Livro Literatura e Multiplos Olhares PDF
Livro Literatura e Multiplos Olhares PDF
Volume II
INTERPRETAÇÃO E MÚLTIPLOS OLHARES
Editora PUC-GO
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
Biblioteca Central do Campus de Cascavel – Unioeste
Ficha catalográfica elaborada por Jeanine da Silva Barros CRB-9/1362
C759
Coleção confluências da Literatura e outras áreas. Vol. II
interpretação e múltiplos olhares / Organização de Acir Dias da Silva,
Lourdes Kaminski Alves, Éris Antônio Oliveira, Maria de Fátima Gonçalves
Lima. - Cascavel, PR: UNIOESTE ; Goiânia, GO: Editora PUC Goiás, 2012.
380 p.
ISBN 978-85-7103-666-6
Vários autores.
1. Ficção. 2. Literatura – História. 3. Memória. II. Título.
CDD 21ed. 809.01
CIP – NBR 12899
S U M Á R I O
APRESENTAÇÃO
PARTE I
INTERPRETAÇAO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA
CAPÍTULO 1
A OSCILAÇÃO DAS MARCAS NO JOGO DA FESTA UMA LEITURA DA CATEQUESE
Evelina HOISEL
CAPÍTULO 2
ESCRITURA E CRIAÇÃO: MARCAS DO REAL
Lourdes Kaminski ALVES
CAPÍTULO 3
O REAL E O FICCIONAL EM A CASCA DA SERPENTE E GUERRA NO CORAÇÃO DO
CERRADO
Maria Luíza Ferreira Laboissière de CARVALHO
Maria José Modesto SILVA
CAPÍTULO 4
LEITORES SEM FACE E HISTÓRIAS QUE NÃO EXISTEM: AS FOTONOVELAS E A PRODUÇÃO
CULTURAL
André Luiz JOANILHO
Mariângela Peccioli Galli JOANILHO
PARTE II
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGOS E INTERPRETAÇÃO DA
PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
CAPÍTULO 5
MACHADO DE ASSIS: UM MESTRE DA ESCRITA DO EU NA LITERATURA
Maria Aparecida RODRIGUES
CAPÍTULO 6
PARA LER GUIMARÃES ROSA: O VELHO PATRIARCA E A NOVA SINHAZINHA
Rita Felix FORTES
CAPÍTULO 7
AS ARTES DO HUMOR NAS TRAMAS DA HISTÓRIA
Maria de Fátima Gonçalves LIMA
CAPÍTULO 8
O (RE)DESCOBRIMENTO DA AMÉRICA PELA FICÇÃO: COLOMBO NA NARRATIVA DE AUTORIA
FEMININA NOVOS OLHARES SOBRE O PASSADO DA AMÉRICA
Gilmei Francisco FLECK
CAPÍTULO 9
REGIONALISMO LITERÁRIO: HETEROGENEIDADE E HISTÓRIA
Albertina Vicentini
CAPÍTULO 10
CICATRIZES NA MEMÓRIA:A MORTE NA OBRA DE BARTOLOMEU CAMPOS DE QUEIRÓS
Clarice LOTTERMANN
PARTE III
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO MAGINÁRIO
CAPÍTULO 11
IMAGENS POÉTICAS E LIRISMO EM LÍLIA A. PEREIRA DA SILVA
Antonio Donizeti da Cruz
CAPÍTULO 12
ALGUNS ASPECTOS DA RELAÇÃO EROS/TÂNATOS EM POEMASDE EDGAR ALLAN POE E DE
ALPHONSUS DE GUIMARAENS
José Carlos AISSA
CAPÍTULO 13
MEMÓRIAS DE LÁZARO, DE ADONIAS FILHO: UMA ESCRITA ROMANESCA DE DEVANEIOS
LÍRICOS
Divino José PINTO
CAPÍTULO 14
PLASTICIDADE E EMBRIAGUEZ DIONISÍACA EM SARGENTO GETÚLIO
Éris Antônio OLIVEIRA
PARTE IV
INTERPRETAÇÃO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES,
REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS
CAPÍTULO 15
UMA ANÁLISE DA PRESENÇA DO OUTRO EM OBRAS DE CLARICE LISPECTOR, TRADUZIDAS
PARA O INGLÊS
Diva Cardoso de CAMARGO
CAPÍTULO 16
A SAUDÁVEL MALUQUICE DE UM MENINO FELIZ
Maria Teresinha Martins do NASCIMENTO
CAPÍTULO 17
A HEROÍNA FRÁGIL E PERSEGUIDA DO GÓTICO ÀS NARRATIVAS BRASILEIRAS
Maurício Cesar MENON
CAPÍTULO 18
METATEATRO E TEATRALIDADE
Sonia Aparecida Vido PASCOLATI
PARTE V
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA
CAPÍTULO 19
O BARROCO NA MIRA DAS VANGUARDAS LATINO-AMERICANAS
Marta DANTAS
CAPÍTULO 20
PARA ALÉM DAS QUESTÕES DE TEMPO E ESPAÇO NO CINEMA. UMA LEITURA DE
DOGVILLE, DE LARS VON TRIERS
Julie FANK
José Carlos da COSTA
CAPÍTULO 21
IMAGENS DE KAFKA: OLHARES PARA A CONSTRUÇÃO
Acir Dias da SILVA
A P R E S E N T A Ç Ã O
ANDRÉ LUIZ JOANILHO –UEL- André Luiz Joanilho fez a graduação e mestrado em historia
na UNICAMP. Concluiu o doutorado em História Social pela UNESP-Assis, em 1997 e, em 2002.
Fez estágio pós-doutoral na Université Lumière 2 - França. Atualmente é Professor associado
da Universidade Estadual de Londrina. Publicou 13 artigos em periódicos especializados e 42
trabalhos em anais de eventos. Possui 7 capítulos de livros, 9 livros publicados e é co-autor
em duas coleções de livros didáticos para ensino fundamental. Participou de 14 eventos
no exterior e 32 no Brasil. Orientou 4 dissertações de mestrado e co-orientou uma tese
de doutorado, além de ter orientado 14 trabalhos de iniciação científica e 4 trabalhos de
conclusão de curso nas áreas de História e Lingüística. Recebeu 1 prêmio e/ou homenagem.
Atualmente coordena 1 projeto de pesquisa. Atua na área de História, com ênfase em Teoria
e Filosofia da História e História Cultural. Em seu currículo Lattes os termos mais freqüentes
: Teoria da História, Representações, História Cultural, História do Brasil, Anarquismo e
Movimento operário. Concluiu estágio pós-doutoral na Ecole des Hautes Etudes en Sciences
Sociales em 2007.
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA 15
ANTONIO DONIZETI DA CRUZ – UNIOESTE - Professor Associado da Universidade Estadual
do Oeste do Paraná. Possui Pós-Doutorado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (2008), no Programa de Pós-graduação em Letras, área de Estudos da Literatura, sob
orientação do Prof. Dr. Gilberto Mendonça Teles. Doutorado em Literatura Brasileira pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2001). Mestrado em Teoria da Literatura pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1993). Especialização em Literatura
Brasileira e Lingüística, pela Universidade Federal do Paraná. Possui graduação em Letras
Português Inglês pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Palmas (1985). Ministra aulas
de Teoria da Literatura na graduação em Letras - Campus de Marechal Cândido Rondon e de
Lírica e Sociedade, e Literatura comparada no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
Letras - Área de concentração em Linguagem e Sociedade, na Unioeste, campus de Cascavel.
Atualmente integra os Conselhos Editoriais das Revistas: LL Lengua y Literatura CUNY, The
Graduate Center, New York; Línguas & Letras (Unioeste); Revista Trama (Cascavel); Anais
da Jornada de Estudos Lingüísticos e Literários; Literatura, História e Memória. Membro
efetivo da ABRALIC, Membro efetivo do GT- Teoria do texto poético (ANPOLL) e Membro
efetivo da IASA - International American Studies Association. Integra a equipe de Editores do
LLjounal LL Lengua y Literatura (CUNY - New York). Faz parte do Comitê Editorial da Revista
Textopoético (GT- Teoria do Texto Poético - ANPOLL). Tem experiência na área de Letras, com
ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: linguagem,
poesia, imaginário, modernidade, memória, cultura e sociedade.
DIVINO JOSÉ PINTO – PUC/GO - Possui graduação em Letras pela Faculdade Cora Coralina
(1984), mestrado em Letras e Lingüística pela Universidade Federal de Goiás (1990) e doutorado
em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2005). Atualmente é
professor assistente I da Universidade Católica de Goiás, estatuário - Secretaria Estadual de
JOSÉ CARLOS AISSA – UNIOESTE - Possui graduação em Letras pelo Centro Universitário
Fundação Santo André (1983), mestrado em Comparative Literature - Pennsylvania State
University (1986) e doutorado em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (2006). Atualmente é professor adjunto da Universidade Estadual do Oeste
do Paraná (Cascavel). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Língua Inglesa e
respectivas literaturas, atuando principalmente nos seguintes temas: litaraturas de língua
inglesa, estudos literários comparativos e tradução, ensino de língua inglesa e formação de
professores.
JULIE FANK – UNIOESTE - Possui graduação em Letras pela Universidade Estadual do Oeste
do Paraná - UNIOESTE -(2009) e é aluna regular do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu
em Letras da UNIOESTE (2011-2013). É bolsista Demanda Social CAPES e integrante do Grupo
de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura. Atua, principalmente,
nos seguintes temas: Literatura Comparada, Crítica Literária, Literatura Latinoamericana,
Cinema e Literatura, Gêneros Híbridos no contexto da contemporaneidade, Escritura,
Processo Criativo. Tem experiência na docência e atua também nas áreas de Comunicação
Empresarial e Comunicação Social.
MAURÍCIO CESAR MENON - UTFPR – CAMPO MOURÃO - Possui graduação em Letras pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (1989) , especialização em Literatura Brasileira
pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (1999) , mestrado em Letras pela Universidade
Estadual de Londrina (2002) e doutorado em Letras pela Universidade Estadual de Londrina
(2007) . Atualmente é professor da Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Tem
experiência na área de Letras , com ênfase em Literatura Brasileira. Atuando principalmente
nos seguintes temas: gêneros, gotico, história, imagem, medo e representação.
MARTA DANTAS DA SILVA – UEL - Possui graduação em História pela Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho (1990), mestrado em História Assis pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1997) e doutorado em Sociologia pela Universidade
Estadual Paulista Julio de Mesquita Fº Université de Lausanne (2002). Professora adjunto c do
Departamento de Arte Visual e do Programa de Pos-Graduaçao em Letras da Universidade
Estadual de Londrina. Tem experiência na área de Artes, com ênfase em História e Teorias da
Arte, atuando principalmente nos seguintes temas: surrealismo, literatura/arte e loucura, arte
bruta.
RITA FELIX FORTE – UNIOESTE - Possui graduação em Letras Português Inglês Português
Francês pela Universidade Federal de Viçosa (1986), mestrado em Letras, Área de Concentração
Literatura Brasileira, pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992), doutorado em
Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2001) e pós-doutorado em Literatura
Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2007) . Atualmente, é professora
associado A na Universidade Estadual do Oeste do Paraná e no Mestrado em Letras da
Unioeste. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando
principalmente, nos seguintes temas: espaço, tempo, decadência, patriarcalismo e infância
e em literatura Comparada. No doutorado desenvolvou pesquisa sobre a relação tempo,
espaço e decadência nos romances Angústira, de Graciliano Ramos, Fogo morto, de José Lins
do Rego, Crônica da casa assassinada, de Lúcio Cardoso e O som e a fúria, de Willian Faulkner
e no pós-doutorado desenvolveu estudo comparativo entre Guimarães Rosa, Jorge L. Borges,
Edgard Allan Poe, J. Barbey D Aurevilly e Rober Musil.
SONIA APARECIDA VIDO PASCOLATI - UEL - Possui graduação em Letras (1994), graduação
em Pedagogia (1997), mestrado em Letras - Estudos Literários (1999) e doutorado em Estudos
Literários (2005), todos pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Campus
de Araraquara. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Estadual de Londrina. Tem
experiência na área de Letras, atuando principalmente nos seguintes temas: teoria do drama;
estudos de dramaturgia nacional e estrangeira; literatura brasileira; estudos comparados, em
particular as relações entre literatura dramática e outras linguagens como teatro e cinema.
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA
PARTE I
CAPÍTULO 1
Essa leitura procura desvelar um dos mecanismos através dos quais se tentou operar o
recalcamento dos valores da cultura indígena pelos valores da cultura européia. É uma leitura
desconstrutora da cultura “brasileira”, na medida em que tenta dar voz ao inconsciente de determinados
textos, fazendo falar o que neles se procura silenciar na camada manifesta.
Se estes discursos pretendem fazer falar os valores da cultura européia - do “mesmo” - numa
tentativa de recalcar, conscientemente, os valores da cultura indígena - do “outro” - o que se observa é
que, no inconsciente desses textos, existe a voz do “outro” que oferece resistência e deixa seus traços
naquilo que pretende apagá-los. É a apreensão das marcas que tecem esse conflito de forças que
autoriza a promover a desconstrução do que foi sempre visto a partir de uma visão etnocêntrica.
Dentre os mecanismos usados para abolir as diferenças culturais pelo processo de conversão
do “outro” ao “mesmo”, existe aquele que aqui se chama de festa. A festa é o lugar da representação
mimética, momento em que se pode semear a “palavra de Deus”, e a conversão se operar, porque o
“outro” veste a máscara do “mesmo” e, através desse revestimento de máscara, a ele se incorpora.
A festa tem diversas manifestações. Formal e ritualisticamente, é constituída pelo teatro, pela
missa, pelo batismo, pelo casamento, pela confissão e comunhão, pela procissão. A festa é elemento de
sedução. A música e a dança seduzem. O “outro” se deixa seduzir. Vestir a fantasia e ser simultaneamente
o “mesmo” e o “outro” enquanto ator.
O objetivo da festa é “irmanizar” dois territórios através da “fé”. Em consequência, é ainda
uma maneira de conquistar o “outro” para o trabalho. De possuir o corpo. De sujeitá-lo. De escravizá-lo
1
Este texto foi publicado originalmente em Cadernos de Opinião. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 90-99. Por tratar de um tema relacionado às
questões da nossa formação colonial, consideramos oportuna a sua republicação na presente coleção.
Esta é uma das maiores dificuldades que tem aqui a conversão. Há-se de estar sempre
ensinando o que já está aprendido, e há-se de estar plantando o que já está nascido, sob
pena de perder o trabalho e mais o fruto. (VIEIRA, 1975, p.133)
Mande Vossa Alteza muitos da Companhia, que sustentem este pouco que está
ganhando, para que nós possamos ir buscar tesouros d’almas para o Nosso Senhor, e
descobrir proveito para este Reino e Rei que tão bem sabe gastar em serviço do Rei dos
Reis, e senhor dos Senhores. (NÓBREGA, 1931)
O trabalho de catequese teve, pelo menos, uma dupla finalidade: salvação das almas pela
aceitação da “fé cristã” e a incorporação do índio ao trabalho da colonização. À missão dos jesuítas
Mas não será esta somente a sexta vez, em que eu e vós experimentamos o pouco
fruto com que esta terra responde ao que se deverá esperar de tão continuada cultura.
(VIEIRA, 1975, p.125)
/.../ porque a gente destas terras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a
mais avessa, a mais trabalhosa de quantas há no mundo. (VIEIRA, 1975, p.130)
E esta deve ser a razão porque alguns Padres que do reino vieram, os vejo resfriados,
porque vinham cuidando de converter a todo o Brasil em uma hora, e vêem-se que
não podem converter um, em um ano, por sua rudeza e bestialidade. (NÓBREGA, 1958,
p.177)
Tal é a fé dos brasis; é fé que parece incredulidade e é incredulidade que parece fé; é fé,
porque crêem sem dúvida e confessam sem repugnância tudo que lhes ensinam; e parece
incredulidade, porque com a mesma facilidade com que aprenderam desaprendem, e
com a mesma facilidade com que creram, descrêem. (VIEIRA, 1975, p.132)
A resistência que os “brasis” oferecem a uma receptividade duradoura das marcas promove a
criação de diversos mecanismos de controle pelos quais se procura uma certa garantia no resultado
da implantação da semente. Esta garantia vai depender, num dado momento, do modo pelo qual o
trabalho dos jesuítas for desempenhado. Da constância e da continuidade na tarefa da semeadura
poderá resultar a possibilidade de frutificação da “verdade” e da “fé”, porque o “outro” parece sempre
disponível à receptividade de novas marcas, ainda que não as retenha, o que desorganiza o sistema de
expectativa do “mesmo” e faz com que se estabeleça um novo modelo de ação, que difere da experiência
dos jesuítas no trabalho de conversão de outros povos. Este modelo de ação se baseia na assistência
que deverá ser dispensada ao gentio.
A diferença entre os “brasis” que impõem um modelo de ação particular e outras nações
cristianizadas e colonizadas se expressa no “Sermão do Espírito Santo” pelas metáforas da estátua de
mármore e estátua de murta. A estátua de mármore é aquela que oferece maior dificuldade para se
esculpir, devido à resistência do material com que se trabalha. Contudo, as marcas que nela se imprimem
são permanentes e para conservá-las não é necessário nenhuma forma de assistência. Mesmo na
ausência do escultor, ela significa: fala sozinha, longe da presença paterna.
A estátua de murta, ao contrário, apresenta menor dificuldade para se esculpir, uma vez que
assume sem resistência a forma que nela se pretende configurar. Mas, para que esta forma se preserve,
é necessária a presença constante do jardineiro. Somente uma assistência permanente evitará as
deformações causadas pela pouca estabilidade do material. A presença do “pai” é indispensável para
protegê-la e velar pela sua verdade.
A facilidade de que se fala nestes textos parece ser a capacidade que o índio apresenta para
assumir, circunstancialmente, uma máscara e desempenhar um papel. Ele está sempre a representar
para o “mesmo” uma ação e um papel que este pretende que ele assuma, desempenhando-o, porém,
somente enquanto é assistido, enquanto dura a representação. Desse modo, a conversão só se efetua
no momento em que o “outro” se transforma em ator. Como ator, ele está disponível para vestir
a fantasia, subir ao palco, e declarar-se convertido. Mas, essa representação só é possível quando o
“outro” participa do prazer da festa, que se estabelece como um modelo de ação para a catequese. Um
modelo de assistir. É no espaço-tempo da festa que se forja uma cumplicidade inicial entre o “outro” e o
“mesmo”: o “outro” se insinua, mostra seu gosto pela representação. Imita o “mesmo”, que aproveita sua
capacidade de ator e faz da festa um instrumento de ação.
Na primeira missa celebrada no Brasil, cria-se uma semelhança aparente entre cristãos e
pagãos, suscitada pelo jogo das simpatias (FOUCAULT, s.d., p. 42), que os aproxima mediante a atração
que a representação dos cristãos exerce sobre o gentio, que possui o perigoso poder de assimilar e de
se fazer semelhante a eles, quando se transforma em ator.
Plantada a cruz, com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam
pregado, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi
cantada e oficiada por esses já ditos. Ali estiveram conosco (assistindo) a ela, perto de
cinquenta ou sessenta deles, assentados todos de joelhos assim como nós. E quando
se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles
se levantaram conosco, e alçaram as mãos, estando assim até chegar o fim; e então
A cena teatral da missa é o momento inaugural de sucessivas festas que se realizam no palco do
Brasil. Nesse espaço, desenham-se duas cenas: uma compreende a cena da representação, espaço onde
se colocam os cristãos. A outra, a cena da re-representação dos índios. A cruz e o altar são elementos
cênicos e delimitam o espaço onde se efetua a representação do sacrifício de Cristo, e no qual estão os
cristãos. É nesse espaço que se pronuncia a “verdade”, expressa pela palavra de Deus que se dá a ler pelo
texto bíblico e que se deixa acompanhar pela música e pela encenação gestual. Na cruz que se planta
e que já metaforiza a conquista como plantação, inscrevem-se as marcas que objetivarão o domínio
político e a tentativa de conquista espiritual dos índios: as insígnias do poder político e temporal se
superpõem ao símbolo do poder espiritual que preside e oficializa a representação.
Na cena da re-representação, encontram-se os gentios-pagãos que assistem à representação e
dela participam como atores - pantomimos - imitando os gestos dos cristãos. Atraídos pelo espetáculo
que diante deles se desenrola, os pagãos rapidamente assimilam e reproduzem o código gestual do
“mesmo”. A aparente similitude que se cria entre o “outro” e o “mesmo” faz com que os sinais reproduzidos
sejam lidos e interpretados segundo o código do “mesmo” e essa leitura não é feita de maneira ingênua.
Ela se orienta no sentido de suprimir a barra que separa os espaços da re-representação, na suposição
de que os pagãos se tornariam logo cristãos. Mas, neste gesto inaugural, as limitações são percebidas:
somente com o estabelecimento de um código linguístico comum é que o gentio poderá sair da cena
da re-representação para ingressar na da representação. “Parece-me gente de tal inocência que, se nós
entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos”. (CAMINHA, 1963, p. 60)
Assim. a catequese só poderá começar a iniciação do “outro” quando se puder impor um
determinado tipo de discurso e certas atitudes, para o que se aproveitará de sua capacidade de
assimilação. Todavia, se o jogo das simpatias faz com que eles se tornem aparentemente semelhantes,
é compensado pela antipatia, figura que “mantém as coisas no seu isolamento e impede a assimilação,
encerra cada espécie na sua diferença obstinada e na propensão para preservar seu ser peculiar”.
(FOUCAULT, s.d., p.43)
Se, nesta primeira festa que se realiza no palco da terra recém-descoberta, as cenas nas quais se
deixam compreender cristãos e pagãos ainda são distintas, nas demais festas não haverá tal distinção.
Elas se tornam híbridas, na medida em que o “outro”, ocultando suas marcas, assume o discurso que
lhe impõe a evangelização e, como ator, metamorfoseia-se em cristão. A festa possibilita o jogo das
simpatias.
A música, a dança, a fantasia, a pintura, a “palavra de Deus”: os ingredientes da festa incitam a
imaginação através dos sentidos. Atraem o pagão para o espaço-tempo da festa e ele aí se incorpora ao
“mesmo” pelo prazer da imitação. Mas, sob o disfarce da máscara e da fantasia, preserva seus traços e
faz da festa o mundo do prazer. O hibridismo da festa confunde simpatia e antipatia.
Dia de Reis (6 de janeiro de 84) renovaram os votos alguns irmãos. O padre visitador antes
da missa, revestido em capa d’asperges de damasco branco com diácono e subdiácono
vestidos do mesmo damasco, baptisou alguns trinta adultos. Em todo o tempo do
/... /
É bom dançar,
adornar-se, tingir-se de vermelho,
empinar o corpo, pintar as pernas
fazer-se negro, fumar,
curandeirar...
De enfurecer-se, andar matando,
comer um ao outro, prender tapuias,
amancebar-se, ser desonesto,
espião adúltero
/.../
Mas o que se pretende preservar é principalmente a alma. Ainda que não possa curar o corpo,
é possível salvar a alma e conduzi-la ao Reino de Deus:
Anjo;
Eis-me aqui para ajudar-te.
A mandado do Senhor,
venho guardar a tua alma,
para que, morto embora teu corpo,
suba tua alma ao seu reino. (ANCHIETA, 1954, p. 571)
Pecador,
Feito escravo do Senhor,
se o pecado não temes,
do fogo por que não tremes?
/... /
Como és tão insensível,
que não sentes furor
da morte, que é tão terrível,
pois és homem corrutível
e cativo pecador?
/... /
Temes a dor corporal,
foges de qualquer afronta,
e daquele eterno mal
- do bravo fogo infernal –
não fazes nenhuma conta. (ANCHIETA, 1954, p. 823-824)
A única possibilidade de salvação e cura para a doença da alma e do corpo é a aceitação da
doutrina que se oferece como remédio. Contudo, o acolhimento da doutrina é apenas um passo para
a salvação, porque existe sempre o risco do pecado. Para a recaída, a cura é garantida pela confissão,
que se torna um eficaz aparato de controle da informação que amplia as possibilidades de sujeição e de
dominação política.
A Salvação implica em um processo de substituição de marcas. A aceitação da doutrina
cristã é a aceitação do regime escravista da sociedade mercantilista portuguesa. Dessa maneira, o
remédio que se oferece como cura conserva a ambigüidade do pharmakon socrático (DERRIDA, 1972):
é, simultaneamente, remédio e veneno, bem e mal, salvação e perda. E seu significado oscila entre o
positivo e o negativo, a cena e o fundo da cena.
“Deus que é fundo, sem fundo” (ANCHIETA, 1954, p. 800) é a reserva sem fundo de onde se
extrai o remédio e o veneno, a salvação e a perda. E que abriga a vida e a morte, o jogo e a festa.
No espaço da festa, o índio re-conhece a verdade e a fé. Assume o texto da palavra do jesuíta-
colono-Senhor-Rei-Deus. Teatraliza o arrependimento e o desejo de inaugurar “novos hábitos”. Faz da
conversão uma representação. Faz acreditar que os frutos – sentido metafórico – foram colhidos para o
celeiro de Deus. No ilusionismo da festa, ele garante a economia, o bem, o capital, a reserva do celeiro,
a recompensa da despesa:
Alma:
Sou a alma do Pirataraca.
Deixei agora o meu corpo.
/.../
Eu renunciei a todos os maus hábitos,
Porque a festa é transitória, os frutos do celeiro de Deus são efêmeros. Fora do espaço-tempo da
festa, o “outro” tira a máscara. Reinveste suas marcas. Ao colonizador só resta reconhecer a experiência
do pouco fruto/falso fruto – sentido metafórico – ou a total ausência do fruto:
...o fruto que se fazia na gentialidade diminui cada vez mais. /.../ Nesse tempo não houve
muitas predicas aos Cristãos, não deixando todavia de o fazer nas festas principais e
alguns domingos, porque assim parece que se imprimem mais e ouvem com maiores
desejos. (BLAZQUEZ, 1558)
Como um modelo de ação para assistir ao “outro”, a festa se dá apenas como um jogo, um
luxo, uma despesa sem reserva. É necessário então tirar a máscara e a fantasia e assumir a violência
para se colher os frutos – sentido não metafórico – para o celeiro do jesuíta-colono-Senhor-Rei. Os
empreendimentos da Coroa e da Companhia de Jesus precisam ser mantidos. E sustentados o bem, o
capital, a reserva.
...finalmente cada um é rei em sua casa e vive como quer; pelo que nenhum ou
certamente muito pouco fruto se pode colher deles, se a força e o auxílio do braço
secular não acudirem para domá-los e submetê-los ao jugo da obediência. (CJ. 3) ...
porque para este gênero de gente não há melhor pregação do que a espada e vara de
ferro. (ANCHIETA, 1554)
ANCHIETA, José de. Carta de Piratininga. 1554. In: Informação da Província do Brasil.
Cartas Jesuíticas. (v.III). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, s.d.
BLAZQUEZ, Pe. Antonio. Carta que escreveu da Bahia em 1558, ao Pe. Geral. In:
Informação da Província do Brasil. Cartas Jesuíticas. (v.III). Rio de Janeiro: Academia
Brasileira de Letras, s.d.
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a el Rei Dom Manuel. São Paulo: Dominus, 1963.
CARDIM, Fernão. Tratado da terra e gente do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, s.d.
FAORO, Raimundo. O Brasil até o Governo geral. In: Os donos do poder. Porto Alegre:
Editora Globo, 1975.
FOUCAULT, Michel. Les corps dês condamnés. In: Surveiller et punir: naissance de la
prison. Paris: Gallimard, 1975.
NÓBREGA, Padre Manuel. Carta a el Rei D. João. 1552. In: Cartas jesuíticas e cartas do
Brasil – 1549-1560. Rio de Janeiro: Oficina Industrial Gráfica, 1931.
CAPÍTULO 2
Este texto propõe uma reflexão sobre a idéia de escritura como paradoxo, interrogação e
recusa de uma totalidade, a partir do livro de contos Por trás dos vidros (2007) de Modesto Carone. Em
sua escritura, os temas da solidão, da angústia, do luto, da ausência, da incerteza, da morte e da fuga no
espaço urbano, criam imagens que de certo modo, desenham a labilidade dos laços sociais atuais.
A obra Por trás dos vidros apresenta um conjunto de 49 narrativas que, estão organizadas em
cinco blocos ou sequências. Essas cinco sequências articulam-se pelo fio dos epílogos que sinalizam,
abrindo cada uma das cinco unidades formando o conjunto de contos assim sinalizados: 1) “Para dentro
é o caminho, para dentro”; 2) “Meus braços resolvem atos. Cada um para seu lado”; 3) “Fora daqui: é este
meu alvo”; 4) “Cidade cheia de sonhos”. 5) “Possuir o que me possui”.
Essas sequências funcionam na obra como junção de imagens3 indiciando os contos como
num plano-sequência, a plasmar a fatalidade e a contingência das personagens e de seus narradores –
recurso talvez explicado pela experiência do leitor habilidoso que remete ao próprio ofício do escritor.
Nos contos encontra-se o narrador do descontínuo, do corte e da linguagem agônica, a
exemplo do conjunto das frases epílogos e que de modo algum são indiciais, pelo contrário, aumentam
a ambigüidade e instalam logo de início o estranhamento no nível da linguagem. A epígrafe que abre
a terceira sequência - “Fora daqui: é este meu alvo” - é uma frase de Kafka que remete metaforicamente
ao universo ficcional caroniano. Também aparece nesse universo ficcional a leitura de Georg Trakl, sobre
quem Modesto Carone escreve o conto “As marcas do real” (2007). Esse conto encontra-se na sequência
2
Parte deste texto foi publicada no livro Novas Leituras da ficção brasileira no século XXI, organizado por Pereira, Helena Bonito (2001).
3
A expressão junção de imagens é empregada por Modesto Carone no livro Metáfora e montagem (1974), para explicar procedimentos da escritu-
ra poética de Georg Trakl e que ele (M. Carone) toma como procedimento ou estratégia para a organização dos capítulos do seu livro, chamando
a atenção do leitor para que olhe um pouco mais abaixo da superfície, “insista num caminho de percepção mais densa deste universo verbal
complicado” (CARONE, 1974, p. 13), referindo-se à metáfora trakliana.
Essa reflexão será reelaborada por Carone, mais tarde, no conto “As marcas do real”. Por meio da
reescritura do texto de crítica literária que se transforma no conto, Carone retorna à obra de Georg Trakl,
não mais como leitor crítico, mas como leitor/autor e o autor estudado transforma-se em personagem
de ficção a povoar o imaginário de novos leitores.
Os estudos mais recentes confirmam que desde a adolescência Georg Trakl consumia
ópio, clorofórmio, veronal e cocaína. Explica-se: sua mãe, Maria, uma protestante de
Praga rejeitada pela comunidade católica de Salzburg, passava os dias fechada no quarto
às voltas com bonecas de louça; os filhos ficavam no quarto sob os cuidados de uma
governanta. [...]. Quem lê seus poemas reconhece a experiência do drogado: o texto
alimenta-se de um cotejo de imagens intensamente coloridas onde deslizam barcas
e papoulas. [...] Isto não impede que a dicção da obra seja clara e segura, lembrando
um mundo complementar à realidade histórica circundante. Há indícios de que Georg
registrou essa ruptura na subjetividade desintegrada do psicótico. Seus melhores
poemas – aqueles que dos vinte e cinco aos vinte e sete anos escreveu e burilou nas
Escritura e Criação: “Marcas do Real”
costas de envelopes e guardanapos – falam de noite e decomposição, à qual não falta
contudo o brilho tenaz da redenção. Sem dúvida isso remete a Hölderlin, poeta com
quem Georg tinha grande afinidade (p. 158-159).
Pelo filtro da escrita ficcional fundem-se o imaginário e a realidade histórica, a exemplo dos
procedimentos de metáfora e montagem estudados na obra de Trakl. O que o ficcionista transforma
em marcas do real são os espaços em branco da biografia mais os elementos que estudou na poesia do
poeta de Salzburg. Assim, o efeito estético encontra-se na capacidade do texto de captar o movimento
da história.
No conto “As marcas do real” observa-se uma elaboração no plano da composição semelhante
ao realizado por Borges. Num dos ensaios de Otras inquisiciones (1976), “La flor de Coleridge” Borges
afirma, com base em citações de Paul Valéry, Emerson e Shelley que a literatura universal parece ter sido
4 Todas as citações da obra em estudo foram feitas a partir de Carone (2007), destacando-se a cada citação as respectivas páginas.
Quando o crepúsculo inundou a praça ela havia escapado dos meus braços mas eu não
me via só porque estava impregnado da sua roupa, do seu hálito, do seu corpo e daquela
ausência súbita que me cercava como uma aura (p. 16).
O jato d’água de uma fonte subia em silêncio pela noite e foi nela que lavei o rosto
e molhei a nuca. Comecei então a caminhada para casa no outro lado da cidade. As
árvores ainda estavam tingidas pela lua amarela, respirei o perfume de verão que havia
no ar e sem saber o que fazia abri a camisa até embaixo, apalpando a cicatriz nítida que
riscava de ponta a ponta meu ventre: era o primeiro dos vários lutos que tive de fazer
na vida (p. 17).
Examino as poças do meu crânio: são negras e contrastam com o resto da paisagem.
Algumas invadem a nave cinzenta, outras são fundas como alçapões; o que parece
defini-las é a estagnação. É verdade que isso não passa de reflexo provocado pelas
condições de visibilidade: de perto todas as poças fermentam (p. 162).
O que está em jogo nessa forma de construção da linguagem? Algo de essencial está em causa,
como, estão todas as precauções e advertências que aparecem nas falas dos narradores nos contos de
Por trás dos vidros. No entanto, o que transparece é o lado sombrio, as deformidades do ser, o mundo
insondável - sentido, porém, difícil de entender. Aludir à natureza enigmática da escritura não pode ser
uma resposta, mas coloca uma pergunta, a da natureza do tempo histórico em que a obra emerge, o
contexto da contemporaneidade marcado pela alienação social e, sobretudo, pela labilidade dos laços
sociais. Escritura e Criação: “Marcas do Real”
Ao modo da metáfora trakliana, como tentativa de articular eventos conhecidos, os quais a
linguagem não consegue captar, “só podendo existir com e no poema, uma linguagem fragmentada”
(CARONE, 1974, p. 18, grifos do autor), o autor a faz transcender do espaço do texto, remetendo o leitor a
uma leitura do mundo desconexo, fraturado, ambíguo e ilógico. Para Carone, a escritura aponta para um
universo histórico cujo tempo experimenta a banalização ou a alienação da vida, a ilusão de realidade,
como se lê no conto “Águas de março”, na sequência denominada “Possuir o que me possui”.
O narrador do conto descreve um encontro malsucedido com uma mulher, talvez, em um
quiosque na praia, o qual acaba marcado pelo suicídio da mulher, que, exasperada após tentar ser
ouvida e não receber a atenção de seu interlocutor atira-se ao mar. A narrativa do conto apresenta-se
como um duplo; como se o leitor tivesse diante de si dois textos, duas histórias. Passamos a conhecer
a história (encontro/suicídio/encaminhamentos com o corpo/ demais providências) por meio de
uma narrativa que se sobrepõe à primeira, ou seja, em segundo plano está o relato da história que
ficamos conhecendo em primeiro plano por meio das reflexões do narrador sobre a cena vivida. Esse
procedimento realiza-se por meio de um processo de distanciamento do objeto narrado:
5
A relação com o sentimento de perdição está na incapacidade de agir ou na inutilidade de
agir, tal como coloca Nietzsche (1985, p. 69):
M. Carone: A expressão ‘Fora daqui: é este o meu alvo’ (Weg von hier: das ist mein Ziel)
é uma frase de um conto monolítico de algumas linhas de Kafka, que se encontra nas
Narrativas do espólio. Usei-a como epígrafe de uma das seções do livro como ‘acorde’ para
o que há de indesejável e aterrador no Brasil e em outras partes do mundo. O primeiro
texto desta série, como o leitor pode ver, é Dias melhores, em que o protagonista fica
o tempo todo à mercê de um atirador anônimo e ativo, que o põe na defensiva como
alguém que vai acabar perdendo a parada. Se o castelo de um homem é o seu lar, então
aqui ele deixa de ser, como acontece na novela A construção de Kafka. Ou seja: não há
no mundo nenhum refúgio seguro contra os ataques, desapareceram todos os ‘paraísos
artificiais’, o pesadelo é cotidiano, a ‘felicidade’ se evaporou (por isso está entre aspas).
Mas o tom da normalidade da escrita, regida pela gramática e pela contensão, é o
contraste que torna esse ‘absurdo’ palpável e verossímil, além de lhe acrescentar o horror
através justamente do understatement. [...]. Nesse sentido, não espanta que o ‘fantástico’
e o ‘estranho’ kafkiano foram assumidos na minha carreira de escritor. Poderia ser de
outra maneira? Tenho aversão ao açucarado e ameno, porque a literatura agride de volta
o mundo que a atira na ‘marginalidade’. Aliás, não há centro sem margem, porque ambos
fazem parte do mesmo sistema, são complementares, embora a margem seja sempre a
parte prejudicada (CARONE, 2010).
5 A expressão remete ao texto de Clarice Lispector. (1993, p.26, grifo do autor); “É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o senti-
É nessa condição que as vertentes do viver e do ficcional não podem ser pensadas
separadamente da mesma forma que, do ponto de vista do processo de produção da
escritura romanesca, essas vertentes se embaralham, dramatizando o sujeito que a
produz, e se pluraliza no emaranhado dos signos que articula e dissemina (HOISEL, 2006,
p. 59).
Os fatores externos ao texto aparecem, porém, passam a assumir uma natureza interna à
linguagem literária. A conformação da figura do escritor não implica a impossibilidade de remeter a
obra a algo que transcenda o texto – à história, por exemplo, considerando que a condição para se
chegar à transcendência do texto é percebê-lo inicialmente no nível de sua estrutura.
Kristeva (1974) afirma que todo texto situa-se na junção de vários textos dos quais ele é, ao
mesmo tempo, releitura, deslocamento e profundidade. O texto e a sociedade se constituem em outros
textos que o escritor lê e nos quais se insere ao reescrevê-los. Ao refletir sobre o caráter biográfico da
escritura, sobre o sujeito e a sua relação com a linguagem, Evelina Hoisel (2006, p. 10) observa que:
[...] O sujeito não é apenas o produtor de uma linguagem, de um texto, de uma escritura,
ele é também produzido pela linguagem-texto-escrita que articula. Concebe-se então a
linguagem como um palco de múltiplas cenas, onde determinadas personagens, idéias,
forças, escritas, signos, que são vestígios, marcas de uma experiência, de uma cultura,
podem atuar.
Assim, na “cena da escritura” caroniana, está o traço que afirma o sujeito crítico, tradutor, o
sujeito como signo cuja escritura não só se torna mimese como também testemunho de seu tempo. O
conto “Fendas”, contemplado na sequência “Possuir o que me possui”, pode ser lido como uma metáfora
da atividade intelectual do escritor contemporâneo:
Examino as poças do meu crânio. [...] é manifesto porém que conhecem o som, uma
vez que as palavras as fazem vibrar. [...]. Deduzo que certas formações acompanham a
Escritura e Criação: “Marcas do Real”
correnteza segundo um código anônimo; talvez por isso o sentido das frases me escape.
[...]. Estimulado pela dança, pergunto-lhes o nome; nenhuma responde – apenas as
pregas do tecido dizem algo incompreensível (p. 162, grifo nosso).
O título do conto “Fendas” e construções metafóricas como - as poças do meu crânio, certas
formações acompanham a correnteza, código anônimo, sentido das frases me escapa, as pregas do
tecido dizem algo incompreensível – sugerem imagens sobre escrita e memória, remetendo à atividade
intelectual do escritor no sentido de agenciador de escritas, cuja produção denota a capacidade que
tem um texto de agregar em seu espaço escritas multíplices.
Na mesma perspectiva, o conto “Utopia do jardim-de-inverno”, que aparece na sequência,
“Possuir o que me possui”, sugere interrogação do escritor sobre o processo mimético e representacional
da escritura. Pode-se falar sobre efeitos da interferência da posição da crítica contemporânea no conto
de Carone, leitura possível por meio das reflexões do narrador sobre o processo de observação e análise
de um “jardim-de-inverno”:
As situações-limite vividas pelos personagens de Por trás dos vidros são imaginárias, mas
possíveis. É no limite da experiência e nos confins de uma linguagem às vezes gelada
que fixo a abertura para o ‘outro mundo’, de onde jorra a alienação contemporânea,
aqui depurada pela forma estética. Esse ‘outro mundo’ é a contradição daquele onde ele
nasceu por necessidade artística (e humana). Retomando Adorno: ‘A poesia sonha um
mundo onde as coisas seriam diferentes’ (CARONE, 2010).
A experiência da alienação social é captada pela escritura caroniana e devolvida ao leitor como
interrogação do mundo pela palavra que é matéria trabalhada, lembrando as formulações de Adorno
(2003, p. 160) no texto “O artista como representante”, ao refletir sobre a natureza da prosa de Paul
Valéry:
Valéry ataca essa concepção extremamente difundia acerca da essência de uma obra
de arte, segundo a qual esta é creditada, conforme o modelo da propriedade privada
àquele que a produziu. Ele sabe melhor do que ninguém o quão pouco de sua obra
‘pertence’ ao artista; sabe que, na verdade do processo artístico de produção, e também
no desdobramento da verdade contida na obra de arte; a configuração rigorosa adquire
uma legalidade imposta pela própria coisa, diante da qual a famosa liberdade criativa do
artista pesa muito pouco.
[...] o artista portador da obra de arte, não é apenas aquele indivíduo que a produz, mas
sim torna-se o representante, por meio de seu trabalho e de sua passiva atividade, do
sujeito social coletivo.
Embora a obra de Carone apresente-se voltada para uma “tessitura dissimulada”, com
articulações imagéticas multiformes, portanto de desarticulação e dissonâncias, tudo indica ser
um aproximar-se da realidade e não um afastamento, mas uma investigação da realidade em ritmo
diferenciado, em que a representação mimética do universo não encontra tempo nem espaço nessa
escritura que só se atualiza por meio de jogos de linguagem.
Qualquer olhar que objetivasse uma explicação do fator social em seus contos se caracterizaria
como uma busca vã, uma vez que o movimento é sinuoso e exige uma verificação desse fator como
elemento que se funde à narrativa, deixando de ser tema e tornando-se também ele parte da construção
da obra, tragado pelo universo da linguagem, de modo que boa parte das formulações teóricas da
crítica literária contemporânea está contemplada na própria tessitura de Por trás dos vidros.
BORGES, J. L. Pierre Menard, autor del Quijote. In: _____. Obras Completas I – Ficções.
Tradução: Carlos Nejas. São Paulo: Globo, 2000.
CARONE, Modesto. Por trás dos vidros. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
PEREIRA, Helena Bonito. (Org.). Novas Leituras da Ficção Brasileira no Século XXI. São
Paulo: Editora da Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2011.
CAPÍTULO 3
O presente estudo tem como objetivo analisar as obras A casca da serpente, de Jose J. Veiga
(2001) e Guerra no coração do Cerrado, de Maria José da Silveira (2006), partindo da linguagem como
foco de análise para o estudo dos interdiscursos. Dentre os teóricos consultados, vale ressaltar Bakhtin,
Marxismo e Filosofia da Linguagem (2006); Hayden White, Trópicos do discurso - ensaios sobre a crítica
da cultura (2001). A partir desses teóricos, será elaborado um levantamento sobre a linguagem como
“construto lingüístico”, suas peculiaridades e suas concepções ideológicas. Perceber-se-á nos romances
em estudo uma linha interdiscursiva com a história pelos intertextos presentes nas narrativas.
A narrativa histórica Os sertões, de Euclides da Cunha, apresenta-se como intertexto no
romance metaficcional historiográfico A casca da serpente, de José J. Veiga (2006). O episódio histórico
da fundação da Aldeia de São José de Mossâmedes, Goiás, apresenta-se como interdiscurso da história
no romance de Maria José da Silveira, Guerra no coração do Cerrado.
Serão abordados nas obras os procedimentos narrativos que mostram a rede dialógica entre os
discursos da ficção e da história. A intenção é a de mostrar como as narrativas estruturam ficcionalmente
as extrações históricas e engendram as possíveis leituras empreendidas: narrativa histórica, romance
histórico, metaficção historiográfica. Alguns teóricos no servirão de apoio tais como Linda Hutcheon
(1991), André Trouche (2004) e Alcmeno Bastos (2007).
Todos os fenômenos culturais são exemplos da capacidade humana para produzir, trocar
e consumir os signos. Consequentemente, a interpretação dos fenômenos culturais
é considerada meramente um caso particular do ato de ler no qual a manipulação e
a permuta dos signos é levada a efeito de modo mais consciente, o ato de ler textos
literários. (WHITE, 2001.p. 302).
A expressão “narrativa de extração histórica” foi utilizada por Andre Trouche (2006, p. 44) para
designar o conjunto de obras de ficção do universo literário hispano-americano que “encetam o diálogo
Explica, então, que um conjunto de experiências quando chega até as pessoas, enquanto meta-
história, necessita tanto de metáfora quanto de metonímia, pois assim fixa algo significativamente,
mas de forma figurada. Lukács estabeleceu para o romance moderno que cada tipo é identificado
pelo modo de relacionamento que predomina entre o protagonista e o seu meio social. Esse “modo
de relacionamento” com a matéria de extração histórica vai determinar as características do romance
histórico e da metaficção historiográfica, conforme as análises subsequentes neste capítulo.
O que distingue o romance histórico das outras modalidades de romance é o fato de que a
matéria narrada no romance histórico deve ser, obviamente, de extração histórica. Os elementos que
a constituem deverão ter sido objeto de registro documental, escrito ou não, e apresentar satisfatório
grau de familiaridade para o leitor medianamente informado sobre a história de uma determinada
comunidade.
[...] Dizemos da matéria narrada que ela deve ser de extração histórica e não
simplesmente histórica, para, ao mesmo tempo assinalar sua procedência, seu lugar de
origem - a história -, e realçar o fato de que ela é submetida a um traslado semiótico que
provoca alterações qualitativas na sua substância. [...] a matéria de extração histórica é
estatutariamente tão ficcional quanto a que não o seja, isto é, quanto a que resulte de
livre invenção do autor. (BASTOS, 2007, p. 84).
Dom Luiz saíra confiante de sua saudosa Bahia para governar a região há pouco
promovida à capitania (Vila Boa de Goiás), de onde fora extraído, em seu breve momento
de apogeu, grande parte do ouro que enfeitava as igrejas e o luxo da sua cidade de
Salvador. (SILVEIRA, 2006, p. 16).
O romance Guerra no coração do cerrado expõe uma visão panorâmica da chegada dos
governadores a esse espaço que, segundo o governador da época, era a “morada infernal dos mosquitos”.
O espaço onde a riqueza passou e não ficou, era também o lugar da chegada de algumas Entradas e
Bandeiras organizadas no Estado de São Paulo. E, além da incumbência de conseguir ouro para a Coroa
Portuguesa tinha, ainda, talvez a mais difícil e ardilosa tarefa, que era a de pacificar os cayapós e abrir
aldeamentos.
A análise dos interdiscursos, ficcional e histórico, proposta na análise da obra de Veiga, vale-se
da obra Os sertões, de Euclides da Cunha, por ser o intertexto utilizado por Veiga na elaboração de A
casca da serpente. A narrativa histórica Os sertões, assim se denomina por trazer um discurso que filtra
a ideologia das camadas de poder.
O ROMANCE HISTÓRICO
O romance histórico surge no início do século XIX, durante o romantismo. Georg Lukács (apud
SANSEVERINO, 2003, p. 113) faz duas exigências ao romance histórico: “a recuperação da ‘singularidade
histórica’ e a tradução da singularidade histórica por meio da atuação de personagens”.
Bastos (2007) afirma que o romance histórico não teve sua origem no século XIX e, sim, ao
primeiro marco das relações entre literatura e história, entre os gregos. Explica o estudioso que o
romance histórico se apoiava na documentação histórica, enfatizando, portanto, o dado de realidade: a
narrativa ficcional seria a inventada; a de extração histórica, a documentada. Acrescenta, ainda, que:
A ficção histórica [...] foi batizada pelo teórico marxista Georg Lukács como uma ficção
‘arqueológica’. Segundo Lukács, essa ficção arqueológica estaria marcada por um
descritivismo frio e distante, predominantemente interessada na recuperação estática
do passado longínquo em suma, uma espécie de negação do verdadeiro romance
histórico. (BASTOS, 2007, p.11)
um dos traços mais fortes é “a exigência de que a trajetória das personagens principais se
vincule de modo irrecorrível ao destino da comunidade histórica de que fazem parte; ou
que os fatos e as figuras históricas aludidas cumpram função apenas incidental na trama,
mas sejam elementos definidores da natureza dos eventos e da sorte das personagens,
de procedência histórica ou não. (BASTOS, 2007, p.12)
Na visão de Bastos (idem, p. 19), a ficção histórica continua a seduzir-nos com a memória dos
homens e dos fatos que vieram antes de nós. Afirma que o que vai diferenciar o historiador do romancista
é que o historiador trabalha com documentos escritos enquanto que o romancista com documentos
narrados. E, ainda, complementa dizendo que o romance atual ainda se faz com documentos narrados,
ou extraídos da natureza, como a história se faz com documentos escritos. Historiadores são narradores
do passado; o romancista, narrador do presente.
Segundo White (1994, p.115), a ficção é concebida como a representação do imaginável e a
história como a representação do verdadeiro. Tal concepção deve dar lugar ao reconhecimento de que
só podemos conhecer o real comparando-o ou equiparando-o ao imaginável. Seguindo esse viés das
relações entre o discurso da história e o da ficção, André Trouche (2006) diz:
O que Trouche (2006, p.33-4) ressalta, vale repetir, é que a narrativa histórica precisa antes de
uma verdade histórica, de uma construção cultural e de um fato histórico. No âmbito da literatura, o
mesmo autor destaca outros fatores que contribuem para a construção dessa tendência no sentido
da relativização dos limites entre história e ficção. Primeiro, ele cita o passado histórico, ou seja, o
movimento em direção ao passado. Outro fator citado é a permanência da questão da referencialidade,
a relação entre texto e contexto e, por fim, o contínuo movimento no sentido do autoquestionamento.
O mais importante é considerar que a interpretação histórica deve levar em conta a singularização
da realidade que se quer retratar, ou seja, a história que serve como referência tanto para a escrita da
narrativa metaficcional A casca da serpente de José J. Veiga (2006) quanto para o romance de extração
histórica Guerra no coração do Cerrado de Maria José da Silveira (2007), tomado, neste estudo, como
romance histórico.
O acontecimento histórico de Canudos, relatado pelo repórter escritor Euclides da Cunha,
somado à imaginação do autor, cria a história. A casca da serpente e Os sertões contêm o registro
pessoal da trajetória de vida de Antônio Conselheiro e seus seguidores. Em ambas, temos a oralidade
e sua diversidade, pois é através da fala dos seguidores do Tio Antônio e do Conselheiro que vamos
marcando o tempo e o desenrolar das ações. A trama de Canudos em Os sertões acontece no final do
século XIX, por volta de 1898, período da construção e de destruição de Canudos. É um momento de
CUNHA, Euclides da. Os Sertões: Campanha de Canudos. São Paulo: Ática, 2000.
KRISTEVA. Júlia. Introdução à semanálise. Tradução: Lúcia Helena França Ferraz. 2ª ed.
São Paulo: Perspectiva, 2005.
SILVEIRA, Maria José da. Guerra no Coração do Cerrado. Rio de Janeiro: Record, 2006.
TROUCHE, André Luiz Gonçalves. América: história e ficção. Niterói, RJ. EDUFF, 2006.
VEIGA, José J. A casca da serpente. 4 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo:
2001.
CAPÍTULO 4
Leitores sem face e histórias que não existem:
As fotonovelas e a produção cultural
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 59
1. quando o romancista assumiu, naquele livro capital, o foco narrativo, na verdade
passou ao defunto autor Machado-Brás Cubas delegação para exibir, com o despejo dos
que já nada mais temem, as peças de cinismo e indiferença com que via montada a
história dos homens.
Essa imbricação do autor com o texto passa a um segundo momento, quando se autonomiza,
ou melhor, é autonomizada:
foi nesse livro surpreendente que Machado descobriu, antes de Pirandello e de Proust,
que o estatuto da personagem na ficção não depende, para sustentar-se, da sua fixidez
psicológica, nem de sua conversão em tipo; e que o registro das sensações e dos
estados de consciência mais díspares veicula de modo exemplar algo que está aquém
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
da persona: o contínuo da psique humana.
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 61
consagrados como roteiro (Conde de Monte Cristo, Ana Karerina, O morro dos ventos uivantes, etc.),
pois os pasteuriza empobrecendo-os. “A fotonovela não cria inteiramente sua atmosfera, mas está
seguidamente realizando ‘pastiches’. ” Isto ocorre porque esta literatura é uma forma de “popularização
de mensagens permissíveis e manipuladas que estão associadas ao poder.”
Não se trata aqui de opor opiniões e estabelecer um novo artefato cultural, colocando-o
como superior, tentando-se inverter as críticas sobre a fotonovela. Trata-se antes de compreender os
mecanismos pelos quais se estabelece algo como culturalmente válido ou não.
Dessa forma, deve-se, em primeiro lugar, compreender que: “o sistema de produção e
circulação de bens simbólicos define-se como o sistema de relações objetivas entre diferentes estâncias
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
definidas pelas funções que cumprem na divisão do trabalho de produção, de reprodução e de difusão
de bens simbólicos”. Nesse sentido, entram em cena diversas instâncias que procuram definir o que
é arte qualificando-a como superior ou inferior, erudita ou popular, alta ou baixa e assim por diante.
Neste aspecto, determinados bens simbólicos são tachados como superiores enquanto outros podem
ser objetos de consumo em massa.
A definição da superioridade de um artefato nada tem a ver com suas qualidades intrínsecas,
porque o
campo da produção erudita tende a produzir ele mesmo suas normas de produção e
critérios de avaliação de seus produtos, e obedece à lei fundamental da concorrência
pelo reconhecimento propriamente cultural concedido pelo grupo de pares que são, ao
mesmo tempo, clientes privilegiados e concorrentes.
Isto é, podemos chamar a definição do que é um objeto válido culturalmente como superior
por um novo esoterismo. Os códigos de acesso para objetos eruditos são restritos e restritivos e
somente após longo aprendizado podem ser compreendidos, o que garante a sua reprodução simples
e ao mesmo tempo serve para a manutenção deste mercado restrito.
Tais procedimentos podem ser observados quando:
Dessa forma:
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 63
Decorrente deste tipo de análise é a compreensão de uma separação entre produção e
recepção, criação e consumo. O consumidor de uma obra de arte, de um texto, de uma imagem, estaria
inerte diante dos aparelhos impositivos e prontos para aceitar esta produção. As pesquisas de Michel de
Certeau colocam em questão esta antiga visão sobre a distância que existira entre criação e consumo:
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
São maneiras de fazer cotidianas que “constituem as mil práticas pelas quais os consumidores se
reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural.” Logo, não há passividade
no consumo de textos. Há uma produção:
considerar a leitura como um acto concreto requer que qualquer processo de construção
de sentido, logo de interpretação, seja encarado como estando situado no cruzamento
entre, por um lado, leitores dotados de competências específicas, identificados pelas
suas posições e disposições, caracterizados pela sua prática do ler, e, por outro, textos
cujo significado se encontra sempre dependente dos dispositivos discursivos e formais
– chamemos-lhes ‘tipográficos’ no caso dos textos impressos – que são seus.
não dispõe de base onde capitalizar os seus ganhos, preparar a sua expansão e adquirir
uma independência em relação às circunstâncias [...], devido ao seu não-lugar, a tática
depende do tempo, permanecendo vigilante para agarrar rapidamente as possibilidades
de ganho. O que ela ganha, não guarda. É-lhe necessário jogar constantemente com os
acontecimentos para torná-los ‘ocasiões’. O fraco deve tirar partido sem cessar das forças
que lhe são estranhas.
O leitor não é passivo diante de um maquinário que lhe impõe o que ler e como ler. A despeito
das imposições, ele toma o texto para si e o faz funcionar de outro modo, criando formas diferentes de
leitura e de compreensão em conformidade com a sua posição social, experiências de vida, educação.
Enfim, a sua história lê histórias. Por outro lado, as publicações buscam alcançar esta “disfunção” que
ocorre no tempo a partir do lugar, ou seja, se aproximar destas práticas cotidianas, levando para
o leitor aquilo que ele próprio deseja. Portanto há um jogo de aproximações e fugas. O maquinário
busca colonizar o leitor que sempre se mostra fugidio e pouco afeito a aceitar passivamente o que lhe é
oferecido. É neste aspecto que se busca compreender o leitor e suas práticas, pois:
Historicizar nossa relação com a leitura é uma forma de nos desembaraçarmos daquilo
que a história pode nos impor como pressuposto inconsciente. Ao contrário do que se
pensa comumente, longe de relativizar ao historizá-la, também nos damos um meio de
relativizar sua própria prática, portanto, de escaparmos à relatividade. Se é verdade que
o que eu digo da leitura é um produto das circunstâncias nas quais tenho sido produzido
enquanto leitor, o fato de tomar consicência disso é talvez a única chance de escapar ao
efeito dessas circunstâncias. O que dá uma função epistemológica a toda reflexão sobre
a leitura.
A partir destas observações, podemos entender que os leitores de fotonovelas buscam refazer
a narrativa, ou melhor, recriar a narrativa. Este tipo de arte seqüencial, usando a expressão cunhada por
WIll Eisner para os quadrinhos, exige do leitor o preenchimento das elipses entre um fotograma e outro:
“não é de surpreender que o limite da visão periférica do olho humano esteja intimamente relacionado
ao quadrinho usado pelo artista para capturar ou ‘congelar’ um segmento daquilo que é, na realidade,
um fluxo ininterrupto de ação.” O quadrinho ou a fotonovela demanda um movimento tríplice. O
primeiro movimento seria simples: de um fotograma ao seguinte. Porém, no segundo movimento,
entre um fotograma e outro há a elipse que será virtualmente preenchida. E, o terceiro movimento, a
reconstituição da narrativa entre os fotogramas com a elipse solucionada imaginariamente. A história
é recomposta na mente do leitor. Enfim, há um espaço lacunar nos fotogramas que é preenchido pelo
leitor. As poses dos personagens e o mis-en-scène deixam um espaço livre para a reconstituição de
sentido por parte de quem lê, pois se pode imaginar tanto a seqüência anterior como a posterior até o
próximo fotograma.
Assim, podemos compreender junto com Edgar Morin que a fotonovela, como artefato da
cultura de massas, exige também, como em todas as manifestações culturais, a participação estética,
isto é, um tipo de relação e:
existe, na relação estética, uma participação ao mesmo tempo intensa e desligada, uma
dupla consciência. O leitor de romance ou o espectador de filme entre num universo
imaginário que, de fato, passa a ter vida para ele, mas ao mesmo tempo, por maior que
seja a participação, ele sabe que lê um romance, que vê um filme.
A fotonovela permite a reinvenção da narrativa e coloca o leitor como produtor e não como
simples receptor. Cabe, no entanto, reparar que para facilitar o reconhecimento e modificar narrativas,
a estrutura da trama deve ser simplificada, ampliando as possibilidades de leitura. Neste aspecto,
podemos dizer que a fotonovela retoma a tradição dos folhetins e romances populares do século XIX:
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 65
Além do folhetim, a fotonovela também é filha do cinema. Não é à toa que muitos artistas
de cinema e de televisão são chamados para as estrelarem. Deve-se ressaltar que, tanto o folhetim no
século XIX quanto o cinema no século XX, não criam do nada as suas histórias. Elas têm um fundo que
hoje chamaríamos de literatura ou cultura popular. Se alguns romancistas sofisticaram as suas obras a
ponto de torná-las inacessíveis às pessoas comuns, isso não quer dizer que a cultura estava cindida em
duas desde o princípio, mas apenas aponta a apropriação exercida pelas classes superiores do campo
cultural, marcando a sua distinção social, como vimos acima.
O encontro entre folhetim e cinema na fotonovela segue uma tradição da literatura oral popular.
É o caso do lugar. Nos contos populares quase sempre não há uma definição espacial. Não sabemos
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
onde é a floresta da Chapeuzinho Vermelho, de João e Maria, em qual reino se aventura o Gato de Botas,
e não se sabe qual reino governa a rainha má da Branca de Neve. O não-lugar dá uma dimensão de
universalidade, típico dos contos. Também nas fotonovelas dificilmente aparece algo que possa marcar
onde ocorre a trama, a não ser que seja indicado pelo “narrador” e normalmente são lugares exóticos ou
idílicos, conforme certa ideologia popular (Veneza, Paris, Istambul, selvas, desertos, pequenas cidades
praianas ou interioranas, etc.). Eventualmente, pode-se mostrar nos fotogramas sinais sobre o local
real em que se passa a trama, como placas de automóveis ou letreiros de lojas, porém não é possível
precisar lugar o da locação. Por isso mesmo as histórias podem ser mais didáticas, passando ao leitor
ensinamentos e mensagens rápidas e de fácil compreensão.
Podemos ir um pouco além. Há um fundo hagiográfico na fotonovela. Pode-se perceber vendo
o relato da vida dos santos. A bondade é retribuída com a maldade e o sofrimento só acabará com a
recompensa final e absoluta, isto é, a assunção ao paraíso. Já numa sociedade laicizada o amor puro e
para o resto da vida coroa o fim do sofrimento e das purgações. Por isso, o herói ou a heroína demonstra
logo de início que possuem todas as virtudes beatíficas, mas num sentido laico. O caráter dos heróis está
pré-definido como nos contos hagiográficos, afinal, santidade não conhece variação, quer dizer, ou se
é ou não se é santo. Assim, como na hagiografia, sabe-se de antemão qual será o papel do herói, como
também do vilão. Também são conhecidos o caráter e a qualidade de cada personagem.
Logo, não se deve buscar na fotonovela a simples identificação da leitora com a trama como
forma de escapismo. Tal qual contos populares, deseja-se histórias que fogem do cotidiano e que
funcionariam como os exempla das hagiografias: o mocinho pobre que se apaixona pela herdeira rica;
a simples operária que desposa o patrão; a heroína que é acusada injustamente de ser ladra e recupera
a sua honra. Histórias que não são comuns e até mesmo improváveis fazem parte da cultura popular.
Mas, além dessa relação com o fora do comum, a fotonovela tem estrutura próxima da
hagiografia. Ela denota que, de uma forma laica, as tramas devem trazer explicitamente a ordem do
mundo: o certo e o errado, o bem e o mal, o que está acima e o que está abaixo. Nestas histórias, o mal
deve ser punido e o bem recompensado. Não há lugar para tentar ultrapassar a ordem do mundo.
A hagiografia fornece exempla. A vida dos santos mostra o caminho para os fiéis, pois, no fim
das contas, são todos imitadores de Cristo. Assim, o sofrimento é suportado com a certeza da felicidade
futura. O mal será vencido e o bem triunfará para todo o sempre. O santo, na tradição cristã, não é
um ser de vontade, isto é, ele é quase que invariavelmente tocado por forças do bem. Como exemplo,
temos Paulo de Tarso. A sua conversão é fruto da aparição do próprio Cristo. Ou ainda Santa Pelágia
A revista Grande Hotel, publicação da editora Vecchi, circulou entre as décadas de 50 e 70. Chegou a ter uma tiragem quinzenal de mais de 200
6
mil exemplares nos anos sessenta. Após a compra da Editora Vecchi pela Editora Globo, a revista deixou de ser publicada.
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 67
percebe-se que são de origem italiana, porém a ação se passa na cidade de Arles, no sul da França.
Podemos inferir qualquer coisa a respeito da cidade ter sido habitada por Van Gogh, portanto já
imortalizada em quadros e também por se situar na bucólica região da Provence. Mas, no desenrolar
da história, percebe-se que por ser uma pequena cidade do interior, ela acaba fazendo o contraponto a
Paris, a grande capital.
Relativamente, a trama é bem simples. A ação começa com duas enfermeiras que comentam o
retorno ao hospital em que trabalham de um renomado cirurgião, Luís, após cinco anos de afastamento
em Paris, motivado pela morte de uma paciente na mesa de operação e, claro, quem estava conduzindo
os procedimentos era ele próprio. O destino quis que a paciente fosse a amada do cirurgião, que
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
praticamente morreu em seus braços. Fica-se sabendo que a enfermeira mais jovem, Sara, era próxima
da paciente que fenecera e não perdoa aquele que seria para ela o responsável pelo seu triste fim. O
trágico está traçado num passado já remoto, mas estende as suas sombras sobre o presente, portanto,
é necessário resgatá-lo de algum modo (este acontecimento, a morte da amada, dá partida a uma
sucessão temporal).
À chegada de Luís, Sara experimenta sensações fortes, pois o médico, já nomeado diretor
do hospital, pede para vê-la e ela não quer denunciar o rancor que sente. No entanto, tudo muda.
Vejamos o narrador: “O grave rosto de Luís, seus olhos velados de tristeza impressionam Sara. É então
aquele o homem que tanto odiou? Uma estranha comoção apodera-se dela.” Evidentemente que se
apaixonam alguns fotogramas adiante, mas não sem obstáculos. O primeiro é superado pelo amor,
quando nos é revelado que a pessoa próxima de Sara era na realidade sua irmã, e tinha uma doença
incurável, portanto, nada podia salvá-la. Esta é uma boa solução, a mocinha não trai a memória da irmã,
que iria morrer de qualquer jeito, enquanto que o herói purgou durante cinco anos a morte da amada.
Dessa maneira, o encontro entre o famoso médico e a simples enfermeira já é o início deste resgate do
passado e a superação da perda de ambos.
Porém, mais obstáculos. Forças se levantam contra os heróis. A primeira é encarnada num
médico, Pedro. Ele é o semi-vilão, o que é muito comum nas fotonovelas, quer dizer, alguém que faz
algumas maldades, mas não é inteiramente mau. Ele é ambicioso e deseja Sara. Sente ciúmes e detesta
Luís. Vê uma chance de levar seus intentos adiante quando uma antiga namorada do médico, Irene,
vem de Paris à sua procura. Esta é a segunda e mais poderosa força que se abate sobre o casal-herói.
Irene tinha aparecido obliquamente através de cartas que enviara a Luís, dizendo que iria atrás dele de
qualquer maneira, pois “o amava”. O modo como escreve já nos dá uma dimensão da personagem que
se confirma no primeiro fotograma em que aparece. A vilã é extremamente maquiada e veste roupas
pouco adequadas para uma mulher de “boa conduta”. Vestidos chamativos, pelo menos é a intenção,
caros e algo provocante. Ela é citadina e o corte de cabelo demonstra sofisticação. O coroamento
do perfil pérfido da vilã é o carro conversível. Enfim, uma Salomé. Sinais exteriores que traduzem a
intencionalidade e também o caráter. Bem ao contrário de Sara que durante toda a trama aparece de
modo recatado, com roupas sóbrias, sem muita maquiagem e com um corte de cabelo simples, de
acordo com o que se espera de uma enfermeira dedicada e amorosa.
Luís rechaça Irene. Conhecera-a, em Paris, após o desenlace de sua amada. Ela queria diversão e
ele buscava algum consolo, mas logo percebeu o seu caráter e termina o relacionamento. No entanto, ela
O final feliz recompõe o passado e extingue a sucessão temporal. O mundo das fotonovelas é
um retorno superior ao passado imóvel.
A ordem nas narrativas, personagens tipologicamente estabelecidos, situações recorrentes
e desfechos quase que invariáveis, são balizas para as mudanças que ocorrem diante dos olhos de
leitores ávidos por ordem social. As histórias claramente marcadas remetem quem lê para algum tipo
de passado, um in illo tempore, isto é, a possibilidade de anular parcialmente o tempo histórico das
mudanças, para recompor a realidade de acordo com um passado melhor do que o presente. Assim, o
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 69
pensamento historicista, que deseja ver no homem contemporâneo um ser essencialmente histórico,
encontra resistência:
esta posição, ainda que seja a mais moderna e, de certo modo, inevitável para todos
os pensadores que definem o homem como um ‘ser histórico’, não conquistou
definitivamente o pensamento contemporâneo. Referimos já várias correntes recentes
que tendem a revalorizar o mito da periodicidade cíclica e até do eterno retorno
(Nietzsche). Essas correntes desprezam não só o historicismo como até a própria
história. Pensamos que podemos detectar nelas, mais do que uma resistência à história,
uma revolta contra o tempo histórico, uma tentativa de reintegrar esse tempo histórico,
carregado de experiência humana, no tempo cósmico, cíclico e infinito.
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
A noção de uma sociedade estabilizada está associada à ideia de um tempo que não passa ou,
se passa, faz-se lentamente.
Percebemos que para esta instabilidade gera-se uma resposta de estabilização. Os mitos
contemporâneos, como vimos, são modos de exorcizar o presente da sua inconstância, do tempo
histórico ou, do terror da história, como afirma Mircea Eliade. A religião reencontrada, o líder, o salvador,
a demonização do outro, enfim, várias práticas sociais que, de certa maneira, recompõem mitos antigos
em contextos contemporâneos. Podemos entender que “a expressão política da mitologia na Idade de
Ouro acaba por ir ao encontro aqui (...) desse tema imenso, multiforme, sempre renascente, inscrito sem
dúvida no mais profundo da história religiosa da humanidade, que é o do Grande Retorno.” (GIRARDET,
op. Cit, p. 137).
O que é mais interessante não é uma possível apropriação do universo popular por um veículo
de cultura de massas, mas a permanência deste universo em sociedades de alto capitalismo ou, no
mínimo, altamente urbanizadas. Isto é, o público leitor da fotonovela é um público citadino que, no
entanto, ainda se deleita com histórias de fundo hagiográfico, porém completamente laicas, atualizando
mitos e formas antigas de ordenação da realidade. Pode-se perceber tal estrutura se compararmos os
personagens das histórias fotografadas com as vidas dos Santos, como vimos acima. Os heróis seguem
a mesma ordem psicológica das hagiografias. A única coisa que os fará vacilar e terem dúvidas sobre
as suas ações é o amor. No entanto, como sentimento superior e objeto final de todas as histórias, ele
será o fator decisivo para a resolução da trama, quando o desentendimento, a falsa acusação, a tentação
serão superados. Afinal, o amor proibido deixará de sê-lo quando os qüiproquós forem solucionados
pela própria força do amor. A morte, prisão ou loucura do oponente malvado liberta o herói de suas
dúvidas e o insere no paraíso secular do final feliz.
Por fim, a fotonovela não é uma imposição simples e pura de uma indústria cultural, mas um
artefato, no qual leitores podem criar as suas próprias significações e estabelecer suas representações
sociais. Porém, há uma grande dúvida que percorre os textos dos historiadores que se ocupam dos atos
de ler. Podemos reconstruir todas as possíveis significações do texto através das práticas de leitura? Ou
o contrário, estas práticas são uma singularidade absoluta? Então, estaríamos numa encruzilhada se,
de um lado, insistíssemos em tentativas de empreender totalizações, estabelecendo um objeto fora do
que os próprios praticantes fazem ou, de outro, se quiséssemos individualizar ao extremo para termos
alguma coisa fiel ao leitor, mas impossível de encontrar correspondências sociais?
a apropriação, tal como nós a entendemos, visa uma história social dos usos e das
interpretações relacionados às suas determinações fundamentais e inscritos nas práticas
específicas que os constroem. Dar, assim, atenção às condições de produção do sentido
é reconhecer que, contra a antiga história intelectual, nem as idéias nem as inteligências
são desencarnadas (...) são pensadas na descontinuidade das trajetórias históricas.
Dessa forma, deve-se entender que as mídias modernas não impuseram práticas da leitura e
formas de apropriação. A recepção marca a passagem do texto ao leitor. As críticas acerca da produção
dos discursos produzida principalmente por Michel Foucault. “Qu’est-ce que c’est um auteur” e “L’ordre
du discurs”, ambos publicados em Dits et écrits, foram incorporadas às práticas dos historiadores. Não há
um sujeito puro de enunciação e não há um destinatário puro do discurso. O que existe é uma relação
de subjetivação. Assim, o sentido dado pelo leitor ao texto, que hoje é colocado pela História Cultural,
especialmente por Roger Chartier, não é a descoberta mais profunda e exata da relação na leitura, mas
a mudança na compreensão do indivíduo.
O regime de verdade que Foucault apresenta no século XIX, não deixa de mudar ao longo
do século XX: de uma exterioridade compartilhada socialmente ela passa a uma subjetividade que só
pode ser experimentada e vivenciada em cada pessoa. Daí as dúvidas entre uma narrativa total e um
relativismo absoluto. Passou-se, nos últimos anos, de uma história do social ao da intimidade; de uma
percepção comum da realidade ao dos sentimentos individuais que só podem ser compreendidos
também individualmente; do Édipo ao Narciso.
A questão não é se render a um ou a outro. Trata-se agora de encontrar as correspondências
entre as práticas dos indivíduos no social, para que se possa dar conta do que é comum, isto é, resistir
tanto à individualização e ao relativismo absoluto, como à história totalizante. O estudo das práticas de
leitura deve encontrar o indivíduo na sociedade.
Assim, para concluir, a compreensão da fotonovela deve fugir das simplificações que a rejeitam
por ser indigna da análise historiográfica. Nela vamos encontrar práticas culturais que podem muito
bem nos explicar formas de organização social e modo de agir no cotidiano. Nela se inscrevem práticas
que não são resultado de imposições de aparelhos estratégicos dominantes, ao contrário, nela vamos
encontrar o desvio e a ordenação do cotidiano de acordo com outra ratio, como afirma Michel de
Certeau xxxiii (1990, p. XLI). Uma ordem que escapa destes aparelhos. Logo:
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural 71
R E F E R Ê N C I A S
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 7ª ed. São Paulo: Cultrix, 1985,
p. 197
ECO, Humberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva (5ª ed), 1993, p. 93
SULLEROT, Evelyne. La presse féminine. Paris : Armand Colin, 1963, p. 106 - tradução
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
livre de minha autoria.
Idem, ibid, p. 18
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli et alii. 2ª ed.
São Paulo: Perspectiva, 1987, p. 105.
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna. Trad. Denise Botmann. São Paulo:
Cia das Letras, 1989, p. 291
CERTEAU, Michel de. L’invention du quotidien. 1. Arts de faire. Paris: Gallimard, 1990,
p. XXXVII - tradução livre de minha autoria
EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, pgs. 38 e 39
MORIN, Edgar. A cultura de massas no século XX. Trad. Maura Ribeiro Sardinha.
Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 81.
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Aurea. Trad. Hilário Franco Júnior. São Paulo: Cia
das Letras, 2003, p. 849
GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. Trad. Maria Lucia Machado. São
Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 129
Chartier, Roger. Culture écrite et société. Paris: Albin Michel, 1996, p. 137 -
tradução livre de minha autoria
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74
INTERPRETAÇÃO DA FICÇÃO, HISTÓRIA E MEMÓRIA NA LITERATURA
Leitores sem face e histórias que não existem: As fotonovelas e a produção cultural
PARTE II
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
CAPÍTULO 5
O artista busca algo debaixo das aparências, algum símbolo plástico que será mais signi-
ficativo quanto à realidade do que pode ser qualquer reprodução exata.
(PAUL SÉRUSIER)
Começo a arrepender-me deste livro. Não que ele me canse; [...], porque o maior defeito
deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; [...], e este
livro e o meu estilo são ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmun-
gam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... (ASSIS, 1975, p.85)
Veja o leitor a comparação que melhor lhe enquadrar, [...] e não esteja a torcer-me o na-
riz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio
que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, [...]. (ASSIS, p.19)
A confissão, umas das características da escrita do eu, se faz evidente, também, em O enfermei-
ro:
Parece-lhe então que o que se deu comigo em 1860 pode entrar numa página de livro?
Vá que seja, com a condição única de que não há de divulgar nada antes da minha mor-
te. Não esperará muito, pode ser que oito dias, se não for menos; estou desenganado.
Olhe, eu podia mesmo contar-lhe a minha vida inteira, em que há outras cousas interes-
santes, mas para isso era preciso tempo, ânimo e papel, e eu só tenho papel; (ASSIS, 21)
Neste caso, o narrador-eu dirige-se ao provável personagem-leitor e editor de fatos de sua vida.
O recurso de comunicação referido é a epístola. O leitor poderia se perguntar: seria a carta ou o livro? No
jogo entre diegese e discurso, pode-se dizer que a diegese apresenta um discurso ficcional epistolográ-
A METAFICÇÃO AUTOBIOGRÁFICA
Dom Casmurro pode ser considerado uma meta-ficção autobiográfica. Meta-ficção por se tra-
tar de um romance que se refere à elaboração estética de um modelo de arte: o romance autobiográfi-
co. Embora não seja, em essência, um romance autobiográfico, acaba teorizando essa forma de arte. O
romance evidencia essa postura crítica, pois que a linguagem-objeto é a própria linguagem em curso,
na sua construção.
Toda discussão do pseudo-autor está comensurada ao objeto a que se refere, isto é, à teoriza-
ção do romance autobiográfico, que é por ele dissimulado. A voz do narrador-eu, que se identifica com
a do autor fingido e a personagem que fala, serve de mediação entre o que narra e o modo de ser do
narrado. Em outras palavras, cria uma arte alegórica. Arte sobre arte. Embora seja, também, uma dissi-
mulação de si mesma:
Não é claro isto, mas nem tudo é claro na vida ou nos livros. (ASSIS, p.110)
Não é que haja efetivamente ligado as duas pontas da vida. Esta casa do Engenho Novo,
conquanto reproduza a de Matacavalos, apenas me lembra aquela, e mais por efeito de
comparação e de reflexão que de sentimento. (ASSIS, p.179)
Nem eu, nem tu, nem ela, nem qualquer outra pessoa desta história poderia responder
mais, tão certo é que o destino, como todos os dramaturgos, não anuncia as peripécias
Na citação, vida e arte se confundem, e, para que os fatos pareçam reais, a voz que conta, finge
o pacto de leitura, cita datas, fala em publicação, joga o momento da escrita com as reminiscências. E
mais, teoriza todo um modo de elaboração discursiva, do título, do livro e da narrativa propriamente
dita. Além disso, dá a impressão de ser a escrita pertencente ao pseudo-autor. Veja os exemplos:
A casa era a da Rua de Matacavalos, o mês novembro, o ano é que um tanto remoto, mas
eu não hei de trocar as datas à minha vida só para agradar às pessoas que não amam
histórias velhas; o ano de 1857. (ASSIS, p.15-16)
Há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique.
(ASSIS, p.89)
Pode-se dizer, nesse sentido, que o centro imutável da autobiografia está relacionado à identi-
dade autor-narrador-personagem. Essa identidade, no romance, aparece de modo dissimulado, não de
fato. O que acontece é, exatamente, uma ficcionalização fingida de uma teoria do romance autobiográ-
fico. Por isso, no título do romance aparece o nome do narrador-eu: Dom Casmurro.
O romance Dom Casmurro é a expressão artística do eu que narra. Este aparece na forma de um
pseudo-autor ou autor fingido e se manifesta como escrita, semelhante à referência a seguir:
Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredubilidade. Chegue a deitar fora este
livro, se o tédio já o não obrigou a isso antes; tudo é possível. Mas, se o não fez antes e só
agora, fio que torne a pegar do livro e que o abra na mesma página, sem crer por isso na
veracidade do autor. (ASSIS, p.74)
O autor fingido é alegórico, pois que representado de outro, que é, no fundo, uma alusividade
pluralista que remete à trindade enunciativa: autor-narrador-personagem. Aliás, a alusão não se limita
apenas à trindade, mas também ao outro de si mesmo na dimensão temporal do “eu-reenvocado” e do
“eu-atual”. Este tenta viver ou resgatar o que foi na adolescência em uma correlação dialética entre a
tentativa de recobrar a memória do passado, supostamente vivido, e a consciência de recriá-lo, metafo-
ricamente, pela escritura, sob o olhar do presente. Como na citação a seguir;
Ficando só, refleti algum tempo, e tive uma fantasia. Já conheceis as minhas fantasias.
Contei-vos a da visita imperial; disse-vos a desta casa do Engenho Novo, reproduzindo
a de Matacavalos... A imaginação foi a companheira de toda a minha existência, viva,
rápida, inquieta [...]. A minha imaginação era uma grande égua ibera; a menor brisa lhe
dava um potro, que saía logo cavalo de Alexandre; mas deixemos metáforas atrevidas e
impróprias dos meus quinze anos. (ASSIS, p.67)
Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também. Quis variar, e
lembrou-me escrever um livro. [...] pensei em fazer uma História dos Subúrbios, [...] foi
então que os bustos pintados nas paredes entraram a falar-me e a dizer-me que, uma
vez que eles não alcançavam reconstituir-me os tempos idos, pegasse da pena e contas-
se alguns. Talvez a narração me desse a ilusão, e as sombras viessem perpassar ligeiras,
como ao poeta, não o do trem, mas o do Fausto [...]. (ASSIS, p.15)
Significa, também, que os fatos relatados foram imaginados ou supostamente vividos, vistos,
observados, descritos e criados exclusivamente por ele. Embora, a narração em primeira pessoa não
possa transpor as barreiras da imaginação livre, ao seu fazer estético, ela tem de se limitar à esfera do
enunciado de realidade. Por isso, o estilo é visto como ligado ao presente do ato de escrever e seu valor
referencial remete ao momento da escrita, ao eu atual.
É a estrutura lógica que dá ao aspecto estético do romance em primeira pessoa um caráter
diferente, uma orientação interpretativa diversa da do romance em terceira pessoa. Porque também
o leitor “toma conhecimento” deste mundo narrado e das personagens nele habitantes por meio do
narrador-eu.
Por outro lado, a leitura de um romance em primeira pessoa deve levar em conta a relação do
mundo humano narrado com o narrador-eu. Este mundo, por ser objeto da enunciação do narrador em
primeira pessoa, nunca é descrito de modo inteiramente objetivo: sempre mistura opinião subjetiva.
A interação entre a objetividade e o subjetivo complica ainda mais, isto porque a narrativa é de
reminiscências. Resgatar o passado pressupõe viver o já vivido, o que é impossível, e, se assim o fosse,
incluiria boa memória, caso que a personagem narradora confessa não ter:
Há dessas reminiscências que não descansam antes que a pena ou a língua as publique.
Um antigo dizia arrenegar de conviva que tem boa memória. [...], e eu acaso sou um
deles, conquanto a prova de ter a memória fraca [...]. (ASSIS, p.89)
A voz que fala, em Dom Casmurro, desde as primeiras páginas, revela a centralização do ponto
de vista unívoco. Só conhecemos as impressões de Bentinho, sombras rememoradas de um presente
(velhice) para um passado (adolescência) que, conforme afirma o próprio narrador, não consegue res-
taurar e resgatar ou as duas pontas da vida: o que foi nem o que fui. Não se pode recompor, sequer, o
que poderia ser nem pela lembrança nem pela escrita: Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é dife-
rente.(p.14).
Tal visão confirma, também, a nova postura do pensamento artístico: não se cria duas vezes a
O NARRADOR E O LEITOR
O pacto de leitura é uma técnica usada no discurso autobiográfico. Tal recurso objetiva dar
maior credibilidade aos fatos narrados, pois que ficam parecendo verdadeiros.
Os críticos costumam, também, atribuir a essa postura dialógica entre autor e leitor, o nome de
estética da recepção. E, à atitude da voz que dialoga, de intrusão, daí o nome de autor intruso.
Wolfagng Iser, o maior expoente da Estética da Recepção, estabelece o conceito de “leitor su-
bentendido”, semelhante ao que aparece no texto de Machado de Assis, a uma personagem construída
pelo texto no sentido de que incarna todas as predisposições necessárias para que uma obra literária
exerça os seus efeitos – predisposições assentes não numa realidade empírica exterior, mas no próprio
texto. (ISER, 1978, p.34).
Nesse sentido, o leitor se torna persona e é, ao mesmo tempo, um existente documental, pois
que de papel. A leitura, nesse sentido, se transforma num processo de aprendizagem em que o leitor
co-participa da ação figurada, na qual ele mesmo é uma escrita.
O tema tratado pelos textos memorialistas não é o da vida individual, o da história de uma
personalidade, características essenciais da autobiografia em que prevalece a introspecção. Nas memó-
rias, a narrativa da vida do autor é contaminada pela dos acontecimentos testemunhados que passam
a privilegiados. A autobiografia propriamente dita seria uma auto-representação: o indivíduo assume
papel preponderante no texto. As memórias uma cosmo-representação.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, a narrativa não se restringir exclusivamente à focaliza-
ção do “eu” que narra, este, ao desencadear a retrospecção, olha não só para si e para os outros “eus” que
com ele interagem, e com os quais estabelece relações recíprocas, mas também para um determinado
contexto histórico-geográfico. Prevalece, no romance, o jogo entre a introspecção e a extrospecção,
pois que o eu funciona como metáfora do mundo e/ou dos outros-eus.
A EXPOSIÇÃO CURRICULAR
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira, do mês de agosto de 1869,
na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos,
era solteiro, possuía cerca de trinta contos e fui acompanhado ao cemitério por onze
amigos. Onze amigos!Verdade é que não houve cartas nem anúncios. (ASSIS, 1975, p.13)
A memória literária, no romance, dá, ao leitor, a impressão ser um discurso verídico, pois que
Machado de Assis: um mestre da escrita do Eu na literatura 81
a personagem-eu finge tão plenamente que as sombras se tornam mais verossímeis que a própria re-
alidade. Desse modo, o fingido tem a aparência do real e se conforma com o que de fato é ficção, ou
forma-arte. Tal postura criativa constitui o centro da tensão entre a aparência referencial fingida, que
chega a apresentar um esboço genealógico, e a forma estética, que se realiza pela insipidez do curricu-
lum vitae à complexa elaboração formal da pura poesia.
Mas, já que falei nos meus dois tios, deixem-me fazer aqui um curto esboço genealógico.
O fundador da minha família foi um certo Damião Cubas, que floresceu na primeira na
primeira metade do século XVIII. (ASSIS, p.15)
O Capítulo Primeiro, denominado “Óbito do Autor”, é um prólogo, no qual se inicia com o dizer da perso-
nagem-narradora. Esta se refere às próprias memórias, ao modo de escrevê-las, isto é, privilegia o modo
discursivo de um defunto-autor.
Por meio de uma narrativa circular: do fim para o início, na qual surge a apresentação do de-
funto com um breve currículo da vida: idade, situação civil, situação financeira e prosperidade, relações
humanas e concepção de vida e de morte.
Nesta parte, há o relato enfático sobre o enterro e a confissão da causa-morte:
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma
idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e
todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo. (ASSIS,
O ato de relatar é também o de (re)memorar. Ao relatar a própria vida após a morte, o narrador
recorda, ou seja, estimula a memória. Ao recordar um fato ou uma coisa, forma-se um círculo virtuoso:
Dessa forma, há um diálogo que se estabelece, no modo de enunciação entre a escrita (que
enuncia) e o leitor real. Isto quer dizer: a voz que enuncia abri-se a nós, leitores. Essa atitude implica o
reconhecimento da superioridade do interlocutor e reforça a idéia das memórias:
Era fixa a minha idéia, fixa como... Não me ocorrer nada que seja assaz fixo nesse mundo:
talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez [...]. Veja o leitor a comparação que me-
lhor lhe enquadrar, [...] e não esteja a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos
à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão,
como os outros leitores, [...]. (p.19)
7 Benjamin, falando sobre as funções e importância do narrador, diz que a experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos
os narradores. Por ele, os outros homens puderam conhecer as histórias, as idéias e as tradições. Com ele, os homens puderam utilizar melhor a
terra, saber sobre as inovações científicas, sobre a moral, a prática, as normas da vida. Era sempre o narrador que dava conselhos aos ouvintes.
Ouvir os conselhos era princípio básico para adquirir sabedoria.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In. Os pen-
sadores. Trad. José Lino Grünnewald et al. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
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THIBAUDEAU, Jean. “Le roman comme autobiographie” . Tel Quel. Paris n. 34, 1968.
CAPÍTULO 6
Objetiva-se no presente texto analisar como João Guimarães Rosa, partindo do comportamen-
to sexual e do erotismo das personagens da novela Buriti, desvela o rígido código moral que sustentava
a família patriarcal, código este violentamente protetor em relação às mulheres e permissivo em relação
aos homens. O autor se atém, ainda, ao processo de transição da família patriarcal sertaneja para a famí-
lia moderna, ou seja, conjugam-se no mesmo espaço e ao mesmo tempo os valores passados, já abala-
dos, e os novos valores que se desvelam no horizonte do futuro. É nesta encruzilhada que se encontra o
sertão da tradicional família ficcionalizada por Guimarães Rosa na novela Buriti.
A obra Corpo de baile – publicada originalmente em 1956, mesmo ano da publicação de Gran-
de sertão: veredas –, é composta por um conjunto de sete novelas, posteriormente desmembradas em
três livros: Manuelzão e Miguilim, do qual fazem parte Campo geral e Uma estória de amor; No Urubu-
quaquá, No pinhém, composto por O recado do morro, Cara de bronze e A estória de Lélio e Lina; Noites
do sertão, composto por Dão-lalalão e Buriti. Cada um desses três livros – formado por um conjunto de
novelas que têm nome e “sobrenome” – faz com que os leitores neófitos na obra rosiana se confundam,
confusão esta gerada propositalmente pelo autor que, a priori, estabelece que, para se adentrar no
sertão de sua linguagem é preciso despir-se do déjà-vu e da narrativa simplista, caminho amplamente
trilhado pela linguagem desgastada pelo uso que, em função deste desgaste, perde o poder encantató-
rio que Guimarães Rosa busca resgatar. Aliás, esta confusão dos títulos é uma constante na obra rosiana,
a exemplo de Grande sertão: veredas, alusão evidente ao livro Os sertões, de Euclides da Cunha, mas
acrescido do adjetivo grande, que dá monumentalidade às veredas do sertão, fazendo com que os leito-
res tendam a confundir as duas obras. Após a publicação de Primeiras estórias, Guimarães Rosa publica
o caráter mais significativo da mudança [da família brasileira] foi a diminuição de início,
seguida pela decadência e atualmente [1951] pela extinção do pai como líder grupal,
graças, sobretudo, à divisão do trabalho social. (CANDIDO, 1951, p. 12).
8
“durante os últimos 150 anos [...] em uma série ininterrupta de restrições sobre suas funções econômicas e políticas, e na concentração das fun-
ções mais específicas da família: procriação e impulso sexual”. (Tradução livre)
9
No presente estudo se adotou a abreviatura B para a novela Buriti, que faz parte do livro Noites do sertão, cujas referências referem-se a: ROSA,
João Guimarães. In: Guimarães Rosa; ficção completa. v. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 863-988.
Iô Liodoro era homem punindo pelos bons costumes, com virtude estabelecida, mais
forte que uma lei, na sidudez dos antigos. Somente que o amor dele pela família, pelos
seus, era uma adoração, era vasteza. Via disso, de certo, não queria se casar outra vez,
depois de tanto que enviuvara. E ele, por natureza, bem que carecia, mais que o comum
dos outros, de reservar mulher. Mas prezava o inteiro estatuto de sua casa, como que
não aceitando nem a ordem renovada, que para ele já podia parecer desordem. (B, p.
872) (grifo nosso).
Esse perfil de Iô Liodoro é uma síntese do patriarca rural brasileiro que, a despeito do encanto
e do charme nos quais Guimarães Rosa o envolve, parece saído de um texto sociológico como o de
Gilberto Freyre, ou de uma análise de Roberto Damatta, ou ainda de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque
de Holanda, como se pode perceber nas citações subsequentes. Gilberto Freyre, em Sobrados e mu-
cambos, afirma que:
o patriarcalismo vindo dos engenhos para os sobrados não se entregou logo à rua; por
muito tempo foram quase inimigos, o sobrado e a rua. E a maior luta foi travada em tor-
no da mulher por quem a rua ansiava, mas a quem o pater-família do sobrado procurou
conservar o mais possível trancada na camarinha... (FREYRE, 1951, v. I, p. 163)
Embora o fragmento acima se refira já, ao espaço urbano, indiscutivelmente, a moral familiar
ainda é ditada pelo comportamento rural e é exatamente em torno das “mulheres de família”, em opo-
sição às outras, que se organiza toda a estrutura da fazenda Buriti Bom, centrada na dupla moral do
pater-familias Iô Liodoro. Tanto é assim que, quando o filho de Iô Liodoro se separa para ir viver com
outra mulher, ele vai à cidade e propõe à nora que passe um tempo na fazenda e esta proposta tem por
objetivo preservar a nora do acesso a outros homens para a eventualidade de o filho, se decidir voltar,
ainda encontre sua mulher às suas ordens e à salvo do assédio de outros homens.
A crise que acompanhou a transição do trabalho industrial (...) pode dar uma idéia pálida
das dificuldades que se opõem à abolição da velha ordem familiar por outra, em que as
instituições e as relações sociais, fundadas em princípios abstratos, tendem a substituir-
se aos laços de afeto e de sangue. Ainda hoje [1936] persistem, aqui e ali (...) algumas
dessas famílias “retardatárias”, centradas em si mesmas e obedientes ao velho ideal que
mandava educarem-se os filhos para o círculo doméstico. (HOLANDA, 1986, p. 202-2030.
O primado da família, acima das instituições abstratas, de ordem mais ampla – que já não
pode ser abarcada, apenas, pelo círculo familiar, do qual a casa seria o centro – já se perdeu ao longo do
tempo. Entretanto, apenas, o senhor do Buriti Bom e sua filha solteirona Maria Behú não se deram conta
destas mudanças inexoráveis. Ele, por continuar acreditando que pode manter sua família gravitando à
sua volta e ela por tipificar a trágica solteirona patriarcal. Será baldada a tentativa do arcaico e deslocado
um brasileiro comum em casa [...] pode falar da moralidade sexual, dos seus negócios, de
religião ou moda de maneira radicalmente diferente daquela que usaria caso estivesse
na rua. Na rua, ele seria ousado para discursar sobre a moral sexual, seria prudente ao
mencionar os negócios e ultra-avançado ao falar de moda. [...] Em casa, porém, seu
comportamento, em geral, marcado por um conservadorismo palpável, sobretudo se
fosse um homem casado e falando de moral sexual diante de suas filhas e mulher (grifos
do autor).
É indiscutível que a novela Buriti, assim como a obra rosiana como um todo, dadas a lingua-
gem, a forma narrativa e sua universalidade: “deriva das operações formais postas em jogo, conferin-
do-lhe uma peculiaridade que a torna, de fato, independentemente de quaisquer condicionamentos,
sobretudo social ” (CANDIDO, 1985, p. 4). Entretanto, é muito marcante a forma com que ele soube
mesclar em seus textos o contexto ao qual ele se reporta, de forma que, muitas vezes, o leitor, surpreso
texto e contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho pon-
to de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro, norteado pela convic-
ção de que a estrutura é virtualmente independente, se combinam como momentos
necessários do processo interpretativo. Sabemos, ainda, que o externo (no caso, social)
importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desemprega
um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno. (grifos do
autor)
A ousadia sexual de Glória, exatamente por ser a sinhazinha da casa-grande, não abala, ape-
nas, a ordem convencional, mas altera, também, o papel tradicionalmente feminino, cujo arquétipo
centrava-se na vulnerabilidade da mulher em relação à sedução: ela, sempre, a seduzida e ele, sempre, o
sedutor. Pois, nesta novela, é ela quem seduz. Além de “se entregar” a um homem mais velho e casado,
ela, praticamente, o obriga a ter relações sexuais, conforme narra a Lalinha, sua cunhada: “ Escuta, Lala:
o Gual se autorizou de mim. [...] Agora não sou mais virgem: sou mulher. [...] Glória, tão linda, e aquele
homem se atrevera... [...] Não Lala. Fui eu que mandei. Quase o obriguei a fazer tudo, a perder o respeito,
que ele tinha demais... ” (B, p. 981).
O elemento subversor não está em uma moça tornar-se amante de um homem casado, pois
tal comportamento foi recorrente ao longo da formação da sociedade brasileira, conforme se afirmou
a propósito das teúdas e manteúdas, mas está em a sinhazinha, filha do principal patriarca da região,
praticamente obrigar seu vizinho, já de meia idade, casado com uma mulata, a tornar-se seu amante.
Mas, há, ainda, outros indicativos de tal ousadia. Glória, por não ter certeza de que Miguel, a
quem ela ama, voltará para pedi-la em casamento e dada sua carência sexual de moça já feita, mas ain-
da virgem, escolhe racionalmente o parceiro mais viável para satisfazer tal necessidade e neste sentido
nhô Gualberto Gaspar é o elemento ideal, pois: ele é estéril; sua mulher já está totalmente destituída
de qualquer atributo físico; apesar de desejar muito Glória ele a respeita em função do seu pai e da sua
família e ela, exatamente por isso, e na contramão da donzela romântica, escolhe racialmente o amante
que está à mão, assim como o faz seu pai em relação às suas mulheres, ou seu irmão, que levara uma
prostituta para morar com ele, naturalmente, longe da casa paterna e das “intocadas” irmãs. . “Eu não
Dona-Dona, quando aparecia, não escondia sua infelicidade. Ela mesma era roxa, escura,
CANDIDO, Antonio. “Brazil: portrait of a helf continent”. In: SMITH, Lyn; MARCHANT,
Alexander. (org). The Dray Press. New York: 1951, p . 292-312.
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 4. ed.
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ROSA, João Guimarães. Guimarães Rosa: ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar,
1994. v. I e II.
CAPÍTULO 7
A esta realização metalinguística, esse autor chamou também de “conotação reflexiva” que,
segundo o crítico, consiste na “propriedade que advém ao discurso através da intenção literária, de se
designar a si mesma enquanto discurso literário, enquanto literatura” (Idem, p. 39).
A segunda consequência vai de par com esta materialização figurativa da linguagem. A obra
chama para si novas significações, numa opacidade e pluralidade de interpretações. Esta polissemia
abre possibilidade para uma plurissignifação, inclusive, significar as coisas do mundo, numa presença
de um certo real que foi chamada de presentificação.
O homem que matou Getúlio Vargas enuncia a denominada “conotação reflexiva”, quer seja
pela intencionalidade literária, ou em todo conjunto metafórico que compõe espírito do texto artístico
e, antes de tudo, é literatura. Porém, ao refletir-se, realiza a presentificação de espaços geográficos e
humanos reais. Presentifica, artisticamente, a história, a problemática econômica e social de vários
países do mundo, incluindo o Brasil, na primeira metade do século XX. Neste movimento, a arte expõe
o questionamento sobre a realidade histórica e humana do Brasil e do mundo naquela época. Assim, o
movimento centrífugo realizado pela obra de arte está explicitado na disposição com que ela se abre
ao mundo exterior e aos seus problemas, presentificando o mundo e interrogando sua realidade e
presença.
Em sua Arte Poética, Aristóteles prescreve que a poesia (arte) “é superior à história porque é
mais filosófica, mais séria e mais universal, pois o artista atribui a um indivíduo de determinada natureza
pensamento e ações, por liame e transfigura realidades. O historiador ao escrever a história de uma
pessoa, narra sua vida em particular e de acordo com a conveniência” (ARISTÓTELES,1987, p.209). O
artista é um filósofo-criador. Assim, define que a diferença entre Heródoto e Homero é que o historiador
conta os fatos que sucederam e o poeta narra os fatos que poderiam acontecer. Portanto, o artista
da palavra é mais filosófico e mais sério do que o cientista, uma vez que o texto do poeta refere ao As artes do humor nas tramas da história
universal, (dotando às suas personagens naturezas, pensamentos e ações um liame de necessidade
e verossimilhança) e o historiador narra fatos particulares, acontecidos que são registrados a partir da
versão teórica - cientifica do cronista da história de um povo.
A narrativa do poeta (do artista da palavra) funciona como um “ritual ou a imitação da ação
humana como um todo, e não simplesmente como uma mímesis praxeos ou imitação de uma ação,
traduz um mito. Assim, o conceito de mito advém de sua relação originária com o enredo da narrativa
(mythos), extraído dos componentes da poesia codificada por Aristóteles, ligado ao sentido primitivo
de “trama” e que passou a significar crescentemente “narração”, acompanhando uma propensão da
narrativa de passar de uma “ênfase ficcional” primitiva para uma tendência “temática” posterior. Diferente
do sentido comum e sobrenatural: “uma tendência para narrar uma estória que é originalmente uma
estória a respeito de personagens que podem fazer qualquer coisa” (RICOER, 1994,p.80). A literatura,
portanto, é ficção – palavra latina que significa “fazer”, “moldar” e ainda “fingir”, “imaginar”, portanto é
criação e enigma. Por isso, o texto artístico traz em si o enigma da Esfinge, “decifra-me ou te devoro”.
100 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
Além do caráter enigmático, a arte literária é si um paradoxo, uma vez que mesmo fazendo referência
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA a alguma realidade, é antes de tudo criação e não quer expressar necessariamente nenhum mundo
preexistente.
Essas reflexões sobre a literatura e a mimese lembraram alguns conceitos marcantes a respeito
desse assunto. Claude Debussy afirmou que “a arte é a mais bela das mentiras”. Esse conceito traduz
o jogo existente entre o ludismos da arte e as correntes da mimese. Também, a possibilidade de a
arte recriar a realidade, dando corpo a outra verdade, levou Pablo Picasso a afirmar que “A arte é uma
mentira que revela a verdade” e o compositor francês Claude Debussy definiu que “A arte é a mais bela
das mentiras”. José Américo de Almeida, em A Bagaceira, assim se pronunciou sobre a arte: “Há muitas
formas de dizer a verdade. Talvez a mais persuasiva seja a que tem a aparência de mentira”. O poeta e
crítico de arte Ferreira Gullar assim se manifestou sobre esta transformação simbólica do mundo: “A arte
é muitas coisas. Uma das coisas que arte é, parece, é uma transformação simbólica do mundo. Quer dizer:
o artista cria um mundo outro - mais bonito ou mais intenso ou mais significativo ou mais ordenado -
por cima da realidade imediata. Naturalmente esse outro mundo que o artista cria ou inventa nasce de
sua cultura, de sua experiência de vida, das idéias que ele tem na cabeça, enfim, de sua visão do mundo”.
Destarte, o artista da palavra não trabalha conceitos, exprime ideias, cria mundos. Nessa
criação, existe um mecanismo denominado “realizante-irrealizante”, defendido por Lefebve ao comentar
a fascinante posição “da imagem mental que parece ganhar uma certa consistência e dá a impressão
de estar prestes a realizar-se”. (LEFEBVE, M J, 1980, p. 12). E que, aplicado ao contexto do romance em
análise, esse jogo entre o real e o imaginário é expresso no discurso do narrador que enuncia verdade
sobre a as tramas da história de muitos personagens como, por exemplo, Mata Hari, Al Capone, Franklin
Roosevelt e Getúlio Vargas. É história e muitas verdades. No entanto, este real, torna-se irreal, quando
narrado por um sujeito que, artisticamente, conta a odisséia imaginária de Dimitri Borja Korozec,
sinalizada por uma tonalidade de biografia que dá um aspecto muito real e, ao mesmo tempo, descreve
ainda situações e personagens que realmente existiram na História da Civilização, num jogo “realizante-
irrealizante” construtor de efeitos fascinantes, só encontrado no mundo da arte.
Estes efeitos são estabelecidos por níveis diversos e complexos mecanismos, o que provoca na
obra literária um caráter de “duplo movimento: o primeiro, denominado centrífugo e pelo qual ela se
abre ao mundo exterior e aos seus problemas e o segundo, centrípeto, que tende, pelo contrário, fechar
a obra sobre si mesma, a constituí-la como seu próprio fim e como seu próprio sentido” (Idem, p. 14).
A arte é sugestão e metáfora, ela não diz isto ou aquilo, ela é, antes de tudo, Arte. No entanto,
o artista da palavra realiza um ludismo artístico marcado por sugestão e faz um convite para que o
leitor descubra os labirintos desse tecido ou fique atormentado pelo enigma da esfinge de Tebas. Dessa
maneira, a constituição desse duplo movimento pode ser comprovada quando o discurso literário
levanta, no prólogo, no epílogo e nos 17 capítulos bem definidos, os dados históricos, os ambientes,
as tramas nas quais o herói foi envolvido, as frustrações ocasionadas pela sua nata inabilidade, a morte
de Getúlio Vargas e o sentimento de fracasso daquele que se supõe agente de um crime que é fruto da
imaginação.
O prólogo tem como cenário a cidade de Ouro Preto, quando ainda era capital de Minas Gerais
e se chamava Vila Rica, em 1897, narra o episódio da vingança e da violência dos estudantes gaúchos e
o assassinato do jovem paulista.
102 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
da história do Brasil como o homem que matou o Presidente e praticou um crime fictício. O anarquista
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA Dimo foi criado para ser agente de um crime que nunca aconteceu, ou, simplesmente, para ser metáfora
da ficção ou da virtualidade da obra de arte.
Dimitri Borja Korozec é um herói guache visualizado nas sete faces da criação. Ele é a própria
representação do humor e obra de arte, a partir da sua sui generis história e formação:
Sua mãe Isabel, é uma contorcionista brasileira nascida em São Borja, no Rio Grande
do Sul. Filha de uma bela escrava (...) e de pai desconhecido, já liberta dos grilhões da
escravidão, pois, enquanto nos pampas soava o primeiro berro da criança, no Rio de
Janeiro a princesa Isabel assinava a Lei do Ventre Livre.(...) os alcoviteiros (...) juravam que
pequena mestiça era fruto ilegítimo (...) Manuel do Nascimento Vargas, posteriormente
pai de Getulio Vargas. (...) Dimitri nasce na carroça de um trapezista búlgaro tendo a
mulher barbada como parteira. É uma criança perfeita, a não ser por um detalhe: tem
um dedo indicador a mais em cada mão. Essa anomalia não chega a chocar e é pouco
notada, pois os doze dedos são absolutamente simétricos. O recém–nascido é logo
banhado nas águas do rio Vrbas e, sete dias depois, a despeito dos inúteis protestos de
Isabel, como manda o ritual da Poluskopi, tem seu testículo direito seccionado e comido
pelo pai.(...).( SOARES, J., 1989, p.17/19)
Dimitri Borja Korozec pode ser classificado como um personagem-herói da modernidade, num
misto de avesso e pícaro. Como herói do avesso apresenta-se como o oposto de Odisseu, pois apesar
de construir sua vida numa grande viagem de ideais e buscas, suas tentativas de ser herói são todas
frustradas, compondo uma caricatura da história dos grandes heróis da vida e da arte. A história oficial
contracena com a história desse herói gauche e ambos são traídos pelo ludismo da arte que, como um
arlequim, vibra com os acontecimentos e são como o próprio Dimitri cheio de estranhamento e de
encanto. Estas características são reiteradas ao longo da história do herói:
Sua figura longilínea e seus modos naturalmente elegantes encantam a todos. Teria,
mais tarde, aquilo que as mulheres chamariam de charme irresistível. É inteligente e
estudioso. Seu jeito desprotegido de poeta faz com que gostem dele à primeira vista.
Tem um único defeito: talvez devido as contorções que sofrera ainda na barriga da mãe,
Dimo é extremamente desajeitado. Nem os dois dedos a mais impedem que os objetos
escorreguem das suas mãos (p.19/20). (...) Durante os treinos, seu corpo é marcado
por diversas cicatrizes, fruto de sua inabilidade natural. (...) Seu atabalhoamento cria
fama entre outros alunos. Os que sabem da extração do seu testículo direito, atribuem,
chacoteando, sua gaucherie ao ritual da Poluskopi. (p.27) (...) Atira novamente. Nada
acontece. (...) Tamanha era sua vontade de assassinar (...) ele enfiara os dois indicadores
ao mesmo tempo no gatilho.(...) A anomalia que todos pensavam ser a marca do
assassino acaba por malograr-lhe a missão.(p.44)(...)Como conseqüência, ele tropeça no
anão e cai por cima de Mata Hari. (...) Ao ver o enorme curativo do qual brota o buquê,
(...) Jamais recebi flores de maneira tão original.(SOARES, J., 1989, p.17/19, p.61)
Dimitri é um mundo virtual, mas esse mundo pode parecer estranho ao leitor e nisso reside a
“estranheza” ou “alteridade” que caracteriza um objeto artístico. De acordo com Susanne Langer:
Essa natureza simbólica da arte e sua peculiar “estranheza” são denominadas muitas vezes
de “transparência”. Essa transparência “é o que nos é obscurecido se nosso interesse é distraído pelos
significados dos objetos imitados; neste caso, a obra de arte assume um significado literal e evoca
sentimentos, que obscurecem o conteúdo emocional da forma”. (LANGER S., 1980, p. 57). Isto porque
as formas no sentido mais amplo estão numa dimensão intelectual a fim de serem percebidas. “O
sentimento está expresso na arte, mas ela não é feita de arranjos de elementos sensoriais, uma vez que
o seu sentimento ou emoção apresenta o caráter qualitativo de conteúdo imaginal, é um espelho e
uma transparência” (Idem, 1980,p.60), a arte é antes de tudo metáfora. É nessa perspectiva que reside o
guachismo e o estranhamento do herói Dimitri Borja Korozec, ele é a metáfora da obra de arte, por este
motivo é que suas peripécias giram em torno de tentativas frustradas de crimes e, quando consegue
praticar o primeiro crime,(o suposto assassinato do Presidente Getúlio Vargas) realiza uma ficção, pois
apenas fez parte da imaginação do artista. A ação fictícia praticada pelo herói, o assassinato de Getúlio,
metaforiza o próprio personagem, pois Dimitri também é pura ficção, não é conceitual e não segue
nenhuma lógica. Desta maneira Jô Soares criou um herói que exprime uma nova maneira, um modo
diferente e inusitado de descrever um herói, ao mesmo tempo que desconstrói (no sentido mesmo de
romper e no sentido também usado por Derrida de análise (do ser do herói tradicional) e decomposição
da imagem).
Diante do exposto, o texto de Jô Soares faz uma imitação da realidade sem reprodução, ou
melhor nega a realidade (herói tradicional) e cria uma realidade única, marcada por uma singularização
que é o novo, a nova roupagem, pois o herói é a própria arte marcada por estranhamento. De acordo
com Chklovski, em seu artigo A arte como procedimento:
O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; “o
Assim, a arte é estranhamento e por ter novidade possui uma idealidade sugestiva, diferente,
nova, misteriosa, barulhenta, silenciosa, instigante, indefinível. O procedimento da singularização
é manifestado na novidade, na maneira diferente de expressar uma idéia sem repetir imagens já
estereotipadas, ou mesmo, se usar uma imagem comum, produzir efeitos novos, situações novas. A
criação deve provocar reflexão. Diante do exposto, a arte é estranhamento e por ter novidade possui
uma idealidade sugestiva, diferente, nova, misteriosa, barulhenta, silenciosa, instigante, indefinível. A
arte não expressa tipos, conceitos ou emoções, significados presentes em sua consciência. E, por ser
um leque de possibilidades, de interpretações, parece que está sempre por terminar, por descobrir algo
nela ou sobre ela; parece que algo está inconcluso. A obra de arte instiga o receptor; a
A partir desses pressupostos, pode ser observado que criador de O Homem que matou Getulio
Vargas usa o mundo real, apenas como um ponto de partida, para pensar na própria essência e no ser da
104 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
arte, dessa forma está diante do movimento centrípeto. Nesse movimento, a arte é manifestada como
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA o centro da existência do próprio mundo que dobra sobre si mesmo, em puro objeto de linguagem. É o
instante denominado de materialização. Nesse momento a obra de arte se isola do mundo exterior, numa
posição fechada sobre si mesma, a refletir apenas sobre o seu próprio fim e sentido. Neste movimento,
a arte não possui uma intenção de ter uma participação ativa diante do mundo; seu discurso ou ação é
gratuito, qualificado por uma espécie de opacidade, na qual a linguagem torna-se obscurecida, próxima
da imagem que fazemos do mito. Dessa forma, esse discurso traz uma comunicação perturbada, que se
quebra no solo de uma possível realidade. Mas, é exatamente neste choque entre linguagem (com sua
gratuidade) e a realidade, que nasce o poético. Lefebve (l980) assegura ainda, “que a arte nasce onde à
comunicação se quebra – ou pelo menos, se altera -, como faísca nasce de um curto-circuito” (LEFEBVE,
M J., 1980, p. 36).
Esta posição metalinguística ou desse movimento centrípeto nos remete ainda ao modo
como a metáfora é trabalhada nessa obra de Jô Soares, quando se observa que o romance é antes,
uma metáfora que evidencia artimanhas da tecelagem de um texto artístico em prosa com suas ações,
personagens, narrador, espaço, tempo e seu avançar sem limite. No entanto, essa metáfora não expressa
uma tonalidade sombria e triste, ao contrário, tem cores que oscilam e brincam como os losangos da
roupa de um arlequim. Dessa maneira, o humor conduz o fio dessa narrativa que tem uma aparência
despojada de austeridade, mas tem, nas inferências, veracidades que as ciências talvez não possam ou
não saibam exprimir. Por outro lado, o texto artístico, com o seu caráter lúdico, cria mundos inusitados
que brincam com a nossa imaginação também.
O estranhamento maior da obra de arte reside no fato possuir um poder de exprimir uma
pluralidade de sentidos que toca e perturba realidades. Por este motivo a arte é poderosa e influente,
na sua intensidade intrínseca, diz muito não dizendo ou exprimindo-se por meio de suas metáforas. E,
da retórica do seu silêncio ecoa zumbidos, ou cricrilos de estranha potência que produzem reflexões
sobre o mundo da arte e sobre o mundo dos homens na dialética entre História x Arte, Real x Imaginário,
Ciência x Arte, Linguagem Eficaz ou Interessada x Linguagem Gratuita, Significado x Significante,
Denotação x Conotação, Transparência x Opacidade, Movimento Centrífugo x Movimento Centrípeto,
Presentificação x Materialização, Intencionalidade de Comunicação (conceituação e objetividade) x
Intencionalidade Literária (enigma), Conteúdo x Forma, Coletivo x Individual.
BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escrita. Novos ensaios críticos. Trad. Mário Laranjeira.
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BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Trad. Albaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco,
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ECO, Umberto. Obra Aberta. Trad. Giovanni Cutolo. São Paulo, Perspectiva, 2001.
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César Cardoso de Souza. São Paulo: Perspectiva, 1976.
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Ribeiro, Maria Aparecida Pereira, Regina L. Zilbermam, Antônio Carlos Hohlfeldt..
Porto Alegre: Globo, 1971.
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SOARES, JÔ. O Homem que Matou Getúlio Vargas: biografia de um anarquista. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
106 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
CAPÍTULO 8
[...] Colón necesitaba la ternura de una mujer, porque era poeta y no sólo caballero, y
aun como caballero, porque era menos contenido que el casto hidalgo de la Mancha.
(MADARIAGA, 1947, p. 224).
O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América 107
feminina, estas pesquisas buscam, num primeiro momento, resgatar textos nunca valorizados pela
crítica de caráter androcêntrico (OLIVEIRA, 1999) e torná-los conhecidos do público leitor e, em segundo,
evidenciar a densidade e complexidade destes textos, elaborados, conforme comenta Guerra, “desde un
sítio otro: el de la subordinación de la mujer”10 (2007, p. 8). Se pensarmos na escrita híbrida de história e
ficção na qual se constitui o romance histórico sob esta perspectiva da crítica feminista, não será difícil
imaginar o árduo cominho percorrido pelas escritoras para que suas obras, inscritas especialmente
neste contexto de expressão do romance, viessem a ter o merecido reconhecimento.
Most life accounts of Columbus have been produced by writers in the United States and
Todos estes aspectos apontados pelo crítico são condizentes com a maioria dos fatos
conhecidos e registrados pela historiografia e pela crítica literária. O que nos intriga, neste sentido, é a
ação do autor de inserir uma nota ao final deste comentário. Nesta nota, Stavans comenta: “Not a single
female author has ever written a biography of Columbus. The only work written by a woman is the novel ‘The
Crown of Columbus’ (1991), actually by the married couple Michael Dorris and Louise Erdrich” 13 (STAVANS,
2001, p. 131-132). A primeira parte da afirmativa do crítico também é coerente com a realidade, porém,
10
Nossa tradução livre: [...] a partir de um outro lugar: o da subordinação da mulher.
11
Nossa tradução livre: [...] surpreende o descuido quase total em que se encontra a narrativa histórica das escritoras, já que, embora o número de
obras indique o contrário, poderia parecer que ainda prevalece a opinião de que a história não é um de seus temas prediletos.
12
Nossa tradução livre: A maioria dos trabalhos acerca da vida de Colombo tem sido produzida por autores nos Estados Unidos e Europa – italianos,
britânicos, austríacos, espanhóis e portugueses. Todos eles homens maduros, em seus quarenta anos. Sua ênfase é sempre voltada aos modos
másculos do marinheiro, à sua sabedoria ou sua tolice, à sua coragem e luta por poder ou à sua sensibilidade e carinho para com sua família e seus
amigos.
13
Nossa tradução: Nem uma única escritora escreveu uma biografia de Colombo. A única obra já feita por uma mulher foi o romance The Crown of
Columbus (1991) – A Coroa de Colombo – (1991), na verdade, trata-se de um trabalho feito pelo casal Michael Dorris e Louise Erdrich.
108 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
no que se refere à segunda afirmativa, o autor foi totalmente infeliz, pois, ao longo deste trabalho,
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA ressaltaremos que a história de Colombo tem sido alvo da escrita ficcional feminina desde o período do
Romantismo à contemporaneidade, especialmente no contexto norte-americano.
Assim, embora venhamos a incorrer em alguns lamentáveis esquecimentos, decidimos
estabelecer um breve painel das escritas ficcionais de autoria feminina sobre Colombo no universo
ficcional norte-americano, hispano-americano e espanhol. Nesse sentido, poderíamos reunir um
conjunto de obras literárias da Espanha e da América, ao menos com a seguinte composição:
- Columbus and Beatriz (1892), de Constance Goddard DuBois (EUA);
- The son of Dolores (1945), de Ida Mills Wilhelm (EUA);
- To the Indies (1949), de Cecil Scout Forester (EUA);
- El ocaso del quinto sol (1978), de Adela Irigoyen (México);
- No serán las Indias (1988), de Luisa López Vergara (Espanha);
- Colombo de Terrarrubra (1994), de Mary Cruz (Cuba);
- The discoveries of Mrs. Christopher Columbus – his wife’s version (1994), de Paula DiPerna (EUA);
- Isabel, reina de América (1999), de Sorkunde Francés Vidal (Espanha).
O quarto centenário da primeira viagem de Colombo à América parece ser o ano em que,
acreditamos, inaugura-se a narrativa de autoria feminina que recria a saga do Almirante, pois nem as
pesquisas de Milton (1992) e de Fleck (2005), e tampouco as de outros pesquisadores da poética do
descobrimento, revelam a existência de romances de autoria feminina no universo literário voltado à
saga de Colombo antes da obra de DuBois. Na vida de Cristóvão Colombo, duas mulheres ocuparam
um lugar de destaque: sua primeira esposa, a portuguesa Felipa Moniz Perestrello, e sua segunda
companheira, a corodobesa Beatriz Henríquez de Arana. Destaque deve ainda ser dado à figura da rainha
Isabel que, como soberana da Espanha na época das grandes navegações, acolheu e apoiou o projeto
inusitado de Colombo apesar da coroa estar passando por dificuldades financeiras devido às tantas
Guerras da Reconquista. Essas mulheres são, pois, os alvos principais em se tratando de configurações
de personagens femininas na ficção sobre o descobrimento. Na narrativa de autoria feminina sobre a
temática do descobrimento estas mulheres também recebem um tratamento especial.
Entre a listagem das narrativas de autoria feminina sobre Colombo, duas obras norte-americanas
merecem destaque. A primeira delas é Columbus and Beatriz (1892), por ser a obra detonadora da escrita
feminina sobre Colombo, e a outra é The discoveries of Mrs. Christopher Columbus – his wife’s version
(1994), de Paula DiPerna, pelo fato de congregar na tessitura do romance os mais relevantes aspectos da
escrita atual no âmbito das escrita híbridas de história e ficção. A escritora Constance Goddard DuBois,
nascida em Zanesville, Ohio, expressa, no prefácio de sua obra Columbus and Beatriz, as intenções de
sua empresa:
It is not the reputation of Columbus that is at stake. History, while accepting his
offence, has readily excused it, – ‘He was a man of his time’, forsooth; but the beautiful
young Beatriz Enriquez, whose life linked to his was undoubtedly a sad one, should be
delivered from unmerited reproach; and the open-minded student of history as well as
the enthusiastic champion of slandered innocence should unite in rendering a tardy
justice to her memory. 14 (DuBOIS, 1892, p. IX).
14
Nossa tradução livre: Não é a reputação de Colombo que está em questão. A História, ao mesmo tempo em que admite seu erro, prontamente o
justifica, – ‘Ele era um homem do seu tempo’, atenua; mas a bela jovem Beatriz Henríquez, cuja vida ligada à dele foi sem dúvida muito triste, de-
veria ter sua reputação revogada de reprovações não merecidas; e o estudante de história de mente aberta, assim como o entusiasta da inocência
mal-falada, deveriam unir-se para fazer justiça, mesmo que tardia, à sua memória.
O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América 109
Há, na obra de DuBois (1892), muitos dos elementos estudados na atual crítica feminista,
dentre os quais podemos destacar a incansável luta das mulheres para trazer à luz personagens
históricas femininas cujas participações em grandes eventos históricos foram decisivos, embora a
história oficial – hegemônica e positivista – tenha registrado apenas as glórias à parcela masculina que
deles participaram.
No romance de DuBois, o olhar de Beatriz vai da admiração da jovem pelo estranho, já no
primeiro encontro – “the young girl rose with a look of wonder and reverence fixed upon the man, whose
15Nossa tradução livre: A jovem garota levantou-se com um olhar de maravilhamento e reverência fixado no homem, cuja face, em sua suave
bondade, era como a da representação de um santo, e cuja forma máscula e vigorosa expressava energia e força.
16Nossa tradução livre: O dia todo a voz de Beatriz soou em seus ouvidos e sua imagem manteve-se à sua frente. Ele não resistia ao prazeroso
fascínio que ela lhe provocava, e parecia um destino inevitável que conduziu seus passos na noite fresca à casa dos Henríquez.
110 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
A obra de Paula DiPerna, The discoveries of Mrs. Christopher Columbus: his wife’s version (1994),
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA chama a atenção, entre outras, por duas razões especiais: propõe uma versão da história de Colombo
sob a perspectiva de uma mulher, numa obra de autoria feminina e, além disso, aventura-se a recriar
no espaço protagônico uma das personagens femininas mais misteriosas dessa história: Felipa Moniz
Perestrello – a esposa portuguesa do Almirante e mãe de seu filho Diego Colombo. A morte de Felipa
parece ter sido um dos fatores que levaram o Almirante a deixar Portugal e buscar apoio na Corte
espanhola.
É interessante considerar, no primeiro aspecto, o que expõe Manuel Fernández Álvarez, em
Casadas, monjas, rameras, y brujas: la olvidada historia de la mujer española en el Renacimiento (2002),
um estudo que analisa a situação da mulher no período em que o romance de DiPerna está inserido. O
que se pode perceber ao ler esta obra é que o Renascimento foi, especialmente na Espanha, um tempo
em que a mulher permaneceu na sombra, aparecendo somente em casos excepcionais, como o de
Isabel, a Católica, e os de outras poucas senhoras de feitos extraordinários. Mas elas estavam, em geral,
destinadas ao silêncio, à exclusão e ao descaso, pois o espaço público era exclusivamente masculino,
cabendo a elas o recato, quando casadas ou reclusas em algum convento, ou transitar às margens do
sistema altamente discriminador. Quando sua situação era semelhante à da segunda companheira
de Colombo – a judia conversa Beatriz Henríquez de Arana, de Córdoba, com quem Colombo nunca
chegou a se casar, embora também tenha tido com ela um filho, Fernando Colombo –, as possibilidades
de alcançar alguma notoriedade estavam totalmente excluídas.
Nessa época, a mulher era ainda celebrada na literatura como a musa dos heróis dos romances
de cavalaria, aparecendo como ideal de perfeição e, sob todos os aspectos, idealizada. Ou, ao contrário,
era vista como uma das criaturas mais temíveis e abomináveis, como as bruxas, que também merecem
destaque em boa parte das obras literárias desse período. Se nos reportarmos a Fernández Álvarez para
situar melhor neste sistema as personagens Felipa e Beatriz, vemos que existiam, para a mulher, “[...] dos
valoraciones distintas, porque hay dos varas de medir también distintas: frente a las damas encumbradas
(las grandes señoras de la Corte), las mujeres sencillas de la vida corriente. Frente a la rendida admiración, el
17
brutal desprecio.” (2002, p. 77). Um sistema como este excluía a mulher da atuação pública, do acesso
ao conhecimento, das possibilidades de se desenvolver intelectualmente ou mesmo de estabelecer
relações por si só, condicionando-a à servidão, seja dos pais, dos irmãos ou dos maridos que lhes fossem
designados.
A posição da história oficial a respeito de Felipa, de quem não há sequer registros sobre a causa,
data e local de falecimento, nem notícias sobre onde poderia estar sepultado seu corpo, dá evidências
de como o poder público tratava a mulher naquela época, considerando-se, inclusive, a questão de que
Felipa pertencia a uma parte da elite, já que era filha do governador da ilha de Porto Santo. Quanto à
Beatriz, nem mesmo seu filho Fernando – biógrafo de Colombo – menciona o seu nome ao longo da
trajetória do Almirante. Dar espaço à manifestação da voz de Felipa no campo da arte literária é, pois,
um aspecto relevante da obra de Paula DiPerna.
17
Nossa tradução livre: [existiam para a mulher] duas valorizações distintas, porque há duas varas de medir também distintas: diante das altas damas
(as grandes senhoras da Corte), as mulheres simples da vida cotidiana. Diante da pura admiração, o brutal desprezo.
O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América 111
Escritoras norte-americanas como Constance DuBois (1892) e Paula DiPerna (1994), contudo
– embora separadas por mais de um século –, não se calam diante da possibilidade que o discurso
ficcional lhes oferece para fazer ecoar a voz de Beatriz e Felipa, reclamando, deste modo, a importância
dessas mulheres no contexto que possibilitou ao navegante realizar a grande proeza pela qual a história
o imortalizou.
Beatriz, pelas circunstâncias e extrato social a que pertencia, representava para seu filho, o
jovem Fernando Colombo, uma mácula que não deveria nunca ser mencionada. Fernando, que veio a
18Nossa tradução livre: [...] dela Colombo recebeu, sem dúvidas, alentos e cuidados; seu coração foi quiçá o único que realmente possuiu naquele
período sombrio, porque no seu próprio testamento a recomenda encarecidamente a seus herdeiros como uma pessoa a quem deve muito.
112 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
de encontrar Colombo do outro lado da vida. Conforme expõe o narrador, esta recompensa “[...] sería
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA la pequeña, la minúscula victoria de quien fue la gran derrotada en una historia de triunfo”19 (PIQUERAS,
2000, p. 18). Este aspecto se conjuga com o propósito de Constance DuBois, mesmo que numa outra
instância, e aproxima-se do ideário feminista contemporâneo.
Tanto a obra de Constance DuBois como o romance contemporâneo de Piqueras tem a jovem
cordobesa como foco narrativo. Tal fato mostra que a ficção, tanto de autoria feminina como masculina,
tem contribuído para revelar pontos de vista bastante significativos, sob os quais a história de Colombo
pode adquirir outras dimensões. Embora este romance de DuBois não tenha tido o mesmo respaldo
da crítica que tiveram seus estudos etnográficos sobre os nativos indígenas do sul da Califórnia, ele
representa, no conjunto total da obra laudatória norte-americana do século XIX, um olhar diferente
sobre o contexto geral no qual se deu a aventura de Colombo, da mesma forma como ocorre na
contemporaneidade com a obra de Piqueras que lança um olhar diferenciado sobre o passado sempre
exaltado pelos historiadores e romancistas espanhóis ao privilegiar a visão de uma mulher no processo
de rememoração desse período histórico. Assim, confirma-se a posição de Fernández Prieto (2003)
ao mencionar as importantes inovações nos romance histórico atual, mesmo aquele de cunha mais
tradicional
A forma como Beatriz Henríquez de Arana é configurada em obras ficcionais como Columbus
and Beatriz (1892) e Colón a los ojos de Beatriz (2000) – que narram a história do Almirante pelo filtro de
seus olhos –, dá-lhes este elemento diferenciador, também utilizado por Paula DiPerna. Em The discoveries
of Mrs. Christopher Columbus: his wife’s version, chamamos a atenção para o foco narrativo centrado em
Felipa Moniz Perestrello, a esposa portuguesa de Colombo. Ao proceder à leitura do passado sob uma
perspectiva feminina, visão excluída das esferas de produção do discurso histórico, revelando aspectos
obscuros desse passado pela voz da mulher que acompanhou Colombo em uma das fases de sua vida,
a ficção encontra formas de dessacralizar o herói, exibindo sua intimidade. Enfatizamos que a paródia
que o texto faz do Diário de bordo de Colombo dá especial ênfase à visão sensível de Felipa com relação
ao “outro” no que diz respeito ao encontro entre europeus e nativos americanos.
Um exemplo que destacamos é a seguinte menção do Almirante, no Diário: “Ellos no traen armas
ni las conocen, porque les mostré espadas y las tomavan por el filo y se cortavan con ignorancia”20 (VARELA
1986, p. 62), fato que, na voz e visão de Felipa, é narrado sob outra perspectiva, que destacamos abaixo:
One of the men had been fingering the hammered brass sheaf of the Admiral’s sword.
Innocently, the Admiral removed the sword from the case to show that off as well. But
before the Admiral could prevent it, the man grabbed the blade, instantly slashing his
own fingers. It was not a serious wound, but he was horrified to see he had drawn his
own blood, and raced away from my husband toward the water. […]. One woman began
to wail loudly as if she expected the man to die. The Admiral too looked shocked and full
of regret. I myself was paralyzed – so quickly had the event occurred […]. Though the
saltwater obviously stung the man’s cut, for he flinched, he let Chachu try to soothe him.
[…]. He walked slowly back to his people, spoke to them, and then one by one of them
walked into the forest, leaving all the gifts they meant to offer scattered in the sand,
dropping everything we had given them as if they were hot coals. In moments, it was as
if every one of them had vanished into another zone of time separated from ours by the
19
Nossa tradução livre: [...] seria a pequena, a minúscula vitória de quem foi a grande derrotada em uma história de triunfos.
20
Nossa tradução livre: Eles não carregam aramas e nem as conhecem, porque eu lhes mostrei espadas e as agarravam pelo fio, cortando-se com
ignorância.
O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América 113
extravagant green line of forest, as if they had never been there at all. […]. I felt deeply
sad, not only by the abruptness of the event, but because it had all been so inadvertent.
21
Before we had even spent a full day here, we had brought harm to this place. (DiPERNA,
1994, p. 184).
A intertextualidade paródica com o texto oficial do Diário de bordo, que apenas menciona o
incidente como resultado da ignorância dos nativos, revela, como vemos no trecho acima, a intenção de
dar a esse passado um novo significado, uma possibilidade na qual há também o olhar de quem quer
ver o “outro” e perceber, com sensibilidade, as suas reações frente ao desconhecido, frente, por exemplo,
21Nossa tradução livre: Um dos homens passava os dedos sobre a bainha da espada do Almirante. Inocentemente, o Almirante desembainhou a
espada para exibi-la também. Mas antes que o Almirante pudesse evitar, o homem agarrou a lâmina, cortando, instantaneamente, seus próprios de-
dos. Não foi um ferimento sério, mas ele estava horrorizado por ver que ele tinha derramado seu próprio sangue e correu para longe do meu marido,
em direção à água [...]. Uma das mulheres começou a entoar altos lamentos, como se pensasse que o homem fosse morrer. O Almirante também
olhava chocado e cheio de arrependimento. Eu estava paralisada – tão rapidamente o evento ocorrera [...]. Embora a água salgada já tivesse obvia-
mente estancado o sangramento do corte, pois ele já se encolhera, permitiu que Chachu tentasse acalmá-lo [...]. Ele caminhou vagarosamente de
volta para seu povo, falou com eles e, então, um a um deles caminharam para dentro da floresta, deixando todos os presentes que eles pretendiam
oferecer espalhados na areia, largando tudo que lhes havíamos dado como se fossem pedaços de brasa incandescente. Em momentos, era como
se cada um deles tivesse desaparecido em um espaço temporal separado do nosso por uma linha de floresta verde extravagante, como se nunca
tivessem estado ali. [...]. Senti-me profundamente triste, não apenas pela brutalidade do evento, mas porque tudo havia sido tão inconseqüente.
Antes de passar um dia inteiro aqui, já havíamos trazido mal a este lugar.
114 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
narrativa de autoria feminina, a temática do descobrimento na literatura dos Estados Unidos também
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA abriga variados pontos de vista, com discursos díspares.
A menção de Ilan Stavans (2001) de The crown of Columbus (1991), do casal Michael Dorris e
Louise Erdrich, é também exemplar nesse sentido. O romance é dividido em capítulos organizados pela
sequência do enfoque que cada um dá a uma das personagens protagonistas: Vivian Twostar e Roger
Williams – Vivian, professora de Antropologia, divorciada, com um filho envolvido com drogas e grávida
de Roger, professor de Literatura que pretende publicar, antes das festividades do quinto centenário
do descobrimento da América, um poema épico em homenagem a Colombo. Ela tem como objetivo
publicar um texto sobre o descobrimento, porém, não consegue começar o projeto. Assim, a narrativa
enfoca o interesse de cada um deles e acaba criando uma aventura policial, pois ela descobre uma
página inédita do Diário de Colombo que os leva a se envolverem com um sujeito que está de posse do
restante do original do Diário. Este homem sempre esteve em busca de um grande tesouro mencionado
no manuscrito, cuja localização dependia da página do Diário que estava em mãos de Vivian.
Deste modo, o poema de Roger retoma toda a trajetória lírica gloriosa dos séculos XVII e XVIII,
referente ao descobrimento, na América do Norte, e a aventura dela faz com que, finalmente, desvendem
o mistério do tesouro mencionado no original do Diário, ao revelar-se que Colombo fora imbuído da
tarefa de trazer algo especial ao Novo Mundo: nada menos que a coroa de espinhos que fora posta em
Jesus Cristo, quando de sua crucificação. A imagem de Colombo como o homem que carregou Cristo
– Cristopherens – através do Oceano, reiterada na primeira biografia do Almirante, escrita por seu filho
Fernando Colombo, concretiza-se nesta narrativa contemporânea.
Na literatura espanhola, a figura de Colombo tem servido como tema para a escrita de autoria
feminina com propósitos voltados ao interesse geral da temática neste contexto, ou seja, a exaltação
da empresa descobridora – com destaque sempre para o empreendedorismo dos Reis Católicos, a
força, a coragem e a dedicação dos marinheiros espanhóis envolvidos no projeto, especialmente os
irmãos Pinzón, e a ampliação dos horizontes humanos proporcionada por tal empresa. A temática do
descobrimento, neste universo, além da continuação da prática laudatória das ações do descobrimento,
tende fortemente para a linha tradicional do romance histórico em termos de estrutura. Embora se
percebam alguns aspectos de tendência contemporânea, mencionados por Celia Fernández Prieto
(2003), como o uso de relatos feitos em primeira pessoa e a subjetivação da história, os recursos aplicados
pela grande maioria dos romancistas espanhóis na tessitura das obras da temática se distanciam do
discurso paródico e carnavalizado empregado na grande maioria das obras da temática na literatura
hispano-americana e, em partes, também na norte-americana.
A obra de Luisa López Vergara – No serán las Indias (1988) –, por exemplo, reconstitui, com
abundância de detalhes, os sete anos de perambulação de Cristóvão Colombo pela Corte espanhola
até o momento da aceitação do seu projeto, englobando o período que vai de 1485 a 1492. Esta obra
pertence ao corpus de análise da tese As histórias da história: retratos literários de Cristóvão Colombo
(1992), de Heloisa Costa Milton, na qual se faz uma profunda análise do processo de exaltação presente
no romance. Este processo, segundo constata Milton, volta-se para três distintas entidades que
O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América 115
ultramarina; e a Colombo, por ter perseguido tenazmente a realização do seu objetivo
como um legítimo enviado de Deus [...]. (1992, p. 108).
Mais recentemente, temos, neste universo literário, a obra de Sorkunde Francés Vidal, Isabel
reina de América (1999), na qual o processo de exaltação se dá, entre outros elementos, com a imagem
de uma personagem feminina nunca relacionada às aventuras de Colombo: a infanta Juana – filha mais
velha da rainha Isabel e do rei Fernando, conhecida na história pela alcunha de La Loca pelos distúrbios
psicológicos que apresenta após herdar o trono de Castela e Aragão, quando da morte de seus pais –
El cabello apenas esparcido por la suave brisa, multiplicaba los brillos y reflejos del sol,
que aureolaban su cabeza como si de un elegido de los dioses se tratara. La belleza de
la estampa caló en el corazón de la gente sencilla, en los espectadores del puerto, que
admiraban la fuerza de aquel hombre excepcional.22 (FRANCÉS VIDAL, 1999, p. 381).
22
Nossa tradução livre: O cabelo um pouco esparzido pela suave brisa multiplicava os brilhos e reflexos do sol, que aureolavam sua cabeça como
se tratasse de um dos leitos dos deuses. A beleza da figura incutiu-se no coração da gente simples, nos expectadores do porto, que admiravam a
força daquele homem excepcional.
116 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
hispano-americano. A obra de Irigoyen volta-se para as consequências das ações de Colombo e centra-
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA se na conquista do México. Já a narrativa de Cruz atém-se a uma revisão do período histórico no qual as
ações do Almirante são protagônicas.
Durante muito tempo, a chegada das esquadras européias na América, comandadas por
Colombo, foi retratada apenas sob a ótica masculina. Mais recentemente, escritoras de diversos países
também têm se inspirado na história da conquista do “Novo Mundo” para comporem suas narrativas.
Assim, a escritora cubana Mary Cruz descreve os preparativos, anseios, temores e expectativas das
viagens de Colombo e sua tripulação no romance Colombo de Terrarrubra (1994) por meio do narrador/
personagem Antón de Alamidos – figura histórica que integrou o grupo de marinheiros da primeira
viagem de Colombo e que, ao embrenhar-se nas selvas americanas, acabou se perdendo e, assim,
permaneceu por vários anos vivendo entre os nativos até conseguir regressar à Espanha.
Mary Cruz cria uma diegese na qual Cristóvão Colombo é concebido sob diferentes olhares,
passando de mero “estrangeiro aventureiro” até o auge de sua carreira, com o acúmulo de títulos e
glórias. A narrativa, todavia, não aborda apenas a ascensão de Colombo, nem sua imagem de homem
sábio e bondoso. O narrador, que se utiliza da visão e voz de Antón de Alamidos, deixa transparecer
seu descontentamento em relação a algumas atitudes do comandante, como os castigos impostos
aos índios em determinadas circunstâncias. Além disso, Alamidos narra a decadência do prestígio de
Colombo perante a sociedade espanhola e dos reis soberanos. Assim, a autora cria uma narrativa que,
ao fundir ficção e história, configura Cristóvão Colombo em sua essência humana, expondo toda sua
altivez e suas fraquezas.
O romance de Mary Cruz mostra que Colombo queria, na verdade, ao comandar as navegações
rumo ao Ocidente, era uma lista de honrarias e privilégios materiais. Um de seus desejos era ser
reconhecido como Almirante do Mar Oceano. Como testemunha das ações do Almirante, Antón
declara que “los ojos del Almirante proyectaban sobre las cosas lo que deseaba o suponía él, y si bien llegó
a saber lo enorme de su Descubrimiento, no calibró la inmensidad de sus errores, los cuales, no empeciente,
en nada minoran su hazaña”23 (CRUZ, 1999, p. 268). Destaca-se, nestas palavras da voz enunciadora, a
importância da perspectiva heterodiegética, que possibilita ao narrador analisar as ações de Colombo
com base naquilo que a personagem/narrador presenciou.
A obra de Mary Cruz – um romance histórico contemporânea de mediação pela estrutura e
recursos que apresenta – assemelha-se ao romance de Paula DiPerna, com a diferença de que, neste
último, há a presença de um foco narrativa feminino que, em uma perspectiva autodiegética, revela
como as motivações de Colombo e sua empresa descobridora afetaram a sua existência. Este é um
elemento que destacamos como especial na obra que compõe nosso corpus, uma vez que a inserção
deste foco narrativo no contexto do evento histórico pode ser bastante significativa.
No enfrentamento entre as imagens públicas e privadas das personagens históricas recriadas
pela ficção, os atos humanos ganham a sua plenitude e o leitor vê-se, assim, retratado nessa realidade
que fica aí plasmada. Os estudos da crítica feminista – desde suas primeiras manifestações – sempre
23Nossa tradução livre: […] os olhos do Almirante projetavam sobre as coisas o que desejava ou supunha ele, e se bem chegou a saber da dimensão
de seu Descobrimento, não calculou a imensidão de seus erros, os quais, não obstante, em nada diminuíram a sua façanha.
O (re)descobrimento da América pela ficção: Colombo na narrativa de autoria feminina – Novos olhares sobre o passado da América 117
estiveram atentos a essas possibilidades da literatura e buscam, sob diferentes meios e estratégias, um
espaço próprio que lhes garanta a inclusão, a representação e a valorização adequadas.
Esta também é a intenção que se percebe na escrita de autoria feminina sobre a temática
do descobrimento da América: um universo literário no qual se encontram conjugados romances
históricos tradicionais, segundo as características apontadas por Márquez Rodríguez (1991), novos
romances históricos, de acordo com as singularidades dessa modalidade registradas por Aínsa (1991)
e Menton (1993), até as obras que consideramos romances históricos de mediação (FLECK, 2007),
118 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA R E F E R Ê N C I A S
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120 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
CAPÍTULO 9
Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde, 1981), quando define o regionalismo em 1923, define-o
pelo provincialismo em seqüência ao brasileirismo. Situa-o como ponto de chegada de um percurso
localista iniciado com o que ele chama de americanismo, transformado, posterior e sucessivamente, em
brasileirismo e depois regionalismo, em contato com a literatura transplantada da Europa para o país.
Diz ele, em sua monografia Afonso Arinos (1981, p. 89)
No correr de toda a nossa história literária foi o contato da literatura importada com esse
elemento local – cujo primeiro fruto surge com [...] canções e contos do povo – que provocou a
diferenciação nacional de nossa literatura.
Daí nasceram o americanismo, mais tarde o brasileirismo, e, afinal, o regionalismo, formas cada
vez mais acentuadas de espírito local.
Para ele, o localismo nasce do universal transplantado para o local, nas etapas de assimilação,
elaboração e expansão, que geram o amadurecimento da literatura e fazem com que ela retome, então,
o veio universal que a gerou (Idem, p. 93):
Estamos longe de julgar que uma literatura só valha pela originalidade local. Toda
literatura nacional é tanto maior quanto mais universal. Ao que se pode acrescentar que
será tanto menor quanto mais prematuramente ou levianamente universal. A verdade
está no momento e na necessidade de expansão.
O traçado do percurso que, para Alceu Amoroso Lima, produz o regionalismo é o do movimento
endógeno, de afunilamento de perspectivas. De um sentimento geral, americano, a um particular, o
provincialismo, através de cinco grandes fases: americanismo, indianismo, brasileirismo, sertanismo e
regionalismo.
O americanismo não é atribuído necessariamente ao Brasil, mas à América, à diferença que
apresenta a produção colonizada mediante uma ação própria da natureza, da mentalidade ambiente,
frente à produção européia.
O indianismo já é, para ele, uma face mais pormenorizada desse sentimento, isto é, a selva é
continental, embora não brasileira, e leva mais à América que ao Brasil propriamente falando.25
Com o brasileirismo, a nação se recorta na literatura e busca se unificar. Nascido com o
Romantismo, recorta-se em cinco grandes formas, segundo os meios físicos diferentes, abrangendo
as diferentes faces da realidade nacional como tema: as cidades, as praias, os campos, a selva e a
24Um argumento desse encontra seus pares na história literária. Para ficarmos com três exemplos, Oswald de Andrade não propôs outra atitude que
essa fusão literatura local e transplantada em seus manifestos antropofágicos; Guimarães Rosa representa essa fusão de literatura erudita fruto do
alto modernismo europeu, com o paradigma oral, local, brasileiro e sertanejo; e um crítico como Antônio Cândido defende nesse mesmo sentido a
formação da literatura brasileira – literatura transplantada como matriz universal imprescindível para o sistema particular nosso.
25Se atentarmos para o fato de que o indianismo não é uma corrente literária americana, mas transplantada da Europa (v. Nelson Werneck Sodré,
História da Literatura Brasileira), percebe-se o que Alceu Amoroso quer dizer. O indianismo é resquício do olhar do europeu sobre o continente, o
Novo Mundo, desde o Renascimento. Tanto é que, de uma forma ou de outra, ainda mantém o colonizador europeu sempre como temática de con-
traposição: é assim com o Caramuru, O Uruguai, Iracema ou Atala, René de Chateaubriand, ou O Último dos Moicanos de Cooper.
26As cidades suscitariam, segundo Alceu Amoroso, o brasileirismo urbano, sendo o primeiro em data desse gênero Memórias de um Sargento de
Milícias, de Manoel Antônio de Almeida, que frutificou em José de Alencar, Joaquim de Macedo, Aluísio de Azevedo, Machado de Assis, Lima Barreto,
entre outros, “de cunho acentuadamente brasileiro, sendo os costumes que retratam todos em geral urbanos e caracteristicamente locais” (p. 99); as
praias destacariam Xavier Marques, Batista Coelho; as selvas levaram ao indianismo; e dos campos proviria o sertanismo; das roças, o roceirismo, e
iniciaram-no as Comédias de Martins Pena, por volta de 1838.
122 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
espontâneo. No entanto, capaz de esboçar uma identidade nacional, mesmo que relativa ou dispersa
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA em várias realidades brasileiras, e de criar uma literatura distanciada dos moldes clássicos (Idem, p. 104),
o que significa dizer que ali nasceu uma alteridade, ou seja, um sistema literário de produção que tem a
ver com um espaço social isolado, que se está contrapondo ao conhecido.
Com o aparecimento de Inglês de Souza e O Cacaulista, de 1876, a corrente sertanista entra
numa segunda fase. Impregnado do meio amazônico, descrevendo cenas e tipos peculiares do extremo
Norte, Inglês de Souza é quem marca o início da orientação regionalista no sertanismo. Acentua-se, com
ele, o provincialismo – ainda o movimento endógeno – antes mais exterior ou apenas sentimental.
N’O Missionário, de 1888, já é debatido o “peso que o meio ambiente tem no espírito” do homem,
anunciando o naturalismo localista. O sertanismo aproxima-se mais da realidade, cuidando de maior
“verossimilhança na ação e nos tipos, mais objetividade nas narrativas, mais naturalidade na língua (embora
a simples reprodução do falar sertanejo) e uma subjetividade mais rica e mais profunda na criação”. (Idem:
108), uma subjetividade com a qual novos leitores poderiam se identificar, dando-se mais um passo
rumo a um novo horizonte de expectativas de leitura.
Com maior nitidez, o sertanismo passa a ser mais espontâneo de forma (apesar dos percalços),
até porque sua manifestação se tornava cada vez mais necessária à expressão provinciana na alvorada
da República.
O que Alceu Amoroso Lima afinal parece querer dizer é que o regionalismo é o ponto de
chegada do brasileirismo, o ponto redutor de uma dialética ambiental expansiva desse, alastrada pelos
diversos ambientes da realidade brasileira – as cidades, as praias, os campos, as roças -, a uma dialética
ambiental mais reduzida: cidade e sertão – talvez o momento frutificador daqueles quatro – assimilação,
elaboração, frutificação e expansão – que ele dispõe para o processo de formação da literatura nacional.
O que significa dizer ainda que, para ele, o regionalismo foi eficaz na construção da originalidade,
representação e expressão que demandou o nosso Modernismo, o qual também esteve à procura do
originário brasileiro. Mas a formulação dada pelo provincialismo regionalista sem dúvida redesenhou
o panorama da literatura brasileira à época (e ainda hoje desenha, de certa forma) que, a partir daí,
encaminhou, cada qual à sua maneira, a literatura brasileira rumo à sua maturidade ou autonomia: a
cidade, primeiro; o sertão, depois. A cidade, desde Machado de Assis; o sertão, desde Euclides da Cunha,
com Graciliano Ramos pelo meio e com Guimarães Rosa ao fim.
Essa resenha sobre Alceu Amoroso Lima parece entender o regionalismo como corrente
fundamental ao processamento da literatura brasileira de modo geral, encontrando para ele um devido
lugar e uma devida função na totalidade do sistema.
Ao estabelecer o jogo entre a literatura transplantada e a local, e desenhar o sertanismo como
uma entre as diferentes faces que tomou o brasileirismo de então, inclusive a literatura urbana, Alceu
de Amoroso Lima consegue parear aquele a esta, ambos como elemento de igual valor e função para
uma totalidade maior, a despeito da maior ou menor adequação formal ou temática que pudessem
apresentar.27
27Não se desdenha o fato de que, por exemplo, Machado de Assis, na literatura urbana (ou esta, de maneira geral), chegou primeiro ao localismo
universalizado, se é que se pode dizer assim. Isso se entende e se releva. Mas o que se busca conhecer também é a possível convivência da literatura
de Machado de Assis, com a de Afonso Arinos; ou a de Lima de Barreto, traçando uma etnografia da cidade ao lado da de Hugo de Carvalho Ramos
traçando uma etnografia do sertão.
O conceito de transculturação narrativa de Rama (1982) aponta para muitos dos conceitos de
Alceu de Amoroso Lima – o localismo, a literatura transplantada e a fusão, que ele chama de “plasticidad
cultural” para o conflito vanguardismo/regionalismo na América Espanhola.
28Tanto é que, depois desse surto, o que a literatura brasileira enxerga é a antropofagia oswaldiana, de que o Macunaíma de Mário de Andrade, ou
Cobra Norato de Raul Bopp, nesse sentido ataidiano, viriam a ser a grande transição.
Macunaíma é, de um lado, a nova visão (agora crítica) do localismo, da gente e da paisagem que o herói percorre de Norte a Sul, do sertão à cidade.
Ao mesmo tempo é a síntese (também crítica) de todas as idéias que, desde meados do século XIX, a intelectualidade vinha elaborando em termos
de raça, de história e de psicologia social, e que resultaria no brasileiro médio criticado de herói sem nenhum caráter, inclusive já permeado das
idéias contemporâneas suas, de Paulo Prado, por exemplo.
Ademais, a elaboração mítica e o primitivismo dessas duas obras as colocam na trajetória que Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa percorreria,
elegendo-se como a representante máxima da cultura brasileira, embora não mais regionalista, como quer a crítica, ou super-regional, como assina-
la Antônio Cândido, mas localista no mais puro sentido da palavra.
124 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
Este conceito de Rama foi refeito a partir do conceito antropológico de Fernando Ortiz que, em
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA 1940, questionava o termo aculturação, substituindo-o pelo de transculturação, que expressava melhor,
segundo ele,
as diferentes fases do processo transitivo de uma cultura a outra, e que não consiste
somente em adquirir uma cultura, que é o que a rigor indica a voz angloamericana
aculturação, mas que o processo implica também necessariamente a perda ou
desenraizamento de uma cultura precedente, quer dizer, uma parcial desaculturação.
Ademais, significa a conseqüente criação de novos fenômenos culturais que se podem
denominar neoculturados. (Ortiz, apud RAMA, 1982, p. 53)
Essa concepção das transformações culturais traduz visivelmente, diz Rama, um perspectivismo
latino-americano. Revela resistência em considerar a cultura própria, que recebe o impacto externo,
como uma entidade passiva, sem nenhuma classe de resposta criadora.
E, quando ele aplica a descrição da transculturação às transformações narrativas, corrige a
visão de Ortiz, incorporando àqueles três momentos culturais de parcial desaculturação, incorporação
e recomposição, os critérios de seletividade e invenção, que certificam
a energia e criatividade de uma comunidade cultural. Se esta é viva, cumprirá esta seletividade
sobre si mesma e sobre o aporte exterior, e, obrigatoriamente, efetuará invenções com a “ars
combinatória” adequada à autonomia do próprio sistema cultura. (RAMA, 1982, p.38)
Há, dessa forma, quatro operações básicas em todo o processo: perdas seleções, descobertas e
incorporações, que existem concomitantemente e se resolvem todas dentro da reestruturação geral do
sistema cultural, que é a função criadora mais alta que se cumpre dentro de um processo transculturante.
(Idem, p. 39).
As forças reitoras que movem as culturas nesse âmbito são, tanto em Rama quanto em
Alceu Amoroso Lima, a imposição colonizadora na América rumo à criatividade conseguida à custa
da representatividade localista, ou do que se percebia como notoriamente distinto das sociedades
colonizadoras: só que, no caso de Alceu Amoroso Lima, a contraposição é feita pela temática do meio
físico, a composição étnica heterogênea, a sociedade, o grau de desenvolvimento, etc.; no caso de
Rama, pela “plasticidade cultural” em busca de soluções artísticas.29
Até hoje, e muito por causa de atitudes redutoras como as que a crítica literária impõe ao
regionalismo, é comum tratá-lo como corrente nacionalista e localista, frente à universalista, de linha
mais urbana, o que pode ser desfeito se pensarmos como Rama e Alceu Amoroso que o localismo é
um conceito contraposto ao de literatura transplantada, portanto mais ampliado, atingindo inclusive a
literatura urbana, e não um conceito que se confronta com qualquer outro tipo de literatura ou que se
29Esse eixo histórico é o eixo através do qual tem caminhado grande parte das concepções inventivas e críticas de nossa cultura literária: a preferên-
cia pela perspectiva sócio-política de elaboração e análise, na maior parte desprovida da consciência de que a representatividade através da forma
é mais correta e alcança mais originalidade que a representatividade através dos temas e das diferenças exteriores, quase sempre mais primárias e
vulgares. Se esse pode ser um equívoco parcial de Alceu Amoroso, com certeza não é de Rama. No entanto, foi uma perspectiva consentida entre
os literatos latino-americanos de modo geral que lavoraram na missão de construir a literatura nacional. Tal foi programa (é) de vários de nossos
escritores desde a Colônia, e foi, essencialmente, uma perspectiva assumida pelo regionalismo. Hugo de Carvalho Ramos, por exemplo, escritor do
regionalismo goiano, chegou a propor uma associação de literatos, talvez por uma analogia com os movimentos cearenses de grupos, para construir
pela literatura a independência nacional.
O processo analisado por Alceu de Amoroso Lima que descrevemos mantém um conceito
de história ainda evolucionista, e a transculturação de Rama de certa maneira enfatiza um ponto
conciliatório mais estético e formal. Já o conceito de literatura heterogênea do crítico peruano Cornejo
Polar parte do mesmo ponto – literatura transplantada – mas se detém, sobretudo, na perspectiva da
alteridade que certas literaturas (ou qualquer produção cultural), como a regionalista, mantêm. No
ensaio “El Indigenismo e las Literaturas Heterogêneas” (POLAR,1977), estuda a literatura indigenista latino-
americana a partir dos signos socioculturais que a compõem e percebe-a numa situação de alteridade
formulada a partir dos seguintes agentes: a sua produção efetiva por um escritor que, embora nativo,
se utiliza de processos de uma literatura transplantada pela colonização; o seu referente empírico
diferenciado em culturas contrapostas; e o seu consumo normalmente destinado a um público que
desconhece o referente sobre o qual lê.
Essa pluralidade de signos funda, para ele, uma produção textual no mínimo contraditória,
porque tem um elemento que “não coincide com a filiação dos outros e que cria na obra, necessariamente,
uma zona de ambigüidade e conflito”. (POLAR,1977, p.12). A essas literaturas ele as chama literaturas
126 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
Efetivamente, pode-se dizer que a literatura regionalista mantém um referente empírico que
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA contrapõe, mesmo que de forma mais amenizada, culturas diferenciadas, no caso a do campo (rural),
objeto do relato, e a da cidade, cultura hegemônica do escritor. Isso porque, de fato, ela não se tem
caracterizado como uma literatura do homem do campo, mas sobre ele.
As definições e as críticas que a história da literatura brasileira faz ao regionalismo – o apego
às descrição de usos e costumes rurais, ou o distanciamento do narrador e a artificialidade do relato,
entre outras – são normalmente definições e críticas dessa contraposição de culturas diferenciadas, que
permite falar da alteridade e do descompasso, desse encontro de distintos espaços sociais e culturais de
onde fala o escritor. E é justamente isso o que revela a literatura heterogênea segundo Cornejo Polar.
Freqüentemente, a crítica tem aliado, nesse sentido, a literatura regionalista ao registro e ao
documento30, característica que vem sendo assinalada como negativa, mas onde residem, de fato,
valores socioculturais. São valores ligados à memória, à tradição, à literatura oral, que guardam, além de
tudo, um objetivo estético. E incluem o leitor, que pode se identificar, através deles, com um outro ritmo
e outros conteúdos da língua. A referência documental gerou, na obra regionalista, especialmente no
regionalismo finissecular e do início do século 20, o gosto pela miscelânea, ou seja, sem nenhum tipo
de pejo literário, o escritor regionalista colocou em sua obra, lendas, trovas e superstições recolhidas,
História (em rodapés), introduções informativas, glossários etc. ao lado de seus contos criativos. Se isso
fez a relação referente de obra/referente empírico mais próxima neste tipo de literatura que nos outros,
relação que, ampliada, adjetivou o universo do relato como particular frente a outros considerados de
temática universal, justamente porque distanciados de um referente empírico tão comprovadamente
próximo da verdade como pretendeu ser esse regionalismo, isso também pode ser olhado com o
penhor da heterogeneidade de que fala Polar, especialmente quando avaliada a questão da literatura
canônica transplantada, a questão maior dos três críticos que focalizamos aqui.
Nesse sentido, a questão principal que encorpa a literatura regionalista parece ser a do escritor
com a consciência de pólo hegemônico, como disse Cornejo Polar. Antônio Cândido faz uma crítica que
confirma isso em seu ensaio “A Literatura e a Formação do Homem” (1972, p. 808), quando diz:
Nos livros regionalistas, o homem de posição mais elevada nunca tem sotaque,
não apresenta peculiaridades de pronúncia, não deforma as palavras [...] Quando,
ao contrário, marca o desvio da norma do homem rural pobre, o escritor dá ao nível
fônico um aspecto quase teratológico, que contamina todo o discurso e situa o emissor
como um ser à parte, um espetáculo pitoresco, como as árvores e os bichos, feito para
a contemplação do homem culto que se sente confirmado em sua superioridade. Em
tais casos, o regionalismo é uma falsa admissão do homem rural ao universo dos valores
éticos e estéticos.
E Alfredo Bosi, no prefácio ao livro de Carlos Guilherme Mota Ideologia da Cultura Brasileira
(1985), discutindo a diferenciação lingüística entre a cultura dita popular e a erudita, as relações que os
chamados códigos altos mantêm com a vida e a mente do povo, indica a postura do escritor perante a
literatura como o fundamento que gera os descompassos acima observados por Antônio Cândido. Diz
ele:
30Documental aqui aponta para a insistência da obra regionalista de referir-se ao “in loco” daquilo que narra, assim como a prática de recolher os
diferentes aforismos, superstições, usos e costumes etc. do universo que narra e registrá-los num sentido quase etnográfico. Essa prática tem estado
presente nos depoimentos dos autores e vem se exercendo de maneira às vezes insatisfatória, como é o caso de muitos regionalistas que não alcan-
çam uma expressão “transculturada”, ou nos regionalistas que a alcançam, como nos casos soberbos de G. Rosa ou Graciliano Ramos.
Segundo J. A. Pasta Jr., no ensaio “Cordel, Intelectuais e o Divino Espírito Santo” (Apud BOSI,
1985), essa afirmação de A. Bosi tem a reflexão tão fundamental quanto rara sobre a limitação do
intelectual fechado numa “visão representativa da atividade artística, determinado pela fetichização
dos emblemas mais adequados do discurso representativo – o mundo das obras de arte” (p. 64). O
afastamento dessa linguagem surge não das origens do intelectual na matriz escrita, mas de uma
determinada concepção (transplantada) de literatura. Por exemplo, o esquema da representação
clássica que fetichiza o lugar do nascimento da noção de obra e recusa a obra de arte popular a partir
disso.
O que significa que a questão é tanto de linguagens diferenciadas quanto de modelos
literários eruditos e transplantados, pré-estabelecidos, a que o escritor se prende. Esse o impasse. E
só quando o escritor deixa a sua linguagem literária se ferir internamente por uma alteridade radical e
irreconciliável é que ele pode, através desse próprio dilaceramento, entrever a imagem do outro que o
condena à parcialidade e à arbitrariedade. A consciência de sua arbitrariedade, o auto-questionamento
é que levam o escritor a fazer com que sua literatura saia de si, que sejam retiradas as bases de uma
universalidade que se supunha constituída dentro dos cânones reguladores da mimese transplantada
– a homogeneidade, a distância estética, a comunicabilidade e a verossimilhança – que é destruída e
esfacelada (p. 65), trocada por um outro cânone, próprio ou específico (transculturado), constituído a
128 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
nossas sociedades. Esta única comprovação, talvez óbvia mas necessária para não se
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA cair nos excessos de etnicismo, modifica substancialmente todo o campo do problema.
Efetivamente, a perspectiva histórica obriga a considerar, em que pese a pluralidade real
de nossas literaturas, que existe um nível integrador concreto: o que deriva da inserção
de todos os sistemas e subsistemas num só curso histórico global.
31Por exemplo, a noção de sertão, que pertence ao imaginário identitário brasileiro e a alguns de seus regionalismos, não pode ser aplicada indiscri-
minadamente. Não pode, primeiro, ser aplicada ao sul do país, que tem pampas. No regionalismo goiano e mineiro também não equivale ao que é
significado no Nordeste – que tem como uma de suas principais coordenadas temáticas a seca e a miséria.
Conforme já dissemos em outro artigo nosso – “Regionalismo literário e os sentidos do sertão” (publicado na revista Sociedade e Cultura, UFG, 2007),
o sertão de Goiás e Minas Gerais não tem a seca rotineira e deflagradora nordestina. Sertões goiano e mineiro envolvem, para além do espaço que
distancia a imensidão de terras despovoadas do mundo civilizado da capital, algumas coordenadas históricas, quais sejam: a mineração (que não
está presente no Nordeste), o bandeirantismo, e o gado, coordenadas que os fazem assemelhar-se de um lado, tanto quanto aos sertões paulista e
matogrossense de outro. Mas com a diferença de que a mineração em Minas, por exemplo, liderou ou executou uma história de poder e influência
em âmbito nacional que a mineração do sertão goiano não empreendeu. Também, o bandeirante paulista foi elemento agente fora de São Paulo, e
o bandeirantismo em Minas e Goiás foi elemento paciente.
O sertão matogrossense manteve questões de fronteira, que não aconteceram em Goiás e Minas, pelo menos não em relação a países estrangeiros,
e impôs a temática do Pantanal e das águas como ênfase identitária, acercou-se de um imaginário de guerra que o aproximou do regionalismo
sulista e reelaborou as questões indígenas que Goiás e Minas também tiveram, mas de que se resguardaram em sua literatura. Esses são diferentes
referentes que geram diferentes (heterogêneas) alteridades, que são transpostas para a literatura regionalista e devem ser analisadas nos diferentes
sujeitos sociais e nas diferentes vozes que a obra regionalista manifesta, assim como o conflito interno que expõe.
Em segundo lugar, o sertão remonta ao passado da colonização e vem constituindo, portanto, um conceito, no mínimo, acumulativo, que repõe
sempre em cena uma alteridade que se transforma, mas não se erradica, com a hístória: extensão de terra que se contrapunha ao litoral, foi no rastro
do bandeirantismo que se fez o mundo rural povoado de fazendas e cidadezinhas, matas, rios, etc; a que se denominou sertão. E sertão hoje se
amplia para as cidades interioranas, deixando de se remontar somente à singularidade do mundo rural, mas mantendo-a também e criando novas
e sempre velhas alteridades.
130 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA R E F E R Ê N C I A S
BOSI, Alfredo. “Prefácio”. In: LEITE, Dante Moreira. 4ed. O caráter nacional brasileiro.
São Paulo: Pioneira, 1983.
132 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
CAPÍTULO 10
A minha infância foi uma doença crônica que vem sempre se repetindo. Assim, estou
sempre voltando à infância, às minhas perdas mais definitivas, às minhas grandes
indagações, aos meus maiores mistérios, às minhas frustrações, aos meus vazios, e
também às minhas alegrias. A realidade é que, para mim, a infância é muito boa, porque
ela já passou. (QUEIRÓS, 2003, p. 1)
Considerando essas perdas, o objetivo deste trabalho é, a partir de aspectos estudados pelo
antropólogo Roberto DaMatta sobre a morte no sistema relacional brasileiro – Morte: a morte nas
sociedades relacionais: reflexões sobre o caso brasileiro (1991) – , analisar como a morte permeia as
obras Indez(1995), Por parte de pai (1995) Ler, escrever e fazer conta de cabeça (2001) e Até passarinho
passa (2003)32 de Bartolomeu Campos de Queirós.
Ao estudar a morte nas sociedades relacionais, Roberto DaMatta detém-se particularmente no
caso brasileiro. De acordo com o antropólogo, a morte é “um problema filosófico e existencial moderno.
Mas não é assim nas sociedades tribais e tradicionais, em que o indivíduo não existe como entidade moral
dominante e o todo predomina sobre as partes. Aqui o problema não é bem a morte, mas os mortos.” (1991,
p. 143).
32
As obras ficcionais em análise serão referenciadas com as iniciais em maiúsculo, seguidas do número das páginas correspondentes ao trecho
citado.
Tal processo de supressão da morte não está ligado “às sensibilidades individuais das pessoas
mais ou menos diretamente atingidas por um óbito; ela responde, ao contrário, a uma coerção social
perfeitamente identificável, que obedece a princípios políticos inteiramente localizáveis, característicos
de nossa cultura.” (RODRIGUES, 1983, p. 187).
Para Roberto DaMatta, atitude inversa é encontrada nas sociedades tribais e tradicionais, nas
quais “o sujeito social não é o indivíduo, mas as relações entre indivíduos” (1991, p. 143). Nelas, observa-
se
uma grande elaboração relativamente ao mundo dos mortos, que são sistematicamente
invocados, chorados, relembrados, homenageados e usados em cerimônias pela
sociedade. Tudo isso junto de um silêncio profundo sobre a morte como um evento
isolado e um problema filosófico – como um instrumento definitivo de descontinuidade.
(DAMATTA, 1991, p. 147)
Jean Ziegler (1977), após estudar os rituais tanáticos em três sociedades africanas no Brasil
(Tambor de Choro do Maranhão, onde habitam os descendentes de fon, jejê e nagô; Casa dos Mortos
da Ilha de Itaparica, onde vivem os descendentes de nagô; e ritos fúnebres do pai-de-santo João da
Goméia, candomblé sincrético situado no subúrbio do Rio de Janeiro), compara-os ao tratamento
cultural da morte na sociedade capitalista.
134 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
A cosmogonia africana afirma que nada é mais importante que a salvaguarda, a
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA permanência, a expansão da vida. Todos os grandes sistemas de auto-interpretação da
diáspora, a cosmogonia nagô, mais que qualquer outra, não passam, no seu núcleo mais
íntimo, de uma justificativa elaborada, potente, complicada da sucessão de homens
obre [sic] a terra. A morte neste contexto significa possibilidade de vida oferecida
àqueles “que vêm após” (...) O homem vivo se constitui com a ajuda de homens mortos.
A manutenção da vida no universo, sua atualização no transe e sua expansão pelo amor
são as únicas, amplas e permanentes funções do homem. Nada de semelhante ocorre
nas sociedades ocidentais.
O advento da sociedade capitalista mercantil significa mais e além de uma etapa nova na sucessão
das formas de sociedade no tempo. Marca uma ruptura de civilização. Silenciando sobre o
acontecimento tanático, privando o homem da escolha do instante de sua morte, mascarando-
lhe a agonia e recusando status ao moribundo, o sistema capitalista destrói o homem no seu ser.
(...) esvaziando a morte de todo sentido existencial que ela veicula, o sistema capitalista priva a
existência humana de sua liberdade, de seu significado escatológico e portanto de sua qualidade
de destino. O homem é escondido de si mesmo. (ZIEGLER, 1977, p. 307).
Ziegler é contundente ao condenar a forma como a sociedade capitalista lida com a morte.
Segundo ele,
Morrer prende-se tanto à cultura quanto à natureza. Tais culturas vêm de longe. (...)
o morrer na sociedade africana revela a cultura de uma sociedade não reificada, que
coloca no centro de sua organização social e cosmogônica a procura do sentido da vida,
da morte dos homens. Morrer na sociedade mercantil capitalista ocidental inscreve-
se num campo cultural; este campo se constituiu no decurso do advento do modo
de produção capitalista; é contemporâneo das descobertas tecnológicas e científicas
modernas; é, finalmente, ele próprio herdeiro de uma tradição judaico-cristã. Este
campo cultural ocidental, que é constitutivo dos significados e representações ligados
à morte, tomou à Renascença, no momento da elaboração da linguagem humanista,
contornos que determinam hoje a nossa percepção. A linguagem humanista renunciou
à busca concreta do sentido. Interessa-se por um homem abstrato, a quem separa da
práxis concreta das sociedades. Ela constitui a cultura de legitimação e de ocultação por
excelência de uma sociedade desigual, que cresce à sua sombra. (ZIEGLER, 1977, p. 308).
Para José Carlos Rodrigues, tais atitudes diante da morte permitem antever certas tendências
futuras, já esboçadas no presente, apontando para uma configuração inteiramente nova da morte.
Na obra Ler, escrever e fazer conta de cabeça, o narrador relembra seu passado de menino
que aprende, na escola, a ler, escrever e fazer conta de cabeça, e, do pai, a copiar exemplos de gratidão.
O universo familiar simples do menino é marcado pela morte. Através de conversas, vem a saber de
um irmão natimorto. Intrigado, o menino mastigava sua dificuldade de entender como podia alguém
“nascer” morto: “Vai ver, ele nasceu, piscou e morreu ou, quem sabe, nasceu com um olho fechado e
outro aberto. Não dava para morrer o já nascido morto. (...). Mas o irmão nascido morto era mais difícil
de entender do que a Santíssima Trindade – três pessoas em uma só.” (LEFCC, p.29). Depois, a doença da
mãe traz no seu encalço a morte ameaçadora:
Entrei para a escola já sabendo ler, mais ou menos. A primeira palavra soletrada,
inteirinha, foi morfina. A dor de minha mãe aumentava sempre e muito. (...) Morfina me
Entrei de manso. Vi suas mãos afogadas sobre os panos da cama, como se não mais
tivessem comando. Estavam imóveis. Lembrei-me do ferro de brasa acariciando a roupa,
da colher de pau raspando o fundo do tacho, do regador fazendo chuva por sobre as
hortaliças (...). Insisti meu olhar sobre suas mãos e não vi as meias-luas nascendo em suas
unhas. (LEFCC, p.98).
Associada à morte, a imobilidade, o frio, a dor, o medo e o silêncio marcam os dias do menino:
“Senti como se estivesse nascendo naquela hora, em um mundo de tarde fria onde só chorar era possível.
Olhei no espelho do guarda-roupa, me procurando. Minha boca estava branca de dor e medo. O silêncio
interminável trazia um andar sereno de todos e gestos feitos só de desculpas.” (LEFCC, p.99). O vazio invade
todos os espaços e toma conta da casa:
A casa ficou maior e cheia de silêncio. Tudo parecia se esforçar para não acordar quem
deveria dormir por toda a vida. O vazio ocupou, tanto, o quarto de minha mãe que meu
pai dormia na beiradinha da cama, como se empurrado pelo novo morador. E o vazio
não nos deixava tocar em nada. Tudo (...) ficava no mesmo lugar por exigência do vazio.
No nada cabe tudo. (LEFCC, p.101).
Nessa obra, a morte é caracterizada pelo profundo vazio que invade todos os espaços: é tão
presente que pode ser sentida em todos os lugares anteriormente ocupados pela mãe. A morte provoca
imobilidade – “o vazio não nos deixava tocar em nada” – e é tão assustadoramente invasiva que tudo se
transforma em nada, em vazio: a casa silenciosa, os espaços ocupados, a inércia total.
Também na obra Por parte de pai, a morte perpassa toda a narrativa, através de lembranças
guardadas da infância do narrador. A morte abarca um universo que vai desde mortes de animais (galo,
136 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
porco, gatos), de conhecidos, de familiares (tios, mãe) até a sempre temida morte do avô e quase morte
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA da avó que fica, após um derrame, para sempre encerrada em seu mundo interior.
Quando a avó mata o galo Jeremias, justamente no temido dia de um eclipse que faria o mundo
acabar, o garoto, que tinha carinho pelo animal, engole sua tristeza: “Fingi dor de barriga, perdi a fome.
Meu coração não dava conta, sem chorar, de mastigar um amor com angu e quiabo.” (PPP, p.29-30). Quanto
à morte da mãe, fala sobre o assunto de forma melancólica, mas com a naturalidade de quem já aceitou
o fato: “Conceição se casou um dia com meu pai. Isso foi depois da morte de minha mãe. Ela morreu de uma
doença comprida e gemia no fundo do sonho da gente. Choveu muito no dia do enterro. Quando chove é
porque a alma foi aceita no céu.” (PPP, p.31).
A velhice dos avós e, conseqüentemente, o prenúncio da morte, pesa na vida do garoto que
nutre um sentimento especial pelo avô. Depois que a avó adoece e o relógio da sala deixa de funcionar,
o silêncio e a tristeza tomam conta da casa: “Meu coração bateu de saudade antecipada. Li medo no
olhar de meu avô enquanto minha avó, na cama, mornava a vida sem acusar perdas ou manifestar
ganhos.” (PPP, p.67). Um dia o avô o chama para uma conversa:
A associação do tempo à morte – esse tempo voraz, que a tudo e a todos devora, sem piedade
– remete ao mito grego de Chronos, deus do tempo e devorador de seus filhos. “Não se resiste / Ao deus
atroz/ Que os próprios filhos/ Devora sempre”, diz Fernando Pessoa, na voz poética de Ricardo Reis. Esta
mesma mensagem está presente no discurso do avô ao chamar atenção do neto para a ação irreversível
do tempo: “Nada fica para depois do tempo. (...) E nós, meu neto, marchamos em direção à boca do
tempo.” Esta relação da morte com o tempo é extremamente significativa, pois
o tempo, que ameaça o Belo, representado na/pela natureza, através dos ciclos naturais
da vida presente nas flores, frutos e animais, revela sentimentos de inquietação e de
medo, pois a passagem do ser-no-mundo termina por revelar o não-ser, a nulidade, a
impotência, por extensão a própria morte. (SILVA, 2006, p. 2).
De forma sintomática, tanto a avó quanto o relógio deixam de “funcionar”, revelando sua
nulidade, sua impotência diante do tempo.
Na obra Até passarinho passa, a mesma reflexão sobre a voracidade da morte revela-se na
história de um menino que se afeiçoara a uma pequena ave e a encontra morta na varanda em que ela
costumava, livremente, passear:
Olhei para o chão e vi um pequeno embrulho de penas. Soltei meu coração que passou a
bater pelo corpo inteiro. Minhas pernas tremeram e por um instante tentei me convencer
de que tudo era um engano. Cheguei mais perto, com os olhos embaçados de perda e
susto.
Ali estava meu passarinho, coberto de penas e imóvel. Fiquei encolhido num canto da
Procurei tornar macio seu último ninho. Em volta da casa havia um canteiro de flores.
Escolhi uma sombra e cavei uma pequena cova.
Deitei no fundo o corpo do meu amigo, agora sem canto ou vôo. Cobri com terra, ternura
e desalento. (...).
Meu coração estava cheio de vazio. Quando a noite chegou fui para a cama
definitivamente só, sem ter a esperança como companheira. (...). E no escuro da primeira
noite, em crua solidão, só um pensamento cruel e claro me acompanhava: até passarinho
O mesmo procedimento é usado pelos narradores das outras obras de Bartolomeu Campos
Queirós em análise: em todas, há um processo de recuperação de lembranças, de fatos que aconteceram
na infância e que se constituíram em matéria essencial para a vida e, por que não, da própria narrativa.
Segundo Marilena Chauí (Apud SILVA, 2006, p. 2), a memória “é uma evocação do passado. É a capacidade
humana para reter e guardar o tempo que se foi, salvando-o da perda total. A lembrança conserva
aquilo que se foi e não retornará jamais. É nossa primeira e mais fundamental experiência do tempo.”
Buscando, através da memória, as experiências mais marcantes de um tempo que se foi,
essas vozes narrativas trazem à tona não apenas os acontecimentos: permitem o acesso a um universo
marcado por perdas e pela perda do próprio tempo.
138 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
A PRESENÇA DOS MORTOS
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
No caso específico da sociedade brasileira, Roberto DaMatta enfatiza que “fala-se muito mais
dos mortos do que da morte. E isso implica uma estranha contradição, porque falar dos mortos já é uma
forma sutil e disfarçada de negar a morte, fazendo prolongar a memória do morto e dando àquela pessoa
que foi viva uma forma de realidade.” (1991, p. 151). Em nossa sociedade, não apenas a memória do morto
é perpetuada pelas histórias que vão sendo contadas pela família, como seu retrato/pintura permanece
na parede/estante da sala de visitas. Ao contar a história do morto, este não se perde totalmente, pois é
mantido na memória familiar.
É o que se percebe na obra Ler, escrever e fazer conta de cabeça na qual o narrador menciona
a existência de uma fotografia de um padre, já morto, pendurada na parede do quarto:
O zumbido das abelhas me trazia o Padre Eustáquio. Ele morreu, diziam por causa de
uma mordida de carrapato e virou quase santo. Minha vó Lavínia sempre acendia velas
pedindo graça. Parecia só rir da graça de Deus. O Padre continuava sério, sem sorrir,
preso na moldura dourada, na parede do quarto. (LEFCC, p.17)
A mesma presença dos mortos em retratos na sala é mencionada na obra Indez: “Na sala
de visitas, sob a proteção do Coração de Jesus e de Maria balançavam outros redondos retratos de
antepassados: o avô de óculos e bengala, a bisavó entre flores, (...).” (I, p. 13). Mantendo as fotos nas
paredes, as famílias cultivam a memória dos seus mortos e mantém com eles laços de afetividade,
respeito e temor. Essa tradição remonta à época do Brasil Colônia, quando era comum que os mortos
fossem enterrados junto às casas, em capelas construídas como anexo, e se devotava a eles verdadeiro
culto doméstico, conforme revela Gilberto Freyre na obra Casa Grande e Senzala:
O costume de se enterrarem os mortos dentro de casa – na capela, que era uma puxada
da casa – é bem característico do espírito patriarcal de coesão de família. Os mortos
continuavam sob o mesmo teto que os vivos. Entre os santos e as flores devotas. Santos
e mortos eram afinal parte da família (...) Abaixo dos santos e acima dos vivos ficavam, na
hierarquia patriarcal, os mortos, governando e vigiando o mais possível a vida dos filhos,
netos e bisnetos. Em muita casa-grande conservavam-se seus retratos no santuário,
entre as imagens dos santos, com direito à mesma luz votiva de lamparina de azeite e
às mesmas flores devotas. Também se conservavam às vezes as tranças das senhoras, os
cachos dos meninos que morriam anjos. Um culto doméstico dos mortos que lembra o
dos antigos gregos e romanos. (FREYRE, 1983. p. lxviii-lxix)
Conforme apontado por Gilberto Freyre, guardar objetos que pertenceram ao morto também
é um tradicional recurso para garantir que sua memória será preservada pela família. Essa forma de
proceder é observada na obra Ler, escrever e fazer conta de cabeça: “Minha avó Lavínia não fazia outra
coisa a não ser rezar e passar os ternos de linho branco, de meu avô. (...) Um dia ele morreu e deixou o
olho de vidro vigiando a família.” (LEFCC, p. 18). Desta forma, através de um objeto, a família mantém
viva a imagem do avô que continua a vigiar. Tal fato é evidenciado, ainda, na obra Indez: o narrador
conta como o olho do avô era motivo de medo, mistério e recordação:
Já na obra Por parte de pai, o narrador menciona o antigo costume de guardar uma mecha
de cabelo do morto e de fotografá-lo no caixão: “Junto, um embrulho com cabelos do filho morto com
pouca idade. Ficou também o retrato do anjinho no caixão” (PPP, p.10). O costume de guardar uma
mecha do cabelo também faz lembrar a época do Brasil Colônia, período em que, segundo Gilberto
Freyre (1983, p. 437), se morressem até os seis/sete anos – idade em que ainda eram consideradas
anjinhos – as crianças eram muito pintadas de ruge, enfeitadas com cachos de cabelo louro e asas de
muito antes de termos consciência de que a morte significa o não-ser e o nada, creio que
a maioria dos brasileiros toma consciência dos mortos de sua família, casa, vizinhança,
comunidade, nação e século. Essas ‘pessoas’ que na forma de espíritos, almas, espectros,
heróis e fantasmas aparecem aos seus conhecidos, colegas, compatriotas e confrades
para pedir alguma reza, missa, favor ou homenagem. (DAMATTA, 1991, p. 151).
Bartolomeu Campos de Queirós, na obra Por parte de pai, menciona histórias de mortos que
voltam para conversar com os vivos, caso de uma negra que fora escrava e que,
antes de morta, já tinha bicho no corpo de tanto ficar na cama, fraca, inválida, velha. (...)
Sua alma costumava passear no terreiro em noites de sextas-feiras, (...). Andava também
pelo corredor da casa, rangendo as tábuas do assoalho, implorando missa. Minha avó,
muito desembaraçada, conversava com ela. (PPP, p. 12-3).
140 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
A avó também conversava com o filho morto: “Maria não gostava do silêncio. O tempo inteiro
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA conversava, resmungava. Falava com a alma da Maria Turum ou com o filho mais novo falecido em
seu colo depois de seis tiros.”(PPP, p.36-7). DaMatta lembra que, nas relações que se estabelecem entre
mortos e vivos,
há obrigações diante dos mortos e de suas almas que são palpáveis: seus aniversários de
nascimento e de morte são lembrados, sua memória deve ser cultuada e há até mesmo
uma possibilidade curiosa, pois falar periodicamente com eles dá a quem o faz uma
certa sabedoria, poder e aquela invejável e tranqüila resignação diante ‘deste mundo’.
(1991, p. 152).
O narrador de Por parte de pai acentua como a imagem da avó reveste-se de poder pelo fato
de ela conversar com mortos – “(...) minha avó – capaz de travar conversa com almas do outro mundo”
(PPP, p. 15) – ao mesmo tempo em que chama atenção para determinadas crendices: a avó não permitia
que o avô dormisse de meias “para não chamar a morte” (PPP, p. 16)
Da mesma forma que Jean Ziegler acentua o contínuo relacionamento entre mortos e vivos em
sociedades africanas no Brasil, Roberto DaMatta (1991, p. 161-62) pontua que
O outro mundo é (...) um local de síntese, um plano onde tudo pode se encontrar e
fazer sentido. Assim, o outro mundo – o mundo dos mortos, fantasmas, espíritos,
espectros, almas, santos, anjos e demônios – é também uma realidade social marcada
por esperanças, desejos e vontades que aqui ainda não puderam se realizar pessoal ou
coletivamente.
Percebe-se, portanto, que, na obra de Bartolomeu Campos Queirós, as relações entre mortos e
vivos extrapolam a esfera temporal e as limitações de uma sociedade marcada pela negação da morte
e pela desconsideração de rituais e crenças relativas ao mundo dos mortos.
A partir dos elementos destacados é possível, portanto, cbservar como a obra de Bartolomeu
Campos Queirós evidencia o culto aos mortos, típico das sociedades tradicionais de que fala Roberto da
DaMatta. Embora os textos analisados tenham sido publicados entre 1994 e 2003, numa sociedade que
já evidencia a neutralização dos ritos funerários e na qual manifestações de dor e luto são consideradas
ultrapassadas ou pouco convenientes, revelam um universo ainda fortemente marcado pela tradição
no que diz respeito às atitudes frente à morte. Nas obras de Bartolomeu Campos de Queiros, a presença
dos mortos revela uma constante evocação do passado, e as cicatrizes são marcas indeléveis.
FREYRE, G. Casa Grande e senzala. 22. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1983.
LE GOFF, J. História e memória. Trad. Bernardo Leitão. 2. ed. Campinas, SP: Editora da
QUEIRÓS, B. C. Ler, escrever e fazer conta de cabeça. 5. ed. Belo Horizonte: Miguilim,
2001.
SILVA, Mônica de Queiroz Valente da. Discurso literário, função poética e literatura
infanto-juvenil. Um olhar sobre a construção do conhecimento em Bartolomeu
Campos de Queirós. http://www.filologia.org.br/ixcnlf/17/26.htm. Acesso em
01/12/2006.
THOMAS, L-V. La muerte: una lectura cultural. Trad. de.Adolfo Negrotto. Barcelona:
Paidós Studio, 1991.
142 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
ZIEGLER, J. Os vivos e a morte: uma “sociologia da morte” no Ocidente e na diáspora africana no Brasil, e
LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA seus mecanismos culturais. Trad. de Áurea Weissenberg. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
144 LITERATURA E HISTÓRIA: DIÁLOGO E INTERPRETAÇÃO DA PRODUÇÃO FICCIONAL NOS RASTROS DA MEMÓRIA
INTERPRETAÇÃO E CONFLUÊNCIA DA LIRICA E DO IMAGINÁRIO
PARTE III
CAPÍTULO 11
“A arte está em minha alma como pássaro vibrando tão quase sempre cantando.”
(Lília A. Pereira da Silva)
Lília A. Pereira da Silva é escritora, poeta, pintora, desenhista, musicista e ilustradora de livros.
Tem publicado 103 livros nas áreas de Literatura: poesia, romance, literatura infantil, Artes plásticas
(pintura, desenho), Didáticos de Direito e de Psicologia. Lília nasceu em Itapira (SP). Reside em
Itapira, SP. Foi professora de pintura e de piano, tendo participado de concertos. Cursou Secretariado,
Jornalismo, Direito e Psicologia. Foi traduzida duas vezes em Paris, em Roma e em Barcelona. A poeta
Lília tem poesias versadas em dezenas de outros países. Possui vasta correspondência internacional.
Foi a primeira oradora feminina no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em
1971. Representou o Brasil em Literatura, em Toluca, México (1972), e em Artes Plásticas, em Santiago
no Chile (1974). Pertence a inúmeras antologias no Brasil e no exterior e é detentora de incontáveis
prêmios artísticos, inclusive no México (D.F.), em Battipaglia e Roma (Itália, Paris e inúmeros nacionais).
Instituiu um prêmio anual, desde 1995, de Poesia e Desenho, com apoio da Prefeitura Municipal, Câmara
Municipal de Esportes, Cultura e Turismo de Itapira, SP.
Alguns dos títulos publicados pela Autora: 33 anos de Poesia - 2 vol. (1991), Diário na Suíça
(2005); Chuva de gatos verdes (2004); Europeanas (1997); Saia de cigana entre galáxias (2001), Desenho e
Pintura (2002), Carnaval Brasil (1996), Mínimos Conceitos (poesias) e Contos Abstratos (1994), entre outros
livros que abrangem a área da poesia, romance, histórias infantis, direito, teatro, psicologia, etc. Lília tem
RETRATO
e palhaços.
nunca deixou
de iluminar-me as mãos
Percebe-se que a poesia liliana reside na busca memorável e densa das palavras e na
concretização de um fazer poético enquanto “felicidade da expressão verbal”, que no dizer de Calvino,
efetivar-se mediante “uma fulguração repentina”, em alguns casos, mas na maioria das vezes, tal processo
implica sempre em “uma paciente procura do mot juste, da frase em que todos os elementos são insubstituíveis,
do encontro de sons e conceitos que sejam os mais eficazes e densos de significado” (CALVINO, 2000, p.
61. Grifos do autor). Dessa forma, o fazer poético liliano está embasado, essencialmente, na busca da
palavra exata para concretizar a comunicabilidade lírica.
Na obra de Lília A. Pereira da Silva, as formas do imaginário não são simples temas. Elas
ocorrem entrelaçadas quer às obras literárias quer às pictóricas no universo liliano, que registra imagens
direcionadas a um cuidadoso processo de escritura e elaboração “poético-pictórica” alicerçados na
imaginação poética, tal como no poema sintético:
A construção poética e o projeto estético liliano residem nos procedimentos e nas formas
escolhidas, nos ritmos, no enxugamento dos textos, “nas pinceladas poéticas” de palavras, cores e
formas. Seus poemas registram o teor de modernidade e contemporaneidade. Na poesia de Lília Silva
verifica-se a preocupação do eu poético em relação à elaboração precisa da linguagem, registrada na
maneira de interpretar o mundo e as coisas.
No poema “Serva da Poesia”, as indagações da linguagem e os questionamentos do eu lírico
direcionam o poema para um sentido de busca da expressão poética e de comprometimento com a
poesia:
SERVA DA POESIA
Do ofício do verso à procura constate da poesia, o eu lírico afirma “curtir a solidão”, que se
presentifica na maneira do poeta sentir o mundo na entrega completa do ato criador, enquanto
exercício e comprometimento perante a vida e a arte, mediante a efetivação de um pensamento capaz
de (re)inventar universos imaginários.
A forma como o sujeito da enunciação se projeta, sem máscaras, faz do poeta um apaixonado
pela linguagem ao compartilhar a palavra com o interlocutor, ou seja, mediante a palavra e
encantamento da linguagem, a poesia liliana torna-se expressão máxima de uma constante mediação
fraterna, centralizada no diálogo e comunhão.
“Chão Dividido” apresenta-se como uma poesia participativa, em que o eu lírico feminino,
busca dividir suas alegrias, seus momentos mágicos, quer na “alegria de viver” quer nos sentimentos de
solidão, nas cintilações das estrelas, na formas de lírios ou abismos, mas, acima de tudo, enquanto “sinal
de dividir”:
sinal de dividir.
sinal de dividir.
No vestido de palhaça,
sinal de dividir.
sinal de dividir.
sinal de dividir.
Na fantasia de mãe,
Na solidão, na estrela,
o sinal de dividir!...
sinal-sempre: dividir!
e juro fidelidade,
prometo, se há silêncio,
prometo, se há palavra,
São versos que mostram o poder da palavra poética e a força da linguagem na confluência
participativa do sujeito lírico/leitor, com suas nuanças frente aos sinais de partilha e comunicabilidade
lírica que a poesia é capaz de proporcionar. O eu lírico feminino, ao vivenciar a condição de solidão,
faz do “chão dividido” – metáfora de vida – um espaço aberto de partilha para com o outro, sempre
direcionando o sentido da vida ao “sinal de dividir”, quer seja com seus trajes de freira, de palhaça, nos
andrajos de mendiga, ou “na fantasia de mãe”. Nos espaços mais aconchegantes, íntimos, de vivências
Estrelas de pergaminho
e reluzente carinho
em pátios só muçulmanos
em Alicante e Granada.
Eu, de passagem,
passando.
27.07.88
RETRATO PLURAL
coração em ninguém.
e nudez dentro
das vidraças.
em algum tempo,
e não voam
anuviando paisagem,
e do lixo.
estalando
o grito da vida.
[15.07.88
De Lisboa a Fátima]
O poder da imaginação que direciona a uma abrangência mais ampla, é a tônica que
movimenta o poema. Em todas as estrofes, destacam-se os paralelismos sintático-semântico-sonoros
das estrofes iniciadas pelo verso: “Em todas as cidades do mundo”. Há a constatação por parte do eu lírico
de abandonos, saudades, sofrimentos, contrastes.
O poeta – operador de enigmas – faz da linguagem um espelho de dupla face: de um lado a
palavra e do outro o silêncio. Na conjugação das formas dialéticas ele constrói o universo imaginário
em que é possível a realização, daí a linguagem do poema ser revelação da condição humana, poder e
alquimia. Quer dizer, “a revelação poética pressupõe uma busca interior. Busca que em nada se assemelha
à análise ou à introspecção, mais que busca, atividade psíquica capaz de provocar a passividade propícia ao
surgimento de imagens” (PAZ, 1982, p. 65).
O poema “Chovem lírios em meus cabelos”, com uma linguagem altamente elaborada, registra
os momentos vivenciados pelo sujeito da enunciação:
emoções deliram
em outras línguas.
pesadas estátuas
gume e flor.
Mediterrâneo e Adriático.
arcoirisando olivais,
[...]
na rua de Madri.
Tantas nacionalidades
solícitas às informações!...
E “elas” e “eles”,
19.07.88
____
1 Rio Espanhol
2 Lisboa.
POEMA RUBRO
o meu anseio,
e tocados de sol,
com nossas máscaras pendentes.
Os versos evidenciam que, mediante a força da palavra poética e com “o giz das estrelas”, é
possível (re)configurar os desenhos de tempo presente, situados no “agora”, mesmo que haja o abismo
e as “máscaras pendentes”, a imagem do sol sobressai enquanto fonte de luz e energia portadora de um
sentido vital.
“Do Poema” é um texto que apresenta imagens relacionadas ao ofício poético, no qual a poesia
é vista como destino pelo eu lírico, ou seja, “um vício” marcado pela forma “mais útil”, entre abismo de
encantamento do eu para com a linguagem do poema:
se esborrifam no futuro
Ilustração de Manabu Mabe. SILVA,
quando retorno o meu passo. Estrela descalça, 1960, p. 26)
POEMA DA POSSE
agora,
além da janela
agora,
em rosas de pó,
florindo outubros...
A palavra “pássaro” pode simbolizar o poema ou a palavra poética, cuja associação imagética
justifica-se na medida em que o pássaro e outros seres alados são símbolos de espiritualização. A imagem
do pássaro simboliza, ainda, a manifestação do plano espiritual. O poder de voar predispõe o pássaro
Façanha do apuro
Pecado inacabado,
até amanhã.
Muletas na alma,
usadas
cavalgarei em mim
– poesia-escudo.
Qual um “mágico”, o eu poético faz com que sua poesia se desdobre verso a verso, imprimindo a
cada série verbal, a busca de uma unidade totalizadora do espaço que logo é retomada pela consciência
da fragilidade do tempo. Nesse sentido, o tempo presente surge da tomada física do espaço, com o
qual o sujeito poético reinventa um mundo de sentidos. O poema ganha, assim, contornos de uma
linguagem que vai ao encontro do processo de objetivação e substantivação, sendo o poema o próprio
objeto. Já o poeta – mágico da linguagem – entre as “façanhas do apuro” e no “agora” do viver, faz da
“poesia-escudo” uma forma de eternizar o instante poético.
Nos versos do poema constata-se a capacidade criadora da poeta Lília ao dar sentido ao seu
ato criativo, pois ao elaborar o texto, independente de ser um mero reflexo do mundo exterior ou uma
criação do cérebro, ou do sentimento humano, ela o alicerça tendo por base a imaginação criadora,
baseando-se na combinação, de dar um sentido distinto à criação literária.
Verifica-se na poesia de Lília A. Pereira da Silva, uma articulação laboriosa em relação ao fazer
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.
LIMA, José Lezama. A dignidade da poesia. Trad. José Vianna Baptista. São Paulo:
Ática, 1996.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982
(Coleção Logos).
SILVA, Lília A. Pereira da. Estrela descalça. Capa e ilustração de Manabu Mabe. São
Paulo, 1960 (Coleção dos Novíssimos).
SILVA, Lília A. Pereira da. Serenata do abismo. São Paulo: Alarico, 1963.
SILVA, Lília A. Pereira da. Altar das cicatrizes. São Paulo: Brasil, 1966.
SILVA, Lília A. Pereira da. Pólen de Faunos (Cartas de Amor). 1991. In: 33 anos de Poesia
(vol.1), 1991.
SILVA, Lília A. Pereira da. 33 anos de poesia. São Paulo: Scortecci, 1991 (vol. 1).
SILVA, Lília A. Pereira da. 33 anos de poesia. São Paulo: Scortecci, 1991 (vol. 2).
SILVA, Lília A. Pereira da. Elipses do anjo. São Paulo: Scortecci, 1993.
SILVA, Lília A. Pereira da. Carta à minha sombra. São Paulo: Scortecci,1997b.
SILVA, Lília A. Pereira da. Saia de cigana entre galáxias. São Paulo: Scortecci, 2001a.
SILVA, Lília A. Pereira da. Desenhos para Pedrinho. São Paulo: Scortecci, 2001b.
SILVA, Lília A. Pereira da. Desenho e pintura / Lília A. Pereira da Silva. São Paulo: Scortecci, 2002.
SILVA, Lília A. Pereira da. Chuva de gatos verdes. São Paulo: RG Editores, 2004.
SILVA, Lília A. Pereira da. Diário na Suíça. São Paulo: RG Editores, 2005.
CAPÍTULO 12
O fato de desejo e morte coexistirem nos poemas de Poe e de Alphonsus intensamente leva-nos
a passar pela teoria freudiana de Eros (instinto de vida)/Tânatos (instinto de morte), o que certamente
vai ao encontro das idéias relativas ao gótico, à melancolia, ao estranho, e ao sublime. Cremos estar aí
um dos ingredientes psicológicos primordiais nos textos poéticos dos autores que ora teremos como
foco de análise. Iniciemos uma breve teorização de viés freudiano, portanto.
Durante o verão de 1929, Sigmund Freud trabalhou em um texto que se tornaria um clássico em
sua linha psicanalítica e teria influência em diversas áreas de conhecimento. Esse livro faz parte de uma
vertente que marca uma nova fase no seu pensamento, na qual ele se distanciou de sua fase puramente
clínica, centrada no indivíduo, para pensar questões relativas à humanidade, à conexão indivíduo/
sociedade. Esse novo ciclo teve início com a publicação de Além do Princípio de Prazer (Jenseits des
LustPrinzips), em 1920, em que reitera a noção sobre Eros, mas apresenta uma menção mais acentuada
do conceito do instinto de morte (Tânatos). Sua análise reforça que “a libido de nossos instintos sexuais
coincidiria com o Eros dos poetas e filósofos, o qual mantém unidas todas as coisas vivas” (2003, p.65);
todavia, aponta-nos que o objetivo da vida:
33
Estrofe da “Terceira Parte” de Mensagem. (PESSOA, 1997, p. 84)
Em 1929, surgirá então Das Unbehagen in der Kultur (título que foi traduzido de várias formas
em diferentes idiomas – Civilization and its Discontents, Malaise dans la Civilisation, El Malestar en la
Cultura, e, em português, O Mal-Estar na Civilização, por exemplo), em que Freud discute, entre outros
assuntos, a questão de como e onde o homem se encaixa no mundo – local de permanente conflito para
o ser humano em sua busca por liberdade em meio às exigências de adequação aos regulamentos, leis,
costumes e tradições. A tese básica de Freud é a de que o homem, egoísta e agressivo por natureza, busca
auto-satisfação; porém as amarras culturais inibem seus impulsos instintivos, gerando sentimentos de
culpa e ansiedade. Ele defende a tese de que a vida social pressupõe repressão. O desenvolvimento do
indivíduo bem como o da civilização só são possíveis através do controle das pulsões humanas, pois
estas são incompatíveis com a vida em coletividade. Assim, para Freud o ser humano está condenado à
infelicidade na civilização, já que, por felicidade, ele entende a livre “fruição” das energias instintivas.
Procederemos, a seguir, a um breve resumo das idéias fulcrais de alguns capítulos de O Mal-
Estar na Civilização a fim de, mais adiante, podermos focalizar melhor como essa teorização Eros/
Tânatos pode ser aplicada no estudo comparativo dos poemas de Alphonsus e de Poe.
Nos parágrafos introdutórios, Freud contra-argumenta observações que um amigo seu, o crítico
Adiante, Freud demonstra que a mente é algo excepcional no que tange à possibilidade de
coexistirem sentimentos infantis e maduros durante a vida de qualquer um de nós, ou seja, depois
que um fato é registrado em nossa memória, nunca mais é esquecido, bastando que ocorram as
circunstâncias apropriadas para que a lembrança seja trazida à consciência vigil. Faz-se uma comparação
com escavações arqueológicas, pois o passado coexiste, ainda que escondido, no presente. Numa
analogia com Roma, Freud diz:
Seu sítio acha-se hoje tomado por ruínas, não pelas ruínas deles próprios, mas pelas
de restaurações posteriores, efetuadas após incêndios ou outros tipos de destruição.
Também faz-se necessário observar que todos esses remanescentes da Roma antiga
estão mesclados com a confusão de uma grande metrópole, que se desenvolveu
muito nos últimos séculos, a partir da Renascença [...]Permitam-nos agora, num vôo
da imaginação, supor que Roma não é uma habitação humana, mas uma entidade
psíquica, com um passado semelhantemente longo e abundante – isto é, uma entidade
onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de
desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última. (1978, p. 136)
Em seguida, o texto retoma seu objetivo principal – o de explicar a fonte dessa suposta sensação
oceânica de unidade. Parece ser, conclui-se, um vestígio do narcisismo infantil dos primeiros anos de
vida quando o ego se integra por completo ao mundo, não discernindo o mundo subjetivo do objetivo.
Soma-se a essa lembrança narcísica inicial, após consciência de o mundo externo poder ser fonte de
desprazer e de forças não controláveis, a conclusão de que há a necessidade por parte da criança de
buscar (ou de se retomar) amparo e proteção. Assim, Freud conjectura:
O segundo capítulo passará a focalizar três mecanismos com os quais o ser humano pode tentar
superar as vicissitudes e dores vitais. A concepção de tais estratégias é oriunda do próprio princípio do
prazer, como um contraponto seu. Ora, se o princípio do prazer estabelece que somos impulsionados
sempre no afã de satisfazermos nossas necessidades ou compulsões, ao compreendermos haver no
mundo externo o “princípio da realidade”, que interfere e impede a satisfação de nossos desejos, será
útil estruturar modos de evitar o desprazer tanto quanto possível. O texto explica que:
A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos
sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos
dispensar as medidas paliativas. ‘Não podemos passar sem construções auxiliares’, diz-
nos Theodor Fontane. Existem talvez três medidas desse tipo: derivativos poderosos,
que nos fazem extrair luz de nossa desgraça; satisfações substitutivas, que a diminuem;
e substâncias tóxicas, que nos tornam insensíveis a ela. (1978, p.144) (Os destaques são
meus)
Por fim, escaparemos do sofrimento pelo uso de drogas químicas, que também tratarão em si
dos sintomas de nosso desprazer existencial e não de suas causas.
As causas desse desconforto vital doloroso estão no corpo humano, no mundo externo e das
relações sociais. Como esclarece o pai da psicanálise,
Isso nos leva ao fato de que, apesar do suposto propósito principal de nos proteger, a
civilização é em grande parte responsável pela nossa infelicidade. Ora, ela exige que o individual
seja sacrificado em nome do coletivo, diminuindo, por conseguinte, a liberdade de cada pessoa;
exige, assim, que se renuncie à realização de instintos básicos, que, segundo Freud poderão vir a nos
assombrar eventualmente, pois a tendência do que é reprimido é retornar de alguma forma patológica.
Certamente, não ficam de fora as limitações que se impõem sobre a sexualidade, visto que a sociedade
dita quais manifestações são permissíveis, e até mesmo as suas formas de expressão. Freud sustenta
que “o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de
segurança” (1978, p. 170); logo, mantermos nossos laços sociais ou satisfazermos nossos instintos é uma
decisão meramente econômica na medida em que negociamos nossa gratificação imediata por uma
estabilidade e segurança a longo prazo, o que, conforme ele assevera, conduzirá ao que denomina
“frustração cultural”.
Esse escambo provém de Eros e Ananke, isto é, amor e necessidade, que “se tornaram os pais
da civilização” (1978, p. 159), malgrado aspecto civilizatório repressor. Comenta Freud que:
Depois que o homem primevo descobriu que estava literalmente em suas mãos
melhorar a sua sorte na Terra através do trabalho, não lhe pode ter sido indiferente que
outro homem trabalhasse com ele ou contra ele. Esse outro homem adquiriu para ele
o valor de um companheiro de trabalho, com quem era útil conviver. Em época ainda
anterior, em sua pré-história simiesca, o homem adotara o hábito de formar famílias, e
provavelmente os membros de sua família foram os seus primeiros auxiliares. Pode-se
supor que a formação de famílias deveu-se ao fato de ter ocorrido um momento em que
a necessidade de satisfação genital não apareceu mais como um hóspede que surge
repentinamente e do qual, após a partida, não mais se ouve falar por longo tempo, mas
que, pelo contrário, se alojou como um inquilino permanente. Quando isso aconteceu,
o macho adquiriu um motivo para conservar a fêmea junto de si, ou, em termos mais
gerais, seus objetos sexuais, a seu lado, ao passo que a fêmea, não querendo separar-
se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no interesse deles, a permanecer com
o macho mais forte. Na família primitiva, falta ainda uma característica essencial da
civilização. A vontade arbitrária de seu chefe, o pai, era irrestrita. Em Totem e Tabu [1912-
13], tentei demonstrar o caminho que vai dessa família à etapa subseqüente, a da vida
comunal, sob a forma de grupos de irmãos. Sobrepujando o pai, os filhos descobriram
que uma combinação pode ser mais forte do que um indivíduo isolado. A cultura
totêmica baseia-se nas restrições que os filhos tiveram de impor-se mutuamente, a fim
de conservar esse novo estado de coisas. Os preceitos do tabu constituíram o primeiro
‘direito’ ou ‘lei’. A vida comunitária dos seres humanos teve, portanto, um fundamento
duplo: a compulsão para o trabalho, criada pela necessidade externa, e o poder do amor,
que fez o homem relutar em privar-se de seu objeto sexual – a mulher – e a mulher, em
privar-se daquela parte de si própria que dela fora separada – seu filho. Eros e Ananke
[Amor e Necessidade] se tornaram os pais também da civilização humana. O primeiro
resultado da civilização foi que mesmo um número bastante grande de pessoas podia
agora viver reunido numa comunidade. E, como esses dois grandes poderes cooperaram
para isso, poder-se-ia esperar que o desenvolvimento ulterior da civilização progredisse
sem percalços no sentido de um controle ainda melhor sobre o mundo externo e no de
uma ampliação do número de pessoas incluídas na comunidade. É difícil compreender
como essa civilização pôde agir sobre os seus participantes de outro modo senão o de
torná-los felizes. (1978, p. 158)
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas
a repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que,
no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre
cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade.
Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial
ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua
agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo
sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-
lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. (1978, p. 167)
Vê-se que a amada morta é tão necrofilicamente alucinante que o eu-poemático se agita
sexualmente (“Tão tentadora estava que um diabo coxo / Fez rugir a carne no meu esqueleto”), ainda
que os sentimentos de luto e conseqüente melancolia permeiem a cena (“Todos os sonhos do meu
amor por ela / Vieram atormentar-me sem dó”). Em seguida, no último verso ocorre a sublimação do
desvario erótico inicial, isto é, a santificação do objeto de desejo (“Para divinizá-la era bastante eu só”).
Constata-se a coexistência de duas compulsões com seus respectivos instrumentos de
concretização: uma que aprisiona a voz poemática masculina ao gozo telúrico, por meio do corpo
provocante da amada (Eros) e outra que liberta, já que, ao divinizar a amada, ela se torna inatingível, por
meio da aceitação do cadáver dessexualizado da amada (Tânatos), o que arrebata o eu-lírico ao sublime.
Comparável é o tratamento que confere Edgar Allan Poe a Annabel Lee no conhecidíssimo poema
homônimo. A amada, mesmo morta, é atraente (Eros) a tal ponto que não há poder na terra ou nos
Igualmente, Alphonsus entoa a vontade de dormir esse sono fúnebre ao lado do cadáver da
amada em versos de Dona Mística, como: “Jesus, eu sei que ela morreu. Viceja / Cheia das rosas pálidas
do outono, / A sua cova ao pé de alguma Igreja: Quero dormir o mesmo eterno sono” (2001, p. 170). Aliás,
essa apologia do sono/morte como veículo de transição para um estado mais elevado, mais sublime,
portanto, é reiterada em vários pontos de sua obra, ora como (única) opção para o reencontro com a
amada, como vimos acima, ora como (única) solução para as agruras da vida, como se verifica em versos
tais quais os de Pulvis: “Ai dos que vivem se não fora o sono! / [...] Mas ai / Da primavera, se não fosse o
outono, / [...] Tudo vem, tudo vai, do mundo é a sorte... / Só a vida, que se esvai, não mais nos vem. / Mas
ai da vida, se não fora a morte!” (GUIMARAENS, 2001, p. 420).
Já, em “The Sleeper”, para o qual não encontramos tradução em português, Poe potencializa
ainda mais o valor da morte/sono como meio de reencontro amoroso, realçando a importância da
destruição do corpo físico em cores góticas intensas. Vejamos alguns versos que traduzimos e como
nos auxiliam a demonstrar esse traço:
Quanto a esse ângulo mórbido dos vermes em relação à decomposição da amada, críticos há
que enxergam aí uma metáfora do desejo carnal para o qual não se deu vazão. É o que defende Affonso
Romano de Sant’Anna, em O Canibalismo Amoroso – O Desejo e a Interdição em nossa Cultura através
da Poesia (1984), livro em que traça uma panorâmica da estética e dos costumes de diferentes épocas,
ensinando que as mulheres podem ser amadas distantes, como anjos de corpos imaculados ou mulatas
sensuais, saboreadas como mulheres-fruto ou mulheres-caça. Começa com os poetas românticos
brasileiros, passando pelos parnasianos, simbolistas, alcançando modernistas como Manuel Bandeira.
Embora nossa pesquisa não tenha o alvo de averiguar a focalização do corpo feminino em diferentes
tempos literários, reputamos significativo entreter brevemente a teoria exposta nessa obra devido à
marca gótica em que o desejo pela amada (Eros) e sua morte (Tânatos) podem ter.
Sant’Anna propõe que o canibalismo está tão entranhado, mas ao mesmo tempo dissimulado,
em muitas práticas ocidentais que chegou a gerar movimentos vanguardistas na Europa e em nosso
A idéia do ágape cristão (ceia do amor) e o ritual da hóstia (palavra que significa ‘vítima
sacrificial’) são uma atualização de um rito intemporal, onde deuses comem homens,
homens comem deuses, ou, então, são dramatizados no sangue dos animais mediadores.
O canibalismo como ritual pode ser visto, por exemplo, na era cristã. Os epiléticos, em
Roma, bebiam o sangue quente dos gladiadores, e o médico do Papa Inocêncio VIII
recomendou-lhe o sangue de três crianças de dez anos. Da mitologia grega aos mitos
indígenas brasileiros, abundam a omofagia e a antropogagia. (1984, pp. 17-18)
Parece que fazemos um retorno a Freud no sentido de que as pulsões básicas de Eros e Tânatos
podem implicar a simultaneidade de prazer e crueldade, como se evidencia em versos de “Sarças de
Fogo” de Olavo Bilac, com que Sant’Anna exemplifica um canibalismo amoroso mais ardente, nos quais
o poeta escutaria a voz do seu objeto de desejo lhe dizer:
34
The lady sleeps! Oh, may her sleep,
Which is enduring, so be deep!
Heaven have her in its sacred keep!
“Morde também!”
35
www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000287.pdf (acesso em 12/09/2006)
Todas essas criaturas, todas, a que chamas animadas, como aquelas a que negas a vida,
sem razão melhor do que a de não as veres em ação, todas essas criaturas têm, em grau
maior ou menor, capacidade para o prazer e a dor: mas a soma geral de suas sensações é,
precisamente, aquele total de Felicidade que pertence de direito ao Ser Divino quando
concentrado em Si Mesmo. Todas essas criaturas, também, são inteligências mais ou
menos conscientes; em primeiro lugar, conscientes de uma identidade própria; em
segundo lugar, e a relances indeterminados e débeis, conscientes de uma identidade
com Deus. Imagina que, dessas duas espécies de consciência, a primeira enfraquecerá
e a segunda se fortalecerá, durante a longa sucessão de séculos, que devem defluir, até
que essas miríades de Inteligências individuais se venham a fundir – quando se fundirem
as brilhantes estrelas – em Uma Só. (2001, p.293)
BATAILLE, Georges. O Erotismo. Trad. Cláudia Fares. São Paulo: Arx, 2004.
FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. Trad. Christiano Monteiro Oiticica. Rio
de Janeiro: Imago, 2003.
FREUD, Sigmund. Civilization and its Discontents. Trad. David McLintock. London:
Penguin Books, 2004.
FREUD, Sigmund. O Futuro de Uma Ilusão. Coleção Os Pensadores. Trad. José Octávio
de Abreu. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
PESSOA, Fernando. Obra Poética. Org. Maria Alieta Galhoz. Rio de Janeiro: Editora
Nova Aguilar, 1997
POE, Edgar Allan. Poemas e Ensaios. Trad. Oscar Mendes & Milton Amato. São Paulo:
Globo, 1999.
POE, Edgar Allan. The Complete Illustrated Works of Edgar Allan Poe. London:
Chancelor Press, 2003.
CAPÍTULO 13
Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos 179
Infinito é a estrada com suas curvas, suas colinas e suas árvores.[...] Para os outros, os
viajantes que por milagre a atravessassem sem conseguir rolar os seis segredos, seria
apenas uma estrada.
Para nós, gente do vale, que a limpamos todos os dias com os nossos pés, que sobre ela
suportamos o sol e toleramos a chuva, é o mundo que liga nossa vida e une as nossas
esperanças e sofrimentos. Muitas vezes lembrando uma serpente, divide-se em mil
veredas. Penetra nas planuras, invade a paisagem vazia, sem expansão, comprimida na
monotonia dos tabuleiros.[...] Falando a verdade, digo que o vale existe porque existe a
estrada. (ADONIAS FILHO, 1978, pp. 3/4)
Esses dois elementos, o vale e a estrada, perfazem não só a geografia física na qual a trama de
está estruturada, como se alargam feito motivação de um vasto ambiente mental oscilante, marcado
Destarte, estamos diante de um desses fenômenos que, de maneira tal extrapola os limites
de tempo e espaço, desvinculando-se dos rótulos para formatar sua própria identidade e cavar sua
existência em meio a uma plêiade seleta de obras literárias cujo mote principal seja a memória. Portanto,
não será difícil atestar essas virtudes na narrativa em tela, uma vez que toda ela traz ao foco um modo
Mas, no vale, todo se pareciam com Abílio [...] Uma criatura feliz, alguém que não traga
ferrugem nos ossos não ficará aqui. Fugirá temendo o negrume do céu, a solidão do
vale estrangulada pelo vento doido. Abílio só ficou no vale, disse-me depois, porque o
vale não é deste mundo. Uma zona esquecida, ele ensinava, onde os homens são mais
humanos porque não temem a dor, o medo e nem ocultam a cólera [...] Sei, porém, que
antes de Abílio, em nada pensava senão trabalhar a terra com a mãos e nada sentia a não
ser o cansaço, a fome e a sede. (ADONIAS FILHO, 1978, p. 21).
Alexandre ouve estas palavras da boca de Jerônimo que, a partir de então se revela o porta-
voz de um passado esquecido, porém fundamental na tessitura de sua história, na configuração de sua
existência que começa a tomar corpo. Abílio, o homem que Alexandre somente conhecera no caixão,
era o seu pai. Sua mãe, Paula, jamais soube da própria existência, nem mesmo dera fé do seu filho: era
“tola”. Alexandre é, portanto, o fruto de um encontro fortuito e inexplicável, fatos típicos de um núcleo
social marginal, bem ao caráter da proposta adonisiana. As imagens que este pobre moço haveria
de ter da vida não seriam se não as de um mundo ofuscado, composto por estilhaços de memórias;
Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos 181
observadas agora à luz do discurso de Jerônimo, a voz que dá alma ao vale. A descrição desse momento
de descoberta, feita pelo próprio Alexandre, revela a profusão de sensações ocorridas em sua mente, no
instante em que sua casa, símbolo maior de sua existência ia sendo erguida, com a ajuda de Jerônimo,
tornando real o sonho de ter ao seu lado a bela Rosália, peça fundamental em seus planos:
Percebe-se então que, quanto mais Alexandre vai travando conhecimento com o seu passado,
mergulhando em seu próprio vazio existencial, mais a narrativa se vai florescendo na beleza de suas
imagens, na grandeza do sentido e na sensibilidade de um discurso, ao mesmo tempo, discreto e vigoroso
o suficiente para fazer aflorar consciência e ideais de um mundo perdido. O eu do narrador parece querer
dizer para si mesmo, coisas das quais ele pouco ou nada conhece, mas sente, profundamente. Os signos
e expressões “obscuridade interior”, “existência”, “em mim mesmo”, enunciam um movimento centrípeto
das sensações do protagonista. Nesse instante fugaz de sua consciência o leitor pode imaginar a
complexa e sofrida história de Alexandre, embora ele próprio a desconheça, apenas sinta o que jamais
poderá explicar satisfatoriamente. Mas é nessa história inexplicável, nesse enredo, por vezes, desconexo
que repousa a importância e o significado de uma memória que se constrói ao sabor de um ritmo
lento da própria narrativa; sem grande esforço, no compasso lasso do vale, quase involuntariamente. No
entanto, todo o futuro de Alexandre estará comprometido, seriamente, pelos fantasmas que povoarão
e atormentarão sua consciência, sempre.
Neste caso, o movimento de tomada de consciência da existência florescerá em Alexandre, de
maneira invertida, ou seja: ao invés de caminhar da utopia para a cena real, ele se dará desta cena para
a utopia. A contemplação de seu passado, a possibilidade de se descobrir em suas memórias, mesmo as
não vividas, pode lhe remeter para além das fronteiras do tempo e do espaço palpáveis; inserindo-lhe,
definitivamente, no abismo sedutor de sua busca, na qual o sonho e o inusitado urdem a tela mágica de
sua vida.
A partir desse ponto, o romance transcorre apresentando os descompassos de uma vida
errante, em que o fantástico, o maravilhoso ou mesmo o absurdo, se fazem presentes, concomitante
ou alternadamente, transformando, por conseguinte, o herói Alexandre em um símbolo carregado de
sentidos e o romance Memórias de Lázaro numa obra de leitura jocosa pela riqueza de propostas que
ativam, a todo momento, a “ação imaginativa”.
A narrativa adonisiana prossegue em movimentos analépticos, recobrando sempre uma
memória precária em busca de uma unidade quase impossível de ser alcançada, uma vez que a
própria vida do protagonista Alexandre já é o maior exemplo da fragmentação que, aos poucos vai
se configurando em Memórias de Lázaro. O ócio mental de Alexandre lhe provoca inquietações que o
fazem dirigir-se diretamente ao leitor como seu grande interlocutor, aquele que, a partir desse ponto da
Paula, a mãe desconhecida vai se apagando na voz de Jerônimo ao mesmo tempo em que
floresce na memória difusa de Alexandre, passando então a elemento de um complexo mosaico de
imagens imprecisas, sem contornos que vão se formando em sua consciência. A narrativa de Alexandre
entra, de vez, no campo das especulações. E será este tom que permeará toda a narrativa, doravante,
caracterizando o seu tom de perguntas sem respostas em que as metáforas derivarão umas das outras
e a consciência do narrador vai, cada vez mais se embrenhando nesse mundo de coisas não resolvidas,
conduzindo num mesmo ritmo a sensação do leitor e a sorte pessoal de Alexandre para um labirinto de
uma memória rica, problemática e, poeticamente, sugestiva, a um só tempo.
A busca de unidade narrativa impele Alexandre cada vez mais para a diversidade confusa
numa seqüência de imagens de vida e opiniões mal formadas de um passado que ele próprio ignora
e tenta recompor. Alexandre elege então a figura de sua amada, Rosália, como peça fundamental de
seu quebra-cabeça, ela significava, para ele, o seu complemente; ambos estavam perdidos, tanto ele
quanto ela procuravam o que eles próprios desconheciam:
Quando eu a vi, pela primeira vez, ela corria em minha direção, entre os pés de milho.
[...] Não encolhendo as mãos que derrubavam as espigas, não vendo sequer que eu
obstruía o seu caminho, deteve-se ao sentir que se batia contra mim, ferida a sua testa
e sangrando os meus lábios. Olhou-me, sem susto, sem pronunciar uma palavra, e
continuou a correr.
Quanto mais se materializa a presença de Rosália na vida de Alexandre, mais ela vai se
transformando em figura ideal e o encontro dos dois, aparentemente casual e que, supostamente,
poderia por ordem na trajetória de Alexandre, servirá, como veremos na seqüência, como mais um
elemento desagregador dessa ordem. É por essas ocorrências narrativas que a história vai, mais e
mais perdendo a sua força realista e ganhando, na mesma proporção, um caráter impreciso no qual a
importância maior do romance será filtrada para as suas entrelinhas; e assim, o sentido do texto irá se
concentrar nas filigranas poéticas, nas sensações que advêm dos momentos imaginados, das venturas
sonhadas, das aventuras idealizadas que resultarão todas em desilusões do ponto de vista humano,
mas no que concerne ao viés poético-narrativo, esse encontro-desencontro, encanto-desencanto
abrirá as janelas para a grande viagem rumo ao desconhecido universo de Alexandre e Rosália, um casal
que, gradativamente vai se desumanizando, tornando-se entidades, símbolos tão somente, arremedo
metafórico, verdadeiros simulacros; diminuindo-se, ambos como personagens no mesmo momento
Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos 183
em que se avolumam como ícones representativos de um enredo desconexo, uma grande aventura em
forma de escrita.
Os devaneios, à medida que avança a história e a narrativa vão tomando conta da consciência
de Alexandre. Rosália passa então a ser a sua única esperança, uma vez que todo o seu passado já está
fugidio e ofuscado:
A noção de espaço expressa nos signos “perto” e “distante” corresponde à localização da
consciência de Alexandre e Rosália. O “olhar vazio” desta se mistura à vida vazia daquele e o “fundo
do vale”, tal qual se refere Alexandre evoca por meio de memória remota o vale da morte, metáfora
do mundo dos homens, atribuída à terra nos dias mais obscuros de sua história. Alexandre e Rosália
encenam assim, um ato absurdo, parte de uma peça também absurda: a vida no vale. Tudo aqui se
confirma, à medida que a narrativa se desenvolve, estar à mercê da sorte. Episódios absurdos, marcados
por catástrofes e insensibilidades vão se agrupando, o que tornará Memórias de Lázaro num romance de
tragédia pelo somatório de imagens, poeticamente elaboradas, nu misto perfeito de sonhos, devaneios
e dor.
Ao conhecer a tragédia ocorrida na casa de Rosália, ou seja, a morte do pai pela própria filha,
o abuso desta pelo seu irmão, Alexandre vê a imobilidade crescer dentro de si, lembrando a tese
dostoiewskiana do “homem de pensamento” e de “ação”. Mas Alexandre não é nenhuma das duas
coisas, ele é tão-somente um homem paralisado, estupefato e impotente, assim como era também
Rosália diante do vale impiedoso: “Fechado em si mesmo, sem portas de saída, [...] Um túmulo, quase.
Nós os seus mortos.” (p.46). Ambos não são de pensamento nem de ação, mas serão seres, talvez entes
apenas de contemplação, uma contemplação mórbida na qual as imagens precárias dizem muito mais
que a narrativa mesma que se definha do ponto de vista da história juntamente com as entidades que
habitam o vale perdido.
A partir desse ponto, o romance entra em sua segunda parte na qual tudo colabora,
definitivamente, para o progresso da sandice de Alexandre. Este, aproxima-se do leitor, narrando agora
as memórias de um mundo que não passa de nódoas e fantasmas de uma história que será apenas
imaginada e revisitada na sua memória, cuja beleza e plasticidade repousam na inexatidão de suas
idéias e palavras opacas. Cortes em formas de analepses vão se sucedendo uns aos outros, revelando
seres anulados, angústias do passado que se presentificam pela memória, colocando num ambiente
único todas as figuras do vale, numa atmosfera carregada de vida e morte, revelando a condição
verdadeira do herói Alexandre: “...eu, na verdade um triste animal, ...” (p.69).
Nesse esforço para caracterizar o vale e seus habitantes, suas coisas e particularidades,
Alexandre mergulha de vez em seu universo próprio. A morte de Rosália elimina todas possibilidades
de nosso herói se mover para a consciência. Ao contrário, ele se afastará, progressivamente, dela até se
tornar um mero portador das notícias mais íntimas de uma imagem vazia desse vale que já não mais
existe:
Sujas se tornaram as roupas do meu corpo e o meu corpo se tornou outro para mim
mesmo. Os meus cabelos cresceram, alcançaram os ombros, fundiram-se com a barba.
Os pés pisavam, muitas vezes feridos, mas não sabiam em que pisavam. [...] Vagamente,
tão distante quanto eu próprio a presença de Jerônimo. Descendo, sempre descendo,
perdi o contato com o vento, com os homens, com o vale. Mas seria Jerônimo quem,
algum tempo depois, traria a minha lembrança do que eu fora. Sem pânico, ouvi o que
me contava: - Um homem morre em vida, Alexandre. (ADONIAS FILHO, 1978, p. 75)
Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos 185
Alexandre, a exemplo de todo o vale, é, agora, nada. Sua memória oscila, principalmente entre
Jerônimo e Rosália e sua narração também se dará em modos diversos, ora de forma quase linear, ora
quadro a quadro no feitio da técnica cinematográfica, mas, na maioria das vezes, numa profusão de
idéias e imagens, sem contorno nas quais se fundem o passado e o presente resultando na completa
inutilidade do ‘agora’ de Alexandre em sua busca extrema pela identidade inatingível.
É assim que Alexandre construirá, paradoxalmente, a sua própria imagem desgarrada da
realidade, num mundo de fantasmas, cujo trabalho da memória será uma verdadeira exumação de
imagens perdidas, articuladas na fusão de recursos das linguagens verbal e não verbal que vão se
tornando gestos obscuros, manifestações de uma memória sem controle. Nessa atmosfera de perfeita
BRUNEL, P., PICHOIS, CL., ROUSSEAU, A.M. Que é Literatura Comparada?. São Paulo:
SILVEIRA, Tássio da. Literatura Comparada. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1964
XAVIER, Ismail. O Recurso Cinematográfico. São Paulo: Paz e Terra S/A, 2005. Editora
Perspectiva, 1995
Memórias de Lázaro, de Adonias Filho: uma escrita romanesca de devaneios líricos 187
Plasticidade e embriaguez dionisíaca em Sargento Getúlio
CAPÍTULO 14
Esta narrativa ficcionaliza uma viagem imaginária que traduz os aspectos mais íntimos e
significativos da trajetória existencial do personagem-narrador, que está imbuído de uma importante
missão que se revela paulatinamente entre o fabuloso e o cotidiano, o ficcional e o real, estabelecendo
um jogo, entre o possível e o verossímil, que confere especial fascínio a essa história.
Getúlio, o viajante, habita um espaço hostil povoado por homens rudes e, com eles, constrói
uma história comum feita de enfrentamentos, paixões, alegrias e dor. Suas experiências são tonalizadas
por uma coloração própria, que coloca em cena um mundo horripilantemente trágico, mas poetizado
por uma linguagem alternativa, trabalhada formativamente à exaustão.
Na tentativa de capturar o mundo interior do personagem, configurador de sua consciência
pessoal, a linguagem se torna altamente complexa pela contínua reordenação de seus aspectos sintático
e semântico. Nesse jogo ficcional, a realidade e a imaginação se interpenetram, instaurando um espaço
novo que enseja variadas interpretações. É nessa confluência que o autor diligencia para exprimir
sua visão formativa da existência, fazendo com que a conformação artística metaforize a estrutura
da realidade histórico-social objetiva, conservando suas características gerais, mas infundindo-lhes,
sempre, uma especial transfiguração criadora.
Pela plurivocidade semântica, decorrente do redimensionamento do discurso, o autor implícito
insere o leitor no reino da criação mimética, instauradora de uma realidade mais bela e mais instigante
do que a da vivência cotidiana. E “o belo é o valor que é experimentado nas coisas, bastando que
apareça, na gratuidade exuberante das imagens, quando a percepção cessa de ser uma resposta prática
ou quando a práxis cessa de ser utilitária” (DUFRENNE, 2002, p. 25). O belo é um valor experimentado
num objeto, que se torna diferenciado e único entre as coisas do mundo, mesmo entre as mais terríveis
e as mais surpreendentes, porque ele apresenta uma inconfundível sensibilidade expressiva.
DIONÍSIO EM CENA
cabo eleitoral dessa laia não merece respeito. Mesmo agora que eu perdi a autoridade,
sempre fica o prestigio. Em Aracaju tenho as costas quentes e não é assim que Getúlio
vai se ver de uma hora para outra. Principalmente depois de entregar vosmecê. Tem
ambientes em Aracaju, gente a seu favor. Coisas. Não gosto desse serviço, não gosto de
levar preso. Avexame. Depois de levar vosmecê lá, assento os quartos num lugar e largo
essa vida de cigano. Só se doutor Zé Antunes pedir muito. Mesmo assim. Me aposento-
me (RIBEIRO, 1982, p. 13).
Getúlio torna-se intérprete de sofrimentos e contradições que instituem esse universo ficcional
alicerçado na influência onírica de Dionísio. Tal qual esse deus, o protagonista atrai para si o mundo
real, mas reveste-o pelo sonho e pela embriaguez, operando, nesse caso, o fenômeno da identificação
heteropática, pelo qual o indivíduo atua sobre o mundo para torná-lo idêntico à sua visão.
REDIMENSIONANDO A LINGUAGEM
Mas seu Nestor só falou duas coisas alto e deu com a mão na menina e eu e Amaro fomos
ajudar a segurar para darmos porrada nela. Merecia. Mulher que viu homem nessas
condições é rapariga. Ou vai ser. Punitivos é bom. Por isso que seguremos um pouco,
ao que o pai dava o castigante com o mesmo manguá que eu olhei e aparava na mão
crua, com a canhota, quer dizer que era em cima e em baixo. Mas não teve precisão de
segurar mais, porque aquele manguá era dos de amansar burro... (RIBEIRO, 1982, p. 55).
pode ser que eu chore agora visto que não é que eu tenho medo, eu não tenho medo
nem de alma, mas eu posso chorar porque eu nunca falei com aquela força fraqueza
nem vou falar e tem tanta coisa que eu não pude fazer porque eu não sabia e o mundo
inteiro parou aqui, hem Amaro? veja essa água e essa beira de rio, com esse barulho
aí de leve noite e dia, veja essa água e Aracaju e a ponte do imperador, veja esse povo
vindo atravessando de barco atrás de nós e carregando as armas apontando para
cima e aquele navio parado ali, nem sabe o que está se passando na vida, mas porém
o destino está dando volta, hem Amaro? lá na lua e pode crer que eu estou vivo no
inferno, lá na lua está Luzinete e essa força se atira eu também atiro, ô minha lazarina,
ô meu papo amarelo e um mandacaru de cabeça para cima eu vou morrer e nunca vou
morrer eu nunca vou morrer Amaro eu nunca vou morrer um aboio e uma vida Amaro
aaaaaaaaaaaaahhh eeeeeeeeeeeeeeh
esse povo de Aracaju não sabe, nem nunca vai saber, só eu que sei o que tem nessa
terra toda e posso correr por cima dela com o vento na cara, nas águas e no chão. Eu
não tinha nada o que fazer aqui de primeira vez, nunca tive. Tinha minha missão, isso
tinha. E fiz. Tinha minha vida, isso também, e vivi, e se me perguntasse quer viver uma
vida comprida amofinado ou quer viver uma vida curta de macho, sendo eu e mais eu
e respeitado nesse mundo e quando eu morrer se alembrem de mim assim: morreu o
Dragão (RIBEIRO, 1982, p. 153).
Sua linguagem, além de traduzir sua rica interioridade, apresenta um tom vacilante e
interrogador, próprio para a configuração da experiência ficcional, que metaforiza o semi-pensamento
e a semi-realidade, por meio de uma operação que mantém agregados o sentido e a imagem. Nesse
contexto, o espaço torna-se inteiramente virtualizado, próprio para traduzir a ilusão de vida criada pelos
eventos. Em seguida, de maneira abrupta, tal qual pressupõe o monólogo, o protagonista rompe a
linearidade do discurso e passa para o quadro seguinte, que trata da chegada do reforço policial do
governo para proteger o correligionário udenista que ele conduzia:
Aquela força que vem, coisa, aquela força que vem pelo rio atravessando, pode se ver
os fuzios apontando para cima e está se vendo que ninguém pensa que vai me pegar
fácil, porque senão não vinha tanta gente. Todo mundo sabe que eu vou dar testa, aviu
vosmecê? E só vem fardado, veja bem, coisa, não vem um paisano para remédio com
certeza, só vem mesmo os mandados, os mandadores não vem. Antes que eles queiram
me acabar, coisa, eu ainda sou capaz de lhe arrastar sete vezes pela beira dessa praia
... na mão uns bacamartes, nos pés uma fincada, minha vida e a laranjeira morta e a lua
que Luzinete mora, espie aí, coisa, é uma fraqueza e miles homens desses é como nada e
como eu tem mais aqui, essa é uma terra de macho, viu, traste, e a terra que me pariu vai
me vomitar de novo, quantas vezes me enterrarem, quem tem amigo nesse mundo, oi
Amaro, viu Amaro, olhe quês jias brancas nos tijolos do chão, não estremeça, trem, veja
que terra essa, com a morte deslizando pelo rio, as caras deles nem se enxerga, mas veja
que terra essa, com nós aqui plantados no chão, não semos a mesma coisa? não semos
a mesma coisa? é engraçado como vem esses homens e esses homens nenhum está
pensando nada... (RIBEIRO, 1982, 155).
RIBEIRO, João Ubaldo. Sargento Getúlio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Tradução de Dion Davi Macedo. São Paulo: Edições
Loyola, 2000.
PARTE IV
CAPÍTULO 15
No tocante ao ato tradutório, o “texto literário” é visto como valorizando os aspectos estético-
estilísticos, de modo que a importância atribuída à linguagem empregada pelo autor é comparável à
importância dada ao conteúdo do texto (AUBERT, 1991, p. 66). Dentro dessa perspectiva, a tradução
de textos literários poderia ser considerada como tendente a exigir um paralelismo à forma original.
No entanto, grande parte das pesquisas constantes nas áreas da Literatura Comparada e dos Estudos
da Tradução têm tradicionalmente buscado verificar se o estilo do autor ou autora foi ou não
adequadamente transposto para a língua de chegada no que tange a “desvios” ou erros na tradução.
Diferentemente, este estudo procurou investigar se as marcas deixadas pela “voz do outro”
mostrariam evidências do uso de escolhas estilísticas próprias, distintivas e recorrentes por parte
dos tradutores literários escolhidos para análise. Tais preferências estariam, de certa forma, sendo
empregadas independentemente do estilo do autor ou autora, da obra original, dos sistemas linguísticos
específicos e, possivelmente, das normas de um dado socioleto (BAKER, 1996, 2000).
Nos últimos anos, alguns teóricos da tradução têm enfatizado a presença do tradutor; no
entanto, não apresentam nenhuma demonstração dos traços efetivamente deixados nos textos
traduzidos. Venuti (1992, 1995, 1998) recrimina a transparência como efeito ilusionístico da presença
do autor que seria [supostamente] alcançada pelas estratégias da tradução “domesticadora” e advoga
a visibilidade do tradutor por meio de estratégias de resistência da tradução “estrangeirizadora”, mas
sem explicitar quais seriam as marcas de uma “fidelidade abusiva”. De modo análogo, Hermans (1996)
claramente reconhece a voz do tradutor; porém, focaliza especialmente a voz do outro no que tange ao
emprego autorreferencial de primeira pessoa nas notas do tradutor.
Este trabalho baseia-se, parcialmente, nas aulas que ministrei junto ao Programa de Mestrado da UNIOESTE - Câmpus Cascavel, para o Seminário Avançado: “A Tradução e
36
o Texto Literário”, linha de pesquisa Linguagem Literária e Interfaces Sociais: Estudos Comparados, no período de 08 – 12/12/2010.
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 197
No que concerne à sua presença e à noção de estilo, poderíamos incluir a escolha de cada tradutor
com relação ao material a ser traduzido, a utilização consistente de estratégias tradutórias e, sobretudo,
o modo de expressão que é típico de um dado tradutor (mais do que simplesmente instâncias de
intervenção aberta de material extratextual).
A fim de observar traços efetivamente deixados na tradução, este trabalho procura comparar
trechos extraídos de obras de Clarice Lispector em relação ao uso de padrões estilísticos próprios
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês
e preferenciais de um tradutor literário e de duas equipes com dois tradutores literários. Com esse
propósito, foi criado um corpus de estudo do tipo paralelo, contendo oito obras compiladas na íntegra.
O subcorpus representado pelo primeiro tradutor é constituído por Laços de família (LF) e Family ties
(FT), e A Descoberta do Mundo (DM) e Discovering the World (DW), traduzidas por Giovanni Pontiero;
o segundo é formado por Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres (ALP) e An Apprenticeship or The
Book of Delights (ABD), traduzida por Richard Mazzara e Lorri Parris; e o terceiro é constituído por Água
Viva (AV) e The Stream of Life (SL), traduzida por Elizabeth Lowe e Earl Fitz.
PERSPECTIVA TEÓRICA
37
”Colocação: associação entre itens lexicais ou entre o léxico e campos semânticos” (BERBER SARDINHA, 2004: 40).
38
[...] estilo como uma espécie de impressão digital que fica expressa [no texto traduzido] por uma variedade de características linguísticas [...] as quais estão provavelmente
mais no domínio do que algumas vezes é chamado de “estilística forense” que no da estilística literária (Leech e Short, 1981, p.14). Tradicionalmente, a estilística literária
focaliza o que se assume serem escolhas linguísticas conscientes da parte do autor, porque os estilistas literários estão principalmente interessados na relação entre as ca-
racterísticas linguísticas e a função artística, em como um dado autor obtém certos efeitos artísticos. Por outro lado, a estilística forense tende a focalizar hábitos linguísticos
razoavelmente sutis e moderados que estão bem acima do controle consciente do autor e que nós, como receptores, registramos, na maioria das vezes, de forma subliminar.
Todavia, como ambos os ramos da estilística, estou interessada em padrões de escolha (quer essas escolhas sejam conscientes ou subconscientes) mais do que em escolhas
individuais isoladas. [Minha tradução]
39
Os títulos dos doze pares de obras encontram-se elencados nas Referências Bibliográficas, no final deste artigo.
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 199
estilísticos de apenas um tradutor individual e de duas equipes com dois tradutores em quatro obras
claricianas, em virtude da necessidade de limitação de espaço para o presente trabalho.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês
trechos traduzidos, procuraremos mostrar exemplos de padrões de estilo ‘de’ tradução para o inglês por
diferentes profissionais. Com referência à voz do outro presente no texto clariciano traduzido, podemos
observar uma tendência de traços de simplificação identificados pela utilização de uma quantidade
mais alta de repetições, a fim de facilitar a leitura do texto na língua de chegada. No entanto, podemos
notar um uso maior de reiterações expressivas nos textos traduzidos por Giovani Pontiero em relação
aos respectivos textos da autora. Como exemplo dessa opção por reiterações enfáticas, transcrevemos,
abaixo, um trecho extraído do conto “Devaneio e embriaguez de uma rapariga”, que abre o livro Laços
de Família:
[LF] [...] Punha-se de novo a abanar-se, quase a sorrir. Ai, ai, suspirou a rir. Teve a visão
de seu sorriso claro de rapariga ainda nova, e sorriu mais fechando os olhos, a abanar-se
mais profundamente. (LISPECTOR [1960], 1979, p. 23)
[FT] […] Then, almost smiling, she started to fan herself once more. Oh my! She sighed as
she began to smile. She beheld the picture of her bright smile, the smile of a woman who was
still young, and she continued to smile to herself, closing her eyes and fanning herself still
more vigorously. (LISPECTOR, trad. Pontiero, [1972], 1995, p. 28)
Por meio do quadro a seguir, podemos examinar as escolhas diferentes de Pontiero neste
trecho:
PERSPECTIVA TEÓRICA
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 201
Dessa forma, este estudo não está voltado para o sentido tradicional de examinar se o estilo do autor foi
adequadamente transposto “na” tradução, mas, sim, direciona o foco para um estilo “de” tradução no que
concerne a marcas deixadas pelo tradutor no texto da língua de chegada. Apesar das dificuldades que
uma investigação de um estilo “de” tradução possa acarretar, a importância dessa mudança de enfoque
aponta para a necessidade de estudos que proponham abordagens que possibilitem a identificação da
presença do tradutor, referente ao uso de padrões estilísticos próprios, específicos em relação ao estilo
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês
do autor, da obra original e do par linguístico envolvido.
Ainda que Camargo (2005, p.119-177) tenha comparado, em sua tese de Livre-Docência,
o estilo de três autores (Clarice Lispector, Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro) em doze obras da
literatura brasileira contemporânea em relação aos padrões estilísticos, respectivamente de seis
tradutores individuais (Pontiero, Levitin, Rabassa, Onís, Ubaldo Ribeiro, e Bush) e de duas equipes com
dois tradutores (Lowe e Fitz, e Massara e Parris), foram selecionados para observação certos padrões
estilísticos de apenas um tradutor individual e de duas equipes com dois tradutores em quatro obras
claricianas, em virtude da necessidade de limitação de espaço para o presente trabalho.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
[LF] [...] Punha-se de novo a abanar-se, quase a sorrir. Ai, ai, suspirou a rir. Teve a visão
de seu sorriso claro de rapariga ainda nova, e sorriu mais fechando os olhos, a abanar-se
mais profundamente. (LISPECTOR [1960], 1979, p. 23)
[FT] […] Then, almost smiling, she started to fan herself once more. Oh my! She sighed as
she began to smile. She beheld the picture of her bright smile, the smile of a woman who was
still young, and she continued to smile to herself, closing her eyes and fanning herself still
more vigorously. (LISPECTOR, trad. Pontiero, [1972], 1995, p. 28)
Por meio do quadro a seguir, podemos examinar as escolhas diferentes de Pontiero neste
trecho:
Lispector Pontiero
Fragmento de LF Fragmento de FT
Punha-se de novo a abanar-se, Then, almost smiling, she started
quase a sorrir. [to fan herself] once more.
[Oh] my!
[Ai,] ai, a smile
rir. She beheld the picture of
Teve a visão her […] the smile of a woman who
rapariga [ainda nova] was still young,
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 203
retirados, respectivamente, de Discovering the World, por Pontiero, de Apprenticeship or The Book of
Delights, por Mazzara e Parris, e de The Stream of Life, por Elizabeth Lowe e Earl Fitz. A fim de distinguir
para cotejo as opções diferentes encontradas no último parágrafo dos três excertos originais, colocamos
as palavras entre colchetes e, quando tais palavras mostram-se diferentes apenas no fragmento de ALP,
o destaque encontra-se acrescido do sublinhado:
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês
[DM, 1968] 22 de junho
UMA EXPERIÊNCIA
Talvez seja uma das experiências humanas e animais mais importantes. A de pedir socorro e,
por pura bondade e compreensão do outro, o socorro ser dado. Talvez valha a pena ter nascido
para que um dia mudamente se implore e mudamente se receba. Eu já pedi socorro. E não me
foi negado.
Senti-me então como se eu fosse um tigre perigoso com uma flecha cravada na carne, e que
estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para descobrir quem lhe tiraria a dor. E então
uma pessoa tivesse sentido que um tigre ferido é apenas tão perigoso como uma criança. E
aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada.
E o tigre? Não, certas coisas nem pessoas nem animais podem agradecer. Então [eu], o tigre,
[dei] umas voltas vagarosas em frente [à pessoa, hesitei, lambi] uma das patas e depois, como
não [é] a palavra o que [tem] importância, [afastei-me] silenciosamente. (LISPECTOR, 1987, p.
112)
[ALP] [...] talvez essa fosse uma das experiências humanas e animais mais importantes: a de pedir
mudamente socorro e mudamente este socorro ser dado! Pois, apesar das palavras trocadas,
fora mudamente que ele a havia ajudado. Lóri se sentia como se fosse um tigre perigoso com
uma flecha cravada na carne, e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para
descobrir quem lhe tiraria a dor. E então um homem, Ulisses, tivesse sentido que um tigre ferido
não é perigoso. E aproximando-se da fera, sem medo de tocá-la, tivesse arrancado com cuidado
a flecha fincada.
E o tigre? Não, certas coisas nem pessoas nem animais podiam agradecer. Então [ela], o tigre,
[dera] umas voltas vagarosas em frente [ao homem, hesitara, lambera] uma das patas e depois,
como não [era] a palavra [ou o grunhido] o que [tinha] importância, [afastara-se] silenciosamente.
(LISPECTOR, 1969, 1998, p. 121)
[ABD] [...] And Lori thought that that was perhaps one of the most important experiences for humans
and animals alike: silently asking for help and that help being given silently. For despite the exchange
of words, it had been silently that he had helped her. Lori felt like a dangerous jaguar with an arrow
embedded in its flesh which was slowly circling about some frightened people to determine who
would take the pain away. And then a man, Ulysses, had sensed that a wounded jaguar is not
dangerous. And approaching the beast, unafraid to touch it, he had carefully pulled out the arrow.
And the jaguar? No, there were certain things that neither humans nor animals could be grateful for.
Then she, the jaguar, had taken a few slow turns in front of the man, hesitated, licked a paw and then,
as if neither word nor sound was important, had quietly moved away. (LISPECTOR, trad. Mazzara e
Paris, 1986, p. 87-88)
[AV] [...] Vou falar do que se chama a experiência. É a experiência de pedir socorro e o socorro
ser dado. Talvez valha a pena ter nascido para que um dia mudamente se implore e mudamente
se receba. Eu pedi socorro e não me foi negado. Senti-me então como se eu fosse um tigre com
flecha mortal cravada na carne e que estivesse rondando devagar as pessoas medrosas para
descobrir quem teria coragem de aproximar-se e tirar-lhe a dor. E então há a pessoa que sabe
que tigre ferido é apenas tão perigoso como criança. E aproximando-se da fera, sem medo de
[SL] […] I’m going to speak of what’s called experience. It’s the experience of asking for help and
having help given. Perhaps it’s worth it to have been born in order one day to mutely implore and
mutely receive. I asked for help and it was not denied me. I felt then as if I were a tiger with a fatal
arrow nailed into its flesh and that I was slowly stalking fearful people to discover who would have
the courage to come close and relieve it of its pain. And then there’s a person who knows that a
wounded tiger is only as dangerous as a child. And approaching the beast without being afraid to
touch it, the person pulls out the embedded arrow.
And the tiger? It can’t thank you. So I pace slowly back and forth in front of the person and hesitate. I
lick one of my paws and then, since it’s not the word that’s important anymore, I silently move away.
(LISPECTOR, trad. Lowe e Fitz, 1989, p. 30)
Por meio do último parágrafo dos três fragmentos semelhantes (re)aproveitados pela autora,
pode-se observar, no quadro abaixo, diferenças na escolha de palavras por parte dos seus tradutores:
Lispector Pontiero
Fragmentos semelhante de DM Fragmento de DW
Não, […]
nem pessoas nem animais podem defy words of gratitude from
agradecer. humans and animals.
slowly circled several times
dei umas voltas vagarosas my Good Samaritan, paused, and
à pessoa, hesitei, […] my
uma das before withdrawing in silence,
depois, como não é a palavra o que since words are unimportant.
tem importância, afastei-me
silenciosamente.
Lispector Mazzara e Paris
Fragmentos semelhante de ALP Fragmento de
ABD
tigre jaguar
[certas coisas] there were [certain things]
[podiam] agradecer. that
tigre, dera umas voltas vagarosas [could] be grateful for.
uma das patas jaguar, had taken a few slow
como não era a turns
ou o grunhido o que tinha a paw
importância, afastara-se as if neither
silenciosamente. nor sound was important, had
quietly moved away.
Lispector Lowe e Fitz
Fragmentos semelhante de AV Fragmento de SL
Não se pode [agradecer]. It can't [thank] you.
I pace slowly back and forth
dou umas voltas vagarosas
that's important anymore
tem então importância I silently move away.
afasto-me silenciosamente.
Pode-se verificar certa preocupação com o nível lexical, em virtude de uma maior literalidade
no fragmento extraído da obra traduzida por Lowe e Fitz, seguida, com um pouco menos de traduções
literais e transposições pelo respectivo fragmento por Mazzara e Paris. Já no fragmento correspondente,
Pontiero apresentaria maior uso de modulações, indicando uma possível tentativa de manter a estrutura
da prosa clariciana.
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 205
A brevidade das narrativas de Lispector provém, em parte, da concisão métrica e densidade
sintática. A exploração desses recursos é facilitada pela própria língua portuguesa (com sílabas tônicas,
em geral, nas paroxítonas em relação à língua inglesa; ausência de phrasal verbs; elipses de pronomes,
artigos, preposições), o que possibilita ritmos comparativamente regulares em relação a ritmos mais
variados da língua inglesa.
Na tradução de Pontiero, poderia notar-se uma preocupação em preservar o léxico e ritmo da
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês
autora, procurando evitar a múltipla acentuação de phrasal verbs, como, por exemplo, na sequência
extraída, respectivamente, da crônica “Uma experiência” e dos dois fragmentos acima:
[…] tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada. (LISPECTOR, 1987, p. 112)
=> the stranger carefully removed the arrow. (LISPECTOR, trad. Pontiero, 1992, p. 150)
[…] tivesse arrancado com cuidado a flecha fincada. (LISPECTOR, 1969, 1998, p. 121)
=> he had carefully pulled out the arrow. (LISPECTOR, trad. Mazzara e Paris, 1986, p.87-
88)
No tocante a esta amostra com três fragmentos semelhantes encontrados nas respectivas obras
originais, torna-se possível observar as diferentes opções de tradução pelos profissionais em pauta. No
correspondente excerto extraído de Apprenticeship or The Book of Delights, a equipe de Mazzara e
Parris apresenta um padrão vocabular menos extenso em relação aos respectivos fragmentos originais
extraídos de Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres. Já os fragmentos traduzidos extraídos de
Discovering the World registram um padrão de acentuada variação vocabular em relação a Mazzara
e Parris, e um padrão de ligeira diversidade lexical em relação aos respectivos fragmentos originais
extraídos de A Descoberta do Mundo.
Apesar da série de possíveis variáveis, os resultados obtidos com o presente trabalho também
indicam que, no conjunto das quatro obras de Lispector traduzidas para o inglês, e observadas na sua
totalidade, ocorre um distanciamento moderado entre o estilo de Pontiero e da equipe de Lowe e Fitz.
Ao recorrer menos a traduções palavra por palavra e mais a modulações e a repetições
expressivas, Pontiero apresentaria, com frequência, uma ampliação deliberada de marcadores estilísticos
de reiteração utilizados por Clarice. Em um de seus ensaios, Pontiero (1971, p.266) comenta sobre a
significância da obsessive repetition of certain words40 na ficção clariciana. A esse respeito, Sabine atesta
que his translations not only preserves such repetition consistently but on well-chosen occasions increases
it41 (SABINE, 1997, p.150).
Conviria esclarecer que, com as amostras acima, não tivemos a intenção de avaliar se os textos
originais foram adequadamente transposto “nos” respectivos textos traduzidos. Na verdade, procurei
mostrar alguns exemplos de padrões de estilo “de” tradução para o inglês por diferentes profissionais a
partir de excertos iguais ou semelhantes originalmente escritos em português por uma mesma autora.
Para isso, tornou-se necessário assinalar determinados padrões da sua escrita, como ritmos próprios
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 207
R E F E R Ê N C I A S
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês
AMADO, J. Shepherds of the night. Tradução Harriet de Onís. Nova Iorque: Avon
Books, 1966.
AMADO, J. The war of the saints. Tradução Gregory Rabassa. Toronto/New York:
Bantam Books, 1993.
BAKER, M. Corpus-based translation studies: the challenges that lie ahead In: SOMERS,
H. (Ed.). Terminology, LSP and Translation Studies in Language Engineering: in
honour of Juan C. Sager. Amsterdam: John Benjamins, 1996. p. 175-186.
EVEN-ZOHAR, I. The position of translated literature within the literary polysystem. In:
HOLMES, J. S.; LAMBERT, J & van den BROECK, R. (Orgs.). Literature and translation.
Leuven: ACCO, 1978. Versão revisada em VENUTI, L. (Org.). The translation studies
reader. Londres e Nova York: Routledge, 2000, p. 192-197.
GOTLIB, N. Clarice Lispector: a vida que se conta. São Paulo, 1993. Tese (Livre-
Docência em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo.
LISPECTOR, C. A legião estrangeira. São Paulo: Ática, 1964; re-impressão São Paulo:
Ática, 1987.
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 209
LISPECTOR, C. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Sabiá,
1969; re-impressão Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês
LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro: Artenova, 1973; re-impressão Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980.
LISPECTOR, C. The stream of life. Tradução Elizabeth Lowe; Earl Fitz. Minneapolis, EUA:
University of Minnesota Press, 1989.
LISPECTOR, C. Onde estiveste de noite?. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1974a; re-
impressão Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
LISPECTOR, C. Where were you at night?: In Soulstorm. Tradução Aléxis Levitin. New
York: New Directions, 1976; re-impressão New York: New Directions, 1989.
LISPECTOR, C. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco, 1974b; re-impressão Rio
de Janeiro: Rocco, 1988.
LISPECTOR, C. Station of the body?. In Soulstorm. Tradução Aléxis Levitin. New York:
New Directions, 1976; re-impressão New York: New Directions, 1989.
LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977; re-impressão Rio
de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
LISPECTOR, C. The hour of the star. Tradução Giovanni Pontiero. Manchester: Carcanet,
1986; re-impressão New York: New Directions, 1992.
RIBEIRO, J.U. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
Uma análise da presença do “Outro” em obras de Clarice Lispector, traduzidas para o Inglês 211
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS
CAPÍTULO 16
O menino maluquinho
Ziraldo.
O tempo ficcional é o tempo que pode conter o passado, o presente e o futuro, por isto a
ficção encerra em si todos eles. Ziraldo inicia o seu texto infantil da maneira mais tradicional possível:
Era uma vez o menino maluquinho e assim o faz, provocando um dialogo polêmico entre as narrativas
infantis modernas e os contos de fada, uma vez que as histórias maravilhosas se propunham, antes de
tudo, a moralizar as crianças, consideradas à época, miniaturas de adultos. Ziraldo, entretanto, ressalva
que suas condutas têm correlação com o imaginário infantil que, por sua vez, resguarda o período
da infância como algo completamente independente da idade adulta, mas que funciona como fonte
de um inesgotável manancial de saudável energia criativa, como confessou Manuel Bandeira em seu
Itinerário de Pasárgada.
Ziraldo investe em seu jogo lúdico de escritura no diálogo intra e intertextual e, dessa forma,
propõe uma solução poética moderna para a literatura infantil. Eles são, modernamente recolocados,
mediante a intertextualidade usada por Ziraldo, onde os níveis de forma ao se entrecruzarem às imagens
e à linguagem verbal, especialmente a figurada, verifica-se que uma está para a outra como o conteúdo
para a forma.
A complexidade natural do ser humano é capaz, portanto, de gerar alegrias e tristezas que
se mesclam em seu dia a dia, como normalmente acontece no reino infantil. “A positividade aparece
propriamente como mola fundadora da negatividade: ela condiciona a afirmação do termo negativo ou
vice- versa.” Adulto ou infantil, o homem está sujeito à sua natureza.
Inicialmente, poder-se-ia pensar que quando a tristeza do menino maluquinho surgisse seria
fugaz, e atuaria em nível disfórico, negativamente. Ao contrário, ele ressurge enérgico, criativo e alegre.
Obviamente, ao lado de seus direitos, estão seus deveres e suas responsabilidades infantis:
A hipérbole está presente no texto, propositadamente, sem pontuação alguma, para reforçar a
expressão de sua hiperatividade como marca indelével e explícita de toda criança saudável e feliz:
O plano de expressão e o de conteúdo reflete-se nas ilustrações e nos balões que contêm
palavras soltas, desconexas, demonstrando seu estado eufórico, quando não há alguém com quem
ele pudesse conversar. Entretanto, como num monólogo interior favorece sua hiperatividade, porque a
sintaxe não se faz presente, o que o beneficia, tornando expressivo seu estado de humor:
se havia
o silêncio
ele inventava turma dentista castigo
A pré-adolescência aciona apelos energéticos e emocionais. A fantasia faz parte de seu reinado
amoroso, demonstrando sua natural sedução:
O menino maluquinho
tinha
dez namoradas
Ele era
um namorado
formidável.
Que desenhava
corações
nos troncos
das árvores
Que
desenhava
flores no caderno de desenho
e levava laranjas
e levava maçãs
e pagava sorvetes
e roubava beijinhos
e fazia versinhos
e fazia canções. (53 a 61).
Seu caráter independente levava-o a praticar travessuras, seu apelido após as férias era MÚMIA,
tantos eram os curativos em seu corpo devido aos vários tombos que levava.
Entre as travessuras e períodos de estudos seu humor variava; havia tempos de dores e
lágrimas. Seus hormônios se desorganizavam e o Menino Maluquinho atravessava períodos tediosos
e se enclausurava, demonstrando que na pré-adolescência como na adolescência propriamente dita, a
criança também quer ficar só:
E chorava escondido
se tinha tristezas
e ficava sozinho
brincando no quarto
semanas seguidas
(não petu®be) (64/65)
Nesta fase, ensimesmado, exercitava seu lado lúdico, jogando batalhas, corridas, desenhando
mapas de terras inexistentes, e inventando:
De volta ao convívio de seus familiares e de sua turma de amigos, ele compartilhava seus
segredos:
O tempo de sua infância era elástico, tinha tempo para tudo e ainda sobrava-lhe tempo para
sonhar. Tão somente as adversidades existenciais e familiares tornaram suas horas cronológicas. Com o
divórcio de seus pais, ele se obrigou a agir objetivamente, ainda que continuasse um pouco lúdico seu
poder de invenção:
E o menino maluquinho
era um menino tão querido
era um menino tão amado
que quando de acontecer
de o papai ir para um lado
e a mamãe ir pro outro
ele achou de inventar
(pois tinha aprendido a criar)
a Teoria dos Lados!
Com sua maturidade, concretizou-se seu crescimento. Ele se tornou uma pessoa adulta,
A saudável maluquice de um menino feliz
podendo recorrer a seu período infantil para amenizar suas dificuldades emocionais de homem. Então
ele percebeu que:
O leitor sai deste texto criativo e amoroso que é O menino maluquinho com o mesmo prazer
que se tem quando criança ao comemorar a vitória num “jogo de bolinha de gude” ou quando se chega
ao céu no final do “jogo da amarelinha”. O lúdico e a sensação de ter conhecimento, de saber, com
certeza, o valor de cada signo textual, bem como aqueles emitidos pelas crianças, conferem-lhe o poder
218 INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS
de transformar sua capacidade de formação infantil, e à criança é devolvida a resposta que a bruxa
INTERPRETAÇAO E TESTEMUNHO: PRÁTICAS, CONSTRUÇÕES, REPRESENTAÇÕES E DIÁLOGOS (madrasta de Branca de Neve) faz ao espelho:
- “Espelho, espelho meu, há alguém neste mundo mais bonita do que eu?”
Sim, há uma narrativa onde a criança se identifica com seus personagens e se espelha em suas
características, e estas não são as mesmas exigidas do menino miniatura de adulto. A literatura infantil
moderna tem, quase sempre, o reconhecimento de seus reais valores. Adultos, pais, professores e
familiares, insistimos, sabem da importância de respeitar suas crianças, e do exato momento de impor-
lhe limites, pois direitos e deveres caminham lado a lado neste processo de formação humanitária e
libertadora da criança.
EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. Martins Fontes, São Paulo: 2010.
CAPÍTULO 17
Se há uma figura recorrente em boa parte da literatura gótica essa é a da heroína frágil e
perseguida. Encarnação da virtude e da bondade, ela se constitui sempre num plano linear, capaz de
desenhar, desde o início do texto, um desfecho bastante previsível – por isso, raramente, surpreende.
Um possível modelo dessa espécie de personagem é encontrado dentro das novelas/romances
de cavalaria medievais. Parte considerável das personagens femininas desse gênero surge emoldurada
por uma prática de devoção e de submissão aos valores masculinos dominantes, circundada quase
sempre de uma aura cristã – estofos necessários à representação da mulher ideal e virtuosa.
Essa personagem, nas novelas/romances de cavalaria, apresenta uma certa fragilidade que
quase sempre a põe em perigo. Desse perigo ela é salva pelo cavaleiro, cuja honra e nobreza de espírito
devem ser ressaltadas e reveladas ao longo de todo o enredo. Ela aparece, nesse caso, como uma
personagem de segundo plano, que serve para evidenciar a figura do herói. A fragilidade feminina,
portanto, constrói-se mais como um pretexto para se revelarem as virtudes e atitudes heróicas do
cavaleiro.
O romance gótico aproveita-se muito dessa composição. Nele, todavia, a figura da heroína
surgirá como um dos meios pelo qual se projeta o maniqueísmo presente em boa parcela das obras do
gênero. A eterna luta entre o bem e o mal se reduz na composição da heroína (protótipo do bem) e na
do vilão (protótipo do mal) que, em dado momento da obra, terão de se enfrentar.
A importância, porém, da heroína gótica que a difere daquela apresentada nos textos medievais,
é que ela não serve para evidenciar a figura de um herói (embora esse se faça presente), mas sim para
atuar como forma de oposição dos desregramentos intrínsecos ao vilão – por isso o embate não se
dá apenas entre duas personagens, mas sim entre duas forças totalmente adversas que sustentam a
narrativa.
A parte subterrânea do castelo era escavada numa série de vários claustros interligados
e não era fácil para alguém em tal estado de ansiedade encontrar a porta que abria
para a caverna. Um silêncio assustador reinava nessas regiões subterrâneas, exceto
quando, vez por outra, algumas rajadas de vento sacudiam as portas pelas quais ela
havia passado e os gongos de ferro ecoavam através daquele longo labirinto de trevas.
Cada rumor deixava-a possuída por um novo terror; mas ainda assim temia, acima de
tudo, a voz irada de Manfredo ordenando seus criados a perseguirem-na. (WALPOLE,
1996, p. 39-40)
Assim como Isabela, as personagens femininas de boa parte das narrativas góticas tornam-se
cativas de um espaço que não lhes permite mobilidade nem visão, deixando-as totalmente à mercê
da vontade masculina que, coadunada ao ambiente, subjuga-as acentuando, ainda mais, o grau de
fragilidade delas.
Essa construção da heroína perseguida, frágil e debilitada ganha fortes contornos na narrativa
gótica do século XVIII, bem como presença efetiva nessa espécie de texto, todavia não se constituirá
exclusividade dele. As obras do século XIX apropriar-se-ão desse modelo, variando-lhe os matizes
e inserindo-o em gêneros diversos. Até mesmo no século XX, é possível encontrar, vez por outra,
personagens femininas que atendem a essa vocação.
42The terrors and horros of transgression in Gothic writing become a powerful means to reassert the values of society, virtue and propriety;
transgression, by crossing the social and aesthetic limits, serves to reinforce or underline theri value and necessity, restoring or defining limits.
43Cloistering becomes a metaphor for the repression of flesh, body, nature (all ultimately reduced to and identified with sexuality), and the illusory
A moça tornou-se bela como uma divindade. Os seus modos eram tão benévolos,
quando tratava com os pobres, sua caridade tão extensa, que ganhou no povo um
amor universal. (...) Seu pescoço alvo e longo como uma gaivota de nossas margens,
era ornado de colares de diamantes, cujos laços lhe cobriam o alvo colo; seus cabelos
pretos e lustrosos como a asa da jagutinga, eram suspensos no alto da fronte por flores
de pedras de muito custo. (...) Ah! que era a mais bela virgem de todo o bairro! (2001,
pp. 31-32).
Quando Maria Altina – era a menina, a filha dele – andava nos dezasseis anos, este
arranchamento era um paraíso: o arvoredo todo crescido e dando; lavouras, criação
miúda, de tudo era uma fartura; havia galpões, eira, currais, tafona. O Mariano e as duas
traziam nas palminhas a pequena. Ela era o – ai-jesus – de todos, até dos negros (1998,
p. 31).
Ana fora uma criança robusta e sã, era agora franzina e pálida. Os anelados cabelos
castanhos caiam-lhe sobre as alvas e magras espáduas. Os olhos tinham uma languidez
doentia. A boca andava sempre contraída, em uma constante vontade de chorar. Raras
rugas divisavam-se-lhe nos cantos da boca e na fronte baixa, algum tanto cavada (2005,
p. 60).
Ao final do conto, no momento em que está casando, Ana ou Aninha, como é chamada
– parecendo hipnotizada por Vitória – apresentará os estados extremos, típicos dessa espécie de
personagem:
Então convulsões terríveis se apoderaram do corpo de Aninha. Retorcia-se como se fora
de borracha. O seio agitava-se dolorosamente. Os dentes rangiam em fúria. Arrancava
com as mãos os lindos cabelos. Os pés batiam no soalho. Os olhos reviravam-se nas
órbitas, escondendo a pupila. Toda ela se maltratava, rolando como uma frenética,
uivando dolorasamente (2005, p. 64).
Os desmaios, choros e gritos quase sempre tomam parte das reações esboçadas pelas moças
frágeis que se encontram diante de um perigo iminente. A razão raramente tem espaço para se
manifestar diante das situações, deixando-as à mercê dos fatos, sem força de expressão ou de ação –
padrão este já encontrado nos romances góticos do século XVIII.
Luísa, tão alegre e radiosa, tão habituada a querer e poder no coração de seu padrinho,
parecia ter mudado de natureza e de caráter, engolfando-se em profunda melancolia,
e mostrando no seu silêncio embora tristíssimo, e na obediência sem queixa, a mais
completa submissão à vontade do padre Martim (MACEDO, s/d, p. 149)
Tudo, então, é articulado de maneira a ressaltar a bondade da heroína, sua religiosidade, sua
compostura, sua submissão ante a força dominadora do mal – é nisso que reside a força do bem, pelo
menos na concepção da época.
Tanto em D. Narcisa de Villar quanto em O rio do quarto, em Úrsula (1859) como também em
“No manantial” as situações adversas por onde figura o mal encontram-se relacionadas à união da
mulher com um homem indesejável – a fuga a esse destino acarretará uma tragédia, que se constituirá
no ápice da obra.
Narcisa morre junto com Leonardo, ambos assassinados dentro de uma gruta na Ilha do
Mel, onde se abrigaram após uma fuga e perseguição pelo mar revolto e tempestivo. Maria Altina, no
desespero da fuga a cavalo, ao ser perseguida por Chicão, precipita-se no manantial sendo sorvida pelo
mesmo. Úrsula, após presenciar o assassinato de Tancredo, enlouquece e de pois morre. Luisinha não
morre, mas perde seu pai – o padre Martim – que é assassinado pelo próprio primo dela, pretendente
indesejável à mão da moça.
Na maioria das obras citadas até aqui, encontra-se um lugar-comum nos desfechos: o
assombramento do local onde se deu o embate entre as forças do bem e do mal. Lugares tidos como
assombrados quase sempre guardam histórias relacionadas a transgressões, a crimes, à crueldade e
à perversidade do homem, funcionando como uma espécie de portal onde as histórias do passado
adentram o presente e trazem à memória o fato ou os fatos ocorridos.
Quando a noite está escura, e cai o vento noroeste, vê-se dois vultos brancos como a
neve atravessarem o mar, vindos, da Ilha do Mel à Ponta Grossa, e irem costeando até a
Ponta da Pedreira. Dali se transformam em duas pombas brancas, e voam pelo mesmo
caminho que vieram; porém então são perseguidas por três corvos que procuram
agarrá-las com seus bicos hediondos, grasnando horrivelmente: chegando bem no meio
do mar, os corvos se transformam em Meninos queimados, e lançam gritos tão agudos
que fazem acordar as crianças em seus berços, iluminando todo o mar com o clarão
de suas caudas inflamadas. Chegando à Ilha do Mel tudo desaparece. É LEONARDO e
D. NARCISA DE VILLAR que vêm do céu fazer a sua peregrinação na terra onde tanto
sofreram; os corvos, são os orgulhosos irmãos da santa mártir que estão no inferno
todos três (CASTRO, 2001, p. 126)
As imagens ligadas à heroína (vulto branco, pomba branca, céu) apresentam-se carregadas de
uma simbologia ligada ao bem, enquanto, na outra extremidade, as imagens ligadas ao vilão (corvos,
meninos queimados, inferno) revelam a presença do mal que não triunfa na esfera transcendente.
Em Úrsula, após a morte da heroína, o vilão se acabará em remorsos e entrará para a vida
religiosa, tornando-se um frei; na hora de sua morte agarra o crucifixo e pede perdão a Deus por todas
CASTRO, Ana Luísa de Azevedo. D. Narcisa de Villar. Florianópolis: ed. Mulheres, 2000.
KILGOUR, Maggie. The rise of the gothic novel. London: Routledge, 1995.
MACEDO, Joaquim Manuel de. O Rio do Quarto. São Paulo: Melhoramentos, s/d.
MACEDO, Joaquim Manuel de. Os Dois Amores. São Paulo – Rio de Janeiro – Porto
Alegre: W. M. Jackson Inc. Editores, 1952.
NETO, João Simões de Lopes. Contos Gauchescos. São Paulo: Ática, 1998.
REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Florianópolis: ed. Mulheres, Belo Horizonte: PUC
Minas, 2004.
SOUSA, Inglês de. Contos Amazônicos. São Paulo: ed. Martin Claret, 2005.
WALPOLE, Horace. O castelo de Otranto. São Paulo: editora Nova Alexandria, 1996.
CAPÍTULO 18
Metateatro e Teatralidade44
Sonia Aparecida Vido Pascolati
Fenômeno dúplice, o teatro vem sendo historicamente abordado nas confluências entre texto
e espetáculo; no espaço dessas confluências, se instala uma discussão acerca do terreno a que pertence
a teatralidade. Ao texto dramático, importa ter funcionalidade cênica, uma ação dinâmica e construir
um campo de imagens facilmente materializável pela mente do leitor ou pelo olhar do encenador. Dessa
perspectiva, texto e espetáculo passam a dividir a responsabilidade pela constituição da teatralidade,
na medida em que partimos, como Anne Ubersfeld (2005, p.6),
44As reflexões aqui apresentadas são parte dos resultados do projeto de pesquisa “Meteatro e modernidade teatral brasileira: um estudo da drama-
TEATRALIDADE E MIMETISMO
dramático é lacunar (UBERSFELD, 2005); portanto, é preciso perceber, nas potencialidades da palavra a
presença de outros elementos significantes tais como gesto, expressão, movimentação em cena, etc.
A história da dramaturgia no Ocidente é permeada por diferentes concepções acerca da
teatralidade que, todavia, giram em torno da mesma problemática: o questionamento da arte teatral
como forma de representação do mundo. Um marco fecundo dessa reflexão é o século XIX, momento
em que se estabelece a estética realista/ naturalista para a qual o teatro é visto como imagem viva do
real. O surgimento da fotografia e o desenvolvimento de técnicas cênicas, particularmente novos usos
da iluminação, viabilizam a pretensão de tornar o palco um espaço de reprodução da vida, constituindo
O interesse da teoria naturalista do teatro talvez esteja no fato de que ela funda uma
dialética da representação. Ela se instala na tensão entre uma aspiração “moderna” à
reprodução idêntica do real em todas as situações [...] e a rede de convenções sem as
quais essa reprodução não consegue nem mesmo pensar em existir. O naturalismo
se afirma contra as convenções existentes, mas, ao mesmo tempo, o naturalista sabe
perfeitamente que as infletirá, as transformará talvez, mas não as fará desaparecer.
Vsevoldod Meyerhold, ao propugnar o teatro teatral por ele forjado, insistia em destacar
na cena exatamente sua característica construída, artística, resultado de signos inflados
de significação que poderiam, facilmente, ser tomados como símbolos. A teatralidade,
nessa acepção, surge valorada positivamente, como uma virtude artística.
Não por acaso esse processo acontece ao mesmo tempo em que a arte, em todas as
suas manifestações, vive um momento de intensa reflexão acerca de sua natureza, de profundo
questionamento sobre seus limites e alcances, funções e determinações. A metalinguagem torna-se uma
marca da arte das primeiras décadas do século; também a arte teatral – entendida aqui em sua dupla
configuração, isto é, literatura dramática e arte cênica – abraça a missão de refletir sobre sua constituição,
não podendo escapar à questão sobre o que é o teatro e como ele se produz. O metateatro – apesar de
velho conhecido dos dramaturgos, visto sua presença já nas comédias de Aristófanes, assim como no
teatro barroco – assume conformações diferenciadas para atender a essa nova necessidade do teatro. A
peça dentro da peça, a inserção do discurso crítico no discurso ficcional, a criação de personagens com
consciência dramática, o questionamento acerca das fronteiras entre o real e a representação do real,
a ruptura da ilusão teatral por meio da desconstrução da quarta parede são alguns dos procedimentos
presentes nas obras da maior parte dos dramaturgos do século XX, representantes das mais variadas
tendências (Luigi Pirandello, Bertolt Brecht, Jean Anouilh, Samuel Beckett, Jean Genet, dentre tantos
outros).
O metateatro coloca em cena os bastidores da criação espetacular, resgatando a percepção do
espetáculo e do texto como construção intencional, reafirmando a teatralidade enfraquecida no final
do século XIX. Ao apagar as fronteiras entre público e plateia, lembrar constantemente ao espectador
que ele está no teatro, interpor um narrador entre a ação representada e aquele que a assiste, criar
personagens autônomas em relação a seu criador e àqueles que tentam representá-las no palco,
perverter a configuração tradicional de categorias dramáticas como tempo, espaço, ação e diálogo, os
dramaturgos modernos abrem caminho para que o metateatro seja uma nova matriz de teatralidade.
Metateatro e Teatralidade
Compreende-se bem que a principal dificuldade na análise do signo teatral esteja ligada
à sua polissemia. Esta polissemia se deve, é óbvio, à presença de um mesmo signo nos
conjuntos originários de códigos diferentes, embora em cena presentes conjuntamente;
por exemplo, um certo detalhe colorido de uma indumentária é em princípio elemento
visual de um quadro cênico, mas inscreve-se também numa simbólica codificada das
cores; faz parte também da indumentária de uma personagem, remetendo, por exemplo,
ao lugar social da mesma ou a seu funcionamento dramático; pode ainda esse detalhe
marcar a relação paradigmática de seu usuário com uma outra personagem em cuja
indumentária ele também figura. A polissemia está associada sobretudo a esse processo
de constituição do sentido: ao lado do sentido principal, dito denotativo (ligado em
geral à fábula principal), sentido em geral “óbvio”, todo signo (verbal ou não-verbal) leva
consigo significações outras, distantes da primeira.
onírico e do mitológico por meio do diálogo com o texto clássico de Dante Alighieri, A Divina Comédia.
Também aqui um poeta atravessa três mundos – os países do indivíduo, da gramática e da anestesia –
para recuperar sua amada Beatriz do mundo dos mortos, mas acaba aderindo à energia sexual da vida;
do combate entre vivos e mortos, sai vitoriosa a renovação, a ruptura.
Nenhuma peça foi encenada à época de produção, seja porque “põem em prática um teatro
de intervenção social, sendo vítimas de um sintomático ‘esquecimento’ tanto por parte da crítica,
afinada com o paradigma moderno, quanto do próprio meio teatral” (DUARTE, 2000, p.50), seja porque
a linguagem das peças é acentuadamente revolucionária para o estado do teatro brasileiro nas décadas
Completando as possibilidades semiológicas elencadas por Kowzan, cremos que n’A morta
o uso de marionete e microfone constitua um procedimento de teatralização da cena, isto é, eleva
o caráter construído do espetáculo teatral à sua máxima potência. O espectador é mergulhado no
universo da representação, pois tudo é artificialmente produzido e absolutamente separado de
qualquer tendência à reprodução mimética do real. O uso do duplo – Beatriz, despida, é duplicada
por A Outra, pudica e vestida de negro; Poeta e Hierofante parecem constituir duas faces da mesma
personagem (face sonhadora somada à face pragmática) – pode remeter à própria essência do teatro
como representação; como os níveis de representação se multiplicam e não há intenção de reprodução
mimética do real, o mergulho no universo teatral é gradativamente mais profundo.
O 3º. Quadro de O homem e o cavalo também pressupõe indefinição entre os espaços do palco
e da plateia, o que permite a algumas personagens manifestarem-se do meio da plateia no 8º. Quadro,
cuja cena V traz a seguinte indicação cênica: “O chinês brota do solo num espaço da platéia” (ANDRADE,
1990, p.100), o que acontece com outras personagens nas cenas seguintes, como o Pequeno-burguês e
o Poeta católico. Invadindo o espaço do público, o teatro oswaldiano interfere no processo de recepção
do espetáculo, torna o espectador parte do show, quase uma personagem; aliás, n’ A morta, o Hierofante
coloca-se na frente do palco e se senta sobre a caixa do ponto, anunciando direta e claramente aos
espectadores que eles são parte essencial da representação, até porque devem empregar toda a energia
de sua imaginação para a composição do espetáculo.
Em O rei da vela o limite entre os espaços palco/ plateia é respeitado, mas a intenção de lembrar
o espectador que ele está no teatro e que tudo não passa de uma atuação ensaiada, prevista, calculada
está longe de ser abandonada. Os cenários dos três atos são meticulosamente montados a fim de que
o efeito teatral seja amplificado, particularmente nos dois primeiros. A cena do 1º. Ato se passa no
escritório de usura de Abelardo I, o rei da vela do título, espaço atulhado por objetos penhorados dos
devedores: “Em São Paulo. Escritório de usura de Abelardo & Abelardo. Um retrato da Gioconda. Caixas
amontoadas. Um divã futurista. Uma secretária Luís XV. Um castiçal de latão. Um telefone” (ANDRADE,
2003, p.37). A diversidade de objetos e o fato insólito de estarem reunidos apresentam o espaço como
construção teatral; os objetos em cena transcendem sua significação habitual, alcançando o status de
signos polissêmicos: o retrato da Gioconda pode ser lido como signo do provincianismo nacional ou do
apego a tradições, o divã futurista ao lado de uma secretária do século XVIII estabelece um contraponto
temporal, o castiçal de latão denuncia o mundo de aparência da aristocracia brasileira.
O mesmo princípio preside a construção do cenário do 2º. Ato, “uma ilha tropical na Baía
de Guanabara” (ANDRADE, 2003, p.65). O som dos pássaros que “assoviam exoticamente nas árvores
brutais” é ouvido em cena como signo do artificialismo do cenário, mera composição de fundo para
que as personagens, vestidas “pela mais furiosa fantasia burguesa e equatorial”, por lá desfilem. Tudo é
composto de modo que a família seja flagrada em um momento lúdico; mergulhadas no jogo cênico,
elas desvelam algumas máscaras, adotam outras, enfim, constroem claramente seus papéis.
Mas o metateatro como meio para evidenciar a teatralidade está presente desde o início do
primeiro ato, quando contracenam Abelardo I e Abelardo II, seu secretário. Eles acabam de dispensar
um cliente a quem negam renovação de crédito e Abelardo I não quer receber mais ninguém; o
secretário insiste argumentando que a jaula, metonímia da sala de espera do escritório, está cheia, mas
o agiota, rompendo a quarta parede e revelando consciência de estar no teatro a representar uma peça,
é categórico: “[...] Esta cena basta para nos identificar perante o público. Não preciso mais falar com
nenhum de meus clientes. São todos iguais” (ANDRADE, 2003, p.43).
Personagem de teatro, Abelardo I encontra no último ato de O rei da vela a oportunidade
para desconstruir qualquer possibilidade de ilusão e desvelar insistentemente os bastidores do teatro,
Metateatro e Teatralidade
caracterizando-o como lugar de convenções, de manobras para construção do espetáculo. Por isso ele
pode afirmar ser uma personagem de seu tempo, que vai até o fim, “a morte no terceiro ato” (ANDRADE,
2003, p.98). Abelardo é personagem e diretor de cena ao mesmo tempo, já que o cenário de sua morte,
atravancado por objetos penhorados de uma Casa de Saúde, foi preparado por ele mesmo e os efeitos
de cena também são orquestrados pelo protagonista, que ordena:
ABELARDO I — [...] (Grita para dentro.) Olá Maquinista! Feche o pano. Por um instante
só. Não foi à toa que penhorei uma Casa de Saúde. Mandei que trouxessem tudo para
cá. A padiola que vai me levar... (Fita em silêncio os espectadores.) Estão aí? Se quiserem
Não resta nenhuma possibilidade de mimetismo, nem de mergulho na ilusão dramática pelos
espectadores. Para a personagem, demonstrar conhecimento da presença do público equivale a dizer:
sou uma personagem, sei que estou no palco, tenho um papel a desempenhar diante de vocês. Mas
não se iludam, é apenas um jogo, uma cena, da qual podem participar, inclusive, figuras dos bastidores
como o maquinista e o ponto.
Personagens de O homem e o cavalo apresentam o mesmo nível de consciência dramática
de Abelardo I. No 1º. Quadro, cuja ação se desenrola no céu, uma das personagens sai do banheiro
feminino ainda abotoando a cinta, no que é repreendido pelo Poeta-soldado:
O teatro no teatro constitui uma espécie de história literária no interior da obra, pois,
como toda forma reflexiva, ele comporta uma crítica ou um julgamento sobre um
passado literário em geral e sobre as condições de produção e recepção de um gênero
em particular. É nesse aspecto que o metateatro pode ter uma função hermenêutica
imanente que consiste em assinalar o que pertence a uma tradição ultrapassada e
tornar o receptor sensível a uma evolução. Ele constitui, portanto, uma literatura de
confrontação. (SCHMELING, 1982, p. 8-9; tradução nossa) .
Metateatro e Teatralidade
ANDRADE, Oswald de. A morta. 2.ed. São Paulo: 1995. (Obras completas de Oswald
de Andrade).
ANDRADE, Oswald de. O homem e o cavalo. São Paulo: Globo; Secretaria de Estado
da Cultura, 1990.
FACHIN, Lídia. Questões de ilusão teatral. In: Aletria – Revista de estudos de literatura.
n. 7. Belo Horizonte: UFMG, 2000, p.267-278.
KOWZAN, Tadeusz. O signo no teatro. In: INGARDEN, Roman et al. O signo teatral: a
semiologia aplicada à arte dramática. Organização e tradução e Luiz Arthur Nunes e
outros. Porto Alegre: Globo, 1977, p.57-83.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução dirigida por Jacob Guinsburg e Maria
Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 1999.
RODRIGUES, Nelson. Vestido de noiva. In: Dicionário de teatro. Teatro completo. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1993. p. 345-394.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Tradução José Simões (coord.). São Paulo:
Perspectiva, 2005.
Metateatro e Teatralidade 239
Metateatro e Teatralidade
PARTE V
CAPÍTULO 19
No século XIX, o barroco era visto pela historiografia crítica da arte européia — cujos juízos eram
fundamentalmente influenciados pela sensibilidade neoclássica — com preconceito e desinteresse.
O Brasil, por sua vez, “acompanhava a tendência estabilizadora e amaciadora do gosto acadêmico,
cambiando a sua recepção artística aos tiques neoclássicos e românticos de um ecletismo diluidor
do fácil e do digestivo” (ÁVILA, 1997, p.10). Os estudos realizados no país tinham, inicialmente, caráter
factual e ufanista, e só a partir de 1937, com a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Iphan)46, começaram a incorporar metodologias mais rigorosas. Affonso Ávila, um dos maiores
pesquisadores brasileiros do barroco, explica que com o Iphan houve um esforço de revisão conceitual,
liderado por Rodrigo de Mello Franco de Andrade; no entanto, essa revisão abordou o barroco apenas
enquanto manifestação arquitetônica e plasticista, desconsiderando-o como “um fato de cultura
que fora e continua sendo em suas ressonâncias bem mais amplo, bem mais globalizante, bem mais
interdisciplinar e universalizante, conformador e fundante mesmo de uma estrutura de mentalidade”47
(ÁVILA, 1997, p.10).
45O Professora Doutora do Departamento de Arte Visual e do Programa de Pós-Gradução em Letras da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
E-mail: [email protected]
46
O Iphan foi criado em 1937, em pleno Estado Novo, com o objetivo de mapear o patrimônio cultural brasileiro,conservá-lo, restaurá-lo e, ainda,
promover estudos da herança barroco-rococó e difundi-los através de periódicos e outras publicações.
47Embora Ávila não esclareça o que ele compreende por “estrutura de mentalidade”, neste texto “mentalidade” serefere a atitudes e representações
coletivas resistentes a mudanças e que se manifestam nas camadas maisprofundas de uma cultura.
Além disso, realizou um balanço crítico das artes e da literatura brasileiras dos seiscentos/
setecentos e em sintonia com a revisão crítica do barroco em território latinoamericano, pois havia
Esse quadro favoreceu a iniciativa da revista, que logo se tornou veículo de disseminação das
pesquisas sobre o barroco no cenário mundial. Durantes os 25 anos de sua publicação, ela apresentou
sumário rico e diversificado, e não deixou de acolher estudos mais pormenorizados do universo barroco
48
Myriam Ribeiro de Oliveira, por exemplo.
49
Em linhas gerais, o trabalho do connoisseur parte da observação empírica da obra, confronta as fontes arquivísticas, estabelece a datação e a
autoria, a escola a que pertence o estilo (individual ou de época) e a analisa técnica e iconograficamente.
50
Neste texto, os grifos das citações fazem parte, todos, do texto original.
A segunda metade do século XX iniciou-se, na América Latina, com o barroco na mira das suas
vanguardas.
Lezama Lima (1988) buscou pensar a identidade da América Latina numa perspectiva diferente
daquela que busca o “ser”, a “origem” ou a “essência” do homem americano e que concebe a história
como conseqüência de uma relação de causa-efeito. O alvo de sua crítica é o historicismo hegeliano, que
entende a história como expressão do “espírito” (razão ou logos), num processo de autodesenvolvimento.
Em seu lugar, Lezama Lima propõe uma história capaz de abranger a multiformidade do real, uma
história guiada pelo “logos poético”.
Somente o conhecimento poético seria capaz de apreender a “estéril” e “inanimada” planície
que é o mundo (dos fatos e dos objetos), pois “todo conocimiento verdadero culmina en el delirio”
(LEZAMA LIMA apud LEZAMA LIMA, 2006, p.56). Nessa perspectiva, todo discurso histórico revelaria
a impossibilidade de reconstruir a verdade dos fatos e, portanto, a história seria uma ficção, uma
exposição poética, um produto da imaginação do historiador, uma “mentira poética”. Tomando a história
como discurso, Lezama Lima utiliza o contraponto analógico: “Em vez de relacionar os fatos culturais
americanos pela relação de causa-efeito, denunciando uma progressão evolutiva, o seu contraponto
se move, erraticamente, para diante e para trás no tempo, em busca de analogias que revelem o devir”
(CHIAMPI, 1988, p.25).
Nesse procedimento comparatista, os “nossos” textos literários latino-americanos são
comparados com outros, de culturas distantes no tempo e no espaço; são partículas, fragmentos
extraídos de uma totalidade e escolhidos por analogia com fragmentos de uma outra totalidade,
compondo uma espécie de “constelação supra-histórica, em que os textos dialogantes exibem o seu
devir na mutação dessas partículas” (CHIAMPI, 1988, p.25). Nesse método, não existe produção literária
ou artística que seja superior ou inferior, melhor ou pior; tampouco ele permite estabelecer identidade
entre as formas (literárias, artísticas), pois a relação entre elas só pode revelar similitudes ao lado de
diferenças. Não havendo a possibilidade de identificação nem de repetição na criação literária, Lezama
Lima pretendia afirmar a singularidade da expressão americana e o “nosso” barroco latino-americano
como seu autêntico início, como uma não-origem, uma forma que “re-nasce” da síntese entre
hispânicos, índios e negros, ou, no caso brasileiro, entre portugueses, índios e negros. Ele apresenta o
latino-americano “como uma espécie de Caliban, irreverente, corrosivo, rebelde e devorador (e nisto,
À historiografia que pensa o nacional dentro de uma história retilínea, teleológica e “logofânica”,
Campos contrapõe o nacionalismo como movimento dialógico da diferença: “o des-carácter, ao
invés do carácter; a ruptura, em lugar do traçado linear; a historiografia como gráfico sísmico da
fragmentação eversiva, antes do que como homologação tautológica do homogéneo”. Enquanto a
historiografia literária do século XIX toma o nascimento da literatura nacional como o ápice de um
movimento natural, gradual e harmonioso e elimina o diferente, o marginal, o singular, a perspectiva do
nacionalismo como movimento dialógico da diferença coloca, no lugar da tradição, uma antitradição, “a
operar contravolução, como contra-corrente oposta ao cânone prestigiado e glorioso” (CAMPOS, 1981,
p.13); ou uma tradição constituída por aquilo que é relegado, deixado à margem, subjugado, como
propõe Adorno (apud CAMPOS, 1981, p.13): “aquilo que é colectado sob o nome de antiqualhas; é aí
que busca refúgio o que há de vivo na tradição, não no conjunto daquelas obras que supostamente
desafiam o tempo”.
Segundo Campos (1981), a historiografia literária brasileira contemporânea não difere dos
dois principais modelos de leitura da tradição: o disfórico e o eufórico. Em Formação da literatura
brasileira (1959), Antônio Candido desconsidera o barroco com o argumento sociológico da ausência
de produção impressa e de público; e toma o arcadismo pré-romântico como o momento formativo
inaugural da literatura brasileira. Por seu turno, Afrânio Coutinho, em Introdução à literatura no Brasil
(1959), reconstrói, a partir de uma visão evolutiva, a história da tradição literária brasileira tendo o
Metateatro e Teatralidade
barroco como ponto de partida. Apesar das diferenças, esses dois autores se empenharam “no mesmo
esforço parousíaco (ainda que com diverso, e até mesmo antagônico, timbre ideológico): a constituição
do espírito (ou consciência) nacional” (CAMPOS, 1981, p.14). Na perspectiva de um e de outro, a obra
de Machado de Assis representa a encarnação desse espírito, ou seja, há, em ambos, “a tentativa de
‘normalização’ da interferência perturbadora” (CAMPOS, 1981, p.14) da obra machadiana. A crítica de
Campos (1989, p. 61) aos dois autores é pautada na argumentação de Jauss e Starobinski:
[...] é preciso que a interpretação crítica não anule a ‘função diferencial’ da obra, sua
‘função transgressora’. A crítica não deve, portanto, excluir a exceção e assimilar o
Nossa literatura, articulando-se com o Barroco, não teve infância (in-fans, o que não fala).
Não teve origem ‘simples’. Nunca foi in-forme. Já ‘nasceu’ adulta, formada, no plano dos
valores estéticos, falando o código mais elaborado da época. Nele, no movimento de
seus ‘signos em rotação’, inscreveu-se desde logo, singularizando-se como ‘diferença’. […]
Nossa ‘origem’ literária, […] não foi pontual, nem ‘simples’ (numa acepção organicista,
genético-embrionária). Foi ‘vertiginosa’, para falar agora como Walter Benjamin […],
envolve a noção de ‘salto’, de ‘transformação’.
Nosso nascer, na literatura, seria uma espécie de “partenogénese sem o ovo ontológico”
(CAMPOS, 1981, p.14). O barroco brasileiro era um duplo dizer do outro como diferença, era “dizer
um código de alteridades e dizê-lo em condição alterada” (CAMPOS, 1981, p.15). E, segundo Augusto
de Campos (apud CAMPOS, 1981, p.16), o “primeiro antropófago experimental da nossa poesia” foi
Gregório de Matos. Em Boca do inferno, Matos se apropriou do mecanismo do código áulico do barroco,
do estilo engenhoso do elogio e da louvação cortês para fazer uma crítica. Seu lado “antropófago
experimental” e, portanto, transculturador, se revela sobretudo na maneira como combinou dois
sonetos de Góngora, “Mientras por competir con tu cabello” e “Ilustre y hermosísima María”, num
terceiro, “Discreta e formosíssima Maria”, que descortinava e explicava os segredos do soneto barroco
e que, “sendo duas vezes Góngora, era ainda de Garcilaso de la Vega, de Camões e, mais remotamente,
de Ausónio” (CAMPOS, 1981, p.16). Enfim, um texto de textos. Experiências como essa levam Campos
(1981, p.17) a afirmar que o barroco brasileiro já se nutria de uma “razão antropofágica”, pois trabalhava
em prol de desconstruir o logocentrismo que herdamos dos europeus, e que
[...] É uma antitradição que passa pelos vãos da historiografia tradicional, que filtra
por suas brechas, que envieza por suas fissuras. Não se trata de uma antitradição
por derivação directa, que isto seria substituir uma linearidade por outra, mas do
reconhecimento de certos desenhos ou percursos marginais, ao longo do roteiro
preferencial da historiografia normativa.
O autor propõe uma historiografia não-linear, não-conclusa, que leve em conta “os ‘câmbios
de horizonte’ de recepção e a maquinação ‘plagiotrópica’ dos percursos oblíquos e das derivações
descontínuas; a pluralidade e a diversidade dos ‘tempi’; as constelações transtemporais” (CAMPOS,
1989, p.66).
Enquanto o barroco europeu convertia-se num inerte jogo de formas, entre nós o
senhor barroco domina a sua paisagem, e oferece outra solução quando a cenografia
ocidental tendia a revestir-se de escaiola. […] E quando a linguagem decai, numa inerte
transmissão de signos convencionais, oferecemos a dionisíaca guitarra de Aniceto o Galo
e o festejo zenital na rica pinta idiomática de José Martí. E quando, finalmente, diante
do glauco frio das junturas minervinas, ou da cólera do velho Pã ancorada no instante
do seu frenesi, oferecemos, em nossas selvas, o turbilhão do espírito, que novamente
encrespa as águas e deixa-se distribuir apaziguadoramente pelo espaço gnóstico, por
uma natureza que interpreta e reconhece, que prefigura e sente saudades.
[...] não se deve ficar admirado de constatar como os comitentes eclesiásticos souberam
imediatamente aderir à nova realidade e estimularam os artistas a criar os termos
adequados a exprimi-la. [...] O barroco é precisamente, na expressão de sua arte religiosa,
o resultado duma conciliação entre o mundo da tradição cristã-católica-européia e as
Metateatro e Teatralidade
[...] deve-se ao seu legítimo mundo ancestral, é um primitivo que conhece, que herda
pecados e maldições, que se insere nas formas de um conhecimento que agoniza,
tendo que justificar-se, paradoxalmente, com um espírito que começa. Por que o
espírito ocidental não pode estender-se pela Ásia e pela África, e sim em sua totalidade
na América? Porque esse espaço gnóstico esperava uma maneira de fecundação
vegetativa, onde encontramos sua delicadeza aliada à extensão, esperava que a graça
lhe trouxesse uma temperatura adequada, para a recepção dos corpúsculos geratrizes.
(LEZAMA LIMA, 1988, p.183)
[...] mas um embate sem vencedor — você não sabe se o barroco, a partir daí, é a
linguagem do conquistador ou se é a linguagem do conquistado. Não há um barroco
superiormente paradigmal do dominador, do conquistador, embora seja irrefutável
a existência de um barroco libertário, de afirmação do pretenso conquistado. (ÁVILA,
2004, p.47)
Lezama Lima (1988) é de opinião mais radical: define o barroco americano como “a arte da
contraconquista”, pois vai ao encontro da proposta de José Martí de uma “cultura totalmente inclusiva”,
na qual a diversidade cultural não é um problema, mas a própria fonte de onde jorra a criatividade.
Diante desse “espaço gnóstico”, muitos dos que aqui chegaram se sentiam exasperados; outros,
acreditavam estar diante das visões proféticas de Gioachino dei Fiori, místico ligado à abadia de Cluny,
na França, que pregava a chegada de um novo tempo para a cristandade, a Era do Espírito Santo52,
quando a injustiça e a desigualdade desapareceriam, os bens seriam divididos e os presos, libertos;
e os inspirados pelo Espírito Santo viveriam em fraternidade e harmonia (SEVCENKO, 2000, p.17). Em
ambas as situações, a natureza os convidava a se perder em delírios. Enquanto na cultura dos brancos
o sagrado irradiava dos céus, para índios e africanos ele emanava da natureza exuberante, que, embora
insondável, permitia que se comunicassem diretamente com suas divindades. Para os negros,
51“Espaço gnóstico” é, segundo Chiampi (1988, p.23), “a natureza espiritualizada, plena de dons em si, que aguarda para expressar-se a mirada do
homem para iniciar o imediato diálogo (de espíritos, o humano e o natural) que impulsiona a cultura”. Nas palavras de Lezama Lima (1971, p. 62), “el
espacio [...] que no es el espacio mirado, sino que busca los ojos del hombre como justificación”.
52De acordo com suas revelações, “depois da passagem da Era do Pai e da Era do filho, correspondentes ao mundo antigo e medieval, a cristandade
estaria preparada” para entrar nesta nova era (SEVCENKO, 2000, p.17).
O fato é que a natureza induzia a todos, brancos, índios e negros, a se entregar a Dioniso e a
fecundar, na nova terra, uma nova civilização. É o triunfo do sincretismo religioso, do hibridismo indo-
afro-ibérico e, com ele, assevera Lezama Lima (1988), o conquistador foi conquistado. Nasceu, nos
povos coloniais americanos, um sentimento pela natureza em perfeita conformidade com o sentimento
barroco.
Interessante notar que os excessos do barroco, na sua relação com as formas e os movimentos
da natureza, reprovados pela crítica européia, não se verificam na arte lusitana nem na espanhola.
Nos trópicos, a exuberância da decoração barroca “não excede o vetor impetuoso e desordenado
da vegetação tropical, pelo contrário adapta-se perfeitamente” (AVERINI, 1997, p.27). Diferente do
que julga a crítica simpática ao neoclassicismo, a arte barroca não é mais excessiva do que a própria
natureza tropical; nos seus esquemas compositivos encontramos um critério de seleção e um registro
de ordem; ela está em conformidade com os critérios normativos das estéticas contemporâneas, onde
a paisagem53 é destinada a obter do “mais” o “menos”, e não o contrário. A paisagem, explica Lezama
Lima (1988, p.170-171), “é uma das formas de domínio do homem, como um aqueduto romano, uma
sentença de Licurgo ou o triunfo apolíneo da flauta. Paisagem é sempre diálogo com o homem, redução
da natureza posta à altura do homem. […] A paisagem é a natureza amigada com o homem”.
A potência perturbadora de Dioniso exige a presença reguladora de Apolo. Por isso, as formas
da arte barroca provêm da natureza mas não pretendem superá-la, impõem-lhe certa disciplina mas
sem submetê-la a mimese, porque é beleza convulsiva. Na América Latina, “onde quer que surja
a possibilidade de paisagem, tem de existir a possibilidade de cultura. O mais frenético possesso
da mimese do europeu, se liquefaz se a paisagem que o acompanha tem seu espírito e o oferece, e
conversamos com ele mesmo que seja no sonho” (LEZAMA LIMA, 1988, p.171).
Hoje sabemos que é preciso rever os esquemas da historiografia artística tradicional, “que
tentou sempre explicar tudo permanecendo no âmbito dos acontecimentos europeus” (AVERINI, 1997,
p.26) e julgou, na maioria das vezes, as expressões artísticas coloniais como periféricas e marginais em
relação à grande arte européia:
pode ser talvez, superior, por uma sua intrínseca espontaneidade e autenticidade de
sentimento. Os seus monumentos não são sempre cansativas repetições ou variações
gratuitas de modelos europeus, nem os seus produtos permanecem expressões
artesanais a um nível de suficiência medíocre; pelo contrário conseguem […] constituir-
se como obras-primas. (AVERINI, 1997, p.26)
Não há dúvida de que a aceitação da nova realidade exigiu muito mais do que a adaptação de
uma expressão artística transplantada. O barroco latino-americano, explica Averini (1997, p.26),
53Lezama Lima utiliza o termo “paisagem” para se opor a Hegel, que afirmava ser a natureza uma entidade inerte e a-histórica, e a América, um
mundo natural fora da história. O autor toma de empréstimo de Shelling o conceito de natureza como possuidora de espiritualidade, enquanto a
paisagem é cultura que nasce do encontro entre o espírito da natureza e o do homem (CHIAMPI, 1988, p.23).
Obras como a igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, de Aleijadinho, permitem,
àqueles que se abandonam na sua contemplação, compreender a afirmação de Lezama Lima (1988,
p. 183): “As formas congeladas do barroco europeu, e toda proliferação expressa um corpo danificado,
desaparecem na América nesse espaço gnóstico, que conhece por sua própria amplitude de paisagem,
por seus dons sobrantes”. O espetáculo de criatividade e inventividade das obras literárias e plásticas do
barroco latino-americano, e certos traços, muito singulares, inconfundíveis e indeléveis de nossa vida
social estão expressos nesta frase de Otto Maria Carpeaux (apud ÁVILA, 1980, p.107): “se, como estilo, o
barroco é um fenômeno europeu, como survival é muito mais um fenômeno americano”.
Em toda a América Latina, o barroco foi mais do que um estilo de época que exprime o espírito
da Contra-Reforma e/ou do Absolutismo; ele está entre as matrizes e linhas de tradição que presidem
o nosso desenvolvimento histórico-cultural; é uma de nossas raízes mais remotas, um fenômeno de
grande complexidade cuja investigação permite compreender melhor a nossa especificidade como
povo.
A exuberante copia do ouro destas minas deu logo hum estrondoso brado, cujos
Metateatro e Teatralidade
eccos soáraõ nos mais distantes, e reconditos seyos de toda a America; alteraraõ a
muitos moradores do Brasil a cultura dos campos, fizeraõ outros vacilantes; a muitos
nos cabedaes inferiores, e outros opprimidos da necessidade fizeraõ sobir a este zenit
da riqueza; convidando a huns com esperança de melhoras, a outros co principio de
prosperidade […] huns fizeraõ da agricultura sustento, e interesse, outros agenciaraõ
no ouro dos seyos da terra juntamente o sustento e as riquezas: assim com suavidade,
e facilidade estas terras agrestes, e nem ainda de feras habitadas, ficarão dignas de
habitaçaõ; abundantes de alimentos para a humana necessidade, copiosas de ouro para
os desejos da cobiça. (MACHADO apud ÁVILA, 1994, p.63)
Excede as povoaçoens de toda a America este opulento Emisferio das Minas, onde
avulta, mais do que riquezas, o fausto dos Templos, e a preciosidade dos Altares […]
a nobilissima Villa Rica, mais que esfera de opulencia, he teatro da Religiaõ develhe
Portugal grandiosos auxilios, e quantiosos reditos; sem duvida os mayores a Coroa
Monarcha; […] mas sobre tudo deve Portugal ao Brasil, e todo o Mundo hum continuado,
e de presente novo exemplo de Cristandade. (MACHADO apud ÁVILA, 1994, p.65)
A festa religiosa é apresentada como cenário mais apropriado para o regozijo dos sentidos do
que do espírito. “O fato espiritual aparece sempre encarnado, e a carne apela sempre para o espiritual”
(SPITZER apud ÁVILA, 1994, p.47), pois o autor se detém muito mais nos aspectos cenográficos — trajes
e alegorias, efeitos visuais e sonoros, fusão entre o sagrado e o profano — do que nos religiosos:
Deu principio aos festivos dias hum bando por ministerio de vários mascaras; huns
aprasivel objecto da vista nas differenças do traje; […] outros na galantaria das figuras
assumpto do riso. […] nas ruas destinadas á procissaõ prevenido todo o obsequio de
festividade, e magnificencia: nas janellas correo por conta das sedas, e damascos, huma
varia e agradável perspectiva para a vista, […] viaõ-se em primorosos, e exquisitos lavores
entre ouro, e prata, tremolando as ideas do Oriente troféos á opulencia do Occidente.
[…]. Apparecia nas ruas a verde amenidade dos campos; em variedade de flores da
Primavera. Sentia-se nos ares, em fragancia de aromas […]. Depois desta se dilatava
outra vistosa dança, composta de musicos, em cujas figuras era o ornato todo tellas,
e preciosas sedas de ouro, e prata: pertenciaõ-lhe dous carros de madeira de singular
pintura; hum menor, que levava patente aos olhos huma serpente; outro mayor, de
artificio elevado em abobeda […]. Depois destes vinhaõ as figuras mais magestosas de
toda a Procissaõ; todas acavallo, vestidas á tragica. Era o seu adorno vagaroso empenho
da vista, continuada novidade dos olhos; agitada esfera da riqueza, movel apparato da
magnificencia. (MACHADO apud ÁVILA, 1994, p.66-70)
Não faltaram, nas noites dos dias festivos do Triunfo Eucarístico, como não faltariam em
qualquer festa barroca, os efeitos de luz e sombra por meio de exibições pirotécnicas e de luminárias
espalhadas pelas ruas. A cidade ficava envolvida numa atmosfera de fantasia noturna, de paisagem de
sonho, “uma imagem do mundo fugaz e contraditório que era a própria visão místico-existencial do
homem residuariamente seiscentista” (ÁVILA, 1994, p.206).
A descrição dessa festa propicia uma clara compreensão das categorias expressivas do
barroco: o lúdico, o sensorial, o visual, o persuasório. Nela, o primado visual preponderava, mesmo
sendo um espetáculo que abrangia todas as artes, inclusive a poesia, convertida “num exercício lúdico
compartilhado em seus ócios cultistas por religiosos seculares” (ÁVILA, 1980, p.124). Não é por acaso
que Simão Ferreira Machado ateve-se ao plano visível do espetáculo e que
[...] sua prosa trabalha primacialmente pela sensibilidade ótica […]: ‘aos olhos sempre
vario, e agradavel espectaculo’, ‘pareciaõ aos olhos luminarias do Ceo’; ‘varia e agradavel
perspectiva para a vista’; ‘nos olhos teatro á victoria dos esplendores do ouro, das luzes
dos diamantes’; ‘da vista, em vagarosa attençaõ, disvello, e delicia’ […]. (ÁVILA, 1980,
p.207; citando Simão Ferreira Machado)
imprimiu, na vida social, seus padrões ético-religiosos, seus gostos estéticos. Estes ultrapassaram a
contingência histórico-regional, se popularizaram e se potencializaram nas várias etnias que aqui
encontraram condições de expansão e afirmação, criando as condições necessárias para a sedimentação
de uma cultura autêntica.
A crise do ciclo do ouro e o conseqüente declínio da cultura urbana mineradora, somados
à tendência academizante que dominou o Brasil império, fizeram adormecer nossa percepção visual,
nossa sensibilidade plástica. Tivemos que aguardar o advento do modernismo e sua reflexão sobre o
nacional na nossa cultura para sair do entorpecimento sensorial no qual o processo histórico do século
AVERINI, Riccardo. Tropicalidade do barroco. In: ÁVILA, Affonso (org.). Barroco: teoria e
análise. São Paulo: Perspectiva, 1997. p.23-29.
ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. 2.ed. rev. São Paulo:
Perspectiva, 1980.
______. O lúdico e as projeções do mundo barroco II. 3.ed. rev. e ampl. São Paulo:
Perspectiva, 1994.
______. Apresentação. In: ÁVILA, Affonso (org.). Barroco: teoria e análise. São Paulo:
Perspectiva, 1997. p.9-13.
CAMPOS, Adalgisa Arantes. A obra e o saber. Estado de Minas, Belo Horizonte, 30 ago.
2003. Caderno Pensar, p. 3.
CHIAMPI, Irlemar. A história tecida pela imagem. In: LEZAMA LIMA, José. A expressão
americana. Trad. Irlemar Chiampi. São Paulo: Brasiliense, 1988. p.15-41.
Metateatro e Teatralidade
LEZAMA LIMA, Eloísa. Introducción. In: LEZAMA LIMA, José. Paradiso. 10.ed. Madrid:
Ediciones Cátedra, 2006. p.9-96.
CAPÍTULO 20
O filme Dogville (2003), de Lars Von Trier, impressiona pelo escasso uso de artefatos em cena
como forma de priorizar o gesto e a emoção dos atores. Além disso, outros elementos estéticos auxiliam
na modificação da noção de espaço - o que aproxima muito o filme da formação de uma peça teatral
e subverte, por consequência, a percepção da temporalidade na obra. Sob a ótica do teatro e do
cinema, espaço e tempo se constroem diferentemente. É preciso perceber e identificar os elementos
próprios daquilo que se edita e daquilo que se dramatiza. Quais são as possibilidades de construção
quando se tem à disposição luz, palco, cena, dramaturgo, atores, sonoplastia, cortinas? E quais seriam
as possibilidades se, somados a isso, houvesse também câmeras de filmagem, edição, produção, trilha
sonora?
Percorrer as possíveis influências da literatura e do próprio cinema em Dogville, de Lars Von
Trier, possibilitará entender como essas relações subvertidas de tempo e espaço servem ao cineasta,
que trata esses dois conceitos como forma de desconstrução do caráter dos personagens, a fim de
provocar reflexões acerca da alma humana.
Num momento em que a imagem ocupa o centro de inúmeras discussões teóricas, é válido
elucidar como se inscrevem, no cinema, os diálogos artísticos e como, por meio da perspectiva do
cinema, uma nova forma de percepção da realidade se constitui. Se até o começo do século XX, o que
“molda” o olhar cotidiano da classe burguesa é a literatura, a partir da segunda metade do século, cabe
ao cinema dividir essa responsabilidade.
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Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Membro do Grupo de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na
Literatura. Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória.
56
Mestre em Letras pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Doutorando em Literatura no Programa de Pós-Graduação da UFBA/UNIOESTE.
Docente do Curso de Letras Português/Inglês/Espanhol/Italiano da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, atuando principalmente nos seguin-
tes temas: literatura brasileira, cultura brasileira, discurso ficcional, crítica literária, literatura, memória e história, ensino de literatura e formação
docente. Membro do Grupo de Pesquisa Confluências da Ficção, História e Memória na Literatura. Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória.
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 257
É interessante pensar como a noção de intertextualidade, além de contribuir para o estudo
das influências, “introduz um novo modo de leitura que solapa a linearidade do texto”. (NITRINI, 2006,
p. 164). Permeando a malha do texto, é possível defrontar-se com outras referências, que possibilitarão
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
também variadas leituras do texto, remetendo-se a outros textos, autores e diálogos. Considerando-se
a infinidade de textos que constituem a sociedade e a história, será sempre um treino de percepção
abandonar o olhar ingênuo para concebê-lo como uma lente que observa e capta as significações que
extrapolam a obra literária. É nesse sentido que se constroem as significações em Dogville: para serem
desveladas pelo olhar.
Para o cineasta Andrei Tarkovski, o tempo constitui uma condição de existência do “Eu”.
Assemelha-se a uma espécie de meio de cultura que é destruído quando dele não mais se precisa,
quando se rompem os elos entre a personalidade individual e as condições de existência. O momento
da morte representa também a morte do tempo individual. Em termos gerais, o estudioso aproxima-
se da concepção de tempo de Santo Agostinho quando afirma que “O tempo é necessário para que o
homem, criatura mortal, seja capaz de se realizar como personalidade” (TARKOVSKI, 1998, p. 64), afinal a
nossa mortalidade é fruto do tempo.
Para Tarkovski (1998, p. 71-72): “A força do cinema, porém, reside no fato de ele se apropriar
do tempo, junto com aquela realidade material à qual está indissoluvelmente ligado, e que nos cerca
dia após dia e hora após hora”. E é isso que, para o cineasta russo, leva as pessoas ao cinema, o tempo
ainda não encontrado por elas, o tempo perdido. O cineasta entra, então, como figura principal. É esse a
definir o olhar do filme, a observação do que será colocado no rolo da película. A observação seria para
o autor o elemento básico que permeia o cinema, “afinal, a imagem cinematográfica é essencialmente
a observação de um fenômeno que se desenvolve no tempo”. (TARKOVSKI, 1998, p. 77).
O espaço, também como evidenciador das relações sociais, configura-se na literatura, no
cinema e no teatro como definidor da vida íntima, das vontades ou dos medos de cada personagem. De
maneira poética, mas assegurado o viés filosófico, Gastón Bachelard auxilia na compreensão do espaço
na obra trieriana, explicitando como a memória e o inconsciente materializam-se em cada espaço
constituído pelo homem. Bachelard (1989) poetiza as relações humanas e o modo como elas ocorrem
no espaço; utiliza-se de espaços e imagens recorrentes da literatura para ilustrar, explicitar ou apenas
discutir acerca dessas relações. A imagem da casa, sua relação com o universo, os cantos, a miniatura,
serão esses os espaços poetizados pelo autor que nortearão algumas das discussões deste texto.
O autor entende a casa como um espaço a ser lido, a ser imaginado, a ser pensado, não só a ser
descrito, “porque a casa é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo.
É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda acepção do termo”. (BACHELARD, 1989, p. 24). Bachelard
(1989) constrói a dependência ou correlação desses dois espaços, teoricamente, contraditórios. Se a
casa é o refúgio, o universo representa o desaconchego, a fuga, o espaço sem direção.
Qualquer que seja o pólo da dialética em que o sonhador se situe, qualquer que seja a
casa ou o universo, a dialética dinamiza-se. A casa e o universo não são simplesmente
dois espaços justapostos. No reino da imaginação, ambos se atiram reciprocamente em
devaneios opostos. (BACHELARD, 1989, p. 59).
De acordo com o manifesto Dogma 95, a preocupação com a autoria do filme revela mais
uma preocupação com o ego do cineasta do que com o próprio cinema, característica de um cinema
burguês: “O cinema antiburguês tornou-se burguês, pois se baseava em teorias de uma concepção
burguesa de arte. O conceito de autor, nascido do romantismo burguês, era, portanto [...] falso”. (VON
TRIER, 2009, p. 1). Por meio de uma série de metáforas e uma ironia fina, o Manifesto preconiza uma
nova forma de trabalho com a imagem, e da maneira mais natural possível. A prioridade é a emoção e
não a técnica. No texto, vê-se a utilização da palavra pathos, no sentido de que a ilusão produzida por
Hollywood produziria o que essa palavra grega expressa que é o excesso, a paixão. A paixão, contrária
ao amor, seria responsável pelo “cegamento” do espectador, ou seja, a ilusão provocada pelos filmes
comerciais dá margem a uma passividade e um assujeitamento diante do objeto de desejo. A imagem,
portanto, em contraposição a esse tipo de relação construída entre espectador e obra de arte, deve ser
tão “despida”, quanto devem ser enredo e personagens. Qualquer tipo de alienação ou artificialidade é
proibida.
Apesar de renunciarem a considerações estéticas, no manifesto Dogma 95, Lars Von Trier e
Thomas Vittenberg, também tentam propor uma mudança de perspectiva, fundada na reeducação do
olhar humano, viciado na perspectiva do american way of life, profundamente difundido nos filmes dos
EUA. O sugestivo nome “Voto de Castidade” sustenta uma ideologia calcada na abdicação da produção
cinematográfica artística, para uma produção social. O filme passa então a ser retrato verdadeiro de um
momento, no qual personagens, cenários, tempo e espaço são vistos pela câmera do diretor, sem ação
superficial ou filtros.
O manifesto dogmático, postulado por Lars Von Trier e Thomas Vittenberg, no sentido de
recusar à identificação e à ilusão, principalmente às propagadas pela indústria hollywoodiana de
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 259
cinema, também se aproxima do que é proposto pelo teatro épico, que recusava o teatro dramático
aristotélico, edificado na catarse57. Monique Borie (2004), nesse sentido, explica o que Bertold Brecht58,
a respeito desse tipo de teatro, defendeu:
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
Por intermédio dele (teatro épico), propõe igualmente uma nova escrita dramática,
uma nova prática de cena e uma nova técnica de interpretação para o actor. O teatro,
espaço mediador entre o espectador e o mundo, é posto a serviço de uma verdadeira
pedagogia social: surpreendendo-se e interrogando-se perante as contradições de uma
realidade que a cena não mais lhe apresenta como natural, mas como manipulável e
transformável, o espectador prepara-se para melhor dominar essa realidade e para agir
sobre ela a fim de a modificar. (BORIE; ROUGEMONT; SCHERER, 2004, p. 465-466).
Após a primeira tentativa de ir contra o cinema comercial ensaiada pelos cineastas da Nouvelle
Vague ressurge então, uma crítica àquilo amplamente encenado e imposto aos consumidores,
principalmente, do cinema norte-americano; uma ideologia burguesa vende a ilusão de felicidade
amparada pelas crenças no mundo do capital, também assim como propunha o teatro épico num
movimento de aversão ao teatro burguês59. Nesse primeiro movimento contrário às regras de um
cinema comercial, revelava-se, por trás de uma cena de ansiedade renovadora, um ninho de cineastas
que mais tarde se renderiam aos lucros do cinema comercial, ao revés do que teriam postulado com
tanto afinco. Nesse sentido, também tem se desenvolvido o cinema burguês e surgem manifestos na
tentativa de serem combativos em relação à alienação que se prega implicitamente ao público ingênuo,
Bertold Brecht propõe, em sua peça A compra do latão, publicada em 1938, um modelo-base de teatro épico, discutido por quatro pessoas: um
59
[...] o cão, para o qual o invisível é tão familiar, não se contenta em guiar os mortos. Serve
também como intercessor entre esse mundo e o outro, atuando como intermediário
quando os vivos querem interrogar os mortos e as divindades subterrâneas no país dos
mortos. (CHEVALIER, 2001, p. 177).
Grace não faz parte do mundo de Dogville, é uma fugitiva, uma intrusa, que ao adentrar na
cidade depara, primeiramente com Moisés, o cachorro, responsável por vigiar uma cidade que não
tem nada para ser roubado, que avisa a cidade que uma nova pessoa está lá, como um guardião, o
que pode ser interpretado como uma alegoria do inferno, pois, “além de visitá-los com frequência (os
homens mortos), muitas vezes o cão é também guardião dos infernos; ou então, empresta seu rosto
aos senhores dos infernos”. (CHEVALIER, 2001, p. 178). É a figura de Cérbero ou de Hécate, na mitologia
grega.
Para completar a alegoria, Dogville se encontra no fim de um caminho. Não há nada depois
dela. É uma cidade sem saída, guardada por um cachorro, na qual as instituições não existem mais,
caracterizando a falta de necessidade dessas instituições, como no mundo dos mortos. Além disso,
morta está também qualquer tipo de atividade em Dogville, o que antes era uma cidade produtiva, é
uma cidade abandonada. Dogville é uma cidade limite e limítrofes também são seus habitantes:
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 261
[...] Dogville não é um lugar de passagem, visto que sua rua principal não tem saída; a
ela só é possível aportar e retroceder, e isso parece encontrar em cada personagem, uma
justificativa, pois cada uma delas pode ser interpretada como o simulacro de uma rua
sem saída. (DA ROLT, 2009, p. 166).
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
Lars Von Trier corporifica, na cidade do cão, o instinto, numa alegoria da alma humana, para
entrar em uma discussão acerca da “aceitação” do outro. É interessante notar que Moisés, o cão guardião
de Dogville, está apenas representado, num desenho no chão, como um artefato do teatro, o que produz
o estranhamento próprio do teatro épico e um diálogo entre essas diferentes formas de manifestação
artística. Da mesma forma que o movimento Dogma 95, Von Trier, anseia quebrar o ilusionismo do
cinema burguês, Bertold Brecht, no movimento do teatro épico, também ansiava pela mesma intenção:
Quando faz a opção pela exclusão de alguns artefatos de cena e das paredes das casas, o diretor
constitui uma forma muito próxima do teatro de se relacionar com o espaço, na qual a intimidade é
substituída pelo “escancaramento” do privado. É o espaço que define e estimula comportamentos.
O elemento de destaque do filme é, então, o espaço, delimitado e definido por inserções
textuais que indicam construções, ruas, arbustos, paredes e mesmo o cão da cidade. Esse esqueleto da
ambientação propõe mais do que uma abstração do espaço, uma negação do espaço, já que as divisões
são apenas virtuais. Pelo desvio dos corpos, pelos sons das maçanetas invisíveis e pela iluminação
composta pelos refletores nas paredes do set é que se percebe a mudança de clima, horário, a presença
das portas e o limite entre as casas.
Por vezes, vêem-se os habitantes de Dogville observando a rua principal através de janelas
imaginárias. Outras vezes, no entanto, o cineasta parece fazer questão de dizer que o filme é ficção,
deixando, certamente de maneira proposital, que os habitantes pisem ou se encostem-se às linhas
riscadas no chão, que como paredes das casas, não permitiriam uma transposição, ou construindo
cenas na qual não há a idéia de uma janela na casa, os habitantes apenas respeitam as linhas do chão,
mas pela maneira como olham, esquecem-se das paredes.
É relevante observar a relação dos atores com o espaço, descritas por Sami Saif, no filme
documentário sobre a produção de Dogville: Confissões de Dogville (2003)60. Há uma cena, em que
Lars Von Trier faz questão de frisar a existência de janelas e a necessidade de se olhar através delas: “Não
olhes através das paredes. Isso é muito importante. É uma janela, mas tens que ser preciso. Se falarmos
através das paredes, a cidade desaparece”..
Subvertendo as relações do homem com o espaço, o cineasta modifica também a concepção
de linearidade do tempo no filme. Se, para a confecção de uma cena, “trata-se de selecionar e combinar
60
Identificação do público com o representado no palco.
Uma das condições essenciais e imutáveis do cinema determina que na tela as ações
devem se desenvolver sequencialmente, não importa se concebidas como simultâneas
ou retrospectivas, ou algo do gênero. Para apresentar dois ou mais processos como
simultâneos ou paralelos, é preciso necessariamente mostrá-los um em seguida do
outro; a montagem deve ser sequencial. Não há outra forma de fazê-lo. (TARKOVSKI,
1998, p. 80).
Lars von Trier, ao explorar as noções de espaço, modifica a ideia de sucessão de informações
no cinema, modifica o tempo e apresenta a realidade como insólita, manipulável e distante. O efeito de
“distanciamento”, provindo do teatro épico, presentifica-se, para o espectador encarar a representação
da tela como de fato é: representação.
O diretor de Dogville não disfarça o caráter teatral de seu filme, o que o transforma de certa
maneira em um filme lúdico, a começar pela primeira cena, em plano aéreo, que mostra a cidade em
uma planta baixa, com pequenas pessoas movimentando-se sobre esse espaço.
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
Bachelard, “[...] a representação (no caso da miniatura) é dominada pela Imaginação”. (1989, p. 159).
Em declaração pública, Lars Von Trier já havia declarado se sentir americano, sem nunca ter ido
aos Estados Unidos e por isso ambientou sua cidade na América, em clara crítica à massificação dos meios
audiovisuais norte-americanos, produtora de uma cultura sem diferenças. É como se a particularidade
de uma cidade fosse, na verdade, uma característica comum a uma sociedade massificada, fruto da
americanização, da industrialização, da globalização. A ativação dos valores criticados pelo diretor de
Dogville é feita, então, por meio dessa representação que convida à imaginação:
A representação não é mais que um corpo de expressões para comunicar aos outros
nossas próprias imagens. Na linha de uma filosofia que aceita a imaginação como
faculdade básica, pode-se dizer, como Schopenhauer “O mundo é a minha imaginação”.
Possuo tanto melhor o mundo quanto mais hábil for em miniaturizá-lo. Mas fazendo
isso, é preciso compreender que na miniatura os valores se condensam e se enriquecem.
Não basta uma dialética platônica do grande e do pequeno para conhecer as virtudes
dinâmicas da miniatura. É preciso ultrapassar a lógica para viver o que há de grande no
pequeno. (BACHELARD, 1989, p. 159).
A atenção à presença imediata do corpo oferece uma leitura peculiar sobre a vida
em Dogville. Basta atentar às formas com as quais as personagens expressam
sua materialidade biológica em relação à absorção do poder circundante - talvez
representado pelo cão Moisés na perspectiva de poder-consciência ou poder-vigilância:
o choro fácil de Ver a e seus filhos sujos; a cegueira de McKay; a filha paralítica de Olívia;
a necessidade de Liz Henson de que confirmem sua beleza; o caminhar arrastado de
Chuck; as visitas de Ben ao prostíbulo; a inércia de Tom Edison, o pai, que passa os dias
escutando músicas no rádio; a corporeidade mecanizada de marta ao tocar o sino da
cidade etc. Tais condutas podem constituir uma radiografia da dissimulação humana e
um diagnóstico exemplar sobre os processos de despersonalização operados no interior
de Dogville, os quais também remetem ao engessamento de qualquer possibilidade de
transformação. (DA ROLT, 2009. p. 167).
Lars Von Trier consegue, magistralmente, delimitar um tempo para a cidade de Dogville (O
ano de 1930, após a quebra da bolsa de Nova York), estabelecendo ao mesmo tempo uma conexão
com outros tempos, atribuindo a sua obra um tom de parábola – antiamericana ou universal. Não há
passado ou futuro nesta cidade. É uma cidade ambientada no presente que vive um dia depois do
outro, sem perspectiva posterior.
Lars situa Dogville em um tempo sem tempo,cuja única marcação é dada pelo sino e pelas
estações que delimitam a colheita das maçãs. A função do sino: marcar o tempo de hora em hora, muda
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 265
conforme a posição de Grace no contexto da cidade. Após a chegada de Grace, o sino passa a ser o sinal
de aviso para a chegada de um policial. Depois, devido à mudança de rotina de trabalho da fugitiva,
passa a marcar seus horários de trabalho, até se tornar o sino que vai ao pescoço de Grace, para que
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
todos saibam onde ela está e o badalo que lembra a cidade de que algum homem está satisfazendo-se
sexualmente com o novo objeto da cidade.
É interessante observar como essa mudança de caracterização do sino está presente nas
alegorias que esse símbolo evoca na literatura e na cultura, já que seu simbolismo está ligado,
primordialmente, à percepção do som: “Na Índia, por exemplo, ele simboliza o ouvido, e aquilo que o
ouvido percebe [...]. No Islã, a repercussão do sino é o som sutil da revelação corânica, a repercussão do
Poder divino na existência: a percepção do ruído do sino dissolve as limitações da condição temporal.”
(CHEVALIER, 2001, p. 835).
O sino, além de marcador temporal, retorna à sua função universal de purificador e informante
da chegada de forças malignas ou mau agouro, somente após a chegada de Grace. Além disso, “pela
posição de seu badalo, o sino evoca a posição de tudo o que está suspenso entre o céu e a terra, e, por
isso mesmo, estabelece uma comunicação entre os dois. Mas tem também o poder de entrar em relação
com o mundo subterrâneo”. (CHEVALIER, 2001, p. 835), como quando evoca, pelas mãos das crianças,
uma sexualidade corrompida, o pecado de todos os homens de Dogville, quando indica que algum
homem está se aproveitando sexualmente de Grace (Graça - o divino servindo ao pecado).
Se para Agostinho (s/d), existem três tempos: passado, presente e futuro, passado símbolo da
memória, presente símbolo da intuição direta e futuro símbolo da esperança; em Dogville, a memória
de cada habitante é corporificada por suas ações rotineiras. Não há uma história de cada personagem
que possa ilustrar suas atitudes a não ser as próprias atitudes do presente. Mesmo Grace, quando chega
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 267
Certamente de maneira peculiar - e diferente do que Tarkovski imaginou ao falar sobre a
impossibilidade de se trabalhar com a simultaneidade dentro da obra fílmica. Emprestando a noção
de tempo do teatro, o cineasta dinamarquês delimita ao espectador seus antecedentes criativos,
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
caracterizando a sua obra de arte como um produto humano. (NITRINI, 2000). Segundo Nitrini,
“compreender uma fonte mostra o processo de composição e ilumina o pensamento de um autor”.
(NITRINI, 2000, p. 130). É como se, sem o conhecimento da linguagem do teatro amplamente explorada
por Lars, a cidade de Dogville não existisse.
Em outro momento, agora no Capítulo 1, aparecem os moradores de Dogville reunidos na
igreja para o primeiro julgamento de Grace: a decisão a respeito de sua primeira chance. Todos da
cidade estão presentes, mas vemos uma figura isolada a cortinas fechadas. Não há cortinas nas outras
casas, mas é preciso enfatizar a relação do cego com a luz. McKay não enxerga, portanto não gosta de
estar frente ao que não pode ter, ao que não pode ver, prefere o isolamento também da luz, mas fala o
tempo todo sobre ela, discute seu valor, sua qualidade e sua função, tentando demonstrar algo que não
é – vive de aparências.
No primeiro julgamento, há a ausência do único morador que tem uma janela em sua casa,
mas não pode ver o que aparece através dela. Em uma alegoria da janela como vitrine (é interessante
também observar que na loja há uma vitrine, há a necessidade de separação do cliente e do produto),
talvez McKay seja o único morador que não possa “comprar” a primeira imagem de Grace, por não poder
vê-la, ao mesmo tempo em que é o único beneficiado com a janela da visão, da percepção real das
coisas.
É a sua aparência que é determinante para a primeira aceitação em Dogville. Ao ser personificada
na imagem de Nicole Kidman, Grace assume o rosto vendido nas prateleiras hollywoodianas, encanta e
entorpece como um produto a ser vendido inocentemente. McKay, em virtude de sua cegueira, não pode
ser entorpecido pela imagem de Grace vendida por Tom, é o único a “comprar” Grace por seu conteúdo,
depois de uma conversa com a fugitiva, o que o exclui dos demais - o extingue da unanimidade - crítica
à unanimidade que compra os filmes comerciais norte americanos.
Essa “compra” da imagem ainda inocente da fugitiva acontece dentro da igreja, identificada pela
presença de um sino e pela inscrição no chão: Casa de Jeremias. A igreja, como símbolo, representaria a
união, a reunião dos justos, conforme Chevalier:
Para Aelred de Rievaulx, a Igreja designa o povo de Deus. Ela abriga em seu seio todos os
justos, desde Abel até o último dos justos (Sermon du temps et des saints, 10). A Igreja
é igualmente considerada como a esposa do Cristo e a mãe dos Cristãos. E, sob esse
aspecto, se lhe pode aplicar todo o simbolismo da mãe. (CHEVALIER, 2001, p. 500-501).
Numa espécie de acolhimento, a igreja, em Dogville simboliza o que a cidade oferece a Grace,
na figura ambígua da mãe: o limite e a proteção. E, na inexistência de uma instituição julgadora ou
educativa, o espaço da igreja serve também aos sermões de Tom, empenhado na ilustração do problema
da alma humana, e, com a presença de Grace, em seus julgamentos.
Essa construção do cineasta revela a igreja como o local em que se decidem os destinos de
Grace, mediados por Tom, e onde se realiza todo o tipo de pregação, mesmo antes da chegada da
fugitiva. Na Casa de Jeremias de Dogville, o profeta, como contado na Bíblia, é o próprio Tom, que
Ao mesmo tempo em que aparecem atrás de sua figura três personagens, dois deles em sua
reza diária: Olívia e Martha. Se a cidade não recebia nada do céu, por que se dirigir a Deus pedindo algo?
Ou agradecer? Não há motivos para rezar. Em outro momento, Tom ironiza a condição da igreja para
Martha: “Podemos ser espirituais sem ler a Bíblia ou rezar”. Essas manifestações individuais aparecem
como uma crítica à própria condição individual.
Ao longo do filme, a simultaneidade de informações é mostrada no quadro que serve para
ensinar os princípios do estoicismo aos filhos de Vera, ao fundo de uma conversa entre Grace, Ben e Vera.
Ben elogia Grace por ela ter se lembrado de colocar o mapa perto das suas coisas e acaba comparando-a
a Srta. Laura. Ao perguntar quem é a moça, Grace se depara com a resposta de Vera, que ironiza: “É uma
de suas ‘amigas’”, se referindo às prostitutas que Ben visita uma vez por semana em Georgetown. No
quadro, ao fundo, há uma referência ao mito de Eros e Psyché, da mitologia grega.
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 269
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
Figura 4 - Frame: conversa entre Ben, Vera e Grace. Ao fundo, o quadro com referência ao mito de Eros
e Psyché. (Capítulo 2).
O efeito de semelhanças nem tão escondidas entre as duas linguagens produz no espectador
deste filme, certamente uma experiência de natureza singular, que antes de caracterizar intrusão,
empréstimo ou imitação da obra de Brecht por Lars Von Trier. O cineasta encontra a si mesmo na
produção de uma obra com outras tantas referências e uma impecável assimilação de seus professores
- que produz, por sua vez, uma obra distinta e madura que só Von Trier poderia ter criado.
A respeito da semelhança com o teatro, que vai desde o movimento Dogma 95, conforme já
refletido sobre, até a utilização de seus elementos, é interessante observar a utilização de alguns recursos
literários, alguns recursos cênicos e a narração pantomímica, que sugerem um diálogo profundo com o
teatro épico e seus propósitos.
À primeira vista, a multiplicidade de elementos provenientes do teatro dá a impressão
ao espectador de um grande palco filmado até perder a atenção para cada elemento priorizado
individualmente. Destaca-se a narração pantomímica, numa voz in off da cena. Nesse sentido,
[...] a falta de cenários e a pantomima destacam o cunho narrado das peças. O cenário
realista, em si, é sem dúvida um elemento narrativo encoberto, já que apresenta o
ambiente que no romance costuma ser descrito pelo narrador e, no texto dramático,
pelas rubricas. [...] É como se no romance nos defrontássemos com uma pantomima sem
requisitos. O dramaturgo épico aproveita-se da mesma capacidade projetiva do público.
Este preenche o que o narrador apenas sugere. (ROSENFELD, p. 133).
Sugestão que está presente ao longo do filme desde a primeira vista do espaço, quando o
narrador extradiegético descreve as casas de Dogville, como simples, modestas e assemelhadas a
barracos. O narrador convida o público à imaginação. A gesticulação acentuada e essa apresentação
sugestionam a fabulação do que será contado, a universalização do que será descrito por palavras e
gestos, só que no cinema.
A ideia de que as relações sociais não têm nome, não são individuais, mas universais, atende
a um contexto maior, no qual se encaixa o ser humano como produto dessas relações, já que “o peso
das coisas anônimas, não podendo ser reduzido ao diálogo, exige um palco que comece a narrar”.
(ROSENFELD, p. 148). É interessante, nesse sentido, como o cineasta nomeia suas personagens: com
nomes universais, caracterizando ações e interrelações humanas como numa síntese. Para ilustração
dessa possibilidade, é difícil não fazer alusão à mitologia grega quando no contexto do núcleo Vera,
Chuck e os filhos, com a adição de Grace. Os filhos de Vera chamam-se Olímpia, Diana, Dália, Atena,
Jason, Pandora e Aquiles. Cada um desses personagens, apesar de pouco explorados pelo diretor de
Dogville, carrega uma significação em seu nome passível de construções riquíssimas de significado.
Paralelamente, pode-se conceber Jason, o filho de mais destaque dentro da obra, como uma
americanização do personagem Jasão, da mitologia clássica.
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 271
O personagem de Jason, no entanto, também une as duas mulheres, já que é a peça chave
para o desencadeamento das ações corretivas de Vera para Grace. O castigo de Grace quando esta bate
(forçosamente) em Jason é não ter mais contato com os filhos de Vera. A ação de Chuck perante Grace
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
depois de esta ter batido em Jason não é, da mesma forma que a de Vera, corretiva, mas reflete o Eros
personificado de Grace que aflora a afronta à moral e aos bons costumes pelos homens da cidade. A
fugitiva representa ainda, como ela mesma questiona Chuck, aquilo do qual ele fugiu, a cidade grande.
Ao ser o primeiro a abusar sexualmente de Grace, o plantador de maçãs (símbolo de sedução e pecado),
Chuck passa a ter relações constantes com Grace, na plantação de maçãs, como Jasão passou a viver
com a filha de Creonte depois da sedução e abandono de Medéia. Vera, ao invés de castigar Chuck
matando os seus sete filhos, atinge a princesa matando o que seriam os filhos dela: as sete miniaturas
conquistadas uma a uma com o trabalho da personagem de Nicole em Dogville, mais tarde ajudadas a
serem compradas por Tom.
Grace, como elo que reconstrói e inverte as ligações dos cidadãos de Dogville depois de sua
chegada, personifica as sete miniaturas da loja de MaGinger: são sete as casas da cidade. E à medida que
conquista os habitantes, consegue comprá-los representados pelos pequenos objetos. Grace chega a
confessar a vontade de tê los, no início do filme. Ao final, necessita da ajuda de Tom para comprá-los,
mas o faz, quase assemelhando-se aos habitantes de Dogville quando passa a ter a própria casa e seus
objetos. Quando Vera quebra um por um de seus “filhos”, quebra junto as relações de Grace e cada
habitante, cada casa da cidade e ela passa a ser então escrava, usada ao bel-prazer de cada cidadão, não
mais ‘’filha” da cidade.
Os recursos literários também servem à narrativa fílmica para a produção dos efeitos de
distanciamento e estranhamento presentes na peça-filme. A cada título de capítulo, a ironia era
empregada para iniciar a ação premeditada pelo narrador. Os trocadilhos e ironias verbais e imagéticas
utilizadas pelo cineasta requerem um público não identificado, muito menos inerte diante do que é
apresentado:
Para podermos rir, quando alguém escorrega numa casca de banana, estatelando-se no
chão, ou quando um marido é enganado pela esposa, é impositivo que não fiquemos
muito identificados e nos mantenhamos distanciados em face dos personagens e seus
desastres. (ROSENFELD, 1977, p. 157).
Esse recurso pode ser identificado nos momentos de comparação da cidade com um cachorro
e de Grace com a maçã. O sexto capítulo, por exemplo, chama-se Quando Dogville mostra os dentes,
enquanto no seu decorrer, ao narrar Grace exposta à agressividade de Chuck, o narrador compara a
fugitiva a uma maçã, suculenta e convidativa a uma refeição, como o pecado. Ao também representar
o cachorro, nome e guardião da cidade, Lars Von Trier produz um estranhamento desvelado ao final de
sua obra, como ele, contraditória.
De acordo com Chevalier (2001, p. 180), “Quem mata um cão torna-se impuro; diz-se ser tão
grave quanto matar sete homens; acredita-se que o cão tenha sete vidas”. Essa passagem confirma a
ideia de que a Grace, como em todo o filme, destoou da cidade de Dogville, durante todo o período
que esteve por lá. É a alegoria do divino no inferno, Grace em Dogville. Conviveu com os cães, mas
não se igualou a eles. Da mesma forma, no entanto, Grace não perdoou a todos. As ações de doação
indiscriminada ao outro, protagonizadas por Grace se esvaíram com a idéia de vingança e de que o
mundo se tornaria “um lugar melhor sem esta cidade”, num fecho catártico e trágico, no melhor sentido
aristotélico.
A vingança, ao final de Dogville, é purificadora, mas não por isso menos reflexiva. As contradições
e significações construídas por Lars Von Trier não obedecem a regras, nem impõem uma só linha de
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 273
interpretação. Aqui, como no teatro épico, “O natural teve que se adaptar à marca do estranho, do
anormal, do insólito. Só assim se podiam revelar as leis de causa e efeito. As ações dos homens tinham
que, simultaneamente, ser o que eram e poder ser outras”. (BORIE, 2004, p. 469).
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers.
Embrenhar-se pelo cinema provocador desse artista foi, antes de tudo, provocante. Provocante
de reflexões acerca da função do cinema e dos diálogos com o teatro e com a literatura instaurados no
sentido de promover a construção de sujeitos críticos frente a uma tela diferente da construída pela
massificação hollywoodiana que governa as prateleiras das casas de vídeo. Provocante de aplausos para
um indício de um movimento tão distante quanto próximo dos aventurosos caminhos dos cineastas
da Nouvelle Vague. Provocante de leituras enriquecedoras e curiosas perante cenas tão esclarecedoras
quanto convidativas a um esquecimento nos mínimos resíduos que constroem as imagens, construtoras,
por sua vez, de articulações alegóricas e de diálogos entre sistemas de signos diferentes.
Verificou-se, neste trabalho, uma preocupação por parte de um diretor pouco compreendido
pela crítica em estruturar justamente essa provocação, por meio de signos alusivos a outras linguagens
e mitos desconstruídos e fabulados - o que leva o espectador para uma experimentação estética do
discurso cinematográfico enredadora de sentidos dificilmente desvelados pelo público leigo, massa
consumidora dos filmes comerciais. Antes os pressupostos do dialogismo, do cinema e do teatro, mais
tarde as linhas de análise referentes ao tempo e ao espaço subsidiaram essa leitura, não tão leiga quanto
no início, muito menos esclarecedora de todos os elementos de um filme tão rico, quanto Dogville.
BAZIN, A. O que é o cinema? Trad. Ana Moura. São Paulo: Brasiliense, 1992.
BLOOM. H. A angústia da influência: uma teoria da poesia. Trad. Artur Nestrovski. Rio
de Janeiro: Imago, 1991.
BORIE, M.; ROUGEMONT, M.; SCHERER, J. Brecht: escritos sobre o teatro (1930 a 1945).
In: -----. Estética Teatral: textos de Platão a Bretch. Tradução de Helena Barbas. 2. Ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p. 465-491.
BOUTANG, Pierre. O tempo: ensaio sobre a origem. Rio de Janeiro: DIFEL, 2000.
DOGVILLE. França, 2003. 177 min. Direção: Lars Von Triers. Distribuição: Lions Gate
Entertainment / California Films.
MOURO, Paola Prado. Lars von Trier: biografia do autor. Disponível em: http://www.
larsvontrier.com.br/biografiadoautor. Acesso em: 20 jul. 2009.
ROSENFELD, Anatol. Brecht. In: -----. Teatro Moderno. 2. ed. São Paulo: Perspectiva,
1977.
Para além das questões de tempo e espaço no cinema. Uma leitura de Dogville, de Lars Von Triers 275
INTERPRETAÇAO DE IMAGENS NA LITERATURA, CINEMA E PINTURA
CAPÍTULO 21
Nos primeiros quadros da sequência do cartório do filme O Processo, do diretor Orson Welles62,
Josef K. percebe o emaranhado universo burocrático no qual está inserido o seu processo e a impos-
sibilidade de reverter o caso. É a morte da esperança. Já na última sequência do filme, assim como no
romance, o personagem, culpado e impotente, é sacrificado. Essas imagens são apresentadas não so-
mente para mostrar nossa forma de interpretação das imagens do filme e do romance, mas, sobretudo,
porque entendemos que o personagem de A Construção continua o drama de Josef K., pois são cria-
ções de Franz Kafka. São imagens e alegorias em movimento que dinamizam a análise e representações
do mundo de Kafka.
Um conjunto de imagens nos chama atenção na obra analisada e, sem dúvida, inicialmente o
título da mesma: A Construção. Atribuímos esse fato ao tradutor da obra, Modesto Carone, que preferiu
utilizar essa palavra para a tradução de Der Bau. Acolhemos esse título como uma metáfora da oscilação
interna do narrador-personagem que se faz ação pelo rigoroso movimento interno de seus diálogos
e possibilidades de interpretação de imagens. Vemos nessas imagens, aliás, personificações dos limi-
tes extremos da condição humana. Na leitura do pequeno título, logo, já ouvimos as patas do animal
narrador pousar sobre a terra dura dos corredores, e também o ressoar de suas unhas nas paredes do
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Professor do Programada de Pós-graduação da Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE - Campus de Cascavel; pesquisador do Labo-
ratório de Estudos Audiovisuais OLHO, da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP - e pesquisador-líder do grupo de Pesquisa em Educação,
Cultura. Linguagem e Arte - PECLA - da UNIOESTE Campus de Cascavel. E-mail: [email protected]
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THE TRIAL (O PROCESSO) Paris Europa Productions (Paris) FI-C-IT (Roma) Hisa Films (Munique). 1962. Direção: Orson Welles. Elenco: Antony Perkins
(Josef K), Orson Welles (Hasteler), Jeanne Moreau (Fraulein Burstner), Romy Schneider (Leni), Elsa Martinelli (Hilda), Suzane Flon (Fraulein Pitl) Ma-
dalaine Robinson (Frau Gurbach), Akim tamiroff (Block), Arnold Foa (inspetor), Fernand Ledouz (escrivão do tribunal), Mourice Teynac (diretor da
repartição pública de K) Billy Kearns ( primeiro guarda), Jess Hahn (segundo guarda), William Champpell ( Titorelli), Raoul Delfosse, Karl Studer, Jean-
Claude Remoleux (algozes), Wolfgang Reichman (oficial de justiça), Thomas Holtzmann (estudante), Maidra Shore (Irmie), Max Haufler (tio Max),
Michael Lonsdale (sacerdote), Max Buchsbaum (juiz), Van Doude (arquivista nas cenas cortadas), Katina Pauxinou (cientista nas cenas cortadas) Ro-
teiro: Orson Welles, tradução a partir do romance de Franz Kafka. Música: Jean Ledrut, sobre o de Albinoni. Cenografia: Edmond Richard. Cenografia:
Yvonne Martin, Denise Baby, Fritz Müller. Tempo de Projeção: 120 minutos. Produção: Alexander e Michael Salkind.
Figura 3: Imagem de Giovanni Battista Piranesi (1720-78)
Um autor somente pode reviver os pensamentos e não as palavras que expressam numa
personagem que tenha pelo menos a sua educação, a sua idade, sua experiência histó-
rica e cultural: por outras palavras, que pertença ao seu mundo. Mas revela-se então um
fato terrível: que essa personagem se encontra unida ao autor pela razão substancial de
pertencer aos mesmos quadros ideológicos desse último. (PASOLINI, 1972, p. 70).
O monólogo interior celebra o aprofundamento de seu olhar sobre o mundo, pessoas e coisas.
A história é contada com intensidade pulsante a partir do personagem-autor-narrador. A figura do nar-
rador e personagem entrecruza-se em simulações e peripécias. Esse olhar preciso que flagra detalhes
do personagem em momentos de síntese, também nos traz recortes da história narrada, repleta de
significações e de entendimento, informando-nos sobre a condição psicológica do personagem e so-
bre aquilo que é contado. Por outro lado, o discurso indireto livre é a fusão que ocorre graças a certos
distanciamentos e proximidades que se dão no momento em que algo é contado. Ao mesmo tempo o
autor se coloca na pele do personagem e no comportamento daquele que está vivendo a trama e os
O futuro e Deus estão mortos. Kafka entra no clamor degradado de Deus que olha para o ab-
soluto vazio. Em seu diário, no final de março de 1918, novamente uma correspondência ao amigo Max
Brod tenta radiografar seu pessimismo e visão negativa do mundo. Nesse trecho da carta, entre outras
coisas, polemiza com o cristão Kierkegaard sobre o futuro e sobre o cristianismo.
A passagem seguinte não é do Talmud: ‘Tão logo um homem surja com algo de primitivo
em si mesmo, que não diga: É preciso aceitar o mundo como ele é, mas que diga: como
quer que o mundo seja, permanecerei com a minha natureza original, que não penso
em mudar para me adequar ao que o mundo considera bom. No entanto em que essa
palavra for pronunciada, uma metamorfose se realiza em toda existência. Como quando
a palavra é dita num conto de fadas e o palácio que esteve encantado durante cem anos
abre seus portões e tudo volta à vida: a existência tida se transforma em atenção pura.
Os anjos têm trabalhado para realizar e olham curiosamente para ver o que vai aconte-
cer, pois isso lhes interessam. Por outro lado, demônios escuros e sinistros há muitos na
ociosidade, roendo os dedos, saltam e esticam os membros; pois, dizem eles, aqui há
alguma coisa para nós pela qual há muito estamos esperando, etc. (KAFKA, s/d, p. 48).
Ou seja, seus escritos passam por universos dissolutos e bem distantes parecem sobrevoar
a terra tensa, enxergando o caos, transitando profundamente em impérios, sagas e fábulas, talvez de
maneira tão profunda e distante que não podemos alcançar, e, nisso, profetiza sobre o túmulo da espe-
rança.
Em A Construção, Kafka faz o contrário daquilo que os gregos costumavam fazer nas festas de
Dionísio. Recordemos uma pequena passagem desse ritual. Os gregos mesmo travestidos com a pele
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. [Trad. Sergio Paulo Roua-
net]. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BUBER, Martin. Eu e Tu. [Trad. Newton Aquiles Von Zuben]. São Paulo: Moraes,
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JANOUCH, Gustav. Conversas com Kafka. [Trad. Celina Luz]. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1983.
KAFKA, Franz. Nas galerias. [Trad. fFávio R. Kothe]. São Paulo: Estação Liberda-
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KAFKA, Franz. Cartas aos meus amigos. [Trad. Oswaldo da Purificação]. São
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KAFKA, Franz. O Processo. [Trad. Modesto Carone]. São Paulo: Brasiliense, 1988.
KAFKA, Franz. América. [Trad. Torrieri Guimarães]. São Paulo: Época, 1965.
KAFKA, Franz. A Muralha da China. [Trad. Torrieri Guimarães]. São Paulo: Clube
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MAIMÔNIDES (Moshe Bem Maimon) Rabam. A Torá. [Trad. Yaacov Israel Blu-
menfeld]. Rio de Janeiro: Imago, 1979.
MÜLLER, Ernest. História da Mística Judaica. São Paulo: Editora Veja, s/d.
PASOLINI, P. Paolo. Empirismo Hereje. [Trad. Miguel Serras Pereira]. Lisboa: As-
sírio e Alvim, 1982.
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