e florescente. Enquanto es-
crevo este texto, leio em um site190 a curiosa notícia de que o próprio Jim
Carrey pretende lançar um livro de autoajuda, relatando sua superação do
uso de drogas para “controlar seus pensamentos sombrios” e suas crises
depressivas. Espera, assim, que o livro “ajude as pessoas a procurarem a
raiz de seus problemas”. E afirma: “Eu lutei com a depressão por um tem-
po, tomando Prozac. Embora tenha sido bom por um tempo, o remédio não
combatia a doença, apenas me fazia esquecer de minha raiva e de minhas
frustrações”. Como mostra essa coincidência entre “vida” e “ficção”, livros
de autoajuda são acionados como terapia alternativa indolor para combater
depressões e outras doenças, fazendo esquecer problemas e frustrações. No
vácuo deixado pela ruína de antigas tecnologias da alma, tornam-se produ-
tos altamente vendáveis, suprindo demandas por assistência para todo tipo
de mal-estar, fracasso ou desejo de sucesso. Nesse sentido, ator e persona-
gem se confundem e se misturam, não se podendo determinar qual dos dois
influencia ou produz o outro.
O filme de Gondry também sinaliza para outro aspecto fortemente cor-
relacionado ao esvaziamento da cultura letrada. Trata-se da passagem de
um modo de subjetivação que marcou a modernidade, ancorado em uma
concepção de interioridade psicologicamente constituída, para a tendência
cada vez mais presente de remeter à materialidade do cérebro todos os fe-
nômenos anteriormente associados à vida “espiritual”, interior, psicológica
ou psíquica. Essa visada se sustenta em uma equiparação entre o cérebro e o
computador. O contraponto entre o regime psicológico da subjetividade, atu-
190
Ver a matéria “Jim Carrey vai lançar livro de autoajuda”, no site Ofuxico:
<http://ofuxico.terra.com.br:80/materia/noticia/2008/03/18/jim-carrey-vai-
lancar-livro-de-autoajuda-77727.htm>. Acesso: 12/08/2008.
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CÉREBRO, CORPO E SUBJETIVIDADE NA TECNOCULTURA CONTEMPORÂNEA
almente em declínio, e a consolidação do modelo cerebral do “eu”, assinala-
do por diversos autores contemporâneos, emerge de modo curioso no filme.
Quando Joel resiste ao tratamento e decide fugir durante o procedimen-
to, enquanto permanece dopado por medicamentos, desloca-se, dentro de
seu cérebro, para regiões que não foram atingidas pelo mapeamento digi-
talizante. Na lógica do procedimento, essas regiões não podem, portanto,
ser rastreadas nem encontradas pelo programa utilizado pelos funcionários
de Lacuna. A fuga se dá em direção aos recônditos da memória da infância,
para a lembrança de certas experiências infantis traumáticas (da humilha-
ção e masturbação à crueldade), tomadas como mais remotas e infensas ao
tratamento cerebral, na medida em que estariam mais profundamente ins-
critas, não nas células neuronais, mas em uma vida interior psiquicamente
configurada.
Não se confundindo com processos cerebrais, esse refúgio seguro rumo
à interioridade convoca uma concepção de psiquismo que escaparia ao con-
trole do programa computacional de apagamento de lembranças. No filme,
a defesa contra o rastreamento da memória, contra o rebatimento, portanto,
do fenômeno da memória sobre processos neuronais, apresenta-se sob o
modo do recuo para uma outra concepção de memória, apoiada em um
modo de subjetivação impregnado pelos saberes psi desenvolvidos a partir
da virada do século XIX ao XX. Entretanto, é ainda na cabeça (mesmo que
não necessariamente no cérebro) que se dá a fuga.
O antídoto contra o apagamento da memória digitalizada confunde-se,
assim, com a fuga em direção a uma infância freudiana, também, caricatu-
ralmente, acentuada pelo histrionismo de Jim Carrey. Como sugere o filme,
convivem, atualmente, dois modos dominantes de conceber e experimentar
a subjetividade e seus fenômenos (tais como memória e esquecimento).
Ele também sugere que o campo psi parece, por ora, ainda fornecer a via
mais disponível para escapar da crescente redução do psíquico ou espiritu-
al (para empregar um termo ainda mais anacrônico) ao cerebral.
De que modo a concepção psíquica do “eu”, as tecnologias da escrita e
a cultura letrada estão intimamente vinculadas evidencia-se não apenas no
recurso frequente de Freud à literatura (Bezerra Jr., 2002), mas também em
uma famosa metáfora, utilizada por Freud e ressaltada por Derrida (Derri-
272
WEB 2.0
da, 1967). Essa metáfora refere-se ao mecanismo psíquico da memória, do
recalque e do esquecimento a uma das famosas tópicas freudianas. Trata-
se, justamente, de uma imagem ligada ao campo da escrita: o bloco ou lou-
sa mágica, dispositivo de escrita no qual a marca inscrita pode se apagar na
superfície do papel celofane uma vez levantada, deixando seu traço indelé-
vel no plano inferior, na matéria plástica e maleável que lhe dá suporte.
A metáfora do bloco ou lousa mágica pode ser relacionada ao insucesso
relativo (apesar de sua paradoxal eficácia) do tratamento efetuado por La-
cuna em Clem. Após ter deletado Joel, Clem namora Patrick, um dos jovens
funcionários da empresa, cínico e inescrupuloso. Patrick explora, parasita
e clona lembranças de Clem (supostamente eliminadas) para conquistá-la,
usurpando tanto frases de Joel quanto presentes dados pelo namorado dele-
tado. Ocorre que, mesmo após ter apagado Joel de sua memória, Clem tem
crises de choro e angústia sem motivo aparente. Desesperada, diz sentir-se
velha e ter a estranha sensação de estar perdendo sua pele. Ela parece de
algum modo reconhecer, mesmo que vagamente, certas frases e, sobretudo,
pressentir o engodo de que é vítima: a expropriação e uso de suas lembran-
ças pelo novo namorado.
Tudo se passa, portanto, como se certos rastros das lembranças amoro-
sas de Clem digitalmente anuladas permanecessem marcados em sua me-
mória, de modo virtual, sem força suficiente para se tornarem conscientes,
mas com energia bastante para se atualizarem em situações presentes que
as convocam. Como, por exemplo, deitar-se com o novo namorado sobre o
rio Charles congelado, tal como fizera com Joel191.
A deletação de lembranças parece falhar em profundidade também no
caso da secretária Mary Svevo, da empresa Lacuna. Após ter passado pelo
tratamento, Mary volta a se apaixonar pelo mesmo homem: o médico respon-
sável pelo procedimento. Clem e Joel também voltam a se apaixonar um pelo
outro após terem utilizado os serviços de Lacuna. Aliás, após o tratamento,
quando Clem reencontra Joel, em certo momento ela lhe pergunta se, por
acaso, já não o viu em algum lugar, concluindo que deve tê-lo atendido na
191
Introduz-se aqui, como já se pode observar, a referência à concepção ber-
gsoniana da memória.
273
CÉREBRO, CORPO E SUBJETIVIDADE NA TECNOCULTURA CONTEMPORÂNEA
livraria popular onde trabalha. No caso, então, de ambos os casais, con-
vergem e somam-se a aposta em uma noção não-cerebral da memória e o
tema da força incontrolável, irracional, da atração amorosa, cara à tradição
literária e cultural do Ocidente. Mas, de todo modo, o procedimento high
tech de Lacuna funciona, produzindo esquecimento.
Em suma, tal como o filme sugere, ao domínio da cultura letrada corres-
ponderia uma compreensão psíquica, interiorizada, dos fenômenos da me-
mória e do esquecimento. Por um lado, como vimos, buscando esconder-se
e proteger-se da invasão computacional em seu cérebro, Joel refugia-se
em uma versão concorrente, historicamente datada, da subjetividade e de
seus fenômenos. Por outro, o método rápido, indolor e eficaz de apagamen-
to de lembranças termina “fazendo água”, deixando rastros, revelando-se
incapaz de anular totalmente a angústia ou a atração amorosa. A atração,
reincidente, renasce das próprias cinzas.
Nesse sentido, o que o filme mostra é bastante aproximável da perspec-
tiva bergsoniana, na medida em que a memória permanece viva, mesmo
sob o modo da virtualidade. Não sendo passivas nem inertes, as lembranças
não seriam simplesmente deletáveis. Por outro lado, uma vez que existe um
vínculo de solidariedade entre matéria e memória, certos “danos cerebrais”
podem, de fato, vir a afetar o mecanismo de atualização das lembranças.
Segundo Bergson (2001), pode ocorrer que o apelo do presente que as con-
voca deixe de alcançá-las ou que o mecanismo de atualização se encontre
entravado, processos, esses sim, apoiados na integridade do funcionamento
do cérebro.
Permanece, portanto, no filme a seguinte ambiguidade: o procedimen-
to implementado por Lacuna fracassaria ainda por insuficiência técnica e
científica? Ou será que jamais poderia funcionar, não podendo alcançar e
destruir a memória, bergsonianamente entendida como instância irredutí-
vel à materialidade do cérebro? Sem dúvida, o tom caricatural empregado
no filme favorece mais a aposta crítica contida nessa segunda opção, mas
até que ponto vai essa aposta permanece de certo modo (e historicamente)
em suspenso.
Um breve artigo de 2004 sobre o filme (Johnson, 2004) ressaltou o caráter
ficcional e pouco provável do procedimento proposto pela empresa Lacuna
274
WEB 2.0
Inc., mas enfatizou que pesquisas neurológicas sobre a memória, embora não
se concentrem em uma possível eliminação de lembranças negativas, buscam
novos fármacos para otimizar e ampliar a “capacidade de memória”. O neuro-
cientista Iván Izquierdo observa que esse projeto é mais presente nos Estados
Unidos e na Inglaterra do que na Europa ou na América do Sul (Izquierdo,
2002, p.84), o que aponta para a inscrição cultural de pesquisas científicas,
bem como para a força das demandas políticas e culturais que as norteiam – e
que elas, ao mesmo tempo, também produzem.
Apesar do que afirmou Johnson no já longínquo ano de 2004, pesquisas
visando a eliminação de lembranças (em geral, traumáticas) seguem atual-
mente pleno curso. Apenas a título ilustrativo, no site da BBC Brasil, em
27 de março de 2008192, foi divulgada uma pesquisa nesse sentido, levada a
cabo pela Universidade da Califórnia e, recentemente, publicada na revista
científica Proceedings of the National Academy of Sciences. Segundo essa
pesquisa, vulgarizada e sintetizada no site jornalístico, a utilização do anes-
tésico inalatório sevoflurano, em doses reduzidas, seria capaz de bloquear
a formação de memórias negativas. Ao final da matéria, lemos que o que
se considera (ainda) mais complicado é manipular lembranças antigas. Os
projetos de pesquisa vão, então, avançando e ampliando paulatinamente
seus (provisórios) limites.
Para citar outra notícia mais antiga, divulgada pelo mesmo site em 3
de julho de 2007 e publicada originalmente na revista científica Journal of
Pshychiatric Research, uma equipe de cientistas americanos e canadenses
utilizou o medicamento propanolol para bloquear memórias indesejáveis.
Embora os cientistas exprimam sua cautela com relação ao aspecto ainda
inconclusivo dessas experiências, eles “esperam que a pesquisa possa levar
novos tratamentos para pacientes com problemas psiquiátricos, como es-
tresse pós-traumático”193. Os exemplos podem se multiplicar, todos eles em
uma idêntica direção. Que não nos extravie, portanto, a ficcionalidade dos
caricatos procedimentos “científicos” do filme e da própria empresa Lacu-
192
Cf. <http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2008/03/080327
_anestesicomemoria_is.shtml>. Acesso: 12/08/2008.
193
Cf. <http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/07/070703
_memoriaapagadafn.shtml>. Acesso: 12/08/2008.
275
CÉREBRO, CORPO E SUBJETIVIDADE NA TECNOCULTURA CONTEMPORÂNEA
na Inc. Ambos são verossímeis e plenamemente compatíveis com projetos
de pesquisa em neurociências atualmente em desenvolvimento. Aliás, o que
aqui está em jogo não é o grau de ficcionalidade do filme, mas o que pode-
mos tematizar, a partir dele, acerca das alterações em curso, no que concerne
à relação com a experiência vivida, o tempo, o corpo e a subjetividade.
O projeto do filme arquiteta um jogo intencional entre ficcionalidade e
verossimilhança. Prova disso é o site “oficial” dessa empresa fictícia, datado
de 2003, antecedendo, portanto, o lançamento do próprio filme (2004). Basta
buscar no Google “Lacuna Inc.” para acessar a falsa (mas cada vez mais
verossímil) empresa. O jogo é, aliás, bem interessante: a ficcionalidade da
empresa se vale do ciberespaço para “se realizar”, antecipando (e, por que
não, indicando) projetos a serem efetivados por pesquisadores “reais”.
Eis como a empresa apresenta seus serviços na internet: “Trazendo para
você o revolucionário processo indolor e não cirúrgico de apagamento de
memória”194. A essa publicidade de tratamento eficaz, indolor e não inva-
sivo vem se somar a seguinte explicação: “No longer do you have to live
with life debilitating memories. Live again, take the steps now!” (Você não
precisa mais viver com memórias que debilitam sua vida. Viva de novo,
aja agora!). É em nome, portanto, de uma vida mais leve, avessa a todo
sofrimento e dor, que Lacuna promove seu negócio.
Para melhor compreendermos o contraponto entre as duas concepções
diversas de memória mobilizadas no filme – a cerebral e a psicológica –, lem-
bremos, ainda uma vez, certos aspectos do conceito bergsoniano de memória
e o papel por ele atribuído ao cérebro nesse fenômeno. Para Bergson (2001),
o cérebro não contém “caixas de lembranças” que conservariam fragmentos
do passado. Como também sugere o filme, ao confundir a memória com a
materialidade do cérebro, ao espacializar (mesmo que digitalmente) e mape-
ar as lembranças, os serviços prestados pela empresa Lacuna estão, portanto,
bergsonianamente fadados, malgrado sua eficácia imediata, ao fracasso.
Se na cultura contemporânea a memória é cada vez mais identificada ao
cérebro e as sombras do esquecimento são ligadas a uma “morte neuronal
194
No original: “Bringing you the revolutionary painless non-surgical memory
erasing process.”
276
WEB 2.0
gradativa” (Izquierdo, 2002, p.32), nada mais oportuno do que lembrar a
associação bergsoniana do cérebro, já não à memória, mas ao esquecimen-
to. Como vimos, a função do cérebro também é a de suspender a memória,
a de nos proteger de sua invasão paralisante. Para Bergson, portanto, o
cérebro não serve para armazenar lembranças. Estabelece, antes, um vín-
culo crucial entre o passado (que se conserva por inteiro) e a ação presente.
Funciona como um mediador entre as lembranças que se atualizam e a
totalidade da memória, que permanece suspensa na virtualidade.
Esquecer, nesse sentido, não corresponde, portanto, a uma atividade de
simples anulação, de apagamento e eliminação definitiva de lembranças.
Ao mesmo tempo, produzindo alterações no cérebro, podem-se alterar e,
no limite, inviabilizar o mecanismo de atualização, que funciona no filme
em um duplo sentido. Embora “danos cerebrais” sejam capazes de corroer
o mecanismo da lembrança, o serviço de deletação oferecido prova-se, de
fato, insuficiente, pois não consegue impedir a atualização de certas lem-
branças que, “apagadas”, insistem em vir ao encontro do “calor do vivido”,
mesmo após concluído todo o procedimento.
Conforme sugerido no filme, ao agir exclusivamente sobre o cérebro,
o tratamento efetuado por Lacuna fracassa em profundidade. Em certos
aspectos, portanto, o filme vem ao encontro do que Bergson desenvolve
em Matéria e memória (2001): a memória nunca se apaga totalmente, pela
simples razão de que não está onde a procuram e rastreiam. Não diz respei-
to a um lugar, tampouco a circuitos neuronais, mas à espessura do tempo
vivido, ao fluxo da duração, à certa relação com a temporalidade. Nesse
sentido, não deixa de ser significativa uma breve cena do final do filme em
que se abrem, enfim, novas possibilidades para Joel e Clem.
Eis o contexto: após tomarem consciência do romance vivido, de sua
derrocada e do processo de apagamento, Clem e Joel estão prestes a se
separar definitivamente, não restando chance para qualquer recomeço. No
momento em que Clem deixa o apartamento de Joel e ambos parecem se
resignar à impossibilidade de um recomeço renovador, Joel hesita, abre
novamente a porta do apartamento e pede a Clem, já no corredor do prédio,
para esperar. O quê? Nada. Só um instante em que nada é dito e que o filme
registra. É essa hesitação, esse breve tempo de espera (muito bem realizado
no filme) que introduz a possibilidade de um novo começo.
277
CÉREBRO, CORPO E SUBJETIVIDADE NA TECNOCULTURA CONTEMPORÂNEA
O tempo, a espera, a hesitação, a paciência própria à duração, corres-
pondem, assim, a outros elementos que aproximam o filme de Gondry da
perspectiva bergsoniana. Pesa, então, no filme, de modo mais evidente, a
ironia relativa às crenças atuais, que remetem às pesquisas no campo das
neurociências, à imediatez na solução de problemas e ao horror pelo sofri-
mento. O filme não deixa, entretanto, de ironizar igualmente a crença no
campo psi, caricaturalmente acentuada também através da atuação de Jim
Carrey. Parece apostar, mais positivamente, em processos de mudança que
só podem se dar no tempo, dizendo respeito ao “coração”. Afinal, na reden-
tora cena do desfecho, a trilha sonora diz “Change your heart...” (Mude seu
coração....) – aprendizado e moral da história.
Por se tratar de uma tecnologia visual, o filme é ainda atravessado por
outra ambiguidade, na medida em que põe em cena dois espaços concorren-
tes e conflitantes: o espaço da interioridade (associado, senão ao cérebro,
em todo caso, à “cabeça”) contra o mapeamento e a perseguição digitais.
Como vimos, no filme intervêm duas espacialidades distintas: para fugir
à perseguição monitorada por computador e imagens cerebrais, os perso-
nagens principais (Joel e Clem) fogem em direção à memória da infância,
para uma interioridade considerada como mais remota. Dois tipos, então,
de espacialidade: mapeamento do cérebro por scans, transferido para ima-
gens computacionais; e fuga em direção à interioridade psíquica, com sua
topologia interior e abstrata. Ambos tratados com certa ironia e distância,
mas irmanados pelo mesmo privilégio do espaço (do cérebro ou da “cabe-
ça”) quando se trata de tematizar o fenômeno da memória.
O filme ainda remete, de modo explícito, à valorização nietzschiana do
esquecimento, também ligada ao gesto crítico com relação à ênfase na me-
mória, na história-arquivo, na história-monumento, identificada pelo filósofo
no século XIX (Nietzsche, 2003). Segundo Nietzsche, esquecer, livrar-se de
marcas dolorosas e do ressentimento (inclusive do rancor com relação à irre-
versibilidade do tempo) requer a atividade fundamental do espírito, que nada
mais é do que estômago (Ferraz, 2002, p.57-73). Isto é, digerir. E digerir é um
processo que só pode se dar no tempo, que necessariamente dura, que segue
ritmos próprios, imprevisíveis, irredutíveis à temporalidade espacializada
que projetamos para apoiar nossa ação. Seu ritmo não se pauta por tentativas
de gestão e controle. Tampouco por uma pressa atarefada e ansiosa.
278
WEB 2.0
O filme de Gondry também aposta em estômagos que digerem experi-
ências, aprendem com elas, abrindo a possibilidade, como nas cenas finais,
para o riso e novos recomeços. A praia (mesmo hibernal) em que se dão as
cenas finais do filme funciona como contraponto ao enregelado rio em que
os namorados se deitavam, quando se apoiavam em camadas sólidas de
gelo que cobriam e detinham o fluir do tempo e do desejo.
Digerir e esquecer teimam em fugir ao controle. Dependem da vitalida-
de dos estômagos em questão. Em uma cultura em que não se pode perder
tempo, a frustração ante a impossibilidade desse controle provoca, sem dú-
vida, sofrimentos suplementares. O filme de Michel Gondry também enfa-
tiza de que modo a relação produtivista e ansiosa com o tempo (a pressa)
se adequa à visão cerebral do sujeito e é compatível com uma concepção
digitalizante da memória, oferecendo soluções imediatistas e supostamente
indolores para a persistente problemática da relação ressentida com o pas-
sado, com o tempo vivido e seus paradoxos, lentidões, velocidades.
Na cultura contemporânea, a esse privilégio do cérebro para dar conta de
todas as esferas do viver humano se acrescenta uma crença cada vez maior
em explicações provenientes do campo, também em expansão, das pesquisas
genéticas. Essas novas crenças reforçam o desejo de previsão e controle. É o
que observaremos em um instigante romance do autor inglês Ian McEwan,
intitulado Sábado (2005), que integra essa vertente à esfera da ficção literá-
ria, tão marcada, em sua historicidade, pelo desenvolvimento e consolidação
da visão moderna, interiorizada e psicológica da subjetividade.
Cérebro e genes: visão tecnocientífica
O personagem central do livro Sábado é o bem-sucedido neurocirur-
gião Henry Perowne. Vejamos como, de sua janela londrina numa manhã
de sábado, Dr. Perowne descreve, “com o distante espírito possessivo de
um deus” – isto é, como médico e neurocirurgião – duas figuras que atra-
vessam a praça em frente à sua casa:
(...) pequenas máquinas biológicas quentes, dotadas de habilidade
bípede, adaptáveis a qualquer terreno, providas de redes neurais de
inumeráveis ramificações, alojadas no fundo de uma protuberância
279
CÉREBRO, CORPO E SUBJETIVIDADE NA TECNOCULTURA CONTEMPORÂNEA
revestida de osso, com fibras ocultas, filamentos quentes, com seu in-
visível brilho de consciência – essas máquinas criam seus próprios
caminhos. (McEwan, 2005, p.21)
A descrição, tão irônica quanto precisa, refere-se a máquinas quentes,
em uma espécie de interpenetração entre o orgânico e o inorgânico, como
no caso dos atuais chips úmidos. Novamente, toda a ênfase é atribuída
ao cérebro, às fibras e aos filamentos, termos significativamente aplicados
tanto às redes neuronais quanto à tecnologia de fibras óticas utilizada para
transferência de dados. Imbricam-se, assim, máquinas humanas e ciberné-
ticas. A referência à adaptabilidade “em qualquer terreno” lembra a robóti-
ca aplicada a viagens espaciais, o que também tem por efeito relativizar e
suspender esta terra e este lugar, sugerindo um olhar distanciado, descom-
prometido. Redes neurais são destacadas, bem como o cérebro, no qual
a “consciência”, efeito luminescente195 dessa complexa máquina úmida e
quente, emite seu fulgor enigmático e invisível, dotando-a com a surpre-
endente capacidade de “criar caminhos próprios”. Esse tipo de descrição e
visada caracteriza o Dr. Perowne, “homem que tenta atenuar as desgraças
de mentes lesionadas restaurando cérebros”, para quem, portanto, “a mente
é aquilo que o cérebro, pura matéria, executa” (McEwan, 2005, p.85).
Típico representante de abordagens neurocientíficos que reduzem
a mente à “pura matéria”, Dr. Perowne cita, em um momento, William
James, justamente a propósito do tema do esquecimento. A referência a
James é, aliás, frequente em textos de neurocientistas. Eis o que pensa o
médico protagonista de Sábado: “William James escreveu sobre esquecer
uma palavra ou um nome; uma forma sedutora e vazia permanece, à beira
de definir a ideia que ela antes continha (...)” (McEwan, 2005, p.73). A atu-
ação fria e distanciada do neurocirurgião se manifesta, sobretudo, quando
ele enfrenta uma situação casual de violência urbana em uma rua interdita-
da, próxima àquelas em que se concentra, naquele sábado, 15 de fevereiro
195
Lembremos que Bergson questiona, em Matéria e memória, a postulação
de um paralelismo entre as séries fisiológica e psicológica, referindo-se critica-
mente às teorias materialistas da época, que consideravam a consciência como
uma fosforescência das células nervosas, como uma espécie de emanação lu-
minosa da própria materialidade do cérebro (Bergson, 2001).
280
WEB 2.0
de 2003, uma grande manifestação londrina contra a iminente invasão do
Iraque. Ameaçado pelo violento e desequilibrado agressor (Baxter), nas
frações de segundo que antecedem o soco que está prestes a levar, o exímio
neurocirurgião ainda realiza um diagnóstico preciso (doença de Hunting-
ton), estabelecido nos seguintes termos:
(...) registra a fraqueza de autocontrole, a instabilidade emocional, o
temperamento explosivo, níveis sugestivos ou reduzidos de neuro-
transmissores GABA entre os pontos de junção adequados nos neurô-
nios estriatais. Isso, em troca, só pode significar a presença reduzida
de duas enzimas no estriato e no pálido lateral – decarboxilase do
ácido glutâmico e colina acetiltransferase. (McEwan, 2005, p.114)
E conclui:
Muita coisa, nas questões humanas, pode ser atribuída ao que se passa
no nível das moléculas complexas. Quem poderia calcular o estrago
provocado ao amor e à amizade (...) por um excesso ou por uma carên-
cia deste ou daquele neurotransmissor? (McEwan, 2005, p.114)
A ironia se evidencia não apenas pela fleugma e pelo caricatural jargão
desse “reducionista profissional” (McEwan, 2005, p.326), capaz de traçar
um diagnóstico certeiro frações de segundos antes de levar um prosaico
soco no peito, mas também pelo contraponto entre esse conflito (aparente-
mente despolitizado) e a manifestação anti-invasão do Iraque, que ocupava
ruas adjacentes. O mau encontro entre o neurocirurgião e o bando violento
se dá em uma rua fechada por policiais que zelam, justamente, pela ordem
da cidade atravessada pela imensa passeata. O ato político dá um tom ainda
mais mordaz ao frio olhar despolitizante próprio ao neurocirurgião, habi-
tuado a reduzir qualquer aspecto da vida (da ausência de autocontrole ao
amor e à amizade) ao funcionamento adequado ou não de neurotransmis-
sores, modulados pela bioquímica do corpo.
O médico usará de seu saber de especialista (na verdade, sua temível e
poderosa arma) para dominar e render Baxter por duas vezes: na rua e em
sua casa, invadida pelo bando um pouco mais tarde naquele mesmo sábado
que encabeça o livro. Para um leitor brasileiro, aliás, o sucesso de sua astú-
cia – controlar Baxter, oferecendo-lhe soluções para a terrível e galopante
281
CÉREBRO, CORPO E SUBJETIVIDADE NA TECNOCULTURA CONTEMPORÂNEA
enfermidade nele detectada – soa, no mínimo, inverossímil. A visão redu-
cionista aplicada a Baxter incorpora o determinismo inerente à intervenção
da genética para dar conta, de modo exclusivo, de sua doença, que estaria
na base da atitude de descontrole e agressividade:
Baxter tem vinte e poucos anos. (...) Se um dos pais tem isso (doença
de Huntington), há uma chance de cinquenta por cento de ele ter tam-
bém. Cromossomo quatro. A desgraça se encontra no interior de um
só gene, na repetição excessiva de uma única sequência – CAG. Aqui
está o determinismo biológico em sua forma mais pura. Mais de qua-
renta repetições desse pequeno cólon, e estamos condenados. Nosso
futuro está determinado e é fácil de prever. (McEwan, 2005, p.116)
A afirmação sintética “cromossomo quatro”, que corta o período,
soa como uma sentença, ainda mais compactada, logo adiante, em uma
sequência de três letras que proliferam anomalamente: CAG. A seguir se
explicita ainda mais o sentido fatalista:
Qualquer pessoa com algo consideravelmente acima de quarenta se-
quências CAG repetidas no meio de um obscuro gene no cromosomo
quatro é obrigada a cumprir o mesmo destino, à sua maneira particu-
lar. Está escrito. Nenhuma quantidade de amor, de remédios, de aulas
de Bíblia ou de anos de prisão pode curar Baxter ou desviá-lo de seu
curso. Está escrito letra por letra nas proteínas (...) (McEwan, 2005,
p.253, ênfase no original)
O comportamento de Baxter é totalmente remetido à sua identidade
cromossomial, a certas disfunções herdadas. Ante esse quadro, rui qualquer
promessa de correção pela anacrônica via disciplinar, quer por meios medi-
camentosos, por amor, catequese (“aulas de Bíblia”) ou, no limite, prisão.
O determinismo biológico aponta para o esvaziamento das práticas disci-
plinares modernas (da medicina clínica à prisão), para o declínio da “orto-
pedia social” tão bem descrita e analisada por Michel Foucault. Baxter é,
de certo modo, inocentado pelo que é e pela maneira como se comporta, na
medida em que sua instabilidade e violência derivam de uma falha geneti-
camente determinada, estatisticamente previsível. Não resultam de algum
fracasso moral ou de sua vontade. Tampouco das circunstâncias históricas,
282
WEB 2.0
do mundo em que vive. Essas certezas científicas colaboram para explicar a
atitude fleugmática do neurocirurgião quando às voltas com seu agressor.
Em contrapartida, Baxter não tem qualquer saída, senão realizar seu
destino genético, selado de uma vez por todas. O papel determinante da
escrita bíblica se laiciza nas letras do código genético, ainda mais temíveis,
fatais e incontornáveis. O “estava escrito” genético faz empalidecer o te-
mor difundido pelas sagradas escrituras e pelas mais terríveis leis divinas.
Pois o que está em jogo não é qualquer inferno transcendente, e sim dis-
funções infernais inscritas na obscuridade de genes herdados. Nesses ter-
mos, a ação delinquente já não é mais passível de ser remetida a condições
socioeconômicas, como o pensamento moderno tendia a fazer. A primeira
cena de agressão, passada em rua adjacente à passeata, já apontava para
esse tipo cada vez mais triunfante de explicação fisicalista, que inviabiliza
qualquer perspectiva politizada. Ou, dito de outro modo, que termina por
desalojar e ocupar o terreno esvaziado da política, remetendo ao processo
de biologização da política sinalizado por Michel Foucault desde o último
quartel do século XX (Santos, 2003, p.318).
A condenação de Baxter, escrita em sua falha cromossomial geneti-
camente herdada, se não o responsabiliza, tampouco deixa margens para
qualquer saída. No melhor dos casos, ele estará nas mãos de neurocirur-
giões. É, de fato, o que acontece no final de Sábado: Dr. Henry Perowne,
após ter conseguido se livrar do bando que invadira sua casa, é chamado
pelo hospital para atender e tratar o próprio Baxter. Ele o opera, então, para
estancar o sangramento originado por uma queda da escada, provocada
durante sua captura na casa do neurocirurgião. Então, diante do cérebro
aberto de Baxter, o Dr. Perowne experimenta o êxtase que sua fé integral
nas neurociências propicia:
Apesar de todos os recentes avanços, ainda não se sabe como esse
protegidíssimo um quilo, ou um quilo e pouco, de células efetiva-
mente codifica informações, como preserva experiências, lembranças,
sonhos e intenções. Henry não tem dúvida de que, nos anos vindou-
ros, o mecanismo de codificação será conhecido, ainda que isso não
venha a ocorrer enquanto ele estiver vivo. Assim como ocorreu com
os códigos digitais de replicação da vida contidos no DNA, o segredo
fundamental do cérebro será revelado um dia. Mas, mesmo quando
283
CÉREBRO, CORPO E SUBJETIVIDADE NA TECNOCULTURA CONTEMPORÂNEA
isso acontecer, continuará a existir o assombro diante do fato de um
bolo molhado poder criar esse radiante cinema interior (...). Será que
algum dia se conseguiria explicar como a matéria se transforma em
consciência? (...) as explicações irão se depurar, até chegarem a uma
verdade irrefutável a respeito da consciência. (...) É o único tipo de fé
que ele tem. (McEwan, 2005, p.303-304)
O materialismo neurocientífico culturalmente disseminado coloca o
“bolo molhado” do cérebro na balança e se extasia ante sua capacidade de
sonhar, lembrar e agir. A compreensão dessa curiosa matéria convoca as
noções de código e de informação. A lógica da digitalização atravessa tanto
o estudo do cérebro quanto a do código genético. Eis a fé sem transcedên-
cia que avança em nosso século. As ciências prometem alcançar um dia o
segredo desse leve órgão artista, criador de um “radiante cinema interior”.
O êxtase e a fé migram do plano transcendente para a úmida matéria ce-
rebral. Não é à-toa que o médico se vê e é visto, em certos momentos do
romance, como um deus. Eis como o romance de Ian McEwan tematiza as
novas crenças que vão balizando nosso século.
A partir da leitura do filme de Gondry e do romance de McEwan, pode-
mos constatar de que modo novas visões do corpo, da subjetividade e dos
fenômenos humanos vão, aos poucos, consolidando-se e incorporando-se
(literalmente) em nossa cultura. Ambos sinalizam diretamente para a rela-
ção entre tecnologias informacionais e comunicacionais e novos roteiros
de subjetivação. De que modo essas noções de corpo, de subjetividade e o
campo da atual tecnociência se retroalimentam é o que nos cabe investigar
e problematizar em nosso ainda jovem século.
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