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COLEÇÃO CONFLUÊNCIA DA LITERATURA E OUTRAS ÁREAS

Volume II
INTERPRETAÇÃO E MÚLTIPLOS OLHARES

Acir Dias da Silva


Lourdes Kaminski Alves
Éris Antônio Oliveira
Maria de Fátima Gonçalves Lima (org.)

Editora PUC-GO
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Biblioteca Central do Campus de Cascavel – Unioeste
Ficha catalográfica elaborada por Jeanine da Silva Barros CRB-9/1362

C759
Coleção confluências da Literatura e outras áreas. Vol. II
interpretação e múltiplos olhares / Organização de Acir Dias da Silva,
Lourdes Kaminski Alves, Éris Antônio Oliveira, Maria de Fátima Gonçalves
Lima. - Cascavel, PR: UNIOESTE ; Goiânia, GO: Editora PUC Goiás, 2012.
380 p.

ISBN 978-85-7103-666-6

Vários autores.


1. Ficção. 2. Literatura – História. 3. Memória. II. Título.

CDD 21ed. 809.01
CIP – NBR 12899
S U M Á R I O
APRESENTAÇÃO

PARTE I
INTERPRETAÇAO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA
CAPÍTULO 1
A OSCILAÇÃO DAS MARCAS NO JOGO DA FESTA UMA LEITURA DA CATEQUESE
Evelina HOISEL

CAPÍTULO 2
ESCRITURA E CRIAÇÃO: MARCAS DO REAL
Lourdes Kaminski ALVES

CAPÍTULO 3
O REAL E O FICCIONAL EM A CASCA DA SERPENTE E GUERRA NO CORAÇÃO DO
CERRADO
Maria Luíza Ferreira Laboissière de CARVALHO
Maria José Modesto SILVA

CAPÍTULO 4
LEITORES SEM FACE E HISTÓRIAS QUE NÃO EXISTEM: AS FOTONOVELAS E A PRODUÇÃO
CULTURAL
André Luiz JOANILHO
Mariângela Peccioli Galli JOANILHO

PARTE II
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGOS E INTERPRETAÇÃO DA
PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
CAPÍTULO 5
MACHADO DE ASSIS: UM MESTRE DA ESCRITA DO EU NA LITERATURA
Maria Aparecida RODRIGUES

CAPÍTULO 6
PARA LER GUIMARÃES ROSA: O VELHO PATRIARCA E A NOVA SINHAZINHA
Rita Felix FORTES
CAPÍTULO 7
AS ARTES DO HUMOR NAS TRAMAS DA HISTÓRIA
Maria de Fátima Gonçalves LIMA

CAPÍTULO 8
O (RE)DESCOBRIMENTO DA AMÉRICA PELA FICÇÃO: COLOMBO NA NARRATIVA DE AUTORIA
FEMININA NOVOS OLHARES SOBRE O PASSADO DA AMÉRICA
Gilmei Francisco FLECK

CAPÍTULO 9
REGIONALISMO LITERÁRIO: HETEROGENEIDADE E HISTÓRIA
Albertina Vicentini

CAPÍTULO 10
CICATRIZES NA MEMÓRIA:A MORTE NA OBRA DE BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS
Clarice LOTTERMANN

PARTE III
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO MAGINÁRIO
CAPÍTULO 11
IMAGENS POÉTICAS E LIRISMO EM LÍLIA A. PEREIRA DA SILVA
Antonio Donizeti da Cruz

CAPÍTULO 12
ALGUNS ASPECTOS DA RELAÇÃO EROS/TÂNATOS EM POEMASDE EDGAR ALLAN POE E DE
ALPHONSUS DE GUIMARAENS
José Carlos AISSA

CAPÍTULO 13
MEMÓRIAS DE LÁZARO, DE ADONIAS FILHO: UMA ESCRITA ROMANESCA DE DEVANEIOS
LÍRICOS
Divino José PINTO

CAPÍTULO 14
PLASTICIDADE E EMBRIAGUEZ DIONISÍACA EM SARGENTO GETÚLIO
Éris Antônio OLIVEIRA
PARTE IV
INTERPRETAÇÃO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES,
REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS
CAPÍTULO 15
UMA ANÁLISE DA PRESENÇA DO OUTRO EM OBRAS DE CLARICE LISPECTOR, TRADUZIDAS
PARA O INGLÊS
Diva Cardoso de CAMARGO

CAPÍTULO 16
A SAUDÁVEL MALUQUICE DE UM MENINO FELIZ
Maria Teresinha Martins do NASCIMENTO

CAPÍTULO 17
A HEROÍNA FRÁGIL E PERSEGUIDA DO GÓTICO ÀS NARRATIVAS BRASILEIRAS
Maurício Cesar MENON

CAPÍTULO 18
METATEATRO E TEATRALIDADE
Sonia Aparecida Vido PASCOLATI

PARTE V
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA
CAPÍTULO 19
O BARROCO NA MIRA DAS VANGUARDAS LATINO-AMERICANAS
Marta DANTAS

CAPÍTULO 20
PARA ALÉM DAS QUESTÕES DE TEMPO E ESPAÇO NO CINEMA. UMA LEITURA DE
DOGVILLE, DE LARS VON TRIERS
Julie FANK
José Carlos da COSTA

CAPÍTULO 21
IMAGENS DE KAFKA: OLHARES PARA A CONSTRUÇÃO
Acir Dias da SILVA
A P R E S E N T A Ç Ã O

O conteúdo é um vilumbre, um encontro como um lampejo.


É muito pequenino – um conteúdo muito pequenino.
(Willen de Kooning)

A coletânea Confluências da literatura e outras áreas volume II - Interpretação e


Múltiplos Olhares reúnem produção de trabalhos de pesquisas e interlocuções de integrantes
do grupo de pesquisa “Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura” compostas
por docentes do curso de Letras da UNIOESTE e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Letras, nível de mestrado e doutorado, área de concentração em Linguagem e Sociedade
da UNIOESTE e, outras instituições e programas de pós-graduação em letra, principalmente o
programa de Programa de Pós-graduação em letras da PUC/Goiás.
Interpretação e Múltiplos Olhares é o tema central das discussões propostas pelo
grupo para este livro, que reúne – como meio de coesão e de fortalecimentos dos laços
entre os pesquisadores agrupados – os resultados de suas pesquisas desenvolvidas ao longo
de suas atuações profissionais, bem como suas interlocuções com pesquisadores de outras
Instituições de Ensino Superior no Brasil. O Grupo de pesquisa Confluências da Ficção, História
e Memória na Literatura, ancorado numa perspectiva de interpretação da obra literária propõe
também a participação de pesquisadores de Programas de Pós-Graduação em letras de outras
universidades que dialogam com o tema Interpretação e Múltiplos olhares, a fim de fortalecer
e estender a abrangência de suas reflexões, num universo que transcende as fronteiras de
nosso País.
Os trabalhos estão organizados a partir da ideia central que norteia as pesquisas:
revelar os mecanismos utilizados na produção literária que possibilitam a Interpretação e
Múltiplos Olhares, da literatura, da história e da memória na produção literária pelo viés da
confluência que, entre outros pressupostos, busca traduzir, evidenciar e afirmar traços da
interpretação enquanto forma de conhecimento de diferentes autores e obras. Tal objetivo
é alcançado pela coletânea, uma vez que está composta pela própria confluência que se
evidencia na apresentação dos 21 capítulos de textos dos quais todos são criações acadêmicas
e ensaísticas inéditas.
Nas discussões da temática proposta, os autores apresentam suas diferentes
contribuições e propõem leitura a partir de elementos da literatura, da história e da memória
e as interfaces Sociais bem como os estudos comparados. O livro é dividido em cinco
partes: Parte I - interpretação da ficção, história e memória na literatura; parte II- literatura
e história: diálogos e interpretação da produção ficcional nos rastros da memória; parte III -
interpretação e confluência da lírica e do imaginário; parte IV - interpretação e testemunho:
práticas, construções, representações e diálogos e parte V - interpretaçao de imagens na
literatura, cinema e pintura. Todas as partes se juntam na demonstração científica acadêmica
da prática da confluência desses elementos na escritura literária contemporânea.
Em interpretação da ficção, história e memória na literatura, propõem-se
interpretações da memória e suas manifestações na literatura e na cultura, entendendo a
memória como registro do vivido e preservado em seus estilhaços no “resgate” de imagens
ou “reconstrução” da experiência humana e nesse sentido, nessa seção, há possibilidades
de estudos no conjunto da literatura ficcional que é à força da linguagem de alguns textos
e sua capacidade de se imporem como discurso esteticamente elaborado. É na recriação,
na transformação da rememoração em linguagem que surge a “oportunidade poética”. Ao
refletirem sobre a importância da memória no mundo contemporâneo, os autores apontam
para a memória como um elemento essencial para a interpretação de mundos individuais e
coletivos, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de
hoje.
Literatura e história: diálogos e interpretação da produção ficcional nos rastros da
memória, os autores transitam pelas malhas e rastros do passado e suas marcas no objeto
literário; abordam e interpretam as múltiplas perspectivas das transformações da cultura,
bem como o caráter fundador e histórico do romance e do leitor que, por sua vez, atualiza
determinados subsídios que, como rastros, perduraram ao longo do tempo. Os autores
abordam os rastros que ilustram a forma inversa da troca fronteiriça entre duas figuras do
tempo, a da contaminação de uma pela outra e tais características temporais são evidenciadas
pela databilidade, lapso de tempo. O rastro é recobrimento do tempo, uma maneira de
contar e narrar com o tempo. As discussões presentes nos artigos e ensaios estabelecem as
conexões entre tempo, a narrativa e os rastros da memória.
Interpretação e confluência da lírica e do imaginário e a multiplicidade de diálogos e
as construções do texto poético, a partir das representações sociais, simbólicas e míticas em
obras lírico-narrativas com enfoques centrados na modernidade e nas vanguardas literárias.
A interpretação das formas líricas e das formas discursivas, da imagem poética entendida,
conserva a sua multiplicidade significativa, de maneira que cada palavra encerra, em si, os
muitos significados da poesia. Diante disso, pode-se entender, então, que o homem expressa
seus pensamentos e emoções por meio da palavra. De tal modo que, a literatura é uma das
formas de apresentar a alegoria, o mito, o emblema e assim de permitir a sua permanência, o
seu desenvolvimento e a sua (re) atualização que interligam as representações imaginárias.
Em interpretação e testemunho: práticas, construções, representações e diálogos
apresentam vertentes interdisciplinares, as quais envolvem as áreas da Literatura, da História,
do teatro e da tradução, todos envoltos pelas discussões das práticas do objeto artístico
enquanto testemunho. A interpretação da literatura leva a compreensão das práticas culturais
que marcam a identidade tanto na forma como no conteúdo e o testemunho é uma maneira
de registro da memória e a representação um dos subsídios para a construção da identidade
de gênero.
Em interpretaçao de imagens na literatura, cinema e pintura, ressaltam-se as artes e a
literatura contemporânea; abrigam múltiplas técnicas em sua composição formal: a simbologia,
a alegoria, o pastiche e outros. A ficção é a arte antes de tudo, enquanto configuração ou
definição, uma mentira, uma invenção, uma fabulação. Uma mentira, uma invenção, uma
fabulação acompanhada de palavras e imagens. As artes e a literatura contemporânea, de
maneira geral, enquanto tradicional representação de “realidade”, ou de representação do real,
ou representação real, falam sobre a realidade em múltiplos pontos de vista pela descrição,
narração, análise, crítica, ironia e mediante atalhos e desvios retornam à própria arte e à ficção.
A coletânea Confluências da literatura e outras áreas volume II - Interpretação e
Múltiplos Olhares parte da ideia de que a interpretação não é uma atividade inventada pelos
teóricos da literatura contemporanea. A interpretação tanto de textos literários como da arte
em geral está associada a hábitos, comportamentos e gesto já propostos pelos os gregos que
lançam olhares para arte como mimesis, imitação da relidade.
De fato, Platão propôs essa tarefa que, mais tarde, foi instituida pelo pensamento
religioso, o qual, na medida em que tenta desvendar o significado da Palavra de Deus a partir
da leitura criteriosa, também autoriza que a obra Bíblica represente a correta interpretação
de cada texto. Em Platão, as coisas materiais são objetos miméticos, imitações de formas
ou estruturas transcendentes, ou imitacão da imitação. Esta origem do ato de interpretar
deixou alguns problemas para o presente. Há leitores que ainda acham, biblicamente, que
só se possa encontrar uma e apenas uma interpretação correta para cada texto, assim como
existem leitores que defendem, com ardor, o seu direito à interpretação livre, entendendo
que cada pessoa tem a sua interpretação, pessoal e intransferível. Ambos os grupos incorrem
em equívoco. Por um lado, não há uma interpretação única sequer para a própria Bíblia, por
isso, surgiram as religiões protestantes que traduziram os textos sagrados para as línguas
vulgares, de modo a facultar a leitura e a interpretação dos fiéis. Por outro lado, construir uma
interpretação pessoal do que quer que seja não é de modo algum uma tarefa automática: leu,
interpretou. Depende, antes de mais nada, de respeito ao texto que se lê e aos contextos, quer
do texto, quer do momento em que se lê. Na maioria das vezes, o que se chama de “minha
interpretação” não passa de um aglomerado desorganizado de clichês e citações alheias, lidas
e ouvidas de passagem, sem digestão, sem trabalho pessoal de construção.
Nesse sentido, a interpretação de textos bíblicos, como sabemos, costuma provocar
a multiplicação dos templos, uma vez que a maioria das interpretações se esforça por excluir
as demais, coerente com a necessidade de tudo-dizer — que implica o desejo de a todos
calar. A interpretação de textos literários, por sua vez, dinamiza o conflito de um modo
específico: enquanto interpretar, pressupõe tudo-dizer e tudo-esgotar, no estilo “jura revelar
toda a verdade, nada mais do que a verdade, somente a verdade”, a literatura pressupõe
momentânea suspensão justamente do que quer que se entenda por “verdade”, para melhor
perspectivizar as possibilidades de saber.
É este conflito que torna a interpretação uma tarefa delicada. “O conteúdo é um
vislumbre, um encontro como um lampejo. É muito pequenino — um conteúdo muito
pequenino.” Disse Willen de Kooning numa entrevista e, a partir de Kooning, a escritora Susan
Sontag produziu um trabalho exatamente contra a interpretação, questionando a tendência
a separar, na obra de arte em geral, na literatura em particular, a forma do conteúdo,
atribuindo caráter acessório à forma e essencial ao conteúdo. O projeto da interpretação
reforça a ilusão de que algo chamado conteúdo não somente existe, como é imensamente
mais importante, maior e mais profundo do que a aparência, isto é, do que sua forma.

Boa leitura a todos!


Os organizadores.

O S A U T O R E S

ALBERTINA VICENTINI – PUC/GO – Possui graduação (bacharelado e licenciatura) em


Letras Vernáculas pela Universidade Federal de Goiás, mestrado em Teoria da Literatura pela
Pontifícia Universidade Católica do Paraná e doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura
Comparada) pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professora titular da Pontifícia
Universidade Católica de Goiás, do Mestrado em História e do Mestrado em Letras da mesma
instituição. Tem experiência na área de Letras e Artes, atuando principalmente nos seguintes
temas: crítica literária, literatura, literatura brasileira, literatura regionalista, arte, cultura,
patrimônio. Trabalha ainda com teatro e cinema.

ACIR DIAS DA SILVA – FAP/UNIOESTE – Pós Doutorando pela UNICAMP, Doutor em


Educação, Cultura, Linguagem e Arte pela UNICAMP, com estudos sobre Cinema, Cultura,
Literatura e Memória. Dirigiu os filmes: A construção (1999), livre tradução da obra de Franz
Kafka; Ana é Maria (2004), criação a partir do conto Amor, de Clarice Lispector; Nora (2005);
A criação do Brasil (2006); Escrevo de país distante (2007) e Um dia ideal (2008). Publicou
Ensaios sobre comunicação (2006) pela editora Sintagma (SP). É professor do Programa de
Pós-graduação em Letras: Linguagem e Sociedade (UNIOESTE/PR). Atua como coordenador
do curso de cinema e vídeo da Faculdade de Artes do Paraná - FAP. É pesquisador associado
do Grupo de Pesquisas OLHO – F. E. UNICAMP. Atualmente, desenvolve editoria científica para
a revista eletrônica Travessias.

ANDRÉ LUIZ JOANILHO –UEL- André Luiz Joanilho fez a graduação e mestrado em historia
na UNICAMP. Concluiu o doutorado em História Social pela UNESP-Assis, em 1997 e, em 2002.
Fez estágio pós-doutoral na Université Lumière 2 - França. Atualmente é Professor associado
da Universidade Estadual de Londrina. Publicou 13 artigos em periódicos especializados e 42
trabalhos em anais de eventos. Possui 7 capítulos de livros, 9 livros publicados e é co-autor
em duas coleções de livros didáticos para ensino fundamental. Participou de 14 eventos
no exterior e 32 no Brasil. Orientou 4 dissertações de mestrado e co-orientou uma tese
de doutorado, além de ter orientado 14 trabalhos de iniciação científica e 4 trabalhos de
conclusão de curso nas áreas de História e Lingüística. Recebeu 1 prêmio e/ou homenagem.
Atualmente coordena 1 projeto de pesquisa. Atua na área de História, com ênfase em Teoria
e Filosofia da História e História Cultural. Em seu currículo Lattes os termos mais freqüentes
: Teoria da História, Representações, História Cultural, História do Brasil, Anarquismo e
Movimento operário. Concluiu estágio pós-doutoral na Ecole des Hautes Etudes en Sciences
Sociales em 2007.
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA 15
ANTONIO DONIZETI DA CRUZ – UNIOESTE - Professor Associado da Universidade Estadual
do Oeste do Paraná. Possui Pós-Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (2008), no Programa de Pós-graduação em Letras, área de Estudos da Literatura, sob
orientação do Prof. Dr. Gilberto Mendonça Teles. Doutorado em Literatura Brasileira pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2001). Mestrado em Teoria da Literatura pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1993). Especialização em Literatura
Brasileira e Lingüística, pela Universidade Federal do Paraná. Possui graduação em Letras
Português Inglês pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Palmas (1985). Ministra aulas
de Teoria da Literatura na graduação em Letras - Campus de Marechal Cândido Rondon e de
Lírica e Sociedade, e Literatura comparada no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Letras - Área de concentração em Linguagem e Sociedade, na Unioeste, campus de Cascavel.
Atualmente integra os Conselhos Editoriais das Revistas: LL Lengua y Literatura CUNY, The
Graduate Center, New York; Línguas & Letras (Unioeste); Revista Trama (Cascavel); Anais
da Jornada de Estudos Lingüísticos e Literários; Literatura, História e Memória. Membro
efetivo da ABRALIC, Membro efetivo do GT- Teoria do texto poético (ANPOLL) e Membro
efetivo da IASA - International American Studies Association. Integra a equipe de Editores do
LLjounal LL Lengua y Literatura (CUNY - New York). Faz parte do Comitê Editorial da Revista
Textopoético (GT- Teoria do Texto Poético - ANPOLL). Tem experiência na área de Letras, com
ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: linguagem,
poesia, imaginário, modernidade, memória, cultura e sociedade.

CLARICE LOTTERMANN – UNIOESTE - Possui graduação em Licenciatura em Letras Português


pela Faculdade de Ciências Humanas de Marechal Cândido Rondon (1987), mestrado em
Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Paraná (1995) e doutorado em Estudos
Literários pela Universidade Federal do Paraná (2006). Atualmente é professor adjunto da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Tem experiência na área de Letras, com ênfase
em Literatura Infanto Juvenil, atuando principalmente na pesquisa dos seguintes temas:
literatura infantil e juvenil, leitura, morte na literatura, ensino de literatura e na formação
inicial e continuada de professores de Literatura.

DIVA CARDOSO DE CAMARGO – UNESP- Diva Cardoso de Camargo concluiu o doutorado


em Estudos da Tradução pela Universidade de São Paulo em 1993. Atualmente é Professor
Adjunto da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Tem experiência na área
de Lingüística, com ênfase em Estudos da Tradução, atuando principalmente nos seguintes
temas: tradução literária, tradução juramentada, estudos da tradução baseados em corpus,
lingüística de corpus, e literatura brasileira traduzida.

DIVINO JOSÉ PINTO – PUC/GO - Possui graduação em Letras pela Faculdade Cora Coralina
(1984), mestrado em Letras e Lingüística pela Universidade Federal de Goiás (1990) e doutorado
em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2005). Atualmente é
professor assistente I da Universidade Católica de Goiás, estatuário - Secretaria Estadual de

16 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


Educação e professor da Universidade Estadual de Goiás. Tem experiência na área de Letras,
com ênfase no ensino e pesquisa em Teoria e crítica literária, atuando principalmente nos
seguintes temas: literatura: literatura comparada: história, discurso, memória, tradição e
semanálise; literatura: gêneros, história, cultura e literatura: narrativa: discurso, espécies e
romance histórico.

ÉRIS ANTÔNIO OLIVEIRA – PUC/GO - É graduado em Letras (Licenciatura) pela Universidade


Católica de Goiás (1975), mestre em Letras - Teoria da Literatura - pela Universidade Federal
de Goiás (1985) e doutor em Teoria da Literatura pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho, com a conclusão em 24/10/ 2003. Atualmente é aposentado pelo CENTRO
FEDERAL DE EDUCAÇÃO TECNOLÓGICA DE GOIÁS - CEFET - GO e professor adjunto III da
Universidade Católica de Goiás. Coordenador do Grupo de Pesquisa O ROMANCE EM GOIÁS
e integrante de um grupo de pesquisa da Universidade de São Paulo - USP, na área de
JORNALISMO E IMPRENSA PERIÓDICA NOS SÉCULOS XIX, XX e XXI, coordenado pelo Prof. Dr.
José Alcides Ribeiro; É autor do livro REALIDADE E CRIAÇÃO ARTISTICA EM GRANDE SERTÃO:
VEREDAS e resenhista de obras literárias em jornais de grande circulação. É críitíco, ensaísta
com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: estética,
ficção, romance e arte.

EVELINA HOISEL – UFBA - Possui graduação em Licenciatura e Bacharelado em Letras pela


Universidade Federal da Bahia (1970) , mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (1979) e doutorado em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela
Universidade de São Paulo (1996) . Atualmente é professor titular da Universidade Federal
da Bahia, Membro de corpo editorial da Estudos Lingüísticos e Literários, Membro de corpo
editorial da Floema (UESB), Membro de corpo editorial do Inventário (UFBA), Membro de
corpo editorial da Ipotesi (UFJF) e Membro de corpo editorial da Revista Outros Sertões. Tem
experiência na área de Letras , com ênfase em Teoria Literária. Atuando principalmente nos
seguintes temas: Literatura e Biografia, Teoria Literária, João Guimarães Rosa, Grande sertão
veredas.

GILMEI FRANCISCO FLECK – UNIOESTE - Doutorado (2008) em Letras pela Universidade


Estadual Paulista - UNESP/ Assis. Mestrado em Letras (2005) pela Universidade Estadual
Paulista - UNESP/ Assis. Especialista em Língua Espanhola e respectivas literaturas (2000)
pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC/Xanxerê e em Ensino de Inglês
como língua estrangeira pela Universidade do Oeste de Santa Catarina - UNOESC/Chapecó.
Possui graduação em Letras Habilitação Português/ Espanhol e Respectivas Literaturas
(2001) pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões -URI/Frederico
Westphalen e graduação em Letras Habilitação Português/ Inglês e Respectivas Literaturas
(1996) pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões -URI/Frederico
Westphalen. Atualmente é professor assistente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Tem experiência na área de Letras, com ênfase em literaturas hispânicas e língua espanhola,

INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA 17


atuando principalmente nos seguintes temas: cultura hispânica, literatura comparada,
literatura hispano-americana e espanhola e prática educacional

JOSÉ CARLOS AISSA – UNIOESTE - Possui graduação em Letras pelo Centro Universitário
Fundação Santo André (1983), mestrado em Comparative Literature - Pennsylvania State
University (1986) e doutorado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (2006). Atualmente é professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste
do Paraná (Cascavel). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Língua Inglesa e
respectivas literaturas, atuando principalmente nos seguintes temas: litaraturas de língua
inglesa, estudos literários comparativos e tradução, ensino de língua inglesa e formação de
professores.

JOSÉ CARLOS DA COSTA – UNIOESTE - Possui graduação em Letras pela Pontifícia


Universidade Católica do Paraná (1980) e especialização em Literatura Brasileira e Lingüística
pela Universidade Federal do Paraná (1987). Mestrado em Letras: linguagem e sociedade pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Docente do Curso de Letras Português/Inglês/
Espanhol/Italiano da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, atuando principalmente
nos seguintes temas: literatura brasileira, cultura brasilera, discurso ficcional, crítica literária,
literatura memória, literatura e história, ensino de literatura e formação docente;Membro
do Grupo de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura; Linha de
Pesquisa: Literatura, História e Memória.

JULIE FANK – UNIOESTE - Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual do Oeste
do Paraná - UNIOESTE -(2009) e é aluna regular do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Letras da UNIOESTE (2011-2013). É bolsista Demanda Social CAPES e integrante do Grupo
de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura. Atua, principalmente,
nos seguintes temas: Literatura Comparada, Crítica Literária, Literatura Latinoamericana,
Cinema e Literatura, Gêneros Híbridos no contexto da contemporaneidade, Escritura,
Processo Criativo. Tem experiência na docência e atua também nas áreas de Comunicação
Empresarial e Comunicação Social.

LOURDES KAMINSKI ALVES – UNIOESTE - Possui graduação em Letras Português/Inglês pela


Universidade Estadual do Oeste do Paraná (1985), Especialização em Metodologia e Prática de
Ensino de Língua Portuguesa pela Universidade Estadual de Campinas (1988), Especialização
em Metodologia do Ensino da Língua Inglesa pela Universidade Estadual de Campinas
(1990), Mestrado em Letras pela Universidade Estadual de Londrina (1996) e Doutorado em
Literatura Comparada e Teoria Literária pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho - Unesp (2003). Docente na categoria Associado na Universidade Estadual do Oeste
do Paraná. Tem experiência na área de Letras com ênfase em Literatura e Dramaturgia.
Atua principalmente nos seguintes temas: Literatura Comparada. Literatura e Dramaturgia
Brasileira. Literatura Clássica, Literatura e Ensino. É membro de GT da ANPOLL - Dramaturgia e

18 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


Teatro. Professora Associada na ABRALIC, na ABRACE, Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-
Graduação em Artes Cênicas, na AILC, .Internacional Comparative Literature Association. Líder
do Grupo de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura cadastrado
no CNPq. Consultor ad hoc da Fundação Araucária. Bolsista produtividade em pesquisa -
Fundação Araucária (PR).

MARIA APARECIDA RODRIGUES – PUC/GO - Possui graduação em Português e Literatura


da Língua Portuguesa pela Universidade Católica de Goiás (1979), mestrado em Letras
Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Goiás (1992) e doutorado em Letras pela
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2004). Atualmente é professor adjunto
da Universidade Católica de Goiás. Leciona na Graduação e no Mestrado em Letras: Literatura
e Crítica Literária. É coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Linguagem, líder do Grupo
de Estudos Literários no CNPq. Coordenada pesquisas e tem experiência na área de Teoria
Literária, Literatura e Língua Portuguesa. Atuando principalmente nos seguintes temas:
teoria literária, crítica literária, literatura brasileira, poesia, lírica contemporânea e filosofia da
literatura, estética.

MARIA DE FÁTIMA GONÇALVES LIMA – PUC/GO – Possui graduação em Licenciatura


pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO) (1985), graduação em Direito pela
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (1988), mestrado em Licenciatura Brasileira pela
Universidade Federal de Goiás (1992) e doutorado em Letras (Área de Teoria da Literatura)
pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho São José do Rio Pret (2004) e pós-
doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/ Rio)(2009). Docente
do Curso de Letras da PUC/GO, Coordenadora dos Cursos de Espeliazações em Comunicação
e Gestão de Pessoas 2008/ 1, Comunicação Gestão de Pessoas 2009 e Português no Direito
da Pós-Graduação Lato Sensu e Coordenadora do Mestrado em Letras - Literatura e Crítica
Literária da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Tem experiência na área da Linguagem
Jurídica e em Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura brasileira,
literatura e crítica, poesia e linguagem, a literatura goiana em cena e linguagem. É ensaista,
crítica literária e autora de obras da Literatura Infanto-juvenil.É líder de um Grupo de Estudos
Literários. Também lidera de Grupo de Pesquisa sobre A linguagem Jurídica, Direito e
Literatura . Coordena uma Linha de Pesquisa: A transfiguração da injustiça e o silêncio obra
de Carmo Bernardes e Bernardo Élis . Faz parte, como pesquisadora, do projeto de pesquisa
O Romance em Goiás . Desenvolve um estudo sobre A teoria da linguagem poética sobre o
qual tem ministrado muitas palestras em Congressos e Encontros Literários e Científicos por
todo o Brasil e outros países. Publicou 20 obras incluindo crítica e literatura infantil: O signo
de Eros na poesia de Gilberto Mendonça Teles (2005) Leitura & Poesia do Barroco ao
Simbolismo (2007) Leitura & Poesia do Pré-modernismo ao Modernismo (no prelo).Três
Líricas Perfomativas (2008) (Coleção Verso e Prosa) Coordena a Coleção Literatura para PAS/
UnB. É autora do trabalho sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto intitulado O discurso
do Rio em João Cabral (Tese de Doutorado) (no prelo). Publicou mais de noventa artigos de

INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA 19


crítica em jornais e revistas de Goiás e de outros Estados. Publica ensaios literários no jornal
O Popular de Goiânia (Participa, desde 1990, da equipe que escreve O Vestiletras). Em 2004,
estreou autora de obras para o público infanto-juvenil com o reconto de fadas O castelo de
Branca de Neve. Publicou em 2006 Histórias que vovó Maria contava uma coletânea de três
narrativas: Renato e as bananas Ourinhos, O papagaio e a rocodela e Sopa de pedras e em
2007 A sopa de Viaro e outras estórias. Escreveu ainda O bezerro e a rainha (2009), A pedra
furada (2009) e Os cabelos de Rebeca ( 2009) . Além dos grupos de pesquisas, pertence a
várias associações culturais.

MARIA JOSÉ MODESTO SILVA – PUC/GO – Mestra em Letras:Literatura e Crítica Literária-


PUC/GO. Graduada em Letras pela Faculdade de Filosofia Cora Coralina. Especializações em:1.
Língua Portuguesa. 2. Matemática. 3. Teologia. 4. Leitura:Teorias e Prática. 5. Docência do Ensino
Superior.Professora titular no Ensino Médio lecionando as disciplinas: Lingua Portuguesa,
Literatura, Redação e Línguas (Espanhol e Inglês). Coordenadora Pedagógica do Ensino
Médio - Colégio Estadual "Barão de Mossâmedes", órgão de lotação Secretaria
Estadual de Educação/ Goiás-1985/ atual. É professora titular da Universidade Estadual de
Goiás-UEG-1999/atual. Lotada na Unidade Universitária de Sanclerlândia-UEG nas disciplinas:
Organização da Educação Básica, Português e Inglês Instrumental.Orientadora de Projeto de
Final de Curso. Coordenadora e Professora na Pós-Graduação em Docência Universitária em
Sanclerlândia.Orientadora Educacional.Tutora Conteudista.Consultora Pedagógica.

MARIA LUÍZA FERREIRA LABOISSIÈRE DE CARVALHO – PUC/GO - Graduação em Letras


Modernas Português / Inglês pela Universidade Federal de Goiás, Mestrado em Letras e
Linguística pela Universidade Federal de Goiás e Doutorado em Teoria da Literatura Sao Jose
do Rio Preto pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1998). Atualmente
é nrd7 da Universidade Federal de Goiás e adjunto ii da Universidade Católica de Goiás. Tem
experiência na área de Letras, Teoria Literária, atuando principalmente nos seguintes temas:
intertextualidade, enunciação, teorias do fantástico, do absurdo e do maravilhoso, metaficçao
historiografica, romance histórico, estudos e análises da produção literária brasileira com
ênfase na do Centro-Oeste.

MARIA TERESINHA MARTINS DO NASCIMENTO – PUC/GO - Possui graduação em


Licenciatura Em Português e Letras Modernas pela Universidade de Rio Verde (1976) ,
mestrado em Letras e Lingüística pela Universidade Federal de Goiás (1985) e doutorado em
Letras (Letras Vernáculas) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) . Atualmente é
Professor Titular da Universidade Católica de Goiás. Atuando principalmente nos seguintes
temas: narrativa, romance, dialogismo, literatura brasileira, teoria.

MARIÂNGELA PECCIOLI GALLI JOANILHO – UEL - Concluiu o mestrado em lingüística pela


universidade estadual de campinas em 1996. Cursou o doutorado em lingüística também na
universidade estadual de campinas, concluindo-o em 2005, com um período de doutorado-

20 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


sanduíche na Ecole Normale Supérieure Lettres et Sciences humaines, em Lyon, na França,
lugar para o qual voltou, ao longo do segundo semestre de 2006 e do primeiro de 2007, para
realizar um estágio de pós-doutorado, como parte de sua atuação no projeto "o controle
político da representação: uma história das idéias". Atualmente é professor adjunto-b
na universidade estadual de londrina. Publicou 12 artigos em periódicos especializados e 12
trabalhos em anais de eventos. Possui 5 itens de produção técnica. Participou de 24 eventos
no Brasil. Recebeu 4 prêmios e/ou homenagens. Entre 1997 e 2006, participou de 4 projetos
de pesquisa. Atualmente coordena 1 projeto de pesquisa. Em suas atividades profissionais,
interagiu com 10 colaboradores em co-autorias de trabalhos científicos. Em sua atuação,
tem experiência na área de lingüística, principalmente nos seguintes domínios: semântica,
enunciação, discurso e história das idéias lingüísticas.

MAURÍCIO CESAR MENON - UTFPR – CAMPO MOURÃO - Possui graduação em Letras pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (1989) , especialização em Literatura Brasileira
pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (1999) , mestrado em Letras pela Universidade
Estadual de Londrina (2002) e doutorado em Letras pela Universidade Estadual de Londrina
(2007) . Atualmente é professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Tem
experiência na área de Letras , com ênfase em Literatura Brasileira. Atuando principalmente
nos seguintes temas: gêneros, gotico, história, imagem, medo e representação.

MARTA DANTAS DA SILVA – UEL - Possui graduação em História pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (1990), mestrado em História Assis pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1997) e doutorado em Sociologia pela Universidade
Estadual Paulista Julio de Mesquita Fº Université de Lausanne (2002). Professora adjunto c do
Departamento de Arte Visual e do Programa de Pos-Graduaçao em Letras da Universidade
Estadual de Londrina. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em História e Teorias da
Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: surrealismo, literatura/arte e loucura, arte
bruta.

RITA FELIX FORTE – UNIOESTE - Possui graduação em Letras Português Inglês Português
Francês pela Universidade Federal de Viçosa (1986), mestrado em Letras, Área de Concentração
Literatura Brasileira, pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992), doutorado em
Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2001) e pós-doutorado em Literatura
Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007) . Atualmente, é professora
associado A na Universidade Estadual do Oeste do Paraná e no Mestrado em Letras da
Unioeste. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando
principalmente, nos seguintes temas: espaço, tempo, decadência, patriarcalismo e infância
e em literatura Comparada. No doutorado desenvolvou pesquisa sobre a relação tempo,
espaço e decadência nos romances Angústira, de Graciliano Ramos, Fogo morto, de José Lins
do Rego, Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso e O som e a fúria, de Willian Faulkner
e no pós-doutorado desenvolveu estudo comparativo entre Guimarães Rosa, Jorge L. Borges,
Edgard Allan Poe, J. Barbey D Aurevilly e Rober Musil.
SONIA APARECIDA VIDO PASCOLATI - UEL - Possui graduação em Letras (1994), graduação
em Pedagogia (1997), mestrado em Letras - Estudos Literários (1999) e doutorado em Estudos
Literários (2005), todos pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus
de Araraquara. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Estadual de Londrina. Tem
experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: teoria do drama;
estudos de dramaturgia nacional e estrangeira; literatura brasileira; estudos comparados, em
particular as relações entre literatura dramática e outras linguagens como teatro e cinema.
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA

PARTE I
CAPÍTULO 1

A oscilação das marcas no jogo da festa.


Uma leitura da catequese.1
Evelina Hoisel

Essa leitura procura desvelar um dos mecanismos através dos quais se tentou operar o
recalcamento dos valores da cultura indígena pelos valores da cultura européia. É uma leitura
desconstrutora da cultura “brasileira”, na medida em que tenta dar voz ao inconsciente de determinados
textos, fazendo falar o que neles se procura silenciar na camada manifesta.
Se estes discursos pretendem fazer falar os valores da cultura européia - do “mesmo” - numa
tentativa de recalcar, conscientemente, os valores da cultura indígena - do “outro” - o que se observa é
que, no inconsciente desses textos, existe a voz do “outro” que oferece resistência e deixa seus traços
naquilo que pretende apagá-los. É a apreensão das marcas que tecem esse conflito de forças que
autoriza a promover a desconstrução do que foi sempre visto a partir de uma visão etnocêntrica.
Dentre os mecanismos usados para abolir as diferenças culturais pelo processo de conversão
do “outro” ao “mesmo”, existe aquele que aqui se chama de festa. A festa é o lugar da representação
mimética, momento em que se pode semear a “palavra de Deus”, e a conversão se operar, porque o
“outro” veste a máscara do “mesmo” e, através desse revestimento de máscara, a ele se incorpora.
A festa tem diversas manifestações. Formal e ritualisticamente, é constituída pelo teatro, pela
missa, pelo batismo, pelo casamento, pela confissão e comunhão, pela procissão. A festa é elemento de
sedução. A música e a dança seduzem. O “outro” se deixa seduzir. Vestir a fantasia e ser simultaneamente
o “mesmo” e o “outro” enquanto ator.
O objetivo da festa é “irmanizar” dois territórios através da “fé”. Em consequência, é ainda
uma maneira de conquistar o “outro” para o trabalho. De possuir o corpo. De sujeitá-lo. De escravizá-lo

1
Este texto foi publicado originalmente em Cadernos de Opinião. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 90-99. Por tratar de um tema relacionado às
questões da nossa formação colonial, consideramos oportuna a sua republicação na presente coleção.

A oscilação das marcas no jogo da festa. Uma leitura da catequese. 25


para dele e através dele obter frutos e tesouros para o Senhor-Rei-Deus. O cenário da festa é o lugar
privilegiado para se exercer a repressão, porque é a posição em que a máscara esconde tudo.
A festa abole as diferenças. É esta a sua função. Mas a festa passa. O caráter transitório da festa
promove apenas borrões no texto do “outro”. Nele, não se inscrevem marcas permanentes nem nítidas.
A festa passa e o “outro” tira a fantasia. Re-assume seu discurso. O discurso do “mesmo” foi apenas
pronunciado. Re-citado. O “outro” nega a condição que lhe deram de “papel em branco” e rejeita que
façam tabula rasa de seus valores. Borra o texto do “mesmo”.

Esta é uma das maiores dificuldades que tem aqui a conversão. Há-se de estar sempre
ensinando o que já está aprendido, e há-se de estar plantando o que já está nascido, sob
pena de perder o trabalho e mais o fruto. (VIEIRA, 1975, p.133)
Mande Vossa Alteza muitos da Companhia, que sustentem este pouco que está
ganhando, para que nós possamos ir buscar tesouros d’almas para o Nosso Senhor, e
descobrir proveito para este Reino e Rei que tão bem sabe gastar em serviço do Rei dos
Reis, e senhor dos Senhores. (NÓBREGA, 1931)

O trabalho de catequese teve, pelo menos, uma dupla finalidade: salvação das almas pela
aceitação da “fé cristã” e a incorporação do índio ao trabalho da colonização. À missão dos jesuítas

A oscilação das marcas no jogo da festa. Uma leitura da catequese.


de semear a palavra de Deus deveria corresponder não apenas a conversão do gentio à fé cristã -
acumulação de almas para o “celeiro” de Deus -, mas, também, através da força de trabalho do indígena
doutrinado, a semeadura da terra em proveito da Coroa - acumulação de bens para o celeiro do Senhor-
Rei.
A catequese é, assim, um instrumento de colonização, uma forma disfarçada de colonização em
que se visa sempre o produto do trabalho. Esse produto será expresso ora pelo fruto, ora pelo tesouro,
que aparecem tanto no sentido metafórico – salvação de almas - quanto no sentido não metafórico -
produção de bens materiais.
Nos textos aqui estudados, o significado privilegiado será o fruto, enquanto salvação de almas,
conversão - sentido metafórico. O principal objetivo do trabalho dos jesuítas é semear a palavra de Deus,
e a colheita do fruto só pode se efetuar através de um pressuposto etnocêntrico e interessado. No fundo
da cena, o fruto é a conquista do indígena para semeadura da terra. A metáfora e o sentido referencial
se alternam nos textos. A intenção e a simulação da catequese, entrelaçadas e confundidas, revelam-
se pela traição da linguagem, manipulada pelo disfarce da intenção. Na leitura, a palavra recupera sua
denotação primeira, denunciando a polissemia a que fora sujeitada. O fruto é, a descoberto, o fruto -
único proveito desejado.
Contudo, a expectativa da recompensa parece desfeita, pois os frutos para o celeiro do Senhor-
Rei-Deus ou não são colhidos, ou só poderão brotar em determinadas condições que se devem criar
para que haja frutificação. Aqui, desmancha-se a cumplicidade que se instalou na visão paradisíaca,
criada pelo grupo dominante, como primeiro capítulo da invenção do mundo descoberto, onde se
supunha que não só a terra responderia de maneira favorável, germinando a semente que se lançasse
aleatoriamente, sem esforço e sem trabalho, como também seria possível e “fácil” fazer frutificar os
valores da cultura européia que se imprimiriam nos indígenas por serem “papel em branco” e por
estarem em estado de inocência. (FAORO, 1975)
A facilidade apontada inicialmente está expressa em diversos textos dos jesuítas. Contudo,

26 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


veremos que terminará implicando em dificuldade. No Diálogo sobre a conversão do gentio e no “Sermão
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA do Espírito Santo” está contida esta afirmação. Ambos repetem diferentemente o mesmo aspecto: a
dificuldade de colher os frutos pela impossibilidade de se converter o gentio. Por suas características,
o índio não aceita a fé cristã, não se incorpora aos valores da cultura européia. As razões apontadas são
sempre estabelecidas a partir de uma ótica etnocêntrica: “ausência de Deus” e de “Rei para adorarem”,
“bruteza”, “bestialidade”, “brutalidade”, “inconstância”, elementos responsáveis pelo pouco fruto - falso
fruto, sentido metafórico - ou pela ausência de fruto, apesar de todo o empenho por parte dos jesuítas.

Mas não será esta somente a sexta vez, em que eu e vós experimentamos o pouco
fruto com que esta terra responde ao que se deverá esperar de tão continuada cultura.
(VIEIRA, 1975, p.125)
/.../ porque a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a
mais avessa, a mais trabalhosa de quantas há no mundo. (VIEIRA, 1975, p.130)
E esta deve ser a razão porque alguns Padres que do reino vieram, os vejo resfriados,
porque vinham cuidando de converter a todo o Brasil em uma hora, e vêem-se que
não podem converter um, em um ano, por sua rudeza e bestialidade. (NÓBREGA, 1958,
p.177)

É da “inconstância” a maior dificuldade que se tem na evangelização. Os gentios estão sempre


a oferecer a ilusão de que as marcas do colonizador foram registradas, para, em seguida, apagá-las e
voltarem a ser o que eram.

Tal é a fé dos brasis; é fé que parece incredulidade e é incredulidade que parece fé; é fé,
porque crêem sem dúvida e confessam sem repugnância tudo que lhes ensinam; e parece
incredulidade, porque com a mesma facilidade com que aprenderam desaprendem, e
com a mesma facilidade com que creram, descrêem. (VIEIRA, 1975, p.132)

A resistência que os “brasis” oferecem a uma receptividade duradoura das marcas promove a
criação de diversos mecanismos de controle pelos quais se procura uma certa garantia no resultado
da implantação da semente. Esta garantia vai depender, num dado momento, do modo pelo qual o
trabalho dos jesuítas for desempenhado. Da constância e da continuidade na tarefa da semeadura
poderá resultar a possibilidade de frutificação da “verdade” e da “fé”, porque o “outro” parece sempre
disponível à receptividade de novas marcas, ainda que não as retenha, o que desorganiza o sistema de
expectativa do “mesmo” e faz com que se estabeleça um novo modelo de ação, que difere da experiência
dos jesuítas no trabalho de conversão de outros povos. Este modelo de ação se baseia na assistência
que deverá ser dispensada ao gentio.
A diferença entre os “brasis” que impõem um modelo de ação particular e outras nações
cristianizadas e colonizadas se expressa no “Sermão do Espírito Santo” pelas metáforas da estátua de
mármore e estátua de murta. A estátua de mármore é aquela que oferece maior dificuldade para se
esculpir, devido à resistência do material com que se trabalha. Contudo, as marcas que nela se imprimem
são permanentes e para conservá-las não é necessário nenhuma forma de assistência. Mesmo na
ausência do escultor, ela significa: fala sozinha, longe da presença paterna.
A estátua de murta, ao contrário, apresenta menor dificuldade para se esculpir, uma vez que
assume sem resistência a forma que nela se pretende configurar. Mas, para que esta forma se preserve,
é necessária a presença constante do jardineiro. Somente uma assistência permanente evitará as
deformações causadas pela pouca estabilidade do material. A presença do “pai” é indispensável para
protegê-la e velar pela sua verdade.

A oscilação das marcas no jogo da festa. Uma leitura da catequese. 27


A estátua de mármore custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas
depois de feita uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão, sempre conserva
e sustenta a mesma figura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade com
que se dobram os ramos; mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando
nela para que se conserve. Se deixa o jardineiro de assistir /.../ o que pouco antes era
homem, já é uma confusão verde de murtas. (VIEIRA, 1975, p.134)

A analogia: o escultor/jardineiro: o jesuíta. De um lado, a metáfora de mármore para os cristãos


convertidos através de uma doutrinação cuidadosa e paciente e que respondem às despesas gastas no
trabalho com a permanência e durabilidade das marcas neles impressas. Um material propício, para o
qual não é necessário um investimento maior que uma única ação de doutrinar pacientemente. De um
lado, os filhos que, mesmo desamparados e abandonados, afirmam a “verdade” do Pai, disseminam a
“palavra de Deus”. Do outro lado, um material pouco propício, porque exige gastos permanentes e não
proporciona uma compensação entre o que se investe na tarefa e o produto que dela resulta. A estátua
de murta é a metáfora que explicita as dificuldades através das quais se processa a conversão dos índios
no Brasil. Eles não exigem uma ação paciente. Deixam-se imprimir sem resistência, mas não retêm os
traços, não disseminam a palavra do pai-Senhor-Rei-Deus.

A oscilação das marcas no jogo da festa. Uma leitura da catequese.


Porque esta é a diferença que há entre umas nações e outras. Nas da Índia muitas são
capazes de conservar a fé sem assistência dos pregadores. /.../ Há outras nações pelo
contrário, (e estas são as do Brasil) que recebem tudo o que lhes ensinam com grande
docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são
estátuas de murta, que em levantando a mão e a tesoura o jardineiro, logo perdem a
nova figura e tornam à bruteza antiga e natural e a ser nato como dantes eram. (VIEIRA,
1975, p.133/134)


A facilidade de que se fala nestes textos parece ser a capacidade que o índio apresenta para
assumir, circunstancialmente, uma máscara e desempenhar um papel. Ele está sempre a representar
para o “mesmo” uma ação e um papel que este pretende que ele assuma, desempenhando-o, porém,
somente enquanto é assistido, enquanto dura a representação. Desse modo, a conversão só se efetua
no momento em que o “outro” se transforma em ator. Como ator, ele está disponível para vestir
a fantasia, subir ao palco, e declarar-se convertido. Mas, essa representação só é possível quando o
“outro” participa do prazer da festa, que se estabelece como um modelo de ação para a catequese. Um
modelo de assistir. É no espaço-tempo da festa que se forja uma cumplicidade inicial entre o “outro” e o
“mesmo”: o “outro” se insinua, mostra seu gosto pela representação. Imita o “mesmo”, que aproveita sua
capacidade de ator e faz da festa um instrumento de ação.
Na primeira missa celebrada no Brasil, cria-se uma semelhança aparente entre cristãos e
pagãos, suscitada pelo jogo das simpatias (FOUCAULT, s.d., p. 42), que os aproxima mediante a atração
que a representação dos cristãos exerce sobre o gentio, que possui o perigoso poder de assimilar e de
se fazer semelhante a eles, quando se transforma em ator.

Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam
pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi
cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco (assistindo) a ela, perto de
cinquenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos assim como nós. E quando
se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles
se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até chegar o fim; e então

28 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


tornaram-se a assentar, como nós. E quando levantaram a Deus que nos pusemos de
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos, com as mãos levantadas, e em tal
maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos fez muita devoção. (CAMINHA,
1963, p.62-63)

A cena teatral da missa é o momento inaugural de sucessivas festas que se realizam no palco do
Brasil. Nesse espaço, desenham-se duas cenas: uma compreende a cena da representação, espaço onde
se colocam os cristãos. A outra, a cena da re-representação dos índios. A cruz e o altar são elementos
cênicos e delimitam o espaço onde se efetua a representação do sacrifício de Cristo, e no qual estão os
cristãos. É nesse espaço que se pronuncia a “verdade”, expressa pela palavra de Deus que se dá a ler pelo
texto bíblico e que se deixa acompanhar pela música e pela encenação gestual. Na cruz que se planta
e que já metaforiza a conquista como plantação, inscrevem-se as marcas que objetivarão o domínio
político e a tentativa de conquista espiritual dos índios: as insígnias do poder político e temporal se
superpõem ao símbolo do poder espiritual que preside e oficializa a representação.
Na cena da re-representação, encontram-se os gentios-pagãos que assistem à representação e
dela participam como atores - pantomimos - imitando os gestos dos cristãos. Atraídos pelo espetáculo
que diante deles se desenrola, os pagãos rapidamente assimilam e reproduzem o código gestual do
“mesmo”. A aparente similitude que se cria entre o “outro” e o “mesmo” faz com que os sinais reproduzidos
sejam lidos e interpretados segundo o código do “mesmo” e essa leitura não é feita de maneira ingênua.
Ela se orienta no sentido de suprimir a barra que separa os espaços da re-representação, na suposição
de que os pagãos se tornariam logo cristãos. Mas, neste gesto inaugural, as limitações são percebidas:
somente com o estabelecimento de um código linguístico comum é que o gentio poderá sair da cena
da re-representação para ingressar na da representação. “Parece-me gente de tal inocência que, se nós
entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos”. (CAMINHA, 1963, p. 60)
Assim. a catequese só poderá começar a iniciação do “outro” quando se puder impor um
determinado tipo de discurso e certas atitudes, para o que se aproveitará de sua capacidade de
assimilação. Todavia, se o jogo das simpatias faz com que eles se tornem aparentemente semelhantes,
é compensado pela antipatia, figura que “mantém as coisas no seu isolamento e impede a assimilação,
encerra cada espécie na sua diferença obstinada e na propensão para preservar seu ser peculiar”.
(FOUCAULT, s.d., p.43)
Se, nesta primeira festa que se realiza no palco da terra recém-descoberta, as cenas nas quais se
deixam compreender cristãos e pagãos ainda são distintas, nas demais festas não haverá tal distinção.
Elas se tornam híbridas, na medida em que o “outro”, ocultando suas marcas, assume o discurso que
lhe impõe a evangelização e, como ator, metamorfoseia-se em cristão. A festa possibilita o jogo das
simpatias.
A música, a dança, a fantasia, a pintura, a “palavra de Deus”: os ingredientes da festa incitam a
imaginação através dos sentidos. Atraem o pagão para o espaço-tempo da festa e ele aí se incorpora ao
“mesmo” pelo prazer da imitação. Mas, sob o disfarce da máscara e da fantasia, preserva seus traços e
faz da festa o mundo do prazer. O hibridismo da festa confunde simpatia e antipatia.

Dia de Reis (6 de janeiro de 84) renovaram os votos alguns irmãos. O padre visitador antes
da missa, revestido em capa d’asperges de damasco branco com diácono e subdiácono
vestidos do mesmo damasco, baptisou alguns trinta adultos. Em todo o tempo do

A oscilação das marcas no jogo da festa. Uma leitura da catequese. 29


baptismo houve boa música e motetes, e de quando em quando se tocavam as frautas.
Depois disse missa solene com diácono e subdiácono, officiada em canto d’orgão pelos
índios, com suas frautas, cravos e descante; cantou na missa um mancebo estudante
alguns psalmos e motetes, com extraordinária devoção. O padre na mesma missa casou
alguns em lei da graça, precedendo na missa os banhos; deu a comunhão a cento e
oitenta índios e índias, dos quais vinte e quatro, por ser a primeira vez, comungaram
à primeira missa com capella de flores na cabeça; depois da comunhão lhes deitou o
padre ao pescoço algumas verôn icas e nominas com Agnus dei de várias sedas, com
seus cordões e fitas, de que todos ficaram mui consolados. /.../ No meio da missa houve
pregação em língua e depois procissão solene com danças e outras invenções. (CARDIM,
s.d., p. 268-269)

O objetivo da festa é abolir a alteridade em função da identidade, através de uma forma


minimizada de violência. É sempre uma forma disfarçada de agressão, porque é uma tentativa de fazer
tabula rasa dos valores do “outro”. Na visão paradisíaca, a metáfora do “papel em branco” e o estado
de inocência em que pareciam se encontrar os indígenas possibilitavam que neles se imprimisse, sem
violência, “qualquer cunho que lhes quisessem dar” (CAMINHA, 1963, p. 60), uma vez que não havia
marca para se apagar. Nas festas que se realizam em momentos subsequentes à primeira missa, há o
reconhecimento de que o “outro” possui suas próprias marcas, as quais passam a ser, estrategicamente,

A oscilação das marcas no jogo da festa. Uma leitura da catequese.


identificadas com o mal e o pecado, o que parece constituir o segundo capítulo da invenção do novo
mundo. A festa é assim uma máscara tecida que procura esconder e disfarçar a violência através da qual
se tenta recalcar, persuasivamente, os valores do “outro”, para se cunhar os do “mesmo” e para os quais
a palavra de Deus serve sempre de suporte ideológico. Mas, como toda máscara, esconde e também
revela.
Entre as diversas manifestações da festa, é o teatro que se constitui como mais eficaz para
persuadir. As peças teatrais se incorporam aos atos litúrgicos e transformam o teatro no principal
instrumento da catequese-colonização.
Tratando da problemática do bem e do mal, herdada dos autos medievais sob a mediação do
teatro de Gil Vicente, os autos que se destinam aos indígenas têm uma finalidade didático-ideológica
e objetivam a sujeição da alma e, em seguida, do corpo. Mais uma vez, opera-se uma inversão da visão
do palco do paraíso, onde à “inocência”, estado anterior ao pecado, correspondia o corpo são: “Nosso
Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons” (CAMINHA, 1963, p.60). Destruído
o mito edênico, a terra se transforma num campo tomado pelo mal e pelo pecado, os quais geram a
doença da alma e do corpo. E a “inocência” não é mais o caminho apontado para o cristianismo.
Na leitura dos diversos autos, depreendem-se os elementos que estabelecem o significado do
pecado. São os “velhos hábitos”, os costumes indígenas em conflito com os “novos hábitos” da cultura
européia, dados como o mal e o pecado. Esse conflito se expressa através das lutas que se travam entre
demônios, identificados com os pagãos e com os “velhos hábitos” que tentam preservar, e anjos e santos
que se associam aos costumes da civilização portuguesa.

Demônio Guaixará:
Molestam-me os virtuosos,
irritam-me muitíssimo
os seus novos hábitos.
Quem os terá trazido,
Para prejudicar a minha terra? (ANCHIETA, 1954, p. 684 e p.749)

30 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


/.../
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA Boa cousa é beber
Até vomitar cauim. (ANCHIETA, 1954, p. 685 e p.750)

/... /
É bom dançar,
adornar-se, tingir-se de vermelho,
empinar o corpo, pintar as pernas
fazer-se negro, fumar,
curandeirar...
De enfurecer-se, andar matando,
comer um ao outro, prender tapuias,
amancebar-se, ser desonesto,
espião adúltero

- não quero que o gentio deixe. (ANCHIETA, 1954, p. 686 e p.750-751)

A bebida, o fumo, a dança, a pintura, a antropofagia, a poligamia e a música são, do ponto de


vista da catequese, o pecado e os principais obstáculos para a conversão do gentio e, consequentemente,
para a colonização. O curioso é que os jesuítas se utilizaram de alguns desses costumes – dança, pintura
e música – como recurso persuasivo, fazendo-os assim duplamente marcados. Quando praticados pelo
indígena, em seus rituais, associam-se ao mal. Quando utilizados nos rituais dos cristãos, ao bem. A
passagem do bem para o mal só é possível no espaço híbrido da festa.
Para que a semente da “palavra de Deus” germine, necessário se faz apagar as “falsas marcas”
e imprimir as “verdadeiras”. Visto a partir de pressupostos interessados, além de etnocêntricos, os
costumes indígenas são a causa da doença da alma, já que são constantemente identificados com
o mal e o pecado. É sempre o demônio que subverte a ordem da “verdade” e sua figura é ambígua.
Ele não é apenas a representação do demônio da teologia cristã, misturado com o diabo jurupari das
crenças indígenas, que se pretende ridicularizar, mas é ainda a personificação do inimigo político
dos portugueses. O nome do demônio Guaixará, por exemplo, é uma referência ao índio tamoio que
participou, como aliado dos franceses, de um ataque contra os portugueses. Da mesma maneira, as
tribos indígenas que não estavam submetidas ao domínio português e se aliavam a outros povos
europeus são governadas pelo demônio, pelo mal, como aqueles sob o jugo dos portugueses estão
sob a proteção do bem.
Reafirmando o ponto de vista da teologia cristã, na qual são as satisfações corporais que fazem
do corpo a prisão da alma, os “vícios”, os costumes dos brasis são apontados como a causa da doença da
alma. E as marcas invisíveis dessa doença deixam sinais exteriores e visíveis, que se assinalam no corpo
e permitem a decifração do mal que se oculta. Assim, as enfermidades que o índio adquire no contato
com os portugueses são dadas como sinais superficiais de um mal subjacente. Ainda que a semelhança
e a transparência do invisível no visível tenham exercido um papel importante no saber da cultura
ocidental, até o final do século XVI, a transparência entre o mal da alma e o do corpo que aí se postula é
um recurso persuasivo que enfatiza a necessidade do indígena de abandonar seus “velhos hábitos” para
“salvar-se”. E, diante do temor da morte, fazer reconhecer as assinaturas do mal que neles se instalam:

Teus filhos estão doentes,


Querem as leis do mal... (ANCHIETA, 1954, p. 744)

/.../

A oscilação das marcas no jogo da festa. Uma leitura da catequese. 31


Anjo:
- Vem, Virgem Maria,
Mãe de Deus, visitar esta aldeia
e expulsar dela o demônio.
Oxalá, por teu amor,
ela se santifique!
Afasta as enfermidades
- febres, desinterias,
as corruções e a tosse –
para que seus habitantes
creiam em Deus seu Filho. (ANCHIETA, 1954, p. 567)

Mas o que se pretende preservar é principalmente a alma. Ainda que não possa curar o corpo,
é possível salvar a alma e conduzi-la ao Reino de Deus:

Anjo;
Eis-me aqui para ajudar-te.
A mandado do Senhor,
venho guardar a tua alma,
para que, morto embora teu corpo,
suba tua alma ao seu reino. (ANCHIETA, 1954, p. 571)

A oscilação das marcas no jogo da festa. Uma leitura da catequese.


A alma se torna um suporte para a ação da catequese que se utiliza da salvação como um
aparato espiritual capaz de aprisionar o corpo como força de produção. Não há indissociação entre a
semente enquanto palavra de Deus e as sementes econômicas.
A tentativa de incorporar o indígena à civilização européia implica na tentativa de controlar a
alma como lugar onde se pode exercer um poder. Esta alma, além de ser a representada pela teologia
cristã, dela também difere, porque é um efeito, um instrumento de uma anatomia política e, como tal,
um desdobramento do corpo a ser colonizado. Educar a alma é uma maneira de escravizá-la e, portanto,
escravizar o corpo, invertendo-se assim o modelo da teologia cristã: “alma,prisão do corpo”.
Como mostra Michel Foucault (1975), esse desdobramento que se opera no corpo do
colonizado, ou de todos aqueles sobre os quais se exerce uma vigilância, ou se pune, é possível, na
medida em que ele desenha a figura simétrica e inversa do rei. O “corpo” político do rei é duplo. Ele
comporta um elemento transitório que nasce e morre, e outro que permanece e se mantém como
suporte físico e intangível do reino. Esse corpo duplo do rei abre um espaço de suplência do poder
político do rei e do poder divino, uma vez que aquele se dá como suplemento deste. Essa cadeia de
fios suplementares encontra-se expressa no auto “Recebimento que fizeram os índios de Guaraparin ao
Padre Provincial”:

Vinde, pastor desejado,


visitar vosso curral,
pois, por ordem divinal,
para nós sois cá mandado
do reino de Portugal. (ANCHIETA, 1954, p. 667)

Fé e império, jesuítas e colonos representam um desdobramento do corpo do rei, estando


autorizados, pelo poder de suplência, de intervir em lugar de sua presença que só pode se efetivar por
procuração. Esse poder de suplência, conferido ao jesuíta-colonizador, gera, por sua vez, um espaço que
é preenchido pelo pagão-colonizado, para quem se cria um aparato de controle, assistência e vigilância.

32 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


Se o “corpo” político do rei suscita uma teoria política, mecanismos jurídicos e toda uma série
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA de rituais para fundar o “mais de poder” (plus de pouvoir), o estabelecimento do “menos de poder”
(moins de pouvoir) do colonizado, como de todos que são submetidos a um controle, suscitará um
estatuto jurídico através do qual se codificam os procedimentos de vigilância, de punição e de pressão
(FOUCAULT, 1975). A alma, como desdobramento do corpo, é um elemento onde se articulam os efeitos
de um certo tipo de poder que pretende submeter o corpo do colonizado às pressões da colonização.
A escravização da “alma” do índio realiza-se por um processo de persuasão que se utiliza do
temor como veículo de aceitação da “verdade” e da “fé”. As penas do inferno, o terror da morte, o castigo
perpétuo, a dor corporal, enfim, todos os dogmas da igreja e da moral católica constituem uma parte
integrante do estatuto jurídico, dos procedimentos através dos quais se edificam as técnicas de controle
e vigilância – nas palavras de Antônio Vieira: “assistência” – do corpo.
O significado do temor aparece então em duplo sentido; temor ao poder sobrenatural e divino
e temor ao poder terreno e político. Sujeitar-se às leis de Deus implica em “obedecer al que rige em su
lugar” (ANCHIETA, 1954, p.797). Portanto, ao jesuíta-colono-Senhor-Rei. Transgredir as leis da ordem
política é tão catastrófico quanto a violação da ordem divina. O texto da palavra de Deus confunde-se
com o texto da palavra do Senhor-Rei. No auto “Na vila de Vitória”, o Sermão do Temor de Deus ao Povo
é um exemplo do discurso de persuasão através do qual se ameaça a alma para sujeitar o corpo:

Pecador,
Feito escravo do Senhor,
se o pecado não temes,
do fogo por que não tremes?

/... /
Como és tão insensível,
que não sentes furor
da morte, que é tão terrível,
pois és homem corrutível
e cativo pecador?

/... /
Temes a dor corporal,
foges de qualquer afronta,
e daquele eterno mal
- do bravo fogo infernal –
não fazes nenhuma conta. (ANCHIETA, 1954, p. 823-824)


A única possibilidade de salvação e cura para a doença da alma e do corpo é a aceitação da
doutrina que se oferece como remédio. Contudo, o acolhimento da doutrina é apenas um passo para
a salvação, porque existe sempre o risco do pecado. Para a recaída, a cura é garantida pela confissão,
que se torna um eficaz aparato de controle da informação que amplia as possibilidades de sujeição e de
dominação política.
A Salvação implica em um processo de substituição de marcas. A aceitação da doutrina
cristã é a aceitação do regime escravista da sociedade mercantilista portuguesa. Dessa maneira, o
remédio que se oferece como cura conserva a ambigüidade do pharmakon socrático (DERRIDA, 1972):
é, simultaneamente, remédio e veneno, bem e mal, salvação e perda. E seu significado oscila entre o
positivo e o negativo, a cena e o fundo da cena.

A oscilação das marcas no jogo da festa. Uma leitura da catequese. 33


- Existe a confissão
Remédio senhor da cura.
As almas efêmeras dos índios,
com elas saram todo.
Segue-se-lhe a comunhão (ANCHIETA, 1954, p. 705)

“Deus que é fundo, sem fundo” (ANCHIETA, 1954, p. 800) é a reserva sem fundo de onde se
extrai o remédio e o veneno, a salvação e a perda. E que abriga a vida e a morte, o jogo e a festa.
No espaço da festa, o índio re-conhece a verdade e a fé. Assume o texto da palavra do jesuíta-
colono-Senhor-Rei-Deus. Teatraliza o arrependimento e o desejo de inaugurar “novos hábitos”. Faz da
conversão uma representação. Faz acreditar que os frutos – sentido metafórico – foram colhidos para o
celeiro de Deus. No ilusionismo da festa, ele garante a economia, o bem, o capital, a reserva do celeiro,
a recompensa da despesa:

Alma:
Sou a alma do Pirataraca.
Deixei agora o meu corpo.

/.../
Eu renunciei a todos os maus hábitos,

A oscilação das marcas no jogo da festa. Uma leitura da catequese.


ouvindo as palavras do sacerdote.
Sou cristão, sou batizado.
A fé no verdadeiro Deus
encheu meu coração. (ANCHIETA, 1954, p. 626)

Porque a festa é transitória, os frutos do celeiro de Deus são efêmeros. Fora do espaço-tempo da
festa, o “outro” tira a máscara. Reinveste suas marcas. Ao colonizador só resta reconhecer a experiência
do pouco fruto/falso fruto – sentido metafórico – ou a total ausência do fruto:

...o fruto que se fazia na gentialidade diminui cada vez mais. /.../ Nesse tempo não houve
muitas predicas aos Cristãos, não deixando todavia de o fazer nas festas principais e
alguns domingos, porque assim parece que se imprimem mais e ouvem com maiores
desejos. (BLAZQUEZ, 1558)

Como um modelo de ação para assistir ao “outro”, a festa se dá apenas como um jogo, um
luxo, uma despesa sem reserva. É necessário então tirar a máscara e a fantasia e assumir a violência
para se colher os frutos – sentido não metafórico – para o celeiro do jesuíta-colono-Senhor-Rei. Os
empreendimentos da Coroa e da Companhia de Jesus precisam ser mantidos. E sustentados o bem, o
capital, a reserva.

...finalmente cada um é rei em sua casa e vive como quer; pelo que nenhum ou
certamente muito pouco fruto se pode colher deles, se a força e o auxílio do braço
secular não acudirem para domá-los e submetê-los ao jugo da obediência. (CJ. 3) ...
porque para este gênero de gente não há melhor pregação do que a espada e vara de
ferro. (ANCHIETA, 1554)

34 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA R E F E R Ê N C I A S

ANCHIETA, José de. Poesias. Transcrições, traduções e notas de M. de L. de Paula


Martins. Boletim IV. Documentação Linguística, 4. São Paulo: Museu Paulista, 1954.

ANCHIETA, José de. Carta de Piratininga. 1554. In: Informação da Província do Brasil.
Cartas Jesuíticas. (v.III). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, s.d.

BLAZQUEZ, Pe. Antonio. Carta que escreveu da Bahia em 1558, ao Pe. Geral. In:
Informação da Província do Brasil. Cartas Jesuíticas. (v.III). Rio de Janeiro: Academia
Brasileira de Letras, s.d.

CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a el Rei Dom Manuel. São Paulo: Dominus, 1963.

CARDIM, Fernão. Tratado da terra e gente do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, s.d.

DERRIDA, Jacques. La dissémination. Paris: Editions du Seuil, 1972.

FAORO, Raimundo. O Brasil até o Governo geral. In: Os donos do poder. Porto Alegre:
Editora Globo, 1975.

FOUCAULT, Michel. A prosa do mundo. In: As palavras e as coisas; uma arqueologia


das ciências humanas. Lisboa: Portugália Editora; São Paulo: Martins Fontes, s.d.

FOUCAULT, Michel. Les corps dês condamnés. In: Surveiller et punir: naissance de la
prison. Paris: Gallimard, 1975.

NÓBREGA, Padre Manuel. Diálogo sobre a conversão do Gentio. In: DOURADO,


Mecenas. A conversão do gentio. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1958.

NÓBREGA, Padre Manuel. Carta a el Rei D. João. 1552. In: Cartas jesuíticas e cartas do
Brasil – 1549-1560. Rio de Janeiro: Oficina Industrial Gráfica, 1931.

VIEIRA, Antonio. Sermões. São Paulo: Cultrix/MEC, 1975.

A oscilação das marcas no jogo da festa. Uma leitura da catequese. 35


36
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA
A oscilação das marcas no jogo da festa. Uma leitura da catequese.
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA

CAPÍTULO 2

Escritura e Criação: “Marcas do Real” 2


Lourdes Kaminski Alves

Este texto propõe uma reflexão sobre a idéia de escritura como paradoxo, interrogação e
recusa de uma totalidade, a partir do livro de contos Por trás dos vidros (2007) de Modesto Carone. Em
sua escritura, os temas da solidão, da angústia, do luto, da ausência, da incerteza, da morte e da fuga no
espaço urbano, criam imagens que de certo modo, desenham a labilidade dos laços sociais atuais.
A obra Por trás dos vidros apresenta um conjunto de 49 narrativas que, estão organizadas em
cinco blocos ou sequências. Essas cinco sequências articulam-se pelo fio dos epílogos que sinalizam,
abrindo cada uma das cinco unidades formando o conjunto de contos assim sinalizados: 1) “Para dentro
é o caminho, para dentro”; 2) “Meus braços resolvem atos. Cada um para seu lado”; 3) “Fora daqui: é este
meu alvo”; 4) “Cidade cheia de sonhos”. 5) “Possuir o que me possui”.
Essas sequências funcionam na obra como junção de imagens3 indiciando os contos como
num plano-sequência, a plasmar a fatalidade e a contingência das personagens e de seus narradores –
recurso talvez explicado pela experiência do leitor habilidoso que remete ao próprio ofício do escritor.
Nos contos encontra-se o narrador do descontínuo, do corte e da linguagem agônica, a
exemplo do conjunto das frases epílogos e que de modo algum são indiciais, pelo contrário, aumentam
a ambigüidade e instalam logo de início o estranhamento no nível da linguagem. A epígrafe que abre
a terceira sequência - “Fora daqui: é este meu alvo” - é uma frase de Kafka que remete metaforicamente
ao universo ficcional caroniano. Também aparece nesse universo ficcional a leitura de Georg Trakl, sobre
quem Modesto Carone escreve o conto “As marcas do real” (2007). Esse conto encontra-se na sequência

2
Parte deste texto foi publicada no livro Novas Leituras da ficção brasileira no século XXI, organizado por Pereira, Helena Bonito (2001).
3
A expressão junção de imagens é empregada por Modesto Carone no livro Metáfora e montagem (1974), para explicar procedimentos da escritu-
ra poética de Georg Trakl e que ele (M. Carone) toma como procedimento ou estratégia para a organização dos capítulos do seu livro, chamando
a atenção do leitor para que olhe um pouco mais abaixo da superfície, “insista num caminho de percepção mais densa deste universo verbal
complicado” (CARONE, 1974, p. 13), referindo-se à metáfora trakliana.

Escritura e Criação: “Marcas do Real” 37


denominada “Possuir o que me possui”. Essa expressão, talvez, seja a que melhor remeta ao exercício
agônico da escritura ou à condição do escritor no mundo contemporâneo. As inquietações que movem
a urdidura ficcional refletem a condição do vivente que almeja saber qual a razão de sua existência
e debate-se entre os limites e os alcances do texto, e da crítica-escritura. O conto “As marcas do real”
coloca no jogo da linguagem o escritor e o crítico, a partir do retorno ao livro Metáfora e montagem
(1974), em que Modesto Carone apresenta um estudo sobre a poesia de Georg Trakl.
Essa consideração pode ser importante para compreender melhor a obra de Modesto Carone,
lê-lo é ler também um conjunto de outros textos da cultura, não só literários, artísticos, mas também da
crítica contemporânea, especificamente. Aqui retomamos o texto de crítica literária caroniano sobre a
poesia de Georg Trakl, no qual se realiza a seguinte reflexão:

Rilke comparou as condições em que o poema de Trakl se articula às circunstâncias de


que um sonho pode surgir. Provavelmente estimulado por essa observação, Clemens
Heselhaus procurou definir as metáforas de Trakl como drogentraumbilder (imagens
oníricas provocadas pelas drogas). [...] Acrescenta, porém, prudentemente, que o vício
das drogas ‘não substitui o talento poético’. [...] Não é possível admitir que o poema de
Trakl seja decorrente da ingestão de drogas, nem que sua gênese derive imediatamente
do sonho, na medida em que o poema deve ser considerado como produto consciente
4
de uma manipulação específica da linguagem (p. 47-49) .

Essa reflexão será reelaborada por Carone, mais tarde, no conto “As marcas do real”. Por meio da
reescritura do texto de crítica literária que se transforma no conto, Carone retorna à obra de Georg Trakl,
não mais como leitor crítico, mas como leitor/autor e o autor estudado transforma-se em personagem
de ficção a povoar o imaginário de novos leitores.

Os estudos mais recentes confirmam que desde a adolescência Georg Trakl consumia
ópio, clorofórmio, veronal e cocaína. Explica-se: sua mãe, Maria, uma protestante de
Praga rejeitada pela comunidade católica de Salzburg, passava os dias fechada no quarto
às voltas com bonecas de louça; os filhos ficavam no quarto sob os cuidados de uma
governanta. [...]. Quem lê seus poemas reconhece a experiência do drogado: o texto
alimenta-se de um cotejo de imagens intensamente coloridas onde deslizam barcas
e papoulas. [...] Isto não impede que a dicção da obra seja clara e segura, lembrando
um mundo complementar à realidade histórica circundante. Há indícios de que Georg
registrou essa ruptura na subjetividade desintegrada do psicótico. Seus melhores
poemas – aqueles que dos vinte e cinco aos vinte e sete anos escreveu e burilou nas
Escritura e Criação: “Marcas do Real”
costas de envelopes e guardanapos – falam de noite e decomposição, à qual não falta
contudo o brilho tenaz da redenção. Sem dúvida isso remete a Hölderlin, poeta com
quem Georg tinha grande afinidade (p. 158-159).

Pelo filtro da escrita ficcional fundem-se o imaginário e a realidade histórica, a exemplo dos
procedimentos de metáfora e montagem estudados na obra de Trakl. O que o ficcionista transforma
em marcas do real são os espaços em branco da biografia mais os elementos que estudou na poesia do
poeta de Salzburg. Assim, o efeito estético encontra-se na capacidade do texto de captar o movimento
da história.
No conto “As marcas do real” observa-se uma elaboração no plano da composição semelhante
ao realizado por Borges. Num dos ensaios de Otras inquisiciones (1976), “La flor de Coleridge” Borges
afirma, com base em citações de Paul Valéry, Emerson e Shelley que a literatura universal parece ter sido

4 Todas as citações da obra em estudo foram feitas a partir de Carone (2007), destacando-se a cada citação as respectivas páginas.

38 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


escrita por um só autor, o Espírito. Essa observação aponta para a negação da ideia de autor original na
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA literatura contemporânea e chama a atenção para a inversão da ordem: da produção original da obra,
passa-se à produção posterior e sempre renovada do leitor que, por sua vez, torna-se o novo autor num
processo de reelaboração.
Esse pensamento de Borges se encontra estilizado no conto Pierre Menard, autor del Quijote
(2000). O conto tenta resumir a vida e obra de um apócrifo escritor francês, pós-simbolista que se
propõe a escrever Dom Quixote. Exercício de elaboração artística semelhante encontra-se na escrita
caroniana, em que a subjetividade do sujeito escritor se mistura a outras leituras por ele realizadas. O
fluxo de linguagem não pertence nem ao sujeito que escreve nem à representação da realidade que
reflete essas experiências; compete ao sentido de dispersão do texto. Dessa forma, a escritura de Carone
é atravessada pela obra de Trakl, Faulkner, Becket, Kafka, Borges e tantos outros textos que se colocam
em cena por meio do jogo da linguagem, por vezes no limite do estranhamento.
Ao abordar sobre o discurso estranho no espaço da linguagem poética, Julia Kristeva (1974, p.
167) assinala que, “o sentido poético remete a outros sentidos discursivos, de modo a serem legíveis,
no enunciado poético, outros discursos”. Assim, para a autora, o enunciado poético passa a ser um
subconjunto de um conjunto maior, que é o espaço dos textos aplicados em novos conjuntos. Esse
espaço, ela o denomina de intertextual, constituindo a intertextualidade o processo de relacionamento
dos diferentes discursos no espaço intertextual. Esse procedimento de escrita aciona as memórias de
leituras anteriores ao leitor de Por trás dos vidros, instaurando o jogo da ausência/presença, tal como a
descrição de uma perda narrada no conto “À margem do Rio”, que se encontra na primeira sequência do
livro.

Quando o crepúsculo inundou a praça ela havia escapado dos meus braços mas eu não
me via só porque estava impregnado da sua roupa, do seu hálito, do seu corpo e daquela
ausência súbita que me cercava como uma aura (p. 16).

O exercício deste movimento do revelar/esconder é elaborado como uma metáfora fina da


perda consciente do sujeito que a sente, “impregnado da sua roupa, do seu hálito, do seu corpo e
daquela ausência súbita”, e que representa um dúplice sentimento de prazer e desprazer que vê
associado à presença e ausência instaurado pela lembrança. A realidade exclui a ausência e o desprazer.
Prazer na medida em que a lembrança torna presente o objeto/sujeito lembrado; desprazer na media
em que a lembrança não tem o poder de substituir satisfatoriamente a realidade palpável.

O jato d’água de uma fonte subia em silêncio pela noite e foi nela que lavei o rosto
e molhei a nuca. Comecei então a caminhada para casa no outro lado da cidade. As
árvores ainda estavam tingidas pela lua amarela, respirei o perfume de verão que havia
no ar e sem saber o que fazia abri a camisa até embaixo, apalpando a cicatriz nítida que
riscava de ponta a ponta meu ventre: era o primeiro dos vários lutos que tive de fazer
na vida (p. 17).

O real passa a assinalar não a concretude do sensível, mas a intangibilidade do espiritual, do


sensível, da incompreensão; o real é o absurdo que só pode ser captado pela labilidade dinâmica da
metáfora na “junção de imagens descontínuas” tal como explica o próprio Carone (1974, p. 16, grifo do
autor) em estudo sobre a poesia de Trakl.

Escritura e Criação: “Marcas do Real” 39


Em Trakl o entrelaçamento de metáfora e montagem se aguça na medida em que esta,
aproximando, num regime de descontinuidade, imagens isoladas e fechadas em si
mesmas, acaba por radicalizar-lhes a obscuridade e a tendência que têm de se tornarem
absolutas, ou seja, remetidas a um universo de significações que beira a indeterminação
semântica. A este fenômeno deu-se, aqui, o nome de linguagem do indizível.

A linguagem do indizível em Carone aproxima-se do sentido kafkiano com relação à imagem


do indivíduo dirigido por um poder que ele não conhece e que, no entanto, dirige-lhe a vida. Em seu
trabalho com a linguagem, Carone submete o leitor ao funcionamento de uma lógica paradoxal que se
relaciona com a sua natureza enigmática, propõe uma escritura que remete para sistemas complexos,
como um continuum essencial em vez de uma prática ou fenômeno discreto e isolável.
A idéia de escritura como paradoxo, interrogação e recusa de uma totalidade é o que
transparece na proposta ficcional de Modesto Carone. Processo de escritura que pauta-se no jogo do
esconder/revelar ou como uma câmera cinematográfica que aproxima e distancia-se do objeto. Porém,
diferentemente da câmera que ao distanciar-se, afasta a imagem e perde o foco; a escrita no processo
do distanciamento revela com maior exatidão o objeto, como se observa no conto “Fendas”, que se
encontra na sequência denominada “Possuir o que me possui”:

Examino as poças do meu crânio: são negras e contrastam com o resto da paisagem.
Algumas invadem a nave cinzenta, outras são fundas como alçapões; o que parece
defini-las é a estagnação. É verdade que isso não passa de reflexo provocado pelas
condições de visibilidade: de perto todas as poças fermentam (p. 162).

O que está em jogo nessa forma de construção da linguagem? Algo de essencial está em causa,
como, estão todas as precauções e advertências que aparecem nas falas dos narradores nos contos de
Por trás dos vidros. No entanto, o que transparece é o lado sombrio, as deformidades do ser, o mundo
insondável - sentido, porém, difícil de entender. Aludir à natureza enigmática da escritura não pode ser
uma resposta, mas coloca uma pergunta, a da natureza do tempo histórico em que a obra emerge, o
contexto da contemporaneidade marcado pela alienação social e, sobretudo, pela labilidade dos laços
sociais. Escritura e Criação: “Marcas do Real”
Ao modo da metáfora trakliana, como tentativa de articular eventos conhecidos, os quais a
linguagem não consegue captar, “só podendo existir com e no poema, uma linguagem fragmentada”
(CARONE, 1974, p. 18, grifos do autor), o autor a faz transcender do espaço do texto, remetendo o leitor a
uma leitura do mundo desconexo, fraturado, ambíguo e ilógico. Para Carone, a escritura aponta para um
universo histórico cujo tempo experimenta a banalização ou a alienação da vida, a ilusão de realidade,
como se lê no conto “Águas de março”, na sequência denominada “Possuir o que me possui”.
O narrador do conto descreve um encontro malsucedido com uma mulher, talvez, em um
quiosque na praia, o qual acaba marcado pelo suicídio da mulher, que, exasperada após tentar ser
ouvida e não receber a atenção de seu interlocutor atira-se ao mar. A narrativa do conto apresenta-se
como um duplo; como se o leitor tivesse diante de si dois textos, duas histórias. Passamos a conhecer
a história (encontro/suicídio/encaminhamentos com o corpo/ demais providências) por meio de
uma narrativa que se sobrepõe à primeira, ou seja, em segundo plano está o relato da história que
ficamos conhecendo em primeiro plano por meio das reflexões do narrador sobre a cena vivida. Esse
procedimento realiza-se por meio de um processo de distanciamento do objeto narrado:

40 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


Sentada diante de mim, ela fala sem parar; não entendo uma palavra. A única coisa que
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA capto com clareza é o volume de água crescendo. Presto muita atenção ao movimento
da maré na mesa de fórmica [...] Enquanto isso o rosto à minha frente chega à crispação.
Nada me impede porém de acompanhar as manobras cada vez mais afoitas dos
surfistas no molejo das ondas. [...]. Quero compor o gesto de quem abafa um ruído
intolerável, mas o que faço realmente é enfiar o dedo na cavidade do ouvido. [...]. Ergo-
me completamente molhado e caminho até o balcão para telefonar; sei que a esta hora
não vou encontrar seus pais em casa mas estou decidido a fazê-lo. Se eles não tiverem
chegado, preciso enfrentar sozinho as filas de fim de semana para conseguir o atestado
de óbito; de cara franzida no espelho, disco o número e fico aguardando a resposta com
um começo de enjôo (p. 164).

A história do encontro e do suicídio está cifrada na narrativa pelos interstícios da história


que reflete outra, a questão do absurdo das relações humanas, do esvaziamento, de uma percepção
deformada da realidade que se projeta no modo elíptico e fragmentário da narrativa. A falta de
sentido é o elemento comum entre várias personagens e narradores dos contos que se inscrevem nos
desdobramentos e descaminhos do real, em que a única certeza é não saber, mas é um “não saber” com
a incômoda sensação de ver, sentir e não agir no acontecer trágico da existência.

5
A relação com o sentimento de perdição está na incapacidade de agir ou na inutilidade de
agir, tal como coloca Nietzsche (1985, p. 69):

Não é a reflexão o que nos impede de agir: é o verdadeiro conhecimento, a visão da


verdade horrível, o que anula todos os impulsos, todos os motivos de agir, tanto em
Hamlet como no homem dionisíaco.

Essa percepção conota o sentido da tragicidade da própria condição da existência humana. A


fina percepção do real transforma-se em ação no texto ficcional. Agir para o escritor contemporâneo
passa pelo exercício da escritura, um exercício à procura do sentido ou não sentido da realidade. Com a
palavra o escritor:

M. Carone: A expressão ‘Fora daqui: é este o meu alvo’ (Weg von hier: das ist mein Ziel)
é uma frase de um conto monolítico de algumas linhas de Kafka, que se encontra nas
Narrativas do espólio. Usei-a como epígrafe de uma das seções do livro como ‘acorde’ para
o que há de indesejável e aterrador no Brasil e em outras partes do mundo. O primeiro
texto desta série, como o leitor pode ver, é Dias melhores, em que o protagonista fica
o tempo todo à mercê de um atirador anônimo e ativo, que o põe na defensiva como
alguém que vai acabar perdendo a parada. Se o castelo de um homem é o seu lar, então
aqui ele deixa de ser, como acontece na novela A construção de Kafka. Ou seja: não há
no mundo nenhum refúgio seguro contra os ataques, desapareceram todos os ‘paraísos
artificiais’, o pesadelo é cotidiano, a ‘felicidade’ se evaporou (por isso está entre aspas).
Mas o tom da normalidade da escrita, regida pela gramática e pela contensão, é o
contraste que torna esse ‘absurdo’ palpável e verossímil, além de lhe acrescentar o horror
através justamente do understatement. [...]. Nesse sentido, não espanta que o ‘fantástico’
e o ‘estranho’ kafkiano foram assumidos na minha carreira de escritor. Poderia ser de
outra maneira? Tenho aversão ao açucarado e ameno, porque a literatura agride de volta
o mundo que a atira na ‘marginalidade’. Aliás, não há centro sem margem, porque ambos
fazem parte do mesmo sistema, são complementares, embora a margem seja sempre a
parte prejudicada (CARONE, 2010).

5 A expressão remete ao texto de Clarice Lispector. (1993, p.26, grifo do autor); “É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o senti-

mento de perdição no rosto de uma moça nordestina”.

Escritura e Criação: “Marcas do Real” 41


A proposta da escritura caroniana faz a opção pela leitura do real, sem cair em um realismo
puro, por que prioriza os elementos textuais, a partir dos quais se constrói uma clara consciência do
texto como produto artístico e expressão criativa de uma subjetividade:

É nessa condição que as vertentes do viver e do ficcional não podem ser pensadas
separadamente da mesma forma que, do ponto de vista do processo de produção da
escritura romanesca, essas vertentes se embaralham, dramatizando o sujeito que a
produz, e se pluraliza no emaranhado dos signos que articula e dissemina (HOISEL, 2006,
p. 59).

Os fatores externos ao texto aparecem, porém, passam a assumir uma natureza interna à
linguagem literária. A conformação da figura do escritor não implica a impossibilidade de remeter a
obra a algo que transcenda o texto – à história, por exemplo, considerando que a condição para se
chegar à transcendência do texto é percebê-lo inicialmente no nível de sua estrutura.
Kristeva (1974) afirma que todo texto situa-se na junção de vários textos dos quais ele é, ao
mesmo tempo, releitura, deslocamento e profundidade. O texto e a sociedade se constituem em outros
textos que o escritor lê e nos quais se insere ao reescrevê-los. Ao refletir sobre o caráter biográfico da
escritura, sobre o sujeito e a sua relação com a linguagem, Evelina Hoisel (2006, p. 10) observa que:

[...] O sujeito não é apenas o produtor de uma linguagem, de um texto, de uma escritura,
ele é também produzido pela linguagem-texto-escrita que articula. Concebe-se então a
linguagem como um palco de múltiplas cenas, onde determinadas personagens, idéias,
forças, escritas, signos, que são vestígios, marcas de uma experiência, de uma cultura,
podem atuar.

Assim, na “cena da escritura” caroniana, está o traço que afirma o sujeito crítico, tradutor, o
sujeito como signo cuja escritura não só se torna mimese como também testemunho de seu tempo. O
conto “Fendas”, contemplado na sequência “Possuir o que me possui”, pode ser lido como uma metáfora
da atividade intelectual do escritor contemporâneo:

Examino as poças do meu crânio. [...] é manifesto porém que conhecem o som, uma
vez que as palavras as fazem vibrar. [...]. Deduzo que certas formações acompanham a
Escritura e Criação: “Marcas do Real”
correnteza segundo um código anônimo; talvez por isso o sentido das frases me escape.
[...]. Estimulado pela dança, pergunto-lhes o nome; nenhuma responde – apenas as
pregas do tecido dizem algo incompreensível (p. 162, grifo nosso).

O título do conto “Fendas” e construções metafóricas como - as poças do meu crânio, certas
formações acompanham a correnteza, código anônimo, sentido das frases me escapa, as pregas do
tecido dizem algo incompreensível – sugerem imagens sobre escrita e memória, remetendo à atividade
intelectual do escritor no sentido de agenciador de escritas, cuja produção denota a capacidade que
tem um texto de agregar em seu espaço escritas multíplices.
Na mesma perspectiva, o conto “Utopia do jardim-de-inverno”, que aparece na sequência,
“Possuir o que me possui”, sugere interrogação do escritor sobre o processo mimético e representacional
da escritura. Pode-se falar sobre efeitos da interferência da posição da crítica contemporânea no conto
de Carone, leitura possível por meio das reflexões do narrador sobre o processo de observação e análise
de um “jardim-de-inverno”:

42 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


Um olhar capaz de discernimento não se satisfaz com a impressão de repouso, mesmo
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA que ele seja o de uma simples planta do deserto. Não há nada mais parado na verdade
do que um cactus mexicano. Mas é evidente que esta insensibilidade, tantas vezes
confundia com desligamento do mundo, não passa de uma miragem, já que seu teor
intratável se deve justamente à existência de espinhos apontados para fora. Este modo
de entender o cruzamento de mobilidade e estado de alerta merecia ser mais explorado.
[...]. A dificuldade costuma nascer, como se sabe, de expectativas tão mais abrangentes
quanto menos elaboradas – por exemplo as que envolvem a relação factual entre o
jardim e o jogo da aparência. Não seria inadequado insistir que neste caso se trata de
uma relação complementar com elementos miméticos. O importante no momento é
perceber que a complementaridade de um jardim o transforma em contradição de algo
a que ele só alude enquanto manifestação autônoma.[...]. Talvez essa relação traduza a
tendência dessas plantas a dizerem alguma coisa que existe mas não tem nome certo e
que por isso aceita outro totalmente provisório (p. 196, grifo nosso).

As expressões destacadas na citação sinalizam para um discurso narrativo que desvela o


diálogo instalado em seu interior com formas de expressão próprias da crítica literária contemporânea.
No conto, a linguagem literária aponta para a estreita conexão entre o mundo representado e as noções
caras à teoria contemporânea em que o texto ficcional inspira-se; percepção da complexidade do olhar
exigido sobre o objeto estudado, analisado em perspectiva plural, lábil e provisória.
O movimento é o da atenção no jogo de armar da narrativa, no avanço do leitor nas artimanhas
do círculo hermenêutico a que o escritor propôs-se realizar. No ritmo da leitura, no movimento
pendular dos sentimentos que encontram a história e o mundo degradado, a produção literária de
Modesto Carone pretende romper a cadeia simbólica que deteria os leitores no mundo dos simulacros
contemporâneos.
O leitor é levado a perceber, no discurso poético, uma especialização da linguagem, que a
torna estranha ou enigmática. Este fenômeno revela vínculos entre o escritor e a escritura, dado já
manifestado pelo próprio autor em entrevistas. A linguagem escritural do autor revela uma profunda
afinidade com a linguagem poética, no que essa linguagem mantém uma permanente simetria entre
forma e conteúdo:

As situações-limite vividas pelos personagens de Por trás dos vidros são imaginárias, mas
possíveis. É no limite da experiência e nos confins de uma linguagem às vezes gelada
que fixo a abertura para o ‘outro mundo’, de onde jorra a alienação contemporânea,
aqui depurada pela forma estética. Esse ‘outro mundo’ é a contradição daquele onde ele
nasceu por necessidade artística (e humana). Retomando Adorno: ‘A poesia sonha um
mundo onde as coisas seriam diferentes’ (CARONE, 2010).

A experiência da alienação social é captada pela escritura caroniana e devolvida ao leitor como
interrogação do mundo pela palavra que é matéria trabalhada, lembrando as formulações de Adorno
(2003, p. 160) no texto “O artista como representante”, ao refletir sobre a natureza da prosa de Paul
Valéry:

Valéry ataca essa concepção extremamente difundia acerca da essência de uma obra
de arte, segundo a qual esta é creditada, conforme o modelo da propriedade privada
àquele que a produziu. Ele sabe melhor do que ninguém o quão pouco de sua obra
‘pertence’ ao artista; sabe que, na verdade do processo artístico de produção, e também
no desdobramento da verdade contida na obra de arte; a configuração rigorosa adquire
uma legalidade imposta pela própria coisa, diante da qual a famosa liberdade criativa do
artista pesa muito pouco.

Escritura e Criação: “Marcas do Real” 43


A atividade do escritor leva-o a absorver as indagações do mundo num modus de escrever que
se transforma no impasse entre a ambição da totalidade e a incompletude da narrativa. A escrita torna-
se o problema da representação literária, bem como a dificuldade de abarcar a complexidade do tecido
social que serve de material para os contos. Conforme Adorno (2003, p. 164),

[...] o artista portador da obra de arte, não é apenas aquele indivíduo que a produz, mas
sim torna-se o representante, por meio de seu trabalho e de sua passiva atividade, do
sujeito social coletivo.

Embora a obra de Carone apresente-se voltada para uma “tessitura dissimulada”, com
articulações imagéticas multiformes, portanto de desarticulação e dissonâncias, tudo indica ser
um aproximar-se da realidade e não um afastamento, mas uma investigação da realidade em ritmo
diferenciado, em que a representação mimética do universo não encontra tempo nem espaço nessa
escritura que só se atualiza por meio de jogos de linguagem.
Qualquer olhar que objetivasse uma explicação do fator social em seus contos se caracterizaria
como uma busca vã, uma vez que o movimento é sinuoso e exige uma verificação desse fator como
elemento que se funde à narrativa, deixando de ser tema e tornando-se também ele parte da construção
da obra, tragado pelo universo da linguagem, de modo que boa parte das formulações teóricas da
crítica literária contemporânea está contemplada na própria tessitura de Por trás dos vidros.

Escritura e Criação: “Marcas do Real”

44 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA R E F E R Ê N C I A S

ADORNO, T. W. O artista como representante. In: ______. Notas de literatura I.


Tradução: Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades, 2003.

BORGES, J. L. La flor de Coleridge. In: _____. Otras inquisiciones. Buenos Aires:


Alianza, 1976.

BORGES, J. L. Pierre Menard, autor del Quijote. In: _____. Obras Completas I – Ficções.
Tradução: Carlos Nejas. São Paulo: Globo, 2000.

CARONE, Modesto. Metáfora e montagem. São Paulo: Perspectiva, 1974.

CARONE, Modesto. Por trás dos vidros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CARONE, Modesto. Diante do vazio, a fabulação. Entrevista concedida a Rogério


Pereira, publicada no Jornal Rascunho (jornal de Literatura do Brasil). Disponível em
<http://rascunho.rpc.com.br/index.php?ras=secao.php&modelo=2&secao=5&lista=0
&subsecao=0&ordem=1801>. Acesso 31-07-2010.

HOISEL, Evelina. Grande sertão: veredas – uma escritura biográfica. Salvador:


Academia de Letras da Bahia; Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2006.

KRISTEVA, J. Introdução à semanálise. Tradução: Lúcia Helena França. São Paulo:


Perspectiva, 1974.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

NIETZSCHE. A origem da tragédia. Tradução: Álvaro Ribeiro. São Paulo: Guimarães


Editora, 1985.

PEREIRA, Helena Bonito. (Org.). Novas Leituras da Ficção Brasileira no Século XXI. São
Paulo: Editora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011.

Escritura e Criação: “Marcas do Real” 45


INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA

CAPÍTULO 3

O Real e o Ficcional em a Casca da


Serpente e Guerra no Coração do Cerrado
Maria Luíza Ferreira Laboissière de Carvalho
Maria José Modesto Silva

O presente estudo tem como objetivo analisar as obras A casca da serpente, de Jose J. Veiga
(2001) e Guerra no coração do Cerrado, de Maria José da Silveira (2006), partindo da linguagem como
foco de análise para o estudo dos interdiscursos. Dentre os teóricos consultados, vale ressaltar Bakhtin,
Marxismo e Filosofia da Linguagem (2006); Hayden White, Trópicos do discurso - ensaios sobre a crítica
da cultura (2001). A partir desses teóricos, será elaborado um levantamento sobre a linguagem como
“construto lingüístico”, suas peculiaridades e suas concepções ideológicas. Perceber-se-á nos romances
em estudo uma linha interdiscursiva com a história pelos intertextos presentes nas narrativas.
A narrativa histórica Os sertões, de Euclides da Cunha, apresenta-se como intertexto no
romance metaficcional historiográfico A casca da serpente, de José J. Veiga (2006). O episódio histórico
da fundação da Aldeia de São José de Mossâmedes, Goiás, apresenta-se como interdiscurso da história
no romance de Maria José da Silveira, Guerra no coração do Cerrado.
Serão abordados nas obras os procedimentos narrativos que mostram a rede dialógica entre os
discursos da ficção e da história. A intenção é a de mostrar como as narrativas estruturam ficcionalmente
as extrações históricas e engendram as possíveis leituras empreendidas: narrativa histórica, romance
histórico, metaficção historiográfica. Alguns teóricos no servirão de apoio tais como Linda Hutcheon
(1991), André Trouche (2004) e Alcmeno Bastos (2007).

O Real e o Ficcional em a Casca da Serpente e Guerra no Coração do Cerrado 47


A LINGUAGEM COMO CONSTRUTO LINGUÍSTICO

Um texto, em seu processo de construção, sofre manifestações de outros discursos. A cada


criação, surge uma nova construção que redimensiona o fazer literário, possibilitando as realizações
tropológicas. A enunciação perscruta um novo olhar na formação de um novo discurso, que recorre a
outros discursos. Na concepção da modernidade, as alusões feitas ao termo intertextualidade explicam
as redes dialógicas do texto. “Defendida pelos formalistas russos e, retomada posteriormente por Mikhail
Bakhtin, a literariedade vem reclamar também para si o princípio da intertextualidade.” (CARVALHO,
2000, p. 66-7).
A criação literária da modernidade decorre da noção textual, constituída pelo conjunto
explicito ou implícito de outros textos ou outras linguagens, ou seja, as leituras do escritor e sua vivência

O Real e o Ficcional em a Casca da Serpente e Guerra no Coração do Cerrado


no mundo atribuem-lhe o material necessário e preciso na formação de sua obra. O texto não está
desligado da questão ideológica da formação da linguagem poética. Existe um conjunto de outros
textos e outras linguagens em toda criação.
Segundo Bakhtin (2006, p. 202), a palavra, como fenômeno ideológico por excelência, “está
em evolução constante, reflete fielmente todas as mudanças e alterações sociais”. O estudioso vê a
linguagem como um fenômeno profundamente histórico e social. Sendo assim, é ideológico, e essa
ênfase no social nos leva a observar os processos de construção linguística das criações metafóricas
empreendidas pelos autores. Hayden White (2001) em Trópicos do discurso faz uma averiguação das
zonas trópicas da linguagem; análise que estendemos às narrativas em estudo.

Todos os fenômenos culturais são exemplos da capacidade humana para produzir, trocar
e consumir os signos. Consequentemente, a interpretação dos fenômenos culturais
é considerada meramente um caso particular do ato de ler no qual a manipulação e
a permuta dos signos é levada a efeito de modo mais consciente, o ato de ler textos
literários. (WHITE, 2001.p. 302).

Segundo Bakhtin, todo e qualquer discurso se encontra na fronteira do outro e do sujeito.


Assim, o dialogismo se mantém em todo e qualquer enunciado, em sua produção e enunciação com os
contextos e enunciados que os precedem. Ou seja, o sujeito é imbricado pelo seu meio social, constituído
pelos discursos da sociedade em que está inserido, e cada sujeito implica sempre um conflito e uma
confrontação de inúmeros discursos que se estruturam e se enredam.
Na visão de Hayden White (2001), quando se procura a problemática da natureza humana,
sua cultura, sociedade e história, o discurso sempre escapa dos nossos dados e firma na consciência
da apreensão. Todo discurso legítimo valoriza as diferenças de opiniões, ainda mais quando necessita
demarcar uma nova área da experiência humana, definir seus contornos, identificar os elementos da
sua relação e que tipo de relações predomina entre as pessoas.
No romance Guerra no coração do Cerrado, de Maria José da Silveira, publicado em 2006,
percebemos uma preocupação ideológica do passado mediante a valorização de seus elementos
básicos – valores, figuras, episódios e outros. A autora nos conta sobre os tempos em que Dom Luiz
da Cunha Menezes era Capital-General, valendo-se da personagem protagonista Damiana da Cunha
e de sua projeção pessoal como intermediária nos intermináveis conflitos entre seu povo (Panará) e

48 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


os Portugueses, época da Colonização de Goiás, no fim do século XVIII. A autora nos esclarece sobre a
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA hostilidade e a incompreensão entre as duas culturas, a do branco e a do índio, que são fundamentadas
para os interesses políticos e econômicos deixados bem claros pelos portugueses: conquistar as terras,
ouro e escravizar os índios.
Ao lidar com tópicos como natureza humana, cultura, sociedade e história, o discurso das
ciências humanas termina sempre escapando às tentativas de definir esses conceitos. Assim, White
(2001) examina o problema das relações entre descrição, análise e ética, reduzindo as distâncias entre
o discurso histórico e o discurso literário, colocados, ambos, como “construtos” humanos e, como tal,
sujeitos às vicissitudes da subjetividade.
Para White, a linguagem regida pelos tropos provoca desvios do seu uso literal, convencional
ou próprio dessa linguagem. Geralmente, tais ocorrências são sancionadas pelos costumes e pela lógica,
pois provocam a criação de figuras de linguagem ou de pensamento mediante uma defesa contra o
sentido literal do discurso. Então, o emprego dos tropos é a “[...] conexão entre as coisas de possibilidade
de serem expressas de outra forma. O discurso é o gênero em que predomina os esforços para adquirir
este direito de expressão” (WHITE, 2001, p.15).
Ao se falar sobre a questão da linguagem como “construto linguístico”, suas peculiaridades e
suas concepções ideológicas, de acordo com as teorias de Bakhtin (2004) e de Hayden White(2001),
deve-se partir da recuperação histórica das figuras protagonistas dos dois romances em estudo: Tio
Antônio e Damiana da Cunha, para redimensionar suas experiências, seus conceitos de mundo, seus
modos culturais. Tais figuras serão relacionadas às suas representatividades metafóricas e ao contexto
histórico e ficcional.
Na Guerra de Canudos (CUNHA, 2000), Antônio Conselheiro, é um homem matuto, sertanejo,
religioso e cheio de enigmas. Na versão da narrativa histórica Os sertões, de Euclides da Cunha, o que
lemos são informações oficiais violentas sobre as condições sertanejas. Em A casca da serpente, os
sentidos se atravessam nos universos discursivos da história e da ficção por meio do poder simbólico da
linguagem que não apaga totalmente o momento histórico vivido.
O discurso ideológico, como toda manifestação cultural, precisa ser visto com novos olhares.
É o que José J. Veiga faz na narrativa metaficcional historiográfica A casca da serpente: uma leitura em
forma de romance de Os sertões de Euclides da Cunha. Levando em consideração que toda produção e
linguagem é um tipo de “discurso” e, portanto, visto dentro de uma perspectiva ideológica, tais discursos
é que refletem as mudanças ocorridas após Antônio Conselheiro se transformar em Tio Antônio. As
transformações acontecem por meio dos falares, dos hábitos, dos comportamentos, dos tipos e dos
anseios de um povo, ou seja, de Canudos a Itatimundé.
Devemos registrar os comportamentos de um povo localizado numa região do nordeste
sertanejo. É um espaço real, dentro da ficção, em que se orienta a objetividade do discurso da narrativa
o que faz com que o leitor fique sempre à espera de que chegará a algum lugar. O leitor faz a viagem de
Canudos a Itatimundé, observando detalhes da história, conforme trecho abaixo de A retirada:

No dia 2 de outubro de 1897 dois jagunços de Canudos, exaustos da guerra e agitando
uma bandeira branca, conseguiram chegar ao general Artur Oscar, comandante da
quarta e última expedição federal despachada contra os rebeldes. Um dos jagunços

O Real e o Ficcional em a Casca da Serpente e Guerra no Coração do Cerrado 49


era Antônio Betinho, o sacristão de Antônio Conselheiro; o outro era Bernabé José de
Carvalho, espécie de secretário para assuntos políticos. (VEIGA, 2001, p.7).

No decorrer da história de Guerra no coração do Cerrado, observa-se que a palavra escrita


esteve subjugada à cultura do homem branco e grande parte da comunidade indígena fora dizimada
pelos dominantes, os homens brancos e, com ela, parte da tradição e da sabedoria do povo também se
perdeu.
A casca da serpente é uma narrativa que reescreve a história de Canudos e de seu líder, Antônio
Conselheiro, um líder messiânico do século XIX. Veiga dá sua versão dos momentos finais da guerra
que lá se deflagrara contra as tropas governistas. Na ficção, Antônio Conselheiro não morre. Seu bando
trabalha na construção da nova Canudos. A casca da serpente nos introduz numa narrativa em que é
tênue a linha entre a ficção e a história.

O Real e o Ficcional em a Casca da Serpente e Guerra no Coração do Cerrado


Esse lance final da luta está contado em cores vivas pelo repórter Pimenta da Cunha em
seu livro de 1902. ”Canudos não se rendeu”, diz ele. ”Exemplo único em toda a história,
resistiu até o esgotamento. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo,
caiu no dia 5 de outubro ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores,que
todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na
frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. Caiu o arraial no dia 5. No
dia 6 acabaram de o destruir, desmanchando as casas 5.200 cuidadosamente contadas.”
Quando deixaram Canudos no fim da tarde de 2 de outubro, eles não sabiam para onde
ir. A preocupação imediata era não deixar que o Conselheiro fosse apanhado pelos
federais, nem morto. (VEIGA, p.14).

No romance A casca da serpente, observamos as múltiplas “cascas” de Antônio Conselheiro


e as constantes transformações sofridas pelo mesmo. É questionada no romance a possibilidade
de mudanças que se pode processar no interior das pessoas e do mundo que as cercam. Veiga diz
metaforicamente as coisas, pensamentos, idéias suas e dos personagens, faz a sua crítica com humor.
Ressaltamos admiráveis efeitos expressivos dos quais lançamos mão neste trabalho para melhor
exemplificar um dos romances analisados. “Ora, quem vai buscar lã não deve reclamar caso saia
tosquiado”. (ACS, p. 22); “... seguro morreu de velho e onça se alimenta de bicho desleixado” (ACS, p. 31 ).
Cada elemento do romance tem sua importância e significação metafórica.
Em Guerra no coração do Cerrado, a autora Maria José da Silveira nos conta sobre os tempos
em que Dom Luiz da Cunha Menezes era Capital-General, valendo-se da personagem protagonista
Damiana da Cunha, e de sua projeção pessoal, para servir como intermediária nos intermináveis
conflitos entre seu povo, Panará, e os portugueses, época da colonização de Goiás, no fim do século
XVIII. Vemos as mudanças e suas nuances que ocorrem na vida de um povo Panará que se vê dentro de
um conflito de interesse da Coroa Portuguesa no ‘coração do cerrado ‘do Centro-Oeste goiano. Cerrado
esse que é a trilha percorrida por Damiana da Cunha e seus irmãos para se chegar a Aldeia de São José
de Mossâmedes. As extrações históricas, como vimos, permeiam as obras analisadas; os interdiscursos
vão se fazendo presentes na ficção, oportunizando leituras variadas.

NARRATIVA DE EXTRAÇÃO HISTÓRICA

A expressão “narrativa de extração histórica” foi utilizada por Andre Trouche (2006, p. 44) para
designar o conjunto de obras de ficção do universo literário hispano-americano que “encetam o diálogo

50 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


com a história como forma de saber e como intervenção transgressora”. Segundo Trouche (2006, p. 34),
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA vários fatores contribuíram para essa troca de procedimentos discursivos entre a narrativa ficcional e a
histórica: “[...] no âmbito da história, tais alterações passam pela incorporação das reflexões geradas pela
Nova História [...]”; no âmbito da literatura, o renovado interesse pelo passado histórico e a permanência
da questão da referencialidade bem como o interesse pelas questões das relações entre texto e contexto.
A terminologia proposta por Andre Trouche será utilizada neste estudo para se referir às
obras de José J. Veiga e de Maria José da Silveira, tomadas aqui como corpus de análise e para que
possamos dela partir para explicar as especificidades do romance histórico e da narrativa de metaficção
historiográfica, ambos considerados de extração histórica.
Os filósofos contemporâneos inclinaram-se a inquirir até que ponto uma narrativa histórica
pode ser considerada algo diferente de uma simples interpretação, na suposição de que o que é
interpretação não é conhecimento mas apenas opinião, e na crença de que o que não é objetivo num
sentido cientifico não é digno de ser conhecido.
O estilo narrativo, na história como no romance, seria, pois construído como a modalidade
do movimento que parte da representação de algum estado de coisas originais para chegar a algum
estado subsequente. O sentido básico de uma narrativa consistiria, então, na desestruturação de um
conjunto de eventos (reais ou imaginários) originariamente codificados num modo tropológico, e na
reestruturação progressiva do conjunto num outro modo tropológico.

Vista desta maneira, a narrativa seria um processo de decodificação e recodificações em


que uma percepção original é esclarecida por achar-se vazada num modo figurativo
diverso daquele em que veio a ser codificada por convenção, autoridade ou costume.
(WHITE, 1994, p.113).

Explica, então, que um conjunto de experiências quando chega até as pessoas, enquanto meta-
história, necessita tanto de metáfora quanto de metonímia, pois assim fixa algo significativamente,
mas de forma figurada. Lukács estabeleceu para o romance moderno que cada tipo é identificado
pelo modo de relacionamento que predomina entre o protagonista e o seu meio social. Esse “modo
de relacionamento” com a matéria de extração histórica vai determinar as características do romance
histórico e da metaficção historiográfica, conforme as análises subsequentes neste capítulo.
O que distingue o romance histórico das outras modalidades de romance é o fato de que a
matéria narrada no romance histórico deve ser, obviamente, de extração histórica. Os elementos que
a constituem deverão ter sido objeto de registro documental, escrito ou não, e apresentar satisfatório
grau de familiaridade para o leitor medianamente informado sobre a história de uma determinada
comunidade.
[...] Dizemos da matéria narrada que ela deve ser de extração histórica e não
simplesmente histórica, para, ao mesmo tempo assinalar sua procedência, seu lugar de
origem - a história -, e realçar o fato de que ela é submetida a um traslado semiótico que
provoca alterações qualitativas na sua substância. [...] a matéria de extração histórica é
estatutariamente tão ficcional quanto a que não o seja, isto é, quanto a que resulte de
livre invenção do autor. (BASTOS, 2007, p. 84).

Da matéria de extração histórica também fazem parte os acontecimentos em si, as


instituições, os lugares, tudo, enfim, que de algum modo contenha historicidade. Para
tanto, deve valer o princípio de que o acontecimento só é verdadeiramente histórico
quando reverbera para além da trajetória individual e/ou familiar da personagem.
(BASTOS, 2007, p. 86).

O Real e o Ficcional em a Casca da Serpente e Guerra no Coração do Cerrado 51


O que assegura a matéria de extração histórica, no nível da textualidade, de acordo com Bastos
(2007, p.86), é a procedência histórica ao elemento objeto da representação ficcional-personagem,
acontecimento, instituição - é sua marca registrada, isto é, o designativo próprio com que deu entrada
nos registros documentais [...] A marca registrada do ponto de vista semiótico, o componente do signo
elemento-histórico que transita do universo da realidade objetiva o mundo real para o universo da
ficção sem perda da substância significante, isto é, a marca é trasladada com todos os seus componentes
gráficos.
E o que se pretende, por meio da teoria da narrativa de extração histórica, é percebê-la
também no romance histórico de Maria José da Silveira onde é notória a presença de espaços reais e
elementos que possuem um contexto histórico. Argumenta Trouche (2006, p.70): “[...] é inegável uma
intersecção entre o romance histórico e as narrativas de extração histórica”. A autora tomou o histórico

O Real e o Ficcional em a Casca da Serpente e Guerra no Coração do Cerrado


como referente intertextual ativo de sua narrativa.

Dom Luiz saíra confiante de sua saudosa Bahia para governar a região há pouco
promovida à capitania (Vila Boa de Goiás), de onde fora extraído, em seu breve momento
de apogeu, grande parte do ouro que enfeitava as igrejas e o luxo da sua cidade de
Salvador. (SILVEIRA, 2006, p. 16).

O romance Guerra no coração do cerrado expõe uma visão panorâmica da chegada dos
governadores a esse espaço que, segundo o governador da época, era a “morada infernal dos mosquitos”.
O espaço onde a riqueza passou e não ficou, era também o lugar da chegada de algumas Entradas e
Bandeiras organizadas no Estado de São Paulo. E, além da incumbência de conseguir ouro para a Coroa
Portuguesa tinha, ainda, talvez a mais difícil e ardilosa tarefa, que era a de pacificar os cayapós e abrir
aldeamentos.
A análise dos interdiscursos, ficcional e histórico, proposta na análise da obra de Veiga, vale-se
da obra Os sertões, de Euclides da Cunha, por ser o intertexto utilizado por Veiga na elaboração de A
casca da serpente. A narrativa histórica Os sertões, assim se denomina por trazer um discurso que filtra
a ideologia das camadas de poder.

O ROMANCE HISTÓRICO

O romance histórico surge no início do século XIX, durante o romantismo. Georg Lukács (apud
SANSEVERINO, 2003, p. 113) faz duas exigências ao romance histórico: “a recuperação da ‘singularidade
histórica’ e a tradução da singularidade histórica por meio da atuação de personagens”.
Bastos (2007) afirma que o romance histórico não teve sua origem no século XIX e, sim, ao
primeiro marco das relações entre literatura e história, entre os gregos. Explica o estudioso que o
romance histórico se apoiava na documentação histórica, enfatizando, portanto, o dado de realidade: a
narrativa ficcional seria a inventada; a de extração histórica, a documentada. Acrescenta, ainda, que:

A ficção histórica [...] foi batizada pelo teórico marxista Georg Lukács como uma ficção
‘arqueológica’. Segundo Lukács, essa ficção arqueológica estaria marcada por um
descritivismo frio e distante, predominantemente interessada na recuperação estática
do passado longínquo em suma, uma espécie de negação do verdadeiro romance
histórico. (BASTOS, 2007, p.11)

52 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


Segundo Alcmeno Bastos (2007), não se deve aprisionar o romance histórico a apenas uma
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA tipologia caracterizadora, mas sim deve se observar “um conjunto de traços caracterizadores que o
irmanam a outros romances igualmente merecedores do título”. E, ainda, diz que:

um dos traços mais fortes é “a exigência de que a trajetória das personagens principais se
vincule de modo irrecorrível ao destino da comunidade histórica de que fazem parte; ou
que os fatos e as figuras históricas aludidas cumpram função apenas incidental na trama,
mas sejam elementos definidores da natureza dos eventos e da sorte das personagens,
de procedência histórica ou não. (BASTOS, 2007, p.12)

Na visão de Bastos (idem, p. 19), a ficção histórica continua a seduzir-nos com a memória dos
homens e dos fatos que vieram antes de nós. Afirma que o que vai diferenciar o historiador do romancista
é que o historiador trabalha com documentos escritos enquanto que o romancista com documentos
narrados. E, ainda, complementa dizendo que o romance atual ainda se faz com documentos narrados,
ou extraídos da natureza, como a história se faz com documentos escritos. Historiadores são narradores
do passado; o romancista, narrador do presente.
Segundo White (1994, p.115), a ficção é concebida como a representação do imaginável e a
história como a representação do verdadeiro. Tal concepção deve dar lugar ao reconhecimento de que
só podemos conhecer o real comparando-o ou equiparando-o ao imaginável. Seguindo esse viés das
relações entre o discurso da história e o da ficção, André Trouche (2006) diz:

[...] pode-se apontar a forte influência recíproca e a grande permuta de procedimentos e


processos discursivos entre a narrativa histórica e a narrativa ficcional, aliadas ambas às
alterações conceituais que se vieram processando no interior de cada uma delas.

O que Trouche (2006, p.33-4) ressalta, vale repetir, é que a narrativa histórica precisa antes de
uma verdade histórica, de uma construção cultural e de um fato histórico. No âmbito da literatura, o
mesmo autor destaca outros fatores que contribuem para a construção dessa tendência no sentido
da relativização dos limites entre história e ficção. Primeiro, ele cita o passado histórico, ou seja, o
movimento em direção ao passado. Outro fator citado é a permanência da questão da referencialidade,
a relação entre texto e contexto e, por fim, o contínuo movimento no sentido do autoquestionamento.

O ROMANCE DE METAFICÇÃO HISTORIOGRÁFICA

Na pós-modernidade, foram reformulados os conceitos e propostas novas denominações


para criações literárias, sendo uma delas a de “metaficção historiográfica”, cunhada por Linda Hutcheon
(1991). O pós-modernismo ensina que todas as práticas culturais têm um subtexto ideológico que
determina as condições da própria possibilidade de sua produção ou de seu sentido (HUTCHEON, 1991,
p.15). “Em primeiro lugar, as metaficções historiográficas parecem privilegiar formas de narração que
problematizam toda a noção de subjetividade: os múltiplos pontos de vista”. (HUTCHEON, 1991, p. 156).
Linda Hutcheon (1991, p. 34) afirma ainda que, segundo a escrita pós-moderna tanto da história
quanto da literatura, ficção e história são discursos – “o sentido e a forma não estão nos acontecimentos,
mas nos sistemas que transformam esses acontecimentos passados em ‘fatos’ históricos presentes

O Real e o Ficcional em a Casca da Serpente e Guerra no Coração do Cerrado 53


(grifo original). A historia “não existe senão como texto”, e o acesso ao passado está condicionado pela
textualidade. A metaficção historiográfica recusa a “visão de que apenas a história tem uma pretensão à
verdade” (idem, p.127) e ela mesma se aproveita das verdades e das mentiras do registro histórico.
O fato histórico não funciona apenas como um pano de fundo que realça o enredo literário. Pelo
contrário, ocorre a reinserção dos “contextos históricos como sendo significantes, e até determinantes,
mas, ao fazê-lo, problematiza toda a noção de conhecimento histórico”, uma vez que o passado não é
negado, mas sua abordagem se faz condicionada pela textualidade. Ou seja, “o sentido e a forma não
estão nos acontecimentos, mas nos sistemas que transformam esses “acontecimentos” passados em
“fatos” históricos presentes” e, ainda, “a textualidade é reinserida na história e nas condições sociais e
políticas do próprio ato discursivo” (HUTCHEON, 1991, p. 122).
Afirma, ainda, que a “autoconsciência teórica” da metaficção historiográfica é que a leva

O Real e o Ficcional em a Casca da Serpente e Guerra no Coração do Cerrado


a reconhecer que tanto a história quanto a ficção são, por igual, criações humanas, servindo-lhe de
base para repensar e reelaborar as formas e os conteúdos do passado. Acrescenta que a metaficção
historiográfica é uma modalidade narrativa essencialmente metadiscursiva, que em momento algum
pretende fazer-se passar por outra coisa que não o que ela é de modo incontestável: texto. Daí que a
metaficção historiográfica repudia “os métodos naturais, ou de senso comum, para distinguir entre o
fato histórico e a ficção”, e não aceita que “apenas a história tem uma pretensão à verdade”. (HUTCHEON,
1991, p.127)
Linda Hutcheon (1991), ao problematizar as noções admitidas de história e ficção, apresenta
a descrição de Bárbara Foley sobre o paradigma do romance histórico do século XIX, mostrando entre
colchetes as mudanças pós-modernas (próprias da metaficção historiográfica).

Os personagens [nunca] constituem uma descrição microcósmica dos tipos sociais,


representativos; enfrentam complicações e conflitos que abrangem importantes
tendências [não] no desenvolvimento histórico [não importa qual o sentido disso, mas
na trama narrativa, muitas vezes atribuível a outros intertextos]; uma ou mais figuras
da história do mundo entram no mundo fictício,dando uma aura de legitimização
extratextual às generalizações e aos julgamentos do texto [que são imediatamente
atacados e questionados pela revelação da verdadeira identidade intertextual, e
não extratextual, das fontes dessa legitimização]; a conclusão [nunca] reafirma [mas
contesta] a legitimidade de uma norma que transforma o conflito social e político num
debate moral. (FOLEY, apud HUTCHEON, 1991, p.159)

O mais importante é considerar que a interpretação histórica deve levar em conta a singularização
da realidade que se quer retratar, ou seja, a história que serve como referência tanto para a escrita da
narrativa metaficcional A casca da serpente de José J. Veiga (2006) quanto para o romance de extração
histórica Guerra no coração do Cerrado de Maria José da Silveira (2007), tomado, neste estudo, como
romance histórico.
O acontecimento histórico de Canudos, relatado pelo repórter escritor Euclides da Cunha,
somado à imaginação do autor, cria a história. A casca da serpente e Os sertões contêm o registro
pessoal da trajetória de vida de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Em ambas, temos a oralidade
e sua diversidade, pois é através da fala dos seguidores do Tio Antônio e do Conselheiro que vamos
marcando o tempo e o desenrolar das ações. A trama de Canudos em Os sertões acontece no final do
século XIX, por volta de 1898, período da construção e de destruição de Canudos. É um momento de

54 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


muitas transformações no Brasil e no mundo. É o início de nossa República. Na história de Canudos,
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA Antônio Conselheiro é um líder messiânico do século XIX. Na ficção, Veiga dá sua versão dos momentos
finais da guerra que lá se deflagrara contra as tropas governistas. Antônio Conselheiro não morrera e
saiu rumo a novas aventuras sertão afora. Seu bando trabalha na construção de uma nova Canudos. A
casca da serpente configura-se numa narrativa em que é tênue a linha entre a ficção e a história.
O romance histórico Guerra no coração do Cerrado parte da história de um povo Panará que
habitava os entorno da Serra Dourada e grande parte do Centro-Oeste goiano. Esse povo conviveu com
uma classe dominante que almejava metais preciosos para a Coroa Portuguesa. Os indígenas foram
usados para abrir vários aldeamentos em nome da coroa e entre alguns aldeamentos citamos o de São
José de Mossâmedes.
A aldeia de São José de Mossâmedes recebeu essa denominação em homenagem ao seu
idealizador e fundador D. José de Almeida Vasconcelos Soveral de Carvalho, “Barão de Mossâmedes”
(nome de sua cidade natal em Portugal) quando governara a capitania de Goiás em 1775.
Partindo do real é que encontramos o ficcional em Guerra no coração do Cerrado. A autora
descreve uma figura muito interessante - Damiana - índia cayapó/panará, criada durante alguns anos
por um governador goiano - saindo de Vila Boa de Goiás para ir buscar seu povo no sertão. A autora
mostra como Damiana serve de “ponte” entre os dois povos, e como a mesma teve que dominar dois
códigos culturais completamente diferentes: de um lado, o branco europeu; de outro, a linguagem de
seus irmãos cayapó/panará..
Percebe-se, nas narrativas analisadas, o interdiscurso entre história e ficção, revelando, dessa
forma, uma fronteira que separa e ao mesmo tempo une o “real” e o imaginado. A fim de compreender
essa fronteira entre os elementos ficcionais e os elementos históricos que permeiam a obra, ou seja,
as relações que se estabelecem entre Literatura e História, buscou-se a compreensão dos estudos de
Hayden White e André Trouche.
Hayden White (1994, p.98) define a narrativa histórica como ficções verbais cujos conteúdos
são tanto inventados quanto descobertos e cujas formas têm mais em comum com os seus equivalentes
na literatura do que com os seus correspondentes nas ciências. Essa definição de White traz à tona um
dos principais eixos das relações entre história e literatura. Nesse ensaio, White mostra que o conjunto
de acontecimentos históricos registrados e colhidos pelo historiador não podem, isoladamente,
constituir uma narrativa histórica, pois são apenas elementos da história. Tais acontecimentos serão
[...] convertidos em estória pela supressão ou subordinação de alguns deles e pelo realce de outros,
por caracterização, repetição do motivo, variação do tom e do ponto de vista, estratégias descritivas
alternativas e assim por diante [...]. (WHITE, 1994, p.100). A estrutura da narrativa histórica, portanto,
é composta não só de acontecimentos “reais”, mas também pela ordenação desses acontecimentos,
ou seja, o mesmo conjunto de eventos poderá servir como componente de uma história trágica ou
romântica; isso dependerá da escolha da estrutura de enredo que parecer melhor ao historiador para
ordenar tais eventos.
Um mesmo fato histórico poderá ser recodificado de formas diferentes, gerando novas
interpretações e podendo estruturar-se em um tipo de drama como satírico, romântico e trágico. Assim
se observa em A casca da serpente. No entanto, os próprios eventos não se alteram substancialmente

O Real e o Ficcional em a Casca da Serpente e Guerra no Coração do Cerrado 55


de um relato para o outro, ou seja, os dados a analisar não apresentam uma diferença significativa nos
diferentes relatos, pois o que difere são as modalidades das suas relações.
Pode-se dizer, assim, que Maria José da Silveira não muda os fatos históricos, porém constrói
uma narrativa escolhendo os fatos, ordenando-os, destacando e ocultando outros, ou seja, cria uma
história dentro de uma convenção ficcional - a do romance histórico.
José J. Veiga traz para dentro da metaficção historiográfica uma forma particular de ver a
história da época - viés parodístico - a partir da sua visão ideológica. A paródia foi a maneira que o
pós-modernismo encontrou para voltar ao passado fazendo uma retrospectiva e também retratando o
múltiplo, o heterogêneo e o diferente, assumindo, então, a forma intertextual e paradoxal que, segundo
Linda Hutcheon, configura-se como uma transgressão autorizada.
Maria José da Silveira (2006), em Guerra no coração do cerrado, mostra como contexto uma

O Real e o Ficcional em a Casca da Serpente e Guerra no Coração do Cerrado


sociedade discriminadora e a partir daí vislumbra um lugar perfeito para os nativos viverem, fora do
alcance dos brancos onde os indígenas pudessem cultivar o seu modo de viver. E o que se pretende,
por meio da teoria da narrativa de extração histórica, é percebê-la também no romance de Maria
José da Silveira onde é notória a presença de espaços reais e elementos que possuem um contexto
histórico. Argumenta Trouche (2006, p.70): “[...] é inegável uma intersecção entre o romance histórico
e as narrativas de extração histórica”. A autora Maria José da Silveira tomou o histórico como referente
intertextual ativo de sua narrativa, expondo numa visão panorâmica, a chegada dos governadores a
esse espaço que era também o lugar da chegada de algumas Entradas e Bandeiras organizadas no
Estado de São Paulo.
O que distingue o romance histórico das outras modalidades de romance é o fato de que a
matéria narrada no romance histórico deve ser, obviamente, de extração histórica. Os elementos que
a constituem deverão ter sido objeto de registro documental, escrito ou não, e apresentar satisfatório
grau de familiaridade para o leitor medianamente informado sobre a história de uma determinada
comunidade.
A intenção do texto se baseia nas concepções do construto em uma dimensão do outrem.
Quem escreve, escreve usando um discurso já citado, mas ocupa-se dele e o rega com outros fatos,
sejam sociais, econômicos ou culturais, dando surgimento a um novo texto. Esse surgimento não é
aleatório e distorcido de leituras feitas anteriores, porque produz. A acepção da intertextualidade
não é algo fortuito, alheio às dimensões de um texto no outro. É fato peremptório para elucidação da
importância da recorrência de leituras anteriores.

56 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA R E F E R Ê N C I A S

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução: Michel Lahud; Yara F.


Vieira. 11ª ed. São Paulo: HUCITEC, 2004.

BASTOS, Alcmeno. Introdução ao romance histórico. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2007.


BÍBLIA SAGRADA.

CARVALHO, Maria Luíza Ferreira Laboissière de. Tradição e modernidade na prosa de


Miguel Jorge. Goiânia: Ed. UFG, 2000.

CUNHA, Euclides da. Os Sertões: Campanha de Canudos. São Paulo: Ática, 2000.

HUTCHEON, Linda. Poéticas do pós-modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo


Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

KRISTEVA. Júlia. Introdução à semanálise. Tradução: Lúcia Helena França Ferraz. 2ª ed.
São Paulo: Perspectiva, 2005.

SANSEVERINO, Antônio Marcos. A força messiânica e a teoria do romance. In: BORDINI,


Maria da Glória (Org.) Lukács e a literatura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

SILVEIRA, Maria José da. Guerra no Coração do Cerrado. Rio de Janeiro: Record, 2006.

TROUCHE, André Luiz Gonçalves. América: história e ficção. Niterói, RJ. EDUFF, 2006.

VEIGA, José J. A casca da serpente. 4 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo:
2001.

O Real e o Ficcional em a Casca da Serpente e Guerra no Coração do Cerrado 57


INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA

CAPÍTULO 4
Leitores sem face e histórias que não existem:
As fotonovelas e a produção cultural

André Luiz Joanilho


Mariângela Peccioli Galli Joanilho

Um fantasma assombra o mundo da boa literatura: a má literatura, especialmente aquela das


revistas femininas populares. Qual crítico não torce o nariz diante de livros como Júlia, Sabrina ou Bianca,
publicações da editora Nova Cultural, que trazem os estigmas de uma literatura negada pelo bom gosto
definido nos cânones. Mais ainda, a derrisão que portam é tão grande que nem sequer merecem ser
citados. São sombras literárias que se projetam na escuridão, uma não existência.
No entanto estão aí. São vendidos aos milhares a cada edição e revendidos por sebos no país
todo, tomados emprestados, lidos em consultórios. Logo, há um grande mercado editorial que não é
levado em consideração pelas instituições que determinam o que é uma boa obra literária e a que não
é. São publicações que são completamente ignoradas mesmo atingindo um público tão extenso. Ainda
assim, são lidas, muitas vezes vergonhosamente, a despeito da crítica ácida que recebem de algum
estudioso que se digna a gastar poucas palavras sobre o assunto.
É comum se pensar que a boa literatura é boa por méritos intrínsecos, quer dizer, porta em si
os sinais que a qualificam como boa. Quando alguém escreve um romance, conto, poesia, espera-se
que possua qualidades inerentes a um bom artista. Que domine a técnica de escrita, que saiba compor
a trama, que tenha sob o seu domínio as palavras e que as use sabiamente. Como o autor alcança tais
qualidades ainda é fruto de discussão entre magia e ciência, pois se é um dom ou coincidência genética
não é algo definido.
Espera-se também que a obra contenha em si o necessário para classificá-la como literária e,
cada vez, é associada à figura do autor. Muitos estudiosos gostam de vincular uma possível biografia à
obra. Por exemplo, Machado de Assis e “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, vejamos:

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 59
1. quando o romancista assumiu, naquele livro capital, o foco narrativo, na verdade
passou ao defunto autor Machado-Brás Cubas delegação para exibir, com o despejo dos
que já nada mais temem, as peças de cinismo e indiferença com que via montada a
história dos homens.

Essa imbricação do autor com o texto passa a um segundo momento, quando se autonomiza,
ou melhor, é autonomizada:

foi nesse livro surpreendente que Machado descobriu, antes de Pirandello e de Proust,
que o estatuto da personagem na ficção não depende, para sustentar-se, da sua fixidez
psicológica, nem de sua conversão em tipo; e que o registro das sensações e dos
estados de consciência mais díspares veicula de modo exemplar algo que está aquém

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
da persona: o contínuo da psique humana.

Assim, a obra normalmente é analisada de duas formas: sincronicamente, quando é comparada


a outras do mesmo período, podendo fazer parte de uma “escola” literária; e também diacronicamente,
quando é ordenada na sucessão de escolas literárias, compondo o quadro de uma possível literatura
nacional que, por sua vez, entra num jogo de comparações com outros quadros nacionais. Definem-se
diferenças e similitudes entre nações e, desta forma, surge uma literatura mundial que teria as mesmas
propriedades das eras geológicas que se sucedem temporalmente. Pode-se dizer que a diacronia em
escala mundial permite uma espécie de darwinismo literário: escolas literárias evoluem da mesma
forma que primatas.
Acompanhando estes procedimentos na análise e crítica, é possível observar que todo bem
cultural dirigido às massas passa por uma não-análise, quer dizer, há uma derrisão em torno destes
artefatos, não merecendo a tinta do crítico de arte, que se dispõe a fazer algum estudo sobre este
tipo de bem é para desqualificá-lo. Como é o caso das revistas femininas populares que recebem
frequentemente a pecha de ser subliteratura ou, simplesmente, uma não literatura, não merecendo
sequer uma análise dos seus princípios narrativos, estéticos e estilísticos. Mesmo porque não possuem
internamente as qualidades necessárias para que possam alcançar o status de obra literária. Enquanto
têm todos os elementos externos para qualificá-la como produto da cultura de massa, tais como,
produção em larga escala, histórias repetitivas e sem qualidade literária, personagens sem profundidade
psicológica, happy-ends, conflitos sociais reduzidos a problemas individuais, etc.
Dentro deste quadro, a fotonovela é a prima pobre dos subgêneros literários. Suas citações
são ocasionais e muitas vezes funcionando como contra-exemplo, uma não literatura, ou meramente
um produto da cultura de massa, que não tem outro objetivo do que caçar níqueis nas carteiras de
consumidores desavisados ou não suficientemente educados para evitar produto tão enganoso. Ainda
tem um lado mais perverso: funcionar como anestésico da consciência popular.
A sua definição no E-Dicionário de Termos Literários, editado e organizado por Carlos Ceia
(http://www.fcsh.unl.pt/edtl/index.htm, 22/01/2008, s/p) é elucidativa:

Considerada um subgénero da literatura, a fotonovela é uma narrativa mais ou menos


longa que conjuga texto verbal e fotografia. A história é narrada numa sequência de
quadradinhos (como a banda desenhada) e a cada quadradinho corresponde uma
fotografia acompanhada por uma mensagem textual.
Mais tarde a fotonovela torna-se independente do cinema e caracteriza-se pelas suas

60 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


intrigas sentimentais (a heroína é quase sempre uma rapariga de origem modesta que
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA sonha com um amor cheio de obstáculos e dificuldades mas no final consegue o seu
objectivo), as personagens não demonstram um grande desenvolvimento psicológico e
são sempre estereotipadas (os bons são sempre bons e os maus arrependem-se no final
ou sofrem as consequências), predomina o imaginário exótico, e, mais tarde o ‘suspense’
e o sexo, os temas variam entre problemas afectivos, sociais, a procura de sucesso numa
carreira, a justiça na sociedade, a ascensão social, a marginalidade, etc.
O público da fotonovela é um público majoritariamente feminino e culturalmente
pouco exigente, com pouca formação e com um baixo poder económico. As revistas
de fotonovela têm como finalidade a transmissão dos princípios éticos, morais e sociais
concordantes com o sistema de valores da ideologia dominante através da integração
da mulher na sociedade urbana.

Não há dúvida quanto ao caráter da fotonovela. Ela é um subproduto da literatura chamada de


modo eufemístico de subgênero. Este artefato cultural é claramente desqualificado como incapaz de
promover algum gosto no público leitor que, por sua vez, também é desqualificado. A baixa formação
escolar e os parcos rendimentos de quem a consome denotam que a fotonovela é voltada para aqueles
que têm uma capacidade de discernimento bem prejudicada. Pelo menos é o que se pode inferir, tendo
em vista a transmissão de valores conservadores e de hegemonia ideológica aos quais os leitores estão
expostos.
Enfim, é um produto de massa, com grande público leitor, e é incapaz de apresentar algo que
literariamente possa ser considerado digno de uma avaliação. Não que haja erro nas avaliações ou que
se devote desprezo a este tipo de folhetim por má vontade. Realmente as histórias são açucaradas e
quase monotemáticas, porém, o lugar reservado para elas no ranking das produções literárias é o das
obras indignas. Elas existem, mas ninguém deve lê-las.
Quais seriam os motivos de tão solene derrisão? Não são revistas que trazem histórias com uma
narrativa, personagens, trama e demais quesitos que um romance deve ter? Por que são histórias que
não têm validade literária? Por que foram relegadas a um mundo de sombras, sem luz? Afinal, o que é
uma boa e uma má literatura?
Como obra, a fotonovela seria o eufemismo do pastiche. Pastiche do folhetim, do cinema, dos
quadrinhos, da literatura, da fotografia, enfim, reúne em si o que há de mais Kitsch na cultura ocidental e
“Kitsch é o que surge consumido; o que chega às massas ou ao público médio porque já está consumido;
e que se consome (e, portanto, se depaupera) porque o uso a que foi submetido por um grande número
de consumidores lhes apressou e aprofundou o desgaste”, ou ainda: “a fotonovela desde o início era
sub-kitsch, utilizando sem qualquer vergonha todos os recursos do déjà vu para um público totalmente
popular.”
A fotonovela é a contraprova da obra de arte. Definida pelo negativo, ela nos aponta qual
literatura não deve ser consumida, quer dizer, ela própria. Uma verdadeira anti-arte. É uma maneira
perversa e insidiosa de reproduzir valores culturais conservadores e individualistas. “Enfim, a fotonovela
abraçou fortemente o estereótipo em todos os níveis. Abraço forte, na forma e no conteúdo. Amor
dominador deu no que deu: pouca liberdade de criação, personagens marionetes, maniqueísmo,
estrutura fechada, ideologia conservadora” .
Não há escapatória, este artefato é realmente um produto da cultura de massa, logo alienante.
Não possui em si nenhuma característica de uma boa literatura, mesmo quando utiliza romances

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 61
consagrados como roteiro (Conde de Monte Cristo, Ana Karerina, O morro dos ventos uivantes, etc.),
pois os pasteuriza empobrecendo-os. “A fotonovela não cria inteiramente sua atmosfera, mas está
seguidamente realizando ‘pastiches’. ” Isto ocorre porque esta literatura é uma forma de “popularização
de mensagens permissíveis e manipuladas que estão associadas ao poder.”
Não se trata aqui de opor opiniões e estabelecer um novo artefato cultural, colocando-o
como superior, tentando-se inverter as críticas sobre a fotonovela. Trata-se antes de compreender os
mecanismos pelos quais se estabelece algo como culturalmente válido ou não.
Dessa forma, deve-se, em primeiro lugar, compreender que: “o sistema de produção e
circulação de bens simbólicos define-se como o sistema de relações objetivas entre diferentes estâncias

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
definidas pelas funções que cumprem na divisão do trabalho de produção, de reprodução e de difusão
de bens simbólicos”. Nesse sentido, entram em cena diversas instâncias que procuram definir o que
é arte qualificando-a como superior ou inferior, erudita ou popular, alta ou baixa e assim por diante.
Neste aspecto, determinados bens simbólicos são tachados como superiores enquanto outros podem
ser objetos de consumo em massa.
A definição da superioridade de um artefato nada tem a ver com suas qualidades intrínsecas,
porque o
campo da produção erudita tende a produzir ele mesmo suas normas de produção e
critérios de avaliação de seus produtos, e obedece à lei fundamental da concorrência
pelo reconhecimento propriamente cultural concedido pelo grupo de pares que são, ao
mesmo tempo, clientes privilegiados e concorrentes.

Isto é, podemos chamar a definição do que é um objeto válido culturalmente como superior
por um novo esoterismo. Os códigos de acesso para objetos eruditos são restritos e restritivos e
somente após longo aprendizado podem ser compreendidos, o que garante a sua reprodução simples
e ao mesmo tempo serve para a manutenção deste mercado restrito.
Tais procedimentos podem ser observados quando:

o reconhecimento implícito da legitimidade cultural transparece, sobretudo, através


de dois tipos de conduta aparentemente opostas: a distância respeitosa dos consumos
mais legítimos (um bom testemunho nos é dado pela atitude dos visitantes das classes
populares nos museus) e a negação envergonhada das práticas heterodoxas.

Dessa forma:

fundamentalmente heterônoma, a cultura média é objetivamente definida pelo fato de


estar condenada a definir-se em relação à cultura legítima, tanto no âmbito da produção
como no da recepção. As investigações originais que podem suceder no sistema da
indústria cultural estão sempre limitadas pelos bloqueios de comunicação que correm o
risco de provocar mediante o uso de códigos inacessíveis ao ‘grande público.’

A determinação do que é ou não é válido funciona como campo de legitimação de objetos


culturais e, consequentemente, de distinção de seus consumidores como “superiores” daqueles que
não conhecem os códigos de validação. Por outro lado, estes são efêmeros, pois são estabelecidos
temporalmente. Conforme as posições de força dos vários agentes, eles são impostos como “verdadeiros”
e legítimos.

62 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


Portanto, os códigos estão sempre em disputa. Não como fórmulas genéricas, verdadeiras e
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA atemporais e que cada época conheceria uma parcela, mas criados a cada momento específico por
diferentes grupos ou classes. Logo, o fracasso de um artefato cultural e a ascensão de um novo tem
como pano de fundo esta luta em torno de quem pode instituir os códigos.
O estabelecimento dessas formas de avaliação artística e estética, como também a imposição
de formas de comportamento dos consumidores de artefatos culturais considerados de boa qualidade,
tornou-se meio para demarcar modos de distinção social, pois a distância econômica por ser apagada
pela “democratização” do consumo de bens materiais. Por isso, a definição e a imposição da cultura
superior como legítima se estabelecem em oposição à chamada cultura popular, fazendo com que
estes dois campos apareçam como dados e naturalmente estabelecidos. No entanto, cabe ressaltar que
essa separação é relativamente recente e não natural.
A apropriação de determinados artefatos culturais por parte da elite não tem como fundo a sua
qualidade intrínseca, mas pela possibilidade de apresentá-los como exclusivos de classe. Academias,
universidades, críticos, estudiosos corroboram a criação deste mercado exclusivo de bens simbólicos. A
determinação da alta cultura e da baixa cultura é resultado da luta interna das camadas superiores da
sociedade para estipularem o que lhes caberia como bens simbólicos ou não. O critério, muitas vezes
não foi exclusivamente do valor, mas ele pode completar a distinção entre diferentes bens. Por exemplo,
o teatro no Antigo Regime era feito praticamente para o público em geral. A sua apropriação, no século
XIX, pela elite, tornou-o dispendioso e exclusivo. Nesta mesma linha, os conteúdos dos bens ganham
complexidade e valor conforme são dirigidos a consumos cada vez mais restritos.
Formam-se círculos de legitimação, exclusão e distinção no campo dos bens simbólicos, dos
quais o que é compreendido como campo da cultura popular será o que não terá alguma autonomia
e, portanto, capacidade de ditar suas próprias normas, pois a sua legitimação passa pelo crivo dos
produtores culturais. Quer dizer a sua legitimação depende de fórmulas “esotéricas” produzidas por
alguns experts “altamente capacitados”.
Porém, devemos atentar para os conceitos de cultura popular e cultura erudita. Se até pouco
tempo não havia distinção entre os dois campos, o estabelecimento da diferença se fez à custa de outra
compreensão a respeito de cultura, quer dizer, uma compreensão que a tomaria como uma prática
social e não como campo excludente. No entanto, encontra-se justamente a naturalização da distinção
entre dois campos, um alto e outro baixo, um erudito e outro popular, um superior e outro inferior.
Compreende-se a cultura a partir de pares/oposições como se fossem constitutivos dela própria.
Podemos, em primeiro lugar, opor a esta compreensão o conceito de cultura apresentado por
Roger Chartier, no qual veremos que a constituição dos campos culturais obedeceu às regras externas
a eles próprios. E, em segundo lugar, temos a definição de consumo de Michel de Certeau. A partir
destes dois pensadores, podemos verificar, de início, que a lógica da análise obedece à lógica do campo
científico e não à das práticas culturais, impondo pares/oposições.
Neste aspecto, o popular sofre uma análise externa, coletiva e quantitativa. Externa porque o
estudioso da cultura popular o analisa a partir do ponto de vista da erudição, do seu próprio saber. Ele
é coletivo, porque são manifestações não individualizadas, como, por exemplo, o folclore ou contos
populares. E, finalmente, ele é quantitativo, pois sua produção é feita em grandes números.

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 63
Decorrente deste tipo de análise é a compreensão de uma separação entre produção e
recepção, criação e consumo. O consumidor de uma obra de arte, de um texto, de uma imagem, estaria
inerte diante dos aparelhos impositivos e prontos para aceitar esta produção. As pesquisas de Michel de
Certeau colocam em questão esta antiga visão sobre a distância que existira entre criação e consumo:

A uma produção racionalizada, expansionista e centralizada, ruidosa e espetacular,


corresponde outra produção, qualificada de “consumo”: esta é astuciosa, ela é dispersa,
mas se insinua por todos os lados, silenciosa e quase invisível, pois não se marca por
produtos próprios, mas em modo de usar os produtos impostos por uma ordem
econômica dominante.

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
São maneiras de fazer cotidianas que “constituem as mil práticas pelas quais os consumidores se
reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural.” Logo, não há passividade
no consumo de textos. Há uma produção:

considerar a leitura como um acto concreto requer que qualquer processo de construção
de sentido, logo de interpretação, seja encarado como estando situado no cruzamento
entre, por um lado, leitores dotados de competências específicas, identificados pelas
suas posições e disposições, caracterizados pela sua prática do ler, e, por outro, textos
cujo significado se encontra sempre dependente dos dispositivos discursivos e formais
– chamemos-lhes ‘tipográficos’ no caso dos textos impressos – que são seus.

A produção do leitor é diferente daquela apropriação material tradicionalmente estudada


na História Social, como, por exemplo, os movimentos pelo preço do pão em finais do século XVIII e
início do século XIX apresentados por E. P. Thompson dos quais a resultante seria a formação de uma
consciência de classe. Não há um “lugar” para acumular a apropriação do leitor ou, como diz Michel de
Certeau, são táticas do consumidor que agem no tempo e essa apropriação:

não dispõe de base onde capitalizar os seus ganhos, preparar a sua expansão e adquirir
uma independência em relação às circunstâncias [...], devido ao seu não-lugar, a tática
depende do tempo, permanecendo vigilante para agarrar rapidamente as possibilidades
de ganho. O que ela ganha, não guarda. É-lhe necessário jogar constantemente com os
acontecimentos para torná-los ‘ocasiões’. O fraco deve tirar partido sem cessar das forças
que lhe são estranhas.

O leitor não é passivo diante de um maquinário que lhe impõe o que ler e como ler. A despeito
das imposições, ele toma o texto para si e o faz funcionar de outro modo, criando formas diferentes de
leitura e de compreensão em conformidade com a sua posição social, experiências de vida, educação.
Enfim, a sua história lê histórias. Por outro lado, as publicações buscam alcançar esta “disfunção” que
ocorre no tempo a partir do lugar, ou seja, se aproximar destas práticas cotidianas, levando para
o leitor aquilo que ele próprio deseja. Portanto há um jogo de aproximações e fugas. O maquinário
busca colonizar o leitor que sempre se mostra fugidio e pouco afeito a aceitar passivamente o que lhe é
oferecido. É neste aspecto que se busca compreender o leitor e suas práticas, pois:

no ponto de articulação entre o mundo do texto e o mundo do sujeito coloca-se


necessariamente uma teoria da leitura capaz de compreender a apropriação dos
discursos, isto é, a maneira como estes afectam o leitor e o conduzem a uma nova norma
de compreensão de si próprio e do mundo.

64 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


Para completar, podemos refletir, com Pierre Bourdieu, sobre as práticas dos leitores e sobre
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA como está estabelecida a compreensão da prática social da leitura:

Historicizar nossa relação com a leitura é uma forma de nos desembaraçarmos daquilo
que a história pode nos impor como pressuposto inconsciente. Ao contrário do que se
pensa comumente, longe de relativizar ao historizá-la, também nos damos um meio de
relativizar sua própria prática, portanto, de escaparmos à relatividade. Se é verdade que
o que eu digo da leitura é um produto das circunstâncias nas quais tenho sido produzido
enquanto leitor, o fato de tomar consicência disso é talvez a única chance de escapar ao
efeito dessas circunstâncias. O que dá uma função epistemológica a toda reflexão sobre
a leitura.

A partir destas observações, podemos entender que os leitores de fotonovelas buscam refazer
a narrativa, ou melhor, recriar a narrativa. Este tipo de arte seqüencial, usando a expressão cunhada por
WIll Eisner para os quadrinhos, exige do leitor o preenchimento das elipses entre um fotograma e outro:
“não é de surpreender que o limite da visão periférica do olho humano esteja intimamente relacionado
ao quadrinho usado pelo artista para capturar ou ‘congelar’ um segmento daquilo que é, na realidade,
um fluxo ininterrupto de ação.” O quadrinho ou a fotonovela demanda um movimento tríplice. O
primeiro movimento seria simples: de um fotograma ao seguinte. Porém, no segundo movimento,
entre um fotograma e outro há a elipse que será virtualmente preenchida. E, o terceiro movimento, a
reconstituição da narrativa entre os fotogramas com a elipse solucionada imaginariamente. A história
é recomposta na mente do leitor. Enfim, há um espaço lacunar nos fotogramas que é preenchido pelo
leitor. As poses dos personagens e o mis-en-scène deixam um espaço livre para a reconstituição de
sentido por parte de quem lê, pois se pode imaginar tanto a seqüência anterior como a posterior até o
próximo fotograma.
Assim, podemos compreender junto com Edgar Morin que a fotonovela, como artefato da
cultura de massas, exige também, como em todas as manifestações culturais, a participação estética,
isto é, um tipo de relação e:

existe, na relação estética, uma participação ao mesmo tempo intensa e desligada, uma
dupla consciência. O leitor de romance ou o espectador de filme entre num universo
imaginário que, de fato, passa a ter vida para ele, mas ao mesmo tempo, por maior que
seja a participação, ele sabe que lê um romance, que vê um filme.

A fotonovela permite a reinvenção da narrativa e coloca o leitor como produtor e não como
simples receptor. Cabe, no entanto, reparar que para facilitar o reconhecimento e modificar narrativas,
a estrutura da trama deve ser simplificada, ampliando as possibilidades de leitura. Neste aspecto,
podemos dizer que a fotonovela retoma a tradição dos folhetins e romances populares do século XIX:

diversamente da tendência burguesa (que vai em direção do psicologismo, os conflitos


de sentimentos e de caracteres, dramas ou comédias triangulares do esposo, do amante
e da mulher adúltera) a corrente popular permanece fiel aos temas melodramáticos
(mistério do nascimento, substituição de crianças, padrastos e madrastas, identidades
falsas, disfarces, sósias, gêmeos, rechaços extraordinários, falsas mortes, perseguição da
inocência) herdeiros da mais antiga e universal tradição do imaginário (a tragédia grega,
o drama elizabetano), mas adaptado ao quadro urbano moderno. No começo do século
XX, a diferenciação entre as duas correntes (literatura burguesa e literatura popular) se
precisa, tanto mais que durante os trinta primeiros anos do século a corrente popular é
que será integrada no cinema e no folhetim barato.

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 65
Além do folhetim, a fotonovela também é filha do cinema. Não é à toa que muitos artistas
de cinema e de televisão são chamados para as estrelarem. Deve-se ressaltar que, tanto o folhetim no
século XIX quanto o cinema no século XX, não criam do nada as suas histórias. Elas têm um fundo que
hoje chamaríamos de literatura ou cultura popular. Se alguns romancistas sofisticaram as suas obras a
ponto de torná-las inacessíveis às pessoas comuns, isso não quer dizer que a cultura estava cindida em
duas desde o princípio, mas apenas aponta a apropriação exercida pelas classes superiores do campo
cultural, marcando a sua distinção social, como vimos acima.
O encontro entre folhetim e cinema na fotonovela segue uma tradição da literatura oral popular.
É o caso do lugar. Nos contos populares quase sempre não há uma definição espacial. Não sabemos

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
onde é a floresta da Chapeuzinho Vermelho, de João e Maria, em qual reino se aventura o Gato de Botas,
e não se sabe qual reino governa a rainha má da Branca de Neve. O não-lugar dá uma dimensão de
universalidade, típico dos contos. Também nas fotonovelas dificilmente aparece algo que possa marcar
onde ocorre a trama, a não ser que seja indicado pelo “narrador” e normalmente são lugares exóticos ou
idílicos, conforme certa ideologia popular (Veneza, Paris, Istambul, selvas, desertos, pequenas cidades
praianas ou interioranas, etc.). Eventualmente, pode-se mostrar nos fotogramas sinais sobre o local
real em que se passa a trama, como placas de automóveis ou letreiros de lojas, porém não é possível
precisar lugar o da locação. Por isso mesmo as histórias podem ser mais didáticas, passando ao leitor
ensinamentos e mensagens rápidas e de fácil compreensão.
Podemos ir um pouco além. Há um fundo hagiográfico na fotonovela. Pode-se perceber vendo
o relato da vida dos santos. A bondade é retribuída com a maldade e o sofrimento só acabará com a
recompensa final e absoluta, isto é, a assunção ao paraíso. Já numa sociedade laicizada o amor puro e
para o resto da vida coroa o fim do sofrimento e das purgações. Por isso, o herói ou a heroína demonstra
logo de início que possuem todas as virtudes beatíficas, mas num sentido laico. O caráter dos heróis está
pré-definido como nos contos hagiográficos, afinal, santidade não conhece variação, quer dizer, ou se
é ou não se é santo. Assim, como na hagiografia, sabe-se de antemão qual será o papel do herói, como
também do vilão. Também são conhecidos o caráter e a qualidade de cada personagem.
Logo, não se deve buscar na fotonovela a simples identificação da leitora com a trama como
forma de escapismo. Tal qual contos populares, deseja-se histórias que fogem do cotidiano e que
funcionariam como os exempla das hagiografias: o mocinho pobre que se apaixona pela herdeira rica;
a simples operária que desposa o patrão; a heroína que é acusada injustamente de ser ladra e recupera
a sua honra. Histórias que não são comuns e até mesmo improváveis fazem parte da cultura popular.
Mas, além dessa relação com o fora do comum, a fotonovela tem estrutura próxima da
hagiografia. Ela denota que, de uma forma laica, as tramas devem trazer explicitamente a ordem do
mundo: o certo e o errado, o bem e o mal, o que está acima e o que está abaixo. Nestas histórias, o mal
deve ser punido e o bem recompensado. Não há lugar para tentar ultrapassar a ordem do mundo.
A hagiografia fornece exempla. A vida dos santos mostra o caminho para os fiéis, pois, no fim
das contas, são todos imitadores de Cristo. Assim, o sofrimento é suportado com a certeza da felicidade
futura. O mal será vencido e o bem triunfará para todo o sempre. O santo, na tradição cristã, não é
um ser de vontade, isto é, ele é quase que invariavelmente tocado por forças do bem. Como exemplo,
temos Paulo de Tarso. A sua conversão é fruto da aparição do próprio Cristo. Ou ainda Santa Pelágia

66 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


que, após uma vida de concupiscência e devassidão, é convertida por um padre muito devoto. Além
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA do toque divino, os santos também podem ser tentados por demônios. Os verdadeiros vencem porque
afinal são santos, os que não o são, sucumbem. Eles foram escolhidos para uma missão e as hagiografias
medievais dificilmente apresentam seres que tenham dúvidas quanto à salvação ou à perdição.
De maneira análoga, vamos encontrar heróis e heroínas da fotonovela quase nas mesmas
condições. Não há profundidade psicológica nas personagens. Desde o primeiro diálogo, o primeiro
fotograma em que aparecem, já se conhece o caráter do herói, da heroína. O bem e o mal estão
determinados de antemão e não há dúvidas a respeito disso. Normalmente a heroína é casta e segue
princípios rígidos como honestidade, lealdade, fidelidade, bondade e desprendimento. O mesmo
é válido para os heróis que também deverão possuir a qualidade de serem viris, mas não brutos. As
virtudes seriam uma forma de enobrecimento dos personagens, distinguindo-os tanto dos vilões como
das pessoas comuns. Para os vilões, vale o oposto. Agem nas sombras, dissimulam, são avarentos e
cúpidos. Não vêm nada além dos seus interesses pessoais a despeito de todos à sua volta. Muitas vezes,
fazem os heróis sofrerem por prazer. Nesse sentido, se aproximam dos demônios das hagiografias.
Também neles está expresso logo à primeira vista o seu caráter.
A recompensa dos males sofridos pelos heróis é a felicidade, mas de forma laica. O paraíso é o
amor conquistado e válido para toda a vida. Todo o sofrimento será apagado e os males serão vencidos
ao final da história que, por sua vez, nos remete para um tempo a-histórico: os acontecimentos que
desencadearam a trama terminam com o final feliz. Nas narrativas não há um antes e um depois. O
antes pode ser comparado a um momento sem história, isto é, sem sucessão temporal. Algo desarranja
este tempo, dando início aos acontecimentos. No final, os eventos são suprimidos por uma “não
temporalidade”, a felicidade do amor conquistado para o resto da vida. Como toda Parusia, o fim da
trama significa também o fim da própria História. Daí não ser necessária a seqüência da narrativa, pois
os heróis entraram no reino da eternidade representado pelo amor puro e felicidade plena. A redenção
nos contos hagiográficos e nas fotonovelas é para todo o sempre.
Podemos dizer de forma correlata à hagiografia, que a fotonovela “é uma poética do sentido
(...), o discurso cria uma liberdade com relação ao tempo cotidiano, coletivo ou individual, mas constitui
um não-lugar.” Por isso são histórias que se repetem, não por falta de criatividade de muitos roteiristas,
mas por serem obrigadas pelo público leitor a fornecer as balizas do mundo. Elas nos dão estabilidade
num mundo em mudança. A repetição é por conta desta configuração temporal e espacial, traduzindo o
desejo do retorno dos bons tempos que se realizam poeticamente nas histórias. Por analogia, podemos
entender que:

o texto corta o rigor do tempo com o imaginário; reintroduz o respectivo e o cíclico na


linearidade do trabalho. Mostrando como (...) cria um lugar onde o mesmo e o lazer se
encontram. Este lugar excepcional abre, para cada leitor, a possibilidade de um sentido
que é ao mesmo tempo o alhures e o imutável.

Podemos utilizar um exemplo, e a escolha é totalmente aleatória. Na revista Grande Hotel6 de


setembro de 1963, nº 835, é publicada a história “Contigo para sempre”. Pelo sobrenome dos atores,

A revista Grande Hotel, publicação da editora Vecchi, circulou entre as décadas de 50 e 70. Chegou a ter uma tiragem quinzenal de mais de 200
6

mil exemplares nos anos sessenta. Após a compra da Editora Vecchi pela Editora Globo, a revista deixou de ser publicada.

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 67
percebe-se que são de origem italiana, porém a ação se passa na cidade de Arles, no sul da França.
Podemos inferir qualquer coisa a respeito da cidade ter sido habitada por Van Gogh, portanto já
imortalizada em quadros e também por se situar na bucólica região da Provence. Mas, no desenrolar
da história, percebe-se que por ser uma pequena cidade do interior, ela acaba fazendo o contraponto a
Paris, a grande capital.
Relativamente, a trama é bem simples. A ação começa com duas enfermeiras que comentam o
retorno ao hospital em que trabalham de um renomado cirurgião, Luís, após cinco anos de afastamento
em Paris, motivado pela morte de uma paciente na mesa de operação e, claro, quem estava conduzindo
os procedimentos era ele próprio. O destino quis que a paciente fosse a amada do cirurgião, que

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
praticamente morreu em seus braços. Fica-se sabendo que a enfermeira mais jovem, Sara, era próxima
da paciente que fenecera e não perdoa aquele que seria para ela o responsável pelo seu triste fim. O
trágico está traçado num passado já remoto, mas estende as suas sombras sobre o presente, portanto,
é necessário resgatá-lo de algum modo (este acontecimento, a morte da amada, dá partida a uma
sucessão temporal).
À chegada de Luís, Sara experimenta sensações fortes, pois o médico, já nomeado diretor
do hospital, pede para vê-la e ela não quer denunciar o rancor que sente. No entanto, tudo muda.
Vejamos o narrador: “O grave rosto de Luís, seus olhos velados de tristeza impressionam Sara. É então
aquele o homem que tanto odiou? Uma estranha comoção apodera-se dela.” Evidentemente que se
apaixonam alguns fotogramas adiante, mas não sem obstáculos. O primeiro é superado pelo amor,
quando nos é revelado que a pessoa próxima de Sara era na realidade sua irmã, e tinha uma doença
incurável, portanto, nada podia salvá-la. Esta é uma boa solução, a mocinha não trai a memória da irmã,
que iria morrer de qualquer jeito, enquanto que o herói purgou durante cinco anos a morte da amada.
Dessa maneira, o encontro entre o famoso médico e a simples enfermeira já é o início deste resgate do
passado e a superação da perda de ambos.
Porém, mais obstáculos. Forças se levantam contra os heróis. A primeira é encarnada num
médico, Pedro. Ele é o semi-vilão, o que é muito comum nas fotonovelas, quer dizer, alguém que faz
algumas maldades, mas não é inteiramente mau. Ele é ambicioso e deseja Sara. Sente ciúmes e detesta
Luís. Vê uma chance de levar seus intentos adiante quando uma antiga namorada do médico, Irene,
vem de Paris à sua procura. Esta é a segunda e mais poderosa força que se abate sobre o casal-herói.
Irene tinha aparecido obliquamente através de cartas que enviara a Luís, dizendo que iria atrás dele de
qualquer maneira, pois “o amava”. O modo como escreve já nos dá uma dimensão da personagem que
se confirma no primeiro fotograma em que aparece. A vilã é extremamente maquiada e veste roupas
pouco adequadas para uma mulher de “boa conduta”. Vestidos chamativos, pelo menos é a intenção,
caros e algo provocante. Ela é citadina e o corte de cabelo demonstra sofisticação. O coroamento
do perfil pérfido da vilã é o carro conversível. Enfim, uma Salomé. Sinais exteriores que traduzem a
intencionalidade e também o caráter. Bem ao contrário de Sara que durante toda a trama aparece de
modo recatado, com roupas sóbrias, sem muita maquiagem e com um corte de cabelo simples, de
acordo com o que se espera de uma enfermeira dedicada e amorosa.
Luís rechaça Irene. Conhecera-a, em Paris, após o desenlace de sua amada. Ela queria diversão e
ele buscava algum consolo, mas logo percebeu o seu caráter e termina o relacionamento. No entanto, ela

68 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


o persegue. Não aceita a recusa de qualquer homem de tê-la em seus braços, e tentará se interpor entre
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA Luís e Sara com ajuda de Pedro. Este logo se arrepende, pede desculpas para Sara e ainda é nomeado
como primeiro-assistente do hospital, uma forma de redenção e prêmio pela honestidade. Enfim, Luís
rechaça definitivamente Irene e Sara acaba vendo a cena. Após breve desencontro, no fotograma final
ela diz: “Oh, Luís vou já ao teu encontro, querido... e eu te darei a minha vida, a minha juventude! Estarei
contigo para sempre... meu amor!”.
A frase final nos dá a dimensão da suspensão temporal que sofrem as fotonovelas. Do imobilismo
inicial ao fim dos acontecimentos, os heróis passam por uma série de purgações, comprovando
claramente o caráter deles e denunciando os males que os cercam. Superado o mal, resta o tempo da
Parusia, que é o amor terreno para toda a vida, a promessa de felicidade no amor para sempre.
Não há necessidade de nenhuma discussão acerca das decisões dos personagens. Elas são
tomadas de acordo com o caráter de cada um. Muitas tramas se desenrolam a partir de um quarteto.
O herói, a heroína, a vilã e o semi-vilão ou vilão, e a semi-vilã. Os outros personagens dão suporte para
o quarteto principal e suas características têm pouca importância para a trama. Não há dúvidas. Os
principais não desejam riqueza ou poder, mas viver de modo simples, quer dizer, um bom emprego,
uma boa casa e uma boa família. Claramente são empregos que poderíamos chamar de pequeno-
burgueses. Médicos, jornalistas, pequenos empresários. Mas, mesmo ricos, não compartilham com
seus pares da vida de luxo que a riqueza poderia proporcionar. Têm ambições comedidas ou frugais,
poderíamos dizer. Normalmente a heroína tem uma profissão próxima da classe operária, ou até mesmo
sendo uma operária, mas, às vezes, é de origem pequeno-burguesa que caiu na condição social. De
qualquer forma, os heróis são “enobrecidos” pelas virtudes inatas que demonstram ao longo da trama
quando são colocadas à prova, distinguindo-se claramente das pessoas comuns e estabelecendo o
como contraponto extremo aos vilões.
Por isso a fotonovela pode ser um substituto silencioso de relações sociais estáveis e ordenadas.
A rápida urbanização no Brasil dos anos sessenta e o grande deslocamento de populações criam um
mundo instável, no qual muitas relações são efêmeras e outras perigosas – o medo do andarilho, do
estranho, do desconhecido. Por isso, histórias que se repetem podem fornecer conforto no meio de
tantas mudanças. Sabe-se que há um culto nostálgico do passado. O mito da Idade do Ouro ainda é
presente nas sociedades contemporâneas e:

o mundo da Idade do Ouro é a dos relógios parados”, ou seja: “a história em movimento,


constante geradora de modernidades sucessivas, fazedora e desfazedora de impérios,
de sociedades, de modas e de deuses, vê-se, em compensação, ou violentamente
recusada ou deliberadamente ignorada.

O final feliz recompõe o passado e extingue a sucessão temporal. O mundo das fotonovelas é
um retorno superior ao passado imóvel.
A ordem nas narrativas, personagens tipologicamente estabelecidos, situações recorrentes
e desfechos quase que invariáveis, são balizas para as mudanças que ocorrem diante dos olhos de
leitores ávidos por ordem social. As histórias claramente marcadas remetem quem lê para algum tipo
de passado, um in illo tempore, isto é, a possibilidade de anular parcialmente o tempo histórico das
mudanças, para recompor a realidade de acordo com um passado melhor do que o presente. Assim, o

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 69
pensamento historicista, que deseja ver no homem contemporâneo um ser essencialmente histórico,
encontra resistência:

esta posição, ainda que seja a mais moderna e, de certo modo, inevitável para todos
os pensadores que definem o homem como um ‘ser histórico’, não conquistou
definitivamente o pensamento contemporâneo. Referimos já várias correntes recentes
que tendem a revalorizar o mito da periodicidade cíclica e até do eterno retorno
(Nietzsche). Essas correntes desprezam não só o historicismo como até a própria
história. Pensamos que podemos detectar nelas, mais do que uma resistência à história,
uma revolta contra o tempo histórico, uma tentativa de reintegrar esse tempo histórico,
carregado de experiência humana, no tempo cósmico, cíclico e infinito.

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
A noção de uma sociedade estabilizada está associada à ideia de um tempo que não passa ou,
se passa, faz-se lentamente.
Percebemos que para esta instabilidade gera-se uma resposta de estabilização. Os mitos
contemporâneos, como vimos, são modos de exorcizar o presente da sua inconstância, do tempo
histórico ou, do terror da história, como afirma Mircea Eliade. A religião reencontrada, o líder, o salvador,
a demonização do outro, enfim, várias práticas sociais que, de certa maneira, recompõem mitos antigos
em contextos contemporâneos. Podemos entender que “a expressão política da mitologia na Idade de
Ouro acaba por ir ao encontro aqui (...) desse tema imenso, multiforme, sempre renascente, inscrito sem
dúvida no mais profundo da história religiosa da humanidade, que é o do Grande Retorno.” (GIRARDET,
op. Cit, p. 137).
O que é mais interessante não é uma possível apropriação do universo popular por um veículo
de cultura de massas, mas a permanência deste universo em sociedades de alto capitalismo ou, no
mínimo, altamente urbanizadas. Isto é, o público leitor da fotonovela é um público citadino que, no
entanto, ainda se deleita com histórias de fundo hagiográfico, porém completamente laicas, atualizando
mitos e formas antigas de ordenação da realidade. Pode-se perceber tal estrutura se compararmos os
personagens das histórias fotografadas com as vidas dos Santos, como vimos acima. Os heróis seguem
a mesma ordem psicológica das hagiografias. A única coisa que os fará vacilar e terem dúvidas sobre
as suas ações é o amor. No entanto, como sentimento superior e objeto final de todas as histórias, ele
será o fator decisivo para a resolução da trama, quando o desentendimento, a falsa acusação, a tentação
serão superados. Afinal, o amor proibido deixará de sê-lo quando os qüiproquós forem solucionados
pela própria força do amor. A morte, prisão ou loucura do oponente malvado liberta o herói de suas
dúvidas e o insere no paraíso secular do final feliz.
Por fim, a fotonovela não é uma imposição simples e pura de uma indústria cultural, mas um
artefato, no qual leitores podem criar as suas próprias significações e estabelecer suas representações
sociais. Porém, há uma grande dúvida que percorre os textos dos historiadores que se ocupam dos atos
de ler. Podemos reconstruir todas as possíveis significações do texto através das práticas de leitura? Ou
o contrário, estas práticas são uma singularidade absoluta? Então, estaríamos numa encruzilhada se,
de um lado, insistíssemos em tentativas de empreender totalizações, estabelecendo um objeto fora do
que os próprios praticantes fazem ou, de outro, se quiséssemos individualizar ao extremo para termos
alguma coisa fiel ao leitor, mas impossível de encontrar correspondências sociais?

70 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


A compreensão da leitura não é uma disputa entre atomismo e holismo, ou entre um relativismo
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA absoluto e formas explicativas totalizantes. As práticas são individuais, mas só encontram expressão se
forem sociais. Nesse sentido, a “liberdade” do leitor em relação ao texto é “limitada pelos códigos e
convenções que regem as práticas de uma comunidade de pertencimento. Ela é limitada também pelas
formas discursivas e materiais dos textos lidos”.
A capacidade do leitor de “inventar” o texto encontra correspondência na capacidade social
de estipular o que é ler. Leitura e compreensão do texto são definidas socialmente. A apropriação do
lido não deve ser entendida como algo que é estritamente individual, mesmo que seja praticada por
indivíduos. Ela é partilhada:

a apropriação, tal como nós a entendemos, visa uma história social dos usos e das
interpretações relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas
específicas que os constroem. Dar, assim, atenção às condições de produção do sentido
é reconhecer que, contra a antiga história intelectual, nem as idéias nem as inteligências
são desencarnadas (...) são pensadas na descontinuidade das trajetórias históricas.

Dessa forma, deve-se entender que as mídias modernas não impuseram práticas da leitura e
formas de apropriação. A recepção marca a passagem do texto ao leitor. As críticas acerca da produção
dos discursos produzida principalmente por Michel Foucault. “Qu’est-ce que c’est um auteur” e “L’ordre
du discurs”, ambos publicados em Dits et écrits, foram incorporadas às práticas dos historiadores. Não há
um sujeito puro de enunciação e não há um destinatário puro do discurso. O que existe é uma relação
de subjetivação. Assim, o sentido dado pelo leitor ao texto, que hoje é colocado pela História Cultural,
especialmente por Roger Chartier, não é a descoberta mais profunda e exata da relação na leitura, mas
a mudança na compreensão do indivíduo.
O regime de verdade que Foucault apresenta no século XIX, não deixa de mudar ao longo
do século XX: de uma exterioridade compartilhada socialmente ela passa a uma subjetividade que só
pode ser experimentada e vivenciada em cada pessoa. Daí as dúvidas entre uma narrativa total e um
relativismo absoluto. Passou-se, nos últimos anos, de uma história do social ao da intimidade; de uma
percepção comum da realidade ao dos sentimentos individuais que só podem ser compreendidos
também individualmente; do Édipo ao Narciso.
A questão não é se render a um ou a outro. Trata-se agora de encontrar as correspondências
entre as práticas dos indivíduos no social, para que se possa dar conta do que é comum, isto é, resistir
tanto à individualização e ao relativismo absoluto, como à história totalizante. O estudo das práticas de
leitura deve encontrar o indivíduo na sociedade.
Assim, para concluir, a compreensão da fotonovela deve fugir das simplificações que a rejeitam
por ser indigna da análise historiográfica. Nela vamos encontrar práticas culturais que podem muito
bem nos explicar formas de organização social e modo de agir no cotidiano. Nela se inscrevem práticas
que não são resultado de imposições de aparelhos estratégicos dominantes, ao contrário, nela vamos
encontrar o desvio e a ordenação do cotidiano de acordo com outra ratio, como afirma Michel de
Certeau xxxiii (1990, p. XLI). Uma ordem que escapa destes aparelhos. Logo:

a tarefa do historiador é, então, reconstruir as variações que diferenciam os ‘espaços


legíveis’ – isto é, os textos nas suas formas discursivas e materiais – e aqueles que
governam as circunstâncias de sua efetivação – isto é, as leituras compreendidas como
práticas concretas e como procedimentos de interpretação. (CHARTIER, 1996, op. cit, p.
134, tradução livre de minha autoria).

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 71
R E F E R Ê N C I A S
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 7ª ed. São Paulo: Cultrix, 1985,
p. 197

Idem ibid., p. 200

ECO, Humberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva (5ª ed), 1993, p. 93

SULLEROT, Evelyne. La presse féminine. Paris : Armand Colin, 1963, p. 106 - tradução

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
livre de minha autoria.

BUITONI, Ducília Helena Schoeder. Fotonovela, infelizmente um quadrado amoroso. In


AVERBUCK, Ligia. Literatura em tempo de cultura de massa. São Paulo: Nobel, 1984,
p. 69

HABERT, Angeluccia Bernardes. Fotonovela e indústria cultural: estudo de uma forma


de literatura sentimental fabricada para milhões. Petrópolis: Vozes, 1984, p. 95

Idem, ibid, p. 18

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli et alii. 2ª ed.
São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 105.

Idem, ibid., loc. cit.

Idem ibid., op. cit., p,. 132

Idem, ibid., op. cit., p.143

BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Trad. Denise Botmann. São Paulo:
Cia das Letras, 1989, p. 291

BOURDIEU, op. cit, p. 130

CHARTIER, Roger. História Cultural, entre práticas e representações. Trad. Maria


Mauela Galhardo. Lisboa: DIFEL, 1990, p. 54

CERTEAU, Michel de. L’invention du quotidien. 1. Arts de faire. Paris: Gallimard, 1990,
p. XXXVII - tradução livre de minha autoria

Idem, ibid., op. cit., p. XL

CHARTIER, op. cit., pp. 25 e 26

CERTEAU, op. cit., p. XLVI - tradução livre de minha autoria

72 INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA


CHARTIER, op. cit., p. 24
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA
BOURDIEU, Pierre e CHARTIER, Roger. A leitura: uma prática cultural. In Práticas
da leitura. Trad. De Cristiane Nascimento. 2ª ed. São Paulo: Estação Liberdade,
2001, p. 233 e 234.

EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, pgs. 38 e 39

SULLEROT, Evelyne. La presse féminine. Paris: Armand Colin, 1963, p. 101

MORIN, Edgar. A cultura de massas no século XX. Trad. Maura Ribeiro Sardinha.
Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 81.

Idem, ibid, p. 64.

VARAZZE, Jacopo de. Legenda Aurea. Trad. Hilário Franco Júnior. São Paulo: Cia
das Letras, 2003, p. 849

CERTEAU, Michel. A escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes. Rio de


Janeiro: Forense-Universitária, 1982, p. 271

Idem ibid., p. 270

GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. Trad. Maria Lucia Machado. São
Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 129

ELIADE, Mircea. O mito do eterno retorno. Trad. Manuela Torres. Lisboa:


Edições 70, 1981, p. 165

Girardet, op. Cit, p. 137

Chartier, Roger. Culture écrite et société. Paris: Albin Michel, 1996, p. 137 -
tradução livre de minha autoria

Idem, ibid, p. 214 - tradução livre de minha autoria

CERTEAU, L’invention du quotidien… Op. cit., p. XLI

CHARTIER, op. cit, p. 134 - tradução livre de minha autoria

Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 73
74
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
PARTE II
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA

CAPÍTULO 5

Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura


Maria Aparecida Rodrigues

O artista busca algo debaixo das aparências, algum símbolo plástico que será mais signi-
ficativo quanto à realidade do que pode ser qualquer reprodução exata.
(PAUL SÉRUSIER)

Machado de Assis pode ser considerado o Mestre da Escrita do Eu na Literatura Brasileira. O


título se justifica pelo destaque com que Machado dá à linguagem escrita, em especial à escrita do eu e
ao leitor. É ele um apaixonado pelo discurso escrito.
Com o advento da escrita, os folhetins e as cartas passam a centro no processo de comunica-
ção entre os homens. É comum, mesmo no século XX, ver o intenso diálogo entre escritores por meio
de cartas, bilhetes, telegramas etc.. Do mesmo modo, tanto a referência às diferentes formas de escrita
do eu, quanto o uso dessas formas, como expressão artística, já era moda no princípio da Era Moderna.
A referência às cartas e bilhetes e o uso dos folhetins constituem privilégio, no Brasil, do estilo
romântico. A carta é tão significativa na nossa constituição histórica que o primeiro documento que nos
identifica para o mundo foi a Carta de Pero Vaz de Caminha, data de nosso descobrimento. No entanto,
o uso das formas de escrita do eu, como modo discursivo literário, é marcante na escrita machadiana
que se destaca, tanto pelo número de obras desse gênero, quanto pela ênfase a ela atribuída pelos
narradores machadianos e pela qualidade artística, semelhante ao fragmento de Memórias Póstumas
de Brás Cubas:

Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; [...], porque o maior defeito
deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; [...], e este
livro e o meu estilo são ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmun-
gam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... (ASSIS, 1975, p.85)

Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura 75


São relevantes, ainda, e não se pode esquecer, as obras: Memórias de um sargento de milícias,
de Manuel Antônio de Almeida e O Ateneu, de Raul Pompéia. No século XX, Graciliano Ramos assume
o papel de guardião dessa técnica discursiva, que aparece, salpicando, aqui e ali, por muitas de nossas
obras literárias até a atualidade.
O objetivo que me levou a relatar estas considerações, no mínimo provocadoras, a respeito
da atribuição a título de Mestre da Escrita do Eu, a Machado de Assis, na nossa literatura, não constitui
o ponto relevante neste texto. A provocação é, de fato, um reconhecimento legítimo e de direito. No
entanto, tenho aqui o propósito de mostrar parte de um trabalho de pesquisa que realizo, desde 2006,
sobre os modos de escrita do eu na ficção machadiana. Para tanto, escolhi as narrativas: Dom Casmurro
e Memórias Póstumas de Brás Cubas, para demonstração e análise desse gênero discursivo.
A escrita do eu pode se manifestar de diversas formas, tais como: autobiografia, memórias,
autorretrato, diários, jornal íntimo e epístolas. Nem sempre é fácil separar, numa narrativa, uma forma
da outra. Às vezes, elas se aglutinam tanto que formam um emaranhado de difícil identificação e deli-
mitação pelo leitor. Outras vezes, a narrativa literária se constrói de diversos fragmentos independentes
de escritas do eu que aparecem como discursos dentro de discursos sem que um comprometa a iden-
tificação do outro. Há, ainda, aquelas que privilegiam determinada forma de escrita de ponta a ponta
da narrativa. Machado de Assis, ao criar o modelo, parece explicá-lo ao leitor. Semelhante a um mestre,
quer traduzir a técnica ao outro. Porém, ao fazê-lo, deixa a sua grande marca: a do artista que dissimula

Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura


dizer o dito, como no seguinte trecho de Dom Casmurro: Não é claro isto, mas nem tudo é claro na vida
ou nos livros. (ASSIS, p.110)
Nesse pressuposto, o leitor fica inebriado pelos “olhos de ressaca de cigana oblíqua” e o sentido
arte supera o poder de identificação da forma. Assim, ao ler Memórias póstumas de Brás Cubas, fica o
leitor sem saber se a forma narrativa se trata de uma memória ou se de uma autobiografia. Da mesma
maneira, poucos leitores atentam para as insistentes marcas deixadas no texto sobre o modo de escrita
que, na obra, se realiza. E Machado é insistente. Veja o exemplo em Memórias Póstumas de Brás Cubas:

Veja o leitor a comparação que melhor lhe enquadrar, [...] e não esteja a torcer-me o na-
riz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio
que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, [...]. (ASSIS, p.19)

A confissão, umas das características da escrita do eu, se faz evidente, também, em O enfermei-
ro:

Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860 pode entrar numa página de livro?
Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes da minha mor-
te. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado.
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras cousas interes-
santes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; (ASSIS, 21)

Neste caso, o narrador-eu dirige-se ao provável personagem-leitor e editor de fatos de sua vida.
O recurso de comunicação referido é a epístola. O leitor poderia se perguntar: seria a carta ou o livro? No
jogo entre diegese e discurso, pode-se dizer que a diegese apresenta um discurso ficcional epistolográ-

76 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA


fico que poderá se transformar em livro pelo editor (personagem-leitor) do qual o personagem-escritor
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA (emissor) remete. No entanto, do ponto de vista do discurso, tem-se um conto epistolográfico.
Nesse contexto, para se compreender a escrita do eu em Machado de Assis, é preciso atentar
para o modo de apresentação da construção da diegese e do discurso. Essa postura de leitura é eviden-
te nas três obras de arte. Essa é, então, o procedimento de leitura que realizo neste artigo.

A METAFICÇÃO AUTOBIOGRÁFICA

Dom Casmurro pode ser considerado uma meta-ficção autobiográfica. Meta-ficção por se tra-
tar de um romance que se refere à elaboração estética de um modelo de arte: o romance autobiográfi-
co. Embora não seja, em essência, um romance autobiográfico, acaba teorizando essa forma de arte. O
romance evidencia essa postura crítica, pois que a linguagem-objeto é a própria linguagem em curso,
na sua construção.
Toda discussão do pseudo-autor está comensurada ao objeto a que se refere, isto é, à teoriza-
ção do romance autobiográfico, que é por ele dissimulado. A voz do narrador-eu, que se identifica com
a do autor fingido e a personagem que fala, serve de mediação entre o que narra e o modo de ser do
narrado. Em outras palavras, cria uma arte alegórica. Arte sobre arte. Embora seja, também, uma dissi-
mulação de si mesma:
Não é claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros. (ASSIS, p.110)

É dissimulação porque, ao teorizar as categorias do romance autobiográfico, finge ser o que,


essencialmente, não é. Como na citação a seguir em que o narrador-eu confessa não ter ligado a duas
pontas da vida:

Não é que haja efetivamente ligado as duas pontas da vida. Esta casa do Engenho Novo,
conquanto reproduza a de Matacavalos, apenas me lembra aquela, e mais por efeito de
comparação e de reflexão que de sentimento. (ASSIS, p.179)

E o que seria um sujeito-de-enunciação autêntico? Seria a revelação, mesmo que fingida, da


sua história concreta de um autor real. A informação e os eventos relativos à autobiografia devem ser
tidos por serem, terem sido ou deverem ser verdadeiros, sendo possíveis de verificação pública. O que
não é possível, no Dom Casmurro, ou seja, o romance não é passível de verificação, pois que o pseudo-
autor não é exatamente o autor real. Dom Casmurro e Machado de Assis não são a mesma pessoa. Aliás,
um é real, o outro é ficção.
Refiro-me aqui à noção de que a narrativa romanesca em análise relaciona-se à forma autobio-
gráfica como dissimulação alegórica do romance autobiográfico. Romance porque ficção. Dissimulação
alegórica porque metalinguagem de um discurso que finge ser, não sendo.
Por isso, o pseudo-autor, ou narrador-eu dissimulado finge o relato de uma experiência pes-
soal, sem que o leitor seja capaz de desfazer a ambigüidade entre a história que narra e o fato suposta-
mente vivido. Semelhante às citações do cap. LXXII, denominado Uma reforma dramática:

Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder
mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias

Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura 77


nem o desfecho. Eles chegam a seu tempo, até que o pano cai, apagam-se as luzes, e os
espectadores vão dormir. Nesse gênero há porventura alguma coisa que reformar, e eu
proporia, como no ensaio, que as peças começassem pelo fim. (ASSIS, p.106)

Na citação, vida e arte se confundem, e, para que os fatos pareçam reais, a voz que conta, finge
o pacto de leitura, cita datas, fala em publicação, joga o momento da escrita com as reminiscências. E
mais, teoriza todo um modo de elaboração discursiva, do título, do livro e da narrativa propriamente
dita. Além disso, dá a impressão de ser a escrita pertencente ao pseudo-autor. Veja os exemplos:

A casa era a da Rua de Matacavalos, o mês novembro, o ano é que um tanto remoto, mas
eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam
histórias velhas; o ano de 1857. (ASSIS, p.15-16)
Há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique.
(ASSIS, p.89)

Pode-se dizer, nesse sentido, que o centro imutável da autobiografia está relacionado à identi-
dade autor-narrador-personagem. Essa identidade, no romance, aparece de modo dissimulado, não de
fato. O que acontece é, exatamente, uma ficcionalização fingida de uma teoria do romance autobiográ-
fico. Por isso, no título do romance aparece o nome do narrador-eu: Dom Casmurro.

Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura


AUTOR FINGIDO E NARRADOR DISSIMULADO

O romance Dom Casmurro é a expressão artística do eu que narra. Este aparece na forma de um
pseudo-autor ou autor fingido e se manifesta como escrita, semelhante à referência a seguir:

Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredubilidade. Chegue a deitar fora este
livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só
agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na
veracidade do autor. (ASSIS, p.74)

O autor fingido é alegórico, pois que representado de outro, que é, no fundo, uma alusividade
pluralista que remete à trindade enunciativa: autor-narrador-personagem. Aliás, a alusão não se limita
apenas à trindade, mas também ao outro de si mesmo na dimensão temporal do “eu-reenvocado” e do
“eu-atual”. Este tenta viver ou resgatar o que foi na adolescência em uma correlação dialética entre a
tentativa de recobrar a memória do passado, supostamente vivido, e a consciência de recriá-lo, metafo-
ricamente, pela escritura, sob o olhar do presente. Como na citação a seguir;

Ficando só, refleti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias.
Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a desta casa do Engenho Novo, reproduzindo
a de Matacavalos... A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva,
rápida, inquieta [...]. A minha imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe
dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre; mas deixemos metáforas atrevidas e
impróprias dos meus quinze anos. (ASSIS, p.67)

No romance, a primeira pessoa serve de suporte comum da reflexão presente e da pluralidade


de atos reenvocados, sendo as mudanças entre a identidade do eu-reenvocado (o do passado) e o eu-

78 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA


atual (o que conta) expressas pela contaminação do discurso por traços da história e pelo tratamento da
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA primeira pessoa como se fosse quase uma terceira. Isto é, a impressão do eu-atual gera as incertezas dos
fatos relatados e, também, o distanciamento entre o eu que narra e o eu de quem é narrado, embora
sejam os mesmos, vivendo em tempos diferentes. Falar do nosso eu do passado não é o mesmo que
vivenciá-lo.
Nesse sentido, a renovação do passado constitui-se a partir de uma dupla cisão (entre eu que
narra e o eu da memória), que se liga, simultaneamente, ao tempo e à identidade: é porque o “eu-ree-
vocado” é diverso do “eu-atual” que este pode afirmar-se em todas as prerrogativas. Assim, será contado
não apenas o que lhe aconteceu em outras épocas, mas como um outro que ele era e que se tornou ele
mesmo. Segundo Starobinski (19, p.93), a unidade do sujeito permanece apesar das mudanças sofridas
no tempo, sendo a manutenção da primeira pessoa na narrativa o vetor dessa duradoura responsabili-
dade pelos atos cometidos no passado.

O NARRADOR-EU: O SUJEITO DA ENUNCIAÇÃO

No conceito de enunciado de realidade fingido, está contida a correlação sujeito-objeto, em


que é decisivo que o sujeito-de-enunciação, o narrador-eu, possa falar sobre terceiros apenas como
objetos. O sujeito-de-enunciação não os pode libertar do seu próprio campo vivencial, o seu eu pessoal
está sempre presente, nunca desaparece, porque as personagens de uma narração em primeira pessoa
sempre são compreendidas em relação ao narrador-eu. Pressupõe, em outras palavras, dizer que só
conhecemos as personagens e os fatos relatados pela visão do narrador-eu.

Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e
lembrou-me escrever um livro. [...] pensei em fazer uma História dos Subúrbios, [...] foi
então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma
vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contas-
se alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras,
como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto [...]. (ASSIS, p.15)

Significa, também, que os fatos relatados foram imaginados ou supostamente vividos, vistos,
observados, descritos e criados exclusivamente por ele. Embora, a narração em primeira pessoa não
possa transpor as barreiras da imaginação livre, ao seu fazer estético, ela tem de se limitar à esfera do
enunciado de realidade. Por isso, o estilo é visto como ligado ao presente do ato de escrever e seu valor
referencial remete ao momento da escrita, ao eu atual.
É a estrutura lógica que dá ao aspecto estético do romance em primeira pessoa um caráter
diferente, uma orientação interpretativa diversa da do romance em terceira pessoa. Porque também
o leitor “toma conhecimento” deste mundo narrado e das personagens nele habitantes por meio do
narrador-eu.
Por outro lado, a leitura de um romance em primeira pessoa deve levar em conta a relação do
mundo humano narrado com o narrador-eu. Este mundo, por ser objeto da enunciação do narrador em
primeira pessoa, nunca é descrito de modo inteiramente objetivo: sempre mistura opinião subjetiva.

Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura 79


Palavra que estive a pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasma-
goria de alucinado [...]. Contava com a minha debilidade ou com a própria incerteza em
que eu podia estar da paternidade do outro. Acaso haveria em mim um homem novo,
um que aparecia agora, desde que impressões novas e fortes o descobriam? Nesse caso
era um homem apenas encoberto. (ASSIS, p.176)

A interação entre a objetividade e o subjetivo complica ainda mais, isto porque a narrativa é de
reminiscências. Resgatar o passado pressupõe viver o já vivido, o que é impossível, e, se assim o fosse,
incluiria boa memória, caso que a personagem narradora confessa não ter:

Há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique.
Um antigo dizia arrenegar de conviva que tem boa memória. [...], e eu acaso sou um
deles, conquanto a prova de ter a memória fraca [...]. (ASSIS, p.89)

A voz que fala, em Dom Casmurro, desde as primeiras páginas, revela a centralização do ponto
de vista unívoco. Só conhecemos as impressões de Bentinho, sombras rememoradas de um presente
(velhice) para um passado (adolescência) que, conforme afirma o próprio narrador, não consegue res-
taurar e resgatar ou as duas pontas da vida: o que foi nem o que fui. Não se pode recompor, sequer, o
que poderia ser nem pela lembrança nem pela escrita: Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é dife-
rente.(p.14).
Tal visão confirma, também, a nova postura do pensamento artístico: não se cria duas vezes a

Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura


mesma arte. O original é imutável. O resto é cópia. Nisso resulta a definição da obra de arte machadiana:
na arte não se reproduz. A reprodução compete à indústria, à fábrica, à técnica e à ciência como um
todo. Como na citação: o interno não agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade
poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. (p.14).
Assim, nenhuma projeção de si mesmo pode assegurar a si o total acabamento, pois ela é ima-
nente apenas à consciência rememorada, em relances parciais. Logo, a palavra do eu sobre si mesmo
não pode, em princípio, ser a última.
Isso, no entanto, não impede que Dom Casmurro seja a história dos subúrbios. Dom: por ironia,
refere-se não a um fidalgo, mas a dono de si, à contemplação de si. Casmurro: no que lhe pôs o vulgo
de homem calado e metido consigo, isto é, introspectivo, aquele que rememora o seu eu do passado.
Alegoricamente, diz a voz narradora: A casa em que moro é própria, fi-la construir de propósito, levado
de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. (Cap.II, p.14). Daí, a história dos subúrbios
ser, alegoricamente, a história fingida de um narrador sobre ele mesmo.

O NARRADOR E O LEITOR

O fato de ser o romance uma meta-ficção autobiográfica pressupõe um discurso-história e


prende-se à narrativa de acontecimentos passados, logo, à enunciação. Esta supõe o locutor (um eu que
fala) e um auditor (o eu que ouve ou lê). O primeiro intencionado a dialogar e, até mesmo, a influenciar
e a convencer o segundo. Por isso, é comum ver no texto machadiano, inclusive em Dom Casmurro, o
diálogo do autor fingido com o leitor subentendido. A esse diálogo, dá-se o nome de pacto de leitura.
Como nos exemplos:

80 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA


É que tudo se acha fora de um livro falho, leitor amigo. Assim preencho as lacunas
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA alheias; assim podes também preencher as minhas.[...]. Leitor, foi um relâmpago. Tão
depressa alumiou a noite, como se esvaiu, e a escuridão fez-se cerrada, pelo efeito do
remorso que me ficou. (ASSIS, p.99-100)
Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que
dura muito tempo. Esta segunda parte não acha crentes fáceis [...]. (ASSIS, p.156)

O pacto de leitura é uma técnica usada no discurso autobiográfico. Tal recurso objetiva dar
maior credibilidade aos fatos narrados, pois que ficam parecendo verdadeiros.
Os críticos costumam, também, atribuir a essa postura dialógica entre autor e leitor, o nome de
estética da recepção. E, à atitude da voz que dialoga, de intrusão, daí o nome de autor intruso.
Wolfagng Iser, o maior expoente da Estética da Recepção, estabelece o conceito de “leitor su-
bentendido”, semelhante ao que aparece no texto de Machado de Assis, a uma personagem construída
pelo texto no sentido de que incarna todas as predisposições necessárias para que uma obra literária
exerça os seus efeitos – predisposições assentes não numa realidade empírica exterior, mas no próprio
texto. (ISER, 1978, p.34).
Nesse sentido, o leitor se torna persona e é, ao mesmo tempo, um existente documental, pois
que de papel. A leitura, nesse sentido, se transforma num processo de aprendizagem em que o leitor
co-participa da ação figurada, na qual ele mesmo é uma escrita.

ENTRE A MEMÓRIA LITERÁRIA E O ROMANCE AUTOBIOGRÁFICO

O tema tratado pelos textos memorialistas não é o da vida individual, o da história de uma
personalidade, características essenciais da autobiografia em que prevalece a introspecção. Nas memó-
rias, a narrativa da vida do autor é contaminada pela dos acontecimentos testemunhados que passam
a privilegiados. A autobiografia propriamente dita seria uma auto-representação: o indivíduo assume
papel preponderante no texto. As memórias uma cosmo-representação.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a narrativa não se restringir exclusivamente à focaliza-
ção do “eu” que narra, este, ao desencadear a retrospecção, olha não só para si e para os outros “eus” que
com ele interagem, e com os quais estabelece relações recíprocas, mas também para um determinado
contexto histórico-geográfico. Prevalece, no romance, o jogo entre a introspecção e a extrospecção,
pois que o eu funciona como metáfora do mundo e/ou dos outros-eus.

A EXPOSIÇÃO CURRICULAR

A relação entre diegese e discurso se manifesta claramente no processo narrativo em Memó-


rias Póstumas de Brás Cubas. Do segundo ao quinto capítulo, nota-se a passagem do discurso para a
diegese. Momento em que entra em cena a exposição curricular da personagem-eu:

Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira, do mês de agosto de 1869,
na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos,
era solteiro, possuía cerca de trinta contos e fui acompanhado ao cemitério por onze
amigos. Onze amigos!Verdade é que não houve cartas nem anúncios. (ASSIS, 1975, p.13)

A memória literária, no romance, dá, ao leitor, a impressão ser um discurso verídico, pois que
Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura 81
a personagem-eu finge tão plenamente que as sombras se tornam mais verossímeis que a própria re-
alidade. Desse modo, o fingido tem a aparência do real e se conforma com o que de fato é ficção, ou
forma-arte. Tal postura criativa constitui o centro da tensão entre a aparência referencial fingida, que
chega a apresentar um esboço genealógico, e a forma estética, que se realiza pela insipidez do curricu-
lum vitae à complexa elaboração formal da pura poesia.

Mas, já que falei nos meus dois tios, deixem-me fazer aqui um curto esboço genealógico.
O fundador da minha família foi um certo Damião Cubas, que floresceu na primeira na
primeira metade do século XVIII. (ASSIS, p.15)


O Capítulo Primeiro, denominado “Óbito do Autor”, é um prólogo, no qual se inicia com o dizer da perso-
nagem-narradora. Esta se refere às próprias memórias, ao modo de escrevê-las, isto é, privilegia o modo
discursivo de um defunto-autor.
Por meio de uma narrativa circular: do fim para o início, na qual surge a apresentação do de-
funto com um breve currículo da vida: idade, situação civil, situação financeira e prosperidade, relações
humanas e concepção de vida e de morte.
Nesta parte, há o relato enfático sobre o enterro e a confissão da causa-morte:

Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma
idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e
todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo. (ASSIS,

Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura


1975, p.14).

O JULGAMENTO DO LEITOR E O PACTO DE LEITURA

Evidencia-se, ainda, a fala do narrador-personagem-defunto autor ao provável leitor, reforçan-


do outra característica da escrita do eu: o pacto de leitura. Nesta o narrador-eu se submete ao julgamen-
to do leitor e procura dar sentido de verdade aos fatos narrados, pois que cita hora, dia da semana, mês,
ano, lugar, como no fragmento: Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo. (ASSIS,
1975, p.14).
O ato de se submeter ao julgamento do leitor e o pacto de leitura ligam-se ao modo de leitura.
Tendo-se em vista, em Memórias póstumas, a posição do leitor e do contrato implícito do autor com
o leitor, o qual determina o modo de leitura do texto e engendra os efeitos que são atribuídos a ele,
parecem defini-lo como um texto de memórias íntimas. No entanto, o contexto histórico-social e geo-
gráfico não se dissocia do eu da personagem, isto porque as máximas, as frases de efeito, os provérbios,
citações, sentenças e aforismos, presentes no discurso do livro, apresentam a visão de mundo da perso-
nagem:

Decifra-me ou devoro-te. (ASSIS, p.14).


Um desvio de telhado é o infinito para as andorinhas (ASSIS, p.84)

O ato de relatar é também o de (re)memorar. Ao relatar a própria vida após a morte, o narrador
recorda, ou seja, estimula a memória. Ao recordar um fato ou uma coisa, forma-se um círculo virtuoso:

82 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA


um completa a memória do outro. Quem lê uma história está diante do outro, isto é, está na presença
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA do outro, do eu que narra. Quem lê, materializa um outro ficcionalizado pela escrita – um ser de papel - e
tem a mesma impressão de quem ouve. O potencial narrativo de quem narra revela a força do encontro
que, entre outras faculdades, garante a troca de experiências (BENJAMIN, 1980, p.59)7 . Na ficção, a apa-
rente representação é um mero fingimento no qual o leitor real vivencia tudo pela escrita. Esta é, nesse
sentido, a única que é de fato e é, também, a única que conserva e documenta a memória do outro,
mesmo sendo ela uma personagem-escrita, uma personagem-ficção. Isto pressupõe, ainda, reconhecer
a importância do interlocutor, daquele que lê. Por isso, as formas de escrita do eu enfatizam o diálogo e
a decisão do leitor, a recepção:

Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto. (p.17)


Já o leitor compreendeu que era a Razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair,
[...]. (p.23).
Voltemos à casinha. Não serias capaz de lá entrar hoje, curiosa leitor; envelheceu, apo-
dreceu [...] (p.84)

Dessa forma, há um diálogo que se estabelece, no modo de enunciação entre a escrita (que
enuncia) e o leitor real. Isto quer dizer: a voz que enuncia abri-se a nós, leitores. Essa atitude implica o
reconhecimento da superioridade do interlocutor e reforça a idéia das memórias:

Era fixa a minha idéia, fixa como... Não me ocorrer nada que seja assaz fixo nesse mundo:
talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez [...]. Veja o leitor a comparação que me-
lhor lhe enquadrar, [...] e não esteja a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos
à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão,
como os outros leitores, [...]. (p.19)

As formas de escrita do eu, principalmente as autobiográficas e de memórias, reforçam a ne-


cessidade de publicação, ou seja, de que a escrita da vida do indivíduo deve se tornar pública. A perso-
nagem-eu deseja que outros leitores conheçam sua história, principalmente após sua morte. Esta é uma
característica da escrita do eu. É uma espécie de “encômio”, no qual há a glorificação do eu do indivíduo
após sua morte. Isto é evidente em Memórias póstumas de Brás Cubas. Vejamos o exemplo:
Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu prin-
cipalmente foi o gosto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, [...] estas palavras: Emplasto
Brás Cubas. Para que nega-lo? Eu tinha a paixão do arruído, do cartaz, do foguete de lágrimas.
Nesse contexto, o livro Memórias póstumas de Brás Cubas revela ser uma autêntica escrita do
eu, na qual o público e o privado formam as faces de uma mesma moeda. Por isso, o narrador-eu, ana-
logicamente, confessa: a minha idéia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público,
outra para mim. De um lado, filantropia e lucro; de outro, sede de nomeada. Digamos: __ amor da glória.
Vale ressaltar que estas considerações são partes de um estudo mais detalhado da escrita do
eu machadiano. O fato é que este gênero ofusca a distância entre duas temporalidades: aquela que se
liga ao ato da escrita e aquela do ato de leitura, transportando as instâncias narrante em eu e a leitora

7 Benjamin, falando sobre as funções e importância do narrador, diz que a experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos

os narradores. Por ele, os outros homens puderam conhecer as histórias, as idéias e as tradições. Com ele, os homens puderam utilizar melhor a
terra, saber sobre as inovações científicas, sobre a moral, a prática, as normas da vida. Era sempre o narrador que dava conselhos aos ouvintes.
Ouvir os conselhos era princípio básico para adquirir sabedoria.

Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura 83


ao presente da escrita, ao hic et nunc do evento narrado ou descrito. Cria-se uma relação dialógica:
o “outro-leitor” entra no discurso do “eu-personagem narradora” através da interlocução, estabelecida
pela escrita.

Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura

84 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA


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Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura 87


LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA

CAPÍTULO 6

Para ler Guimarães Rosa: o velho patriarca e a nova sinhazinha


Rita Felix Fortes

Objetiva-se no presente texto analisar como João Guimarães Rosa, partindo do comportamen-
to sexual e do erotismo das personagens da novela Buriti, desvela o rígido código moral que sustentava
a família patriarcal, código este violentamente protetor em relação às mulheres e permissivo em relação
aos homens. O autor se atém, ainda, ao processo de transição da família patriarcal sertaneja para a famí-
lia moderna, ou seja, conjugam-se no mesmo espaço e ao mesmo tempo os valores passados, já abala-
dos, e os novos valores que se desvelam no horizonte do futuro. É nesta encruzilhada que se encontra o
sertão da tradicional família ficcionalizada por Guimarães Rosa na novela Buriti.
A obra Corpo de baile – publicada originalmente em 1956, mesmo ano da publicação de Gran-
de sertão: veredas –, é composta por um conjunto de sete novelas, posteriormente desmembradas em
três livros: Manuelzão e Miguilim, do qual fazem parte Campo geral e Uma estória de amor; No Urubu-
quaquá, No pinhém, composto por O recado do morro, Cara de bronze e A estória de Lélio e Lina; Noites
do sertão, composto por Dão-lalalão e Buriti. Cada um desses três livros – formado por um conjunto de
novelas que têm nome e “sobrenome” – faz com que os leitores neófitos na obra rosiana se confundam,
confusão esta gerada propositalmente pelo autor que, a priori, estabelece que, para se adentrar no
sertão de sua linguagem é preciso despir-se do déjà-vu e da narrativa simplista, caminho amplamente
trilhado pela linguagem desgastada pelo uso que, em função deste desgaste, perde o poder encantató-
rio que Guimarães Rosa busca resgatar. Aliás, esta confusão dos títulos é uma constante na obra rosiana,
a exemplo de Grande sertão: veredas, alusão evidente ao livro Os sertões, de Euclides da Cunha, mas
acrescido do adjetivo grande, que dá monumentalidade às veredas do sertão, fazendo com que os leito-
res tendam a confundir as duas obras. Após a publicação de Primeiras estórias, Guimarães Rosa publica

Para ler Guimarães Rosa: o velho patriarca e a nova sinhazinha 89


as Terceiras estórias, sem que tenha havido a publicação das “Segundas estórias”, enfim, desde o título,
fica evidente que a construção da obra rosiana é toda concebida de forma a desvelar para o leitor que
ele está adentrando no mundo da linguagem literária, no qual impera uma ordem que, muitas vezes,
subverte a ordem convencional.
Entretanto, é enganoso acreditar que Guimarães Rosa, ao criar este mundo ficcional, dados o
esmero e a inventividade da linguagem, teria desconsiderado o contexto verossímil – linguístico, social,
econômico e político – que imperou no sertão das gerais do seu povoamento à sua tardia moderniza-
ção. Pelo contrário, a obra rosiana é como o último canto do cisne daquele universo que permaneceu
quase imutável ao longo de três séculos e ainda adentrou o século XX totalmente arcaico, mas cujo
último canto se prenuncia à medida que o sertão – a partir da segunda metade do século XX – passa a
ser “rasgado” e “deflorado” pela modernidade que dele se abeira. Tanto é assim que 1956, ano da publi-
cação de Grande sertão: veredas e Corpo de baile, será, também, o marco da construção de Brasília e da
expansão da BR 3: rodovia composta originalmente pelas rodovias Washington Luiz e União Indústria,
ligando o Rio de Janeiro a Belo Horizonte. Com a construção de Brasília, a BR 3 se transformará na BR
040, que interligará Brasília ao Rio de Janeiro e rasgará o planalto central, pondo fim ao isolamento ao
qual esteve confinada aquela vasta região que, exatamente por ter permanecido isolada, preservou
uma forma arcaica de falar e de viver que será o humo do qual medrará a obra de Guimarães Rosa como

Para ler Guimarães Rosa: o velho patriarca e a nova sinhazinha


um todo.
Indiscutivelmente, a linguagem rosiana desvela que o sertão foi o espaço no qual perduraram
tradições e costumes antigos e uma forma de ver, ler e interagir com o mundo destinada a se alterar ra-
pidamente ao ser densamente povoada, congregando, com a construção de Brasília, pessoas vindas de
todas as regiões do país. Este é o ponto central do presente objeto de estudo, isto é, analisar na novela
Buriti, que integra o livro Noites do sertão, que, por sua vez, faz parte de Corpo de baile, como a fazenda
Buriti Bom está geograficamente situada no limite do sertão, visto que este faz divisa com o rio que o
delimita, mas também, está socialmente no limite entre o arcaico e o moderno. Ou seja, a família de Iô
Liodoro, assim como a população sertaneja, está em um ponto histórico no qual o modorrento passado
será atropelado pela modernização que altera os costumes, as normas sociais e, principalmente, o ritmo
do tempo que até então imperara no sertão.
É nesta encruzilhada histórica que Guimarães Rosa situa as personagens da novela Buriti. Por
um lado, no Buriti Bom impera, ainda, o poder e o mando de Iô Liodoro – presente do deus sol –, que
resplandece acima de todos, como o buriti grande, que paira acima de todos os demais na vereda – mas
que, ironicamente, está nas terras do vizinho –; por outro, sem que Iô Liodoro se dê conta, seu espaço no
mundo – assim como a ordem que impera em sua casa – encontra-se em acelerado processo de trans-
formação social e, consequentemente moral. Dito de outra forma, Iô Liodoro realmente paira, como o
deus sol sobre todos no Buriti Bom, mas tudo o que é humano é muito provisório, seu modus vivendi
está sendo alterado sem que ele se aperceba de que novos costumes adentraram sua casa. Portanto, a
fazenda Buriti Bom além de estar situada no limite do sertão, está, também, em uma curva do tempo
na qual o futuro toca o passado e ao fazê-lo altera-o em definitivo. A família patriarcal sertaneja, até
então aparentemente impoluta e imutável, está fortemente abalada no seu mais sólido sustentáculo: o
comportamento sexual e moral feminino.

90 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA


Na contramão dos estudos sociológicos, que postulam serem as mulheres mais conservadoras
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA e os homens mais avançados no que se refere à organização e à manutenção da ordem familiar, no
Buriti Bom será o comportamento sexual feminino que abalará a reacionária estrutura patriarcal, pois
subliminarmente à obra rosiana, tudo parece tão imutável e imemorialmente estático quanto o velho
sertão. Entretanto, esta aparente letargia é ilusória, visto ser um dos fundamentos da manutenção da
velha ordem patriarcal a pureza e a submissão feminina, cujo arquétipo a sinhazinha da fazenda, que,
de historicamente ingênua e sujeita à sedução, converte-se em sedutora, enquanto o homem, tradicio-
nalmente o sedutor, será seduzido. Ou seja, a Chapeuzinho Vermelho é quem, agora, vai à caça do lobo.
O diálogo rosiano com a tradição sociológica e o novo comportamento feminino serão os dois
elementos nos quais está centrado o presente estudo. Ou seja, objetiva-se rastrear como Guimarães
Rosa se atem ao que havia de mais tradicional na constituição da sociedade patriarcal brasileira para,
através do comportamento sexual feminino, desvelar que esta família está em franco processo de trans-
formação, pois, quando “mocas de família”, como Glória, a luminosa filha mais nova do poderoso pa-
triarca Iô Liodoro, seduz e se torna amante de um homem casado, ainda por cima com uma mulata, ela
está subvertendo a ordem segundo a qual “moças de família” – leia-se brancas e bem situadas social e
economicamente – eram para casar. Este novo comportamento abala o cerne desta estrutura arcaica na
qual, conforme postula Antonio Candido:

o caráter mais significativo da mudança [da família brasileira] foi a diminuição de início,
seguida pela decadência e atualmente [1951] pela extinção do pai como líder grupal,
graças, sobretudo, à divisão do trabalho social. (CANDIDO, 1951, p. 12).

O DIÁLOGO ROSIANO COM A TRADIÇÃO SOCIOLÓGICA

À mudança do comportamento sexual e social da sinhazinha, em oposição ao conservadoris-


mo do arcaico senhor patriarcal, conjugam-se – sempre em relação ao comportamento sexual, social
e erótico feminino – várias outras alterações, tais como: a mulata é alçada à condição de esposa do
fazendeiro; o fazendeiro e marido da mulata, na contramão da tradição brasileira, se torna amante da
sinhazinha; a esposa legítima é abandonada e a amante é legitimada; a prostituta passa à condição de
“quase”esposa; a nora abandonada e preterida pelo marido “seduz” o sogro.
Apenas duas categorias sociais continuam imutáveis, presas à velha ordem familiar em acele-
rada transformação: a retardatária e trágica solteirona, imutavelmente confinada ao seu tristonho viver,
murchar e rezar; e o poderoso senhor patriarcal, que se acredita intronizado no seu papel de astro rei,
sem se dar conta de que sua família, que ele acredita inabalavelmente presa aos velhos valores, há mui-
to está sendo solapada por uma nova forma de viver que ele não identifica, não conhece e não entende,
portanto, os valores nos quais ele acredita e que seriam o sustentáculo da sua casa e do seu lugar no
mundo, há muito ruíram. De todas as mudanças acima elencadas, a mais peremptória refere-se à sinha-
zinha, linda, rica e branca, que tem encontros furtivos com o amante – casado com uma mulata – pelos
matos da fazenda, seguindo às avessas o modelo do pai, sempre a campear pelas horas mortas suas
teúdas e manteúdas, seguro em sua ilusão de que suas meninas continuam na sacrossanta fazenda, a
salvo dos perigos do mundo e das transformações da modernidade.

Para ler Guimarães Rosa: o velho patriarca e a nova sinhazinha 91


É marcante como todas as mudanças sociais, morais e familiares passam, indiscutivelmente,
pelo erotismo que campeia na fazenda Buriti Bom e se espraia por toda a novela. Tal intensidade erótica,
ao tomar, também, as “moças de família” – e não, apenas, os homens da casa-grande, que sempre deram
vazão aos impulsos sexuais – implicará drásticas mudanças em relação aos papéis sociais convencional-
mente femininos que, até então, organizaram a arcaica sociedade patriarcal. Esta mudança em relação
ao comportamento feminino é um dos principais indicativos de modernidade que alterarão a arcaica
estrutura do patriarcalismo rural.
Sob a pasmaceira aparente estão se alterando drasticamente as formas de se organizar a de-
cadente família patriarcal, a começar pelos arquetípicos papéis como a “pureza”e a ingenuidade das
sinhazinhas, sempre violentamente protegidas dos lobos sedutores. Historicamente, o núcleo mais rígi-
do da família patriarcal privilegiada social e economicamente, se pautou, como afirma Antonio Candido
(1951, p.301) “during the last 150 years consists essentially of an uninterrupted series of restrictions
upon its economic and political functions and the concentration upon the more specific functions of
the famuly [...] procreation and the discipline of the sex impulse” 8. Também Gilberto Freyre, ao se ater
à moral sexual patriarcal, afirma que: “Mais depressa nos libertamos, os brasileiros, dos preconceitos de
raça do que dos de sexo. [...] Os tabus de sexo foram os mais persistentes. A ‘inferioridade da mulher
subsistiu à ‘inferioridade’ da raça”. (FREYRE, 1951, p. 309). (grifos do autor). Aí reside a capacidade rosiana

Para ler Guimarães Rosa: o velho patriarca e a nova sinhazinha


de se ater ao já desgastado tema do preconceito sexual, mas ao fazê-lo o sentimento erótico e amoroso
que permeia esta novela obnubila esta base sociológica na qual o autor se respaldou e que remonta ao
que há de mais arcaico e marcante na organização social e moral brasileira. Entretanto, dada a sua capa-
cidade de narrar, estes temas, tão marcantes em sua obra, muitas vezes passam desapercebidos graças
à sua encantatória forma de narrar.
Entretanto, uma leitura mais atenta desvela que no Buriti Bom – cujo símbolo de poder é Iô
Liodoro, que resplandece como o sol, como prenuncia seu nome – a imutabilidade da vida é, apenas,
aparente, portanto, é um engano, pois o tempo, ao fluir, está minando aquela arcaica forma de vida
prestes a ruir e a alterar a relação entre as personagens e o mundo que, para além da fazenda, está em
franca transformação e que aporta à casa-grande exatamente no que ela tem de mais tradicional: a
dupla moral da família patriarcal que dava ao homem todas as possibilidades, mas restringia violenta-
mente as possibilidades femininas. Ainda conforme Gilberto Freyre (1951, p. 254).
O padrão duplo de moralidade, característico do sistema patriarcal, dá (...) ao homem todas as
oportunidades de iniciativa, de ação social, de contatos diversos, limitando as oportunidades da mulher
ao serviço e às áreas domésticas, ao contato com os filhos, a parentela, as amas, as velhas.
Aparentemente – a despeito de a obra se situar em um momento impreciso das primeiras dé-
cadas do século XX – estas normas patriarcais ainda imperam com muito vigor no Buriti Bom, visto que
Iô Liodoro, com muito charme e gentileza, é um ferrenho representante daquele sistema e, por isso,
quer manter inalteradas as normas comportamentais na fazenda, especialmente no que se refere à fa-
mília. Ele “prezava o inteiro estatuto de sua casa, como que não aceitando nem a ordem renovada, que
para ele já podia parecer desordem” (B9, p. 872), pois ao império da velha

8
“durante os últimos 150 anos [...] em uma série ininterrupta de restrições sobre suas funções econômicas e políticas, e na concentração das fun-
ções mais específicas da família: procriação e impulso sexual”. (Tradução livre)
9
No presente estudo se adotou a abreviatura B para a novela Buriti, que faz parte do livro Noites do sertão, cujas referências referem-se a: ROSA,
João Guimarães. In: Guimarães Rosa; ficção completa. v. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 863-988.

92 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA


[...] organização social, mais notadamente do tipo patriarcal-agrário – que dominou lon-
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA go tempo no Brasil –, convém a extrema diferenciação dos sexos. Por essa especialização
exagerada, se justifica o chamado duplo padrão de moralidade, dando ao homem todas
as liberdades” (FREYRE, 1951, p. 254).

São inerentes à condição sociofamilar de Iô Heliodoro todas as possibilidades, inclusive as se-


xuais. Tanto é assim que, em sintonia com a tradição patriarcal rural, ele é um arquétipo do fálico poder
simbólico masculino. Seu falo, assim como o monumental buriti da vereda do brejão – que, ironicamen-
te está nas terras do vizinho – é, indiscutivelmente um elemento constitutivo do seu poder e da aura
que o envolve. Se, em relação à família, ele é tão conservador que rechaça qualquer possibilidade de
mudança, seu comportamento sexual, para além dos limites da casa, dada a sua viuvez, é intensamente
ativo. Entretanto, não há nisso qualquer paradoxo em relação à moral patriarcal, ao contrário, este é um
dos poderes inerentes ao patriarca e aos homens da família. Mas, é fundamental que ele preserve a res-
peitabilidade da sua casa e da sua família. Como o grande senhor de terras que é, ele tem, inerente à sua
condição, direito às teúdas e manteúdas, recorrentes na tradição patriarcal brasileira. Mas, sua família,
assim como sua casa, deve ser mantida a salvo de qualquer transgressão que possa maculá-la. Ou seja,
aparentemente, pode parecer contraditória esta dupla moral, mas ela vigorou no Brasil da sua formação
às primeiras décadas do século XX.

Iô Liodoro era homem punindo pelos bons costumes, com virtude estabelecida, mais
forte que uma lei, na sidudez dos antigos. Somente que o amor dele pela família, pelos
seus, era uma adoração, era vasteza. Via disso, de certo, não queria se casar outra vez,
depois de tanto que enviuvara. E ele, por natureza, bem que carecia, mais que o comum
dos outros, de reservar mulher. Mas prezava o inteiro estatuto de sua casa, como que
não aceitando nem a ordem renovada, que para ele já podia parecer desordem. (B, p.
872) (grifo nosso).

Esse perfil de Iô Liodoro é uma síntese do patriarca rural brasileiro que, a despeito do encanto
e do charme nos quais Guimarães Rosa o envolve, parece saído de um texto sociológico como o de
Gilberto Freyre, ou de uma análise de Roberto Damatta, ou ainda de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque
de Holanda, como se pode perceber nas citações subsequentes. Gilberto Freyre, em Sobrados e mu-
cambos, afirma que:

o patriarcalismo vindo dos engenhos para os sobrados não se entregou logo à rua; por
muito tempo foram quase inimigos, o sobrado e a rua. E a maior luta foi travada em tor-
no da mulher por quem a rua ansiava, mas a quem o pater-família do sobrado procurou
conservar o mais possível trancada na camarinha... (FREYRE, 1951, v. I, p. 163)

Embora o fragmento acima se refira já, ao espaço urbano, indiscutivelmente, a moral familiar
ainda é ditada pelo comportamento rural e é exatamente em torno das “mulheres de família”, em opo-
sição às outras, que se organiza toda a estrutura da fazenda Buriti Bom, centrada na dupla moral do
pater-familias Iô Liodoro. Tanto é assim que, quando o filho de Iô Liodoro se separa para ir viver com
outra mulher, ele vai à cidade e propõe à nora que passe um tempo na fazenda e esta proposta tem por
objetivo preservar a nora do acesso a outros homens para a eventualidade de o filho, se decidir voltar,
ainda encontre sua mulher às suas ordens e à salvo do assédio de outros homens.

Para ler Guimarães Rosa: o velho patriarca e a nova sinhazinha 93


Também a análise de Sérgio Buarque de Holanda a propósito do homem cordial pode ser su-
bliminarmente identificada nesta novela, pois, o centro do modus vivendi de Iô Liodoro pressupõe que
sua família estará a salvo de toda e qualquer mudança e esta, vinculada à sede de sua fazenda, ine-
gavelmente, é sua imago mundi que ele, ilusoriamente, quer manter imutável. Este comportamento
reacionário em relação às transformações que não só se abeiram da fazenda como, sem que ele se dê
conta, já adentrou a sede do Buriti Bom, minando o núcleo mais duro da família, que são as mulheres.
Portento, Iô Liodoro é um retardatário em relação ao seu tempo histórico.

A crise que acompanhou a transição do trabalho industrial (...) pode dar uma idéia pálida
das dificuldades que se opõem à abolição da velha ordem familiar por outra, em que as
instituições e as relações sociais, fundadas em princípios abstratos, tendem a substituir-
se aos laços de afeto e de sangue. Ainda hoje [1936] persistem, aqui e ali (...) algumas
dessas famílias “retardatárias”, centradas em si mesmas e obedientes ao velho ideal que
mandava educarem-se os filhos para o círculo doméstico. (HOLANDA, 1986, p. 202-2030.

O primado da família, acima das instituições abstratas, de ordem mais ampla – que já não
pode ser abarcada, apenas, pelo círculo familiar, do qual a casa seria o centro – já se perdeu ao longo do
tempo. Entretanto, apenas, o senhor do Buriti Bom e sua filha solteirona Maria Behú não se deram conta
destas mudanças inexoráveis. Ele, por continuar acreditando que pode manter sua família gravitando à
sua volta e ela por tipificar a trágica solteirona patriarcal. Será baldada a tentativa do arcaico e deslocado

Para ler Guimarães Rosa: o velho patriarca e a nova sinhazinha


patriarca de manter o inteiro estatuto de sua casa, como que não aceitando nem a ordem renovada, que
para ele já podia parecer desordem, pois a nova ordem, que para ele seria a desordem, não só adentrou
sua porta, mas está transformando aceleradamente sua família, enquanto ele tenta inutilmente manter
tudo como deveria ter sido, mas, no novo contexto do mundo à sua volta, já não o é.
Ainda com o intuito de mostrar a base sociológica que sustenta a obra de Guimarães Rosa, vale
destacar que a estrutura da fazenda Buriti Bom, aparentemente, é tão arcaica que se assimila àquela
descrita por Saint-Hilaire em suas andanças pelo Brasil no primeiro quartel do século XIX. “O interior
das casas é reservado às mulheres, é um santuário em que o estranho nunca penetra” (SAINT-HILAIRE,
apud DAMATTA, 1991, p. 57). De onde adviria tal restrição à intimidade doméstica, além, é claro, de se
preservar as mulheres a salvo dos homens estranhos ao círculo familiar? De acordo com Damatta (1991,
p. 51)

um brasileiro comum em casa [...] pode falar da moralidade sexual, dos seus negócios, de
religião ou moda de maneira radicalmente diferente daquela que usaria caso estivesse
na rua. Na rua, ele seria ousado para discursar sobre a moral sexual, seria prudente ao
mencionar os negócios e ultra-avançado ao falar de moda. [...] Em casa, porém, seu
comportamento, em geral, marcado por um conservadorismo palpável, sobretudo se
fosse um homem casado e falando de moral sexual diante de suas filhas e mulher (grifos
do autor).


É indiscutível que a novela Buriti, assim como a obra rosiana como um todo, dadas a lingua-
gem, a forma narrativa e sua universalidade: “deriva das operações formais postas em jogo, conferin-
do-lhe uma peculiaridade que a torna, de fato, independentemente de quaisquer condicionamentos,
sobretudo social ” (CANDIDO, 1985, p. 4). Entretanto, é muito marcante a forma com que ele soube
mesclar em seus textos o contexto ao qual ele se reporta, de forma que, muitas vezes, o leitor, surpreso

94 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA


e encantado com a arte do jogo narrativa rosiano, não reconhece o contexto subliminar, tão importante
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA quanto o próprio texto. O que faz com que muito do exotismo advenha da incapacidade de leitor de
perceber esta mescla perfeita entre o texto e o contexto. Ainda segundo Antonio Candido (1985, p. 4) a
compreensão de uma obra se dá através da fusão entre:

texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho pon-
to de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convic-
ção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos
necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, social)
importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desemprega
um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (grifos do
autor)

Portanto, conforme a proposta de se desvelar a base sociológica subjacente à novela Buriti, é


indiscutível que, subliminarmente à inusitada forma narrativa, à encantadora linguagem e à temática
simultaneamente tão regional quanto humana, Guimarães Rosa pautou-se no que há de mais tradicio-
nal para, então, subverter esta ordem através do surpreendente comportamento feminino que abalará
a velha ordem da família sertaneja patriarcal. Mas, o inusitado de sua obra resulta, sempre, da surpreen-
dente forma narrativa.

O VELHO LOBO E A NOVA CHAPEUZINHO

A ousadia sexual de Glória, exatamente por ser a sinhazinha da casa-grande, não abala, ape-
nas, a ordem convencional, mas altera, também, o papel tradicionalmente feminino, cujo arquétipo
centrava-se na vulnerabilidade da mulher em relação à sedução: ela, sempre, a seduzida e ele, sempre, o
sedutor. Pois, nesta novela, é ela quem seduz. Além de “se entregar” a um homem mais velho e casado,
ela, praticamente, o obriga a ter relações sexuais, conforme narra a Lalinha, sua cunhada: “ Escuta, Lala:
o Gual se autorizou de mim. [...] Agora não sou mais virgem: sou mulher. [...] Glória, tão linda, e aquele
homem se atrevera... [...] Não Lala. Fui eu que mandei. Quase o obriguei a fazer tudo, a perder o respeito,
que ele tinha demais... ” (B, p. 981).
O elemento subversor não está em uma moça tornar-se amante de um homem casado, pois
tal comportamento foi recorrente ao longo da formação da sociedade brasileira, conforme se afirmou
a propósito das teúdas e manteúdas, mas está em a sinhazinha, filha do principal patriarca da região,
praticamente obrigar seu vizinho, já de meia idade, casado com uma mulata, a tornar-se seu amante.
Mas, há, ainda, outros indicativos de tal ousadia. Glória, por não ter certeza de que Miguel, a
quem ela ama, voltará para pedi-la em casamento e dada sua carência sexual de moça já feita, mas ain-
da virgem, escolhe racionalmente o parceiro mais viável para satisfazer tal necessidade e neste sentido
nhô Gualberto Gaspar é o elemento ideal, pois: ele é estéril; sua mulher já está totalmente destituída
de qualquer atributo físico; apesar de desejar muito Glória ele a respeita em função do seu pai e da sua
família e ela, exatamente por isso, e na contramão da donzela romântica, escolhe racialmente o amante
que está à mão, assim como o faz seu pai em relação às suas mulheres, ou seu irmão, que levara uma
prostituta para morar com ele, naturalmente, longe da casa paterna e das “intocadas” irmãs. . “Eu não

Para ler Guimarães Rosa: o velho patriarca e a nova sinhazinha 95


quero casar. Sei que Miguel não vai vir mais... Antes, então, o Gual, pronto à mão, e que é amigo nosso,
quase pessoa da casa”. (B, P. 982).
Entretanto, como a obra rosiana nunca é simplista, nem a personagem Glória é, apenas, uma
personagem naturalista no cio – como, por exemplo, Lenita, de A carne, de Júlio Ribeiro – a narrativa
tem início quando Miguel está voltando para pedi-la em casamento e a história, ao que tudo indica,
tomará outro rumo, retomando – ou não? – o fio da estória de amor interrompida.
Mas, a despeito do atenuante acima descrito, ha, aí, uma inversão moral acentuada pelo fato de
Nhô Gualberto ser casado, ainda por cima com uma mulata, originária daquela massa historicamente
marginalizada que, a partir do século XIX, passou a gradualmente se organizar nos moldes da família
monogâmica tradicional. Ou seja, as mulheres que, historicamente, estavam relegadas à condição de
amantes já podem ser alçadas à condição de esposas, enquanto as intocáveis sinhazinhas se oferecem
como amantes.
Dona-Dona, a esposa mulata de Nhô Gualberto Gaspar, é de tal forma insegura em relação ao
seu lugar social na família que, na presença de estranhos está, sempre, dando ordens e contrariando o
marido para reiterar que ela não é mais uma das agregadas da fazenda, mas a dona, como prenuncia
seu nome.

Dona-Dona, quando aparecia, não escondia sua infelicidade. Ela mesma era roxa, escura,

Para ler Guimarães Rosa: o velho patriarca e a nova sinhazinha


quase preta, dessa cor que semelha sujeira em pele. Com um desajeitado pano à cabeça,
ocultava seus cabelos, o encarapinhar-se. Desparelhava de ser mulher de nhô Gualberto
– parecia mais uma criada. [...] Então quase nunca olhava para ele. Não se sentava, parava
no meio da sala, extravagantemente desatenta, às vezes, mas sempre respondendo ou
empatando conversa, quando bem lhe avoava. Dona-Dona queria mostrar que não era
uma criada...(B, p. 879).

Portanto, Guimarães Rosa, tanto em relação ao comportamento de Glória, a luminosa filha de


Iô Liodoro, quando ao de Dona-Dona, a opaca e ressentida mulher de nhô Gualberto, aponta para um
processo de transformação comportamental que ainda não está socialmente assimilado, mas que pre-
nuncia grandes alterações familiares que abalarão em definitivo os pilares da família patriarcal.
A citação acima, aponta para as mudanças supracitadas, nas quais as mulheres pobres e mu-
latas raramente alçavam à posição de esposas de homens abastados e, quando isso acontecia, precisa-
vam, constantemente reiterar sua posição social na família. Portanto, o casamento de nhô Gualberto e
Dona-Dona já é um indicativo de mudança, mas inda não está totalmente assimilado socialmente.
Tais elementos revelam que a portentosa fazenda do Buriti Bom está abalada em seus alicerces
pelo comportamento sexual feminino e isso se dá enquanto o velo patriarcal continua romanticamente
preso ao seu papel de chefe absoluto da família, papel este que se esvaneceu ao longo do tempo e
apenas ele e sua filha solteirona Maria Behú não se aperceberam. Não é por acaso que o buriti gran-
de, que ele tanto admira e que, em certa medida, é um símbolo fálico do patriarca, está nas terras de
nhô Gualberto, o imponderável amante de sua filha. Glória, indiscutivelmente, será a subversora e a
transformadora da sociedade arcaica na moderna, pois seu comportamento erótico e sexual abalará a
velha ordem patriarcal, visto haver na obra em análise um inquestionável desencontro entre esta nova
chapeuzinho e o velho lobo.

96 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA


LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA R E F E R Ê N C I A S
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 7. ed. São Paulo: Nacional, 1985.

CANDIDO, Antonio. “Brazil: portrait of a helf continent”. In: SMITH, Lyn; MARCHANT,
Alexander. (org). The Dray Press. New York: 1951, p . 292-312.

DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 4. ed.
Rio de Janeiro: Guanabara, 1991.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951, v. I.

FORTES, Rita Felix. O erotismo pulsante no sertão: uma leitura de Dão-lalalão. In:
VAN DIJCK, Sônia Maria (dir). Plural Pluiel n. 4-5 2009. Guimarães Rosa Du sertão et du
monde. www.pluralpluriel.org/index,

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 18 ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1986.

RIBEIRO, Júlio. A carne. São Paulo: Saber, 1975.

ROSA, João Guimarães. Guimarães Rosa: ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar,
1994. v. I e II.

Para ler Guimarães Rosa: o velho patriarca e a nova sinhazinha 97


LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA

CAPÍTULO 7

As artes do humor nas tramas da história


Maria de Fátima Gonçalves Lima

A linguagem artística insurge-se contra a inalterabilidade das formas, produz estranhamento


e importuna o silêncio das idéias. A arte exprime a liberdade de expressão do ser e traduz, na sua
existência, a livre expressão da faculdade imaginativa do homem para seu prazer estético ou outro fim
que se fizer necessário. Nessa perspectiva, a obra de arte revela seu estar no mundo sem determinar
funções ou razões. No entanto, a presença de um trabalho artístico de qualidade é sempre uma epifania
e uma fruição que sai de um silêncio inominado. Dentro dessa perspectiva, contempla-se o romance
O homem que matou Getúlio Vargas de Jô Soares que, com maestria, faz um ludismo com a história e
com o humor nas tramas da arte e metaforiza, na própria construção, a realidade do texto artístico. A
verdade da arte não é a verdade da vida, pois o artista vê o invisível, sente e percebe o mundo com os
olhos de quem procura metáforas. Daí o mundo transfigurado em forma de arte surge sob o efeito de
um estranhamento que desperta o humano e a vida. Dessa forma, as metáforas do criador de um texto
literário podem traduzir, inconscientemente, verdades do homem e da própria arte.
O romance O homem que matou Getúlio Vargas de Jô Soares não está detido numa simples
representação do mundo exterior, numa espécie de cópia de um espaço histórico-geográfico. Esse
texto traduz histórias do Brasil e da Europa num período de quarenta anos, mas também conota uma
visão de mundo sobre a concepção da própria criação literária. Dessa forma, ele transfigura um mundo
real e, como tal, deixa de ser apenas narrativa sobre personagens históricos brasileiros, europeus ou
universais, para personificar, dar vozes e pensamentos traduzidos numa intencionalidade literária.
Esta intenção literária produz duas consequências apresentadas por Maurice-Jean Lefebve em
Estrutura do discurso da poesia e da narrativa (1980).

As artes do humor nas tramas da história 99


A primeira, é que esta linguagem se designa a si mesma na sua materialidade e que
a obra se anuncia (e se denuncia) como obra de arte: toda a linguagem literária é
necessariamente figurada; ela é o indício da sua própria materialização. (LEFEBVE, M J,
1980, p. 39)

A esta realização metalinguística, esse autor chamou também de “conotação reflexiva” que,
segundo o crítico, consiste na “propriedade que advém ao discurso através da intenção literária, de se
designar a si mesma enquanto discurso literário, enquanto literatura” (Idem, p. 39).
A segunda consequência vai de par com esta materialização figurativa da linguagem. A obra
chama para si novas significações, numa opacidade e pluralidade de interpretações. Esta polissemia
abre possibilidade para uma plurissignifação, inclusive, significar as coisas do mundo, numa presença
de um certo real que foi chamada de presentificação.
O homem que matou Getúlio Vargas enuncia a denominada “conotação reflexiva”, quer seja
pela intencionalidade literária, ou em todo conjunto metafórico que compõe espírito do texto artístico
e, antes de tudo, é literatura. Porém, ao refletir-se, realiza a presentificação de espaços geográficos e
humanos reais. Presentifica, artisticamente, a história, a problemática econômica e social de vários
países do mundo, incluindo o Brasil, na primeira metade do século XX. Neste movimento, a arte expõe
o questionamento sobre a realidade histórica e humana do Brasil e do mundo naquela época. Assim, o
movimento centrífugo realizado pela obra de arte está explicitado na disposição com que ela se abre
ao mundo exterior e aos seus problemas, presentificando o mundo e interrogando sua realidade e
presença.
Em sua Arte Poética, Aristóteles prescreve que a poesia (arte) “é superior à história porque é
mais filosófica, mais séria e mais universal, pois o artista atribui a um indivíduo de determinada natureza
pensamento e ações, por liame e transfigura realidades. O historiador ao escrever a história de uma
pessoa, narra sua vida em particular e de acordo com a conveniência” (ARISTÓTELES,1987, p.209). O
artista é um filósofo-criador. Assim, define que a diferença entre Heródoto e Homero é que o historiador
conta os fatos que sucederam e o poeta narra os fatos que poderiam acontecer. Portanto, o artista
da palavra é mais filosófico e mais sério do que o cientista, uma vez que o texto do poeta refere ao As artes do humor nas tramas da história
universal, (dotando às suas personagens naturezas, pensamentos e ações um liame de necessidade
e verossimilhança) e o historiador narra fatos particulares, acontecidos que são registrados a partir da
versão teórica - cientifica do cronista da história de um povo.
A narrativa do poeta (do artista da palavra) funciona como um “ritual ou a imitação da ação
humana como um todo, e não simplesmente como uma mímesis praxeos ou imitação de uma ação,
traduz um mito. Assim, o conceito de mito advém de sua relação originária com o enredo da narrativa
(mythos), extraído dos componentes da poesia codificada por Aristóteles, ligado ao sentido primitivo
de “trama” e que passou a significar crescentemente “narração”, acompanhando uma propensão da
narrativa de passar de uma “ênfase ficcional” primitiva para uma tendência “temática” posterior. Diferente
do sentido comum e sobrenatural: “uma tendência para narrar uma estória que é originalmente uma
estória a respeito de personagens que podem fazer qualquer coisa” (RICOER, 1994,p.80). A literatura,
portanto, é ficção – palavra latina que significa “fazer”, “moldar” e ainda “fingir”, “imaginar”, portanto é
criação e enigma. Por isso, o texto artístico traz em si o enigma da Esfinge, “decifra-me ou te devoro”.

100 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
Além do caráter enigmático, a arte literária é si um paradoxo, uma vez que mesmo fazendo referência
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA a alguma realidade, é antes de tudo criação e não quer expressar necessariamente nenhum mundo
preexistente.
Essas reflexões sobre a literatura e a mimese lembraram alguns conceitos marcantes a respeito
desse assunto. Claude Debussy afirmou que “a arte é a mais bela das mentiras”. Esse conceito traduz
o jogo existente entre o ludismos da arte e as correntes da mimese. Também, a possibilidade de a
arte recriar a realidade, dando corpo a outra verdade, levou Pablo Picasso a afirmar que “A arte é uma
mentira que revela a verdade” e o compositor francês Claude Debussy definiu que “A arte é a mais bela
das mentiras”. José Américo de Almeida, em A Bagaceira, assim se pronunciou sobre a arte: “Há muitas
formas de dizer a verdade. Talvez a mais persuasiva seja a que tem a aparência de mentira”. O poeta e
crítico de arte Ferreira Gullar assim se manifestou sobre esta transformação simbólica do mundo: “A arte
é muitas coisas. Uma das coisas que arte é, parece, é uma transformação simbólica do mundo. Quer dizer:
o artista cria um mundo outro - mais bonito ou mais intenso ou mais significativo ou mais ordenado -
por cima da realidade imediata. Naturalmente esse outro mundo que o artista cria ou inventa nasce de
sua cultura, de sua experiência de vida, das idéias que ele tem na cabeça, enfim, de sua visão do mundo”.
Destarte, o artista da palavra não trabalha conceitos, exprime ideias, cria mundos. Nessa
criação, existe um mecanismo denominado “realizante-irrealizante”, defendido por Lefebve ao comentar
a fascinante posição “da imagem mental que parece ganhar uma certa consistência e dá a impressão
de estar prestes a realizar-se”. (LEFEBVE, M J, 1980, p. 12). E que, aplicado ao contexto do romance em
análise, esse jogo entre o real e o imaginário é expresso no discurso do narrador que enuncia verdade
sobre a as tramas da história de muitos personagens como, por exemplo, Mata Hari, Al Capone, Franklin
Roosevelt e Getúlio Vargas. É história e muitas verdades. No entanto, este real, torna-se irreal, quando
narrado por um sujeito que, artisticamente, conta a odisséia imaginária de Dimitri Borja Korozec,
sinalizada por uma tonalidade de biografia que dá um aspecto muito real e, ao mesmo tempo, descreve
ainda situações e personagens que realmente existiram na História da Civilização, num jogo “realizante-
irrealizante” construtor de efeitos fascinantes, só encontrado no mundo da arte.
Estes efeitos são estabelecidos por níveis diversos e complexos mecanismos, o que provoca na
obra literária um caráter de “duplo movimento: o primeiro, denominado centrífugo e pelo qual ela se
abre ao mundo exterior e aos seus problemas e o segundo, centrípeto, que tende, pelo contrário, fechar
a obra sobre si mesma, a constituí-la como seu próprio fim e como seu próprio sentido” (Idem, p. 14).
A arte é sugestão e metáfora, ela não diz isto ou aquilo, ela é, antes de tudo, Arte. No entanto,
o artista da palavra realiza um ludismo artístico marcado por sugestão e faz um convite para que o
leitor descubra os labirintos desse tecido ou fique atormentado pelo enigma da esfinge de Tebas. Dessa
maneira, a constituição desse duplo movimento pode ser comprovada quando o discurso literário
levanta, no prólogo, no epílogo e nos 17 capítulos bem definidos, os dados históricos, os ambientes,
as tramas nas quais o herói foi envolvido, as frustrações ocasionadas pela sua nata inabilidade, a morte
de Getúlio Vargas e o sentimento de fracasso daquele que se supõe agente de um crime que é fruto da
imaginação.
O prólogo tem como cenário a cidade de Ouro Preto, quando ainda era capital de Minas Gerais
e se chamava Vila Rica, em 1897, narra o episódio da vingança e da violência dos estudantes gaúchos e
o assassinato do jovem paulista.

Para ler Guimarães Rosa: o velho patriarca e a nova sinhazinha 101


No capítulo I (composto por 12 cenas que narram, documentam com fotografias ou,
semioticamente, exprimem bombas, ou muita ação) começa o relato do nascimento de Dimitri Borja
Korozec, na cidade de Banja Luka, na Bósnia, no mesmo instante que acontece o crime em Ouro preto
em 1897, seguindo as informações sobre sua família e o detalhe de um dedo indicador a mais, em cada
mão, anomalia que, aparentemente, não causou estranheza. A infância de Dimitri ou Dimo, como era
chamado por seu pais, é exposta em poucos parágrafos, para ser evidenciado o jovem e belo Dimo,
com um “jeito de desprotegido de poeta”, a propensão para anarquista desde o berço, mas apesar
extremamente desajeitado, é a favor de métodos violentos. Sonha eliminar todos os tiranos do mundo
(SOARES, J., 1989, p.20). Nas cenas seguintes são narradas as primeiras aventuras desse anarquista, sua
primeira experiência nas armas e do amor com Mira Josanovic, musa de guerras, artes e manhas não
apreendidas por Dimo. O herói, traído por sua marca guache, desencadeou a Primeira Guerra Mundial:
A anomalia que todos pensavam ser a marca do assassino acaba por malograr-lhe a missão (Idem, p. 44)
e a desventura estava registrada.
O segundo capítulo (formado por 14 cenas – uma, com marcas semióticas de uma evidência de
bomba e treze por vistas de vagões do Oriente-Express) revela o inusitado encontro e desencontro do
herói com Mata Hari e seu fiel Motilah, um anão hindu e “homme à tout faire”, no vagão do Oriente-
Express na viagem de Munique a Paris.
Nos capítulos seguintes o signo das bombas estão entre todas as partes, exceto em algumas
cenas do terceiro capítulo, como por exemplo, quando Dimo segue um caminho mais guache do que
seus doze dedos e bebe vinho enquanto discute com soldados e uma gorda estalajadeira francesa.
Esta cena foi marcada pelo signo do vinho. No quarto capítulo também aparecem cenas que tratam
sobre navegação e naufrágio, salvamento, surgem figuras de navios, periscópios, navios afundando e
barcos. No quinto capítulo, as primeiras cenas são movidas pela arte do ludismo e da imaginação e são
assinaladas por símbolos evidenciando rostos egípcios, mas a fantasia se instaura, no capítulo 6, na
experiência de Dimo com o mundo de Hollywood e o incidente com George Raft e, ainda, o símbolo
da história do Ben-Hur, o vencedor de muitos Oscares. Nas peripécias seguintes o signo da justiça será
registrado na condenação de Al Capone a onze anos de prisão. Nessa seção aparece também a marca As artes do humor nas tramas da história
de revólveres e aviões levando Dimitri para o Brasil. No Rio de Janeiro, as bombas são acionadas para
mais ações e aventuras do herói que encontra o solo brasileiro cheio de turbulência política e clima
de guerra. Enquanto cruza com Olga Benario, esposa de Luís Carlos Prestes, o guachismo de Dimitri o
conduz à prisão.
No capítulo nono, na ilha grande, encontra Graciliano Ramos, Henri Maturin e ganha fama e
apelido de “O Homem-Barata”, cena ilustrada por baratas que antecipam a revelação da paixão que o
espera na pensão. Bombas, lepra, fuga e muita ação levam Dimo aos braços de um amor, Pequetita. No
capítulo 11 o anão Motilah, de Mata Hari, volta pela terceira e última vez à cena e as bombas continuam
no Rio de Janeiro. E, em pleno jogo do cassino da Urca, Dimo conhece Bejo, o coronel Benjamim Vargas
e, entre bombas, hípica, grandes prêmios e cadilalac Fleetwood são construídas artimanhas.
O Rio de Janeiro de 1943 se anuncia no amigo da Onça de Péricles e jogo do bicho. O ano
seguinte foi marcado pelo estado de guerra e a oportunidade de acertar, de vez no alvo. A bomba
estoura que no Palácio das Águias. Com a morte de Getúlio Vargas, Dimitri, virtualmente, entra para

102 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
da história do Brasil como o homem que matou o Presidente e praticou um crime fictício. O anarquista
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA Dimo foi criado para ser agente de um crime que nunca aconteceu, ou, simplesmente, para ser metáfora
da ficção ou da virtualidade da obra de arte.
Dimitri Borja Korozec é um herói guache visualizado nas sete faces da criação. Ele é a própria
representação do humor e obra de arte, a partir da sua sui generis história e formação:

Sua mãe Isabel, é uma contorcionista brasileira nascida em São Borja, no Rio Grande
do Sul. Filha de uma bela escrava (...) e de pai desconhecido, já liberta dos grilhões da
escravidão, pois, enquanto nos pampas soava o primeiro berro da criança, no Rio de
Janeiro a princesa Isabel assinava a Lei do Ventre Livre.(...) os alcoviteiros (...) juravam que
pequena mestiça era fruto ilegítimo (...) Manuel do Nascimento Vargas, posteriormente
pai de Getulio Vargas. (...) Dimitri nasce na carroça de um trapezista búlgaro tendo a
mulher barbada como parteira. É uma criança perfeita, a não ser por um detalhe: tem
um dedo indicador a mais em cada mão. Essa anomalia não chega a chocar e é pouco
notada, pois os doze dedos são absolutamente simétricos. O recém–nascido é logo
banhado nas águas do rio Vrbas e, sete dias depois, a despeito dos inúteis protestos de
Isabel, como manda o ritual da Poluskopi, tem seu testículo direito seccionado e comido
pelo pai.(...).( SOARES, J., 1989, p.17/19)

Dimitri Borja Korozec pode ser classificado como um personagem-herói da modernidade, num
misto de avesso e pícaro. Como herói do avesso apresenta-se como o oposto de Odisseu, pois apesar
de construir sua vida numa grande viagem de ideais e buscas, suas tentativas de ser herói são todas
frustradas, compondo uma caricatura da história dos grandes heróis da vida e da arte. A história oficial
contracena com a história desse herói gauche e ambos são traídos pelo ludismo da arte que, como um
arlequim, vibra com os acontecimentos e são como o próprio Dimitri cheio de estranhamento e de
encanto. Estas características são reiteradas ao longo da história do herói:

Sua figura longilínea e seus modos naturalmente elegantes encantam a todos. Teria,
mais tarde, aquilo que as mulheres chamariam de charme irresistível. É inteligente e
estudioso. Seu jeito desprotegido de poeta faz com que gostem dele à primeira vista.
Tem um único defeito: talvez devido as contorções que sofrera ainda na barriga da mãe,
Dimo é extremamente desajeitado. Nem os dois dedos a mais impedem que os objetos
escorreguem das suas mãos (p.19/20). (...) Durante os treinos, seu corpo é marcado
por diversas cicatrizes, fruto de sua inabilidade natural. (...) Seu atabalhoamento cria
fama entre outros alunos. Os que sabem da extração do seu testículo direito, atribuem,
chacoteando, sua gaucherie ao ritual da Poluskopi. (p.27) (...) Atira novamente. Nada
acontece. (...) Tamanha era sua vontade de assassinar (...) ele enfiara os dois indicadores
ao mesmo tempo no gatilho.(...) A anomalia que todos pensavam ser a marca do
assassino acaba por malograr-lhe a missão.(p.44)(...)Como conseqüência, ele tropeça no
anão e cai por cima de Mata Hari. (...) Ao ver o enorme curativo do qual brota o buquê,
(...) Jamais recebi flores de maneira tão original.(SOARES, J., 1989, p.17/19, p.61)

Dimitri é um mundo virtual, mas esse mundo pode parecer estranho ao leitor e nisso reside a
“estranheza” ou “alteridade” que caracteriza um objeto artístico. De acordo com Susanne Langer:

A forma é dada imediatamente à percepção, porém ela vai além de si mesma; é


semelhança, mas parece estar carregada de realidade. Tal como a fala, que não é nada
fisicamente além de pequenos sons zumbidos, ela está preenchida por seu significado,
e seu significado é uma realidade. Num símbolo articulado, a significação simbólica
permeia toda a estrutura, porque cada articulação dessa estrutura é uma articulação
da idéia que ela transmite; o significado (ou, falando com exatidão, de um símbolo
não-discursivo, o importe vital) é o conteúdo da forma simbólica dada, como que junto
com ela, à percepção. No caso da linguagem, essa latência da forma fisicamente trivial
comum importe conceitual chega às raias do milagroso. Como disse Bernard Bosanquet,

As artes do humor nas tramas da história 103


‘A linguagem é tão transparente que ela desaparece, por assim dizer, dentro de seu
próprio significado, e somos deixados sem meio característico algum’. (LANGER S., 1980,
p. p.55)

Essa natureza simbólica da arte e sua peculiar “estranheza” são denominadas muitas vezes
de “transparência”. Essa transparência “é o que nos é obscurecido se nosso interesse é distraído pelos
significados dos objetos imitados; neste caso, a obra de arte assume um significado literal e evoca
sentimentos, que obscurecem o conteúdo emocional da forma”. (LANGER S., 1980, p. 57). Isto porque
as formas no sentido mais amplo estão numa dimensão intelectual a fim de serem percebidas. “O
sentimento está expresso na arte, mas ela não é feita de arranjos de elementos sensoriais, uma vez que
o seu sentimento ou emoção apresenta o caráter qualitativo de conteúdo imaginal, é um espelho e
uma transparência” (Idem, 1980,p.60), a arte é antes de tudo metáfora. É nessa perspectiva que reside o
guachismo e o estranhamento do herói Dimitri Borja Korozec, ele é a metáfora da obra de arte, por este
motivo é que suas peripécias giram em torno de tentativas frustradas de crimes e, quando consegue
praticar o primeiro crime,(o suposto assassinato do Presidente Getúlio Vargas) realiza uma ficção, pois
apenas fez parte da imaginação do artista. A ação fictícia praticada pelo herói, o assassinato de Getúlio,
metaforiza o próprio personagem, pois Dimitri também é pura ficção, não é conceitual e não segue
nenhuma lógica. Desta maneira Jô Soares criou um herói que exprime uma nova maneira, um modo
diferente e inusitado de descrever um herói, ao mesmo tempo que desconstrói (no sentido mesmo de
romper e no sentido também usado por Derrida de análise (do ser do herói tradicional) e decomposição
da imagem).
Diante do exposto, o texto de Jô Soares faz uma imitação da realidade sem reprodução, ou
melhor nega a realidade (herói tradicional) e cria uma realidade única, marcada por uma singularização
que é o novo, a nova roupagem, pois o herói é a própria arte marcada por estranhamento. De acordo
com Chklovski, em seu artigo A arte como procedimento:

O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; “o

As artes do humor nas tramas da história


procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e procedimento
que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção e
provocar um estranhamento. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve
ser prolongado por meio de um estranhamento” (CHKLOVSKI, Victor, 1971, p.40-45).

Assim, a arte é estranhamento e por ter novidade possui uma idealidade sugestiva, diferente,
nova, misteriosa, barulhenta, silenciosa, instigante, indefinível. O procedimento da singularização
é manifestado na novidade, na maneira diferente de expressar uma idéia sem repetir imagens já
estereotipadas, ou mesmo, se usar uma imagem comum, produzir efeitos novos, situações novas. A
criação deve provocar reflexão. Diante do exposto, a arte é estranhamento e por ter novidade possui
uma idealidade sugestiva, diferente, nova, misteriosa, barulhenta, silenciosa, instigante, indefinível. A
arte não expressa tipos, conceitos ou emoções, significados presentes em sua consciência. E, por ser
um leque de possibilidades, de interpretações, parece que está sempre por terminar, por descobrir algo
nela ou sobre ela; parece que algo está inconcluso. A obra de arte instiga o receptor; a
A partir desses pressupostos, pode ser observado que criador de O Homem que matou Getulio
Vargas usa o mundo real, apenas como um ponto de partida, para pensar na própria essência e no ser da

104 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
arte, dessa forma está diante do movimento centrípeto. Nesse movimento, a arte é manifestada como
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA o centro da existência do próprio mundo que dobra sobre si mesmo, em puro objeto de linguagem. É o
instante denominado de materialização. Nesse momento a obra de arte se isola do mundo exterior, numa
posição fechada sobre si mesma, a refletir apenas sobre o seu próprio fim e sentido. Neste movimento,
a arte não possui uma intenção de ter uma participação ativa diante do mundo; seu discurso ou ação é
gratuito, qualificado por uma espécie de opacidade, na qual a linguagem torna-se obscurecida, próxima
da imagem que fazemos do mito. Dessa forma, esse discurso traz uma comunicação perturbada, que se
quebra no solo de uma possível realidade. Mas, é exatamente neste choque entre linguagem (com sua
gratuidade) e a realidade, que nasce o poético. Lefebve (l980) assegura ainda, “que a arte nasce onde à
comunicação se quebra – ou pelo menos, se altera -, como faísca nasce de um curto-circuito” (LEFEBVE,
M J., 1980, p. 36).
Esta posição metalinguística ou desse movimento centrípeto nos remete ainda ao modo
como a metáfora é trabalhada nessa obra de Jô Soares, quando se observa que o romance é antes,
uma metáfora que evidencia artimanhas da tecelagem de um texto artístico em prosa com suas ações,
personagens, narrador, espaço, tempo e seu avançar sem limite. No entanto, essa metáfora não expressa
uma tonalidade sombria e triste, ao contrário, tem cores que oscilam e brincam como os losangos da
roupa de um arlequim. Dessa maneira, o humor conduz o fio dessa narrativa que tem uma aparência
despojada de austeridade, mas tem, nas inferências, veracidades que as ciências talvez não possam ou
não saibam exprimir. Por outro lado, o texto artístico, com o seu caráter lúdico, cria mundos inusitados
que brincam com a nossa imaginação também.
O estranhamento maior da obra de arte reside no fato possuir um poder de exprimir uma
pluralidade de sentidos que toca e perturba realidades. Por este motivo a arte é poderosa e influente,
na sua intensidade intrínseca, diz muito não dizendo ou exprimindo-se por meio de suas metáforas. E,
da retórica do seu silêncio ecoa zumbidos, ou cricrilos de estranha potência que produzem reflexões
sobre o mundo da arte e sobre o mundo dos homens na dialética entre História x Arte, Real x Imaginário,
Ciência x Arte, Linguagem Eficaz ou Interessada x Linguagem Gratuita, Significado x Significante,
Denotação x Conotação, Transparência x Opacidade, Movimento Centrífugo x Movimento Centrípeto,
Presentificação x Materialização, Intencionalidade de Comunicação (conceituação e objetividade) x
Intencionalidade Literária (enigma), Conteúdo x Forma, Coletivo x Individual.

As artes do humor nas tramas da história 105


R E F E R Ê N C I A S
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106 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA

CAPÍTULO 8

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de


autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América
Gilmei Francisco Fleck

[...] Colón necesitaba la ternura de una mujer, porque era poeta y no sólo caballero, y
aun como caballero, porque era menos contenido que el casto hidalgo de la Mancha.
(MADARIAGA, 1947, p. 224).

O âmbito de produção do discurso historiográfico, imbuído do teor de veracidade que se


buscava, especialmente em sua fase positivista, por meio de seu método científico ancorado numa
suposta objetividade e no respaldo da certificação das fontes, nunca chegou a ser um ambiente no
qual a autoria feminina encontrasse algum espaço de manifestação, pois este território sempre fora,
exclusivamente, de domínio da autoridade centrada na voz masculina. No espaço ficcional, a situação
nunca foi muito diferente, pois, segundo menciona Lucía Guerra (2007, p. 7), até a década de setenta
do século passado existia, na cultura ocidental, grande preconceito com relação à literatura de autoria
feminina. Muitas mulheres, quando escreviam, faziam-no sob algum pseudônimo masculino, pois,
a crítica não prestava muita atenção às escritas de autoria feminina. Na contemporaneidade “[...] o
caminho que leva as mulheres da demanda de igualdade à afirmação da diferença atravessa a no man’s
land da ambigüidade, situada a meio caminho dos territórios do masculino e do feminino (OLIVEIRA,
1999, p. 75), o que faz com que a busca por um verdadeiro reconhecimento do valor da escrita literária
feminina siga buscando um espaço em nossos dias.
A crítica feminista, surgida como consequência do novo movimento feminista que ocorreu ao
redor da década de sessenta do século passado, especialmente nos Estados Unidos e na França, dedica-
se, na contemporaneidade, entre outras importantes atividades, a realizar uma série de pesquisas
que revelem as tantas injustiças sofridas pelas mulheres durante a vigência quase exclusiva do poder
patriarcal nas áreas da esfera pública até poucas décadas passadas. Com relação à escrita de autoria

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América 107
feminina, estas pesquisas buscam, num primeiro momento, resgatar textos nunca valorizados pela
crítica de caráter androcêntrico (OLIVEIRA, 1999) e torná-los conhecidos do público leitor e, em segundo,
evidenciar a densidade e complexidade destes textos, elaborados, conforme comenta Guerra, “desde un
sítio otro: el de la subordinación de la mujer”10 (2007, p. 8). Se pensarmos na escrita híbrida de história e
ficção na qual se constitui o romance histórico sob esta perspectiva da crítica feminista, não será difícil
imaginar o árduo cominho percorrido pelas escritoras para que suas obras, inscritas especialmente
neste contexto de expressão do romance, viessem a ter o merecido reconhecimento.

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina –


Apesar de contarmos hoje com um considerável corpus teórico sobre o romance histórico,
pouco se tem escrito sobre a autoria feminina neste universo ficcional. Segundo relata Cunha, nesta
vasta produção crítica “sorprende el descuido casi total en que se halla la narrativa histórica de las escritoras
ya que, aunque el número de obras indique el contrario, parecería que aún prevalece la opinión de que la
historia no es uno de sus temas predilectos” 11 (2004, p. 12). Neste contexto já desfavorável, cabe lembrar
que, em especial, as narrativas de autoria feminina sobre o descobrimento da América não chegaram
a ocupar qualquer espaço de destaque, um dos motivos pelos quais nos temos dedicado à análises
de narrativas de autoria feminina que se embrenham pelos mistérios da existência de Colombo e –
junto a uma vasto universo ficcional de autoria masculina no qual há desde obras canônicas em de
diversas línguas como narrativas praticamente desconhecidas do grande público leitores – buscam dar
a este episódio central da história humana novas perspectivas a partir da escolha de um foco narrativo
feminino, de uma visão feminina da história pela autoria feminina da narrativa e por olhares dessa
parcela da sociedade aos quais antes não se dava atenção.
Prova disso, ainda na contemporaneidade, pode ser encontrada na obra Imagining Columbus
– the literary voyage (2001), de Ilan Stavans. Nessa obra, que pretende fazer um “passeio” pelas escritas
ficcionais sobre Colombo, no segundo capítulo – “Biographical sketches” –, o autor norte-americano
registra:

Most life accounts of Columbus have been produced by writers in the United States and

Novos olhares sobre o passado da América


Europe – Italians, British, Austrians, Spaniards, or Portuguese. All mature males in their
forties. Their accent is always on the masculine qualities of the mariner, on his wisdom or
foolishness, on his courage and struggle for power or on his sensibility and loving care
for family and friends.12 (STAVANS, 2001, p. 16).

Todos estes aspectos apontados pelo crítico são condizentes com a maioria dos fatos
conhecidos e registrados pela historiografia e pela crítica literária. O que nos intriga, neste sentido, é a
ação do autor de inserir uma nota ao final deste comentário. Nesta nota, Stavans comenta: “Not a single
female author has ever written a biography of Columbus. The only work written by a woman is the novel ‘The
Crown of Columbus’ (1991), actually by the married couple Michael Dorris and Louise Erdrich” 13 (STAVANS,
2001, p. 131-132). A primeira parte da afirmativa do crítico também é coerente com a realidade, porém,

10
Nossa tradução livre: [...] a partir de um outro lugar: o da subordinação da mulher.
11
Nossa tradução livre: [...] surpreende o descuido quase total em que se encontra a narrativa histórica das escritoras, já que, embora o número de
obras indique o contrário, poderia parecer que ainda prevalece a opinião de que a história não é um de seus temas prediletos.
12
Nossa tradução livre: A maioria dos trabalhos acerca da vida de Colombo tem sido produzida por autores nos Estados Unidos e Europa – italianos,
britânicos, austríacos, espanhóis e portugueses. Todos eles homens maduros, em seus quarenta anos. Sua ênfase é sempre voltada aos modos
másculos do marinheiro, à sua sabedoria ou sua tolice, à sua coragem e luta por poder ou à sua sensibilidade e carinho para com sua família e seus
amigos.
13
Nossa tradução: Nem uma única escritora escreveu uma biografia de Colombo. A única obra já feita por uma mulher foi o romance The Crown of
Columbus (1991) – A Coroa de Colombo – (1991), na verdade, trata-se de um trabalho feito pelo casal Michael Dorris e Louise Erdrich.

108 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
no que se refere à segunda afirmativa, o autor foi totalmente infeliz, pois, ao longo deste trabalho,
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA ressaltaremos que a história de Colombo tem sido alvo da escrita ficcional feminina desde o período do
Romantismo à contemporaneidade, especialmente no contexto norte-americano.
Assim, embora venhamos a incorrer em alguns lamentáveis esquecimentos, decidimos
estabelecer um breve painel das escritas ficcionais de autoria feminina sobre Colombo no universo
ficcional norte-americano, hispano-americano e espanhol. Nesse sentido, poderíamos reunir um
conjunto de obras literárias da Espanha e da América, ao menos com a seguinte composição:
- Columbus and Beatriz (1892), de Constance Goddard DuBois (EUA);
- The son of Dolores (1945), de Ida Mills Wilhelm (EUA);
- To the Indies (1949), de Cecil Scout Forester (EUA);
- El ocaso del quinto sol (1978), de Adela Irigoyen (México);
- No serán las Indias (1988), de Luisa López Vergara (Espanha);
- Colombo de Terrarrubra (1994), de Mary Cruz (Cuba);
- The discoveries of Mrs. Christopher Columbus – his wife’s version (1994), de Paula DiPerna (EUA);
- Isabel, reina de América (1999), de Sorkunde Francés Vidal (Espanha).
O quarto centenário da primeira viagem de Colombo à América parece ser o ano em que,
acreditamos, inaugura-se a narrativa de autoria feminina que recria a saga do Almirante, pois nem as
pesquisas de Milton (1992) e de Fleck (2005), e tampouco as de outros pesquisadores da poética do
descobrimento, revelam a existência de romances de autoria feminina no universo literário voltado à
saga de Colombo antes da obra de DuBois. Na vida de Cristóvão Colombo, duas mulheres ocuparam
um lugar de destaque: sua primeira esposa, a portuguesa Felipa Moniz Perestrello, e sua segunda
companheira, a corodobesa Beatriz Henríquez de Arana. Destaque deve ainda ser dado à figura da rainha
Isabel que, como soberana da Espanha na época das grandes navegações, acolheu e apoiou o projeto
inusitado de Colombo apesar da coroa estar passando por dificuldades financeiras devido às tantas
Guerras da Reconquista. Essas mulheres são, pois, os alvos principais em se tratando de configurações
de personagens femininas na ficção sobre o descobrimento. Na narrativa de autoria feminina sobre a
temática do descobrimento estas mulheres também recebem um tratamento especial.
Entre a listagem das narrativas de autoria feminina sobre Colombo, duas obras norte-americanas
merecem destaque. A primeira delas é Columbus and Beatriz (1892), por ser a obra detonadora da escrita
feminina sobre Colombo, e a outra é The discoveries of Mrs. Christopher Columbus – his wife’s version
(1994), de Paula DiPerna, pelo fato de congregar na tessitura do romance os mais relevantes aspectos da
escrita atual no âmbito das escrita híbridas de história e ficção. A escritora Constance Goddard DuBois,
nascida em Zanesville, Ohio, expressa, no prefácio de sua obra Columbus and Beatriz, as intenções de
sua empresa:

It is not the reputation of Columbus that is at stake. History, while accepting his
offence, has readily excused it, – ‘He was a man of his time’, forsooth; but the beautiful
young Beatriz Enriquez, whose life linked to his was undoubtedly a sad one, should be
delivered from unmerited reproach; and the open-minded student of history as well as
the enthusiastic champion of slandered innocence should unite in rendering a tardy
justice to her memory. 14 (DuBOIS, 1892, p. IX).

14
Nossa tradução livre: Não é a reputação de Colombo que está em questão. A História, ao mesmo tempo em que admite seu erro, prontamente o
justifica, – ‘Ele era um homem do seu tempo’, atenua; mas a bela jovem Beatriz Henríquez, cuja vida ligada à dele foi sem dúvida muito triste, de-
veria ter sua reputação revogada de reprovações não merecidas; e o estudante de história de mente aberta, assim como o entusiasta da inocência
mal-falada, deveriam unir-se para fazer justiça, mesmo que tardia, à sua memória.

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América 109
Há, na obra de DuBois (1892), muitos dos elementos estudados na atual crítica feminista,
dentre os quais podemos destacar a incansável luta das mulheres para trazer à luz personagens
históricas femininas cujas participações em grandes eventos históricos foram decisivos, embora a
história oficial – hegemônica e positivista – tenha registrado apenas as glórias à parcela masculina que
deles participaram.
No romance de DuBois, o olhar de Beatriz vai da admiração da jovem pelo estranho, já no
primeiro encontro – “the young girl rose with a look of wonder and reverence fixed upon the man, whose

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina –


face in its mild benignity was like that of a pictured saint, and whose vigorous manly form expressed energy
and strength”15 (DuBOIS, 1892, p. 15) –, à dor de uma vida dedicada a alguém cujas ambições estão
acima de tudo. Embora a ele se devote totalmente, a recompensa de todo seu apoio e empenho vem
apenas sob a forma de abandono por parte dele e menosprezo e discriminação por parte da sociedade.
A primeira das reações é recíproca, pois, segundo relata o narrador, Colombo também se
apaixonou por Beatriz assim que a viu: “All day the voice of Beatriz sounded in his ears, and her image was
before him. He did not resist the pleasing allurements of his fancy, and it seemed an inevitable fate which led
his steps in the cool of the evening to the house of Enriquez” 16 (DuBOIS, 1892, p. 29). O relacionamento que
se estabelece entre Colombo e Beatriz passa, deste modo, a ser o centro da narrativa na qual se busca
mostrar a importância da participação de Beatriz na empresa de Colombo, seu incondicional apoio e
permanente defesa dos interesses de Colombo diante de seus adversários.
Trata-se de uma trajetória que parte do louvor às qualidades observadas no marinheiro – numa
configuração quase mítica deste – até que estas se rompam pelo convívio com os firmes propósitos
que moviam a sua existência. Uma análise mais profunda da obra de Paula DiPerna (1994) nos
mostrará que este esquema se faz presente, de forma bastante consciente e crítica, também nesta obra
contemporânea, com o propósito não apenas de reclamar uma justiça tardia à memória de uma mulher
que acompanhou grande parte da trajetória do Almirante, mas também o de inverter o ponto de vista

Novos olhares sobre o passado da América


da história, seguindo vários preceitos do novo romance histórico hispano-americano.
O romance histórico busca, assim, dar voz a Beatriz Henríquez de Arana, a quem a história
emudeceu. Na trama novelesca, é dado a ela um espaço protagônico que a história nunca lhe conferiu,
ao lado do grande Almirante, a quem ela se dedicou durante a fase mais difícil da escalada do
marinheiro rumo ao descobrimento da América. Além disso, como já mencionamos, Beatriz foi a mãe
do segundo filho do Almirante, Fernando Colombo, que, como o pai, excluiu-a de sua vida por razões
que a história não revela, mas que a ficção persegue. Assim, o discurso ficcional dá relevância à visão
desta personagem que, durante séculos, permaneceu na obscuridade. Sabe-se, porém, que ninguém
esteve mais próximo do Almirante em sua trajetória na história espanhola, ninguém participou mais da
intimidade e dos percalços de sua árdua jornada em busca dos meios para realizar seu inusitado projeto
de navegação, o qual punha em juízo várias teorias, crenças, lendas e mitos de seu tempo, que esta
mulher que o acolheu e lhe deu amor e carinho.

15Nossa tradução livre: A jovem garota levantou-se com um olhar de maravilhamento e reverência fixado no homem, cuja face, em sua suave
bondade, era como a da representação de um santo, e cuja forma máscula e vigorosa expressava energia e força.
16Nossa tradução livre: O dia todo a voz de Beatriz soou em seus ouvidos e sua imagem manteve-se à sua frente. Ele não resistia ao prazeroso
fascínio que ela lhe provocava, e parecia um destino inevitável que conduziu seus passos na noite fresca à casa dos Henríquez.

110 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
A obra de Paula DiPerna, The discoveries of Mrs. Christopher Columbus: his wife’s version (1994),
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA chama a atenção, entre outras, por duas razões especiais: propõe uma versão da história de Colombo
sob a perspectiva de uma mulher, numa obra de autoria feminina e, além disso, aventura-se a recriar
no espaço protagônico uma das personagens femininas mais misteriosas dessa história: Felipa Moniz
Perestrello – a esposa portuguesa do Almirante e mãe de seu filho Diego Colombo. A morte de Felipa
parece ter sido um dos fatores que levaram o Almirante a deixar Portugal e buscar apoio na Corte
espanhola.
É interessante considerar, no primeiro aspecto, o que expõe Manuel Fernández Álvarez, em
Casadas, monjas, rameras, y brujas: la olvidada historia de la mujer española en el Renacimiento (2002),
um estudo que analisa a situação da mulher no período em que o romance de DiPerna está inserido. O
que se pode perceber ao ler esta obra é que o Renascimento foi, especialmente na Espanha, um tempo
em que a mulher permaneceu na sombra, aparecendo somente em casos excepcionais, como o de
Isabel, a Católica, e os de outras poucas senhoras de feitos extraordinários. Mas elas estavam, em geral,
destinadas ao silêncio, à exclusão e ao descaso, pois o espaço público era exclusivamente masculino,
cabendo a elas o recato, quando casadas ou reclusas em algum convento, ou transitar às margens do
sistema altamente discriminador. Quando sua situação era semelhante à da segunda companheira
de Colombo – a judia conversa Beatriz Henríquez de Arana, de Córdoba, com quem Colombo nunca
chegou a se casar, embora também tenha tido com ela um filho, Fernando Colombo –, as possibilidades
de alcançar alguma notoriedade estavam totalmente excluídas.
Nessa época, a mulher era ainda celebrada na literatura como a musa dos heróis dos romances
de cavalaria, aparecendo como ideal de perfeição e, sob todos os aspectos, idealizada. Ou, ao contrário,
era vista como uma das criaturas mais temíveis e abomináveis, como as bruxas, que também merecem
destaque em boa parte das obras literárias desse período. Se nos reportarmos a Fernández Álvarez para
situar melhor neste sistema as personagens Felipa e Beatriz, vemos que existiam, para a mulher, “[...] dos
valoraciones distintas, porque hay dos varas de medir también distintas: frente a las damas encumbradas
(las grandes señoras de la Corte), las mujeres sencillas de la vida corriente. Frente a la rendida admiración, el
17
brutal desprecio.” (2002, p. 77). Um sistema como este excluía a mulher da atuação pública, do acesso
ao conhecimento, das possibilidades de se desenvolver intelectualmente ou mesmo de estabelecer
relações por si só, condicionando-a à servidão, seja dos pais, dos irmãos ou dos maridos que lhes fossem
designados.
A posição da história oficial a respeito de Felipa, de quem não há sequer registros sobre a causa,
data e local de falecimento, nem notícias sobre onde poderia estar sepultado seu corpo, dá evidências
de como o poder público tratava a mulher naquela época, considerando-se, inclusive, a questão de que
Felipa pertencia a uma parte da elite, já que era filha do governador da ilha de Porto Santo. Quanto à
Beatriz, nem mesmo seu filho Fernando – biógrafo de Colombo – menciona o seu nome ao longo da
trajetória do Almirante. Dar espaço à manifestação da voz de Felipa no campo da arte literária é, pois,
um aspecto relevante da obra de Paula DiPerna.

17
Nossa tradução livre: [existiam para a mulher] duas valorizações distintas, porque há duas varas de medir também distintas: diante das altas damas
(as grandes senhoras da Corte), as mulheres simples da vida cotidiana. Diante da pura admiração, o brutal desprezo.

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América 111
Escritoras norte-americanas como Constance DuBois (1892) e Paula DiPerna (1994), contudo
– embora separadas por mais de um século –, não se calam diante da possibilidade que o discurso
ficcional lhes oferece para fazer ecoar a voz de Beatriz e Felipa, reclamando, deste modo, a importância
dessas mulheres no contexto que possibilitou ao navegante realizar a grande proeza pela qual a história
o imortalizou.
Beatriz, pelas circunstâncias e extrato social a que pertencia, representava para seu filho, o
jovem Fernando Colombo, uma mácula que não deveria nunca ser mencionada. Fernando, que veio a

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina –


ser o primeiro biógrafo de Colombo, conforme já comentamos, foi levado a viver na Corte, assim como
seu irmão Diego, pouco antes da segunda viagem de Colombo à América. Este foi um dos grandes
prêmios pelos feitos da primeira viagem do navegante à América. Assim, Diego e Fernando Colombo
foram educados junto aos filhos dos grandes nobres espanhóis. Fernando servia ao príncipe herdeiro e,
mais tarde, quando este veio a morrer, diretamente à rainha Isabel.
Para o pai, porém, Beatriz representou muito mais do que uma simples aventura amorosa
ou consolo em tempos difíceis. Esta jovem cordobesa, ainda que nem sempre estivesse fisicamente
presente, tornou-se uma presença constante na vida do Almirante, que dela se ocupou até na hora de
sua morte, pois, no seu testamento, encarregou Diego de zelar pela situação de Beatriz. Pode-se até
mesmo dizer que a arte romanesca oferece mulheres como esta o lugar de destaque que a historiografia
sempre lhes negou: o protagonismo numa história cujo grande ator sempre foi Cristóvão Colombo. Ao
fazê-las dividirem com o Almirante este espaço de destaque, o romance histórico revela, em um novo
plano, as suas vivências ao lado do homem que revolucionou vários aspectos do conhecimento no final
do século XV.
A importância da presença de Beatriz na vida de Colombo, no entanto, é registrada também
por alguns dos biógrafos do Almirante, como, por exemplo, Jacob Wassermann, que afirma: “[...] de ella
recibió, sin duda, Colón alientos y cuidados; su corazón fué quizá el único que realmente poseyó en aquel

Novos olhares sobre o passado da América


período sombrío, porque en su mismo testamento la recomienda encarecidamente a sus herederos como a
persona a la que está muy obligado” 18 (1930, p. 52). Salvador de Madariaga (1947, p. 224-229) também
analisa este relacionamento, que, ao seu parecer, foi uma experiência extremamente importante para
Colombo como homem que atravessava, nessa época, uma das fases mais difíceis de sua existência.
Apesar de a presença de Beatriz Henríquez de Arana na vida de Cristóvão Colombo aparecer
também em outras obras que mencionamos neste estudo, ela sempre foi apresentada por meio da visão
do Almirante ou de outro narrador em diferentes níveis e vozes diegéticas. Ainda assim, vista de forma
secundária, tais obras a reconhecem como parte essencial e integrante da história de Colombo. Nesse
sentido, a obra de DuBois, que acreditamos inaugurar a escrita de autoria feminina no universo ficcional
que trata de Cristóvão Colombo, poderia dialogar com a narrativa contemporânea do romancista
espanhol Pedro Piqueras, Colón a los ojos de Beatriz (2000). Neste romance, aparece também a inversão
das posições: Beatriz é quem empresta seus olhos ao narrador para que as imagens do Almirante
possam aflorar ao longo da narrativa. Beatriz, no leito de morte, na obra de Piqueras, expressa o desejo

18Nossa tradução livre: [...] dela Colombo recebeu, sem dúvidas, alentos e cuidados; seu coração foi quiçá o único que realmente possuiu naquele
período sombrio, porque no seu próprio testamento a recomenda encarecidamente a seus herdeiros como uma pessoa a quem deve muito.

112 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
de encontrar Colombo do outro lado da vida. Conforme expõe o narrador, esta recompensa “[...] sería
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA la pequeña, la minúscula victoria de quien fue la gran derrotada en una historia de triunfo”19 (PIQUERAS,
2000, p. 18). Este aspecto se conjuga com o propósito de Constance DuBois, mesmo que numa outra
instância, e aproxima-se do ideário feminista contemporâneo.
Tanto a obra de Constance DuBois como o romance contemporâneo de Piqueras tem a jovem
cordobesa como foco narrativo. Tal fato mostra que a ficção, tanto de autoria feminina como masculina,
tem contribuído para revelar pontos de vista bastante significativos, sob os quais a história de Colombo
pode adquirir outras dimensões. Embora este romance de DuBois não tenha tido o mesmo respaldo
da crítica que tiveram seus estudos etnográficos sobre os nativos indígenas do sul da Califórnia, ele
representa, no conjunto total da obra laudatória norte-americana do século XIX, um olhar diferente
sobre o contexto geral no qual se deu a aventura de Colombo, da mesma forma como ocorre na
contemporaneidade com a obra de Piqueras que lança um olhar diferenciado sobre o passado sempre
exaltado pelos historiadores e romancistas espanhóis ao privilegiar a visão de uma mulher no processo
de rememoração desse período histórico. Assim, confirma-se a posição de Fernández Prieto (2003)
ao mencionar as importantes inovações nos romance histórico atual, mesmo aquele de cunha mais
tradicional
A forma como Beatriz Henríquez de Arana é configurada em obras ficcionais como Columbus
and Beatriz (1892) e Colón a los ojos de Beatriz (2000) – que narram a história do Almirante pelo filtro de
seus olhos –, dá-lhes este elemento diferenciador, também utilizado por Paula DiPerna. Em The discoveries
of Mrs. Christopher Columbus: his wife’s version, chamamos a atenção para o foco narrativo centrado em
Felipa Moniz Perestrello, a esposa portuguesa de Colombo. Ao proceder à leitura do passado sob uma
perspectiva feminina, visão excluída das esferas de produção do discurso histórico, revelando aspectos
obscuros desse passado pela voz da mulher que acompanhou Colombo em uma das fases de sua vida,
a ficção encontra formas de dessacralizar o herói, exibindo sua intimidade. Enfatizamos que a paródia
que o texto faz do Diário de bordo de Colombo dá especial ênfase à visão sensível de Felipa com relação
ao “outro” no que diz respeito ao encontro entre europeus e nativos americanos.
Um exemplo que destacamos é a seguinte menção do Almirante, no Diário: “Ellos no traen armas
ni las conocen, porque les mostré espadas y las tomavan por el filo y se cortavan con ignorancia”20 (VARELA
1986, p. 62), fato que, na voz e visão de Felipa, é narrado sob outra perspectiva, que destacamos abaixo:

One of the men had been fingering the hammered brass sheaf of the Admiral’s sword.
Innocently, the Admiral removed the sword from the case to show that off as well. But
before the Admiral could prevent it, the man grabbed the blade, instantly slashing his
own fingers. It was not a serious wound, but he was horrified to see he had drawn his
own blood, and raced away from my husband toward the water. […]. One woman began
to wail loudly as if she expected the man to die. The Admiral too looked shocked and full
of regret. I myself was paralyzed – so quickly had the event occurred […]. Though the
saltwater obviously stung the man’s cut, for he flinched, he let Chachu try to soothe him.
[…]. He walked slowly back to his people, spoke to them, and then one by one of them
walked into the forest, leaving all the gifts they meant to offer scattered in the sand,
dropping everything we had given them as if they were hot coals. In moments, it was as
if every one of them had vanished into another zone of time separated from ours by the

19
Nossa tradução livre: [...] seria a pequena, a minúscula vitória de quem foi a grande derrotada em uma história de triunfos.
20
Nossa tradução livre: Eles não carregam aramas e nem as conhecem, porque eu lhes mostrei espadas e as agarravam pelo fio, cortando-se com
ignorância.

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América 113
extravagant green line of forest, as if they had never been there at all. […]. I felt deeply
sad, not only by the abruptness of the event, but because it had all been so inadvertent.
21
Before we had even spent a full day here, we had brought harm to this place. (DiPERNA,
1994, p. 184).

A intertextualidade paródica com o texto oficial do Diário de bordo, que apenas menciona o
incidente como resultado da ignorância dos nativos, revela, como vemos no trecho acima, a intenção de
dar a esse passado um novo significado, uma possibilidade na qual há também o olhar de quem quer
ver o “outro” e perceber, com sensibilidade, as suas reações frente ao desconhecido, frente, por exemplo,

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina –


às armas que desconhecem. Felipa menciona alguns desses aspectos e suas conseqüências, sintetizadas
na expressão “vanished into another zone of time”, denotando a percepção de que, nesse encontro,
mundos diferentes e distanciados estavam se confrontando. O relato ficcional prima pela subjetividade
em oposição ao oficial, perceptível, no emprego de advérbios e adjetivos como “innocently”, “horrified”,
“shocked”, “paralized” e “sad”, que demonstram algumas das reações causadas pelo acidente com o
nativo.
As impressões de Felipa sobre a terra e os seres que a habitam diferem daquelas registradas
pelo Almirante na medida em que os apontamentos feitos pela protagonista não estão impregnados
com o teor do interesse financeiro e o olhar calculista presente nos registros oficiais. A nudez, no
romance, não é vista como sinal de total pobreza; a curiosidade em relação ao metal trazido pelos
europeus não representa apenas a ignorância dos nativos; sua língua não se constitui meramente de
sons mal articulados; os nativos não são apenas seres dóceis que podem ser transformados em escravos
ou convertidos ao Cristianismo porque parecem não ter outra religião. Sob esta nova perspectiva de ver
o primeiro contato entre os europeus e os habitantes da ilha de Guanahaní, muitas das prerrogativas
do novo romance histórico hispano-americano, anunciadas por Aínsa (1988-1991) e firmemente
estabelecidas por Menton (1993), encontram-se contempladas.
Por se constituir em um romance histórico de mediação, destacamos que, na obra de Paula

Novos olhares sobre o passado da América


DiPerna, o emprego dos recursos da paródia, da intertextualidade e da metaficção não está tão
fortemente aliado à ironia, à carnavalização, nem há nele as anacronias exageradas, o poliperspectivismo
e as sobreposições temporais típicas dos romances hispano-americanos em sua fase experimentalista.
Vejamos, a seguir, uma breve abordagem às demais obras que elencamos dentro do conjunto da escrita
de autoria feminina sobre Colombo e as diferentes visões que daí surgem tanto do herói como das
ações por ele efetuadas.
As narrativas The son of Dolores (1945), de Ida Mills Wilhelm, e To the Indies (1949), de Cecil Scout
Forester são relatos que seguem os padrões do Romantismo e apresentam discursos que louvam as
qualidades e as ações do Almirante. Este fato mostra que, mesmo num campo bastante restrito como a

21Nossa tradução livre: Um dos homens passava os dedos sobre a bainha da espada do Almirante. Inocentemente, o Almirante desembainhou a
espada para exibi-la também. Mas antes que o Almirante pudesse evitar, o homem agarrou a lâmina, cortando, instantaneamente, seus próprios de-
dos. Não foi um ferimento sério, mas ele estava horrorizado por ver que ele tinha derramado seu próprio sangue e correu para longe do meu marido,
em direção à água [...]. Uma das mulheres começou a entoar altos lamentos, como se pensasse que o homem fosse morrer. O Almirante também
olhava chocado e cheio de arrependimento. Eu estava paralisada – tão rapidamente o evento ocorrera [...]. Embora a água salgada já tivesse obvia-
mente estancado o sangramento do corte, pois ele já se encolhera, permitiu que Chachu tentasse acalmá-lo [...]. Ele caminhou vagarosamente de
volta para seu povo, falou com eles e, então, um a um deles caminharam para dentro da floresta, deixando todos os presentes que eles pretendiam
oferecer espalhados na areia, largando tudo que lhes havíamos dado como se fossem pedaços de brasa incandescente. Em momentos, era como
se cada um deles tivesse desaparecido em um espaço temporal separado do nosso por uma linha de floresta verde extravagante, como se nunca
tivessem estado ali. [...]. Senti-me profundamente triste, não apenas pela brutalidade do evento, mas porque tudo havia sido tão inconseqüente.
Antes de passar um dia inteiro aqui, já havíamos trazido mal a este lugar.

114 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
narrativa de autoria feminina, a temática do descobrimento na literatura dos Estados Unidos também
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA abriga variados pontos de vista, com discursos díspares.
A menção de Ilan Stavans (2001) de The crown of Columbus (1991), do casal Michael Dorris e
Louise Erdrich, é também exemplar nesse sentido. O romance é dividido em capítulos organizados pela
sequência do enfoque que cada um dá a uma das personagens protagonistas: Vivian Twostar e Roger
Williams – Vivian, professora de Antropologia, divorciada, com um filho envolvido com drogas e grávida
de Roger, professor de Literatura que pretende publicar, antes das festividades do quinto centenário
do descobrimento da América, um poema épico em homenagem a Colombo. Ela tem como objetivo
publicar um texto sobre o descobrimento, porém, não consegue começar o projeto. Assim, a narrativa
enfoca o interesse de cada um deles e acaba criando uma aventura policial, pois ela descobre uma
página inédita do Diário de Colombo que os leva a se envolverem com um sujeito que está de posse do
restante do original do Diário. Este homem sempre esteve em busca de um grande tesouro mencionado
no manuscrito, cuja localização dependia da página do Diário que estava em mãos de Vivian.
Deste modo, o poema de Roger retoma toda a trajetória lírica gloriosa dos séculos XVII e XVIII,
referente ao descobrimento, na América do Norte, e a aventura dela faz com que, finalmente, desvendem
o mistério do tesouro mencionado no original do Diário, ao revelar-se que Colombo fora imbuído da
tarefa de trazer algo especial ao Novo Mundo: nada menos que a coroa de espinhos que fora posta em
Jesus Cristo, quando de sua crucificação. A imagem de Colombo como o homem que carregou Cristo
– Cristopherens – através do Oceano, reiterada na primeira biografia do Almirante, escrita por seu filho
Fernando Colombo, concretiza-se nesta narrativa contemporânea.
Na literatura espanhola, a figura de Colombo tem servido como tema para a escrita de autoria
feminina com propósitos voltados ao interesse geral da temática neste contexto, ou seja, a exaltação
da empresa descobridora – com destaque sempre para o empreendedorismo dos Reis Católicos, a
força, a coragem e a dedicação dos marinheiros espanhóis envolvidos no projeto, especialmente os
irmãos Pinzón, e a ampliação dos horizontes humanos proporcionada por tal empresa. A temática do
descobrimento, neste universo, além da continuação da prática laudatória das ações do descobrimento,
tende fortemente para a linha tradicional do romance histórico em termos de estrutura. Embora se
percebam alguns aspectos de tendência contemporânea, mencionados por Celia Fernández Prieto
(2003), como o uso de relatos feitos em primeira pessoa e a subjetivação da história, os recursos aplicados
pela grande maioria dos romancistas espanhóis na tessitura das obras da temática se distanciam do
discurso paródico e carnavalizado empregado na grande maioria das obras da temática na literatura
hispano-americana e, em partes, também na norte-americana.
A obra de Luisa López Vergara – No serán las Indias (1988) –, por exemplo, reconstitui, com
abundância de detalhes, os sete anos de perambulação de Cristóvão Colombo pela Corte espanhola
até o momento da aceitação do seu projeto, englobando o período que vai de 1485 a 1492. Esta obra
pertence ao corpus de análise da tese As histórias da história: retratos literários de Cristóvão Colombo
(1992), de Heloisa Costa Milton, na qual se faz uma profunda análise do processo de exaltação presente
no romance. Este processo, segundo constata Milton, volta-se para três distintas entidades que

[...] alinham-se no discurso como monumentos. Pinzón, pela grandeza do caráter e da


atuação; a Espanha, pela ação heróica da Reconquista e por ter dado o aval à empresa

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América 115
ultramarina; e a Colombo, por ter perseguido tenazmente a realização do seu objetivo
como um legítimo enviado de Deus [...]. (1992, p. 108).

Mais recentemente, temos, neste universo literário, a obra de Sorkunde Francés Vidal, Isabel
reina de América (1999), na qual o processo de exaltação se dá, entre outros elementos, com a imagem
de uma personagem feminina nunca relacionada às aventuras de Colombo: a infanta Juana – filha mais
velha da rainha Isabel e do rei Fernando, conhecida na história pela alcunha de La Loca pelos distúrbios
psicológicos que apresenta após herdar o trono de Castela e Aragão, quando da morte de seus pais –

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina –


trono que será assumido pelo seu filho, Carlos V. No romance de Francés Vidal, é a infanta que se torna
a fonte inspiradora e encorajadora da aventura do descobrimento, e a amizade que se estabelece entre
a jovem e o marinheiro é uma forma de salvo-conduto para Colombo em meio aos campos de batalha
na tomada de Granada.
O processo de exaltação estende-se da rainha Isabel, retratada como alguém com clareza
de raciocínio e segurança nas decisões, à configuração da infanta Juana que, em todos os sentidos,
assemelha-se, na ficção de Francés Vidal, à sua mãe. É a infanta que ouve de Colombo, após uma
frustrada tentativa de entrevistar-se com a rainha, os seus planos de navegação via oeste, em um
encontro ocasional em que a infanta pede ao desconhecido, que havia encontrado por acaso, que lhe
contasse seus sonhos.
Um forte vínculo se estabelece entre o navegante e a infanta, que passam a compartilhar os
sonhos da empresa marítima daí em diante. As muitas dificuldades pelas quais o navegante teve de
passar foram, assim, de certa forma, amenizadas pelas palavras de conforto e crédito da jovem infanta
e, uma vez concluído o projeto com êxito, as promessas são compridas e a infanta ganha de presente
de Colombo um papagaio que fala seu nome. Este está em uma gaiola de bambus cujos talos, ao serem
abertos, estão cheios de esmeraldas – pedras verdes, da cor favorita da jovem.
A descrição da volta de Colombo de sua aventura da travessia ao Atlântico é exemplar na

Novos olhares sobre o passado da América


configuração mítica que a obra também lhe confere:

El cabello apenas esparcido por la suave brisa, multiplicaba los brillos y reflejos del sol,
que aureolaban su cabeza como si de un elegido de los dioses se tratara. La belleza de
la estampa caló en el corazón de la gente sencilla, en los espectadores del puerto, que
admiraban la fuerza de aquel hombre excepcional.22 (FRANCÉS VIDAL, 1999, p. 381).

Um processo semelhante ao observado por Milton (1992) quanto à dimensão da exaltação


presente na obra de Luisa Lopes Vergara (1988) dá-se também neste romance: erigem-se como
monumentos de exaltação as figuras de Isabel, a rainha; de Juana, a infanta – que, juntas, representam
a Espanha sensível e empreendedora; e de Colombo – como o audaz e intrépido marinheiro que ousou
levar adiante o sonho que compartilhou com a jovem filha dos Reis Católicos.
Já na literatura hispano-americana, temos as obras El ocaso del quinto sol (1978), de Adela
Irigoyen, e Colombo de Terrarrubra (1994), de Mary Cruz. Estas se alinham à tendência desmistificadora
das imagens heróicas de Colombo presente em todas as obras da temática no contexto de produção

22
Nossa tradução livre: O cabelo um pouco esparzido pela suave brisa multiplicava os brilhos e reflexos do sol, que aureolavam sua cabeça como
se tratasse de um dos leitos dos deuses. A beleza da figura incutiu-se no coração da gente simples, nos expectadores do porto, que admiravam a
força daquele homem excepcional.

116 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
hispano-americano. A obra de Irigoyen volta-se para as consequências das ações de Colombo e centra-
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA se na conquista do México. Já a narrativa de Cruz atém-se a uma revisão do período histórico no qual as
ações do Almirante são protagônicas.
Durante muito tempo, a chegada das esquadras européias na América, comandadas por
Colombo, foi retratada apenas sob a ótica masculina. Mais recentemente, escritoras de diversos países
também têm se inspirado na história da conquista do “Novo Mundo” para comporem suas narrativas.
Assim, a escritora cubana Mary Cruz descreve os preparativos, anseios, temores e expectativas das
viagens de Colombo e sua tripulação no romance Colombo de Terrarrubra (1994) por meio do narrador/
personagem Antón de Alamidos – figura histórica que integrou o grupo de marinheiros da primeira
viagem de Colombo e que, ao embrenhar-se nas selvas americanas, acabou se perdendo e, assim,
permaneceu por vários anos vivendo entre os nativos até conseguir regressar à Espanha.
Mary Cruz cria uma diegese na qual Cristóvão Colombo é concebido sob diferentes olhares,
passando de mero “estrangeiro aventureiro” até o auge de sua carreira, com o acúmulo de títulos e
glórias. A narrativa, todavia, não aborda apenas a ascensão de Colombo, nem sua imagem de homem
sábio e bondoso. O narrador, que se utiliza da visão e voz de Antón de Alamidos, deixa transparecer
seu descontentamento em relação a algumas atitudes do comandante, como os castigos impostos
aos índios em determinadas circunstâncias. Além disso, Alamidos narra a decadência do prestígio de
Colombo perante a sociedade espanhola e dos reis soberanos. Assim, a autora cria uma narrativa que,
ao fundir ficção e história, configura Cristóvão Colombo em sua essência humana, expondo toda sua
altivez e suas fraquezas.
O romance de Mary Cruz mostra que Colombo queria, na verdade, ao comandar as navegações
rumo ao Ocidente, era uma lista de honrarias e privilégios materiais. Um de seus desejos era ser
reconhecido como Almirante do Mar Oceano. Como testemunha das ações do Almirante, Antón
declara que “los ojos del Almirante proyectaban sobre las cosas lo que deseaba o suponía él, y si bien llegó
a saber lo enorme de su Descubrimiento, no calibró la inmensidad de sus errores, los cuales, no empeciente,
en nada minoran su hazaña”23 (CRUZ, 1999, p. 268). Destaca-se, nestas palavras da voz enunciadora, a
importância da perspectiva heterodiegética, que possibilita ao narrador analisar as ações de Colombo
com base naquilo que a personagem/narrador presenciou.
A obra de Mary Cruz – um romance histórico contemporânea de mediação pela estrutura e
recursos que apresenta – assemelha-se ao romance de Paula DiPerna, com a diferença de que, neste
último, há a presença de um foco narrativa feminino que, em uma perspectiva autodiegética, revela
como as motivações de Colombo e sua empresa descobridora afetaram a sua existência. Este é um
elemento que destacamos como especial na obra que compõe nosso corpus, uma vez que a inserção
deste foco narrativo no contexto do evento histórico pode ser bastante significativa.
No enfrentamento entre as imagens públicas e privadas das personagens históricas recriadas
pela ficção, os atos humanos ganham a sua plenitude e o leitor vê-se, assim, retratado nessa realidade
que fica aí plasmada. Os estudos da crítica feminista – desde suas primeiras manifestações – sempre

23Nossa tradução livre: […] os olhos do Almirante projetavam sobre as coisas o que desejava ou supunha ele, e se bem chegou a saber da dimensão
de seu Descobrimento, não calculou a imensidão de seus erros, os quais, não obstante, em nada diminuíram a sua façanha.

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América 117
estiveram atentos a essas possibilidades da literatura e buscam, sob diferentes meios e estratégias, um
espaço próprio que lhes garanta a inclusão, a representação e a valorização adequadas.
Esta também é a intenção que se percebe na escrita de autoria feminina sobre a temática
do descobrimento da América: um universo literário no qual se encontram conjugados romances
históricos tradicionais, segundo as características apontadas por Márquez Rodríguez (1991), novos
romances históricos, de acordo com as singularidades dessa modalidade registradas por Aínsa (1991)
e Menton (1993), até as obras que consideramos romances históricos de mediação (FLECK, 2007),

O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina –


nos quais se aliam algumas das estratégias desconstrucionistas dos novos romances históricos e das
metaficções historiográficas (HUTCHEON, 1991) com a retomada de alguns dos aspectos essenciais dos
romances históricos mais tradicionais como, por exemplo, a linearidade da narrativa, em detrimento das
anacronias, e a busca por uma linguagem mais fluída, menos erudita, com estruturas menos complexas
daquelas empregadas pelos novos romances históricos e as metaficções historiográficas que primam
pelo experimentalismo linguístico e formal.

Novos olhares sobre o passado da América

118 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA R E F E R Ê N C I A S
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120 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA

CAPÍTULO 9

Regionalismo literário: Heterogeneidade e História


Albertina Vicentini

ALCEU AMOROSO LIMA:


O SERTANISMO COMO ELEMENTO DIFERENCIADOR DO BRASILEIRISMO

Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde, 1981), quando define o regionalismo em 1923, define-o
pelo provincialismo em seqüência ao brasileirismo. Situa-o como ponto de chegada de um percurso
localista iniciado com o que ele chama de americanismo, transformado, posterior e sucessivamente, em
brasileirismo e depois regionalismo, em contato com a literatura transplantada da Europa para o país.
Diz ele, em sua monografia Afonso Arinos (1981, p. 89)
No correr de toda a nossa história literária foi o contato da literatura importada com esse
elemento local – cujo primeiro fruto surge com [...] canções e contos do povo – que provocou a
diferenciação nacional de nossa literatura.
Daí nasceram o americanismo, mais tarde o brasileirismo, e, afinal, o regionalismo, formas cada
vez mais acentuadas de espírito local.
Para ele, o localismo nasce do universal transplantado para o local, nas etapas de assimilação,
elaboração e expansão, que geram o amadurecimento da literatura e fazem com que ela retome, então,
o veio universal que a gerou (Idem, p. 93):

Estamos longe de julgar que uma literatura só valha pela originalidade local. Toda
literatura nacional é tanto maior quanto mais universal. Ao que se pode acrescentar que
será tanto menor quanto mais prematuramente ou levianamente universal. A verdade
está no momento e na necessidade de expansão.

Regionalismo literário: Heterogeneidade e História 121


Claro que o veio inicial da literatura transplantada, não espontânea (para ele, a espontânea é
a que nasce da necessidade orgânica de expressão de um povo) pesa na história literária. Em analogia
com a literatura romana (que ele usa) e com a hispano-americana (que ele paraleliza), nossa literatura
oscilaria até o ponto em que as duas tendências contraditórias – o local e a universal – se fundissem para
produzir os nossos grandes escritores. Falando da literatura romana, ele diz (Idem, p. 88):

Passava a literatura do geral para o particular. A assimilação do helenismo universal


ia provocar o surto fecundo e definitivo do localismo romano [...] A assimilação, a
elaboração, a frutificação e a expansão foram os quatro momentos capitais dessa nova
literatura [...] e entre o espírito latino e o espírito helênico oscila essa literatura que atingiu
o seu auge no período clássico por excelência, quando as duas tendências contraditórias
se fundiram para produzir Virgílio, Horácio, Tito Lívio.24

O traçado do percurso que, para Alceu Amoroso Lima, produz o regionalismo é o do movimento
endógeno, de afunilamento de perspectivas. De um sentimento geral, americano, a um particular, o
provincialismo, através de cinco grandes fases: americanismo, indianismo, brasileirismo, sertanismo e
regionalismo.
O americanismo não é atribuído necessariamente ao Brasil, mas à América, à diferença que
apresenta a produção colonizada mediante uma ação própria da natureza, da mentalidade ambiente,
frente à produção européia.
O indianismo já é, para ele, uma face mais pormenorizada desse sentimento, isto é, a selva é
continental, embora não brasileira, e leva mais à América que ao Brasil propriamente falando.25
Com o brasileirismo, a nação se recorta na literatura e busca se unificar. Nascido com o
Romantismo, recorta-se em cinco grandes formas, segundo os meios físicos diferentes, abrangendo
as diferentes faces da realidade nacional como tema: as cidades, as praias, os campos, a selva e a

Regionalismo literário: Heterogeneidade e História


roça (Idem: 98) mais a literatura do fato social – a literatura da escravidão, uma espécie particular de
brasileirismo.26 Mas, para ele, é o sertanismo o grande elemento de fato diferenciador do brasileirismo,
por três razões principais: primeiro, porque, de todos, é o que mais particulariza o que retrata, naquele
movimento endógeno; segundo, porque opõe o litoral ao sertão, isto é, indica o caminho através do
qual o desenvolvimento da terra foi mais eficaz ao país [“O sertão foi formado pelo movimento das
bandeiras, que fundaram arraiais onde as maiores riquezas foram encontradas; foi o sertão que iniciou, de
fato a exploração da terra; e foi ele que deslocou para dentro de si, durante muito tempo, todo o eixo do
mundo colonial” (Idem, p. 101)]; terceiro, porque cuidou não do homem singular, mas do homem médio,
isto é, representativo de uma ambiente particular.
Esses três fatores demonstram, segundo ele, que o sertanismo havia sido capaz de extrair
da terra e da gente um valor de representação épica, artificial ainda, porque foi mais teórico que

24Um argumento desse encontra seus pares na história literária. Para ficarmos com três exemplos, Oswald de Andrade não propôs outra atitude que
essa fusão literatura local e transplantada em seus manifestos antropofágicos; Guimarães Rosa representa essa fusão de literatura erudita fruto do
alto modernismo europeu, com o paradigma oral, local, brasileiro e sertanejo; e um crítico como Antônio Cândido defende nesse mesmo sentido a
formação da literatura brasileira – literatura transplantada como matriz universal imprescindível para o sistema particular nosso.
25Se atentarmos para o fato de que o indianismo não é uma corrente literária americana, mas transplantada da Europa (v. Nelson Werneck Sodré,
História da Literatura Brasileira), percebe-se o que Alceu Amoroso quer dizer. O indianismo é resquício do olhar do europeu sobre o continente, o
Novo Mundo, desde o Renascimento. Tanto é que, de uma forma ou de outra, ainda mantém o colonizador europeu sempre como temática de con-
traposição: é assim com o Caramuru, O Uruguai, Iracema ou Atala, René de Chateaubriand, ou O Último dos Moicanos de Cooper.
26As cidades suscitariam, segundo Alceu Amoroso, o brasileirismo urbano, sendo o primeiro em data desse gênero Memórias de um Sargento de
Milícias, de Manoel Antônio de Almeida, que frutificou em José de Alencar, Joaquim de Macedo, Aluísio de Azevedo, Machado de Assis, Lima Barreto,
entre outros, “de cunho acentuadamente brasileiro, sendo os costumes que retratam todos em geral urbanos e caracteristicamente locais” (p. 99); as
praias destacariam Xavier Marques, Batista Coelho; as selvas levaram ao indianismo; e dos campos proviria o sertanismo; das roças, o roceirismo, e
iniciaram-no as Comédias de Martins Pena, por volta de 1838.

122 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
espontâneo. No entanto, capaz de esboçar uma identidade nacional, mesmo que relativa ou dispersa
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA em várias realidades brasileiras, e de criar uma literatura distanciada dos moldes clássicos (Idem, p. 104),
o que significa dizer que ali nasceu uma alteridade, ou seja, um sistema literário de produção que tem a
ver com um espaço social isolado, que se está contrapondo ao conhecido.
Com o aparecimento de Inglês de Souza e O Cacaulista, de 1876, a corrente sertanista entra
numa segunda fase. Impregnado do meio amazônico, descrevendo cenas e tipos peculiares do extremo
Norte, Inglês de Souza é quem marca o início da orientação regionalista no sertanismo. Acentua-se, com
ele, o provincialismo – ainda o movimento endógeno – antes mais exterior ou apenas sentimental.
N’O Missionário, de 1888, já é debatido o “peso que o meio ambiente tem no espírito” do homem,
anunciando o naturalismo localista. O sertanismo aproxima-se mais da realidade, cuidando de maior
“verossimilhança na ação e nos tipos, mais objetividade nas narrativas, mais naturalidade na língua (embora
a simples reprodução do falar sertanejo) e uma subjetividade mais rica e mais profunda na criação”. (Idem:
108), uma subjetividade com a qual novos leitores poderiam se identificar, dando-se mais um passo
rumo a um novo horizonte de expectativas de leitura.
Com maior nitidez, o sertanismo passa a ser mais espontâneo de forma (apesar dos percalços),
até porque sua manifestação se tornava cada vez mais necessária à expressão provinciana na alvorada
da República.
O que Alceu Amoroso Lima afinal parece querer dizer é que o regionalismo é o ponto de
chegada do brasileirismo, o ponto redutor de uma dialética ambiental expansiva desse, alastrada pelos
diversos ambientes da realidade brasileira – as cidades, as praias, os campos, as roças -, a uma dialética
ambiental mais reduzida: cidade e sertão – talvez o momento frutificador daqueles quatro – assimilação,
elaboração, frutificação e expansão – que ele dispõe para o processo de formação da literatura nacional.
O que significa dizer ainda que, para ele, o regionalismo foi eficaz na construção da originalidade,
representação e expressão que demandou o nosso Modernismo, o qual também esteve à procura do
originário brasileiro. Mas a formulação dada pelo provincialismo regionalista sem dúvida redesenhou
o panorama da literatura brasileira à época (e ainda hoje desenha, de certa forma) que, a partir daí,
encaminhou, cada qual à sua maneira, a literatura brasileira rumo à sua maturidade ou autonomia: a
cidade, primeiro; o sertão, depois. A cidade, desde Machado de Assis; o sertão, desde Euclides da Cunha,
com Graciliano Ramos pelo meio e com Guimarães Rosa ao fim.
Essa resenha sobre Alceu Amoroso Lima parece entender o regionalismo como corrente
fundamental ao processamento da literatura brasileira de modo geral, encontrando para ele um devido
lugar e uma devida função na totalidade do sistema.
Ao estabelecer o jogo entre a literatura transplantada e a local, e desenhar o sertanismo como
uma entre as diferentes faces que tomou o brasileirismo de então, inclusive a literatura urbana, Alceu
de Amoroso Lima consegue parear aquele a esta, ambos como elemento de igual valor e função para
uma totalidade maior, a despeito da maior ou menor adequação formal ou temática que pudessem
apresentar.27

27Não se desdenha o fato de que, por exemplo, Machado de Assis, na literatura urbana (ou esta, de maneira geral), chegou primeiro ao localismo
universalizado, se é que se pode dizer assim. Isso se entende e se releva. Mas o que se busca conhecer também é a possível convivência da literatura
de Machado de Assis, com a de Afonso Arinos; ou a de Lima de Barreto, traçando uma etnografia da cidade ao lado da de Hugo de Carvalho Ramos
traçando uma etnografia do sertão.

Regionalismo literário: Heterogeneidade e História 123


De certa forma, a crítica do regionalismo tem sido muito contraditória. Ao mesmo tempo que
marginalizado como literatura menor, que corre por fora de uma literatura urbana mais expressiva,
mais bem realizada e adequada, tido como mal-entendido ou equívoco provinciano pós-romântico, o
regionalismo tem sido, por outro lado, rotulado de pré-modernista (se bem que esse sentido venha sendo
mais uma afirmação que uma constatação), como corrente orgânica fundamental ao amadurecimento
das letras nacionais.
Talvez nesse segundo sentido Alceu de Amoroso Lima se perfilasse. Não que ele tenha defendido
esse argumento em seu ensaio, que não haveria tempo, dado que ele é de 1923. Mas porque, se hoje
podemos situar o regionalismo, a partir de suas idéias, como ponto de transição que se inicia com o
americanismo da Colônia para o amadurecimento real de nossa literatura no momento moderno, ele,
de fato, apanha a face da corrente no sistema: uma entre as diferentes formas de localismo (não a forma
localista por excelência e no mesmo sentido de que a literatura urbana também seria): uma espécie
de ponto final de uma busca secular em que se assimilaram e elaboraram processos, temas e formas
locais transplantadas, na tentativa de chegar a uma literatura de fato peculiar28, de que o regionalismo,
enquanto tal faria parte como corrente integrada ao universal, ou nacional, como se queira.
Dessa forma, o localismo não se marginaliza, ao contrário, expande-se no sistema. E passa a
exprimir um conceito específico o suficiente para marcar diferenças sutis, como as existentes entre
sertanismo e regionalismo, por exemplo, mas também genérico o suficiente para aceitar semelhanças,
como as existentes entre a literatura do sertão e a da cidade, mesmo que essas semelhanças se traduzam
mais como equivalências. No caso da literatura do sertão e a literatura da cidade, o que parece existir é
um desencontro de espaços sociais, culturais e de interesse, pois o objeto de narração está diferenciado
nas duas literaturas. No entanto, graças à necessidade de criar uma literatura “peculiar”, os modernistas,

Regionalismo literário: Heterogeneidade e História


construíram sua resposta criadora apropriando-se daquilo que parecia ter raiz na cultura brasileira
mesma, donde nasce o efeito de um Brasil mais homogêneo na sua pluralidade cultural, mesmo se
sempre heterogêneo nas suas expressões.
Além disso, esse entendimento do processo de formação da literatura brasileira apresenta
muitos pontos de contato com o entendimento que da literatura hispanoamericana tem, por exemplo,
Angel Rama.

ANGEL RAMA E ALCEU DE AMOROSO LIMA: O LOCALISMO COMO


CONCEITO POSTO AO DE LITERATURA TRANSPLANTADA

O conceito de transculturação narrativa de Rama (1982) aponta para muitos dos conceitos de
Alceu de Amoroso Lima – o localismo, a literatura transplantada e a fusão, que ele chama de “plasticidad
cultural” para o conflito vanguardismo/regionalismo na América Espanhola.

28Tanto é que, depois desse surto, o que a literatura brasileira enxerga é a antropofagia oswaldiana, de que o Macunaíma de Mário de Andrade, ou
Cobra Norato de Raul Bopp, nesse sentido ataidiano, viriam a ser a grande transição.
Macunaíma é, de um lado, a nova visão (agora crítica) do localismo, da gente e da paisagem que o herói percorre de Norte a Sul, do sertão à cidade.
Ao mesmo tempo é a síntese (também crítica) de todas as idéias que, desde meados do século XIX, a intelectualidade vinha elaborando em termos
de raça, de história e de psicologia social, e que resultaria no brasileiro médio criticado de herói sem nenhum caráter, inclusive já permeado das
idéias contemporâneas suas, de Paulo Prado, por exemplo.
Ademais, a elaboração mítica e o primitivismo dessas duas obras as colocam na trajetória que Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa percorreria,
elegendo-se como a representante máxima da cultura brasileira, embora não mais regionalista, como quer a crítica, ou super-regional, como assina-
la Antônio Cândido, mas localista no mais puro sentido da palavra.

124 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
Este conceito de Rama foi refeito a partir do conceito antropológico de Fernando Ortiz que, em
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA 1940, questionava o termo aculturação, substituindo-o pelo de transculturação, que expressava melhor,
segundo ele,

as diferentes fases do processo transitivo de uma cultura a outra, e que não consiste
somente em adquirir uma cultura, que é o que a rigor indica a voz angloamericana
aculturação, mas que o processo implica também necessariamente a perda ou
desenraizamento de uma cultura precedente, quer dizer, uma parcial desaculturação.
Ademais, significa a conseqüente criação de novos fenômenos culturais que se podem
denominar neoculturados. (Ortiz, apud RAMA, 1982, p. 53)

Essa concepção das transformações culturais traduz visivelmente, diz Rama, um perspectivismo
latino-americano. Revela resistência em considerar a cultura própria, que recebe o impacto externo,
como uma entidade passiva, sem nenhuma classe de resposta criadora.
E, quando ele aplica a descrição da transculturação às transformações narrativas, corrige a
visão de Ortiz, incorporando àqueles três momentos culturais de parcial desaculturação, incorporação
e recomposição, os critérios de seletividade e invenção, que certificam

a energia e criatividade de uma comunidade cultural. Se esta é viva, cumprirá esta seletividade
sobre si mesma e sobre o aporte exterior, e, obrigatoriamente, efetuará invenções com a “ars
combinatória” adequada à autonomia do próprio sistema cultura. (RAMA, 1982, p.38)

Há, dessa forma, quatro operações básicas em todo o processo: perdas seleções, descobertas e
incorporações, que existem concomitantemente e se resolvem todas dentro da reestruturação geral do
sistema cultural, que é a função criadora mais alta que se cumpre dentro de um processo transculturante.
(Idem, p. 39).
As forças reitoras que movem as culturas nesse âmbito são, tanto em Rama quanto em
Alceu Amoroso Lima, a imposição colonizadora na América rumo à criatividade conseguida à custa
da representatividade localista, ou do que se percebia como notoriamente distinto das sociedades
colonizadoras: só que, no caso de Alceu Amoroso Lima, a contraposição é feita pela temática do meio
físico, a composição étnica heterogênea, a sociedade, o grau de desenvolvimento, etc.; no caso de
Rama, pela “plasticidade cultural” em busca de soluções artísticas.29
Até hoje, e muito por causa de atitudes redutoras como as que a crítica literária impõe ao
regionalismo, é comum tratá-lo como corrente nacionalista e localista, frente à universalista, de linha
mais urbana, o que pode ser desfeito se pensarmos como Rama e Alceu Amoroso que o localismo é
um conceito contraposto ao de literatura transplantada, portanto mais ampliado, atingindo inclusive a
literatura urbana, e não um conceito que se confronta com qualquer outro tipo de literatura ou que se

29Esse eixo histórico é o eixo através do qual tem caminhado grande parte das concepções inventivas e críticas de nossa cultura literária: a preferên-
cia pela perspectiva sócio-política de elaboração e análise, na maior parte desprovida da consciência de que a representatividade através da forma
é mais correta e alcança mais originalidade que a representatividade através dos temas e das diferenças exteriores, quase sempre mais primárias e
vulgares. Se esse pode ser um equívoco parcial de Alceu Amoroso, com certeza não é de Rama. No entanto, foi uma perspectiva consentida entre
os literatos latino-americanos de modo geral que lavoraram na missão de construir a literatura nacional. Tal foi programa (é) de vários de nossos
escritores desde a Colônia, e foi, essencialmente, uma perspectiva assumida pelo regionalismo. Hugo de Carvalho Ramos, por exemplo, escritor do
regionalismo goiano, chegou a propor uma associação de literatos, talvez por uma analogia com os movimentos cearenses de grupos, para construir
pela literatura a independência nacional.

Regionalismo literário: Heterogeneidade e História 125


reduz à oposição com a literatura de linha urbana. E esse conceito de localismo ainda pode ser melhor
precisado, principalmente se visto na perspectiva do crítico peruano Cornejo Polar e seu conceito de
literatura heterogênea.

CORNEJO POLAR, ANTÔNIO CÂNDIDO, ALFREDO BOSI, J. A. PASTA JR:


À PROCURA DE UMA CRÍTICA LITERÁRIA MAIS PERTINENTE

O processo analisado por Alceu de Amoroso Lima que descrevemos mantém um conceito
de história ainda evolucionista, e a transculturação de Rama de certa maneira enfatiza um ponto
conciliatório mais estético e formal. Já o conceito de literatura heterogênea do crítico peruano Cornejo
Polar parte do mesmo ponto – literatura transplantada – mas se detém, sobretudo, na perspectiva da
alteridade que certas literaturas (ou qualquer produção cultural), como a regionalista, mantêm. No
ensaio “El Indigenismo e las Literaturas Heterogêneas” (POLAR,1977), estuda a literatura indigenista latino-
americana a partir dos signos socioculturais que a compõem e percebe-a numa situação de alteridade
formulada a partir dos seguintes agentes: a sua produção efetiva por um escritor que, embora nativo,
se utiliza de processos de uma literatura transplantada pela colonização; o seu referente empírico
diferenciado em culturas contrapostas; e o seu consumo normalmente destinado a um público que
desconhece o referente sobre o qual lê.
Essa pluralidade de signos funda, para ele, uma produção textual no mínimo contraditória,
porque tem um elemento que “não coincide com a filiação dos outros e que cria na obra, necessariamente,
uma zona de ambigüidade e conflito”. (POLAR,1977, p.12). A essas literaturas ele as chama literaturas

Regionalismo literário: Heterogeneidade e História


heterogêneas e elas se estendem a qualquer tipo de literatura.
São heterogêneas, por exemplo, as obras cujos referentes empíricos não conseguem estruturar
uma forma estética que lhes é pertinente, por apontar níveis sociais, estéticos, desiguais aos de sua
produção; ou por se destinarem a um consumo de classe diferente; ou o são porque o escritor parte de
uma consciência de pólo hegemônico, incapaz de penetrar numa matéria-prima que lhe é estranha;
ou porque há fratura entre o mundo representado e o modo de apresentá-lo; ou há formas estéticas
avançadas ou anacrônicas, incoerentes com o sistema reproduzido; enfim, obras que apresentam pelo
menos duas estruturas díspares em convivência.
Esse encontro difícil, obrigado, caracteriza a literatura heterogênea como um tipo de literatura
reveladora, vigente na América Latina desde as crônicas do Novo Mundo, e cuja motivação principal é
apresentar veridicamente “a natureza de uma realidade insólita, nova, desconhecida; a de revelá-la por
certo perante um leitor que a ignora total ou parcialmente”. (Idem, p.13. trad. nossa).
Guardadas as proporções, porque a cultura indigenista latino-americana mostra ainda
problemas e complexidades de outra ordem, como o bilingüismo, por exemplo, esses conceitos,
tomados nesse ponto de alteridade, podem ser utilizados para trabalhar a literatura regionalista de modo
geral. “Os poetas do sertão vivem nas cidades”, já dizia Afrânio Peixoto em Sinhazinha, indiciando uma
consciência de escritor no sentido desse encontro difícil, obrigado, que cria, finalmente, deslocamento
e resistência.

126 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
Efetivamente, pode-se dizer que a literatura regionalista mantém um referente empírico que
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA contrapõe, mesmo que de forma mais amenizada, culturas diferenciadas, no caso a do campo (rural),
objeto do relato, e a da cidade, cultura hegemônica do escritor. Isso porque, de fato, ela não se tem
caracterizado como uma literatura do homem do campo, mas sobre ele.
As definições e as críticas que a história da literatura brasileira faz ao regionalismo – o apego
às descrição de usos e costumes rurais, ou o distanciamento do narrador e a artificialidade do relato,
entre outras – são normalmente definições e críticas dessa contraposição de culturas diferenciadas, que
permite falar da alteridade e do descompasso, desse encontro de distintos espaços sociais e culturais de
onde fala o escritor. E é justamente isso o que revela a literatura heterogênea segundo Cornejo Polar.
Freqüentemente, a crítica tem aliado, nesse sentido, a literatura regionalista ao registro e ao
documento30, característica que vem sendo assinalada como negativa, mas onde residem, de fato,
valores socioculturais. São valores ligados à memória, à tradição, à literatura oral, que guardam, além de
tudo, um objetivo estético. E incluem o leitor, que pode se identificar, através deles, com um outro ritmo
e outros conteúdos da língua. A referência documental gerou, na obra regionalista, especialmente no
regionalismo finissecular e do início do século 20, o gosto pela miscelânea, ou seja, sem nenhum tipo
de pejo literário, o escritor regionalista colocou em sua obra, lendas, trovas e superstições recolhidas,
História (em rodapés), introduções informativas, glossários etc. ao lado de seus contos criativos. Se isso
fez a relação referente de obra/referente empírico mais próxima neste tipo de literatura que nos outros,
relação que, ampliada, adjetivou o universo do relato como particular frente a outros considerados de
temática universal, justamente porque distanciados de um referente empírico tão comprovadamente
próximo da verdade como pretendeu ser esse regionalismo, isso também pode ser olhado com o
penhor da heterogeneidade de que fala Polar, especialmente quando avaliada a questão da literatura
canônica transplantada, a questão maior dos três críticos que focalizamos aqui.
Nesse sentido, a questão principal que encorpa a literatura regionalista parece ser a do escritor
com a consciência de pólo hegemônico, como disse Cornejo Polar. Antônio Cândido faz uma crítica que
confirma isso em seu ensaio “A Literatura e a Formação do Homem” (1972, p. 808), quando diz:

Nos livros regionalistas, o homem de posição mais elevada nunca tem sotaque,
não apresenta peculiaridades de pronúncia, não deforma as palavras [...] Quando,
ao contrário, marca o desvio da norma do homem rural pobre, o escritor dá ao nível
fônico um aspecto quase teratológico, que contamina todo o discurso e situa o emissor
como um ser à parte, um espetáculo pitoresco, como as árvores e os bichos, feito para
a contemplação do homem culto que se sente confirmado em sua superioridade. Em
tais casos, o regionalismo é uma falsa admissão do homem rural ao universo dos valores
éticos e estéticos.

E Alfredo Bosi, no prefácio ao livro de Carlos Guilherme Mota Ideologia da Cultura Brasileira
(1985), discutindo a diferenciação lingüística entre a cultura dita popular e a erudita, as relações que os
chamados códigos altos mantêm com a vida e a mente do povo, indica a postura do escritor perante a
literatura como o fundamento que gera os descompassos acima observados por Antônio Cândido. Diz
ele:

30Documental aqui aponta para a insistência da obra regionalista de referir-se ao “in loco” daquilo que narra, assim como a prática de recolher os
diferentes aforismos, superstições, usos e costumes etc. do universo que narra e registrá-los num sentido quase etnográfico. Essa prática tem estado
presente nos depoimentos dos autores e vem se exercendo de maneira às vezes insatisfatória, como é o caso de muitos regionalistas que não alcan-
çam uma expressão “transculturada”, ou nos regionalistas que a alcançam, como nos casos soberbos de G. Rosa ou Graciliano Ramos.

Regionalismo literário: Heterogeneidade e História 127


Cultura popular e código culto, escrito, são conjuntos altamente diferenciados cuja área
de intersecção é reduzida. [...] lidando com um repertório feito de objetos que, por sua
própria natureza, já ultrapassam o limiar que separa o pobre iletrado do homem de
letras, sua perspectiva não vai além da literatura. Esta vive a sua própria temporalidade
na qual assumem caráter muito específico os contatos com as formas supranacionais
(Apud BOSI, 1985, p. xvi).

Segundo J. A. Pasta Jr., no ensaio “Cordel, Intelectuais e o Divino Espírito Santo” (Apud BOSI,
1985), essa afirmação de A. Bosi tem a reflexão tão fundamental quanto rara sobre a limitação do
intelectual fechado numa “visão representativa da atividade artística, determinado pela fetichização
dos emblemas mais adequados do discurso representativo – o mundo das obras de arte” (p. 64). O
afastamento dessa linguagem surge não das origens do intelectual na matriz escrita, mas de uma
determinada concepção (transplantada) de literatura. Por exemplo, o esquema da representação
clássica que fetichiza o lugar do nascimento da noção de obra e recusa a obra de arte popular a partir
disso.
O que significa que a questão é tanto de linguagens diferenciadas quanto de modelos
literários eruditos e transplantados, pré-estabelecidos, a que o escritor se prende. Esse o impasse. E
só quando o escritor deixa a sua linguagem literária se ferir internamente por uma alteridade radical e
irreconciliável é que ele pode, através desse próprio dilaceramento, entrever a imagem do outro que o
condena à parcialidade e à arbitrariedade. A consciência de sua arbitrariedade, o auto-questionamento
é que levam o escritor a fazer com que sua literatura saia de si, que sejam retiradas as bases de uma
universalidade que se supunha constituída dentro dos cânones reguladores da mimese transplantada
– a homogeneidade, a distância estética, a comunicabilidade e a verossimilhança – que é destruída e
esfacelada (p. 65), trocada por um outro cânone, próprio ou específico (transculturado), constituído a

Regionalismo literário: Heterogeneidade e História


partir da realidade sociocultural de um país que foi colônia e mantém isso em sua história de modo
inevitável e dilacerado.
Nessa perspectiva, o regionalismo é uma literatura heterogênea e também o pode ser qualquer
outro tipo de literatura, inclusive a urbana, tanto quanto outra produção cultural qualquer. E aqui pode
ganhar positividade a obra regionalista “miscelânea”, conforme assinalamos atrás, como um tipo de
resistência a um cânone ou modelo transplantado através da formulação de um outro modelo, como
fez Euclides da Cunha n’ Os Sertões, dividindo o seu texto em três partes. De novo, como em Alceu
Amoroso Lima e Rama, esses conceitos estão ampliados e pareados a outros movimentos, categorias ou
manifestação da literatura nacional e afunilam recortes e dualidades.
Mas a produtividade do conceito de Cornejo Polar é também expansiva: ele não se esquece do
passado, ou melhor, não progride por etapas a um ponto ótimo. Ao contrário, faz o passado e a história
sempre presentes, jamais passados, pois nos desencontros existe, como mobilidade sociocultural, a
heterogeneização das culturas mesmas. Assim, cada manifestação mantém uma dialética entre a sua
formação sociocultural específica e a formação sociocultural maior da nação, sempre de olho na cultura
transplantada, que é a realidade última da colonização, tanto em termos de identidade quanto de
alteridade. Diz ele (2000, p. 30):

Recorrer à história permite, de imediato, explicar as razões da pluralidade literária


latino-americana, que em grande parte procede do desenvolvimento desigual de

128 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
nossas sociedades. Esta única comprovação, talvez óbvia mas necessária para não se
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA cair nos excessos de etnicismo, modifica substancialmente todo o campo do problema.
Efetivamente, a perspectiva histórica obriga a considerar, em que pese a pluralidade real
de nossas literaturas, que existe um nível integrador concreto: o que deriva da inserção
de todos os sistemas e subsistemas num só curso histórico global.

Se raciocinarmos nesses termos, o localismo, então, poderia ser conceituado especialmente


como um dado sociocultural e histórico fundamental ao traçado total (e não mais parcial) de qualquer
obra, dialetizando-se. Desde esse ponto de vista, a tarefa do pesquisador seria dar uma olhada nas
características de transformação e heterogeneização que contém cada obra de arte.
Sempre se percebeu que, na densidade das obras ditas regionalistas, para além das estereotipias
que pertenceriam, como vimos, mais aos modelos transplantados (especialmente os do realismo), seria
possível localizar diferentes regionalismos: o goiano, o mineiro, o do sul do país, o nordestino etc.,
embora pouco se tenha dito dessas diferenças.31
A aceitar o conceito de Cornejo Polar, tais diferenças manteriam bases de passado e história e
cada qual deveria ser avaliada na sua heterogeneidade conflitual nesse sentido, ao qual acrescentaríamos
os sentidos da transculturação e localismo de Rama e Alceu de Amoroso Lima, respectivamente. Com
elas é possível fazer crescer as categorias (localistas e em que se baseia a transculturação) que informam
o imaginário e o pensamento social brasileiros e os conflitos particulares que elas geraram (e ainda
geram), tanto na sua produção, quanto na sua forma ou consumo.
Tem-se tratado o regionalismo literário a partir do padrão de homogeneidade que ele traz e,
como bem já assinalaram Bosi, A. Cândido e Pasta Jr., esse padrão é o modelo estético transplantado,
presente no escritor no ato de sua produção. No entanto, um estudo dos conflitos internos manifestos
nas diferentes vozes, nos diferentes sujeitos sociais, torneios formais, interpolações de diferentes
universos etc. que essas obras apresentam (e que normalmente são apenas criticados como defeitos)
e que apontam para os conflitos socioculturais que o Brasil tem enfrentado na sua história é que
corroborariam de fato alguns aspectos tidos e havidos como suas principais características pela crítica
de modo geral, como é o caso da matéria pronta, do épico ou do documental.
Alguns deslocamentos de forma que a crítica às vezes aponta na literatura regionalista de
maneira ressentida pertencem a esse conflito sociocultural de alteridade que tem a ver com as formas
de poder sóciopolítico e socioeconômico.

31Por exemplo, a noção de sertão, que pertence ao imaginário identitário brasileiro e a alguns de seus regionalismos, não pode ser aplicada indiscri-
minadamente. Não pode, primeiro, ser aplicada ao sul do país, que tem pampas. No regionalismo goiano e mineiro também não equivale ao que é
significado no Nordeste – que tem como uma de suas principais coordenadas temáticas a seca e a miséria.
Conforme já dissemos em outro artigo nosso – “Regionalismo literário e os sentidos do sertão” (publicado na revista Sociedade e Cultura, UFG, 2007),
o sertão de Goiás e Minas Gerais não tem a seca rotineira e deflagradora nordestina. Sertões goiano e mineiro envolvem, para além do espaço que
distancia a imensidão de terras despovoadas do mundo civilizado da capital, algumas coordenadas históricas, quais sejam: a mineração (que não
está presente no Nordeste), o bandeirantismo, e o gado, coordenadas que os fazem assemelhar-se de um lado, tanto quanto aos sertões paulista e
matogrossense de outro. Mas com a diferença de que a mineração em Minas, por exemplo, liderou ou executou uma história de poder e influência
em âmbito nacional que a mineração do sertão goiano não empreendeu. Também, o bandeirante paulista foi elemento agente fora de São Paulo, e
o bandeirantismo em Minas e Goiás foi elemento paciente.
O sertão matogrossense manteve questões de fronteira, que não aconteceram em Goiás e Minas, pelo menos não em relação a países estrangeiros,
e impôs a temática do Pantanal e das águas como ênfase identitária, acercou-se de um imaginário de guerra que o aproximou do regionalismo
sulista e reelaborou as questões indígenas que Goiás e Minas também tiveram, mas de que se resguardaram em sua literatura. Esses são diferentes
referentes que geram diferentes (heterogêneas) alteridades, que são transpostas para a literatura regionalista e devem ser analisadas nos diferentes
sujeitos sociais e nas diferentes vozes que a obra regionalista manifesta, assim como o conflito interno que expõe.
Em segundo lugar, o sertão remonta ao passado da colonização e vem constituindo, portanto, um conceito, no mínimo, acumulativo, que repõe
sempre em cena uma alteridade que se transforma, mas não se erradica, com a hístória: extensão de terra que se contrapunha ao litoral, foi no rastro
do bandeirantismo que se fez o mundo rural povoado de fazendas e cidadezinhas, matas, rios, etc; a que se denominou sertão. E sertão hoje se
amplia para as cidades interioranas, deixando de se remontar somente à singularidade do mundo rural, mas mantendo-a também e criando novas
e sempre velhas alteridades.

Regionalismo literário: Heterogeneidade e História 129


Mas a fertilidade das idéias de Alceu Amoroso Lima, Rama, Bosi, Pasta Jr. e, finalmente,
Cornejo Polar aqui alinhavadas indica que há outro veio de preocupação comum capaz de dar conta
de uma crítica literária também pertinente além de mais justa sobre esse tipo de produção a que se
tem denominado literatura regionalista. Uma crítica que enxergue essa alteridade fundadora e as
formas que ela tem (e teve) de manifestar conflitos que, afinal, são uma representatividade de conflitos
socioculturais e políticos bem profundos e históricos.

Regionalismo literário: Heterogeneidade e História

130 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA R E F E R Ê N C I A S

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Regionalismo literário: Heterogeneidade e História 131


Regionalismo literário: Heterogeneidade e História

132 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA

CAPÍTULO 10

Cicatrizes na memória: A morte na obra de


Bartolomeu Campos de Queirós
Clarice Lottermann

Marca recorrente na obra ficcional de Bartolomeu Campos de Queirós, à exploração dos


recursos poéticos da linguagem aliam-se freqüentes incursões ao passado e à infância. Em entrevista
publicada no boletim da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, o escritor declara que a infância
está sempre presente porque já passou:

A minha infância foi uma doença crônica que vem sempre se repetindo. Assim, estou
sempre voltando à infância, às minhas perdas mais definitivas, às minhas grandes
indagações, aos meus maiores mistérios, às minhas frustrações, aos meus vazios, e
também às minhas alegrias. A realidade é que, para mim, a infância é muito boa, porque
ela já passou. (QUEIRÓS, 2003, p. 1)

Considerando essas perdas, o objetivo deste trabalho é, a partir de aspectos estudados pelo
antropólogo Roberto DaMatta sobre a morte no sistema relacional brasileiro – Morte: a morte nas
sociedades relacionais: reflexões sobre o caso brasileiro (1991) – , analisar como a morte permeia as
obras Indez(1995), Por parte de pai (1995) Ler, escrever e fazer conta de cabeça (2001) e Até passarinho
passa (2003)32 de Bartolomeu Campos de Queirós.
Ao estudar a morte nas sociedades relacionais, Roberto DaMatta detém-se particularmente no
caso brasileiro. De acordo com o antropólogo, a morte é “um problema filosófico e existencial moderno.
Mas não é assim nas sociedades tribais e tradicionais, em que o indivíduo não existe como entidade moral
dominante e o todo predomina sobre as partes. Aqui o problema não é bem a morte, mas os mortos.” (1991,
p. 143).

32
As obras ficcionais em análise serão referenciadas com as iniciais em maiúsculo, seguidas do número das páginas correspondentes ao trecho
citado.

Cicatrizes na memória: A morte na obra de Bartolomeu Campos de Queirós 133


Segundo DaMatta, há sistemas que se preocupam com a morte e outros que se preocupam
com o morto. Nos sistemas modernos, nas sociedades em que “o indivíduo – ou a parte – prevalece
socialmente sobre o todo, a morte é um assunto isolado e problema fundamental” (1991, p.143). Embora
sejam feitas muitas alusões à morte em seminários, palestras, livros e cursos (e abordar o assunto revele
uma atitude destemida e científica), falar sobre o morto é considerado algo patológico e mórbido.
Velórios profissionalizados, cemitérios que escamoteiam a realidade da morte, velórios encarados como
festas temáticas e ausência de comunhão no luto são marcas dessa sociedade individualizadora, na
qual a morte é escondida como algo vergonhoso.
A sociedade atual expulsou a morte para proteger a vida: todos os sinais de que houve
uma morte são escamoteados, uma vez que ela não deve ser percebida. A medicalização da morte –
circunscrita ao universo do hospital e dos médicos – e uma acentuada profissionalização dos serviços
que envolvem o funeral imperam: o doente morre sozinho no hospital, sem a proximidade da família,

Cicatrizes na memória: A morte na obra de Bartolomeu Campos de Queirós


sem poder manifestar sua dor.
Da mesma forma, José Carlos Rodrigues, na obra Tabu da morte, enfatiza que, nas sociedades
ocidentais industrializadas, assiste-se a um esvaziamento dos ritos funerários, tendo ocorrido uma
“verdadeira revolução das práticas funerárias e dos pensamentos e sentimentos a elas associados”
(1983, p. 185). Segundo ele,

a regra em nossa sociedade é a neutralização dos ritos funerários e a ocultação de tudo


que diga respeito à morte (...) porque nossa civilização nega a morte, não pode suportar
sua ritualização; e inversamente, por não possuir os necessários instrumentos rituais
para enfrentá-la, a civilização ocidental moderna é obrigada a banir a morte e a negá-la
por todos os meios. (RODRIGUES, 1983, p. 187)

Tal processo de supressão da morte não está ligado “às sensibilidades individuais das pessoas
mais ou menos diretamente atingidas por um óbito; ela responde, ao contrário, a uma coerção social
perfeitamente identificável, que obedece a princípios políticos inteiramente localizáveis, característicos
de nossa cultura.” (RODRIGUES, 1983, p. 187).
Para Roberto DaMatta, atitude inversa é encontrada nas sociedades tribais e tradicionais, nas
quais “o sujeito social não é o indivíduo, mas as relações entre indivíduos” (1991, p. 143). Nelas, observa-
se

uma grande elaboração relativamente ao mundo dos mortos, que são sistematicamente
invocados, chorados, relembrados, homenageados e usados em cerimônias pela
sociedade. Tudo isso junto de um silêncio profundo sobre a morte como um evento
isolado e um problema filosófico – como um instrumento definitivo de descontinuidade.
(DAMATTA, 1991, p. 147)

Jean Ziegler (1977), após estudar os rituais tanáticos em três sociedades africanas no Brasil
(Tambor de Choro do Maranhão, onde habitam os descendentes de fon, jejê e nagô; Casa dos Mortos
da Ilha de Itaparica, onde vivem os descendentes de nagô; e ritos fúnebres do pai-de-santo João da
Goméia, candomblé sincrético situado no subúrbio do Rio de Janeiro), compara-os ao tratamento
cultural da morte na sociedade capitalista.

134 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
A cosmogonia africana afirma que nada é mais importante que a salvaguarda, a
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA permanência, a expansão da vida. Todos os grandes sistemas de auto-interpretação da
diáspora, a cosmogonia nagô, mais que qualquer outra, não passam, no seu núcleo mais
íntimo, de uma justificativa elaborada, potente, complicada da sucessão de homens
obre [sic] a terra. A morte neste contexto significa possibilidade de vida oferecida
àqueles “que vêm após” (...) O homem vivo se constitui com a ajuda de homens mortos.
A manutenção da vida no universo, sua atualização no transe e sua expansão pelo amor
são as únicas, amplas e permanentes funções do homem. Nada de semelhante ocorre
nas sociedades ocidentais.
O advento da sociedade capitalista mercantil significa mais e além de uma etapa nova na sucessão
das formas de sociedade no tempo. Marca uma ruptura de civilização. Silenciando sobre o
acontecimento tanático, privando o homem da escolha do instante de sua morte, mascarando-
lhe a agonia e recusando status ao moribundo, o sistema capitalista destrói o homem no seu ser.
(...) esvaziando a morte de todo sentido existencial que ela veicula, o sistema capitalista priva a
existência humana de sua liberdade, de seu significado escatológico e portanto de sua qualidade
de destino. O homem é escondido de si mesmo. (ZIEGLER, 1977, p. 307).

Ziegler é contundente ao condenar a forma como a sociedade capitalista lida com a morte.
Segundo ele,

Morrer prende-se tanto à cultura quanto à natureza. Tais culturas vêm de longe. (...)
o morrer na sociedade africana revela a cultura de uma sociedade não reificada, que
coloca no centro de sua organização social e cosmogônica a procura do sentido da vida,
da morte dos homens. Morrer na sociedade mercantil capitalista ocidental inscreve-
se num campo cultural; este campo se constituiu no decurso do advento do modo
de produção capitalista; é contemporâneo das descobertas tecnológicas e científicas
modernas; é, finalmente, ele próprio herdeiro de uma tradição judaico-cristã. Este
campo cultural ocidental, que é constitutivo dos significados e representações ligados
à morte, tomou à Renascença, no momento da elaboração da linguagem humanista,
contornos que determinam hoje a nossa percepção. A linguagem humanista renunciou
à busca concreta do sentido. Interessa-se por um homem abstrato, a quem separa da
práxis concreta das sociedades. Ela constitui a cultura de legitimação e de ocultação por
excelência de uma sociedade desigual, que cresce à sua sombra. (ZIEGLER, 1977, p. 308).

Para José Carlos Rodrigues, tais atitudes diante da morte permitem antever certas tendências
futuras, já esboçadas no presente, apontando para uma configuração inteiramente nova da morte.

Essa representação inteiramente nova comporta um significado antropológico também


inteiramente novo; pela primeira vez, uma sociedade se dispõe a negar a morte em seus
sistemas de representação, simplesmente se recusando a representá-la, silenciando
sobre ela, fazendo como se a morte não existisse. (...) E o silêncio sobre a morte em
uma sociedade que tem a morte como sua realidade mais barulhenta é o paradoxo dos
paradoxos. (RODRIGUES, 1983, p. 115-16).

Considerando tais aspectos, é importante analisar como a morte é representada


simbolicamente através do discurso literário. Ora, voltar ao passado e lembrar os mortos é uma marca
recorrente nos narradores das obras de Bartolomeu Campos de Queirós supracitadas. Via de regra,
trata-se de narradores adultos que recuperam a infância e trazem à tona as lembranças de um tempo
marcado por perdas; narradores cuja memória deixa entrever cicatrizes de um passado que está longe
de corresponder ao mito de que a infância é um tempo de ingenuidade e felicidade. Também para o
autor, “(...) ela [a infância] passou mas continua dentro de mim, nas minhas lembranças, nas minhas
histórias. O bom é que as minhas perdas de hoje já são velhas conhecidas. Quando perco algo hoje, de
alguma forma, já tive essa experiência lá na infância.” (QUEIRÓS, 2003, p. 1, entrevista).

Cicatrizes na memória: A morte na obra de Bartolomeu Campos de Queirós 135


MORTE E MEMÓRIA

Na obra Ler, escrever e fazer conta de cabeça, o narrador relembra seu passado de menino
que aprende, na escola, a ler, escrever e fazer conta de cabeça, e, do pai, a copiar exemplos de gratidão.
O universo familiar simples do menino é marcado pela morte. Através de conversas, vem a saber de
um irmão natimorto. Intrigado, o menino mastigava sua dificuldade de entender como podia alguém
“nascer” morto: “Vai ver, ele nasceu, piscou e morreu ou, quem sabe, nasceu com um olho fechado e
outro aberto. Não dava para morrer o já nascido morto. (...). Mas o irmão nascido morto era mais difícil
de entender do que a Santíssima Trindade – três pessoas em uma só.” (LEFCC, p.29). Depois, a doença da
mãe traz no seu encalço a morte ameaçadora:

Entrei para a escola já sabendo ler, mais ou menos. A primeira palavra soletrada,
inteirinha, foi morfina. A dor de minha mãe aumentava sempre e muito. (...) Morfina me

Cicatrizes na memória: A morte na obra de Bartolomeu Campos de Queirós


trouxe o altar-mor, com o Cristo crucificado e deitado, morto de dor e chagas, coberto
com um cetim roxo e triste, até a cintura. Mas entre mor e morte faltava um pedacinho
que estava escrito na noite. Noite que me engolia para o nada. (LEFCC, p.35-6).

De morfina para altar-mor, a exposição do sofrimento e morte de Cristo prenunciam, na palavra,


a morte da mãe. Só faltava um pedacinho. Pedacinho escondido na noite que não tarda. Quando a morte
chega, o menino a vê, sobretudo, nas mãos imóveis da mãe. Numa poética descrição, a brutalidade da
morte é pungentemente marcada pela imobilidade:

Entrei de manso. Vi suas mãos afogadas sobre os panos da cama, como se não mais
tivessem comando. Estavam imóveis. Lembrei-me do ferro de brasa acariciando a roupa,
da colher de pau raspando o fundo do tacho, do regador fazendo chuva por sobre as
hortaliças (...). Insisti meu olhar sobre suas mãos e não vi as meias-luas nascendo em suas
unhas. (LEFCC, p.98).

Associada à morte, a imobilidade, o frio, a dor, o medo e o silêncio marcam os dias do menino:
“Senti como se estivesse nascendo naquela hora, em um mundo de tarde fria onde só chorar era possível.
Olhei no espelho do guarda-roupa, me procurando. Minha boca estava branca de dor e medo. O silêncio
interminável trazia um andar sereno de todos e gestos feitos só de desculpas.” (LEFCC, p.99). O vazio invade
todos os espaços e toma conta da casa:

A casa ficou maior e cheia de silêncio. Tudo parecia se esforçar para não acordar quem
deveria dormir por toda a vida. O vazio ocupou, tanto, o quarto de minha mãe que meu
pai dormia na beiradinha da cama, como se empurrado pelo novo morador. E o vazio
não nos deixava tocar em nada. Tudo (...) ficava no mesmo lugar por exigência do vazio.
No nada cabe tudo. (LEFCC, p.101).

Nessa obra, a morte é caracterizada pelo profundo vazio que invade todos os espaços: é tão
presente que pode ser sentida em todos os lugares anteriormente ocupados pela mãe. A morte provoca
imobilidade – “o vazio não nos deixava tocar em nada” – e é tão assustadoramente invasiva que tudo se
transforma em nada, em vazio: a casa silenciosa, os espaços ocupados, a inércia total.
Também na obra Por parte de pai, a morte perpassa toda a narrativa, através de lembranças
guardadas da infância do narrador. A morte abarca um universo que vai desde mortes de animais (galo,

136 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
porco, gatos), de conhecidos, de familiares (tios, mãe) até a sempre temida morte do avô e quase morte
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA da avó que fica, após um derrame, para sempre encerrada em seu mundo interior.
Quando a avó mata o galo Jeremias, justamente no temido dia de um eclipse que faria o mundo
acabar, o garoto, que tinha carinho pelo animal, engole sua tristeza: “Fingi dor de barriga, perdi a fome.
Meu coração não dava conta, sem chorar, de mastigar um amor com angu e quiabo.” (PPP, p.29-30). Quanto
à morte da mãe, fala sobre o assunto de forma melancólica, mas com a naturalidade de quem já aceitou
o fato: “Conceição se casou um dia com meu pai. Isso foi depois da morte de minha mãe. Ela morreu de uma
doença comprida e gemia no fundo do sonho da gente. Choveu muito no dia do enterro. Quando chove é
porque a alma foi aceita no céu.” (PPP, p.31).
A velhice dos avós e, conseqüentemente, o prenúncio da morte, pesa na vida do garoto que
nutre um sentimento especial pelo avô. Depois que a avó adoece e o relógio da sala deixa de funcionar,
o silêncio e a tristeza tomam conta da casa: “Meu coração bateu de saudade antecipada. Li medo no
olhar de meu avô enquanto minha avó, na cama, mornava a vida sem acusar perdas ou manifestar
ganhos.” (PPP, p.67). Um dia o avô o chama para uma conversa:

Pegou minha mão e, sem tirar os olhos do horizonte, me contou:


O tempo tem uma boca imensa. Com sua boca do tamanho da eternidade ele vai
devorando tudo, sem piedade. O tempo não tem pena. Mastiga rios, árvores, crepúsculos.
(...) Ele consome as histórias e saboreia os amores. Nada fica para depois do tempo. (...) E
nós, meu neto, marchamos em direção à boca do tempo.
Meu avô foi abaixando a cabeça e seus olhos tocaram em nossas mãos entrelaçadas. Eu
achei serem pingos de chuva as gotas rolando sobre meus dedos, mas a noite estava
clara, como tudo mais. (PPP, p.71-2).

A associação do tempo à morte – esse tempo voraz, que a tudo e a todos devora, sem piedade
– remete ao mito grego de Chronos, deus do tempo e devorador de seus filhos. “Não se resiste / Ao deus
atroz/ Que os próprios filhos/ Devora sempre”, diz Fernando Pessoa, na voz poética de Ricardo Reis. Esta
mesma mensagem está presente no discurso do avô ao chamar atenção do neto para a ação irreversível
do tempo: “Nada fica para depois do tempo. (...) E nós, meu neto, marchamos em direção à boca do
tempo.” Esta relação da morte com o tempo é extremamente significativa, pois

o tempo, que ameaça o Belo, representado na/pela natureza, através dos ciclos naturais
da vida presente nas flores, frutos e animais, revela sentimentos de inquietação e de
medo, pois a passagem do ser-no-mundo termina por revelar o não-ser, a nulidade, a
impotência, por extensão a própria morte. (SILVA, 2006, p. 2).

De forma sintomática, tanto a avó quanto o relógio deixam de “funcionar”, revelando sua
nulidade, sua impotência diante do tempo.
Na obra Até passarinho passa, a mesma reflexão sobre a voracidade da morte revela-se na
história de um menino que se afeiçoara a uma pequena ave e a encontra morta na varanda em que ela
costumava, livremente, passear:

Olhei para o chão e vi um pequeno embrulho de penas. Soltei meu coração que passou a
bater pelo corpo inteiro. Minhas pernas tremeram e por um instante tentei me convencer
de que tudo era um engano. Cheguei mais perto, com os olhos embaçados de perda e
susto.
Ali estava meu passarinho, coberto de penas e imóvel. Fiquei encolhido num canto da

Cicatrizes na memória: A morte na obra de Bartolomeu Campos de Queirós 137


varanda, agora mais fria e limpa. Não sabia quem estava mais morto. Aos poucos, um
vazio foi tomando conta do meu mundo. (...)
A água dos meus olhos trouxe para minha boca um gosto de mar. Meu corpo inteiro se
afogava numa tristeza exagerada. Não havia remédio capaz de remediar a sua partida,
solucei. (...) Chorei baixo como se fosse possível esquecer com as lágrimas a ausência de
um definitivo amor. (APP, p.24-6).

O menino enterra o passarinho com cuidados destinados àqueles a quem se ama:

Procurei tornar macio seu último ninho. Em volta da casa havia um canteiro de flores.
Escolhi uma sombra e cavei uma pequena cova.
Deitei no fundo o corpo do meu amigo, agora sem canto ou vôo. Cobri com terra, ternura
e desalento. (...).
Meu coração estava cheio de vazio. Quando a noite chegou fui para a cama
definitivamente só, sem ter a esperança como companheira. (...). E no escuro da primeira
noite, em crua solidão, só um pensamento cruel e claro me acompanhava: até passarinho

Cicatrizes na memória: A morte na obra de Bartolomeu Campos de Queirós


passa. (APP, p.28-9).

Através desta experiência, a morte da ave, o menino é inserido – “definitivamente só” – em um


mundo no qual o vazio e a solidão imperam, no qual a esperança não é mais companheira e as lágrimas
são incontroláveis: “A água dos meus olhos trouxe para minha boca um gosto de mar. Meu corpo
inteiro se afogava numa tristeza exagerada.”(APP, p.26). Neste caso, a morte da ave leva à consciência
da finitude da vida: até passarinho passa!, à perda da esperança e ao vazio. As observações/vivências
do menino geram um aprendizado que “deflagra e instaura um processo de conhecimento do próprio ser”
(SILVA, 2006, p. 2) pois, se até passarinho passa!, o que se pode esperar de diferente disso para os demais
seres vivos?
Embora a voz narrativa focalize um acontecimento de sua infância, trata-se, sem dúvida, da voz
de um narrador adulto que, através da memória, permite o acesso a

lembranças de um menino que se surpreende com as marcas da passagem do tempo,


que arrasta para sempre as suas ainda incertezas, deixando-lhe, através das experiências
vividas, outras marcas que formarão a memória do narrador, um narrador adulto, por
isso mais capaz e habilitado para discorrer sobre tudo que aprendeu a apreender na sua
vivência infantil, pois agora dominando a linguagem através do código verbal. (SILVA,
2006, p. 2).

O mesmo procedimento é usado pelos narradores das outras obras de Bartolomeu Campos
Queirós em análise: em todas, há um processo de recuperação de lembranças, de fatos que aconteceram
na infância e que se constituíram em matéria essencial para a vida e, por que não, da própria narrativa.
Segundo Marilena Chauí (Apud SILVA, 2006, p. 2), a memória “é uma evocação do passado. É a capacidade
humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva
aquilo que se foi e não retornará jamais. É nossa primeira e mais fundamental experiência do tempo.”
Buscando, através da memória, as experiências mais marcantes de um tempo que se foi,
essas vozes narrativas trazem à tona não apenas os acontecimentos: permitem o acesso a um universo
marcado por perdas e pela perda do próprio tempo.

138 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
A PRESENÇA DOS MORTOS
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
No caso específico da sociedade brasileira, Roberto DaMatta enfatiza que “fala-se muito mais
dos mortos do que da morte. E isso implica uma estranha contradição, porque falar dos mortos já é uma
forma sutil e disfarçada de negar a morte, fazendo prolongar a memória do morto e dando àquela pessoa
que foi viva uma forma de realidade.” (1991, p. 151). Em nossa sociedade, não apenas a memória do morto
é perpetuada pelas histórias que vão sendo contadas pela família, como seu retrato/pintura permanece
na parede/estante da sala de visitas. Ao contar a história do morto, este não se perde totalmente, pois é
mantido na memória familiar.
É o que se percebe na obra Ler, escrever e fazer conta de cabeça na qual o narrador menciona
a existência de uma fotografia de um padre, já morto, pendurada na parede do quarto:

O zumbido das abelhas me trazia o Padre Eustáquio. Ele morreu, diziam por causa de
uma mordida de carrapato e virou quase santo. Minha vó Lavínia sempre acendia velas
pedindo graça. Parecia só rir da graça de Deus. O Padre continuava sério, sem sorrir,
preso na moldura dourada, na parede do quarto. (LEFCC, p.17)

A mesma presença dos mortos em retratos na sala é mencionada na obra Indez: “Na sala
de visitas, sob a proteção do Coração de Jesus e de Maria balançavam outros redondos retratos de
antepassados: o avô de óculos e bengala, a bisavó entre flores, (...).” (I, p. 13). Mantendo as fotos nas
paredes, as famílias cultivam a memória dos seus mortos e mantém com eles laços de afetividade,
respeito e temor. Essa tradição remonta à época do Brasil Colônia, quando era comum que os mortos
fossem enterrados junto às casas, em capelas construídas como anexo, e se devotava a eles verdadeiro
culto doméstico, conforme revela Gilberto Freyre na obra Casa Grande e Senzala:

O costume de se enterrarem os mortos dentro de casa – na capela, que era uma puxada
da casa – é bem característico do espírito patriarcal de coesão de família. Os mortos
continuavam sob o mesmo teto que os vivos. Entre os santos e as flores devotas. Santos
e mortos eram afinal parte da família (...) Abaixo dos santos e acima dos vivos ficavam, na
hierarquia patriarcal, os mortos, governando e vigiando o mais possível a vida dos filhos,
netos e bisnetos. Em muita casa-grande conservavam-se seus retratos no santuário,
entre as imagens dos santos, com direito à mesma luz votiva de lamparina de azeite e
às mesmas flores devotas. Também se conservavam às vezes as tranças das senhoras, os
cachos dos meninos que morriam anjos. Um culto doméstico dos mortos que lembra o
dos antigos gregos e romanos. (FREYRE, 1983. p. lxviii-lxix)

Conforme apontado por Gilberto Freyre, guardar objetos que pertenceram ao morto também
é um tradicional recurso para garantir que sua memória será preservada pela família. Essa forma de
proceder é observada na obra Ler, escrever e fazer conta de cabeça: “Minha avó Lavínia não fazia outra
coisa a não ser rezar e passar os ternos de linho branco, de meu avô. (...) Um dia ele morreu e deixou o
olho de vidro vigiando a família.” (LEFCC, p. 18). Desta forma, através de um objeto, a família mantém
viva a imagem do avô que continua a vigiar. Tal fato é evidenciado, ainda, na obra Indez: o narrador
conta como o olho do avô era motivo de medo, mistério e recordação:

Dentro do guarda-roupa a mãe escondia uma bolsa de crocodilo, abotoada com um


grampo de prata. Dentro da bolsa, entre certidões, registros, retratos e santinhos, havia

Cicatrizes na memória: A morte na obra de Bartolomeu Campos de Queirós 139


o olho de vidro verde do avô morto bem antes de Antônio nascer.
Os meninos olhavam o olho. Possuídos pelo medo corriam até a cozinha. Deitavam-se
no colo da mãe, se embaraçavam nas pernas do pai. (...) Os meninos, que procuravam o
medo, de novo se amedrontavam. Voltavam correndo para a cozinha, encaroçadinhos
de pavor, buscando os braços quentes dos pais. O brincar dos filhos trazia o avô na
lembrança da mãe. O pai morto e a mãe viúva. Por vezes ela tentava aliviar o medo dos
meninos: (...), seu olho não vê, é apenas uma recordação... (...)
Mas não restou apenas o olho do avô espiando. Outras lembranças ficaram: a bengala de
cabo de prata, o chapéu preto, a gravata (...). (I, p. 31). (grifo nosso).

Já na obra Por parte de pai, o narrador menciona o antigo costume de guardar uma mecha
de cabelo do morto e de fotografá-lo no caixão: “Junto, um embrulho com cabelos do filho morto com
pouca idade. Ficou também o retrato do anjinho no caixão” (PPP, p.10). O costume de guardar uma
mecha do cabelo também faz lembrar a época do Brasil Colônia, período em que, segundo Gilberto
Freyre (1983, p. 437), se morressem até os seis/sete anos – idade em que ainda eram consideradas
anjinhos – as crianças eram muito pintadas de ruge, enfeitadas com cachos de cabelo louro e asas de

Cicatrizes na memória: A morte na obra de Bartolomeu Campos de Queirós


anjinho.
Por outro lado, externar o luto através de roupas escuras ou equivalentes é uma maneira de
evidenciar, para a comunidade, a marca da morte. Na obra Indez, o narrador conta como o menino
Antônio fica sabendo da morte da avó: “Quando voltaram, dias depois, Antônio sabia da morte e dos
pesares dos vivos. A mãe, com roupa escura, costurava tirinhas de pano preto nas mangas das camisas do
pai.” (I, p. 62). A indicação da morte na roupa também está registrada na obra Ler, escrever e fazer conta
de cabeça, na qual o menino é afastado de casa, após a morte da mãe: “Eu passaria alguns dias em casa
de meu avô (...). Não perguntei o “porquê”. Tudo era claro, sem dúvidas ou retorno. (...) Nada ficava para trás,
a não ser a minha lembrança.Quando voltei, dias depois, em minha camisa do uniforme, branca e de fustão,
estava uma tirinha de pano preto pregada na manga. Não perguntei nada.” (LEFCC, p. 99-100).
Assim, as explicações sobre o evento são substituídas pela marca física representada pela cor
do luto, pelo silêncio e tristeza: “A morte enterrava também a alegria, por muito tempo.” (I, p. 62).
Outra forma de manter viva a lembrança dos mortos ocorre através do contato desses com os
vivos. De acordo com o estudo de Roberto DaMatta, em se tratando da sociedade brasileira, “vivemos
num universo no qual os vivos têm relações permanentes com os mortos e para o qual as almas voltam
sistematicamente para pedir e ajudar, para dar lições de humildade cristã aos vivos, mostrando sua
assustadora realidade.” (1991, p. 157). Segundo o antropólogo,

muito antes de termos consciência de que a morte significa o não-ser e o nada, creio que
a maioria dos brasileiros toma consciência dos mortos de sua família, casa, vizinhança,
comunidade, nação e século. Essas ‘pessoas’ que na forma de espíritos, almas, espectros,
heróis e fantasmas aparecem aos seus conhecidos, colegas, compatriotas e confrades
para pedir alguma reza, missa, favor ou homenagem. (DAMATTA, 1991, p. 151).

Bartolomeu Campos de Queirós, na obra Por parte de pai, menciona histórias de mortos que
voltam para conversar com os vivos, caso de uma negra que fora escrava e que,

antes de morta, já tinha bicho no corpo de tanto ficar na cama, fraca, inválida, velha. (...)
Sua alma costumava passear no terreiro em noites de sextas-feiras, (...). Andava também
pelo corredor da casa, rangendo as tábuas do assoalho, implorando missa. Minha avó,
muito desembaraçada, conversava com ela. (PPP, p. 12-3).

140 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
A avó também conversava com o filho morto: “Maria não gostava do silêncio. O tempo inteiro
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA conversava, resmungava. Falava com a alma da Maria Turum ou com o filho mais novo falecido em
seu colo depois de seis tiros.”(PPP, p.36-7). DaMatta lembra que, nas relações que se estabelecem entre
mortos e vivos,

há obrigações diante dos mortos e de suas almas que são palpáveis: seus aniversários de
nascimento e de morte são lembrados, sua memória deve ser cultuada e há até mesmo
uma possibilidade curiosa, pois falar periodicamente com eles dá a quem o faz uma
certa sabedoria, poder e aquela invejável e tranqüila resignação diante ‘deste mundo’.
(1991, p. 152).

O narrador de Por parte de pai acentua como a imagem da avó reveste-se de poder pelo fato
de ela conversar com mortos – “(...) minha avó – capaz de travar conversa com almas do outro mundo”
(PPP, p. 15) – ao mesmo tempo em que chama atenção para determinadas crendices: a avó não permitia
que o avô dormisse de meias “para não chamar a morte” (PPP, p. 16)
Da mesma forma que Jean Ziegler acentua o contínuo relacionamento entre mortos e vivos em
sociedades africanas no Brasil, Roberto DaMatta (1991, p. 161-62) pontua que

O outro mundo é (...) um local de síntese, um plano onde tudo pode se encontrar e
fazer sentido. Assim, o outro mundo – o mundo dos mortos, fantasmas, espíritos,
espectros, almas, santos, anjos e demônios – é também uma realidade social marcada
por esperanças, desejos e vontades que aqui ainda não puderam se realizar pessoal ou
coletivamente.

Percebe-se, portanto, que, na obra de Bartolomeu Campos Queirós, as relações entre mortos e
vivos extrapolam a esfera temporal e as limitações de uma sociedade marcada pela negação da morte
e pela desconsideração de rituais e crenças relativas ao mundo dos mortos.
A partir dos elementos destacados é possível, portanto, cbservar como a obra de Bartolomeu
Campos Queirós evidencia o culto aos mortos, típico das sociedades tradicionais de que fala Roberto da
DaMatta. Embora os textos analisados tenham sido publicados entre 1994 e 2003, numa sociedade que
já evidencia a neutralização dos ritos funerários e na qual manifestações de dor e luto são consideradas
ultrapassadas ou pouco convenientes, revelam um universo ainda fortemente marcado pela tradição
no que diz respeito às atitudes frente à morte. Nas obras de Bartolomeu Campos de Queiros, a presença
dos mortos revela uma constante evocação do passado, e as cicatrizes são marcas indeléveis.

Cicatrizes na memória: A morte na obra de Bartolomeu Campos de Queirós 141


R E F E R Ê N C I A S

DAMATTA, R. Morte: a morte nas sociedades relacionais: reflexões a partir do caso


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142 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
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Cicatrizes na memória: A morte na obra de Bartolomeu Campos de Queirós 143


Cicatrizes na memória: A morte na obra de Bartolomeu Campos de Queirós

144 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO

PARTE III
CAPÍTULO 11

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva


Antonio Donizeti da Cruz

“A arte está em minha alma como pássaro vibrando tão quase sempre cantando.”
(Lília A. Pereira da Silva)

Lília A. Pereira da Silva é escritora, poeta, pintora, desenhista, musicista e ilustradora de livros.
Tem publicado 103 livros nas áreas de Literatura: poesia, romance, literatura infantil, Artes plásticas
(pintura, desenho), Didáticos de Direito e de Psicologia. Lília nasceu em Itapira (SP). Reside em
Itapira, SP. Foi professora de pintura e de piano, tendo participado de concertos. Cursou Secretariado,
Jornalismo, Direito e Psicologia. Foi traduzida duas vezes em Paris, em Roma e em Barcelona. A poeta
Lília tem poesias versadas em dezenas de outros países. Possui vasta correspondência internacional.
Foi a primeira oradora feminina no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em
1971. Representou o Brasil em Literatura, em Toluca, México (1972), e em Artes Plásticas, em Santiago
no Chile (1974). Pertence a inúmeras antologias no Brasil e no exterior e é detentora de incontáveis
prêmios artísticos, inclusive no México (D.F.), em Battipaglia e Roma (Itália, Paris e inúmeros nacionais).
Instituiu um prêmio anual, desde 1995, de Poesia e Desenho, com apoio da Prefeitura Municipal, Câmara
Municipal de Esportes, Cultura e Turismo de Itapira, SP.
Alguns dos títulos publicados pela Autora: 33 anos de Poesia - 2 vol. (1991), Diário na Suíça
(2005); Chuva de gatos verdes (2004); Europeanas (1997); Saia de cigana entre galáxias (2001), Desenho e
Pintura (2002), Carnaval Brasil (1996), Mínimos Conceitos (poesias) e Contos Abstratos (1994), entre outros
livros que abrangem a área da poesia, romance, histórias infantis, direito, teatro, psicologia, etc. Lília tem

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva 145


recebido crítica favorável à sua obra de poetas, críticos, artistas plásticos, brasileiros e internacionais.
Sobre a Poeta-artista, Cecília Meireles afirma: “Lília – a de olhos guardados nas rosas...” (MEIRELES apud
SILVA, 1991).
Ilustradora de livros nacionais e estrangeiros, Lília A. Pereira da Silva é também autora de 500
Poesias sem Fronteiras, totalizando cinco volumes de traduções de cinqüenta países. Em 1998 publicou
o livro intitulado The Angles’s Surprise, com suas poesias versadas em oito línguas, tais como inglês,
francês, espanhol, italiano, japonês, latim, norueguês e alemão.
Desenhista e pintora, a artista Lília, poeta brasileira, latinoamericana, tem realizado quase 300
mostras. Recebeu um grande número de prêmios brasileiros e estrangeiros: Battipaglia, Itália; México,
D.F.; Roma; Paris; entre outros. Tem participado também de inúmeras antologias no Brasil e exterior.
Pertence a várias Associações e Academias: “União Brasileira de Escritores” (UBE – SP), “Amici Linguarum”
(Alemanha), “Societé Académique dês Arts Libéraux” (Paris), e outras. Foi professora de pintura e piano,
tendo participado de concertos. Em relação às artes plásticas, suas obras encontram-se em museus
brasileiros e estrangeiros (U.S.A, México, Holanda, França, Itália, Mônaco, Chile.) Desenvolve uma técnica
que vai desde o acrílico, esmalte, óleo, purpurina, colagem, tela, alumínio, papéis diversos, aquarela, ao
guache (entre outros materiais). Suas obras vão do figurativo ao abstracionismo, apresentando também
ousadas técnicas expressionistas e surrealistas, com uma obra que revela manifestações e dramas
humanos.

LÍLIA A. PEREIRA DA SILVA: POESIA, LIRISMO E IMAGINAÇÃO POÉTICA

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva


Conforme Jean Cohen, a poesia é “uma exaltação do mundo, uma celebração das coisas,
devolvidas pela consciência totalizante ao seu poder emocional e imaginário” (1987, p. 250-251). Para o
autor, a poesia é uma segunda potência da linguagem. Ela tem um poder de magia e de encantamento
cujos segredos a poética tem por objetivo desvendar. Definida como um sistema de desvios, a poesia
aparece como pura negatividade, (des)construção da própria estrutura da linguagem. A poesia é
uma linguagem sem negação, pois ela não tem um contrário de si mesma. O poeta tem por objetivo
construir um mundo despacializado e destemporalizado, onde tudo será totalidade acabada. A poesia
só conhece a necessidade e é por isso que ela é a imagem verbal da eternidade. A poesia, por meio da
arte, produz o “efeito do sonho”, onde cada ser e cada coisa, liberta da sua negação, é entregue à sua
própria identidade patética (COHEN, 1987, p. 249).
Cohen observa ainda que, a lírica é autêntica fenomenologia, isto é, na e pela figuralidade
poética é (des)vendado o sentido antropológico do universo habitado pelo homem, pois o mundo
poético é o “mundo humano e a poesia é o discurso que o descreve na verdade [...] graças ao uso da
linguagem patética, permite-nos – não pensar esse mundo, mas vê-lo e vivê-lo, de algum modo vê-lo viver”
(1987, p. 157).
Paul Valéry, em Variedades, afirma que a atividade poética e a atividade reflexiva são
inseparáveis. Só há poesia por escolha de palavras com uma harmonia buscada, sensível. A arte busca
a racionalidade, mas com sensibilidade. A poesia “forma-se ou comunica-se no abandono mais puro ou
na espera mais profunda” (VALÉRY, 1991, p. 184). O autor ressalta que o verdadeiro objeto de estudo da

146 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


poesia centraliza-se no ser e não nos ambientes. O poeta, sem saber, movimenta-se em uma ordem
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO de relações e de transformações possíveis, na qual ele só percebe e busca os efeitos particulares e
momentâneos, que são relevantes no estado de sua operação interior.
Segundo Valéry, o poeta é um homem que a partir de um incidente, sofre uma transformação
interior, oculta. Ao afastar-se de seu estado normal de disponibilidade geral, torna-se um sistema vivo,
um agente, produtor de verso. O poema é uma espécie de máquina de produzir o estado poético
mediante as palavras. Já a arte poética é talvez a que coordena o maior número de partes e de fatores
independentes, como o som, o sentido, o real e o imaginário, a sintaxe, a lógica e também a dupla
invenção do conteúdo e da forma. Mas é da linguagem comum que se deve tirar uma “Voz pura”, ideal,
capaz de romper a esfera instantânea do universo poético, uma idéia de algum Eu maravilhosamente
superior” (VALÉRY, 1991, p. 218).
O poeta – como diz José Lezama Lima – por ser o “guardião da substância do inexistente como
posibiliter” edifica uma poesia que é instante e descontinuidade (1996, p. 190). Na acepção de Lima, o
poeta é o guardião das três grandes eficácias ou temeridades concebidas pelo homem: 1- a conversão
do inorgânico em vivente, da substância em espírito, pela penetração do alento do oficiante, ato nascente
de transubstancialização, superação do ato nascente aristotélico em puro Nascimento. 2- O inexistente
hipostasiado em substância. 3- A exigência total ganha pela superabundância na ressurreição (LIMA, 1996,
p. 190). Tal plenitude frente ao “mundo da ressurreição” adquire domínios vastos, ou seja, o poeta, “ser
causal para a ressurreição” faz da poesia uma potência pelo fato de o poema apresentar “o testemunho
ou a imagem desse ser causal para a ressurreição, verificável quando o potens da poesia, a possibilidade de
sua criação na finitude, atua sobre o contínuo das eras imaginárias” (LIMA, 1996, p. 221. Grifo do autor ).
Em meio à crescente “crise contemporânea da linguagem”, o escritor Italo Calvino, em Seis
propostas para o próximo milênio (2000), identifica as seis qualidades que só a literatura tem o poder de
salvar: leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência, virtudes estas que balizam
não apenas as atividades dos escritores em geral, mas também os gestos precisos da existência humana.
Calvino, ao se referir à palestra que ouvira, na Itália, em 1963, retoma o pensamento de Giorgio
de Santillana, sobre a conferência que esse autor ministrara e (re)lembra as informações sobre a
precisão dos antigos egípcios ao observar os fenômenos celestes. Para eles, a precisão “era simbolizada
por uma pluma que servia de peso num dos pratos da balança em que se pesavam as almas. Essa pluma
levíssima tenha o nome de Maat, deusa da balança” (CALVINO, 2000, p. 71). Tal hieróglifo indicava ainda
a unidade de comprimento e também o tom fundamental da flauta. Transpondo essa idéia para a
contemporaneidade, Calvino salienta que as três coisas essenciais em relação ao tema da exatidão na
literatura são: a) um projeto de obra muito bem definida e calculada; b) a evocação de imagens visuais
claras, incisivas e memoráveis; c) e uma linguagem precisa no tocante ao “léxico e sua capacidade de
traduzir as nuanças do pensamento e imaginação”. (CALVINO, 2000, p. 71-72)
Esses fatores fundamentais, têm, na palavra a sua configuração máxima, pois mediante a
imaginação poética e pensamento, os “o artista da palavra”, através das escolhas formais na composição
literária, faz com que a obra literária seja “uma dessas mínimas porções nas quais o existente se cristaliza
numa forma, adquire um sentido, que não é nem fixo, nem definido, nem enrijecido numa imobilidade
mineral, mas tão vivo quanto um organismo” (CALVINO, 2000, p. 84). Por essa razão, a poesia é “filha do

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva 147


acaso”, mas também “a grande inimiga do acaso”, mesmo que este venha “em última instância ”ganhar
“a partida: ‘Un coup de dés jamais n’abolira le hasard’” (MALLARMÉ apud CALVINO, 2000, p. 84. Grifo do
autor), afirma Calvino. Nessa perspectiva, a frase de Mallarmé e as observações precisas de Calvino em
relação à poesia convergem para o universo da linguagem capaz de traduzir as nuanças do pensamento
e imaginação, sem esquecer o aspecto lúdico da linguagem, pois a poesia é capaz de instaurar uma
espécie de jogo, em que o poeta e o leitor surgem como criadores. O primeiro é capaz de decifrar
a Natureza e dar forma viva à linguagem. O segundo interpreta o momento de criação do poeta e
completa o “circuito da poesia”.
Palavra poética e imaginação estão interligadas na lírica de Lília A. Pereira da Silva. Através da
palavra e da leitura do poema ocorre o “circuito” da poesia.
No poema “Retrato” – de Lília A. Pereira da Silva –, a intensificação do amor à poesia e as imagens
da estrela, floresta, ilha, flores, palhaços, trazem um encantamento lírico no enunciado do eu lírico:

RETRATO

Vivo ilha na floresta,

cercada de gnomos, bruxas,

e palhaços.

O caminho é só meu. A fome é minha,

as flores exalam seiva do terreno venenoso.

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva


Mas

uma estrela cadente

nunca deixou

de iluminar-me as mãos

nas Poesias. (Desenho de Lília A. Pereira da Silva, da obra


(SILVA, 2004, p. 51) Desenhos para Pedrinho, 2001b)

Percebe-se que a poesia liliana reside na busca memorável e densa das palavras e na
concretização de um fazer poético enquanto “felicidade da expressão verbal”, que no dizer de Calvino,
efetivar-se mediante “uma fulguração repentina”, em alguns casos, mas na maioria das vezes, tal processo
implica sempre em “uma paciente procura do mot juste, da frase em que todos os elementos são insubstituíveis,
do encontro de sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado” (CALVINO, 2000, p.
61. Grifos do autor). Dessa forma, o fazer poético liliano está embasado, essencialmente, na busca da
palavra exata para concretizar a comunicabilidade lírica.
Na obra de Lília A. Pereira da Silva, as formas do imaginário não são simples temas. Elas
ocorrem entrelaçadas quer às obras literárias quer às pictóricas no universo liliano, que registra imagens
direcionadas a um cuidadoso processo de escritura e elaboração “poético-pictórica” alicerçados na
imaginação poética, tal como no poema sintético:

148 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


RAZÃO MAIOR
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO
Mais que a vida,
o mistério da Poesia.
(SILVA, 2001a, p. 105)

A construção poética e o projeto estético liliano residem nos procedimentos e nas formas
escolhidas, nos ritmos, no enxugamento dos textos, “nas pinceladas poéticas” de palavras, cores e
formas. Seus poemas registram o teor de modernidade e contemporaneidade. Na poesia de Lília Silva
verifica-se a preocupação do eu poético em relação à elaboração precisa da linguagem, registrada na
maneira de interpretar o mundo e as coisas.
No poema “Serva da Poesia”, as indagações da linguagem e os questionamentos do eu lírico
direcionam o poema para um sentido de busca da expressão poética e de comprometimento com a
poesia:
SERVA DA POESIA

De quem é o palhaço sobre a mesa

e o rei que na lonjura me seduz?

Arredem esta máscara em meu quarto:

no quotidiano quero ser sem ela.

Por que me procuram os maltrapilhos

inatos do saber e da bondade,

se o que procuro é ser como queria

curtindo a solidão, mais fiel serva,

à fonte dos versos que fui eleita?


(Ilustração em xilogravura de Lília A. Pereira
(SILVA, Chuva de gatos verdes, 2004, p. 83 da Silva, da obra Serenata do Abismo, 1963)

Do ofício do verso à procura constate da poesia, o eu lírico afirma “curtir a solidão”, que se
presentifica na maneira do poeta sentir o mundo na entrega completa do ato criador, enquanto
exercício e comprometimento perante a vida e a arte, mediante a efetivação de um pensamento capaz
de (re)inventar universos imaginários.
A forma como o sujeito da enunciação se projeta, sem máscaras, faz do poeta um apaixonado
pela linguagem ao compartilhar a palavra com o interlocutor, ou seja, mediante a palavra e
encantamento da linguagem, a poesia liliana torna-se expressão máxima de uma constante mediação
fraterna, centralizada no diálogo e comunhão.
“Chão Dividido” apresenta-se como uma poesia participativa, em que o eu lírico feminino,
busca dividir suas alegrias, seus momentos mágicos, quer na “alegria de viver” quer nos sentimentos de
solidão, nas cintilações das estrelas, na formas de lírios ou abismos, mas, acima de tudo, enquanto “sinal
de dividir”:

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva 149


CHÃO DIVIDIDO

Dentro de minhas paredes,

sinal de dividir.

Em meu traje de freira,

sinal de dividir.

No vestido de palhaça,

sinal de dividir.

Nos andrajos de mendiga,

meu sinal de dividir.

Em meu gesto de ladra,

sinal de dividir.

Em meu casaco de fera,

sinal de dividir.

Na fantasia de mãe,

meu sinal de dividir.

Na solidão, na estrela,

no lírio do meu passado,

no abismo de mornas noites,

no vento lambendo estigmas

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva


na coroa de minha fronte,

o sinal de dividir!...

Minha prisão: só a minha,

sinal-sempre: dividir!

Os pulsos, se dou a faunos,

e juro fidelidade,

prometo, se há silêncio,
prometo, se há palavra,

prometo ao corpo e ao espírito,

prometo a mim dividir-me.

(SILVA, Altar das cicatrizes, 1966)

São versos que mostram o poder da palavra poética e a força da linguagem na confluência
participativa do sujeito lírico/leitor, com suas nuanças frente aos sinais de partilha e comunicabilidade
lírica que a poesia é capaz de proporcionar. O eu lírico feminino, ao vivenciar a condição de solidão,
faz do “chão dividido” – metáfora de vida – um espaço aberto de partilha para com o outro, sempre
direcionando o sentido da vida ao “sinal de dividir”, quer seja com seus trajes de freira, de palhaça, nos
andrajos de mendiga, ou “na fantasia de mãe”. Nos espaços mais aconchegantes, íntimos, de vivências

150 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


solitárias, há os momentos de uma participação efetiva do eu lírico no “sinal-sempre” de dividir e na
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO entrega de “corpo e espírito” à fidelidade e promessas da palavra e do silêncio.
A poesia liliana aponta para a experiência cotidiana e a transcende mediante a imagem poética,
que se reporta a uma dimensão maior, despertando no leitor um sentimento de plenitude e fascinação
perante as palavras. Assim, a poesia é uma forma de auto-revelação, que permite um constante “recriar-
se e recriar-nos”, pois conforme Octavio Paz, ela “é um tecido de conotações, feita de ecos, reflexos e
correspondências entre som e sentido” (1991, p. 151). Esta afirmativa do autor pode ser constatada no
poema:
PASSAGEM

Sol de estanho na cama

meu cavalo de sombra.

Estrelas de pergaminho

e reluzente carinho

na minha pele tão só.

Sol de estanho na cama

e meu cavalo de sombra.

Ao longe, flauta entornada,

ébrios pandeiros ciganos

em pátios só muçulmanos

em Alicante e Granada.

Sol de estanho na cama

e meu cavalo de sombra.

Eu, de passagem,

passando.

Só não passa a poesia

– porto de muitas viagens,


gosto de estrelas feridas.

27.07.88

Caminho para Valença

(SILVA, 1997a, p. 32)

Os versos realçam a temática da viagem, que remete ao sentido de introspecção, de


subjetividade e busca de si mesmo. Na esfera vital, de tantas travessias, o eu se desdobra verso a verso,
num esforço de autocompreensão realizando uma viagem que se processa na busca de si mesmo e na
busca do outro. Viajar por mundos imaginários é uma maneira de amenizar “as paisagens do mundo”
nem sempre belas, nem sempre harmoniosas. A poesia é definida como “porto de muitas viagens”. Da
imaginação do poeta surge uma linguagem metafórica, lúdica, como nos versos “Sol de estanho na

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva 151


cama / e meu cavalo de sombra. / Estrelas de pergaminho / e reluzente carinho / na minha pele tão só”. Na
passagem fica evidência a solidão vivenciada pelo eu lírico. Já o poema – sinal de “quase-permanência”
num mundo transitório – acaba por ser expressão da consciência de um sujeito que faz da imaginação
uma viagem inusitada através da linguagem. O poeta se volta à experiência poética no afã de atingir o
equilíbrio e a contenção da linguagem, pois na procura mais essencial da palavra para transmitir uma
emoção, ele nomeia as coisas criando uma nova realidade.
“Retrato plural”, o eu lírico realça a constatação de que as cidades são parecidas, quer no espaço
urbano, na geografia, no comportamento das pessoas, na observação atenta das coisas e nas imagens
reiterativas, com versos repletos de lirismo:

RETRATO PLURAL

Em todas as cidades do mundo,

sofrimento é maior quando não se perdeu

coração em ninguém.

Em todas cidades do mundo,

há roupas estendidas nas paredes

e nudez dentro

das vidraças.

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva


Em toda cidade do mundo,

em algum tempo,

manhãs já não estão cansadas

da procissão de gestos inacabados.

Em todas cidades do mundo há espaços, muros

e sapatos abandonados nas ruas,

tirando retratos do passado


e futuro,

e pombas que exibem asas

e não voam

– como outras – acima dos telhados.

Em todas cidades do mundo

há janelas sujas de trens

anuviando paisagem,

olhos azuis aleijados

lendo nome da estrela

e do lixo.

152 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


Em todas cidades do mundo há ciganos
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO que revivem esta saudade,

estalando

no meu céu da boca

o grito da vida.

[15.07.88

De Lisboa a Fátima]

(SILVA, 1997a, p. 7-8).

O poder da imaginação que direciona a uma abrangência mais ampla, é a tônica que
movimenta o poema. Em todas as estrofes, destacam-se os paralelismos sintático-semântico-sonoros
das estrofes iniciadas pelo verso: “Em todas as cidades do mundo”. Há a constatação por parte do eu lírico
de abandonos, saudades, sofrimentos, contrastes.
O poeta – operador de enigmas – faz da linguagem um espelho de dupla face: de um lado a
palavra e do outro o silêncio. Na conjugação das formas dialéticas ele constrói o universo imaginário
em que é possível a realização, daí a linguagem do poema ser revelação da condição humana, poder e
alquimia. Quer dizer, “a revelação poética pressupõe uma busca interior. Busca que em nada se assemelha
à análise ou à introspecção, mais que busca, atividade psíquica capaz de provocar a passividade propícia ao
surgimento de imagens” (PAZ, 1982, p. 65).
O poema “Chovem lírios em meus cabelos”, com uma linguagem altamente elaborada, registra
os momentos vivenciados pelo sujeito da enunciação:

CHOVEM LÍRIOS EM MEUS CABELOS

Emprestam-me o mundo dos ricos,

conhecendo outros países.

Chovem lírios em meus cabelos

e é grave a urze no peito.

Nas fontes de pedras,

emoções deliram

em outras línguas.

Existe fantasia e realidade:

pesadas estátuas

em tênue fio unidas.

Canta no palácio, a menina.

Velha senta na calçada:

gume e flor.

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva 153


Cisma o Tejo, dorme o Sena,

ora e canta Manzanares¹,

rendam-se em rosas de gotas,

Mediterrâneo e Adriático.

Vestindo espadas, bandeiras

arcoirisando olivais,

mulheres de sete saias

no bairro das Mourarias²

cheiram fado nos cabelos,

vestem xales de saudade.

[...]

Esqueço sandália branca

na rua de Madri.

e perambulando com versos


de Florbela e de Pessoa.

Tantas nacionalidades

solícitas às informações!...

E “elas” e “eles”,

só meu “ele”, não.

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva


Propuseram-me esta longínqua distância

exaustiva de beleza e tradição!...

Vim com medo,

vim com medo,

sem saber que já sabia

tantos dos muitos segredos.

Emprestaram-me o mundo dos ricos

que em estudo conhecera


e em vivência, bem mais:

já andei por aqui!...

19.07.88

Madri, Museu do Prado

(SILVA, 1997a, p. 13)

____

1 Rio Espanhol

2 Lisboa.

154 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


Note-se, nos versos, a linguagem metafórica, com imagens sugestivas: “chuva de lírios nos cabelos”, “urze
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO no peito” e “cheiro de fado nos cabelos”. Há a descrição geográfica de lugares europeus, como o bairro
das Mourarias, referências aos rios Tejo, Sena, Manzanares, e aos mares Mediterrâneo e Adriático. A
personificação é um recurso utilizado pela Poeta para realçar e dinamizar o texto. Na poesia de Lília
A. Pereira da Silva, as rimas são recursos essenciais que suscitam inesperadas alianças de termos, de
sentido, quer dizer, o que está em jogo não é apenas a sonoridade, a musicalidade, mas a estrita relação
entre som e sentido.
O poeta, através do ato de nomear, de poetizar o mundo e de dar sentido às coisas, faz da
linguagem uma viagem em versos. Mediante a atividade criadora, o poeta, enquanto viajante no e do
mundo, reafirma sua condição de exilado. Daí a poesia auxiliar o homem no esclarecimento de uma das
questões psicológicas mais relevantes: “a determinação do seu próprio ser” (LOTMAN, 1978, p. 119-123).
Note-se, nos versos, um sentido vital no que diz respeito à construção do texto relacionada ao jogo
de palavras projetando uma “poesia-invenção” que veicula o máximo de informação em um número
restrito de palavras.
Em “Poema Rubro”, nota-se, por parte do eu lírico, que o fazer poético é capaz de atingir pontos
culminantes de uma busca que se faz anseios; de sentir que os “cacos da ilusão”, ficam em segundo
plano frente à forma de ver a vida enquanto fonte de “infinito”, uma vez que a escrita do poema surge
como sinal de permanência:

POEMA RUBRO

ferido, cabisbaixo, já não existes

com cacos de ilusão dentro do bolso.

e já não escrevo apenas, no infinito

o meu anseio,

com o giz das estrelas,

agora, nascidos colunas sobre o abismo,

e tocados de sol,
com nossas máscaras pendentes.

(SILVA, Estrela descalça, 1960, p. 43).


Os versos evidenciam que, mediante a força da palavra poética e com “o giz das estrelas”, é
possível (re)configurar os desenhos de tempo presente, situados no “agora”, mesmo que haja o abismo
e as “máscaras pendentes”, a imagem do sol sobressai enquanto fonte de luz e energia portadora de um
sentido vital.
“Do Poema” é um texto que apresenta imagens relacionadas ao ofício poético, no qual a poesia
é vista como destino pelo eu lírico, ou seja, “um vício” marcado pela forma “mais útil”, entre abismo de
encantamento do eu para com a linguagem do poema:

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva 155


DO POEMA

corvos presos em redomas,

galos que acordam no ocaso,

anjos de estercos e chifres,

deuses marcados de andrajos,

são o meu vício mais útil,

no abismo roxo, encantados.

são o meu vício mais útil,

no abismo, tão abraçados.

na sola, em borrões azuis

se esborrifam no futuro
Ilustração de Manabu Mabe. SILVA,
quando retorno o meu passo. Estrela descalça, 1960, p. 26)

são o meu vício mais útil,

e nos meus nervos, fadados.

(SILVA, Estrela descalça, 1960, p. 26).

O texto é um convite ao leitor para partilhar do processo poético e é um presente original


e comunicativo do eu poético ao leitor. Além de comunicação, a poesia é participação e revelação

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva


do ser. Nesse sentido, Iuri Lotman, afirma que a representação da criação poética tem como base os
modelos cibernéticos do processo criador, ou seja, a escolha das variantes possíveis da formulação de
um determinado conteúdo deve levar em conta as regras formais restritas. Se para o criador do texto se
esgota a entropia da flexibilidade da linguagem, para o receptor pode ser de um modo muito diferente.
O poeta sabe que podia ter escrito de outro modo. Para o leitor, não há nada de contingente no texto,
recebido como artisticamente perfeito. O poeta é auditor dos seus versos e pode escrevê-los guiado por
uma consciência de auditor. Dessa forma, a flexibilidade da linguagem passa a uma carga significativa
complementar, elaborando uma entropia particular do conteúdo poético. A simples repetição de uma
palavra várias vezes torna-a desigual a ela própria (LOTMAN, 1978, p. 66-67). Assim, a explícita reiteração
pelo sujeito da enunciação nos versos: “são o meu vício mais útil”, apresenta um jogo de imagens
interligadas ao ofício poético e à consciência do Ser. A imagem do “abismo, roxo, encantados” e “os borrões
azuis”, com suas perspectivas do futuro, faz com o que o poeta trilhe os caminhos de partilha da poesia
e, nesse embate, se sente com seus nervos “fadados” perante o mistério de encantamento do Eu para
com a palavra poética, ou seja, um espaço de participação, pois o poema, com suas imagens do “corvos”,
“galos”, “anjos” e “deuses”, configura um sentido vital à arte, concretizando, assim, a “heterogeneidade do
ser”, de que fala Paz. Desse modo, o texto “Do poema” tematiza o fazer poético, evidenciando a relação
poesia/linguagem, pois a linguagem é “poesia em estado natural”, no dizer de Paz. Em sua essência a
linguagem é simbólica, ou seja, consiste em representar um elemento da realidade por outro, tal como
ocorre com as metáforas. Cada palavra ou grupo de palavras é uma metáfora. A palavra é símbolo que

156 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


emite símbolos (PAZ, 1982, p. 41).
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO A ilustração do poema, realizada pelo artista Manabu Mabe, traz imagens-desenho que
parecem formas de um pássaros – corvos, galos, seres voláteis – aproximando, assim, as pinceladas que
apontam para um processo criativo e imaginário dando a idéia de leveza, mesmo que no dizer do eu
lírico, os corvos estejam “presos em redomas”. A imagem do corvo relacionada ao ofício da poesia é uma
constante na literatura mundial, a exemplo do poema “O corvo”, de Edgar Alan Poe. A imagem do corvo
está, muitas vezes, relacionada ao processo criativo e à inteligência, isto é, a imagem desse pássaro-
negro é representada pela intercessão entre o plano divino e humano (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002,
p. 690). Conforme os autores, a imagem do pássaro, das aves em geral – na poesia – pode estar também
relacionada ao canto da criação poética, naquilo que Saint-John Perse apresenta de forma intuitiva uma
“espécie de pureza primordial nesta linguagem [dos pássaros], quando escreve: Os pássaros guardam entre
nós alguma coisa do canto da criação” (PERSE apud CHEVALIER; GHEERBRANT 2002, p. 690. Grifos dos
autores).
Em “Poema da Posse”, as imagens de pássaros, papoulas, faunos, rosas, ninfas, sóis, estão
relacionadas ao ofício do verso, no qual o sujeito da enunciação busca no tempo presente, no “agora”,
o olhar de concentração à natureza circundante:

POEMA DA POSSE

agora,

além da janela

serão gestos de linho,

pássaros chineses e papoulas.

repousarão luares de neblinas

e sóis de ramos cinzentos.

o chão será de paina e carneiros,

e os chacais, perdidos na distância.

agora,

os pássaros chineses e papoulas


(Ilustração de Manabu Mabe. SILVA,
encantarão os faunos que desamei
Estrela descalça, 1960, p. 42)
e as ninfas que te formaram,

em rosas de pó,

florindo outubros...

(SILVA, Estrela descalça, 1960, p. 42).

A palavra “pássaro” pode simbolizar o poema ou a palavra poética, cuja associação imagética
justifica-se na medida em que o pássaro e outros seres alados são símbolos de espiritualização. A imagem
do pássaro simboliza, ainda, a manifestação do plano espiritual. O poder de voar predispõe o pássaro

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva 157


a ser símbolo de transcendência.. O pássaro simboliza, na poesia, a imortalidade, por ser tomado como
símbolo da imortalidade. Simboliza ainda a alma, e tem um papel de intermediário entre a terra e o
céu (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p. 687-690). Já a ilustração do poema – por Manabu Mabe – dá a
idéia-imagem de um pássaro, pois o Artista, com pinceladas rápidas, desenha a forma de um pássaro.
Segundo Chevalier e Gheerbrant, os pássaros simbolizam, também, “os estados espirituais, os anjos, os
estados superiores do ser. Os numerosos pássaros azuis (Maeterlinck) da literatura chinesa dos Hans são
fadas, imortais, mensageiros celestes” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p. 687. Grifos dos autores).
O texto “Façanha do apuro”, de número um, apresenta imagens do tempo relacionadas à
poesia, definida como escudo capaz de proteger o eu lírico das adversidades da vida:

Façanha do apuro

a vida, até agora.

Pecado inacabado,

até amanhã.

Muletas na alma,

usadas

na distorção da cartola do mágico,

que me cobre a nudez

com margaridas de espadas.

Que as patas do trovão

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva


voltem eternas;

cavalgarei em mim

– poesia-escudo.

(SILVA, Pólen de Faunos (Cartas de Amor).

1991. __. 33 anos de Poesia, 1991, vol. 1, p. 11)

Qual um “mágico”, o eu poético faz com que sua poesia se desdobre verso a verso, imprimindo a
cada série verbal, a busca de uma unidade totalizadora do espaço que logo é retomada pela consciência
da fragilidade do tempo. Nesse sentido, o tempo presente surge da tomada física do espaço, com o
qual o sujeito poético reinventa um mundo de sentidos. O poema ganha, assim, contornos de uma
linguagem que vai ao encontro do processo de objetivação e substantivação, sendo o poema o próprio
objeto. Já o poeta – mágico da linguagem – entre as “façanhas do apuro” e no “agora” do viver, faz da
“poesia-escudo” uma forma de eternizar o instante poético.
Nos versos do poema constata-se a capacidade criadora da poeta Lília ao dar sentido ao seu
ato criativo, pois ao elaborar o texto, independente de ser um mero reflexo do mundo exterior ou uma
criação do cérebro, ou do sentimento humano, ela o alicerça tendo por base a imaginação criadora,
baseando-se na combinação, de dar um sentido distinto à criação literária.
Verifica-se na poesia de Lília A. Pereira da Silva, uma articulação laboriosa em relação ao fazer

158 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


poético, o cuidado na escolha do vocábulo, pois a Poeta coordena o maior número de partes e de fatores
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO independentes na elaboração do poema, como o som, o sentido, a sintaxe, o real e o imaginário, a lógica
e também a dupla invenção do conteúdo e da forma. Através da linguagem cotidiana, comum, A Poeta
Lília arquiteta uma construção lírica que apresenta “uma Voz pura, ideal”, – como diz Valéry – “capaz de
comunicar sem fraquezas, sem aparente esforço, sem atentado ao ouvido e sem romper a esfera instantânea
do universo poético, uma idéia de algum eu maravilhosamente superior” (1991, p. 218. Grifo do autor).
Na obra de Lília A. Pereira da Silva, as imagens poéticas ocorrem entrelaçadas no universo
imaginário, são alicerçadas nos “registros-chave”, que direcionam para um elaborado processo poético-
criativo centrado na imaginação poética e na ARTE. Assim, constata-se, na poesia liliana, a efetiva
preocupação do Eu poético em relação à elaboração precisa da linguagem, registrada na forma de
interpretar e vivenciar o mundo e as coisas, isto é, ao “celebrar” a poesia, a Artista e Poeta Lília apresenta
o ato criador como um exercício de encantamento da linguagem e comprometimento perante a vida e
a arte, efetivado em um pensamento capaz de (re)inventar universos imaginários.

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva 159


R E F E R Ê N C I A S

CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.

CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionários de símbolos. Rio de Janeiro: José


Olympio, 2002.

COHEN, Jean. A plenitude da linguagem: teoria da poeticidade. Coimbra: Almedina,


1987.

LIMA, José Lezama. A dignidade da poesia. Trad. José Vianna Baptista. São Paulo:
Ática, 1996.

LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982
(Coleção Logos).

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva


PAZ, Octavio. Convergências: ensaios sobre arte e literatura. Trad. Moacir Werneck de
Castro. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

SILVA, Lília A. Pereira da. Estrela descalça. Capa e ilustração de Manabu Mabe. São
Paulo, 1960 (Coleção dos Novíssimos).

SILVA, Lília A. Pereira da. Serenata do abismo. São Paulo: Alarico, 1963.

SILVA, Lília A. Pereira da. Altar das cicatrizes. São Paulo: Brasil, 1966.

SILVA, Lília A. Pereira da. Pólen de Faunos (Cartas de Amor). 1991. In: 33 anos de Poesia
(vol.1), 1991.

SILVA, Lília A. Pereira da. 33 anos de poesia. São Paulo: Scortecci, 1991 (vol. 1).

SILVA, Lília A. Pereira da. 33 anos de poesia. São Paulo: Scortecci, 1991 (vol. 2).

SILVA, Lília A. Pereira da. Elipses do anjo. São Paulo: Scortecci, 1993.

160 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


SILVA, Lília A. Pereira da. Impacto. São Paulo: Scortecci, 1996.
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO
SILVA, Lília A. Pereira da. Europeanas. São Paulo: Scortecci, 1997a.

SILVA, Lília A. Pereira da. Carta à minha sombra. São Paulo: Scortecci,1997b.

SILVA, Lília A. Pereira da. Saia de cigana entre galáxias. São Paulo: Scortecci, 2001a.

SILVA, Lília A. Pereira da. Desenhos para Pedrinho. São Paulo: Scortecci, 2001b.

SILVA, Lília A. Pereira da. Desenho e pintura / Lília A. Pereira da Silva. São Paulo: Scortecci, 2002.

SILVA, Lília A. Pereira da. Chuva de gatos verdes. São Paulo: RG Editores, 2004.

SILVA, Lília A. Pereira da. Diário na Suíça. São Paulo: RG Editores, 2005.

VALÉRY, Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1991.

Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva 161


Imagens poéticas e lirismo em Lília A. Pereira da Silva

162 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO

CAPÍTULO 12

Alguns aspectos da relação Eros / Tânatos em poemas


José Carlos Aissa

Triste de quem é feliz!

Vive porque a vida dura.

Nada na alma lhe diz

Mais que a lição da raiz –

Ter por vida a sepultura.33

O fato de desejo e morte coexistirem nos poemas de Poe e de Alphonsus intensamente leva-nos
a passar pela teoria freudiana de Eros (instinto de vida)/Tânatos (instinto de morte), o que certamente
vai ao encontro das idéias relativas ao gótico, à melancolia, ao estranho, e ao sublime. Cremos estar aí
um dos ingredientes psicológicos primordiais nos textos poéticos dos autores que ora teremos como
foco de análise. Iniciemos uma breve teorização de viés freudiano, portanto.
Durante o verão de 1929, Sigmund Freud trabalhou em um texto que se tornaria um clássico em
sua linha psicanalítica e teria influência em diversas áreas de conhecimento. Esse livro faz parte de uma
vertente que marca uma nova fase no seu pensamento, na qual ele se distanciou de sua fase puramente
clínica, centrada no indivíduo, para pensar questões relativas à humanidade, à conexão indivíduo/
sociedade. Esse novo ciclo teve início com a publicação de Além do Princípio de Prazer (Jenseits des
LustPrinzips), em 1920, em que reitera a noção sobre Eros, mas apresenta uma menção mais acentuada
do conceito do instinto de morte (Tânatos). Sua análise reforça que “a libido de nossos instintos sexuais
coincidiria com o Eros dos poetas e filósofos, o qual mantém unidas todas as coisas vivas” (2003, p.65);
todavia, aponta-nos que o objetivo da vida:

33
Estrofe da “Terceira Parte” de Mensagem. (PESSOA, 1997, p. 84)

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas 163


[...] deve ser um estado de coisas antigo, um estado inicial de que a entidade viva se
afastou e ao qual se esforça para retornar através dos tortuosos caminhos ao longo
dos quais seu desenvolvimento conduz. Se tomarmos como verdade que não conhece
exceção o fato de tudo o que vive morrer por razões internas, tornar-se mais uma vez
inorgânico, seremos então compelidos a dizer que ‘o objetivo de toda vida é a morte’, e,
voltando o olhar para trás, que, ‘as coisas inanimadas existiram antes das vivas.’ (FREUD,
2003, p.49)

Em 1929, surgirá então Das Unbehagen in der Kultur (título que foi traduzido de várias formas
em diferentes idiomas – Civilization and its Discontents, Malaise dans la Civilisation, El Malestar en la
Cultura, e, em português, O Mal-Estar na Civilização, por exemplo), em que Freud discute, entre outros
assuntos, a questão de como e onde o homem se encaixa no mundo – local de permanente conflito para
o ser humano em sua busca por liberdade em meio às exigências de adequação aos regulamentos, leis,
costumes e tradições. A tese básica de Freud é a de que o homem, egoísta e agressivo por natureza, busca
auto-satisfação; porém as amarras culturais inibem seus impulsos instintivos, gerando sentimentos de
culpa e ansiedade. Ele defende a tese de que a vida social pressupõe repressão. O desenvolvimento do
indivíduo bem como o da civilização só são possíveis através do controle das pulsões humanas, pois
estas são incompatíveis com a vida em coletividade. Assim, para Freud o ser humano está condenado à
infelicidade na civilização, já que, por felicidade, ele entende a livre “fruição” das energias instintivas.
Procederemos, a seguir, a um breve resumo das idéias fulcrais de alguns capítulos de O Mal-
Estar na Civilização a fim de, mais adiante, podermos focalizar melhor como essa teorização Eros/
Tânatos pode ser aplicada no estudo comparativo dos poemas de Alphonsus e de Poe.
Nos parágrafos introdutórios, Freud contra-argumenta observações que um amigo seu, o crítico

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas


e escritor francês, Romain Rolland, teria feito sobre O Futuro de Uma Ilusão (Die Zukunft einer Illusion),
de 1927, em que Freud, revelando seu lado ateu, investigou a origem psicológica das idéias religiosas
e afirmou que a religião seria a neurose obsessiva universal da humanidade. Rolland concorda com o
ponto sobre a natureza ilusória da religião, porém mantém que todos os seres humanos partilham um
sentimento inato de religiosidade, o qual denominaria de “oceânico”, por meio do qual o ser humano
tem a sensação de que está conectado a todo o mundo e à humanidade inteira. Freud, por outro lado,
reconhece que há um sentimento “oceânico” de unidade e identificação entre os seres humanos, que,
no entanto, não indica uma religiosidade inata. Embora diga não ter experimentado tal fenômeno,
procura entendê-lo cientificamente, visto que, se não há sinais fisiológicos externos de sua existência,
deve haver uma explicação psicanalítica, portanto. Esclarece que o ego se percebe mantendo linhas de
demarcação bem claras com o mundo externo. Somente quanto se atinge o amor máximo é que o ego
conscientemente permite essas fronteiras se tornarem mais fluidas sem se sentir ameaçado. Em geral, a
tendência do ego é a de se separar da dor e do desconforto associados ao mundo externo. A distinção
entre esses dois mundos é crucial para o desenvolvimento psicológico, fazendo o ego reconhecer uma
realidade distinta dele mesmo.
Num primeiro momento evolutivo, o ego se mistura com uma ampla, quase infinita, percepção
do mundo a sua volta; com a maturidade surge uma sensação diminuída de realidade, pois o ego já se
delimitou como algo à parte do mundo externo. Nas palavras de Freud:

164 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


Uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu ego do mundo externo como
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO fonte das sensações que fluem sobre ela. Aprende gradativamente a fazê-lo, reagindo a
diversos estímulos. Ela deve ficar fortemente impressionada pelo fato de certas fontes
de excitação, que posteriormente identificará como sendo os seus próprios órgãos
corporais, poderem provê-la de sensações a qualquer momento, ao passo que, de
tempos em tempos, outras fontes lhe fogem – entre as quais se destaca a mais desejada
de todas, o seio da mãe –, só reaparecendo como resultado de seus gritos de socorro.
Desse modo, pela primeira vez, o ego é contrastado por um ‘objeto’, sob a forma de algo
que existe ‘exteriormente’ e que só é forçado a surgir através de uma ação especial. Um
outro incentivo para o desengajamento do ego com relação à massa geral de sensações –
isto é, para o reconhecimento de um ‘exterior’, de um mundo externo – é proporcionado
pelas freqüentes, múltiplas e inevitáveis sensações de sofrimento e desprazer, cujo
afastamento e cuja fuga são impostos pelo princípio do prazer, no exercício de seu
irrestrito domínio. Surge, então, uma tendência a isolar do ego tudo que pode tornar-se
fonte de tal desprazer, a lançá-lo para fora e a criar um puro ego em busca de prazer, que
sofre o confronto de um ‘exterior’ estranho e ameaçador. (1978, pp.133-134)

Adiante, Freud demonstra que a mente é algo excepcional no que tange à possibilidade de
coexistirem sentimentos infantis e maduros durante a vida de qualquer um de nós, ou seja, depois
que um fato é registrado em nossa memória, nunca mais é esquecido, bastando que ocorram as
circunstâncias apropriadas para que a lembrança seja trazida à consciência vigil. Faz-se uma comparação
com escavações arqueológicas, pois o passado coexiste, ainda que escondido, no presente. Numa
analogia com Roma, Freud diz:

Seu sítio acha-se hoje tomado por ruínas, não pelas ruínas deles próprios, mas pelas
de restaurações posteriores, efetuadas após incêndios ou outros tipos de destruição.
Também faz-se necessário observar que todos esses remanescentes da Roma antiga
estão mesclados com a confusão de uma grande metrópole, que se desenvolveu
muito nos últimos séculos, a partir da Renascença [...]Permitam-nos agora, num vôo
da imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma entidade
psíquica, com um passado semelhantemente longo e abundante – isto é, uma entidade
onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de
desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última. (1978, p. 136)

Em seguida, o texto retoma seu objetivo principal – o de explicar a fonte dessa suposta sensação
oceânica de unidade. Parece ser, conclui-se, um vestígio do narcisismo infantil dos primeiros anos de
vida quando o ego se integra por completo ao mundo, não discernindo o mundo subjetivo do objetivo.
Soma-se a essa lembrança narcísica inicial, após consciência de o mundo externo poder ser fonte de
desprazer e de forças não controláveis, a conclusão de que há a necessidade por parte da criança de
buscar (ou de se retomar) amparo e proteção. Assim, Freud conjectura:

[...] estamos perfeitamente dispostos a reconhecer que o sentimento ‘oceânico’ existe em


muitas pessoas, e nos inclinamos a fazer sua origem remontar a uma fase primitiva do
sentimento do ego. [...] A derivação das necessidades religiosas, a partir do desamparo do
bebê e do anseio pelo pai que aquela necessidade desperta, parece-me incontrovertível,
desde que, em particular, o sentimento não seja simplesmente prolongado a partir dos
dias da infância, mas permanentemente sustentado pelo medo do poder superior do
Destino. Não consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão intensa quanto a
da proteção de um pai. Dessa maneira, o papel desempenhado pelo sentimento oceânico,
que poderia buscar algo como a restauração do narcisismo ilimitado, é deslocado de um
lugar em primeiro plano. A origem da atitude religiosa pode ser remontada, em linhas
muito claras, até o sentimento de desamparo infantil. Pode haver algo mais por trás
disso, mas, presentemente, ainda está envolto em obscuridade. [...] Posso imaginar que
o sentimento oceânico se tenha vinculado à religião posteriormente. A ‘unidade com o
universo’, que constitui seu conteúdo ideacional, soa como uma primeira tentativa de

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas 165


consolação religiosa, como se configurasse uma outra maneira de rejeitar o perigo que
o ego reconhece a ameaçá-lo a partir do mundo externo. (1978, pp.137-138)

O segundo capítulo passará a focalizar três mecanismos com os quais o ser humano pode tentar
superar as vicissitudes e dores vitais. A concepção de tais estratégias é oriunda do próprio princípio do
prazer, como um contraponto seu. Ora, se o princípio do prazer estabelece que somos impulsionados
sempre no afã de satisfazermos nossas necessidades ou compulsões, ao compreendermos haver no
mundo externo o “princípio da realidade”, que interfere e impede a satisfação de nossos desejos, será
útil estruturar modos de evitar o desprazer tanto quanto possível. O texto explica que:

A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos
sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos
dispensar as medidas paliativas. ‘Não podemos passar sem construções auxiliares’, diz-
nos Theodor Fontane. Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos,
que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem;
e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. (1978, p.144) (Os destaques são
meus)

Essas três estratégias têm o intuito de minimizar a impossibilidade terrena na consecução do


propósito vital, que para Freud se resume em obter felicidade: os seres humanos “querem ser felizes
e assim permanecer” (1978, p.141). Nos derivativos encaixam-se as atividades científica, profissional
ou ocupacional. Já no grupo das satisfações substitutivas, teremos formas de compensação como o
fervor religioso, a fantasia e a fuga pelo prazer estético-artístico. Nesse segundo mecanismo, discute-se
breve e inconclusivamente sobre o papel da Beleza como instrumento de alívio para as dores humanas,

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas


emprestando-se muitas das idéias de Emmanuel Kant. De qualquer forma, é importante mencionar a
Beleza como elemento substitutivo compensatório de satisfação, pois ela estará ligada a Eros, uma vez
que o belo é sempre um atributo do objeto sexual desejado.

Daqui podemos passar à consideração do interessante caso em que a felicidade na vida


é predominantemente buscada na fruição da beleza, onde quer que esta se apresente
a nossos sentidos e a nosso julgamento – a beleza das formas e a dos gestos humanos,
a dos objetos naturais e das paisagens e a das criações artísticas e mesmo científicas. A
atitude estética em relação ao objetivo da vida oferece muito pouca proteção contra
a ameaça do sofrimento, embora possa compensá-lo bastante. A fruição da beleza
dispõe de uma qualidade peculiar de sentimento, tenuemente intoxicante. A beleza não
conta com um emprego evidente; tampouco existe claramente qualquer necessidade
cultural sua. Apesar disso, a civilização não pode dispensá-la. Embora a ciência da
estética investigue as condições sob as quais as coisas são sentidas como belas, tem
sido incapaz de fornecer qualquer explicação a respeito da natureza e da origem da
beleza, e, tal como geralmente acontece, esse insucesso vem sendo escamoteado sob
um dilúvio de palavras tão pomposas quanto ocas. A psicanálise, infelizmente, também
pouco encontrou a dizer sobre a beleza. O que parece certo é sua derivação do campo
do sentimento sexual. O amor da beleza parece um exemplo perfeito de um impulso
inibido em sua finalidade. ‘Beleza’ e ‘atração’ são, originalmente, atributos do objeto
sexual. (1978, p. 146)

Por fim, escaparemos do sofrimento pelo uso de drogas químicas, que também tratarão em si
dos sintomas de nosso desprazer existencial e não de suas causas.
As causas desse desconforto vital doloroso estão no corpo humano, no mundo externo e das
relações sociais. Como esclarece o pai da psicanálise,

166 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade
como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças
de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com
os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais
penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo
gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento
oriundo de outras fontes. (1978, p.141) (Os destaques são meus)

Isso nos leva ao fato de que, apesar do suposto propósito principal de nos proteger, a
civilização é em grande parte responsável pela nossa infelicidade. Ora, ela exige que o individual
seja sacrificado em nome do coletivo, diminuindo, por conseguinte, a liberdade de cada pessoa;
exige, assim, que se renuncie à realização de instintos básicos, que, segundo Freud poderão vir a nos
assombrar eventualmente, pois a tendência do que é reprimido é retornar de alguma forma patológica.
Certamente, não ficam de fora as limitações que se impõem sobre a sexualidade, visto que a sociedade
dita quais manifestações são permissíveis, e até mesmo as suas formas de expressão. Freud sustenta
que “o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de
segurança” (1978, p. 170); logo, mantermos nossos laços sociais ou satisfazermos nossos instintos é uma
decisão meramente econômica na medida em que negociamos nossa gratificação imediata por uma
estabilidade e segurança a longo prazo, o que, conforme ele assevera, conduzirá ao que denomina
“frustração cultural”.
Esse escambo provém de Eros e Ananke, isto é, amor e necessidade, que “se tornaram os pais
da civilização” (1978, p. 159), malgrado aspecto civilizatório repressor. Comenta Freud que:

Depois que o homem primevo descobriu que estava literalmente em suas mãos
melhorar a sua sorte na Terra através do trabalho, não lhe pode ter sido indiferente que
outro homem trabalhasse com ele ou contra ele. Esse outro homem adquiriu para ele
o valor de um companheiro de trabalho, com quem era útil conviver. Em época ainda
anterior, em sua pré-história simiesca, o homem adotara o hábito de formar famílias, e
provavelmente os membros de sua família foram os seus primeiros auxiliares. Pode-se
supor que a formação de famílias deveu-se ao fato de ter ocorrido um momento em que
a necessidade de satisfação genital não apareceu mais como um hóspede que surge
repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve falar por longo tempo, mas
que, pelo contrário, se alojou como um inquilino permanente. Quando isso aconteceu,
o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea junto de si, ou, em termos mais
gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a fêmea, não querendo separar-
se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no interesse deles, a permanecer com
o macho mais forte. Na família primitiva, falta ainda uma característica essencial da
civilização. A vontade arbitrária de seu chefe, o pai, era irrestrita. Em Totem e Tabu [1912-
13], tentei demonstrar o caminho que vai dessa família à etapa subseqüente, a da vida
comunal, sob a forma de grupos de irmãos. Sobrepujando o pai, os filhos descobriram
que uma combinação pode ser mais forte do que um indivíduo isolado. A cultura
totêmica baseia-se nas restrições que os filhos tiveram de impor-se mutuamente, a fim
de conservar esse novo estado de coisas. Os preceitos do tabu constituíram o primeiro
‘direito’ ou ‘lei’. A vida comunitária dos seres humanos teve, portanto, um fundamento
duplo: a compulsão para o trabalho, criada pela necessidade externa, e o poder do amor,
que fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual – a mulher – e a mulher, em
privar-se daquela parte de si própria que dela fora separada – seu filho. Eros e Ananke
[Amor e Necessidade] se tornaram os pais também da civilização humana. O primeiro
resultado da civilização foi que mesmo um número bastante grande de pessoas podia
agora viver reunido numa comunidade. E, como esses dois grandes poderes cooperaram
para isso, poder-se-ia esperar que o desenvolvimento ulterior da civilização progredisse
sem percalços no sentido de um controle ainda melhor sobre o mundo externo e no de
uma ampliação do número de pessoas incluídas na comunidade. É difícil compreender
como essa civilização pôde agir sobre os seus participantes de outro modo senão o de
torná-los felizes. (1978, p. 158)

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas 167


Entretanto, a fim de se manter esse estado de coisas sobrevirão regras comportamentais
restritivas que deixarão aflorar o lado agressivo natural a todo ser humano. Num primeiro momento, de
novo em nome da estabilidade e segurança que a civilização pode nos dar, aceitamos tais imposições
quase que masoquisticamente, pois nos infligimos desprazer ao nos adequarmos às coarctações sociais.
Por outro lado, quando temos a oportunidade, passamos de masoquistas a sádicos e daí homo homini
lupus, já que:

O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas
a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que,
no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre
cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade.
Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial
ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua
agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo
sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-
lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. (1978, p. 167)

Independentemente de qualquer exagero quiçá contido no excerto acima, interessa-nos


acentuar que Freud demonstra estarem essas duas forças conflitantes – Eros e Tânatos – na civilização
muito antes do século XX. Especificamente na poesia, a idéia de morbidez amorosa, em que Eros e
Tânatos se entrelaçam na paradoxal união do desejo e de sua interdição no mínimo desde o Barroco,
ainda que com tons e cores diferentes dos trabalhados pelos românticos e simbolistas. Não é objetivo
deste estudo realizar uma progressão teórica sobre esse tema, passando pelos diferentes períodos
literários desde o Barroco. Porém, cremos que existe tal progressão e que será o Romantismo (em

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas


que Poe se insere, ainda que não em todas as características dessa estética em seu país) o movimento
catalisador e revelador da beleza instrínsica da união Eros/Tânatos, que será explorada por simbolistas
como Alphonsus de Guimaraens.
Mario Praz, em A Carne, a Morte e o Diabo, afirma que desejo, luto, melancolia, beleza e horror
já estavam nos versos de autores seiscentistas: “Podia-se extrair portanto beleza e poesia de matéria
geralmente considerada ignóbil e repugnante; e isso sabiam já Shakespeare e outros elisabetanos,
apesar de não teorizarem sobre isso.” (1996, p.45) Vale lembrar, portanto: especificamente, no caso da
figura da amada, ou da figura feminina desejada, ela tem-nos sido oferecida em versos eivados de uma
volúpia do sofrimento que conduz ao macabro, ao terrível, ao estranho (das Unheimliche).
Essa visão, todavia, é veiculada pela voz masculina. Com freqüência, a percepção do feminino
tem oscilado entre o sagrado (deusa, criança, anjo, mãe) e o profano (ninfa, prostituta, bruxa, femme
fatale). Em ambos os pólos, o masculino sofre a interdição de seu desejo, porque em ambos os casos
impera o conceito de pecado cristão e, conseqüentemente, culpa, mesmo que ocorra apenas o desejo
sexual sem o ato em si. É neste ponto que a civilização transforma nossa psique num mecanismo
masoquista. A solução para essa interdição será a transgressão para um mundo (o da arte) onde a
mulher não é sagrada nem profana – ela é morta, cuja beleza o homem pode ter como objeto de desejo
sem culpa. De certo modo, essa transgressão se encaixa na segunda categoria de estratégias citadas
por Freud a fim de suportarmos o sofrimento da existência, ou seja, é uma satisfação substitutiva, uma
sublimação, que, invariavelmente, é acompanhada de luto e melancolia, condição para a continuidade
do desejo e do subseqüente prazer gótico-melancólico.

168 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


Aqui talvez caiba a analogia de que Georges Bataille se serve, em O Erotismo, ao comparar a
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO morte como expediente tanto para o místico quanto para o zangão:

[...] a interdição da sexualidade, à qual o religioso confere livremente a conseqüência


extrema, cria, no caso particular da tentação, um estado de coisas certamente anormal,
mas no qual o sentido do erotismo é menos alterado do que manifesto. Se é paradoxal
comparar a tentação do religioso com o vôo nupcial – e deletério – do zangão, a morte
não deixa de ser o termo de uma e de outra, e posso dizer que um religioso tentado é
um zangão lúcido, que sabe que a morte daria continuidade à satisfação de seu desejo.
Ordinariamente, negligenciamos essa semelhança pela razão que, na espécie humana,
o ato sexual, em princípio, nunca acarreta a morte verdadeira e que os religiosos, quase
que apenas eles, vêem nele a promessa da morte moral. Contudo, o erotismo só tem
plenitude, só esgota a possibilidade nele aberta com a condição de acarretar alguma
decadência, cujo horror evoca a morte simplesmente carnal. (2004, pp. 369-370) (o
destaque é meu)

Os poetas deste estudo empenharam-se na fusão do religioso e do zangão lúcido: sentem o


poder de Eros, mas o experimentam, sublimando-o, em Tânatos. Assim, a morte é o meio de sublimação
pelo qual vivenciam a morosa delectatio, ou seja, o prazer obtido, segundo Santo Tomás Aquino, com
pensamentos ou imaginação pecaminosos mesmo sem o desejar.
No trecho de Bataille, encontramos a palavra decadência. Voltemos nosso olhar, então, para
Alphonsus, reiterando, com as palavras de Sérgio Alves Peixoto em A Consciência Criadora na Poesia
Brasileira – do Barroco ao Simbolismo, o sentimento de desconforto que sentiam Alphonsus e Poe em
relação ao mundo:
A grande farsa da felicidade material que o mundo moderno trouxera ao homem com a descoberta
de um mundo prático e exato, passa a ser vista agora, como uma mentira meio tragicômica, porque
grotesca, e a uma humanidade saudável, exata e confiante, vemos sobrepor-se, pouco a pouco, um
certo desconforto, uma progressiva e inelutável deterioração de tudo. O mundo, esse grande organismo,
estava sofrendo de um mal incipiente, mas devastador. Perguntem-nos, pois sobre o espírito do tempo,
nos últimos anos do século XIX e nos primeiros do XX, e diremos que ele estava, sem dúvida, bastante
doente do espírito. Sofria de um mal próprio de tudo que se pretende como apogeu e perfeição, isto é,
trazia em si mesmo a sua própria decadência. [...] Aceita-se um destino envolto em dúvidas, marcado
pelo pessimismo e, passivamente, busca-se, entre outros refúgios, a embriagadora melodia envolvente,
a sonora languidez que afaguem deliciosamente uma alma essencialmente intoxicada de fatalismo.
[...] Eis, em literatura, o que se convencionou chamar de primeiro momento do Simbolismo, essa nova
visão poética do mundo e da arte em que o eu retoma seu lugar. Sem saber muito bem a que se apegar,
desnorteado pela redescoberta de si mesmo em meio a valores gastos e grandiosas mentiras, esse eu só
vê incertezas e desilusões. Vive a decadência e dela se alimenta. (1999, pp. 191-193)
Em Alphonsus singularmente, notamos esse temperamento decadentista, essa busca de fusão
dos contrários, quer por razões de opção estético-ideológica, quer pela tríade de influências apontadas
por Henriqueta Lisboa (1945, p.36) em seu opúsculo Alphonsus de Guimaraens da coleção “Nossos
Grandes Mortos” da Editora Agir – a sugestão do ambiente, a morte da noiva Constança e leituras
místicas – percebe-se em Salmos da Noite, que traz versos coligidos dos escritos na mocidade do poeta,
o tom do conflito Eros/Tânatos, conforme já comentamos no Capítulo VI, em que a voz masculina do
poema se rende ao à força de Eros, confessando: “Ó minha amante, eu quero a volúpia vermelha / Nos

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas 169


teus braços febris receber sobre a boca; [...] / E no entanto eu te sigo, ó verme da luxúria, / E no entanto
eu te adoro, ó céu do meu inferno.”
Entretanto, consideremos o seguinte poema de Dona Mística, de 1899, que já assinala sinais da
presença da morte a serviço da sublimação:

IV - OUVINDO UM TRIO DE VIOLINO, VIOLETA E VIOLONCELO

Simbolicamente vestida de roxo

(Eram flores roxas num vestido preto)

Tão tentadora estava que um diabo coxo

Fez rugir a carne no meu esqueleto.

Toda a pureza do meu amor por ela

Se foi num sopro tombar no pó.

Os seus olhos intercederam por ela...

Mais uma vez eu vi que não me achava só.

Simbolicamente vestida de roxo

(Talvez saudade de vida mais calma)

Tão macerada estava que a asa de um mocho

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas


Adejou agoureira pela minha Alma.

Todos os sonhos do meu amor por ela

Vieram atormentar-me sem dó.

Mas ninguém na terra intercedeu por ela...

Para divinizá-la era bastante eu só. (p.184)

Vê-se que a amada morta é tão necrofilicamente alucinante que o eu-poemático se agita
sexualmente (“Tão tentadora estava que um diabo coxo / Fez rugir a carne no meu esqueleto”), ainda
que os sentimentos de luto e conseqüente melancolia permeiem a cena (“Todos os sonhos do meu
amor por ela / Vieram atormentar-me sem dó”). Em seguida, no último verso ocorre a sublimação do
desvario erótico inicial, isto é, a santificação do objeto de desejo (“Para divinizá-la era bastante eu só”).
Constata-se a coexistência de duas compulsões com seus respectivos instrumentos de
concretização: uma que aprisiona a voz poemática masculina ao gozo telúrico, por meio do corpo
provocante da amada (Eros) e outra que liberta, já que, ao divinizar a amada, ela se torna inatingível, por
meio da aceitação do cadáver dessexualizado da amada (Tânatos), o que arrebata o eu-lírico ao sublime.
Comparável é o tratamento que confere Edgar Allan Poe a Annabel Lee no conhecidíssimo poema
homônimo. A amada, mesmo morta, é atraente (Eros) a tal ponto que não há poder na terra ou nos

170 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


céus capaz de separar o eu-poemático de sua noiva; além disso, preferirá ele, também necrofílica
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO e melancolicamente, dormir ao lado dela todas as noites, numa expressão de seu eterno luto, mas
também como uma forma sublimada de consumação amorosa: “E nem anjos celestes nas alturas, /
nem demônios dos mares abissais / jamais minha alma afastarão, jamais, / da bela ANNABEL LEE [...] /
E junto a ela eu passo, assim, a noite inteira, / junto àquela que adoro, a esposa, a companheira, / na
tumba, à beira-mar, no reino em que vivi, / junto ao mar que por ti / soluça eternamente, ANNABEL LEE”
(os destaques são meus).
É interessante notar que, tanto em Alphonsus quanto em Poe, o estado no qual o eu-poemático crê
estar sua companheira reflete uma mescla dos gêmeos mitológicos Tânatos e Hipnos, ou seja, morte
e sono, pois o eu enlutado e melancólico acredita existir a possibilidade de seu amor (Eros), ainda que
sublimado, resistir e sobreviver. Esse é o desiderato da voz masculina de “O Corvo”, que questiona a ave
agourenta sobre alguma possibilidade de reencontrar Lenora: “ ‘Profeta!’ – brado. ‘– Ó ser do mal! Profeta
sempre, ave infernal! / Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais, / fala se esta alma sob
o guante atroz da dor, no Éden distante, / verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora, / —
essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!’” (os destaques são meus).
Poe ainda faz ressoar essa parceria entre morte e sono eterno, que inclui a todos os seres humanos,
numa ambientação gótica e melancólica em “A Cidade no Mar”. Consideremos a primeira estrofe:

Olhai! a Morte edificou seu trono


numa estranha cidade solitária
por entre as sombras do longínquo oeste.
Lá, os bons, os maus, os piores e os melhores,
foram todos buscar repouso eterno.
Seus monumentos, catedrais e torres
(torres que o tempo rói e não vacilam!)
em nada se parecem com os humanos.
E em volta, pelos ventos olvidadas,
olhando o firmamento, silenciosas
e calmas, dormem águas melancólicas.
(1999, p. 45) (Os grifos são meus.)

Igualmente, Alphonsus entoa a vontade de dormir esse sono fúnebre ao lado do cadáver da
amada em versos de Dona Mística, como: “Jesus, eu sei que ela morreu. Viceja / Cheia das rosas pálidas
do outono, / A sua cova ao pé de alguma Igreja: Quero dormir o mesmo eterno sono” (2001, p. 170). Aliás,
essa apologia do sono/morte como veículo de transição para um estado mais elevado, mais sublime,
portanto, é reiterada em vários pontos de sua obra, ora como (única) opção para o reencontro com a
amada, como vimos acima, ora como (única) solução para as agruras da vida, como se verifica em versos
tais quais os de Pulvis: “Ai dos que vivem se não fora o sono! / [...] Mas ai / Da primavera, se não fosse o
outono, / [...] Tudo vem, tudo vai, do mundo é a sorte... / Só a vida, que se esvai, não mais nos vem. / Mas
ai da vida, se não fora a morte!” (GUIMARAENS, 2001, p. 420).
Já, em “The Sleeper”, para o qual não encontramos tradução em português, Poe potencializa
ainda mais o valor da morte/sono como meio de reencontro amoroso, realçando a importância da
destruição do corpo físico em cores góticas intensas. Vejamos alguns versos que traduzimos e como
nos auxiliam a demonstrar esse traço:

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas 171


[...] A dama dorme! Ah, que seu sono,
Que é eterno, seja também profundo!
Que o Céu a mantenha sob sua santa proteção!
Que se troque esta câmara por uma mais sagrada,
E este leito por um mais melancólico,
Rogo a Deus que ela repouse
Para sempre com olhos cerrados
Enquanto fantasmas amortalhados desfilam a seu lado!

Meu amor, ela dorme! Ah, que seu sono,


Que é permanente, seja também profundo!
Que vermes ao seu redor se arrastem suavemente! [...] 34

Quanto a esse ângulo mórbido dos vermes em relação à decomposição da amada, críticos há
que enxergam aí uma metáfora do desejo carnal para o qual não se deu vazão. É o que defende Affonso
Romano de Sant’Anna, em O Canibalismo Amoroso – O Desejo e a Interdição em nossa Cultura através
da Poesia (1984), livro em que traça uma panorâmica da estética e dos costumes de diferentes épocas,
ensinando que as mulheres podem ser amadas distantes, como anjos de corpos imaculados ou mulatas
sensuais, saboreadas como mulheres-fruto ou mulheres-caça. Começa com os poetas românticos
brasileiros, passando pelos parnasianos, simbolistas, alcançando modernistas como Manuel Bandeira.
Embora nossa pesquisa não tenha o alvo de averiguar a focalização do corpo feminino em diferentes
tempos literários, reputamos significativo entreter brevemente a teoria exposta nessa obra devido à
marca gótica em que o desejo pela amada (Eros) e sua morte (Tânatos) podem ter.
Sant’Anna propõe que o canibalismo está tão entranhado, mas ao mesmo tempo dissimulado,
em muitas práticas ocidentais que chegou a gerar movimentos vanguardistas na Europa e em nosso

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas


país nas primeiras décadas do século XX. Cita, por exemplo, que

A idéia do ágape cristão (ceia do amor) e o ritual da hóstia (palavra que significa ‘vítima
sacrificial’) são uma atualização de um rito intemporal, onde deuses comem homens,
homens comem deuses, ou, então, são dramatizados no sangue dos animais mediadores.
O canibalismo como ritual pode ser visto, por exemplo, na era cristã. Os epiléticos, em
Roma, bebiam o sangue quente dos gladiadores, e o médico do Papa Inocêncio VIII
recomendou-lhe o sangue de três crianças de dez anos. Da mitologia grega aos mitos
indígenas brasileiros, abundam a omofagia e a antropogagia. (1984, pp. 17-18)

Parece que fazemos um retorno a Freud no sentido de que as pulsões básicas de Eros e Tânatos
podem implicar a simultaneidade de prazer e crueldade, como se evidencia em versos de “Sarças de
Fogo” de Olavo Bilac, com que Sant’Anna exemplifica um canibalismo amoroso mais ardente, nos quais
o poeta escutaria a voz do seu objeto de desejo lhe dizer:
34
The lady sleeps! Oh, may her sleep,
Which is enduring, so be deep!
Heaven have her in its sacred keep!

This chamber changed for one more holy,


This bed for one more melancholy,
I pray to God that she may lie
For ever with unopened eye,

While the pale sheeted ghosts go by!

My love, she sleeps! Oh, may her sleep


As it is lasting, so be deep!
Soft may the worms about her creep! (Apud WILBUR, 2003, p.49)

172 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


Diz tua boca: “Vem!”
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO “Inda mais!”, diz a minha, a soluçar... Exclama

Todo o meu corpo que o teu corpo chama:

“Morde também!”

Ai! morde! que doce é a dor

Que me entra as carnes, e as tortura!

Beija mais! Morde mais! Que eu morra de ventura,

Morto por teu amor!35

Especificamente quanto a Alphonsus, os comentários de Sant’Anna confirmam nossas


observações anteriores a respeito da sublimação do desejo interdito. O poeta enlutado e melancólico
com a perda da amada, assim como em “The Sleeper” acima, “transfere para o verme a sua sanha
erótica”, fazendo dele um alter ego “canibal melancólico” ao devorar a carne de sua “bela adormecida”
em uma “eroticidade subterrânea” na qual “se maravilha no mórbido espetáculo de anatomia da morta”
(SANT’ANNA, 1984, p. 123).
Devaneio psicanalítico ou não, o que Sant’Anna nos proporciona no mínimo é uma ponderação
a respeito de como se afiguram duas direções poemáticas no tratamento de Eros e Tânatos, que é ora
descensional (fixação no plano físico), ora ascencional (fixação no plano espiritual), no que tange à
espiritualização da amada e do eu-lírico e, por conseguinte, ao mecanismo de sublimação do erotismo.
A descensão acontece quando Eros tenta se impor e é necessário que Tânatos se apresente,
valorizando-se muito mais o cadáver da amada do que sua alma; ocorre êxtase nesse processo de
interdição do desejo, mas de natureza mais grotesca, talvez até mesmo impura, com a decomposição
do corpo da amada. Já, no caso de ascensão, a posse erótica converte-se em união de almas, muito
mais pelo poder de Hipnos do que de Tânatos; o momento extático aqui tem a marca do enlevo e
elevação espiritual. Nos dois casos, a horizontalidade do desejo humano é transmutada na verticalidade
do desejo espiritual, porém com intensidade sublimatória diversa.
Todo esse mecanismo de sublimação nos provoca a trazer à baila o desdobramento junguiano
dos quatro estágios por que passa a anima masculina, analogamente a Eros. O primeiro, denominado
Eva, tem características puramente biológicas; o segundo, Helena, em referência à Helena de Tróia ou
até mesmo em relação à de Fausto, tem a ver com o envolvimento romântico-erótico; o terceiro, Maria,
por analogia à Virgem Maria, é a subida para o degrau da devoção religiosa; o quarto e último tem
Sofia, refletindo o aspecto da sabedoria ou sapiência que transcende até mesmo a pureza e a santidade,
criando-se a perfeita harmonia entre o consciente e o inconsciente, quando se procura o sentido da
existência e que serve de inspiração para os poetas.
Cremos que tanto Poe quanto Alphonsus deixam rastros dessa evolução de Eros, cada um, a
seu modo, alcançando o derradeiro nível de harmonia em sua trajetória poética ascensional.
Alphonsus de Guimaraens insiste amiúde em figuras ascensionais como a escada, a o caminho
celestial, a subida, as asas angelicais, que em muitos versos resultam na paz do grande e esperado
retorno da alma, e não do reencontro com a amada, pois como lemos em Escada de Jacó: “Afundam-se

35
www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000287.pdf (acesso em 12/09/2006)

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas 173


na terra as imagens lascivas / Não mais a comunhão dos beijos e salivas... / Amamo-nos em vida: o pó
fez-nos irmãos” (2001, p.381). Aliás, esse regresso místico só poderia ser concretizado à la Ismália, ou
seja, com a separação de corpo e alma; entretanto sem desvario nenhum agora, porque o poeta já teria
atingido a sabedoria redentora: Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris. Aqui estão
alguns exemplos de diferentes poemas:

“SONETO DE UMA SANTA” (parte IV)


[...] Pude ver-te, Senhor destes meus versos,
Dominador dos áureos universos,
Iluminar o celestial caminho...

Fez-se ao redor de mim silente calma.


Para o teu seio voou toda a minha Alma,
Como um pássaro em busca de seu ninho.
(2001, p. 449)

“SONETO XXXVII” (duas últimas estrofes)


[...] E vão-se as horas em completa calma.
Um dia (já vem longe ou já vem perto?)
Tudo o que sofro e que sofri se acalma.

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas


Ah se chegasse em breve o dia incerto!
Far-se-á luz dentro de mim, pois minh’alma
Será trigo de Deus no céu aberto...
(2001, p. 435)

“SONETO XXI” (da parte Caminho do Céu)


[...] Suba o Poeta escolhido a ebúrnea e diante
Dele os anjos iriais hão de cair de rastros!

E entre alas virginais de angélicas e rosas


Cego pelo fulgor da mansão do Noivado,
Feche contrito o Poeta as pálpebras chorosas.

E pensará: Para onde o caminho que trilho?


E o Pôr-do-sol largando o seu manto sagrado
Há de envolvê-lo assim como se fora um filho.
(2001, p. 399)

174 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


Semelhantemente, Poe defende que a ascensão da alma traz mais júbilo do que a consumação
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO do amor terreno, pois, conforme diz em “Israfael”, [...] esta Terra é um mundo de doçuras e de dores /
nossas flores nada mais são que flores.” (2001, p. 51). Proclama em Marginalia, que é uma coletânea de
observações anotadas à margem nas páginas dos livros que costumava ler: “Não é ilógico supor que,
numa existência futura, possamos considerar esta vida terrestre como um sonho” (2001, p. 173). E em
Eureka, cujo subtítulo é Um Poema em Prosa, por meio de raciocínio cosmogônico de equivalências
entre céu e terra, relembrando Swedenborg, Poe assegura enfaticamente que cada personalidade
se fundirá no coração divino, numa das etapas do grande plano cósmico, que vai desde o florescer
embrionário de uma semente, uma criança, um planeta, uma galáxia ou um universo até a sua eventual
reunião com a força criadora de tudo isso:

Todas essas criaturas, todas, a que chamas animadas, como aquelas a que negas a vida,
sem razão melhor do que a de não as veres em ação, todas essas criaturas têm, em grau
maior ou menor, capacidade para o prazer e a dor: mas a soma geral de suas sensações é,
precisamente, aquele total de Felicidade que pertence de direito ao Ser Divino quando
concentrado em Si Mesmo. Todas essas criaturas, também, são inteligências mais ou
menos conscientes; em primeiro lugar, conscientes de uma identidade própria; em
segundo lugar, e a relances indeterminados e débeis, conscientes de uma identidade
com Deus. Imagina que, dessas duas espécies de consciência, a primeira enfraquecerá
e a segunda se fortalecerá, durante a longa sucessão de séculos, que devem defluir, até
que essas miríades de Inteligências individuais se venham a fundir – quando se fundirem
as brilhantes estrelas – em Uma Só. (2001, p.293)

Ademais, testemunhamos atitude de desprendimento para com a amada comparável à que


vimos em Alphonsus. Consideremos “Lenora”; que, curiosamente, traz no título o nome da amada
perdida em “O Corvo”, cujo sujeito poemático não consegue se desapegar nem da noiva morta nem
da dor resultante. Atentemos para os versos finais de “Lenora”, que não só ascende, mas vive o beatífico
reencontro:

Ide! Meu coração não pesa! Sem canto funeral,


Quero seguir o anjo em seu vôo com um velho hino triunfal.
Não dobre mais o sino! Que a alma em seu prazer sagrado
Não o ouça, triste, ao ir deixando o mundo amaldiçoado.
Ela se arranca aos vis demônios da terra e sobe aos céus.
Do inferno, à altura se conduz e lá, na luz dos céus,
Livre do mal, da dor, se assenta num trono, aos pés de Deus!
(POE, 2001, p. 941)

Assim, com base em proposições freudianas, procuramos contemplar o panorama em que


Eros e Tânatos, os instintos de vida e de morte, respectivamente, encaixam-se na concepção estética de
Alphonsus e de Poe. Parece-nos bastante aceitável afirmar que para ambos os poetas Tânatos foi uma
válvula de escape artística em sociedades extremamente marcadas pela interdição moral e religiosa em
relação ao corpo feminino. Ao menos em uma fase de suas obras, o cadáver da amada se torna cada
vez mais atraente à medida que sua pele empalidece e as maçãs do rosto e os lábios se ruborizam, e
paradoxalmente encarna uma mulher virginal idealizada. Porém, a mulher tem de morrer objetivando
propósitos androcêntricos maiores: acentuar angústia e a melancolia da voz poemática masculina e
servir de inspiração estética, na qual reside uma força oculta – a sublime beleza – que triunfa sobre a
morte.

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas 175


Por fim, em um momento de sublimação mais amplo, quando os poetas dão a impressão de
estarem mais preocupados com sua própria morte, seguindo os degraus evolutivos de Eros propostos
por Jung, o amor entre o eu-lírico e a mulher é de natureza muito mais fraternal, reflexo de um almejado
retorno às condições primevas da Criação.

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas

176 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO R E F E R Ê N C I A S

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Menezes. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O Canibalismo Amoroso – O Desejo de Interdição


em nossa Cultura através da poesia. São Paulo: Círculo do Livro, 1984.

Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas 177


Alguns aspectos da relação Eros/Tânatos em poemas

178 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO

CAPÍTULO 13

Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita


romanesca de devaneios líricos
Divino José Pinto

Memórias de Lázaro é, certamente, um desses romances brasileiros que provoca o leitor


e incomoda a crítica, no sentido mais positivo dos termos; principalmente, pelo seu tom narrativo
surpreendente e por sua tessitura instigante e sugestiva no que concerne ao tema ‘memória’ expresso
em seu título.
Não é só pela escolha vocabular ou pelo brilhante trabalho de manipulação das palavras e
expressões ou pela fraseologia deliberadamente arranjada desse texto que se deve tomá-lo na conta
de um grande romance. É muito mais pelo modo como Memórias de Lázaro se apresenta, no feitio, na
riqueza de imagens poéticas, na ruptura da linearidade ortodoxa, bem como na ampliação da noção
de gênero, fugindo à forma fixa do romance tradicional pela inserção e o cultivo de uma metáfora
poética persistente, o que, em última instância, o torna um romance balanceado nas imagens, afável na
linguagem, denso e profundo no seu tonus.
O presente artigo propõe uma abordagem deste romance, do baiano Adonias Filho,
considerando preferencialmente, a sensibilidade poética com que é tecida a sua trama. A riqueza de
imagens, o refinamento de um Eu que, ao narrar suas reminiscências e investidas de sua experiência
errante, revela nos detalhes de sua fala cifrada o vasto universo de hábitos e crenças; um mundo
particular, com seus códigos mais arraigados.
Um vale carregado de memórias e mistérios, uma estrada sem começo e sem fim, compõem
a base desse estranho espaço que se amplia em proporções imensuráveis e ganha vida nas palavras
amenas de Alexandre, o personagem-narrador que funde em seu discurso os hábitos e mazelas de uma
gente colhidos em todos os tempos: o passado carcomido, roto, assustador e o presente, não menos
recheado de peripécias, sonhos vãos e sofrimentos:

Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos 179
Infinito é a estrada com suas curvas, suas colinas e suas árvores.[...] Para os outros, os
viajantes que por milagre a atravessassem sem conseguir rolar os seis segredos, seria
apenas uma estrada.

Para nós, gente do vale, que a limpamos todos os dias com os nossos pés, que sobre ela
suportamos o sol e toleramos a chuva, é o mundo que liga nossa vida e une as nossas
esperanças e sofrimentos. Muitas vezes lembrando uma serpente, divide-se em mil
veredas. Penetra nas planuras, invade a paisagem vazia, sem expansão, comprimida na
monotonia dos tabuleiros.[...] Falando a verdade, digo que o vale existe porque existe a
estrada. (ADONIAS FILHO, 1978, pp. 3/4)

Esses dois elementos, o vale e a estrada, perfazem não só a geografia física na qual a trama de
está estruturada, como se alargam feito motivação de um vasto ambiente mental oscilante, marcado

Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos


pela imprecisão de uma mente ambulante da qual resultará novos cenários e metáforas, fruto dos mais
imprevisíveis desdobramentos da memória e do discurso de Alexandre. A infinitude da estrada, os seus
mistérios e encantos; as peculiaridades do vale, a sua condição de mundo em si mesmo, isolados do
resto do mundo, tudo isso apresentando em forma de advertência, prenuncia o que estaria por vir
nessa estória, paradoxalmente, singela e complexa. Desse modo, o narrador nos convida ao mergulho
no discurso da memória e dele extrairmos os saberes mais improváveis que são forjados no vale e
perambulam por ele, no dorso arredio de seu “vento perdido”.
Estas reflexões se destinam à busca na trama lingüística de Memórias de Lázaro de possibilidades
que transpõem os limites da semântica essencial das palavras. Elas são, na verdade, um esforço que
persegue a manifestação da beleza realizada nas artes e manhas de uma poética particular: a de
Adonias Filho. E, nesse romance, em particular, o dado poético ao qual já nos referimos, é sem dúvida
o ingrediente que torna mais atrativa a viagem ao interior de seus personagens, eivados de exotismo,
verdadeiras entidades reveladoras das tais peculiaridades que o romance em apreço apresenta,
confirmando o perfil sui generis da estética adonisiana.
Salienta-se, entretanto, que, na verdade, assim como as imagens poéticas não aparecem no
romance em ritmo e intervalos sistemáticos, assim também se dará o nosso empenho, a nossa busca
para capturá-las. É conveniente, aliás advertir que não se pretende, aqui, inventariar nem se ater
detalhadamente nessas imagens. Antes, pretende-se destacar algumas delas, as mais significativas,
pelo menos, e então, partilharmos das sensações refinadas de beleza e verdade que o texto de Adonias
Filho nos oferece.
Ao empreendermos a tarefa de investigar, pontualmente, esses aspectos em Memórias de
Lázaro, é mister considerar que a obra de arte, principalmente a literária será sempre um mecanismo
complexo, consoante ao que nos adverte com propriedade o esteta brasileiro Tasso da Silveira, (1964):

Da obra de arte em geral mas sobretudo da literatura, se poderia dizer sem


descomedimento que é o mais complexo dos fenômenos que se apresentam, no
mundo, à consideração da inteligência. (SILVEIRA, 1964, p. 9)

Destarte, estamos diante de um desses fenômenos que, de maneira tal extrapola os limites
de tempo e espaço, desvinculando-se dos rótulos para formatar sua própria identidade e cavar sua
existência em meio a uma plêiade seleta de obras literárias cujo mote principal seja a memória. Portanto,
não será difícil atestar essas virtudes na narrativa em tela, uma vez que toda ela traz ao foco um modo

180 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


especial de se tratar o tema ‘memória’ e está cunhada, como discurso especial híbrido, usufruindo à farta
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO das armadilhas da palavra-arte.
Memórias de Lázaro caracteriza-se como exemplar consistente de objeto artístico daqueles
que a teoria e a crítica literárias têm se esforçado sobremaneira para apontar com o mais sólido
rigor científico, o que Gadamer (1972) chamará em seus estudos comparatísticos de “autonomia da
subjetividade perceptiva...”
Assim, ao lermos um texto, como o fizemos com Memória de Lázaro, de pronto, já o inserimos
em um contexto histórico e literário mais amplo. Contudo, jamais se deverá perder de vista o seu projeto
estético em particular, bem como a sua realização, que, em última instância, será a pulsação dessa
“percepção subjetiva” de que falou Gadamer. É isso, alas, que o torna único e chama muito a atenção
para os termos que calham bem quando nos pomos a criticá-lo, quais sejam: memória, linguagem e
universo romanesco e, especialmente, sensações lírico-subjetivas.
Em outras palavras, é percorrendo os meandros de sua linguagem, buscando atingir suas
especificidades que chegaremos à visão de mundo adonisiana, carregada de tragédia, poesia e
morte, sublimação e espírito de grandiosidade. É assim que Memórias de Lázaro nos dá a conhecer a
imagem difusa de um ambiente, paradoxalmente, hostil e amável: hostil pela dureza da terra, pela ação
tempestuosa de sua natureza e amável pela sensação de recolhimento manifesta em seus personagens,
a sensação de que possuem um mundo só para eles. Neste jogo, na conjunção mesma da linguagem
com a cena social externa surge o mundo de Alexandre, feito de imagens inacabadas, muito mais
sugeridas que mostradas, estimulando um percurso mental amplo de ritmo lasso que o leitor haverá
de palmilhar para perceber todo o engendramento desse espaço forjado pela narrativa de Adonias
Filho. Por isso mesmo, parece lícito apontar que ocorre em Memórias de Lázaro o que Bachelard (2001)
chama de “ação imaginante”, uma vez que, cabe ao leitor a tarefa de “deformar” e “mudar as imagens”;
gesto que pode nos libertar das imagens prontas, imagens primeiras. Essas imagens precárias, contudo
sugestivas, é o que teremos no romance em pauta, tanto no que concerne à descrição dos aspectos
externos quanto no que respeita às qualidades intrínseca dos personagens, esses viventes esvaziados,
habitantes de uma república do nada:

Mas, no vale, todo se pareciam com Abílio [...] Uma criatura feliz, alguém que não traga
ferrugem nos ossos não ficará aqui. Fugirá temendo o negrume do céu, a solidão do
vale estrangulada pelo vento doido. Abílio só ficou no vale, disse-me depois, porque o
vale não é deste mundo. Uma zona esquecida, ele ensinava, onde os homens são mais
humanos porque não temem a dor, o medo e nem ocultam a cólera [...] Sei, porém, que
antes de Abílio, em nada pensava senão trabalhar a terra com a mãos e nada sentia a não
ser o cansaço, a fome e a sede. (ADONIAS FILHO, 1978, p. 21).

Alexandre ouve estas palavras da boca de Jerônimo que, a partir de então se revela o porta-
voz de um passado esquecido, porém fundamental na tessitura de sua história, na configuração de sua
existência que começa a tomar corpo. Abílio, o homem que Alexandre somente conhecera no caixão,
era o seu pai. Sua mãe, Paula, jamais soube da própria existência, nem mesmo dera fé do seu filho: era
“tola”. Alexandre é, portanto, o fruto de um encontro fortuito e inexplicável, fatos típicos de um núcleo
social marginal, bem ao caráter da proposta adonisiana. As imagens que este pobre moço haveria
de ter da vida não seriam se não as de um mundo ofuscado, composto por estilhaços de memórias;

Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos 181
observadas agora à luz do discurso de Jerônimo, a voz que dá alma ao vale. A descrição desse momento
de descoberta, feita pelo próprio Alexandre, revela a profusão de sensações ocorridas em sua mente, no
instante em que sua casa, símbolo maior de sua existência ia sendo erguida, com a ajuda de Jerônimo,
tornando real o sonho de ter ao seu lado a bela Rosália, peça fundamental em seus planos:

O movimento da enxada, a percepção das paredes que se erguiam, os esteios deitados


o mundo se concentraria nisso, e no eco da voz de Jerônimo, não fosse o sentimento
extraordinário da descoberta. O pai, Abílio, eu o conhecera pouco, mas sempre o
conhecera a ponto de lembrar-me da sua face morta. A mãe, Paula, só naquele momento
a conhecia. “Ela não soube que me gerou”, pensei enquanto a enxada ia e vinha,
amassando o barro. No instante, fração de um segundo, várias imagens se confundiram,
oscilando na obscuridade interior. [...] Teria de esperar fossem pregadas as portas e

Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos


escuras ficassem as telhas para que admitisse a minha existência como começando e
terminando em ruim mesmo. (ADONIAS FILHO, 1978, p.24).

Percebe-se então que, quanto mais Alexandre vai travando conhecimento com o seu passado,
mergulhando em seu próprio vazio existencial, mais a narrativa se vai florescendo na beleza de suas
imagens, na grandeza do sentido e na sensibilidade de um discurso, ao mesmo tempo, discreto e vigoroso
o suficiente para fazer aflorar consciência e ideais de um mundo perdido. O eu do narrador parece querer
dizer para si mesmo, coisas das quais ele pouco ou nada conhece, mas sente, profundamente. Os signos
e expressões “obscuridade interior”, “existência”, “em mim mesmo”, enunciam um movimento centrípeto
das sensações do protagonista. Nesse instante fugaz de sua consciência o leitor pode imaginar a
complexa e sofrida história de Alexandre, embora ele próprio a desconheça, apenas sinta o que jamais
poderá explicar satisfatoriamente. Mas é nessa história inexplicável, nesse enredo, por vezes, desconexo
que repousa a importância e o significado de uma memória que se constrói ao sabor de um ritmo
lento da própria narrativa; sem grande esforço, no compasso lasso do vale, quase involuntariamente. No
entanto, todo o futuro de Alexandre estará comprometido, seriamente, pelos fantasmas que povoarão
e atormentarão sua consciência, sempre.
Neste caso, o movimento de tomada de consciência da existência florescerá em Alexandre, de
maneira invertida, ou seja: ao invés de caminhar da utopia para a cena real, ele se dará desta cena para
a utopia. A contemplação de seu passado, a possibilidade de se descobrir em suas memórias, mesmo as
não vividas, pode lhe remeter para além das fronteiras do tempo e do espaço palpáveis; inserindo-lhe,
definitivamente, no abismo sedutor de sua busca, na qual o sonho e o inusitado urdem a tela mágica de
sua vida.
A partir desse ponto, o romance transcorre apresentando os descompassos de uma vida
errante, em que o fantástico, o maravilhoso ou mesmo o absurdo, se fazem presentes, concomitante
ou alternadamente, transformando, por conseguinte, o herói Alexandre em um símbolo carregado de
sentidos e o romance Memórias de Lázaro numa obra de leitura jocosa pela riqueza de propostas que
ativam, a todo momento, a “ação imaginativa”.
A narrativa adonisiana prossegue em movimentos analépticos, recobrando sempre uma
memória precária em busca de uma unidade quase impossível de ser alcançada, uma vez que a
própria vida do protagonista Alexandre já é o maior exemplo da fragmentação que, aos poucos vai
se configurando em Memórias de Lázaro. O ócio mental de Alexandre lhe provoca inquietações que o
fazem dirigir-se diretamente ao leitor como seu grande interlocutor, aquele que, a partir desse ponto da

182 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


narrativa passa a ser uma espécie de cúmplice de Alexandre, posto que as vozes do vale, a de Jerônimo,
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO por exemplo, vão se calando e cada vez mais o protagonista vai mergulhando no seu labirinto povoado
de interrogações e devaneios de imagens líricas, componentes de uma realidade que jamais será
reconstituída integralmente:

“Paula dormia”, a voz de Jerônimo se imobilizava no mesmo ritmo. Extinguiu-se, afinal.


Mas, e já que sentia ser impossível arrancar de Jerônimo novas palavras, idealizava por
minha própria conta o absurdo período da infância que não tardaria aceitar como certo.
É possível que falso tenha sido o meu sonho. É provável que a imaginação me tenha
iludido. Não me interroguem, porém. Ouçam, eu peço. (ADONIAS FILHO, 1978, p.25)

Paula, a mãe desconhecida vai se apagando na voz de Jerônimo ao mesmo tempo em que
floresce na memória difusa de Alexandre, passando então a elemento de um complexo mosaico de
imagens imprecisas, sem contornos que vão se formando em sua consciência. A narrativa de Alexandre
entra, de vez, no campo das especulações. E será este tom que permeará toda a narrativa, doravante,
caracterizando o seu tom de perguntas sem respostas em que as metáforas derivarão umas das outras
e a consciência do narrador vai, cada vez mais se embrenhando nesse mundo de coisas não resolvidas,
conduzindo num mesmo ritmo a sensação do leitor e a sorte pessoal de Alexandre para um labirinto de
uma memória rica, problemática e, poeticamente, sugestiva, a um só tempo.
A busca de unidade narrativa impele Alexandre cada vez mais para a diversidade confusa
numa seqüência de imagens de vida e opiniões mal formadas de um passado que ele próprio ignora
e tenta recompor. Alexandre elege então a figura de sua amada, Rosália, como peça fundamental de
seu quebra-cabeça, ela significava, para ele, o seu complemente; ambos estavam perdidos, tanto ele
quanto ela procuravam o que eles próprios desconheciam:

Quando eu a vi, pela primeira vez, ela corria em minha direção, entre os pés de milho.
[...] Não encolhendo as mãos que derrubavam as espigas, não vendo sequer que eu
obstruía o seu caminho, deteve-se ao sentir que se batia contra mim, ferida a sua testa
e sangrando os meus lábios. Olhou-me, sem susto, sem pronunciar uma palavra, e
continuou a correr.

Encontravam-se, assim, os filhos do vale. (ADONIAS FILHO, 1978, p. 29)

Quanto mais se materializa a presença de Rosália na vida de Alexandre, mais ela vai se
transformando em figura ideal e o encontro dos dois, aparentemente casual e que, supostamente,
poderia por ordem na trajetória de Alexandre, servirá, como veremos na seqüência, como mais um
elemento desagregador dessa ordem. É por essas ocorrências narrativas que a história vai, mais e
mais perdendo a sua força realista e ganhando, na mesma proporção, um caráter impreciso no qual a
importância maior do romance será filtrada para as suas entrelinhas; e assim, o sentido do texto irá se
concentrar nas filigranas poéticas, nas sensações que advêm dos momentos imaginados, das venturas
sonhadas, das aventuras idealizadas que resultarão todas em desilusões do ponto de vista humano,
mas no que concerne ao viés poético-narrativo, esse encontro-desencontro, encanto-desencanto
abrirá as janelas para a grande viagem rumo ao desconhecido universo de Alexandre e Rosália, um casal
que, gradativamente vai se desumanizando, tornando-se entidades, símbolos tão somente, arremedo
metafórico, verdadeiros simulacros; diminuindo-se, ambos como personagens no mesmo momento

Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos 183
em que se avolumam como ícones representativos de um enredo desconexo, uma grande aventura em
forma de escrita.
Os devaneios, à medida que avança a história e a narrativa vão tomando conta da consciência
de Alexandre. Rosália passa então a ser a sua única esperança, uma vez que todo o seu passado já está
fugidio e ofuscado:

Brotando desordenadamente como as imagens que escapam das vigílias, o passado


limitava-se definitivamente em Rosália. Como nos sonhos, as recordações tornavam-se
leves, a realidade perdia as arestas, a ordem lógica impressionava precisamente porque
absurdos eram os seus movimentos. (ADONIAS FILHO, 1978, p. 29)

Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos


A fala do narrador neste trecho é sintomática ao apresentar, subliminarmente, como a
imprecisão e a linearidade narrativas, aliadas ao impressionismo das imagens vão, aos poucos,
triunfando. O sentido mais usual da memória que, via de regra, evoca a instituição familiar até que foi
mencionado, mas a narrativa adonisiana é cheia de esquivas e a tentativa de se organizar linearmente
a história de Alexandre, na verdade, não passaria de falso logro. Há, como se pode observar no trecho
em destaque, uma inversão dos valores, ou seja, a lógica impressiona pelo seu caráter absurdo. Com
isso, a realidade circundante, mundana perde o seu papel central, dando lugar à lógica da loucura que
se instala passo a passo. O movimento ganha nova lógica, começando pela leveza das recordações, o
que conduz às reminiscências da consciência de Alexandre, até chegar à sensação pura, equivalente
ao processo involuntário da memória, cujo sentido estará na imagem poética carregada, plural. Essas
imagens e sensações se realimentarão continuamente, voltando sempre para dentro de si mesmas,
multiplicando-se tal qual nos orienta Bachelard (1999): “O devaneio opera como estrela. Retorna a seu
centro para emitir novos raios.” Alexandre recorrerá, sempre que necessário, a seus devaneios. São eles
que nos oferecerão as imagens mais precisamente imprecisas de todo o vale: “Os homens, no vale, falam
menos com os lábios e mais com os olhos.” (p. 33). Assim, vão aparecendo as entidades surrealistas
do vale, transeuntes que não se detêm em nada, não contemplam, são contempladas, ainda que sua
existência seja absolutamente marginal do ponto de vista da história que transcorre, “... criatura do
vale que passa, silenciosa e rude, os pés no mundo de pó.” (p. 34). Criatura que passa, mundo de pó.
É assim que vai se consolidando o verdadeiro significado do vale, como um todo. É a configuração, a
transformação do universo real em linguagem, em imagens que dirão por si mesmas: “Mas o vale, apesar
da aparência cotidiana, surgia para mim inteiramente transfigurado.” (p. 38). Dessa forma, Alexandre vai
nos contando a sua história num movimento de fora para dentro, no qual a dimensão histórica externa
não passará de motivação para o fingimento poético que será o cerne de sua narrativa.
Mas, Alexandre, por mais que se esforçasse para se incluir no universo comum dos homens, não
lograva êxito. Ao receber Rosália em sua casa já pronta, percebe que todos os seus sonhos e expectativas
não se realizarão nunca. Percebe também que o vale surpreende sempre. Com a expressão: “Finalmente,
Ia começar a viver.” (p. 40), alusiva à chegada de sua amada, Alexandre inaugura uma nova e definitiva
fase de sua vida que caminha em passo vultosos para a loucura, posto que, tanto ele quanto Rosália se
descobrem absolutamente esvaziados, são ambos subprodutos do inóspito vale:

184 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


Foi neste minuto, dominado pela força daquele olhar vazio, que a mim mesmo indaguei
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO por que estávamos ali, no fundo do vale, tão próximos um do outro e ao mesmo tempo
um do outro tão distantes. (ADONIAS FILHO, 1978, p. 29)


A noção de espaço expressa nos signos “perto” e “distante” corresponde à localização da
consciência de Alexandre e Rosália. O “olhar vazio” desta se mistura à vida vazia daquele e o “fundo
do vale”, tal qual se refere Alexandre evoca por meio de memória remota o vale da morte, metáfora
do mundo dos homens, atribuída à terra nos dias mais obscuros de sua história. Alexandre e Rosália
encenam assim, um ato absurdo, parte de uma peça também absurda: a vida no vale. Tudo aqui se
confirma, à medida que a narrativa se desenvolve, estar à mercê da sorte. Episódios absurdos, marcados
por catástrofes e insensibilidades vão se agrupando, o que tornará Memórias de Lázaro num romance de
tragédia pelo somatório de imagens, poeticamente elaboradas, nu misto perfeito de sonhos, devaneios
e dor.
Ao conhecer a tragédia ocorrida na casa de Rosália, ou seja, a morte do pai pela própria filha,
o abuso desta pelo seu irmão, Alexandre vê a imobilidade crescer dentro de si, lembrando a tese
dostoiewskiana do “homem de pensamento” e de “ação”. Mas Alexandre não é nenhuma das duas
coisas, ele é tão-somente um homem paralisado, estupefato e impotente, assim como era também
Rosália diante do vale impiedoso: “Fechado em si mesmo, sem portas de saída, [...] Um túmulo, quase.
Nós os seus mortos.” (p.46). Ambos não são de pensamento nem de ação, mas serão seres, talvez entes
apenas de contemplação, uma contemplação mórbida na qual as imagens precárias dizem muito mais
que a narrativa mesma que se definha do ponto de vista da história juntamente com as entidades que
habitam o vale perdido.
A partir desse ponto, o romance entra em sua segunda parte na qual tudo colabora,
definitivamente, para o progresso da sandice de Alexandre. Este, aproxima-se do leitor, narrando agora
as memórias de um mundo que não passa de nódoas e fantasmas de uma história que será apenas
imaginada e revisitada na sua memória, cuja beleza e plasticidade repousam na inexatidão de suas
idéias e palavras opacas. Cortes em formas de analepses vão se sucedendo uns aos outros, revelando
seres anulados, angústias do passado que se presentificam pela memória, colocando num ambiente
único todas as figuras do vale, numa atmosfera carregada de vida e morte, revelando a condição
verdadeira do herói Alexandre: “...eu, na verdade um triste animal, ...” (p.69).
Nesse esforço para caracterizar o vale e seus habitantes, suas coisas e particularidades,
Alexandre mergulha de vez em seu universo próprio. A morte de Rosália elimina todas possibilidades
de nosso herói se mover para a consciência. Ao contrário, ele se afastará, progressivamente, dela até se
tornar um mero portador das notícias mais íntimas de uma imagem vazia desse vale que já não mais
existe:

Sujas se tornaram as roupas do meu corpo e o meu corpo se tornou outro para mim
mesmo. Os meus cabelos cresceram, alcançaram os ombros, fundiram-se com a barba.
Os pés pisavam, muitas vezes feridos, mas não sabiam em que pisavam. [...] Vagamente,
tão distante quanto eu próprio a presença de Jerônimo. Descendo, sempre descendo,
perdi o contato com o vento, com os homens, com o vale. Mas seria Jerônimo quem,
algum tempo depois, traria a minha lembrança do que eu fora. Sem pânico, ouvi o que
me contava: - Um homem morre em vida, Alexandre. (ADONIAS FILHO, 1978, p. 75)

Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos 185
Alexandre, a exemplo de todo o vale, é, agora, nada. Sua memória oscila, principalmente entre
Jerônimo e Rosália e sua narração também se dará em modos diversos, ora de forma quase linear, ora
quadro a quadro no feitio da técnica cinematográfica, mas, na maioria das vezes, numa profusão de
idéias e imagens, sem contorno nas quais se fundem o passado e o presente resultando na completa
inutilidade do ‘agora’ de Alexandre em sua busca extrema pela identidade inatingível.
É assim que Alexandre construirá, paradoxalmente, a sua própria imagem desgarrada da
realidade, num mundo de fantasmas, cujo trabalho da memória será uma verdadeira exumação de
imagens perdidas, articuladas na fusão de recursos das linguagens verbal e não verbal que vão se
tornando gestos obscuros, manifestações de uma memória sem controle. Nessa atmosfera de perfeita

Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos


suspensão, o limite entre espaço real e dimensão onírica já não obedece a nenhuma regra e a memória
de Alexandre vai se enchendo dessas imagens e sensações, num diálogo ininterrupto entre espaço
mundano e virtualidade, sendo esta e configuração maior da consciência do herói e aquele apenas a
sua motivação.
O corpo se converte em sombra e o personagem central de Memórias de Lázaro entra em
crise profunda reconhecendo-se, pela ansiedade, nesse movimento dialético como, “...como um ser
imaginário.” (p.127), uma invenção, restrita ao âmbito da palavra.
As palavras e idéias de Alexandre são quase sempre conclusivas. Contudo, todas elas serão
retomadas sempre em seus devaneios que partem de um passado sem história, passando por um
presente calcado na fantasia para se chegar a um futuro sem qualquer possibilidade de escolha. Assim,
a febre e o delírio vão tomando conta de Alexandre que volta para a caverna, embrenhando na mata,
verdadeiro símbolo do labirinto que se tornara a consciência de Alexandre: “A mata devora a alma dos
homens.” (p.136), lembrando a Macondo de Garcia Márquez.
O mundo agora é só miragem. O drama de Alexandre cada vez mais se avoluma paralela à sua
dimensão animalesca, em uma mata sempre repetida e igual onde podemos ver o drama de Otelo,
de Shakespeare ou mesmo o de um eu drummondiano acuado pela “...pedra no meio do caminho.”
Alexandre não tem saída, ele próprio é um fantasma, tanto que lhe vem o desejo de eliminar Jerônimo
de sua memória, na tentativa de humanizar-se a si mesmo, tomado pela curiosidade infantil, cheia de
imprevistos.
Alexandre se esforça por nascer de novo, constituir-se como ser, mas a sua condição de criatura
fantasma “sem carne, sem sangue, sem vida. Não foi viagem, mas um vôo sem asas.” (p. 157), coroa
a sua sina irreversível, a sua condição de imagem condenada à opacidade, sua existência apenas no
discurso, esvaziado totalmente de história e humanidade; Alexandre, Rosália, Jerônimo, todos do vale,
até o vento, o próprio vale, tudo é nada, nada que é pó, que é resto e o resto é “só poesia”.

186 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO R E F E R Ê N C I A S

BACHELARD, Gaston. A Psicanálise do Fogo, São Paulo, Martins Fontes, 1999.

BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos, São Paulo, Martins Fontes, 2001.

BRUNEL, P., PICHOIS, CL., ROUSSEAU, A.M. Que é Literatura Comparada?. São Paulo:

KAISER, R. Gerhard. Introdução à Literatura Comparada. Lisboa, Fundação Calouste


Gulbenkian, 1980

KRISTEVA, Julia. Introdução à Semanálise. São Paulo: Editora Perspectiva, 1964

SILVEIRA, Tássio da. Literatura Comparada. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1964

XAVIER, Ismail. O Recurso Cinematográfico. São Paulo: Paz e Terra S/A, 2005. Editora
Perspectiva, 1995

Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos 187
Plasticidade e embriaguez dionisíaca em Sargento Getúlio

188 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO

CAPÍTULO 14

Plasticidade e embriaguez dionisíaca em Sargento Getúlio


Éris Antônio Oliveira

Esta narrativa ficcionaliza uma viagem imaginária que traduz os aspectos mais íntimos e
significativos da trajetória existencial do personagem-narrador, que está imbuído de uma importante
missão que se revela paulatinamente entre o fabuloso e o cotidiano, o ficcional e o real, estabelecendo
um jogo, entre o possível e o verossímil, que confere especial fascínio a essa história.
Getúlio, o viajante, habita um espaço hostil povoado por homens rudes e, com eles, constrói
uma história comum feita de enfrentamentos, paixões, alegrias e dor. Suas experiências são tonalizadas
por uma coloração própria, que coloca em cena um mundo horripilantemente trágico, mas poetizado
por uma linguagem alternativa, trabalhada formativamente à exaustão.
Na tentativa de capturar o mundo interior do personagem, configurador de sua consciência
pessoal, a linguagem se torna altamente complexa pela contínua reordenação de seus aspectos sintático
e semântico. Nesse jogo ficcional, a realidade e a imaginação se interpenetram, instaurando um espaço
novo que enseja variadas interpretações. É nessa confluência que o autor diligencia para exprimir
sua visão formativa da existência, fazendo com que a conformação artística metaforize a estrutura
da realidade histórico-social objetiva, conservando suas características gerais, mas infundindo-lhes,
sempre, uma especial transfiguração criadora.
Pela plurivocidade semântica, decorrente do redimensionamento do discurso, o autor implícito
insere o leitor no reino da criação mimética, instauradora de uma realidade mais bela e mais instigante
do que a da vivência cotidiana. E “o belo é o valor que é experimentado nas coisas, bastando que
apareça, na gratuidade exuberante das imagens, quando a percepção cessa de ser uma resposta prática
ou quando a práxis cessa de ser utilitária” (DUFRENNE, 2002, p. 25). O belo é um valor experimentado
num objeto, que se torna diferenciado e único entre as coisas do mundo, mesmo entre as mais terríveis
e as mais surpreendentes, porque ele apresenta uma inconfundível sensibilidade expressiva.

Plasticidade e embriaguez dionisíaca em Sargento Getúlio 189


Os valores estéticos devem ser compreendidos como metafísicos, pois eles exprimem os
significados fundamentais do homem. No fenômeno artístico está expressa a face essencial da realidade.
Segundo Nietzsche “a arte se torna a chave para se abrir a significação mais essencial do mundo” (1970,
p. 100). Por isso ela se aproxima da filosofia, pois ambas exprimem a essencialidade da cultura.

DIONÍSIO EM CENA

Um dos aspectos fundamentais para se compreender aqui a elaboração artística de Sargento


Getúlio é a concepção dionisíaca da arte. Esse é um fator criativo que ajuda a compreender as obras
realizadas a partir de uma deliberada fuga da estruturação lógica corrente. Segundo a proposição dos
gregos, Dionísio é o deus “que ama a música sedutora, que desata as paixões, que embriaga e contagia,
envolvendo os homens por um irresistível frenesi” (LATERZA, 1985, p. 27), e Apolo é o símbolo do instinto
da plástica, da simetria, da proporcionalidade e da beleza radiante, propiciada pela imaginação.
Apolo irradia em sua imagem a idéia de perfeição, representando simbolicamente a arte
plástica: é um deus configurado numa bela estátua. Dionísio é a embriaguez, a vertigem que altera
o fluxo das formas. É também o caos e a noturnidade, aspectos que ajudam a exprimir a infinitude
intensiva da experiência transcendental da vida.
A história de Getúlio carrega consigo uma enorme força vital, cujo excesso torna sua trágica
aventura profundamente humana. Sua densidade instaura-se a partir do múltiplo, do incerto e do

Plasticidade e embriaguez dionisíaca em Sargento Getúlio


terrível. Mas a criatividade poética do autor implícito transforma o sentimento de desgosto, em relação
ao informe e ao pavoroso, em representações plásticas com as quais se pode conviver produtivamente.
O protagonista está submerso no caudal da experiência político-social de seu tempo e
impossibilitado de avaliar os costumes de seu ambiente comete abomináveis atrocidades, como o
assassinato de um oficial sergipano: ‘O senhor, sargento, estrompou o destacamento. Ah-hum, ah-hum.
Cortou a cabeça do tenente e sacudiu na ponta da corda’ (RIBEIRO, 1982, p. 97). Distanciado dos valores
fundamentais, o Sargento não consegue captar os descompassos do mundo.
Estava prevista uma festa política em Ribeirópolis, mas os udenistas impediram-na, entre
eles um correligionário que fora preso e que Getúlio deveria conduzir de Paulo Afonso a Aracaju, por
determinação de seu chefe (doutor Zé Antunes), político de expressivo poder em Sergipe. É assim que
o protagonista inicia o percurso essencial do enredo:

cabo eleitoral dessa laia não merece respeito. Mesmo agora que eu perdi a autoridade,
sempre fica o prestigio. Em Aracaju tenho as costas quentes e não é assim que Getúlio
vai se ver de uma hora para outra. Principalmente depois de entregar vosmecê. Tem
ambientes em Aracaju, gente a seu favor. Coisas. Não gosto desse serviço, não gosto de
levar preso. Avexame. Depois de levar vosmecê lá, assento os quartos num lugar e largo
essa vida de cigano. Só se doutor Zé Antunes pedir muito. Mesmo assim. Me aposento-
me (RIBEIRO, 1982, p. 13).

Getúlio torna-se intérprete de sofrimentos e contradições que instituem esse universo ficcional
alicerçado na influência onírica de Dionísio. Tal qual esse deus, o protagonista atrai para si o mundo
real, mas reveste-o pelo sonho e pela embriaguez, operando, nesse caso, o fenômeno da identificação
heteropática, pelo qual o indivíduo atua sobre o mundo para torná-lo idêntico à sua visão.

190 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


Da força simbólica de Dionísio, nasce o poder fundante da linguagem, especialmente, da
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO linguagem ‘original’, que renova a fala nordestina, excluída do padrão da língua portuguesa, mas
detentora de rara poeticidade. O perfil discursivo marcado pelo desvio torna-se próprio para que o
emissor possa falar, inventivamente, da contra-face das coisas e do avesso de sua experiência existencial.
Esse sentido subjacente que perscruta o segredo das coisas constitui o mundo particular do
objeto ficcional, no qual a linguagem nos dá imediatamente acesso, porque ela é, aí, essencialmente
expressiva, isto é, ao fugir do padrão usual de comunicação, torna-se portadora de sentidos fundamentais
dos seres e das coisas.
As ações de Getúlio estão em consonância com a constituição de seu caráter e com a natureza
intrínseca do texto. Aparecem bem figurativizadas sua constituição psicológica, suas emoções, seus
sentimentos e sua afetividade. Ao longo do enredo, vê-se que ele é leal a seus superiores, persistente
e capaz de sustentar uma causa até o fim. Sua adequação à totalidade textual é surpreendente,
confirmando, assim, que o autor conseguiu realizar, com sucesso, seu personagem, a partir de detalhes
que concorrem para a excelência da narrativa. A coerência de seus traços contribui positivamente na
elaboração total deste romance, conduzindo-nos ao seguinte raciocínio: “A obra artística adquire valor
pelo fato de ser adequada a si mesma e, não, a outra coisa, de maneira que o processo de sua formação
consiste em transformar em forma formada a forma formante” (PAREYSON, 1993, p. 77). Isto quer dizer
que a adequação refere-se a seu acabamento, que deve atestar uma perfeita coerência, ou seja, suas
partes devem integrar-se em completa harmonia, de tal forma que este recurso concorra para ampliar
o deleite do leitor.

REDIMENSIONANDO A LINGUAGEM

Desencadeia-se, desse modo, um vocabulário insólito, de semantização plurívoca, apta a


cumprir a dimensão reveladora da linguagem:

Mas seu Nestor só falou duas coisas alto e deu com a mão na menina e eu e Amaro fomos
ajudar a segurar para darmos porrada nela. Merecia. Mulher que viu homem nessas
condições é rapariga. Ou vai ser. Punitivos é bom. Por isso que seguremos um pouco,
ao que o pai dava o castigante com o mesmo manguá que eu olhei e aparava na mão
crua, com a canhota, quer dizer que era em cima e em baixo. Mas não teve precisão de
segurar mais, porque aquele manguá era dos de amansar burro... (RIBEIRO, 1982, p. 55).

Essa discursividade alternativa tornou-se apropriada para a instauração do significado


subliminar e desvelador da obra. A esse respeito, Heidegger disse que “A poesia é a língua primitiva
que dá nome às coisas e funda o ser” (1991, p. 89). Concordando com esse pensador, as palavras, aqui,
ganham vida, “brotam do amor que nos une a elas, pois o escritor só nasce, quando o mundo que está
revelado nelas PEDE VOZ E ROSTO” (Nejar, 1992, p. 6), colocando ao nosso dispor a expressividade,
diferenciada e necessária, da enunciação metafórica.
A densidade humana ficcionalizada em Sargento Getúlio, por meio de sua linguagem
profundamente estilizada, tornou-se uma experiência única, e sua harmoniosa integração com os
fatores constitutivos do cenário cumpre exemplarmente as postulações da teoria da formatividade,

Plasticidade e embriaguez dionisíaca em Sargento Getúlio 191


segundo a qual uma produção literária se constitui em “um fazer que enquanto faz, vai inventando o
modo de fazer” (PAREYSON, 1993, p. 20).
A linguagem do protagonista dá a esta obra uma feição inteiramente singular. Sua fala está
alicerçada numa sintaxe e numa semântica alternativas, apropriadas para exprimir a formatividade
poética. Nesse tipo de linguagem está espelhada a irrealização do real e a concretização do irreal, ou
como diz Blanchot “ao mesmo tempo em que brilha para extinguir-se o frêmito do irreal convertido em
linguagem, afirma-se a presença insólita das coisas irreais convertidas em pura ficção” (1987, p. 38).
Neste romance está espelhada uma maneira individual de formar, uma concepção particular
da experiência e um modo autêntico de expressar a vida, o que resulta numa irrepetível elaboração
formal, que traz consigo uma efetiva manifestação do gosto e da sensibilidade.
Envolvido pela força da embriaguez dionisíaca, Getúlio acessa a sua secreta intimidade,
onde reina a liberdade e o silêncio do indizível. Na tentativa de capturar a face dissimulada do real
seu cenário deve ser assim intuído: “Não poderia existir um ponto em que o espaço fosse, ao mesmo
tempo, intimidade e exterioridade, um espaço que, do lado de fora, já fosse intimidade espiritual, uma
intimidade que, em nós, seria a realidade do exterior, de tal modo que aí estaríamos em nós do lado de
fora, na intimidade e amplitude íntima desse exterior?” (BLANCHOT, 1987, p. 133).
A criação artística assemelha-se, nesse caso, a um espelho que reflete o exterior, à maneira de
um foco de luz que ‘transfigura e aviva o que todos percebemos mudos e confusos’, mas que o artista
com sua especial sensibilidade nos disponibiliza, por meio da linguagem nascida de sua transfiguração

Plasticidade e embriaguez dionisíaca em Sargento Getúlio


imaginativa.
Como personagem dionisíaca, Getúlio traz em si uma estranha semelhança com o legendário bíblico:
“Sim, cada homem é Noé, mas se prestarmos atenção, é-o de uma estranha maneira, e sua missão
consiste menos em salvar todas as coisas do dilúvio do que em mergulhá-las, pelo contrário, num
dilúvio mais profundo onde elas desaparecem prematura e radicalmente” (BLANCHOT, 1987, p. 138).

REINVENTANDO A PLASTICIDADE ENUNCIATIVA

O protagonista, na tentativa de realizar seus feitos, precipita-se na alucinada torrente de um


terrível dilúvio enunciativo. No estertor da guerra, nos momentos finais de sua travessia diz:

pode ser que eu chore agora visto que não é que eu tenho medo, eu não tenho medo
nem de alma, mas eu posso chorar porque eu nunca falei com aquela força fraqueza
nem vou falar e tem tanta coisa que eu não pude fazer porque eu não sabia e o mundo
inteiro parou aqui, hem Amaro? veja essa água e essa beira de rio, com esse barulho
aí de leve noite e dia, veja essa água e Aracaju e a ponte do imperador, veja esse povo
vindo atravessando de barco atrás de nós e carregando as armas apontando para
cima e aquele navio parado ali, nem sabe o que está se passando na vida, mas porém
o destino está dando volta, hem Amaro? lá na lua e pode crer que eu estou vivo no
inferno, lá na lua está Luzinete e essa força se atira eu também atiro, ô minha lazarina,
ô meu papo amarelo e um mandacaru de cabeça para cima eu vou morrer e nunca vou
morrer eu nunca vou morrer Amaro eu nunca vou morrer um aboio e uma vida Amaro
aaaaaaaaaaaaahhh eeeeeeeeeeeeeeh

Por meio de um denso monólogo, o perspmagem-narrador passa do espaço exterior para


o interior, e neste a experiência profunda aflora à superfície. Sobre esse aspecto instaurador da arte

192 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


diz Blanchot que “O espaço nos supera e traduz as coisas, tornando-se transfigurador e tradutor por
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO excelência. Mas essa indicação faz-nos pressentir ainda mais: não existe um outro tradutor, um outro
espaço em que as coisas deixam de ser visíveis por ficar em sua intimidade invisível?” (1987, p. 139)
Existe é o espaço da criação ficcional, que capta a face mais secreta da experiência. Nele isto é possível
porque os acontecimentos que compõem uma narrativa não são, “do ponto de vista referencial (real), ao
pé da letra, ‘o que acontece’, é só inteiramente só, a aventura da linguagem, cuja vinda não deixa nunca
de ser festejada” (COMPAGNON, 2001, p. 101).
Nesse discurso, concebido para exprimir a interpenetração entre a realidade e o sonho como
em ‘veja essa água e essa beira de rio, com esse barulho aí de leve noite e dia’, o significante é desviado
de sua função estritamente lingüística, tornando-se uma espécie de símbolo, que imprime às palavras
uma concepção significativa que se refere mais à sensibilidade que ao intelecto. A linguagem concebida
ficcionalmente exprime as profundezas dos seres e dos objetos, “quando essas profundezas alçam-se
à superfície e se expõem todas no sensível, para despertar no leitor o sentimento singular de uma
qualidade afetiva” (DUFRENNE, 2002, p. 73), tradutora de sentidos substanciais do mundo.
Nesse mundo configurado pelas determinações do imaginário, as coisas são apenas pré-
sentidas como possíveis, e esse pré-sentimento nos liga ao mundo exterior, permitindo-nos separar
do mundo natural os objetos de nossa consideração, empurrando-os cada vez mais para um horizonte
interior. Nessa perspectiva, a viagem de Paulo Afonso a Aracaju torna-se apenas o fator externo
propiciador do outro percurso que vai, metaforicamente, dos fatos externos à densa intimidade do
personagem narrador.
O monólogo de Getúlio apresenta-nos, de forma intercalada, uma série de quadros da realidade,
que compõem, de maneira tensa, uma rica focalização da realidade. Inicialmente ele informa:

esse povo de Aracaju não sabe, nem nunca vai saber, só eu que sei o que tem nessa
terra toda e posso correr por cima dela com o vento na cara, nas águas e no chão. Eu
não tinha nada o que fazer aqui de primeira vez, nunca tive. Tinha minha missão, isso
tinha. E fiz. Tinha minha vida, isso também, e vivi, e se me perguntasse quer viver uma
vida comprida amofinado ou quer viver uma vida curta de macho, sendo eu e mais eu
e respeitado nesse mundo e quando eu morrer se alembrem de mim assim: morreu o
Dragão (RIBEIRO, 1982, p. 153).

Sua linguagem, além de traduzir sua rica interioridade, apresenta um tom vacilante e
interrogador, próprio para a configuração da experiência ficcional, que metaforiza o semi-pensamento
e a semi-realidade, por meio de uma operação que mantém agregados o sentido e a imagem. Nesse
contexto, o espaço torna-se inteiramente virtualizado, próprio para traduzir a ilusão de vida criada pelos
eventos. Em seguida, de maneira abrupta, tal qual pressupõe o monólogo, o protagonista rompe a
linearidade do discurso e passa para o quadro seguinte, que trata da chegada do reforço policial do
governo para proteger o correligionário udenista que ele conduzia:

Aquela força que vem, coisa, aquela força que vem pelo rio atravessando, pode se ver
os fuzios apontando para cima e está se vendo que ninguém pensa que vai me pegar
fácil, porque senão não vinha tanta gente. Todo mundo sabe que eu vou dar testa, aviu
vosmecê? E só vem fardado, veja bem, coisa, não vem um paisano para remédio com
certeza, só vem mesmo os mandados, os mandadores não vem. Antes que eles queiram
me acabar, coisa, eu ainda sou capaz de lhe arrastar sete vezes pela beira dessa praia

Plasticidade e embriaguez dionisíaca em Sargento Getúlio 193


de lama, indo e voltando, e arrasto o comandante dessa força e mais quantos praças
chegue perto. Não vejo nem a cara, coisa, e não quero conversar, acho que não carece
conversa agora, carece atividade. Aquela força, aquela força, coisa, é uma fraqueza, e
daqui mesmo, com vosmecê amarrado aí no coqueiro que pára ver um macho lutando,
o que vosmecê nunca fez na vida, trempe aquela força é uma fraqueza, venha de lá
fraqueza do governo, me solto, me destaramelo... (RIBEIRO, 1982, p. 154).

Sob o influxo das motivações do imaginário e de um onirismo profundo, as ações do protagonista


estabelecem concepções vagas, recordações díspares que se entrelaçam nesse discurso oscilante, que
retrata eficazmente a descontinuidade do pensamento, para exprimir a multiplicidade das ações. Seu
discurso descontínuo visa a desfigurar o real para focalizá-lo em outra direção, que faculte uma nova
esfera perceptiva. O mundo de Getúlio está ordenado por interesses econômicos, sociais e políticos
cujo sentido ele desconhece. Por isso se pauta por um conjunto de costumes que parecem, para nós
leitores, desprovidos de uma sólida significação. Ele, entretanto, leva seu discurso desconexo às últimas
conseqüências. E o processo transfigurador continua:

... na mão uns bacamartes, nos pés uma fincada, minha vida e a laranjeira morta e a lua
que Luzinete mora, espie aí, coisa, é uma fraqueza e miles homens desses é como nada e
como eu tem mais aqui, essa é uma terra de macho, viu, traste, e a terra que me pariu vai
me vomitar de novo, quantas vezes me enterrarem, quem tem amigo nesse mundo, oi
Amaro, viu Amaro, olhe quês jias brancas nos tijolos do chão, não estremeça, trem, veja
que terra essa, com a morte deslizando pelo rio, as caras deles nem se enxerga, mas veja
que terra essa, com nós aqui plantados no chão, não semos a mesma coisa? não semos
a mesma coisa? é engraçado como vem esses homens e esses homens nenhum está
pensando nada... (RIBEIRO, 1982, 155).

Plasticidade e embriaguez dionisíaca em Sargento Getúlio


Numa transfiguração eminentemente poética a lua torna-se a imagem viva de sua amada.
Estamos diante de uma percepção aguda e dissimulada, de seres e objetos, que ultrapassa a aparência
cotidiana para perscrutar a intimidade das coisas, facultada pela enunciação metafórica. A fragmentação
discursiva do sujeito enunciador nos conduz a um modo especial de ver, que amplia a extensão do
significado textual que, “por seu caráter de semipensamento e de semi-experiência agrega a luz do
sentido à plenitude da imagem. O não verbal e o verbal estão, nesse tipo de estruturação, estritamente
unidos, permitindo configurar a função imaginante da linguagem” (RICOEUR, 2000, p. 327).
Lembranças recentes e remotas misturam nesse discurso com o mesmo grau de presença.
Luzinete, símbolo da afetividade, está ligada a uma fase anterior da vida de Getúlio; os ‘miles homens’
estão ligados a um momento posterior, a uma batalha que, na pressuposição imaginária do personagem
está prestes a ocorrer. Assim, sua memória não se prende a uma racionalidade lógica, antes procura
haurir de seu interior um conjunto de fatos, por meio dos quais a fantasia se eleva à condição de fonte
da existência vivida e narrada. Sobre essa condição formadora da elaboração ficcional, postula van Rient
que “todas as expressões conscientes são alegorias do inconsciente; todas elas participam daquilo que
antes era considerado como privilégio exclusivo do mito, do sonho, da demência” (1960, p. 390).
Tem-se aqui a perspectiva segundo a qual os acontecimentos de um romance constituem uma
realidade própria, contígua à do mundo real. O leitor está diante de um mundo possível, instaurado
pelo jogo fecundo da arte, que ocorre no plano da verossimilhança e da possibilidade.
O autor implícito toma por referência, nesta obra, a fala primitiva da região nordestina, e esse
procedimento torna mais rica a humanização dos personagens, que exprimem, em linguajar próprio,

194 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


sua mais densa interioridade. Essa reordenação da linguagem constitui um modo peculiar de tensionar a
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO enunciação, para melhor exprimir a construção em abismo, na qual o personagem se desliga progressiva
e repentinamente da realidade, passando a correlacionar fatos e momentos totalmente díspares, como
a referência a Luzinete, que já se desencarnou e é figurativizada pela lua e sua correlação inesperada
com o momento atual da batalha representada, entre o real e o imaginário, adquire, pelo delírio
acentuado do sujeito enunciador, um sentimento que apresenta um caráter profundo de humanidade,
cuja particular inflexão comunicativa imprime à obra um caráter ineliminável de formatividade, como
diria Pareyson.
A descontinuidade discursiva torna-se um recurso adequado na elaboração de uma linguagem
inventiva radical, que caracteriza, nos momentos traumáticos do enredo, a busca desalienante do artista,
por meio do espetáculo lúdico da forma. A variabilidade do léxico e o ritmo tenso e enérgico da frase
são fatores que conduzem ao gozo verbal e instituem o sentido revolucionário pelas contorções de
imagens preciosas, necessárias à interpretação de uma sociedade mergulhada em violentos contrastes
sociais e em costumes anacrônicos.
Essa semantização orientada para a tradução da experiência delirante do personagem exige o
uso talentoso dos meios expressivos, como o fez o autor, infundindo-lhes uma notável capacidade de
revelar os complexos estados mentais de Getúlio.
A importância da arte está em nos permitir entrar em contato com essa realidade alternativa
diversa da realidade em que vivemos, pois a experiência autêntica não nos chega por meios diretos e
conscientes, mas por via do uso adequado e amadurecido dos recursos expressivos da arte, sem a qual
a alteridade do mundo permaneceria em profundo segredo para nós.
Este é o trabalho que a arte deve fazer: mostrar-nos nossas paixões, nosso espírito de imitação,
nossa inteligência abstrata, por meio de um jogo que traz à luz a notável riqueza interior que se oculta
em cada ser humano, e que o autor realizou de forma exemplar, pois Getúlio expõe-se plenamente em
suas dimensões externa e interna.

Plasticidade e embriaguez dionisíaca em Sargento Getúlio 195


R E F E R Ê N C I A S

BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:


Rocco, 1987.

COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria. Tradução de Cleonice Paes Barreto


Mourão e Consuelo Fortes Santiago. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2001.

DUFRENNE, Mikel. Estética e filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2002.

LATERZA, M. Nietzsche e o nascimento da tragédia. Kriterion. Belo Horizonte: 26 (74-


5): 19-37, jan./dez. 1985.

NEJAR, Carlos. A genealogia da palavra. São Paulo: Iluminuras, 1989.

NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Obras incompletas. Tradução de Rubens Rodrigues T.


Filho. São Paulo: Hemus, 1970.

Plasticidade e embriaguez dionisíaca em Sargento Getúlio


PAREYSON, Luigi. Estética: teoria da formatividade. Tradução de Ephraim Ferreira
Alves. Petrópolis: Vozes, 1993.

RIBEIRO, João Ubaldo. Sargento Getúlio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições
Loyola, 2000.

VAN RIENT, G. Problèmes d’épistemologie. Paris: Beatrice Nanwelaerts, 1960.

196 INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO


INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS

PARTE IV
CAPÍTULO 15

Uma análise da presença do “outro” em obras de Clarice Lispector,


traduzidas para o Inglês36
Diva Cardoso de Camargo

No tocante ao ato tradutório, o “texto literário” é visto como valorizando os aspectos estético-
estilísticos, de modo que a importância atribuída à linguagem empregada pelo autor é comparável à
importância dada ao conteúdo do texto (AUBERT, 1991, p. 66). Dentro dessa perspectiva, a tradução
de textos literários poderia ser considerada como tendente a exigir um paralelismo à forma original.
No entanto, grande parte das pesquisas constantes nas áreas da Literatura Comparada e dos Estudos
da Tradução têm tradicionalmente buscado verificar se o estilo do autor ou autora foi ou não
adequadamente transposto para a língua de chegada no que tange a “desvios” ou erros na tradução.
Diferentemente, este estudo procurou investigar se as marcas deixadas pela “voz do outro”
mostrariam evidências do uso de escolhas estilísticas próprias, distintivas e recorrentes por parte
dos tradutores literários escolhidos para análise. Tais preferências estariam, de certa forma, sendo
empregadas independentemente do estilo do autor ou autora, da obra original, dos sistemas linguísticos
específicos e, possivelmente, das normas de um dado socioleto (BAKER, 1996, 2000).
Nos últimos anos, alguns teóricos da tradução têm enfatizado a presença do tradutor; no
entanto, não apresentam nenhuma demonstração dos traços efetivamente deixados nos textos
traduzidos. Venuti (1992, 1995, 1998) recrimina a transparência como efeito ilusionístico da presença
do autor que seria [supostamente] alcançada pelas estratégias da tradução “domesticadora” e advoga
a visibilidade do tradutor por meio de estratégias de resistência da tradução “estrangeirizadora”, mas
sem explicitar quais seriam as marcas de uma “fidelidade abusiva”. De modo análogo, Hermans (1996)
claramente reconhece a voz do tradutor; porém, focaliza especialmente a voz do outro no que tange ao
emprego autorreferencial de primeira pessoa nas notas do tradutor.
Este trabalho baseia-se, parcialmente, nas aulas que ministrei junto ao Programa de Mestrado da UNIOESTE - Câmpus Cascavel, para o Seminário Avançado: “A Tradução e
36

o Texto Literário”, linha de pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados, no período de 08 – 12/12/2010.

Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 197
No que concerne à sua presença e à noção de estilo, poderíamos incluir a escolha de cada tradutor
com relação ao material a ser traduzido, a utilização consistente de estratégias tradutórias e, sobretudo,
o modo de expressão que é típico de um dado tradutor (mais do que simplesmente instâncias de
intervenção aberta de material extratextual).
A fim de observar traços efetivamente deixados na tradução, este trabalho procura comparar
trechos extraídos de obras de Clarice Lispector em relação ao uso de padrões estilísticos próprios

Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês
e preferenciais de um tradutor literário e de duas equipes com dois tradutores literários. Com esse
propósito, foi criado um corpus de estudo do tipo paralelo, contendo oito obras compiladas na íntegra.
O subcorpus representado pelo primeiro tradutor é constituído por Laços de família (LF) e Family ties
(FT), e A Descoberta do Mundo (DM) e Discovering the World (DW), traduzidas por Giovanni Pontiero;
o segundo é formado por Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (ALP) e An Apprenticeship or The
Book of Delights (ABD), traduzida por Richard Mazzara e Lorri Parris; e o terceiro é constituído por Água
Viva (AV) e The Stream of Life (SL), traduzida por Elizabeth Lowe e Earl Fitz.

PERSPECTIVA TEÓRICA

Com referência à linguagem do texto traduzido, a utilização de corpora eletrônicos paralelos


ou comparáveis possibilita maior amplitude e funcionalidade para estudos da natureza da tradução.
Investigações realizadas no Centre for Translation and Intercultural Studies - CTIS têm detectado certas
características recorrentes (BAKER, 1996, p. 180-184) que se apresentam tipicamente na tradução. Um
dos traços que mais especificamente se relacionam com este trabalho é a simplificação, que pode ser
identificada como uma tendência em tornar mais simples e de mais fácil compreensão a linguagem
empregada na tradução, como, por exemplo, a maior utilização de repetições em relação à obra original.
Outro traço relacionado a este estudo é a normalização (BAKER, 1996, p. 180-184), que
pode ser identificada como uma tendência para exagerar características da língua meta e para
adequar-se aos seus padrões típicos. Pode ser observada tanto no nível de palavras individuais ou de
colocações37(normalização lexical), como na pontuação, e no uso de clichês e estruturas gramaticais
convencionais nos textos traduzidos. Frases longas e elaboradas bem como elementos redundantes,
utilizados nos texto originais, são substituídos por colocações menores, e as redundâncias são, muitas
vezes, omitidas. Também as sentenças não terminadas nos textos de partida são frequentemente
completadas nos textos de chegada. Outrossim, o ritmo da língua meta torna-se, em geral, mais fluente,
uma vez que aspectos incomuns de pontuação existentes na língua fonte são padronizados, de modo a
adaptarem-se a aspectos mais comuns da língua meta. Kenny (2001, p. 66) compartilha a visão de Baker,
ao apontar que os tradutores optam por soluções mais convencionais relacionadas à linguagem não
usual presentes nas traduções. Também Berber Sardinha (2002, p. 18) comenta que, na normalização,
há uma minimização dos aspectos criativos ou menos comuns da língua fonte. O exame de escolhas
lexicais na língua de partida e a comparação com opções dos tradutores na língua de chegada podem
revelar aspectos de normalização se indicarem, por exemplo, que as escolhas mais criativas no texto
original foram traduzidas por outras menos marcadas no texto traduzido (BERBER SARDINHA, 2002, p.

37
”Colocação: associação entre itens lexicais ou entre o léxico e campos semânticos” (BERBER SARDINHA, 2004: 40).

198 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


18). Essa tendência, de acordo com Baker (1996, p. 183), seria possivelmente influenciada pelo status
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS da língua fonte e da língua meta, dado que, quanto mais alto for o status da língua fonte, menor seria a
tendência para a normalização.
Dado que o conceito de estilo tem-se mostrado ainda de difícil definição, este estudo sobre
padrões estilísticos dos respectivos tradutores representados nos corpora em relação ao estilo clariciano
optou por fundamentar-se na noção fornecida por Baker, que entende:

style as a kind of thumb-print that is expressed in a range of linguistic features [...]


which are probably more in the domain of what is sometimes called “forensic stylistics”
than literary stylistic (Leech and Short, 1981, p.14). Traditionally, literary stylistics has
focused on what are assumed to be conscious linguistic choices on the part of the
writer, because literary stylisticians are ultimately interested in the relationship between
linguistic features and artistic function, in how a given writer achieves certain artistic
effects. Forensic stylistics, on the other hand, tends to focus on quite subtle, unobtrusive
linguistic habits which are largely beyond the conscious control of the writer and which
we, as receivers, register mostly subliminally. But like both branches of stylistics, I am
interested in patterns of choice (whether these choices are conscious or subconscious)
rather than individual choices in isolation.38 (BAKER, 2000, p. 245-6).

Com o propósito de observar padrões de escolha estilística dos tradutores representados no


corpus, o termo “estilo” é definido no âmbito deste estudo como o perfil de seus hábitos linguísticos
individuais, recorrentes, preferenciais e distintivos, referentes à variação e diversidade de vocabulário,
bem como a traços característicos da linguagem da tradução identificados como tendências à
simplificação e à normalização.
Entre as diversas conceituações de estilo oferecidas pelos estudos literários, pelos estudos
linguísticos e pelos estudos da tradução, propomos, com base em Baker (2000), esta delimitação da noção
de estilo, voltada para o perfil dos padrões de escolha vocabular feita consciente ou inconscientemente
pelos tradutores literários em pauta, por mostrar-se a mais adequada às necessidades desta investigação.
Dessa forma, este estudo não está voltado para o sentido tradicional de examinar se o estilo do autor foi
adequadamente transposto “na” tradução, mas, sim, direciona o foco para um estilo “de” tradução no que
concerne a marcas deixadas pelo tradutor no texto da língua de chegada. Apesar das dificuldades que
uma investigação de um estilo “de” tradução possa acarretar, a importância dessa mudança de enfoque
aponta para a necessidade de estudos que proponham abordagens que possibilitem a identificação da
presença do tradutor, referente ao uso de padrões estilísticos próprios, específicos em relação ao estilo
do autor, da obra original e do par linguístico envolvido.
Ainda que Camargo (2005, p.119-177) tenha comparado, em sua tese de Livre-Docência,
o estilo de três autores (Clarice Lispector, Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro) em doze obras da
literatura brasileira contemporânea39 em relação aos padrões estilísticos, respectivamente de seis
tradutores individuais (Pontiero, Levitin, Rabassa, Onís, Ubaldo Ribeiro, e Bush) e de duas equipes com
dois tradutores (Lowe e Fitz, e Massara e Parris), foram selecionados para observação certos padrões

38
[...] estilo como uma espécie de impressão digital que fica expressa [no texto traduzido] por uma variedade de características linguísticas [...] as quais estão provavelmente
mais no domínio do que algumas vezes é chamado de “estilística forense” que no da estilística literária (Leech e Short, 1981, p.14). Tradicionalmente, a estilística literária
focaliza o que se assume serem escolhas linguísticas conscientes da parte do autor, porque os estilistas literários estão principalmente interessados na relação entre as ca-
racterísticas linguísticas e a função artística, em como um dado autor obtém certos efeitos artísticos. Por outro lado, a estilística forense tende a focalizar hábitos linguísticos
razoavelmente sutis e moderados que estão bem acima do controle consciente do autor e que nós, como receptores, registramos, na maioria das vezes, de forma subliminar.
Todavia, como ambos os ramos da estilística, estou interessada em padrões de escolha (quer essas escolhas sejam conscientes ou subconscientes) mais do que em escolhas
individuais isoladas. [Minha tradução]
39
Os títulos dos doze pares de obras encontram-se elencados nas Referências Bibliográficas, no final deste artigo.

Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 199
estilísticos de apenas um tradutor individual e de duas equipes com dois tradutores em quatro obras
claricianas, em virtude da necessidade de limitação de espaço para o presente trabalho.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Valendo-nos de alguns fragmentos retirados de obras de Clarice Lispector e os respectivos

Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês
trechos traduzidos, procuraremos mostrar exemplos de padrões de estilo ‘de’ tradução para o inglês por
diferentes profissionais. Com referência à voz do outro presente no texto clariciano traduzido, podemos
observar uma tendência de traços de simplificação identificados pela utilização de uma quantidade
mais alta de repetições, a fim de facilitar a leitura do texto na língua de chegada. No entanto, podemos
notar um uso maior de reiterações expressivas nos textos traduzidos por Giovani Pontiero em relação
aos respectivos textos da autora. Como exemplo dessa opção por reiterações enfáticas, transcrevemos,
abaixo, um trecho extraído do conto “Devaneio e embriaguez de uma rapariga”, que abre o livro Laços
de Família:

[LF] [...] Punha-se de novo a abanar-se, quase a sorrir. Ai, ai, suspirou a rir. Teve a visão
de seu sorriso claro de rapariga ainda nova, e sorriu mais fechando os olhos, a abanar-se
mais profundamente. (LISPECTOR [1960], 1979, p. 23)
[FT] […] Then, almost smiling, she started to fan herself once more. Oh my! She sighed as
she began to smile. She beheld the picture of her bright smile, the smile of a woman who was
still young, and she continued to smile to herself, closing her eyes and fanning herself still
more vigorously. (LISPECTOR, trad. Pontiero, [1972], 1995, p. 28)

Por meio do quadro a seguir, podemos examinar as escolhas diferentes de Pontiero neste
trecho:

A fim de observar traços efetivamente deixados na tradução, este trabalho procura


comparar trechos extraídos de obras de Clarice Lispector em relação ao uso de padrões
estilísticos próprios e preferenciais de um tradutor literário e de duas equipes com
dois tradutores literários. Com esse propósito, foi criado um corpus de estudo do
tipo paralelo, contendo oito obras compiladas na íntegra. O subcorpus representado
pelo primeiro tradutor é constituído por Laços de família (LF) e Family ties (FT), e A
Descoberta do Mundo (DM) e Discovering the World (DW), traduzidas por Giovanni
Pontiero; o segundo é formado por Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (ALP) e
An Apprenticeship or The Book of Delights (ABD), traduzida por Richard Mazzara e Lorri
Parris; e o terceiro é constituído por Água Viva (AV) e The Stream of Life (SL), traduzida
por Elizabeth Lowe e Earl Fitz.

PERSPECTIVA TEÓRICA

Com referência à linguagem do texto traduzido, a utilização de corpora eletrônicos paralelos


ou comparáveis possibilita maior amplitude e funcionalidade para estudos da natureza da tradução.
Investigações realizadas no Centre for Translation and Intercultural Studies - CTIS têm detectado certas
características recorrentes (BAKER, 1996, p. 180-184) que se apresentam tipicamente na tradução. Um
dos traços que mais especificamente se relacionam com este trabalho é a simplificação, que pode ser
identificada como uma tendência em tornar mais simples e de mais fácil compreensão a linguagem
empregada na tradução, como, por exemplo, a maior utilização de repetições em relação à obra original.

200 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


Outro traço relacionado a este estudo é a normalização (BAKER, 1996, p. 180-184), que pode
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS ser identificada como uma tendência para exagerar características da língua meta e para adequar-se
aos seus padrões típicos. Pode ser observada tanto no nível de palavras individuais ou de colocações
(normalização lexical), como na pontuação, e no uso de clichês e estruturas gramaticais convencionais
nos textos traduzidos. Frases longas e elaboradas bem como elementos redundantes, utilizados nos
texto originais, são substituídos por colocações menores, e as redundâncias são, muitas vezes, omitidas.
Também as sentenças não terminadas nos textos de partida são frequentemente completadas nos
textos de chegada. Outrossim, o ritmo da língua meta torna-se, em geral, mais fluente, uma vez que
aspectos incomuns de pontuação existentes na língua fonte são padronizados, de modo a adaptarem-
se a aspectos mais comuns da língua meta. Kenny (2001, p. 66) compartilha a visão de Baker, ao
apontar que os tradutores optam por soluções mais convencionais relacionadas à linguagem não usual
presentes nas traduções. Também Berber Sardinha (2002, p. 18) comenta que, na normalização, há uma
minimização dos aspectos criativos ou menos comuns da língua fonte. O exame de escolhas lexicais
na língua de partida e a comparação com opções dos tradutores na língua de chegada podem revelar
aspectos de normalização se indicarem, por exemplo, que as escolhas mais criativas no texto original
foram traduzidas por outras menos marcadas no texto traduzido (BERBER SARDINHA, 2002, p. 18). Essa
tendência, de acordo com Baker (1996, p. 183), seria possivelmente influenciada pelo status da língua
fonte e da língua meta, dado que, quanto mais alto for o status da língua fonte, menor seria a tendência
para a normalização.
Dado que o conceito de estilo tem-se mostrado ainda de difícil definição, este estudo sobre
padrões estilísticos dos respectivos tradutores representados nos corpora em relação ao estilo clariciano
optou por fundamentar-se na noção fornecida por Baker, que entende:

style as a kind of thumb-print that is expressed in a range of linguistic features [...]


which are probably more in the domain of what is sometimes called “forensic stylistics”
than literary stylistic (Leech and Short, 1981, p.14). Traditionally, literary stylistics has
focused on what are assumed to be conscious linguistic choices on the part of the
writer, because literary stylisticians are ultimately interested in the relationship between
linguistic features and artistic function, in how a given writer achieves certain artistic
effects. Forensic stylistics, on the other hand, tends to focus on quite subtle, unobtrusive
linguistic habits which are largely beyond the conscious control of the writer and which
we, as receivers, register mostly subliminally. But like both branches of stylistics, I am
interested in patterns of choice (whether these choices are conscious or subconscious)
rather than individual choices in isolation. (BAKER, 2000, p. 245-6).

Com o propósito de observar padrões de escolha estilística dos tradutores representados no


corpus, o termo “estilo” é definido no âmbito deste estudo como o perfil de seus hábitos linguísticos
individuais, recorrentes, preferenciais e distintivos, referentes à variação e diversidade de vocabulário,
bem como a traços característicos da linguagem da tradução identificados como tendências à
simplificação e à normalização.
Entre as diversas conceituações de estilo oferecidas pelos estudos literários, pelos estudos
linguísticos e pelos estudos da tradução, propomos, com base em Baker (2000), esta delimitação da noção
de estilo, voltada para o perfil dos padrões de escolha vocabular feita consciente ou inconscientemente
pelos tradutores literários em pauta, por mostrar-se a mais adequada às necessidades desta investigação.

Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 201
Dessa forma, este estudo não está voltado para o sentido tradicional de examinar se o estilo do autor foi
adequadamente transposto “na” tradução, mas, sim, direciona o foco para um estilo “de” tradução no que
concerne a marcas deixadas pelo tradutor no texto da língua de chegada. Apesar das dificuldades que
uma investigação de um estilo “de” tradução possa acarretar, a importância dessa mudança de enfoque
aponta para a necessidade de estudos que proponham abordagens que possibilitem a identificação da
presença do tradutor, referente ao uso de padrões estilísticos próprios, específicos em relação ao estilo

Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês
do autor, da obra original e do par linguístico envolvido.
Ainda que Camargo (2005, p.119-177) tenha comparado, em sua tese de Livre-Docência,
o estilo de três autores (Clarice Lispector, Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro) em doze obras da
literatura brasileira contemporânea em relação aos padrões estilísticos, respectivamente de seis
tradutores individuais (Pontiero, Levitin, Rabassa, Onís, Ubaldo Ribeiro, e Bush) e de duas equipes com
dois tradutores (Lowe e Fitz, e Massara e Parris), foram selecionados para observação certos padrões
estilísticos de apenas um tradutor individual e de duas equipes com dois tradutores em quatro obras
claricianas, em virtude da necessidade de limitação de espaço para o presente trabalho.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Valendo-nos de alguns fragmentos retirados de obras de Clarice Lispector e os respectivos


trechos traduzidos, procuraremos mostrar exemplos de padrões de estilo ‘de’ tradução para o inglês por
diferentes profissionais. Com referência à voz do outro presente no texto clariciano traduzido, podemos
observar uma tendência de traços de simplificação identificados pela utilização de uma quantidade
mais alta de repetições, a fim de facilitar a leitura do texto na língua de chegada. No entanto, podemos
notar um uso maior de reiterações expressivas nos textos traduzidos por Giovani Pontiero em relação
aos respectivos textos da autora. Como exemplo dessa opção por reiterações enfáticas, transcrevemos,
abaixo, um trecho extraído do conto “Devaneio e embriaguez de uma rapariga”, que abre o livro Laços
de Família:

[LF] [...] Punha-se de novo a abanar-se, quase a sorrir. Ai, ai, suspirou a rir. Teve a visão
de seu sorriso claro de rapariga ainda nova, e sorriu mais fechando os olhos, a abanar-se
mais profundamente. (LISPECTOR [1960], 1979, p. 23)
[FT] […] Then, almost smiling, she started to fan herself once more. Oh my! She sighed as
she began to smile. She beheld the picture of her bright smile, the smile of a woman who was
still young, and she continued to smile to herself, closing her eyes and fanning herself still
more vigorously. (LISPECTOR, trad. Pontiero, [1972], 1995, p. 28)

Por meio do quadro a seguir, podemos examinar as escolhas diferentes de Pontiero neste
trecho:
Lispector Pontiero
Fragmento de LF Fragmento de FT
Punha-se de novo a abanar-se, Then, almost smiling, she started
quase a sorrir. [to fan herself] once more.

[Oh] my!
[Ai,] ai, a smile
rir. She beheld the picture of
Teve a visão her […] the smile of a woman who
rapariga [ainda nova] was still young,

and she continued to smile to


e sorriu mais herself,
[mais] profundamente [still] more vigorously

Quadro 3. Exemplo de escolhas diferentes do tradutor em relação ao fragmento da autora

202 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


Pontiero vale-se de modulações e inversões, e dá maior ênfase ao ato de sorrir obsessivo e
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS intrigante da personagem por meio do aumento de duas recorrências de smile como verbo e como
substantivo. A exploração da musicalidade das palavras pela autora através da aliteração e do ritmo
está presente no trecho traduzido.
Também nesse conto surgem ambiguidades já a partir do título: “Devaneio e embriaguez
de uma rapariga”, as quais vão levar a compensações na tradução de Pontiero: “The daydreams of a
drunk woman”. O vocábulo ‘rapariga’, com o duplo sentido no Brasil (de mulher nova, moça; e meretriz,
concubina) e apenas a primeira acepção em Portugal (cf. Dicionário Aurélio), perde, inevitavelmente,
a significação linguística e cultural da caracterização da protagonista com woman ou her no texto
traduzido. Já a definição da personagem de acordo com drunkeness of a woman estabeleceria o tom
de desaprovação social.
Embora a pesquisa de traduções de um mesmo texto por profissionais diversos possa trazer
informações interessantes, é raro encontrar textos da literatura brasileira contemporânea traduzida
para o inglês por diferentes tradutores profissionais. Essa possibilidade foi aberta por Lispector ao
ter selecionado textos para serem inseridos em mais de uma publicação. No seu trabalho de Livre-
Docência em literatura brasileira, Gotlib (1993, p. 316) esclarece que Clarice escolheu, entre seus
contos e romances, muitos dos textos que publicou no Jornal do Brasil; também repetiu no romance
A Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres textos escritos anteriormente, como “O silêncio da Suíça e
o inverno em Paris” e “Uma prece” (GOTLIB, 1993, p.308). A esse respeito, Ranzolin (1985) mostra, em
sua dissertação de mestrado, que há (re)aproveitamentos de Lispector que tanto fazem parte de A
Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres como também integram as crônicas publicadas no Jornal do
Brasil. Nos moldes de Ranzolin, também nos refirimos a esses trechos como (re)aproveitamentos por
ser difícil determinar com segurança se esse romance proviria de suas crônicas ou, inversamente, se a
autora teria primeiramente escrito as crônicas. Após o falecimento de Clarice, boa parte das crônicas foi
coletada por seu filho, Paulo Gurgel Valente, para compor a antologia A Descoberta do Mundo.
Clarice Lispector é considerada em trabalhos que integram a sua fortuna crítica (GOTLIB, 1993;
NUNES, 1995; RANZOLIN, 1985; RUGGERO, 2000; SÁ, 2000; VARIN, 2002; CHEREM, 2003) como uma
escritora hermética, introspectiva, cuja temática existencialista aborda a questão do ser no mundo, em
uma espécie de procura pela essência da vida onde há plena consciência da morte. A respeito do estilo
da autora, o pesquisador e tradutor Alexis Levitin explica, em palestra proferida na Universidade de
São Paulo, em 18 de setembro de 2003, que as “palavras dão uma direção, mas não uma definição”. Em
Clarice, não se lê o que está nas linhas do texto, mas sim aquilo que se esconde entre elas. Consciente
da sua técnica de comunicar-se pelas entrelinhas, assim como do valor dos (re)aproveitamentos, Clarice
aborda o seu processo de escrita, por exemplo, na obra Água Viva (1973, 1989). Esse trecho é (re)
aproveitado pela autora como crônica, intitulada: “Escrever as Entrelinhas”, publicada no Jornal do Brasil
(6 nov 1971); mais tarde, também passa a integrar a obra póstuma A Descoberta do Mundo.
A título de ilustração, uma amostra de (re)aproveitamentos por Clarice e de opções diferentes dos
tradutores, pode ser observada na transcrição, abaixo, da crônica “Uma experiência”, publicada em A
Descoberta do Mundo, e os correspondentes fragmentos semelhantes extraídos de Uma Aprendizagem
ou O Livro dos Prazeres e de Água Viva, os quais são seguidos dos respectivos fragmentos traduzidos

Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 203
retirados, respectivamente, de Discovering the World, por Pontiero, de Apprenticeship or The Book of
Delights, por Mazzara e Parris, e de The Stream of Life, por Elizabeth Lowe e Earl Fitz. A fim de distinguir
para cotejo as opções diferentes encontradas no último parágrafo dos três excertos originais, colocamos
as palavras entre colchetes e, quando tais palavras mostram-se diferentes apenas no fragmento de ALP,
o destaque encontra-se acrescido do sublinhado:

Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês
[DM, 1968] 22 de junho
UMA EXPERIÊNCIA
Talvez seja uma das experiências humanas e animais mais importantes. A de pedir socorro e,
por pura bondade e compreensão do outro, o socorro ser dado. Talvez valha a pena ter nascido
para que um dia mudamente se implore e mudamente se receba. Eu já pedi socorro. E não me
foi negado.
Senti-me então como se eu fosse um tigre perigoso com uma flecha cravada na carne, e que
estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então
uma pessoa tivesse sentido que um tigre ferido é apenas tão perigoso como uma criança. E
aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada.
E o tigre? Não, certas coisas nem pessoas nem animais podem agradecer. Então [eu], o tigre,
[dei] umas voltas vagarosas em frente [à pessoa, hesitei, lambi] uma das patas e depois, como
não [é] a palavra o que [tem] importância, [afastei-me] silenciosamente. (LISPECTOR, 1987, p.
112)

[DW, 1968] 22 June


AN EXPERIENCE
Perhaps this is one of the most important experiences known to man and beast. The need to seek
someone’s help and receive it, out of sheer generosity and understanding. Perhaps it is worth being
born in order to make a silent plea and be heard. I have pleaded for help. And received it.
I then felt like a dangerous tiger with an arrow stuck in its flesh, a tiger circling the terrified onlookers
to discover who had inflicted this terrible pain. Until someone sensed that a wounded beast is no
more dangerous than a child. Bravely approaching the tiger, the stranger carefully removed the
arrow.
And the tiger? Certain things defy words of gratitude from humans and animals. So I, the tiger,
slowly circled several times in front of my Good Samaritan, paused, and licked my paws, before
withdrawing in silence, since words are unimportant. (LISPECTOR, trad. Pontiero, 1992, p.150)

[ALP] [...] talvez essa fosse uma das experiências humanas e animais mais importantes: a de pedir
mudamente socorro e mudamente este socorro ser dado! Pois, apesar das palavras trocadas,
fora mudamente que ele a havia ajudado. Lóri se sentia como se fosse um tigre perigoso com
uma flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para
descobrir quem lhe tiraria a dor. E então um homem, Ulisses, tivesse sentido que um tigre ferido
não é perigoso. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado
a flecha fincada.
E o tigre? Não, certas coisas nem pessoas nem animais podiam agradecer. Então [ela], o tigre,
[dera] umas voltas vagarosas em frente [ao homem, hesitara, lambera] uma das patas e depois,
como não [era] a palavra [ou o grunhido] o que [tinha] importância, [afastara-se] silenciosamente.
(LISPECTOR, 1969, 1998, p. 121)

[ABD] [...] And Lori thought that that was perhaps one of the most important experiences for humans
and animals alike: silently asking for help and that help being given silently. For despite the exchange
of words, it had been silently that he had helped her. Lori felt like a dangerous jaguar with an arrow
embedded in its flesh which was slowly circling about some frightened people to determine who
would take the pain away. And then a man, Ulysses, had sensed that a wounded jaguar is not
dangerous. And approaching the beast, unafraid to touch it, he had carefully pulled out the arrow.
And the jaguar? No, there were certain things that neither humans nor animals could be grateful for.
Then she, the jaguar, had taken a few slow turns in front of the man, hesitated, licked a paw and then,
as if neither word nor sound was important, had quietly moved away. (LISPECTOR, trad. Mazzara e
Paris, 1986, p. 87-88)

[AV] [...] Vou falar do que se chama a experiência. É a experiência de pedir socorro e o socorro
ser dado. Talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e mudamente
se receba. Eu pedi socorro e não me foi negado. Senti-me então como se eu fosse um tigre com
flecha mortal cravada na carne e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para
descobrir quem teria coragem de aproximar-se e tirar-lhe a dor. E então há a pessoa que sabe
que tigre ferido é apenas tão perigoso como criança. E aproximando-se da fera, sem medo de

204 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


tocá-la, arranca a flecha fincada.
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS E o tigre? Não [se pode] agradecer. Então [eu] [dou] umas voltas vagarosas em frente [à pessoa
e hesito]. [Lambo] uma das patas e depois, como não [é] a palavra que tem [então] importância,
[afasto-me] silenciosamente. (LISPECTOR, 1973, 1989, p. 31)

[SL] […] I’m going to speak of what’s called experience. It’s the experience of asking for help and
having help given. Perhaps it’s worth it to have been born in order one day to mutely implore and
mutely receive. I asked for help and it was not denied me. I felt then as if I were a tiger with a fatal
arrow nailed into its flesh and that I was slowly stalking fearful people to discover who would have
the courage to come close and relieve it of its pain. And then there’s a person who knows that a
wounded tiger is only as dangerous as a child. And approaching the beast without being afraid to
touch it, the person pulls out the embedded arrow.
And the tiger? It can’t thank you. So I pace slowly back and forth in front of the person and hesitate. I
lick one of my paws and then, since it’s not the word that’s important anymore, I silently move away.
(LISPECTOR, trad. Lowe e Fitz, 1989, p. 30)

Por meio do último parágrafo dos três fragmentos semelhantes (re)aproveitados pela autora,
pode-se observar, no quadro abaixo, diferenças na escolha de palavras por parte dos seus tradutores:

Lispector Pontiero
Fragmentos semelhante de DM Fragmento de DW
Não, […]
nem pessoas nem animais podem defy words of gratitude from
agradecer. humans and animals.
slowly circled several times
dei umas voltas vagarosas my Good Samaritan, paused, and
à pessoa, hesitei, […] my
uma das before withdrawing in silence,
depois, como não é a palavra o que since words are unimportant.
tem importância, afastei-me
silenciosamente.
Lispector Mazzara e Paris
Fragmentos semelhante de ALP Fragmento de
ABD
tigre jaguar
[certas coisas] there were [certain things]
[podiam] agradecer. that
tigre, dera umas voltas vagarosas [could] be grateful for.
uma das patas jaguar, had taken a few slow
como não era a turns
ou o grunhido o que tinha a paw
importância, afastara-se as if neither
silenciosamente. nor sound was important, had
quietly moved away.
Lispector Lowe e Fitz
Fragmentos semelhante de AV Fragmento de SL
Não se pode [agradecer]. It can't [thank] you.
I pace slowly back and forth
dou umas voltas vagarosas
that's important anymore
tem então importância I silently move away.
afasto-me silenciosamente.

Quadro 4. Exemplo de opções diferentes dos tradutores a partir de 3 fragmentos semelhantes

Pode-se verificar certa preocupação com o nível lexical, em virtude de uma maior literalidade
no fragmento extraído da obra traduzida por Lowe e Fitz, seguida, com um pouco menos de traduções
literais e transposições pelo respectivo fragmento por Mazzara e Paris. Já no fragmento correspondente,
Pontiero apresentaria maior uso de modulações, indicando uma possível tentativa de manter a estrutura
da prosa clariciana.
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 205
A brevidade das narrativas de Lispector provém, em parte, da concisão métrica e densidade
sintática. A exploração desses recursos é facilitada pela própria língua portuguesa (com sílabas tônicas,
em geral, nas paroxítonas em relação à língua inglesa; ausência de phrasal verbs; elipses de pronomes,
artigos, preposições), o que possibilita ritmos comparativamente regulares em relação a ritmos mais
variados da língua inglesa.
Na tradução de Pontiero, poderia notar-se uma preocupação em preservar o léxico e ritmo da

Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês
autora, procurando evitar a múltipla acentuação de phrasal verbs, como, por exemplo, na sequência
extraída, respectivamente, da crônica “Uma experiência” e dos dois fragmentos acima:

[…] tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada. (LISPECTOR, 1987, p. 112)
=> the stranger carefully removed the arrow. (LISPECTOR, trad. Pontiero, 1992, p. 150)

[…] tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada. (LISPECTOR, 1969, 1998, p. 121)
=> he had carefully pulled out the arrow. (LISPECTOR, trad. Mazzara e Paris, 1986, p.87-
88)

[…] arranca a flecha fincada. (LISPECTOR, 1973, 1989, p. 31)


=> the person pulls out the embedded arrow. (LISPECTOR, trad. Lowe e Fitz, 1989, p. 30)

No tocante a esta amostra com três fragmentos semelhantes encontrados nas respectivas obras
originais, torna-se possível observar as diferentes opções de tradução pelos profissionais em pauta. No
correspondente excerto extraído de Apprenticeship or The Book of Delights, a equipe de Mazzara e
Parris apresenta um padrão vocabular menos extenso em relação aos respectivos fragmentos originais
extraídos de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Já os fragmentos traduzidos extraídos de
Discovering the World registram um padrão de acentuada variação vocabular em relação a Mazzara
e Parris, e um padrão de ligeira diversidade lexical em relação aos respectivos fragmentos originais
extraídos de A Descoberta do Mundo.
Apesar da série de possíveis variáveis, os resultados obtidos com o presente trabalho também
indicam que, no conjunto das quatro obras de Lispector traduzidas para o inglês, e observadas na sua
totalidade, ocorre um distanciamento moderado entre o estilo de Pontiero e da equipe de Lowe e Fitz.
Ao recorrer menos a traduções palavra por palavra e mais a modulações e a repetições
expressivas, Pontiero apresentaria, com frequência, uma ampliação deliberada de marcadores estilísticos
de reiteração utilizados por Clarice. Em um de seus ensaios, Pontiero (1971, p.266) comenta sobre a
significância da obsessive repetition of certain words40 na ficção clariciana. A esse respeito, Sabine atesta
que his translations not only preserves such repetition consistently but on well-chosen occasions increases
it41 (SABINE, 1997, p.150).
Conviria esclarecer que, com as amostras acima, não tivemos a intenção de avaliar se os textos
originais foram adequadamente transposto “nos” respectivos textos traduzidos. Na verdade, procurei
mostrar alguns exemplos de padrões de estilo “de” tradução para o inglês por diferentes profissionais a
partir de excertos iguais ou semelhantes originalmente escritos em português por uma mesma autora.
Para isso, tornou-se necessário assinalar determinados padrões da sua escrita, como ritmos próprios

40[…] repetição obsessiva de certas palavras […]


41a sua tradução não apenas preserva, de forma consistente, tais repetições como aumenta-as em situações que se mostrem adequadas.

206 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


não semelhantes na língua de chegada e certos “minimalismos” textuais, porquanto Clarice insiste: “Mas
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS já que se há de escrever, que ao menos não esmaguem as palavras nas entrelinhas” (In A Descoberta do
Mundo, 1987, crônica de 7 de junho, 1969: “Mas já que se há de escrever...”).
Dado que, nas traduções de Lispector, Discovering the World apresenta o uso de um padrão
recorrente, distintivo e preferencial revelando a menor utilização de estratégias identificadas como
características de simplificação, poderia levantar-se a suposição de que, no conjunto das obras claricianas
estudadas, o tradutor britânico Pontiero se valeria de escolhas linguísticas mais convencionais do que
as da autora, porém menos usuais do que as apresentadas pelos padrões estilísticos dos tradutores da
América do Norte: Lowe e Fitz e Mazzara e Parris.
A postura tradutória de Ponteiro poderia corresponder a uma tendência identificada com
o processo de “estrangeirização” (Venuti, 1995), ao procurar manter a rede densa de ligações do
respectivo original. Em contrapartida, as duas equipes de tradutores norte-americanos de Lispector
mostrariam um processo maior de “domesticação” nos respectivos textos traduzidos, ao apresentarem
uma tendência para desfazer essas redes e substituí-las por algo mais usual na língua meta, tornando
mais simples a linguagem da tradução por meio do uso de vocabulário menos variado.

Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 207
R E F E R Ê N C I A S

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INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS

CAPÍTULO 16

A saudável maluquice de um menino feliz


Maria Teresinha Martins do Nascimento

O menino maluquinho
Ziraldo.

Quando esta história aconteceu,


Num tempo que não foi ontem,
Nem hoje, nem tempo algum.
(Alan Garner).

O tempo ficcional é o tempo que pode conter o passado, o presente e o futuro, por isto a
ficção encerra em si todos eles. Ziraldo inicia o seu texto infantil da maneira mais tradicional possível:
Era uma vez o menino maluquinho e assim o faz, provocando um dialogo polêmico entre as narrativas
infantis modernas e os contos de fada, uma vez que as histórias maravilhosas se propunham, antes de
tudo, a moralizar as crianças, consideradas à época, miniaturas de adultos. Ziraldo, entretanto, ressalva
que suas condutas têm correlação com o imaginário infantil que, por sua vez, resguarda o período
da infância como algo completamente independente da idade adulta, mas que funciona como fonte
de um inesgotável manancial de saudável energia criativa, como confessou Manuel Bandeira em seu
Itinerário de Pasárgada.
Ziraldo investe em seu jogo lúdico de escritura no diálogo intra e intertextual e, dessa forma,
propõe uma solução poética moderna para a literatura infantil. Eles são, modernamente recolocados,
mediante a intertextualidade usada por Ziraldo, onde os níveis de forma ao se entrecruzarem às imagens
e à linguagem verbal, especialmente a figurada, verifica-se que uma está para a outra como o conteúdo
para a forma.

A saudável maluquice de um menino feliz 213


Acentua-se, assim sua intenção de inverter, contestar ou deformar alguns sentidos e objetivos
da clássica literatura infantil, tipicamente, dos contos de fadas. Ocorre nas entrelinhas, portanto, uma
discussão sobre os valores morais anteriormente impostos às crianças. O movimento inter e intra
textual, assim considerado, será o suporte do moderno enunciado.
Em O menino maluquinho, o protagonista da narrativa é visualizado, sentido e ouvido como
uma personagem a ser entendida: um ser em construção. São colocados sublinearmente em questão
os valores e o modo como as crianças devem ser educadas, pois como estão em fase de formação
e dependem, em quase todos os sentidos, do ensino e da orientação dos adultos, em especial, dos
familiares e professores. Liberdade, respeito, alegria e responsabilidade são indispensáveis à formação
infantil.
A literatura é um dos meios propícios a atingir este objetivo, pois é capaz de seduzir adultos,
adolescentes e crianças, proporcionando-lhes uma visão artística da vida. A sensibilidade, o efeito
mágico da palavra e a nova compreensão do mundo, da existência e da humanidade, apreendidos nas
narrativas e ilustrações de Ziraldo, agem no sentido de despertar no leitor o senso crítico com relação aos
valores literários, bem como seu sentido humanitário: justiça e perdão. Com este nível de consciência,
de solidariedade e de compreensão textual, é possível ler o texto/mundo como queria Paulo Freire, ou
seja, escrevendo e interpretando a palavramundo.
Pode-se inferir que, literariamente, as narrativas de Ziraldo são elaboradas de modo a realçar
o ato de educar, visando a formação integral e plena da criança sem, no entanto, obviamente, sem
esquecer o aspecto lúdico, que é parte integrante do universo infantil.
A linguagem usada por Ziraldo para motivar a naturalidade infantil, propicia que o processo de
adjetivação passe por uma transição de significante para significado: o termo maluco, assim considerado,
torna-se um eufemismo, e perde seu significado literal ao ser acrescido do sufixo diminutivo, passando
a atuar em sentido eufórico, ou seja, em sentido positivo. O menino maluquinho “tinha fogo no rabo”,
(p.9).
Isto porque a ilustração, feita também pelo mesmo autor, torna o enunciado equivalente à
forma; neste caso, as imagens e a linguagem verbal, lúdica e ironicamente, se equivalem: O menino A saudável maluquice de um menino feliz
maluquinho é e não é maluquinho.
Portanto, as ilustrações/imagens artísticas não traduzem simplesmente as metáforas, elas
são a essência e o significado de toda criança que por ventura cresça num ambiente adequado ao seu
desenvolvimento natural.
Como capista, Ziraldo deixa todos os indícios de que haverá uma isomorfia em nível textual. O
menino maluquinho, inusitadamente, usa uma panela para substituir o boné ou o chapéu, conferindo
outra função ao objeto culinário, às roupas militares e aos sapatos de adultos. O uso da panela, no
lugar que deveria ser do quepe ou do boné, inverte e carnavaliza os valores que imperavam a época da
ditadura.
Entretanto, a mão infantil colocada sobre o peito, dubiamente, pode simbolizar amor à
pátria, bem como demonstrar a enorme subjetividade existente característica das crianças. Seu
sorriso enigmático possui um sentido benigno ou maligno ou, no mínimo, irônico, se for levado em
consideração o contexto político ditatorial vivido pelo autor, entre 1964/1984, aproximadamente. Esta

214 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


imagem reflete a do revolucionário de então, o sonhador de um mundo novo, onde seus moradores
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS tivessem a liberdade de ir e vir, e a possibilidade de ser. Ser plenamente, com todos os direitos e
prerrogativas, em um novo mundo ético e livre.
Do mesmo modo, percebe-se, analogicamente, que um processo educacional arbitrário
e autoritário não corresponde às necessidades básicas da criança: direito de brincar, de ser feliz, de
estudar e de ter livre expressão.
O menino maluquinho, como toda criança, também tinha suas fases:

E chorava escondido/se tinha tristezas/e ficava sozinho/ brincando no quarto/ semanas


seguidas/ fazendo batalhas/ fazendo corridas/ desenhando mapas/ de terras perdidas/
inventando estrelas..

A complexidade natural do ser humano é capaz, portanto, de gerar alegrias e tristezas que
se mesclam em seu dia a dia, como normalmente acontece no reino infantil. “A positividade aparece
propriamente como mola fundadora da negatividade: ela condiciona a afirmação do termo negativo ou
vice- versa.” Adulto ou infantil, o homem está sujeito à sua natureza.
Inicialmente, poder-se-ia pensar que quando a tristeza do menino maluquinho surgisse seria
fugaz, e atuaria em nível disfórico, negativamente. Ao contrário, ele ressurge enérgico, criativo e alegre.
Obviamente, ao lado de seus direitos, estão seus deveres e suas responsabilidades infantis:

Um dia, num fim de ano


o menino maluquinho
chegou em cem casa com uma bomba:

“Mamãe, tou aí com uma bomba”


“Meu neto é um subversivo!”
gritou o avô.

“Ele vai matar o gato”!


gritou a avó.

“Tira esse negócio daí!”


falou_de novo_a babá, (32 a 37).

A hipérbole está presente no texto, propositadamente, sem pontuação alguma, para reforçar a
expressão de sua hiperatividade como marca indelével e explícita de toda criança saudável e feliz:

Tinha o olho maior do que a barriga


tinha fogo no rabo
tinha vento nos pés
umas pernas enormes
(que davam para abraçar o mundo), (p.08 a 11).

A criatividade atua em sua interação familiar e com seus amigos:

Numa noite muito escura


Apareceu um fantasma!

Coberto com um lençol


muito branco
assustador
com dois buracos
nos olhos

A saudável maluquice de um menino feliz 215


saltou
fazendo buuuuuuuuuuuu
sobre os ombros
assustados
do papai e da
mamãe
que voltavam
do cinema, (p.38 a 44).

Suas brincadeiras refletem a tradição cultural familiar:

O susto não foi muito, muito grande,


não.
Mas,
com o fantasma
no colo
o papai lhe
perguntou:
“Você não tem
medo do escuro?”
E o menino
respondeu:
“Claro que não!
O fantasma
sou eu!”(48 a 51).

O plano de expressão e o de conteúdo reflete-se nas ilustrações e nos balões que contêm
palavras soltas, desconexas, demonstrando seu estado eufórico, quando não há alguém com quem
ele pudesse conversar. Entretanto, como num monólogo interior favorece sua hiperatividade, porque a
sintaxe não se faz presente, o que o beneficia, tornando expressivo seu estado de humor:

se havia
o silêncio
ele inventava turma dentista castigo

A saudável maluquice de um menino feliz


a conversa
pois havia
cauboy medo frita cocô
sempre patins bang bang esquina
um tempo avião gato passarinho
para escutar
o que etcsujeira ss
menino
gostava
de conversar;
( )
Tinha macaquinhos no sótão
(embora nem soubesse o que
significasse macaquinhos no sótão)
( ) Ele era um menino impossível! (p.12,13 e 45).

A pré-adolescência aciona apelos energéticos e emocionais. A fantasia faz parte de seu reinado
amoroso, demonstrando sua natural sedução:

O menino maluquinho
tinha
dez namoradas

216 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


E elas riam muito, muito
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS de suas graças
riam tanto
que nem tinham tempo
de beijar escondido.

Quando o namoro acabava


e a nova namorada perguntava
Qual tinha sido o motivo
do namoro terminar
ela já sabia a resposta:
“Esse seu namorado
é muito maluquinho!”

Mas todas ficavam muito


apaixonadas.

Ele era
um namorado
formidável.

Que desenhava
corações
nos troncos
das árvores

Que
desenhava
flores no caderno de desenho
e levava laranjas
e levava maçãs
e pagava sorvetes
e roubava beijinhos

“Gosto muito de você


Acho que estou apaixonado
Mas acho que este versinho
Está de pé que quebrado”

e fazia versinhos
e fazia canções. (53 a 61).

Seu caráter independente levava-o a praticar travessuras, seu apelido após as férias era MÚMIA,
tantos eram os curativos em seu corpo devido aos vários tombos que levava.
Entre as travessuras e períodos de estudos seu humor variava; havia tempos de dores e
lágrimas. Seus hormônios se desorganizavam e o Menino Maluquinho atravessava períodos tediosos
e se enclausurava, demonstrando que na pré-adolescência como na adolescência propriamente dita, a
criança também quer ficar só:

E chorava escondido
se tinha tristezas

e ficava sozinho
brincando no quarto
semanas seguidas
(não petu®be) (64/65)

Nesta fase, ensimesmado, exercitava seu lado lúdico, jogando batalhas, corridas, desenhando
mapas de terras inexistentes, e inventando:

A saudável maluquice de um menino feliz 217


estrelas e foguetes espaciais e era montado /num foguete destes/ que ele saia do
quarto/ a voar outra vez/ pela sala/ pelas grades da varanda/ pelas cercas do quintal./ E
todo mundo / ficava alegre de novo/ ao ver de volta/ a alegria da rua! VIVA! (p.64 a 70).

De volta ao convívio de seus familiares e de sua turma de amigos, ele compartilhava seus
segredos:

Tinha uns dez


que ele guardava
só pra contar
pro papai.
E mais uns dez escolhidos
pra dividir com a mamãe
Os outros eram só dele. (74-76).

O tempo de sua infância era elástico, tinha tempo para tudo e ainda sobrava-lhe tempo para
sonhar. Tão somente as adversidades existenciais e familiares tornaram suas horas cronológicas. Com o
divórcio de seus pais, ele se obrigou a agir objetivamente, ainda que continuasse um pouco lúdico seu
poder de invenção:

E o menino maluquinho
era um menino tão querido
era um menino tão amado
que quando de acontecer
de o papai ir para um lado
e a mamãe ir pro outro
ele achou de inventar
(pois tinha aprendido a criar)
a Teoria dos Lados!

“Todo lado tem seu lado


Eu sou o meu próprio lado
E posso viver ao lado
Do seu lado, que era meu”. (84,5)

Com sua maturidade, concretizou-se seu crescimento. Ele se tornou uma pessoa adulta,
A saudável maluquice de um menino feliz
podendo recorrer a seu período infantil para amenizar suas dificuldades emocionais de homem. Então
ele percebeu que:

Não tinha sido


um
menino
maluquinho
ele tinha sido era um menino feliz!
Aliás,
virou o cara mais legal
do mundo!Mas um cara legal mesmo!

O leitor sai deste texto criativo e amoroso que é O menino maluquinho com o mesmo prazer
que se tem quando criança ao comemorar a vitória num “jogo de bolinha de gude” ou quando se chega
ao céu no final do “jogo da amarelinha”. O lúdico e a sensação de ter conhecimento, de saber, com
certeza, o valor de cada signo textual, bem como aqueles emitidos pelas crianças, conferem-lhe o poder
218 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS
de transformar sua capacidade de formação infantil, e à criança é devolvida a resposta que a bruxa
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS (madrasta de Branca de Neve) faz ao espelho:
- “Espelho, espelho meu, há alguém neste mundo mais bonita do que eu?”
Sim, há uma narrativa onde a criança se identifica com seus personagens e se espelha em suas
características, e estas não são as mesmas exigidas do menino miniatura de adulto. A literatura infantil
moderna tem, quase sempre, o reconhecimento de seus reais valores. Adultos, pais, professores e
familiares, insistimos, sabem da importância de respeitar suas crianças, e do exato momento de impor-
lhe limites, pois direitos e deveres caminham lado a lado neste processo de formação humanitária e
libertadora da criança.

A saudável maluquice de um menino feliz 219


R E F E R Ê N C I A S

EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. Martins Fontes, São Paulo: 2010.

ZIRALDO. O menino maluquinho. Melhoramentos, São Paulo: 2008.

A saudável maluquice de um menino feliz

220 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS

CAPÍTULO 17

A heroína frágil e perseguida – do gótico às narrativas brasileiras


Maurício Cesar Menon

Se há uma figura recorrente em boa parte da literatura gótica essa é a da heroína frágil e
perseguida. Encarnação da virtude e da bondade, ela se constitui sempre num plano linear, capaz de
desenhar, desde o início do texto, um desfecho bastante previsível – por isso, raramente, surpreende.
Um possível modelo dessa espécie de personagem é encontrado dentro das novelas/romances
de cavalaria medievais. Parte considerável das personagens femininas desse gênero surge emoldurada
por uma prática de devoção e de submissão aos valores masculinos dominantes, circundada quase
sempre de uma aura cristã – estofos necessários à representação da mulher ideal e virtuosa.
Essa personagem, nas novelas/romances de cavalaria, apresenta uma certa fragilidade que
quase sempre a põe em perigo. Desse perigo ela é salva pelo cavaleiro, cuja honra e nobreza de espírito
devem ser ressaltadas e reveladas ao longo de todo o enredo. Ela aparece, nesse caso, como uma
personagem de segundo plano, que serve para evidenciar a figura do herói. A fragilidade feminina,
portanto, constrói-se mais como um pretexto para se revelarem as virtudes e atitudes heróicas do
cavaleiro.
O romance gótico aproveita-se muito dessa composição. Nele, todavia, a figura da heroína
surgirá como um dos meios pelo qual se projeta o maniqueísmo presente em boa parcela das obras do
gênero. A eterna luta entre o bem e o mal se reduz na composição da heroína (protótipo do bem) e na
do vilão (protótipo do mal) que, em dado momento da obra, terão de se enfrentar.
A importância, porém, da heroína gótica que a difere daquela apresentada nos textos medievais,
é que ela não serve para evidenciar a figura de um herói (embora esse se faça presente), mas sim para
atuar como forma de oposição dos desregramentos intrínsecos ao vilão – por isso o embate não se
dá apenas entre duas personagens, mas sim entre duas forças totalmente adversas que sustentam a
narrativa.

A heroína frágil e perseguida – do gótico às narrativas brasileiras 221


Tais forças servem para se reafirmar valores e virtudes dentro de um contexto frequentemente
moralizante. Mesmo quando transgressora, a obra gótica ainda deixa transparecer, quase sempre, essa
reafirmação de valores sustentados por uma sociedade cristã. Sobre isso dá testemunho Fred Botting
em seu livro sobre o gótico: “Os terrores e horrores da transgressão na narrativa gótica tornam-se meios
poderosos de reafirmar os valores da sociedade, virtude e propriedade; transgressão, ao cruzar os limites
do social e do estético, serve para reforçar ou sublinhar os seus valores e necessidades, restaurando e
definindo limites.”42 (1996, p. 7)
O primeiro texto considerado gótico pela literatura inglesa, O Castelo de Otranto (1784), de
Horace Walpole, já trouxe o protótipo da heroína frágil e perseguida – Isabela – em contraposição
ao vilão – Manfredo – como símbolos do bem e do mal que irão se enfrentar na totalidade da obra.
Ao lado disso, destaca-se o espaço por onde se movimentam essas personagens como ingrediente
indispensável à geração da atmosfera tensa e sombria.
O espaço físico onde habita a heroína ou onde se desenrola o enredo do qual ela faz parte
quase sempre remete à idéia de clausura, de confinamento. Os subterrâneos, as igrejas, os cemitérios,
as florestas e, em muitos casos, a própria casa revelam uma imagem opressora, metáfora de uma
repressão impingida pelo poder patriarcal sobre o sexo feminino ao longo do tempo. “O claustro torna-
se uma metáfora para a repressão da carne, corpo, natureza (todos afinal de contas reduzidos para e

A heroína frágil e perseguida – do gótico às narrativas brasileiras


identificados com a sexualidade), e a idealização ilusória do espírito, mente e arte”43 (KILGOUR, 1995,
p.143)
É notável, ao se ler um texto gótico, a extrema dificuldade que o ambiente proporciona à
heroína, diferente daquela legada aos personagens masculinos que transitam, por assim dizer, com
maior facilidade por esses espaços sombrios. Pelos subterrâneos do Castelo de Otranto é que Isabela
empreende uma fuga aflita, tentando escapar aos maus desígnios de Manfredo:

A parte subterrânea do castelo era escavada numa série de vários claustros interligados
e não era fácil para alguém em tal estado de ansiedade encontrar a porta que abria
para a caverna. Um silêncio assustador reinava nessas regiões subterrâneas, exceto
quando, vez por outra, algumas rajadas de vento sacudiam as portas pelas quais ela
havia passado e os gongos de ferro ecoavam através daquele longo labirinto de trevas.
Cada rumor deixava-a possuída por um novo terror; mas ainda assim temia, acima de
tudo, a voz irada de Manfredo ordenando seus criados a perseguirem-na. (WALPOLE,
1996, p. 39-40)

Assim como Isabela, as personagens femininas de boa parte das narrativas góticas tornam-se
cativas de um espaço que não lhes permite mobilidade nem visão, deixando-as totalmente à mercê
da vontade masculina que, coadunada ao ambiente, subjuga-as acentuando, ainda mais, o grau de
fragilidade delas.
Essa construção da heroína perseguida, frágil e debilitada ganha fortes contornos na narrativa
gótica do século XVIII, bem como presença efetiva nessa espécie de texto, todavia não se constituirá
exclusividade dele. As obras do século XIX apropriar-se-ão desse modelo, variando-lhe os matizes
e inserindo-o em gêneros diversos. Até mesmo no século XX, é possível encontrar, vez por outra,
personagens femininas que atendem a essa vocação.
42The terrors and horros of transgression in Gothic writing become a powerful means to reassert the values of society, virtue and propriety;
transgression, by crossing the social and aesthetic limits, serves to reinforce or underline theri value and necessity, restoring or defining limits.
43Cloistering becomes a metaphor for the repression of flesh, body, nature (all ultimately reduced to and identified with sexuality), and the illusory

idealisation of spirit, mind and art

222 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


A literatura brasileira deixa em seu legado alguns exemplos de heroína frágil e perseguida
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS bastante próximas daquelas presentes nos textos góticos ou na literatura de terror/horror européia.
As diferenças que há entre uma e outra, geralmente, referem-se ao espaço, uma vez que o ambiente
gótico, no sentido arquitetônico, é muito raro de se observar num texto literário brasileiro. Mesmo assim
o que se torna perceptível é que o efeito do espaço sobre a personagem ainda se mantém, na maioria
dos casos.
Dona Narcisa de Villar (1859), escrito por Ana Luísa de Azevedo Castro, apresenta um bom
exemplo da figuração de uma heroína próxima daquelas do modelo europeu. As virtudes, essência
dessa personagem, já se fazem transparecer logo no capítulo II:

A moça tornou-se bela como uma divindade. Os seus modos eram tão benévolos,
quando tratava com os pobres, sua caridade tão extensa, que ganhou no povo um
amor universal. (...) Seu pescoço alvo e longo como uma gaivota de nossas margens,
era ornado de colares de diamantes, cujos laços lhe cobriam o alvo colo; seus cabelos
pretos e lustrosos como a asa da jagutinga, eram suspensos no alto da fronte por flores
de pedras de muito custo. (...) Ah! que era a mais bela virgem de todo o bairro! (2001,
pp. 31-32).

Note-se que a bondade e o carisma precedem a descrição física da personagem, reforçando,


assim, aquele aspecto acima mencionado de encarnação do bem. Os sentidos moral e espiritual tornam-
se imprescindíveis e prioritários na descrição da heroína, revelando sua virtude.
Da mesma forma, associa-se também a beleza física à bondade – expediente muito utilizado,
principalmente no que concerne ao sexo feminino, uma vez que as feias, velhas e/ou portadoras de
deformidades constantemente serão associadas à bruxa, à maldade ou à monstruosidade.
Veja-se o caso, a título de exemplo, das personagens Celina e Irias, de Os dois amores (1848),
de Joaquim Manuel de Macedo: a primeira é jovem e bela, sendo associada sempre à divindade, já a
segunda, mais idosa, enfrenta calúnias e agressões por parte de alguns moradores: “- Bruxa!... fora a
bruxa!... bradavam uns. - Lá vai a velha bruxa!... clamavam outros. Alguns já tinham ousado chegar-se a
suas vítimas, e a mantilha da velha estava feita em pedaços” (MACEDO, 1952, p. 42)
Os próprios lugares onde habitam essas personagens relacionam-se com as idéias formuladas
pelo povo acerca das duas: a casa em que Celina habita é chamada de “Céu cor-de-rosa”, enquanto a
da velha Írias é nominada de “Purgatório-trigueiro”. Embora tudo não passe de estereótipo, pois tanto
Celina quanto Írias transitam pelos domínios da bondade, tal descrição não deixa de evidenciar uma
estrutura mental fixa, recorrente, tomada por empréstimo da realidade: a de se relacionar a feiúra à
maldade e a beleza à bondade. Por isso associações do lugar à personalidade, ao comportamento e à
própria aparência física de alguém são, de certa forma, comuns.
Utilizando-se da associação do lugar à personalidade da personagem é que João Simões de
Lopes compõe Maria Altina do conto “No Manantial”, presente em Contos Gauchescos (1912). Nessa
narrativa não se faz uma descrição física demorada da personagem, mas deixam-se transparecer, da
mesma forma, os indícios de sua virtude e de bondade:

Quando Maria Altina – era a menina, a filha dele – andava nos dezasseis anos, este
arranchamento era um paraíso: o arvoredo todo crescido e dando; lavouras, criação
miúda, de tudo era uma fartura; havia galpões, eira, currais, tafona. O Mariano e as duas
traziam nas palminhas a pequena. Ela era o – ai-jesus – de todos, até dos negros (1998,
p. 31).

A heroína frágil e perseguida – do gótico às narrativas brasileiras 223


A descrição física, nesse caso, é focada no lugar, não na personagem. Percebe-se, porém, que ao
descrever a fortuna do rancho e da terra pertencente a Mariano – liga-se isso, indiretamente, à presença
de Maria Altina; ela vem a ser a criatura especial que traz harmonia e prosperidade ao espaço.
Esse fato poderá ser comprovado ao final do conto, quando se nota que o rancho virou uma
tapera, após a morte da moça “(...) foi ficando tapera... a tapera... que é sempre um lugar tristonho onde
parece que a gente vê gente que nunca viu... onde parece que até as árvores perguntam a quem chega:
- onde está quem me plantou?... onde está quem me plantou?” (NETO, 1998, p. 40).
Das mesmas características impressas em D. Narcisa e Maria Altina participa também a
personagem Luisinha, do romance O rio do quarto (1869), de Joaquim Manuel de Macedo. Nessa
história, a mocinha, filha do padre Martim – pároco da vila – consegue encarnar todas as virtudes que
deveriam estar presentes no pai, mas não estão; castidade, generosidade e liberalidade, por isso ela é
amada por todos os habitantes do vilarejo. Virtuosidade e fragilidade – eis os adjetivos que circundam
a figura da heroína e que raramente aparecem indissociáveis quando se trata dessa composição.
Quando se trata da fragilidade, entretanto, tais personagens deixam-na transparecer mais
no momento em que sofrem perseguições, quando os estados exagerados que lhes configuram a
delicadeza vêm à tona.

A heroína frágil e perseguida – do gótico às narrativas brasileiras


Úrsula, personagem do romance homônimo (1859) de Maria Firmina dos Reis, passa
praticamente a obra toda chorando, desmaiando ou em estado melancólico, podendo-se pontuar
apenas dois ou três momentos de rara felicidade da moça. Ao final, logo após seu casamento com
Tancredo e a morte deste, torna-se louca e morre em breve.
Inglês de Sousa, no conto “Acauã” (feliz exemplo de uma literatura de terror), presente em
Contos Amazônicos (1892), descreve duas irmãs: Ana e Vitória, aquela filha legítima, esta filha adotiva. A
primeira enquadra-se perfeitamente no perfil descritivo da heroína frágil, enquanto a segunda torna-se
um exemplo típico de mulher fatal. Ana apresenta no seu próprio físico as marcas de toda a fragilidade:

Ana fora uma criança robusta e sã, era agora franzina e pálida. Os anelados cabelos
castanhos caiam-lhe sobre as alvas e magras espáduas. Os olhos tinham uma languidez
doentia. A boca andava sempre contraída, em uma constante vontade de chorar. Raras
rugas divisavam-se-lhe nos cantos da boca e na fronte baixa, algum tanto cavada (2005,
p. 60).

Ao final do conto, no momento em que está casando, Ana ou Aninha, como é chamada
– parecendo hipnotizada por Vitória – apresentará os estados extremos, típicos dessa espécie de
personagem:
Então convulsões terríveis se apoderaram do corpo de Aninha. Retorcia-se como se fora
de borracha. O seio agitava-se dolorosamente. Os dentes rangiam em fúria. Arrancava
com as mãos os lindos cabelos. Os pés batiam no soalho. Os olhos reviravam-se nas
órbitas, escondendo a pupila. Toda ela se maltratava, rolando como uma frenética,
uivando dolorasamente (2005, p. 64).

Os desmaios, choros e gritos quase sempre tomam parte das reações esboçadas pelas moças
frágeis que se encontram diante de um perigo iminente. A razão raramente tem espaço para se
manifestar diante das situações, deixando-as à mercê dos fatos, sem força de expressão ou de ação –
padrão este já encontrado nos romances góticos do século XVIII.

224 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


Situação semelhante à da personagem de Inglês de Souza pode ser também percebida no
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS romance de Ana Luísa de Azevedo Castro: D. Narcisa de Villar vê-se diante de um dilema – casar à força
com um pretendente arrumado por seu irmão mais velho D. Martim – homem prepotente e cruel – ou ser
encerrada em um convento. Mesmo diante da escolha da segunda opção, sua vontade não é cumprida
– o irmão tirano quer vê-la casada a qualquer custo com o coronel que se dispusera a desposá-la.
Narcisa amava Leonardo, mestiço de índio e branco, mas mesmo assim se submete à vontade
do irmão. No dia do noivado, Leonardo aparece no quarto dela para levá-la embora. Ao propor-lhe
a fuga, porém, o mancebo ouve o seguinte comentário da jovem: “- Leonardo, sinto-me fraca para
combater as tuas idéias, por isso te peço que não insistas nelas; tem compaixão de mim; deixa-me
morrer pura, para que ao menos na outra vida não sejamos separados” (CASTRO, 2001, p. 79).
Observe-se a fraqueza da moça, conformada já com seu destino cruel. Ela não tem forças
suficientes para transgredir o padrão imposto, nem para achar uma solução, por isso se submete. Essa
submissão, não há de se esquecer, dentro do contexto do século XIX, é vista como um símbolo de
abnegação cristã e virtude presentes nas melhores mulheres.
Dessa mesma espécie de submissão partilha Luisinha, de O rio do quarto, diante da situação
adversa, do casamento arranjado por seu pai, o padre Martim:

Luísa, tão alegre e radiosa, tão habituada a querer e poder no coração de seu padrinho,
parecia ter mudado de natureza e de caráter, engolfando-se em profunda melancolia,
e mostrando no seu silêncio embora tristíssimo, e na obediência sem queixa, a mais
completa submissão à vontade do padre Martim (MACEDO, s/d, p. 149)

Tudo, então, é articulado de maneira a ressaltar a bondade da heroína, sua religiosidade, sua
compostura, sua submissão ante a força dominadora do mal – é nisso que reside a força do bem, pelo
menos na concepção da época.

Tanto em D. Narcisa de Villar quanto em O rio do quarto, em Úrsula (1859) como também em
“No manantial” as situações adversas por onde figura o mal encontram-se relacionadas à união da
mulher com um homem indesejável – a fuga a esse destino acarretará uma tragédia, que se constituirá
no ápice da obra.
Narcisa morre junto com Leonardo, ambos assassinados dentro de uma gruta na Ilha do
Mel, onde se abrigaram após uma fuga e perseguição pelo mar revolto e tempestivo. Maria Altina, no
desespero da fuga a cavalo, ao ser perseguida por Chicão, precipita-se no manantial sendo sorvida pelo
mesmo. Úrsula, após presenciar o assassinato de Tancredo, enlouquece e de pois morre. Luisinha não
morre, mas perde seu pai – o padre Martim – que é assassinado pelo próprio primo dela, pretendente
indesejável à mão da moça.
Na maioria das obras citadas até aqui, encontra-se um lugar-comum nos desfechos: o
assombramento do local onde se deu o embate entre as forças do bem e do mal. Lugares tidos como
assombrados quase sempre guardam histórias relacionadas a transgressões, a crimes, à crueldade e
à perversidade do homem, funcionando como uma espécie de portal onde as histórias do passado
adentram o presente e trazem à memória o fato ou os fatos ocorridos.

A heroína frágil e perseguida – do gótico às narrativas brasileiras 225


Apesar do desfecho trágico da heroína, o poder do bem simbolizado nela prevalece sobre o
mal, por isso, mesmo em circunstâncias que adentram os limites do fantástico, o efeito moral persiste,
como se pode observar em D. Narcisa de Villar:

Quando a noite está escura, e cai o vento noroeste, vê-se dois vultos brancos como a
neve atravessarem o mar, vindos, da Ilha do Mel à Ponta Grossa, e irem costeando até a
Ponta da Pedreira. Dali se transformam em duas pombas brancas, e voam pelo mesmo
caminho que vieram; porém então são perseguidas por três corvos que procuram
agarrá-las com seus bicos hediondos, grasnando horrivelmente: chegando bem no meio
do mar, os corvos se transformam em Meninos queimados, e lançam gritos tão agudos
que fazem acordar as crianças em seus berços, iluminando todo o mar com o clarão
de suas caudas inflamadas. Chegando à Ilha do Mel tudo desaparece. É LEONARDO e
D. NARCISA DE VILLAR que vêm do céu fazer a sua peregrinação na terra onde tanto
sofreram; os corvos, são os orgulhosos irmãos da santa mártir que estão no inferno
todos três (CASTRO, 2001, p. 126)

As imagens ligadas à heroína (vulto branco, pomba branca, céu) apresentam-se carregadas de
uma simbologia ligada ao bem, enquanto, na outra extremidade, as imagens ligadas ao vilão (corvos,
meninos queimados, inferno) revelam a presença do mal que não triunfa na esfera transcendente.
Em Úrsula, após a morte da heroína, o vilão se acabará em remorsos e entrará para a vida
religiosa, tornando-se um frei; na hora de sua morte agarra o crucifixo e pede perdão a Deus por todas

A heroína frágil e perseguida – do gótico às narrativas brasileiras


as suas maldades e assassinatos. Prevalecem aí os valores cristãos de arrependimento e salvação, a
heroína funciona como uma espécie de mártir, necessária à conversão do mal em bem.
Parece nítido, ao se ler narrativas que tragam em seu bojo a heroína frágil e perseguida, que a
figura do vilão a exceda no processo de construção ao longo dos textos, o que, de fato, pode ser atestado
na maioria dos casos. A heroína, porém, exerce um papel fundamental na articulação da mensagem de
cunho moralizante que se pretende imprimir nos leitores. É justamente a fragilidade que enfrentará o
mal e o vencerá na maioria das vezes; quanto mais frágil, maior é a força do bem que se concentra e se
revela, mesmo que depois da morte.

226 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS R E F E R Ê N C I A S
BOTTING, Fred. Gothic. London: Routledge, 1996.

CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. D. Narcisa de Villar. Florianópolis: ed. Mulheres, 2000.

KILGOUR, Maggie. The rise of the gothic novel. London: Routledge, 1995.

MACEDO, Joaquim Manuel de. O Rio do Quarto. São Paulo: Melhoramentos, s/d.

MACEDO, Joaquim Manuel de. Os Dois Amores. São Paulo – Rio de Janeiro – Porto
Alegre: W. M. Jackson Inc. Editores, 1952.

NETO, João Simões de Lopes. Contos Gauchescos. São Paulo: Ática, 1998.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Florianópolis: ed. Mulheres, Belo Horizonte: PUC
Minas, 2004.

SOUSA, Inglês de. Contos Amazônicos. São Paulo: ed. Martin Claret, 2005.

WALPOLE, Horace. O castelo de Otranto. São Paulo: editora Nova Alexandria, 1996.

A heroína frágil e perseguida – do gótico às narrativas brasileiras 227


A heroína frágil e perseguida – do gótico às narrativas brasileiras

228 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS

CAPÍTULO 18

Metateatro e Teatralidade44
Sonia Aparecida Vido Pascolati

Fenômeno dúplice, o teatro vem sendo historicamente abordado nas confluências entre texto
e espetáculo; no espaço dessas confluências, se instala uma discussão acerca do terreno a que pertence
a teatralidade. Ao texto dramático, importa ter funcionalidade cênica, uma ação dinâmica e construir
um campo de imagens facilmente materializável pela mente do leitor ou pelo olhar do encenador. Dessa
perspectiva, texto e espetáculo passam a dividir a responsabilidade pela constituição da teatralidade,
na medida em que partimos, como Anne Ubersfeld (2005, p.6),

do pressuposto de que há, no interior do texto de teatro, matrizes textuais de


“representatividade”; que um texto de teatro pode ser analisado com procedimentos
(relativamente) específicos que iluminam os núcleos de teatralidade no texto. Essa
especificidade não é tanto do texto, mas da leitura que dele se pode fazer.

Na modernidade, em particular no início do século XX, a reflexividade é uma das tônicas da


arte. Percebendo-se em um outro contexto histórico a partir do qual é levada a propor novas questões
estéticas, a arte moderna faz de si mesma seu tema predileto – e de forma quase obsessiva. O que
é arte, qual sua função, que papel é reservado ao artista nessa nova configuração social (capitalismo
industrial) são algumas das muitas questões incorporadas pela arte e transformadas em mote para a
criação artística. Esse é o terreno ideal para que também o teatro faça germinar novas formas e técnicas
de autoreflexividade, e dentre elas o metateatro é uma das mais fecundas.
A modernidade teatral brasileira está sujeita aos influxos das renovações da dramaturgia
estrangeira, do abalo resultante dos experimentalismos das vanguardas européias e das provocativas

44As reflexões aqui apresentadas são parte dos resultados do projeto de pesquisa “Meteatro e modernidade teatral brasileira: um estudo da drama-

turgia de Oswald de Andrade”, desenvolvido de 2007 a 2010 e coordenado por mim.

Metateatro e Teatralidade 229


propostas do Modernismo. Oswald de Andrade inicia sua produção como dramaturgo fortemente
marcado por essas influências, às quais se deve somar sua própria contribuição para a modernização
das letras brasileiras, concentrada especialmente no conceito de antropofagia como princípio de criação
artística, de relação com a cultura do outro e com a tradição literária nacional. Um olhar arguto sobre a
sociedade e a literatura da época acentua a feição metalinguística de sua produção literária; no teatro,
o recurso privilegiado para essa reflexão é o metateatro.
Nas peças de Oswald, certos recursos metateatrais (ruptura da ilusão dramática, efeitos de
distanciamento, personagens com consciência dramática, inserção do discurso crítico no discurso
ficcional) podem ser compreendidos como forma de construção da teatralidade no entretecer do texto
dramático. O metateatro, ao apontar os procedimentos de constituição do texto e remeter o leitor à
construção do espetáculo, contribui para que o teatro do século XX recupere a teatralidade posta em
xeque pelas então recentes teorias estéticas (Naturalismo e Simbolismo); por isso é relevante apontar
como alguns recursos metateatrais evidenciam a dimensão espetacular do texto e, por conseguinte,
projetam o metateatro como matriz de teatralidade.

TEATRALIDADE E MIMETISMO

Ao pensar na arte teatral, é inevitável refletir sobre a teatralidade, concentrada na dimensão


espetacular do teatro – ou seja, no palco. Dessa perspectiva, teatralidade estaria em oposição a texto
dramático; a este último, reserva-se o âmbito da fabulação, o primado da palavra, do diálogo; aquela
opera na construção visual de signos, constituindo-se como uma linguagem à parte do texto. Contudo,
o ponto de vista por nós adotado pretende colocar a questão de um outro ângulo, mais próximo
da complementaridade do que da oposição. Dito de outro modo, a teatralidade não é privilégio do
palco, podendo ser construída a partir do próprio texto dramático. Tudo que, no texto, contribui para
a construção de sua visualidade, todos os signos que se configuram iconicamente (gesto, figurino,
marcação de cena, objetos e cenário, entonação, etc.) são matrizes de imagens, são apelos à construção
visual do leitor. Neste artigo, tomamos o termo teatralidade como sinônimo das virtualidades cênicas
presentes em um texto dramático, ou seja, a teatralidade é buscada no próprio texto, em tudo aquilo
que nele é imagem e desvela a natureza convencional da arte teatral. Apesar de a matéria de expressão
do texto dramático ser linguística (verbal), ela contém marcas da matéria de expressão da representação,
que é múltipla, ou seja, verbal e não-verbal. A palavra do texto traz em si a projeção de signos do
espetáculo. Além disso, é bom recordar que, como texto literário, mas mais que qualquer um, o texto
Metateatro e Teatralidade

dramático é lacunar (UBERSFELD, 2005); portanto, é preciso perceber, nas potencialidades da palavra a
presença de outros elementos significantes tais como gesto, expressão, movimentação em cena, etc.
A história da dramaturgia no Ocidente é permeada por diferentes concepções acerca da
teatralidade que, todavia, giram em torno da mesma problemática: o questionamento da arte teatral
como forma de representação do mundo. Um marco fecundo dessa reflexão é o século XIX, momento
em que se estabelece a estética realista/ naturalista para a qual o teatro é visto como imagem viva do
real. O surgimento da fotografia e o desenvolvimento de técnicas cênicas, particularmente novos usos
da iluminação, viabilizam a pretensão de tornar o palco um espaço de reprodução da vida, constituindo

230 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


uma “teoria mimética da representação. Um mimetismo radical, que exclui qualquer idealização,
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS qualquer estilização” (ROUBINE, 2003, p.110). Lançando mão dos mais variados expedientes, o palco
naturalista procura elevar a ilusão dramática à máxima potência, transformando-se num microcosmo
que espelha o real. Paradoxalmente, o resultado desse esforço é evidenciar que, mesmo quando a
intenção é reproduzir o real, o teatro não consegue escapar das convenções; “a ideologia da ilusão
leva os Naturalistas a esquecerem que a passagem do real para o palco implica sempre num ‘discurso’
sobre o real, e que não existe teatro sem convenção”, observa Fachin (2000, p.272). Mesmo a ilusão mais
bem enredada é decorrente da técnica, da construção artística a partir de certas convenções estéticas.
Roubine (2003, p.112) observa que nem mesmo o mais intransigente mimetismo consegue escapar de
algum mecanismo de estilização:

O interesse da teoria naturalista do teatro talvez esteja no fato de que ela funda uma
dialética da representação. Ela se instala na tensão entre uma aspiração “moderna” à
reprodução idêntica do real em todas as situações [...] e a rede de convenções sem as
quais essa reprodução não consegue nem mesmo pensar em existir. O naturalismo
se afirma contra as convenções existentes, mas, ao mesmo tempo, o naturalista sabe
perfeitamente que as infletirá, as transformará talvez, mas não as fará desaparecer.

Se a estética naturalista defende um “mimetismo radical” – portanto, reduz o escopo da


teatralidade –, a estética simbolista, ao sobrevalorizar o texto, a simbologia da palavra e da imagem
poética, reduz radicalmente a importância da cena, chegando mesmo a considerá-la prejudicial
ao texto. Na contracorrente do Naturalismo, os poetas simbolistas questionam a possibilidade de
compreender a arte como reprodução da realidade, propondo o resgate daquilo que a palavra tem
de sugestivo, de alusivo a uma realidade não necessariamente concreta, mas principalmente possível,
criada pelo olhar arguto e subjetivo do artista. “Para eles, a realidade sensível não é senão a aparente
alusão a uma realidade espiritual superior” (ROUBINE, 2003, p.120). A representação teatral adquire – ou
recupera, nas origens do próprio teatro – um caráter ritualístico, dando ênfase à recriação da palavra do
texto dramático por meio de imagens cênicas revestidas de sentido simbólico. Sem nenhum receio da
acusação de “textocentrismo”, o teatro simbolista assume que a mediação do palco é um risco ao texto;
portanto, só é válido o espetáculo que consegue evidenciar as potencialidades líricas da palavra poética.
O palco simbolista fica nu. Desprovido de aparato cenográfico, considerando o ator apenas um veículo
de proclamação da palavra de um outro, o dramaturgo, o teatro simbolista acaba por “desvalorizar, se
não eliminar, todos os outros elementos constitutivos da teatralidade” (ROUBINE, 2003, p.122).
A despeito da negação da teatralidade e a exemplo da estética naturalista, os simbolistas
deixam um importante legado para a estética teatral do século XX. A simbologia proposta influencia
tendências como o teatro do absurdo, que também recusa o mimetismo e os efeitos de ilusão,
assim como veste a cena com imagens apenas apreendidas por um viés simbólico. Também alguns
dramaturgos e encenadores, preocupados com a recepção teatral, defendem um maior espaço para
a percepção do espectador, isto é, propõem abrir mão de mostrar tudo no palco para que a sugestão
estimule a imaginação do público.
Por conseguinte, temos que ambas as estéticas, ao enfraquecerem a teatralidade, acabam
por colocá-la em questão, procedimento fundamental para o desenvolvimento da estética teatral no
século XX; aliás, assiste-se no período à “reteatralização” do teatro operada particularmente a partir das

Metateatro e Teatralidade 231


idéias e experimentalismos do russo Meyerhold. Em lugar da supremacia da declamação do texto, são
revalorizados signos que devolvem a teatralidade ao palco: o corpo do ator, mímica e dança, máscaras
e figurinos, além do cenário que abandona a tendência de réplica do real para tornar-se uma imagem
grávida de significações múltiplas; tudo colabora para que a representação recupere seu caráter teatral,
como destaca apropriadamente Mostaço (2008, p.1):

Vsevoldod Meyerhold, ao propugnar o teatro teatral por ele forjado, insistia em destacar
na cena exatamente sua característica construída, artística, resultado de signos inflados
de significação que poderiam, facilmente, ser tomados como símbolos. A teatralidade,
nessa acepção, surge valorada positivamente, como uma virtude artística.

METATEATRO: MATRIZ DE TEATRALIDADE

Não por acaso esse processo acontece ao mesmo tempo em que a arte, em todas as
suas manifestações, vive um momento de intensa reflexão acerca de sua natureza, de profundo
questionamento sobre seus limites e alcances, funções e determinações. A metalinguagem torna-se uma
marca da arte das primeiras décadas do século; também a arte teatral – entendida aqui em sua dupla
configuração, isto é, literatura dramática e arte cênica – abraça a missão de refletir sobre sua constituição,
não podendo escapar à questão sobre o que é o teatro e como ele se produz. O metateatro – apesar de
velho conhecido dos dramaturgos, visto sua presença já nas comédias de Aristófanes, assim como no
teatro barroco – assume conformações diferenciadas para atender a essa nova necessidade do teatro. A
peça dentro da peça, a inserção do discurso crítico no discurso ficcional, a criação de personagens com
consciência dramática, o questionamento acerca das fronteiras entre o real e a representação do real,
a ruptura da ilusão teatral por meio da desconstrução da quarta parede são alguns dos procedimentos
presentes nas obras da maior parte dos dramaturgos do século XX, representantes das mais variadas
tendências (Luigi Pirandello, Bertolt Brecht, Jean Anouilh, Samuel Beckett, Jean Genet, dentre tantos
outros).
O metateatro coloca em cena os bastidores da criação espetacular, resgatando a percepção do
espetáculo e do texto como construção intencional, reafirmando a teatralidade enfraquecida no final
do século XIX. Ao apagar as fronteiras entre público e plateia, lembrar constantemente ao espectador
que ele está no teatro, interpor um narrador entre a ação representada e aquele que a assiste, criar
personagens autônomas em relação a seu criador e àqueles que tentam representá-las no palco,
perverter a configuração tradicional de categorias dramáticas como tempo, espaço, ação e diálogo, os
dramaturgos modernos abrem caminho para que o metateatro seja uma nova matriz de teatralidade.
Metateatro e Teatralidade

Pavis (1999), ao inquirir se a teatralidade é uma propriedade do texto dramático, coloca


a questão em termos da polêmica texto versus espetáculo; haveria uma espécie de texto dramático
que visa à cena e dela necessita para alcançar plenitude – por isso chamado de “teatro puro” – em
oposição a uma outra espécie de texto cuja organização prescinde da atualização cênica, nomeado,
então, “teatro literário”. O surgimento da figura do encenador, em fins do século XIX, desloca a questão
da oposição entre teatro puro e teatro literário ao definir o palco como espaço primordial da construção
da teatralidade, estabelecendo que ela “não surge mais, pois, como uma qualidade ou essência inerente
a um texto ou a uma situação, mas como uso pragmático da ferramenta cênica, de maneira a que os

232 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


componentes da representação se valorizem reciprocamente e façam brilhar a teatralidade e a fala”
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS (PAVIS, 1999, p.373).
Embora a teatralidade seja mais evidentemente uma propriedade da cena, acreditamos que
o texto seja também um espaço de sua construção, particularmente ao trabalharmos com a hipótese
de que o metateatro revela os bastidores da construção do texto e do espetáculo. Para constatar a
pertinência dessa abordagem, basta verificar como os signos teatrais disseminados no texto trazem
uma teatralidade latente a partir da qual o receptor é convidado a construir mentalmente o espetáculo;
mais do que isso, é instado a perceber a arte dramática como convenção, acordo necessário entre autor
e leitor/espectador para que o prazer do jogo teatral seja possível.
Num esforço de constituir os estudos do signo teatral como um campo de pesquisa da
Semiologia, Kowzan (1977) debruça-se sobre os signos do espetáculo. Para o autor, as artes do
espetáculo definem-se não apenas por serem uma manifestação artística, mas também por exigirem a
presença de um público e utilizarem convenções construídas e partilhadas socialmente. Kowzan (1977,
p.61) acredita que “entre todas as artes, e talvez entre todos os campos da atividade humana, a arte do
espetáculo é onde o signo se manifesta com maior riqueza, variedade e densidade”, haja vista o uso
da palavra que ultrapassa os limites da significação linguística para amplificar-se com a entonação, a
expressão facial, o gesto; logo, é na confluência de vários signos que a palavra alcança significação no
palco.
A arte do espetáculo transforma tudo em signo, mesmo aquilo que é percebido como natural.
A voz naturalmente hesitante, os gestos lentos ou o corpo arqueado de um ator idoso tornam-se signo
ao serem colocados no palco. “Na representação teatral tudo é signo” (KOWZAN, 1977, p.61) porque
qualquer elemento levado ao palco reveste-se de teatralidade e assume o caráter de uma convenção. O
signo teatral faz parte de um sistema de convenções que permite a comunicação entre palco e público.
Por isso, muitas vezes basta um efeito de luz para indicar a passagem do tempo ou um som ou música
para refletir o estado emocional da personagem. Uma personagem portando uma capa de chuva ou
lançando um olhar expressivo para outra basta para criar significações múltiplas. Ubersfeld (2205, p. 13-
14) chama a atenção para as implicações de considerar-se a dimensão polissêmica do signo teatral:

Compreende-se bem que a principal dificuldade na análise do signo teatral esteja ligada
à sua polissemia. Esta polissemia se deve, é óbvio, à presença de um mesmo signo nos
conjuntos originários de códigos diferentes, embora em cena presentes conjuntamente;
por exemplo, um certo detalhe colorido de uma indumentária é em princípio elemento
visual de um quadro cênico, mas inscreve-se também numa simbólica codificada das
cores; faz parte também da indumentária de uma personagem, remetendo, por exemplo,
ao lugar social da mesma ou a seu funcionamento dramático; pode ainda esse detalhe
marcar a relação paradigmática de seu usuário com uma outra personagem em cuja
indumentária ele também figura. A polissemia está associada sobretudo a esse processo
de constituição do sentido: ao lado do sentido principal, dito denotativo (ligado em
geral à fábula principal), sentido em geral “óbvio”, todo signo (verbal ou não-verbal) leva
consigo significações outras, distantes da primeira.

Magnífico exemplo de polissemia relacionada à cor é a entrada em cena de Alaíde, na peça


Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues. A jovem senhora de classe média alta surge no palco com
“vestido cinzento e uma bolsa vermelha”, cujo contraste – sobriedade do cinza versus sensualidade
do vermelho – remete claramente ao que Ubersfeld chama de “simbólica codificada das cores”, assim

Metateatro e Teatralidade 233


como revela sua posição social – mulher de um industrial, logo, abastada e elegante – e a distinção entre
ela e as demais mulheres que ocupam a cena, prostitutas “escandalosamente pintadas, com vestidos
berrantes e compridos. Decotes.” (RODRIGUES, 1993, p.349). Desse modo, além do sentido “óbvio” de
que as personagens pertencem a universos diferentes, a imagem inicial contribui para a constituição
do sentido profundo da peça, qual seja, o desejo de Alaíde, revelado gradativamente no desenrolar da
peça, de viver aventuras semelhantes às da prostituta Madame Clessi.
Dentre os responsáveis pela criação dos signos teatrais, Kowzan (1977, p.78) – embora
reconheça que na contemporaneidade o diretor é “o mestre todo-poderoso do espetáculo, que pode
criar ou suprimir signos de qualquer sistema” e considere o ator, o cenógrafo e o compositor musical
entre os criadores de signo no teatro – aponta em primeiro lugar o autor dramático, “principalmente
criador dos signos da palavra, mas [que] pode inspirar, mediante o próprio texto ou participando
dos ensaios, signos pertencentes a todos os demais sistemas”. O dramaturgo Oswald é um criador
de signos pertencentes aos mais variados sistemas (palavra, gesto, expressão facial, indumentária,
acessórios, cenário, música, som, etc.); revestindo-os com uma função metalinguística, o autor acentua
a teatralidade do texto, produzindo uma dramaturgia essencialmente visual, imagética, espetacular.

CONFIGURAÇÃO DO ESPETÁCULO NA DRAMATURGIA


DE OSWALD DE ANDRADE

Na dramaturgia de Oswald de Andrade destacam-se três peças escritas na década de 1930:


O homem e o cavalo, O rei da vela e A morta. A primeira é um verdadeiro banquete antropofágico,
pois reúne os mais variados e fantásticos espaços (o céu, uma estratonave, a Barca de São Pedro ou
uma estação interplanetária em terras socialistas), tempos históricos (guerra de Tróia, a civilização
de Cleópatra, conquistas napoleônicas, a máfia de Al Capone) e personagens (Cristo, Lord Byron,
D´Artagnan). A história é carnavalizada, recontada parodicamente com o objetivo de demonstrar como
o capitalismo vinha sendo gestado desde tempos imemoriais e, esgotado, devia ser substituído por
uma nova ordem, o comunismo. O rei da vela retrata a ascensão econômica da burguesia industrial
simultaneamente à falência da aristocracia rural e denuncia a opressão do capital estrangeiro (americano)
sobre a economia nacional, cujo resultado é a exploração financeira de pequenos comerciantes e
proprietários. Carnavalização e riso são elementos fundamentais na construção da peça, aspectos
acentuados por desvios sexuais representados por personagens volúveis e falsamente moralistas.
A última peça, qualificada pelo próprio autor como “ato lírico”, faz o leitor mergulhar no espaço do
Metateatro e Teatralidade

onírico e do mitológico por meio do diálogo com o texto clássico de Dante Alighieri, A Divina Comédia.
Também aqui um poeta atravessa três mundos – os países do indivíduo, da gramática e da anestesia –
para recuperar sua amada Beatriz do mundo dos mortos, mas acaba aderindo à energia sexual da vida;
do combate entre vivos e mortos, sai vitoriosa a renovação, a ruptura.
Nenhuma peça foi encenada à época de produção, seja porque “põem em prática um teatro
de intervenção social, sendo vítimas de um sintomático ‘esquecimento’ tanto por parte da crítica,
afinada com o paradigma moderno, quanto do próprio meio teatral” (DUARTE, 2000, p.50), seja porque
a linguagem das peças é acentuadamente revolucionária para o estado do teatro brasileiro nas décadas

234 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


iniciais do século XX. O fato de não alcançarem existência cênica colabora para imprimir-lhes a pecha de
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS irrepresentáveis. Contudo, a leitura dos textos revela que o autor mantém um olhar no palco ao escrevê-
las, a começar pela configuração espacial e construção do cenário.
Em A morta a rubrica inicial do 1º. Quadro anuncia: “a cena se desenvolve também na platéia”
(ANDRADE, 1995, p.35), procedimento de ruptura da clássica divisão espacial entre palco e público.
Postadas em camarotes suspensos no meio da plateia, as quatro personagens iniciais (Beatriz, A Outra
de Beatriz, O Poeta, O Hierofante) permanecem imóveis e suas falas são reproduzidas por microfones;
no palco, são duplicadas por quatro marionetes cujo movimento alucinado cria um contraponto entre
ser animado em estado de paralisia e ser inanimado que adquire vida. Colocar as marionetes no palco e
os atores na plateia é uma provocativa quebra de expectativa, afinal, espera-se que a ação se desenvolva
no palco e o espaço da plateia seja reservado apenas ao público. Kowzan (1977, p.67), ao tratar da
palavra como signo teatral, parece descrever o modo como o recurso do microfone e das marionetes é
utilizado por Oswald:

Às vezes o procedimento do teatro de marionetes pode ser imitado numa representação


dramática com atores vivos, mas então o papel semiológico desse jogo é inteiramente
diverso, se não oposto. Tomemos uma personagem que execute gestos rígidos e não faça
nada mais que abrir a boca, enquanto suas palavras são transmitidas mecanicamente
por meio de um alto-falante. A ruptura intencional entre a fonte natural da voz e o
sujeito “que fala” é signo de personagem-marionete. A separação da palavra e do sujeito
que fala, recurso bastante difundido no teatro contemporâneo graças às técnicas
modernas, pode revestir diferentes formas e representar papéis semiológicos distintos:
signo de monólogo interior do herói, signo de um narrador visível ou invisível, de uma
personagem coletiva, de um espectro (o pai de Hamlet em certas representações), etc.

Completando as possibilidades semiológicas elencadas por Kowzan, cremos que n’A morta
o uso de marionete e microfone constitua um procedimento de teatralização da cena, isto é, eleva
o caráter construído do espetáculo teatral à sua máxima potência. O espectador é mergulhado no
universo da representação, pois tudo é artificialmente produzido e absolutamente separado de
qualquer tendência à reprodução mimética do real. O uso do duplo – Beatriz, despida, é duplicada
por A Outra, pudica e vestida de negro; Poeta e Hierofante parecem constituir duas faces da mesma
personagem (face sonhadora somada à face pragmática) – pode remeter à própria essência do teatro
como representação; como os níveis de representação se multiplicam e não há intenção de reprodução
mimética do real, o mergulho no universo teatral é gradativamente mais profundo.
O 3º. Quadro de O homem e o cavalo também pressupõe indefinição entre os espaços do palco
e da plateia, o que permite a algumas personagens manifestarem-se do meio da plateia no 8º. Quadro,
cuja cena V traz a seguinte indicação cênica: “O chinês brota do solo num espaço da platéia” (ANDRADE,
1990, p.100), o que acontece com outras personagens nas cenas seguintes, como o Pequeno-burguês e
o Poeta católico. Invadindo o espaço do público, o teatro oswaldiano interfere no processo de recepção
do espetáculo, torna o espectador parte do show, quase uma personagem; aliás, n’ A morta, o Hierofante
coloca-se na frente do palco e se senta sobre a caixa do ponto, anunciando direta e claramente aos
espectadores que eles são parte essencial da representação, até porque devem empregar toda a energia
de sua imaginação para a composição do espetáculo.

Metateatro e Teatralidade 235


Permanecerei fiel aos meus propósitos até o fim da peça. E solidário com a vossa
compreensão de classe. Coisas importantes nesta farsa ficam a cargo do cenário de que
fazeis parte. Estamos nas ruínas misturadas de um mundo [...]. Vossa imaginação terá de
quebrar tumultos para satisfazer as exigências da bilheteria. Nosso bando precatório é
esfomeado e humano como uma trupe de Shakespeare. Precisa de vossa corte. Não vos
retireis das cadeiras horrorizados com a vossa autópsia. (ANDRADE, 1995, p.29).

Em O rei da vela o limite entre os espaços palco/ plateia é respeitado, mas a intenção de lembrar
o espectador que ele está no teatro e que tudo não passa de uma atuação ensaiada, prevista, calculada
está longe de ser abandonada. Os cenários dos três atos são meticulosamente montados a fim de que
o efeito teatral seja amplificado, particularmente nos dois primeiros. A cena do 1º. Ato se passa no
escritório de usura de Abelardo I, o rei da vela do título, espaço atulhado por objetos penhorados dos
devedores: “Em São Paulo. Escritório de usura de Abelardo & Abelardo. Um retrato da Gioconda. Caixas
amontoadas. Um divã futurista. Uma secretária Luís XV. Um castiçal de latão. Um telefone” (ANDRADE,
2003, p.37). A diversidade de objetos e o fato insólito de estarem reunidos apresentam o espaço como
construção teatral; os objetos em cena transcendem sua significação habitual, alcançando o status de
signos polissêmicos: o retrato da Gioconda pode ser lido como signo do provincianismo nacional ou do
apego a tradições, o divã futurista ao lado de uma secretária do século XVIII estabelece um contraponto
temporal, o castiçal de latão denuncia o mundo de aparência da aristocracia brasileira.
O mesmo princípio preside a construção do cenário do 2º. Ato, “uma ilha tropical na Baía
de Guanabara” (ANDRADE, 2003, p.65). O som dos pássaros que “assoviam exoticamente nas árvores
brutais” é ouvido em cena como signo do artificialismo do cenário, mera composição de fundo para
que as personagens, vestidas “pela mais furiosa fantasia burguesa e equatorial”, por lá desfilem. Tudo é
composto de modo que a família seja flagrada em um momento lúdico; mergulhadas no jogo cênico,
elas desvelam algumas máscaras, adotam outras, enfim, constroem claramente seus papéis.
Mas o metateatro como meio para evidenciar a teatralidade está presente desde o início do
primeiro ato, quando contracenam Abelardo I e Abelardo II, seu secretário. Eles acabam de dispensar
um cliente a quem negam renovação de crédito e Abelardo I não quer receber mais ninguém; o
secretário insiste argumentando que a jaula, metonímia da sala de espera do escritório, está cheia, mas
o agiota, rompendo a quarta parede e revelando consciência de estar no teatro a representar uma peça,
é categórico: “[...] Esta cena basta para nos identificar perante o público. Não preciso mais falar com
nenhum de meus clientes. São todos iguais” (ANDRADE, 2003, p.43).
Personagem de teatro, Abelardo I encontra no último ato de O rei da vela a oportunidade
para desconstruir qualquer possibilidade de ilusão e desvelar insistentemente os bastidores do teatro,
Metateatro e Teatralidade

caracterizando-o como lugar de convenções, de manobras para construção do espetáculo. Por isso ele
pode afirmar ser uma personagem de seu tempo, que vai até o fim, “a morte no terceiro ato” (ANDRADE,
2003, p.98). Abelardo é personagem e diretor de cena ao mesmo tempo, já que o cenário de sua morte,
atravancado por objetos penhorados de uma Casa de Saúde, foi preparado por ele mesmo e os efeitos
de cena também são orquestrados pelo protagonista, que ordena:

ABELARDO I — [...] (Grita para dentro.) Olá Maquinista! Feche o pano. Por um instante
só. Não foi à toa que penhorei uma Casa de Saúde. Mandei que trouxessem tudo para
cá. A padiola que vai me levar... (Fita em silêncio os espectadores.) Estão aí? Se quiserem

236 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


assistir a uma agonia alinhada esperem! (Grita.) Vou atear fogo às vestes! Suicídio
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS nacional! Solução do Mangue! (Longa hesitação. Oferece o revólver ao Ponto e fala com
ele.) Por favor, seu Cirineu... (Silêncio. Fica interdito.) Vê se afasta de mim esse fósforo...
(ANDRADE, 2003, p.98).

Não resta nenhuma possibilidade de mimetismo, nem de mergulho na ilusão dramática pelos
espectadores. Para a personagem, demonstrar conhecimento da presença do público equivale a dizer:
sou uma personagem, sei que estou no palco, tenho um papel a desempenhar diante de vocês. Mas
não se iludam, é apenas um jogo, uma cena, da qual podem participar, inclusive, figuras dos bastidores
como o maquinista e o ponto.
Personagens de O homem e o cavalo apresentam o mesmo nível de consciência dramática
de Abelardo I. No 1º. Quadro, cuja ação se desenrola no céu, uma das personagens sai do banheiro
feminino ainda abotoando a cinta, no que é repreendido pelo Poeta-soldado:

O POETA-SOLDADO — Mas que mania! Você vive no reservado das senhoras!


O DIVO — Está entupida a outra!
BALDUÍNA — Sujeito cafajeste!
O POETA-SOLDADO — Você perdeu o senso moral no palco! (ANDRADE, 1990, p.25).

Além da consciência de estarem no palco, de questionarem os limites do que pode ser


representado, as personagens ainda desconstroem as fronteiras palco/ plateia, rompendo a quarta
parede na cena do julgamento de Cristo, no 8º. Quadro da peça, quando Madame Jesus está sendo
interrogada:

MME. JESUS — Capanga de mi esposso! (Chegando-se para a platéia e a ela se dirigindo.)


Para defenderlo contra los comunistas. Se hay alguno en la sala que se presente! Hombre!
O SOLDADO VERMELHO — Atenção, Madame. Isto aqui não é campeonato de boxe!
UM ESPECTADOR (Da platéia.) — Viva usted e viva su amante! (ANDRADE, 1990, p.97).

Também as personagens de A morta revelam consciência de pertencerem ao universo das


convenções teatrais. Ao caracterizar o espaço em que se encontram, A Outra afirma: “Praticamente
este edifício só tem forros fechados. Habitamos uma cidade sem luz direta – o teatro” (ANDRADE, 1995,
p.36). Sabendo-se em pleno palco, o Hierofante prossegue no desnudamento da artificialidade da cena
questionando: “Onde estamos, em que capítulo?” (ANDRADE, 1995, p.37); partícipes de uma fábula
que deve prosseguir por caminhos previamente demarcados, as personagens se questionam sobre
o que lhes é reservado nas próximas cenas. Mais ainda: o Poeta deixa claro o princípio norteador da
teatralidade ao asseverar: “Arte é outra realidade...” (ANDRADE, 1995, p.38). Seu discurso é um germe
de teoria teatral que explicita a impossibilidade de se compreender a arte como mimese absoluta do
mundo. O espaço do teatro é privilegiado para (re)criação de mundos, tantos quantos a imaginação do
dramaturgo, do leitor, do encenador e do espectador permitirem.
O metateatro é um dos recursos encontrados pela dramaturgia moderna para reteatralizar o
palco no século XX. Muitos signos teatrais – cenário, personagens, palavra, gestos, som – são trabalhados
de modo a não permitir que o espectador mergulhe na ilusão, lembrando-o constantemente de estar
no teatro e que tudo que se desenrola no palco é previamente estabelecido, calculado e programado.

Metateatro e Teatralidade 237


Assim, a dramaturgia moderna caminha para uma consciência aguda de seus anseios e limites,
questionando formas dramáticas e técnicas de representação.
O texto dramático assume sua vocação teatral e se revela como espaço de inscrição virtual
do espetáculo, reforçando a dupla natureza do fenômeno teatral. Nesse contexto, o metateatro pode
ser compreendido como matriz de teatralidade por devolver a arte teatral ao terreno das convenções
dramáticas, por fazer dessas convenções objeto de reflexão do próprio teatro, tal como Schmeling
evidencia ao apontar seus princípios teóricos essenciais:

O teatro no teatro constitui uma espécie de história literária no interior da obra, pois,
como toda forma reflexiva, ele comporta uma crítica ou um julgamento sobre um
passado literário em geral e sobre as condições de produção e recepção de um gênero
em particular. É nesse aspecto que o metateatro pode ter uma função hermenêutica
imanente que consiste em assinalar o que pertence a uma tradição ultrapassada e
tornar o receptor sensível a uma evolução. Ele constitui, portanto, uma literatura de
confrontação. (SCHMELING, 1982, p. 8-9; tradução nossa) .

A dramaturgia de Oswald de Andrade, sintonizada com as tendências mais modernas do


teatro ocidental, é um fecundo terreno a partir do qual se imprime um caráter mais moderno ao teatro
nacional. Por isso insistimos em destacar as transformações operadas pelo fundador do movimento
antropofágico à linguagem teatral que, ao adquirir maior consciência crítica, amplia suas possibilidades
de invenção e renovação.

Metateatro e Teatralidade

238 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS R E F E R Ê N C I A S

ANDRADE, Oswald de. A morta. 2.ed. São Paulo: 1995. (Obras completas de Oswald
de Andrade).

ANDRADE, Oswald de. O homem e o cavalo. São Paulo: Globo; Secretaria de Estado
da Cultura, 1990.

ANDRADE, Oswald de. O rei da vela. São Paulo: Globo, 2003.

DUARTE, Eduardo de Assis. A antropofagia encontra o marxismo: notas a propósito de


O rei da vela, de Oswald de Andrade. In: Aletria – Revista de estudos de literatura. n.
7. Belo Horizonte: UFMG, 2000, p.50-57.

FACHIN, Lídia. Questões de ilusão teatral. In: Aletria – Revista de estudos de literatura.
n. 7. Belo Horizonte: UFMG, 2000, p.267-278.

KOWZAN, Tadeusz. O signo no teatro. In: INGARDEN, Roman et al. O signo teatral: a
semiologia aplicada à arte dramática. Organização e tradução e Luiz Arthur Nunes e
outros. Porto Alegre: Globo, 1977, p.57-83.

MOSTAÇO, Edelcio. Considerações sobre o conceito de teatralidade. Disponível em


<http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa/volume2/numero2/cenicas/Edelcio.
pdf>. Acesso em: 18 nov. 2010.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução dirigida por Jacob Guinsburg e Maria
Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999.

RODRIGUES, Nelson. Vestido de noiva. In: Dicionário de teatro. Teatro completo. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1993. p. 345-394.

ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às grandes teorias do teatro. Tradução André


Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.

SCHMELING, Manfred. Métathéâtre et intertexte: aspects du théâtre dans le théâtre.


Paris: Lettres Modernes, 1982. (Colléction Archives des Lettres Modernes, 2004).

UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Tradução José Simões (coord.). São Paulo:
Perspectiva, 2005.
Metateatro e Teatralidade 239
Metateatro e Teatralidade

240 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA

PARTE V
CAPÍTULO 19

O Barroco na mira das vanguardas latino-americanas


Marta Dantas45

Quem não reconhece o Brasil na fantasia do


Barroco? Ou quem não reconhece o
Barroco na fantasia do Brasil?
Nicolau Sevcenko

No século XIX, o barroco era visto pela historiografia crítica da arte européia — cujos juízos eram
fundamentalmente influenciados pela sensibilidade neoclássica — com preconceito e desinteresse.
O Brasil, por sua vez, “acompanhava a tendência estabilizadora e amaciadora do gosto acadêmico,
cambiando a sua recepção artística aos tiques neoclássicos e românticos de um ecletismo diluidor
do fácil e do digestivo” (ÁVILA, 1997, p.10). Os estudos realizados no país tinham, inicialmente, caráter
factual e ufanista, e só a partir de 1937, com a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan)46, começaram a incorporar metodologias mais rigorosas. Affonso Ávila, um dos maiores
pesquisadores brasileiros do barroco, explica que com o Iphan houve um esforço de revisão conceitual,
liderado por Rodrigo de Mello Franco de Andrade; no entanto, essa revisão abordou o barroco apenas
enquanto manifestação arquitetônica e plasticista, desconsiderando-o como “um fato de cultura
que fora e continua sendo em suas ressonâncias bem mais amplo, bem mais globalizante, bem mais
interdisciplinar e universalizante, conformador e fundante mesmo de uma estrutura de mentalidade”47
(ÁVILA, 1997, p.10).

45O Professora Doutora do Departamento de Arte Visual e do Programa de Pós-Gradução em Letras da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
E-mail: [email protected]
46
O Iphan foi criado em 1937, em pleno Estado Novo, com o objetivo de mapear o patrimônio cultural brasileiro,conservá-lo, restaurá-lo e, ainda,
promover estudos da herança barroco-rococó e difundi-los através de periódicos e outras publicações.
47Embora Ávila não esclareça o que ele compreende por “estrutura de mentalidade”, neste texto “mentalidade” serefere a atitudes e representações

coletivas resistentes a mudanças e que se manifestam nas camadas maisprofundas de uma cultura.

O Barroco na mira das vanguardas latino-americanas 241


Mas importantes estudos foram realizados, como o de Lúcio Costa sobre a tipologia dos
retábulos e pinturas coloniais — publicado no artigo “A arquitetura dos jesuítas no Brasil” (1941) —, e
serviram como ponto de partida para pesquisadores48 aprofundarem a análise da tipologia dos retábulos
mineiros. Em 1956, Germain Bazin publicou Arquitetura religiosa barroca no Brasil, um inventário
do patrimônio arquitetônico barroco. Apesar de o barroco ainda ser visto exclusivamente como
manifestação plasticista e, em larga medida, os estudos caminharem na perspectiva do connoisseur49 ,
Ávila (1997, p.10) assinala que houve “interesse pelo desenclausuramento setorial da questão”, e prova
disso são “os insights de Sérgio Buarque de Holanda sobre a poesia de Claudio Manoel da Costa”50 e
“os estudos convertidos em tese de Afrânio Coutinho propugnando a conceituação de barroca para a
literatura colonial e preambular brasileira”. Todavia, continua o autor, Coutinho incorreu no mesmo erro
que a corrente plasticista, o de “enquistar-se na particularização do enfoque literário”, e foi Otto Maria
Carpeaux quem, pioneiramente, anunciou, em ensaios fortuitos publicados em Origens e fins, em 1943,
a idéia de um barroco ao mesmo tempo universal e americano, “propensor de espírito e amplificador de
história” (ÁVILA, 1997, p. 10).
Haroldo de Campos, Benedito Nunes e o próprio Affonso Ávila, entre outros, que entendiam
que o barroco era conformador e fundante da nossa estrutura de mentalidade, sentiram a necessidade
de revisá-lo como fenômeno global de cultura e começaram, desde as décadas de 1950 e 1960, a
pesquisá-lo. Com o intuito de disseminar a pesquisa e fomentar a discussão em torno da redefinição
crítica do barroco, Ávila criou, em 1969, a revista Barroco.
Com abundância de recursos visuais e textos de autores como Benedito Nunes, Hélio Gravatá,
Aracy Amaral, Germain Bazin, Sylvio de Vasconcellos e Mário Barata, em sua trajetória a revista sempre
abordou o barroco como fenômeno global, não somente visual, e editou desde estudos de perspectiva
formal até incursões mais interdisciplinares:

Do ponto de vista cronológico a revista contemplou desde a tratadística maneirista até


a convivência do Rococó com o Neoclassicismo (1850), destacando o barroco com uma
visão de mundo situada historicamente, com múltiplas realizações que manifestam os
modos de pensar, sentir e representar da época Moderna. (CAMPOS, 2003, p.3)

Além disso, realizou um balanço crítico das artes e da literatura brasileiras dos seiscentos/
setecentos e em sintonia com a revisão crítica do barroco em território latinoamericano, pois havia

[...] em outros países da América Latina a mesma e concomitante preocupação com o


papel primordial do barroco enquanto fator de aproximação, integração e casamento
sígnico entre as aportações matriciais do chamado colonizador e uma predisposição
Metateatro e Teatralidade

sensível do universo novo e tropical, interagentes assim na moldagem de um ser cultural


próprio e iberoamericano. (ÁVILA, 1994, p.19)

Esse quadro favoreceu a iniciativa da revista, que logo se tornou veículo de disseminação das
pesquisas sobre o barroco no cenário mundial. Durantes os 25 anos de sua publicação, ela apresentou
sumário rico e diversificado, e não deixou de acolher estudos mais pormenorizados do universo barroco

48
Myriam Ribeiro de Oliveira, por exemplo.
49
Em linhas gerais, o trabalho do connoisseur parte da observação empírica da obra, confronta as fontes arquivísticas, estabelece a datação e a
autoria, a escola a que pertence o estilo (individual ou de época) e a analisa técnica e iconograficamente.
50
Neste texto, os grifos das citações fazem parte, todos, do texto original.

242 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


sem perder de vista seus objetivos. Os cubanos José Lezama Lima, Alejo Carpentier e Severo Sarduy, e o
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS mexicano Octavio Paz, entre outros,

[...] ascendiam em seus países interesse investigador semelhante, a par do surgimento


simultâneo neles de uma escrita literária nova que retomava no entanto, como pêndulo
e estímulo, as tendências barroquistas, proporcionando, principalmente na ficção, o
boom impactante de uma linguagem neobarroca, conquanto vigorosa e de função
modernizante. (ÁVILA, 1997, p.11)

A segunda metade do século XX iniciou-se, na América Latina, com o barroco na mira das suas
vanguardas.

BARROCO LATINO-AMERICANO: UMA “MENTIRA POÉTICA”,


UMA DEVORAÇÃO ANTROPOFÁGICA

Lezama Lima (1988) buscou pensar a identidade da América Latina numa perspectiva diferente
daquela que busca o “ser”, a “origem” ou a “essência” do homem americano e que concebe a história
como conseqüência de uma relação de causa-efeito. O alvo de sua crítica é o historicismo hegeliano, que
entende a história como expressão do “espírito” (razão ou logos), num processo de autodesenvolvimento.
Em seu lugar, Lezama Lima propõe uma história capaz de abranger a multiformidade do real, uma
história guiada pelo “logos poético”.
Somente o conhecimento poético seria capaz de apreender a “estéril” e “inanimada” planície
que é o mundo (dos fatos e dos objetos), pois “todo conocimiento verdadero culmina en el delirio”
(LEZAMA LIMA apud LEZAMA LIMA, 2006, p.56). Nessa perspectiva, todo discurso histórico revelaria
a impossibilidade de reconstruir a verdade dos fatos e, portanto, a história seria uma ficção, uma
exposição poética, um produto da imaginação do historiador, uma “mentira poética”. Tomando a história
como discurso, Lezama Lima utiliza o contraponto analógico: “Em vez de relacionar os fatos culturais
americanos pela relação de causa-efeito, denunciando uma progressão evolutiva, o seu contraponto
se move, erraticamente, para diante e para trás no tempo, em busca de analogias que revelem o devir”
(CHIAMPI, 1988, p.25).
Nesse procedimento comparatista, os “nossos” textos literários latino-americanos são
comparados com outros, de culturas distantes no tempo e no espaço; são partículas, fragmentos
extraídos de uma totalidade e escolhidos por analogia com fragmentos de uma outra totalidade,
compondo uma espécie de “constelação supra-histórica, em que os textos dialogantes exibem o seu
devir na mutação dessas partículas” (CHIAMPI, 1988, p.25). Nesse método, não existe produção literária
ou artística que seja superior ou inferior, melhor ou pior; tampouco ele permite estabelecer identidade
entre as formas (literárias, artísticas), pois a relação entre elas só pode revelar similitudes ao lado de
diferenças. Não havendo a possibilidade de identificação nem de repetição na criação literária, Lezama
Lima pretendia afirmar a singularidade da expressão americana e o “nosso” barroco latino-americano
como seu autêntico início, como uma não-origem, uma forma que “re-nasce” da síntese entre
hispânicos, índios e negros, ou, no caso brasileiro, entre portugueses, índios e negros. Ele apresenta o
latino-americano “como uma espécie de Caliban, irreverente, corrosivo, rebelde e devorador (e nisto,

Metateatro e Teatralidade 243


mais próximo ao antropófago em quem Oswald de Andrade metaforizou o modo de ser brasileiro)”
(CHIAMPI, 1988, p.32).
A crítica de Campos (1981) à historiografia literária do século XIX — de concepção orgânica e
evolucionista e que, portanto, toma o nascimento de uma literatura nacional como ontológico — não
só se assemelha àquela de Lezama Lima como tem, também, objetivo muito semelhante: explicar a
especificidade da cultura brasileira a partir da antropofagia oswaldiana, que representa

[...] o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a


partir da perspectiva submissa e reconciliada do ‘bom selvagem’ (idealizado sob o
modelo das virtudes europeias no Romantismo brasileiro de tipo nativista, em Gonçalves
Dias e José de Alencar, por exemplo), mas segundo o ponto de vista desabusado do
‘mau selvagem’, devorador de brancos, antropófago. Ela não envolve uma submissão
(uma catequese), mas uma transculturação: melhor ainda, uma ‘transvalorização’; uma
visão crítica da História como função negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto
de apropriação como de expropriação, desierarquização, desconstrução. Todo passado
que nos é ‘outro’ merece ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado. (CAMPOS,
1981, p.11-12)

À historiografia que pensa o nacional dentro de uma história retilínea, teleológica e “logofânica”,
Campos contrapõe o nacionalismo como movimento dialógico da diferença: “o des-carácter, ao
invés do carácter; a ruptura, em lugar do traçado linear; a historiografia como gráfico sísmico da
fragmentação eversiva, antes do que como homologação tautológica do homogéneo”. Enquanto a
historiografia literária do século XIX toma o nascimento da literatura nacional como o ápice de um
movimento natural, gradual e harmonioso e elimina o diferente, o marginal, o singular, a perspectiva do
nacionalismo como movimento dialógico da diferença coloca, no lugar da tradição, uma antitradição, “a
operar contravolução, como contra-corrente oposta ao cânone prestigiado e glorioso” (CAMPOS, 1981,
p.13); ou uma tradição constituída por aquilo que é relegado, deixado à margem, subjugado, como
propõe Adorno (apud CAMPOS, 1981, p.13): “aquilo que é colectado sob o nome de antiqualhas; é aí
que busca refúgio o que há de vivo na tradição, não no conjunto daquelas obras que supostamente
desafiam o tempo”.
Segundo Campos (1981), a historiografia literária brasileira contemporânea não difere dos
dois principais modelos de leitura da tradição: o disfórico e o eufórico. Em Formação da literatura
brasileira (1959), Antônio Candido desconsidera o barroco com o argumento sociológico da ausência
de produção impressa e de público; e toma o arcadismo pré-romântico como o momento formativo
inaugural da literatura brasileira. Por seu turno, Afrânio Coutinho, em Introdução à literatura no Brasil
(1959), reconstrói, a partir de uma visão evolutiva, a história da tradição literária brasileira tendo o
Metateatro e Teatralidade

barroco como ponto de partida. Apesar das diferenças, esses dois autores se empenharam “no mesmo
esforço parousíaco (ainda que com diverso, e até mesmo antagônico, timbre ideológico): a constituição
do espírito (ou consciência) nacional” (CAMPOS, 1981, p.14). Na perspectiva de um e de outro, a obra
de Machado de Assis representa a encarnação desse espírito, ou seja, há, em ambos, “a tentativa de
‘normalização’ da interferência perturbadora” (CAMPOS, 1981, p.14) da obra machadiana. A crítica de
Campos (1989, p. 61) aos dois autores é pautada na argumentação de Jauss e Starobinski:

[...] é preciso que a interpretação crítica não anule a ‘função diferencial’ da obra, sua
‘função transgressora’. A crítica não deve, portanto, excluir a exceção e assimilar o

244 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


dessemelhante em favor da constituição de um cânon imutável de obras, tornando
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS aceitável e convertido em patrimônio comum: deve, antes, ‘manter a diferença das obras
enquanto diferença’ e, assim, ‘pôr em relevo a descontinuidade da literatura em relação
à história da sociedade’.

Com a perspectiva do nacionalismo como movimento dialógico da diferença, Campos (1989,


p.64) situa o início da literatura brasileira no barroco:

Nossa literatura, articulando-se com o Barroco, não teve infância (in-fans, o que não fala).
Não teve origem ‘simples’. Nunca foi in-forme. Já ‘nasceu’ adulta, formada, no plano dos
valores estéticos, falando o código mais elaborado da época. Nele, no movimento de
seus ‘signos em rotação’, inscreveu-se desde logo, singularizando-se como ‘diferença’. […]
Nossa ‘origem’ literária, […] não foi pontual, nem ‘simples’ (numa acepção organicista,
genético-embrionária). Foi ‘vertiginosa’, para falar agora como Walter Benjamin […],
envolve a noção de ‘salto’, de ‘transformação’.

Nosso nascer, na literatura, seria uma espécie de “partenogénese sem o ovo ontológico”
(CAMPOS, 1981, p.14). O barroco brasileiro era um duplo dizer do outro como diferença, era “dizer
um código de alteridades e dizê-lo em condição alterada” (CAMPOS, 1981, p.15). E, segundo Augusto
de Campos (apud CAMPOS, 1981, p.16), o “primeiro antropófago experimental da nossa poesia” foi
Gregório de Matos. Em Boca do inferno, Matos se apropriou do mecanismo do código áulico do barroco,
do estilo engenhoso do elogio e da louvação cortês para fazer uma crítica. Seu lado “antropófago
experimental” e, portanto, transculturador, se revela sobretudo na maneira como combinou dois
sonetos de Góngora, “Mientras por competir con tu cabello” e “Ilustre y hermosísima María”, num
terceiro, “Discreta e formosíssima Maria”, que descortinava e explicava os segredos do soneto barroco
e que, “sendo duas vezes Góngora, era ainda de Garcilaso de la Vega, de Camões e, mais remotamente,
de Ausónio” (CAMPOS, 1981, p.16). Enfim, um texto de textos. Experiências como essa levam Campos
(1981, p.17) a afirmar que o barroco brasileiro já se nutria de uma “razão antropofágica”, pois trabalhava
em prol de desconstruir o logocentrismo que herdamos dos europeus, e que

[...] É uma antitradição que passa pelos vãos da historiografia tradicional, que filtra
por suas brechas, que envieza por suas fissuras. Não se trata de uma antitradição
por derivação directa, que isto seria substituir uma linearidade por outra, mas do
reconhecimento de certos desenhos ou percursos marginais, ao longo do roteiro
preferencial da historiografia normativa.

O autor propõe uma historiografia não-linear, não-conclusa, que leve em conta “os ‘câmbios
de horizonte’ de recepção e a maquinação ‘plagiotrópica’ dos percursos oblíquos e das derivações
descontínuas; a pluralidade e a diversidade dos ‘tempi’; as constelações transtemporais” (CAMPOS,
1989, p.66).

Na perspectiva de Lezama Lima e na de Haroldo de Campos, a expressão americana e a


brasileira tiveram no barroco a sua pedra de fundação.

Metateatro e Teatralidade 245


UM BARROCO DIONISÍACO

No mundo moderno, o barroco foi a primeira manifestação da arte na Europa, e sua


universalidade atingiu as zonas tropicais e equatoriais da América. Pela primeira vez, o Velho Mundo
se viu diante de uma realidade extraordinariamente rica, tal como as representações impregnadas
no imaginário mítico dos conquistadores. As crônicas dos navegadores, fossem eles missionários ou
comerciantes, confirmavam a veracidade do potencial do Novo Mundo, cuja natureza, exuberante e
excessiva, os encantava ou aterrorizava “pela suposta ausência de leis e normas morais, pelo paganismo
escandaloso e a ignomínia canibal” (SEVCENKO, 2000, p.29). Diante da nova realidade, a expressão
artística adaptou-se a uma grande variedade de articulações e garantiu uma produção original, seja nas
formações sociais resultantes de transplantações e misturas heterogêneas, seja naquelas onde existiam
substrato e tradição de civilizações anteriores.
Muitos estudiosos europeus abordaram o barroco e sua relação com o processo histórico da
descoberta e da conquista da América Latina, mas, adverte Averini (1997, p.24), eles “geralmente não
souberam tirar as devidas conclusões”. De acordo com esse autor, confrontar os textos produzidos por
aventureiros e navegadores com as criações de arquitetos como Borromini e Guarini, por exemplo,
permitiriam “obter as matrizes das quais nasceram muitas invenções exóticas” (AVERINI, 1997, p. 24). A
conquista e a colonização do Novo Mundo, como assinala Lezama Lima (1988, p. 186), ofereceram uma
saída para a inércia da arte européia:

Enquanto o barroco europeu convertia-se num inerte jogo de formas, entre nós o
senhor barroco domina a sua paisagem, e oferece outra solução quando a cenografia
ocidental tendia a revestir-se de escaiola. […] E quando a linguagem decai, numa inerte
transmissão de signos convencionais, oferecemos a dionisíaca guitarra de Aniceto o Galo
e o festejo zenital na rica pinta idiomática de José Martí. E quando, finalmente, diante
do glauco frio das junturas minervinas, ou da cólera do velho Pã ancorada no instante
do seu frenesi, oferecemos, em nossas selvas, o turbilhão do espírito, que novamente
encrespa as águas e deixa-se distribuir apaziguadoramente pelo espaço gnóstico, por
uma natureza que interpreta e reconhece, que prefigura e sente saudades.

Segundo Averini (1997), a Igreja Católica desempenhou papel fundamental na formação da


singularidade do barroco tropical; o autor enfatiza que

[...] não se deve ficar admirado de constatar como os comitentes eclesiásticos souberam
imediatamente aderir à nova realidade e estimularam os artistas a criar os termos
adequados a exprimi-la. [...] O barroco é precisamente, na expressão de sua arte religiosa,
o resultado duma conciliação entre o mundo da tradição cristã-católica-européia e as
Metateatro e Teatralidade

formas de percepção e sensibilidade das vastíssimas regiões que se incorporaram ou


entraram em contato com ele: conciliação cientemente preparada em Roma […]. E na
verdade o catolicismo, debaixo do signo do barroco e na filiação inexaurível do rococó,
manifestará uma quase inexaurível vitalidade artística, quer no Império dos Habsburgo,
quer na longínqua Goa, na Cidade do México, Cuzco, Bogotá, Ouro Preto, quer em Torino,
Nápoles e Lecce; revelará, contrariamente ao que aconteceu no mundo protestante […],
uma capacidade extraordinária de assimilação e reflexão, de penetração psicológica e
de receptabilidade positiva. (AVERINI, 1997, p.25)

Estimulada pela renovação cultural e científica do Renascimento, e também pela situação


espiritual promovida pela Igreja Católica, a mentalidade do europeu estava “pronta” para romper

246 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


com o círculo fechado e vertical da cultura clássica, alargar os horizontes do conhecimento e aceitar,
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS progressivamente, temas, formas e emoções diversos. É dessa dilatação que, segundo Averini (1997), se
originará o barroco tropical, uma linguagem comum e de grande força centrípeta. Já na interpretação
das vanguardas latino-americanas, o encontro dessa mentalidade dilatada com um “espaço gnóstico”,
espaço “aberto, onde a inserção com o espírito invasor se verifica através da imediata compreensão da
mirada”51 (LEZAMA LIMA, 1988, p.183), foi decisivo para o aparecimento da singularidade da expressão
americana.
Apesar da violência gerada pelo processo colonizador na América Latina, o encontro entre
as várias culturas nele envolvidas resultou em uma “conciliação adequadora entre a linguagem, o
pensamento que vêm trabalhados e a novidade de um outro cenário, de outra maneira de ver o mundo”
(ÁVILA, 2004, p.47); um encontro que fecundou esse “espaço gnóstico” e gerou a matriz do que viria a ser
uma civilização com uma expressão singular. Essa singularidade

[...] deve-se ao seu legítimo mundo ancestral, é um primitivo que conhece, que herda
pecados e maldições, que se insere nas formas de um conhecimento que agoniza,
tendo que justificar-se, paradoxalmente, com um espírito que começa. Por que o
espírito ocidental não pode estender-se pela Ásia e pela África, e sim em sua totalidade
na América? Porque esse espaço gnóstico esperava uma maneira de fecundação
vegetativa, onde encontramos sua delicadeza aliada à extensão, esperava que a graça
lhe trouxesse uma temperatura adequada, para a recepção dos corpúsculos geratrizes.
(LEZAMA LIMA, 1988, p.183)

Essa fecundação não ocorreu sem embate,

[...] mas um embate sem vencedor — você não sabe se o barroco, a partir daí, é a
linguagem do conquistador ou se é a linguagem do conquistado. Não há um barroco
superiormente paradigmal do dominador, do conquistador, embora seja irrefutável
a existência de um barroco libertário, de afirmação do pretenso conquistado. (ÁVILA,
2004, p.47)

Lezama Lima (1988) é de opinião mais radical: define o barroco americano como “a arte da
contraconquista”, pois vai ao encontro da proposta de José Martí de uma “cultura totalmente inclusiva”,
na qual a diversidade cultural não é um problema, mas a própria fonte de onde jorra a criatividade.
Diante desse “espaço gnóstico”, muitos dos que aqui chegaram se sentiam exasperados; outros,
acreditavam estar diante das visões proféticas de Gioachino dei Fiori, místico ligado à abadia de Cluny,
na França, que pregava a chegada de um novo tempo para a cristandade, a Era do Espírito Santo52,
quando a injustiça e a desigualdade desapareceriam, os bens seriam divididos e os presos, libertos;
e os inspirados pelo Espírito Santo viveriam em fraternidade e harmonia (SEVCENKO, 2000, p.17). Em
ambas as situações, a natureza os convidava a se perder em delírios. Enquanto na cultura dos brancos
o sagrado irradiava dos céus, para índios e africanos ele emanava da natureza exuberante, que, embora
insondável, permitia que se comunicassem diretamente com suas divindades. Para os negros,

51“Espaço gnóstico” é, segundo Chiampi (1988, p.23), “a natureza espiritualizada, plena de dons em si, que aguarda para expressar-se a mirada do
homem para iniciar o imediato diálogo (de espíritos, o humano e o natural) que impulsiona a cultura”. Nas palavras de Lezama Lima (1971, p. 62), “el
espacio [...] que no es el espacio mirado, sino que busca los ojos del hombre como justificación”.
52De acordo com suas revelações, “depois da passagem da Era do Pai e da Era do filho, correspondentes ao mundo antigo e medieval, a cristandade

estaria preparada” para entrar nesta nova era (SEVCENKO, 2000, p.17).

Metateatro e Teatralidade 247


[...] a substância divina irradia a partir da terra e não dos céus, ela é direta e sensível e não
transcendente e etérea. Tanto os deuses quanto seus agentes e os espíritos antepassados
residem na mata, […] na ‘Selva Mãe’. […] Sua pulsação viva é invocada pelos tambores
e pelo canto inspirado, catalisada pelas danças eufóricas e liberada pelo transe místico.
(SEVCENKO, 2000, p.16-17)

O fato é que a natureza induzia a todos, brancos, índios e negros, a se entregar a Dioniso e a
fecundar, na nova terra, uma nova civilização. É o triunfo do sincretismo religioso, do hibridismo indo-
afro-ibérico e, com ele, assevera Lezama Lima (1988), o conquistador foi conquistado. Nasceu, nos
povos coloniais americanos, um sentimento pela natureza em perfeita conformidade com o sentimento
barroco.
Interessante notar que os excessos do barroco, na sua relação com as formas e os movimentos
da natureza, reprovados pela crítica européia, não se verificam na arte lusitana nem na espanhola.
Nos trópicos, a exuberância da decoração barroca “não excede o vetor impetuoso e desordenado
da vegetação tropical, pelo contrário adapta-se perfeitamente” (AVERINI, 1997, p.27). Diferente do
que julga a crítica simpática ao neoclassicismo, a arte barroca não é mais excessiva do que a própria
natureza tropical; nos seus esquemas compositivos encontramos um critério de seleção e um registro
de ordem; ela está em conformidade com os critérios normativos das estéticas contemporâneas, onde
a paisagem53 é destinada a obter do “mais” o “menos”, e não o contrário. A paisagem, explica Lezama
Lima (1988, p.170-171), “é uma das formas de domínio do homem, como um aqueduto romano, uma
sentença de Licurgo ou o triunfo apolíneo da flauta. Paisagem é sempre diálogo com o homem, redução
da natureza posta à altura do homem. […] A paisagem é a natureza amigada com o homem”.
A potência perturbadora de Dioniso exige a presença reguladora de Apolo. Por isso, as formas
da arte barroca provêm da natureza mas não pretendem superá-la, impõem-lhe certa disciplina mas
sem submetê-la a mimese, porque é beleza convulsiva. Na América Latina, “onde quer que surja
a possibilidade de paisagem, tem de existir a possibilidade de cultura. O mais frenético possesso
da mimese do europeu, se liquefaz se a paisagem que o acompanha tem seu espírito e o oferece, e
conversamos com ele mesmo que seja no sonho” (LEZAMA LIMA, 1988, p.171).
Hoje sabemos que é preciso rever os esquemas da historiografia artística tradicional, “que
tentou sempre explicar tudo permanecendo no âmbito dos acontecimentos europeus” (AVERINI, 1997,
p.26) e julgou, na maioria das vezes, as expressões artísticas coloniais como periféricas e marginais em
relação à grande arte européia:

O ímpeto vital do barroco colonial não é inferior ao da contemporânea arte européia;


Metateatro e Teatralidade

pode ser talvez, superior, por uma sua intrínseca espontaneidade e autenticidade de
sentimento. Os seus monumentos não são sempre cansativas repetições ou variações
gratuitas de modelos europeus, nem os seus produtos permanecem expressões
artesanais a um nível de suficiência medíocre; pelo contrário conseguem […] constituir-
se como obras-primas. (AVERINI, 1997, p.26)

Não há dúvida de que a aceitação da nova realidade exigiu muito mais do que a adaptação de
uma expressão artística transplantada. O barroco latino-americano, explica Averini (1997, p.26),

53Lezama Lima utiliza o termo “paisagem” para se opor a Hegel, que afirmava ser a natureza uma entidade inerte e a-histórica, e a América, um
mundo natural fora da história. O autor toma de empréstimo de Shelling o conceito de natureza como possuidora de espiritualidade, enquanto a
paisagem é cultura que nasce do encontro entre o espírito da natureza e o do homem (CHIAMPI, 1988, p.23).

248 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


[...] é a primeira forma de arte conatural e legítima na qual se exprimem a progressiva
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS ascensão daquelas populações e a aspiração […] a uma estruturação social orgânica
e civil, diferenciada da metropolitana: delas nascerá a consciência de nacionalidades
autônomas e distintas. Por esta razão, o barroco dos países latino-americanos, depois
da primeira fase de implantação, surge considerado como arte autóctone e originária.

Obras como a igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, de Aleijadinho, permitem,
àqueles que se abandonam na sua contemplação, compreender a afirmação de Lezama Lima (1988,
p. 183): “As formas congeladas do barroco europeu, e toda proliferação expressa um corpo danificado,
desaparecem na América nesse espaço gnóstico, que conhece por sua própria amplitude de paisagem,
por seus dons sobrantes”. O espetáculo de criatividade e inventividade das obras literárias e plásticas do
barroco latino-americano, e certos traços, muito singulares, inconfundíveis e indeléveis de nossa vida
social estão expressos nesta frase de Otto Maria Carpeaux (apud ÁVILA, 1980, p.107): “se, como estilo, o
barroco é um fenômeno europeu, como survival é muito mais um fenômeno americano”.
Em toda a América Latina, o barroco foi mais do que um estilo de época que exprime o espírito
da Contra-Reforma e/ou do Absolutismo; ele está entre as matrizes e linhas de tradição que presidem
o nosso desenvolvimento histórico-cultural; é uma de nossas raízes mais remotas, um fenômeno de
grande complexidade cuja investigação permite compreender melhor a nossa especificidade como
povo.

BARROCO MINEIRO: UM SONHO DE ABUNDÂNCIA E LUXÚRIA

Embora o barroco tenha aportado, primeiramente, no litoral brasileiro, juntamente com


os primeiros portugueses que aqui chegaram, foi na região montanhosa das minas de ouro que,
antropofagicamente, renasceu o barroco brasileiro.
Entre o final do século XVII e o início do XVIII, o velho sonho português de abundância e luxúria
havia se realizado: “A miragem de Fernão Dias e seus parceiros na empresa paulista das bandeiras via
transformar-se, como por encanto, o verde inalcançado das esmeraldas no amarelo do ouro aluvial e
farto vislumbrado desde muito” (ÁVILA, 1994, p.24).
Os boatos da descoberta do Eldorado brasileiro se espalharam rapidamente pelo Brasil colônia
e por Portugal, e inúmeras frotas portuguesas atravessaram o Atlântico e despejaram todo tipo de
gente no porto de Parati. Cada um que chegava trazia a mentalidade barroca, caracterizada, entre
outras coisas, pela ânsia de riqueza e pela capacidade de transformar a nova realidade:

Populações quase inteiras de aldeiais portuguesas se aventuram à travessia do Atlântico,


para afluir à corrida do ouro, carregando consigo, como no próprio núcleo do barroco,
não apenas a ânsia temporal de riqueza, que o trabalho minerador poderia concretizar,
mas aquela ‘capacidad de ensueño’ que transmutaria naturalmente a realidade ainda
desconhecida, numa verdadeira antevisão edênica. (ÁVILA, 1994, p.45)

Aos portugueses se juntaram baianos e outros grupos nordestinos, judeus, cristãosnovos,


ciganos, espanhóis e escravos africanos. A fim de esconder tamanho tesouro, em 1711 o governo
português ordenou o recolhimento do livro de Antonil, Cultura e opulência no Brasil, porque continha

Metateatro e Teatralidade 249


informações sobre o caminho de acesso às minas — porém, já era tarde para impedir a chegada dos
forasteiros, e o caos social se instalou na região das minas.
O jogo de interesses e poder no território mineiro culminou na Guerra dos Emboabas,
conflito que durou quatro anos e trouxe a necessidade, para a Coroa portuguesa, de impor a ordem
política e administrativa ali. A essa altura, apesar da mobilidade natural da atividade mineradora, “já
se encontravam formados alguns assentamentos de razoável feição urbana, os chamados ‘arraiais’, de
população relativamente numerosa, surgidos da proximidade de explorações auríferas mais estáveis ou
em função estratégica do comércio e da comunicação” (ÁVILA, 1994, p.26).
No processo civilizatório da colônia, o desejo social de fixação da população é um aspecto
singular. Entre 1711 e 1714, a região das minas foi se configurando como organismo político-
administrativo de feições urbanas, e nasceram as primeiras vilas-municípios. São vários os fatores que
explicam a urbanização precoce dessa área, e que terminaram por elevar, em 1720, Villa Rica à condição
de capital da recém-criada capitania das Minas Geraes.
Nascia, no século XVIII, entre os montes, o centro de germinação, circulação e irradiação, no
Brasil colônia, de um estilo muito mais de civilização do que de arte: o barroco brasileiro.
O primeiro documento impresso de interesse literário a reportar-se às manifestações de um
estilo de vida barroco na sociedade mineradora do século XVIII é o Triunfo Eucharistico, escrito por
Simão Ferreira Machado e publicado em Lisboa em 1734. Embora considerado cronista menor e escritor
de circunstância, essa obra é fonte documental imprescindível sobre as raízes culturais de Minas Gerais
e indicadora de mentalidade, além de expressar a sensibilidade de seu tempo com os recursos de uma
linguagem coetânea. Na sua descrição pormenorizada sobre o Triunfo Eucarístico, a maior festa barroca
do Brasil colonial, encontramos todos os elementos que compõem essa estética e que expressam a
maneira de sentir, agir e pensar da época. Nessa festa, a mágica aglutinadora do barroco se realiza
plenamente, pois a cultura transplantada para as Minas Geraes não deixou de valorizar o espetáculo
visual de deleite lúdico para os olhos. Aliás, todos os eventos do Brasil setecentista, sejam de ordem
religiosa ou profana, obedeciam ao mesmo imperativo visual.
O Triunfo Eucharistico, ao descrever as festividades que marcaram a inauguração, em 1733, da
matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Villa Rica, “e a solene transladação para esse templo da Eucaristia,
provisoriamente depositada na igreja de Nossa Senhora do Rosário” (ÁVILA, 1980, p.114), evidencia o
estado de euforia da sociedade mineradora, seu fervor religioso e seu sentimento de gratidão pelas
riquezas daquela terra:

A exuberante copia do ouro destas minas deu logo hum estrondoso brado, cujos
Metateatro e Teatralidade

eccos soáraõ nos mais distantes, e reconditos seyos de toda a America; alteraraõ a
muitos moradores do Brasil a cultura dos campos, fizeraõ outros vacilantes; a muitos
nos cabedaes inferiores, e outros opprimidos da necessidade fizeraõ sobir a este zenit
da riqueza; convidando a huns com esperança de melhoras, a outros co principio de
prosperidade […] huns fizeraõ da agricultura sustento, e interesse, outros agenciaraõ
no ouro dos seyos da terra juntamente o sustento e as riquezas: assim com suavidade,
e facilidade estas terras agrestes, e nem ainda de feras habitadas, ficarão dignas de
habitaçaõ; abundantes de alimentos para a humana necessidade, copiosas de ouro para
os desejos da cobiça. (MACHADO apud ÁVILA, 1994, p.63)

250 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


Nas descrições de Simão Ferreira Machado pulsa o mito edênico54, comum à crônica brasileira do
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS período colonial:

Excede as povoaçoens de toda a America este opulento Emisferio das Minas, onde
avulta, mais do que riquezas, o fausto dos Templos, e a preciosidade dos Altares […]
a nobilissima Villa Rica, mais que esfera de opulencia, he teatro da Religiaõ develhe
Portugal grandiosos auxilios, e quantiosos reditos; sem duvida os mayores a Coroa
Monarcha; […] mas sobre tudo deve Portugal ao Brasil, e todo o Mundo hum continuado,
e de presente novo exemplo de Cristandade. (MACHADO apud ÁVILA, 1994, p.65)

A festa religiosa é apresentada como cenário mais apropriado para o regozijo dos sentidos do
que do espírito. “O fato espiritual aparece sempre encarnado, e a carne apela sempre para o espiritual”
(SPITZER apud ÁVILA, 1994, p.47), pois o autor se detém muito mais nos aspectos cenográficos — trajes
e alegorias, efeitos visuais e sonoros, fusão entre o sagrado e o profano — do que nos religiosos:

Deu principio aos festivos dias hum bando por ministerio de vários mascaras; huns
aprasivel objecto da vista nas differenças do traje; […] outros na galantaria das figuras
assumpto do riso. […] nas ruas destinadas á procissaõ prevenido todo o obsequio de
festividade, e magnificencia: nas janellas correo por conta das sedas, e damascos, huma
varia e agradável perspectiva para a vista, […] viaõ-se em primorosos, e exquisitos lavores
entre ouro, e prata, tremolando as ideas do Oriente troféos á opulencia do Occidente.
[…]. Apparecia nas ruas a verde amenidade dos campos; em variedade de flores da
Primavera. Sentia-se nos ares, em fragancia de aromas […]. Depois desta se dilatava
outra vistosa dança, composta de musicos, em cujas figuras era o ornato todo tellas,
e preciosas sedas de ouro, e prata: pertenciaõ-lhe dous carros de madeira de singular
pintura; hum menor, que levava patente aos olhos huma serpente; outro mayor, de
artificio elevado em abobeda […]. Depois destes vinhaõ as figuras mais magestosas de
toda a Procissaõ; todas acavallo, vestidas á tragica. Era o seu adorno vagaroso empenho
da vista, continuada novidade dos olhos; agitada esfera da riqueza, movel apparato da
magnificencia. (MACHADO apud ÁVILA, 1994, p.66-70)

Não faltaram, nas noites dos dias festivos do Triunfo Eucarístico, como não faltariam em
qualquer festa barroca, os efeitos de luz e sombra por meio de exibições pirotécnicas e de luminárias
espalhadas pelas ruas. A cidade ficava envolvida numa atmosfera de fantasia noturna, de paisagem de
sonho, “uma imagem do mundo fugaz e contraditório que era a própria visão místico-existencial do
homem residuariamente seiscentista” (ÁVILA, 1994, p.206).
A descrição dessa festa propicia uma clara compreensão das categorias expressivas do
barroco: o lúdico, o sensorial, o visual, o persuasório. Nela, o primado visual preponderava, mesmo
sendo um espetáculo que abrangia todas as artes, inclusive a poesia, convertida “num exercício lúdico
compartilhado em seus ócios cultistas por religiosos seculares” (ÁVILA, 1980, p.124). Não é por acaso
que Simão Ferreira Machado ateve-se ao plano visível do espetáculo e que

[...] sua prosa trabalha primacialmente pela sensibilidade ótica […]: ‘aos olhos sempre
vario, e agradavel espectaculo’, ‘pareciaõ aos olhos luminarias do Ceo’; ‘varia e agradavel
perspectiva para a vista’; ‘nos olhos teatro á victoria dos esplendores do ouro, das luzes
dos diamantes’; ‘da vista, em vagarosa attençaõ, disvello, e delicia’ […]. (ÁVILA, 1980,
p.207; citando Simão Ferreira Machado)

54Sobre o mito edênico, ver Holanda (1959).

Metateatro e Teatralidade 251


A preocupação com o visual, seja na criação artística ou no estilo de vida, é um aspecto comum
a todas as manifestações do barroco mineiro do século XVIII, e revela a necessidade de suscitar, “a partir
do enlevo absoluto dos olhos, o embevecimento arrebatador e total dos sentidos” (ÁVILA, 1980, p.197).
A decoração interna das igrejas, o colorido do ritual religioso, a elegância das fachadas, a valorização e
o aproveitamento da topografia, a riqueza cromática e da bordadura caligráfica das indumentárias, as
iluminuras dos livros, a pompa dionisíaca das festividades tinham esse objetivo. Também na poesia de
Gregório de Matos há uma espécie de artesanato plástico do texto, “cujo processo estaria compreendido
na necessidade de primeiro sensibilizar os olhos, para depois comunicar à inteligência a mensagem
ou informação textual” (ÁVILA, 1980, p.226), pois a inexistência da imprensa não tolheu a criatividade
gráfica, ao contrário: a ausência de recursos mecânicos de reprodução dos textos desenvolveu uma arte
caligráfica de papel relevante. O primado visual não se restringe à literatura colonial mineira; o “exame
atento de determinados textos nos mostra como a sensibilidade ótica prepondera na concepção
de poetas e prosadores” (ÁVILA, 2006, p.104), inclusive nos representantes do arcadismo, “deixando
entrever-se em meio a recursos de feição neoclássica” (ÁVILA, 2006, p.104).
Através da expansão da arte barroca mineira, o primado do visual foi responsável pelo
desenvolvimento de uma consciência ótica generalizada e, de modo mais particular, entre a elite de
letrados e a comunidade de artistas (ÁVILA, 2006). A intensa atividade e qualidade no domínio da
criação plástica, por todo o território da capitania, se deve à “existência e circulação de uma generalizada
informação quer de ordem técnico-artesanal, quer de teor técnico-criativo” (ÁVILA, 2006, p.107). Embora
as corporações de ofício desempenhassem papel normativo por meio de juízes, escolhidos no âmbito
de cada especialidade, estes, muitas vezes, não possuíam autoridade para julgar a qualidade estética
das obras. Esse “problema” parece ter propiciado grande intercâmbio de informações entre artesãos,
artistas cultivados e letrados, como o poeta Cláudio Manoel da Costa. Seu poema, “Villa Rica”, de meados
de 1773, parece ter sido escrito “sob a sugestão de obras de alto nível criativo” (ÁVILA, 2006, p.110), pois
a maneira peculiar como descreve a destreza do artífice na talha da pedra-sabão nos permite imaginar
que ele conviveu de perto com o trabalho de artesão. No final do século XVIII, a notoriedade de artesãos
como Ataíde e Aleijadinho terminou gerando uma crise na antiga organização do trabalho artesanal,
anônimo e coletivo; esta crise, vinculada ao desenvolvimento da sensibilidade ótica e ao estímulo da
opulenta sociedade, de índole religiosa e de economia de extração do ouro aluvial, fez do barroco
mineiro o genuíno barroco brasileiro.
A história da capitania de Minas constitui um período singular da nossa cultura. A indústria da
mineração foi fator decisivo para a cristalização e a autonomia da cultura mineira, e o ativismo barroco
Metateatro e Teatralidade

imprimiu, na vida social, seus padrões ético-religiosos, seus gostos estéticos. Estes ultrapassaram a
contingência histórico-regional, se popularizaram e se potencializaram nas várias etnias que aqui
encontraram condições de expansão e afirmação, criando as condições necessárias para a sedimentação
de uma cultura autêntica.
A crise do ciclo do ouro e o conseqüente declínio da cultura urbana mineradora, somados
à tendência academizante que dominou o Brasil império, fizeram adormecer nossa percepção visual,
nossa sensibilidade plástica. Tivemos que aguardar o advento do modernismo e sua reflexão sobre o
nacional na nossa cultura para sair do entorpecimento sensorial no qual o processo histórico do século

252 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


XIX havia nos lançado: “Foi necessário que o modernismo, na sua programática revisão do fato cultural
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS brasileiro, viesse reestudar a arte setecentista montanhesa e relançar criticamente o Aleijadinho para
que fôssemos sacudidos, afinal, da indiferença diante do passado artístico” (ÁVILA, 1980, p.232). Todavia,
o barroco no Brasil, assim como nos demais países da América Latina, jamais deixou de estar presente
nas maneiras de sentir e agir do povo:

Não existe povo mais barroco, dialógico e cheio de contrapontos ou contradições


permanentes entre o bem e o mal, o belo e o feio, o agressivo e o pacífico, a profusão
e a carência, os grandes paradoxos que se confluem no barroco, do que o povo latino-
americano. […] O barroco é a gene da América Latina em permanente transmutação.
(ÁVILA, 2004, p.48)

Na cultura brasileira encontramos importante resíduo barroco, nossa permanente contradição:


riqueza e pobreza, êxtase e dor, fé e desespero, justiça e desigualdade, solidariedade e violência; e
também sobrevivem as categorias expressivas do barroco — o lúdico, o sensorial, o visual, o persuasório
—, sobretudo no nosso dionisíaco carnaval que, tal qual a festa do Triunfo Eucarístico, tal qual a arte
barroca, tem a importante função de articular nossas contradições e minimizar nossas forças destrutivas.

Metateatro e Teatralidade 253


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254 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS
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Metateatro e Teatralidade 255


Metateatro e Teatralidade

256 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS


INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA

CAPÍTULO 20

Para além das questões de tempo e espaço no cinema.


Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
JULIE FANK 55
JOSÉ CARLOS DA COSTA 56

O filme Dogville (2003), de Lars Von Trier, impressiona pelo escasso uso de artefatos em cena
como forma de priorizar o gesto e a emoção dos atores. Além disso, outros elementos estéticos auxiliam
na modificação da noção de espaço - o que aproxima muito o filme da formação de uma peça teatral
e subverte, por consequência, a percepção da temporalidade na obra. Sob a ótica do teatro e do
cinema, espaço e tempo se constroem diferentemente. É preciso perceber e identificar os elementos
próprios daquilo que se edita e daquilo que se dramatiza. Quais são as possibilidades de construção
quando se tem à disposição luz, palco, cena, dramaturgo, atores, sonoplastia, cortinas? E quais seriam
as possibilidades se, somados a isso, houvesse também câmeras de filmagem, edição, produção, trilha
sonora?
Percorrer as possíveis influências da literatura e do próprio cinema em Dogville, de Lars Von
Trier, possibilitará entender como essas relações subvertidas de tempo e espaço servem ao cineasta,
que trata esses dois conceitos como forma de desconstrução do caráter dos personagens, a fim de
provocar reflexões acerca da alma humana.
Num momento em que a imagem ocupa o centro de inúmeras discussões teóricas, é válido
elucidar como se inscrevem, no cinema, os diálogos artísticos e como, por meio da perspectiva do
cinema, uma nova forma de percepção da realidade se constitui. Se até o começo do século XX, o que
“molda” o olhar cotidiano da classe burguesa é a literatura, a partir da segunda metade do século, cabe
ao cinema dividir essa responsabilidade.

55
Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Membro do Grupo de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na
Literatura. Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória.

56
Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Doutorando em Literatura no Programa de Pós-Graduação da UFBA/UNIOESTE.
Docente do Curso de Letras Português/Inglês/Espanhol/Italiano da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, atuando principalmente nos seguin-
tes temas: literatura brasileira, cultura brasileira, discurso ficcional, crítica literária, literatura, memória e história, ensino de literatura e formação
docente. Membro do Grupo de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura. Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória.

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 257
É interessante pensar como a noção de intertextualidade, além de contribuir para o estudo
das influências, “introduz um novo modo de leitura que solapa a linearidade do texto”. (NITRINI, 2006,
p. 164). Permeando a malha do texto, é possível defrontar-se com outras referências, que possibilitarão

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
também variadas leituras do texto, remetendo-se a outros textos, autores e diálogos. Considerando-se
a infinidade de textos que constituem a sociedade e a história, será sempre um treino de percepção
abandonar o olhar ingênuo para concebê-lo como uma lente que observa e capta as significações que
extrapolam a obra literária. É nesse sentido que se constroem as significações em Dogville: para serem
desveladas pelo olhar.
Para o cineasta Andrei Tarkovski, o tempo constitui uma condição de existência do “Eu”.
Assemelha-se a uma espécie de meio de cultura que é destruído quando dele não mais se precisa,
quando se rompem os elos entre a personalidade individual e as condições de existência. O momento
da morte representa também a morte do tempo individual. Em termos gerais, o estudioso aproxima-
se da concepção de tempo de Santo Agostinho quando afirma que “O tempo é necessário para que o
homem, criatura mortal, seja capaz de se realizar como personalidade” (TARKOVSKI, 1998, p. 64), afinal a
nossa mortalidade é fruto do tempo.
Para Tarkovski (1998, p. 71-72): “A força do cinema, porém, reside no fato de ele se apropriar
do tempo, junto com aquela realidade material à qual está indissoluvelmente ligado, e que nos cerca
dia após dia e hora após hora”. E é isso que, para o cineasta russo, leva as pessoas ao cinema, o tempo
ainda não encontrado por elas, o tempo perdido. O cineasta entra, então, como figura principal. É esse a
definir o olhar do filme, a observação do que será colocado no rolo da película. A observação seria para
o autor o elemento básico que permeia o cinema, “afinal, a imagem cinematográfica é essencialmente
a observação de um fenômeno que se desenvolve no tempo”. (TARKOVSKI, 1998, p. 77).
O espaço, também como evidenciador das relações sociais, configura-se na literatura, no
cinema e no teatro como definidor da vida íntima, das vontades ou dos medos de cada personagem. De
maneira poética, mas assegurado o viés filosófico, Gastón Bachelard auxilia na compreensão do espaço
na obra trieriana, explicitando como a memória e o inconsciente materializam-se em cada espaço
constituído pelo homem. Bachelard (1989) poetiza as relações humanas e o modo como elas ocorrem
no espaço; utiliza-se de espaços e imagens recorrentes da literatura para ilustrar, explicitar ou apenas
discutir acerca dessas relações. A imagem da casa, sua relação com o universo, os cantos, a miniatura,
serão esses os espaços poetizados pelo autor que nortearão algumas das discussões deste texto.
O autor entende a casa como um espaço a ser lido, a ser imaginado, a ser pensado, não só a ser
descrito, “porque a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo.
É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda acepção do termo”. (BACHELARD, 1989, p. 24). Bachelard
(1989) constrói a dependência ou correlação desses dois espaços, teoricamente, contraditórios. Se a
casa é o refúgio, o universo representa o desaconchego, a fuga, o espaço sem direção.

Qualquer que seja o pólo da dialética em que o sonhador se situe, qualquer que seja a
casa ou o universo, a dialética dinamiza-se. A casa e o universo não são simplesmente
dois espaços justapostos. No reino da imaginação, ambos se atiram reciprocamente em
devaneios opostos. (BACHELARD, 1989, p. 59).

258 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


Das idéias desses espaços de representação e criação das imagens, Bachelard textualiza a
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA inibição ou possibilidade de ação num espaço ou outro, o que configura as relações do homem nesses
espaços. Configuração necessária para se pensar a questão da representação do espaço íntimo, a casa,
e fundamental para a análise de um filme que modifica a percepção desses espaços.
A percepção do espectador segue sendo moldada, ao longo de Dogville, calcada nos
pressupostos de seu movimento propulsor. Em 1995, os cineastas Lars Von Trier e Thomas Vittenberg
lançam o que chamam de Manifesto Dogmático, mais conhecido por Dogma 95, no qual estabelecem
algumas regras para a produção de filmes mais puristas, causando polêmica no meio cinematográfico.
Influenciado por vários movimentos importantes do cinema, o Manifesto deixa clara a sua intenção de
provocação à indústria hollywoodiana, dominadora do mercado cinematográfico, mas nem por isso se
torna menos ambicioso:

Em 1960, tivemos o bastante. O cinema havia sido “cosmetizado” à exaustão, dizia-se.


Dali em diante, todavia, a utilização dos “cosméticos” aumentou de modo inaudito.
O objetivo supremo dos cineastas decadentes é enganar o público. É disto que nos
orgulhamos? É a este resultado que nos conduziram cem anos de cinema? Das ilusões
para comunicar as emoções? [...] Mais do que nunca, são os filmes superficiais de ação
superficial que são levados às estrelas. O resultado é estéril. Uma ilusão de pathos, uma
ilusão de amor. Para o Dogma 95, o filme não é ilusão! (VON TRIER, 2009, p.1) [grifo nosso]

De acordo com o manifesto Dogma 95, a preocupação com a autoria do filme revela mais
uma preocupação com o ego do cineasta do que com o próprio cinema, característica de um cinema
burguês: “O cinema antiburguês tornou-se burguês, pois se baseava em teorias de uma concepção
burguesa de arte. O conceito de autor, nascido do romantismo burguês, era, portanto [...] falso”. (VON
TRIER, 2009, p. 1). Por meio de uma série de metáforas e uma ironia fina, o Manifesto preconiza uma
nova forma de trabalho com a imagem, e da maneira mais natural possível. A prioridade é a emoção e
não a técnica. No texto, vê-se a utilização da palavra pathos, no sentido de que a ilusão produzida por
Hollywood produziria o que essa palavra grega expressa que é o excesso, a paixão. A paixão, contrária
ao amor, seria responsável pelo “cegamento” do espectador, ou seja, a ilusão provocada pelos filmes
comerciais dá margem a uma passividade e um assujeitamento diante do objeto de desejo. A imagem,
portanto, em contraposição a esse tipo de relação construída entre espectador e obra de arte, deve ser
tão “despida”, quanto devem ser enredo e personagens. Qualquer tipo de alienação ou artificialidade é
proibida.
Apesar de renunciarem a considerações estéticas, no manifesto Dogma 95, Lars Von Trier e
Thomas Vittenberg, também tentam propor uma mudança de perspectiva, fundada na reeducação do
olhar humano, viciado na perspectiva do american way of life, profundamente difundido nos filmes dos
EUA. O sugestivo nome “Voto de Castidade” sustenta uma ideologia calcada na abdicação da produção
cinematográfica artística, para uma produção social. O filme passa então a ser retrato verdadeiro de um
momento, no qual personagens, cenários, tempo e espaço são vistos pela câmera do diretor, sem ação
superficial ou filtros.
O manifesto dogmático, postulado por Lars Von Trier e Thomas Vittenberg, no sentido de
recusar à identificação e à ilusão, principalmente às propagadas pela indústria hollywoodiana de

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 259
cinema, também se aproxima do que é proposto pelo teatro épico, que recusava o teatro dramático
aristotélico, edificado na catarse57. Monique Borie (2004), nesse sentido, explica o que Bertold Brecht58,
a respeito desse tipo de teatro, defendeu:

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
Por intermédio dele (teatro épico), propõe igualmente uma nova escrita dramática,
uma nova prática de cena e uma nova técnica de interpretação para o actor. O teatro,
espaço mediador entre o espectador e o mundo, é posto a serviço de uma verdadeira
pedagogia social: surpreendendo-se e interrogando-se perante as contradições de uma
realidade que a cena não mais lhe apresenta como natural, mas como manipulável e
transformável, o espectador prepara-se para melhor dominar essa realidade e para agir
sobre ela a fim de a modificar. (BORIE; ROUGEMONT; SCHERER, 2004, p. 465-466).

Assim, o manifesto Dogma 95 encontra voz no cinema na busca por um abandono da


ilusão; os atores, no cinema, devem, assim como foi buscado por Brecht e já antecipado por Erwin
Piscator e Vsevolod Meyerhold, não se metamorfosear completamente, mas manter certa relação de
distância com o seu papel, o que desperta a crítica: “Não mais era permitido ao espectador que, de
boa fé, se identificasse com as personagens e se abandonasse acrítica e apaticamente às emoções
[...]. O distanciamento era indispensável para que a peça fosse compreendida. O indiscutível renuncia
facilmente e, sobretudo ao entendimento.” (BORIE, 2004, p. 469). Para Brecht, assim como se percebe no
cinema de Lars Von Trier, o impacto mágico do teatro burguês deve ser combatido, para dar lugar ao
entendimento do espectador-observador, que é forçado a tomar decisões e ficar em face do argumento
que é mostrado. Em detrimento da catarse, sugere-se a constituição, por meio dos elementos épicos,
de um espectador ativo: “Em vez da vivência e identificação estimuladas pelo teatro burguês, o público
brechtiniano deverá manter-se lúcido.” (ROSENFELD, 1977, p. 149).

As representações do teatro burguês tendem sempre para a camuflagem das


contradições, para a simulação da harmonia, para a idealização. Os estados das coisas
são representados como se não pudessem absolutamente ser de outra maneira: os
caracteres como individualidades no sentido etimológico do termo, indivisíveis por
natureza, de uma só “assentada”, como se afirmando nas situações mais diversas e, para
dizer a verdade, existindo também fora de qualquer situação. [...] Isso não corresponde à
realidade e é preciso, portanto, que um teatro realista o abandone. (BRECHT apud BORIE,
2004, 490).

Após a primeira tentativa de ir contra o cinema comercial ensaiada pelos cineastas da Nouvelle
Vague ressurge então, uma crítica àquilo amplamente encenado e imposto aos consumidores,
principalmente, do cinema norte-americano; uma ideologia burguesa vende a ilusão de felicidade
amparada pelas crenças no mundo do capital, também assim como propunha o teatro épico num
movimento de aversão ao teatro burguês59. Nesse primeiro movimento contrário às regras de um
cinema comercial, revelava-se, por trás de uma cena de ansiedade renovadora, um ninho de cineastas
que mais tarde se renderiam aos lucros do cinema comercial, ao revés do que teriam postulado com
tanto afinco. Nesse sentido, também tem se desenvolvido o cinema burguês e surgem manifestos na
tentativa de serem combativos em relação à alienação que se prega implicitamente ao público ingênuo,

Identificação do público com o representado no palco.


57

Bertold Brecht (1898-1966) autor, encenador e poeta alemão.


58

Bertold Brecht propõe, em sua peça A compra do latão, publicada em 1938, um modelo-base de teatro épico, discutido por quatro pessoas: um
59

dramaturgo, um filósofo, um operário e um ator.

260 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


e explicitamente, ao público que justamente não é o público desse tipo de cinema, o Dogma 95.
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA Em Dogville (2003), a ordem é a mesma: por meio da pantomima, da escassa utilização de
artefatos de cena, da presença de uma estrela hollywoodiana como protagonista e da subversão
da noção de tempo e espaço, Lars Von Trier ambienta sua parábola da sociedade americana em um
grande palco preto que abriga uma cidade chamada também denominada Dogville. Já à primeira
vista, a tomada aérea que mostra a cidade produz um estranhamento, pois o cenário é substituído por
marcações a giz no chão dos espaços delimitados em uma planta baixa da cidade.
O volume bidimensional da cidade desenhada no chão é conferido pelos habitantes que
“preenchem” a cidade, no sentido menos positivo do termo, já que neste filme a discussão é acerca do
desnudamento do caráter de uma sociedade que nada acrescenta ao espaço que habita, pelo contrário,
suga como pode aqueles dos quais pode abusar.
Os diálogos entre diferentes linguagens artísticas permitem que o espectador caminhe pela
multiplicidade de elementos que chamam o olhar e convidam a memória à reflexão. O cinema, por se
constituir de signos, tenta exprimir a realidade “conversando” com as reminiscências e conservando-as,
na medida em que elas conservam a forma que o cineasta quer comunicar. Como orienta André Bazin
(1992, p. 204): “é desfigurando a obra, destruindo seus contornos e atacando a sua própria essência que
o filme a obriga a revelar algumas das suas virtualidades secretas”.
Ao desconstruírem-se, então, os contornos da obra do cineasta dinamarquês, percebe-se uma
utilização criteriosa da simbologia do cão corrente na literatura. Numa tradução literal do nome da
cidade, Dogville seria a Vila Cão ou Vila do Cão. O cão, na mitologia e na literatura, foi muitas vezes
representado como o guardião de um mundo subterrâneo, seja ele o inferno, ou o mundo dos mortos.
Essa figura é sempre atrelada à idéia de passagem para o mundo dos mortos, como guia dessa
passagem, como guia das almas em direção ao seu mundo. Em Dogville, parte dessa significação pode
ser um ponto chave para compreender a situação de Grace. Conforme Jean Chevalier:

[...] o cão, para o qual o invisível é tão familiar, não se contenta em guiar os mortos. Serve
também como intercessor entre esse mundo e o outro, atuando como intermediário
quando os vivos querem interrogar os mortos e as divindades subterrâneas no país dos
mortos. (CHEVALIER, 2001, p. 177).


Grace não faz parte do mundo de Dogville, é uma fugitiva, uma intrusa, que ao adentrar na
cidade depara, primeiramente com Moisés, o cachorro, responsável por vigiar uma cidade que não
tem nada para ser roubado, que avisa a cidade que uma nova pessoa está lá, como um guardião, o
que pode ser interpretado como uma alegoria do inferno, pois, “além de visitá-los com frequência (os
homens mortos), muitas vezes o cão é também guardião dos infernos; ou então, empresta seu rosto
aos senhores dos infernos”. (CHEVALIER, 2001, p. 178). É a figura de Cérbero ou de Hécate, na mitologia
grega.
Para completar a alegoria, Dogville se encontra no fim de um caminho. Não há nada depois
dela. É uma cidade sem saída, guardada por um cachorro, na qual as instituições não existem mais,
caracterizando a falta de necessidade dessas instituições, como no mundo dos mortos. Além disso,
morta está também qualquer tipo de atividade em Dogville, o que antes era uma cidade produtiva, é
uma cidade abandonada. Dogville é uma cidade limite e limítrofes também são seus habitantes:

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 261
[...] Dogville não é um lugar de passagem, visto que sua rua principal não tem saída; a
ela só é possível aportar e retroceder, e isso parece encontrar em cada personagem, uma
justificativa, pois cada uma delas pode ser interpretada como o simulacro de uma rua
sem saída. (DA ROLT, 2009, p. 166).

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
Lars Von Trier corporifica, na cidade do cão, o instinto, numa alegoria da alma humana, para
entrar em uma discussão acerca da “aceitação” do outro. É interessante notar que Moisés, o cão guardião
de Dogville, está apenas representado, num desenho no chão, como um artefato do teatro, o que produz
o estranhamento próprio do teatro épico e um diálogo entre essas diferentes formas de manifestação
artística. Da mesma forma que o movimento Dogma 95, Von Trier, anseia quebrar o ilusionismo do
cinema burguês, Bertold Brecht, no movimento do teatro épico, também ansiava pela mesma intenção:

[...] apresentar um ‘’palco científico’’ capaz de esclarecer o público sobre a sociedade e


a necessidade de transformá-la; capaz ao mesmo tempo de ativar o público, de nele
suscitar a ação transformadora. O fim didático exige que seja eliminada a ilusão, o
impacto mágico do teatro burguês. Esse êxtase, essa intensa identificação emocional que
leva o público a esquecer-se de tudo, afigura-se a Brecht como uma das consequências
principais da teoria da catarse, da purgação e descarga das emoções através das
próprias emoções suscitadas. O público assim purificado sai do teatro satisfeito,
convenientemente conformado, passivo, encampado no sentido da ideologia burguesa
e incapaz de uma idéia rebelde. (ROSENFELD, 1977, p. 148).

Quando faz a opção pela exclusão de alguns artefatos de cena e das paredes das casas, o diretor
constitui uma forma muito próxima do teatro de se relacionar com o espaço, na qual a intimidade é
substituída pelo “escancaramento” do privado. É o espaço que define e estimula comportamentos.
O elemento de destaque do filme é, então, o espaço, delimitado e definido por inserções
textuais que indicam construções, ruas, arbustos, paredes e mesmo o cão da cidade. Esse esqueleto da
ambientação propõe mais do que uma abstração do espaço, uma negação do espaço, já que as divisões
são apenas virtuais. Pelo desvio dos corpos, pelos sons das maçanetas invisíveis e pela iluminação
composta pelos refletores nas paredes do set é que se percebe a mudança de clima, horário, a presença
das portas e o limite entre as casas.
Por vezes, vêem-se os habitantes de Dogville observando a rua principal através de janelas
imaginárias. Outras vezes, no entanto, o cineasta parece fazer questão de dizer que o filme é ficção,
deixando, certamente de maneira proposital, que os habitantes pisem ou se encostem-se às linhas
riscadas no chão, que como paredes das casas, não permitiriam uma transposição, ou construindo
cenas na qual não há a idéia de uma janela na casa, os habitantes apenas respeitam as linhas do chão,
mas pela maneira como olham, esquecem-se das paredes.
É relevante observar a relação dos atores com o espaço, descritas por Sami Saif, no filme
documentário sobre a produção de Dogville: Confissões de Dogville (2003)60. Há uma cena, em que
Lars Von Trier faz questão de frisar a existência de janelas e a necessidade de se olhar através delas: “Não
olhes através das paredes. Isso é muito importante. É uma janela, mas tens que ser preciso. Se falarmos
através das paredes, a cidade desaparece”..
Subvertendo as relações do homem com o espaço, o cineasta modifica também a concepção
de linearidade do tempo no filme. Se, para a confecção de uma cena, “trata-se de selecionar e combinar
60
Identificação do público com o representado no palco.

262 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


os segmentos de fatos em sucessão, conhecendo, vendo e ouvindo exatamente o que se encontra entre
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA eles e o tipo de ligação que os mantém unidos” (TARKOVSKI, 1998, p. 74), quando não há mais paredes,
os fatos não são mais sucessivos, mas simultâneos, o que modifica a reação do espectador frente a eles.
Como se vê, Lars Von Trier modifica a sequência narrativa, o que configura outro tipo de cena, ou, duas
ou mais cenas em uma só. Para Tarkovski, isso soaria pretensioso:

Uma das condições essenciais e imutáveis do cinema determina que na tela as ações
devem se desenvolver sequencialmente, não importa se concebidas como simultâneas
ou retrospectivas, ou algo do gênero. Para apresentar dois ou mais processos como
simultâneos ou paralelos, é preciso necessariamente mostrá-los um em seguida do
outro; a montagem deve ser sequencial. Não há outra forma de fazê-lo. (TARKOVSKI,
1998, p. 80).

Lars von Trier, ao explorar as noções de espaço, modifica a ideia de sucessão de informações
no cinema, modifica o tempo e apresenta a realidade como insólita, manipulável e distante. O efeito de
“distanciamento”, provindo do teatro épico, presentifica-se, para o espectador encarar a representação
da tela como de fato é: representação.

O ESPAÇO DE DOGVILLE, À PRIMEIRA VISTA

O diretor de Dogville não disfarça o caráter teatral de seu filme, o que o transforma de certa
maneira em um filme lúdico, a começar pela primeira cena, em plano aéreo, que mostra a cidade em
uma planta baixa, com pequenas pessoas movimentando-se sobre esse espaço.

Figura 1 - Frame: tomada aérea da cidade de Dogville e seus habitantes (Prólogo).

A idéia parece, a princípio, enfatizar a insignificância humana diante do espaço em que se


vive. A imaginação de Lars Von Trier, criador dessa cidade imaginária, ambientada nos Estados Unidos,
convida a imaginação do espectador à fabulação: construa a sua cidade, em qualquer tempo e em
qualquer lugar. Isso é confirmado por uma fala do personagem Chuck, no capítulo 2: “As pessoas são
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 263
as mesmas em todos os lugares”. A “miniatura” Dogville ilustra um ambiente maior, um macroespaço
que pode ser o país Estados Unidos, ou qualquer cidade ou país no resto do mundo. Uma cidade de
vinte e poucos habitantes pode servir de ilustração para uma cidade de vinte mil habitantes. Conforme

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
Bachelard, “[...] a representação (no caso da miniatura) é dominada pela Imaginação”. (1989, p. 159).
Em declaração pública, Lars Von Trier já havia declarado se sentir americano, sem nunca ter ido
aos Estados Unidos e por isso ambientou sua cidade na América, em clara crítica à massificação dos meios
audiovisuais norte-americanos, produtora de uma cultura sem diferenças. É como se a particularidade
de uma cidade fosse, na verdade, uma característica comum a uma sociedade massificada, fruto da
americanização, da industrialização, da globalização. A ativação dos valores criticados pelo diretor de
Dogville é feita, então, por meio dessa representação que convida à imaginação:

A representação não é mais que um corpo de expressões para comunicar aos outros
nossas próprias imagens. Na linha de uma filosofia que aceita a imaginação como
faculdade básica, pode-se dizer, como Schopenhauer “O mundo é a minha imaginação”.
Possuo tanto melhor o mundo quanto mais hábil for em miniaturizá-lo. Mas fazendo
isso, é preciso compreender que na miniatura os valores se condensam e se enriquecem.
Não basta uma dialética platônica do grande e do pequeno para conhecer as virtudes
dinâmicas da miniatura. É preciso ultrapassar a lógica para viver o que há de grande no
pequeno. (BACHELARD, 1989, p. 159).

Dogville, como simulacro de uma cidade qualquer, constrói-se na fusão de detalhes,


perceptíveis depois de várias leituras. Detalhes transponíveis para qualquer espaço. Conforme Gastón
Bachelard, “Parece que o miniaturista desafia a contemplação preguiçosa do filósofo intuicionista, diz-
lhe: ‘Você não viu isso! Veja com calma todas essas coisinhas que não podem ser contempladas em seu
conjunto.’” (1989, p. 167). Para Bachelard, a atenção aos detalhes da miniatura deve ser minuciosa. E para
o leitor entregar-se à leitura de uma miniatura, deve se entregar também ao devaneio, à subjetividade,
que suscita à quebra de qualquer interpretação fechada ou linearidade: “Paradoxalmente, parece que,
vivendo na miniatura, conseguimos expandir-nos num pequeno espaço”. (1989, p. 169).
Ao explorar-se a simbologia da cidade, vê-se na cidade das montanhas rochosas, o abuso
das linhas retas, símbolo da estabilidade, oposição aos acampamentos nômades, do movimento,
simbolizados pelas linhas curvas. (CHEVALIER, 2001). E de fato, a cidade do filme é estática, está
abandonada, é o símbolo da inatividade; parada no tempo e sem perspectiva de futuro, a cidade
transpõe também para seus habitantes a ideia de falta de perspectiva, alienação e impossibilidade de
transformação diante disso.

A atenção à presença imediata do corpo oferece uma leitura peculiar sobre a vida
em Dogville. Basta atentar às formas com as quais as personagens expressam
sua materialidade biológica em relação à absorção do poder circundante - talvez
representado pelo cão Moisés na perspectiva de poder-consciência ou poder-vigilância:
o choro fácil de Ver a e seus filhos sujos; a cegueira de McKay; a filha paralítica de Olívia;
a necessidade de Liz Henson de que confirmem sua beleza; o caminhar arrastado de
Chuck; as visitas de Ben ao prostíbulo; a inércia de Tom Edison, o pai, que passa os dias
escutando músicas no rádio; a corporeidade mecanizada de marta ao tocar o sino da
cidade etc. Tais condutas podem constituir uma radiografia da dissimulação humana e
um diagnóstico exemplar sobre os processos de despersonalização operados no interior
de Dogville, os quais também remetem ao engessamento de qualquer possibilidade de
transformação. (DA ROLT, 2009. p. 167).

264 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


É uma cidade sem informação, sem igreja, sem instituições financeiras ou legais. Não há
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA instituições propiciadoras do convívio social, mesmo a igreja, se serve para isso, tem seus bancos
colocados um atrás do outro, em linhas retas, nos quais as pessoas sentadas olham para frente,
e não estabelecem diálogo umas com as outras, senão intermediadas por Tom, que faz às vezes de
representante religioso. A cidade tem apenas uma loja, que vende produtos muito caros e inúteis
aos habitantes da cidade. Nem mesmo escola ou praça há. No entanto, a cidade apresenta-se como
acolhedora a uma fugitiva, o que ilustra a figura de proteção encontrada por Grace, uma personagem
sem mãe, na cidade:

Segundo a psicanálise contemporânea, a cidade é um dos símbolos da mãe, com o seu


duplo aspecto de proteção e de limite. Em geral tem relação com o princípio feminino.
Da mesma forma que a cidade possui seus habitantes, a mulher encerra nela seus filhos.
(CHEVALIER, 2001, p. 239).

É interessante observar que o que a princípio é proteção, transforma-se ao longo da narrativa,


em covardia, medo e dominação em relação à personagem de Grace, que, por quebrar a linearidade das
ações do cotidiano de Dogville, incomoda e acaba por se transformar no elo que une as relações sociais
de Dogville. A cidade criada por Lars Von Trier, com suas sete casas, então se compara à Roma Antiga
(das sete colinas), “símbolo invertido da cidade, a mãe corrompida e corruptora que, ao invés de dar vida
e benção, atrai morte e maldição”. (CHEVALIER, 2001, p. 240).
Dentro da cidade, delimitam-se as casas. Para Bachelard (1989), a casa do exterior é a construída
pelos homens, enquanto as mulheres constroem os interiores. Em Dogville, não há exterior, interior.
Há uma junção entre os espaços femininos e os masculinos, mantidos por um leve limite: a marcação
no chão. Marcação essa, essencialmente reta, quadrada, retangular, que limita os movimentos de seus
moradores, o que já era nítido na cidade, reforça-se no interior das casas. As casas, em Dogville, são
visivelmente diminuídas, assemelhando-se a barracos, e contam com a humildade de apenas um
cômodo normalmente. Elas não permitem movimento, representariam, portanto, o estacionário, a
impossibilidade de evolução, personificada em cada habitante de Dogville. O exterior da casa seria,
então, as aparências, a máscara do homem, frente à sociedade. Portanto, em Dogville, não há máscaras.
O desnudamento de cada personagem é feito pelo próprio cenário. Dentro da cidade, as casas, espaço
do abrigo, da proteção, da intimidade, do interior são o lugar que transparece amor, no qual se instauram
as raízes e vontades. (BACHELARD, 1989).

TEMPORALIDADE X ATEMPORALIDADE EM DOGVILLE

Lars Von Trier consegue, magistralmente, delimitar um tempo para a cidade de Dogville (O
ano de 1930, após a quebra da bolsa de Nova York), estabelecendo ao mesmo tempo uma conexão
com outros tempos, atribuindo a sua obra um tom de parábola – antiamericana ou universal. Não há
passado ou futuro nesta cidade. É uma cidade ambientada no presente que vive um dia depois do
outro, sem perspectiva posterior.
Lars situa Dogville em um tempo sem tempo,cuja única marcação é dada pelo sino e pelas
estações que delimitam a colheita das maçãs. A função do sino: marcar o tempo de hora em hora, muda

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 265
conforme a posição de Grace no contexto da cidade. Após a chegada de Grace, o sino passa a ser o sinal
de aviso para a chegada de um policial. Depois, devido à mudança de rotina de trabalho da fugitiva,
passa a marcar seus horários de trabalho, até se tornar o sino que vai ao pescoço de Grace, para que

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
todos saibam onde ela está e o badalo que lembra a cidade de que algum homem está satisfazendo-se
sexualmente com o novo objeto da cidade.

Figura 2 - Frame: Martha toca o sino marcando as horas, quando o


sino ainda tinha essa função. (Prólogo).

É interessante observar como essa mudança de caracterização do sino está presente nas
alegorias que esse símbolo evoca na literatura e na cultura, já que seu simbolismo está ligado,
primordialmente, à percepção do som: “Na Índia, por exemplo, ele simboliza o ouvido, e aquilo que o
ouvido percebe [...]. No Islã, a repercussão do sino é o som sutil da revelação corânica, a repercussão do
Poder divino na existência: a percepção do ruído do sino dissolve as limitações da condição temporal.”
(CHEVALIER, 2001, p. 835).
O sino, além de marcador temporal, retorna à sua função universal de purificador e informante
da chegada de forças malignas ou mau agouro, somente após a chegada de Grace. Além disso, “pela
posição de seu badalo, o sino evoca a posição de tudo o que está suspenso entre o céu e a terra, e, por
isso mesmo, estabelece uma comunicação entre os dois. Mas tem também o poder de entrar em relação
com o mundo subterrâneo”. (CHEVALIER, 2001, p. 835), como quando evoca, pelas mãos das crianças,
uma sexualidade corrompida, o pecado de todos os homens de Dogville, quando indica que algum
homem está se aproveitando sexualmente de Grace (Graça - o divino servindo ao pecado).
Se para Agostinho (s/d), existem três tempos: passado, presente e futuro, passado símbolo da
memória, presente símbolo da intuição direta e futuro símbolo da esperança; em Dogville, a memória
de cada habitante é corporificada por suas ações rotineiras. Não há uma história de cada personagem
que possa ilustrar suas atitudes a não ser as próprias atitudes do presente. Mesmo Grace, quando chega

266 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


à cidade, não tem um passado e, ao negar seu passado, transforma-se no que Dogville acredita que ela
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA seja. A cidade está parada no tempo, o que pode ser constatado pelos únicos meios de informação que
a cidade possui: o telefone e o rádio. Os dois em desuso, já que Dogville não tem qualquer ligação com
seu entorno. Grace, nesse sentido, incomoda por ser uma quebra na rotina dos habitantes.
Além disso, as atividades que começam a ser executadas por Grace, para a conquista dos
moradores, nunca haviam sido feitas por provocarem mudanças de rotina e por caracterizarem
planejamento, perspectiva – o que é, portanto, um indício de esperança. Segundo Pierre Boutang, o
futuro é o modo “do movimento das coisas que ainda não são, embora, pela Criação, elas no sejam
predestinadas – que traduz o sentido do ser e da presença do homem no mundo, em direção a seu
crescimento e a sua realização [...]” (2000, p. 28). Quando não há perspectiva de crescimento, como
no caso de Dogville, não há perspectiva de mudança, crescimento ou transformação, o que reitera a
estagnação hostil na qual vivem seus habitantes. O movimento das coisas, em Dogville nem poderia ser
predestinado já que se sugere a ausência de uma entidade divina “a favor” da cidade.
Talvez com o intuito de provocar uma maior compreensão ou mudança de perspectiva de
percepção, Lars Von Trier utiliza-se de outra concepção de tempo dentro de seu cinema: a simultaneidade
de ações mostradas em uma mesma tela, em um mesmo plano. Esse convite à percepção muda não só
a própria percepção, transformando-a num ritmo complexo dentro do filme, mas se torna instrumento
chave de compreensão dos desnudamentos de cada personagem, ao longo de suas descrições.
Apesar de Lars Von Trier optar em Dogville por uma proximidade com a literatura, dividindo
seu filme em um Prólogo e nove capítulos, essa cronologia não parece confortar o espectador frente à
inquietação provocada diante das temporalidades múltiplas exploradas por Von Trier ao longo dessa
narrativa. Uma narrativa que a princípio obedece a um ordenamento burguês, como reflete Milton
(1999), acaba com qualquer identificação quando provoca uma desorientação na percepção da maneira
de descrever e narrar. Justamente o que faz Lars Von Trier ao estabelecer tempos paralelos no mesmo
plano.
E é o espaço que provoca essa mudança da noção de tempo. Por emprestar do teatro essa
influência na maneira de construção da cena, o cineasta de Dogville deixa à vista movimentos de fundo
dos planos principais que ficariam escondidos pelas paredes de cada casa, se essas existissem. Dessa
montagem de elementos à frente e atrás é que se extrai, ou se tem o objetivo de extrair, a consciência
crítica social a respeito do que ocorre na película.
Percebe-se, principalmente ao longo das reflexões do personagem principal Tom e das
descrições do narrador in off, a convivência de tempos distintos no cinema convencional (que seriam
mostrados em planos diferentes sucessivamente), num mesmo plano, em perspectiva. Vê-se a cena
principal à frente relacionando-se implicitamente com a cena de fundo. Um convite à percepção
multiplicada, multifacetada. Em, Dogville, portanto, que percepção esse tipo de composição vai exigir
do espectador?
Para Tarkovski (1998), quando um cineasta a seu bel-prazer escolhe as cenas a serem postas em
sequência, o faz apropriando-se do tempo e, de certa forma, aprisionando-o no cinema, teoricamente,
para sempre. Ele o faz, então, esculpindo o tempo. Cabe questionar, então, de que forma Lars Von Trier
esculpe o tempo, em sua obra?

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 267
Certamente de maneira peculiar - e diferente do que Tarkovski imaginou ao falar sobre a
impossibilidade de se trabalhar com a simultaneidade dentro da obra fílmica. Emprestando a noção
de tempo do teatro, o cineasta dinamarquês delimita ao espectador seus antecedentes criativos,

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
caracterizando a sua obra de arte como um produto humano. (NITRINI, 2000). Segundo Nitrini,
“compreender uma fonte mostra o processo de composição e ilumina o pensamento de um autor”.
(NITRINI, 2000, p. 130). É como se, sem o conhecimento da linguagem do teatro amplamente explorada
por Lars, a cidade de Dogville não existisse.
Em outro momento, agora no Capítulo 1, aparecem os moradores de Dogville reunidos na
igreja para o primeiro julgamento de Grace: a decisão a respeito de sua primeira chance. Todos da
cidade estão presentes, mas vemos uma figura isolada a cortinas fechadas. Não há cortinas nas outras
casas, mas é preciso enfatizar a relação do cego com a luz. McKay não enxerga, portanto não gosta de
estar frente ao que não pode ter, ao que não pode ver, prefere o isolamento também da luz, mas fala o
tempo todo sobre ela, discute seu valor, sua qualidade e sua função, tentando demonstrar algo que não
é – vive de aparências.
No primeiro julgamento, há a ausência do único morador que tem uma janela em sua casa,
mas não pode ver o que aparece através dela. Em uma alegoria da janela como vitrine (é interessante
também observar que na loja há uma vitrine, há a necessidade de separação do cliente e do produto),
talvez McKay seja o único morador que não possa “comprar” a primeira imagem de Grace, por não poder
vê-la, ao mesmo tempo em que é o único beneficiado com a janela da visão, da percepção real das
coisas.
É a sua aparência que é determinante para a primeira aceitação em Dogville. Ao ser personificada
na imagem de Nicole Kidman, Grace assume o rosto vendido nas prateleiras hollywoodianas, encanta e
entorpece como um produto a ser vendido inocentemente. McKay, em virtude de sua cegueira, não pode
ser entorpecido pela imagem de Grace vendida por Tom, é o único a “comprar” Grace por seu conteúdo,
depois de uma conversa com a fugitiva, o que o exclui dos demais - o extingue da unanimidade - crítica
à unanimidade que compra os filmes comerciais norte americanos.
Essa “compra” da imagem ainda inocente da fugitiva acontece dentro da igreja, identificada pela
presença de um sino e pela inscrição no chão: Casa de Jeremias. A igreja, como símbolo, representaria a
união, a reunião dos justos, conforme Chevalier:

Para Aelred de Rievaulx, a Igreja designa o povo de Deus. Ela abriga em seu seio todos os
justos, desde Abel até o último dos justos (Sermon du temps et des saints, 10). A Igreja
é igualmente considerada como a esposa do Cristo e a mãe dos Cristãos. E, sob esse
aspecto, se lhe pode aplicar todo o simbolismo da mãe. (CHEVALIER, 2001, p. 500-501).


Numa espécie de acolhimento, a igreja, em Dogville simboliza o que a cidade oferece a Grace,
na figura ambígua da mãe: o limite e a proteção. E, na inexistência de uma instituição julgadora ou
educativa, o espaço da igreja serve também aos sermões de Tom, empenhado na ilustração do problema
da alma humana, e, com a presença de Grace, em seus julgamentos.
Essa construção do cineasta revela a igreja como o local em que se decidem os destinos de
Grace, mediados por Tom, e onde se realiza todo o tipo de pregação, mesmo antes da chegada da
fugitiva. Na Casa de Jeremias de Dogville, o profeta, como contado na Bíblia, é o próprio Tom, que

268 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


combate a conduta irregular, errada do seu povo, tal qual o profeta Jeremias pregava a necessidade de
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA uma vida regrada e exemplar, voltada a valores morais e religiosos, e também contra os falsos profetas.
Revela-se, no entanto, ele mesmo um falso profeta, idealizador dos castigos de Grace, declarando-se
apaixonado por ela, para depois se transformar, explicitamente, no mesmo tipo de pessoa que ele
combate.
Na próxima figura, observa-se Tom envolto em pensamentos narrados novamente por
esse narrador extradiegético e onisciente, pensando em um exemplo concreto para apresentar
aos habitantes de Dogville, sobre a qual Bill havia comentado ser como um presente. Tom, então,
reflete sobre a condição de cidade na qual Dogville se encontra: “Esta cidade não era do tipo onde
presentes caem do céu”. O filósofo, escritor, mineiro ou pregador, entretanto, não tem um perfil teórico.
Possivelmente, encaixe-se na cidade como um estóico, mas como uma característica coletiva e não
individual do pensador.

Figura 3 - Frame: Tom envolto em seus pensamentos a respeito de um


presente para Dogville. (Prólogo).

Ao mesmo tempo em que aparecem atrás de sua figura três personagens, dois deles em sua
reza diária: Olívia e Martha. Se a cidade não recebia nada do céu, por que se dirigir a Deus pedindo algo?
Ou agradecer? Não há motivos para rezar. Em outro momento, Tom ironiza a condição da igreja para
Martha: “Podemos ser espirituais sem ler a Bíblia ou rezar”. Essas manifestações individuais aparecem
como uma crítica à própria condição individual.
Ao longo do filme, a simultaneidade de informações é mostrada no quadro que serve para
ensinar os princípios do estoicismo aos filhos de Vera, ao fundo de uma conversa entre Grace, Ben e Vera.
Ben elogia Grace por ela ter se lembrado de colocar o mapa perto das suas coisas e acaba comparando-a
a Srta. Laura. Ao perguntar quem é a moça, Grace se depara com a resposta de Vera, que ironiza: “É uma
de suas ‘amigas’”, se referindo às prostitutas que Ben visita uma vez por semana em Georgetown. No
quadro, ao fundo, há uma referência ao mito de Eros e Psyché, da mitologia grega.

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 269
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
Figura 4 - Frame: conversa entre Ben, Vera e Grace. Ao fundo, o quadro com referência ao mito de Eros
e Psyché. (Capítulo 2).

Em analogia ao mito, é possível verificar as características de Psyché em Grace, e as


características de Eros em Ben. Psyché “era tão arrebatadoramente bela, que os mortais no lugar de
pedi-la em casamento, adoravam-na como se fosse a própria Afrodite, cujos templos e culto, por isso
mesmo, haviam sido esquecidos e abandonados. Psyché se tornara a nova deusa do amor”. (BRANDÃO,
1987, p. 210); da mesma forma a descrição de Eros se encaixa no perfil de Ben: “menino alado e de maus
costumes, corruptor da moral pública e provocador de escândalos”. (BRANDÃO, 1987, p. 210).
De fato Grace, ao chegar a Dogville, estabelece novas relações entre os habitantes da cidade.
A personificação do amor, da doação e da beleza, antes inexistentes em Dogville, existia em Grace. Tom
chega a falar em um de seus diálogos com Grace sobre uma cidade fictícia que teria criado em um de
seus escritos: “Se tem algum amor nesta cidade, ele vem de você”; Ben, por sua vez, é descrito muitas
vezes como aquele que envergonha a cidade por usufruir dos serviços de suas “amigas” de Georgetown
uma vez por semana, além de ser o único a possuir carro, o que o caracterizaria como alado, em analogia
ao filho de Afrodite. Inversamente, no entanto, pode-se também conceber Grace na figura de Eros:
como numa passagem da figura de Psyché. É ela quem, involuntariamente, conquista todos os homens
de Dogville, tornando-se sinônimo dos maus costumes e da afronta à moral pública. Se em Dançando
no Escuro (2000), Lars Von Trier apropriou-se do musical para criticar o próprio musical, aqui o elemento
apropriado por Lars parece ser a própria Nicole Kidman, personificação da beleza hollywoodiana para
uma crítica à sociedade contemporânea. Ao relembrar-se a questão da influência, vê-se Lars utilizando-
se daquilo que Bloom (1991) estabeleceu como clinamen e tessera. De acordo com Nitrini (2000), o
primeiro caracteriza-se como uma “desapropriação poética propriamente dita”, ou seja, uma mudança
de universo dos elementos apropriados, já a segunda, configura-se como uma “complementação
antitética”, na qual o poeta forte preservaria os termos do antecedente, mas alteraria seu significado.

270 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


Numa apropriação instigante dos elementos do teatro, da apropriação do tempo por este e de
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA símbolos da literatura e da mitologia, Lars Von Trier promove inversões alegóricas e criativas, motivos de
reflexão, diante da complexidade da construção de cada personagem, simulacro das pessoas do lado
de fora da representação.

TEATRO E CINEMA: DIÁLOGOS

O efeito de semelhanças nem tão escondidas entre as duas linguagens produz no espectador
deste filme, certamente uma experiência de natureza singular, que antes de caracterizar intrusão,
empréstimo ou imitação da obra de Brecht por Lars Von Trier. O cineasta encontra a si mesmo na
produção de uma obra com outras tantas referências e uma impecável assimilação de seus professores
- que produz, por sua vez, uma obra distinta e madura que só Von Trier poderia ter criado.
A respeito da semelhança com o teatro, que vai desde o movimento Dogma 95, conforme já
refletido sobre, até a utilização de seus elementos, é interessante observar a utilização de alguns recursos
literários, alguns recursos cênicos e a narração pantomímica, que sugerem um diálogo profundo com o
teatro épico e seus propósitos.
À primeira vista, a multiplicidade de elementos provenientes do teatro dá a impressão
ao espectador de um grande palco filmado até perder a atenção para cada elemento priorizado
individualmente. Destaca-se a narração pantomímica, numa voz in off da cena. Nesse sentido,

[...] a falta de cenários e a pantomima destacam o cunho narrado das peças. O cenário
realista, em si, é sem dúvida um elemento narrativo encoberto, já que apresenta o
ambiente que no romance costuma ser descrito pelo narrador e, no texto dramático,
pelas rubricas. [...] É como se no romance nos defrontássemos com uma pantomima sem
requisitos. O dramaturgo épico aproveita-se da mesma capacidade projetiva do público.
Este preenche o que o narrador apenas sugere. (ROSENFELD, p. 133).

Sugestão que está presente ao longo do filme desde a primeira vista do espaço, quando o
narrador extradiegético descreve as casas de Dogville, como simples, modestas e assemelhadas a
barracos. O narrador convida o público à imaginação. A gesticulação acentuada e essa apresentação
sugestionam a fabulação do que será contado, a universalização do que será descrito por palavras e
gestos, só que no cinema.
A ideia de que as relações sociais não têm nome, não são individuais, mas universais, atende
a um contexto maior, no qual se encaixa o ser humano como produto dessas relações, já que “o peso
das coisas anônimas, não podendo ser reduzido ao diálogo, exige um palco que comece a narrar”.
(ROSENFELD, p. 148). É interessante, nesse sentido, como o cineasta nomeia suas personagens: com
nomes universais, caracterizando ações e interrelações humanas como numa síntese. Para ilustração
dessa possibilidade, é difícil não fazer alusão à mitologia grega quando no contexto do núcleo Vera,
Chuck e os filhos, com a adição de Grace. Os filhos de Vera chamam-se Olímpia, Diana, Dália, Atena,
Jason, Pandora e Aquiles. Cada um desses personagens, apesar de pouco explorados pelo diretor de
Dogville, carrega uma significação em seu nome passível de construções riquíssimas de significado.
Paralelamente, pode-se conceber Jason, o filho de mais destaque dentro da obra, como uma
americanização do personagem Jasão, da mitologia clássica.

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 271
O personagem de Jason, no entanto, também une as duas mulheres, já que é a peça chave
para o desencadeamento das ações corretivas de Vera para Grace. O castigo de Grace quando esta bate
(forçosamente) em Jason é não ter mais contato com os filhos de Vera. A ação de Chuck perante Grace

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
depois de esta ter batido em Jason não é, da mesma forma que a de Vera, corretiva, mas reflete o Eros
personificado de Grace que aflora a afronta à moral e aos bons costumes pelos homens da cidade. A
fugitiva representa ainda, como ela mesma questiona Chuck, aquilo do qual ele fugiu, a cidade grande.
Ao ser o primeiro a abusar sexualmente de Grace, o plantador de maçãs (símbolo de sedução e pecado),
Chuck passa a ter relações constantes com Grace, na plantação de maçãs, como Jasão passou a viver
com a filha de Creonte depois da sedução e abandono de Medéia. Vera, ao invés de castigar Chuck
matando os seus sete filhos, atinge a princesa matando o que seriam os filhos dela: as sete miniaturas
conquistadas uma a uma com o trabalho da personagem de Nicole em Dogville, mais tarde ajudadas a
serem compradas por Tom.
Grace, como elo que reconstrói e inverte as ligações dos cidadãos de Dogville depois de sua
chegada, personifica as sete miniaturas da loja de MaGinger: são sete as casas da cidade. E à medida que
conquista os habitantes, consegue comprá-los representados pelos pequenos objetos. Grace chega a
confessar a vontade de tê los, no início do filme. Ao final, necessita da ajuda de Tom para comprá-los,
mas o faz, quase assemelhando-se aos habitantes de Dogville quando passa a ter a própria casa e seus
objetos. Quando Vera quebra um por um de seus “filhos”, quebra junto as relações de Grace e cada
habitante, cada casa da cidade e ela passa a ser então escrava, usada ao bel-prazer de cada cidadão, não
mais ‘’filha” da cidade.
Os recursos literários também servem à narrativa fílmica para a produção dos efeitos de
distanciamento e estranhamento presentes na peça-filme. A cada título de capítulo, a ironia era
empregada para iniciar a ação premeditada pelo narrador. Os trocadilhos e ironias verbais e imagéticas
utilizadas pelo cineasta requerem um público não identificado, muito menos inerte diante do que é
apresentado:

Para podermos rir, quando alguém escorrega numa casca de banana, estatelando-se no
chão, ou quando um marido é enganado pela esposa, é impositivo que não fiquemos
muito identificados e nos mantenhamos distanciados em face dos personagens e seus
desastres. (ROSENFELD, 1977, p. 157).

Esse recurso pode ser identificado nos momentos de comparação da cidade com um cachorro
e de Grace com a maçã. O sexto capítulo, por exemplo, chama-se Quando Dogville mostra os dentes,
enquanto no seu decorrer, ao narrar Grace exposta à agressividade de Chuck, o narrador compara a
fugitiva a uma maçã, suculenta e convidativa a uma refeição, como o pecado. Ao também representar
o cachorro, nome e guardião da cidade, Lars Von Trier produz um estranhamento desvelado ao final de
sua obra, como ele, contraditória.

No Extremo Oriente, o simbolismo do cão é essencialmente ambivalente: benéfico,


porque o cão é um achegado companheiro do homem e o guardião vigilante de sua casa;
e maléfico porque, aparentando-se ao lobo e ao chacal, ele aparece como animal impuro
e desprezível. Esses aspectos não correspondem a nenhuma limitação geográfica, sendo
ampla e igualmente difundidos. (CHEVALIER, 2001, p. 180).

272 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


Aproveitando-se da dualidade do próprio cachorro, o dual diretor estabelece um prenúncio
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA do que seria um final catártico e trágico para a sua obra, contraditoriamente a todos os recursos do
teatro épico empregados. O cineasta mais uma vez usa um elemento subvertido para dar conta de uma
ilustração, de um “exemplo”. Usa do elemento trágico, da catarse e da identificação final com a vingança
de Grace, para repugná-lo - ou aceitá-lo, mas não da permanecer da forma como ele está. Emprestando
da tragédia grega, a simbologia do cachorro, que representava o mundo subterrâneo, os habitantes de
Dogville, subversores da moral pública, contrariam a vontade dos deuses e por isso não merecem ser
enterrados, depois da chacina provocada por Grace, são deixados sem sepultamento, aos cães e às aves
de rapina.
Grace, ao libertar o cão, que toma vida ao final do filme, confirma como o diretor essa dualidade.
Ao mesmo tempo em que nutre uma sensação de dívida por ter roubado seu osso, Grace o liberta para
que ele obedeça ao seu instinto: devorar animais.

Figura 5 - Frame: representação do cachorro o chão. (Prólogo).

De acordo com Chevalier (2001, p. 180), “Quem mata um cão torna-se impuro; diz-se ser tão
grave quanto matar sete homens; acredita-se que o cão tenha sete vidas”. Essa passagem confirma a
ideia de que a Grace, como em todo o filme, destoou da cidade de Dogville, durante todo o período
que esteve por lá. É a alegoria do divino no inferno, Grace em Dogville. Conviveu com os cães, mas
não se igualou a eles. Da mesma forma, no entanto, Grace não perdoou a todos. As ações de doação
indiscriminada ao outro, protagonizadas por Grace se esvaíram com a idéia de vingança e de que o
mundo se tornaria “um lugar melhor sem esta cidade”, num fecho catártico e trágico, no melhor sentido
aristotélico.
A vingança, ao final de Dogville, é purificadora, mas não por isso menos reflexiva. As contradições
e significações construídas por Lars Von Trier não obedecem a regras, nem impõem uma só linha de

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 273
interpretação. Aqui, como no teatro épico, “O natural teve que se adaptar à marca do estranho, do
anormal, do insólito. Só assim se podiam revelar as leis de causa e efeito. As ações dos homens tinham
que, simultaneamente, ser o que eram e poder ser outras”. (BORIE, 2004, p. 469).

Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
Embrenhar-se pelo cinema provocador desse artista foi, antes de tudo, provocante. Provocante
de reflexões acerca da função do cinema e dos diálogos com o teatro e com a literatura instaurados no
sentido de promover a construção de sujeitos críticos frente a uma tela diferente da construída pela
massificação hollywoodiana que governa as prateleiras das casas de vídeo. Provocante de aplausos para
um indício de um movimento tão distante quanto próximo dos aventurosos caminhos dos cineastas
da Nouvelle Vague. Provocante de leituras enriquecedoras e curiosas perante cenas tão esclarecedoras
quanto convidativas a um esquecimento nos mínimos resíduos que constroem as imagens, construtoras,
por sua vez, de articulações alegóricas e de diálogos entre sistemas de signos diferentes.
Verificou-se, neste trabalho, uma preocupação por parte de um diretor pouco compreendido
pela crítica em estruturar justamente essa provocação, por meio de signos alusivos a outras linguagens
e mitos desconstruídos e fabulados - o que leva o espectador para uma experimentação estética do
discurso cinematográfico enredadora de sentidos dificilmente desvelados pelo público leigo, massa
consumidora dos filmes comerciais. Antes os pressupostos do dialogismo, do cinema e do teatro, mais
tarde as linhas de análise referentes ao tempo e ao espaço subsidiaram essa leitura, não tão leiga quanto
no início, muito menos esclarecedora de todos os elementos de um filme tão rico, quanto Dogville.

274 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA R E F E R Ê N C I A S

BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

BAZIN, A. O que é o cinema? Trad. Ana Moura. São Paulo: Brasiliense, 1992.

BLOOM. H. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Trad. Artur Nestrovski. Rio
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BORIE, M.; ROUGEMONT, M.; SCHERER, J. Brecht: escritos sobre o teatro (1930 a 1945).
In: -----. Estética Teatral: textos de Platão a Bretch. Tradução de Helena Barbas. 2. Ed.
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BOUTANG, Pierre. O tempo: ensaio sobre a origem. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.

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CHEVALIER, Jean; GHEERBRANDT, Alain, com a colaboração de André Barbault.... [et


al.]; coordenação Carlos Sussekind; tradução Vera da Costa e Silva... [et al.]. - Dicionário
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DOGVILLE. França, 2003. 177 min. Direção: Lars Von Triers. Distribuição: Lions Gate
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SANTO AGOSTINHO. As confissões. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Rio de


Janeiro: Ediouro, S/d. (Coleção Universidade de Bolso, v. 31993).

TARKOVSKI, A. Esculpir o tempo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

VON TRIER, Lars. Manifesto Dogma 95. Disponível em: http://www.revistaetcetera.


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Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 275
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA

CAPÍTULO 21

Imagens de Kafka: Olhares para a construção


Imágenes de Kafka: Miradas para La constucción
Acir Dias da Silva61

Nos primeiros quadros da sequência do cartório do filme O Processo, do diretor Orson Welles62,
Josef K. percebe o emaranhado universo burocrático no qual está inserido o seu processo e a impos-
sibilidade de reverter o caso. É a morte da esperança. Já na última sequência do filme, assim como no
romance, o personagem, culpado e impotente, é sacrificado. Essas imagens são apresentadas não so-
mente para mostrar nossa forma de interpretação das imagens do filme e do romance, mas, sobretudo,
porque entendemos que o personagem de A Construção continua o drama de Josef K., pois são cria-
ções de Franz Kafka. São imagens e alegorias em movimento que dinamizam a análise e representações
do mundo de Kafka.
Um conjunto de imagens nos chama atenção na obra analisada e, sem dúvida, inicialmente o
título da mesma: A Construção. Atribuímos esse fato ao tradutor da obra, Modesto Carone, que preferiu
utilizar essa palavra para a tradução de Der Bau. Acolhemos esse título como uma metáfora da oscilação
interna do narrador-personagem que se faz ação pelo rigoroso movimento interno de seus diálogos
e possibilidades de interpretação de imagens. Vemos nessas imagens, aliás, personificações dos limi-
tes extremos da condição humana. Na leitura do pequeno título, logo, já ouvimos as patas do animal
narrador pousar sobre a terra dura dos corredores, e também o ressoar de suas unhas nas paredes do

61
Professor do Programada de Pós-graduação da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE - Campus de Cascavel; pesquisador do Labo-
ratório de Estudos Audiovisuais OLHO, da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - e pesquisador-líder do grupo de Pesquisa em Educação,
Cultura. Linguagem e Arte - PECLA - da UNIOESTE Campus de Cascavel. E-mail: [email protected]
62
THE TRIAL (O PROCESSO) Paris Europa Productions (Paris) FI-C-IT (Roma) Hisa Films (Munique). 1962. Direção: Orson Welles. Elenco: Antony Perkins
(Josef K), Orson Welles (Hasteler), Jeanne Moreau (Fraulein Burstner), Romy Schneider (Leni), Elsa Martinelli (Hilda), Suzane Flon (Fraulein Pitl) Ma-
dalaine Robinson (Frau Gurbach), Akim tamiroff (Block), Arnold Foa (inspetor), Fernand Ledouz (escrivão do tribunal), Mourice Teynac (diretor da
repartição pública de K) Billy Kearns ( primeiro guarda), Jess Hahn (segundo guarda), William Champpell ( Titorelli), Raoul Delfosse, Karl Studer, Jean-
Claude Remoleux (algozes), Wolfgang Reichman (oficial de justiça), Thomas Holtzmann (estudante), Maidra Shore (Irmie), Max Haufler (tio Max),
Michael Lonsdale (sacerdote), Max Buchsbaum (juiz), Van Doude (arquivista nas cenas cortadas), Katina Pauxinou (cientista nas cenas cortadas) Ro-
teiro: Orson Welles, tradução a partir do romance de Franz Kafka. Música: Jean Ledrut, sobre o de Albinoni. Cenografia: Edmond Richard. Cenografia:
Yvonne Martin, Denise Baby, Fritz Müller. Tempo de Projeção: 120 minutos. Produção: Alexander e Michael Salkind.

Imagens de Kafka: Olhares para a construção 277


labirinto de A Construção. Em seu interior, tudo parece estar inundado por sombras, como os cantos do
santuário descrito no livro pré-apocalíptico de Ezequiel e, diante dessa percepção, aludimos às linhas
traçadas por esses pontos pulsantes que vão pincelando sobre a pele do personagem o choque com
a luz e suas reações internas. Mas, ao mesmo tempo, essas reações são clarificadas em planos suaves e
lentos do drama infernal daquele que parece ter provado o fel de todo o tipo de expiação.
Todo inferno é subterrâneo, como todo personagem que se movimenta por este lugar e vive
agonizado por culpas, medos, solidão e, por fim, assiste à própria segregação corporal. O personagem
de A Construção traça linhas imaginárias diversas. Os estados da alma dão a entender que seu trajeto
é passar por muitos locais fantasticamente subterrâneos; semelhantes aos caminhos percorridos pelo
personagem Josef K. do romance O Processo.
Ao adentrarmos em A Construção, logo em apenas alguns passos, percebemos as semelhanças
com o personagem Josef K. Tal semelhança é inscrita nas passagens em que o personagem é considera-
do culpado. Entendemos que o personagem de A Construção continua o drama de Josef K. não apenas
por serem criações do mesmo autor, mas pelo jogo de semelhanças entre os dois locais: o buraco e a
pedreira, quando Josef K. é exterminado nesse último, e é daí que parece surgir o animal de A Constru-
ção.

Imagens de Kafka: Olhares para a construção

Figura 1: Imagem do filme O Processo, de Oson Welles, 1962.

O olhar registra analogias entre imagens. Concebamos que o personagem de A Construção


apenas sugere, pois sua ação e conflitos são internos. Seu corpo traz marcas do mundo exterior, e pre-
enche seus músculos de parábolas e alegorias. A brutalidade violenta contorna seus atos em A Constru-
ção, principalmente quando está diante do comportamento do inimigo oculto. Isso provoca o conflito
e, por outro lado, gera defesas que são enclausuradas no próprio corpo. À primeira vista, essa apropria-
ção nos leva a acreditar que estamos diante de um ritual exorcista, ou dentro de imagens que indiquem

278 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


atos de sacrifício. Se realmente o objeto dos rituais de sacrifício é controlar a violência para que a socie-
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA dade civilizada não seja ferida por atos macabros e aterrorizadores, Kafka parece conhecer muito bem
essas denominações ao construir o personagem de A Construção. Entretanto, nota-se que o inimigo
oculto, tão presente em suas ficções anteriores e personagens que se afundam em situações sem saída,
continuam a viver no corpo do bicho-narrador. Os mesmos são quase sempre sacrificados por figuras
ocultas, antropomorfizadas em instituições e empresas disseminadoras do terror e do controle. Nisso, o
romance O Processo e a novela A Construção se encontram. Vejamos.
O personagem é sempre um desejo íntimo do autor, criado para que esse possa comunicar ao
mundo suas alegrias, tristezas e angústias. Em A Construção, o personagem é recorrente daquela forma
já iniciada em A Metamorfose. Tanto na primeira como na segunda, a vontade de dizer algo está mime-
tizada em figuras que são violentamente anuladas por gigantescas estruturas. Ou seja, o desejo adquire
forma animalesca para colorir e configurar os objetos gestados no interior de sua alma.
O meio em que vive o escritor é o local de criação da obra, isto é, esse meio funciona, talvez,
como um objeto de excitação da imaginação do leitor. Ou ainda, o autor pode desejar comprimir e
mimetizar o comportamento de outros animais e de grupos diferentes que passam despercebidos da
atenção das pessoas com quem vive, e nesse ambiente projeta seus medos, defesas ou propriamente
desejos de agressão. Lembremos que, no mundo animal, o outro quase sempre representa o perigo,
pois este é uma vontade a ser degustada e um obstáculo a ser transposto. O perigo é verdadeiramente
um objeto de prazer.

Figura 2: Imagem do vídeo arte A CONSTRUÇÃO de Acir Dias, 1999.



Nessa novela, o perigo é sonoro, pois o animal-zumbidor remexe o centro da terra ameaçando
invadir a casa do animal de A Construção que, por sua vez, também é perigosa. Entretanto, o peri-
go também é espacial e obstáculos precisam ser vencidos. Então, estamos diante de um triângulo: O
animal-narrador, A Construção e o animal-zumbidor. Ou seja, atuam como motivadores da história que

Imagens de Kafka: Olhares para a construção 279


é contada, talvez por ocultar o motivo da rivalidade. Essa aparente tensão sugere considerações sobre
o conflito do autor com seu pai, mas não é exatamente esse o fio condutor da história.
O átomo dessa história é justamente o período pós-sacrifício, tão visionado por Kafka nos
finais de A Metamorfose, O Veredito e O Processo.
A Construção é o cenário, ou melhor, o calvário em que Josef K foi jogado para amargar o resto
dos seus dias, como num rito sacrificial. Primeiramente este jogo é centrado em lugares semelhantes e
sincrônicos. Relembrando, ao final do romance O Processo, a vítima é conduzida a uma pequena pedrei-
ra abandonada, local que já era, desde o início, o objetivo dos sacrificadores que pareciam ter recebido
tarefas de uma instituição ou empresa superior. Ali, eles tiraram uma faca comprida, de açougueiro, fina
e bem afiada dos dois lados, tal como uma espada da justiça, pronta para marcar a divisão entre a vida
e a morte. E sobre o corpo de K, os sacrificadores sustem-na ao alto, examinando o cume na luz. Ainda
lembrando, um dos últimos olhares do personagem Josef K é sobre o último andar da casa, situada no
limite da pedreira.

Mas na garganta de K, colocavam-se as mãos de um dos senhores, enquanto o outro


cravava a faca profundamente no seu coração e a virava duas vezes. Com os olhos que se
apagavam, K. ainda viu os senhores perto de seu rosto, apoiados um no outro, as faces
coladas, observando o momento da decisão. — Como um cão - disse K. Era como se a
vergonha devesse sobreviver a ela. (KAFKA, 1997, p. 224).

Toda obra de arte é rica em ambiguidades e abre possibilidades de interpretações e associa-


ções. E, tanto em O Processo quanto em A Construção, a lógica da violência se compraz formalmente
em rigores que se escondem vivamente em imagens e representações. Em O Processo o personagem
dramatiza a morte e o desfecho trágico. A vítima morreu. O sangue derramado de Josef K. nada mais é
do que uma bela sugestão de vida, libertação e revigoramento daqueles que conduziram esse ritual.
Por outro lado, também representa o fortalecimento da vítima. Isso denota o fortalecimento imaginati-

Imagens de Kafka: Olhares para a construção


vo do autor que se lança em novos aprofundamentos criativos e, consequentemente, marcará a pele e o
espírito de seus futuros personagens. Então, digamos que Josef K. ainda estaria se revirando no interior
da terra pedregosa, tentando se reerguer, talvez sobreviver no submerso imaginário do autor. Portanto,
Josef K., agora já totalmente maduro em A Construção “como um cão”, apenas revê pedaços, sedimen-
tados do corpo e do espírito; aquilo que já está totalmente mutilado e irreconhecível. É por isso que lá
dentro da construção o vento está em movimentos lentos, rarefeitos em remoinhos. O movimento que
descende em direção ao chão nos leva a crer na queda. O personagem, então, sobre a ruína sombria e o
corpo despedaçado, espalhado pelos corredores e labirintos, tenta recompor seus pedaços e, para isso,
precisa rememorar o seu passado, assimilar o espaço e ao mesmo tempo cuidá-lo para depois ressurgir
noutro formato, pois abandonar hábitos antigos, superficialmente falando, traz resistências, até mesmo
quando é cuidadosamente planejado.
Por exemplo, mudar para uma casa nova - tão desejada é transpor-se na tristeza do abandono
e da despedida. Abandonar hábitos é também abandonar espaços e costumes que na casa persistem,
pois a vontade desenha no corpo ausências desse espaço. A morte é a dor da separação de coisas cultu-
ralmente construídas para satisfazerem as necessidades humanas. Objetos, bichos e plantas; abandoná-
los é perdê-los para sempre, mas essas referências continuam arraigadas no interior da pele do corpo

280 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


natural e animal. Entretanto, separar-se de antigas formas, significa desbloquear referências e identifica-
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA ções com o próprio corpo - conflito entre a natureza primordial e instintual. Para tanto, nesse contexto, a
morte é apenas figurativa, pois o personagem está apenas escalando em passos violentos suas próprias
aversões, tão semelhantes ao sacrifício, por isso conscientemente se deixa impulsionar em reconhecer
a sua própria natureza.


Figura 3: Imagem de Giovanni Battista Piranesi (1720-78)

O período passado pelo bicho-narrador dentro d’A Construção é, especificamente, de cons-


tantes cortes e rupturas, desfalcando assim reações pela perda das proteções. Em seu tempo interno,
não há estabilidade. Os seus membros corporais funcionam como extensões da construção, convenien-
temente, suas resistências também são corporais. Sua alma está submersa em remoinhos ciclônicos,
traçando assim riscos de uma tela espessa em que os profundos estados de sua instabilidade contor-
nam os turbilhões vitais que vão se revelando no espaço e projetando a perspectiva do caos humano
em que o mundo parece se desfazer de volumes e formas. É por isso que percebe as pequenas coisas,
como os grãos de terra que rolam das paredes, ou, então, projeta sua vontade em pequenos animais
que desfilam no interior de sua casa. É o mundo reduzido numa pequena partícula e desejo de se tornar
pequeno. O personagem-narrador trabalha compulsivamente e admira, maravilhando-se com a criação
de seu juízo lógico e racional. O trabalho é subterrâneo, exploratório, parece ser um modelo clarifica-
do da revelação de segredos que estão escondidos, tal qual um grande tesouro que está embaixo de
sua pele. Identificar o espaço habitado, entretanto, é tocar o próprio corpo e seus membros. Sua ação
interior, visão interna, são espécies de mapeamentos dos próprios ossos e as sensações captadas pelo
corpo. Parece ter sido convocado para entrar no mundo escuro e sinistro do inconsciente.

Imagens de Kafka: Olhares para a construção 281


Ele me disse: “Filho do homem, ergue os teus olhos na direção do norte.” Ergui os olhos
na direção do norte e eis que para o norte do pórtico do altar estava o ídolo do ciúme,
junto à entrada. Disse-me ainda: “Filho do homem, tu vês o que estão fazendo? As mons-
truosas abominações que se cometem aqui a fim de afastar-me do meu santuário? Mas
verás ainda outras abominações monstruosas” Trouxe-me então à porta do átrio. Olhan-
do vi um buraco na parede. Ele me disse: “Filho do homem, abre uma fenda na parede.”
Abri uma fenda e vi ali uma porta. Disse-me: “Entra e verás as abominações que praticam
aqui.” Entrei e fixei o olho: havia ali toda a sorte de imagens de répteis, de animais repug-
nantes e todos os ídolos imundos da casa de Israel gravados na parede ao redor... (BIBLIA
SAGRADA DE JERUSALÉM. 1989, p. 161).

O personagem-narrador entra no próprio corpo. A porta de entrada é a visão. Os cômodos,


corredores e labirintos são o mesmo que os membros do corpo. É, estamos apontando uma conexão da
construção como espaço interno e corporal. No personagem de A Construção, entende-se que é o cor-
po nu, literalmente desnudado, diante de situações extremamente perigosas, pois isso o leva a enxergar
até mesmo os próprios ossos para depois passear por eles.
Figurativamente, o personagem está quase sempre diante de preocupações temporais, por
exemplo acumular provisões nos corredores e labirintos é o mesmo que se proteger contra o mundo
desfeito. É a decadência das possibilidades de salvação que o faz abandonar qualquer tipo de regene-
ração. Por outro lado, tal fato o conduz a violentos atos compulsivos, pois ao devorar a carnificina fétida
espalhada pelos cômodos, mostram-nos algumas marcas doloridas de sua própria destruição. Entretan-
to, destruir-se é refazer-se sadicamente na impureza da comida podre.
O autor está dentro da imagem. No corpo do personagem. O personagem é um pedaço de sua
estrutura de pensamento interligado à sua existência e desejo quase totêmico, contraídos em sua forma
interna, pois isso ocorre somente a partir de grande envolvimento com aquilo que se pretende incor-
porar. Algo vivo, tal como um deleite dentro da própria imagem, que rompe as barreiras e significações
formais de interpretação e projeções literais do que é realmente a obra de arte. O personagem é aquela
parte absoluta da realidade condensada em palavras, frases e histórias. O autor está dentro dela e agita-

Imagens de Kafka: Olhares para a construção


se em seu interior, mas esses conteúdos nem sempre são postos em movimento, talvez por estar fora de
seu próprio alcance. O autor, ao travestir-se de personagem, também traveste-se em discurso.

Um autor somente pode reviver os pensamentos e não as palavras que expressam numa
personagem que tenha pelo menos a sua educação, a sua idade, sua experiência histó-
rica e cultural: por outras palavras, que pertença ao seu mundo. Mas revela-se então um
fato terrível: que essa personagem se encontra unida ao autor pela razão substancial de
pertencer aos mesmos quadros ideológicos desse último. (PASOLINI, 1972, p. 70).


O monólogo interior celebra o aprofundamento de seu olhar sobre o mundo, pessoas e coisas.
A história é contada com intensidade pulsante a partir do personagem-autor-narrador. A figura do nar-
rador e personagem entrecruza-se em simulações e peripécias. Esse olhar preciso que flagra detalhes
do personagem em momentos de síntese, também nos traz recortes da história narrada, repleta de
significações e de entendimento, informando-nos sobre a condição psicológica do personagem e so-
bre aquilo que é contado. Por outro lado, o discurso indireto livre é a fusão que ocorre graças a certos
distanciamentos e proximidades que se dão no momento em que algo é contado. Ao mesmo tempo o
autor se coloca na pele do personagem e no comportamento daquele que está vivendo a trama e os

282 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


conflitos contados. É claro que ao seguir a trama contada pelo personagem, enxergamos e acompanha-
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA mos aquilo que a visão do autor captou. Nisso, também são apresentados traços condensados de seu
tempo e espaço. Tais condensações se materializam em imagens escritas em movimentos capazes de
nos mostrarem indícios, lacunas e possibilidades de interpretação, em relação ao personagem que é
construído e sua ação frente ao desenrolar dos acontecimentos.
O discurso indireto livre mostra o personagem se desenvolvendo em trechos descritos e nar-
rados. Aos poucos, esses trechos, cenas do passado e do presente, e as aspirações futuras, definem
sua vida. A impressão que temos foi anteriormente captada pelo olhar do autor, que nos comunica e
fornece elementos de sua vida, crenças e pessoas que fazem parte de sua realidade; de certa forma esse
recurso traduz dificuldades em atribuir significados às coisas que movimentam o centro da história.
Repousa na ambiguidade, recheando o personagem de palavras e emoções. E, dessa tensão, nasce um
personagem denso e complexo, afogado na procura da própria origem da representação das imagens
que lhe são mostradas. Se essa é uma forma de junção personagem-autor, também é uma forma de
expressão que torna a obra viva, tira-nos da passividade enquanto leitores. A incerteza está no meio do
discurso e nas falas dos personagens, como também nos comentários daquele que está contando a his-
tória. Certamente a intenção do autor é essa, puxar alguns detalhes de sua própria memória e colocar
os personagens movimentando-se em meio às ruínas do mundo, com isso, imprime sua visão sobre as
coisas e a realidade presente.
As imagens são condensadas e flagradas pelo olho do autor, nisso encontramos quadros em
movimento de seu mundo, com o autor emitindo opiniões, pareceres e julgamentos sobre instituições,
pessoas e suas relações. O personagem é imagem. Por outro lado, também é uma fonte composta de
mentiras no qual o autor bebe constantemente; aquilo que chamamos de realidade das pessoas, pois
sua ação é reunir-se em corpos que se movimentam em espaços diversos. O autor vive quase sempre
como um caçador que deseja devorar o corpo e o sangue daquele que é caçado, pois, ao fecundar-se
na deglutição, deleita-se no prazer da posse e domínio da criatura.
Em A Construção encontramos traços e crenças que nos dão a chance de entendimento da
vida do autor. Aliás, notamos nos rastros do personagem indícios reveladores não só da história do au-
tor, mas também fragmentos da história coletiva dos homens. Autor e obra se completam. A memória
do autor se desdobra em traços do personagem, isto é, o tratamento dado ao personagem, temas e
histórias, não são fotografias de momentos vividos, mas sim formas evasivas que impulsionam a imagi-
nação a considerar localidades e personagens e os horrores da história arruinada dos homens. O nosso
olhar não vagueia pelos escombros da história, mas pela vontade enclausurada no corpo, o corpo da
pessoa - personagem - enfim, o desejo em forma de animal.
Como já sabemos, os personagens de Franz Kafka quase sempre estão em alguma espécie de
julgamento dentro de um grande tribunal, em que os poderes instituídos não hesitam em mostrar sua
força e crueldade. Ninguém é absolvido, o mais simples de todos revela-se como culpado em potencial.
A dilaceração do mundo dos homens e degradação encontra-se em A Construção. O universo está con-
denado à ruína perpétua. Podemos notar isso em um trecho de uma correspondência ao amigo editor
Max Brod:

Imagens de Kafka: Olhares para a construção 283


Quando escrevemos alguma coisa, não tossimos à lua, cujas origens então devem ser
investigadas. Ao contrário, nós nos mudamos para a lua com tudo que possuímos. Nada
mudou; lá, somos o que éramos aqui, é possível que haja milhares de diferenças no tem-
po da viagem, mas nenhuma no fato em si mesmo. A terra, que sacudiu a lua, desde
então a mantém segura com mais firmeza, mas nós nos perdemos por causa de um lar
na lua. (KAFKA, s/d, p. 49).

O futuro e Deus estão mortos. Kafka entra no clamor degradado de Deus que olha para o ab-
soluto vazio. Em seu diário, no final de março de 1918, novamente uma correspondência ao amigo Max
Brod tenta radiografar seu pessimismo e visão negativa do mundo. Nesse trecho da carta, entre outras
coisas, polemiza com o cristão Kierkegaard sobre o futuro e sobre o cristianismo.

A passagem seguinte não é do Talmud: ‘Tão logo um homem surja com algo de primitivo
em si mesmo, que não diga: É preciso aceitar o mundo como ele é, mas que diga: como
quer que o mundo seja, permanecerei com a minha natureza original, que não penso
em mudar para me adequar ao que o mundo considera bom. No entanto em que essa
palavra for pronunciada, uma metamorfose se realiza em toda existência. Como quando
a palavra é dita num conto de fadas e o palácio que esteve encantado durante cem anos
abre seus portões e tudo volta à vida: a existência tida se transforma em atenção pura.
Os anjos têm trabalhado para realizar e olham curiosamente para ver o que vai aconte-
cer, pois isso lhes interessam. Por outro lado, demônios escuros e sinistros há muitos na
ociosidade, roendo os dedos, saltam e esticam os membros; pois, dizem eles, aqui há
alguma coisa para nós pela qual há muito estamos esperando, etc. (KAFKA, s/d, p. 48).

Ou seja, seus escritos passam por universos dissolutos e bem distantes parecem sobrevoar
a terra tensa, enxergando o caos, transitando profundamente em impérios, sagas e fábulas, talvez de
maneira tão profunda e distante que não podemos alcançar, e, nisso, profetiza sobre o túmulo da espe-
rança.
Em A Construção, Kafka faz o contrário daquilo que os gregos costumavam fazer nas festas de
Dionísio. Recordemos uma pequena passagem desse ritual. Os gregos mesmo travestidos com a pele

Imagens de Kafka: Olhares para a construção


e a cabeça de animal não dramatizam suas condições existenciais. O drama parece ser o do animal sa-
grado a ser sacrificado. No contexto dos gregos antigos, esse ato faz lembrar o culto àquele estrangeiro
de Traça que costumava cultuar a colheita através da embriaguês. Na Grécia antiga isso virou ritual: é a
festa campestre no qual os iniciados caçavam um animal para oferecer à sua deidade. Isso ganha excita-
ção espiritual pelo vinho, música e dança, pois os adeptos da orgia mística, os iniciados disfarçavam-se
com pele e chifres de animais selvagens, no furor e no ataque ao animal sagrado, matavam e descon-
juntavam-no para, em seguida, devorar-lhes as partes em pleno estado de comunhão divina. Esses ritos
recebem conotações quase bárbaras, pois, após a realização de cantos e danças, corridas selvagens,
sacrifício de animais, e uso de seus restos para festas, esses ritos acabaram gerando medo e estranheza
nos moradores das cidades e, assim, ficaram durante muito tempo restrito ao campo.
Já em Kafka, os personagens parecem não suportar o estrondoso desejo destrutivo que emana
do interior das instituições. Eles se rendem, entregando-se ao sacrifício. Também é o sacrifício do autor.
“A perspectiva dos personagens cujos contornos tento captar ali encontra-se na frente do papel, na
outra extremidade do lápis, a que não está apontada; ela se encontra em mim” (JANOUCH, 1993, p. 40).
Por outro lado, não têm verdadeiras proporções espaciais, não têm horizontes que lhes sejam
próprios em sua natureza mais íntima. A perspectiva dos personagens são contornos do movimento

284 INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA


nervoso do corpo e o que parece se apresentar em instantes efêmeros rumo ao abismo.
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA [...] apesar de inimaginável, que dispunha de algumas informações sobre mim, mas de
resto ele nunca me escutou. Enquanto eu não tinha conhecimento dele, ele não seria
capaz de me ouvir, pois o meu comportamento então era silencioso: não há nada mais
quieto do que o reencontro com a construção; depois, quando fiz as escavações experi-
mentais, ele poderia ter-me escutado, embora minha maneira de cavar produza pouco
rumor; se ele, porém me ouviu, ele deveria ter notado alguma coisa - o animal precisaria,
pelo menos enquanto trabalhava, parar de vez em quando e prestar atenção. Mas tudo
continuou inalterado. (KAFKA, 1994, p. 105)

Na passagem final de A Construção o inimigo parece distante, ao ponto de o narrador questio-


nar-se as dimensões do tempo, da velhice, dos nervos fracos e da impossibilidade de qualquer mudan-
ça de sua condição. A Construção de Franz Kafka é uma alegoria da esperança? Se for, essa imagem não
tem origem e é oculta e inalcançável a condição humana.

Imagens de Kafka: Olhares para a construção 285


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