A minha explicagio & que ha luta de classes na cidade. Ou
se remunera os capitais (...) ou se investe na reprodugao do tra-
balhador: sate, educagao, transporte, moradia, saneamento..
O problema nao se resolve com a distribuigéo de renda
ou do salario. Porque mais salério nado compra o transporte
coletivo; nao compra uma boa localizagdo na cidade, porque
isso fica mais caro. Aumento salarial é absorvido pelo custo da
cidade e isso sé se resolve com politicas publicas. Reconhego
que houve distribuigio de renda para comprar carros, motos,
eletrodomésticos, uma televiséo melhor. condeno isso, pois
uma maquina de lavar roupa, uma geladeira é importante... mas
ninguém vive sé dentro de casa: vive na cidade.vNvaan :Este livro, composto por trés
artigos e uma entrevis
a, € mar
cado por uma perspectiva clara -
visivel também em toda trajetéria
politica e tedrica da autora - a de
que com o desenvolvimento do
capitalismo gesta-se uma “crise
urbana”, cuja saida sé pode ser
pensada e realizada a partir da
luta dos trabalhadores.
O principal objetivo de Para
entender a crise urbana é contri-
buir na erradicagéo do “anal-
fabetismo urbanistico”, isto 6,
trazer reflexdes tedricas e politi-
cas que auxiliem a compreensio
da légica de funcionamento e de
organizagiio do espaco urbano a
partir da perspectiva da luta de
classes. Esta se da entre o capital
- imobilidrio, industrial e finan-
ceiro - que conta com o apoio do
Estado e da midia, e o trabalho
cuja forca reside na organizacdo
e na luta popular.
Apesar de a crise urbana ser
algo proprio do capitalismo, en-
quanto sistema, as caracteristicas
histéricas brasileiras - um_ pais
da periferia do capitalismo com
ampla tradigdo escravocrata - sio
consideradas como — fundamen-
tais para a compreensio dessa
crise tal como ela se apresenta
aqui. Entre outras, _mencione-
-se a centralidade da questéo da
terra - tanto no campo quanto
na cidade -, um dos principais
fatores de acumulagao do capitalPARA ENTENDER
A CRISE URBANAERMINIA MARICATO
PARA ENTENDER
A CRISE URBANA
la edigao
EDITORA
EXPRESSAO POPULAR
Sao Paulo * 2015Copyright 2015 © Editora Expressao Popular
Revisio: Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida
Edigdo: Rafael Borges Pereira
Fotos: p. 7: Midia Ninja, p. 15: Marcelo Camargo/A Br,
p. 55: Henrique Yasuda, p. 65: Eduardo Jorge Canella, p. 101: Felipe Canova
Foto da capa: Midia Ninja
Projeto grifico, capa e diagramagao: ZAP Design
Dados Internacionais de Catal
Maricato. Erminia
M333p Para entender a crise urbana. / Erminia Maricato.—
1.ed.—Sao Paulo ; Expresso Popular, 2015.
112p. il.
Indexado em GeoDados - hittp://www,ceodados.uem.br.
ISBN 978-85-7743-258-5 |
1. Crise urbana. 2. Lutas de classe - Brasil. 3. Questéo
urbana - Brasil. 4. Movimentos sociais - Brasil I. Titulo.
cb 316.42
Catalogagao na Publicacao: Eliane M.S. Jovanovich CRB 9/1250
Todos os direitos reservados
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada
ou reproduzida sem a autorizagao da editora.
1a edigdo: maio de 2015
Sa reimpressio: outubro de 2019
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‘www expressaopopular.com.br
fb; ed.expressaopopular
ig: editoraexpressaopopularSUMARIO
APRESENTAGAO..
CIDADES E LUTA DE CLASSES NO BRASIL
Introduga
Cidade ¢ conflitos: a abordagem marxista...
Cidade na periferia do capitalismo: a
urbanizagdo dos baixos salério:
Nas décadas perdidas: luta social pela
cidade democratica.
Cidades na conjuntura atual: a retomada do investimento
publico e a surpreendente subordinagao do espago
urbano ao capital.
O império do automével. Transporte coletivo em ruinas.......... 42
Quando novissimos personagens entram em cena..
TERROR IMOBILIARIO OU A EXPULSAO DOS
POBRES DO CENTRO DE SAO PAULO..
GLOBALIZAGAO E POLITICA URBANA NA
PERIFERIA DO CAPITALISMO.....
Globalizagio e poder..
O impacto da globalizagao nos paises periféricos...
O legado do patrimonialismo...
Os paradoxos das cidades periféricas.
Planejamento urbano ¢ globalizagio...
Do “Consenso de Washington” ao “Plano Estratégico”
Que fazer?.
MOVIMENTOS E QUESTAO URBANA NO BRASIL.‘Manifestagio em Belo Horizonte (MG)APRESENTAGAO
Em qualquer pais do mundo onde haja uma comunidade
com consciéneia social, & frequente o MST ser reverenciado
como 0 movimento social mais importante do planeta. A
persisténcia na luta pela Reforma Agraria e a consciéncia de
; a recusa em fazer acordos
que apenas a luta pode levar a el:
que implicam a apropriagdo de cargos piblicos; a generosidade
que resultou na entrega de tantas vidas para ver a utopia social
realizada; a sensibilidade que o levou a incluir na agenda o
alimento saudvel, em oposig¢do aos agrotéxicos produzidos
pelas poderosas corporagées transnacionais; o respeito a natu-
reza e em especial a terra, que o levou a endossar a proposta de
agroecologia; a radical relagdo entre pratica e formacio teérica,
que levou o movimento a fazer convénios com 60 universida-
des brasileiras, além de fundar a Escola Nacional Florestan
Fernandes (ENFF); enfim, nao faltam motivos para justificar
a admiragéio que o MST desperta internacionalmente.
Por esse motivo, nao vacilei quando a Editora Expresséio
Popular me convidou para langarmos um livro sobre a questo
urbana no Brasil. Nao se pedia nada inédito, mas algo quebuscasse preencher, na editora, uma lacuna com um tema tio
importante. Demorei um ano para atender 4 minha promessa
© entregar este pequeno trabalho. De um lado ocuparam-me
os muitos compromissos derivados dos desdobramentos das
manifestagdes de junho de 2013, que se estenderam por todo
o ano de 2014. De outro, eu me detive em refletir 0 que iria
propor para leitura e debate desses militantes, cujo tempo é tio
precioso e cuja tarefa é tao extensa. Meu senso pratico exigia que
eu fosse bem objetiva, direta e, acima de tudo, pedagégica, sem
perder a dimensao tedrica. Infelizmente nao tenho o dom da
psicografia, pois se tivesse poderia pedir a ajuda de Paulo Freire,
nosso educador maior. Talvez 0 proprio Joao Pedro Stedile — uma
das grandes liderangas brasileiras, ainda viva, felizmente - pudesse
me ajudar se ndo fosse tio ocupado com tarefas mais impor-
tantes. Mas solitéria, apés um certo tempo, percebi que teria
de dar conta do recado com minhas parcas ferramentas. Essa
tarefa me obrigou a um esforgo de meméria para relembrar os
muitos anos que passei nas periferias da metrépole paulistana,
como ativista de movimentos sociais, nos anos 1970 e comeco
dos anos 1980. A luta pela Reforma Urbana hoje ainda implica,
como entao, erradicar 0 analfabetismo urbanistico.
Selecionei 3 textos e uma entrevista. Um deles é curto e tem
formato jornalistico. Os outros dois sio um pouco mais desen-
volvidos e, embora tratem de fatos da conjuntura e da historia
urbana recente, apoiam-se em bibliografia, além de manter forre
apoio também na vivéncia empirica. Estes pretendem explicar o
aprofundamento da crise, tirando partido de trabalhos tedricos
sobre a questo urbana.
Finalmente, uma entrevista dada a Revista Alai - América
Latina, na cidade de Quito, sobre a condigao urbana e os mo-
vimentos sociais recentes no Brasil fecham o livro.
10© primeiro artigo, “Cidades e luta de classes no Brasil”,
esté organizado em trés tempos: a) apresenta uma sintese dos
conceitos. basicos analiticos da cidade capitalista, vista como
mercadoria e como produto social; b) trata da especificidade da
cidade no capitalismo periférico, ainda que num pais conside-
rado “emergente” como o Brasil; c) para, em seguida, remeter
a historia recente da politica urbana no Brasil, que tem inicio
com o fim do periodo ditatorial (1964-1985). O relato ¢ anélise
mostram que essa histéria néo & banal. Ela foi marcada pela
constituigdo de um forte movimento social nacional denomi-
nado Reforma Urbana; conquistou um novo aparato legal ¢
institucional federal ligado as cidades; e incluiu exemplos de
governos locais inovadores, que ficaram conhecidos no mundo
todo. E 0 caso do “orgamento participativo”, festejado inter
nacionalmente.
© declinio dessa politica urbana no Brasil ainda requer
maior desenvolvimento analitico, mas sem divida esti relacio-
nado ao seguinte paradoxo: as priticas exemplares de governos
locais “democraticos e populares” desenvolveram-se durante 0
periodo das décadas perdidas, isto é durante os anos de ajuste
- 1980
e 1990. Com a volta dos investimentos federais em_politicas
fiscal ¢ recuo dos investimentos em politicas ptiblicas
urbanas - Programa de Aceleragio do Crescimento (PAC),
Minha Casa, Minha Vida (MCMV)—alguns capitais (liga-
dos ao ambiente construido) tomam o comando das cidades,
concomitantemente ao enfraquecimento dos movimentos que
criaram a agenda da Reforma Urbana.
O texto atual deste primeiro artigo é uma versao resultante
de varios trabalhos publicados em diversos livros e revistas.
Podemos dizer que sua génese esti no livro de minha autoria
O impasse da politica urbana no Brasil, cuja primeira edigéo é
Mlde 2011. A politica urbana parecia ter desaparecido da agenda
politica nacional. Quando estava presente, ela se restringia ao
investimento em obras que, frequentemente, contrariavam 0
desenvolvimento urbano socialmente justo e ambientalmente
da cr
equilibrado . Novas manifestagé se urbana que se apro-
fundava inspiraram novas redagdes sobre o “impasse ”, ¢ a mais
recente delas se deu por emergéncia das Jornadas de Junho de
2013, quando novissimos personagens entraram em cena, para
fazer referéncia ao livro de Eder Sader, Quando novos persona -
gens entraram em cena, langado em 1988. Com novas formas
de ago ,sc compararmos com os movimentos sociais_urbanos
descritos por Eder Sader , os novis
mos personagens trazem a
questio urbana de volta a agenda politica nacional ,a partir da
dificil, cara e irracional (social, econdmica e ambientalmente )
mobilidade (ou imobilidade) urbana vigente.
ico, foi escrito sob
O segundo texto, de formato jornali
© calor dos acontecimentos e publicado no boletim eletrénico
Carta Maior em 25 de janeiro de 2012. Trata da luta dos mo-
vimentos sociais pela moradia no centro de Sao Paulo: “Terror
imobilidrio ou a expulsio dos pobres do centro de So Paulo”. A
reforma do financiamento imobilidrio, que tem inicio na década
de 1990, logrou, finalmente, aquecer o mercado imobilidrio
com o Programa Minha Casa Minha Vida, langado em 2009.
Passamos a constatar eventos como despejos violentos e¢ incén-
dios em favelas, impensdveis uma década e meia atrés, quando
os movimentos ligados 4 Reforma Urbana ainda representavam
uma forga social significativa e as cidades viviam um periodo de
“vacas magras” em relagdo ao investimento federal em politicas
sociais. Capital imobilidrio e movimentos de moradia aliados
a pequenos comerciantes disputam o centro antigo da cidade,
um patriménio construido de importincia incomensurivel - do
12ponto de vista do valor de use, mas marcado pela ideologia
da “deterioragdio” que exige “reforma”. O Estado, representado
pelo governador Geraldo Alckmin e pelos prefeitos José Serra e
Gilberto Kassab nao deixaram a menor duvida sobre 0 lado que
apoiaram nas politicas para o centro da cidade, muito cobigado
pelo capital imobilidrio.
Para completar os instrumentos analiticos necessdrios para
entender a tragédia urbana entre nds, o terceiro texto versa sobre
um pano de fundo que marcou a segunda metade do século XX
e esté mais presente do que nunca no século XXI: Globalizagao
e politica urbana na periferia do capitalismo . A queda do Welfare
State e ascensio do neoliberalismo tiveram consequéncias muito
conhecidas: destegulamentagées, _privatizagdes, _precariedade
nas relagées de trabalho, ampliagdo da concentragéo de capitais,
ampliacio dos mercados, ampliagio da desigualdade, hege-
monia do capital financeiro, enfraquecimento dos sindicatos e
partidos de esquerda, mudanga na geopolitica mundial, entre
outras. As cidades na globalizagéo também se tornaram obje-
tos de estudos especificos, ja que a reestruturagdo produtiva
tem forte impacto sobre © territério, e os ajustes impostos pelo
idedrio neoliberal enfraqueceram os investimentos em politicas
sociais; entre elas figuram as politicas urbanas_ estruturadoras
como: transporte, habitagdo e saneamento. Também nesse texto,
a andlise se ocupa da especificidade do urbano no capitalismo
periférico.
A entrevista dada a Revista Alai -América Latina, “Movi-
mentos e questo urbana no Brasil”, trata das chamadas “jor-
nadas de junho de 2013”. As massivas manifestagdes urbanas
surpreenderam especial mente em funcgdo do prestigio dos gover-
nos petistas no exterior. Nessa entrevista, defendo a opinido de
que as condigdes urbanas de vida constituiram uma causa muito
1Bimportante para os acontecimentos, pois distribuigéo de renda
n&o resolve problemas urbanos como habitagéo ou transporte
coletivo. As referéncias aos novissimos personagens tém sido
acompanhadas, nos meus textos ¢ falas, por um certo otimismo,
como mostra a entrevista. A participagdo em encontros com
jovens dos movimentos emergentes, além dos tradicionais MST
e Via Campesina, alimentam a esperanga da renovago das
forgas de esquerda que foram engolidas pelo espago institucio-
nal. Mas a formagio desses jovens exige tempo de maturagdo
e a conjuntura brasileira, alimentada pela crise econémica
internacional, se acirra no momento em que escrevemos essas
linhas. A elite brasileira, mais do que nunca representada pela
grande midia, luta pelo impeachment da presidente Dilma, em
que pese as concessées dadas a ela, por meio de representantes
das forgas conservadoras que compéem seu governo.
O presente é desafiador e, dada a dificuldade de escrever
sobre as perspectivas, vamos finalizar essa apresentagdo com
uma frase de Luiz Gonzaga Belluzzo, que relembra Marx:
“Este € 0 alto prego que o presente agrilhoado ao p
cobra do futuro”*.
Erminia Maricato
Sao Paulo, 9 de margo de 2015
* BELLUZZO, L. G. “A Constituinte ¢ os donos do Brasil”. Valor Econémico.
Sao Paulo, 03 out. 2013.
14Rs
iat
Manifestagio na Avenida Paulista (SP)CIDADES E LUTA DE
CLASSES NO BRASIL*
© urbano da conjuntura
do inicio do século XXI
Com muita frequéncia, (...) 0 estudo
da urbanizagio se separa do estudo da
mudanga social e do desenvolvimento
econémico, como seo estudo da urba-
nizago pudesse, de algum modo, ser
considerado um assunto secundario ou
produto secundério passivo em relagdo
as mudangas sociais mais importantes e
fundamentais.
Harvey, 2005, p. 166
Introdugao
Nunca é demais lembrar, como ja fizeram numerosos au-
tores, que a existéncia das cidades precede o capitalismo. No
entanto, com ele as cidades mudam. E mudam a tal ponto que
& impossivel pens-lo sem elas. Especificidades no processo de
urbanizagdo acompanham as diferentes fases do capitalismo
colonial-industrial ou global financeiro nos paises centrais
ou
periféricos. Em algum momento da primeira década do século
XXI o mundo passou a ser predominantemente urbano e essa
crescente concentragéo de populagdo nas cidades traz novas
caracteristicas para as sociedades e para a humanidade. Um
* Este texto resultou da edigio de varios trabalhos publicados, mas especialmente
do artigo de mesmo nome que integra a coleténea organizada pelas Fundagdo
Perseu Abramo e Fundagdo Friedrich Ebert (orgs.). Classes? Que classes? So
Paulo: Editora da Fundagio Perseu Abramo, 2013.
7bom exemplo esté na concentragio de pobreza em niimeros
2006).
Desde 0 periodo da revolugio industrial, quando os efeitos
inéditos (Davi
de aglomeragdo nas cidades ofereceram condigdes indispensaveis
para © processo de acumulagio de base fabril até as chamadas
“cidades globais”, que concentram poder internacional, 0 ¢s-
pago urbano e, mais recentemente, metropolitano e regional,
constitui forga produtiva fundamental, além de participar do
processo de dominagaio hegeménica.
Os capitais, em cada momento histérico, buscam moldar as
cidades aos seus interesses, ou melhor, aos interesses de um con-
junto articulado de diferentes forgas que podem compor uma
alianga. Mas esse modelo de paisagem, ou ambiente construido,
no resulta sem contradigées (Harvey, 1982). O que pode ser
interessante aos promotores imobiliérios © proprictérios de terra
também pode contrariar os interesses dos capitais industriais,
apenas para lembrar um exemplo importante que marcou a
historia das cidades nos paises centrais do capitalismo. O acir-
ramento da luta social por melhores salarios, ou melhores condi-
gdes de trabalho, ou ainda melhores condigdes de vida (moradia,
saide, transporte etc.), aprofundam essas_contradigdes*. Um
aumento salarial pode ser engolido pelo aumento da tarifa de
transportes ou do preco dos aluguéis das moradias. Durante os
anos do Welfare State (Estado providéncia ) os trabalhadores con-
quistaram (como resultado de um processo de lutas) a produgao
om massa de moradias. Essa politica determinou os capitais que
iriam perder espago na disputa pelos lucros , juros ¢ rendas jé que
havia necessidade de alojar os trabalhadores, diminuir o prego
* Essas ideias aqui desenvolvidas esquematicamente foram inspiradas em Ball,
1981.da forga de trabalho e diminuir o prego da moradia. Os capitais
rentistas - fundiarios e imobilidrios — foram subordinados ou
regulados diante dos interesses do capital industrial. E dentre
os capitais que participam da produgdo do espago (nos quais
Harvey inclui a propriedade da terra) os capitais especulativos
perderam espago para o capital produtivo*.
A cidade pode ser objeto de diversas abordagens: pode ser
lida como um discurso (como querem os semidlogos € semisti-
cos); pode ser abordada pela estética - ambiente de alienagdo e
dominago por meio da arquitetura e urbanismo do espetaculo;
como manifestagéo de praticas culturais e artisticas mercadold-
gicas ou rebeldes; como legado histérico; como palco de con-
flitos sociais; como espago de reprodugio do capital e da forga
de trabalho, entre outras. Essas diferentes ou dispersas formas
de ver as cidades certamente tornam mais dificil situa-las como
um objeto central estruturador das relagdes sociais. A midia do
mainstream trata de cidades o tempo todo, entretanto raramente
a toma como um produto, ou mercadoria que intermedia os
conflitos entre as classes sociais. Afinal, o capital imobilidrio é
um grande anunciante, patrocinador da grande midia.
No entanto, isso ndo é suficiente para explicar porque a
politica urbana esta tio ausente dos debates da esquerda e das
propostas de politicas piiblicas, em especial, politicas nacionais
de desenvolvimento econémico e social, nas Ultimas décadas
do século XX e primeira do XXI. De fato, essa invisibilidade
Jo** neoliberal (apos a década de
€ maior a partir da global
* Ibid, p. 145-176.
** Iremos utilizar 0 conceito de globalizagao para referirmo-nos ao conjunto das
mudangas (incluindo a ideologia, a cultura e a politica) ocorridas no mundo, a
partir do que Harvey chama de reestruturagdo produtiva do capitalismo, que
tem inicio nos anos 1970.1970, nos paises centrais), quando se enfraquece o poder dos
sindicatos © partidos de esquerda, ¢ o capital financeiro se torna
hegeménico. Mas, nos paises capitalistas periféricos, sobretudo,
essa invisibilidade é histérica, J& mostramos em diversos tra-
balhos que, nesses paises, a habitagdo dos trabalhadores ndo é
problema para o capital e, na maior parte das vezes, nem para
© Estado. Por isso, os bairros de moradia dos trabalhadores sio
construidos por eles mesmos, nos seus hordrios de descanso. E
também por isso, as favelas fazem parte da reprodugdo da forga
de trabalho formal. Foi assim durante 0 processo de industria-
lizago por substituigdo de importagdes e é assim atualmente,
nas cidades conhecidas como globais. As favelas integram as
cidades de paises como 0 Brasil*.
‘A. incrivel auséncia do estudo da questo urbana nos
cursos académicos de economia, sociologia, engenharia
direito, além do desconhecimento dos setores de esquerda,
nos remetem as muitas consideragdes feitas por intérpretes
da “formagio nacional”, para adotar a expresso de Plinio
Sampaio Jr. (Sampaio Jr, 1999) sobre a alienag&o do inte-
lectual brasileiro em relagdo a realidade do pais (Fernandes,
1977; Viotti da Costa, 1999; Schwarz, 1973; Furtado, 2008).
E inconcebivel que 0 BNDES (Banco Nacional de Desenvol-
vimento Econémico e Social), um dos maiores fomentadores
de desenvolvimento econémico e social na América Latina,
em um governo de centro-esquerda, ignore o impacto de seus
investimentos nas cidades ou regides, mas ¢ 0 que acontece**.
Esse conceito de “desenvolvimento” parece nao passar pelo
Temos desenvolvido esse conceito -
geral, sdo parte estrutural de nos:
Ver em especial Maricato, 1996,
** Conforme relato de Tania Bacelar & autora em 2012.
s favelas ou moradias ilegais,
cidades, nio constituem exceg!
;, de um modo
, mas regra.
20ambiente construido e, 0 que ¢ mais impressionante, nem pela
questo fundidria. Além da alienagio decorrente da condi¢ao
de dependéncia cultural, a maquina ideolégica midiatica
de
baixa escolaridade. Dai usarmos frequentemente a expressio
também ocupa a fung’o de um entorpecente das mas
analfabetismo urbanistico ou geogrdfico para expressar essa
ignorancia predominante sobre a realidade e, em especial, a
realidade do ambiente construido (Maricato, 2002).
A produgéo do ambiente construido nos paises capitalistas
foi objeto prestigiado de estudos e pesquisas durante a década
de 1970, apés as revoltas estudantis do final dos anos de 1960.
Merece destaque 0 esforgo da chamada Escola Francesa de Ur-
banismo integrada por marxistas que tratavam de desenvolver
e explicar a produgio do espaco urbano e os conflitos entre
capitais e trabalho, Os estudos se detiveram em mostrar que a
produgio do espaco urbano ou, de um modo geral, do ambiente
construido envolvia alguns tipos especificos de capitais. Os con-
frontos nao se dio apenas no chiio da fabrica, como pretendia a
heranga histérica do movimento operario. A perda de prestigio
da fungao social das cidades, no capitalismo central, coincide
com a ascensdo das ideias neoliberais e concomitante perda de
espago do Welfare State, acompanhando o enfraquecimento
dos sindicatos de trabalhadores e perda de espago das forgas
de esquerda.
O presente texto vai tratar rapidamente: 1) da abordagem
marxista sobre o tema da cidade; 2) da cidade no capitalismo
periférico; e 3) a cidade na conjuntura brasileira.
Portanto, vamos evitar um extenso e abstrato texto acadé-
mico e buscar, dentre os marxistas que estudaram a questio
urbana, algumas formulagées que poderio ajudar a reconhecer
© que parece dbvio, mas nfo é tomado como tal.
aCidade e conflitos: a abordagem marxista
A cidade 6 0 lugar por exceléncia de reprodugdo da forga de
trabalho. Nao ha como nao entender essa formulagao. O mundo
esta se urbanizando crescentemente ¢, nas cidades, a moradia,
a energia, a Agua, o transporte, 0 abastecimento, a educagio,
a satide, o lazer nao tém solugdo individual. Cada vez mais a
reprodugdo da populagéo que compée a forca de trabalho, em
sua maioria, se faz de modo coletivo ou “ampliado”, dependen-
te do Estado, como desenvolveu Castells no classico livro La
question urbaine, de 1972. Transporte coletivo, infraestrutura
e equipamentos sociais sio necessidades que, apesar do fim do
Welfare State ou apesar da tendéncia a privatizagao dos servigos
publicos aps a década de 1980, ainda permanecem como ques-
tées cruciais da luta social nos paises periféricos ou centrais da
atualidade. Diferentemente da chamada reprodugéo simples da
forga de trabalho, a reproducéo ampliada nao depende apenas
do saldrio - ou, em termos mais precisos, da taxa de salario —,
mas também das politicas publicas, parte das quais sio espe-
cificamente urbanas, como se estas constituissem um saldrio
indireto. Um aumento de saldrio pode ser absorvido pelo alto
custo do transporte ou da moradia, por exemplo.
Como ja foi mencionado, o capital em geral busca moldar
o ambiente urbano as suas necessidades, mas interessa destacar
aqui um conjunto dos capitais que tem interesse especifico na
produgio do espaco urbano, por meio do qual se reproduzem
obtendo luctos, juros ou rendas.
1)
incorporagio imobiliéria (um tipo de capital comercial inicial-
Faz parte desse grupo especifico os seguintes capitai
mente estudado por Christian Topalov em 1974); 2) capital de
construgdo de edificagdes; 3) capital de construgio pesada ou
de infraestrutura; e 4) capital financeiro imobilidrio. Harvey
22
T
|localiza nesse grupo também os proprictérios de terra que
podem constituir obstaculos ao processo de reprodugao desses
capitais ou se associar a eles*.
A classe trabalhadora - entendida aqui num sentido amplo,
incluindo os informais e domésticos - quer da cidade, num
primeiro momento, 0 valor de uso. Ela quer moradia e servi-
gos piblicos mais baratos e de melhor qualidade. Entenda-se:
mais barato ¢ de melhor qualidade, referenciados ao seu estagio
historico de reprodugao.
Os capitais que ganham com a produgio © exploragio do
espago urbano agem em fungdo do seu valor de troca. Para eles,
a cidade é a mercadoria. E um produto resultante de determi-
nadas relagdes de produgdo. Se lembramos que a terra urbana,
ou um pedago de cidade, constitui sempre uma condigio de
monopélio - ou seja, ndo ha um trecho ou terreno igual a ou-
tro, e sua localizagio nao é reproduzivel - estamos diante de
uma mercadoria especial que tem o atributo de captar ganhos
sob a forma de renda. A cidade & um grande negécio e a renda
imobilidria, seu motor central.
A renda fundiéria ou imobiliéria aparenta ser uma riqueza
que flutua no espago e aterrissa em determinadas propriedades,
gragas a atributos que podem estar até mesmo fora delas, como
por exemplo um novo investimento pablico ou privado feito
nas proximidades. A legislagio e os investimentos urbanos sio
centrais para “gerar” essa riqueza que iré favorecer (valorizar)
determinados iméveis ou bairros. Esse é um dos principais
* Poderiamos lembrar outros capitais envolvidos com os servigos urbanos ou que
disputam os fundos piblicos, como transporte coletivo ¢ individual, iluminagao
piblica, comunicagdo, limpeza, merenda escolar, atendimento A satide etc. Mas
para 0 que nos interessa vamos nos restringir aqueles ligados a produgo do
espago fisico.motivos para as disputas sobre os fundos publicos em obras.
Por exemplo: 0 que seré construido e, especialmente, onde*
Abertura de avenidas, pontes, viadutos, parques, pode mudar
© prego do metro quadrado nas suas proximidades. Por isso,
os lobbies imobiliérios atuam fortemente junto aos Executivos
e Legislativos de todos os niveis de poder.
Como j4 apontou inicialmente Marx e desenvolveu Harvey,
entre © valor de troca da cidade mercadoria e o valor de uso da ci-
dade condig&o necessdria de vida para a classe trabalhadora, ha uma
profunda oposigio que gera um conflito basico (Harvey, 1982).
Ao lado deste, outros conflitos (secundarios?) sio gerados
pela forma andrquica como o ambiente construido cresce. De-
pendendo das circunstancias histéricas, podem ser notiveis as
entr
divergéncias : a) © capital em geral e 0 capital imobilidrio
(como o exemplo que demos no inicio deste texto); b) diver-
géncias internas a fragdes do capital imobilidrio pela disputa
dos ganhos; e c) divergéncia entre proprietirios de iméveis e
capital imobiliério pelo mesmo motivo**.
Podem ser notaveis ainda as divergéncias entre os préprios
trabalhadores, especialmente entre os que so proprietirios ¢
0s que nao so, Todos nés jé testemunhamos a oposigao feita
por pequenos proprietérios de iméveis populares a favelas que,
localizadas na vizinhanga, podem causar depreciagdo no prego
de sua propriedade. Evidentemente a capacidade de “absorgao”
* Ver o conceito “terra-localizagdo” desenvolvido por Flavio Villaga a partir do
conceito “terra como capital” no excelente livro do autor Reflexdes sobre as cidades
brasileiras. Cf. Villaga, 2012.
** © processo de realizagdo do capital na construgdo de edificagdes difere do
proceso de ocupa 0 mesmo papel).
Ha diferengas
tenham elas uso residencial, industrial, servigos ete.
esquematica, nao iremos entrar em detalhes aqui
de infraestrutura (a terra
10 no interior do processo de construgao de edificagdes,
Jomo a abordagem &dessa riqueza que, aparentemente, paira no ar e se “cola” a
propriedade imobilidria sob a forma de renda ou de sua valo-
rizagio & maior por parte dos capitalistas do ramo imobi idrio
do que pelo trabalhador que tem uma modesta moradia, Mas
ela pode chegar até mesmo nos cémodos das favelas, isto é,
mesmo uma casa precdria em uma favela se valoriza com as
vantagens crescentes de localizagio e pode propiciar ao seu
dono rendimentos com aluguel
E sempre € bom lembrar, hi uma parte dos trabalhadores
explorados diretamente por esses capitais que ganham com
a produgdo do espago urbano: trata-se dos trabalhadores de
construgio que estio entre as categorias mais exploradas da
classe trabalhadora e, segundo alguns autores, so _fontes
extraordindrias de extragio de mais-valia (Ferro e Arantes,
2006; Maricato, 1984).
Para completar esse quadro esquemitico, resta relembrar
© papel, cada vez mais importante, do Estado na produgio do
espaco urbano. E dele o controle do fundo piblico para inves-
timentos, ¢ cabe a cle, sob a forma de poder local, a regulamen-
taco © 0 controle sobre 0 uso © a ocupagio do solo (seguindo,
hipoteticamente, planos e leis aprovados nos parlamentos). E,
portanto, o principal intermediador na distribuigio de lucros,
juros, rendas ¢ salarios (direto ¢ indireto), entre outros papéis.
Ha, portanto, uma luta surda pela apropriagio dos _fundos
publicos, que é central para a reprodugio da forga de trabalho
ou para a reproducio do capital. Podemos citar como exemplo
importante a disputa entre investimentos para a circulagao de
automéveis ou investimentos para o transporte coletivo.
As megaobras sempre, na histéria das cidades, tiveram um
papel especial na afirmagao do poder religioso ou simplesmente
politico, mas a associagéo entre a arquitetura e o urbanismo
25dos grandes eventos, os processos imobilidrios agressivos e a
gentrificagao, parece ter se tomado parte essencial das cidades
apés a reestruturag&o capitalista ocorrida no fim do século XX
(Arantes, 2000 ¢ Vainer, 2000).
Cidade na periferia do capitalism
urbanizagao dos
baixos salarios
Desigual e combinado, ruptura e continuidade, moderniza-
go do atraso, modernizago conservadora, capitalismo travado,
so algumas das definigdes que explicam o paradoxo evidencia-
do por um processo que se moderniza alimentando-se de formas
atrasadas e, frequentemente, nao capitalistas, strictu senso. As ci-
dades séo evidéncias notaveis dessa formulacao tedrica, e, nelas,
o melhor exemplo talvez seja a construgio da moradia (e parte
das cidades) pelos proprios moradores (trabalhadores de baixa
renda). Essa construgdo se dé aos poucos, durante seus hordrios
de folga, ao longo de muitos anos, ignorando toda e qualquer
legislagao urbanistica, em areas ocupadas informalmente.
Francisco de Oliveira forneceu a chave explicativa para a
gigantesca pratica da autoconstrugéo da moradia ilegal (uma
espécie de produgéo doméstica) pelos trabalhadores ou pela po-
no rebaixamento
pulagdo mais pobre de um modo geral. Ela es
do custo da forga de trabalho, que ocupa seus fins de semana
(hordrios de descanso) na construgio da casa (Oliveira, 1972).
Vamos nos concentrar no caso do Brasil para acompanhar as
especificidades desse processo.
Essa pritica (da autoconstrugiio das casas) contribuiu para
a acumulagdo capitalista durante todo periodo de industrializa-
g40 no Brasil, particularmente de 1940 a 1980, quando o pais
cresceu a taxas aproximadas de 7% ao ano, e 0 processo de ur-
banizagao cresceu 5,5% ao ano (IBGE). A industrializagio com
26baixos salérios correspondeu a urbanizagdo com baixos salérios.
(Maricato, 1976, 1979, 1996). O exemplo revela que uma certa
modernizagio e um certo desenvolvimento (industrializagio de
veis) dependeram de um
capital intensivo, produgdo de bens dui
modo pré-moderno, ou mesmo pré-capitalista (a autoconstrugio
da casa), de produgo de uma parte da cidade. Essa imbricagdo
foi (e ainda é) fundamental para 0 processo de acumulagio ca-
pitalista nacional e internacional. Ela se aplicou perfeitamente a
produgio das cidades que receberam a indistria automobilistica
a partir de 1950 - Volkswagen, Chrysler, Mercedes Benz - e se
aplica hoje nas cidades que so chamadas de globais.
A terra urbana (assim como a terra rural) ocupa um lugar
central nessa sociedade. O poder social, econdmico e politico
sempre esteve associado & detengiio de patriménio, seja sob a for-
ma de escravos (até 1850), seja sob a forma de terras ou iméveis
(de 1850 em diante). E:
também a privatizagio do aparelho de Estado, tratado como
a marca - patrimonialismo - se refere
coisa pessoal. O patrimonialismo est ligado A desigualdade so-
cial histérica, notavel ¢ persistente, que marca cada poro da vida
no Brasil. E
a0 proceso de exportagfo da riqueza excedente para os paises
sas caracteristicas, por outro lado, estio ligadas
centrais do capitalismo, Celso Furtado mencionou varias vezes
em seus trabalhos 0 convivio da exportagéo da riqueza excedente
com uma estreita elite nacional consumidora de produtos de
luxo. Esse quadro forneceria as caracteristicas de um mercado,
por assim dizer, travado (Furtado, 2008).
Recente relatorio da ONU-Habitat “Estado de las Ciudades
de América Latina y el Caribe 2012” mostra que o Brasil, a sexta
economia do mundo, mantém uma das piores distribuigdes
de renda no continente, mesmo apés os avangos nesse sentido
verificados nos governos do presidente Lula e da presidente
27Dilma. Sao mais desiguais do que o Brasil, na América Latina,
apenas Guatemala, Honduras e Colémbia. Essa marca, a da
desigualdade, esti presente em qualquer Angulo pelo qual se
olha o pais e, portanto, também nas cidades.
Evidentemente, para esse capitalismo “funcionar” como
parte da divisdéo internacional do trabalho, os trabalhadores
urbanos integrados ao processo produtivo - mas excluidos de
grande parte dos beneficios que 0 mercado de consumo assegura
e, especialmente, excluidos da cidade — so submetidos a uma
poderosa méquina ideolégica, quando nao pode ser simplesmen-
te repressora. Além da poderosa maquina mididtica, a generali-
zagao do débito politico ¢ o favor como mediagao universal sao
relagdes que explicam muito a cidade e uma sui generis forma
de cidadania no Brasil: direitos para alguns, modernizago para
alguns, cidade para alguns... (Castro ¢ Silva, 1997).
Nem todos os indicadores sociais sio negativos no processo
de urbanizagio concomitante 4 industrializagio que se deu no
decorrer do século XX, mais exatamente a partir de 1930. A
mortalidade infantil, a expectativa de vida, o nivel de escolarida-
de, o acesso a dgua tratada, a coleta do lixo e a taxa de fertilidade
feminina apresentam uma evolugdo positiva a partir de 1940
até nossos dias, exatamente devido 4 mudanga de vida com a
urbanizagio (IBGE, 2008). No entanto, os efeitos da doutrina
neoliberal que acompanhou a chamada globalizagio afastaram
a perspectiva de crescimento, ainda que acompanhado de con-
centrago de renda (Schwarz, 2007).
‘A populagdo moradora de favelas cresceu mais do que a
populagio total ou do que a populagio urbana nos iltimos 30
anos, isto é, de 1980 a 2010 (IBGE).
Nao cabe qualquer divida sobre o forte efeito negativo que
a globalizago, dominada pelo idedrio neoliberal, impés, com
28a anuéncia das elites nacionais, 4s metrépoles brasileiras nas
décadas de 1980 e 1990. As principais causas dessa tendéncia,
j& tratada em vasta bibliografia, se deveram 4 queda brusca do
crescimento econdmico com aumento do desemprego e a retragdo
do investimento publico em politicas sociais. A sistematizagao d:
propostas contidas no Consenso de Washington mostra a forga
de tal dominagao politica que consegue impor a uma sociedade
desigual, em parceria com as elites locais, agdes que seguem um
caminho contrério ao interesse e necessidades da maior parte da
populacio (Cano, 1995; Tavares e Fiori, 1997). As trés politicas
do ambiente
publicas urbanas estruturais (ligadas a produ
construido) - transporte, habitagdo e saneamento - foram igno-
radas ou tiveram um rumo erratico, com baixo investimento, por
mais de 20 anos. Os precarios times de funciondrios publicos
existentes no Estado brasileiro e as instituigdes que se formaram
estavam em ruinas quando investimentos foram lentamente reto-
mados em 2003, na gesto do presidente Lula (Maricato, 2011b).
Talvez, 0 indicador que mais evidencia o que podemos
chamar de tragédia urbana ¢ a taxa de homicidios, que cresceu
259% no Brasil entre 1980 e 2010. Em 1980, a média de assas-
sinatos no pais era de 13,9 mortes para cada 100 mil habitantes,
em 2010 passou para 49,9 (Weiselfisz, 2013).
Certamente essa ocorréncia nao se deveu apenas a esses
fatores e nem se limita as cidades brasileiras. Nao é possivel
abordar um assunto to estudado em poucas palavras. Mas
nio hd divida de que ela compée o quadro de abandono do
Estado provedor, ainda que tratemos do provedor na_periferia
capitalista, na qual a previdéncia nao era universal, tampouco
a saiide ou a habitagio. O tema da violéncia, cujas origens estio
na sociedade escravista que formalmente resistiu até 1888, se
transformou numa das principais marcas das cidades brasileiras.
29Nas décadas perdidas: luta social pela cidade democratica
Movendo-se contra a corrente mundial de enfraquecimento
dos partidos de esquerda, do declinio do crescimento econémico
e da retrago do Estado provedor, o Brasil dos anos 1980 mostra-
va um quadro contrastante. Enquanto a economia apresentava
uma queda acentuada, ao mesmo tempo que lutavam contra o
governo ditatorial, movimentos sociais e operérios claboravam
plataformas para mudangas politicas com propostas programé-
ticas. Na década de 1980, foram criados novos partidos, outros
partidos de esquerda sairam da clandestinidade, novas entidades
operdrias foram fundadas e ainda havia os movimentos sociais
urbanos - uma novidade na cena politica brasileira, pelo menos
com a expresso que ganharam na ocasiao.
Um vigoroso Movimento Social pela Reforma Urbana
recuperou as propostas elaboradas na década de 1960, no con-
texto das lutas revoluciondrias latino-americanas. Tratava-se
de construir a ponte com uma agenda que a ditadura havia
interrompido a partir de 1964. Na década de 1960, 0 Bras
tinha 44,67% da populagdo nas cidades (censos IBGE). Em
1980, ja eram 67,59%. Houve um acréscimo de cerca de 50
milhdes de pessoas nas cidades, e os problemas urbanos se
aprofundaram. Esse movimento reunia entidades profissionais
(arquitetos e urbanistas, engenheiros, advogados, assistentes
sociais), entidades sindicais (urbanitdrios, sanitaristas, stor
de transportes), liderancas de movimentos sociais, ONGs,
pesquisadores, professores, intelectuais, entre outros. Por sua
influéncia, foram criadas comissdes parlamentares e foram
eleitos prefeitos, vereadores ¢ deputados.
No que se refere ao destino das cidades, na agitada cena
politica estavam presentes: a) as mobilizagdes sociais, os sindi-
catos © os partidos politicos; b) a produgio académica que passa
30a desvendar a cidade real (com diagnésticos sobre as estratégias
de reprodugdo dessa forga de trabalho de baixos salérios), des-
montando as construgdes simbélicas e ideolégicas dominantes
sobre as cidades; ¢ c) governos municipais inovadores que expe-
rimentaram novas agendas com programas sociais, econémica
¢ politicamente includentes ¢ participativos.
Durante o regime de excegdo (1964-1985), os prefeitos da
capitais eram indicados pelos governadores, que eram indicados
pelo presidente da Repiiblica, que era indicado pelas Forgas
Armadas e forgas econémicas que Ihes davam_ sustentacio.
Portanto, as experimentagdes de gestio local democratica se
davam nos demais municipios onde havia elei¢éo direta para
prefeito. Entre os urbanistas, ganharam importincia nessa fase
as experiéncias de Diadema, municipio operdrio da Regidio Me-
tropolitana de So Paulo, com suas propostas de incluso social
e urbana claboradas por profissionais ativistas em contexto de
forte luta social. Apés 1985, com cleigées livres para prefeito
nas capitais, duas mulheres foram cleitas para o governo do
municipio de So Paulo, com um intervalo entre elas — Luiza
Erundina (1989-1992) e Marta Suplicy (2001 e 2004), Suas
administragdes deixaram marcas profundas nas areas do trans-
porte, da cultura, da assisténcia social, que permanecem como
paradigma apés muito anos.
Chamam a atengdo as experiéncias de Belém, democratizan-
do a participagdo com o Congreso da Cidade e modernizando
a administrago com o cadastro muitifinalitério urbano; de Belo
Horizonte, com as propostas de abastecimento doméstico que
permitiram baratear o prego da comida; de Recife, com a poli-
tica de forte afirmagio das raizes multiculturais , em especial da
contra riscos
misica afro-brasileira , além das agdes de prevent
por desmoronamento nas areas de moradias pobres; de Santo
31André, com a politica de sancamento ¢ habitacéo; de Caxias do
Sul, com a insergo até mesmo das criangas na discusséo sobre
© futuro da cidade, entre outras. Mas foi o orgamento partici
pativo de Porto Alegre que constituiu a mudanga mais notdvel
de rumo nas administragdes urbanas e no seu planejamento.
O Orgamento Participativo praticado durante quase duas
décadas em Porto Alegre constituiu uma mudanga no padrio
dos investimentos urbanos. Ele significou a ruptura com o
investimento piblico submetido aos interesses do mercado
imobilidrio, 0 que, por sua vez, alimenta a segregagdo territo-
rial e as desigualdades. Outros Jobbies muito bem organizados,
que indefectivelmente atuam junto as Camaras Municipais ,
encontram dificuldades em agir. Os excluidos passam a sujei-
tos politicos que participam diretamente das decisées . Podem ,
portanto, exercer algum controle sobre o Estado, que se torna
mais proximo ¢ mais transparente . Rompe -se também com o
indefectivel clientelismo politico, embora isso dependa do grau
de democracia exercida no processo, pois o risco da cooptagéo
e da relagio de troca de favores esti sempre presente . O orga-
mento participative mudao lugar ¢ a natureza do planejamento urbano.
Os governos municipais que inauguraram gestes inovado-
ras, autodenominadas “democraticas e populares” orientavam-
-se pela “inversio de prioridades” na discussio do orgamento
piiblico e a participacdo social em todos os niveis. Os governos
do PT foram tio bem-sucedidos que passaram a se diferenciar
sob a marca do “modo petista de governar”. As propostas
cram criativas e efetivas, respondendo com originalidade aos
problemas colocados pela realidade local, Nesse sentido, os
projetos arquiteténicos, urbanisticos © legais relacionados ao
“passive urbano” (cidade ilegal, autoconstruida, ¢ precariamente
32-
urbanizada) ganha importincia, pois sempre foi ignorado pelo
urbanismo do mainstream, Por isso, os programas de governo
se dividiam entre os que buscavam recuperar a cidade ilegal
consolidada (onde nio houvesse obstéculo ambiental para isso)
© a produgao de novas moradias ¢ novas areas urbanas.
Apenas para registrar um exemplo importante, uma das
iniciativas mais bem-sucedidas em Sao Paulo buscava dar mais
qualidade para a vida de criangas e adolescentes nos bairros
pobres, por meio da construgdo e operagio de (CEUs) Centros
Educacionais Unificados. Tratava-se de criar um edificio de
destacada qualidade arquiteténica, bem equipado, que oferecia
cursos regulares, cinema, gindstica, artes plisticas, programas
teatrais e musicais, inéditos na periferia urbana, Incluiu-se
no centro dos bairros periféricos um pedago de um_ universo
discrepante, modernizante, em relago ao entomo precério.
Imagem 1: CEU da Paz - Brasilandia, Sao Paulo, 2012
Fome: Googte Maps, 2012
33A. inexperiéncia inicial daqueles que alimentavam a utopia
de construir uma cidade mais democratica obrigou muitos
ativistas a refletir sobre as limitagdes e a consequente adaptagio
que deveria ser feita nas propostas. Os conflitos diérios vinham
dos movimentos sociais, que cobravam mais agilidade da parte
do governo; também de adversarios, que podiam fazer parte da
Camara Municipal, do Judicidrio, quase sempre conservador;
mas, em especial ¢ de modo generalizado, da grande midia,
que atuou como partido politico representando a elite do pais.
décadas de 1980 ¢
1990, pesquisadores, professores universitérios ¢ profissionais de
Com o passar do tempo, durante
diversas Areas, socialmente engajados, criaram 0 que podemos
chamar de Nova Escola de Urbanismo. Se antes esses agentes
eram criticos do Estado e das politicas publicas, a partir da con-
quista das novas prefeituras e com o crescimento dos partidos
de esquerda, notadamente do PT, eles foram se apropriando de
parcelas do aparelho de Estado nos Executivos, nos parlamentos
e, com menos importancia, até mesmo do Judiciario. Novos
programas, novas praticas, novas leis, novos projetos, novos
procedimentos, sempre com participagdo social, permitiram o
desenvolvimento também de quadros técnicos e de know-how
sobre como perseguir maior qualidade e justica urbana*. As
travas da macroeconomia estavam colocadas como obstaculos
a serem resolvidos no futuro.
Esse movimento pela Reforma Urbana avangou conquistan-
do importantes marcos institucionais. Dentre eles destacam-se:
a) um conjunto de leis que, a partir da Constituigdo Federal de
1988, aporta instrumentos juridicos voltados para a justica ur-
bana, sendo o Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001)
* Ver algumas referencias bibliograficas em Maricato, 201 1a, 201 1b.
34a mais importante delas; b) um conjunto de entidades, como
© Ministério das Cidades (2003) e as secretarias nacionais de
habitagdo, mobilidade urbana _e sancamento ambiental, que
retomavam a politica urbana agora de forma democritica; e
©) consolidagio de espagos dirigidos A participagio direta das
liderangas sindicais, profissionais, académicas e populares como
as Conferéncias Nacionais das Cidades (2003, 2005, 2007) ¢
Conselho Nacional das Cidades (2004).
Cidades na conjuntura atual: a retomada do investimento
pliblico e a surpreendente subordinagao do espaco
urbano ao capital
Nao hd davida de que as politicas sociais implementadas
pelos dois governos de Luis Inacio Lula da Silva fizeram dife-
renga na vida de milhdes de brasileiros. Os principais programas
sociais do governo Lula que tiveram continuidade na gestio
de Dilma Rousseff foram: Bolsa Familia, Crédito Consigna-
do, Programa Universidade para todos (ProUni) — bolsa de
estudo em universidades privadas trocadas por impostos -,
Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf)
e Programa Luz para Todos. Garantiu-se um aumento real do
salario minimo (de cerca 55%, entre 2003 e 2011, conforme
Dicese). Além desses programas, o crescimento da economia ¢
do emprego, propiciado por condigdes de troca internacional,
trouxeram alguma perspectiva de esperanca de dias melhores.
Em vez de reforgar explicagdes que veem no aumento da
renda de uma grande camada, a emergéncia de uma nova
classe média, Mareio Pochmann classifica o fenémeno como
um reforgo das camadas que se encontram na base da pira-
mide social, Estes aumentaram sua participago relativa. na
renda, que estava abaixo de 27%, para 46,3% entre 1995 ¢2009. Os clasificados em “condigio de pobreza” diminufram
sua representagio de 37,2% para 7,2% nesse mesmo periodo.
Parte dessa populagio que migrou da condigdo de pobreza
para a base da pirimide empregou-se na construgio civil
(Pochmann, 2012). O grafico abaixo mostra os nameros de
queda do desemprego nas atividades em geral em relagdo a
este setor da economia.
Grifico 1: Taxa de Desemprego (°/0) - Conjunto de 6 RMs*
Total de atividades x Construgao, 2014
Hii
de desocupag3o ra semana dereterénci, 6s pesso3s de 10 anos ou mals de dade, no total de aoweades
1 Taxa de desocupacio na semana de referenca, das pesos de 10 anos ou mat dead, na construrdo
Fonte: PME/IBGE
Elaboragdo: Banco de Dados - CBIC, 2014/Rafacl Borges Pereira
A construgao civil foi um dos setores prioritérios da politica
de crescimento econémico gragas aos investimentos em obras de
infraestrutura e habitagdo. Outro setor que teve muito incentivo
para crescer, com forte impacto para as cidades, foi a industria
* Conjunto das seis regides metropolitanas: Recife, Salvador, Belo Horizonte,
Rio de Janeiro, Séo Paulo ¢ Porto Alegre. Nota: periodo de referéncia de 30
dias para procura de trabalho.
36automobilistica. Vamos tratar dessa trinca de capitais - capital
imobilidrio, capital de construgéo pesada e industria automotora
- que garantiram uma reacao anticiclica positiva em relagio a
crise internacional de 2008, mas conduziram as cidades para
uma situagao tragica apés quase 30 anos de baixo investimento.
A retomada dos investimentos publicos comegou lentamen-
te, freada pelas travas neoliberais que proibiam gastos sociais.
Mas a partir de 2007 0 governo federal langou o Programa de
Aceleragdo do Crescimento (PAC) e, em 2009, 0 Programa Mi-
nha Casa Minha Vida (MCMV). Com o primeiro, a atividade
de construgao pesada comega a decolar e, com o segundo, é a
construgdo residencial que decola (CBIC, 2015).
O PAC se destina a financiar a infracstrutura econdémica
(rodovias, ferrovias, portos, aeroportos e toda a infraestrutura
de gerago e distribuigéio de energia) ¢ a infraestrutura social
(agua, esgoto, drenagem, destino do lixo, recursos hidricos,
pavimentagao). Ele federalizou o Programa de Urbanizagio de
Favelas: finalmente o governo federal no Brasil reconhecia a
cidade ilegal e 0 passivo urbano, buscando requalificar e regu-
larizar reas ocupadas ilegalmente. Muitos bairros pobres de
um universo gigantesco passaram por projetos de recuperagdo
urbanistica, elevando a condi¢do sanitaria e de acessibilidade,
entre outras.
Ja o MCMV é diferente. Retoma-se a visio empresarial da
politica habitacional, ou seja, de construgdo de novas casas,
apenas, sem levar em consideragéo o espago urbano em seu
conjunto e muito menos a cidade j4 comprometida pela baixa
qualidade.
Com a finalidade explicita de enfrentar a crise econémica
de 2008, 0 MCMV apresenta pela primeira vez uma politica
habitacional com subsidios do governo federal. Desenhado
37pelo Ministério da Casa Civil do governo federal (com Dilma
Rousseff A frente), em parceria com os maiores empresérios
do setor, 0 programa inclui regras para a securitizagio do
empréstimo. Buscava-se evitar 0 saldo desastroso que havia
aracterizado o fim do sistema realizado durante a ditadura
com as instituigdes. centrais - Banco Nacional de Habita-
Go, Plano Nacional de Saneamento e Agéncia Nacional de
Transporte Urbano. O programa concluiu uma reforma do
financiamento imobilidrio que vinha sendo ensaiada, com
varias medidas, desde a década de 1990; mas, nunca é demais
ia ficou intocada (Royer, 2014), O
MCMV formalizou as condigdes para um boom imobilidtio
lembrar, a questo fundi
no Brasil.
Grafico 2: Financiamento habitacional privado, 2014
(RS bilhdes)
Enire 2002 €2014,0 |
mtantefrsncad> |
éresceu maisde 62 veres |
|
Fonte: Abecip e Bacon
Elaboragio: Inteligéncia de Mercado Abecip/Rafael Borges Pereira,
Vivemos um paradoxo: quando finalmente o Estado
brasileiro retomou 0 investimento em habitag%o, saneamento
e transporte urbano de forma mais decisiva, um intenso
processo de especulagio fundiéria e imobiliéria _promoveu
38a elevagio do preco da terra e dos iméveis, considerada a
“mais alta do mundo”. Entre janeiro de 2008 e janeiro de
2015, 0 prego dos iméveis subiu 265,2%, no Rio de Janei-
ro; ¢ 218,2%, em Sao Paulo, liderando o aumento, entre as
capitais do pais (Fipe ZAP, 2015). E tudo, especialmente,
porque a terra se manteve com precdrio controle estatal,
apesar das leis e dos planos que objetivavam o contrario.
No mais dos casos, as Camaras Municipais e Prefeituras
flexibilizaram a legislago ou apoiaram iniciativas _ilegais
para favorecer empreendimentos privados (Fernandes, 2012).
Uma simbiose entre governos, parlamentos e capitais de
incorporagéo, de financiamento e de construgdo promoveu
um boom imobilidrio que tomou as cidades de assalto. Se
nos EUA o mote da bolha imobiliaria se deu no contexto
especial da especulagéo financeira, cremos que, no Brasil, o
core do boom aliou ganhos financeiros a histérica especulagdo
fundidria (patrimonialista), que se manteve - provavelmente
ainda como espago reservado a burguesia nacional - agora
no contexto da financeirizagéo*. O “nd da terra” continua
como trava, revisitada na globalizago, para a superag3o do
que podemos chamar de subdesenvolvimento urbano.
Pela primeira vez na historia do Brasil, 0 governo federal
reservou subsidios em volume significativo, para que as ca-
madas de mais baixa renda
io ficassem de fora da produgio
habitacional. Mas como a moradia ¢ uma mercadoria especial
(porque & vinculada terra, uma condigo nao reproduzivel),
08 subsidios incidiram no aumento do prego da terra.
* Para Lessa e Dain, 0 setor imobiliério e de construgdo pesada esto
historicamente reservados a burguesia nacional. Cf. Lessa ¢ Dain, 1998. Sobre
a bolha americana, ef. Fix, 2011
39