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LUTO Na Psicanalise

O documento discute a teoria psicanalítica do luto de Freud. Apresenta o luto como um processo com início e fim ligado à integração do objeto perdido no Eu. Quando esse processo é interrompido ou o Eu se identifica com o objeto perdido, temos casos de patologia do luto como a melancolia. A hipótese apresentada é de que existiria um "luto infinito" que eterniza o próprio processo do luto sem necessariamente ser vivido de forma depressiva.
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LUTO Na Psicanalise

O documento discute a teoria psicanalítica do luto de Freud. Apresenta o luto como um processo com início e fim ligado à integração do objeto perdido no Eu. Quando esse processo é interrompido ou o Eu se identifica com o objeto perdido, temos casos de patologia do luto como a melancolia. A hipótese apresentada é de que existiria um "luto infinito" que eterniza o próprio processo do luto sem necessariamente ser vivido de forma depressiva.
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Artigos

TEORIA DO LUTO EM PSICANÁLISE

PSYCHOANALITICAL THEORY OF MOURNING

Christian Ingo Lenz Dunkerr2

RESUMO

Examinando a teoria freudiana do luto, contida em Luto e Melancolia, podemos isolar o luto
como um processo que tem um início e um deslace ligado à integração do objeto perdido no Eu.
Quando este processo se interrompe ou não é propriamente iniciado, ou quando em seu interior
o Eu se identifica com o objeto perdido, temos os casos de patologia do luto nos quais podemos
incluir a melancolia e certos tipos de depressão. Apresentamos a hipótese, extraída da leitura do
texto canônico de Freud, de que existiria uma terceira vicissitude para o luto para além de sua
fixação, interrupção ou conclusão. Trata-se do luto infinito, que nem sempre é vivido como uma
fenomenologia depressiva, mas que consiste na eternização do próprio processo. Para entender
a infinitização do luto deveríamos combinar a perspectiva de integração do objeto perdido no
Eu, subsidiada pela teoria totemista da identificação com a concepção animista de identificação,
no interior da qual o luto é fundamentalmente perda ou dissolução do próprio Eu.

Palavras-chave: Luto. Melancolia. Psicanálise.

ABSTRACT

Examining the Freudian theory of mourning, contained in Mourning and Melancholy, we can isolate
mourning with a process that has a beginning and a turning point linked to the integration of the
lost object in the self. When this process is interrupted or is not properly initiated, or when the self
identifies itself with the lost object, we have cases of mourning in which we may include melancholy
and certain types of depression. We present the hypothesis, extracted from the reading of the
canonical text of Freud, that there would be a third vicissitude for mourning beyond its fixation,
interruption or conclusion. It is the infinite mourning, which is not always lived as a depressive
phenomenology, but which consists in the eternalization of the process itself. To understand the
infinitism of mourning we should combine the perspective of integration of the lost object in the self,
subsidized by the totemist theory of identification with the animistic conception of identification,
within which mourning is fundamentally the loss or dissolution of self.

Keywords: Mourning. Melancholy. Psychoanalysis.

Doutor, Psicanalista, Professor Titular do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da


1

Universidade de São Paulo. São Paulo-SP, Brasil. E-mail: [email protected]


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INTRODUÇÃO

É, de fato, uma grande satisfação para mim estar aqui de novo em Curitiba, onde venho
há muito tempo. É uma cidade curiosa, porque para quem vem de fora, a gente se sente muito
bem acolhido. Come-se bem, fala-se bem, lê-se para valer. Tem uma retidão de engajamento
nos estudos. A gente está sempre sendo bem acolhido, mas eu acho que há um trabalho que
a cidade precisa fazer em relação às suas relações com a Psicanálise.
Entendo que o conceito de escola, do Lacan, que é um experimento social, é uma coisa
que ele, talvez, jamais teria pensado se não tivesse sido expulso, se ele não tivesse que, de
alguma forma, justificar o grupo que trabalhava com ele. Tem algumas coisas que eu acho legais
desse conceito, que não é uma sociedade, não é uma associação, é uma escola. E ela não é uma
escola só de psicanalistas, ela é uma escola, uma stoa, como se dizia na Grécia antiga, no período
helênico. Stoa era um lugar onde as pessoas que estavam viajando, peregrinos, por exemplo,
podiam receber a acolhida, podiam se abrigar e tratar seus ferimentos. E nesse contexto de
se restaurar, havia também um filósofo falando, havia um diálogo que incitava o cuidado de si.
Havia um trabalho, vamos dizer assim, de natureza e inspiração socrática. Então a ideia da escola
é muito potente, porque ela, no fundo, se aplica a contextos. Ela é mais forte em contextos
cosmopolitas, em contextos de alta diversidade social, como nós estamos enfrentando, como
o Brasil está enfrentando. E é uma ideia potente politicamente, porque sugere que é um lugar
em que todos podem se encontrar, analistas e não analistas.Ou seja, o tipo de experiência que
me parece absolutamente fundamental para o Brasil, para um processo, vamos dizer assim,
de reinvenção civilizatória que nós estamos convidados a fazer. Exatamente por isso, certas
cidades onde a Psicanálise me parece tão forte e expressiva, tem a função de fazer as pessoas
se encontrarem para trabalhar, para se questionar, para aprofundar seus estudos, mas também
para viver juntos nessa jornada peregrina, com a qual estamos às voltas.
Uma última observação é que nesse contexto Lacan colocava três desafios regulares, e
para fazer isso, para que a escola aconteça, no sentido forte do termo, da palavra, é preciso que
a cada vez tratar o problema das identificações: o que significaos grupos, o que é uma massa,
uma classe, como as identificações provocam afetos perigosos, como elas são um problema. Elas
são um problema, mas não são um problema para os psicanalistas, elas são um problema para
o laço social em geral, para as instituições e para a vida social. Esse é um primeiro problema, é
um problema de natureza imaginária, o que a gente faz com o fato de que o imaginário ecloda
e não abolimos ele por decreto. O segundo problema é o que a gente faz com o Pai, o que a
gente faz com o Complexo de Édipo, traduzindo, como resolvemos uma questão, por exemplo,
não só psicanalítica, mas filosófica, jurídica, que é a origem da lei, o exercício do poder e a
origem da autoridade, quais são as mediações simbólicas que constituem um sujeito e as
regras que nos permitem reconhecê-lo. Todos os atributos e problemas que a gente vai poder,
então, extrair desse conceito central, tal como o a noção do Complexo de Édipo. Em terceiro
lugar há um conceito que Lacan explorou pouco, mas ocupa lugar decisivo no momento em
que ele está inventando a escola, considerando seus desdobramentos identificatórios e do
Édipo é preciso para cada ideia de escola e cada pólis trate, enfrente e tematize o problema

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da segregação. Não é um assunto de Psicologia Social, não é uma coisa que vem de fora, está lá
na proposição. O laço social é impensável, a gente não consegue se organizar e não consegue
enfrentá-lo se não reconhecermos a prevalência, a persistência, a insistência, do tema da
segregação. Quando ele fala de segregação, ele está pensando em três coisas: a primeira são
os campos de concentração. Lacan viveu a experiência da Segunda Guerra, teve que salvar a
esposa que estava sendo quase aprisionada pelos nazistas. E em segundo lugar, quando ele
fala de segregação, ele está pensando na formação dos mercados comuns europeus, na década
de 60, no início do que veio a ser a União Econômica Europeia. Ele dizia: “isso é um problema.
É uma solução, mas é um problema, porque isso terá efeitos de segregação”, e esses efeitos a
gente tem que enfrentar, pensar, criticar, etc. O terceiro efeito que ele associa com a segregação,
pouco tematizado e pouco conhecido, é o racismo. Ele disse: “o racismo vai piorar”; isso em 60.
“O racismo se tornará um problema para todos nós”. Por quê? Porque a segregação está sendo
mal enfrentada. E a gente, enfim, não consegue, de fato, pôr de pé uma política, uma reforma,
uma economia e um ordenamento jurídico que coloque isso como problema central. Lacan
está dizendo: “a segregação não é um problema para a gente tratar lá nas manifestações, a
segregação é um problema subjetivo”. Tem que ver com o núcleo e o coração, a nossa essência,
vamos dizer assim, o coração do nosso ser, conforme a expressão: Kern unseres wesens.
Ontem eu estava em outra conferência e anunciamos que hoje nós íamos desdobrar
e continuar a questão que foi ali colocada. Mas eu saí pensando que ficou faltando alguma
coisa, sabe? Um sentimento. A falta, não é? Mas fiquei pensando que faltava um caso clínico,
faltava mais experiência. É difícil você trazer o caso e avançar as questões. Faltou um material
mais experiencial. Estava com essa inquietação, pensando: “puxa, amanhã bem que eu podia
apresentar esse caso ou apresentar um outro”, vinhetas também não gosto muito. Estava um
pouco inquieto com essa tarefa e em como resolver isso. E aí quando eu estava assinando os
livros, uma pessoa me perguntou assim: “esse material foi publicado?”. E eu disse: “tem uns
dois, três artigos”, e ela: “então passa para a gente?”. E aí quando ela me fez essa pergunta,
essa demanda, eu me dei conta que são três artigos em inglês. Eu falei: “caramba, venho
estudando isso, entre outras coisas, há uns dois, três anos, e eu não publiquei nada sobre isso
em português”. Mas que coisa espantosa, eu publico bastante, não é muito difícil para mim
isso. E a hora que eu falei isso, imediatamente me dei conta que tinha um potencial motivo
paralelo para essa contingência, que é o fato de essa pesquisa se desenvolver no contexto
do meu próprio processo de luto. Eu perdi minha mãe há três anos. Comecei a viver uma
trajetória difícil, todos aqui que passaram por isso sabem como é longa, como é dolorosa.
Sempre acabamos teorizando e pensando a partir da nossa própria experiência, comecei a
falar sobre o luto e a pensar sobre o luto. Respondi à pessoa que me fez a pergunta, que talvez
tenha a ver com esse contexto, ela disse: “é, tem razão, é a língua materna. Não publicou na
língua materna”. E eu falei: “puxa, o pessoal de Curitiba é afiado. Está bom, eu vou pensar nisso,
amanhã te digo alguma coisa”. Eu estava com essa preocupação de fundo, que precisava trazer
uma coisa mais clínica e a pessoa me faz essa intervenção. E aí eu tenho um sonho. Mas eu
pedi por isso. Agora, realmente, a coisa vai complicar. Eu precisava de um material, não tinha
um e agora eu tenho. Um sonho muito curioso e eu acho que ele tem a ver com a essência do

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que eu queria falar com vocês. Eu estava em um aniversário surpresa da minha avó. Minha avó
também é falecida, há mais tempo. Ia acontecer uma festa surpresa. Então estávamos todos
atrás de um sofá. “Todos” quer dizer que “vai chegando gente”, obviamente é uma alusão às
conferências. Vai chegando gente e de repente estão muitas pessoas, um número incontável
e desproporcional ao fato de que estávamos atrás de um sofá, encolhidos, esperando minha
avó chegar. E aí ela entra na sala, todo mundo se levanta e diz: “Surpresa! Parabéns”. E aí eu
dou um abraço na minha avó. Um abraço que tem um traço que vocês vão ver na clínica,
que não é muito comum, e quando isso acontecer, prestem atenção. São aqueles sonhos que
apresentam pontos hiper-nítidos, hiper-reais, excessivamente coloridos ou que você, às vezes,
até dentro do sonho, diz: “mas isso não é um sonho, isso está acontecendo, isso é real, isso
é realidade”. Temos em Freud dois bons exemplos, um é o sonho da barba dourada do tio
Josef, que ele parece hiper-nítido ao lado de um efeito cômico. E outro é o traço do sonho
da injeção de Irma, o sonho fundador da Psicanálise em que Freud olha para a boca de Irma,
vão aparecendo os cornetos e depois algo sem forma, e isso vai se tornando algo que causa
nele um sentimento, um efeito de hiper-realidade angustiante, vamos chamar assim. Então,
era esse efeito que estava nesse abraço com a minha avó. Sabe aquele abraço que você sente
o perfume, o cheiro, a presença e você diz: “não é possível?”. Tem um elemento de unglauben
em alemão, isso está acontecendo, mas eu não acredito que isso esteja acontecendo. E eu
não acredito que isso esteja acontecendo dada a magnitude de realidade e do sentimento
de realidade que você tem naquele encontro. E aí aparece meu avô, que era um cara muito
bonachão, muito querido e muito brincalhão... Meu avô apareceu no sonho, pegava a minha
avó e brincava: “escuta, eu não gostei ”, o que causa um impacto edipiano dentro do sonho. Eu,
abraçando a minha avó e ele dizendo: “eu não gostei”. Dando uma risada, assim, mas de um
jeito: “alô, já deu, está bom? Vai para lá. Solta”. E aí termina o sonho.
Aspectos que eu quero sintetizar da conversa que vai se seguir, para vocês se deterem a
aspectos associativos: em vida, jamais dei um abraço desse tipo em minha avó. Jamais. Gostava
muito da minha avó, tinha uma relação próxima e tal. Minha avó era uma alemã que dava aulas
de alemão na escola em que estudei. Então era uma coisa impossível, se você ia falar alemão,
ela te corrigia o tempo todo: “não, mude o advérbio”. É uma língua infernal. Para ela que passou
pela guerra da Alemanha, e tinha uma vida muito dura, o erro não era qualquer coisa. Uma
pessoa que jamais seria como a do sonho. Não combina, não é? Não era ela. Ou era aquilo que
faltou para que, talvez, aquela relação entre neto e avó ter sido diferente. Mas por outro lado,
aquele tipo de proximidade, de abraço, de carinho, era muito típico da relação com a minha
mãe. Minha mãe teria dado um abraço daquele jeito. Então, eu não só sonhei, como estamos
falando aqui de luto, trabalho de luto, escrevendo sobre o luto e falando sobre o luto da minha
mãe, mas eu não sonho com ela, eu sonho com a minha avó. Eu sonho com o luto anterior, o de
minha avó, que se encadeia com o de minha mãe. Nesse encadeamento, o que acontece, aquele
fragmento de memória, que seria um abraço com a minha mãe, desaparece. Um abraço que
não existe mais. Um abraço ainda assim proibido por meu avô e compartilhado com muitas
pessoas. Acho, aliás, que foi por isso que resolvi contar este sonho aqui hoje, para vocês. Em
compensação, surge no seu lugar, um abraço impossível, um abraço nunca antes realizado, um

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abraço que é o novo, um abraço com a minha avó. Vocês conseguem entender esse problema
lógico, colocado pela desaparição de uma coisa e reaparição de outra? E vejam como isso se
dá em torno de figuras ou pessoas, que o Freud chama de objetos globais. Reduzindo o sonho
a um aspecto muito condensado, que é esse abraço, cheiro, presença, essa alguma coisa que
acontece naquele encontro. Alguma coisa, que é uma espécie de síntese do perdido. O que é
que foi que foi perdido nessa perda? Bom, talvez a gente jamais vá saber exatamente o quê.
Mas a resposta a essa pergunta, o indexador que amarra as cadeias de luto, ele está colocado
por esse pequeno afeto hiper-realístico. Espero que vocês tenham esse sonho em mente para
o que a gente vai falar a seguir.
Vamos começar, então, fazendo um recenseamento. As treze vezes em que Freud fala do
luto em Luto e Melancolia (1917). Na verdade, ele fala muito mais, mas o que eu estou fazendo
é recortar não as relações do luto com a melancolia, as relações do luto com a depressão ou
relações do luto com outra coisa. Vamos nos concentrar nas partes em que Freud falou só
sobre o luto. Vamos separar. Ao invés de luto e melancolia, só luto. E aí a gente chega nessas
treze asserções fundamentais.
(1) Logo na abertura do texto, ele diz uma coisa simples e absolutamente estranha
para a Psicanálise. Ele diz: “o luto é um afeto normal” (Freud, 1917, p. 44). Quantas vezes
vocês viram Freud falando em normalidade? Pouco. Normalmente é um conceito ou um uso
deflacionado da palavra. Nem tem um conceito de normalidade em Psicanálise, aqui Freud
fala de normalidade, mas é pouco, quase inexistente, não é um conceito. Porque o método
psicanalítico é uma variação do método psicopatológico, em que a gente infere as coisas dos
desvios. A gente infere o luto da melancolia, ou melhor, a normalidade da histeria, da neurose
obsessiva, infere as coisas a partir da nossa experiência clínica, que é com o patológico. Então,
quando ele inverte as coisas nesse ensaio, nós temos aqui uma novidade. Nós vamos falar aqui
do afeto – não sei se eu concordaria com o afeto no sentido mesmo freudiano, é mais um
sentimento – e a ideia de que seria um afeto normal. Qual é o afeto que não é normal? Tem
afetos não normais? Uma das coisas mais interessantes do ponto de vista da conversa sobre
os afetos que estavam em curso no ambiente intelectual aonde Freud se forma, na conversa
sobre os afetos, é que para Freud todos os afetos são normais, ou apenas sob certas condições
afetos são mentirosos. Ou seja, os afetos se definem sobre a sua transformatividade, com
exceção de um, que é a angústia, que seria o afeto mãe, um afeto de onde os outros derivam.
Então dizer que o luto é um afeto normal, é um problema.
(2) Segundo Freud (1917, p. 46)), “o luto de modo geral é a reação à perda de um ente
querido, a perda de alguma abstração que ocupou lugar de um ente querido, como o país, a
liberdade ou o ideal de alguém”. Parece simples dizer isso, a gente aceita, porque isso é parte
da hipótese psicanalítica de que o luto não é só um evento, o luto é um modo de subjetivação,
é um modo de relação com o outro permanente. Então, nós estamos permanentemente em
luto, porque permanentemente temos que nos haver com a perda de ideais, ideias abstratas
e coisas congênitas. No entanto, e eu quero reforçar isso, tem uma diferença muito forte entre
perder um ideal e perder uma pessoa. Tem uma diferença. Nós somos seres traumatizados
pela sexualidade, tudo bem. A sexualidade jamais se simboliza em toda a sua extensão, é

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verdade, mas há traumas, há abusos, há maus encontros, há eventos que você diz: “não, espera
aí, dentro do conjunto da série traumática, esse aqui é diferente”, e a diferença aqui posta,
analogamente entre a perda de um ente querido e a perda de um ideal, como a liberdade.
(3) “A perturbação da autoestima está ausente no luto” (Freud, 1917, p. 44),. Para Freud
o sentimento de si é uma coisa que se eleva ou se rebaixa na medida em que o Eu se compara
com o Ideal de Eu, um lugar onde ele deveria estar. Quando a gente está em luto há um
rebaixamento da autoestima e por que há esse rebaixamento da autoestima? Porque o outro
nos deixou, porque ele não nos amou suficientemente, porque eu fiz alguma coisa, porque
nós estamos impotentes diante dessa condição de mal-estar. Mas Freud diz isso pensando
na melancolia. Então o que se quer dizer não é que não há perturbação da autoestima, o que
se quer dizer é que a pessoa não fica corroída, como se aquilo tivesse acontecido com ela
mesma. Se isso acontecer, aí é muito patológico, é melancolia. Então o luto normal não tem
esse tipo de perturbação. Retenham isso, porque isso vai colocar o luto normal como algo
que não ofende tanto assim o Eu. O que eu vou argumentar é que existe uma transformação
importante e necessária para que certos tipos de luto ou certas implicações na teoria do luto
possam ser pensadas e tratadas clinicamente.
(4) Então Freud pondera, “afora isso, porém, as características são as mesmas, o luto
profundo, a reação à perda de alguém que se ama, encerra o mesmo estado de espírito penoso,
a mesma perda de interesse pelo mundo externo” (Freud, 1917, p. 45)., introversão. E segue, é
fácil constatar que essa inibição e circunscrição do ego é a expressão de uma exclusiva devoção
ao luto (Freud, 1917, p. 45)., devoção aqui é uma palavra que vem do vocabulário religioso.
A gente fala bastante em trabalho de luto, mas o que ele está chamando aí de trabalho seria
similar ao que algumas religiões chamam de trabalho da oração, trabalho da devoção.
(5) “A disposição ao luto é dolorosa, é bem provável que vejamos a justificação disso
quando estivermos em condições de apresentar uma caracterização de economia da dor e que
consiste, portanto, o trabalho que o luto realiza” (Freud, 1917, p. 50). Sobre trauerarbeit há
uma expressão análoga, quase uma ressonância disso, que é o traum arbeit, o trabalho do
sonho. Deve ter alguma coisa a ver um com o outro, porque são muito parecidos, tão parecidos
quanto a gente falar trabalho do sonho e trabalho do luto. Será que o luto é um capítulo do
modelo freudiano dos sonhos, para a elaboração de conflitos e para a realização de desejos?
Pode ser. Se transporta as coisas de um para o outro. Retornando ao texto:
(6) “Contudo, o fato é que quando o trabalho do luto se conclui...” (Freud, 1917, p.
50). Masquando é que o trabalho do luto se conclui? Vai ser semelhante, então, a quando o
trabalho do sonho se conclui. Quando é que o trabalho do sonho se conclui? Quando a gente
acorda. Será? Não sei. Aí o Freud diz que tem um trabalho primário, a elaboração primária e
a elaboração secundária. Quando é que o sonho termina? Quando você está vivendo ele, que
você volta a viver sem sonhar, quando a gente acorda, quando a gente conta o sonho para os
outros ou quando a gente interpreta os sonhos? Não seria o trabalho do luto algo análogo ao
trabalho da análise, ou seja, uma tarefa finita e uma atividade infinita? Parecia fácil dizer que
o sonho terminou, mas se você vai radicalizando a coisa, o trabalho de elaboração do sonho é
um trabalho infinito, porque há uma parte desconhecida: Unbekante. Ademais, tem um ponto

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que Freud diz que é o ponto em que o sonho é uma barreira para a interpretação, o ponto
limite de interpretação do sonho, que é o umbigo do sonho. É ali que a gente encontra o que há
de unbekannt no inconsciente, de desconhecido. Tem algo no inconsciente que você traduz,
conhece, sabe, interpreta, assimila, come, digere, simboliza, subjetiva. Mas tem um ponto que
você não faz. Por que Freud teria posto esse ponto inexpugnável? Esse umbigo do sonho. Ele
reaparece de forma análoga aqui quando a gente pergunta. Voltando a citação: “Contudo, o
fato é que quando o trabalho do luto se conclui, o ego fica outra vez livre e desinibido” (Freud,
1917, p. 50). Ele está contando que o trabalho do luto termina.
(7) Chegamos assim ao objetivo do trabalho de luto, seu produto ou condição de
encerramento. “No luto, verificamos que a inibição e a perda de interesses são plenamente
explicadas pelo trabalho do luto no qual o ego é absorvido” (Freud, 1917, 72). Então o ego se
dedica, se devota a esse trabalho, por isso se desinteressa do mundo, e esse trabalho é um
trabalho de assimilação sobre o que quer que foi perdido. “A melancolia ainda nos confronta
com outros problemas, cuja resposta em parte nos escapa. O fato de desaparecer após certo
tempo, sem deixar quaisquer vestígios de grandes alterações, é uma característica que ela
compartilha com o luto” (Freud, 1917, p. 78). Ele está dialogando com Emil Kraeplin e com a
Escola Suíça de Psiquiatria que tinha, sim, um enigma e estava descrevendo o que Kraepelin
primeiro chamou de loucura circular e depois de psicose maníaco depressiva, e que é incrível,
porque tem formas de melancolia que às vezes aparecem e nunca mais voltam a incidir. Isso
é um problema para a psicopatologia da época. E Freud está associando esse fim da crise
melancólica com o trabalho do luto. A gente volta a ficar como estava antes:
(8) Portanto a perda precisa ser investigada quanto à natureza de sua realidade, antes de
investigarmos o que se perdeu no que foi perdido e qual o valor de afeto ligado a cada traço do que
foi perdido, pois “verificamos, a guisa de explanação que, no luto, se necessita de tempo para que o
domínio do teste da realidade seja levado a efeito em detalhe, e que, uma vez realizado esse trabalho,
o ego consegue libertar sua libido do objeto perdido” (Freud, 1917, p. 80). Então o que faz o trabalho
do luto? Tem a libido ligada no objeto e essa libido vai se soltando do objeto, quando ela se soltar
completamente, ela volta para o Eu e o Eu está livre, autônomo e o luto acabou.
(9) “O luto normal [voltamos à essa expressão] supera a perda de objeto, e também,
enquanto persiste, absorve todas as energias do ego. Por que, então, depois de seguir seu curso,
não há, em seu caso, qualquer indício da condição econômica necessária para uma fase de
triunfo?” (Freud, 1917, p. 76). Quer dizer, o luto normal, por equivalência com a melancolia,
deveria ter uma fase que é assim: “gente, minha mãe faleceu há três anos, então eu vou dar
uma festa em casa na semana que vem para a gente comemorar, afinal, ela era uma pessoa tão
legal, a gente gostava tanto dela, vamos fazer uma festa lá em casa”. Acho que não. É melhor
não. A gente pode lembrar, a gente pode lembrar com saudade, esse é um ponto importante.
É quando a gente diz “passou”. Passou é quando parou de doer. Não é quando não me importo
mais, ou me tornei indiferente. Parou de doer e agora eu posso sentir saudades, posso falar
dela em uma conferência. É provável que se estivéssemos aqui no ano passado eu não teria
condições de falar como eu falei aqui, porque tem uma diferença entre um momento e outro.
E Freud está apostando muito nessa diferença.

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(10) Possivelmente, contudo, uma conjectura nos ajudará aqui – então ele vai descrever
em detalhes o luto – cada uma das lembranças e situações de expectativa que demonstram a
ligação da libido ao objeto perdido se defrontam com o veredicto da realidade. (Freud, 1917, p.
79). Eu lembro, vou lembrando mais, eu vou fazendo aquela pessoa reexistir, eu vou recriando
aquela pessoa e aí eu percebo que ela não está mais. O veredicto da realidade. Ou seja, isso
vai acontecendo inúmeras vezes, é um vai e volta. Ainda conforme Freud: “... segundo o qual
o objeto não existe mais; e o ego, confrontado, por assim dizer, com a questão de saber se
partilhará desse destino” (Freud, 1917, p. 82), olha a pergunta: o que nos faz recuar dessa
reconstrução? O psicótico falharia nessa descontinuidade.Para ele a subjetivação da morte
é um problema distinto do que se passa na neurose. Ou seja, voltamos ao problema de que
existem perdas de pessoas e existem perdas de ideias. Existem perdas que criam símbolos e
existem símbolos de perdas. Qual a diferença entre perder uma ideia e perder uma pessoa?
Ah, porque eu sei que eu não estou nesse mesmo estado que o outro, ao passo que quando a
gente perde uma ideia, o que perdeu e o perdido pertencem a registros, vamos dizer assim,
diferentes, desde sempre diferentes.
(11) Assim, “o ego é confrontado com a questão de saber se partilhará desse destino”
(Freud, 1917, p. 81) é uma questão que vocês vão encontrar em Heidegger, Medrard Boss, de
toda a reflexão antropológica que coloca a morte como universal na finitude humana. E Freud
segue “é persuadido, pela soma das satisfações narcisistas que deriva de estar vivo, a romper
sua ligação com o objeto abolido – então é a hora que eu o solto –, talvez possamos supor
que esse trabalho de rompimento seja tão lento e gradual”; olha aqui a função do tempo. Ele
está falando da extensão, mas há toda uma topologia do tempo, para falar com Lacan, dessa
passagem ou da temporalidade do luto. Bons artigos e bons trabalhos exploraram isso, menciono
de passagem O Tempo e o Cão (2009), da Maria Rita Kehl. Muita gente trabalha com Walter
Benjamin para enfrentar esse problema. Enfim, há o pessoal em História, que estuda como é
que os lutos coletivos envolvem uma temporalidade própria e como essa temporalidade pode
ser traduzida pela escrita. Tem inúmeras implicações disso que Freud está colocando aqui,
que o tempo passa de outra forma quando a gente está em luto. E se a gente não respeita,
acompanha, interpreta e percebe essa temporalidade, aí sim tem um patológico. E é o que a
gente está fazendo massivamente. Se a gente apressa o luto, ele complica. “Levanta a cabeça
e trabalha, trabalha que passa. Cabeça vazia, oficina do demônio. Trabalhe, se ocupe, faça
alguma coisa, que passa, não fique pensando nessas coisas”, não é? Olhe o que a gente está
dizendo. Se passar de 15 dias, então, tome um antidepressivo. Veja o que significa o luto que
essa pessoa começa, então, a viver após o funeral, cremação. Todos procuram, falam, lembram,
mas depois de dois meses, é você. Você e às vezes aquele um, dois, com quem você está. E dali
a pouco é você sozinho. O mundo continua, as pessoas estão aí, trabalham, fazem as coisas.
Mas você está em um outro tempo, muito problemático, porque o que a gente está vendo aqui,
o luto faz resistência estrutural à lógica da produção, à lógica do apressamento. Mais ou menos
assim: “vamos, gente, produza aí esse objeto do luto. Produza o resultado desse trabalho”.
Trabalho remete a produto. Trabalho, produto, troca, não é? É um modelo de interação social.
Freud segue em sua obra ponderando que há satisfações narcisistas que derivam de estar vivo,

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a romper sua ligação com o objeto abolido. O que acontece, então, no final do luto, o objeto é
abolido? Não é isso que acontece. A gente entende que ele fale isso, mas objeto abolido é uma
palavra forte. É o que Lacan, mais ou menos, traduziu como privação ou como não inscrição
em que não se inscreve no Simbólico e volta no Real. Será que é abolido mesmo? “Talvez
possamos supor que esse trabalho de rompimento seja tão lento e gradual, que, na ocasião em
que tiver sido concluído, o dispêndio de energia necessária a ele também se tenha dissipado”
(Freud, 1917, p. 82). Então esse é o motivo para a festa. Agora eu não tenho mais que fazer esse
trabalho, então eu tenho energia disponível para a vida.
A vida recomeça, terminou o luto. Como o caso da esposa do Winnicott. Contando
rapidamente, seu primeiro casamento foi infeliz, depois ele se casa com Clare, tem uma vida
muito intensa e ele morre de ataque cardíaco. E ela entra em um luto difícil, vai em frente,
até que ela tem um sonho. Vejam o trabalho do luto e o trabalho do sonho. Nesse sonho estão
tomando chá, brincando, rindo e ela diz: “está tudo muito legal, mas tem alguma coisa estranha”
e aí ele diz para ela, com um humor que lhe é característico: “sim, tem uma coisa estranha,
eu estou morto”. Ela toma um susto dentro do sonho, acorda, e acorda com esse instante
que eu estou querendo analisar, que é fundamental para a minha pergunta, ela levanta e diz:
“acabou o luto”. Agora posso ter saudades, agora me separei do objeto, agora ele se foi, mas
ele continua em mim, agora eu incorporei, enfim, vocês podem mudar isso várias vezes. Mas
esse é um modelo de luto finito. E nós estamos vendo que é absolutamente compatível com
o que Freud está dizendo na obra Luto e Melancolia. Várias vezes ele falou: “o luto se conclui,
o luto acaba”: “O luto normal supera a perda de objeto, e também, enquanto persiste, absorve
todas as energias do ego, o luto consiste em identificar a perda real – essa definição talvez seja
mais forte – peça por peça, pedaço por pedaço, signo por signo, até o esgotamento, quando
isso está feito, acaba” (Freud, 1917, p. 72). A gente tem aqui Freud contando com uma série
infinita. A série dos traços de minha mãe, seu cabelo, seu cheiro, seu abraço, seu alemão ruim,
suas broncas, sua inépcia, sua confusão mental. Ele está dizendo assim, cada um desses, peça
por peça, pedaço por pedaço, signo por signo. Cada um desses traços do objeto é recomposto
e aí a hora que a gente integra, unifica, reconstrói esse objeto, ele pode ir. Tem um problema
matemático aí. Os traços de uma pessoa são finitos ou infinitos? Eu posso ir contando tudo
sobre você, uma hora chegando a zero: você. Você inteiro. Tudo o que você representa para
mim está nesse pacote. Consegui reconstruir, legal, agora posso me despedir de você, tchau,
vamos para a próxima. Isso é uma narrativa plausível para vocês? Não. Porque na nossa relação
com os outros há algo que torna cada outro significativo, cada outro com quem a gente ama,
com quem a gente vive, porta um traço ou mais de um, que representa o fato de que aquela
pessoa não é finita, ela é infinita para nós. Qual o nome podemos dar a esse traço de infinitude
no outro? E, correlativamente, em cada um de nós? Que diria, assim: Deus, se é que ele existe,
ele fez uma sacanagem, ele colocou dentro da nossa experiência algo que é infinito, sendo que
nós somos finitos. Nós morremos, acabamos. Como é que pode ter, então, esse incontável em
cada um de nós? Como chama, qual é o nome que Lacan dá para essa incomensurabilidade?
Desejo. O desejo é uma substância infinita que habita seres finitos. Por isso o desejo não cabe
todo na linguagem, por isso o desejo não pode ser todo subjetivado. Por isso o desejo é falta.

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Por isso o desejo é o desejo de desejo. Por isso o desejo não é o desejo do objeto. Se ele fosse
um desejo de objetos, seria finito. Os objetos são contáveis. Mas ele sendo desejo do desejo do
Outro, o desejo de possuir o desejo do Outro, de ter o desejo do Outro para si. Por que isso é
impossível? Porque para possuir o desejo do Outro, deveria possuir todos os traços dele. E eu
não posso possuir todos os traços, porque tem pelo menos um traço que representa que no
Outro há um fragmento de infinitude.
(12) Vamos ver as duas últimas citações da obra de Freud (1917, p. 83): “No luto também
os esforços para separar a libido são enviados nesse mesmo sistema, mas nele nada impede
que esses processos sigam o caminho normal através do pré-consciente até a consciência”.
Aqui tem uma pista, que vamos explorar, que é a seguinte: há no luto um processo, que o
próprio Freud diz, que convoca um conceito de dor psíquica. O que é dor psíquica? Dor não é
sofrimento, dor não é mal-estar, dor psíquica é uma situação específica: “o momento em que
para a dor e começa a saudade, é o momento que termina o luto”. Tudo bem, mas o que é
a dor? Do que é composta a dor psíquica? Não é dizer que é a falta ou a ausência do objeto.
Não, dor é dor. Quando você está sentindo dor psíquica, você está sentindo uma coisa sem
querer. É dor psíquica. O problema metapsicológico da dor começa lá no Projeto, quando
Freud diz que existem duas experiências fundamentais que constituem a subjetividade: a
primeira é a experiência de encontro com o prazer, que gera o desejo de retorno a traços
mnêmicos de percepção. Ou seja, aí começa o desejo. O desejo é a repetição. O desejo é o
retorno a traços mnêmicos. Isso conduz a conhecida noção de Fort-da (Freud, 1920), enfim,
é um grande momento de Freud lá no Projeto para uma Psicologia Científica (1895). Mas tem
uma segunda experiência fundamental: como se constitui o Eu? O Eu se constitui a partir de
uma experiência de dor. “Tira a mão daí”, “ai, doeu”, do-eu. O que seria essa ideia? “Doeu, do-
eu”. Esse é um movimento de inibição, de proteção, de “não vou mais ali, porque dói”, não é só
uma coisa que acontece, é uma experiência constitutiva, uma experiência que constitui uma
estrutura. A partir de então ali tem Eu. Na teoria da constituição do Eu, Lacan, em Estádio
do espelho como Formador da Função do Sujeito [Je] tal como se nos revela a experiência
psicanalítica (1949) vai falar que o Eu se constitui pelo reconhecimento do valor simbólico
da imagem no olhar do Outro, o estádio do espelho, quando eu consigo dizer: “essa é a minha
imagem, isso me simboliza” e a realidade dessa imagem é o que define a minha posição como
eu, então agora tem Eu. São teorias diferentes. Freud não diz que o Eu começa assim, ele diz
que o Eu começa como um novo ato psíquico ou começa com a dor. Qual é o problema da dor?
É que ela nos remete – e por isso a gente não consegue ter uma boa teoria da dor – a uma
teoria da consciência. A dor é sempre consciente. Será? E as dores internas, as dores que você
não consegue nem perceber? Elas são dores ou não são dores? Limite aí para quem quiser
pesquisar, é um problema. Como não tem teoria da consciência, a não ser a observação em uma
nota sobre O Problema Econômico do Masoquismo, onde Freud (1924) – diz que se um dia
quiseres falar alguma coisa sobre a consciência, teríamos que pensar a relação da consciência
com o tempo. Consciência tem a ver com o tempo. A estrutura da consciência tem que ver
com a estrutura subjetiva do tempo. Voltamos ao tempo, tempo do luto, transformação da
consciência e tempo. Só que estamos voltando ao problema que não avançamos, porque não
temos realmente recursos para estabilizar a pergunta.

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(13) Última citação: “Do mesmo modo que o luto compele o ego a desistir do objeto,
declarando-o morto e oferecendo ao ego o incentivo de continuar a viver – comece sua vida
de novo, deixe isso para trás – assim também cada luta isolada da ambivalência...” (Freud,
1917, p. 84) e ele diz assim: cada estrutura vai viver o luto com os recursos que ela possui e
com as dificuldades que ela possui. Então, o neurótico obsessivo vai viver um luto enfatizando,
estressando a ambivalência. A histeria vai viver o luto enfatizando a dissociação. A fobia vai
viver o luto enfatizando o lado de temor, de angústia, de ansiedade expectante com a perda. A
perversão vai viver o luto a partir do fetiche. A psicose vai viver o luto a partir da alucinação. Ou
seja, o luto integra, ele absorve o funcionamento estrutural, ou a gramática de desejo de cada
um. Bom, por isso que ele está falando aqui “assim também cada luta isolada da ambivalência
distende a fixação da libido ao objeto, depreciando-o, denegrindo-o e mesmo, por assim dizer,
matando-o” (Freud, 1917, p. 82). Essa é a chave: matando o objeto. O que quer dizer então com
comparar parte a parte, signo a signo, retirar a libido, viver a raiva pelo objeto que te deixou,
viver a culpa porque você deixou o objeto, o que é isso tudo? Isso é um ritual de assassinato.
Você, para completar o seu luto, precisa viver mimeticamente o fato de que não foi só ele que
te deixou, você o matou. Somos todos parricidas, somos todos objeticidas, e fazer o luto é
uma operação de matar. Veja só, essa operação é tão melhor feita quanto menos violência ela
envolver. Na teoria do luto de Freud, a gente tem um entendimento, uma terapêutica para o
que é a violência. A violência não é nos idealizarmos e acharmos que somos seres angelicais,
que não temos nenhuma propensão ao sadismo ou à violência, que a violência vem de fora,
como tem equipes sistematicamente em escolas brigando corpo a corpo com pais e mães e,
às vezes, educadores dizendo o seguinte: “olha, deixa a bruxa em paz. Deixa o lobo mau em
paz. As crianças adoram o Shrek. As crianças adoram o malvado. Elas precisam do malvado”.
A maldade não vem de fora. As crianças não são seres puros, que são corrompidos a pessoa
é exposta a violência e por isso ela se torna violenta. Não é assim, ao contrário. Se você não
oferece meios narrativos, meios de mediação, meios de simbolização, a violência, que é vivida,
digamos assim, com a morte do outro, simbólica, começa a virar violência real. E se começa a
matar e a atacar quem não tem nada a ver com o seu processo de luto. O reverso disso é em
vez de elaborar ou de trabalhar, ir ao ato, agir.
Por isso, pessoas desencaminhadas no seu luto são pessoas perigosas, pessoas que estão
em um momento em que deve haver cuidado, acolhimento, dando um espaço, acompanhando.
Porque os percalços frequentemente fazem com que aquilo que não se inscreve no Simbólico,
no trabalho de elaboração, volte no Real. É bastante especulativo, mas um dos garotos que
praticou aquele crime em Suzano, matando as crianças de uma escola, pouco se tem falado
de que um deles, aparentemente o mentor, tinha perdido a sua avó em menos de seis meses.
E aparentemente ele perdeu a avó e não estava bem com isso, porque a mãe não era muito
presente e aí o que a escola faz é dizer: “você não está muito bem, vá para casa”, quer dizer, “vá
esfriar a cabeça com o videogame lá em casa, sozinho, você e seus poucos amigos”. O que talvez
possa acontecer quando a gente lida com o luto assim. A obrigação é de quem? É minha? Do
Policial Militar? Do psicólogo? Da diretora? Quem é o responsável? Mas que pergunta é essa?
A culpa porque uma pessoa não encontrou condições de fazer um luto e mediações, tudo

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isso que estamos problematizando, é uma questão de todos nós, se você quiser trabalhar no
registro da culpa. Luto é complicado, porque ele nos coloca nessa dimensão do infinito. O luto
de um, vira o luto de todos nós, dos que já foram, dos que estão e dos que virão.
Pondera ainda Freud (1917, p. 82) que“é possível que o processo no Ics. chegue a um fim,
quer após a fúria ter-se dissipado [a fúria se dissipa], quer após o objeto ter sido abandonado
como destituído de valor”. Vocês sabem o que esse rapaz fez antes de partir para o crime?
Ele queimou a foto dos pais. Dos pais juntos. Eles já tinham se separado, ele tinha uma foto e
queima essa foto. Especulemos, parece ter alguma relação com “estou matando, mas como é
que estou matando?”. Queimando, falando... quantas formas há de matar o outro? Tem um
livro lindo da Nicole Loraux, uma helenista, que estudou como as mulheres eram mortas na
Grécia antiga, Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher. É um livro sensacional, no qual ela diz
que as maneiras que haviam de matar uma mulher na Grécia antiga eram as maneiras de lidar
com o impossível da pólis grega. Maneiras de lidar com o Real da pólis grega, que é a mulher,
a Antígona. Por exemplo, o que você faz com a mulher quando ela começa a falar? Falar para
valer. Todo mundo tenta enterrar, Polinices e Etéocles também: “cala a boca Creonte, porque
eu vou em frente”. O que você faz com isso? Você tem um problema. E aí a obra Maneiras
Trágicas de Matar uma Mulher apresenta uma forma de simbolizar a mulher enquanto objeto
social, enquanto representante disso que eu chamei de infinito. Está no desejo, mas há algo
– que Lacan ao final de sua obra começa a reconhecer mais claramente – de uma relação
particular da mulher com o infinito. O homem também se relaciona com o infinito, mas de
outra maneira.
Lacan vai olhar para essa teoria e dizer que ela é insuficiente e incompleta, ela parte
daquilo que ela deveria explicar. Ela conta com uma teoria do luto para explicar a melancolia,
quando essa teoria do luto é o que estamos discutindo, queremos saber como funciona o
luto. Nesse caso o método freudiano não funcionou muito bem. Primeiramente Lacan vai ler
Hamelet no Seminário 6 e dizer: “existe o luto do falo, que envolve também fazer o luto da
possibilidade de que o outro possa te perder”, quer dizer, você também identificado ao falo.
E nesse luto ele fala da água, fala de um desmembramento, de uma correnteza. Fala que o
luto caminha para a produção de um informe. Informe não no sentido da informação, mas no
sentido de um objeto que perde a forma. Então o falo, quanto mais forma ele tem, mais vivo
está. O luto como operação de simbolização do falo e de desindentificação com o falo implica
essa produção. O que está sendo produzido: o objeto desse trabalho é a produção de um
informe de algo sem forma, de algo anamórfico.
Rapidamente consideraremos algumas obras de arte, como o luto do filho de Santo
Agostinho, Adeodato; o luto de Virgem Maria, entre outras. Em todas as imagens de luto é
apresentada uma pessoa com o pescoço virado para um lado, olhando para baixo, recusando,
portanto, a oposição especular de reconhecimento intersubjetivo. E em uma imagem,
produzida por um computador, que fez análise comparativa de pessoas que fazem desenhos
sobre seu processo de luto, se descobriu que nos desenhos das pessoas que vão progredindo
em seu luto, a forma vai se transformando em um jogo de cores, ela vai se integrando, perdendo
a forma. Não foi mais ou menos assim que eu falei do abraço com a minha avó? Eu falei: “foi

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um abraço, mas é um abraço onde o essencial era talvez o perfume, o cheiro, a presença, a
própria realidade intensa daquilo”, percebam a minha dificuldade de dizer qual é o traço. São
todos aproximativos. O que eu estou querendo dizer é simplesmente um traço hiper-realístico,
hiper-intenso, mas sem forma. Isso poderia ser um simulacro, uma maneira de apresentar a
vocês o que Lacan chamou de objeto a. Objeto a, por definição, não tem imagem. O objeto a
está no processo de produção dessa imagem, está no processo de decomposição da forma, em
um processo de anamorfose, de subtração, ou seja, o que não está na tela, é um processo de
repetição, enfim, processos indutores, de trabalho da coisa. Essa é uma formulação importante
para entendermos que quando Lacan reformula a teoria freudiana do luto no Seminário 6 e um
pouco no 5, ele não dispõe ainda do conceito de objeto a. Ele trabalha primordialmente com a
ideia de falo, que é a elaboração da falta. Sim, isso faz parte do luto. Mas não, não sabemos que
destinos a gente tem para o objeto a no luto, eventualmente a invenção lacaniana do objeto a
tenha um pé na teoria da angústia e outro pé na teoria do luto.
A coisa se complica na última lição do Seminário 11, quando Lacan, depois de falar
dos quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, diz assim: “olha, esse negócio de final de
análise, para onde a gente leva os pacientes, é simples: é a travessia das identificações. Quando
a gente faz essa travessia, a análise acaba e a gente pode separar a pulsão da fantasia”. O que
é isso? É um luto. Ele dá uma pancada de esquerda no finalzinho do jogo, dizendo: “a gente se
torna analista fazendo um luto. A análise é um luto”, é um número de separações que culmina
na separação com seu analista. É um objeto que cai, no sentido do luto. A gente analisa e
recebe outros pacientes, muda de lado, não mais no divã, vai para a poltrona. O que é isso? É a
passagem de um luto finito para um luto infinito. Você vai entrar no luto dos outros. E você vai
ser esse objeto que vai cair para cada um deles. A transmissão da Psicanálise é a transmissão
de um luto.
E aí a gente passa da experiência individual com castração, com a falta, para a experiência
coletiva, da escola, de como a gente está elaborando o luto, como a gente se torna analista e
de como a gente se torna analista junto com outros. Eu me autorizo como psicanalista é se
autorizar no sentido de: “como é que está o seu luto? Você consegue? Até onde vai? Até onde
dá? E como é que o objeto cai a cada vez”. Isso para dizer que: Lacan reformula, redimensiona
e re-descreve o problema no Seminário 6 em termos fálicos. Ele torna o problema mais agudo,
pancada, decisivo e estratégico no Seminário 11; a análise é um luto. O desejo do analista é
formado por um luto. A travessia do fantasma é luto. E no Seminário 13 ele não fala da teoria
do luto, não continua a ideia. Então onde é que está o que seria uma teoria lacaniana do
luto? Os comentadores são consensuais nisso, Jean Allouch (2004), Darian Leader (2008),
Marie-Claude Lambotte (2000), que se dedicaram à teoria do luto e que, em linhas gerais,
concordam que Lacan deu as bases, mas não tem uma teoria do luto que poderia ser pujante
como a gente espera. Quando ele introduz o objeto a na história, tudo muda. Mas isso não é
uma teoria, é uma re-descrição, é introduzir um elemento novo na história.
Concluindo, qual seria sumariamente o problema do modelo freudiano de luto? Ele
é um modelo totemista. É um modelo de homem, macho, feito para pensar o luto como um
processo de assimilação do outro, um processo canibal. Eu mato, como, incorporo e meu ego

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aumenta. Esse processo de incorporação fálica está mediado por uma modalidade de gozo,
todos os homens são castrados, mas tem um que não, quem é esse que não é? O pai da
horda primitiva, aquele ser mítico que deu origem à série e que esse é o que foi originalmente
morto. A cena do parricídio é feita para homem. E onde é que estão as mulheres? Estão todas
acessíveis ao pai da horda primitiva. E quem é que funda a civilização? Os irmãos, que já foram
expulsos, estão sedentos por uma sexualidade, porque o pai fica com todas para ele, então
vamos lá, matamos o pai e se alguém ocupa o lugar do pai, morre como ele, então no lugar do
pai a gente põe a lei. E aí cria-se o totem e do totem vem o tabu. Agora as mulheres podem
ser distribuídas: N-1 “você fica com duas, eu fico com três, você com quatro e a gente troca de
vez em quando.” Lindo, não é? Tem um problema nessa história, o fato que essa é uma história
fálica. Se vocês querem pensar o luto em termos fálicos, pensem assim, acho que o Freud
serve. É homem no sentido macho.
Não, aqui tem um problema, porque o lado do homem na fórmula da sexuação também
é o lado do sujeito como uma certa aspiração de universalidade. E é um lado que lida com o
gozo de uma maneira específica, que é o que a gente poderia chamar de infinito contável, que
é como frequentemente – não vamos generalizar – os homens lidam com seu gozo. Uma, duas,
três, quatro, cinco... quantas eu consigo acumular? Enquanto isso está acontecendo, eu estou
inscrito no campo que define o conceito “homem”. Por isso fantasias típicas: “quanto mais,
mais homem”. Será? Lembrem como essa é uma narrativa acumulacionista, possessivista.
Você é tão mais homem quanto mais você tem. E para você ter, você tem que poder contar. Se
tiver menos vamos brigar, mas a partir de uma regra que não discutimos: um é um, dois é dois,
três é três e vamos em frente segundo uma regra regular e discernível de formação.
Em 1972-1973 Lacan (1981) propõe uma crítica incrivelmente interessante a essa
universalização do modelo proposto em Totem e Tabu. Sobre o falo e depois objeto a, ele
diz que existem dois modos de gozo, dois modos de contar isso que a gente viu. Mas existe
um outro em que, entre o um e o dois, encontra um infinito. Esse é o que faz com que diga
“a mulher não existe”, por que a mulher não existe? Porque a existência seria a nomeação
de todos os traços e todos os números que estão entre um e dois. “Mas eu posso contar, 0,1,
0,2...” é uma forma profundamente masculina de contar e organizar as coisas. Imaginem que a
regra de contagem fosse semelhante a uma reta real. Então aí eu não tenho o próximo número
formado por uma sucessão regular a partir do anterior. Uma maneira bastante simples de
dizer o seguinte: o que a gente tem na modalidade feminina de gozo? Um infinito incontável.
Por isso Lacan coloca o objeto a de um lado e o falo do outro na fórmula da sexuação. E
esse infinito incontável requer outra maneira de considerar a identificação, problema negado
pela teoria freudiana do Complexo de Édipo, “os homens se tornam mais homens na medida
em que se identificam mais com o pai.” As mulheres se tornam mulheres quando elas se
identificam com a mãe? Não, não é assim. Uma mulher se torna mais mulher na medida em
que ela se diferencia das outras, mas agora vem um problema, também se torna mais mulher
na medida em que se diferencia de si mesma. E ali está, então, algo que é na medida em que
é diferente de si mesma. Como é que eu me identifico com algo que não é uma identidade
identificável? Ou eu vou ter que mudar meu entendimento de identificação ou eu vou ter

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que pensar que nem tudo é totemista na nossa existência, que pode existir outra maneira de
operar trocas, que pode existir outra maneira de se identificar. E que, portanto, pode existir
outra maneira de fazer luto. Aqueles pacientes que estão tomados por um luto infinito, um
luto que não acaba e que não é um luto melancólico nem depressivo, talvez estejam às voltas
com o luto feminino. E essa é a hipótese que eu queria apresentar a vocês.

REFERÊNCIAS

Alouch, J. (2004). Erótica do Luto em temos de morte seca. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud.
Freud, S. (1917). Luto e Melancolia. São Paulo: CosacNaify.
Lacan, J. (1981). O Seminário Livro XX... mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lambotte, M. C. (2000) Estética da Melancolia. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
Leader, D. (2008). The New Black: mourning, melancholia and depression. Londres: Hamish
Hamiltong.

Recebido em: 26-06-2019


Primeira decisão editorial: 26-06-2019
Aceito em: 27-06-2019

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