LUTO Na Psicanalise
LUTO Na Psicanalise
RESUMO
Examinando a teoria freudiana do luto, contida em Luto e Melancolia, podemos isolar o luto
como um processo que tem um início e um deslace ligado à integração do objeto perdido no Eu.
Quando este processo se interrompe ou não é propriamente iniciado, ou quando em seu interior
o Eu se identifica com o objeto perdido, temos os casos de patologia do luto nos quais podemos
incluir a melancolia e certos tipos de depressão. Apresentamos a hipótese, extraída da leitura do
texto canônico de Freud, de que existiria uma terceira vicissitude para o luto para além de sua
fixação, interrupção ou conclusão. Trata-se do luto infinito, que nem sempre é vivido como uma
fenomenologia depressiva, mas que consiste na eternização do próprio processo. Para entender
a infinitização do luto deveríamos combinar a perspectiva de integração do objeto perdido no
Eu, subsidiada pela teoria totemista da identificação com a concepção animista de identificação,
no interior da qual o luto é fundamentalmente perda ou dissolução do próprio Eu.
ABSTRACT
Examining the Freudian theory of mourning, contained in Mourning and Melancholy, we can isolate
mourning with a process that has a beginning and a turning point linked to the integration of the
lost object in the self. When this process is interrupted or is not properly initiated, or when the self
identifies itself with the lost object, we have cases of mourning in which we may include melancholy
and certain types of depression. We present the hypothesis, extracted from the reading of the
canonical text of Freud, that there would be a third vicissitude for mourning beyond its fixation,
interruption or conclusion. It is the infinite mourning, which is not always lived as a depressive
phenomenology, but which consists in the eternalization of the process itself. To understand the
infinitism of mourning we should combine the perspective of integration of the lost object in the self,
subsidized by the totemist theory of identification with the animistic conception of identification,
within which mourning is fundamentally the loss or dissolution of self.
INTRODUÇÃO
É, de fato, uma grande satisfação para mim estar aqui de novo em Curitiba, onde venho
há muito tempo. É uma cidade curiosa, porque para quem vem de fora, a gente se sente muito
bem acolhido. Come-se bem, fala-se bem, lê-se para valer. Tem uma retidão de engajamento
nos estudos. A gente está sempre sendo bem acolhido, mas eu acho que há um trabalho que
a cidade precisa fazer em relação às suas relações com a Psicanálise.
Entendo que o conceito de escola, do Lacan, que é um experimento social, é uma coisa
que ele, talvez, jamais teria pensado se não tivesse sido expulso, se ele não tivesse que, de
alguma forma, justificar o grupo que trabalhava com ele. Tem algumas coisas que eu acho legais
desse conceito, que não é uma sociedade, não é uma associação, é uma escola. E ela não é uma
escola só de psicanalistas, ela é uma escola, uma stoa, como se dizia na Grécia antiga, no período
helênico. Stoa era um lugar onde as pessoas que estavam viajando, peregrinos, por exemplo,
podiam receber a acolhida, podiam se abrigar e tratar seus ferimentos. E nesse contexto de
se restaurar, havia também um filósofo falando, havia um diálogo que incitava o cuidado de si.
Havia um trabalho, vamos dizer assim, de natureza e inspiração socrática. Então a ideia da escola
é muito potente, porque ela, no fundo, se aplica a contextos. Ela é mais forte em contextos
cosmopolitas, em contextos de alta diversidade social, como nós estamos enfrentando, como
o Brasil está enfrentando. E é uma ideia potente politicamente, porque sugere que é um lugar
em que todos podem se encontrar, analistas e não analistas.Ou seja, o tipo de experiência que
me parece absolutamente fundamental para o Brasil, para um processo, vamos dizer assim,
de reinvenção civilizatória que nós estamos convidados a fazer. Exatamente por isso, certas
cidades onde a Psicanálise me parece tão forte e expressiva, tem a função de fazer as pessoas
se encontrarem para trabalhar, para se questionar, para aprofundar seus estudos, mas também
para viver juntos nessa jornada peregrina, com a qual estamos às voltas.
Uma última observação é que nesse contexto Lacan colocava três desafios regulares, e
para fazer isso, para que a escola aconteça, no sentido forte do termo, da palavra, é preciso que
a cada vez tratar o problema das identificações: o que significaos grupos, o que é uma massa,
uma classe, como as identificações provocam afetos perigosos, como elas são um problema. Elas
são um problema, mas não são um problema para os psicanalistas, elas são um problema para
o laço social em geral, para as instituições e para a vida social. Esse é um primeiro problema, é
um problema de natureza imaginária, o que a gente faz com o fato de que o imaginário ecloda
e não abolimos ele por decreto. O segundo problema é o que a gente faz com o Pai, o que a
gente faz com o Complexo de Édipo, traduzindo, como resolvemos uma questão, por exemplo,
não só psicanalítica, mas filosófica, jurídica, que é a origem da lei, o exercício do poder e a
origem da autoridade, quais são as mediações simbólicas que constituem um sujeito e as
regras que nos permitem reconhecê-lo. Todos os atributos e problemas que a gente vai poder,
então, extrair desse conceito central, tal como o a noção do Complexo de Édipo. Em terceiro
lugar há um conceito que Lacan explorou pouco, mas ocupa lugar decisivo no momento em
que ele está inventando a escola, considerando seus desdobramentos identificatórios e do
Édipo é preciso para cada ideia de escola e cada pólis trate, enfrente e tematize o problema
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que eu queria falar com vocês. Eu estava em um aniversário surpresa da minha avó. Minha avó
também é falecida, há mais tempo. Ia acontecer uma festa surpresa. Então estávamos todos
atrás de um sofá. “Todos” quer dizer que “vai chegando gente”, obviamente é uma alusão às
conferências. Vai chegando gente e de repente estão muitas pessoas, um número incontável
e desproporcional ao fato de que estávamos atrás de um sofá, encolhidos, esperando minha
avó chegar. E aí ela entra na sala, todo mundo se levanta e diz: “Surpresa! Parabéns”. E aí eu
dou um abraço na minha avó. Um abraço que tem um traço que vocês vão ver na clínica,
que não é muito comum, e quando isso acontecer, prestem atenção. São aqueles sonhos que
apresentam pontos hiper-nítidos, hiper-reais, excessivamente coloridos ou que você, às vezes,
até dentro do sonho, diz: “mas isso não é um sonho, isso está acontecendo, isso é real, isso
é realidade”. Temos em Freud dois bons exemplos, um é o sonho da barba dourada do tio
Josef, que ele parece hiper-nítido ao lado de um efeito cômico. E outro é o traço do sonho
da injeção de Irma, o sonho fundador da Psicanálise em que Freud olha para a boca de Irma,
vão aparecendo os cornetos e depois algo sem forma, e isso vai se tornando algo que causa
nele um sentimento, um efeito de hiper-realidade angustiante, vamos chamar assim. Então,
era esse efeito que estava nesse abraço com a minha avó. Sabe aquele abraço que você sente
o perfume, o cheiro, a presença e você diz: “não é possível?”. Tem um elemento de unglauben
em alemão, isso está acontecendo, mas eu não acredito que isso esteja acontecendo. E eu
não acredito que isso esteja acontecendo dada a magnitude de realidade e do sentimento
de realidade que você tem naquele encontro. E aí aparece meu avô, que era um cara muito
bonachão, muito querido e muito brincalhão... Meu avô apareceu no sonho, pegava a minha
avó e brincava: “escuta, eu não gostei ”, o que causa um impacto edipiano dentro do sonho. Eu,
abraçando a minha avó e ele dizendo: “eu não gostei”. Dando uma risada, assim, mas de um
jeito: “alô, já deu, está bom? Vai para lá. Solta”. E aí termina o sonho.
Aspectos que eu quero sintetizar da conversa que vai se seguir, para vocês se deterem a
aspectos associativos: em vida, jamais dei um abraço desse tipo em minha avó. Jamais. Gostava
muito da minha avó, tinha uma relação próxima e tal. Minha avó era uma alemã que dava aulas
de alemão na escola em que estudei. Então era uma coisa impossível, se você ia falar alemão,
ela te corrigia o tempo todo: “não, mude o advérbio”. É uma língua infernal. Para ela que passou
pela guerra da Alemanha, e tinha uma vida muito dura, o erro não era qualquer coisa. Uma
pessoa que jamais seria como a do sonho. Não combina, não é? Não era ela. Ou era aquilo que
faltou para que, talvez, aquela relação entre neto e avó ter sido diferente. Mas por outro lado,
aquele tipo de proximidade, de abraço, de carinho, era muito típico da relação com a minha
mãe. Minha mãe teria dado um abraço daquele jeito. Então, eu não só sonhei, como estamos
falando aqui de luto, trabalho de luto, escrevendo sobre o luto e falando sobre o luto da minha
mãe, mas eu não sonho com ela, eu sonho com a minha avó. Eu sonho com o luto anterior, o de
minha avó, que se encadeia com o de minha mãe. Nesse encadeamento, o que acontece, aquele
fragmento de memória, que seria um abraço com a minha mãe, desaparece. Um abraço que
não existe mais. Um abraço ainda assim proibido por meu avô e compartilhado com muitas
pessoas. Acho, aliás, que foi por isso que resolvi contar este sonho aqui hoje, para vocês. Em
compensação, surge no seu lugar, um abraço impossível, um abraço nunca antes realizado, um
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verdade, mas há traumas, há abusos, há maus encontros, há eventos que você diz: “não, espera
aí, dentro do conjunto da série traumática, esse aqui é diferente”, e a diferença aqui posta,
analogamente entre a perda de um ente querido e a perda de um ideal, como a liberdade.
(3) “A perturbação da autoestima está ausente no luto” (Freud, 1917, p. 44),. Para Freud
o sentimento de si é uma coisa que se eleva ou se rebaixa na medida em que o Eu se compara
com o Ideal de Eu, um lugar onde ele deveria estar. Quando a gente está em luto há um
rebaixamento da autoestima e por que há esse rebaixamento da autoestima? Porque o outro
nos deixou, porque ele não nos amou suficientemente, porque eu fiz alguma coisa, porque
nós estamos impotentes diante dessa condição de mal-estar. Mas Freud diz isso pensando
na melancolia. Então o que se quer dizer não é que não há perturbação da autoestima, o que
se quer dizer é que a pessoa não fica corroída, como se aquilo tivesse acontecido com ela
mesma. Se isso acontecer, aí é muito patológico, é melancolia. Então o luto normal não tem
esse tipo de perturbação. Retenham isso, porque isso vai colocar o luto normal como algo
que não ofende tanto assim o Eu. O que eu vou argumentar é que existe uma transformação
importante e necessária para que certos tipos de luto ou certas implicações na teoria do luto
possam ser pensadas e tratadas clinicamente.
(4) Então Freud pondera, “afora isso, porém, as características são as mesmas, o luto
profundo, a reação à perda de alguém que se ama, encerra o mesmo estado de espírito penoso,
a mesma perda de interesse pelo mundo externo” (Freud, 1917, p. 45)., introversão. E segue, é
fácil constatar que essa inibição e circunscrição do ego é a expressão de uma exclusiva devoção
ao luto (Freud, 1917, p. 45)., devoção aqui é uma palavra que vem do vocabulário religioso.
A gente fala bastante em trabalho de luto, mas o que ele está chamando aí de trabalho seria
similar ao que algumas religiões chamam de trabalho da oração, trabalho da devoção.
(5) “A disposição ao luto é dolorosa, é bem provável que vejamos a justificação disso
quando estivermos em condições de apresentar uma caracterização de economia da dor e que
consiste, portanto, o trabalho que o luto realiza” (Freud, 1917, p. 50). Sobre trauerarbeit há
uma expressão análoga, quase uma ressonância disso, que é o traum arbeit, o trabalho do
sonho. Deve ter alguma coisa a ver um com o outro, porque são muito parecidos, tão parecidos
quanto a gente falar trabalho do sonho e trabalho do luto. Será que o luto é um capítulo do
modelo freudiano dos sonhos, para a elaboração de conflitos e para a realização de desejos?
Pode ser. Se transporta as coisas de um para o outro. Retornando ao texto:
(6) “Contudo, o fato é que quando o trabalho do luto se conclui...” (Freud, 1917, p.
50). Masquando é que o trabalho do luto se conclui? Vai ser semelhante, então, a quando o
trabalho do sonho se conclui. Quando é que o trabalho do sonho se conclui? Quando a gente
acorda. Será? Não sei. Aí o Freud diz que tem um trabalho primário, a elaboração primária e
a elaboração secundária. Quando é que o sonho termina? Quando você está vivendo ele, que
você volta a viver sem sonhar, quando a gente acorda, quando a gente conta o sonho para os
outros ou quando a gente interpreta os sonhos? Não seria o trabalho do luto algo análogo ao
trabalho da análise, ou seja, uma tarefa finita e uma atividade infinita? Parecia fácil dizer que
o sonho terminou, mas se você vai radicalizando a coisa, o trabalho de elaboração do sonho é
um trabalho infinito, porque há uma parte desconhecida: Unbekante. Ademais, tem um ponto
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(10) Possivelmente, contudo, uma conjectura nos ajudará aqui – então ele vai descrever
em detalhes o luto – cada uma das lembranças e situações de expectativa que demonstram a
ligação da libido ao objeto perdido se defrontam com o veredicto da realidade. (Freud, 1917, p.
79). Eu lembro, vou lembrando mais, eu vou fazendo aquela pessoa reexistir, eu vou recriando
aquela pessoa e aí eu percebo que ela não está mais. O veredicto da realidade. Ou seja, isso
vai acontecendo inúmeras vezes, é um vai e volta. Ainda conforme Freud: “... segundo o qual
o objeto não existe mais; e o ego, confrontado, por assim dizer, com a questão de saber se
partilhará desse destino” (Freud, 1917, p. 82), olha a pergunta: o que nos faz recuar dessa
reconstrução? O psicótico falharia nessa descontinuidade.Para ele a subjetivação da morte
é um problema distinto do que se passa na neurose. Ou seja, voltamos ao problema de que
existem perdas de pessoas e existem perdas de ideias. Existem perdas que criam símbolos e
existem símbolos de perdas. Qual a diferença entre perder uma ideia e perder uma pessoa?
Ah, porque eu sei que eu não estou nesse mesmo estado que o outro, ao passo que quando a
gente perde uma ideia, o que perdeu e o perdido pertencem a registros, vamos dizer assim,
diferentes, desde sempre diferentes.
(11) Assim, “o ego é confrontado com a questão de saber se partilhará desse destino”
(Freud, 1917, p. 81) é uma questão que vocês vão encontrar em Heidegger, Medrard Boss, de
toda a reflexão antropológica que coloca a morte como universal na finitude humana. E Freud
segue “é persuadido, pela soma das satisfações narcisistas que deriva de estar vivo, a romper
sua ligação com o objeto abolido – então é a hora que eu o solto –, talvez possamos supor
que esse trabalho de rompimento seja tão lento e gradual”; olha aqui a função do tempo. Ele
está falando da extensão, mas há toda uma topologia do tempo, para falar com Lacan, dessa
passagem ou da temporalidade do luto. Bons artigos e bons trabalhos exploraram isso, menciono
de passagem O Tempo e o Cão (2009), da Maria Rita Kehl. Muita gente trabalha com Walter
Benjamin para enfrentar esse problema. Enfim, há o pessoal em História, que estuda como é
que os lutos coletivos envolvem uma temporalidade própria e como essa temporalidade pode
ser traduzida pela escrita. Tem inúmeras implicações disso que Freud está colocando aqui,
que o tempo passa de outra forma quando a gente está em luto. E se a gente não respeita,
acompanha, interpreta e percebe essa temporalidade, aí sim tem um patológico. E é o que a
gente está fazendo massivamente. Se a gente apressa o luto, ele complica. “Levanta a cabeça
e trabalha, trabalha que passa. Cabeça vazia, oficina do demônio. Trabalhe, se ocupe, faça
alguma coisa, que passa, não fique pensando nessas coisas”, não é? Olhe o que a gente está
dizendo. Se passar de 15 dias, então, tome um antidepressivo. Veja o que significa o luto que
essa pessoa começa, então, a viver após o funeral, cremação. Todos procuram, falam, lembram,
mas depois de dois meses, é você. Você e às vezes aquele um, dois, com quem você está. E dali
a pouco é você sozinho. O mundo continua, as pessoas estão aí, trabalham, fazem as coisas.
Mas você está em um outro tempo, muito problemático, porque o que a gente está vendo aqui,
o luto faz resistência estrutural à lógica da produção, à lógica do apressamento. Mais ou menos
assim: “vamos, gente, produza aí esse objeto do luto. Produza o resultado desse trabalho”.
Trabalho remete a produto. Trabalho, produto, troca, não é? É um modelo de interação social.
Freud segue em sua obra ponderando que há satisfações narcisistas que derivam de estar vivo,
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Por isso o desejo é o desejo de desejo. Por isso o desejo não é o desejo do objeto. Se ele fosse
um desejo de objetos, seria finito. Os objetos são contáveis. Mas ele sendo desejo do desejo do
Outro, o desejo de possuir o desejo do Outro, de ter o desejo do Outro para si. Por que isso é
impossível? Porque para possuir o desejo do Outro, deveria possuir todos os traços dele. E eu
não posso possuir todos os traços, porque tem pelo menos um traço que representa que no
Outro há um fragmento de infinitude.
(12) Vamos ver as duas últimas citações da obra de Freud (1917, p. 83): “No luto também
os esforços para separar a libido são enviados nesse mesmo sistema, mas nele nada impede
que esses processos sigam o caminho normal através do pré-consciente até a consciência”.
Aqui tem uma pista, que vamos explorar, que é a seguinte: há no luto um processo, que o
próprio Freud diz, que convoca um conceito de dor psíquica. O que é dor psíquica? Dor não é
sofrimento, dor não é mal-estar, dor psíquica é uma situação específica: “o momento em que
para a dor e começa a saudade, é o momento que termina o luto”. Tudo bem, mas o que é
a dor? Do que é composta a dor psíquica? Não é dizer que é a falta ou a ausência do objeto.
Não, dor é dor. Quando você está sentindo dor psíquica, você está sentindo uma coisa sem
querer. É dor psíquica. O problema metapsicológico da dor começa lá no Projeto, quando
Freud diz que existem duas experiências fundamentais que constituem a subjetividade: a
primeira é a experiência de encontro com o prazer, que gera o desejo de retorno a traços
mnêmicos de percepção. Ou seja, aí começa o desejo. O desejo é a repetição. O desejo é o
retorno a traços mnêmicos. Isso conduz a conhecida noção de Fort-da (Freud, 1920), enfim,
é um grande momento de Freud lá no Projeto para uma Psicologia Científica (1895). Mas tem
uma segunda experiência fundamental: como se constitui o Eu? O Eu se constitui a partir de
uma experiência de dor. “Tira a mão daí”, “ai, doeu”, do-eu. O que seria essa ideia? “Doeu, do-
eu”. Esse é um movimento de inibição, de proteção, de “não vou mais ali, porque dói”, não é só
uma coisa que acontece, é uma experiência constitutiva, uma experiência que constitui uma
estrutura. A partir de então ali tem Eu. Na teoria da constituição do Eu, Lacan, em Estádio
do espelho como Formador da Função do Sujeito [Je] tal como se nos revela a experiência
psicanalítica (1949) vai falar que o Eu se constitui pelo reconhecimento do valor simbólico
da imagem no olhar do Outro, o estádio do espelho, quando eu consigo dizer: “essa é a minha
imagem, isso me simboliza” e a realidade dessa imagem é o que define a minha posição como
eu, então agora tem Eu. São teorias diferentes. Freud não diz que o Eu começa assim, ele diz
que o Eu começa como um novo ato psíquico ou começa com a dor. Qual é o problema da dor?
É que ela nos remete – e por isso a gente não consegue ter uma boa teoria da dor – a uma
teoria da consciência. A dor é sempre consciente. Será? E as dores internas, as dores que você
não consegue nem perceber? Elas são dores ou não são dores? Limite aí para quem quiser
pesquisar, é um problema. Como não tem teoria da consciência, a não ser a observação em uma
nota sobre O Problema Econômico do Masoquismo, onde Freud (1924) – diz que se um dia
quiseres falar alguma coisa sobre a consciência, teríamos que pensar a relação da consciência
com o tempo. Consciência tem a ver com o tempo. A estrutura da consciência tem que ver
com a estrutura subjetiva do tempo. Voltamos ao tempo, tempo do luto, transformação da
consciência e tempo. Só que estamos voltando ao problema que não avançamos, porque não
temos realmente recursos para estabilizar a pergunta.
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isso que estamos problematizando, é uma questão de todos nós, se você quiser trabalhar no
registro da culpa. Luto é complicado, porque ele nos coloca nessa dimensão do infinito. O luto
de um, vira o luto de todos nós, dos que já foram, dos que estão e dos que virão.
Pondera ainda Freud (1917, p. 82) que“é possível que o processo no Ics. chegue a um fim,
quer após a fúria ter-se dissipado [a fúria se dissipa], quer após o objeto ter sido abandonado
como destituído de valor”. Vocês sabem o que esse rapaz fez antes de partir para o crime?
Ele queimou a foto dos pais. Dos pais juntos. Eles já tinham se separado, ele tinha uma foto e
queima essa foto. Especulemos, parece ter alguma relação com “estou matando, mas como é
que estou matando?”. Queimando, falando... quantas formas há de matar o outro? Tem um
livro lindo da Nicole Loraux, uma helenista, que estudou como as mulheres eram mortas na
Grécia antiga, Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher. É um livro sensacional, no qual ela diz
que as maneiras que haviam de matar uma mulher na Grécia antiga eram as maneiras de lidar
com o impossível da pólis grega. Maneiras de lidar com o Real da pólis grega, que é a mulher,
a Antígona. Por exemplo, o que você faz com a mulher quando ela começa a falar? Falar para
valer. Todo mundo tenta enterrar, Polinices e Etéocles também: “cala a boca Creonte, porque
eu vou em frente”. O que você faz com isso? Você tem um problema. E aí a obra Maneiras
Trágicas de Matar uma Mulher apresenta uma forma de simbolizar a mulher enquanto objeto
social, enquanto representante disso que eu chamei de infinito. Está no desejo, mas há algo
– que Lacan ao final de sua obra começa a reconhecer mais claramente – de uma relação
particular da mulher com o infinito. O homem também se relaciona com o infinito, mas de
outra maneira.
Lacan vai olhar para essa teoria e dizer que ela é insuficiente e incompleta, ela parte
daquilo que ela deveria explicar. Ela conta com uma teoria do luto para explicar a melancolia,
quando essa teoria do luto é o que estamos discutindo, queremos saber como funciona o
luto. Nesse caso o método freudiano não funcionou muito bem. Primeiramente Lacan vai ler
Hamelet no Seminário 6 e dizer: “existe o luto do falo, que envolve também fazer o luto da
possibilidade de que o outro possa te perder”, quer dizer, você também identificado ao falo.
E nesse luto ele fala da água, fala de um desmembramento, de uma correnteza. Fala que o
luto caminha para a produção de um informe. Informe não no sentido da informação, mas no
sentido de um objeto que perde a forma. Então o falo, quanto mais forma ele tem, mais vivo
está. O luto como operação de simbolização do falo e de desindentificação com o falo implica
essa produção. O que está sendo produzido: o objeto desse trabalho é a produção de um
informe de algo sem forma, de algo anamórfico.
Rapidamente consideraremos algumas obras de arte, como o luto do filho de Santo
Agostinho, Adeodato; o luto de Virgem Maria, entre outras. Em todas as imagens de luto é
apresentada uma pessoa com o pescoço virado para um lado, olhando para baixo, recusando,
portanto, a oposição especular de reconhecimento intersubjetivo. E em uma imagem,
produzida por um computador, que fez análise comparativa de pessoas que fazem desenhos
sobre seu processo de luto, se descobriu que nos desenhos das pessoas que vão progredindo
em seu luto, a forma vai se transformando em um jogo de cores, ela vai se integrando, perdendo
a forma. Não foi mais ou menos assim que eu falei do abraço com a minha avó? Eu falei: “foi
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aumenta. Esse processo de incorporação fálica está mediado por uma modalidade de gozo,
todos os homens são castrados, mas tem um que não, quem é esse que não é? O pai da
horda primitiva, aquele ser mítico que deu origem à série e que esse é o que foi originalmente
morto. A cena do parricídio é feita para homem. E onde é que estão as mulheres? Estão todas
acessíveis ao pai da horda primitiva. E quem é que funda a civilização? Os irmãos, que já foram
expulsos, estão sedentos por uma sexualidade, porque o pai fica com todas para ele, então
vamos lá, matamos o pai e se alguém ocupa o lugar do pai, morre como ele, então no lugar do
pai a gente põe a lei. E aí cria-se o totem e do totem vem o tabu. Agora as mulheres podem
ser distribuídas: N-1 “você fica com duas, eu fico com três, você com quatro e a gente troca de
vez em quando.” Lindo, não é? Tem um problema nessa história, o fato que essa é uma história
fálica. Se vocês querem pensar o luto em termos fálicos, pensem assim, acho que o Freud
serve. É homem no sentido macho.
Não, aqui tem um problema, porque o lado do homem na fórmula da sexuação também
é o lado do sujeito como uma certa aspiração de universalidade. E é um lado que lida com o
gozo de uma maneira específica, que é o que a gente poderia chamar de infinito contável, que
é como frequentemente – não vamos generalizar – os homens lidam com seu gozo. Uma, duas,
três, quatro, cinco... quantas eu consigo acumular? Enquanto isso está acontecendo, eu estou
inscrito no campo que define o conceito “homem”. Por isso fantasias típicas: “quanto mais,
mais homem”. Será? Lembrem como essa é uma narrativa acumulacionista, possessivista.
Você é tão mais homem quanto mais você tem. E para você ter, você tem que poder contar. Se
tiver menos vamos brigar, mas a partir de uma regra que não discutimos: um é um, dois é dois,
três é três e vamos em frente segundo uma regra regular e discernível de formação.
Em 1972-1973 Lacan (1981) propõe uma crítica incrivelmente interessante a essa
universalização do modelo proposto em Totem e Tabu. Sobre o falo e depois objeto a, ele
diz que existem dois modos de gozo, dois modos de contar isso que a gente viu. Mas existe
um outro em que, entre o um e o dois, encontra um infinito. Esse é o que faz com que diga
“a mulher não existe”, por que a mulher não existe? Porque a existência seria a nomeação
de todos os traços e todos os números que estão entre um e dois. “Mas eu posso contar, 0,1,
0,2...” é uma forma profundamente masculina de contar e organizar as coisas. Imaginem que a
regra de contagem fosse semelhante a uma reta real. Então aí eu não tenho o próximo número
formado por uma sucessão regular a partir do anterior. Uma maneira bastante simples de
dizer o seguinte: o que a gente tem na modalidade feminina de gozo? Um infinito incontável.
Por isso Lacan coloca o objeto a de um lado e o falo do outro na fórmula da sexuação. E
esse infinito incontável requer outra maneira de considerar a identificação, problema negado
pela teoria freudiana do Complexo de Édipo, “os homens se tornam mais homens na medida
em que se identificam mais com o pai.” As mulheres se tornam mulheres quando elas se
identificam com a mãe? Não, não é assim. Uma mulher se torna mais mulher na medida em
que ela se diferencia das outras, mas agora vem um problema, também se torna mais mulher
na medida em que se diferencia de si mesma. E ali está, então, algo que é na medida em que
é diferente de si mesma. Como é que eu me identifico com algo que não é uma identidade
identificável? Ou eu vou ter que mudar meu entendimento de identificação ou eu vou ter
REFERÊNCIAS
Alouch, J. (2004). Erótica do Luto em temos de morte seca. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud.
Freud, S. (1917). Luto e Melancolia. São Paulo: CosacNaify.
Lacan, J. (1981). O Seminário Livro XX... mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Lambotte, M. C. (2000) Estética da Melancolia. Rio de Janeiro: Companhia de Freud.
Leader, D. (2008). The New Black: mourning, melancholia and depression. Londres: Hamish
Hamiltong.
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