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LYNCH de Rui A Joaquim Barbosismo No STF

O documento discute a judicialização da política no Brasil e as perspectivas diferentes sobre este fenômeno. Alguns aplaudem a capacidade do Judiciário frear a política, enquanto outros acreditam que isso reduz a legitimidade democrática. O autor analisa a ideia de separação de poderes e como ela influenciou o papel atribuído ao Judiciário, especialmente as visões de Montesquieu.
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LYNCH de Rui A Joaquim Barbosismo No STF

O documento discute a judicialização da política no Brasil e as perspectivas diferentes sobre este fenômeno. Alguns aplaudem a capacidade do Judiciário frear a política, enquanto outros acreditam que isso reduz a legitimidade democrática. O autor analisa a ideia de separação de poderes e como ela influenciou o papel atribuído ao Judiciário, especialmente as visões de Montesquieu.
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24 in dubio

da breca
Togados

E
stá em curso uma ção de que o Judiciário em geral e o
relevante discussão Supremo Tribunal Federal (STF) em
sobre o fenômeno particular estariam adquirindo um
da judicialização da inédito lugar de destaque na toma-
política no Brasil, da de decisões políticas no cenário
decorrente da expansão da jurisdição político nacional, alterando a forma
constitucional – isto é, do direito que reconhecida da correlação de forças
os juízes têm de declarar a inconsti- políticas no país.

Christian tucionalidade de normas jurídicas Alguns aplaudem a mudança,

Edward Cyril elaboradas pelo Legislativo. A judi-


cialização da política se configuraria
acreditando que tal fenômeno seria
benéfico, uma vez que, desta forma,
Lynch na medida em que o Judiciário come- colocaria um freio à suposta má
çaria a decidir sobre questões por ele qualidade política brasileira. Ou-
Cientista político
mesmo consideradas anteriormente tros reclamam, alegando que o Judi-
de atribuição privativa dos poderes ciário viria se erigindo em uma ins-
Executivo e Legislativo. O grosso da tância canceladora da legitimidade
discussão gira em torno da percep- democrática brasileira, representa-

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da pelos poderes eleitos pelo povo. tos magistrados – em razão da classe cia para considerar o limite legítimo
A discussão opõe assim judiciaristas social a que pertencem, e pela forma- de exercício de suas funções. O se-
ou ativistas judiciários, de um lado, ção profissional que receberam, que gundo diz respeito à maneira como
e antijudiciaristas, ou defensores da induz à oposição entre o direito e a a ideologia do judiciarismo penetrou
autorrestrição judicial em matéria política, a boa norma e a má prática no Brasil, e dos eventuais riscos nela
política, de outro. Num plano mais dela – de fato tendem a se orientar embutidos. A esta ideologia, vou cha-
imediatista, o debate é travado en- movidos por uma visão negativa mar “ruibarbosismo”.
tre aqueles que são a favor ou contra da política, tal como ela vem sendo
as decisões judiciárias em matéria praticada no Brasil. Nesse sentido, é Montesquieu: separação de poderes
de cotas para as minorias, da cláu- difícil saber se, como se diz, eles são A ideia da necessidade de um Ju-
sula de barreira, do aborto do feto influenciados pela imprensa conser- diciário independente, difundida do
anencefálico, do modo como os mi- vadora ou se, na verdade, a posição ponto de vista doutrinário por Mon-
nistros do STF julgaram os réus na de classe a que pertencem os juízes tesquieu, vem do século XVIII e veio
ação penal chamada de “o caso de impeliria a maioria deles a julgar a reboque da sua famosa teoria da
mensalão” etc. como julgam, independente da pres- separação de poderes. Montesquieu
Todas essas questões, no fundo, são da mídia. combatia o modelo autocrático por
dizem respeito à legitimidade ou meio do qual o Estado nacional fran-
não que teria o Judiciário de fazer cês vinha sendo construído – mode-
o que está fazendo, isto é, decidir lo este, aliás, mais ou menos inevitá-
sobre questões que estávamos acos- vel numa etapa do desenvolvimento
tumados que fossem decididas pelo político em que o fundamental era

O
governo ou pelo Congresso Nacio- construir a ordem, monopolizar o
nal. De um ponto de vista geral, se próprio ativismo exercício legítimo da violência sobre
pode dizer que a expansão da esfera judiciário, isto é, o o territorial por meio de um Estado
decisória do Judiciário é uma conse- judiciarismo, está nacional, o que impunha combater
quência do modelo judiciarista ado- baseado na suposi- os senhores feudais e a Igreja.
tado pela Constituição em 1988, que ção da insuficiên- A criação do Estado nacional se
fortaleceu a jurisdição constitucional cia da classe política para efetivar os dava em torno da figura do rei ab-
exercida pelos juízes. Neste sentido, valores e determinações constitucio- soluto, que deveria tentar monopo-
não há muito o que discutir, porque nais. É o que justifica a atitude dos ju- lizar o poder de governar, legislar e
ela se verificou em todos os países ízes de, digamos, tomar uma posição julgar num contexto em que tais fun-
que consolidaram suas democracias. ativa diante da inação ou “corrup- ções estavam entregues a uma mirí-
O que se pode discutir, porém, é se ção” dos poderes políticos. Este é um ade de poderes privados no âmbito
a visão que os julgadores brasileiros tema complexo e, aqui, eu gostaria de do reino. Numa etapa como aquela,
em geral – e do STF, em especial – considerá-lo apenas em dois pontos: não era possível haver separação de
possuem da política é verdadeira ou primeiro, a ambiguidade do lugar do poderes. Era o tempo de Hobbes, na
não, e se essa visão afeta a sua forma Poder Judiciário na teoria da separa- Inglaterra, e de Bodin e Boussuet, na
de julgar. Parece-me certo que mui- ção de poderes, que serve de referên- França.

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A ideia de um Judiciário separa- deria a se expandir indefinidamente te verificando o que ocorrera e apli-
do, a reboque da teoria da indepen- caso não encontrasse obstáculos, cando a lei adequada ao caso con-
dência de poderes, surge num segun- destruindo as liberdades individuais. creto. Ele supostamente não decidia
do momento, quando a ordem e o Daí a necessidade de dividi-lo, en- coisa alguma, no sentido de valorar
Estado nacional já se acham mais ou carregando o exercício das suas três o que era certo e errado, melhor ou
menos consolidados e a preocupação funções – governar, legislar e julgar pior. Ele aplicava mecanicamente a
central das elites que haviam se be- – a três poderes diferentes e autôno- lei, sem projetar os seus próprios sen-
neficiado daquele Estado, mas que já mos entre si. Então seria preciso criar timentos sobre o que era justo ou in-
o consideram demasiado poderoso e de maneira artificial um esquema de justo na sua atividade de julgar. Eles
interventor, passa a ser a criação de institucionalização capaz de limitar eram, nas palavras de Montesquieu,
um Estado liberal, isto é, respeitador esse poder. Haveria o Parlamento “a boca que diz a lei”. Verificariam
do mercado e da sociedade, orienta- separado da Coroa e um Judiciário a existência ou inexistência do ilíci-
do pelo princípio da não intervenção separado do Parlamento. Segundo to, e aplicariam a lei prevista no caso.
no domínio socioeconômico. O ins- Montesquieu, o Executivo e o Legis- O juiz não teria vontade própria; a
trumento por excelência de limitação lativo são poderes políticos; o Judi- vontade dele era a vontade da lei, e
do arbítrio do Estado seria a Consti- ciário, não. Surgiu, então, a doutrina a vontade desta era aquela do legisla-
tuição, que teria duas características de independência do Poder Judiciá- dor – poder político – no momento
fundamentais: a separação dos pode- rio: ele deveria ser exercido como na de elaborá-la.
res em três (Executivo, Legislativo e Inglaterra, por juízes extraídos do Em outras palavras, segundo tal
Judiciário), independentes e equipo- povo, sem que sofressem pressão dos visão, o juiz não teria qualquer von-
tentes entre si, evitando assim a con- outros dois poderes. Só assim a liber- tade. Era um mero cumpridor da
centração de poderes nas mãos de um dade dos cuidados poderia ser manti- vontade do Legislativo, o poder por
só governante, e uma declaração de da contra o arbítrio da “política”. excelência depositário da soberania
direitos fundamentais dos cidadãos, De acordo com Montesquieu, ele do povo, por ser composto de re-
que lhes serviria de garantia contra seria um poder igual em poder ao Le- presentantes por ele eleitos. Embora
o avanço do Estado. Foi este o mo- gislativo e ao Executivo, mas não se- independente para garantidos direi-
mento de Locke, na Inglaterra, e de ria propriamente político, porque ele tos dos cidadãos contra o arbítrio
Montesquieu, na França. não teria um poder de decisão políti- da política, o Poder Judiciário não
Montesquieu estabelece a famo- ca, como aqueles dois. Enquanto es- era considerado, repito, um poder
sa teoria da separação dos poderes a tes dois “decidiam”, ou seja, julgavam político, e sim um poder jurídico.
partir, segundo ele, da observação da da oportunidade da conveniência de Haveria uma diferença entre fazer a
constituição da Inglaterra, que era o determinadas medidas, aprovando lei e executá-la, tarefas que exigiam
único país independente do mundo, projetos de lei e sancionando-os, o o exercício do poder político, isto
naquela época, que dava por supera- Judiciário se limitaria a aplicar aque- é, discricionário, e julgar de acordo
da a etapa de construção autocrática las leis elaboradas pelos outros po- com a lei, que era o poder jurídico,
da ordem, isto é, o absolutismo. Para deres. Ao decidir um caso judicial, o limitado a aplicá-la. Essa concepção
Montesquieu, o poder se comporta- magistrado não estaria propriamente da separação de poderes e da inde-
va como uma espécie de gás, que ten- “decidindo”; ele estaria simplesmen- pendência do Judiciário, formula-

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da por Montesquieu, será diferen- Mas essa Constituição não era perspectiva concreta de que os Es-
temente interpretada nos Estados moderna, entendida como um do- tados poderiam entrar em conflito
Unidos e na França, dando origem cumento jurídico resultante da von- entre si mesmos ou com o governo
a duas igualmente distintas tradições tade racional do soberano, que era federal. Para regular esses confli-
de se compreender o papel do Judici- a Nação, destinado a organizar os tos, criaram um tribunal em nível
ário no quadro das instituições. três poderes de modo a resguardar federal: a Suprema Corte. Esse su-
a liberdade individual, mas que re- premo tribunal federal norte-ame-
Nos Estados Unidos: jurisdição sultava da expressão de uma vonta- ricano nascia destinado, sobretudo,
constitucional e caráter político do de soberana. Aquilo que se chamava a manter a ordem federativa. Era
judiciário Constituição da Inglaterra é sim um o tribunal que, no nível da União,
O primeiro país independente a conjunto de leis escritas e costumes conseguiria manter as legislações
se apropriar da teoria da separação ou mantidas ao longo do tempo por estaduais em conformidade com a
de poderes de Montesquieu para or- meio dos costumes. Embora politi- legislação federal.
ganizar-se a partir de uma constitui- camente independentes, os norte-
ção escrita foram os Estados Unidos, -americanos quiseram se manter fiéis
alguns anos depois da independência. à tradição inglesa segundo a qual o
As antigas colônias britânicas recém- poder político está contido por um
-emancipadas haviam herdado dos direito anterior imemorial. Mas,

N
colonizadores uma tradição peculiar para tanto, eles precisavam organi-
de pensar o papel do Poder Judiciá- zar um governo geral que substitu- um segundo mo-
rio. Desde a Revolução Gloriosa, em ísse o da Inglaterra, de quem haviam mento, a fim de
1688, que pôs fim ao absolutismo, a se separado, e que até então servira garantir a supre-
monarquia inglesa passara a aceitar de vínculo entre as 13 colônias, hoje macia da Consti-
a tese, brandida pelos que defendiam estados independentes. tuição Federal – e
a liberdade, segundo a qual o poder Foi então que lançaram mão da com ela, fortalecer o governo federal,
político era regulado e, portanto, teoria de separação de poderes de até então fraco –, os chefes do Par-
contido por uma constituição costu- Montesquieu, para criar, no âmbi- tido Federalista – Hamilton, princi-
meira que datava da Idade Média e to federal, uma constituição escrita, palmente – passaram a sustentar que
que repartira o poder entre o rei, a que consagrasse poderes equivalen- a Constituição era uma lei acima de
nobreza e o povo, além de garantir tes àqueles que existiam na Consti- todas as demais, fossem federais ou
os direitos dos súditos. Ao Judiciário tuição da Inglaterra, embora aper- estaduais, e que todas elas deveriam
cabia defender a Constituição, en- feiçoados. Substituíram o rei por ser com ela compatíveis. Caso não o
tendido como “lei imemorial” dos um presidente. No lugar da Câmara fossem, caberia ao Supremo Tribunal
ingleses, contra os eventuais excessos dos Comuns, a Câmara dos Repre- anulá-las, na qualidade de guardião
do governo. Em outras palavras, era sentantes. No lugar da Câmara dos da Constituição. Inventaram o con-
um modelo no qual o direito conti- Lordes aparecia o Senado. Mas cada trole da constitucionalidade, isto é, a
nha a política, o Judiciário continha Estado tinha também os seus tribu- jurisdição constitucional. Coube ao
o Legislativo e o Executivo. nais e suas constituições. Havia a primeiro grande presidente do Tri-

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bunal, o federalista John Marshall, defendendo-se da acusação de que nia popular igualmente absoluta, que
arrogar à Suprema Corte o poder de haviam conferido à Suprema Corte deveria se refletir num governo lide-
decidir em última instância o que é uma atribuição que não estava pre- rado pelo poder político considerado
ou não constitucional. vista na Constituição e a alterava, único depositário daquela soberania
Esta era uma novidade que os federalistas sustentaram que a (e que era, ou um Legislativo unica-
Montesquieu não imaginara, e que jurisdição constitucional era apenas meral, ou um Executivo cesarista).
decorria da adaptação de sua teoria um mecanismo de freios e contra- A persistência de uma concepção
da separação de poderes num país fe- pesos entre os poderes, como eram absolutista do poder, embora demo-
derativo dotado de uma constituição o direito de veto do Executivo, o de cratizada, enfraqueceu sobremaneira
escrita. Se o Poder Judiciário federal impeachment por parte do Legisla- na França a popularidade da teoria
tinha o direito de, em última instân- tivo etc. Os poderes continuavam da separação de poderes de Montes-
cia, declarar inconstitucionais leis e independentes e iguais. No entanto, quieu, entendidos como independen-
atos elaborados pelos poderes Legis- não era mais possível não negar o ca- tes e iguais. No modelo de Rousseau,
lativo e Executivo federais, mas tam- ráter político do Judiciário investido adaptado pelos revolucionários, o
bém estaduais, ele continuava a ser de jurisdição constitucional. O que poder político que fosse julgado de-
um poder igual aos demais, em po- alegavam, em compensação, era que, positário da soberania popular assu-
der? Era possível continuar a acredi- embora político, porque guardava mia uma ascendência clara sobre os
tar que ele não era um poder político, a Constituição contra os excessos demais, que se lhe tornavam subor-
mas meramente jurídico? Não estaria do Executivo e Judiciário federais, dinados. Nesse contexto, o Judiciário
o Judiciário federal se tornando uma mas também dos governos estadu- perdia força. Para piorar, durante o
espécie de poder moderador, acima ais, o Judiciário federal não decidia Antigo Regime, o Judiciário era um
e mais poderoso do que os demais – politicamente, mas juridicamente, poder nobiliárquico, ocupado por
verdadeira aristocracia judiciária? limitando-se a aplicar a lei ao caso herança familiar e independente do
De fato, a doutrina da jurisdi- concreto, de modo imparcial. soberano.
ção constitucional foi violentamente Para os revolucionários, a te-
combatida pelo Partido Democrata, Na França: preeminência da oria da separação dos poderes de
por meio de seu chefe, Jefferson, que soberania popular e subordinação do Montesquieu poderia restabelecer
alegou que a jurisdição constitucio- Judiciário aos poderes políticos um Judiciário indiferente e subtraí-
nal poderia se tornar uma instância Enquanto isso, na França, a teo- do à soberania do povo. Por isso, ao
de cancelamento da soberania popu- ria da separação de poderes e o lugar contrário dos americanos, despiram
lar. Se os poderes eletivos eram legí- ocupado por um Judiciário indepen- o Judiciário de qualquer sombra de
timos para elaborarem as leis que o dente adquiriu, a partir da sua Re- poder político. O único poder que
povo queria, e por isso eram políti- volução, uma interpretação bastante poderia discutir a Constituição era
cos, como poderiam ser contrariados diferente. Ali, o combate ao abso- o depositário da soberania, o Legis-
por um bando de burocratas togados, lutismo monárquico e ao aristocra- lativo. Em matéria de interpretação
e sem votos? tismo judiciário do Antigo Regime da lei, o Judiciário deveria se limitar
Preocupados em se manterem levou republicanos como Rousseau a a aplicá-la e, em caso de dúvidas,
fiéis à doutrina de Montesquieu, desenvolverem a tese de uma sobera- caberia uma consulta ao Legislati-

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vo. A vontade da lei não era aquela político, nem igual aos demais; não Sieyes. A verdade, porém, é que a tra-
decidida pelo juiz, mas a vontade do havia jurisdição constitucional, e os dição soberanista francesa prevale-
legislador, que deveria ser, se neces- juízes aplicavam a lei conforme a ceu: o chefe de Estado francês jamais
sário, reconstituída pelo juiz ao jul- vontade do legislador. Direito e po- aceitou a proposta de limitar-se ao
gar. Nesse sentido, os franceses abra- lítica não se misturavam. exercício de um poder arbitrário.
çaram com gosto a teoria da decisão
judicial de Montesquieu, segundo a A inspiração brasileira: do modelo
qual o juiz deveria ser “a boca que francês ao norte-americano
diz a lei”, isto é, um autômato da E que tem o Brasil com essas
vontade do Legislativo. questões? O Brasil se torna um país

O
Além disso, se a teoria da sepa- independente em 1822, como mo-
ração de poderes foi ignorada no s liberais france- narquia constitucional, buscando
que diz respeito à igualdade entre ses tentaram re- aclimatar aquilo que tal forma de
os poderes, ela foi, por outro lado, agir contra esse governo tinha de mais moderno,
recepcionada com rigor na ideia de democratismo de sem prejuízo da estabilidade do novo
sua divisão – especialmente no que se tendência absolu- Estado. A doutrina do poder mode-
refere ao Judiciário. Se um poder não tista, durante o Termidor, e depois rador de Constant foi albergada na
poderia intervir no outro, o Judici- de Napoleão, durante a Restauração. Constituição, numa chave algo dife-
ário não poderia julgar os casos em Benjamin Constant reelabora, então, rente: a de permitir a concentração
que fossem partes o Executivo e o Le- a teoria da separação de poderes de – embora moderada – de poderes
gislativo. Era preciso criar um segun- Montesquieu, a seu ver, insuficiente nas mãos do Imperador, que deveria
do Poder Judiciário, digamos assim, para manter o equilíbrio entre os po- tutelar os Poderes Executivo e Legis-
ligado ao Executivo, encarregado de deres. Ele cria a ideia de um quarto lativo, no plano do governo central,
julgar os processos em que a admi- poder, chamado neutro ou modera- e das províncias, por meio da centra-
nistração, que lidava com o interesse dor, a ser exercido pelo chefe do Es- lização política, que lhe permitia no-
público, fosse parte. tado, a fim de que, reunindo em suas mear os governadores. Evidente que,
O tribunal de cúpula da jurisdi- mãos os mecanismos de freios e con- nesse contexto, não havia ambiente
ção administrativa era o Conselho de trapesos, sirva de árbitro nas crises para a existência de um Judiciário
Estado, enquanto o órgão de cúpula entre o Legislativo, o Executivo (mi- independente. Por isso mesmo, foi
da Justiça Comum se chamava Tri- nistério) e o Judiciário, mantendo-os adotado o sistema judiciário francês:
bunal de Cassação. Nenhum dos dois em equilíbrio. o Supremo Tribunal de Justiça do
tinha o direito de jurisdição consti- A teoria do poder moderador Império era, na verdade, modelado
tucional. O Judiciário não era depo- acabava por propor um mecanismo a partir do Tribunal de Cassação.
sitário da soberania, não poderia se de defesa da constituição – embora No começo do Segundo Reinado, o
manifestar sobre a Constituição. Esse não normativo – com finalidade e Conselho de Estado passou a dispor
papel caberia ao Legislativo, eleito lógica semelhantes ao da jurisdição de algumas competências próprias da
pelo povo. Aqui não havia, pois, dú- constitucional, cuja introdução, aliás, jurisdição constitucional – ainda que
vidas: o Judiciário não era um poder também foi proposta na época por ele jamais tenha conseguido se desen-

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volver plenamente. Na prática, igual- dependência do Judiciário, elevado guardiã da Constituição, ou seja, das
mente, a independência do Judiciário à condição de um poder político, liberdades públicas e da federação.
era uma ficção, ficando sujeito a ins- dotado do poder de declarar a in- No entanto, reconheciam, como os
truções e determinações do ministro constitucionalidade das leis federais constitucionalistas norte-americanos
da Justiça. e estaduais. Ou seja, o modelo fran- e argentinos da época, que o Tribunal
Por outro lado, depois de 1870, cês, adotado durante o Império, foi não poderia se pronunciar sobre o
consolidado o Estado nacional, co- abandonado na República, que ado- mérito das “questões políticas”, que
meça a pressão pela liberalização tou o norte-americano. eram aquelas sobre cuja conveniência
do regime, com ataques crescentes à Dois foram os responsáveis pela e oportunidade somente os poderes
supremacia do poder moderador e elevação do Poder Judiciário à con- Executivo e Legislativo poderiam
reivindicações pela autonomia do Ju- dição de poder político, porque do- decidir. Guerra e paz, intervenção
diciário e pelo federalismo, oriundas tado de jurisdição constitucional. Rui federal, estado de sítio, nomeação
das camadas liberais, radicais e repu- Barbosa e Campos Sales. Proeminen- de embaixadores, questões eleitorais
blicanas. Diziam que o imperador te representante do liberalismo radi- estavam entre as mais importantes
corrompia os partidos, exercendo cal, oriundo da classe média urbana dessas questões cuja apreciação estava
um absolutismo disfarçado, que só baiana, Rui era ministro da Fazenda, interdita ao Judiciário.
teria fim com o parlamentarismo, ou mas, visto como verdadeiro prodígio Isto não significa que Rui e Sales
a república, e a federação. O mode- por seus pares, especialmente em ma- concordavam em tudo. Muito pelo
lo perseguido por essas camadas era téria jurídica, ele foi designado pelo contrário, como em breve se com-
justamente o norte-americano, que governo para rever o anteprojeto de provaria. Rui Barbosa era um liberal
julgavam mais liberal, democrático Constituição que seria remetido à e Campos Sales, no fundo, um con-
e moderno, libertando as elites e o Constituinte. servador e, enquanto tais, tinham
mercado da tutela do governo, pro- projetos diferentes de República e
movendo a imigração em massa. viam de modo diverso o papel do Ju-
A Argentina já havia feito a diciário em função deles. Rui estava
adaptação daquele modelo na Cons- preocupado principalmente com a
tituição de 1853-1860 e estava pro- defesa do estado de direito, isto é, a

J
gredindo espantosamente desde defesa dos direitos dos cidadãos con-
então. Com o advento da república á Campos Sales era um tra os excessos do Estado.
no Brasil, os novos donos do poder fazendeiro paulista em- Ele temia que a substituição do
dotaram-no de uma nova Consti- penhado desde o inicio parlamentarismo pelo presidencia-
tuição, a de 1891, que era, decerto, na propaganda repu- lismo degenerasse numa verdadeira
uma adaptação da norte-americana, blicana – era, como já ditadura presidencial, como ocorria
mediada, porém, pela experiência da se dizia então, um “republicano his- nos demais países latino-america-
Argentina. No âmbito do governo tórico”. Ambos estavam de acordo no. Para Rui, somente a jurisdição
provisório da República, parece ter em torno da necessidade de elevar a constitucional, exercida por um Ju-
prevalecido a orientação segundo Justiça Federal – isto é, o Supremo diciário fortalecido e independente,
a qual o federalismo impunha a in- Tribunal Federal – à condição de poderia obstar à conversão da Repú-

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blica em despotismo. A preocupação antiunionista, da Constituição de eleitorais. Não teria mais como ser
de Campos Sales, porém, era outra: 1891. Ele defenderia os Estados con- apeada do poder, salvo pela inter-
garantir o federalismo centrífugo tra os ataques da União. Rui Barbo- venção federal decretada pela União
consagrado na Constituição contra sa, ao contrário, tinha uma interpre- contra a vontade das oligarquias.
o eventual “despotismo” da União tação unionista da Carta, e via no Assegurar o federalismo oligár-
Federal, isto é, de suas veleidades Supremo Tribunal o defensor dos quico contra eventual intromissão
unionistas. direitos individuais contra os exces- da União continuava a ser a princi-
sos do Poder Executivo e do Poder pal preocupação de Campos Sales,
Legislativo. elevado à condição de líder do go-
verno Floriano no Senado. No en-
Contra e a favor das oligarquias tanto, os conflitos entre Deodoro e o
A partir dos últimos meses do Congresso, e as persistentes ameaças

S
governo provisório, Deodoro come- ao regime, representadas pela Re-
ales tinha uma inter- çou a entrar em rota de colisão com volução Federalista e pela Revolta
pretação quase confe- o Congresso ao substituir os antigos da Armada, pelas conspirações li-
deralista da federação, governadores provisórios, pertencen- berais, monarquistas e deodoristas,
declarando que os tes às facções estaduais que domina- o convencem de que não seria a ju-
estados eram tão so- vam, por outros, contrários a elas, e risdição constitucional exercida pelo
beranos quanto a União, tendo uma que acabaram se fazendo eleger em Supremo Tribunal um poder capaz
existência, portanto, tão autônoma seus estados. de defender o federalismo centrífugo
quanto esta, que, por isso mesmo, so- Diante da verdadeira rebelião que, a seu ver, havia sido o verdadei-
mente poderia intervir a pedido das da maioria do Congresso, Deodoro ro motivo de implantar a república.
próprias oligarquias. Se a República, tentou, apoiado pela maioria esma- Essa defesa somente poderia ser
para Rui Barbosa, era a defesa do gadora dos governadores, dar um feita pelo próprio presidente da Re-
estado de direito, a República, para golpe de Estado, fechando o Con- pública, sustentado pelos governa-
Campos Sales, era a defesa das fran- gresso. O golpe fracassou, porém, dores dos Estados, e armado, pelos
quias estaduais. A União deveria ter terminando com a renúncia do pri- representantes daqueles no Congres-
funções mínimas. meiro presidente republicano. Afi- so, do direito de decretar o estado
Esse diferente modo de con- nado com a maioria do Congresso, de sítio sempre que o regime oligár-
siderar aquilo que era o núcleo da assumiu o vice, Floriano Peixoto, quico instalado estivesse em perigo,
Constituição republicana se refletia que resolveu o conflito entre ela e iminente ou remoto, por força de
em modos igualmente diversos do os governadores deodoristas promo- movimentos das minorias apeadas
papel da jurisdição constitucional. vendo a deposição de todos eles. Foi permanentemente do poder.
Para Campos Sales, o Supremo Tri- nesse momento que se selou a sorte O Supremo Tribunal Federal
bunal deveria constituir um órgão da República. A grande maioria no não deveria se meter de modo ne-
anódino, de caráter exclusivamente Congresso, uma vez reinstalada no nhum na defesa daquelas minorias,
técnico, que garantiria a sua inter- poder dos Estados, passou a con- durante e depois do estado de sítio.
pretação estadualista, centrífuga, trolar a polícia local e os resultados Era o presidente sustentado pelas oli-

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garquias estaduais, e não o Supremo tigo pugnava que os direitos dos ci- anglo-saxões. Mais do que qualquer
Tribunal, o guardião da Constitui- dadãos ingleses remontavam à Idade outro filósofo, foi decisiva na con-
ção. Esse novo modelo seria conso- Média, decorrendo de uma luta entre formação do seu pensamento o libe-
lidado por Campos Sales quando o poder arbitrário e a resistência à ralismo de John Stuart Mill. Foram
chegou à Presidência da República, opressão, cujo desfecho, na Revolu- obras como Da liberdade e do gover-
por meio da famosa “Política dos ção Gloriosa, culminara com a vitó- no representativo que forneceram a
Governadores”, que consagrou uma ria da liberdade. Rui a concepção liberal democrática
interpretação oligárquica, conserva- Ambas as ideologias entendiam que lhe permitiria expandir seu mo-
dora, autoritária, não interventora, que o bem-estar da sociedade polí- ralismo político.
ultrapresidencialista e antijudiciaris- tica dependia de instituições que, Pensando o direito como ex-
ta da Constituição. embora representativas do poder pressivo de um ideal de justiça in-
Rui Barbosa reagiria a essa in- popular, fossem limitadas pela lei. tangível pela vontade política, a
terpretação constitucional que, para Predominava aí uma concepção ética republicana e constitucional
ele, concretizava seus piores temores pluralista do político, pela qual o da tradição anglo-saxã, apresenta-
a respeito da degeneração do presi- direito do indivíduo, compreendido da pelo liberalismo democrático de
dencialismo em governo ditatorial como produto da vontade histórica e Stuart Mill, foi a forma que moldou
ou oligárquico. Mas a caracterização fundamento da ordem legítima, for- politicamente o intelecto de Rui
do ideário de Rui Barbosa impõe matava a esfera de manifestação da Barbosa e lhe permitiu organizar o
aqui, antes de tudo, uma referência soberania. ideal do “bom governo” que norte-
à sua decidida filiação à tradição aria a sua vida pública.
política anglo-americana, na qual a O mais idealista dos nossos po-
moral e o direito precedem à políti- líticos, Rui se recusava a distinguir
ca. Grosso modo, o que chamo aqui moral e política. Daí que o papel do
de tradição política anglo-americana direito na política não se limitasse

D
resulta da conjugação de dois discur- ao cumprimento juspositivista da lei
sos – o constitucionalismo antigo e o o ponto de vista como produto da vontade soberana.
republicanismo cívico (ou clássico). constitucional, essa Rui entendia a lei a partir de uma
O discurso republicano clássico concepção das rela- concepção transcendente de justiça
remonta à Roma Antiga e postula ções de poder se re- que não se confundia com seu texto,
que, amparada na moralidade dos fletia num respeito associada à capacidade de se orientar
seus costumes e no culto da lei, a quase religioso às formalidades ju- para o bem de que o indivíduo preci-
liberdade política do povo era con- rídicas, na supressão quase absoluta sava dispor, caso pretendesse se aper-
dição essencial para o autogoverno do recurso ao poder discricionário, feiçoar. A obediência à ordem jurídi-
da polis. Livre da disciplina moral, na divisão dos poderes e no papel do ca decorria, pois, do imperativo ético
o homem tenderia a se corromper, e Poder Judiciário como moderador contido na norma.
essa degeneração dos costumes traria político. Daí a concepção normati- Salvaguarda das liberdades in-
consigo a decadência do governo e a va acalentada por Rui Barbosa e sua dividuais, a lei constituía o limite
tirania. Já o constitucionalismo an- ilimitada admiração pelos modelos intransponível da democracia e da

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

soberania popular, pois permitia à do poder predominante no mundo De Barbosa a outro Barbosa
justiça, isto é, à razão e à liberdade, anglófono, sobrepunha a soberania A consolidação do regime re-
triunfarem sobre a vontade irracio- do príncipe ou do povo como prin- publicano federativo em chave con-
nal do povo ou do tirano. Não ha- cípio ordenador da ordem política. servadora, autoritária e oligárquica
via nada de mais relevante do que a A lei era aí vista como um instru- leva Rui a apostar no judiciarismo.
salvaguarda dos direitos individuais, mento de uma vontade eticamente Em nenhum outro país da América
meio pelo qual os homens conse- definida e que, como tal, poderia Latina a oposição liberal em tempos
guiam desenvolver-se pelo aprimo- ser suspensa ao seu arbítrio. Ou seja, oligárquicos apostou num discurso
ramento do caráter, do trabalho, de era a política que formatava o di- judiciarista, constitucionalista, civi-
suas capacidades. Daí a predileção reito, e não o contrário. Do ponto lista, antimilitarista para combater
de Rui pela garantia constitucional de vista constitucional, a subordi- o status quo. Naquela mesma época,
do habeas corpus, por meio da qual nação da lei à soberania implicava por exemplo, os liberais argentinos
o direito e a justiça libertavam o in- a subordinação do Judiciário frente (os “radicais”), liderados por Lean-
divíduo do arbítrio da política e das aos poderes políticos – Executivo e dro Allem, aliavam-se a facções do
paixões da soberania. Legislativo. Por conseguinte, ficava exército para derrubar o regime oli-
o Judiciário impossibilitado de veri- gárquico por meio da revolução. Isso
ficar a constitucionalidade dos seus nunca aconteceu no Brasil.
atos ou de apreciar as ações de que O que estava em jogo, para Rui,
o Estado fizesse parte, reservados à era o princípio do direito contra o
esfera de uma justiça administrativa. arbítrio da política corruptora; o

P
Para um purista como Rui, essa primado do liberalismo contra o
or outro lado, a con- tradição política era um híbrido e, conservadorismo; a afirmação da
cepção anglo-saxã da como tal, suspeito, porque, com sua democracia em face da oligarquia;
lei como imperativo ênfase excessiva na potência sobera- a prevalência da república contra o
ético de liberdade na, o ambiente revolucionário que a privatismo. Era, em síntese, a luta
permitiu a Rui ela- gerara a faria inclinar-se, quase por do bem contra o mal, da virtude
borar também um tipo ideal do atração física, na direção do auto- contra o vício, de Deus contra o de-
“mau governo”, no qual a imorali- ritarismo, ocasião em que o estado mônio. Não por acaso, Rui forjou
dade, associada à injustiça, à opres- de direito degenerava em bonapar- em seus comícios uma verdadeira
são e ao desprezo da lei, resultava tismo, positivismo ou jacobinismo. “teologia política liberal” que, à
num governo arbitrário, patrimo- Preferindo dar livre curso às paixões moda da prédica de Vieira, lhe per-
nial e militarista. Além de encarnar- políticas da soberania pelo estado de mitiria lançar-se duas vezes à presi-
-se na ditadura pura e simples, ou exceção, o problema fundamental dência, na década de 1910, na qua-
disfarçada pelo uso abusivo do es- das nações latinas e do seu modelo lidade de “missionário, apóstolo,
tado de exceção, Rui também asso- francês residia, justamente, na carên- mártir, profeta”.
ciava esse mau governo à concepção cia de sua disciplina jurídica e, por- É nesse contexto que surge o fe-
francesa hegemônica de Estado de tanto, do senso de justiça de que eram nômeno do “ruibarbosismo”. Trata-
direito e que, à noção de limitação dotados os países anglófonos. -se de uma ideologia judiciarista, que

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

critica acidamente a má qualidade da aquela república liberal e democrata o Executivo e o Legislativo tinham o
política praticada no governo e no que ideara Rui Barbosa; ao passo que direito de descumprir decisões judi-
Parlamento, apostando na tutela do a república conservadora de Cam- ciais, quando as julgassem invasoras
Judiciário como meio de corrigi-la, pos Sales e Pinheiro Machado eram das suas atribuições privativas (as
e na suposta perfeição de um gover- “corrupção do ideal republicano”, “questões políticas”), argumentava
no orientado pelo “cumprimento da “república de rótulo”1; “república de Rui Barbosa em 1914, num discurso
Constituição”. Trata-se de enquadrar oligarcas, mandões e caudilhos”. Era chamado “O Supremo Tribunal Fe-
e limitar a política pelo direito, os preciso dar fim ao “sindicato político deral na Constituição Brasileira”:
dois poderes políticos pelo poder que explora a República” em benefí-
“jurídico”. Tal como formulada por cio de “oligarquias minazes, corro- “Aqui está, senhores, como nos ar-
Rui Barbosa, ela se justificava na edoras e outras, acusadas de graves raiais da ordem se pratica o espírito
hipótese de que a única maneira de crimes de latrocínio do Tesouro dos conservador. É a ditadura dos tri-
romper a muralha oligárquica sem seus Estados, e atentados dos mais bunais, a que enfia de terror as boas
recorrer à revolução passa por erigir vergonhosos contra a liberdade e a almas desses nossos puritanos. Santa
o Supremo Tribunal Federal à con- honra dos seus cidadãos”. gente. Que afinado que lhes vai nos
dição de Poder Moderador da Repú- lábios, onde você tem achado escusas
blica, acima dos demais. Os magis- para todas as ditaduras da força esse
trados são considerados como juízes escarcéu contra a ditadura da Justiça.
imbuídos de valores republicanos, de Os tribunais não usam espadas. Os

E
valores liberais, voltados para a defe- tribunais não dispõem do Tesouro.
sa da democracia liberal; eles são os m 1919, Rui Barbosa Os tribunais não nomeiam funcio-
sacerdotes que velam pela verdade estava mais ácido, nários. Os tribunais não escolhem
da Constituição, que está sendo sofis- cortante e messiâ- deputados e senadores. Os tribunais
mada, destruída e fraudada pela in- nico do que nunca. não fazem ministros, não distribuem
terpretação oligárquica destruidora Enquanto demolia candidaturas, não elegem e desele-
do país. a “piolharia politicalheira”, a “poli- gem presidentes. Os tribunais não
O elogio do Judiciário no papel ticorreia clorótica, enervante, desfi- comandam milícias, não comandam
de guardião da Constituição tinha, brativa” dos “politicastros e politica- exércitos, não comandam esquadras.
assim, como contrapartida, isto que lhões avariados, ulcerosos, incuráveis, Mas é dos tribunais que se temem e
hoje se chama “criminalização da que se embeberam nos tecidos orgâ- tremem os sacerdotes da imaculabi-
política” – naquele tempo, a política nicos da nação e a intoxicam mortal- lidade republicana...”
oligárquica, calcada na violência e na mente”. Contra aqueles que temiam
fraude eleitoral. Para Rui Barbosa, a a judicialização da política e o pri- De um Barbosa a outro Barbosa,
República havia sido traída, desviada mado do Judiciário sobre os demais de Rui a Joaquim, há um longo ca-
e sofismada pelos políticos – “os po- poderes, e por isso sustentavam que minho. A posterior formação da ide-
litiquinhos e politicotes, os politiqui- ologia do “ruibarbosismo” está in-
1. BARBOSA, Rui. O estado de sítio: sua natu-
lhos e os politicalhos, os politiquei- reza, seus efeitos, seus limites. Rio de Janeiro: timamente ligada à imagem pública
ros e os politicastros”. Verdadeira era Companhia Impressora, 1892. p. 245. que Rui Barbosa criou de si mesmo:

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a de um indivíduo justiceiro, huma- tramos ecos mais ou menos fortes do magistrados defendem a constituição
nista, destemido, solitário, encarrega- discurso de Rui na OAB de Levi Car- contra a má qualidade da política,
do de encarnar o espírito da Justiça neiro, Sobral Pinto e Raimundo Fao- entendida como politicagem, poli-
numa luta sem tréguas, travada com ro; na UDN de Otávio Mangabeira, ticalha, corrupta etc.? Um discurso
a Constituição debaixo do braço pela Afonso Arinos e Bilac Pinto; no PSB que supervaloriza a figura do ma-
imprensa, pelos tribunais e da tribu- de João Mangabeira, Hermes Lima e gistrado, visto como imparcial, im-
na parlamentar, contra o arbítrio do Evandro Lins e Silva, mas também poluto, alheio às paixões, centrados
Estado, conduzido por politiqueiros, no PTB de Alberto Pasqualini e San- na aplicação serena de uma lei e na
egoístas, poderosos, ditadores. Essa tiago Dantas e no MDB de Ulysses depreciação da figura do político,
imagem conduziu à produção de Guimarães. Hoje, o “ruibarbosismo” considerado corrupto e imoral. Mas
uma visão jurisdicionalizada da po- continua vivo, principalmente, no é possível uma democracia judiciá-
lítica, segundo a qual ela deveria ser moralismo dos operadores jurídi- ria, despida de política e de políticos?
altruisticamente orientada conforme cos que, a partir de uma concepção O contexto político nacional é hoje
os ditames éticos contidos no texto do político como corolário de uma inteiramente diverso daquele da Re-
sagrado da Constituição, guardado moral universal, de que o direito se- pública Velha. Não há mais poderes
por tribunal de magistrados cultos e ria a manifestação visível, condenam oligárquicos como outrora, nem elei-
honrados, verdadeiros sacerdotes. a política por ser o que ela é, ou seja, ção fraudada.
O ruibarbosismo, pois, é esse uma arena de embates, de conflitos,
discurso ideológico liberal e judicia- vistos invariavelmente como egoís-
rista de supostas defesas dos valores tas, corruptos e ilegítimos. Essa ve-
republicanos, segundo o qual a polí- lha visão jurídica da política mostra
tica tende naturalmente à corrupção diariamente atestados de boa saúde

A
ou ao autoritarismo. Esse discurso a todos os brasileiros que, armados
só pode ser defendido por juristas, de boa vontade, ou faltosos de me- democracia brasi-
especialmente magistrados encar- lhores opções, dispõem-se a assistir à leira, afinal, conso-
regados do exercício da jurisdição grade de programas da TV Justiça, aí lidou-se – e a du-
constitucional. O Poder Moderador incluindo o carro-chefe da emissora, ras penas, porque
da República é o Supremo Tribunal que são as sessões diárias do Supre- depois de 1930 a
Federal, cabendo impedir a fatal in- mo, contendo os excitantes debates tutela oligárquica foi substituída por
clinação da política e dos políticos de seus 11 ministros. um poder moderador que não era
para formas iliberais e antirrepubli- Mas hoje o contexto político não o Supremo Tribunal Federal, mas o
canas do exercício do poder. seria diverso, de modo a recomendar Clube Militar. Por esses motivos, a
Essa visão da política como tri- cautela – não contra a judicialização ressurreição do “ruibarbosimo”, no
butária do direito constitucional da política em si mesma, inevitável coração do próprio Supremo, pode
marcaria profundamente o imaginá- nas democracias modernas, mas con- se transformar num problema. Por-
rio político brasileiro por intermédio tra o “ruibarbosismo”, entendido que, ao invés de favorecer o adven-
dos bacharéis que entrariam na polí- como uma ideologia judiciarista, que to da democracia, como no passado,
tica, depois da morte de Rui. Encon- se justifica na necessidade de que os pode trabalhar contra a sua consoli-

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dação. Ao invés de assumir um viés corre o risco de legitimar o despotis- tão sujeitos por expressa determina-
progressista, pode tornar-se simples- mo ilustrado do Supremo Tribunal ção do próprio estatuto constitucio-
mente conservador. Federal. E aí convém tomar cuidado: nal.” Já o ministro Gilmar Mendes
Para concluir, o “ruibarbosimo” tivemos, no passado, o despotismo disse: “O Supremo vai ensinar ao país
foi muito útil num momento em do Estado propriamente dito, o da o que são os direitos humanos.” São
que a política brasileira era atraves- Coroa; depois, o das oligarquias; e ministros da mais alta Corte do país,
sada pelo vício da oligarquia e da depois, o do Exército. Mas seria pos- assim, que praticam o “ruibarbosis-
fraude eleitoral, como na Primeira sível, hoje, um despotismo ilustrado mo”, acreditando estarem imbuídos
República, e em determinados pe- do Judiciário? de uma função pedagógico-doutrina-
ríodos posteriores, na luta contra o Em entrevista ao jornal O Globo, ria voltada para a “regeneração” da
autoritarismo. Mas ele se torna ques- datada de 24 de abril de 2008, o mi- política do país. Que a pedagogia se
tionável depois, quando mobilizado nistro Celso Mello afirmou: “Práticas converta em tutela basta apenas um
pelos liberais para condenar a baixa de ativismo judicial, embora mode- passo, tutela esta ancorada em argu-
qualidade da democracia – seja en- radamente desempenhadas por esta mentos despótico-ilustrados que têm
tre 1946 e 1964, seja na atualidade. Corte em momentos excepcionais, fundas tradições no país.
É desse modo que certos setores da tornam-se uma necessidade institu-
mídia vêm observando as funções cional, quando os órgãos do poder O articulista é professor da Universidade
do Supremo Tribunal Federal. Esse público se omitem ou retardam o Federal Fluminense.
discurso, válido naquele tempo, hoje cumprimento de obrigações a que es- [email protected]

40 in dubio
42 necessidade
Subproletários,
uni-vos!
O Bolsa Família tem
que avançar

Mônica Sinelli
Jornalista

M
enina dos olhos da reajustes, sempre ao sabor da caneta
administração petis- do Executivo Federal, e a garantia de
ta, o Programa Bolsa um índice corretor, levando a perdas
Família (PBF) vem, na composição da renda.
de fato, mostrando-se eficaz para a Se existisse um Dieese (Departa-
diminuição da intensidade da misé- mento Intersindical de Estudos So-
ria. Contudo, isso não significa que cioeconômicos), órgão de apoio aos
esteja propriamente reduzindo o nú- sindicatos nas negociações salariais,
mero de pobres e indigentes e, me- dos ex-famélicos seria possível averi-
nos ainda, construindo a contento as guar que já nascem alguns espinhos
necessárias portas de saída à clientela. nesse roseiral que são as políticas
Completados nove anos da sua cria- sociais. Sobretudo se considerarmos
ção, o benefício não mereceu amparo que os produtos da cesta básica não
como direito, ao contrário do salário só não são desonerados como so-
mínimo – outro vetor de combate à frem reajustes de preço. Ademais,
desigualdade por registrar ganhos re- a linha de pobreza e indigência é
ais. Isso lhe sequestra a prerrogativa extremamente baixa, tampouco se
de convenção de data e regras para atualizando com base num deflator.

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Sem avanços horizontais, mormente majoritária do PT. A migração de valor médio do benefício financeiro
investimentos maciços em educação votos do interior nordestino, então correspondeu a R$ 120,19, e o orça-
e capacitação profissional, o PBF, au- reduto tucano, ilustra bem a diferen- mento aprovado para 2011, R$ 17,319
tointitulado o mais ambicioso pro- ça feita pela mão assistencialista do bilhões, foi executado na integrali-
grama de transferência de renda da Estado – alcançando brasileiros (um dade, em 100% dos municípios bra-
história do país, estaria, então, ape- em cada quatro) que nunca haviam sileiros, com o programa assim dis-
nas a maquiar a magnitude da verda- sido tocados por programas sociais. tribuído: Nordeste (51,74%), Sudeste
deira face da miséria. E aí, em lugar (23,68%), Norte (11,63%), Sul (7,62%)
de política social tipo exportação,

A
e Centro-Oeste (5,33%). Os estados
como se proclama, apequenando- ntes de examinarmos mais atendidos foram Bahia (1,75 mi-
-se à caracterização reducionista de os pontos de estrangu- lhão), São Paulo (1,21 milhão), Minas
assistencialismo populista pespegada lamento, vejamos, pri- Gerais (1,16 milhão), Pernambuco
pela crítica conservadora. meiramente, os resul- (1,12 milhão) e Ceará (1,08 milhão).
Antes que alguém pense que esse tados dessa versão hiperturbinada Aparentemente, uma perfeição.
artigo é um manifesto tucano, é pre- do Projeto Alvorada da lavra FHC, Lena Lavinas, professora do Ins-
ciso ressaltar que o fortalecimento do criada, após o fiasco do Programa tituto de Economia da UFRJ e pes-
PBF foi uma espetacular iniciativa do Fome Zero, por medida provisória quisadora visitante no projeto desi-
governo Lula, que prosseguiu na ges- em 2003 e regulamentada via decreto guALdades.net – interdependências
tão Dilma Rousseff. O preocupante no ano seguinte. Segundo o Relató- sociais na América Latina, da Uni-
é que, apesar do sucesso consignado rio de Gestão do exercício de 2011, versidade Livre de Berlim, analisa:
por números do programa – origina- encaminhado pela Secretaria Nacio- “O maior diferencial do PBF está
do na gestão FHC e que se fortale- nal de Renda de Cidadania (Senarc) dado por sua cobertura, contribuin-
ceu, num panorama de prosperidade do Ministério de Desenvolvimento do decisivamente para atenuar o grau
econômica, no governo Lula –, re- Social e Combate à Fome (MDS) aos de destituição das famílias situadas
manescem 16,2 milhões de miseráveis órgãos de controle interno e externo, na cauda inferior da distribuição de
desassistidos (renda familiar mensal o PBF, que começou com cerca de renda. Portanto, mostra-se mais re-
per capita menor ou igual a R$ 70), 3,6 milhões de famílias, atingiu, pre- levante em reduzir a intensidade da
captados pelo Censo 2010 do IBGE, a cisamente, 13.361.503 no ano passado. miséria do que propriamente o nú-
serem incorporados aos 13,7 milhões Isso significa aproximadamente 50 mero de pobres e indigentes. Ainda
em atendimento. Eles constituem milhões de brasileiros, de um contin- assim, os dados da Pesquisa Nacional
uma classe a que André Singer, que gente total de 195 milhões auferidos por Amostra de Domicílios (Pnad)
foi porta-voz do ex-presidente pe- no último Censo. 2011 indicam que as transferências
tista, chama de subproletariado – da O quantitativo suplanta o núme- condicionadas, naquele ano, retira-
qual ascendeu à significativa catego- ro potencial, estipulado pelo Plano ram da pobreza aproximadamente
ria de consumidores. Em 2010, essa Plurianual 2008-2011, em 12.995 mi- sete milhões de pessoas, escore nada
camada emergente da população, na lhões (a cobertura deve evoluir à casa desprezível. Dar a 13 milhões de fa-
esteira do projeto, destronou a classe de 13,7 milhões no fim deste ano e de mílias recursos mínimos para sobre-
média tradicional da base eleitoral 13,8 milhões em dezembro de 2013). O viverem configura uma mudança das

44 necessidade
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mais importantes e transformado- da dos 10% mais pobres atingiu 7%, do programa, infere-se a capacidade
ras da sociedade brasileira. Há que enquanto o dos 10% mais ricos ficou de conciliação com o estudo formal.
se aperfeiçoar o Bolsa, sabendo-se em 1,7%, o que contribuiu para bai- Dados do ministério apontam
que sempre haverá pobres e que um xar a desigualdade entre elas – medi- que, hoje, há 36% menos crianças e
programa como esse não tem data das pelo índice de Gini – ao menor adolescentes fora do colégio em re-
para acabar.”  patamar em 50 anos (0,519 em 2011). ferência às de famílias não benefici-
Quanto mais perto de zero, menos árias. O órgão recebe informações
De pirâmide a losango concentrada é a distribuição de ren- bimestrais, entre outras, sobre a taxa
Pela última Pnad, o rendimento dimentos – continuamos, portanto, de frequência (a mínima exigida é de
mensal dos trabalhadores brasilei- em patamar alarmante. Ainda assim, 85%, contra os 75% da rede geral) de
ros subiu 8,3% com relação a 2009, a pirâmide, geometria típica de na- todos os estabelecimentos que abri-
movendo-se de R$ 1.242 a R$ 1.345, ções com grande estrato proletário, gam os 15 milhões de estudantes do
com aumentos em todas as regiões. O evoluiu para o losango característico PBF. Os alunos associados apresen-
maior avanço registrado no período das mais desenvolvidas. Por esse re- tam maior taxa de matrícula e de
(29,2%) se encontra na parcela dos desenho, o Brasil virou exportador progressão escolar e índice inferior
10% de menor poder aquisitivo, num de seu modelo de inclusão para pa- de evasão de adolescentes – 50% a
deslocamento de R$ 144 a R$ 186. íses da América Latina, África, Ásia menos, segundo o Instituto Nacional
Nesse contexto, o ritmo de expansão e Oceania. de Estudos e Pesquisas Educacionais
diminui à proporção que a faixa de Anísio Teixeira (Inep) – e de repeti-
renda se eleva. No topo do losango, Efeito preguiça e vale-cachaça ção de ano, no comparativo com o
10% ainda abocanham 41,5% (ante A titular da pasta do MDS, Te- universo do ensino público brasi-
42,5% em 2009) dos valores pagos aos reza Campello, anunciou 10% de au- leiro. A ministra atribui o resultado
trabalhadores. mento em 2013 para os dispêndios superior às expectativas, particular-
Dados do Banco Mundial – que do Bolsa – em média 0,5% do PIB –, mente, à vinculação ao excesso de fal-
apoia financeira e tecnicamente o descartando a hipótese de contingen- tas-perda do benefício. As pesquisas
PBF e cujo modelo de transferência ciamento orçamentário. Ela rechaça desmontam, também, o postulado de
de renda com condicionalidades de- o estímulo à natalidade (que decaiu que o dinheiro público não financia
senvolvido na década de 1990 inspi- no país, mais acentuadamente no muito mais que vale-cachaça, diante
rou a versão brasileira – evidenciam Nordeste e entre os beneficiários) e da melhoria na alimentação das fa-
que a iniciativa colaborou, consisten- o “efeito preguiça” (como mero as- mílias e do incremento na aquisição
temente, na redução da iniquidade sistencialismo, substituto de geração de materiais ligados a educação e hi-
no país. A pobreza (PPP - Paridade de emprego) cunhados pelos críticos, giene pessoal.
do Poder de Compra de U$ 2 por dia) mostrando que, dos atendidos acima Na explicação de José Márcio
cedeu de 21% da população (2003) de 18 anos, 72% trabalham. Isso con- Camargo, professor do Departa-
para 11% (2009). E a pobreza extre- traria a tese de que os ingressos no mento de Economia da PUC-RJ, o
ma (PPP de US$ 1,25 por dia) passou PBF abandonam o emprego. Se este e primeiro aspecto a ser considerado
de 10% a 2,2% no período. De 2001 a renda cresceram justamente nas lo- no PBF diz respeito a que a principal
a 2009, o crescimento anual da ren- calidades onde há maior abrangência fase de aprendizado vai até os oito

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anos, quando começa a decair veloz- sendo feito muito lentamente, o in- peções. Os detratores brandem tam-
mente (dados do Censo 2010 situam vestimento agregado na distribuição bém questões de ordem macroeco-
15,2%, ou 7,9 milhões, de crianças de um sistema educacional eficiente. nômica, sob a alegação de significar
como analfabetas, para as quais se Essa lacuna mantém a desigualdade”. um ônus em termos orçamentários a
lançou agora o Pacto Nacional pela caminho do insustentável.
Alfabetização na Hora Certa). Em Destino: terminal retrato na parede? Além de, pelo prisma monetário,
outras palavras, o custo do aprendi- Por lhe faltarem exatamente os carrear uma grande indexação para
zado sobe à medida que a idade au- necessários avanços postos, sobretu- um grupo numericamente expres-
menta – ou o índice de retorno so- do, por educação e capacitação pro- sivo. São pontuações politizadas e
cial do investimento no ensino cresce fissional, a despeito do carimbo de desprovidas de confirmação pela re-
à proporção em que mais cedo se o intocável remarcado pelo governo alidade. O índice de desvio do PBF
inicie. O problema é que, no caso Dilma, concorrem indícios para ima- é de residuais 0,5% – há muito mais
das famílias em situação de pobreza ginarmos que, à maneira da Itabira expropriações entre banco, operado-
extrema, a decisão de matricular os de Drummond, o PBF possa vir a ras de telefonia e varejo digital, se-
filhos na escola, se depender de con- tornar-se apenas um retrato esmaeci- gundo o Procon –, e a transferência
tas na ponta do lápis, provavelmente, do na parede. Estaríamos falando de de votos eleitorais da criatura para o
não decolará, pois o trabalho infantil um norte social incapaz de se com- criador não causa nem mais reclama-
vai suprir uma parcela considerável pletar do ponto de vista de seus ob- ções da oposição: o PT só venceu em
da renda doméstica. jetivos. A ausência desses pilares fun- 30% das cidades com alta cobertura
“Desse modo – interpreta Ca- damentais – inflamada pela histórica do PBF. Ora, há muito mais entre a
margo –, o investimento em educa- precariedade dos setores de saúde, urna e o voto do eleitor do que o PBF
ção, do ângulo social, será subótimo. habitação, serviços básicos e seguri- parece induzir.
O que esses programas de condicio- dade social – fragiliza uma estrutura A crítica conservadora se revela
nalidades fazem é comprar o tempo já pré-oxidada pelo enquadramento também no fato de a classe média
da criança na escola, objetivando de não ultrapassar as fronteiras de tradicional, cujo termômetro aju-
reduzir a desigualdade mais tarde. A um cheque reducionista à compra da a calibrar as iniciativas políticas,
ideia de considerar o PBF assistencia- de votos, assistencialismo indutor não morrer de amores pela ideia de
lista está fora de propósito, porque do ócio e terreno fértil para fraudes o povão ir aonde ela está – ainda por
ninguém assim classifica as bolsas de e desvios – sim, nós conhecemos o cima ajudando a bancá-la via impos-
doutorado em universidades aqui e discurso tucano e coisa e tal. tos. Mas não há partido vocalizando
no exterior – ao contrário, são julga- Na base, o raciocínio de que, essa contrariedade. André Singer,
das primordiais ao desenvolvimento para além de auditorias e investiga- hoje professor de Ciência Política da
do país. E a finalidade desse progra- ções de desvios, estes, dado o porten- Universidade de São Paulo (USP),
ma é igualmente investir no futuro toso aporte de recursos envolvidos, pondera que o nariz torcido da classe
do capital humano, gerando a opor- tendem a sobrelevar-se, inapelavel- média em geral “não demonstra força
tunidade de melhores empregos. A mente, aos cálculos do governo – por para modificar o quadro, ao menos
grande restrição que se coloca é não não dispor de braços e pernas que enquanto a atual correlação de forças
haver sido executado, ou isso estar cheguem para tantas e adequadas ins- políticas, alinhada em 2006, estiver

46 necessidade
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em vigor. Não é o pacto conservador brasileiros do que é o seu sistema de sacramentados na Consolidação das
que garante o PBF, mas a sua capaci- seguridade social, dos direitos que ele Leis do Trabalho (CLT) por Getúlio
dade de matar eleitoralmente quem garante aos mais desprotegidos, pare- Vargas, o Bolsa Família não repre-
mexer com ele”. ce que os beneficiários do Programa senta uma conquista definitiva. Essa
Bolsa Família não são mais genéri- morada na nuvem torna o programa

L
ca e indiscriminadamente assimila- refém das imprevisíveis movimen-
ena Lavinas também fle- dos a oportunistas e indolentes. Tal tações das peças no xadrez nacional
xibiliza o raio de abran- percepção sem dúvida subsiste, mas futuro. Celia Lessa Kerstenetzky,
gência da rejeição. “Ou- se restringe hoje a uma parcela rela- professora titular do Departamen-
tro aspecto relevante do tivamente pequena da elite social e to de Ciência Política e coordena-
PBF foi reduzir o preconceito social financeira, que domina a mídia e po- dora do Centro de Estudos sobre
contra a assistência aos mais vul- lariza falsos debates. Portanto, houve Desigualdade e Desenvolvimento
neráveis por parte do Estado. Essa um grande avanço em termos sociais da Universidade Federal Fluminen-
mudança ganhou força com a crise no entendimento do que é o direito a se (UFF), interpreta: “O ideal, sem
de 2008, quando até a imprensa mais uma renda mínima de sobrevivência dúvida, seria que o PBF se conver-
recalcitrantemente conservadora re- e sua ‘funcionalidade’, dado seu custo tesse em parte integrante do direito
conheceu a importância de se dispor extremamente baixo (aproximada- à assistência social consagrado na
de mecanismos institucionais de es- mente 0,6% do PIB).” Constituição e, ao mesmo tempo,
tímulo ao consumo das camadas de se destinasse a uma parcela cada
baixa renda, mantendo a demanda Falhas e lacunas vez menor da população. Não por
agregada. A despeito de haver ainda Diferentemente do salário mí- restrições fiscais, mas por conta da
um profundo desconhecimento dos nimo e de outros direitos básicos redução progressiva da necessidade

A crítica conservadora se revela


também no fato de a classe média
tradicional não morrer de amores pela
ideia de o povão ir aonde ela está

outubro • novembro • dezembro 2012 47


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

mesma de um programa tão grande. efeito do cadastro, segue sendo meio (entre três e seis milhões de pessoas),
Se é verdade que tal evento depende salário mínimo. o que gera ineficiências horizontais.
da geração de empregos e renda – porém, para efeito de elegibili- Mantê-lo diretamente vincula-
o melhor contraponto à pobreza dade aos benefícios, equivale hoje do ao Executivo e, indiretamente, à
continua sendo a participação das a menos de um quarto de salário – Presidência, foi uma estratégia cons-
pessoas no mercado de trabalho, com enquanto a linha de indigência enco- truída nos primeiros meses da ges-
inserção digna –, também é verdade lheu a um valor inferior a um oita- tão, com uma lei votada em janeiro
que ações como o Programa Bol- vo. Participantes do debate público de 2004, reformulando o Programa
sa Família podem direcionar-se ao questionarão o critério utilizado para Fome Zero. Isso dá flexibilidade ao
acesso a oportunidades econômicas e o estabelecimento desses valores. Mal governo, notadamente, em termos
sociais. Aumentar gastos em serviços ou bem, o salário mínimo se ancora orçamentários. E dispor de autono-
parece uma boa complementação a em um parâmetro de mínimo social, mia para decidir como alocar esses
um programa de renda que deveria mas e os R$ 70 do limiar da miséria? recursos configura um ponto de con-
ser, gradualmente, mais coadjuvante Adotamos a linha de pobreza mais vergência entre a oposição e a maio-
que protagonista de nossas políticas baixa do Banco Mundial, pouco su- ria. Quem perde é o público-alvo,
públicas.” perior a US$ 1 por dia. Ademais, a cuja cobertura será sempre aquém da
Ela relembra que, no fim do questão de uma renda mínima garan- demanda real, e a sociedade, por não
governo Lula, houve menção ao es- tida certamente se colocaria: não bas- lograr fortalecer direitos e consagrá-
tabelecimento de uma consolidação ta a perspectiva de alívio à pobreza. -los na lei, assegurando igualdade de
das leis sociais. “Estranhamente, o Tudo somado, estamos deixando os tratamento para todos.”
tema foi retirado da agenda. Minha pobres sem proteção social adequa- Ela acrescenta: “Em segundo lu-
hipótese é que prevaleceram consi- da, direito que lhes foi constitucio- gar, o benefício não tem data nem re-
derações de ordem fiscal, cujo peso nalmente assegurado.” gra de reajuste anual, sendo seu valor
deve ter sido magnificado em um atualizado segundo a conveniência

N
quadro de crise internacional. Se o do Executivo federal e de seu orça-
programa se tornasse juridicamente a mesma afinação, Lena mento, o que constitui uma exceção
exigível, com todos os pobres rece- Lavinas discorre: “O incômoda e contrária aos princípios
bendo o benefício, o orçamento pre- PBF não tem evoluído republicanos. Isso não acontece com
cisaria aumentar substancialmente. satisfatoriamente no os demais benefícios, nem com o sa-
Há cálculos, como o da especialista seu desenho e escopo para superar lário mínimo. Além de ferir critérios
Nora Lustig, com base na Pesquisa suas próprias falhas e lacunas. Delibe- de equidade e isonomia, tal excep-
de Orçamentos Familiares (POF) radamente, o governo vem evitando cionalidade mantém os mais pobres
2008/2009 divulgada pelo IBGE, que enfrentar questões pendentes e injus- não integrados à normatividade e
estimam a exclusão dos muito po- tificadas, de qualquer ângulo que se impessoalidade da política pública,
bres em cerca de 45%. Além do mais, tome. Entre elas, destacam-se três. De como ocorre no caso do Benefício
em um contexto de institucionali- início, o fato de o programa não ser de Prestação Continuada (BPC).
zação, será inevitável uma discussão um direito, logo, deixar de fora par- Depois, o valor da linha de pobre-
ampla da linha de pobreza, que, para te da população elegível e habilitada za e indigência é extremamente bai-

48 necessidade
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

xo e tampouco atualizado com base mento do mercado interno de pro- uma transformação real no país ao
num deflator, seja o Índice Nacional dução. A distribuição de receitas do permitir o acesso à renda mínima a
de Preços ao Consumidor Amplo Tesouro (acoplada à expansão do um conjunto enorme, concentrado,
(IPCA) ou outro qualquer. Nesse crédito e à queda da taxa de juros) a sobretudo, nas regiões mais pobres.
caso, como no anterior, o que se faz uma faixa de 31 milhões de pessoas Em muitos municípios não há nada
é mascarar a incidência da pobreza e içou a linha da curva de consumo ao além da prefeitura, que, por sua vez,
sua magnitude real. nível de impulsionar o surgimento só conta com a transferência de ver-
E isso sem falar no que seria es- de uma leva de emprego que, hoje, bas da União. Como inexiste ativi-
perado, dado o fato de o Brasil cons- pouco derrui, mesmo com a ativi- dade econômica, não se arrecadam
tituir um país de renda média alta: dade econômica em desaceleração. impostos. O programa gera outra
em lugar de linhas de pobreza e in- E, evidentemente, mais dinheiro no dinâmica, porque os gastos dos bene-
digência que não se movem, já era bolso do povo e crédito à solta ala- ficiados vão realimentar a economia.
tempo de termos adotado uma linha vancaram lucros na cadeia produtiva De outro ângulo, também é louvá-
de pobreza relativa, à imagem do que e no sistema financeiro. vel que o governo promova o acesso
se passa em muitos países da Orga- bancário a essas pessoas como mais

E
nização para a Cooperação e Desen- um instrumento de inclusão, o que
volvimento Econômico (OCDE) e studo do Ipea demonstra se reflete positivamente no sistema
em todos os da União Europeia. Se que R$ 1 injetado no PBF financeiro. O grande desafio está na
aplicássemos a linha de indigência re- retorna R$ 1,44 à econo- redução da corrupção, por meio do
comendada pela EU (40% ou menos mia, renutrindo o go- aperfeiçoamento de controles e de
da renda mediana nacional per capi- verno via impostos. Daí, a percepção penalidades efetivas para os casos de
ta), em lugar da empregada no Bolsa de que o programa, ao parir novos desvios identificados.”
Família, o número de indigentes esti- consumidores, dinamiza o merca- Segundo Celia Lessa, os cálculos
mado pela Pnad 2011 em pouco mais do – e, em razão da capilaridade, de do Ipea sugerem que políticas sociais
de oito milhões subiria para 32 mi- modo descentralizante. Na avaliação apresentam impactos econômicos po-
lhões. Os três aspectos mencionados da ministra Tereza Campello, não há sitivos e que é possível conciliar cres-
discriminam os pobres que não são empresário ou comerciante insatis- cimento com redistribuição. “Bolsa
idosos, nem portadores de deficiên- feito com as repercussões do Bolsa, Família e gastos em educação e saú-
cia frente aos beneficiários do BPC, o verificando-se, à entrada mensal das de têm retorno econômico maior no
que é constitucionalmente uma aber- transferências do governo, uma sacu- caso dos serviços do que no do Bolsa,
ração e fere o direito de cidadania.” dida nos negócios locais. Estima-se o que é relevante em uma discussão
que uma elevação de 10% no repasse sobre sua sustentabilidade. Porém, a
Derivativos econômicos médio per capita angarie mais 0,6% perspectiva de confrontar o retorno
A sustentabilidade do ponto de ao PIB municipal num intervalo de do programa Bolsa Família com o
vista econômico é acenada pelo go- dois anos. de gastos em serviços não é correta.
verno com a bandeira de o PBF se João Saboia, professor do Ins- Trata-se de um programa indispen-
converter em gerador de derivativos tituto de Economia da UFRJ, co- sável, que nos inscreve no quadro de
importantes, sob a ótica do incre- menta: “O Bolsa Família representa países civilizados que possuem sis-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Em que pesem os avanços


obtidos até aqui, persiste um
subproletariado da ordem de
16,2 milhões de pessoas

temas decentes de proteção social – que é aí, voltando ao ponto crucial, de iniciativa – primeiro passo para
mesmo insuficiente nessa capacidade que o parafuso se atarraxa: na inépcia abandonar a situação de extrema po-
e mesmo ainda insuficientemente ar- de, em plena economia do conheci- breza, e não o assistencialismo com
ticulado com os serviços. Não deixa mento e de mercados globalizados, que o tentam, preconceituosamente,
de ser um alento que, ao atendermos estruturar-se um sistema eficiente desqualificar, pois nenhum estudo
exigências mínimas de justiça social, de educação e capacitação de mão acadêmico indicou um fator de de-
também obtenhamos ganho econô- de obra, as chamadas portas de saí- sincentivo ao trabalho – se conjuga a
mico e contribuamos para a susten- da, para que o beneficiário possa se ações de fomento ao capital humano
tabilidade financeira do programa. livrar da tutela estatal e caminhar e de desenvolvimento econômico. Aí
Mas não creio que essa deva ser sua com as próprias pernas. E responder se encontra o grande dilema atual do
justificativa central.” à abertura de novas oportunidades de Brasil. As empresas estão dispostas a
trabalho com qualificação. qualificar tecnicamente as pessoas, só
Portas de saída emperradas Wanda Engel, que coordenou – que elas não têm escolaridade. Os jo-
De todo modo, seria de se per- na Secretaria de Estado de Assistência vens ou não estão entrando ou estão
guntar o porquê de o governo não Social de FHC – o Projeto Alvorada, saindo como água do ensino médio,
colocar em prática a mesmíssima hoje integrante do Conselho de Ad- desistindo muito cedo desse passa-
equação utilizada no cálculo de re- ministração do Instituto Unibanco, porte rumo ao mercado de trabalho
torno econômico do PBF para rela- reporta: “A ideia sempre foi que essas formal, para ingressar com o pé es-
cionar – matemática ainda do Ipea famílias tivessem condições de dei- querdo no segmento marginal ou no
– cada R$ 1 gasto em educação a um xar o programa pela porta da fren- subemprego. Hoje, vivemos o ab-
aumento de R$ 1,85 no PIB e de R$ te, por alcançarem um nível de pro- surdo de termos postos disponíveis
1,70 na renda das famílias. Sim, por- gresso para tal. O sucesso desse tipo e falta de pessoal qualificado para

50 necessidade
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ocupá-los. É possível que a extensão do orçamento. Chegou lá e estacio- altamente regressivo, uma vez que os
dos benefícios do Bolsa Família até nou, pouco importando como varia recursos para pagamento dos benefí-
a faixa etária de 17 anos contenha um esse número em função da conjuntu- cios proveem de impostos indiretos,
pouco essa hemorragia de recursos ra. Agora, reconheceu, com base no incidentes sobre o consumo e pagos
humanos.” Censo 2010, que há mais beneficiários por toda a população, inclusive pelos
em potencial não contemplados. Mas mais destituídos, cuja renda vai toda
Subproletariado remanescente reconheceu isso somente para os in- para o consumo de bens-salário.
Em que pesem os avanços obti- digentes e não para todos os pobres.

O
dos até aqui, persiste um subprole- Ora, se há um maior número de in-
tariado da ordem de 16,2 milhões de digentes, a partir do Censo, é mais do ra, no Brasil, nenhum
pessoas. Para ele, desenhou-se, em que plausível que o mesmo aconteça produto da cesta bá-
junho de 2011, o astronômico arco com os pobres. Por que então só se sica é objeto de de-
de promessas denominado Brasil identificam os indigentes e não os soneração integral.
Sem Miséria (BSM), que inclui, além pobres na sua totalidade, com con- Isso reflete uma contradição para
do tronco Bolsa, diversos outros trole do orçamento e domínio de qualquer política social, pois reduz
membros, como Brasil Carinhoso, como deve ser articulado o BSM à sua efetividade. No Brasil, a tributa-
Programa Nacional de Inclusão de política macroeconômica?” ção indireta impacta sobremaneira
Jovens (ProJovem), Programa Na- os mais pobres. Todo mundo sabe,
cional de Acesso Técnico e Emprego Passo de caranguejo mas fica por isso mesmo. Na verda-
(Pronatec) e Programa de Aquisição Como perdura, em maior ou de, significa que a transferência fiscal
de Alimentos (PAA). As famílias-al- menor escala, a peleja, não será sim- feita pelo governo é menor que o va-
vo, na maioria, se localizam na região ples arte especulativa, afinal, pensar lor recebido de fato por cada famí-
Nordeste (59%) e em centros urbanos não em um crescimento evolutivo, lia. Haveria que se calcular a renda
(ao redor de 75%) – cerca de 30% em mas num retrato que se vai desco- disponível recebida e não a nominal.
municípios acima de 100 mil habi- rando de um herói concebido em Precisamos rever a estrutura de fi-
tantes –, mas também se encontram tonalidades vibrantes. Se o pro- nanciamento dos benefícios assisten-
no escopo as habitantes de florestas e grama não anda para trás, também ciais no Brasil, porém, reforma fiscal
áreas ribeirinhas, rurais, quilombolas não há pistas de que vá à frente, an- e tributária são pontos fora de qual-
e extrativistas. Para identificá-las, o tes caminhando à la caranguejo, de quer pauta.” 
BSM enfrenta o desafio de aprimo- banda e desconjuntado. “Um último A cesta básica não só não é de-
rar os mecanismos de busca ativa por desafio”, acentua Lena Lavinas, “de- sonerada como sofre variações cons-
potenciais beneficiários que ainda veria ser enfrentado, mas esse tem tantes. Tomemos que, ante um salá-
não foram incluídos em nenhum pla- poucas chances de entrar na agenda rio mínimo hoje em R$ 622, o valor
no de combate à pobreza extrema. das prioridades, pois implicaria uma máximo repassado pelo PBF é de
“O governo – esclarece Lavinas revolução que nem o atual governo R$ 306. Em outubro, o preço dos
– trabalha com um planejamento em nem a sociedade brasileira se mos- gêneros alimentícios essenciais su-
que a primeira estimativa foi de 12 tram interessados em ao menos re- biu em nove das 17 capitais onde o
milhões. Essa é a lógica do controle conhecer: o financiamento do PBF é Departamento Intersindical de Es-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tatística e Estudos Socioeconômi- alta nos preços médios, destacando- te, de modo a rever o valor real do
cos (Dieese) efetua, mensalmente, a -se, novamente, Fortaleza (28,40%), benefício, em conformidade com os
Pesquisa Nacional da Cesta Básica. Natal (23,25%) e Recife (21,39%). recursos de que a nação dispõe e com
As do Norte e Nordeste lideram a a elevação do custo de vida.

E
alta, sobretudo, Recife (4,49% / R$ O caminho se apresenta, assim,
250,28), Manaus (3,61% / R$ 298,22) m outubro, verifica-se longo e cheio de percalços para lo-
e Fortaleza (2,54% / R$ 255,11). Após que o trabalhador com- grarmos um dia implementar não
três meses, São Paulo voltou a assina- prometeu em média apenas programas de mínimos so-
lar o maior valor para a cesta básica, 46,95% do salário mí- ciais, o que qualquer liberal sensato
com os produtos de primeira neces- nimo líquido (descontada a parcela aprova, mas mecanismos sólidos e
sidade atingindo R$ 311,55 (0,80%), referente à Previdência) com a com- permanentes de redistribuição verti-
seguido por Porto Alegre, R$ 305,72 pra da cesta básica. O percentual, cal no montante adequado ao nosso
(-1,84%). embora levemente inferior ao requi- ainda profundo grau de desigualda-
Baseado no aferido na capital sitado em setembro (47,04%), é mais de”, conclui Lavinas.
paulista, e considerando-se o precei- elevado que o exigido em igual mês Não parece restar, portanto, al-
to constitucional que estabelece que de 2011 (46,48%). Correlacionem-se ternativa: é avançar ou avançar. Um
o salário mínimo deve ser suficiente esses números ao valor médio mais país que se pretende de renda média
para suprir o trabalhador e sua famí- recente do benefício do Bolsa – R$ e competitivo no mundo globalizado
lia com alimentação, moradia, edu- 120,19 – e não serão necessárias con- precisa afinar sob um mesmo diapa-
cação, vestuário, saúde, transportes, tas muito complexas para se estimar são programas de transferência de
higiene, lazer e Previdência Social, o suas perdas. renda condicionadas – de maneira a
Dieese calculou em R$ 2.617,33 (ou “A conjuntura macroeconômica reparar a situação calamitosa da ain-
4,21 vezes o piso vigente) a menor está ficando bem mais difícil para o da espessa camada no subsolo do ago-
faixa indispensável a cobrir esses governo, que vem procedendo a de- ra losango social – e uma engenharia
gastos. No mesmo mês de 2011, o sa- sonerações que vão prejudicar o or- sólida de estruturas horizontais. Só
lário mínimo necessário seria de R$ çamento da Seguridade Social. Por- assim, mediante a construção de por-
2.329,94, ou 4,28 vezes o que vigora- tanto, não creio que nada vá mudar tas de saída maciças, o Brasil verá o
va, R$ 545,00. fundamentalmente no programa nos peixe caro que está oferecendo nu-
De janeiro a outubro do exercí- próximos anos. O perfil que toma o trir substancialmente os pescadores
cio em curso, a variação acumulada Programa Bolsa Família é de se man- do futuro. Sem abraçar para valer a
do preço da cesta se mostrou positi- ter como um programa focalizado educação – e as outras áreas essenciais
va em todas as capitais pesquisadas. de baixo custo e eficácia decrescen- – e instituir medidas regulatórias e
Os maiores aumentos foram apura- te. A menos que o governo garanta de autoajuste, o programa seguirá,
dos em Fortaleza (18,54%), Manaus sua transformação em direito – à como dito inicialmente, estacionado
(16,59%), Natal (16,40%) e Recife semelhança do BPC, com todos os na fronteira do abrandamento da mi-
(15,88%). No intervalo de doze meses elegíveis contemplados –, pautado séria. Cozinhado em banho-maria.
– entre novembro de 2011 e outubro numa análise adequada do grau de
último –, todas as capitais apontaram destituição da população mais caren- [email protected]

52 necessidade
ascensao
e queda do
marxismo
Os dados que saem dos livros

Glaucio Ary
Dillon Soares
Sociólogo

54 valia mais
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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ste artigo tem dois objetivos, um A base de dados

e
metodológico e outro teórico. Em agosto de 2010, quase 130 milhões de livros haviam
Metodologicamente, proponho sido publicados no mundo, de acordo com um engenheiro
que o estudo da frequência com do projeto chamado Google Books. A Google lançou-se,
que uma teoria, seus conceitos então, à tarefa de escanear esses livros (que foram escritos
e autores são usados em livros, em 480 idiomas). Até junho daquele ano, tinha escaneado
revistas e outros instrumentos cerca de 12 milhões.3 A despeito do cuidado que tiveram
da mídia seja um indicador útil em definir bem, obter e escanear os livros, é claro que não
da sua penetração no pensa- são universos nem amostras aleatórias dos livros publica-
mento da humanidade. Não é um indicador exato, não é dos nesse ou naquele idioma. Não obstante, tanto mais
uma medida, mas sua utilidade será tão ampla quanto a central o idioma, maior a facilidade para encontrá-los. A
imaginação do pesquisador. Como um benefício adicio- codificação desses livros em alguns idiomas constituem
nal, pode ser usado para verificar se os regimes políticos, os corpora que alguns analistas estão usando. Infelizmen-
as ideologias do grupo no poder, a censura e a repressão te, ainda não foi criado e disponibilizado um corpus em
influenciam essa frequência. português.
Teoricamente, parto do suposto de que o marxismo foi Por isso, usei cinco corpora (Alemão, Espanhol, Francês,
a orientação teórica geral1 mais influente e profícua durante Inglês e Italiano) para demonstrar a semelhança do percurso
várias décadas do século XX, declinando posteriormente. seguido pelo marxismo. Os dados se referem às percenta-
Se verdadeira, essa influência se refletirá na forma de uma gens que as palavras que selecionei representam sobre o
curva; primeiramente, ilustrando um período de expansão, total de palavras do corpus em questão. Para exemplificar
e posteriormente, um período de queda. Se, como também os efeitos da censura, tema desenvolvido em outro artigo,
hipotetizo, foi uma orientação supranacional, essa curva também foi utilizado o corpus em russo.
deve estar presente em diversos países e regiões, aqui re- Usei, também, médias móveis trienais para suavizar pi-
presentados por idiomas. Seriam curvas semelhantes, mas cos e baixas que ocorrem em alguns anos e dificultam a
não iguais, deixando espaço para as peculiaridades de uma visualização.
nação, de uma região, de um grupo idiomático. Essa base de dados, valiosíssima, tem seus problemas e
Hipotetizo, consistentemente, que há um conjunto de limitações. Temos de perguntar o que significam os livros
teorias, ideias e conceitos que atravessam fronteiras. Alguns como parcela de toda a comunicação humana; temos de
cruzam tempo e espaço, outros não. O marxismo cruzou perguntar o que significam esses 30 milhões em relação ao
tempo e espaço, tornando-se uma orientação sociológica e total; gostaríamos de controlar a maior dispersão temáti-
teórica geral, com penetração em muitos países. A história
2
ca que parece ter caracterizado o último século, mas não
de como essa orientação cruzou fronteiras, cresceu, atingiu temos como fazê-lo. Não obstante, há regularidades que
um auge em países diferentes e entrou em declínio é parte permitem aumentar o grau da confiança que depositamos
do que pretendo ilustrar. em nossas hipóteses.

1. Essa não é uma expressão jogada ao vento: ela foi trabalhada em detalhe por Robert King Merton em Social Theory and Social Structure, Free
Press, 1968, versão ampliada da original, de 1957.
2. Há quase meio século proponho que o marxismo é uma orientação sociológica geral profícua. Não obstante, defendo, também, a ideia de
que a transformação do marxismo em doutrina política sabota sua utilidade. (Ver Soares, G. A. D. Marxism as a General Sociological Orientation.
British Journal of Sociology. Londres, v. XIX, pp. 365-374, 1968.)
3. A base que usamos, mais atualizada, tem perto de 30 milhões de livros.

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A simultaneidade relativa das mudanças patamar está entre os corpora Alemão e Espanhol, que é 0,88!
nos vários corpora Os escritos não são uma amostra aleatória da população, e a
Como o tempo dessas mudanças não ocorreu em um conclusão metodologicamente conservadora é que esse grupo
ou dois países, mas em muitos, e em línguas diferentes, uso ocupacional é semelhante em línguas (países?) diferentes, ainda
as mudanças para realçar o caráter supranacional do mar- que os países em que nasceram e/ou escreveram fossem (e
xismo. Além disso, como o timing do crescimento auge e o sejam) estruturalmente muito diferentes. Arriscando mais, há
do declínio foram semelhantes em publicações em diferen- uma internacionalização das elites, a despeito das desseme-
tes línguas, há indicações de que os que escreveram livros lhanças estruturais entre os países em que vivem.
(e provavelmente os que os leram) em idiomas diferentes
foram afetados em graus semelhantes por mudanças na A Queda do Muro e o declínio: as conexões são mais
história política e no pensamento político. complexas do que parecem
A Figura 1 mostra o uso da palavra marxismo em cinco Há uma tendência a associar causalmente eventos próximos
corpora: Alemão (Marxismus); Espanhol (Marxismo); Francês no tempo. A Queda do Muro, seguida pelo colapso da União
(Marxisme); Inglês (Marxism) e Italiano (Marxismo).4 A base Soviética, é uma explicação intuitiva para o descenso do mar-
de dados diferencia maiúsculas de minúsculas. Porém, o xismo. Porém, é um erro considerar a Queda do Muro, em 9
uso da palavra com a primeira letra maiúscula é muito mais de novembro de 1989, como um corte – ponto! – e não como
frequente do que a palavra com todas as letras minúsculas. a parte final e certamente indispensável para a compreensão
Em nossa análise, somamos as duas. de um processo mais extenso, mais antigo. Simbolicamente, é
O início da ascensão do marxismo depois da Primeira importantíssima; não obstante, não deve ser tomada como a
Guerra Mundial – particularmente durante e logo depois da origem do descenso relativo do marxismo, processo que estava
Grande Depressão –, com exceção do Alemão, foi prejudica- em andamento há vários anos. Esse repensar transfere a perio-
do, primeiro, pelo crescente ativismo dos nazistas, e depois, dização de um dia, de um evento, para um tempo bem maior.
pela sua tomada do poder. Análises adicionais mostram co- Depois da criação das zonas, o trânsito de alemães entre
mo autores judeus que eram referência obrigatória em seus elas era livre, mas muitos alemães orientais iam para a zona
campos, como Einstein e Freud, foram quase suprimidos na ocidental e... ficavam. Em 13 de agosto de 1961, a fronteira foi
Alemanha, o que demonstra que esse instrumento reflete fechada e começou a construção do muro, com uma exten-
e pode captar condições políticas, sobretudo a censura e são de aproximadamente 140 quilômetros. Em junho de 1962,
a repressão. Nos demais idiomas, a ascensão do marxismo começou a construção de um segundo muro, perto de 100
continuou, sendo muito rápida nas décadas de 1960 e 1970. metros para dentro da Alemanha Oriental. É, portanto, possível
Porém, o ponto de inflexão que marca o fim do ascenso e que o colapso do sistema tenha começado quase três décadas
o início do declínio do marxismo não foi idêntico nos cinco antes, e que a construção do muro seja um ponto de corte
idiomas. A análise dos dados serve para negar hipóteses melhor do que a sua derrubada. O que dizem nossos dados?
amplamente aceitas, como a grande influência da Queda O fim do ascenso, em Espanhol, começou no final da dé-
do Muro de Berlim sobre o conteúdo dos livros publicados. cada de 1970, como aconteceu em Francês, Italiano e Alemão.
Outro teste que confirma essa simultaneidade é dado pelas Em Inglês, esse processo se deu poucos anos mais tarde.
correlações desde 1864 até em cinco corpora: com uma ex- O rápido declínio se deu antes em Alemão, Francês e
ceção, todas as correlações são iguais ou maiores do que 0,9 Italiano; logo depois em Inglês, e em seguida, em Espanhol.
(uma igual, oito mais elevadas). A única inferior a esse altíssimo Poucos anos separam o início do descenso nos cinco idiomas.5

4. Primeira letra tanto em maiúscula quanto em minúscula: foram somadas.

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Detalhando o que aconteceu com a palavra marxismo Auge e declínio dos conceitos e subteorias
em diversos corpora definidos por idiomas e grupos de Aceitar que existem auges e declínios das teorias implica
idiomas ao longo do tempo, no corpus Espanhol, o uso do aceitar o mesmo em relação às subteorias e aos conceitos
termo Marxismo teve mais de um período de crescimento: que as compõem. Porém, alguns conceitos e subteorias
acelerado de 1920 até pouco antes de 1940, quando teve podem ser absorvidos e integrados, ainda que de forma
um declínio de alguns anos, coincidente com a pré-guerra modificada, por outras orientações teóricas gerais. Os con-
e a guerra; posteriormente, cresceu rapidamente durante ceitos e subteorias influenciam e deixam sua marca na no-
três décadas (50, 60 e 70) e começou a declinar entre o fi- va matriz, e sobrevivem, ligados a ela. Mas sua vinculação
nal da década de 1970 e o início da década de 1980. Nesse primária com a teoria em declínio determina, também, o
idioma, o declínio se iniciou antes da Queda do Muro e se seu declínio: as referências e o uso de autores, conceitos,
acelerou depois, continuando em queda livre até a virada do subteorias e teorias divergem entre si.
século. Os dados mais recentes, incompletos, sugerem uma Selecionei três conceitos do marxismo entre os que fo-
desaceleração do declínio, até mesmo um possível plateau ram menos absorvidos por outras teorias: proletariado, bur-
em nível relativamente baixo a partir de 2000. guesia e o conflito entre eles, a luta de classes. No corpus
Em Francês, o percurso foi semelhante: cresceu desde mais extenso, Inglês, o que aconteceu com esses conceitos?
o início do século XX até o pré-guerra, declinou até a de- O proletariado é indispensável no marxismo: é o gran-
finição da guerra (a França estava ocupada) e explodiu no de ator do futuro. Em Inglês, cresceu moderadamente en-
pós-guerra, até pouco antes da década de 1980, quando tre as décadas de 1870 e 1910, explodiu até 1920 e decaiu
declinou aceleradamente. O comportamento recente é se- durante alguns anos, retomando o crescimento explosivo
melhante ao corpus Espanhol. no final da década, até 1937, quando arrefeceu a Depres-
Em Inglês, mais semelhanças: o crescimento acelerado são. Nessa data se iniciou um amplo período com muita
durante a Grande Depressão; uma redução (menor do que variação até 1972-73, quando o termo caiu rapidamente
em Espanhol e Francês) no pré-guerra e durante a guerra, em desuso. Mais 25 anos e voltou ao nível de 1918. A única
com retomada posterior do crescimento. O ponto de infle- tendência discernível atualmente é o declínio. Sua inimiga
xão que assinala o declínio também se situa antes de 1989, teórica, predestinada à derrota na teoria marxista, fadada a
antes da Queda do Muro de Berlim. Porém, diferente dos ser superada no socialismo, a burguesia, conceitualmente
corpora anteriores (Espanhol e Francês), não se observa um seguiu um caminho semelhante. Cresceu paralelamente ao
plateau nos últimos anos, e sim a continuação do declínio. O conceito de proletariado, oscilou a partir de meados da dé-
comportamento recente é semelhante ao do idioma Alemão. cada de 1930 até a de 1970, quando despencou. Em 2008,
Em Italiano, o crescimento se acelerou depois da morte voltou ao nível de 1918.
de Mussolini, mas com uma pequena queda após 1947, re- A consciência de classe, condição indispensável à re-
tomando o crescimento em 1957. Foi um crescimento muito volução proletária, levaria à luta de classes que teve uma
rápido até 1976, quando começou a despencar. evolução isomórfica às anteriores, com pequenas diferen-
Esses resultados mostram que o início do declínio do ças. Cresceu lentamente do início da década de 1920 até
marxismo foi anterior à queda do muro de Berlim e ao co- meados da década de 1960, acelerando até 1980, quando
lapso da União Soviética. Mostram, também, que os livros despencou. Em 2008, o conceito foi menos usado, propor-
publicados em cinco idiomas seguiram curvas semelhantes. cionalmente, do que em 1920.

5. Por “fim do ascenso” entenda-se, apenas, que o uso parou de crescer (sempre em relação ao total de palavras), e por “rápido declínio”, um período
acelerado de queda no uso do conceito Marxismo.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

FIGURA 1

Livros mencionando o marxismo em


cinco linguas do mundo (- 1864-2005)
Taxas anuais das menções
(marxismo+marxismo) normalizadas
pelo total das palavras

Marxismus
Marxismo
Marxisme
Marxism

1840 1860 1880 1900 1920 1940 1960 1980 2000

FIGURA 2

Proletariat, Bourgeoisie,
Class struggle em InglEs (- 1830-2008

Bourgeoisie
Class Struggle
Proletariat

1840 1860 1880 1900 1920 1940 1960 1980 2000

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

A Figura 2 mostra que o percurso na história dos con- 1940. É outro evento que acaba determinando o início do fim
ceitos foi semelhante. Cresceram a partir de 1880 até 1920, das referências a figuras públicas: a morte. Em 20 de agosto
período que foi seguido de uma queda de alguns anos. de 1940, Trotsky foi assassinado no México, por ordem de
Cresceram aceleradamente durante a Grande Depressão, Stalin. Num mundo em guerra e em ebulição, foi gradual-
atingindo um pico no fim da mesma. Desde 1940 até fins mente esquecido. As menções a suas ideias, ao seu trabalho
da década de 1950, nova queda, seguida de rápido cresci- e à sua obra se tornaram menos frequentes. Não obstante,
mento. Finalmente, houve um descenso contínuo a partir sobrevivem mais de sete décadas depois de sua morte.
da segunda metade da década de 1970. Os três concei-
tos divergiriam durante muitas décadas, no meu entender, O que os autores aprenderam
porque configuram uma subteoria das principais classes e O exame detalhado da frequência relativa com que con-
do conflito entre elas. São conceitos importantes para o ceitos aparecem em milhões de livros é uma ferramenta
marxismo, que é uma teoria com alto grau de consistência. promissora. Usei essa ferramenta como um instrumento
Nas últimas quatro décadas, houve um descenso da influ- para sugerir que o marxismo e alguns dos seus conceitos
ência do marxismo nas publicações. O fato desse descenso seguiram uma trajetória, que incluiu períodos de aumento
ter se iniciado e se acelerado antes da Queda do Muro de nas publicações, rápidos ou não, estabilidade durante poucos
Berlim pode ser visto nas curvas referentes ao marxismo e anos e um rápido declínio. É um exame parcial da presença
seus conceitos. dessa importantíssima teoria num igualmente importan-
tíssimo meio de comunicação, o livro. Há outros meios de
Efeitos da repressão comunicação, alguns antigos, como jornais, revistas e rádio,
Talvez em nenhum corpus o efeito da ideologia que e outros recentes, como a televisão e os meios eletrônicos.
orienta uma ditadura, que censura e reprime, tenha sido Ademais, há problemas insolúveis de amostragem: os livros
tão claro quanto durante a Alemanha nazista. A análise do examinados, ainda que 30 milhões, não são amostra alea-
one-gram Marxismus mostra que, diferente dos demais cor- tória do total de livros publicados.
pora, o crescimento acelerado do seu uso em livros teve Considerando todas as limitações dos dados e da abor-
que esperar o fim da guerra e a derrocada do nazismo. A dagem, duas conclusões se impõem: nenhuma teoria so-
censura e a intimidação foram mais amplas: por exemplo, ciológica geral teve tanto impacto, durante tanto tempo,
as referências a autores judeus quase desapareceram du- como o marxismo. O seu declínio não foi o resultado de sua
rante o período nazista. Foi o que aconteceu, por exemplo, substituição por outra orientação geral mais profícua. Não
com Einstein, físico; Sigmund Freud e Magnus Hirschfeld, houve substituição. A segunda é que o marxismo seguiu o
psicanalistas; Mahler, compositor e muitos mais. percurso esperado de uma grande teoria: cresceu, dominou
Há censura, também, nas ditaduras de esquerda. Um exem- o pensamento sociológico durante décadas, chegou a um
plo é dado pela frequência das menções a Trotsky, que su- teto, foi afetado por acontecimentos na política mundial e
biram e desceram de acordo com sua relação com o poder nas políticas nacionais, e teve uma queda acelerada, que
na Rússia. As referências a Троцкий subiram rapidamente de continuava no início do novo milênio. Hoje, a sociologia é
1917 até 1929, junto com seu poder e influência. A fortuna de órfã, uma disciplina em busca de um autor, de um caminho.
Trotsky mudou drasticamente em 1929, ano do seu exílio: as
referências em russo declinaram abruptamente a partir daí. Artigo escrito com a participação de Max Stabile.

Para contrastar, a tendência das menções a Trotsky no corpus


O articulista é professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Inglês não mudou com o exílio. Aumentou continuamente Uerj (IESP/UERJ)
desde meados da década de 1910 até o início da década de [email protected]

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

omo um dos maiores exportadores lares. O gasto de combustível corresponde a 1,5 milhão
de petróleo do mundo, a Arábia de barris por dia e tende a transformar-se em 2,5 milhões
Saudita é a principal potência eco- por dia em 2020. O processo reduz a quantidade de óleo
nômica de todo o mundo árabe. O cru lucrativo para a exportação. Em suma, a expansão e
petróleo representa mais de 90% das o desenvolvimento de capacidades de dessalinização são
exportações e quase 75% das receitas necessários, mas o seu custo energético é muito alto para
do governo, o que o caracteriza como um Estado rentista. representar, aparentemente, a única solução para o pro-
A Arábia Saudita é uma das regiões mais secas do mundo. blema da água (POLYCARPOU, 2011).
Estende-se por 2.250.000 km2. Não possui rios perenes e a Porém, essa escassez gera outros problemas. De fato,
chuva é de estimadamente 70 mm/ano. Tem necessidade de 85% a 90% da água é utilizada para a agricultura, que
de abastecer uma população crescente de mais de 28 mi- gera poucos retornos financeiros para o país. Há algumas
lhões de habitantes. Faz parte dos países do mundo que décadas, a Arábia Saudita utilizava as suas fontes não re-
enfrentam problemas de escassez de água; de fato, tem nováveis de água para irrigar o deserto, para sustentar-se
reservas limitadas de recursos hídricos renováveis e não na produção de grãos. Mas por volta de 2008 o governo
renováveis (Central Department of Statistics & Informa- abandonou essa estratégia porque os aquíferos começa-
tion). A água saudita é obtida por meio de quatro fontes ram a secar e ter uma infusão de água salgada. Segundo
distintas: as fontes não renováveis de águas subterrâneas esse mesmo artigo da Reuters, o país será 100% depen-
de profundos aquíferos fósseis (88,3% das águas subterrâ- dente da importação de grãos em 2016, se não antes. De
neas) e as fontes renováveis dos aquíferos aluviais rasos fato, sua produção caiu em 2/3 de 2007 a 2010. Segundo
(11,3% das águas subterrâneas), assim como pela dessalini- uma reportagem da BBC, o governo da Etiópia começou
zação da água do mar, que corresponde a 25% da capaci- um processo de arrendamento de trezentos milhões de
dade mundial de dessalinização de água. Essa última é a hectares de terra, uma área do tamanho da Bélgica, para
maior fonte de água para o consumo humano da Arábia investidores estrangeiros, incluindo empresas chinesas,
Saudita (70%) e, por fim, pelo uso das águas de superfície indianas e sauditas (POLYCARPOU, 2011). Essas últimas
(10% do consumo). prometeram investimentos em escolas, estradas e eletri-
Em setembro de 2011, a agência de notícias Reuters cidade em retorno ao arrendamento. Mas é evidente que
publicou um artigo no qual afirmava que a “crise” de esse processo é delicado e traz muitas dúvidas quanto ao
água na Arábia Saudita começava a consumir os retor- melhor local ultraterritorial para investir na agricultura,
nos obtidos pela indústria saudita de petróleo. De fato, pois nesse caso da Etiópia, por exemplo, a terra é habita-
no artigo, é evidenciado que a dessanilização da água é da por diferentes grupos étnicos, assim como por fazen-
um processo que requer bastante energia, ou seja, queima deiros que protestam contra essa presença estrangeira, o
de óleo. De acordo com dados de 2009 da Saudi Arabia’s que causa diversos conflitos. A alternativa a essa solução é,
Saline Water Conversion Corp (SWCC), a produção di- dessa forma, o processo de dessalinização da água do mar.
ária desse processo é de 3,36 milhões de metros cúbicos O grande desafio da água na Arábia Saudita em re-
de água por dia, o que custa mais de três milhões de dó- lação a esse processo de dessanilização é que além de ele

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ser muito custoso, tanto para as reservas de óleo como safios ambientais da questão da escassez da água, apresen-
para os retornos da exportação do petróleo, o governo tando dados quantitativos em relação aos seus recursos
subsidia esse processo e não impõe qualquer tipo de tarifa hídricos limitados. Por fim, será analisada a posição em
para uso da água pela população; de fato, a água no país que se encontra a Arábia Saudita em relação ao resto do
é de graça, praticamente. Os consumidores pagam apenas mundo no que diz respeito à produção de energia durante
1% do custo do seu valor: menos de 0,03$ por metro cú- as próximas gerações.
bico, de acordo com a Global Water Inteligence, sendo
que esse custo por metro cúbico de água é de mais ou A dimensão político-social da Arábia Saudita
menos 6$. Essa é uma característica de um Estado ren- A política da Arábia Saudita é baseada em uma mo-
tista como a Arábia Saudita, que possui reservas de pe- narquia islâmica absoluta. O rei da Arábia Saudita é tanto
tróleo imensas, 24% das reservas mundias (264,5 bilhões chefe de Estado como chefe de governo; no entanto, gran-
de barris), com uma reserva sobre produção de no mí- de parte das decisões é tomada com base em consultas
nimo 80 anos; ou seja, pode arcar com esse prejuízo entre príncipes da família real e da instituição religio-
(GASSON, 2010). De fato, essa é uma estratégia sa. O Alcorão é constituição do país, governado
política, pois o país possui um regime polí- baseando-se na lei básica islâmica, a Sharia.
tico que, para manter-se no poder e evitar O governo é liderado por uma vasta famí-
qualquer tipo de revolta, redistribui a renda lia real (Al Saud), que muitas vezes é divi-
desse petróleo principalmente para aqueles dida por disputas internas entre diferentes
que apoiam o regime. Essa matriz energéti- facções. Os membros da família real são os
ca é realmente uma inibidora da democracia principais atores da política saudita. Qual-
(ROSS, 2001) – que evidentemente não existe quer participação fora da realeza é limitada,
na Arábia Saudita. Dessa forma, como evitar que os mas pressões são estabelecidades para aumentar
recursos não renováveis dos aquíferos sequem se o uso da essa participação. Observamos ao longo dos anos um
água é desenfreado, e não tem um custo capaz de no mí- maior ativismo islâmico resultando muitas vezes em atos
nimo causar uma conscientização em relação ao seu uso? terroristas (BOWEN, 2007).
A questão da escassez de água na Arábia Saudita deve O governo é conduzido pelo monarca, o rei Abdullah
ser observada por diferentes ângulos, pois o discurso de ibn Abdul Aziz, desde 2005, quando subiu ao poder. Não
que enfrenta uma “crise” de escassez de água é uma visão há partidos políticos ou eleições nacionais. O governo
reducionista de todo o cenário político-social, econômico saudita é, de acordo com o índice de democracia realiza-
e ambiental da região. Para demonstrar isso, divido este do pelo The Economist em 2010, o sétimo regime mais
artigo em três segmentos. O primeiro tenta apresentar autoritário entre 167 países avaliados. O rei deve ser esco-
uma visão político-social da Arábia Saudita que explica, lhido entre os filhos do primeiro rei, Abdul Aziz Al Saud,
em parte, essa particularidade do país. Em um segundo e seus descendentes do sexo masculino, sujeito a aprova-
momento, será evidenciado o cenário econômico e estra- ção posterior de líderes religiosos (os ulemás) e pela vasta
tégico da indústria petrolífera saudita em relação aos de- família real, dividida por disputas internas entre facções.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O rei domina as funções legislativas, judiciais e executivas. cpação deve ser aumentada ou reduzida. Outras divisões
Os seus decretos autoritários também formam a legisla- dentro da família eram baseadas na sucessão do príncipe
ção nacional. É o primeiro-ministro, e preside o Conse- herdeiro Sultan (BOWEN, 2007).
lho dos Ministros, no qual faz nomeações e exonerações. O governo saudita e a família real foram ao longo
O conselho é responsável por questões administrativas, dos anos acusados de corrupção. De fato, em um país que
financeiras, de saúde e de educação. Há também uma as- “pertence” à família real, assim como tem seu nome base-
sembléia política de 150 membros nomeados pelo rei que ado nela, a separação entre os bens do estado e a riqueza
também pode propor leis, mas não possui real poder le- pessoal dos príncipes é muitas vezes obscura. A corrup-
gislativo (BOWEN, 2007). ção foi reconhecida e defendida pelo príncipe Bandar
De qualquer forma, mesmo sendo o governo uma bin Sultan (um membro sênior da família real), em uma
monarquia absoluta, as grandes decisões políticas são to- entrevista em 2001. Desde os ataques em setembro desse
madas a partir de um consenso dentro da família real, e mesmo ano na ilha de Manhattan, aparece uma crescente
a partir dos pontos de vista de integrantes importantes pressão para reformar e modernizar as regras da família
da sociedade saudita, assim como os ulemás (sábios re- real, agenda essa defendida pelo rei Abdullah. A criação
ligiosos) e chefes de famílias comerciais importantes. A do Conselho no início de 1990 não foi suficiente para sa-
família real domina o sistema político. O vasto número tisfazer as demandas por maior participação política; as-
de membros da família lhes permitem controlar a maio- sim, em 2003, um Fórum de Diálogo Nacional anual foi
ria dos postos importantes do reino e estar presentes em anunciado, permitindo que profissionais selecionados e
quase todos os níveis de governo. É estimado que o núme- intelectuais debatessem publicamente as questões nacio-
ro de príncipes seja por volta de sete mil, sendo que des- nais atuais, respeitando regras precisas e dentro de certos
ses, duzentos são descendentes masculinos do Rei Abdul parâmetros prescritos (BOWEN, 2007). Em 2005, as pri-
Aziz, garantido-lhes maior presença e poder. Os princi- meiras eleições municipais foram realizadas. Em 2007, o
pais ministérios geralmente são reservados para a família processo de sucessão começou a ser regulado. Em 2009,
real (BOWEN, 2007). Na ausência de eleições nacionais e o rei fez mudanças significativas, nomeando reformado-
partidos políticos, a política na Arábia Saudita transcorre res para posições importantes no governo e nomeando a
em dois âmbitos: dentro da família real, a dos Al Saud, e primeira mulher para um cargo ministerial. No entanto,
no bojo da relação entre a família real e o resto da socie- as mudanças têm sido criticadas por serem muito demo-
dade saudita. A família real é politicamente dividida por radas e meramente “decorativas”.
facções baseadas em lealdades de clãs, ambições pessoais A política fora da família real na Arábia Saudita pode
e as diferenças ideológicas. A facção que apoia o clã mais ser examinada por três ângulos: o da participação polí-
forte é conhecida como os “Sudairi Seven”, envolvendo tica mais ampla da sociedade, o da oposição ao regime
o falecido rei Fahd, seus irmãos e descendentes. As divi- e o do terrorismo islâmico. A participação política fora
sões ideológicas incluem questões como a celeridade e a da família real é limitada a um segmento relativamente
direção de uma suposta reforma política do governo, as- pequeno da população e não é relatado pela mídia sau-
sim como a avaliação do papel dos ulemás – se sua parti- dita. Em teoria, todos os homens maiores de idade têm o

70 Ducha
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

direito de petição ao rei, realizado diretamente por meio a população. Em fevereiro de 2005, foram realizadas as
da tradicional reunião tribal dos Majlis (BOWEN, 2007). primeiras eleições na Arábia Saudita. Na capital, Riade, o
A identidade tribal tem sua força e, fora da família real, número de eleitores registrados não ultrapassou 18% da-
sua influência política é frequentemente evidenciada em queles que eram aptos a votar, o que representava apenas
eventos locais e nacionais. A oposição política tem ori- 2% da população da cidade. Os candidatos eram homens
gem com os sunitas, no ativismo islâmico, com os críti- de negócios locais, ativistas e profissionais. Foi possível
cos liberais, a minoria xiita, principalmente na Província estabelecer uma relação entre os candidatos que tinham
Oriental, e também por comunidades tribais. Destes, os uma orientação islâmica, uma base liberal e os candidatos
ativistas islâmicos representam a ameaça mais importante de uma comunidade tribal, muito embora não houvesse
para o regime. De fato, nos últimos anos foi perpetrada partidos políticos. Os candidatos islâmicos eram apoia-
uma série de atos violentos no país. Protestos abertos con- dos por figuras públicas e de posição religiosa importan-
tra o governo, mesmo que pacíficos, não são tolerados. te, ganhando a maioria dos assentos nas cidades sauditas
Em 29 de janeiro de 2011, centenas de manifestantes se como Riade, Jeddah, Medina, Tabuk e Taif. O apoio para
reuniram na cidade de Jeddah, em um protesto contra a os candidatos de orientação mais liberal é muito peque-
infraestrutura da cidade após enchentes que mataram 11 no. É importante evidenciar que ao longo do tempo den-
pessoas. A polícia reprimiu a demonstração após cerca de tro desse tipo de regime os conselhos municipais foram
15 minutos e cerca de 30 a 50 pessoas foram presas. A série provando ser incapazes de realizar de maneira satisfatória
de incidentes e protestos que ocorrem na Arábia Saudi- suas funções. No entanto, as eleições representaram um
ta é parte da onda de protestos e revoluções que afetam avanço significativo na modernização desse regime.
o Oriente Médio e o Norte da África desde o início de
2011. O financiamento surge por meio do zakat (imposto A dimensão econômico-estratégica para
religioso) que deve ser pago por todos os sauditas para o combate à escassez de água
instituições de caridade (2,5 por cento de sua renda). Mui- O Reino da Arábia Saudita é um país situado no su-
tas instituições de caridade são verdadeiras; outras servem doeste da Ásia, o maior país da Arábia, ocupando 80%
para lavagem de dinheiro e operações de financiamento da Península Arábica. Estende-se ao longo de 2.250.000
do terrorismo. Muitos sauditas pagam essa quantia de boa km2. Menos de 1% da área total é adequada para o cul-
fé, mas sabe-se que muitos têm total consciência do des- tivo. A partir do início dos anos 1990, a distribuição da
tino que seu dinheiro tem, e apoiam essa causa terrorista. população se diversificou muito entre as cidades das áreas
O reino é dividido em 13 regiões, distribuídas em di- costeiras leste e oeste, assim com nos oásis do interior.
versos distritos. Governadores regionais são nomeados Os grandes desertos mativeram-se quase vazios. Na Ará-
pela família real, e presidem conselhos municipais (me- bia Saudita, até os anos 1980 havia lagos em Layla Aflaj
tade dos membros é nomeada e a outra metade, eleita). e poços profundos em Al-Kharj, provenientes dos enor-
Os governadores são responsáveis por funções como saú- mes aquíferos subterrâneos, não renováveis, formados em
de, finanças, educação e agricultura (BOWEN, 2007). Os tempos pré-históricos (CIRCLE OF BLUE, 2010). Porém,
governadores regionais atuam para resolver litígios entre esses aquíferos foram sendo explorados exaustivamente

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

para a agricultura e para o consumo humano, de tal for- sumo doméstico de seu principal produto de exportação.
ma que hoje não se encontra mais água fresca nos lagos De acordo com estimativas, quase metade desse consumo
nem nos poços. doméstico é para a dessanilização da água (CIRCLE OF
Os recursos renováveis de água da Arábia Saudita BLUE, 2010). O país possui a maior capacidade instalada
têm um total de 95 metros cubicos de água per capita, de dessanilização de água do mundo; de fato, operam 29
número bem abaixo dos 1.000 metros cúbicos per capita, plantas com essa função, instaladas em seu território. Des-
índice de referência para denotar um país com escassez de os anos 2000, a Arábia Saudita incentivou o setor pri-
de água. O país é um dos mais secos do mundo, não pos- vado a construir, financiar, assim como operar as plantas
sui rios perenes, e suas fontes renováveis e não renovávies de dessanilização. A planta Shoaiba III Independent Wa-
de água são bem limitadas. A partir de 2008, o gover- ter and Power Producer (IWPP), por exemplo, é a maior
no parou de irrigar o deserto para a produção de grãos de todas, com uma capacidade de produção de 150 mi-
com água proveniente das suas fontes não renováveis, en- lhões de metros cúbicos por ano; foi inaugurada em 2005
contradas nos seus aquíferos fósseis subterâneos. De com um custo de 1,06 bilhões de dólares (GASSON,
fato, começavam a secar e apresentar infusão de 2010). Está localizada no Mar Vermelho e pro-
água salgada. A água sustenta a vida humana, duz água para as cidades de Jeddah, Mecca e
a produção de comida e o desenvolvimen- Taif. O país planeja construir, em 2016, um
to econômico. Por volta de 2016, a Arábia adicional de dez plantas, um investimento
Saudita ficará, de acordo com estudos, de valor em torno de 16 bilhões de dólares.
totalmente dependente da importação de É esse processo de dessanilização que
grãos; sua produção caiu de dois terços en- produz a maior quantidade de água consu-
tre 2007 e 2010. A saída para essa situação foi mida pela população, por volta de 70% do
comprar terras arrendadas por outros países, como consumo. Como já observado, é um processo ca-
Etiópia, por exemplo, para estabelecer uma produção ríssimo, tanto em termos de capital quanto em termos
agrícola. O ganho financeiro com essa atividade é míni- energéticos, pois utiliza-se, para essa produção de energia,
mo para o país, mas ela é essencial para a população ára- de uma parcela de 1,5 milhão de barris da produção diária
be. No entanto, essa solução ainda é muito problemática de petróleo da Arábia Saudita (8,5 milhões de barris/dia),
e polêmica (POLYCARPOU, 2011). A única alternativa, barris esses que deixam de ser direcionados a exporta-
e a mais aceita, é o processo de dessanilização da água do ção. Esse número tende a subir para 2,5 milhões em 2020.
mar para o consumo humano e para a produção agrícola, Além do custo de transformação de água do mar, o ser-
que consome cerca de 85% a 90% da água. viço de transporte dessa água para a população é precário
Como já mencionado anteriormente, a Arábia Sau- (CIRCLE OF BLUE, 2010). Por exemplo, na cidade de
dita possui 24% das reservas mundiais de petróleo, um Riade, capital do país, a água é transportada por um pi-
equivalente a 264,5 bilhões de barris, e uma reserva sobre peline de 465 km que está disponível somente a cada 2,5
produção de no mínimo 80 anos. A sua demanda ener- dias, enquanto em Jeddah, somente a cada nove dias. A
gética vem aumentando de 8% ao ano, elevando o con- incapacidade institucional e de governança são uma ca-

72 Ducha
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

racterística do setor público da Arábia Saudita. A partir arcar com o custo de todo o processo de dessanilização da
dos anos 2000, o governo tem se apoiado muito no setor água, para o consumo humano e para a agricultura. Mes-
privado para operar a infraestrutura da distribuição e tra- mo com a contínua elevação dos gastos energéticos para
tamento de água; isso é feito a partir da privatização de a transformação da água, o governo ainda tem dinheiro
diversas empresas, começando com as de dessanilização para levar prejuízo, prover água de graça para sua popu-
e de tratamento de esgotos, por exemplo. Segundo um lação e manter o regime no seu status quo. No entanto,
estudo feito por Elie Elhadj, da School of Oriental and nenhum governo gosta de gastar dinheiro de maneira le-
African Studies, metade dos moradores sauditas ainda viana, então é preciso medidas para tentar diminuir essa
não tem acesso a conexões municipais de distribuição de demanda elevada de água, no intuito de preservar as fon-
água e dois terços ainda não têm acesso a um saneamento tes naturais limitadas do país.
eficiente. Porém, isso tem um custo político muito alto. De
Todos esses elementos indicam que o acesso a água é fato, uma das soluções encontradas seria a redução dos
muito complicado no país; dessa forma, de acordo com as subsídios do governo para o consumo de água, pois o go-
leis básicas da economia, ela deveria ser um produto caro verno atualmente arca com mais 99,6% do custo total da
para a população, pela dificuldade de extrair essa água po- produção de água (GASSON, 2010). Mas isso teria um
tável e transportá-la. No entanto, os consumidores pagam impacto em toda a população, que passaria a ter uma água
apenas 1% (0,03$ por metro cúbico) do custo da água (6$ de difícil acesso e agora mais cara. O que não seria bom
por metro cúbico), ou seja, a água é praticamente de graça para aqueles descontentes com a monarquia atual. Loay
para a população... Al-Musallam, chefe da National Water Company, acre-
Mergulhado em rios de dinheiro proveniente do pe- dita que esse seja o único jeito realístico de controlar o
tróleo, o governo saudita é capaz de arcar com esse pre- consumo de água da população. O governo saudita inves-
juízo econômico. De fato, ele redistribui para a sua po- te também muito em uma campanha de conscientização
pulação a renda adquirida pela exportação do petróleo. por meio de publicidade para o uso sustentável do recurso
Faz isso, no intuito de acalmar ânimos dos radicais que natural pela população.
protestam contra o governo saudita, fazendo atentados Outra solução encontrada para esse problema é a uti-
terroristas. O governo manipula a população benefician- lização de energias alternativas para o processo de dessali-
do aqueles que apoiam o governo (ROSS, 2001). A família nização da água do mar. De fato, essa é a saída que prepa-
real se sustenta a partir do dinheiro do petróleo; a massa ra o terreno para o futuro. Em janeiro de 2010, o governo
trabalhadora saudita é, na verdade, formada pelos estran- saudita anunciou uma iniciativa para o uso de energia
geiros no país, que são discriminados. A população, que solar nas plantas dessalinização. Haveria uma redução de
continua a crescendo em um ritmo acelerado, leva a um 40% do custo da água e da energia. O programa começa-
aumento dessa demanda desenfreada, 248,7 litros per ca- rá com uma planta de pequena produção (30.000 metros
pita diários (KAWACH, 2010). Com isso, é normal pen- cúbicos por dia), e de pouco a pouco todas as plantas irão
sar que as reservas naturais do país estejam ameaçadas, incorporar a energia solar.
mas, mesmo assim, o país tem condições financeiras para Isso representaria um avanço fantástico para o país

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no futuro. De fato, em primeiro lugar, tem um território mundial. A teoria do fim do petróleo, porém, baseia-
imenso e uma população crescente, mas que ainda é re- -se na previsão de que nas próximas décadas não tere-
lativamente pequena em relação a populações de países mos mais acesso ao óleo abundante e barato. Essa teoria
como Brasil, Estados Unidos e Alemanha, entre outros; se divide em duas vertentes. Numa ponta da discussão
ou seja, tem espaço físico para instalar plantas gigantescas estão os adeptos da teoria do “pico do petróleo”, que
com painéis solares para captar a energia. Em segundo prevê o fim do mineral devido à explosão do consumo
lugar, se situa geograficamente em um dos lugares mais e uma oferta que não consegue mais suprir essa deman-
quentes da terra, o que é propício para a energia solar da acelerada. Tadeusz Patzek, professor e engenheiro de
(CIRCLE OF BLUE, 2010). O dinheiro que o país arre- petróleo da Universidade do Texas, em Austin, é um de
cada com a exportação do petróleo o permitiria investir seus defensores mais fervorosos. Para Patzek, o petróleo
para desenvolver ou mesmo importar a tecnologia efi- não irá acabar, mas a oferta não crescerá no mesmo rit-
ciente para utilizar a energia solar como a nova matriz mo que a demanda.
energética do país, em um dia em que o petróleo deixaria
de ser a principal matriz energética do mundo. No en- “Há um aumento de fontes de combustível, mas há um au-
tanto, ainda não precisa se preocupar com isso, pois além mento muito maior da demanda, sobretudo em mercados
de não existir uma energia que seja tão versátil, barata e emergentes como China e Índia. Por outro lado, grandes
produzida em quantidades como o petróleo, suas reservas exportadores, como países do Oriente Médio, continuam
ainda têm uma projeção de 80 anos, ou seja, de quatro produzindo, mas exportam menos. E isso ocorre porque
gerações, sem contar que a Arábia Saudita já investe na estão consumindo o petróleo que produzem. Como é pos-
exploração offshore de petróleo no Mar Vermelho, o que sível falar em aumento de oferta se as exportações não irão
poderia representar, caso fosse encontrada uma reserva aumentar?” (Tadeusz Patzek)
significativa na região, ainda um maior tempo de sobrevi-
da do petróleo saudita no mundo. Outros autores que defendem a teoria do pico do
petróleo, como Campbell e Laherrère, afirmam que os
A posição saudita na produção da energia do futuro dados publicados pelas agências de notícias, tais como a
A Arábia Saudita realmente está em uma posição World Oil e a Oil and Gas Journal, possuem muitas vezes
privilegiada na produção de energia no futuro. Como já erros sistemáticos. De fato, procuram os dados em dife-
dizia o Sheik Ahmed Zaki Yamani: “A Idade da Pedra rentes companhias produtoras para suas publicações, no
não acabou pela falta de pedra [...].” De fato, muito an- entanto, não verificam a exatidão desses dados. Os núme-
tes de as reservas de petróleo se esgotarem fisicamente, ros muitas vezes não são realísticos. Em muitos casos, es-
o produto não será mais rentável, ou seja, o investimen- timativas são exageradas para aumentar preços das ações,
to de exploração e produção aliado a uma tecnologia membros da OPEP tendem a inflar seus relatórios para
cara não valerá mais a pena, e sua produção será cance- alterar suas cotas de exportação, e, além disso, as natio-
lada; partiremos então para outra fonte energética, mas nal oil companies não são obrigadas a detalhar seus dados
o petróleo continuará presente no mercado energético em relatórios. Além disso, existe uma dificuldade em se

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definir reserva em diferentes regiões. O que seriam reser- e erro, o que traz maior instabilidade e volatibilidade do
vas provadas? As duas agências citadas, durante o período preço do petróleo no mercado internacional, causando,
da Guerra Fria, informaram quantidades diferentes nas de acordo com Adelman, dano às economias globais. A
reservas provadas da União Soviética. Outro argumento existência desse preço volátil a partir do controle do vo-
é que a produção do petróleo não é constante, principal- lume de produção em benefício próprio desse monopó-
mente pelo fato de que após a metade do petróleo em uma lio mostra que utilizar isoladamente, como argumento
reserva ser produzida, a taxa de produção começa a cair, para o pico do petróleo, o preço elevado do óleo não
e a produção entra em declínio. É um erro pensar que os quer dizer nada. As resevas são baseadas na capacidade de
últimos barris de uma reserva são tão fáceis de produ- exploração, ou seja, na existência de tecnologia que per-
zir quanto os primeiros barris de petróleo (CAMPBELL mita uma exploração e produção viável economicamente
& LAHERRERE, 1998). Oitenta por cento dos campos (ADELMAN, 2004). Isso quer dizer que as estimativas
explorados no mundo têm mais de vinte anos, ou seja, não corespondem a quanto óleo existe nos poços, mas
os retornos começam a diminuir. Esses declínios não quanto óleo pode ser retirado a um custo viável. É
são divulgados, porque governos ainda querem na predição de existência de tecnologia de ex-
manter seu impacto político e a capacidade ploração que devemos nos basear. Quando
de obter empréstimos. a produção não é mais rentável, ela cessa,
Do outro lado da moeda, temos Daniel mas o óleo continua existindo nos campos,
Yergin como maior expoente da defesa de ele não desaparece. A partir do cálculo ma-
que a teoria do fim do petróleo é infundada. temático básico de quanto óleo pode ser
produzido em relação ao seu consumo, só
“Crises energéticas já foram anunciadas inúme- estabelecemos o quanto se necessita maior
ras vezes, assim como a morte do petróleo. Até agora, tecnologia e novos mercados para que mais óleo
nada disso aconteceu. Mas o discurso fatalista persiste mes- possa ser produzido. Por exemplo, no fim dos anos 1970,
mo entre especialistas no assunto. Ignoram-se as conquistas os países não OPEP tinham ainda 200 bilhões de barris
que a tecnologia já proporcionou e ainda vai proporcionar em reservas provadas. Nos 33 anos a seguir, esses países
futuramente.” (Daniel Yergin) produziram 460 bilhões de barris e ainda sobravam 209
bilhões. Os países da OPEP começaram com 412 bilhões
Para a corrente otimista, não há crise do petróleo, de barris em reservas provadas, produziram 307 bilhões e
não existe um gap entre a oferta e a demanda. Não existe agora ainda têm 817 bilhões de barris em reservas prova-
arma política do petróleo usado pelos países do Oriente das (ADELMAN, 2004).
Médio. Para Adelman, o verdadeiro problema é o mo- O desenvolvimento tecnológico, ou seja, técnicas no-
nopólio desajeitado dos países da OPEP. Esses atuam vas de perfuração, de mapeamento sísmico, desenvolvi-
limitando a oferta para aumentar o preço do petróleo, mento da atividade geofísica, são elementos que permi-
muitas vezes até demais, para o seu próprio bem. Os ou- tem abaixar custos, possibilita explorar mais recursos em
tputs de produção são determinados a partir de tentativa campos existentes e, é claro, permite novas áreas para a

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descoberta (ADELMAN, 2004). Em 1950, quase não ha- mentar essas reservas, descobrindo novos poços de óleo
via produção de óleo offshore. Hoje, um terço da produ- não convencional em águas profundas (Mar Vermelho)
ção americana vem de campos offshore, em águas pro- – mas também esta é localizada em um dos lugares mais
fundas. O conhecimento e a tecnologia são os objetivos secos e desérticos, e acima de tudo quentes, do mundo, o
principais a serem alcançados. que é muito propício para o futuro. De fato, pode pos-
De qualquer forma, nenhuma dessas teorias muda o suir uma capacidade imensa de captação de energia solar,
fato de que a Arábia Saudita possui ainda 80 anos de ex- tornando-a também uma grande produtora e exportado-
ploração e produção de petróleo, sem contar na explora- ra de uma das possíveis energias do futuro.
ção offshore no Mar Vermelho. Isso faz dela o produtor
de equilíbrio para a OPEP e para o mundo (swing pro- Conclusão
ducer). De fato, possui custos de produção baixos e sua Ao longo deste artigo foi apresentada a situação
população não é muito grande, o que permite estabelecer particular na qual se encontra a Arábia Saudita. Ao ob-
as cotas de produção do volume do petróleo OPEP junto servarmos de um ponto de vista ambiental, o país sofre,
com o Irã (PIMENTEL, 2006). Além disso, não existe sim, com uma forte escassez de água, aliada a um pobre
fonte energética alternativa renovável com a versatibili- gerenciamento público da infraestrutura de saneamento
dade, o preço e a produção em quantidade como o petró- e distribuição desta, o que aos poucos é deixado a cargo
leo. Em muitos países, como a Noruega, por exemplo, a do setor privado. Além da escassez de água, a produção
busca por energia alternativa é essencial, pois, de fato, as de grãos é prejudicada, pois a agricultura consome cer-
reservas de petróleo já não têm a capacidade de produção ca de 90% da produção de água do país. O processo de
que tinham tempos atrás; sua produção começou a entrar dessanilização da água tem um custo energético muito
em declínio, o que obviamente não é o caso da Arábia alto e necessita queima de óleo para fazer essa transfor-
Saudita. Isso é uma vantagem muito grande, porque o mação, o que traz à tona todos os problemas ambientais
reino não tem pressa na busca por fontes alternativas; amplamente discutidos nas conferências ambientais in-
muito pelo contrário, estabelece políticas junto à OPEP, ternacionais.
visando manter o petróleo ainda com peso dominante Ao olharmos a situação por um lado econômico,
no consumo energético do futuro. Como se isso não bas- percebemos que os gastos para realização desse processo
tasse, inaugurou em 2010 o plano de energia solar para são muito elevados, mas para quem tem 24% das reservas
as plantas de dessanilização, e se esse projeto for imple- mundiais de petróleo, arcar com esse custo não é um pro-
mentado de maneira substancial, refutaria o argumento blema tão grave. De fato, o governo saudita subsidia mais
daqueles que dizem que o petróleo saudita entrará em de 99,6% dos custos da produção de água e, assim, o con-
declínio rapidamente porque consome o petróleo que sumidor tem água de graça. Além de a população estar
produz, diminuindo a oferta no mercado mundial. A crescendo, o custo da produção de água não é transmitido
Arábia Saudita não somente tem a maior fonte de reser- para o custo da compra da água pelo consumidor, o que
vas de petróleo – que ainda será explorada por 80 anos, favorece o cenário em que a Arábia Saudita se encontra,
sem contar o desenvolvimento de tecnologias para au- em que suas reservas naturais de água não têm mais como

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se sustentar, com um nível de demanda desenfreado, um adotar esse tipo de política, para angariar apoio e manter-
dos mais altos do mundo, 248,7 litros/dia por pessoa -se no poder, evitando qualquer tipo de revolta.
(KAWACH, 2010). Para compreender qualquer cenário no Oriente Mé-
Para compreender essa política econômica governa- dio é preciso sempre tomar um distanciamento e analisar
mental, é necessário observarmos também a dimensão as diferentes situações sob diversos ângulos, no intuito de
político-social da região. Esta última se caracteriza por um evitar reducionismos. De fato, na Arábia Saudita, pode-
regime monárquico absolutista, um dos governos mais au- mos dizer que estamos, sim, diante de um problema de
toritários do mundo, onde temos uma família real muito escassez de água proveniente de seus recursos naturais li-
grande, dividida entre facções baseadas em lealdades, entre mitados, e que devem ser feitas reformas na infraestrutura
diferentes clãs que visam a novas direções para reformas para melhorar o acesso a ela nas diferentes cidades. Mas
políticas. A sociedade fora da realeza não tem uma partici- na Arábia Saudita, graças ao dinheiro do petróleo, água é
pação efetiva na vida política, e quando protesta contra o o que não falta.
governo é reprimida pela polícia. Com isso, atentados ter-
roristas de grupos radicais ocorrem, levando o governo a [email protected]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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om a descoberta em 2010 das imen- afirmar que Darcy Ribeiro complementa a ideia de Whi-
sas reservas petrolíferas venezuela- te com o conceito de processo civilizatório. Seguindo essa
nas, surgiram perguntas inevitáveis: concepção, “cada revolução tecnológica pode correspon-
a Arábia Saudita poderia ser desban- der a um ou mais processos civilizatórios, através dos
cada do posto de maior detentor do quais ela desdobra suas potencialidades de transformação
recurso energético mais utilizado da nossa era” (NOVA, 2007, p. 12).
e cobiçado do planeta? Correriam os sauditas o risco de Ao longo da história, conforme avançava a evolução
perder a sua hegemonia na produção de petróleo? Apesar do homem, novos processos de renovação cultural sur-
de ter superado a Arábia Saudita em termos de reservas giam – o que proporcionou a ampliação da capacidade
identificadas nos últimos anos, a Venezuela desfrutará a humana de produzir e buscar novas fontes de energia, im-
longo prazo de um melhor posicionamento? A Arábia plicando o surgimento de novas e maiores organizações
Saudita deveria sentir-se ameaçada? sociais (NOVA, 2007, p. 13). Nossa espécie passou por
Acreditamos que a Arábia Saudita não tenha mo- muitos dilemas referentes à energia como meio de garan-
tivos para se preocupar, já que a Venezuela, apesar de tia à própria existência, desde o controle do fogo até o uso
suas reservas superiores em quantidade, não a supera em em grande escala do carvão mineral como matriz energé-
qualidade. Por possuir uma tecnologia desenvolvida (de- tica da Europa dos séculos XVIII e XIX (MAZOYER &
vida em parte ao importante papel dos Estados Unidos ROUDART, 2010, p. 409-412).
na ARAMCO), a Arábia Saudita mostra-se, atualmente, Apesar de o carvão mineral ter sido a alavanca da Re-
mais capaz na extração petrolífera, sendo a maior produ- volução Industrial e da consequente revolução nos trans-
tora mundial, apesar das recentes descobertas das maiores portes, o petróleo passou a ser o recurso mais importante
reservas na Venezuela. do mundo, já na segunda metade do século XIX (YER-
GIN, 2012, p. 12-13). O petróleo inicialmente era conside-
“O petróleo está em tudo” rado importante para iluminar cidades e campos, graças
Antonio C. Boa Nova, em “Níveis de Consumo Ener- à ideia de pessoas como George Bissell, que acreditavam
gético e Índices de Desenvolvimento Humano”, atenta que esse óleo poderia ser convertido em um “fluido que
para o fato de que não seria possível dissociar a evolução seria queimado em lampiões como iluminante”, além da
sociocultural da humanidade da questão energética. O an- concepção do seu uso para lubrificar peças do maquiná-
tropólogo Leslie White é citado pelo autor, quando este rio de fábricas (YERGIN, 2012, p.19). Assim, começava
se refere a Darcy Ribeiro, por utilizar em seus trabalhos o uma época de aventureiros que buscavam enriquecer com
grau de controle e de uso das fontes de energia alcançados a extração do óleo ou adaptar o mesmo para projetos va-
por cada sociedade como instrumento de evolução: são riados, como o futuro “magnata do petróleo”, John D.
apontadas a selvageria, a Revolução Agrícola e a Revo- Rockefeller – a Era do Petróleo.
lução Industrial, respectivamente, como os passos para a Entretanto, o século que se transformou de fato com
civilização (NOVA, 2007, p. 11-12). o advento do petróleo foi o século XX (YERGIN, 2012,
Boa Nova segue a construção do seu raciocínio ao p. 13). Daniel Yergin afirma que há três temas que justifi-

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cariam essa questão. O primeiro refere-se ao desenvolvi- de evitar crises. A OPEP nasce nesses moldes, sendo um
mento do capitalismo moderno: desde as últimas décadas mecanismo que regula a oferta de petróleo e ao mesmo
do século XIX, a expansão do capital e dos negócios é tempo faz avançar os interesses de seus membros. Como
basicamente moldada pelo petróleo. O desenvolvimento consta do site da organização, seus objetivos são:
do mercado, as formas de estratégia e os processos de mu-
dança tecnológica encarnam essa questão, transformando 1. To coordinate and unify the petroleum policies of its
a economia nos âmbitos doméstico e internacional (YER- Member Countries and determine the best means for safe-
GIN, 2012, p.13). guarding their individual and collective interests;
O segundo tema é relativo ao petróleo como sendo 2. To seek ways of ensuring the stabilization of prices in in-
um produto diretamente ligado às estratégias dos Esta- ternational oil markets, with a view to eliminating harmful
dos e à política internacional como um todo, ao longo da and unnecessary fluctuations; and
história. O tão valorado óleo foi decisivo para os países 3. To provide an efficient, economic and regular supply of
que travaram a Segunda Guerra. Nos anos 1950-1960, petroleum to consuming nations and a fair return on capi-
o mundo presenciou inúmeras disputas entre tal to those investing in the petroleum industry.
grandes empresas internacionais e países em
processo de descolonização pelo controle do A Arábia Saudita goza de uma posição
petróleo nos seus territórios. Na década de de considerável conforto dentro da OPEP,
1980 – período da chamada “Segunda Guer- devido a uma série de questões, como o fato
ra Fria” –, a outrora chamada União das Re- de ser um dos países no mundo com o maior
públicas Socialistas Soviéticas acelerava o seu número de reservas de petróleo, além da boa
fim ao empregar sem pudor a maior parte de qualidade deste – petróleos médios e leves –, e
suas receitas advindas do petróleo e do gás natural de ser mais facilmente recuperável em comparação
em escaladas armamentistas (YERGIN, 2012, p. 14). a alguns países. Mas há uma questão política mais forte
O tema mais importante para o presente estudo é o por trás disso: a aliança de longa data entre o país e os
terceiro: a sociedade humana se transformou na “Socieda- EUA (YERGIN, 2012, p. 440).
de do Hidrocarboneto”. Isso se baseia na famosa frase “o Durante os anos 1930, Ibn Saoud – rei do Hejaz e sha-
petróleo está em tudo”. É o petróleo que sustenta o modo rif de Meca a partir dos anos 1920 – inicia negociações
de vida de todos no mundo; ele se tornou o “sangue vi- com os EUA no intuito de sanar os problemas financei-
tal” da agricultura e dos sistemas de transportes; a ele de- ros da Arábia Saudita (YERGIN, 2012, p. 317-326). Com o
vemos a existência dos tijolos de argamassa às borrachas envio de estudiosos e trabalhadores por Washington, em
de papelaria – o petróleo se configurou como âmago da 1936 é descoberto petróleo no reino da Arábia Saudita; e
civilização ocidental, até se tornar o centro da civilização em 1938 seria a vez do Kuwait. Isso significa que a década
humana. de 1930 marca a entrada americana em maior escala na
Por ser um artigo de tamanha procura internacional, prospecção de petróleo no Oriente Médio, terminando
torna-se necessária a regulação do seu mercado, a fim com a supremacia britânica na região.

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A questão é que, no fim da década de 1940, ao passo Os anos 1950 marcaram as discussões nos âmbitos
que pesquisas geológicas apontavam que o número de ja- doméstico e internacional relativas aos royalties e demais
zidas de petróleo a serem descobertas em solo americano compensações aos países detentores das reservas petrolí-
tendia a declinar no curto prazo, estudos de geólogos, feras pela exploração destas (YERGIN, 2012, p. 485). O
como DeGolyer, apontavam que o Oriente Médio ainda reino dos sauditas e outros países do Golfo Pérsico au-
guardava grandes (e por vezes imensas) jazidas não des- mentavam cada vez mais suas exigências em termos de
cobertas (YERGIN, 2012, p. 440-442). Além disso, cerca compensações aos exploradores de petróleo, uma vez
de 90% de todo o petróleo utilizado pelos aliados duran- que entendiam que os royalties recebidos representavam
te a Segunda Guerra Mundial foi provido pelos EUA. Ou uma fração muito pequena do lucro das companhias de
seja, com o fim da guerra e junto à nova ordem mundial prospecção. Nas palavras de Yergin, “... as companhias de
que se configuraria com os Acordos de Bretton Woods, a petróleo e os governos engalfinhavam-se continuamen-
América presenciou o fim do seu domínio como grande te por causa das condições financeiras que serviriam de
exportadora de petróleo (YERGIN, 2012, p. 441). Isso se base para a ordem do petróleo no pós-guerra” (YERGIN,
traduziu na Teoria da Conservação: o entendimento por 2012, p. 485).
Washington de que os EUA deveriam passar a consu- É nesse contexto que a Venezuela passa a entrar em
mir mais petróleo importado do que nacional, a fim de cena. Durante as primeiras décadas do século XX, a in-
poupar suas reservas conhecidas ante algum imprevisto, dústria petrolífera venezuelana se desenvolveu ao ponto
como conflitos internacionais (possibilidade de interrup- de não permitir a diversificação econômica daquele país,
ção no transporte do óleo no mundo) (YERGIN, 2012, tornando-o dependente do mercado desse óleo. O petró-
p. 443-446). leo era responsável por 60% da receita total do governo,
Esses fatores significaram que a indústria do petró- e respondia por mais de 90% do valor das exportações
leo passaria por uma reorientação grande o suficiente do mesmo país (YERGIN, 2012, p. 488). O governo que
para afetar de modo significativo a política mundial. sucedera o de General Gómez iniciou seus dias visando
Segundo Daniel Yergin, nas palavras de DeGolyer: “O reformular os regulamentos da indústria de petróleo e,
centro de gravidade da produção mundial de petróleo assim, rever os acordos contratuais entre a Venezuela e as
está se deslocando da área do Golfo Caribenho para o empresas estrangeiras produtoras do seu petróleo – o que
Oriente Médio – para o Golfo Pérsico” (YERGIN, 2012, incluía a realocação dos rendimentos provenientes deste.
p. 441). Sendo assim, os EUA alteram toda sua orienta- O então subsecretário de Estado americano, Sumner
ção referente ao Golfo Pérsico – especialmente em re- Welles, começou a afirmar que o recebimento de royalties
lação aos sauditas. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, era muito pouco: os países produtores deveriam receber
aquele país já se fazia presente no reino de Ibn Saoud em 50% do valor do petróleo – era o Postulado 50/50 (YER-
termos de prospecção e desenvolvimento, por intermé- GIN, 2012, p. 489). Inicialmente as empresas de prospec-
dio das companhias “... Aramco, Arabian-American Oil ção e produção do referido óleo se mostraram descon-
Company, joint venture da Socal e da Texaco” (YER- tentes, argumentando que somente elas tinham os custos
GIN, 2012, p. 460). pelas pesquisas, extração, tecnologia, refino e transporte.

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No entanto, elas acabaram por aceitar o novo acordo – a desta (COSTA, 2006, p. 4-6). Por essa característica, a Ve-
Venezuela era já naquela época o país com algumas das nezuela não pode se dar ao luxo de abaixar seus preços,
mais importantes reservas de petróleo no planeta. Esse muito menos agir como um swing producer (como é o
país também chegou a ser a maior fonte de petróleo bara- caso da Arábia Saudita), ou seja, aumentando ou dimi-
to, onde companhias como a Creole (subsidiária da Stan- nuindo a oferta de petróleo e, consequentemente, a co-
dard Oil of New Jersey) geravam basicamente a metade operação com os demais países da OPEP (PIMENTEL,
de sua receita total (YERGIN, 2012, p. 488). 2006, p. 29-50).
Enfim, em 1960, foi criada a Organização dos Países A entrada de Hugo Chávez na presidência da Ve-
Exportadores de Petróleo (OPEP). Isso ocorreu em gran- nezuela foi importante para um maior investimento no
de medida graças a Juan Pablo Pérez Alfonzo, ministro setor petroleiro. O chavismo, influenciado pelos populis-
das Minas e Hidrocarbonetos venezuelano. Alfonzo via a mos de, por exemplo, Perón e Vargas, tem grande pre-
importância de criar uma espécie de aliança global entre sença. Além de sua postura antiestadunidense, também
os principais países detentores de reservas, estabelecendo constitui um governo fortemente nacionalista. Procurou
um sistema comum de rateio e distribuição internacionais realizar uma maior integração na América Latina, e tam-
(YERGIN, 2012, p. 576-577). Essa regulação da produção bém uma maior participação popular dentro do país, mas
protegeria a indústria petrolífera venezuelana, já que esta em organizações sujeitas ao controle do governo. Uma
tinha maiores custos de produção que os Estados do Gol- importante característica é o apelo social, utilizando-se de
fo Pérsico, o que colocava aquele país em desvantagem políticas a favor da parcela mais pobre da população, a
comercial (YERGIN, 2012, p. 576-577). fim de melhorar a imagem de líder carismático que possui
Silvério explica que “pressões aos concessionários em (ARENAS, 2004, p. 1-5).
termos de contratos, elevações unilaterais de preço e a A PDVSA ganhou uma roupagem mais nacionalista,
busca por participação nos consórcios” foram artifícios com grande exercício da soberania venezuelana em suas
para que os futuros países da OPEP angariassem controle ações. O objetivo era maximizar os lucros do petróleo e
mais significativo sobre seus recursos (SILVÉRIO, 2012, aumentar sua capacidade de intervenção, ambas visando à
p. 10). E, de fato, a participação da OPEP na produção negociação cautelosa com a indústria mundial. Isso leva-
global de petróleo só fez crescer até os anos 1970 (SILVÉ- ria a benefícios para o país e a um maior controle estatal
RIO, 2012, p. 11). da indústria (LANDER, 2001).
A Venezuela possui grande potencial para ser um país Segundo a revista The Economist (2000), a Venezuela
desenvolvido social e economicamente. Porém, certos as- tem interesses em uma OPEP forte e com preços altos,
pectos tornam mais difícil tal realização. Esse país tem pois poderia auxiliar na resolução dos problemas finan-
grandes taxas de pobreza e corrupção, além de ter sofrido ceiros do país. Isso demonstra que a grande população,
com crises econômicas e políticas (PIMENTEL, 2006, p. aliada a problemas estruturais do Estado, faz com que o
29-50). O potencial energético da Venezuela permite-lhe país necessite de retornos altos da exploração de petróleo,
ter projeção de poder e também formar alianças, inclusi- até mesmo devido à característica populista do governo
ve na América Latina, ajudando a promover a integração Chávez. Em contrapartida, a Arábia Saudita não compar-

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tilha do mesmo problema, pois como já destacado, possui setor de petroquímica e transportes (CAMPOS, 2012, p.
melhores estruturas para agir com menos dependência do 27-36, 44-49). O país possui, portanto, um petróleo mais
petróleo, possuindo mais maleabilidade em suas ações no fácil para refinar, e também mais valorizado no mercado
âmbito do comércio petrolífero. internacional, resultando em menores custos e maiores
Em 2010, segundo o Boletim Anual da OPEP, as re- lucros. Tal conjuntura reforça nossa hipótese de que o
servas de petróleo venezuelanas ultrapassaram as sauditas, recente anúncio de maiores reservas não afetaria a Ará-
que detêm cerca de 264,5 bilhões de barris contra 296,5 bia Saudita a ponto de modificar e dificultar suas relações
bilhões da Venezuela (tabela 1). com a Venezuela.
Essa nova configuração, porém, não modifica neces- Há também especulações de que tal descoberta não
sariamente a estrutura econômica venezuelana, já que suas vá elevar significativamente a produção, pois o país não
reservas são compostas basicamente de petróleo pesado e conseguiria aumentá-la de forma intensa, já que não pos-
ultrapesado, que exigem maior capacidade tecnológica e suiria um programa de investimento que pudesse superar
investimento econômico (MARTINS, 2011). O petró- a Arábia Saudita, além do obstáculo que o petróleo
leo leve é o mais indicado para a fabricação de pesado oferece. Por isso, não influenciaria em
combustíveis mais valorizados, mas em con- escala global, continuando com menor pro-
trapartida não é encontrado em abundância, dutividade que os sauditas (ANDREEVA,
fazendo com que o petróleo pesado precise 2012).
de mais altos investimentos a fim de tornar- Outros impedimentos ocorrem. A
-se importante e utilizável para o mercado. ARAMCO foi fundada em 1933 por um
Quanto maior for a densidade do petróleo, acordo entre a Arábia Saudita e os Estados
mais este é desvalorizado, pois produz um me- Unidos, sendo este representado pela Stan-
nor número de derivados leves. dard Oil da Califórnia. A exploração começou
No caso dos pesados, são produzidos principalmen- a ser rentável em 1938 (LECHA & ZACCARA, 2009,
te óleo combustível e asfalto. O primeiro é utilizado em p. 230-232). Essa aproximação com os EUA torna-se de
indústrias e é obtido na fase mais pesada ou residual do grande importância, pois desenvolve o potencial energé-
refinamento, possuindo contaminantes e metais, que são tico da Arábia Saudita - isso devido à ajuda financeira e
corrosivos. Para diminuir o efeito dessas substâncias, tecnológica do outro país, contribuindo em grande me-
é preciso outro refinamento, o que demonstra a maior dida para a sua posição hegemônica em petróleo. Vemos
dificuldade com relação a essa densidade. Já o asfalto é aqui certa desvantagem da Venezuela, pois, embora esta
produzido a partir de componentes residuais do refino. A tenha sofrido influência de empresas petrolíferas, como a
Arábia Saudita possui maiores reservas de petróleo leve, já citada Creole, por possuir um discurso nacionalista, ab-
na verdade, uma característica do Oriente Médio, o que dica de manter estreitas relações com os Estados Unidos,
nos leva a crer que esta possui uma maior vantagem dian- apesar de este ser importante importador de seu petró-
te da Venezuela. Os principais derivados desse petróleo leo. Isso também caracteriza certa incoerência da política
são o GLP, o óleo diesel e a nafta, sendo utilizados no externa de Chávez, pois mesmo atribuindo o atraso dos

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países latino-americanos às ações dos Estados Unidos, o maiores reservas, a capacidade venezuelana se mostra in-
que demonstra seu discurso antiestadunidense, este não ferior à saudita, não demonstrando também grande evo-
vê problemas em comercializar com o país (VASCON- lução dos anos de 2007 a 2011. Além disso, certos locais,
CELLOS, 2009, p. 29-30). como Bajo Grande e San Roque, possuem uma produção
Além disso, a própria constituição do Estado traz muito baixa, não chegando a 5 mil barris por dia, o que
suas diferenças. A Arábia Saudita, por ser um Estado ren- contrasta de forma gritante com a produção saudita.
tista, redistribui parte dos lucros de seu petróleo entre a Na tabela 4, também do Boletim da OPEP, vemos
população. Tal artifício auxilia no controle estatal sobre mais um indicador da maior estruturação saudita para a
esta (IZQUIERDO & KEMOU, 2009, p. 44-45). Seu alto exploração petrolífera. Considerando-se os maiores nú-
recurso energético e de boa qualidade não traz problemas meros relativos a características dos oleodutos de cada
relativos à redistribuição. Aliado a isso, o Estado Saudi- país, é possível perceber disparidades significativas. A
ta possui uma população menor do que a da Venezuela maior delas está na diferença de 533 milhas em relação
(28,17 contra 29,07), além de não prestar auxílio a cerca de ao comprimento (length) entre os dois países. Outro as-
6 milhões de imigrantes legais que lá trabalham (tabela 2). pecto refere-se ao diâmetro dos oleodutos, que possuem
A Venezuela, por sua vez, não possui tanta rentabi- também alguma diferença entre si. Isso reforça a des-
lidade advinda do petróleo, como ocorre com a Arábia proporção do preparo para refinar o petróleo, já que é
Saudita. Aquele Estado dá enfoque ao suporte a sua po- necessário um aparato de grandes proporções, devido às
pulação, por meio de auxílios sociais e de ações em infra- altas reservas que ambos os países possuem. Sendo assim,
estrutura. Por exemplo, em 2005, Chávez investiu cerca a Venezuela ainda se mostra defasada tecnologicamente e
de 5 bilhões de dólares nas Missões Sociais para pagar a estruturalmente frente à Arábia Saudita.
dívida social, gerando empregos e combatendo a inflação
(SEVERO, 2006). O Estado venezuelano possui políticas Conclusão
de distribuição destinadas aos mais pobres para que possa A partir da análise demonstrada anteriormente, é
ter o apoio político necessário, como já comentado ante- possível constatar que a Arábia Saudita não deve ter gran-
riormente. Nesse sentido, preocupa-se com o bem-estar des preocupações acerca da constatação do maior número
social e com o desenvolvimento do seu país, mesmo que de reservas petrolíferas na Venezuela. Como observamos,
com ambições políticas (ARENAS, p. 1-5). Esse é mais outros fatores estão envolvidos no contexto dos dois paí-
um empecilho para o desenvolvimento venezuelano e nos ses: cada qual possui suas especificidades, embora ambos
mostra que a perda da hegemonia petrolífera saudita é estejam sujeitos às regras estabelecidas pela OPEP. Tal
improvável. fato exerce grande influência na regulação da oferta de
Na tabela 3, vemos a capacidade de refinamento dos petróleo, embora não seja sempre essa a regra. É preciso
países em questão, segundo o Boletim Anual da OPEP. ter em mente o próprio papel da Arábia Saudita como
Os dados comprovam que a capacidade saudita é prati- swing producer, o que viabiliza certa vantagem com rela-
camente o dobro da venezuelana. Tal fato vem reforçar o ção à Venezuela.
que já foi comentado anteriormente, ou seja, mesmo com Além disso, o Estado saudita possui uma população

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Tabela 1
Reservas comprovadas de petróleo bruto por país (m b)
2007 2008 2009 2010 2011 % variação 11/10
Venezuela 99.377 172.323 211.173 296.501 297.571 0,4
Arábia Saudita 264.209 264.063 264.590 264.516 265.405 0,3

Tabela 2
Membros da Opep – fatos e números, 2011
Qatar Arábia Saudita Emirados Árabes Venezuela Opep
População – milhão de habitantes 1,77 28,17 4,85 20,07 415,73

Tabela 3
Capacidade de Refino dos membros da Opep por tipo e localização (1.000 b/cd)
Location 2007 2008 2009 2010 2011
Arábia Saudita 2.130,0 2.135,0 2.109,0 2.109,0 2.107,0
Saudi Aramco Ras Tanura 550,0 550,0 550,0 550,0 550,0
Saudi Aramco Jeddah 85,0 88,0 88,0 88,0 88,0
Saudi Aramco Riyadh 120,0 122,0 124,0 124,0 124,0
Saudi Aramco Yanbu (Domestic) 235,0 235,0 235,0 235,0 235,0
Saudi Aramco/Mobil Yanbu (Export) 400,0 400,0 400,0 400,0 400,0
Saudi Aramco/Shell Jubail 310,0 310,0 310,0 310,0 310,0
Saudi Aramco/Petrola Rabigh 400,0 400,0 402,0 402,0 400,0
Venezuela 1.034,7 1.027,2 981,2 987,3 1,016,2
PDVSA Amuay 454,3 454,3 - 430,3 453,6
Cardon 260,0 260,0 - 430,3 453,6
Bajo Grande 13,1 4,7 - 2,2 3,4
Puerto La Cruz/San Roque 175,2 175,3 178,4 176,2 173,5
San Roque - 5,1 4,4 4,9 4,9
El Palito 132,1 127,8 90,8 127,2 127,6

Tabela 4
Oleodutos nos membros da Opep, 2011
Proprietário Comprimento Diâmetro Capacidade Volume
ou operador (milhas) (polegadas) (m t) (m t)

Arábia Saudita
Abqaiq/Yanbu Saudi Aramco 748 56 na na
Venezuela
Barias/Elparito PDVSA 215 20 7 4
Fonte: Boletim Estatístico Anual (OPEP, 2012)

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menor do que a da Venezuela, já que não se responsabi- vantagem da segunda com relação à primeira.
liza pelos seus imigrantes. Com isso, não há tanto gasto, Apesar da defasagem, notamos que a Venezuela
mesmo porque sua produção petrolífera constitui uma possui planos e pactos para a melhora de sua produção,
grande fonte de renda para o governo (Estado rentista), como, por exemplo, com a Rússia. A relação entre esta e a
e, apesar de redistribuir parte de sua receita à população, Venezuela se intensificou nos governos de Putin e Chávez.
possui menores preocupações em termos sociais e admi- Ambos os governantes tendem ao nacionalismo, e por
nistrativos do que a Venezuela. Esta acaba por direcionar isso, acabam conseguindo um diálogo satisfatório. Suas
grande parte de seus gastos para o bem-estar populacio- parcerias não se restringem à questão energética, sendo
nal. Dessa forma, sua baixa produtividade (comparada também de caráter militar e comercial.
à Arábia Saudita), aliada a seus empecilhos geológicos A Venezuela possui um Plano Nacional 2007-2013, e
(petróleo de mais difícil extração, demandando mais tec- uma de suas metas é se afirmar como “potência energética
nologia para essa atividade), dificultam sua hegemonia mundial e usar os recursos petrolíferos para promover a
no mercado petrolífero. Junto a isso, podemos consta- integração regional e mundial” (CARMO, 2012, p. 6-7).
tar a existência de uma melhor tecnologia petrolífera da Nesse sentido, a cooperação com a Rússia seria importan-
Arábia Saudita, já que a ARAMCO foi criada pelos EUA. te para fazer avançar as ambições venezuelanas.
Sendo assim, apesar da recente descoberta de um maior Em 2010, foi assinada uma parceria entre o Consórcio
potencial petrolífero em seu território, a Venezuela en- Nacional Petroleiro Russo e a PDVSA para a criação da
contra-se em desvantagem por não possuir atualmente empresa Petromiranda, objetivando atuar em Orinoco.
tecnologia capaz de aumentar a produção de barris e, Empréstimos também foram concedidos à Venezuela,
consequentemente, fazer uma possível frente à produção com o intuito de desenvolver a região petrolífera, além
saudita. da concessão de exploração do campo Carabobo 2 à Ros-
Após as explanações acerca da evolução da impor- neft, uma das empresas russas. Além disso, a troca entre os
tância do petróleo para a sociedade como um todo, des- dois países no setor militar também está sendo efetivada
tacamos a criação da OPEP e seus objetivos enquanto (BARROS & PINTO, 2012, p. 8-11).
instituição. Com uma explicação de tais fatos relevantes Com isso, a Arábia Saudita poderá vir a se preocupar
para o tema, entramos na conjuntura dos países em si, caso a cooperação técnico-militar entre a Venezuela e a
e destacamos diversas características que têm sua parcela Rússia se expanda. Isso porque a Venezuela, desenvolvendo
de influência em suas ações políticas. Com a análise de sua tecnologia petrolífera, poderia vir a igualar ou ultra-
dados estatísticos acerca de diversos aspectos dos países passar a produção da Arábia Saudita. Geraria uma maior
membros da OPEP, constatamos que a Venezuela possui oferta do produto, fazendo com que os preços caíssem, o
diversas defasagens em relação à Arábia Saudita. Defasa- que poderia causar preocupação aos países membros da
gens principalmente de caráter tecnológico, mas também OPEP. Essa hipotética conjuntura nos leva a pensar se a
de caráter geológico, já que observamos que a qualidade organização seria suficientemente forte para superar tal de-
do petróleo de cada uma é diferente, pressupondo certa sequilíbrio, ou se o impacto viria a ameaçar sua existência.

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90 RAMADÃ
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região do Oriente Médio presen- Unidos, Arábia Saudita, Quatar, Bahrein, Kwait, Iraque
ciou e ainda presencia um ciclo de e Irã, as revoltas chegaram ao Bahrein, mas foram re-
revoltas que se estendeu desde o primidas pela polícia local e por uma invasão saudita.
Marrocos, até o Golfo Pérsico, com O Estado Saudita parece ser a “última fortaleza a ser
o Bahrein, passando também pela preservada da contaminação de revoluções” (NASSER,
Argélia, Tunísia, Egito, Líbia, Jor- 2011). Para a Arábia Saudita, estado rentista por excelên-
dânia, Irã e Síria. Alguns fatores exógenos à região po- cia, essa explicação relacionando recurso-conflito não é
dem explicar como a instabilidade se instaurou, entre os eficiente, uma vez que o recurso é controlado pela elite
quais podemos citar a invasão dos EUA ao Afeganistão dominante, mas não se identifica uma revolta por parte
em 2001, o fracasso das negociações Israel-Palestina, a de- da população.
sastrosa intervenção norte-americana no Iraque em 2003, Contudo, mesmo para estados rentistas, em um con-
e mais recentemente a crise na Europa em seu âmbito eco- texto de crise econômica o conflito por recursos pode ser
nômico, político e de instituições europeias (TEIXEIRA, intensificado, na medida em que a dependência torna o
2012). Este artigo analisa a crise econômica europeia e suas país mais sensível aos choques do comércio internacio-
implicações sociais e políticas em estados rentistas, como nal, e assim afeta o provimento de bem-estar à popula-
a Arábia Saudita. ção. A Arábia Saudita começou a sentir os efeitos da crise
As economias rentistas são definidas como aqueles com a redução da demanda por petróleo, mas, ainda as-
territórios nos quais a gestão do setor de hidrocarbonetos sim, o país parece estar imune em termos de revoltas so-
se leva a cabo, com o objetivo – político – de lograr o má- ciais. O questionamento central é a respeito de quais são
ximo possível de renda do subsolo para os cidadãos na- as medidas tomadas pelo país que o permitem se manter
cionais. O controle exercido pelo governo se dá pelo con- estável socialmente em um momento de crise econômica
trole do recurso do petróleo, e esse governo se legitima e revoltas árabes.
gastando tais recursos com a população (BRICHS, 2009). Um fator preponderante na Arábia Saudita e que em
A consequência é a dependência direta da economia e do alguma medida pode facilitar o controle da população,
regime de preços do petróleo. O Estado rentista tornou- além do domínio do petróleo pela elite local, é o islamis-
-se um recurso de poder e uma característica essencial da mo. As reivindicações dos movimentos que eclodiram
estrutura dos regimes árabes contemporâneos. na região não apresentavam rejeição a este; na verdade,
A eclosão de conflitos relacionada à existência de a luta era muito mais focada em reivindicar melhorias
recursos naturais em um país é muitas vezes feita em econômicas. Nesse sentido, a Arábia Saudita tem um “es-
termos de competição ou ganância por recursos por cudo protetor”, uma vez que com os recursos provenien-
parte de um grupo rebelde originando um conflito. A tes tanto do petróleo, quanto da peregrinação aos lugares
grande questão é que existem outros mecanismos que santos, o país consegue investir em programas de desen-
podem explicar a relação entre conflitos e recursos volvimento social para a população. Mas essa situação
(HUMPHREYS, 2005). Na região específica do Gol- sofreu alguma modificação com a intensificação da crise
fo Pérsico, que compreende o Omã, Emirados Árabes na Europa.

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O contexto do Estado Saudita (SOLER; ZACCARA, 2009). A religião é um fator im-


Nos países árabes, após o fim da Guerra Fria e da portante e um meio que as elites também possuem para
Guerra do Golfo, começaram a surgir dinâmicas que controlar sua população.
pareciam indicar tímidos movimentos de democratiza- As primeiras jazidas de petróleo foram descobertas
ção. Contudo, foram apenas tímidas reformas, e hoje em 1938 por prospectores norte-americanos. No contex-
as bases das estruturas de poder se mantêm inalteradas to da Segunda Guerra Mundial, a Arábia Saudita acaba
(BRICHS, 2009). fazendo uma aliança estratégica com os norte-america-
A partir da década de 1990, o petróleo começou a nos, concedendo parte da exploração a uma empresa des-
se colocar como um importante recurso, e sua produção se país, formando a ARAMCO. Essa aliança foi essencial
saltou de 670 bilhões de barris em 1984 para 1 trilhão naquele contexto para a política externa dos sauditas,
nessa década, bem como as reservas no Golfo Pérsico au- os americanos investiam em outras áreas que não as do
mentaram demasiadamente, o que fazia com que o mun- petróleo. Aos poucos o país começa a se afastar da de-
do se tornasse altamente dependente de tal região pendência com os americanos e, em 1980, consegue
(YERGIN, 2008). o controle de 95% da empresa petrolífera (SO-
Com o peso central do petróleo e as ten- LER; ZACCARA, 2009).
tativas do Iraque em se estabelecer como Ainda hoje, a riqueza do petróleo con-
hegemonia na região do Golfo Pérsico, a tinua muito presente no país, sendo este o
Arábia Saudita via a necessidade de aumen- maior produtor de petróleo da OPEP. O
tar seus gastos militares (YERGIN, 2008). Estado utiliza esse recurso para se manter no
Desde essa época até a atualidade, os gastos poder, ou seja, como ferramenta política. E,
militares da Arábia Saudita são os maiores da além disso, parte do rendimento do petróleo
região (BRICHS, 2009). Junto aos gastos militares, do país é aplicado atualmente em um fundo sobe-
há nesses países da região do Oriente Médio um controle rano, com objetivo de investir no exterior para alcançar
dos recursos de poder pelas elites primárias. Esses recur- lucro e influência política (SOLER; ZACCARA, 2009).
sos compreendem o próprio Estado, a renda, a coação, o Dessa maneira, a partir da lógica rentista do Estado,
capital privado e a ideologia. Na Arábia Saudita, a elite a família Saud consegue se sustentar no poder, e também
central, e que detém o controle dos recursos, é a família conter clamores da população por melhorias econômicas,
Saud, atualmente sob a figura do rei Abdullah ibn Abdul já que essas já são providas pelo governo a partir princi-
Aziz (SOLER; ZACCARA, 2009). palmente da receita do petróleo, diferentemente do que
A economia do país é fortemente baseada na extração vem acontecendo com a maioria dos países da região.
de petróleo – o Estado Saudita é um Estado rentista por
excelência. Importante ressaltar que o rentismo já existia A religião e o controle social
no país mesmo antes da economia petrolífera, em função A religião, assim como o petróleo, também funciona
da renda produzida pela peregrinação a Meca e a Medina, como uma ferramenta política. O Estado Saudita, desde
as áreas religiosas que fazem parte do território do país sua fundação em 1932, com os guerreiros Ikwan, está liga-

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do ao jihadismo, assumindo uma interpretação rigorosa renda do petróleo ajudarem a Arábia Saudita a se pro-
do islã. Jihadi significa esforço; existe o grande jihad, que teger das revoltas árabes, a crise econômica começou a
é o esforço travado pelo sujeito com ele mesmo, e o pe- apresentar efeitos no país.
queno jihad, para converter incrédulos e oposicionistas. Nos últimos anos a Arábia Saudita experimentou
Grande parte da legitimidade do governo provém da uma significativa redução das demandas por petróleo
religião – mulçumana wahabita. A ligação religião-Esta- combinado com uma elevada taxa de crescimento popu-
do precede a própria unificação, contribuindo inclusive lacional. Segundo o FMI, o país previa arrecadar até fins
para a expansão militar. A partir da unificação, a religião de 2011 cerca de 140 mil dólares, porém essa meta está
passa a um papel de subordinação ao Estado, com o Con- ameaçada pela oscilação de preço. A crise econômica in-
selho dos Ulemás e a Liga Mulçumana Mundial (SOLER; ternacional começou a afetar o país, no sentido de reduzir
ZACCARA, 2009). a procura do petróleo da Arábia Saudita, o que aumenta
Os ulemás, autoridades religiosas, são responsáveis o preço do barril.
pelo controle da educação, da justiça e da Fatwa (decretos A estabilidade do regime, até o momento, se deve em
religiosos) por meio da ideologia wahabita, e, dessa for- grande medida ao controle da população por parte das
ma, promovem repressões e censura. A Liga Muçulmana elites dominantes, atrelado aos constantes investimentos
Mundial, por sua vez, é uma organização do governo para do governo no setor social, com planos de desenvolvi-
promover o wahabismo entre os países mulçumanos. Ou- mento (SOLER; ZACCARA, 2009). No início deste ano,
tras formas de controle da população ligadas à religião o rei Abdallah anunciou que iria disponibilizar recursos
são: a Mutuawiya – guarda que fiscaliza o comportamen- para financiar projetos sociais. Porém, a crise econômica
to das mulheres nas ruas – e o ministério para a peregri- e o aumento populacional deixam o país em uma situa-
nação a Meca (SOLER; ZACCARA, 2009). ção delicada, uma vez que dependem dos rendimentos do
Assim, a receita da Arábia Saudita é formada pela petróleo para realizar investimentos nos planos de desen-
renda proveniente tanto do petróleo quanto das peregri- volvimento social.
nações para as cidades santas. E por meio desses mesmos O ponto mais crítico é que conjuntamente com a cri-
recursos, rigidamente controlados pelo Estado, é que o se internacional, os movimentos da primavera árabe se
país consegue manter o controle social. Contudo, é im- alastram na região, e este não é o momento mais oportu-
portante enfatizar que é também a partir desses recursos no para que as elites sauditas reduzam os investimentos
que o Estado investe nos setores sociais, o que pode de para a população. Uma redução implicaria revoltas no
alguma maneira contribuir para que a população não em- país, que é um dos poucos que ainda consegue se manter
preenda movimentos como os que configuram a prima- em uma posição estável (NASSER, 2011).
vera árabe. Junto à questão da redução da receita do petróleo, a
Arábia Saudita está confrontada com o desafio da infla-
A crise começa a chegar à Arábia Saudita ção, oriunda do aumento do preço dos alimentos e da
Apesar de o controle da população por meio da re- desvalorização da moeda nacional com relação ao dólar.
ligião e de investimentos sociais realizados com base na A fim de compreender melhor as influências mais recen-

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tes na Arábia Saudita, bem como suas possíveis consequ- nômica é profundamente ligada ao cenário internacional.
ências, é útil retornar brevemente ao desenrolar da crise Os preços do petróleo determinam a renda do estado, e é
nos Estados Unidos. nessa base que a política saudita se sustenta.
Iniciada nos EUA, a crise foi ocasionada pela eclosão A crise impactou muitos países exportadores de pe-
da bolha econômica, formada pelo alto índice de especu- tróleo, pois mesmo o recurso sendo essencial para a ma-
lação sobre o setor imobiliário americano. A abundância triz produtiva internacional, seus preços variaram de ma-
de crédito no mercado americano foi direcionada para neira preocupante, caindo de 141,00$/barril para 91,00$
o público por meio de empréstimos. Esse crédito con- (WHITE, 2011). Ainda no primeiro momento, a crise in-
ferido de maneira indiscriminada levou a uma alta dos terna dos principais consumidores ocasionou uma queda
preços dos imóveis, principal bem buscado pelos poten- na demanda pelos hidrocarbonetos, e ocasionalmente no
ciais compradores, o que gerou um aumento, absurdo, comércio destes. As reservas sauditas foram prejudicadas;
nos preços do imóvel americano. Não tardou, em 2008, seus investidores, americanos, retiraram seu capital, ten-
a bolha eclodir. A crise americana ocasionou o fecha- tando estabilizar a crise interna (CAUSE, 2011), o que
mento e endividamento de muitos bancos nos foi remediado pelas próprias reservas abundan-
EUA. Sem condições de arcar com as dívidas, tes de capital, que compensaram essa fuga de
pacotes e empréstimos foram concedidos capitais.
para amenizar a problemática financeira Contudo, a análise sistêmica não apro-
(PETRO; KOVRINGA, 2011). funda a verdadeira situação dentro do Esta-
O cenário mundial rapidamente foi afe- do Saudita. O país é marcado por sensibili-
tado, pois a economia americana é ramifica- dades, tanto na questão de venda como na
da. O bloco europeu não tardou a ser afetado, questão de compra. O fluxo de commodities é
assim como todos os países do globo, que tiveram a base da economia; a venda de hidrocarbonetos e
retrações nas taxas de crescimento, ou afundaram-se em a compra de commodities agrícolas sustentam a dinâmica
dívidas e sofreram com quedas bruscas no PIB. Ao mes- comercial saudita. As terras férteis sauditas não são mui-
mo tempo em que a economia sofria, os preços das com- to extensas. A população é grande, e a produção interna
modities e dos volumes transacionados caíram de forma não é capaz de suprir a demanda por alimento. Assim,
rápida e preocupante (PETRO; KOVRINGA, 2011). Mui- o comércio internacional tem um papel fundamental em
tos países, dependentes do comércio e da venda de com- prover o complemento para a subsistência da população
modities, tiveram fortes baques em suas economias, e é saudita (SOLER; ZACCARA, 2009).
nesse momento que a Arábia Saudita se insere. A situação se agravava nos EUA, e por correspondên-
Assim como a maioria dos países do Oriente Médio, cia nos países auxiliados por este. As ajudas econômicas,
a Arábia Saudita é vendedora de commodities; em outras providas, são marcantes no cenário do Oriente Médio,
palavras, o petróleo. A maior produtora, e exportadora, pois são valores que sustentam os regimes rentistas (BRI-
do mundo tem como base da sua economia a venda do CHS, 2009). Essas ajudas são providas com o intuito de
recurso e a peregrinação religiosa. Sua estabilidade eco- manter a situação e conferir uma influência financeira ao

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país doador. Mesmo sendo o cenário saudita muito dis- à família saudita; os cargos são ocupados por membros da
tinto da dependência americana, a crise causou mal-estar família real. Esse nepotismo confere uma unidade maior
na economia. para a monarquia saudita, pois mantém a estrutura polí-
tica centrada na família real, ou seja, a elite primária local.
A crise chega ao Oriente Esse fato é reforçado pelo uso abusivo da violência, como
Os levantes árabes tomaram lugar em várias socieda- forma de reprimir os movimentos de oposição (SOLER;
des do Oriente Médio. Países como Líbia, Egito, Iêmen, ZACCARA, 2009).
Bahrein, Tunísia e Marrocos foram cenários de revoltas Como visualizado no relatório “Arab Knowledge
populares (CAUSE, 2011). Essas revoltas almejavam a Report” de 2009, a situação do Oriente Médio é vislum-
mudança dos regimes, que já se consolidavam no poder brada como um cenário de problemáticas educacionais
por longos períodos. O foco das demandas era a transição e econômicas. Principalmente pelo fato de a região ser
democrática, ou meramente a concessão de maiores liber- escassa de recursos agrícolas e ser mantida pela estrutura
dades para a sociedade civil. Alguns desses levantes rentista, o povo acaba se tornando uma massa volá-
incitaram mudanças drásticas nos arranjos re- til nas mãos dos líderes de Estado. A partir do
gionais. Regimes rentistas caíram, tanto pela aprofundamento das mazelas sociais, oriun-
via armada como pelas manifestações po- do da crescente influência da crise no cená-
pulares, mas a Arábia saudita resiste como rio mundial, a renda distribuída já não era
“fortaleza” em meio a essas crises. O regi- mais suficiente para manter as necessidades
me detém muita força militar e econômica, básicas atendidas. Assim, nesse contexto de
assim como não há uma oposição unificada indignação e anseio por mudança, as massas
para questionar (CAUSE, 2011). se revoltaram em diversos países árabes.
O forte contato com o mundo, derivado do O desejo da população era estabelecer uma
processo de globalização, criou um contato com os ideais monarquia constitucional. Além disso, desejavam tam-
ocidentais, que motivaram as mudanças em vários países bém estabelecer uma separação dos poderes, retirar o
da região. A situação de desigualdade e fome servia como poder demasiado das mãos da figura do monarca. Ou-
base para as revoltas populares. A educação é precária e tras revindicações populares seriam a reestruturação
desigual entre homens e mulheres. A renda é mal distri- dos setores econômicos e a distribuição de renda, que
buída e a comida é escassa, pois é um bem importado, e o estaria muito concentrada nas mãos de algumas elites
país depende do mercado internacional para suprir a sua (CASE, 2011).
demanda. Assim, desejamos entender o efeito das crises A mobilização foi feita pelas redes sociais, o que con-
sobre o ambiente saudita, e como o governo atuou para feriu certa maleabilidade para a organização do movi-
reprimir os protestos e atender às reivindicações. mento. Contudo, o “Dia de Fúria”, o protesto simbólico,
A estrutura saudita é marcada pela característica ren- no qual haveria uma mobilização geral da população,
tista do Estado. Os empregos são, quase sempre, relacio- foi rapidamente desmobilizado pelo governo. Além da
nados ao aparato estatal. A burocracia saudita é associada resistência do regime, houve uma inundação em Jeddah,

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o segundo maior centro urbano saudita. Essa catástrofe de petróleo do mundo não é só interessante para o regi-
enfraqueceu o movimento (CASE, 2011). me, mas para o mundo.
Diferentemente dos outros países, onde as revoltas Esse recurso tão precioso para a economia mundial
se iniciaram principalmente pela problemática social, a não pode ter seu fluxo cortado de forma tão brusca. As
Arábia Saudita possui muita força econômica e capaci- exportações têm como destino as maiores potências do
dade de oprimir e reprimir movimentos de contestação. mundo. Então seria lógico pensar que o encarecimento
Houve um “efeito espelho” nessa região, pois a população do petróleo poderia levar a uma intervenção mundial,
se identificava de forma empática com os vizinhos. Os in- caso houvesse um conflito duradouro, como na Síria.
divíduos enxergavam o outro na mesma situação, e a ini- Apesar das ligações com os EUA, muitos outros seriam
ciativa alheia servia de motivação para esses movimentos. afetados, tanto de forma direta como indireta. A oscila-
A população saudita estava em condições muito si- ção do preço do petróleo no mercado internacional não
milares às dos outros povos árabes. Os índices, calcula- seria interessante, pois configuraria um aprofundamento
dos pela ONU, apontam situações muito parecidas, o que da crise.
prepararia o cenário para possíveis manifestações sociais.
A situação regional é contrastada com a riqueza desses E se o cenário saudita tivesse se tornado
estados, que possuem grandes reservas de hidrocarbone- palco de uma revolta?
tos. Não errando nas previsões, as revoltas não tardaram Provavelmente o contexto seria semelhante ao ocor-
a acontecer e foram rapidamente se espalhando, como rido na Líbia e na Síria. Apesar de os fins serem distintos,
consequência de um “efeito espelho”. Contudo, o gover- a situação encaminharia para um conflito, no qual a de-
no teve tempo de se preparar para a possível tempestade. mocracia não seria o resultado. Mesmo com diferenças
Diante da situação no Egito e na Tunísia, o estado saudita de regime, os sauditas são aliados convenientes para os
se organizou para suprimir os protestos (CASE, 2011). americanos (SOLER; ZACCARA, 2009). Estes garantem
O regime concentra todos os recursos do Estado, o a segurança da monarquia, e como resposta têm um “alia-
que lhe confere a função de distribuidor dessa renda. A do” econômico forte. Boa parte das importações sauditas
renda do petróleo é altíssima e as reservas de capital (prin- alimenta o mercado americano.
cipalmente dólares) são tão abundantes quanto os campos Mas o que se deu de fato foi o pagamento das in-
de petróleo. Como forma de calar os clamores sociais, foi satisfações. O regime colocou um preço nas demandas
estruturado um programa de repasse de capital para a do povo. As reservas e riquezas sauditas serviram como
população. Em outras palavras: dar dinheiro, subornar a forma de apaziguar o conflito (CASE, 2011). As dívidas
população, para manter o governo (CASE, 2011). foram perdoadas e grandes somas de capital (35 bilhões)
A estabilidade desse regime é essencial para o cenário foram concedidas diretamente ao povo. O perdão finan-
internacional. É uma das características dos regimes ren- ceiro era tão grande quanto o dinheiro saudita permitia.
tistas prover estabilidade, mesmo que à custa da força e da O Estado rentista fez seu nome valer; o dinheiro foi, ver-
captação dos recursos para a esfera do estado (BRICHS, dadeiramente, distribuído. Mas nenhuma melhoria polí-
2009). A estabilidade do maior exportador, e produtor, tica significativa foi concedida.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Os movimentos de oposição não são coesos e não to; são países atrasados educacional e socialmente. Os ín-
possuem uma base sólida. Esse fator é decisivo no quesi- dices são alarmantes, mas a inexistência de um processo
to continuidade do regime. As problemáticas religiosas democrático torna a resolução da situação um problema
e étnicas dificultam a fusão desses grupos e, por conse- persistente.
quência, a fusão de seus interesses e de suas demandas, As elites que controlam a esfera política participam
além do próprio regime, que utiliza da força para coagir de um jogo de poder com as elites secundárias para se
essas manifestações. O regime saudita é conhecido pela manterem no poder. A população é colocada em segun-
sua agressividade no tratamento da sociedade civil. do plano, e sua falta de articulação é interessante para as
Logicamente as próprias diferenças religiosas dificul- elites, pois auxilia a manutenção dos status quo. Mesmo
tam a unificação dos interessados, pois o futuro é incerto. no cenário de subdesenvolvimento, poucas medidas são
Percebe-se nos países em transição uma nebulosidade que tomadas para se alterar a situação. A situação é interes-
permeia a política e o social. Como questionar uma estru- sante não somente para as elites locais mas também para
tura tão enraizada como a estrutura saudita? Afinal, os mercados internacionais, que se utilizam desse
todo o aparato estatal é composto pelas elites contexto estável para investir e manter os flu-
sauditas. A própria vulnerabilidade econô- xos de petróleo estáveis (AKR, 2009).
mica da região e a dependência dos hidro- O petróleo é sim uma barreira para a
carbonetos tornam esse “ouro negro” a base reforma dentro dessas sociedades árabes
do Estado rentista. (ROSS, 2001). A própria estrutura da Arábia
Saudita é um facilitador do modelo rentis-
Conclusão ta. Historicamente, na época da unificação
A estrutura rentista possui um forte enrai- e expansão, as tribos já possuíam uma elite
zamento nos países árabes. Seu funcionamento é um consolidada e uma estrutura religiosa e econômi-
aprofundador de mazelas sociais, e condensa os recursos ca que facilitava a dominação. A mudança se torna mais
no aparato estatal, o que lhe confere o papel de distribui- difícil caso a população não se mobilize de forma unifor-
dor de recursos. O Estado rentista é útil no cenário inter- me (SOLER; ZACCARA, 2009). O povo só se tornaria
nacional, pois garante a estabilidade interna desses países, um ator em potencial caso obtivesse um apelo geral pela
vistos como “riscos” para o mundo Ocidental (SOLER; mudança.
ZACCARA, 2009). A possibilidade de mudança dentro do cenário sau-
Estados rentistas só se sustentam quando possuem dita é dependente de uma série de fatores que tornariam
uma fonte de renda que consiga suprir as demandas inter- esse processo violento demais ou incapaz de atingir re-
nas e que consiga ser centralizada na figura do estado. A sultados desejáveis. O ambiente internacional, o contexto
venda de hidrocarbonetos, a peregrinação religiosa ou a local, a estrutura estatal e o apoio americano são variáveis
ajuda externa são fontes capazes de atender, ainda que su- para a população saudita, que tem o receio do rumo dessa
perficialmente, as necessidades internas (BRICHS, 2009). situação. As revindicações internas, mesmo focadas no so-
A problemática social é clara no quesito desenvolvimen- cial e no econômico, são reprimidas ou compradas.

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A hipótese do petróleo como um obstáculo para a partir do qual demandas isoladas se tornariam uma
a democracia é clara nesse cenário. A problemática da voz presente. A mudança pode não ser tão abrupta
crise pode colocar em xeque a estabilidade do regime, como no Egito, mas uma monarquia parlamentar tal-
porém, como forma de ganhar voz, a população deve vez possa reduzir o poder da esfera política do regime
se constituir como ator político (ROSS, 2001). Para atual, para assim promover mudanças reais no Estado
tal, deve haver uma união e um interesse em comum, saudita.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRICHS, Ferran Izquierdo (org). Poder y regímenes em El TEIXEIRA, Francisco. “As novas condições estratégicas no
mundo árabe contemporáneo. Barcelona, Fundación CIDBO, Oriente Médio”. Disponível em: http://www.cartamaior.com.
2009. br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19645. Acesso
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HUMPHREYS, Macartan. Natural Resources, Conflict, and
Conflict Resolution: Uncovering the Mechanisms. Journal of VÁRIOS. The New Arab Revolt. What happened, what it
Conflict Resolution. Vol. 49, no. 4 (2005); pp. 508-537. means, and what comes next. Washington DC, Foreign Affairs,
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NASSER, Reginaldo. “As elites e os Estados árabes, um
modelo em crise”. Disponível em: http://www.cartamaior.com. YERGIN, Daniel. Crisis in the Gulf. In:___. The Prize – the
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SOLER, Eduard; ZACCARA, Luciano. Arabia Saudí: familia, WHITE, Stephen. Understanding Russian Politics. Cambridge:
religión, ejército y petróleo. In: BRICHS, Ferran Izquierdo Cambridge University, 2012, vol. 1, pp. 157-161.
(org). Poder y regímenes em El mundo árabe contemporáneo.
Barcelona, Fundación CIDBO, 2009, pp .221-264.

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100 Vício ou virtude?
A revista Playboy é um bom objeto as diferenças entre os corpos nus das
de estudo para discutir o processo de francesas e das brasileiras.
construção da imagem do corpo femi- A Playboy foi criada em 1953 pelo
nino. A partir de uma comparação entre editor americano Hugh Hefner. Filho de
a Playboy francesa após sua mudança um contador metodista conservador de
editorial e o formato atual da revista Play- origem germânica, Hefner iniciou seu
boy brasileira, queremos refletir sobre o negócio timidamente, com um inves-
que faz com que uma mulher se torne timento de US$ 600, aos 27 anos. Ele
atraente o suficiente para ser construída conta que fechou o primeiro número
como esse objeto de desejo que mensal- “na mesa da cozinha do apartamento
mente toma de assalto bancas de jornal em que morava com a esposa e uma
e outdoors por todas as grandes cidades filha pequena”, em Chicago. Em apenas
do país. Também queremos pensar sobre dois anos viu a publicação saltar de uma

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tiragem de 60 mil exemplares para 400 mobilidade social e com a possibilidade uma longa entrevista com uma persona-
mil revistas vendidas em todo o país. O de conquista de bens de consumo da lidade; um painel de objetos de desejo do
primeiro número (que saiu sem data e retomada econômica. A principal dife- homem de classe média: carros, relógios,
numeração), publicado no fim de 1953, rença, entretanto, é que as outras revistas canetas, roupas masculinas; e uma série
é considerado histórico, principalmente mostravam o sexo como algo imoral, de reportagens e artigos abordando te-
por ter publicado uma das fotos que Ma- construindo-o a partir de uma sedução mas de interesse do leitor Playboy.
rilyn Monroe fez em 1949, quando ainda do pecado. Hugh Hefner vendia o sexo Pode-se dizer que a Playboy se
era desconhecida. Nessa foto, Marylin como algo amoral, construindo-o como transformou em um mito, no sentido de
Monroe aparecia “sem nada, a não ser um elemento da vida. Barthes (1993), uma fala que flutua acima
o rádio ligado”, como ela mesma diria A revista chegou ao Brasil em 1975, da história, um conjunto de significações
(Talese, 2002, p. 75). publicada pela Editora Abril com o título simbólicas. Seu formato se consagrou em
O modelo revolucionário da Playboy de Revista Homem, estampando na vários países como o grande painel de
é um derivado e em grande parte uma capa a modelo Lívia Mund. A primeira exibição do padrão de beleza feminino
reação ao estilo guns, guts and girls do edição brasileira chamada oficialmente dominante e como medida do grau de
editor George von Rosen, no pós-guerra de Playboy foi a de julho de 1978, com atenção que se dá ao corpo feminino
nos EUA, um dos primeiros a publicar a modelo Debra, “a garota do ano”. À em determinado momento. Igualmente,
revistas para homens, a fim de agradar França, chegou em 1973, com uma capa tornou-se índice de certo estilo de vida
aos veteranos que retornavam para casa, que trazia uma modelo desenhando com propagado pelas páginas da revista, de
oferecendo-lhes seus três elementos clás- tinta spray o coelhinho da Playboy sobre um modelo de masculinidade centrado
sicos de excitação. Hugh Hefner trabalhou uma parede. Em 2000, a revista francesa na busca pelo prazer, da negação do prin-
para Rosen, sobretudo em sua publicação zerou sua contagem e, estampando a cípio puritano de que gozo e sucesso são
de maior sucesso, a Modern Man, revista modelo Naomi Campbell em sua capa, dissociados, seja esse prazer traduzido em
que influenciaria o criador da Playboy e reiniciou do número 1 a série que segue uma vida de aventura, de consumo classe
só seria batida no sucesso e no imaginá- até hoje. A ou de erotismo mais ou menos elegante.
rio pelo lançamento desta, em 1953. Mas Em quase todos os países em que é Um dos indicadores mais curiosos
enquanto von Rosen mirava o homem publicada, a Playboy segue um mesmo dessa mitologia vem da regra de Hugh
aventureiro do interior, a aposta de Hugh formato, que sofre adaptações nacionais, Hefner em relação à publicidade. No
Hefner foi no homem urbano, aquele que sem, no entanto, variar muito: uma começo da publicação, ele foi preterido
estava enclausurado nos escritórios e nos garota da capa e uma do pôster central, por muitos anunciantes, mas com o su-
almoços de domingo e sonhava com chamada originalmente de playmate; cesso passou a ser procurado por eles.

102 Vício ou virtude?


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Entretanto, ele estabeleceu uma censura Ela era quase uma espécie especial que Uma nudez inesperada
publicitária, que vale até hoje para muitas existia dentro dos olhos e da mente do Sobre um fundo vermelho, um belo
edições nacionais da revista: a Playboy observador, oferecendo tudo o que fosse rosto de mulher. Seus olhos, entreaber-
não publicaria anúncios de produtos imaginável. Estava sempre disponível tos, assim como seus lábios, em uma
“para calvície, fraqueza física ou obesi- na cama, era totalmente controlável, insinuação de sorriso. Seus cabelos,
dade” (Talese, 2002, p. 70): conhecia o toque perfeito em lugares desalinhados, espalham-se pela área
Talese (2002, p. 32) descreve esse íntimos e nunca dizia ou fazia algo que superior da imagem. A fotografia a en-
mito como um sinal dos tempos de uma perturbasse o clima antes do momento quadra até o limite do colo, ocultando os
revolução da permissividade nos Estados de êxtase. Todos os meses, ela era uma seios. Além do fundo, todo o espaço é
Unidos: pessoa nova, satisfazendo a necessidade coberto por um mesmo filtro avermelha-
masculina de variedade, atendendo às do, conferindo a sua pele um tom irreal,
A começar por Marilyn Monroe, no diferentes obsessões e fantasias, sem pedir dramatúrgico. É uma imagem que grita:
primeiro número de 1953, todas as ga- nada em troca. Comportava-se como ne- sexy. É a capa de uma revista Playboy,
rotas do pôster central da Playboy eram nhuma mulher real se comportava, o que uma das dezenas de versões mundiais da
modelos profissionais e apresentavam era a essência da fantasia e a principal publicação que se tornou sinônimo de nu
autoconfiança e experiência; eram razão da proeminência de Hugh Hefner, feminino em todo o mundo. A mulher, a
mulheres que sabiam das coisas. Antes o primeiro homem a ficar rico vendendo estrela do mês na capa: Juliette Binoche.
da Playboy, poucos americanos tinham abertamente amor masturbatório por A presença insólita da atriz Juliette
visto uma fotografia colorida de mulher meio da ilusão de uma mulher sedutora Binoche provocou um choque em mui-
nua, e os leitores ficavam indefesos e disponível. Pelo preço de uma revista, tos franceses, em novembro de 2007,
constrangidos ao comprar a revista na Hefner dava a milhares de homens um quando foi publicado o número 84 da
banca, dobrando-a para esconder sob a sortimento de mulheres que na vida real Playboy francesa. Naquele momento,
capa ao ir para casa. Expô-la seria como não olhariam para eles. Oferecia mulheres a França foi tomada por um pequeno
reconhecer publicamente uma necessida- jovens para homens velhos, mulheres fenômeno – como pequenos habitual-
de terrível, um segredo reprimido havia desejáveis para homens feios, brancas mente são os fenômenos de repercussão
muito tempo; seria admitir o fracasso em para negros, ninfomaníacas para tímidos. no que diz respeito a temas envolvendo
encontrar a coisa real. Embora o Relató- Era um cúmplice nos casos extraconjugais artes, espetáculos e variedades em um
rio Kinsey revelasse que quase todos os de homens monogâmicos, proporcionava país em que estreiam, semanalmente,
homens se masturbavam, no começo dos estímulo para homens adormecidos. uma dezena de filmes ou peças de te-
anos 1950 isso ainda era horrível e não atro. A revista trazia na capa a imagem
havia indicação de que se relacionasse No Brasil, é inegável o papel que a de um rosto que soava absolutamente
com fotografias. revista teve e ainda tem, consolidando-se deslocado em uma expressão sensual
como uma publicação voltada para uma atrás de um sans interdits e de seu
A mulher da Playboy era “sua amante legitimação midiática do corpo feminino. nome. Não era uma das playmates, das
mental, um estímulo na solidão” (Talese, Ao longo dos anos, os corpos femininos “coelhinhas” de seios enormes e formas
2002, p. 33): presentes na Playboy passaram a estar esculturais que geralmente estampam
cada vez mais em evidência, porque a capa da publicação. Tratava-se de
Com frequência viam sua imagem en- cada vez mais pertenciam a mulheres um corpo habitualmente esperado em
quanto faziam amor com suas esposas. em evidência. outros cartazes.

104 Vício ou virtude?


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Musa de um cinema intelectualizado No editorial ele aponta em Juliette Bino- sexo, mas sim como uma revista sobre
e conhecida por seu discurso a favor che a “força criativa que fez dela mais do um estilo de vida do qual o sexo é um
da liberação feminina, a atriz Juliette que uma atriz, que a projeta para além dos ingredientes”.
Binoche é a imagem da mulher para do estatuto da simples intérprete”: ela “é Vahina e Lagerfeld foram apresentados
quem a Playboy representa tudo contra uma artista”. como um turning point conceitual para
o que ela lutaria. E, ainda assim, ei-la ali, Não era, entretanto, o primeiro “ma- conferir à revista glamour, sensualidade,
estampada como sua estrela. Não apenas nifesto” de Yan Céh. No número anterior, inteligência e estilo pop. Depois de Vahina
pela curiosidade de vê-la nua, mas tam- o de outubro de 2007, a Playboy francesa Giocante e Juliette Binoche, vieram: a
bém pela curiosidade de compreender havia lançado seu novo projeto editorial modelo que se tornou atriz Julie Ordon
porque ela aceitou posar na Playboy, a apresentando uma nova revista, muito di- (dezembro de 2007) e as atrizes de ci-
tiragem original esgotou-se rapidamente ferente da que os franceses estavam acos- nema Ludvine Sagnier (janeiro de 2008);
nas bancas do país. tumados. Na capa, a atriz Vahina Giocante, Roxane Mesquida (fevereiro de 2008)
Jornalista dos mais importantes e o que definitivamente representava uma e Lou Douillon (março de 2008). Todas
conhecidos da cinefilia mundial, crítico novidade. O que mais chamava a atenção representando um certo “outro” da mulher
da segunda geração da mítica Cahiers na capa, entretanto, era a assinatura branca que normalmente está na capa da Playboy.
du Cinéma, autor (com Serge Toubiana) que dominava a página, rivalizando com Até outubro de 2007 os ensaios da
da mais famosa e considerada definitiva os encantos da atriz: Karl Lagerfeld. O revista francesa eram apresentados como
biografia de François Truffaut, Antoine de estilista, no editorial apresentado como o uma forma de disponibilizar a nudez de
Baecque impressiona-se: “Juliette Binoche criador mais célebre do planeta, foi o autor uma mulher de corpo bonito. Não raro
na Playboy é surpreendente...”. É dele a do ensaio fotográfico. também, publicava capas de edições de
assinatura da entrevista com a atriz que O editorial assinado por Yan Céh outros países, com mulheres estrangei-
acompanha seu ensaio fotográfico. apresentava o projeto da nova Playboy: ras, chegando a repetir, por exemplo, na
No texto de apresentação da conver- “Inspirados pelo espírito de origem e edição de fevereiro de 2007, a capa da
sa, assinado pelo novo editor da revista, pela era de ouro do coelhinho, nossa Playboy brasileira de setembro de 2006,
Yan Céh, fica claro que a escolha de uma ambição é fazer uma revista à imagem trazendo “os aviões da Varig”. A intenção
atriz do prestígio de Juliette Binoche para da França e de sua capital: glamorosa e da nova equipe era a de “limpar” a capa
a capa da publicação teve um tom de sexy, inteligente e popular.” O texto abre da revista, de levar para aquele espaço
protocolo de intenções: “Juliette Binoche com uma frase de Hugh Hefner: “Nunca nomes menos associados ao estigma de
nunca foi uma mulher como as outras.” pensei a Playboy como uma revista sobre “mulher que posa nua”.

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106
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Nua ou pelada? social intermediado simbolicamente, uma presentes em sua pesquisa “dizem que,
Cabe aqui uma distinção entre duas diferenciação de cada mulher em uma hoje, não basta a mulher ser bonita e
categorias fundamentais para a discus- economia das competências simbólicas gostosa, ela tem que ser interessante,
são sobre a Playboy: nua e pelada. É para a ação. ou seja, tem que ser bem-sucedida, ter
fácil verificar a oposição entre esses dois autonomia, carreira, ser alguém. Por isso,
termos recorrentes nos discursos sobre O corpo nu como forma a primeira mudança importante a ser
as revistas masculinas. A mulher nua é de resistência observada é que antes poucas mulheres
associada a uma imagem da forma do Em 3 de janeiro de 2006, o Jornal do apareciam e, quando isso acontecia, era
corpo, da pura contemplação da beleza, Brasil publicou uma reportagem sobre pelo corpo. Hoje, há uma exigência nova
da arte, da pintura de Botticelli ou Goya, a Playboy. O subtítulo explicava: “Inspi- de que elas apareçam. Pega até mal dese-
da fotografia de Mario Testino. Já a mu- rados por livro de fotos dos 30 anos da jar uma mulher que é só corpo”.
lher pelada é uma categoria claramente Playboy, especialistas e estrelas atuais e O editor da Playboy brasileira, Rodri-
pornográfica, ligada à imagem do corpo antigas da revista discutem o que mudou go Paranhos Velloso, corroborava a tese
despido como objeto sexual, como apre- nas mulheres e no modo de olhar para da jornalistização: “Quando a revista co-
sentação performática do corpo em uma elas no Brasil.” Era um texto a propósito meçou, era a única com nudez no Brasil.
forma de ação olímpica, como exibição do lançamento de livro comemorativo Sair nela era uma prova de ousadia, ou
de genitálias, de mucosas. do 30º aniversário da versão brasileira seja, as mulheres apareciam por atributos
O projeto da Playboy francesa pa- da publicação. naturais singulares ou por atitude. Hoje,
rece estar preocupado em dissociar sua Partia-se da constatação de que, ao a nudez é muito mais fácil. Em qualquer
imagem da mulher pelada e associá-la à longo dessas três décadas, o tipo de mu- passeio na internet, você vê mulheres
mulher nua. Esse é justamente o tema lher estampado pela revista havia mudado. nuas. Então, é preciso ter algo mais.” E
da entrevista de Juliette Binoche, e ela o “Nas primeiras edições, até os anos 1990, esse “algo mais” se traduzia na escolha
opera por vias muito curiosas e emble- veem-se sobretudo modelos, profissionais de mulheres ligadas à pauta noticiosa
máticas, como veremos em nossa análise. da beleza e atrizes cuja atitude de posar do país.
O que parece estar em jogo nessas nua as classificava como libertárias, ou- As duas versões da revista, a francesa
duas operações (a da mulher nua ou sadas, em tempo de ditaduras, militares e a brasileira, parecem operar economias
pelada) é uma tensão entre dois mo- e morais (atrizes como Lucélia Santos, semelhantes, mas cada uma com um
vimentos, antitéticos à primeira vista, capa de abril de 1980, ou Betty Faria, de desenho específico. Em ambas, o que
mas complementares. De um lado, uma outubro de 1984).” Nos anos 2000 a for- parece estar em jogo é a proposta de
mecânica de equalização absoluta, de ma de se estar na capa da Playboy havia fazer a garota da capa ser mais atraente
unificação da mulher sob um papel de passado a ser outra, intermediada pela do que uma miríade de outras mulheres
representante de seu corpo, uma equa- “jornalistização da pauta de mulheres que circulam por um mercado cada vez
lização de todas as mulheres como aces- fotografadas”. “Se as primeiras primavam mais superpovoado de mulheres possí-
sórios de um corpo feminino inserido em pela ousadia, é cada vez mais necessário veis de estar na capa da revista. A estrela
uma economia da sexualidade, do uso do que a mulher fotografada pelas revistas da capa da Playboy parece fazer parte de
corpo como capital (Goldenberg, 2007). masculinas tenha um assunto, seja um uma economia imagética central para a
De outro, uma mecânica de diferenciação assunto”, dizia a matéria. cultura brasileira contemporânea e de
absoluta, de singularização da mulher Na reportagem, a antropóloga Mirian alguma maneira parece informar muito
sob uma lógica de diferenciação em um Goldenberg declarava que os homens sobre a cultura francesa.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Voltemos, então, para a Playboy Quando vejo corpos de mulheres Então, por que outras tantas mulheres
francesa número 84, que traz em sua apresentados em posições obscenas, precisam posar para a Playboy?
capa uma mulher “nua em seu interior”. eu sinto um verdadeiro mal-estar. Sinto E, finalmente, por que a Playboy
Na entrevista que acompanha o ensaio constrangimento. Essa imagem se tor- precisa tanto delas?
fotográfico, Juliette Binoche revela os nou banal, insuportável. Na rua, você
motivos pelos quais ela está ali, motivos não tem mais sua liberdade de olhar, O corpo nu na Playboy francesa
que são, essencialmente, políticos: “Fui sua liberdade de pensar. Hoje em dia, Para além da presença marcante de
convencida por uma jovem equipe que vende-se tudo de uma mesma maneira, Juliette Binoche, o que emerge como re-
quer mudar a Playboy, como gostaríamos sejam as publicidades da Vuitton, sejam gularidade na nova Playboy Édition Fran-
de mudar o mundo, falando do corpo de os carros, sejam as fotos pornô. As çaise? Um primeiro elemento que chama
maneira diferente, devolvendo-lhe sua mulheres são da mesma maneira des- atenção é que os editores diferenciaram
alma. Temos a tendência de separar cor- prezadas nas propagandas ditas sexy. Na as mulheres cujas fotos são publicadas na
po de espírito, o corpo de suas emoções. verdade, as novas campanhas seguem revista. Há duas categorias: a playmate,
Colocamos o prazer como algo separado. um estilo “chique e puta”. a que sai no pôster; e a coverstar, a que
Tenho a ambição de mostrar justamente sai na capa. Em todas as edições, depois
o contrário.” Mas o touché vem um pou- O mais curioso é a mudança radical de outubro de 2007, só uma coverstar foi
co depois: “De certa maneira, reivindicar de postura: antes, nunca. Hoje, uma também playmate: Julie Ordon.
um corpo como esse nas páginas da Play- forma de resistência política. Assim, a A imagem da playmate é a da típica co-
boy é um ato militante: tomar a palavra primeira ideia que vem à mente diante elhinha, o modelo de mulher consagrado
no coração do campo inimigo, no lugar de Juliette Binoche na Playboy parece ser: como objeto de desejo de Hugh Hefner.
em que está a escuridão, justamente ela não precisa disso! No Brasil, não se usa o termo playmate
onde não temos o desejo de ir.” E por que algumas mulheres brasilei- e nos últimos tempos caiu em desuso até
Algumas ideias chamam atenção na ras também não precisam disso? mesmo a coelhinha. Hoje, a preferência
fala de Juliette Binoche, especialmente Como, entre tantos exemplos, as é a ideia de estrela. O importante é que
a de que posar nua, aos 43 anos, é uma atrizes Malu Mader, Cláudia Abreu, a mulher da capa é marcantemente dife-
forma de militância feminista e também Camila Pitanga e Ana Paula Arósio, que renciada das outras mulheres que saem
de provocação. Perguntada sobre como têm declinado sistematicamente ao na revista.
reage à nudez apregoada publicamente, longo dos anos de convites feitos pela Um dado curioso é que antes da
responde: publicação. mudança editorial a Playboy francesa

108 Vício ou virtude?


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

publicava muitas capas de playmates com Juliette Binoche, desta vez de moda, mulheres brasileiras não precisam ser
importadas. Na edição de Juliette Bino- com figurinos e créditos. apresentadas como singulares. Elas po-
che, a playmate é uma brasileira que foi Essa inclinação para uma estética de dem ser apenas diferenciáveis, definindo
capa da Playboy daqui em maio de 2006, moda parece operar dois mecanismos. diferentes comportamentos de consumo,
Estela Pereira, a “Musa da Copa”. Lá, ela Primeiro, uma mecânica de afastamento como propõe Bauman (1999). Daí a ideia
não foi apresentada assim, mas como das fotografias da Playboy de uma esté- de jornalistização da pauta da Playboy
uma garota brasileira andando na praia tica tradicionalmente associada à mulher como uma forma de diferenciação.
de Copacabana. pelada, a uma imagem sexualmente É o que pode explicar, por exemplo, a
O segundo detalhe que chama performática, pornográfica. Depois, capa da revista de outubro de 2005, com
atenção é a estética das fotos. As fotos situar essas mesmas fotografias em uma a jornalista Camilla Amaral, assessora
desse novo modelo de Playboy francesa gramática que seja reconhecível como parlamentar que foi apelidada de A Musa
parecem seguir claramente o cânone da algo ao mesmo tempo nobre e tipica- do Mensalão: uma mulher que se tornou
fotografia de moda. Daí a escolha de Karl mente francês. A moda possui um valor presente nos jornais e televisão por
Lagerfeld para inaugurar esse novo olhar. muito forte na cultura francesa e parece aparecer nas sessões da Comissão Par-
Não é nada surpreendente, então, ver ter sido o elemento estratégico adotado lamentar de Inquérito que investigava o
que cada foto traz no rodapé da página pela revista para conquistar seus leitores. escândalo de corrupção que era o centro
os créditos do figurino utilizado, como Tudo isso parece apontar para o tra- dos debates no país naquele momento.
“bracelete em couro preto Chanel” (Vahi- tamento que as estrelas da capa recebem Participantes do Big Brother Brasil,
na Giocante), “colete sem mangas em da Playboy francesa. A exemplo de Juliette modelos, assistentes de palco, dançari-
couro Balenciaga” ou “minijaqueta em Binoche, todas elas são apresentadas nas, todas foram escolhidas como musa
couro preto Gucci” (Ludivine Sagnier). como mulheres únicas, singulares. A estra- do momento da Playboy brasileira não
No ensaio de Julie Ordon, uma das fotos tégia de usar a moda como gramática diz (pelo menos não apenas) pelos seus
mais marcantes é aquela que aparece em muito sobre isso. Aquelas mulheres não atributos físicos peculiares, mas por for-
página dupla, em preto e branco, com são mulheres quaisquer, são mulheres “da mas de diferenciação midiática. Mesmo
a modelo/atriz totalmente nua, usando arte”, são “mulheres-arte”. Não podemos no caso das atrizes, a escolha da capa é
apenas um par de tênis Converse All Star, nos esquecer de que as mulheres que sempre associada a uma novela ou pro-
devidamente creditado. estão posando agora na França são tidas grama que esteja no ar no momento, e
Essa aproximação da fotografia de como inalcançáveis, porque são vindas do as campanhas – os jogos de títulos e os
moda deixa bastante clara a estratégia de cinema, de um ambiente mítico, quase textos da revista – sempre destacam esse
glamorização do novo projeto da revista. sagrado, no país. elemento de diferenciação.
O ensaio de Juliette Binoche não teve cré- O que queremos destacar é o trata-
ditos de nenhum figurino. A atriz posou O corpo pelado na Playboy brasileira mento dado ao corpo feminino nessas
absolutamente nua, protegida “apenas” Na Playboy brasileira, o que parece fotos. O primeiro elemento é uma certa
por uma espessa camada de falta de estar em jogo não é uma economia da padronização no que diz respeito à abor-
foco. Dela, vemos apenas silhuetas, for- singularização, como na revista francesa, dagem do corpo. Salvo algumas exceções,
matos, borrões captados pelas lentes de mas uma economia da diferenciação. os ensaios fotográficos apresentados na
Marianne Rosenstiehl. O mesmo número Acreditamos que em função da existência revista com a estrela do mês são fotos
da revista, chamado pelos editores de es- de um mercado plenamente legitimado de mulher pelada. São fotos que pouco
pecial moda, traz outro ensaio fotográfico para essas imagens midiatizadas, as dialogam com o padrão estético do nu.

outubro • novembro • dezembro 2012 109


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O que parece interessar à Playboy categoria gostosa, que claramente re- grau de familiaridade entre aquele que
brasileira é o corpo exposto em sua metem para três diferentes atribuições atribui o adjetivo e aquele que o recebe;
dimensão de fetiche dos seus atributos simbólicas, e, portanto, a três tipos do 2) Como adjetivo usado em relação à
físicos e de alguns elementos dramatúr- que Werneck (2006) chama de regimes figura pública: é o termo em seu sentido
gicos – como fotografar a atriz Alessandra de legitimação, ou seja, formas de valida- de atribuição de um valor simbólico em
Negrini (abril de 2000) interpretando ção dos conteúdos simbólicos produzidos uma economia de diferenciação compe-
uma prostituta de rua ou apresentar a ex- pelos atores nas interações pragmáticas. titiva. É o que se vê quando se ouve nas
-participante do BBB Grazielly Massafera Os diferentes regimes de legitimação ruas, diante de uma revista nas bancas:
(agosto de 2005) em algumas atividades correspondem a diferentes graus de sin- “Essa atriz, da novela X, é gostosa!” Trata-
domésticas. No que diz respeito aos gularização dos objetos dotados desses -se, então, de uma imagem simbólica
atributos físicos, a imagem recorrente é significados. Assim, atribuir um adjetivo a legitimada por diferenciação, na qual
a de uma mulher famosa que expõe seus uma pessoa é um processo que depende a imagem é estabelecida pela maneira
segredos para o olhar masculino, que tem de legitimação e, para isso, opera uma como o ator que tem associado a si
o direito de ver tudo. mecânica que atribuirá a um ator algum um significado conseguiu demonstrar
O elemento central para se compre- grau de singularidade coerente com o diferenciais competitivos na economia
ender o que seria esse tudo parece ser o contexto localizado da significação. simbólica em questão;
de um corpo realista, um corpo real, de A categoria gostosa, como é utilizada 3) Como substantivo: é o termo em
mulher de verdade, um corpo natural. no Brasil, parece ser legitimada de três seu sentido de traço de definição de
De uma mulher que, apesar de famosa, diferentes formas: grupo da pessoa. É o que se entende
é igual às outras mulheres, salvo pelo fato 1) Como adjetivo usado em relação à quando se ouve que “Fulana é uma
de que ela apresenta atributos físicos dig- figura privada: é o termo em seu sentido gostosa”, como virou jargão no jornalis-
nos de nota. É uma mulher considerada de atribuição de um atributo a um ator mo de celebridades. No Brasil, ser uma
e classificada como gostosa. em particular, que merece tratamento gostosa é, na prática, uma profissão. Uma
A ideia de gostosa parece ser a chave especial, pessoal. É o que se compreende gostosa é uma mulher cuja ocupação é
para compreender a presença de deter- quando um namorado diz à namorada: definida pela imagem de seu corpo, que é
minadas mulheres na Playboy: toda a “Você é gostosa.” Ou mesmo quando reconhecida publicamente como alguém
economia imagética do corpo no Brasil ele diz aos amigos: “Minha namorada é que vive de sua imagem de gostosa. É o
parece estar ligada a essa noção. gostosa!” Trata-se, então, de uma imagem que se diz das assistentes de palco, essa
Em nossas observações, enxergamos simbólica legitimada por pessoalidade, ocupação que, um tanto esquecida desde
três diferentes formas de utilização da na qual a imagem é estabelecida pelo os tempos das chacretes, assistentes do

110 Vício ou virtude?


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

apresentador Chacrinha, ressurgiu nos do Brasil, mas a mais desejada naquele determinados atributos físicos para uma
últimos anos com muita força, graças ao momento. mulher ser destaque na Playboy brasileira.
sucesso de programas de auditório como Daí a questão levantada pela segunda Cada uma das que aparecem no ranking
Domingão do Faustão ou Caldeirão do reportagem aqui citada: a hiperexposição das revistas mais vendidas se apresentou
Huck, da TV Globo, ou Pânico na TV, da dessas mulheres não gasta o seu apelo como uma mulher diferenciada.
Rede TV!. Não deixa de ser curioso que sexual? A hiperexposição poderia explicar Joana Prado foi a campeã de vendas
o substantivo tenha sido demarcado em grande medida o fenômeno ocorrido por seu papel como a Feiticeira, a odalisca
com um artigo indefinido: uma gostosa com a queda das vendagens da revista que torturava rapazes no programa H,
não é “a gostosa”, é apenas mais “uma nos últimos anos. da TV Bandeirantes, depilando-os após
gostosa”. É um exemplar, um caso, de Vários fatores explicam a redução de dançar diante deles com seus seios fartos
uma categoria mais ampla. É, então, vendagens. O primeiro deles é o fato de e um biquíni minúsculo. Mostrava tudo,
uma imagem simbólica legitimada por que, nos anos 2000, a internet começou menos o rosto, escondido por um véu.
universalidade, por justificação, por um a se tornar efetivamente um meio difusor Depois, ela chegou a posar novamente,
princípio superior que iguala todos os de imagens e passou a permitir que mais dessa vez sem a máscara.
integrantes de uma categoria. É uma pessoas tivessem acesso gratuito às ima- O mesmo foi realizado por Suzana
atribuição diferente da adjetivação. É uma gens contidas nas páginas da publicação. Alves, a Tiazinha, que antecedera a Fei-
definição substantiva. Outro elemento objetivo nesse cenário ticeira no mesmo programa de TV, no
A estratégia da Playboy brasileira foi a multiplicação de publicações – de papel de provocar os meninos. Tiazinha
parece se basear no que a matéria já papel e de internet – apresentando mu- se apresentava usando trajes típicos de
citada do Jornal do Brasil chama de jorna- lheres em ensaios sensuais. sadomasoquismo, e igualmente com o
listização: a estrela escolhida está sempre Entretanto, parece estar em jogo um rosto mascarado.
associada a uma pauta. Por mais que ela fenômeno mais geral: a concentração de Por sua vez, Carla Perez e as Scheilas,
tenha atributos físicos para ser adjetiva- grandes vendagens no fim dos anos 1990 Mello e Carvalho, foram, em momentos
da como gostosa – elemento sine qua e a queda subsequente de vendas parece diferentes, dançarinas do grupo É o Tchan,
non para estar na capa da Playboy, um indicar também, em alguma medida, companhia de axé music que exercitava
espaço consagrado de reconhecimento a falta de uma personalidade capaz de coreografias erotizadas e que mobilizou
e legitimação dessa adjetivação – é esse mobilizar nacionalmente e em grande a atenção do país ao longo da década.
diferencial competitivo que a tornará não escala a curiosidade dos leitores. Como Parecem se confrontar aí duas forças
necessariamente a mulher mais desejada pretendemos argumentar, não bastam de construção da imagem. A Playboy

112 Vício ou virtude?


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

brasileira não parece ter problemas em equalização em universalidade da cate- ciários sobre essas mulheres. É um jogo
alimentar sua pauta com as chamadas goria “uma gostosa” tende a banalizar simbólico de aproximação e afastamento.
celebridades instantâneas. Mas, ao mes- e, nesse sentido, reduzir a atração pelas A mulher na Playboy brasileira não
mo tempo, tem investido em desnudar mulheres exibidas na revista, a operação soa etérea, inalcançável, inatingível, como
as que são duradouras. E tem sido nessa de mercado passa a ser diferenciá-las Juliette Binoche. Ao mesmo tempo, ela
mecânica pendular entre um padrão de justamente em relação a esse modelo. também não é uma qualquer, não é um
corpo mais próximo do da “uma gostosa” É isso o que parece distanciar as commodity, o termo com que a microeco-
(mas sempre diferenciado por elementos estratégias da Playboy francesa e a da nomia designa produtos sem marca, como
simbólicos) e um padrão de comporta- brasileira em suas mecânicas de singu- soja ou feijão. Não é apenas uma mulher
mento que diferencie as mulheres que larização/diferenciação. Se a francesa dotada de um conjunto de atributos físicos
esse mercado imagético do corpo tem opera por tentativa de construção de associados a certo padrão de beleza con-
se produzido e reproduzido. uma imagem de mulher singularizada, a sagrado e legitimado. É uma mulher com
Por vezes, a Playboy recorre a mitos, brasileira opera tentando construir uma algo a mais, muito mais, do que um produ-
como quando publicou, em janeiro de mulher diferenciada, dotada cada uma to midiático bem-acabado e diferenciado:
2000, o ensaio com Vera Fischer (que já de uma competência competitiva, de uma mulher diferente, distinta de todas
havia posado para a revista outras vezes), um traço de distinção (Bourdieu, 2007). as outras incontáveis e, talvez, invisíveis
sem aparente ligação com algum fenô- Isso parece explicar por que a legi- gostosas que estão no mercado.
meno midiático, mas tratando-o como timação na Playboy brasileira é midia-
um ensaio especial, o que deu um ar de tizada, pela “jornalistização da pauta Mirian Goldenberg é professora do Departamento de
Antropologia Cultural e do Programa de Pós-Graduação
legitimação por singularidade à edição. de mulheres fotografadas”. Com esse em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e
Nosso argumento é que o que está procedimento de jornalistização, cada Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

em jogo nas escolhas da Playboy é uma uma das imagens distintivas, cada uma [email protected]

operação de torção entre regimes de das imagens dotadas de diferenças Alexandre Werneck é professor do Departamento de
Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da
legitimação que diferenciem ou singu- competitivas, é preenchida com os vários Universidade Federal do Rio de Janeiro.
larizem a mulher. Se a legitimação por conteúdos simbólicos contidos nos noti- [email protected]

Referências bibliográficas

BAECQUE, Antoine. “Le corps a son image: Entretien J. F. Teixeira. São Paulo: Zouk, 2007. de Filosofia e Ciências Sociais/Universidade Federal
avec Juliette Binoche”. Playboy Édition Française, do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
no 84, p. 32-39, novembro de 2007. GOLDENBERG, Mirian. O corpo como capital. São
Paulo: Estação das Letras e Cores, 2007. _________________. (21/8/2007), “Destricted:
BARTHES, Roland. Mitologias. Tradução: Rita sex as performance art”. Studio International.
Buongermino e Pedro de Souza. 9ª edição. Rio de TALESE, Gay. A mulher do próximo: Uma crônica Online: http://www.studio-international.co.uk/reports/
Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. da permissividade americana antes da era da destricted.asp.
Aids. Tradução: Pedro Maia Soares. São Paulo:
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As consequên- Companhia das Letras, 2002. _________________ e CARDOSO, Monique.
cias humanas. Tradução: Marcus Penchel. Rio de (3/1/2006), “Corpos em evidência: Inspirados por
Janeiro: Jorge Zahar, 1999. WERNECK, Alexandre. Mea desculpa: A desculpa livro de fotos dos 30 anos da ‘Playboy’, especialistas
como forma de apaziguamento de conflitos sociais e estrelas atuais e antigas da revista discutem o que
BOURDIEU, Pierre. A distinção: A crítica social do e como índice de uma moralidade particularista. mudou nas mulheres e no modo de olhar para elas
julgamento. Tradução: Daniela Kern e Guilherme Doutorado (Ensaio teórico de qualificação), Instituto no Brasil”. Jornal do Brasil, p. B1-B5.

outubro • novembro • dezembro 2012 113


114 E-pístol@s
A ECONOMIA DA

Cristiane Costa
Jornalista

N
em o petróleo, nem a água, nem mesmo ele- queda de seu preço e ao aumento do número de prestações
mentos tão difíceis de serem encontrados na oferecido pelo mercado de eletroeletrônicos.
natureza como o nióbio. O tempo está se tor- Três historiadores do livro, da imprensa, das técnicas
nando o artigo mais raro e valioso para uma de leitura e das bibliotecas nos guiam nesse labirinto tec-
sociedade acelerada na qual as opções de distração se mul- nológico, que vai das inscrições em pedra e argila, passan-
tiplicam vertiginosamente, na exata proporção em que as do pelos rolos de pergaminho e códices manuscritos, até
horas vagas parecem desaparecer. Diante da abundância de chegar ao livro impresso tal qual o conhecemos hoje. Roger
informação, o livro precisa se reinventar para competir di- Chartier, Robert Darton e Umberto Eco foram pioneiros ao
retamente com a internet, as mídias sociais, os aplicativos e traçar um panorama das mudanças que o conceito de livro
os games. Sob este ângulo, a concorrência não é mais com vem sofrendo ao longo dos séculos.
outros editores, mas com toda a indústria de entretenimen- Apocalípticos ou integrados, para eles, não há dúvida:
to, incluindo aí o cinema, a televisão e as novas mídias que vive-se hoje uma revolução nas formas de produzir, trans-
vierem a ser criadas no futuro. mitir e armazenar informação. Uma revolução que torna
Por isso, em vez de lamentar e especular sobre um su- incerto o futuro do livro e das livrarias, questiona a noção
posto fim do livro impresso, devemos nos preparar para vi- de autoria, abala as bases da indústria editorial e promete
ver a nova realidade dos dispositivos eletrônicos de leitura. mudar completamente a forma com que o leitor se relacio-
Mesmo em países como o Brasil, em que a exclusão digi- na com os livros. A ponto de ser possível questionar se no
tal é uma realidade econômica, os jovens buscam cada vez futuro ainda vamos usar a palavra livro para nos referir-
mais formas de burlar a falta de um computador pessoal e mos, indiferenciadamente, tanto aos conteúdos impressos
do acesso à internet, apelando para lan houses e netbooks quanto aos digitais.
mais baratos. Smartphones, computadores e tablets têm se Ao explorar as possibilidades narrativas oferecidas pelas
popularizado nas classes mais baixas em direta proporção à tecnologias já na sua concepção, os novos livros, por enquan-

outubro • novembro • dezembro 2012 115


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

to chamados de enhanced books ou enriched books (livros Os pesquisadores hoje se dividem entre enxergar a li-
enriquecidos ou turbinados),1 distinguem-se das versões di- teratura eletrônica como parte integrante da tradição lite-
gitalizadas de obras originalmente escritas para serem pu- rária ou algo capaz de expandir as fronteiras desse campo
blicadas como livros de papel, como a maioria dos e-books a tal ponto que seja preciso repensar se ainda deve ser cha-
vendidos nas livrarias virtuais. mada de literatura.
Nascidos digitais, os novos livros podem prescindir Afinal, cinema e fotografia também são artes nascidas
da leitura linear, integrar-se à internet, misturar palavra, do desenvolvimento de novas tecnologias. E daí geraram
vídeo, foto, som e animação, como os vooks (uma corrup- uma linguagem própria. Seria justo chamá-las de teatro ou
tela de vídeo e book),2 e mesmo literalmente explodir em pintura enriquecidos ou expandidos?
3D nas telas com cenários em realidade aumentada.3 Nesse A própria teoria da literatura seria capaz de se expan-
novo livro, real e virtual não são mais mundos separados. dir para dar conta de experiências com games como My Life
Objetos tridimensionais saltam das páginas para interagir with Master5 ou Façade?6 Obras assim poderiam ser consi-
com movimentos do leitor e cenários reais. A tecnologia que deradas literatura? Como se enquadrariam nos valores que,
mostra que tanto a realidade pode ser aumentada quanto embora tenham se alterado significativamente ao longo dos
a virtualidade diminuída. Tudo é uma questão de grada- séculos, consolidaram-se no que hoje identificamos como
ção, assim como abaixar e aumentar o som da televisão. sistema literário, com seus padrões estéticos, paradigmas
Os novos livros podem ainda ser reescritos por seus lei- de estilo, gêneros, filiações etc.?
tores, em experiências interativas e colaborativas que colo- Novas tecnologias, dispositivos, plataformas, progra-
cam em questão o conceito de autoria e propriedade intelec- mas e aplicativos vêm possibilitando constantemente a
tual. Romances epistolares passam a ser e-pistolares, com criação de novos formatos que algumas vezes incorporam
símbolos de SMS substituindo os travessões. Coordenadas a taxonomia literária tradicional; em outras, a reinventam
geodésicas podem transformar um clássico, como A volta ao e hibridizam, como é o caso das hipernovelas, webnovelas,
mundo em 80 dias, de Julio Verne, numa página de Google blognovelas e wikinovelas7 que fazem parte da Biblioteca
Maps. Com direito à visualização dos cenários descritos, tal Digital Miguel de Cervantes.8 Já a Electronic Literature
como se encontram nos dias de hoje. Ou ainda pegar velhas Organization, outra instituição que se dedica ao levanta-
histórias, como o nascimento de Jesus, e contá-las por meio mento e à catalogação de narrativas digitais, fornece um
das mídias sociais.4 quadro diferente do que seriam os novos gêneros e-literá-
rios em sua página:
Literatura expandida ou outra coisa?
Gradativamente, o livro impresso deixa de ser um mo- • E-books, ficção hipertextual e poesia digital, dentro e
delo absoluto também para o escritor, uma vez que hoje fora da web.
narrativas sem papel, ou até mesmo híbridas, podem se • Poesia animada por Flash e outras plataformas.
utilizar de vários suportes para sua “publicação” (no sen- • Instalações de arte computadorizada que pedem leitura
tido original de “tornar público” e não no do senso co- aos espectadores ou possuem aspectos literários.
mum: imprimir). Mas uma nova tecnologia não garante • Personagens conversáveis, também conhecidos co-
automaticamente o aparecimento de um novo experimen- mo chatbots.
to autoral. Por vezes, ferramentas ficam disponíveis por • Ficção interativa.
muito tempo até que nossa imaginação perceba como de- • Romances que tomam a forma de e-mails, SMS, men-
vem ser usadas. sagens ou blogs.
• Poemas e histórias que são gerados por computador,
1. http://www.youtube.com/watch?v=kdiIaIUTBEc&feature=related.
2. http://vook.com. 5. http://www.halfmeme.com/master.html.
3. http://augmentedrealityoverview.blogspot.com.br/2011/03/living- 6. http://www.interactivestory.net.
-bookmetaio.html. 7. http://bib.cervantesvirtual.com/portal/literaturaelectronica/obras.jsp.
4. http://www.youtube.com/watch?v=vZrf0PbAGSk. 8. http://www.cervantesvirtual.com.

116 E-pístol@s
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tanto os interativos como os baseados em parâmetros pre- gredo de sua atratividade para o público jovem. Esse leitor
viamente estabelecidos. tem o poder de modificar a história de forma colaborativa.
• Escrita colaborativa de projetos que permitem aos lei- Ou explorativa, quando o autor permite ao leitor/jogador
tores contribuir com o texto de uma obra. traçar o próprio trajeto de leitura a partir de fragmentos de
• Performances literárias on-line que desenvolvem no- textos (lexias) hiperlinkados.
vos modos de escrita. Mas se nos games isso funciona muito bem, com cente-
nas de milhares de jogadores conectados no mundo inteiro
Muitos autores de literatura eletrônica estão mapeados em universos paralelos, como os de World of Warcraft,10 a
nessas bibliotecas ou antologias de obras digitais, como The eficácia da hiperficção explorativa ainda está para ser com-
Electronic Literature Collection,9 que teve seu segundo vo- provada em narrativas com pretensões literárias. A ques-
lume lançado recentemente. A nova coleção abriga 63 obras tão é: um coletivo seria capaz de produzir uma voz ficcio-
de países, produzidas com programas que vão do Flash ao nal coerente?
Processing e C++. São trabalhos que incluem categorias E um computador? Nos LGOs (sigla para literatura ge-
emergentes de e-lit, como remixes e mash-ups, geolocaliza- rada por computador), a elaboração dos textos feita por
ção, codework, assim como outras mais tradicionais, como algorítimos pode ser randômica (quando as palavras são
hipertexto e multimídia. embaralhadas ao acaso) ou contar com a participação do
Antigos critérios conceituais e classificatórios, base- leitor/autor. Basta escolher algumas variáveis (um par de
ados na divisão de campos artísticos, mostram-se inca- adjetivos e o nome de uma pessoa) e apertar a tecla enter.
pazes de dar conta das múltiplas possibilidades abertas Em poucos segundos essa espécie de karaokê das letras vai
por essa escrita digital, que não tenta mimetizar o texto gerar um poema a partir de palavras usadas por Clarice Lis-
impresso, mas criar novas estratégias discursivas. E que pector11 ou de um parágrafo de Jorge Amado.12 E até mesmo
pode ser encontrada tanto nas bibliotecas eletrônicas usando o Fabuloso Gerador de Lero-lero,13 um ensaio talvez
quanto no YouTube. tão razoavelmente consistente quanto este.
Entretanto, ser ou não ser literatura pode ser uma ques- Parece uma grande brincadeira, mas há toda uma teo-
tão irrelevante no novo contexto. Dentro da perspectiva de ria por trás da escrita generativa. A partir de banco de da-
economia da atenção, não se deve buscar o que haveria de dos e algorítimos que mapeiam palavras mais usadas e es-
valor literário em videogames, por exemplo, mas quais as tilos literários, cria-se um diálogo entre linguagens verbais
estratégias usadas por esses representantes contemporâne- e não verbais.
os da arte narrativa para engajar seus jogadores, chamados
também de interatores. Afinal, se gastamos milhões de reais Assustador?
em programas de incentivo à leitura, nunca se falou em pro- Para os escritores/leitores/programadores/interatores/
grama de incentivo ao game. Indiferente à publicidade ou às jogadores, ou como venham a ser chamados no futuro, ape-
verbas governamentais, esta é a indústria cultural que mais nas mais uma ferramenta a ser explorada na fantástica caixa
cresce no mundo, desbancando até o cinema. Seria possível aberta pelas narrativas em mídia digital.
criar viciados em livros, como existem viciados em games,
em internet, em mídias sociais? 10. http://us.battle.net/wow/en.
11. http://www.telepoesis.net/amorclarice/v2.
O jogo tem sido mais do que uma metáfora para nar- 12. http://www.mundoperfeito.com.br/index.php?option=geratexto.
rativas produzidas para o meio eletrônico. Games possuem 13. http://suicidiovirtual.net/dados/lerolero.html.
três das características que tradicionalmente distinguem
uma obra digital da impressa – o hipertexto, os recursos
multimídia e a interatividade. Eles exigem um leitor ativo A articulista é professora e coordenadora do curso de Jornalismo da
na construção da narrativa. E talvez seja este o principal se- ECO-UFRJ.

9. http://collection.eliterature.org. [email protected]

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Fractais Carol Ferman

Nem em torno dessas figuras, com cuja contemplação me entretenho,


é meu costume tecer qualquer enredo da fantasia. O valor delas está só em serem vistas.
Tudo mais, que lhes acrescentasse, diminui-las-ia,
porque diminuiria, por assim dizer, a sua visibilidade. (F. Pessoa)

Sendo assim, considero aqui um registro diminuto.

118 ENSAIO

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

desnasce e desmorre e desnasce...

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is
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INTELIGÊNCIA

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I N S I G H T

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pa

120 ENSAIO
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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Nos romances dissimulados,

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

de tudo fica um pouco

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122 ENSAIO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

e do fundo da existência sedentária ergue-se uma lembrança nômade.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

EN EL MUNDO AL REVÉS,

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124 ENSAIO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

métodos da lógica servem para resolver problemas secundários.

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Talvez meu sonho da noite passada,


tenha dado prosseguimento ao da noite anterior
e continue na próxima noite com rigor meritório.

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126 ENSAIO
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Imaginação querida,
o que sobretudo amo em ti
é não me perdoares jamais.

[email protected]
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Grindelia de Oliveira Júnior OU

FARMACOPEIA
PEGA, MATA E COME

gustavo maia gomes


economista

128 DROGA?
A morte O Biotônico
espreitava q
uem Fontoura
não tomasse
o escalou Pelé
xarope Grin
delia como vendedor
de Oliveira (c.1958)
Júnior (1935
)

Em 15 de março
de 1942, o Estado
de São Paulo
anunciava em suas
páginas: “foi criado
o Melhoral”

Para quem, como eu, era criança ou adolescente que lhe convém”; “Regulador Xavier, a saúde da mu-
nos anos 1950/60, o que primeiro vem à lembrança, lher. Número 1: excesso; Número 2: escassez”; “Cafias-
quando pensa em remédios daquela época, são nomes: pirina é Bayer e se é Bayer é bom”; “Pílulas de Vida
Melhoral, Gastricol, Enteroviofórmio, Cafiaspirina, do Dr. Ross: pequeninas, mas resolvem”. Isso tudo,
Atroveran, Alka-Seltzer, Mercúrio-Cromo, Bromil, naturalmente, foi antes do Doril, que viria a ser, talvez,
Emulsão de Scott, Óleo de Rícino, Cibalena e, acima o campeão dos slogans. Mas eu já não era criança ou
de todos, Grindelia de Oliveira Júnior. Como iria al- adolescente, quando repetia a paródia: “Tomou Doril?
guém esquecer um xarope desses? Talvez ele nem mais Vá à puta que o pariu.”
existisse, quando nasci. Mas meu pai nunca deixava de – Bem, a frase oficial diferia um pouco desta.
mencioná-lo. Podia ser inócuo – provavelmente, era. Em terceiro lugar, na ordem das coisas relembra-
Isso não lhe abalaria a reputação. Seu segredo estava das, está a certeza de que havia um remédio infalível
no nome. para cada doença. Os anúncios mais audaciosos ti-
Depois, me ocorrem os bordões da propaganda: nham aparecido alguns anos antes, porém o espírito
“Tosse, bronquite, rouquidão? Xarope Brandão, o de- geral ainda não mudara tanto. Uma das peças mais
fensor do pulmão”; “Melhoral, Melhoral, é melhor e incisivas havia sido a do xarope Grindelia de Olivei-
não faz mal”; “Fimatosan, melhor não tem, é o amigo ra Júnior, publicada nos jornais em 1935. Consistia na

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

gravura (reproduzida acima) de um homem tossin- rampo e a escarlatina encontrem nos olhos uma porta
do em sua poltrona, assistido pela mulher e o filho. aberta”. (1947)1
Asma? Coqueluche? Tuberculose? Talvez, sim, pois o Nunca tomei o Tayuyá, nem o Licor de Cacau Xa-
espectro da morte se faz presente, em segundo plano, vier. Do Gastricol, pude comprovar a eficácia contra a
pairando na sala. Todos estão preocupados, menos o má digestão – de enjoos marítimos ou devidos à gra-
anunciante. Aquilo, para ele, é fichinha: videz entendo pouco. Quanto ao colírio Moura Brasil,
devia ser, à época, a mesma água de hoje, mas o expe-
Isto não é nada. Absolutamente nada, porque não há rimentei, sim. Provavelmente por isso, jamais a gripe,
tosse, seja ela asmática, coqueluche seca ou com ex- o sarampo e a escarlatina encontraram em meus olhos
pectoração que resista aos efeitos das primeiras co- uma porta aberta para entrar.
lheradas do Grindelia de Oliveira Júnior. As donas
de casa sabem disso e sempre têm à mão o famoso ***
Grindelia de Oliveira Júnior, um remédio que não
falha. (1935) Neste texto, faço uma viagem sentimental à farma-
copeia brasileira do século passado, especialmente, os
O texto não afirma ser o xarope capaz de vencer a anos entre 1920 e 1960. É uma viagem, parcialmente,
tuberculose, porém a figura da morte rondando o lugar inspirada em minhas recordações dos remédios que eu
deixava clara a mensagem: aquela tosse podia ser coisa tomava ou ouvia falar, quando criança e adolescente –
ruim. Não para quem tomasse Grindelia de Oliveira ou seja, aí pelos anos 1950 e 1960 – e, principalmente,
Júnior. Havia muitos outros remédios que se procla- guiada pelos maravilhosos registros que pude encon-
mavam miraculosos, nos anos imediatamente ante- trar a respeito na rede mundial de computadores. Fa-
riores à minha infância. Eles continuavam a ser anun- larei, principalmente, da propaganda, a comunicação
ciados e vendidos, nas décadas de 1950 e 1960, mas a estabelecida, via anúncios em jornais e revistas, entre os
sua propaganda já era menos presunçosa. Dou alguns fabricantes de remédios e seus potenciais compradores.
exemplos bem antigos: Mas não apenas dela: também do significado subjetivo
• O Gastricol curava “cólicas, empachamento, falta que os remédios tinham ou têm para outras pessoas,
de ar, falta de apetite, enjoo do mar, enjoo das senhoras que escreveram ou estão escrevendo sobre eles.
grávidas, palpitações, enxaquecas, tonturas, vômitos, Uma última coisa, neste fim do começo: como
prisão de ventre, gases etc. etc.” (1917) sempre acontece com os fenômenos sociais, nenhuma
• O Tayuyá de São João da Barra resolvia tudo e história disso ou daquilo se contém em si mesma. Os
mais alguma coisa: “sífilis; úlceras; feridas; dores; im- remédios – quais eram eles; que qualidades tinham ou
pingens; reumatismo articular, muscular e cerebral; diziam ter; como eram anunciados, vendidos e com-
artritismo; moléstias da pele, darthros (sic), eczemas,
erupções.” (1923)
1. Fontes: Gastricol: Diário do Povo (6/7/1917), em http://memoria.
• O Licor de Cacau Xavier era “o meio seguro e bn.br/DocReader/cache/2587408850135/I0000675-06(01206x01806).
infalível para combater as lombrigas dos seus filhos. jpg; Tayuyá: O Malho, (1923), no Blog de Iba Mendes, http://www.
ibamendes.com/2012_08_01_archive.html; Licor de Cacau Xavier:
Além de ser um lombrigueiro gostoso, dispensa dieta e
revista A Cigarra (abril de 1942), Arquivo Público do Estado de
pode ser tomado em qualquer mês ou lua”. (1942) São Paulo, https://www.facebook.com/photo.php?fbid=44271488576
• O colírio Moura Brasil fazia “o milagre de trans- 7359&set=a.182256991813151.41635.182206948484822&type=1&theater;
Colírio Moura Brasil: O Estado de São Paulo (6/11/1947), em http://
formar os olhos irritados e vermelhos em olhos claros
blogs.estadao.com.br/reclames-do-estadao/files/2012/07/1947.11.6-
e belos, com a vantagem de evitar que a gripe, o sa- -col%C3%ADrio-moura-brasil-luz-ofuscante-praia.jpg.

130 DROGA?
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

prados; o que as pessoas pensavam deles – faziam parte nos informa um “reclame” publicado em 1924 e re-
de um universo mais amplo. Portanto, nossa viagem produzido abaixo, à esquerda. O texto deste anún-
sentimental à farmacopeia brasileira nos anos 1920/60 cio é um verdadeiro documento literário, escrito de
não deixará de percorrer, também, os caminhos mais modo a transmitir emoção e comunicar uma impor-
amplos de nossa evolução como povo. tante novidade: “a dor física é hoje absolutamente
dominável.”
CAFIASPIRINA É BAYER, E SE É BAYER, É BOM
Três medicamentos contra a dor e os resfriados ti- O HOMEM É UM JOGUETE que passa de mão em
veram proeminência no Brasil da primeira metade do mão, pelo acidentado caminho da existência. Há mãos
século XX: a Cafiaspirina e a Instantina, da Bayer; e carinhosas, há mãos sem misericórdia. A da alegria hoje
o Melhoral, da Sidney Ross. As peças publicitárias do acaricia-o, fá-lo sorrir e solta-o amanhã; a da dor segura-
primeiro deles são especialmente interessantes, como -o logo a seguir, fá-lo chorar e do mesmo modo aban-
tento mostrar nesta seção.2 dona-o. A mão do triunfo eleva-o; a da falência abate-o.
A Cafiaspirina foi licenciada pela Diretoria Geral Mas o homem, apesar de insignificante em face do des-
de Saúde Pública em 7 de outubro de 1916, segundo tino, aprendeu a defender-se de certos assaltos contra os
quais ainda ontem se sentia impotente. Assim, por exem-
2. A liderança do Melhoral, Cafiaspirina e Instantina no mercado
de analgésicos (em 1942) é documentada em Tania Quintaneiro, plo, a dor física é hoje absolutamente dominável graças a
“O mercado farmacêutico brasileiro e o esforço de guerra norte- CAFIASPIRINA, o admirável analgésico moderno que
-americano”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, nO 29, 2002, p.
154. (Em http://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source
faz desaparecer em poucos momentos as dores de cabe-
=web&cd=1&ved=0CCQQFjAA&url=https%3A%2F%2F2.zoppoz.workers.dev%3A443%2Fhttp%2Fbibliotecadigit ça, garganta e ouvidos, as nevralgias, o mal-estar causado
al.fgv.br%2Fojs%2Findex.php%2Freh%2Farticle%2Fdownload%2F2155 por excessos alcoólicos, os resfriados e que nunca afeta o
%2F1294&ei=WT1vUPmFPJKY9QTLjIDgDw&usg=AFQjCNE_nE-
gO9XaPxfhvS5u6-8lMNV6exQ&sig2=G3sg9KclLHCyMLftt1ICSA) coração. (1924)

Sem Cafiaspirina,
“o homem é
um joguete que
passa de mão
em mão”, dizia a
Bayer, em 1924

“Aqui tê
m os
senhores
a tia
Mariquin
has”
(provave
lmente,
década d
e 1920)

outubro • novembro • dezembro 2012 131


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Se em 1924 o homem era um joguete, um ano de- mente, o resultado não satisfazia a ânsia de fazer o bem
pois a mulher já parecia mais esclarecida, no anúncio com que tia Mariquinhas veio ao mundo. Mas a experi-
“Que Prodigiosa Transformação!” acima, à direita. A ência foi-lhe ensinando que o mais simples e eficaz que
Cafiaspirina, naturalmente, fazia toda a diferença en- existe é a CAFIASPIRINA.
tre o “que martírio!” e o “que alívio!”. Ou seja: se não E agora, quando há em casa uma dor de cabeça, de den-
aprenderam, ainda, então aprendam, caras senhoras: tes ou de ouvido, uma enxaqueca ou uma nevralgia, com
vale a pena entrar na droga. que satisfação ela salta com uma dose de Cafiaspirina e
Em algum outro lugar, provavelmente, na mes- vê em poucos minutos aliviar-se o sofrimento do ente
ma década de 1920, a Bayer voltava a doutrinar os querido! (c. 1920)
potenciais clientes, dessa vez, decretando a ineficácia
dos velhos “unguentos e cozimentos de ervas” e, em Com a tia Mariquinhas de lição aprendida, o labo-
contrapartida, enaltecendo as virtudes de seu próprio ratório perguntava (em 1935) a um grupo de três foliões
produto. No primeiro anúncio abaixo, uma menina se cada um deles “tem se divertido muito no carnaval”.
moderna, conhecedora dos poderes maravilhosos da O que vinha depois, no texto, era previsível:
Cafiaspirina, apresenta sua tia Mariquinhas (“é o anjo
da casa”, diz Stellinha). Aproveite o mais possível esses dias felizes, porque pas-
Pelo visto, a Mariquinhas é meio burra, mas ela sam depressa e só voltam daqui a um ano. Se amanhecer
parece ter captado a mensagem. cansado, com dor de cabeça, lembre-se de que CAFIAS-
PIRINA é excelente contra esse horrível abatimento que
Antigamente a tia Mariquinhas, para qualquer dor, acu- invade o corpo e o espírito no dia seguinte a uma noite
dia logo com unguentos e cozimentos de ervas; natural- de farra. (1935)

Em 1935, havia
o que fazer “no
dia seguinte a
uma noite de
farra”: tomar
Cafiaspirina

Em 1942
, com
o produto

conhecid
o,
começam
a sumir
os longo
s textos

132 DROGA?
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

1950: Mulher
elegante, a
Cafiaspirina e o
novo Brasil

Cafiaspirina no
quarto centenário
do Rio de Janeiro,
1965: associação
entre o produto e
uma festa cívica

otivos
“Só tenho tido m
o
de satisfação com
do Bi otôn ico”,
emprego
, um ce rto
dizia, em 1938
rreto
Dr. I Pereira Ba

A partir de 1942, os anúncios de Cafiaspirina aban- pirina foi relançada em 2005 (portanto, depois de 20
donam o modelo dos textos edificantes, destinados a anos ausente do mercado), porque “a Bayer, que cons-
doutrinar o povo sobre as virtudes de um medicamento tantemente faz pesquisas junto ao consumidor e à clas-
relativamente novo. Já se tratava, então, de fixar a ima- se médica, constatou a necessidade de oferecer um me-
gem positiva que havia sido construída para o produto, dicamento eficaz no combate à dor de cabeça forte”.3
associando-o, por exemplo, a uma moça bonita, bem
vestida, com ares independentes e apresentada numa BIOTÔNICO FONTOURA: FERRO PARA O SANGUE,
pose de trabalho não doméstico. (Uma secretária, tal- FÓSFORO PARA OS NERVOS
vez, no anúncio de 1942.) Ou a uma mulher elegante, Produto genuinamente brasileiro, o Biotônico
segurando uma pomba da paz, simbolizando (e nele Fontoura foi lançado em 1910. Oitenta e quatro anos
pegando carona) a conjuntura otimista que o Brasil e o depois, uma matéria publicada na principal revista do
mundo viviam, cinco anos depois da Segunda Guerra. país dizia: “O Laboratório Fontoura fechou há uma
Ou às festas do quarto centenário do Rio de Janeiro, ou-
tro momento de júbilo para a cidade e o país, em 1965. 3. “Bayer moderniza embalagens da linha Aspirina”, (29/09/2005),
Comercializada no Brasil de 1916 e 1986, a Cafias- em http://www.febrafar.com.br/index.php?cat_id=5&pag_id=3664

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Antes de tomar o
ra,
Biotônico Fontou
Jeca Tatuzinho
era assim: magro,
te,
desnutrido, doen
à
preguiçoso e afeito
cachaça

lheto
Capa do fo
a
escrito par
o
o Biotônic
com
Fontoura, Depois, fi
cou
uzinho
o Jeca Tat assim: fo
rte, gord
rimeira o,
antes da p saudável
e rico.
dose (194 1) E não só
o Jeca.
Na gravu
ra, até
os porco
s estão
felizes.

década, mas suas marcas Biotônico Fontoura e Detefon Jeca era um homem cheio de vermes, lombrigas,
continuam sendo vendidas até hoje.” 4 amarelão e outras mazelas, que o faziam parecer pre-
Deve haver pouca gente de minha época que desco- guiçoso, avesso ao trabalho, improdutivo. Quando o
nheça aquele remédio ou as aventuras do personagem personagem apareceu, em 1924, ele refletia muito bem
Jeca Tatuzinho, criado por Monteiro Lobato para o uma sociedade cuja grande maioria da população vivia
Almanaque do Biotônico Fontoura. Tratava-se, além e trabalhava na área rural, em condições insalubres. O
de tudo, de um xarope gostoso, qualidade que não de- personagem de Monteiro Lobato denunciava esse esta-
via ser independente dos quase 20% de álcool etílico do de coisas, mas também ensinava noções de higiene
que entravam na sua formulação. (Foi somente em e saneamento e, naturalmente, informava a todos os
2001 que o governo determinou que essa mistura não leitores as propriedades extraordinárias do Biotônico
poderia continuar.) e do vermífugo Ankilostomina Fontoura.
Não obstante ser Monteiro Lobato (hoje persegui- As histórias de Jeca Tatu tinham um final feliz,
do pelos idiotas que tentam instalar o racismo na cultu- pois quem tomava os produtos Fontoura se tornava sa-
ra brasileira) um escritor bastante divulgado na época dio, forte, bem disposto, trabalhador, produtivo, feliz e
de minha infância e adolescência, o primeiro contato rico. Segundo um autor:
que tive com ele foi intermediado pelo Biotônico Fon-
toura, que imprimia e divulgava as historinhas com o Considerada a peça publicitária de maior sucesso na his-
personagem Jeca Tatuzinho (em algumas versões, Jeca tória da propaganda brasileira [o personagem de Mon-
Tatu), criado por Lobato. teiro Lobato inspiraria, no centenário do autor, 1982]
a criação do Prêmio Jeca Tatu. Instituído pela agência
4. Veja, 27/7/1994, pág. 107. CBBA – Castelo Branco e Associados, [o prêmio] repre-

134 DROGA?
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

sentou uma homenagem “à obra-prima da comunicação Outra vez, apareceu um descendente de árabes, nariz avan-
persuasiva de caráter educativo, plenamente enquadrada tajado, cheio de correntes embaraçadas nos pelos do peito:
na missão social agregada ao marketing e à propaganda”. 5
– Doutor, preciso uma receita de Biotônico Fontoura,
que eu tomo desde pequeno, para a minha família trazer
Depois de tudo, o Biotônico Fontoura entrou para na visita.6
o universo cultural popular brasileiro de forma defini-
tiva, e isso é refletido, entre outras coisas, pela grande A “receita” era necessária para que a segurança per-
quantidade de livros em que ele é citado, quase invaria- mitisse a entrada do medicamento no presídio. Como
velmente, de forma carinhosa. não viu nada demais na solicitação, Varela atendeu ao
Alguns exemplos: árabe, após o que pedidos de outros presos se multipli-
caram. O médico desconfiou. Terminou descobrindo
Dráuzio Varela, que passou meses como médico que os detentos misturavam o Biotônico a uma ca-
voluntário no então presídio de Carandiru, em São chaça que eles mesmos, clandestinamente, fabricavam,
Paulo, relata episódios em que os presos lhe pediam produzindo uma droga poderosa.
autorização para receber o Biotônico Fontoura nas vi- Moacyr Scliar também tem algo a dizer sobre o
sitas de seus parentes. remédio:

5. Extraído do blog História no Vestibular, em http://historiano- 6. Dráuzio Varela, Estação Carandiru. Companhia das Letras, São
vest.blogspot.com.br/2010/11/monteiro-lobato-jeca-tatuzinho.html Paulo, 1999, pág. 93
(15/10/2010)

Em 1969, o
Almanaque
do Biotônico
Fontoura atingiu
uma tiragem
total de 80
milhões (Veja,
21/5/1969) Candidata
a
presidente
em 2010,
Marina S
ilva era
tão casta
que, de
bebida alc
oólica, só
conhecia
o Biotôn
Fontoura ico
. (Veja,
28/7/2010
)

outubro • novembro • dezembro 2012 135


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O Biotônico Fontoura – o nome foi dado por Lobato BROMIL: O AMIGO DO PEITO
– era visto pelo público exatamente como isso, um tôni- Bastava haver uma garrafinha daquele remédio em
co vital, um grande antídoto para a tristeza brasileira. E casa que eu a esvaziava em poucos dias, estivesse ou não
funcionava, sim, para os Jecas Tatus. Muitos deles eram com tosse. O também brasileiro xarope Bromil tinha
portadores de ancilostomíase, uma verminose que pode – e tem, pois continua a existir – uma qualidade ines-
provocar grave anemia, tratável pelo ferro do Biotônico.7 quecível: era ainda mais gostoso que o Biotônico Fon-
toura. E mais antigo, também. Seus primeiros anún-
O radialista e homem de televisão Heródoto Bar- cios, com textos escritos por importantes poetas, são
beiro, durante muitos anos âncora da Rádio CBN e da de 1906. Olavo Bilac o chamava de “amigo do peito”.
TV Cultura de São Paulo, contou a seguinte história: Para um expectorante, vinha a calhar.
A ligação entre publicidade e poesia foi uma inven-
Alguém tinha de fazer os serviços mais exóticos na TV ção do gaúcho Felipe Daudt de Oliveira, cujo tio João
Caramelo de Taiaçupeba. As necessidades das produções Daudt Filho fundara o primeiro laboratório produtor
eram as mais imprevisíveis e tinha de haver um respon- de remédios do Brasil, em 1882. Hoje com 130 anos, o
sável por isso. Os pedidos batiam no almoxarifado: um Laboratório Daudt permanece ativo, embora não seja
relógio de ponto, tipo Red bel, uma tevê de válvulas, um mais proprietário da marca Bromil. Esta foi comprada
vidro de Biotônico Fontoura, um par de galochas (...) pela EMS, “a empresa que reinventa o mercado far-
Mané Rodrigues, o nordestino pançudo, chefe do almo- macêutico”, segundo suas próprias palavras, mas não
xarifado, não aguentava mais.8 consegue fazer seu site na internet funcionar direito.
É pena que o Bromil, embora continue na praça,
E, finalmente, o remédio também chegou ao fu- já não associe seu nome a peças publicitárias tão sofis-
tebol: ticadas como as Bromilíadas, uma extensa paródia ao
camoniano Lusíadas. Com 1.102 estrofes e 8.816 versos
Desde que voltou da Itália, Zico não vem dando sorte decassílabos, com estrofação sempre na oitava rima
com os nordestinos. Primeiro, mesmo de penetra, o ala- (estou copiando o blog Almanaque), as Bromilíadas
goano Jacozinho roubou a festa em que o Galinho voltou foram escritas por Bastos Tigre, o mesmo autor do
a vestir a camisa rubro-negra. No domingo, outro craque slogan “Se é Bayer é bom”, e fizeram grande sucesso.
habilidoso, parecendo um Jeca Tatu ainda não recupera- Começavam assim:
do pelo Biotônico Fontoura, mostrou que a temporada
de surpresas deste ano está apenas no começo. 9 Os homens de pulmões martirizados
Que, de uma simples tosse renitente,
Imaginem só o que teria acontecido com Jacozinho Por contínuos acessos torturados
e seu colega Craque Habilidoso se eles tivessem tomado Passaram inda além da febre ardente;
o Biotônico Fontoura. Teriam ofuscado Zico até hoje. Em perigos de vida atormentados,
Mais de quanto é capaz um pobre doente,
Entre vários remédios encontraram,
7. Moacyr Scliar, Saturno nos Trópicos: A melancolia Européia chega
ao Brasil. São Paulo Companhia das Letras, 2003. Pág. 231 O Bromil que eles tanto sublimaram10

8. Herodoto Barbeiro, Fora do ar: Histórias dos bastidores do rádio e


da televisão contadas pelo âncora da CBN e da TV Cultura, Ediouro,
São Paulo, 2007, pág. 123
10. Blog Almanaque, Bromil, xarope e poesia, em http://almanaque.
9. Revista Placar 26/7/1985, pág. 16 blog.br/2010/05/bromil-xarope-e-poesia/ (maio 2010)

136 DROGA?
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Uma carta de
Olavo Bilac
Nada pior do que
virou peça de
tosse em serenata
, propaganda
só porque você
do xarope
se esqueceu de
tomar Bromil

Bastos Tigre,
poeta
e autor do slog
an da
Bayer, escreveu
uma
paródia dos Lu
síadas
para promover
o
xarope Bromil

E continuavam desse modo: Bromilíadas iam sendo publicadas, o Biotônico Fon-


toura tinha Monteiro Lobato dando vida à sua princi-
E também as memórias gloriosas pal peça publicitária. Nem precisaria dizer: no Brasil, já
Dos doutores que o foram receitando, não se fazem anúncios de remédios como antigamente.
Com fé no seu império e milagrosas Bromilíadas à parte, também havia espaço para
Curas foram nos clientes operando versos menos nobres, na propaganda do Bromil. Um
E os que o Bromil por formas misteriosas seresteiro engasgado, por exemplo, como o da ilustra-
Vive da lei da morte libertando, ção acima (à direita), podia ouvir sua musa declinar,
Cantando espalharei por toda parte compreensiva:
Se a tanto me ajudar engenho e arte
... Falta-lhe a voz, de repente!
Para somente terminar muitas e muitas e muitas E ela, vendo-o ansioso e rouco
estrofes adiante. Reconforta-o, sorridente:
Se a tanto me ajudar engenho e arte, recordarei Não te aflijas por tão pouco
uma coisa ao leitor: quase ao mesmo tempo que as Deite Bromil à garganta
E vai ver que bem que canta

outubro • novembro • dezembro 2012 137


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

e seu
Não importava qu
lmão
problema com pu
se
e garganta chegas
prov ocar
ao ponto de
ico s,
furacões domést
de
como neste anúncio
omil
1924: o xarope Br
daria conta de le

Passada a fase
poética, o Bromil
mostrava o que
era bom pra tosse
(O Estado de São
Paulo, 1938)

De qualquer modo, nem só de poetas e poemas tusões – e como afrodisíaco, relata Hitoshi Nomura.
viviam os xaropes brasileiros. Para quem não fosse E continua: “Tão largo era seu uso que deu origem a
sensível à sutileza, havia as mensagens mais diretas: uma fórmula industrializada de fortificante – o Ca-
tosses que provocavam verdadeiros furacões em torno pivarol.” Até fins da década de 1990, o remédio ain-
da pessoa adoentada; surras bromélicas aplicadas em da existia (parece que ainda existe, mas não pude en-
crianças travessas, que apanhavam suspirando o nome contrar evidências disso), embora “o óleo de capivara
“Bromil”. figur[e], hoje, em ínfima percentagem, dada a dizima-
Quem sabe essa estratégia mais agressiva refletisse ção da espécie”. 11
o sentimento do Laboratório Daudt de que a propa- Na verdade, com o passar do tempo, muito mais
ganda excessivamente erudita dos Olavo Bilac e Bas- importante do que o tônico passou a ser o Almana-
tos Tigre talvez não estivesse impulsionando as vendas que Capivarol, publicado anualmente, a partir de 1919,
tanto quanto seria desejável. Imagino que, um dia, lá para promover o remédio. O mais recente que conheço
pelos idos de 1920 ou 1930, os diretores da empresa foi publicado em 1979; na internet, há menções a uma
tenham se reunido e chegado à conclusão de que iria edição de 1980, mas isso parece informação falsa. No
quebrar se continuassem a vender seu xarope somente Almanaque (a capa da de 1949 é reproduzida abaixo, à
para intelectuais parnasianos. esquerda), sempre se podia encontravam as peças pu-
– Esqueçam Olavo Bilac e convoquem o Reginal- blicitárias do remédio.
do Rossi, deve ter dito um deles, antecipando o futuro. O Capivarol usava e abusava de depoimentos de
pessoas que se diziam beneficiárias de seus poderes ex-
CAPIVAROL: O REMÉDIO NEM TEVE TANTA IMPORTÂNCIA. traordinários. Dois desses depoimentos (registrados
MAS O ALMANAQUE...
Lá atrás, bem lá atrás, consumia-se o óleo de capi- 11. NOMURA, Hitoshi. Os animais no folclore. Mossoró: Fundação
vara como remédio contra fraqueza, reumatismo, con- Vingt-un Rosado, 1996, p. 44.

138 DROGA?
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

nos anúncios abaixo), entre muitos outros, merecem A mãe da menina do anúncio à direita também
ser relembrados. O homem do cartaz ao centro, por entregou duas fotografias ao editor do Almanaque Ca-
exemplo, tinha o seguinte a dizer: pivarol (a estratégia publicitária do “antes e depois”
era usada por quase todos os remédios; como já vimos,
Com grande satisfação e muito grato, ofereço-lhe a para o Biotônico Fontoura e, com o respaldo de Olavo
minha fotografia, antes e depois de usar o CAPIVA- Bilac, também o xarope Bromil). Eis o depoimento da
ROL, comprovando a cura que tive com esse milagro- senhora, em 1942:
so remédio. Há 10 anos que sofria de uma bronquite
crônica, muitas dores no peito, nas costas e nas pernas, Minha filhinha Norma, hoje com 3 anos de idade, aos
falta de apetite, cada vez mais magro e já desanima- 2 anos estava tão fraca que, além de não andar, os seus
do da vida. Tomei tantos remédios e nada de melho- movimentos eram fraquíssimos e, tendo usado quatro
ra. (...) Hoje, graças a Deus e ao CAPIVAROL estou vidros do Capivarol, hoje se acha forte, já anda e possui
completamente curado. Pesava 50 quilos e estou agora maior força nas juntas. Tenho também outra filhinha,
pesando 72 quilos, tendo engordado 22 quilos em cinco Ruth, com 6 anos que, a exemplo de sua irmã, tomou
meses. Os amigos se admiram de minha cura, e eu só dois vidros desse preparado, obtendo ótimo resultado
digo TOME CAPIVAROL! (Pedro Bachega, Franca, na cor, na força e na disposição para alimentar-se, assim
São Paulo, 23/3/1925) como na alegria de brincar e saltar nos jardins.12

O Almanaque Os longos
Capivarol de textos sempre
1949 apresentava se referiam
uma bela mulher a curas
desenhada em milagrosas
sua capa (1942)

O recurso aos
depoimentos apoiados
em fotografias de “antes

e “depois do Capivarol”
era comum na
propaganda do produto
(1925)

outubro • novembro • dezembro 2012 139


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Com frequência, a propaganda incluía a palavra de Vomitaro uma lombriga


médicos, sempre atestando que Capivarol era mesmo Do tamanho dum farol.
a salvação para fraqueza, reumatismo e contusões. O Tomaro Capivarol,
medicamento também se incorporou à cultura popu- Diz a tradição antiga13
lar, como o comprovam esses versos de Zé Limeira, o
poeta do absurdo: O Almanaque Capivarol era uma espécie de Papai
Sabe Tudo, muito consultado pelos intelectuais aman-
Minha mãe era católica tes do verniz. Virou sinônimo de conhecimento enci-
E meu pai era católico. clopédico, mas superficial. Ou falso.
Ele romano apostólico.
Ela romana apostólica. ELIXIR SANATIVO, PRESENÇA NOS ESTÁDIOS
Tivero um dia uma cólica “O que há em comum entre a General Electric, a
Que chamam dor de barriga, gigante americana que fatura 100 bilhões de dólares
(...), e o Laboratório Pernambucano Ltda., o Laperli,
modesta indústria do Recife que fatura 2,5 milhões de
12. A foto do anúncio está reproduzida em MAGALHÃES, Maria das
Graças S.; GOMES, Mario Luiz; COSTA, Silvana G. A. da. Saúde e reais produzindo remédios à base de plantas medici-
alegria: Uma releitura dos depoimentos dos almanaques de farmácia,
s/d. Em http://alb.com.br/arquivo-morto/edicoes_anteriores/anais17/ 13. TEJO, Orlando. Zé Limeira, poeta do absurdo. Universitária,
txtcompletos/sem12/COLE_935.pdf (seção “Saúde e alegria”). 2000.

Originário de
Limoeiro, PE, o
(Elixir) Sanativo
está no mercado
desde 1888. É,
provavelmente, Seria o segred
o daquele tim
o mais antigo Sanativo, visíve e a propaganda
l lá no fundo? do Elixir
medicamento estádio dos Afli 24/4/1949. Jogo
no
tos, Recife, en
em uso contínuo o primeiro cam tre Náutico e
Fl am engo,
peão pernambu
no Brasil (camisa listrad cano. Na foto
a, disputando aparece
Souto da Cun a bola) o gran
ha, que, muito de Ivanildo
pessoalmente. depois, eu conh
O placar deu eci
zero; com seis N áutico, 11; Flam
gols de Ivanild engo,
o.

140 DROGA?
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

nais do Nordeste?”, perguntava Jomar Morais, da re- ta em 1888 por João Gabriel Firmino de Figueiredo,
vista Exame, em 12 de janeiro de 2000. que venceu o tempo e se mantém firme no mercado.
Ele mesmo responde (abrevio um pouco): “Há mais de um século, o remédio é usado por milha-
res de pessoas para estancar sangramentos, [ajudar na]
Aparentemente, nada. Mas as duas empresas fazem parte extração de dentes, e curar úlcera e estomatites, entre
de um mesmo e seleto clube internacional: o das orga- outras doenças.” 15
nizações cujas marcas atravessaram o século XX. A saga Dele eu ouvia muito falar, sem jamais ter precisado
da GE todos conhecem. Coube, porém, a um certo Eli- experimentá-lo.
xir Sanativo, produto fitoterápico concebido há mais de
um século por um curandeiro de Limoeiro, no interior EMULSÃO DE SCOTT E O HOMEM-BACALHAU
de Pernambuco, inscrever o Laperli entre os donos das Nunca tomei a Emulsão de Scott, mas uma das
marcas mais longevas do planeta.14 lembranças mais marcantes que tenho dos remédios de
minha infância e adolescência está diretamente associa-
O Elixir Sanativo é uma mistura de ervas medici- da a ela: a figura do pescador encurvado carregando
nais (aroeira, angico, mandacaru e camupu), descober- nas costas um peixe maior do que ele mesmo. Impos-

14. MORAIS, Jomar. “Elixir da vida longa”. Em http://exame.abril. 15. “Curando diversos males”. Enciclopédia Nordeste. Em http://
com.br/revista-exame/edicoes/0705/noticias/elixir-da-vida-longa- onordeste.com/onordeste/enciclopediaNordeste/index.php?titulo=El
-m0048478 (12/1/2000). ixir+Sanativo&ltr=e&id_perso=2698.

Lá estavam o hom
as necessitam em e
“Pessoas pálid o inevitável bacalh
au,
Scott”. Ou
da Emulsão de numa gravura sem
lidas diante
elas estariam pá data conhecida, m
as,
tomá-lo?
da iminência de possivelmente, pu
blicada
São Paulo,
(O Estado de na década de 1920
11/10/1913)

Na charge humor
ística,
cuja fonte origina
l não
pôde ser identifica
da,
“Emulsão de Scot
t” virou
“Emoção do Chico
te”, o
tônico do pobre.
Postada
no Blog do Iba M
endes
em julho de 2007
,a
gravura é de 1916

outubro • novembro • dezembro 2012 141


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Uma peça de
propaganda da
Emulsão de Scott
em espanhol...

E a sua
reinterpre
tação pelo
cartunista
Ique:
em meio
à crise do
Senado, S
arney vir
bacalhau a
; “hígado
bacalao” d e
muda pa
“hígado ra
de pueblo
o prédio ”e
do Cong
Naciona resso
l substitu
a paisage i
m nórdic
(2/7/2009 a.
)

sível de ser esquecido, o cartaz estava nas portas de to- de alguns não amigos, gente que não conheço, mas que
das as farmácias, às vezes, mostrando o homem – e, o Google encontrou na rede mundial de computadores.
portanto, também o peixe – em tamanho natural. A Um deles é Roberto Bahy, radialista em Canoas,
Wikipedia diz que a Emulsão de Scott “é um tradicio- Rio Grande do Sul:
nal medicamento à base de óleo de fígado de bacalhau,
notável pelo sabor acentuado, que muitos consideram Um dos medicamentos populares mais antigos do mun-
desagradável”. do, a Emulsão de Scott vem aterrorizando criancinhas
Essa frase “muitos consideram desagradável” é uma desde 1830, quando o Sr. John Smith engarrafou o fa-
subdeclaração e passa tão longe da verdade quanto di- migerado óleo de fígado de bacalhau. Uma coisa tão
zer que Eike Batista ganha o salário mínimo. Pois não ruim só pode continuar no mercado por ter realmente
são “muitos”, são todos; e nem é “desagradável”, é in- algum benefício para a saúde. [De fato, ele] contém mui-
deglutível. Não sei isso por experiência própria, pois, ta vitamina A e D, cálcio, fósforo e Ômega 3. As mães
como disse, nunca fui obrigado a ingerir aquilo lá. Nem acreditam que ela [aumenta] a resistência do organismo
foi meu irmão quem me disse (sendo quatro anos mais e fortalece ossos e dentes.16
velho, ele teve probabilidade maior que eu de nascer na
Idade das Trevas), pois ele também não tomou. Foi a 16. Em http://jovemguardasempre.blogspot.com.br/2012/08/emulsao-
unanimidade dos nossos amigos. E vejo que, também, -de-scott.html (10/8/2012).

142 DROGA?
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Outro é Marcos Dhotta, que mantém um blog de Pelo visto, a Emulsión de Lulascott foi suficiente
nome esquisito (“Caríssimas Catrevagens”). Edito um para atenuar os efeitos daquela crise. Mais difícil seria
pouco seu texto. Ele conta que estava em casa de uma encontrar bacalhau em quantidade suficiente para os
amiga quando teve dirceus, genoínos e delúbiois derrubados pelo julga-
mento do mensalão, em outubro de 2012.
uma visão do capeta: um vidro de EMULSÃO DE
SCOTT!!! Lembram? Aquele remédio [que era um] VIKELP OU QUANDO OS MAGROS QUERIAM ENGORDAR
“purgante sinistro”. Daí eu perguntei para ela: o que esta Você pode não saber, mas já houve época em que
coisa está fazendo na sua cozinha? E ela me respondeu: é os magros queriam engordar. A solução para eles, final-
um fortificante que eu estou dando para os meninos, eles mente descoberta na década de 1940, era o Vikelp. Não o
tomam três vezes ao dia. Eu não quis acreditar... Como é conheci e creio que na minha época de infância e adoles-
que uma mãe em pleno século XXI ainda faz um negócio cência ele já tinha seguido o destino dos amigos de Stálin,
desses com os filhos? Ela só pode ser mais uma daquelas ou seja, desaparecer sem deixar rastro. Minha mãe, por
mães torturadoras do século passado... Igual às nossas, exemplo, durante muito tempo a única mulher em nossa
que corriam atrás da gente com uma colher cheinha de casa, tinha medo de ganhar peso, não o contrário.
Emulsão de Scott... 17
– Sou magra de nascença… nunca passarei disto!,
diz a mulher-tábua da esquerda.
Na propaganda oficial, as “pessoas pálidas são pá- – Eu dizia o mesmo antes de usar Vikelp!, respon-
lidas porque não derivam suficiente nutrição do que de a gostosona da direita.
comem”, de onde se seguiria que elas “necessitam de Era outro mundo, não? Mas, cá pra nós, a gostosona
Emulsão de Scott, que é um alimento concentrado é muito mais feminina e bonita que a magrela; a
produtor de sangue rico, forças, carnes e vigor”. Mas cheinha à direita, no segundo anúncio, ganha de dez
será que valia o sacrifício? a zero das esqueléticas que, hoje, passam por beldades,
Mesmo que não valesse, continuava a ser verda- tipo Gisele Bündchen, sempre, e Angelina Jolie, depois
deiro que a figura do homem carregando um bacalhau que endoidou.
maior que ele mesmo foi um grande achado da pro- O texto do anúncio (na próxima página, acima, à
paganda. Uma prova que o desenho está na cabeça de esquerda) é longo, mas merece ser reproduzido aqui. A
todos nós é a charge que o cartunista Ique fez do então parte principal dele, pelo menos:
presidente Lula, em pleno auge da crise política envol-
vendo o Senado, em julho de 2009. Eis uma boa notícia para as pessoas “magras de nas-
O contexto em que a charge de Lula carregando o cença” que, embora bem alimentadas, não conseguem
bacalhau Sarney (na página ao lado, acima) foi produ- aumento de peso, por menor que seja. Foi descoberto
zida está definido nesta citação: um novo método de obter vários quilos de carnes rijas
que cubram as saliências e depressões que tanto enfeiam
Crise no Senado deixa CNJ e CNMP sem conselheiros. as pessoas magras de ambos os sexos, mesmo daquelas
A paralisia do Senado, que há várias semanas tem a crise que durante vários anos tiveram o peso muito abaixo do
na Casa como o principal tema de sua pauta, vem preju- normal. Garante-se um aumento de 1,5 a 3,5 quilos numa
dicando os órgãos de controle administrativo do Poder semana, conquanto não sejam raros os casos de obtenção
Judiciário e do Ministério Público. 18
de 5 a 7 quilos no mesmo espaço de tempo.

17. Marcos Dhotta. Em http://carissimascatrevagens.blogspot.com. 18. Alerta Brasil. Em http://alertabrasil.blogspot.com.br/2009/07/cnj-


br/2009/03/emulsao-de-scott-o-purgante.html (29/3/2009). -e-cnmp-desfalcados-de-conselheiros.html (2/7/ 2009).

outubro • novembro • dezembro 2012 143


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Use Vikelp durante uma semana e veja a diferença. Se imaginária comparação “antes e depois” de alguns de
você não lucrar ao menos 2 quilos, devolveremos o seu seus usuários poderia gerar resultados drásticos, como
dinheiro. (1940)19 os mostrados a seguir (fotos de baixo).
É o caso de dizer: também não vamos exagerar.
Não sei se a propaganda do Vikelp, em algum ou-
tro lugar, advertia para os perigos do uso excessivo da- XAROPE SÃO JOÃO E OUTRAS BARBARIDADES
quele medicamento. Era bom que o fizesse, pois uma Algumas peças publicitárias se destacavam pela sua
agressividade, ou excesso de ênfase. O Xarope São João,
19. O Estado de S. Paulo, 7/4/1940. Em http://blogs.estadao.com.br/
por exemplo, mostrava um homem oprimido por for-
reclames-do-estadao/tag/vikelp. ças ocultas que não lhe deixavam gritar. As Pastilhas

Os magros
de nascença
har
podiam gan
ilos
até sete qu
por semana,
elp
graças a Vik
e
(O Estado d
São Paulo ,
7/4/1940)

Com Vikelp
na mesa, dê
adeus ao seu
complexo d
e
magreza

,
Fiquei assim
depois. (Bem
ram
que me disse
l d e
que esse ta
b o m
Vikelp era
mesmo)

Eu era
assim, antes
de tomar o
Vikelp

144 DROGA?
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

ente, ele O medicamento


Por que, exatam z.
o texto não di Bronchisan prom
queria gritar, e
etia
arece po r qu acabar com o acess
Tampouco escl o
eria que el e de asma com a m
alguém não qu esma
ainda, o que rapidez da tesoura
gritasse. Menos r
João tinha a ve cortando uma fai
o Xarope São xa
. (Revis ta da de pano como a qu
com tudo isso e
/1900) sufocava este hom
Semana, 27/5 em.
(Sem data conhec
ida)

Em 1929, as pesso
as podiam
se curar da molést
ia terrível
como quem toma
uma
pílula. Já que isso
não é mais
possível, ou a med
icina andou
para trás, ou o fab
ricante das
Pastilhas Rinsy m
entia um
bocado. (O Estad
o de São
Paulo, 25/8/1929)

Rinsy ilustravam com a própria imagem do Diabo sua Imagina só o que uma dose de Gardenal não faria a
caracterização das doenças dos rins, que prometiam uma pessoa naquele estado!
combater e derrotar. Bronchisan combatia a asma com
a rapidez de quem corta uma faixa de pano. REMÉDIOS, MERCADO E PROPAGANDA
Bons tempos aqueles em que os remédios podiam Nas primeiras décadas do século passado, alguém
tudo. poderia dizer sobre as três lembranças que tive ao pen-
Tinha mais. Um homem caído ao chão, com tor- sar nos remédios da minha infância e adolescência:
niquetes cravados em seu corpo, tentava alcançar um – Nomes, bordões, poderes miraculosos de cura
vidro de Urodonal, que também devia ser bom para os – de onde veio tudo isso? Nenhuma dessas coisas está
rins; outro, prostrado na poltrona, ponderava, abatido, conosco há muito tempo.
se valia mais a pena suicidar-se ou tomar a Urotropina; Algumas, até estavam. Havia marcas, sim. Vimos,
um terceiro, derrotado por um pileque, sonhava com por exemplo, que uns poucos anúncios apelativos da-
Gardenal. tam do século XIX, como é o caso daquele do homem

outubro • novembro • dezembro 2012 145


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

O homem com
problemas de ácid
o
úrico, em estado
deplorável, tentan
do
alcançar o Urodon
al,
estava, apenas, um
...

pouco melhor do
que este, a quem
só a Urotropina
poderia salvar.

ta cena
Diante des
te,
tão chocan
de
seria o caso
foi o
perguntar:
que a
Gardenal
causou?

impedido de gritar e a quem só o Xarope São João po- artesanalmente produzidos e, nas poucas cidades então
dia socorrer. Em 1906, ou um pouco depois, o Bromil existentes, em manipulações farmacêuticas feitas sob
já fazia propaganda com versos de Bastos Tigre e cartas encomenda. Havia, sim, medicamentos industrializa-
de Olavo Bilac. É difícil dizer se esses remédios eram dos, mas eram raros. Nomes, marcas, bordões, propa-
vendidos em todo o Brasil – quase certamente, não o ganda paga existiam apenas em pequena escala e em
eram –, mas nas maiores cidades, sim, prefigurando o poucos lugares.
mercado nacional. Inventar bordões é, também, uma De qualquer modo, a urbanização já havia come-
prática antiga: “Se é Bayer, é bom” foi criado em 1922. çado, não apenas em São Paulo, em consequência da
Mas tudo isso não passava de ensaios do que es- expansão cafeeira e da industrialização. Aos poucos,
tava por vir, pois, até os anos 1920/1930, o Brasil era a concentração das pessoas nas cidades, longe dos
uma sociedade quase toda rural, cuja prática médica se ambientes onde elas e seus ancestrais haviam sempre
baseava, em larga medida, em remédios doméstica ou vivido, foi pondo em cheque a medicina das receitas

146 DROGA?
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

caseiras ou artesanais, abrindo uma oportunidade à in- se limitar a uma região. Em 1950/60, subperíodo que
dústria farmacêutica que, entretanto, só podia produzir privilegio neste texto, ele já era um mercado nacional.
economicamente se o fizesse em grandes quantidades. Evidência disso é que, dos 53 remédios de que pude me
Em tal ambiente, a propaganda de remédios en- recordar, listados em anexo, somente três (Gastricol,
controu um espaço a preencher e uma função a desem- Elixir Sanativo, Gotas Arthur de Carvalho) eram vendi-
penhar. Para que as drogas industrializadas tivessem dos exclusivamente no Nordeste, sua região de origem.
compradores, as pessoas deviam ser informadas não Outros três (Elixir Paregórico, Extrato Hepático e Óleo
somente que elas existiam, mas que eram, na verdade, de Rícino) tinham características especiais, não sendo,
superiores aos medicamentos antigos. Daí as marcas propriamente, marcas, enquanto os 47 restantes – am-
aparecerem em número cada vez maior; daí também pla maioria, portanto – se difundiam por todo o país.20
o tipo de publicidade feito, por um lado, educativo; Era um mercado nacional que havia sido criado,
por outro, repleto de afirmações duvidosas sobre as majoritariamente, por empresas estrangeiras, cada uma
qualidades dos medicamentos. Os anúncios são longos, delas cuidando de promover suas drogas específicas.
repetem bordões e fazem promessas mil, mas, no pro-
cesso, criam a clientela. 20. Pelas informações que pude obter, o Elixir Paregórico, o Extrato
Nessa mesma linha, a maior escala da produção Hepático e o Óleo de Rícino eram produzidos em várias partes do
Brasil, mas por diferentes empresas, muitas vezes em moldes arte-
permitida pelas modernas unidades fabris possibilitou sanais. Não havia um mercado nacional para cada uma das versões
e exigiu que o mercado de medicamentos deixasse de regionais desses produtos.

“A invenção da
Alka-Seltzer foi uma
tempestade em copo
d’água”, disse Millor
Fernandes. O remédio
já estava no Brasil na
década de 1940

ioformio
O Entero-V a,
quer diarréi
curava qual a-
nas às ág u
das muito fi
a presença
pura. Era um
minha
constante em
zões que nem
casa, por ra
. Terminou
preciso dizer
evido a seus
proibido, d à
rais nocivos
efeitos colate
/1960)
saúde (1950

outubro • novembro • dezembro 2012 147


I N S I G H T INTELIGÊNCIA

Depois da pioneira Glaxo (britânica, 1908), vieram Embora, bem no espírito da época, ainda fosse proi-
a Bayer, alemã, que se estabeleceu no Brasil em 1911 bido falar em peidos e diarreias, ninguém se preocupa-
(onde já tinha um representante desde 1896); a fran- va em verificar, com seriedade, se os remédios podiam
cesa Rhodia (1919), a americana Sidney Ross (1920), as cumprir as promessas que faziam. De qualquer modo,
alemães Merck e Shering (1923), a suíça Roche (1931), a à sombra da inércia oficial, mas buscando reforçar a
Jonhson & Johnson (EUA, 1933), a Ciba (Suíça, 1934) e própria credibilidade, os fabricantes de alguns deles re-
a Abbott (EUA, 1937). De tal modo que corriam a “autoridades médicas” ou a depoimentos de
usuários das drogas (invariavelmente, muito satisfeitos),
no início da década de 1960, pelo menos 95% [da indús- a fim de respaldar as suas apregoadas qualidades.
tria farmacêutica] já se encontra[vam] em mãos estran- Apesar de, pelo lado negativo, a propaganda atri-
geiras. Evidentemente, isso implicaria transformações buir poderes fantasiosos aos remédios, não se pode ne-
nas formas de vender e de anunciar os novos medica- gar que os anúncios desempenharam um papel impor-
mentos – boa parte deles sintéticos – em substituição às tante na “tarefa de implantar novos hábitos de higiene,
substâncias naturais de base vegetal e animal. 21 saúde e beleza”, como assinalam Maria das Graças Ma-
galhães e seus coautores. Segundo ela e eles, os textos e
A formação do mercado de produtos farmacêuti- as imagens dos “reclamistas”, especialmente a partir da
cos e o desenvolvimento da propaganda dos remédios década de 1930,
ocorrem, portanto, simultaneamente. O efetivo contro-
le governamental sobre o conteúdo dos anúncios, con- vão introduzir não só as novas drogas científicas, mas
tudo, somente viria a acontecer com grande atraso. A novos padrões de comportamento, usos e costumes.
primeira tentativa de fazê-lo, em 1931 (Getúlio Vargas/ Em busca de mercado para seus produtos industriais, a
Belisário Penna), foi extremamente tímida, parecendo propaganda dos laboratórios arremete contra o modo
que o governo, com tantos problemas a enfrentar, não de vida passado, sobrepondo-se às práticas artesanais de
considerava os evidentes exageros das promessas de medicina caseira e desqualificando-as.24
cura um assunto suficientemente importante para me-
recer sua atenção.22 No futuro, a atribuição exagerada de propriedades
Ainda, praticamente, sem regulamentação, o seg- miraculosas aos medicamentos viria a ser parcialmente
mento publicitário de medicamentos teve um grande eliminada (em 2/2/1993, na página 58, a Veja noticia-
impulso a partir de 1932, va que “o Ministério da Saúde vai cassar o registro de
produtos farmacêuticos que fazem propaganda enga-
quando as autoridades permitiram a veiculação de anún- nosa”), embora ainda existisse em meados do século
cios [de remédios] em rádio, desde que os radialistas não passado, quando eu era criança e adolescente. Muitas
citassem os considerados ofensivos à população. Propa- das histórias contadas acima exemplificam isso.
gandas de roupas íntimas, remédios para hemorroidas, – Mas... o que é feito da Grindelia de Oliveira Jú-
flatulências, cólicas, por exemplo, estavam banidas.23 nior?

21. Eduardo Bueno e Paula Taitelbaum. Vendendo saúde: A história 24. MAGALHÃES, Maria das Graças S.; GOMES, Mario Luiz; COS-
da propaganda de medicamentos no Brasil (2008), p. 73. Em http:// TA, Silvana G. A. da. Saúde e alegria: Uma releitura dos depoimentos
www.anvisa.gov.br/propaganda/ vendendo_saude.pdf. dos almanaques de farmácia, s/d. Em http://alb.com.br/arquivo-mor-
to/edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem12/COLE_935.pdf.
22. Idem, ibid.
23. ESQUENAZI, Rose. “As bulas da história” (2004). Em http://
ias2.epharmatecnologia.com.br/ sa/sec/newsdtl_dtl?p_informa=4244. [email protected]

148 DROGA?
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Há muitos blogs e outras fontes de informações sobre o IMES/São Caetano do Sul/SP e UNISANTA/Santos/
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A História da Propaganda de Medicamentos no Brasil, Rose Esquenazi, “As bulas da história”, (2004), em
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http://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&sourc
Maria das Graças Sandi Magalhães, Mario Luiz Gomes e=web&cd=1&ved=0CCQQFjAA&url=https%3A%2F%2F2.zoppoz.workers.dev%3A443%2Fhttp%2Fbi
e Silvana Gonçalves Alvim da Costa, “Saúde e Alegria: bliotecadigital.fgv.br%2Fojs%2Findex.php%2Freh%2Fartic
Uma Releitura dos Depoimentos dos Almanaques de le%2Fdownload%2F2155%2F1294&ei=WT1vUPmFPJKY9
Farmácia”, s/d, em http://alb.com.br/arquivo-morto/ QTLjIDgDw&usg=AFQjCNE_nEgO9XaPxfhvS5u6-8lM
edicoes_anteriores/anais17/txtcompletos/sem12/ NV6exQ&sig2=G3sg9KclLHCyMLftt1ICSA
COLE_935.pdfMedicamentos usados no passado (filme),
em http://www.youtube.com/watch?v=ufJscSm8JzY As demais referências são feitas no próprio texto,
geralmente, por meio do link para a página de onde foi
Paula Renata Camargo de Jesus, “Propaganda de colhida a foto ou os elementos para a redação da seção
Medicamentos - pra você ficar legal!”, Universidade específica.

AS MARCAS CITADAS

Cinquenta e três marcas (ou tipos) de remédios foram lembradas como importantes, na época considerada. A maioria, mas
não todas, foi citada no texto. Em ordem alfabética (nas colunas), elas são as seguintes:

Alka Seltzer Emplastro Sabiá Licor de Cacau Xavier Regulador Xavier


Ankilostomina Fontoura Emulsão de Scott Magnésia Bisurada Rhum Creosotado
Antisardina Entero-Viofórmio Melhoral Sal de Frutas Eno
Atroveran Extrato Hepático Mercúrio Cromo Sonrisal
Band-Aid Gardenal Novalgina Tayuyá de São João
Biotônico Fontoura Gastricol da Barra
Nutrogenol Granado
Bromil Gotas Artur de Carvalho Urotropina
Óleo de Rícino
Bronchisan Grindélia de Oliveira Jr. Urudonal
Pastilhas Rinsy
Cafiaspirina Hipoglós Vick Vaporub
Pastilhas Valda
Capivarol Instantina Vigoron
Phimatosan
Cibalena Iodex Vikelp
Pílulas de Vida do Dr. Ross
Colírio Moura Brasil Iofoscal Xarope Brandão
Polvilho Antisséptico
Elixir Paregórico Lavolho Granado Xarope São João

Elixir Sanativo Leite de Magnésia de Phillips Pomada Minancora

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------- E
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I M D
O L E T IA -
B C
V

R E N
R --------
C O
O --------
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150 B.O.
Luis Fernando Silva Pinto Foi uma pena que os nossos principais atores não te-
Historiador e estrategista nham conseguido convencer a nação de que a melhor for-
ma de expandir o PIB e promover a distribuição de renda
corresponde necessariamente (ou muito provavelmente)
a um elenco de ações voltadas para o setor secundário do
país. Penso de forma cada vez mais frequente em reunir
esforços e pessoas com o objetivo de tornar evidente que
uma de nossas prioridades absolutas é a explosão indus-
trial do Brasil. Esse processo deve ligar o país de norte a
sul e de leste a oeste, operando de forma sutil e inteligente
e atraindo investimentos de capital estrangeiro de ponta.
No meu entendimento, trata-se de um desafio inadiável.

Tio
Nesse binômio do “aproveitamento inteligente dos
recursos naturais/desenvolvimento industrial”, algumas
pessoas tiveram papel fundamental. Dentre elas, desta-

Glycon
quem-se as presenças de Glycon de Paiva Teixeira e Mário
Abrantes da Silva Pinto, ambos trabalhando no Departa-
mento Nacional da Produção Mineral, locus no qual se
conduziu a política de Oliver Derby e Euzébio de Andra-
de, com grande competência. Glycon de Paiva – a quem
eu chamava de tio Glycon – exercia presença marcante
Preito à lucidez no serviço do Fomento Geológico, e Mário Abrantes da

geoeconômica Silva Pinto (meu pai), no Laboratório da Produção Mine-


ral (LPM). No mesmo prédio, no mesmo espaço cultural.

N
No DNPM, Glycon de Paiva, Mário da Silva Pinto
e uma série de colaboradores, tais como Álvaro de Paiva
a história geoeconômica Abreu, Henrique C. Alves de Souza, Alexandre Girotto,
e social do Brasil acon- Luciano Jacques de Moraes e Silvio de Froes Abreu, vi-
teceu um movimento de veram momentos excepcionais para o desenvolvimento
notável lucidez que evo- esclarecido de nosso país. Percorreram as regiões mais
luiu, com maior ou me- distantes, cruzaram com índios arredios (como a tribo
nor intensidade, desde o dos Urubus), viveram situações muito próximas com o
início do século XX. Esse bando de Lampião e a maldade de Maria Bonita. Nessas
processo visava ao melhor conhecimento possível das ri- andanças, alfabetizaram pessoas, conheceram regiões que
quezas do nosso solo, ao mesmo tempo em que buscava nunca tinham sido visitadas pelo homem branco e, ao
sistemas de agregação de valor. Ele viria a ter papel de mesmo tempo, conviveram com a saga do minério de
destaque no nosso processo de industrialização. De certa ferro, do carvão, do manganês, do petróleo e de vários
forma, as concepções avançadas daquele grupo corres- outros minerais/minérios de importância capital. Nesse
pondem ao modelo de desenvolvimento adotado pela contexto, conheceram o país e o amaram como poucos.
China, que levou ao seu crescimento explosivo atual. Tenho certeza de que todos eles, ao consultarem as en-

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I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tranhas da Terra, sonhavam com um país industrializa- Tio Glycon


do, competente, com recursos humanos adequados para convocou-me para
fazê-lo acontecer. uma reunião
Para eles, na minha visão, o capital estrangeiro era em sua casa,
unicamente um caminho (além de recursos, é claro) para colocando-me com
33 anos de idade
ambientar tecnologia avançada de forma muito rápida
como presidente
para o nosso território, ao mesmo tempo funcionando
executivo da
como unidades para o preparo de mão de obra sofistica-
Consultec
da. Nessa industrialização, ocorreram e estão ocorrendo
fatos relevantes. Entretanto, essa presença industrial po-
deria ter sido muito mais vigorosa. Em outras palavras, a
China não aconteceu aqui. Mesmo!
Dentre essas pessoas, uma das mais extraordinárias Econômico (BNDE). Juntamente com Jorge Kafuri, An-
foi, com certeza, Glycon de Paiva, cuja biografia mere- tonio Dias Leite, Mário da Silva Pinto e Roberto Campos,
ceria ser aprofundada e detalhada. Seria uma forma de enfatizaria a relevância do desenvolvimento de projetos
se trazer à tona a maneira de pensar de um Brasil chinês, consistentes – econômicos e financeiros –, daí resultan-
que poderia já estar florescendo de forma franca, vigoro- do desdobramentos no campo de engenharia econômica
sa, tão intensa ou mais do que aquela em curso no mundo e estruturação de planos de desenvolvimento regional e
revolucionário de Deng Xiao Ping. Com relação a esse setorial. Em 1954, ele cursara a Escola Superior de Guer-
doutrinador pragmático de invulgar proporção, vale res- ra e, logo após, seria presidente da Associação dos Di-
saltar o seu ditado inesquecível: “Não me importa a cor plomados da Escola Superior de Guerra (ADESG). Em
do gato, o importante é que ele cace o rato.” sequência, participaria de organizações com vistas ao de-
Tio Glycon de Paiva era mineiro de Uberaba. For- senvolvimento empresarial em níveis regional e setorial,
mou-se pela Escola de Minas de Ouro Preto nos anos com forte conteúdo doutrinário, como, por exemplo, o
1920, e, no seu tempo, foi considerado como um de seus Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e a Socie-
mais extraordinários alunos. Vindo para o Rio de Janei- dade Civil Bem-Estar Familiar no Brasil (Bemfam). Por
ro, iria participar do pensatorium do DNPM, instituição último, vale ressaltar a sua participação durante décadas
na qual realizou trabalhos de imensa importância junta- no Conselho Técnico da Confederação Nacional do Co-
mente com Mário Abrantes da Silva Pinto, esse no Labo- mércio (CNC). Nessas oportunidades, publicou um elen-
ratório da Produção Mineral. Tanto no fomento geoló- co significativo de trabalhos.
gico quanto no laboratório, contavam com técnicos de É absolutamente importante reunirmos todas essas
nível internacional. Inúmeros desafios foram enfrentados contribuições sobre Glycon de Paiva, mapeando e refle-
nos planos geológico, mineral, econômico, científico e tindo sobre um material extremamente precioso, porém
tecnológico. Durante duas ou mais décadas, uma parte não divulgado na escala e na ênfases necessárias. Será pre-
significativa do inteligenciamento brasileiro encontrava- ciso reunir muitas pessoas para prestar esse depoimento,
-se na Avenida Pasteur, no Rio. As suas contribuições entre elas seus filhos, Sônia, Glycon e Otávio, e netos –
técnicas poderão ser identificadas nas bibliotecas especia- além de Lindolpho de Carvalho Dias, Paulo Vieira Be­
lizadas no país. lotti, Roberto Saturnino Braga, Antonio Dias Leite, Elie-
Em meados dos anos 1950, tio Glycon iria exercer zer Batista, sua secretária, Maria Helena, Sérgio Jacques
a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento de Moraes, John Milne Albuquerque Forman, entre ou-

152 B.O.
I N S I G H T INTELIGÊNCIA

tros que, direta ou indiretamente, com ele conviveram. É o meu veio seis anos antes! Esse trabalho foi dedicado a
importante assinalar que não restam muitos. Urge agir! pessoas que eu muito prezava, e entre elas estava lá o tio
Quanto à minha pessoa, tenho um relato interessan- Glycon. É claro que, nas longas reuniões que mantivemos
te a efetuar. No período 1973/74, a Consultec, empresa em Ipanema ou no Centro da cidade, conversávamos so-
presidida pelo meu pai, Mário Abrantes da Silva Pinto, bre vários outros temas. Um deles era a ausência de indi-
não recebeu uma quantia relativa ao projeto da Matriz cadores de bem-estar social. Quando olho para esse meu
Energética Brasileira, no valor de US$ 2,5 milhões, apro- livro de quase 30 anos passados, vejo-me também a con-
ximadamente. Esse montante, atualizado para 2012 a uma versar com Glycon de Paiva.

G
taxa líquida de 6% ao ano, significaria um valor acumu-
lado atual da ordem de US$ 18 milhões. A ausência desse ostaria de ver o Brasil pulsando melhor
recebimento provocou imensas repercussões negativas na do que a China em valores quantitativos e
Consultec e ficamos numa situação dificílima, pois o es- qualitativos. Tenho a esperança de ainda
critório contava com quase 100 funcionários à época. No assistir a esse filme real. O tempo passa, a
auge do problema, Mário da Silva Pinto enfartou. Com esperança, jamais! Ninguém me enganou sobre a finitu-
o apoio financeiro do Dr. Blanc e do Dr. Augusto Traja- de da vida, mas estou com Roberto Campos ao afirmar
no de Azevedo Antunes, ele foi levado para Cleveland e que “ficar velho é uma... Fazer o quê?” Nos meus jogos
operado com sucesso. mentais, denomino esse esforço pela industrialização
Naquela época, tio Glycon convocou-me para uma de ponta no país de “Movimento dos iluminados”. Por
reunião em sua casa, colocando-me, com 33 anos de idade, que não enfrentá-lo ou pelo menos lançar as bases (ra-
como presidente executivo da Consultec. Em seguida, tra- pidamente) para sua posterior (ou imediata) explosão?
çou um plano de sobrevivência para a nossa corporação. Modelo chinês já!
A minha equipe principal de trabalho era formada por Muitos dos grandes atores ainda estão presentes (e
três jovens engenheiros, todos praticamente da mesma bem presentes). São eles Eliezer Batista, Antonio Dias
idade – José Antonio Rodrigues, Sérgio Rodrigues e Fer- Leite, João Paulo dos Reis Velloso e “velhas” equipes da
nando Mauro Carvalho. Com competência extraordiná- elite da Vale, da Petrobras, da Consultec, do BNDES, en-
ria, tio Glycon conduziu os destinos da Consultec. tre outras. Julgo que é a hora e a vez de revigorar (ou re-
Lembro-me de algumas conversas que com ele manti- nascer) o “Movimento dos iluminados”. Convocar Jorge
ve. Talvez o mais importante que ele tenha me ensinado é Gerdau, Jorge Paulo Lemann, Marcel Teles, Carlos Alber-
que, quando somos sérios, o impossível não integra o nos- to Sicupira, os “Velhos Leões” de São Paulo (com os den-
so dicionário de vida. E que todos os problemas devem tes ainda tinindo). Do Rio de Janeiro, sairia Eike Batista,
ser enfrentados com calma e bom humor. Desistir jamais, entre outros empresários. Viriam também as equipes de
perseverar sempre! E como ele me disse numa das nossas excelência da Sudene, Sudam, do BNB e do Basa. A partir
últimas conversas: “Honra e dignidade é uma coisa muito daí, seria o momento de reunir todos esses personagens,
própria, que não poder ser comprada nem vendida.” Pen- ordenar, sistematizar e agir.
so que ele tinha a idade que tenho hoje (71 anos) quando A China não poderá ser melhor do que nós. Igual, tal-
me orientou no passado. vez! Como diria alguém: “Vontade, calma e bom humor!”
Em meu primeiro livro, “O social inadiável”, de Chegaremos lá, rapidinho. O povo agradecerá!
1984, criei um indicador de condicionamento social pra-
ticamente idêntico ao IDH, que viria a ser formulado O articulista é professor da Fundação Getulio Vargas
pela Organização das Nações Unidas em 1990. Portanto, [email protected]

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Vasta
camuflagem
ieda magri Escritora

154 CONTO
N
o início era só um olho direito. Quando o olho ímpar tinha lá, mais pro
pontinho preto esquerdo atendia o chamado final do que no alto da folha
que parecia insistir do irmão se dirigindo à de papel pólen bold 90 g/
no ângulo de visão do olho parede, ao ponto, ao bicho, m², o seu pontinho metido e
direito. Ela estava escrevendo nenhum deles estava lá. Ou escorregadio. Se ela pensava
e, subitamente, aparecia no ele era demasiado rápido ou que a linha e o pensamento
batente da porta do escritório havia um descompasso, uma acabavam juntos, não
o tal pontinho preto. Ela lentidão qualquer que perdia demorava para perceber
parava de escrever e olhava a esperteza daquela cor preta que o ponto já tinha descido
para o bichinho presumido, sobre o branco da porta, uma linha e aí cadê fôlego
mas só via a porta. Depois sobre o gelo da parede. Não pra reorganizar a leitura? O
pareceu-lhe que o pontinho demorou muito e o pontinho ponto mais atrapalhava que
preto era, na verdade, uma preto passou a cruzar as ajudava. Saltou da poesia
formiga, e nem parava de páginas dos livros. Quando para a prosa e a confusão foi
escrever, só virava a cabeça era um livro de poesias ficava maior, não conseguia seguir
e não tinha nada no batente bem interessante, ela achava, nenhum enredo, o jogo era
da porta. Outro dia estava a ousadia daquele pontinho outro: caçar o pontinho
sentada no sofá lendo um onde antes não havia um. antes que ele pousasse na
livro de poesias e viu o O poeta não iria gostar, no frase errada. E nas páginas
bichinho correr pela parede livro todo antes só tinha um pares o problema era novo,
da sala. Isso com a ponta do ponto e agora toda página porque o ponto, obtuso, corria

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rápido pra página ímpar sem no movimento circular escondia, ao que tudo indica,
que houvesse tempo de ela de saída pela direita. Ela bem dentro do olho e quando
ler até o fim a página par. começava a estudar um jeito dava o ar de sua graça – sim,
Nisso, soube só a parte par de seguir o ponto de maneira já era muito esperado, agora
da história com personagem tão rápida quanto sua fuga, que ela não lia, não escrevia,
ausente. O ponto, indo quando, numa forçada virada só passava seu tempo
sempre mais à direita, acabou de cabeça, obrigou o ponto esperando a aparição dele –
causando, além da confusão a acelerar seu movimento se mostrava bem no meio das
na linguagem, dos outros, e ambos, cabeça e ponto, costas, na altura, claro, dos
lida em número par, um não conseguiram voltar olhos. Vendo-a nessa posição
pequeno torcicolo causado à posição normal, digo, a incômoda, o poeta se afligiu
pelo movimento sistemático cabeça entre os dois ombros, um pouco. Bem menos do
de virar a cabeça sempre e o ponto, nesse exercício de se que – era de se esperar – ao
toda hora um pouquinho esconder e tornar a aparecer perceber um ponto preto na
mais à direita. E quanto sobre o ombro direito, no primeira página par de seu
mais o pontinho foge, mais batente da porta, na parede livro recém-lançado.
a cabeça vira, um pouco gelo ou sobre a página par
mais e o pescoço não deixa do livro com personagem A articulista é doutora em
a cabeça seguir o ponto, ausente. Na nova posição em literatura brasileira pela UFRJ e
autora dos livros Tinha uma coisa
que, nesse quesito, tem uma que ficaram, ela mantinha a
aqui (7Letras, 2007) e Os olhos do
vantagem: parece não ter cabeça inteiramente sobre touro, com publicação prevista
cabeça e se sentir confortável o ombro direito e ele se para 2013.

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