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Análise Comparativa - Jacobb

Este documento apresenta uma análise comparativa entre o conto "Amor" de Clarice Lispector e o poema "Olhos D'água" de Conceição Evaristo. Analisa os temas abordados e as semelhanças e diferenças entre as obras, utilizando referências teóricas como Antônio Cândido e Benedito Nunes. Destaca como Clarice Lispector inovou ao misturar as narrativas interna e externa sem divisão, usando fluxo de consciência.

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Análise Comparativa - Jacobb

Este documento apresenta uma análise comparativa entre o conto "Amor" de Clarice Lispector e o poema "Olhos D'água" de Conceição Evaristo. Analisa os temas abordados e as semelhanças e diferenças entre as obras, utilizando referências teóricas como Antônio Cândido e Benedito Nunes. Destaca como Clarice Lispector inovou ao misturar as narrativas interna e externa sem divisão, usando fluxo de consciência.

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Ana Karoline Pereira dos Santos


Danielle Evangelista Oliveira
 
Análise Comparativa: Conto "Amor" de Clarice Lispector e o poema “Olhos
D’água” de Conceição Evaristo.  

Este estudo tem por objetivo a realização de uma análise comparativa entre as
obras “Amor” de Clarice Lispector e "Olhos d’água" de Conceição Evaristo, a
fim de estabelecer quais as diferenças e semelhanças entre os nexos
temáticos abordados nos contos. Para a fundamentação teórica, serão
utilizadas as obras: “No raiar de Clarice Lispector” de Antônio Cândido, “A
narração desarvorada” de Benedito Nunes, “O drama da linguagem: uma
leitura de Clarice Lispector” de Benedito Nunes “Literatura Afro-brasileira, um
conceito em construção” de Eduardo de Assis Duarte e “A memória coletiva” de
Maurice Halbwachs.
 
O conto “Amor” está inserido na obra “Laços de Família”, que foi publicada em
1960. O conto é o relato de uma longa introspecção, no qual retrata um
episódio trivial da vida de uma pessoa comum, que perante uma situação
cotidiana, sofre uma epifania que traz profundas reflexões sobre si mesma e o
mundo que a rodeia. O conto possui narração em terceira pessoa, com
narrador onisciente, que tem acesso a emoções sentimentos e monólogos
inteiros, apresentando “a vida introspectiva, num grau paroxístico que leva ao
paradoxo na linguagem” (NUNES, 1989 p. 298).

Toda a trama gira em torno de Ana, a protagonista, uma mãe, esposa e dona
de casa que ocupa o tempo cuidando de sua família e das tarefas domésticas.
O conto apresenta outras personagens como o filho de Ana, o marido e o
homem cego que ela enxerga através da janela do bonde, mas Ana é a única a
quem a autora atribui uma densidade psicológica. Dessa forma, no decorrer
do conto é possível acompanhar os vários estados de espírito de Ana,
principalmente após ter uma epifania enquanto estava no bonde, a caminho de
sua casa.

As obras de Clarice Lispector representam uma ruptura nas condições de


produção literária, que é uma tendência na Literatura Brasileira no século XIX
em diante: há uma tendência narrativa mais realista, assim como há também a
construção de uma tensão do sujeito com o meio social. A crítica tecida por
Antônio Cândido é justamente a de que, até então, faltava uma inovação na
maneira de trazer essa relação da tensão entre o sujeito e o meio social,
Cândido afirmava haver um “conformismo estilístico” no pensamento literário.
(CANDIDO, p. 125). Para Cândido:

[...] Numa literatura, enquanto não se estabelecer um


movimento de pensar efetivamente o material verbal; enquanto
não se passar da afetividade e da observação para a síntese
de ambos, que se processa na inteligência, — não será
possível encará-la do ângulo das produções feitas para
permanecer [...] Para que a literatura brasileira se torne grande,
é preciso que o pensamento afine a língua e a língua sugira o
pensamento por ela afinado. Uma corrente dupla, de que saem
as obras-primas e sem a qual dificilmente se chega a uma
visão profunda e vasta da vida dentro da literatura. (1970, p.
126):

Clarice, não apenas transforma o sujeito em tensão, expandindo as formas de


construir essas relações, mas difunde essa tensão no âmbito psicológico.
Em “amor”, esses elementos podem ser notados no seguinte trecho:

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa


da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o
sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções.
Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um
pouco em espanto. [...] Saía então para fazer compras ou
levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à
revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças
vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria à noite, com sua
tranquila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos
deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos,
como se voltassem arrependidos. (LISPECTOR, 1960, p. 11)

No trecho acima, é possível notar que há uma reflexão sobre a angústia


cotidiana e a inquietação em meio a monotonia da rotina, acentuando o
monocentrismo da narrativa e seu caráter introspectivo: “Sua precaução
reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde [...]”, “seu coração
apertava um pouco em espanto”; a “hora perigosa”, traz uma tensão e altera o
estado de espírito da personagem. Essa hora refere-se ao momento em que
encerramos as atividades banais que ressignificamos para que haja uma
“aceitação”, mesmo que momentânea da vida que levamos; é o momento que
temos uma pausa de todo o automatismo que a rotina nos envolve, e temos
tempo para encarar tudo o que (in)consciente reprime e dissipa ao ocuparmos
as horas: o fardo que o gênero feminino nos impõe, sonhos que foram
deixados para trás, frustrações, decepções, desejos e tudo o que toca no
amago da nossa existência.

Vale ressaltar, que a autora usa da prosopopeia, recurso poético que tem a
finalidade de personificar seres inanimados; dessa forma, ao atribuir
características humanas, como a capacidade de oferecer perigo, a hora
parece ter vida própria. Assim, a “hora perigosa” chega como um fantasma,
trazendo temores e ânsias, e o peso do vazio que sempre vai existir, por mais
que ocupemos todas as horas de nossos dias, numa falha tentativa de fuga
dessa verdade que nos atinge e muitas vezes, assombra. Usando de recursos
poéticos, a obra apresenta reflexões profundas, “no qual parece abolir-se a
distinção entre prosa e poesia [...]” (NUNES, 2004, p. 299) e que é narrada
num “fluxo verbal contínuo, sucessão de fragmentos da alma e do mundo”
(NUNES, 2004, p. 299).

Esses elementos psicológicos, quando apareciam anteriormente, eram


apresentados através do narrador, para contar o que acontece interiormente e
exteriormente, de maneira separada: a narrativa era interrompida, quando o
interior ia ser revelado.
No conto de Clarice, os elementos psicológicos são apresentados do início ao
fim da obra, através do fluxo de consciência, usando uma estratégia que
mistura as narrações, não havendo assim, divisão de mundo interno e mundo
externo: “No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das
coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair
num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse
inventado.” (LISPECTOR, 1960, p. 11); “sentir a raíz firme das coisas” refere-se
a como Ana dedica a sua vida em família e como busca manter a ordem e o
controle das coisas.

Quando refere-se ao “destino de mulher”, Ana denuncia não se reconhecer


mais na pessoa que fora antes de se casar; e que ao emergir do torpor da
monotonia, descobre que “sem a felicidade se vivia” (LISPECTOR, 1960, p.
11), que em troca da “exaltação perturbada que tantas vezes se confundira
com felicidade” (LISPECTOR, 1960, p. 11) da vida que vivera antes, havia sido
substituída por uma “vida de adulto” em que, Ana assume uma
responsabilidade por suas escolhas, mas reconhecendo que, apesar das
escolhas, a ela era relegado um destino, uma função, um papel comum ao seu
gênero. Assim, as narrativas internas e externas são entrelaçadas, não fica
claro quando o narrador está entrando no mundo interno da personagem.

É essa mistura de vozes que revoluciona a técnica narrativa da prosa


brasileira, que segundo Cândido:
A autora (ao que parece uma jovem estreante) colocou
seriamente o problema do estilo e da expressão [...] Sentiu que
existe uma certa densidade afetiva e intelectual que não é
possível exprimir se não procurarmos quebrar os quadros da
rotina e criar imagens novas, novos torneios, associações
diferentes e mais fundamente sentidas. (CÂNDIDO, 1970, p.
128)

Em “Amor”, “a descoberta do cotidiano é uma aventura sempre possível, e o


seu milagre, uma transfiguração que abre caminho para mundos novos.”
(CÂNDIDO, 1970, p.128). Um traço comum que vale salientar nas personagens
de Clarice, seria a “violência represada dos sentimentos primários e destrutivos
– cólera, ira, raiva, ódio – que subitamente explodem.” (NUNES, 1989, p. 103):

Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os


olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer
sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir —
como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a
visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas
continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu
uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o
pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão —
Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de
saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros
olharam assustados. (LISPECTOR, 1960, p.12)

Após as compras do jantar, quando se preparava para retomar a rotina, a visão


de um homem cego mascando chiclete, a leva a ter uma epifania: a imagem
que faz parte da vida cotidiana causa em Ana um efeito estarrecedor, o que a
leva a derrubar as compras. Ela observava o homem, com um olhar que “quem
a visse teria a impressão de uma mulher com ódio” (LISPECTOR, 1960, p. 12)
pois a simples existência desse homem cego, veio a confrontar a alienação
costumeira de Ana, com o quão dura a vida pode ser, mostrando um
sentimento primário de raiva e ressentimento. Esse momento quebra a barreira
que Ana havia construído desde o casamento, colocando-a de frente com a
vida e sua “falta de sentido”, mostrando que apesar de tentar, Ana jamais teria
o controle das coisas.

Em seu regresso a casa, permanece com a ânsia gerada pela epifania, de


forma que a vida que levava, deixava de ser aceitável e parecia um “modo
moralmente louco de viver”:
A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se
seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares
pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles...
Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança
entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou
o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-
se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. (LISPECTOR,
1960,p. 14)

Nesse trecho, Ana subverte o imaginário popular da palavra amor, que dá título
ao conto, mostrando que
[...] esses sentimentos fortes e violentos, que polarizam a vida
afetiva estão sujeitos a bruscas transformações. A cólera é o
reverso do amor. Tormentoso, tirânico e maligno, o amor traz
sempre uma “vontade de ódio”, e o ódio, uma vontade de amor.
(NUNES, 1989, p. 103)

Mais tarde, a protagonista reflete sobre a sua família e recupera seu estado de
alienação, recuperando a sensação de conforto habitual:

Riam-se de tudo com o coração bom e humano. As crianças


cresciam admiravelmente em torno deles. E como uma
borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que
ele nunca mais fosse seu. (LISPECTOR, 1960,p. 15)

O trecho anterior, marca mais uma vez o caráter poético da prosa de Clarice
Lispector: “E como uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos
antes que ele não fosse seu”, usando das figuras de linguagem, comparação
e prosopopeia, o trecho mostra assim, que apesar da vida ser horrível as
vezes, ainda é possível ver beleza no mundo, se afinarmos nosso olhar a
delicadeza das coisas. Assim, tentava guardar em sua memória o momento
que lhe trouxe alegria e segurança, aceitava a precariedade da vida, tomando
consciência sobre a efemeridade de tudo que amava e se afunda novamente
alienação costumeira: “Penteava-se agora diante do espelho, por um instante
sem nenhum mundo no coração.”, deixando seu coração leve e dissipando
da mente o enxergar de si mesma.

Conceição Evaristo é uma grande figura da literatura contemporânea, suas


obras relatam a vivência de mulheres negras e as reflexões acerca das
profundas desigualdades raciais brasileiras. Misturando realidade e ficção,
suas obras trazem retratos do cotidiano, denúncias da desigualdade de gênero
e raça, e também aborda a recuperação da ancestralidade da negritude
brasileira. Citando Eduardo de Assis Duarte:

[...] não basta ser afro-descendente ou simplesmente utilizar-


se do tema. É necessária a assunção de uma perspectiva e,
mesmo, de uma visão de mundo identificada à história, à
cultura, logo a toda problemática inerente à vida desse
importante segmento da população. (2007, p. 12)

Este trabalho analisará sua obra “Olhos d’água”, em específico o primeiro conto
que dá título ao livro. Publicado em 2014, o livro tem 116 páginas e é composto
por 15 contos - são eles: Olhos d’água, Ana Davenga, Duzu-Querença, Maria,
Quantos filhos Natalina teve? Beijo na face, Luamanda, O cooper de Cida,
Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos, Di lixão, Lumbiá, Os amores de
Kimbá, Ei,Ardoca, A gente combinamos de não morrer e Ayoluwa, a alegria do
nosso povo- onde, cada conto evidencia a violência urbana que atinge
mulheres negras e expõe suas rotinas de miséria e exclusão social.

No título Olhos D’água, Conceição utiliza-se da imagem dos olhos para fixar
um centro de poeticidade para a história, é por meio dessa imagem que se
desperta na narradora as lembranças de sua dolorosa infância, relatando o
sofrimento de uma mãe, negra e pobre, que fazia sacrifícios para cuidar dos
filhos. A grande questão da filha era “qual a cor dos olhos de minha mãe” e é
com base nesta dúvida, que o conto é construído. Narrado em primeira pessoa,
a narradora-personagem é uma das sete filhas desta mulher: "Sendo a primeira
de sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas próprias dificuldades,
cresci rápido, passando por uma breve adolescência." (EVARISTO, 2015, p.
16) 

Ao se relembrar e narrar suas memórias, a personagem acaba confundindo


suas vivências com as lembranças de sua mãe:

[...] Às vezes, as histórias da infância de minha mãe


confundiam-se com as de minha própria infância. Lembro-me
de que muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela
subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali, apenas o
nosso desesperado desejo de alimento. (EVARISTO, 2015,
p,16).

Conceição Evaristo reforça que a desigualdade social é um problema que


acaba sendo herdado pelas gerações futuras.É possível dialogar com Maurice
Halbwachs nessa fusão de memórias da narradora e de sua mãe, segundo
Halbwachs, só nos lembramos daquilo que ainda faz sentido dentro do grupo
social ao qual pertencemos no presente, só conservamos uma lembrança se
ainda nos identificamos com este:

Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de um


acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É
necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados
ou de noções comuns que se encontram tanto no nosso
espírito como no dos outro, porque elas passam
incessantemente desses para aquele e reciprocamente, o que
só é possível se fizeram e continuam a fazer parte de uma
mesma sociedade. (1990, p. 34).

Comum na Obra de Conceição Evaristo, a herança da geração seguinte revela-


se um traço aos seus ancestrais, como uma conexão estabelecida com
passado e futuro que se concretiza no desfecho do conto, no momento em que
em frente à filha a narradora brinca de buscar a verdadeira cor de seus olhos: 

[...] Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha mãe,


tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a
brincadeira em que os olhos de uma são o espelho dos olhos
da outra.  E um dia desses me surpreendi com um gesto de
minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce jogo,
ela tocou suavemente o meu rosto, me contemplando
intensamente. E, enquanto jogava o olhar dela no meu,
perguntou baixinho, mas tão baixinho como se fosse uma
pergunta que para ela mesma, ou como estivesse buscando
ou encontrando a revelação de um mistério ou de um grande
segredo. Eu escutei quando, sussurrando, minha filha falou:
Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos? (EVARISTO, 2015,
p.19)

Ainda sobre a busca de identidade, a narradora recorda das integrantes de sua


família, e de sua ancestralidade desde a África:

Havia anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saíra de


minha casa em busca de melhor condição de vida para mim e
para minha família: ela e minhas irmãs tinham ficado para trás.
Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a
importância dela na minha vida, não só dela, mas de minhas
tias e todas as mulheres de minha família. E também, já
naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas as nossas
ancestrais, que desde a África vinham arando a terra da vida
com suas próprias mãos, palavras e sangue. Não, eu não
esqueço essas senhoras, nossas Yabás, donas de tantas
sabedorias. (EVARISTO, 2015 p. 18)

A reflexão acerca da cor dos olhos de sua mãe é uma forma de buscar a
identidade perdida da personagem, retornando a suas origens, somente
descobrindo a cor dos olhos de sua mãe, a personagem conseguirá descobrir a
si mesma. Uma das características marcantes no conto, é a poeticidade que se
dá a partir da presença da imagem do olho, que vai se fortalecendo nas
repetições, o que ocasiona as recordações da narradora de sua infância. É por
meio da indagação “de que cor eram os olhos de minha mãe?” que Conceição
fixa a imagem dos olhos como eixo da narrativa.

Com o uso da linguagem poética, a autora integra o aspecto da violência ao


enredo, Conceição consegue apresentar cenas de profundo impacto aos
leitores de uma forma “sutil”, com leveza em suas palavras, mas, mesmo com o
uso deste “brutalismo poético” não se apaga as dificuldades e sofrimentos
narrados pela personagem: “Era como se cozinhasse, ali, apenas o nosso
desesperado desejo de alimento. [...]” (EVARISTO, 2015, p.16).  A
musicalidade também é um elemento importante no conto, como em: “Chovia,
chorava! Chorava, chovia!” (EVARISTO, 2015, p. 18). Outro recurso estilístico
utilizado no enredo, é a escrita que se baseia na hifenização das palavras, este
recurso recebe o nome de palavras siamesas: “lava-lava” e “passa-passa” (p.
16). 

O tema central do conto "Olhos d’água " é a desigualdade social. A autora


retrata situações que fazem parte do cotidiano da personagem, sendo esta a
filha mais velha de sete irmãs, é implícito as responsabilidades que já assumia
na infância: "Cresci rápido, passando por uma breve adolescência "
(EVARISTO 2015 p. ?).  A alegria era um sentimento pouquíssimo conhecido: "
Prenúncio de possíveis alegrias" (EVARISTO, 2015 p.). O enredo mostra que
direitos básicos - como alimentação - eram negados a sua família: "[...] fervia
panela cheia de fome [...]" (EVARISTO, 2015 p.), sendo assim, tece reflexões
profundas sobre a desigualdade racial brasileira, e como esta é herdada de
geração a geração. Mas, além das denúncias acerca da desigualdade, a autora
não foca apenas em vitimizar a personagem, ela a torna protagonista de sua
própria história, e se volta para a recuperação de sua ancestralidade da
negritude a qual pertence:

A maior parte de qualquer presente é feita de passado. A


história [...] é em grande medida continuidade. Faz parte de seu
complexo peso material não poder ser constantemente
remodelada. E, mesmo quando conseguimos transformá-la de
fato, podemos perceber que seu peso repousa como um
pesadelo no cérebro dos vivos (2006, p. 45).

Os pontos de referência do horizonte da autora são “autoconhecimento e


expressão, existência e liberdade, contemplação e ação, linguagem e
realidade, o eu e o mundo, conhecimento das coisas e relações
intersubjetivas [...]” (NUNES, 1989, ???) Ana simboliza a dona de casa de
classe média, que assim como muitas mulheres, cumpre as expectativas
sociais que são impostas por seu gênero: casar, ter filhos e cuidar dos afazeres
domésticos; essas questões referentes a classe social e papéis de gêneros já
pré-estabelecidos em sociedade, desvelam uma temática marcadamente
existencial. No entanto esse relacionamento com o existencialismo sartriano
não interfere diretamente nos aspectos que são peculiares de sua criação
literária. (NUNES, 1989, p.100) Segundo Benedito Nunes:
[...] É existencial a temática que lhe serve de arcabouço. Mas o
sentido global que essa totalidade significativa oferece já
diverge – e largamente – quer da filosofia da existência
centrada em torno da ideia da existência como realidade
fáctica, quer do existencialismo propriamente dito [...] A
divergência está na perspectiva mística que prevalece afinal e
redimensiona os nexos temáticos formadores da concepção do
mundo de Clarice Lispector – nexos que começam a ser
repensados e desfeitos [...] onde a temática da obra reflui.
(NUNES, 1989, p. 100,101)

A imagem do cego mascando chiclete, de maneira mecânica e no escuro,


parece uma metáfora para a forma alienada que Ana levava sua vida, repetindo
uma rotina mecânica. Ao ter essa epifania, ela acaba então, quebrando essa
rotina, e por um tempo, vislumbra a ideia de mudar sua vida. Essa vontade
muda, quando retorna para casa e enxerga o amor que sente pela família que
formou. Isso, retoma o título do conto, apontando que, apesar dos desejos,
sonhos deixados para traz e frustrações com a rotina, o que a move, segue
sendo o amor e toda a complexidade de sentimentos que se desencadeia por
conta dele.

Com a presente análise, conclui-se temáticas das obras se assemelham ao


retratar o cotidiano de duas mulheres, mas diferem quanto à realidade social
em que vivem. Ambas as obras apresentam um forte teor realista e uma tensão
com o meio social, abordando profundas reflexões desencadeadas,
principalmente pelo meio social exposto na narrativa. As reflexões nos contos,
acontecem de acordo com a realidade vivida por cada personagem: Ana, uma
mãe e dona de casa de classe média, que apesar de ter uma vida estável,
ainda assim, cumpre as expectativas referente ao papel social da mulher:
casamento, filhos e família. Mas que, ao sair do seu estado de alienação,
sonha, divaga sobre seu antigo eu, uma realidade diferente da sua, em que
não está fadada ao casamento e tudo o que esse lhe impõe.

Já na obra de Conceição Evaristo, a personagem narradora nem se quer ter


um nome, é referida como a filha mais velha de sete irmãs, é uma mulher
negra, marginalizada, que ao tentar se lembrar da cor dos olhos de sua mãe,
começa a relembrar de sua árdua infância e como a dificuldade ainda existe
em sua realidade.

BIBLIOGRAFIA

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