0% acharam este documento útil (0 voto)
570 visualizações416 páginas

Diversidade Sexual e Genero

Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
570 visualizações416 páginas

Diversidade Sexual e Genero

Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 416

DIVERSIDADE SEXUAL E GÊNERO PERSPECTIVAS E

DEBATES NO SÉC. XXI

Organizadores:

GABRIELLA ELDERETI MACHADO

IVANIO FOLMER

ALBERTO BARRETO GOERCH


FICHA CATALOGRAFICA

1.ª Edição - Copyright© 2020 dos organizadores.

Revisão: Arco Editores

CONSELHO EDITORIAL

Msc. Ivanio Folmer - Universidade Federal de Santa Maria

http://lattes.cnpq.br/2379707211288456

Msc. Gabriella Eldereti Machado – Universidade Federal de Santa Maria

http://lattes.cnpq.br/5628308415823159

Msc. Jesica Wendy Beltrán -UFCE- Colômbia

http://lattes.cnpq.br/0048679279914457
Dra. Fabiane dos Santos Ramos - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/0003382878348789
Dr. João Riél Manuel Nunes Vieira de Oliveira Brito - UAL -
Lisboa- Portugal.
http://lattes.cnpq.br/1347367542944960
Msc. Rodrigo de Morais Borges - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/4696236455119397
Dra. Alessandra Regina Müller Germani – Universidade da Fronteira Sul
http://lattes.cnpq.br/7956662371295912
Dra. Micheli Bordoli Amestoy - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/7865042624189677
Esp. Thais de Melo Amaral Machado – Universidade Federal de Viçosa
http://lattes.cnpq.br/2592090131289979
Dr. Everton Bandeira Martins – Universidade da Fronteira Sul
http://lattes.cnpq.br/9818548065077031
Cássio Rodrigo Aguiar - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/5541624029364072
Dr. Erick Kader Callegaro Corrêa - Universidade Franciscana
http://lattes.cnpq.br/2363988112549627
Dr. Pedro Henrique Witchs – Universidade Federal do Espírito Santo
http://lattes.cnpq.br/3913436849859138
Msc. Luiza Carbunck Godoi – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
http://lattes.cnpq.br/4447866451051627
Msc. Alberto Barreto Goerch – Universidade Franciscana
http://lattes.cnpq.br/7845816473131059
Dr. Mateus Henrique Köhler - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/5754140057757003
Msc. Yosani Morales Martínez - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/3656123692269129
Msc. Alisson Galvão Flores - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/1218196537137303
Dra. Liziany Müller Medeiros - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/1486004582806497
Dr. Camilo Darsie de Souza – Universidade de Santa Cruz do Sul
http://lattes.cnpq.br/4407126331414792
Murilo Vasconcelos Machado - PUC- Pelotas/RS
http://lattes.cnpq.br/606818103504319 7
Msc. João Felipe Llehmen - Universidade de Santa Cruz do Sul
http://lattes.cnpq.br/9018174122542310
Msc. Claudionei – Universidade de Passo Fundo
http://lattes.cnpq.br/3676481979050032
Msc. Sandi Mumbach - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/0222637186466933
Esp. Ana Paula Visintainer Coelho - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/0410723770403484
Dra. Aline Ferreira Pain - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/5813893425276768
Msc. Itagiane Jost - IFFar - São Vicente do Sul/RS
http://lattes.cnpq.br/7751407219167290
Msc. Flávio Cezar dos Santos -SMEDSC- Chapecó/sc
http://lattes.cnpq.br/4711802547326257
Msc. Gabriel de Oliveira Soares – Universidade Franciscana
5
http://lattes.cnpq.br/5182622667860285
Dr. Dioni Paulo Pastorio – Universidade Federal do Rio Grande do Sul
http://lattes.cnpq.br/7823646075456872
Msc. Sara Beatriz Eckert Huppes - SEDUC/RS- Santa Maria/RS
http://lattes.cnpq.br/3412482515928321
Dra. Maria Cristina Rigão Iop – Universidade de Santa Cruz do Sul
http://lattes.cnpq.br/8028841762393298
Fagner Fernandes Stasiaki – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das
Missões
http://lattes.cnpq.br/0614691997654146
Dr. Leonardo Bigolin Jantsch – Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/0639803965762459
Dr. Leandro Antônio dos Santos - Universidade Federal de Uberlândia
http://lattes.cnpq.br/4649031713685124
Dr. Rafael Nogueira Furtado – Universidade Federal de Juiz de Fora
http://lattes.cnpq.br/9761786872182217
Adilson Cristiano Habowski - Universidade La Salle
http://lattes.cnpq.br/2627205889047749
Dra. Angelita Zimmermann - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/7548796037921237
Mesc. Anísio Batista Pereira – Universidade Federal de Uberlândia
http://lattes.cnpq.br/5123270216969087
Esp. Dennis Soares Leite- Universidade Federal de São Carlos
http://lattes.cnpq.br/4205979645558904
Msc. Juliane Paprosqui Marchi da Silva- Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/4553161791704500
Dra. Francielle Benini Agne Tybusch – Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/4400702817251869
Msc. Martiéli de Souza Rodrigues - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/1460690648891778
Msc. Taciana Uecker - Universidade Federal de Santa Maria
http://lattes.cnpq.br/9050445553522704
APRESENTAÇÃO

O debate em torno das questões envolvendo Gênero e Diversidade Sexual


são emergentes, desse modo, Instituições de Ensino superior, e grupos sociais de di-
versas magnitudes se encontram, debatem, refletem e problematizam tais questões,
fazendo com que surjam grupos de pesquisa específicos, abertos a discussão em
todas as esferas e escalas.

O e-book recebe autores que se propõem o debate sobre Gênero e Diversida-


de Sexual na Educação, sexualidade e os processos de Educação, Violência Sexual,
o papel das instituições de ensino no combate à discriminação sexual, liberdade e
diversidade Sexual, o Papel da Mulher na Sociedade, dentre outros temas que se
conectem com a ideia de reflexão desta obra.
Prefácio

Refletir sobre o tema da diversidade sexual e gênero, quase sempre na história


da humanidade, não foi e não é tarefa das mais fáceis. Especialmente porque cada
civilização possui aspectos culturais e religiosos em relação ao assunto que por mui-
tas vezes acabam por violar direitos humanos fundamentais de parte da população
que não se enquadra no perfil heteronormativo imposto milenarmente.

Algumas dessas civilizações, à frente do seu tempo no que tange a esse pon-
to, como a Grega e a Romana, já viam a homossexualidade de forma naturalizada.
Muito embora, diametralmente oposto a isso e de forma bem antagônica, entendiam
que as mulheres eram serem inferiores, o que descontrói a própria lógica, pois des-
consideravam assim a igualdade de gênero.

Atualmente, o debate sobre diversidade sexual e gênero tem ganhado grandes


proporções, seja porque vivemos em uma sociedade em rede a partir da revolução
tecnológica e acesso à internet, o que possibilita a propagação das informações; seja
pela onda de retrocesso e conservadorismo que infelizmente boa parte do mundo
está passando, o que acarreta em graves violações de direitos até então aparente-
mente já garantidos pela população LGBTQIA+ e mulheres heterossexuais cis.

E diante do contexto sombrio em que a humanidade se encontra, e não diferen-


te disso, a sociedade brasileira como integrante dela; surge então a necessidade de
esclarecimento e de facilitação de acesso à informação com embasamento científico
como uma alternativa na busca por iluminação no combate ao preconceito e à todas
as formas de discriminação quando o assunto é orientação sexual e gênero.

Dessa forma, como um arauto de esperança nas reflexões sobre a vulnerabili-


dade em que se encontram parte da população, que possuem seus direitos tolhidos
pelo simples fato de “serem quem são” é que surge esta importante e relevante obra
denominada “Diversidade Sexual e Gênero: Perspectivas e Debates no Séc. XXI”.
Possibilitando assim, uma leitura agradável, instigante e ascendente sobre tema tão
sensível e que merece todo o destaque social e científico para sua compreensão e
consecutiva proteção.
O livro tem a contribuição de inúmeros e renomados cientistas, pesquisadores,
juristas e ativistas que elevam essa produção intelectual ao alto nível das publica-
ções nacionais e internacionais sobre tema, sem perder o olhar atento sobre a reali-
dade social vivenciada e que é transportada com a melhor técnica linguística para os
capítulos que compõem essa obra singular e inédita.

Sendo assim, desejo à todxs vocês queridxs leitorxs uma linda viagem de des-
coberta e desconstrução de conceitos já impostos e não mais toleráveis em uma
sociedade pós-moderna, que deve ter os seus valores lastreados na instrumentali-
zação da promoção humana e no respeito à diversidade... gerando assim isonomia,
solidariedade e inclusão social.

Santa Maria, 05 de novembro de 2020.

ALBERTO BARRETO GOERCH


Advogado e Professor Universitário. Doutorando em Diversidade Cultural e In-
clusão Social pela Universidade FEEVALE com Bolsa de Estudos pela CAPES.
Presidente da Comissão da Diversidade Sexual e Gênero da OAB/Subseção
de Santa Maria.
SUMÁRIO
CORPOS INADEQUADOS? GÊNERO E A (IN) VISIBILIDADE QUEER NO

CONTEXTOESCOLAR............................................................................................13

A INVISIBILIDADE DA POPULAÇÃO TRANS NOS SERVIÇOS DE SAÚ-


DE E O CAMINHO PARA UMA ASSISTÊNCIA QUE ACOLHA, AMPARE E

APOIE................................................................................................................28

SIGNIFICAÇÕES IMAGINÁRIAS DE ESTUDANTES E DOCENTES SOBRE


GENERO POR MEIO DO CINEMA...........................................................................................47

ESTUDOS CULTURAIS E FEMINISMO: RUPTURA E DESENVOLVIMEN-


TO....................................................................................................... 57

MULHERES PRIVADAS E HOMENS PÚBLICOS....................................................70

FEMINISMO NEGRO: MINORIA DENTRO DAS MINORIAS.........................81

VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A CONSTRUÇÃO DAS RELAÇÕES DE


GÊNERO DE HOMENS AUTORES DE ABUSO SEXUAL CONTRA

CRIANÇAS.................................................................................... 104

O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO À INCONSTITUIÇÃO DO GRUPO ARCO-


-ÍRIS DE RONDÔNIA (GAYRO) EM CACOAL................................................120

PATRIARCADO, RACISMO E DOMINAÇÃO.............................................................151


O DISCURSO E A PRÁTICA DA RELIGIOSIDADE FRENTE À

TRANSGENERIDADE.......................................................................................172

O REPRESENTAR DE MONAS, MANOS E MINAS: SUBJETIVIDA-


DE, IDENTIDADE E POSIÇÃO ENUNCIATIVA DA COMUNIDADE
LGBTQIA+....................................................................................185

OS DESAFIOS DA INCLUSÃO DE MENORES TRANSGÊNEROS E AS (PRO)


POSIÇÕES ESCOLARES...........................................................................203

OS PARÂMETROS INTERNACIONAIS E INTERAMERICANOS NA

PROTEÇÃO DA IDENTIDADE: ASSEGURAR A CONDIÇÃO HUMANA DE

GÊNERO...........................................................................................................219

POLÍTICA PÚBLICA ELEITORAL E A REPRESENTATIVIDADE LGBT NO

CONTEXTO BRASILEIRO..........................................................................233

ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA DA APRE-


SENTADORA DO PROGRAMA AGROINSPIRADO-
RAS.............................................................................................................247

AS REPRESENTAÇÕES DA EDUCAÇÃO SEXUAL ATRA-


VÉS DO CURRÍCULO E DAS PRÁTICAS DOCEN-
TES....................................................................................................... 265

SOLICITAÇÃO DE REFÚGIO DE LGBTQIA+ NO BRASIL: UMA ANÁLI-


SE DOS PRINCIPAIS PAÍSES QUE PERSEGUEM E CONDENAM PELA

DIVERSIDADE SEXUAL E GÊNERO................................................289


REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADE DE GÊNERO E RAÇA
NA PARADA DA DIVERSIDADE, RECIFE, 2019.......................
............................................................................................ 308

FANZINE: UMA NOVA FORMA DE LINGUAGEM NOS CURSOS DE


SAÚDE SOBRE A REPRESENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A
MULHER...................................................................................... 320

NECROPOLÍTICA DE GÊNERO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: A


PRODUÇÃO E A ADMINISTRAÇÃO DE SOFRIMENTO E MORTE ÀS

MULHERES.......................................................................................................339

O SISTEMA CARCERÁRIO FEMININO E A DIGNIDADE DA PESSOA

HUMANA...........................................................................................................356

NEM TÃO LIVRES, NEM TÃO IGUAIS: UM PANORA-


MA BIOPOLÍTICO SOBRE O REFÚGIO LGBTI NO

BRASIL..............................................................................................................364

DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO NO ENSINO SUPERIOR: LIMITES E

POSSIBILIDADES.............................................................................................382

O MOVIMENTO FEMINISTA E A LUTA HISTÓRICA DAS MULHERES NO

BRASIL..............................................................................................................393
CORPOS INADEQUADOS? GÊNERO E A (IN)
VISIBILIDADE QUEER NO CONTEXTO ESCOLAR

Lucas de Bárbara Wendt1

INTRODUÇÃO

Este artigo busca discutir e problematizar as práticas pedagógicas excludentes


que desvalorizam e marginalizam determinados corpos em alguns contextos da
educação básica. Ao introduzir temáticas de identidade de gênero e o debate em
torno as relações de poder e sexualidade no contexto escolar, buscamos desenvolver
estratégias pedagógicas que visam contribuir para a superação de preconceitos,
violências, sejam elas diretas ou indiretas, além da valorização das diversidades
sexuais e de gênero em sala de aula.

Entendemos que as questões trazidas ao longo desta escrita atravessam


gerações e estão presentes em nossa sociedade e nas culturas pedagógicas,
moldando nossas formas de ser e pertencer a um determinado espaço, que segrega
e exclui aqueles e aquelas que não se encaixem nos padrões impostos pela
hegemonia dominante. Nesse sentido, cabe problematizar o ambiente escolar e os
discursos e violências que são produzidas nestes espaços a partir de discussões
sobre desigualdade entre meninos e meninas sob a ótica binária dos corpos.

Essa escrita é embasada pela teoria queer, bem como pesquisas relacionadas
a gênero no âmbito escolar, atravessada por relatos de experiências de jovens que
frequentaram a escola. Narrativas que batem de frente com as regras lineares e
tradicionais, e buscam por espaços plurais ao trazerem presentes os desconfortos
de estarem num corpo ‘’impróprio’’, que é violado e vigiado todo o tempo, ainda visto
1 Graduando em Pedagogia, Centro de Educação, pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail:
[email protected]
Orientado por Lutiere Dalla Valle, Doutor em Artes visuais, Centro de Educação, Universidade Federal de
Santa Maria. E-mail: [email protected]

13
pela sociedade e pela educação como inadequado. A partir dos relatos coletados
de pessoas entre 18 a 25 anos, o texto que segue busca a interlocução a partir de
experiências e inserções realizadas no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
à Docência (PIBID) nos anos iniciais de uma escola situada na cidade de Santa Maria
no estado do Rio Grande do Sul.

DESENVOLVIMENTO

A escola é o primeiro ambiente de socialização. Nesse sentido é importante que


todos os corpos sejam contemplados e visibilizados, dando espaço para a diversidade
e a inclusão. Entretanto, sabemos que ao longo do tempo, a escola tratou de
segregar as crianças e alunos(as), desde as ‘’atividades para meninos’’ e ‘’atividades
para meninas’’ enfatizando perspectivas binárias e excludentes aos corpos que não
se vinculam apenas a estas duas concepções. Um exemplo disso são os antigos
manuais pedagógicos que se encarregavam de produzir corpos escolarizados, que
valorizavam apenas as mentes daqueles e aquelas que frequentavam o âmbito
escolar. Esses manuais eram veículos de valores ideológicos e culturais, pois
continham técnicas, métodos de disciplinas e formas do(a) professor(a) se portar,
assim como os(as) estudantes. Os(as) alunos(as) deveriam seguir as normas para
atingir um conhecimento predeterminado, que os levassem a progredir dentro dos
padrões que eram considerados suficientes e adequados para avançar de ano/série.

Desde muito cedo os indivíduos aprendem a reconhecer os seus lugares sociais


e culturais, através de regras pedagógicas que foram normalizadas e sistematizadas
sobretudo a partir das imposições culturais dominantes. Nesse pressuposto, é
evidente que a escola avançou em alguns aspectos, mas ainda exclui e marginaliza
a existência da diversidade de corpos e sexualidade, colocando as meninas em
um lugar inferior ao dos meninos, assim como tornando periféricos ou excluindo os
corpos queer. Culturalmente, os meninos que se encaixavam nos padrões, tinham
mais privilégios e é nesse ponto que as relações de poder ficam demarcadas, pela
desigualdade entre os gêneros.

14
Quando discutimos sobre a questão dos corpos, precisamos considerar o que
é designado como corpo. O corpo é uma estrutura física de um organismo vivo que
engloba funções fisiológicas. O corpo é do que somos feitos biologicamente, deixando
de lado as estruturas culturais e sociais. Neste interim, precisamos problematizar
estas concepções, haja visto que no decorrer do tempo os corpos vão sofrendo
alterações, rompendo com a ideia física do que é considerado um corpo. Ou seja, o
corpo é também uma construção social e cultural, que é atravessado por diferentes
espaços, tempos, grupos sociais, étnicos e entre outros aspectos. Sob esta questão
da significação do corpo, concordamos com Goellner quando afirma que:

Não é, portanto, algo dado a priori nem mesmo é universal: o corpo é


provisório, mutável e mutante, suscetível a inúmeras intervenções consoante
o desenvolvimento científico e tecnológico de cada cultura bem como suas
leis, seus códigos morais, as representações que cria sobre os corpos, os
discursos sobre ele produzem e reproduzem. (GOELLNER, 2005, p.28).

Diante destas considerações, fica evidente que o conceito de corpo corresponde


a uma construção social, porém deveria ser pensado como um processo individual,
subjetivo e simultaneamente coletivo. Nesse sentido, é imprescindível destacar
que existem corpos que “são” e outros que “não são” considerados adequados por
algumas regras sociais. Existem muitos corpos e existências que são rejeitados. A
educação e escolarização dos corpos vem construindo normas, formas de ser e se
comportar. Para ser considerado um sujeito legítimo, com um ‘’corpo que importa’’,
destaca Butler, o sujeito será obrigado a obedecer às normas que regulam a sua
cultura (BUTLER, 1999). As regras pré-moldadas se encarregam de excluir os corpos
que não são heteronormativos, dito isso, Louro afirma:

Uma matriz heterossexual delimita os padrões a serem seguidos e, ao


mesmo tempo, paradoxalmente, fornece a pauta para as transgressões.
É em referência a ela que se fazem apenas não apenas os corpos que se
conformam as regras de gênero e sexuais, mas também os corpos que
subvertem. (LOURO, 2013, p. 17).

Ou seja, não existe outra alternativa senão seguir as normas impostas, caso
contrário à sua existência será caracterizada como imprópria, pois a afirmação ‘’é

15
menino’’ ou ‘’é menina’’ estabelece desde o princípio o processo das performances
de gênero de masculinidades ou de feminilidades. De um modo ou de outro, esses
sujeitos escapam da via planejada. Extraviam-se. Põem-se à deriva. Podem encontrar
nova posição, outro lugar para se alojar ou se mover ainda outra vez. (LOURO, 2013,
p. 19)

Todos os corpos são políticos, principalmente aqueles corpos que são carregados
por estigmas e vistos como inadequados, como os corpos LGBTQIA+, em especial
de travestis e transexuais. Esses sujeitos tiveram que construir e reconstruir espaços,
na sociedade e nas escolas, visto que esses espaços eram limitados, demarcando as
relações de poder entre os que podiam ou não frequentar. Eles buscaram e lutaram
por lugares que suas existências fossem validadas. Linn da Quebrada, uma artista
brasileira que se denomina como ‘’bixa travesti’’ diz: ‘’Já que não tem um lugar que
me cabe, então que eu inventasse esse espaço que me coubesse, mas que também
é temporário, não quer dizer que eu vou caber aqui pra sempre’’ (BIXA, 2019).

Para dar continuidade à discussão acerca dos corpos, fazemos uso de alguns
relatos transcritos para dialogar com o texto. É importante ressaltar que ao longo
do artigo serão trazidos outros relatos envolvendo as temáticas que compõe os
debates propostos. Estabeleceu-se que esses relatos seriam mantidos em sigilo e
seriam utilizados em um artigo que debatesse as questões de gênero e diversidade
sexual no séc. XXI. Obedeceu-se aos itens da Resolução 196-96 que orienta sobre
as Normas de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos (BRASIL, 1996). A partir disso
foi possível obter o consentimento e o esclarecimento para os adolescentes sobre
os objetivos desse artigo e sua finalidade, bem como as formas como seria narrado,
além da garantia do anonimato. Para dar força a argumentação sobre a existência
queer no contexto escolar, foram ouvidos relatos de jovens entre 18 e 25 anos, que
frequentaram a escola e compartilham suas perspectivas, seus traumas, vivências,
desconfortos e experiências vivendo em um corpo queer na escola. Adotou-se uma
pergunta descritiva ampla para que eles pudessem disparar seus relatos: ‘’como se
sentiam no ambiente escolar? No sentido de serem crianças LGBTQIA+ e como
os(as) professor(as) e colegas respondiam a essas diferenças?’’.

16
Relato I: ‘’Quando eu tinha 12 anos me mudei para uma nova cidade, consequentemente
tive que mudar de escola e nela sofri bullying por ser diferente da normalidade, já que era
gorda e não performava feminilidade da maneira esperada, onde era chamada de ‘gorda’
e de ‘sapatão da escola’ por todos. Aos 13 anos tentando me enquadrar como forma de
cessar o bullying, comecei a tomar laxantes e fazer dietas malucas[...] consequentemente
minhas notas que antes eram altas começaram a cair, pois não conseguia nem me
concentrar nas aulas. Cheguei a desenvolver transtorno de ansiedade porque não queria
ir para a escola’’

Como retratado ao longo do texto, é enfatizado que o corpo é uma construção


social, logo ele está suscetível a mudanças. O relato acima discute o corpo gordo
como inadequado, a ponto de fazer com que o sujeito siga as imposições ditas normais
construídas socialmente a ponto de fazê-la utilizar de dietas e medicamentos para
se enquadrar nesse corpo educado, comportado e ‘’normal’’. O relato traz o enfoque
sobre as performances de gênero, em interlocução com o que propõe a teoria queer
e o debate sobre a sexualidade, visto que as pessoas que ousam nadar contra a
correnteza, acabam sofrendo agressões, físicas ou psicológicas, colocando em pauta
a importância da discussão de gênero nas escolas.

A existência queer no contexto escolar...

O pesquisador, sociólogo e professor Richard Miskolci exemplificou que queer


‘’é tudo que o discurso da sociedade transforma em anormal, em estranho, em abjeto,
em subalterno’’ (Miskolci, 2012). De fato, a teoria queer evidencia e afirma que vivemos
em um contexto que marginaliza aqueles que fogem dos padrões héterocisnormativo
binários. Esse padrão social impõe uma classificação cultural, social, hierárquica
e excludente. Essa teoria busca ressignificar as classificações LGBTQIA+, pois se
opõe ao sistema de gêneros como algo social e hierárquico, além de contrariar a
padronização de identidades, corpos e sexualidades.

Relato II: “Posso afirmar que as minhas primeiras lembranças da escola não foram boas,
no Primário já me sentia inseguro pela minha aparência e trejeitos, mesmo sem nem
entender o que eu era e o que eu sentia, o medo de me impor, ou até mesmo criar
ligações afetivas com os colegas, já me abraçavam desde pequeno. Lembro também de
praticar atitudes machistas para ser aceito no grupo dos meninos, e assim talvez sentir
menos avulso. (...) Durante o ensino médio, foi onde eu mais encontrei dificuldades
em me inserir, sempre fui um indivíduo introvertido, então sofria ataques psicológicos
constantemente, desde o momento que eu colocava os pés dentro da escola, inclusive

17
durante as aulas, mas como era muito acanhado, não conseguia me abrir e reportar os
abusos sofridos. Eram insultos como ‘’bicha’’, ‘’viadinho’’, ataques a minha aparência
e aos trejeitos. Os ataques psicológicos passaram a ser físicos, durante as aulas e
intervalos, mas lembro de um momento específico, pois nunca me senti tão humilhado
como naquele dia, em frente a toda escola, fui atacado por um grupo de cinco, até mais
garotos, dentro do bar, fui alvejado com socos nas costas e chutes na barriga, enquanto
era insultado, fui levado diretamente a diretoria, porém nada foi feito, pois para a diretora,
não passou de uma brincadeira, e pela primeira vez me senti impotente, incapaz e uma
pessoa sem voz. Penso que a escola, supostamente criado para se sentir seguro, livre
para aprender e ter o primeiro contato como cidadãos em sociedade, aprender sobre si
e os outros, a se descobrir sem julgamentos, para pessoas LGBTQIA+ e outras minorias,
seja ainda um dos espaços mais traumatizantes”.

O relato III complementa:

“Desde os 5 anos eu só gostava de brincar com meninas e assumir papéis em brincadeiras


que eram considerados femininos pela sociedade, lembro da minha primeira professora
me xingar muito por eu estar brincando de bonecas. Lembro bem porque ela usava
aparelho nos dentes e cuspia no meu rosto enquanto falava zangada. Por conviver muito
mais com as meninas do que os meninos, eu não gostava de fazer coisas de meninos e
aproveitar dos privilégios que eu tinha em relação as meninas”.

A partir desses dois relatos é possível analisar que os dois meninos não
performavam suas masculinidades como esperado socialmente e culturalmente. Isso
os levou a sofrer agressões, tanto físicas como morais. Neste contexto, é necessário
refletir sobre o papel da escola e do(a) docente quanto se trata dessas violências.
Onde estavam? Porque não fizeram nada? É na escola que as pessoas deveriam
aprender a respeitar as diversidades, individualidades e pluralidades, e o(a) docente,
que deveria estar presente nesses contextos de intolerância, parecem silenciar,
reprimindo o oprimido e reforçando que as agressões sofridas não passassem
de brincadeiras, mesmo causando danos psicológicos irreparáveis. Esses grupos
que não se encaixam nas normas heterossexuais e padronizadas permanecerão a
margem. Louro exemplifica ao destacar que:

Para alguns grupos, ser excêntrico significa abandonar qualquer referência a


posição central. Não se trata de, simplesmente, opor-se ao centro e, menos
ainda, de aspirar a ser reconhecido por ele. Esses sujeitos não buscam ser
‘’integrados’’, ‘’aceitos’’ ou ‘’enquadrados’’; o que desejam é romper com uma
lógica que, a favor ou contra, continua se remetendo, sempre a identidade
central. Assumem-se como estranhos, excêntricos, e assim querem viver –

18
pelo menos por algum tempo, ou melhor, pelo tempo que bem lhes entender.
(LOURO, 2013, p. 51).

O terceiro relato traz o enfoque nas brincadeiras ditas de ‘’meninas’’ e


‘’meninos’’, além de afirmar que havia maiores privilégios em sala de aula por ser do
sexo masculino. É importante destacar, que o brincar é livre, portanto, não existem
brinquedos e brincadeiras para determinados gêneros, apesar da sociedade continuar
segregando os homens e as mulheres. O papel do(a) professor(a) no brincar é
essencial, é necessário atuar conscientemente e intencionalmente, garantindo esse
direito, visto que a escola é um lugar de saber intencional e sistematizado. Na história
da educação, os homens tinham mais privilégios que as mulheres, pois eles podiam
ter acesso à educação, enquanto as mulheres eram encarregadas do trabalho
doméstico. Aliás, existiam cursos para mulheres, cursos de costura, como ser uma
“boa dona de casa” e atividades associadas ao ambiente domiciliar.

Relato IV: ‘’Eu sempre senti que não pertencia ao espaço escolar, por ser diferente,
estranho e excêntrico. Eu sofria violências físicas e psicológicas constantes de colegas
e uma vez uma professora recomendou a minha mãe que eu fosse a uma psicóloga,
para ajeitar o meu ‘afeminamento’. Muitas vezes eu pedia para sair da sala alegando
que estava mal do estômago, para poder ir pra casa, pois me sentia isolado, excluído
e anormal. Eu sentia como se existisse um muro entre mim e meus colegas, e de um
lado do muro estava eu, sozinho, e do outro lado estavam todos eles. Eu sentia que eu
era uma criança com muito potencial, e vi tudo isso escorrer das minhas mãos, essas
micro agressões fizeram com que as minhas notas e o meu desempenho na escola
despencassem’’. Para finalizar, ele continua o relato falando sobre sua experiência
atualmente como docente e trabalhando na escola: ‘’eu resolvi ingressar na Pedagogia,
quando tive meu primeiro estágio e tive que pisar na escola novamente, todos os meus
traumas e experiências que carregava comigo vieram à tona, foi muito difícil lidar com
isso, mas eu consegui criar práticas para essas crianças e outras que se sentiam como
eu. Eu senti que pude ser o apoio que nunca tive”.

A teoria queer desenvolveu uma crítica imprescindível contra as normas pré-


moldadas e naturalizadas usadas pelo conservadorismo para legitimar e justificar
a discriminação e os pré-conceitos. É importante ressaltar que a teoria queer luta
não somente em prol da população LGBTQIA+, mas também por todos os sujeitos
que são impossibilitados de fazerem parte do que é considerado normal em nossa
sociedade

19
As desigualdades de gênero na escola...

Lamentavelmente, parece que a escola continua sendo um dos pilares para a


produção das desigualdades de gênero e sexuais na sociedade, visto que elas andam
de mãos dadas, não existe a formação de sujeitos sem a escola, mas é importante
frisar que a sociedade também se encarrega de transformar esses sujeitos. Esse
processo de fabricação dos corpos, dos gêneros e sexualidades se faz presente
no cotidiano educacional, pois a pedagogia tradicional reforça estereótipos desde a
antiguidade, através de símbolos, práticas excludentes, representações e discursos
que colocam algumas minorias a margem. O relato a seguir, assim como os anteriores,
segue trazendo à tona estas problemáticas:

Relato V: ‘’Não tive uma só aula que falasse sobre homossexualidade, mas ouvia o
discurso ‘menina usa rosa e menino usa azul’, feminismo pra mim nem existia, na
aula de educação física, meninos jogavam bola e meninas jogavam vôlei, era sempre
assim e sem discussão. Nunca aceitei essas situações, professores riam na minha cara
por eu pedir um tratamento igual ao do meu colega’’. (...) ‘’analisando agora, vejo que
sobrevivi a escola muito bem [...] a exclusão esteve comigo, não veio de colegas, veio
de professores, veio de cada risada e piada que ouvia deles toda vez que eu expressava
uma opinião fora do ‘normal’’.

A impossibilidade e a negação das brincadeiras, bem como discursos


que atravessam as performances de gênero no meio educacional precisam ser
problematizadas, no sentido de que certas atividades e determinados objetos foram
sendo estabelecidas socioculturalmente como sendo masculinas ou femininas. Essas
representações hegemônicas produzem efeitos na vida dos meninos e das meninas
e como eles devem se colocar e ser tratados na sociedade.

O próximo relato trata da questão precoce da erotização dos corpos infantis, e


como o corpo feminino é tratado como objeto de consumo desde muito cedo.

Relato VI: ‘’um fato que me marcou bastante na escola foi quando eu estava brincando
com amigas meninas, porque me identificava mais com elas do que com os meninos.
Um dia eu estava brincando com elas e os meninos mais velhos viram e começaram me
chamar de ‘comedor’, objetificando o corpo de meninas de 9 e 10 anos de uma forma
nojenta. Esse bullying e machismo continuou até o final do ano’’

20
O relato desse sujeito do gênero masculino continua, mas dessa vez retratando
a postura da escola em relação a este tipo de violência:

“Eu tentei falar com a escola, mas eles deram um jeito de se esquivar, eu
lembro de chegar para os meus pais e pedir para mudar de escola’’.

O relato continua discutindo agora sobre o privilégio de se estar num corpo


masculino na escola:

‘’na nossa escola as meninas não podiam usar bermuda, e os meninos sim, podia fazer
40 graus e era proibido elas usarem roupas curtas para evitar que os meninos ficassem
olhando’’.

O relato VII complementa:

“eu lembro que era constante os meninos passarem a mão na bunda das meninas,
levantarem as saias delas, excluírem elas das atividades, especialmente do futebol.’’

Ela continua os relatos de abuso por parte dos meninos:

“durante as séries iniciais, durante um tempo fui uma espécie de brinquedo na mão dos
meninos nessa escola. Eu fui ‘disputada’ por eles, recebi ameaças para que eu ficasse
com alguns. Inclusive por meninos que faziam EJA que eram MUITO mais velhos do que
eu. Eu nunca pensei em contar pra ninguém, porque eu achava que provavelmente seria
culpada por estar encorajando essas atitudes. Além disso, isso me dava uma fama de
‘desejada’, o que muitas vezes deixava as meninas bravas por isso acontecer. Era um
ambiente de muita rivalidade feminina que eu nunca quis. [...] Foi um período de muito
medo e que atrapalhou muito o meu conhecimento e aprendizado na escola”.

As representações de pureza e ingenuidade, suscitadas pelas imagens


infantis, têm convivido com outras imagens, extremamente erotizadas, das
crianças, especialmente em relação as meninas (WALKERDINE, 1999; LANDINI,
2000; NECKEL,1999, 2002). Essas transformações significativas se dão devido as
mudanças de perspectivas de infâncias e educação, em combinação com o mundo

21
adulto e as tecnologias. Nas últimas décadas as crianças têm mais acesso à internet,
fazendo com que concepções masculinas sobre os corpos de mulheres atravessem
essas questões, gerando um processo de erotização do corpo feminino, seja na
infância ou na vida adulta.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Ao longo do artigo foi debatido questões contemporâneas na educação,
como corpo, gênero e sexualidade. Ao receber os relatos, notou-se que as pessoas
entrevistadas conseguiram relembrar situações de violência que enfrentaram no
âmbito escolar e descreveram essas memórias como angustiantes, frustradas por não
conseguirem ter se posicionado e pedido ajuda e alguns se sentiram impotentes por
não terem tido a oportunidade de conhecer práticas que os incluísse e promovessem
aceitação. Uma delas completa: “eu revivi um pouco desse sentimento que eu tive na
época, mas também foi bem terapêutico expressar isso para alguém que pode utilizar
isso para fazer a diferença nesse cenário e melhorá-lo para outras crianças’’.

Como mencionado, os relatos que aqui contribuem para as discussões, foram


realizados com pessoas que já não frequentam mais a escola, mas que contribuem
para potencializar nossas discussões. Neste sentido, trazem importantes subsídios
para seguir problematizando estas questões no contexto das vivências no Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). Ao longo das observações
dentro de sala de aula e intervalo, notou-se que essas violências ainda existem, mesmo
disfarçadas e veladas, mas ainda assim, violências. Foi possível observar também
atitudes de silenciamento em que o(a) professor(a) dizia ser apenas ‘’brincadeira
de criança’’, isso quando as próprias meninas não identificavam essas violações
mascaradas, pois foram ensinadas que deveriam ser comportadas e submissas.

Em muitas brincadeiras, notou-se a exclusão dos corpos que alguns


consideravam como ‘’inadequados’’, principalmente quando essas brincadeiras
eram na educação física, demarcando as relações de poder entre meninos cis contra
meninos que não se encaixavam nos padrões. Diante destas constatações, é urgente
entender o fato de que esses artefatos culturais, como os jogos, os brinquedos,
os desenhos animados, os livros e entre outros marcadores sociais ligados ao
lúdico, merecem uma análise política, pois são re(produtores) e veiculadores de

22
representações de masculinidade e feminilidade. Muitos alunos e alunas chegaram a
relatar esse processo de silenciamento e marginalização de seus corpos no espaço
educacional, mas nada nunca era feito. Outros(as) alegavam não sentir mais vontade
de frequentar a escola por conta disso. O papel do(a) professor(a) nesse sentido é
oferecer minimamente condições e circunstâncias para brincadeiras mistas ou que
visem o tratamento igualitário entre meninos e meninas. Aliás, não basta a igualdade
de gênero, devemos propor a equidade, para que esses sujeitos em desvantagem,
possam usufruir desses tratamentos igualitários.

Trazendo esse debate para um contexto geral, o índice de pessoas transgênero


e transexuais violentadas nas escolas é gritante, isso porque o bullying e as ameaças
eram constantes. Estudos realizados pela secretaria de Educação da Associação
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais (ABLGBT), divulgados em
dezembro de 2016, indica que 73% dos estudantes que não se declaram heterossexuais
no Brasil já foram agredidos verbalmente na escola, 55% afirmaram ter ouvido, ao
longo do ano anterior, comentários negativos especificamente a respeito de pessoas
trans, e 45% se sentiram inseguros ao expressar suas identidades e expressões de
gênero (HANNA e CUNHA, 2020?).

Os relatos ao longo do texto em interlocução com observações atuais, reitera que


a pedagogia, tal como a educação, parece estar inerte, parada no tempo. Dispomos
de formação inicial e continuada da docência em todos os campos, e ainda assim,
estas questões permanecem silenciadas, parecem não fazer parte dos repertórios
pedagógicos. Seria por receio, por falta de investimento em políticas públicas? Como
despertar o olhar sensível às atrocidades que silenciosamente continuam habitando
os espaços educativos disfarçadas de brincadeiras ingênuas? Como fazer com que
temáticas relacionadas a preconceito e exclusão sejam atravessadas pelas práticas
pedagógicas? Como tornar presente o ativismo em prol do bem estar de todos e
todas, independente de credo, etnia, gênero ou classe social?

A marginalização das questões de diversidade sexual, das desigualdades


de gênero, dos corpos ainda existe, mas para a gestão escolar e alguns docentes,
parece mais prático não se envolver, devolvendo à sociedade a responsabilidade
de tais problemáticas colocando essas pessoas a escanteio, do que dar voz a elas

23
e as colocarem no centro, que é o lugar que sempre deveriam estar, junto a todos
os outros que são vistos como normais pelas normas sociais. Essa população que
não está no centro, está a margem, e durante suas vivências em sociedade elas
são condicionadas a pertencerem a margem, enquanto o heterocisnormativismo
binário é colocado no centro. A centralização desses corpos marginalizados é um
desafio desde a contemporaneidade, visto que suas existências enfrentam o sistema
e ameaçam a ordem e a estabilidade sociocultural homogênea.

Uma pesquisa conduzida pelo defensor público João Paulo Carvalho Dias,
presidente da Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), os dados nos mostram que 82% da evasão escolar no país se concentra
entre travestis e transexuais, uma condição que aumenta a vulnerabilidade dessa
população e contribuir para os altos índices de violência sofrida (DUARTES, 2020).

No dia 9 de julho de 2020, foi aprovado na câmara de vereadores de Santa


Maria o projeto de lei nº 9091, que institui o Programa Diversidade na Escola. Esse
programa visa combater a evasão escolar sofrida pela população LGBTQIA+, além de
resgatar os que abandonaram os estudos, através de capacitação de professores e
professoras, apesar disso, infelizmente o projeto foi vetado. Sabe-se que a comunidade
LGBTQIA+, sobretudo travestis e transexuais têm um baixo índice de escolaridade,
devido as violências sofridas e citadas ao longo do texto. Isso se dá também pela
falta de informação que faz com que essa população abandone os estudos, como
muitos relataram. Isso acaba sendo prejudicial, pois muitas se veem sem outra saída,
a não ser a prostituição, visto que seus corpos são negados em todos os espaços.
Esse projeto tem como objetivo combater a evasão escolar, garantindo os direitos
dessas populações.

Os discursos sociais e culturais nos interpelam, nos constituem e muitas vezes


nos cegam, a ponto de não compreender questões do cotidiano educacional, como
esses corpos, identidades, expressões e sexualidades interagem com o resto da
sociedade e como isso fere as suas existências. Haja visto que as masculinidades
e feminilidades não são apenas atribuídas a questões biológicas, mas são também
constituições sócio-históricas e culturais, marcadas por pré-conceitos acerca desses
sujeitos que só querem viver dentro de suas peles sem sofrerem agressões, abusos e

24
violências. A escola continua sendo uma instituição de grande potência da existência
humana e igualmente, agenciadora da produção e representação dos corpos, gêneros
e sexualidades e, cabe a ela agregar em suas práticas pedagógicas diversos artefatos
socioculturais que tenha como premissa reconstruir estes significados sociais.

CONCLUSÃO
O debate acerca das questões de corpo, gênero e diversidade sexual pretende
repensar as estruturas pré-moldadas no âmbito educacional, além de fazer com que
educadores e educadoras assumam seus papéis de transformação social e criem práticas
que não sejam excludentes. Além disso, que possam trazer esses sujeitos marginalizados
ao centro, incluindo através de práticas educacionais que tornem suas vozes potentes e
ajudem a desconstruir a matriz hétero-cis-normativa. Cabe questionar o papel dos docentes
e da escola nessas situações de intolerância, pois muitos discursos e atitudes acabam sendo
banalizadas e não resolvidas, especialmente nas práticas pedagógicas contemporâneas. É
imprescindível o reconhecimento da diversidade na escola, para conduzirmos uma educação
humanizadora e inclusiva, buscando produzir a consciência de que a autonomia humana,
a inclusão e a diversidade são fundamentais para a desconstrução das desigualdades,
associando, discutindo e trazendo reflexões de práticas formativas para os profissionais
além de questões possíveis para o currículo escolar.

Como metodologia foram coletados relatos de pessoas que frequentaram a escola


e a interlocução com observações atuais no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
à Docência (PIBID) para compararas práticas pedagógicas antigas com as atuais, e como
isso permanece inerte, visto que não existe o interesse por uma formação continuada por
parte de alguns docentes, para que possam desconstruir preconceitos.

Compreende-se que discutir os corpos, gêneros e diversidade sexual, implica


problematizar marcadores socioculturais que produzem e reproduzem a exclusão dessas
populações. Debater essas questões trata-se de fomentar o debate acerca dos direitos
humanos, e educar em direitos humanos consiste em um ato de humanização de si e do
outro, para que possam compreender e reconhecer seu espaço dentro da sociedade, além
de abraçar as suas diferenças como parte inerente à condição humana, e não inadequado,
construindo valores individuais e coletivos, e entendendo que a escola é um espaço para
todos os corpos.

25
REFERÊNCIAS
BIXA travesty. Direção: Claudia Priscilla e Kiko Goifman, Produção: Kiko Goifman e
Evelyn Mab. Brasil, 2019.

BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE. CONSELHO Nacional de Saúde. Resolução n.


196 de 10 de outubro de 1996: Diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas
em seres humanos. Mundo Saúde, v.21, n.1, p.52-61, 1996.

BUTLER, Judith. Meramente cultural. El Rodaballo. Trad. Alicia Santos. Buenos


Aires: Ano V, n. 9, 1998/99.

DUARTES, Luci. Emenda Modificativa nº 0002/2020 ao Projeto de Lei nº


9091/2020. Altera a redação do artigo 1º do Projeto de Lei nº 9091/2020, que
institui o Programa Diversidade na Escola. Disponível em: https://www.camara-sm.
rs.gov.br/camara/proposicao/Emenda-Modificativa/0/1/0/67207. Acesso em: 17 de
Setembro de 2020.

GOELLNER, Silvana Vilodre. Corpo. In: COLLING, Ana Maria, TEDESCHI,


Losandro Antônio (org). Dicionário Crítico de Gênero. Dourados: UFGD, 2015.

HANNA, Wellington e CUNHA, Thaís. Expulsos da escola. Correio Brasiliense.


S.l. [2020?]. Disponível em: http://especiais.correiobraziliense.com.br/violencia-e-
discriminacao-roubam-de-transexuais-o-direito-ao-estudo#:~:text=Pesquisa%20
conduzida%20pelo%20defensor%20p%C3%BAblico,favorece%20os%20altos%20
%C3%ADndices%20de. Acesso em: 17 de Setembro de 2020.

LANDINI, Tatiana Savóia. Pedofilia: essa (des)conhecida. Sexualidade, gênero e


sociedade, ano X, n. 18, 2003.

26
LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria
queer. Belo Horizonte. Autêntica Editora, 2013.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças (2012). 2ª ed.


Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2016.

NECKEL, Jane Felipe. Cachorras, tigrões e outros bichos: Problematizando


gênero e sexualidade no contexto escolar. Alvorada. Secr. Mun. De Educação.
2002.

WALKERDINE, Valerie. A cultura popular e a erotização das garotinhas. Educação


& Realidade, 24, jul.-dez..., p.75-88 [s.n.t]. 1999.

27
A INVISIBILIDADE DA POPULAÇÃO TRANS NOS
SERVIÇOS DE SAÚDE E O CAMINHO PARA UMA
ASSISTÊNCIA QUE ACOLHA, AMPARE E APOIE

Adriana Moro2
Gabriel Lachowicz3
Sandrieli Gugel 4
Rafaela Prestes5

Bruna Barabax6

INTRODUÇÃO

A transformação do corpo apresenta-se como uma reconstrução da vida das


pessoas com o objetivo de dar significância a forma como elas se identificam, dentro
de um contexto subjetivo dotado de liberdade de expressão (BENTO, 2006). Segun-
do Teixeira (2012), as pessoas trans, em seus processos de ressignificação corporal,
através de um novo nome e um corpo modificado são transportadas para um proces-
so identitário de ressignificação. Benedetti (2005), por sua vez, afirma que o corpo
das pessoas trans “é, sobretudo, uma linguagem”.

Nesse sentido, existem diferentes formas de alterar o corpo com o intuito de


2 Enfermeira, Doutora em Políticas Públicas. Docente na Universidade do Contestado Campus Mafra
e membra do Núcleo de Pesquisa de Ciências (NUPESC) da Universidade do Contestado. Rua Presidente
Nereu Ramos, 1071, Bairro Jardim Moinho, Mafra/SC, CEP 89300-000. Email: [email protected]
3 Acadêmico da Graduação de Enfermagem da Universidade do Contestado e membro do Núcleo de
Pesquisa de Ciências (NUPESC) da Universidade do Contestado. Campus Mafra, Rua Presidente Nereu Ra-
mos, 1071, Bairro Jardim Moinho, Mafra/SC, CEP 89300-000.Email:
[email protected]

4 Acadêmica da Graduação de Enfermagem da Universidade do Contestado Campus Mafra, Rua Presi-


dente Nereu Ramos, 1071, Bairro Jardim Moinho, Mafra/SC, CEP 89300-000.Email: [email protected]
5 Acadêmica da Graduação de Enfermagem da Universidade do Contestado Campus Mafra, Rua Pre-
sidente Nereu Ramos, 1071, Bairro Jardim Moinho, Mafra/SC, CEP 89300-000.Email: rafaela.souza@aluno.
unc.br
6 Acadêmica da Graduação de Enfermagem da Universidade do Contestado Campus Mafra, Rua
Presidente Nereu Ramos, 1071, Bairro Jardim Moinho, Mafra/SC, CEP 89300-000.Email: brunapapanduva@
gmail.com

28
corresponder a forma como alguém se identifica. Estas formas podem variar entre o
uso de hormônios, procedimentos estéticos e cirurgias plásticas, tais como histerec-
tomias, mastectomia, transgenitalização para mudança das genitálias e aplicação de
silicone em diversas partes do corpo (ROCON, et al, 2016). Além dessas mudanças,
o uso e respeito do nome social é aquele pelo qual as pessoas trans preferem ser
chamados(as), em contraposição ao nome do registro civil, que não corresponde ao
gênero com o qual se identificam (SILVA, et al, 2017). Isso é garantido nos serviços
de saúde pela Portaria nº 1.820/2009, que descreve que o usuário deve ser identifi-
cado sem qualquer tipo de discriminação pelo nome que prefere se identificar, inde-
pendentemente do registro civil (BRASIL, 2009).

Todavia, ainda no âmbito da saúde, as pessoas trans relatam casos de discri-


minações sofridas no acolhimento, uma queixa comumente trazida é o desrespeito
e não uso do nome social por parte dos profissionais de saúde, principalmente na
Atenção Básica que é tida como “Porta de Entrada” para o cuidando essencial e
indispensável da população (NJAINE, et al, 2015). A transfobia e travestifobia nos
níveis de atenção à saúde têm o potencial de desestimular as vítimas que sofreram
a discriminação à procura pelo cuidado à saúde podendo criar uma certa resistência
à criação de vínculo e confiança com os profissionais, ocasionando a desistência e
abando de tratamentos de saúde importantes, como os de HIV/AIDS. Isso é antago-
nista aos princípios do Sistema Único de Saúde (S.U.S) de universalidade e integra-
lidade que garantem o direito a saúde para todas as pessoas e produz um quadro de
exclusão do acesso à saúde e inequidade (DUARTE, 2014)

Diante do exposto, o presente trabalho adequa-se dentro de um ensaio teórico,


respeitando um estudo formal, de base discursiva, expondo as informações de forma
lógica e reflexiva, apoiadas em uma argumentação rigorosa, a partir da interpretação
e do julgamento pessoal (SEVERINO, 2007). A problemática identificada para a pro-
dução desse estudo se baseia na preocupação dos autores em identificar, por meio
de um referencial teórico, de que forma a assistência em saúde está sendo prestada
às pessoas trans dentro das suas subjetividades e como estas implicam na forma
como os profissionais de saúde devem suprir as demandas em saúde dessa popula-
ção, muitas vezes cercados por situações que envolvem violência e agravos à saúde.

29
Além disso, é observada a importância em complementar esses apontamentos fa-
zendo uma análise argumentativa referenciada das experiencias discriminatórias que
o grupo T pode vivenciar dentro das unidades de saúde e como podem ser evitadas
através de estratégias em prol de uma cuidado em saúde a população trans mais
humanizado, acolhedor, resolutivo e integral.

O ensaio está organizado na reflexão de dimensões propostas dentro da pro-


blemática exposta anteriormente, as quais são: Trangene(al)idades e identidades,
ser trans e ter demandas em saúde e estratégias para uma assistência em saúde
mais humanizada, integral e resolutiva às pessoas transexuais. Por fim, apresentam-
-se algumas considerações aproximativas.

TRANGENER(AL)IDADES E IDENTIDADES

A identidade de gênero não se reduz somente a uma forma determinista por al-
gum componente biológico e/ou genético, também transcende em questões sociocul-
turais e econômicas, tanto a nível individual quanto coletivo (COLLING, 2018). Além
disso, a forma como uma pessoa se identifica é oriunda de uma construção social
dentro de um processo de produção complexo que tange no campo das relações de
poderes e sistemas de representações, como a linguagem, história, economia, geo-
grafia e cultura. (MENDES, 2020).

Historicamente é possível resgatar que a dualidade biológica entre o sexo femi-


nino e masculino surgiu apenas no século XVIII, anteriormente prevalecia o monismo
sexual, a ideia de que há um único sexo, com registros datados do século II nos tra-
tados de Galeno (LAQUER, 2001). Com relação ao gênero, termo criado apenas no
século XX pelas considerações de John Money (1955), é tido como um conjunto de
características que definem diferenças sociais entre homens e mulheres, diferencian-
do esse conceito do de sexo biológico. De acordo com Saffioti, (1992, p.190):

[...] tanto o gênero quanto o sexo são inteiramente culturais, já que o gênero
é uma maneira de existir do corpo e o corpo é uma situação, ou seja, um
campo de possibilidades culturais recebidas e reinterpretadas. Nesta linha de
raciocínio, o corpo de uma mulher, por exemplo, é essencial para definir sua

30
situação no mundo. Contudo, é insuficiente para defini-la como mulher. Esta
definição só se processa através da atividade desta mulher na sociedade. Isto
equivale a dizer, para enfatizar, que o gênero se constrói – expressa através
das relações sociais.”

Dentro do campo da identidade de gênero, aqueles que não se identificam com


a sua designação de gênero firmada no nascimento, tem denominações de trans-
gêneros, transsexuais e travestis. O prefixo “trans” significa “através de, além de”
remetendo a pessoas que estão transitando entre os gêneros masculino e feminino.
Ser transgênero, não implica diretamente na mudança de aspectos físicos de ordem
biológica/genética ou atração por pessoas do mesmo sexo, o que existe é um conflito
na identidade de gênero. Já a pessoa transsexual objetiva na mudança de sexo, ou
seja, a constituição biológica através da cirurgia de resignação sexual. Em contra-
partida, a travesti, pode ser tanto homem quanto mulher, geralmente as pessoas que
se enquadram nessa terminologia não se identificam com nenhum dos sexos. Além
disso, é importante destacar que a identidade de gênero se diferencia de orientação
sexual, pois esta relaciona-se de modo sentimental, de desejo e atração por outras
pessoas (TREVIZANI, 2019).

Estudos populacionais indicam que cerca de 0,5% dos adultos se identificam


como transgêneros, o que corresponde a 25 milhões de pessoas em todo o mundo.
(LAM; ABRAMOVICH, 2019). Outra pesquisa que avalia as necessidades de saúde
das pessoas trans aponta dados de pesquisas realizadas em outros países com o
objetivo de identificar pessoas que têm uma identidade de gênero diferente ao que
foi determinado no nascimento. Os dados revelam que nos Estados Unidos a pre-
valência de pessoas trans em 2011 era de 22,9% a cada 100.000 habitantes. Em
2012 na Nova Zelândia, com uma amostra de 8,166 estudantes de escolas, quan-
tificou-se através da pergunta “Você acha que você é transgênero?” que 1,2% dos
entrevistados se consideravam transgêneros e 2,5% estavam incertos com relação
a sua identidade de gênero. A tabela no artigo também revela que a população trans
na Escócia em 1999, ainda quando a transexualidade era considerada uma doença,
era constituída por 8,18% de pessoas acima de 15 anos a cada 100,000 habitantes
(THOMSON et al., 2018, p.28).

31
SER TRANS E TER DEMANDAS EM SAÚDE

A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis


e Transexuais teve sua origem em 1980 na iniciativa de combate à AIDS e obteve no
decorrer desse tempo ampliações, pois foi reconhecido que essas populações pas-
sam por várias situações de vulnerabilidade. Essa política tem como objetivo ampliar
o acesso a ações e serviços de qualidade nos serviços e mesmo não sendo crimina-
lizada no Brasil, passa ainda por assuntos referentes a transfobia, e tem como meta
promover ações para o enfrentamento contra as desigualdades. (BRASIL ,2013)

Um grande avanço foi a transexualidade deixar de ser considerada uma doen-


ça mental, pois durante 28 anos esteve na Classificação Internacional de Doenças
(CID 10 F64.0) esteve nesta condição e então somente após passou de “condições
relacionadas a saúde sexual” para “incongruência de gênero”. (SOUZA, 2018)

Mesmo já tendo políticas nacionais e Protocolos Operacionais Padrão que


visam o bem-estar e saúde dessa população, torna-se importante também que se
tenha uma mudança na maneira de pensar dos profissionais para um melhor aten-
dimento, pois existe ainda uma questão cultural muito forte e que acaba comprome-
tendo diretamente o atendimento a essas pessoas sendo o que em muitos casos
impede a procura destes ao atendimento. Dados que corroboram essas informações
indicam que em um estudo 80% dos profissionais de saúde não tiveram nenhuma
forma de ensino específica sobre pacientes transexuais durante sua formação e re-
sidência. (GATOS, 2018).

De acordo com Cardoso e Ferro (2012, p.3):

“As transformações das redes de saúde para o melhor atendimento dessa po-
pulação também dependem das transformações no modo de pensar e de agir
dos profissionais de saúde. As questões culturais advindas do padrão hete-
rossexual influenciam de modo subjetivo o atendimento dos profissionais da
saúde a essa população. Sousa, Abrão, Costa e Ferreira (2009), a partir dos
argumentos de Lionço, relacionam a prática discriminatória de alguns profis-
sionais da saúde com a influência do padrão heterossexual que permeia a
nossa cultura, sendo que o preconceito sofrido pela população LGBT pode
constituir uma barreira que impede o seu acesso aos serviços de saúde.”

Além disso, não estão expostos apenas a situações de discriminação, mas

32
também a doenças sexualmente transmissíveis, transtornos mentais, podendo ser
observado que há muitos casos de ansiedade e depressão entre essas pessoas e
casos de morte por aplicação de prótese de silicone em clínicas não especializadas,
uso de maneira inadequada de hormônios e automedicação. De acordo com o Mi-
nistério da Saúde qualquer forma de discriminação deve ser considerada como fator
que proporciona sofrimento e o aparecimento de doenças. (BRASIL, 2013)

Após a Reforma Sanitária a saúde passou a ser direito de todos na Consti-


tuição Federal no ano de 1988, porém teve a exclusão de alguns grupos como por
exemplo o LGBTQI+. A lei número 8.080/90 dispõe sobre a promoção, proteção,
recuperação, organização e funcionamento dos serviços, esta lei regula que ações
devem ser executadas em todo território nacional por pessoa natural ou jurídica de
direito público ou privado, mas naquele momento não se pensou nas pessoas que
não se identificavam com sua orientação e identidade natural e jurídica firmada ao
nascimento. (SOUZA, 2018)

Após manifestações, campanhas e sofrimento da população LGBTQI+ em 28


de abril de 2016 foi assinado pela ex-presidenta Dilma Rousseff o decreto n. 8.727
que dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero
de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal dire-
ta, autárquica e fundacional, sendo  considerado como um auxílio para população,
trazendo mais respeito e autonomia. Embora essa aprovação faça com que a po-
pulação se torne mais autônoma e valorizada, é importante destacar que a maioria
das políticas públicas voltadas à população trans é direcionada mais a questão de
proteção para determinadas doenças, exploração sexual, deixando de lado a impor-
tância da inserção no mercado de trabalho, sociedade e escolas (BRASIL, 2016) o
que pode levar ao abuso de drogas e/ou venda, assim como o aumento de condições
de prostituição sem os devidos cuidados.

Um estudo realizado no Colorado-Estados Unidos, aponta que as maiores cau-


sas de morbimortalidade em pessoas trans são de ordem mental. Depressão, ansie-
dade, automutilação, ideação suicida, tentativa de suicídio e transtornos alimentares
estão entre as questões epidemiológicas de saúde mais prevalentes em consequên-
cia dessa população ir contra o padrão binário sexual de ordem determinista e exclu-

33
dente e estar inserida em uma sociedade onde a normatização de padrões de gênero
discriminatórios é comum. Além disso, a pesquisa revelou que dos 507 participantes
que se consideravam transgêneros ou não apresentavam identidade de gênero de-
finida 16,6% fez uso de substâncias psicoativas ilícitas em menos de um ano. Além
disso, da amostra obteve-se um percentual de 36% de trans que tiveram ideação
suicida e 10% foram tentantes em algum momento de suas vidas (CHRISTIAN, et al,
2018).

Os casos de suicídio vêm sendo relatados com mais frequência entre as po-
pulações trans. O relatório do Projeto Transexualidade e Saúde Pública no Brasil:
entre a invisibilidade e a demanda por políticas públicas para homens trans (2015)
indica que o número de pessoas trans que já se suicidaram é muito amplo e dispõe
sobre os estudos realizados pelo Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT do
Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal de Minas Ge-
rais (UFMG) dados do relatório apontando que 28,6% dos homens trans já tentaram
suicídio e 25% do grupo declarou já ter tentado suicídio. Sendo assim, juntando os
dados de indivíduos que pensam ocasionalmente em suicídio, 28,6% com os 25%
que já pensaram e mais o restante dos dados, o resultado é de que 85,7% dos sujei-
tos trans já pensaram ou tentaram de alguma forma cometer suicídio, sendo somente
10,7% os que informaram que nunca consideraram o ato. (UNIVERSIDADE FEDE-
RAL DE MINAS GERAIS, 2015)

Segundo Antra (2018, p.1):

Existe um mito relacionado as questões de saúde mental das pessoas Trans,


onde está posto que a Travestilidade ou Transexualidade em si, são fatores
que causariam ideações suicidas, depressão, ansiedade ou outras questões
de saúde mental. São ideias sob uma viés estigmatizante e patologizante,
que ignoram os resultados positivos de uma transição em ambientes aco-
lhedores, com apoio dos pais, amigos e familiares, acesso a tratamentos de
saúde e acompanhamento nas questões de transição para quem deseja ou
precisa, garantia de atendimento humanizado, respeito e uso de nome social
e banheiro de acordo com a identidade de gênero das pessoas trans nos es-
paços sociais, são alguns dos fatores que podem vir a garantir a qualidade e
melhora da saúde mental da nossa população.

Portando, cabe aqui ressaltar que muitos indivíduos acabam tendo um certo
receio e deixam de procurar ajuda por medo da transfobia, devido as experiencias

34
indesejadas e preconceituosas que enfrentam todos os dias, sendo grande parte do
sofrimento psíquico tanto por violência verbal, física, assim como familiar. Acredita-se
que os dados não refletem totalmente a realidade, pois devido as limitações desse
grupo e o receio pela procura é possível mensurar que os números reais de violência
e suicídio são bem superiores. Essas situações reforçam a importância dos profis-
sionais de saúde em orientar os pacientes trans sobre os seus direitos e sobre as
políticas de denúncias contra violência (ANTRA, 2020).

Infelizmente, ainda há uma maior suscetibilidade ao suicídio em transsexuais,


transgêneros e travestis devido à falta e até inexistência de um acolhimento psíquico
adequado pelos profissionais de saúde, em espaços públicos e até dentro de casa
onde pode haver a discriminação e a violência por parte dos próprios familiares. O
homicídio contra as pessoas trans também se enquadra como um fator epidemio-
lógico de mortalidade grave. Porém, os números de ocorrência de homicídios não
são exatos, pois no Brasil os registros de óbitos não apresentam nos dados de no-
tificação os itens orientação sexual, nome social e identidade de gênero (MENDES;
SILVA, 2020).

Apesar de não existirem dados conclusivos, o Brasil é considerado o país com


maior taxa de homicídios contra transexuais e travestis, segundo estimativas do bo-
letim 02/2020 da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) corres-
pondentes aos dois primeiros meses do ano de 2020. No mesmo ano, o Brasil apre-
sentou um aumento significativo de 90% dos casos de homicídio comparado com o
mesmo período do ano anterior, além disso o país passa de 55° lugar de 2018 para
o 68° em 2019, em relação a sua segurança para população LGBTQI+. Consequen-
temente, isso agrava ainda mais a invisibilidade trans e retrocede as tentativas de
garantias de diretos à saúde (ANTRA, 2020).

A portaria 1707/2008 autorizou procedimentos MTF (masculino para feminino)


e somente em 2013, com a ampliação do Processo Transexualizador do SUS a partir
da portaria 2803, homens transexuais e travestis tiveram suas demandas por hor-
monioterapia e por procedimentos FTM (feminino para masculino) como mastecto-
mia, histerectomia e neofaloplastia (mudança de sexo FTM) incorporados pelo SUS
(BRASIL, 2013)

35
A terapia hormonal pode conferir aos homens trans ansiedade em começar o
tratamento, fazendo com que iniciem o uso de hormônios por conta própria devido a
dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Dessa forma, é necessário um acesso
mais universal com acompanhamento multiprofissional que confere apoio, amparo e
cuidado. (ROCON, et al,, 2020)

Os hormônios artificiais são importantes para conferir as características físicas


desejadas para os transsexuais, porém, a sua administração deve ser feita sob pres-
crição médica, orientação e acompanhamento por toda a equipe de saúde. Além dis-
so, a longo prazo a terapia hormonal pode aumentar o risco de desenvolvimento de
câncer de mama em homens trans, necessitando de um cuidado contínuo. (BLOK,
et al, 2019)

Outro fator determinante na saúde da população trans é o HIV e outras infec-


ções sexualmente transmissíveis (IST) que estão com taxas elevadas de transmis-
sibilidade. Outra preocupação está relacionada com as mulheres transexuais que
também apresentam uma carga elevada de contaminação pelo vírus do HIV, e ne-
cessitam fortemente de serviços que atendam a prevenção e o tratamento dos cuida-
dos que a doença impõe (KULKAMP, 2019).

Dourado (2013) pesquisou 127 transexuais, sendo que 46,2% se auto identifi-
caram como travesti e 53,8%, como mulher transexual (MT). Em relação ao uso de
preservativo (sempre/às vezes) foi 95,2%, 97,7%, e 62,7% com parceiros casuais,
ou clientes e parceiros fixos. Estes dados demográficos não diferiram por identida-
de, mas a prevalência do HIV diferiu significativamente: 14,5%-travestis; 4,3%-MT
(p=0,06); assim como o sexo comercial: 96,9%-travestis, 87,9%-MT (p=0,07) e posi-
tivas para HIV (44,8%); e positivas para sífilis (42,6%). Esses agravantes a saúde e
outros determinantes em saúde inserido no contexto trans necessitam de uma aten-
ção em saúde qualificada e resolutiva (DOURADO,2013).

O desenvolvimento de câncer de colo de útero em homens transgêneros que


não realizam a remoção cirúrgica dos seus órgãos reprodutivos também se caracte-
riza como um fator importante de saúde pública que culmina em processos de morbi-
mortalidade. A incidência de alterações na cérvice uterina que pode levar a resultados
cancerosos nessas pessoas está relacionado com a falta de preparação da equipe

36
de saúde para oferecer assistência ao grupo T, a não procura por unidades de saúde
por parte dos transgêneros por receio à discriminação e constrangimento que podem
sofrer, as altas taxas de HPV sem rastreamento ou tratamento e a exclusão deles por
falta de diretrizes específicas para pacientes trans. Além disso, fatores de risco como
tabagismo, sobrepeso, terapia hormonal sem supervisão médica, imunossupressão
e violência sexual recorrente são fatores que aumentam o risco do desenvolvimento
de câncer de colo do útero. Dessa forma, os homens trans necessitam do mesmo
cuidado indicado a população cis como exames preventivos – papanicolau - e imuni-
zações. (FLORIDO; ELIAN, 2019)

ESTRATÉGIAS PARA UMA ASSISTÊNCIA EM SAÚDE MAIS HUMA-


NIZADA, INTEGRAL E RESOLUTIVA ÀS PESSOAS TRANSEXUAIS

As estratégias para uma assistência em saúde mais humanizada, integral e re-


solutiva as pessoas transexuais passam por um processo de mudança de paradigma
no pensamento em saúde dessa população e da população em geral. Este acesso
compreende-se como um direito humano, integro ao Sistema Único de saúde con-
templando os seus princípios. A construção de uma cidadania integra para as pes-
soas vem em consonância com a formulação de políticas de saúde especificas com
base nos direitos humanos, sexuais e reprodutivos (KULKAMP, 2019).

Conforme Rodriguez (2014), os serviços de saúde ao atender esta população


deixam de prestar assistência com a exclusão de atendimento e/ou preconceitos por
profissionais de saúde relacionado a seus problemas para o uso do nome social, ao
empecilho de protocolos clínicos de processo de trabalho, e a diversas situações que
acarretam riscos e discriminação.

As estratégias da Saúde da família (ESF) devem possibilitar ao usuário inde-


pendentemente do seu sexo, cor ou raça, orientação sexual e identidade de gênero o
acesso universal e contínuo que possibilitam qualidade e resoluções estratégicas. O
acolhimento deste grupo deve ter compromisso por parte da equipe de saúde, com a
construção de relação de confiança, vínculo e respeitar as necessidades do usuário
(ARAUJO, et al, 2020).

37
Contudo, a população trans sofre com os atendimentos centralizados em ape-
nas uma lógica curativista, biomédica e epidemiológica. As práticas de atendimento
na atenção básica de saúde comportam muitas vezes o enfoque no âmbito da sexua-
lidade com pouca relação com a promoção da saúde, concretizando-se por meio de
orientações acerca da prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e/ou o uso
de métodos contraceptivos (BELEM, et al,2018).

Para garantir o direito do acesso ao serviço de saúde, a Política Nacional de


Humanização valoriza todos os sujeitos e oportuna sua autonomia, amplia a sua
capacidade de transformar a realidade, com as responsabilidades compartilhadas
e da participação coletiva nos processos de gestão e de produção de saúde sua e
da comunidade (BRASIL, 2020).

Além disso, para uma assistência de qualidade a equipe de saúde deve ofe-
recer um atendimento acolhedor, obter mais conhecimento de nomenclaturas e ser-
viços relacionados às pessoas trans e travestis, manter a postura de profissionais e
deixar as pessoas livres para qualquer assunto (POP ,2020).

Após o vínculo formado e apresentação do profissional, perguntar se o paciente


tem um nome social e se prefere ser chamado por ele. O profissional deve-se atentar
a evitar o uso de pronomes e outros termos que indicam gênero binário quando es-
tiver falando com a pessoa pela primeira vez. Usar os termos que as pessoas usam
para descrever a si mesmas e a suas(seus) parceiras(os) e indicar o uso do banheiro
de acordo com a identidade gênero da pessoa, e não com o sexo de nascimento.
Incluir também placas de espaço seguro nos banheiros (POP ,2020).

É possível observar que os profissionais formados possuem um grande


domínio em realização as práticas executadas, porém eles têm uma certa dificuldade
em relação ao trabalho interprofissional ou multiprofissional, além de encontrar
vários “obstáculos” quando necessitam lidar com a população, sua cultura e suas
diversidades, sendo assim, a educação permanente em saúde é um meio que auxilia
os trabalhadores a interagir e criar novos métodos e técnicas (ALMEIDA, et al, 2016).

A Educação permanente em Saúde (EPS) foi inserida pelo Ministério da Saú-


de como uma política de saúde no Brasil por meio das Portarias nº 198/2004 e nº

38
1.996/2007, ela teve como objetivo várias questões, e uma delas é promover uma
educação que faça com que aconteça a interação entre o os profissionais e sua equi-
pe, afim de oportunizar novos aprendizados e trazer diversos conhecimentos para os
profissionais, ou seja, a educação permanente consiste basicamente como um meio
de atualização, troca de conhecimentos que tem como objetivo conquistar novas mu-
danças favorecendo novos aprendizados para os profissionais (BRASIL,2007).

Portanto, a educação em saúde é uma prática transformadora de aprendiza-


gem significativa para educação permanente. De extrema importância os serviços
de saúde devem explorar e proporcionar a reflexão para equipe de saúde sobre a
realidade dos serviços de saúde, observando o indivíduo como um todo, sua cultura,
sexualidade e paradigmas (CAMPOS, DE SENA, SILVA,

2017).

CONCLUSÃO

Diante do exposto, percebe-se que o contexto em que as pessoas trans estão


inseridas é complexo e influenciado por determinantes sociais multifatoriais que na
maioria das vezes vão contra o seu bem estar e acabam se tornando decisivos na
prevalência de quadros socialmente patológicos e aumentam a incidência da morbi-
mortalidade trans.

As políticas públicas, no que tange na garantia de acesso à saúde e orienta-


ções de condutas, ainda não contemplam todas as subjetividades e demandas que
transgêneros, transsexuais e travestis exigem dos profissionais de saúde à prestação
de cuidados que promovam a saúde, previnam, protejam e reabilitem. Além disso, os
gestores nas diferentes esferas governamentais em consonância com a visibilidade
das necessidades da população trans, precisam reformular e implantar novas linhas
que cuidado em todos os níveis de atenção à saúde que promulguem a inclusão de
um sistema de saúde mais equânime, resolutivo de forma que se comunique intrase-
torialmente e intersetorialmente em busca de integralidade da assistência em saúde
e cobertura universal.

Além disso, é indispensável que os profissionais que estão na linha de frente


ao cuidado de saúde precisam agir com ética e responsabilidade diante do cuidado

39
prestado às pessoas trans. A discriminação e não respeito às individualidades, como
o nome social e outras formas de resignação sexual podem acarretar na quebra do
vínculo com os pacientes e muitas vezes a dificuldade em aderi-los nos tratamentos
propostos, aumentando ainda mais, a exclusão, a invisibilidade dos mesmos e o dis-
tanciamento de uma assistência que acolha, ampare e apoie.

Se enaltece a importância do conhecimento por parte dos profissionais de saú-


de sobre os determinantes biopsicossociais inseridos no contexto de vida das pes-
soas trans e como ele pode ser essencial na racionalização para a implementação
de novas propostas e modelos de cuidado baseados em especificidades e demandas
que a população trans trás aos serviços de saúde.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, et al. Educação Permanente em Saúde: uma estratégia para refletir so-
bre o processo de trabalho. Ver Abeno. Jun, 2016. Disponivel em: <http://revodonto.
bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-59542016000200003> Acesso
em: 28 set.2020

ANTRA. Precisamos falar sobre o suicídio das pessoas trans. Antra Associação
Nacional de Travestis e Transexuais. Jun, 2018. Disponível em:< https://antrabrasil.
org/2018/06/29/precisamos-falar-sobre-o-suicidio-das-pessoas-trans/> Acesso em:
25 set.2020

ARAÚJO, et al. Acolhimento à população de lésbicas, gays, bissexuais e transgêne-


ros na atenção básica. Revista Enfermagem Atual In Derme, v. 92, n. 30, 2020. Dis-
ponível em: http://revistaenfermagematual.com.br/index.php/revista/article/view/637
Acesso dia 26 de Setembro de 2020.

Assassinato contra travesti e transexuais 2020. Antra Associação Nacional de Tra-


vestis e Transexuais, Rio de Janeiro, jun. 2020. Disponível em: https://antrabrasil.
files.wordpress.com/2020/06/boletim-3-2020-assassinatos-antra.pdf. Acesso em:

40
25 set. 2020

BELÉM, et al. Atenção à saúde de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e


Transexuais na Estratégia Saúde da Família. Revista Baiana de Enfermagem‫‏‬,
v. 32, 2018. Disponível em: https://cienciasmedicasbiologicas.ufba.br/index.php/
enfermagem/article/view/26475 Acesso dia 26 de setembro de 2020.

BENEDETTI, Marcos Renato. Toda feita: o corpo e o gênero das travestis. Rio de
Janeiro: Garamond, 2005. 144 p.

BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência


transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. 250 p.

BLOK, Christel J M de; WIEPJES, Chantal M; NOTA, Nienke M; VAN ENGELEN,


Klaartje; A ADANK, Muriel; A DREIJERINK, Koen M; BARBÉ, Ellis; KONINGS, Inge
R H M; HEIJER, Martin Den. Breast cancer risk in transgender people receiving hor-
mone treatment: nationwide cohort study in the netherlands. Bmj, [S.L.], p. 1-1, 14
maio 2019

BRASIL, Ministério das Mulheres e Igualdade Racial e dos direitos humanos. Presi-
dência da República Secretaria Geral Subchefia de Assuntos Jurídicos. Brasília, DF,
2016

BRASIL. Ministério da Saúde Gabinete do Ministro. Política Nacional de Educação


Permanente em Saúde. Brasília, DF,2007.

BRASIL. Ministério da Saúde. Política nacional de saúde integral de lésbicas, gays,


bissexuais, travestis e transexuais. Brasília, DF, 2013.
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009. Dispõe
sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde. Brasília, 2009.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n. 2.803/GM de de 19 de novembro de

41
2013.. Redefine e amplia o Processo Transexualizador no Sistema Único de Saúde
(SUS). Diário Oficial União 19 Nov. 2013.

BRASIL. Ministério da Saúde, Política Nacional de Humanização-HumanizaSUS, 2020.


Disponível em: https://www.saude.gov.br/saude-de-a-z/doacao-de-sangue/693-acoes-e-
programas/40038-humanizasus. Acesso dia 24 de Setembro de 2020.

CAMPOS, Kátia Ferreira Costa; DE SENA, Roseni Rosângela; SILVA, Kênia Lara.
Educação permanente nos serviços de saúde. Escola Anna Nery Revista de En-
fermagem, v. 21, n. 4, p. 1-10, 2017. Disponível em: https://www.redalyc.org/
pdf/1277/127752022009.pdf Acesso dia 28 de Setembro de 2020.

CARDOSO, Michelle Rodrigues. FERRO,Luís Felipe. Saúde e população LGBT:


demandas e especificidades em questão. Ver Psicologia: Ciencia e profissão. Bra-
sília,2012. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S1414-98932012000300003&lang=en> Acesso em: 25 set de 2020

CHRISTIAN, Robin; MELLIES, Amy Anderson; BUI, Alison Grace; LEE, Rita; KAT-
TARI, Leo; GRAY, Courtney. Measuring the Health of an Invisible Population: les-
sons from the colorado transgender health survey. Journal Of General Internal Me-
dicine, [S.L.], v. 33, n. 10, p. 1654-1660, 15 maio 2018. Disponível em: https://www.
ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC6153233/. Acesso em: 23 set. 2020.

COLLING, Leandro. Gênero e sexualidade na atualidade / Leandro Colling. - Salva-


dor: UFBA, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências; Superintendência de Edu-
cação a Distância, 2018.

DOURADO, Maria Inês Costa. Ministério da Saúde. Departamento de Doenças de


Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Vulnerabilidade ao
HIV/aids e sífilis na população de travestis e transexuais e seus modos de vida em
Salvador-Bahia, 2013. Disponível em: http://www.aids.gov.br/pt-br/ct/tc-2542012
Acesso em: 16 de setembro de 2020

42
DUARTE, Marco José de Oliveira. DIVERSIDADE SEXUAL, POLÍTICAS PÚBLI-
CAS E DIREITOS HUMANOS: saúde e cidadania lgbt em cena. Temporalis, [S.L.],
v. 14, n. 27, p. 77-98, 30 ago. 2014. Disponível em: https://periodicos.ufes.br/index.
php/temporalis/article/view/7209. Acesso em: 24 set. 2020.

FLORIDO, Lucas M. P.; ELIAN, Ethel M. H.. DESAFIOS DO RASTREIO DE CÂN-


CER DE COLO EM HOMENS TRANSGÊNEROS. Revista Cadernos de Medicina,
Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 162-164, 2019.

GATOS, Kayla C.. A Literature Review of Cervical Cancer Screening in Transgender


Men. Nursing For Women’S Health, [S.L.], v. 22, n. 1, p. 52-62, fev. 2018. Disponível
em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/29433700/. Acesso em: 20 set. 2020.

KULKAMP, Alessandra da Silva, et al. Barreiras de Acesso ao Serviço de Saúde por


Pessoas Trans no município de Florianópolis (SC), Brasil. Saúde & Transformação
Social/Health & Social Change, v. 10, n. 1/2/3, p. 130, 2019. Disponível em: http://in-
cubadora.periodicos.ufsc.br/index.php/saudeetransformacao/article/view/4512 Aces-
so dia 26 de Setembro de 2020.

LAM, June Sing Hong; ABRAMOVICH, Alex. Transgender-inclusive care. Canadian


Medical Association Journal, [S.L.], v. 191, n. 3, p. 79-79, 20 jan. 2019. Disponível
em: https://www.cmaj.ca/content/191/3/E79. Acesso em: 23 set. 2020.

LAQUER, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2001.

MENDES, Wallace Góes; SILVA, Cosme Marcelo Furtado Passos da. Homicídios da
População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais ou Transgêneros
(LGBT) no Brasil: uma análise espacial. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 25, n. 5,
p. 1709-1722, maio 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=s-
ci_arttext&pid=S1413-81232020000501709. Acesso em: 20 set. 2020.

43
MONEY, John. Hermaphroditism, gender and precocity in hyperadrenocorticism:
Psychologic findings. Bulletin of the Johns Hopkins Hospital, Baltimore, EUA, v. 96,
p. 253–264, 1955.

NJAINE, Kathie; SILVA, Anne Caroline Luz Grüdtner da; RODRIGUES, Ana Maria
Mújica; GOMES, Romeu; DELZIOVO, Carmem Regina. Atenção a homens e mu-
lheres em situação de violência por parceiros íntimos. in: elza berger salema coelho
(santa catarina). Atenção a homens e mulheres em situação de violência por parcei-
ros íntimos. Florianópolis. 2015. Cap. 4, p. 150.
POP, Protocolo Operacional Padrão de atendimento humanizado à população re-
fugiada e migrante trans e travesti na cidade de São Paulo. Disponível em: https://
www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2020/05/PROTOCOLO-OPERACIO-
NAL-PADR%C3%83O-DE-ATENDIMENTO-HUMANIZADO_ACNUR-E-PREFSP_5.
pdf. Acesso em: 20 de setembro de 2020.

ROCON, Pablo Cardozo; RODRIGUES, Alexsandro; ZAMBONI, Jésio; PE-


DRINI, Mateus Dias. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao
Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 21, n. 8, p.
2517-2526, ago. 2016. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pi-
d=S1413-81232016000802517&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 23 set.
2020.

ROCON, Pablo Cardozo; SODRÉ, Francis; RODRIGUES, Alexandro; BARROS,


Maria Elizabeth Barros de; PINTO, Getulio Sérgio Souza; ROSEIRO, Maria Carolina
Fonseca Barbosa. Vidas após a cirurgia de redesignação sexual: sentidos produzi-
dos para gênero e transexualidade. Ciência & Saúde Coletiva, [S.L.], v. 25, n. 6, p.
2347-2356, jun. 2020.

RODRIGUEZ, Ana María Mújica. Experiências de atenção à saúde e percepções


das pessoas transgênero, transexuais e travestis sobre os serviços públicos de
saúde em Florianópolis/SC 2014. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/hand-

44
le/123456789/129499 Acesso dia 24 de Setembro de 2020.

SAFFIOTI, Heleieth I. B. Rearticulando gênero e classe social. In: COSTA, Uma


questão de gênero. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos; São Paulo: Fundação Carlos
Chagas, 1992.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. 23. ed. São Pau-


lo: Cortez, 2007. 249 p

SILVA, Lívia Karoline Morais da; SILVA, Ana Luzia Medeiros Araújo da; COELHO,
Ardigleusa Alves; MARTINIANO, Claudia Santos. Uso do nome social no Sistema
Único de Saúde: elementos para o debate sobre a assistência prestada a traves-
tis e transexuais. Physis: Revista de Saúde Coletiva, [S.L.], v. 27, n. 3, p. 835-846,
jul. 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/physis/v27n3/1809-4481-phy-
sis-27-03-00835.pdf. Acesso em: 20 set. 2020.

SOUZA, Sidney Chaves. SUS: compreenda os aspectos gerais da Lei Orgânica


da Saúde nº 8.080/90.Jan, 2018. Disponível em: https://blog.ipog.edu.br/
saude/sus-compreenda-os-aspectos-gerais-da-lei-organica-da-saude-
-no-8-080-90/ Acesso em:25 set.2020.
TEIXEIRA, Flavia do Bonsucesso. Histórias que não têm era uma vez: as (in)cer-
tezas da transexualidade. Revista Estudos Feministas, [S.L.], v. 20, n. 2, p. 501-
512, ago. 2012. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/
S0104-026X2012000200011. Acesso em: 20 set. 2020.

THOMSON, Rachel et al. Health Care Needs Assessment of Gender Identity Servi-
ces. Scotphn, Glasgow, p. 25-27, maio 2018. Disponível em: https://www.scotphn.
net/wp-content/uploads/2017/04/2018_05_16-HCNA-of-Gender-Identity-Services-1.
pdf. Acesso em: 22 set. 2020.

TREVIZANI, Giovanna Bianca. Meu Corpo, Minhas Regras: A transexualidade Sob


a Luz do Direito Constitucional e as Lacunas no Estado Democrático de Direito.

45
2019. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-constitucional/
meu-corpo-minhas-regras-a-transexualidade-sob-a-luz-do-direito-constitucional-e-
-as-lacunas-no-estado-democratico-de-direito/. Acesso em: 23 set. 2020.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. Relatório descritivo projeto tran-


sexualidade e a demanda por políticas públicas no Brasil: Entre a Invisibilidade e
a Demanda por políticas públicas para homens trans. Minas Gerais: UFMG, 2015.
Disponível em: <http://www.nuhufmg.com.br/homens-trans-relatorio2.pdf> Acesso
em: 25 set. 2020

46
SIGNIFICAÇÕES IMAGINÁRIAS DE ESTUDANTES E
DOCENTES SOBRE GÊNERO POR MEIO DO CINEMA

Sabrina Copetti da Costa7


Gabriella Eldereti Machado 8
Tania Micheline Miorando 9

CINEGRAFANDO A EDUCAÇÃO
 

Ao longo da trajetória o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Ima-


ginário Social (GEPEIS), da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), vem de-
senvolvendo ações extensionistas, tendo o cinema como dispositivo formativo junto
aos professores e, mais recentemente, com estudantes do Ensino Fundamental. Em
momentos de formação continuada, o grupo tem buscado construir relações e vivên-
cias dos professores com o cinema, bem como uma aproximação das significações
imaginárias (CASTORIADIS, 1982) dos docentes sobre a sétima arte dentro e fora
da escola. 

Através do cinema, o GEPEIS vem problematizando temas que nos levem a


pensar o Imaginário Social e a compreender o que mais esteja nos intrigando. Desta-
camos alguns temas, dentre tantos outros, que transversam nosso pensar, dialogar e
agir,  como: gênero, orientação sexual, identidade de gênero, diversidade étnico-ra-
cial, infância, adolescência, inclusão e diversidade religiosa, propiciando discussões
que desenvolvam o senso crítico nos espaços de formação do grupo.

7 Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal de Santa Maria e Especializanda em Educação


pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense. E-mail: copettidacostasabrina@
gmail.com
8 Graduada em Química pelo IFFar e em Pedagogia pela UNIFACVEST. Especialista em Educação
Ambiental pela UFSM, Mestre em Educação pela UFSM e Doutoranda em Educação pela UFSM. E-mail:
[email protected]
9 Graduada em Educação Especial - Educação de Surdos pela Universidade Federal de Santa Maria e
Especialista em Educação Especial - Educação de Surdos, Mestre e Doutora em Educação pela Universidade
Federal de Santa Maria. Professora Adjunta no Departamento de Educação Especial da Universidade Federal
de Santa Maria. E-mail: [email protected]

47
Ao longo de 2019, por meio do projeto “Cinegrafando a educação – experiên-
cias formativas em cinema: onde a sétima arte chegou?”, além das formações junto
aos professores, o grupo deu continuidade às ações que foram sendo desenvolvidas
com os estudantes do quinto ano do Ensino Fundamental. Foram oficinas quinze-
nais, temáticas, onde a cada encontro um elemento do cinema foi abordado. A par-
ceria com a escola abriu a possibilidade para muitas aprendizagens para estudantes,
bolsistas e professores envolvidos nas ações de cinema, na perspectiva da arte e em
colaboração para que a Lei 13.006/14 (BRASIL, 2014), que torna obrigatória a assis-
tência de duas horas mensais de cinema brasileiro nas escolas de Educação Básica
do país, seja conhecida e cultivada.

         Neste texto visamos dividir com os(as) leitores(as) a experiência das oficinas
em que foi abordado o tema roteiro dentro da produção cinematográfica e nas quais
as ações propostas buscaram aliar as temáticas do cinema com o projeto que es-
tava sendo desenvolvido por todas as turmas da escola, intitulado “Mulheres que
Inspiram”. Desse modo, abordamos a temática específica da sétima arte ao passo
em que íamos criando espaço para o diálogo sobre questões de gênero, buscando
nos aproximarmos das significações imaginárias dos estudantes por meio de quatro
temas para os roteiros: beleza, paternidade, violência (familiar) e trabalho doméstico.
Considerando o Cinema aliado à teoria do Imaginário Social, baseada no autor Cor-
nelius Castoriadis (1982), temos uma possibilidade de movimento instituinte dentro
da escola, como um dispositivo de formação (SOUTO et al, 1999).

 Criando roteiros e dialogando sobre questões de gênero

Começamos a primeira oficina do ano de 2019, buscando conhecer um pou-


co o repertório dos estudantes. Para isso, realizamos a dinâmica “Eu já” na qual,
sentadas em círculo, cada criança retirava de uma caixa uma imagem de capa de
filme, série ou desenho animado e mostrava para os colegas, comunicando se já
conhecia ou não a história que ali se contava. Em seguida, a turma criou um quadro
com as imagens, classificando essas produções. Realizamos, então, uma roda de
conversas sobre as classificações, o conceito de cinema para eles, seus gostos,

48
seus hábitos, se frequentavam ou não salas de cinema etc. No segundo momento
da aula, foram exibidos alguns filmes curtos dos Irmãos Lumière, os quais foram
analisados pelos estudantes em exercício de comparação das diferenças com as
produções atuais. Ainda abordando a história do cinema, as crianças conheceram
do que se trata um taumatrópio e construíram os seus, tendo como tema os Direitos
Humanos.

O desenvolvimento da temática “roteiros”, por sua vez, começou a partir da


segunda oficina com a turma e continuou sendo abordada nos encontros seguintes.
Como primeiro movimento em torno do assunto, procuramos saber quais os conhe-
cimentos prévios dos discentes a respeito da criação de roteiros a partir de uma di-
nâmica na qual eles escreviam uma palavra que acreditavam representar o conceito
de roteiro. Em seguida, colaram em um cartaz e realizamos uma leitura coletiva do
texto que se criou. Algumas das palavras levantadas por eles para significar roteiro
foram: cena, história, personagem, filme, encenação, teatro, falas, imagens, falas de
personagens, palavras, uma história que diz tudo sobre o filme.

Percebemos que a turma tinha uma ideia do que se tratava um roteiro, mas
faltavam ainda algumas informações técnicas que seriam importantes para que os
estudantes pudessem depois criar seus próprios roteiros de maneira mais autôno-
ma. Em vista disso, passamos então ao segundo momento da aula, a exibição de
um vídeo sobre o trabalho de roteirista. Optamos por um audiovisual em que a rotei-
rista era uma mulher para que a turma pudesse desconstruir alguns estereótipos de
gênero ligado às profissões e pudessem ver uma mulher ocupando esses espaços.
Os estudantes demonstraram ter gostado do vídeo e, então, os convidamos a acres-
centar novas palavras ao cartaz a fim de construirmos juntos um conceito de roteiro.
Foram acrescentadas, por eles, palavras como “objetividade” e “descrição”, ambas
fundamentais para a ideia de criação de roteiros cinematográficos.

Indo ao encontro do projeto institucional “Mulheres que Inspiram”, o terceiro


momento foi a proposição da criação de pequenos roteiros para uma cena de filme
em que os alunos se dividiram em quatro grupos para que cada um deles criasse a
partir de uma das temáticas: beleza, paternidade, violência (familiar) e trabalho do-

49
méstico. O projeto guarda-chuva vinha trabalhando com cada turma da escola uma
mulher que trouxe sua contribuição à sociedade, tendo entre elas cientistas, artistas,
esportistas ou qualquer outra profissão lembrada pelas crianças. Com as temáticas
dos roteiros, almejamos começar algumas problematizações de questões que envol-
vem diretamente a vida das mulheres e que muitas vezes são fatores que dificultam
sua participação social.

Cinema e a experiência ético e estética

  Passamos neste trecho, a refletir e caracterizar a concepção de formação e


experiência ético e estética com o cinema na docência. O convívio formativo com os/
as professores/as no projeto ocorreu por meio de oficinas de formação continuada,
no qual puderam compreender melhor esses conceitos teóricos intercalando com
aprendizagens sobre gênero, cinema e técnicas de produção cinematográfica. 

Desse modo, começamos a problematizar sobre a relação que envolve as sig-


nificações imaginárias sociais sobre gênero. Consideramos os movimentos de nor-
matização dos corpos são fruto das relações sociais, reproduzindo modelos de ser,
viver e ver o mundo (HALL, 1997). Apontamos algumas representações de gênero
que fazem parte de nosso cotidiano, como: meninos usam roupas azuis e meninas
usam roupas cor de rosa. Meninas não podem jogar futebol. Meninos não podem
dançar Ballet. 

Mulheres devem ser boas esposas e cuidar dos filhos. A paternidade é facultati-
va. Mas qual é o conceito de família mesmo? Não é Trava, nem Traveco, respeita as
Travestis. Não há nada de estranho o menino brincar com uma boneca. Certamente
essas representações nos remetem a imagens cotidianas, que conhecemos e convi-
vemos diariamente, e a escola é um espaço no qual estão presentes. Na maioria das
vezes, a problematização fica afastada do contexto escolar.

Ao trazer essas representações de gênero podemos notar a questão do insti-


tuído, pois é evidente a força da constituição de uma cultura autoritária nessa relação
entre homens e mulheres, que influencia nas concepções de identidade de gênero, e

50
desconsidera ou marginaliza as identidades que se desvinculam da binaridade (ho-
mem e mulher). Essas representações reproduzem imagens de gênero que fazem
parte da sociedade, e particularmente transitam nos corredores das escolas. Assim,
pode-se destacar o seguinte trecho de Louro (1997, p.27), onde complementa de
certa forma as discussões iniciais sobre o entrelaçamento das problemáticas.

 
Sujeitos masculinos ou femininos podem ser heterossexuais, homossexuais,
bissexuais (e, ao mesmo tempo, eles também podem ser negros, brancos,
ou índios, ricos ou pobres etc). O que importa aqui considerar é que — tanto
na dinâmica do gênero como na dinâmica da sexualidade — as identidades
são sempre construídas, elas não são dadas ou acabadas num determinado
momento. Não é possível fixar um momento — seja esse o nascimento, a
adolescência, ou a maturidade — que possa ser tomado como aquele em
que a identidade sexual e/ou a identidade de gênero seja “assentada” ou es-
tabelecida. As identidades estão sempre se constituindo, elas são instáveis e,
portanto, passíveis de transformação.

Este processo de (des) construção é fundamental para refletir sobre a escola


no contexto da diversidade, modificando este espaço que possui em sua concepção
e atuação um sentido de classificar, normatizar, produzindo saberes e sujeitos, ou
seja, corpos dóceis (FOUCAULT, 2012). Sobressaindo-se dessa forma o caráter polí-
tico da prática docente, que atravessa silêncios, estruturas, e relações, sejam elas de
poder, de deslocamentos ou transformações, pois como Foucault menciona (1988,
p.30) “não existe um só, mas muitos silêncios”. Ou seja, propor que as formações
em relação às questões contemporâneas ocorram por meio do questionamento do
modelo instituído, machista, heteronormativo e branco (CÉSAR, 2009).

Na organização curricular da educação no Brasil temos os temas transversais,


no qual as questões de gênero aparecem no volume que trata da “Orientação Se-
xual”, juntamente à Prevenção de Doenças Sexualmente Transmissíveis/AIDS (BRA-
SIL, 2000). Vale destacar algumas discordâncias em relação ao termo “orientação
sexual”, pois muitos debates referentes ao termo mostram sua limitada abrangência.
Embora haja certo avanço em relação à questão de gênero e outras questões, as
temáticas deveriam estar consideradas em todo o documento de forma mais clara e

51
mais contundente, e estar mais presente nos cursos de formação de professores(as),
tanto inicial, como continuada, o que ainda não acontece de forma efetiva, ainda é
um tabu.

Nesse sentido, destacam-se as reformas educacionais da década de 1990


onde se incluem as questões de gênero e sexualidade nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs), representando um avanço em relação à adoção de uma perspec-
tiva de gênero nas políticas educacionais, orientando o currículo das escolas brasilei-
ras na inclusão da perspectiva de gênero. E assim se questiona a rigidez dos padrões
de conduta estabelecidos para homens e mulheres, incentivando a transformação do
paradigma instituído, indo ao encontro da diversidade, o respeito pelo outro sexo e
pelas variadas expressões do feminino e do masculino, conforme apontado no PCN
que trata da “Orientação Sexual” (BRASIL, 2000, v. 10).

Uma formação estética se dá por processos que englobam sensações, sen-


sibilidade, percepções, desenvolvimento de outros sentidos para o conhecimento.
Dessa forma, a experiência estética e o imaginário complementam-se na medida em
que utilizam de outros critérios para movimentar o seu fazer e ser científico, pois o
imaginário se relaciona com a sociedade através de significações que produzem sig-
nificados às práticas sociais materializadas de diversas formas (OLIVEIRA, 2014). E
por isso, encontra no estético e na ética uma possibilidade de conversar com outros
modos de relação dos sujeitos com o mundo, podendo compreender melhor esta re-
lação no seguinte trecho de Hermann (2005, p.33):

 
As relações entre ética e estética não se apresentam do mesmo modo em seu
desenvolvimento histórico, oscilando muitas vezes entre relações ambíguas,
negativas, opostas ou complementares, até chegar aos processos de esteti-
zação da ética, subvertendo a relação estabelecida pela metafísica, pela qual
a estética não poderia justificar o bem viver. Considerando que o termo esté-
tico não é unívoco, cabe uma breve referência ao seu significado, de modo a
explicitar por que hoje o estético ressurge como uma forma de lidar com as
exigências éticas da pluralidade.

Ao buscar propor uma formação através da experiência estética, pensa-se na

52
realização de um processo (re)significante da profissão, na medida em que o ima-
ginário de cada um se reconstrói, trazendo elementos que vão por algum motivo se
perdendo ou se apagando na trajetória docente, fazendo com que se aloje  o descon-
tentamento e o pessimismo em relação à profissão.

Nesse sentido, fortalecemos o reconhecimento da estética, possibilitando que


esse protagonismo em muitas vezes esquecido, rompe as barreiras do instituído. A
criação de experiências do sensível nos leva ao acesso à imaginação provocativa ao
que nos é encarado como normal. A formação estética atua justamente nesse senti-
do, ela é provocativa, ela estranha, e toca o sensível, pois como diz Hermann (2005,
p.105),

 
Desse modo, atua numa dupla dimensão: em primeiro lugar, contribui para
desenvolver a sensibilidade para as diferenças de percepção ou de gosto,
auxiliando na contextualização de princípios éticos com uma força que o cog-
nitivo não consegue produzir; e, em segundo lugar, cria condições para o
reconhecimento do outro, evitando os riscos da uniformização diante do uni-
versalismo.

Assim, podemos provocar um processo de uma formação estética utilizando o


cinema, possibilitado devido, segundo Hermann (2005, p.39) pelo “impulso da apa-
rição, do efêmero que a arte carrega a possibilidade de fazer emergir aquilo que
escapa à reflexão, deixando aparecer algo que ainda não existe”. O cinema contribui
para compreensão do espaço da formação e da escola pelo simbólico, pela força
da imagem, fazendo concretizar a formação estética, que se configura como aponta
Hermann (2005, p.35) pelo “abandono do conceito para dar lugar à força imaginativa
e à sensibilidade”.

O cinema movimenta-se no sentido de promover a experiência estética, que


provoca os sentidos, as relações, do estranho ao inesperado como menciona Her-
mann (2014). Esse estranhamento atua na perspectiva do reconhecimento da alte-
ridade, “(...) contra os aspectos restritivos da normalização moral, forçando a rever
nossas crenças e o respeito exacerbado as convenções” (HERMANN, 2014, p. 11)

53
Conclusão

 Ao dispor do trabalho com o tema de gênero presume-se que os(as) educan-
dos e docentes, estejam dispostos a atuar em outra lógica, numa (des)construção
necessária, e com isto se reconstrói o imaginário social de naturalização disciplinar e
normatizadora representadas nas instituições escolares e sociedade. Mas ainda es-
tamos em um caminho inicial, um exemplo disso, são os cursos de formação docente
que não abrangem de forma significativa as temáticas de gênero, ficando de fora dos
currículos questões importantes sobre o cotidiano escolar, e também de relevância a
formação dos(as) profissionais da educação.

Devido a isto, a formação docente deve possibilitar uma base teórica e pro-
blematizadora para o desenvolvimento deste trabalho nas escolas e outros espaços
educativos, tendo como compromisso o fortalecimento do processo de transformação
crítica dos indivíduos e fortalecimento das diversas identidades de gênero. Buscando
(re) construir os papéis sociais instituídos, através da ação educativa como forma de
construção de uma sociedade composta de relações de respeito e valorização da
diversidade.

Sendo necessário que temas como os que tratamos sejam inseridos na forma-
ção, abordando os temas de gênero que demandam de uma sensibilidade e disposi-
ção para desconstruir as representações sociais enraizadas historicamente e cultu-
ralmente. Ressaltamos algumas medidas que se fazem importante no contexto atual,
como a incorporação de políticas públicas como no caso das ações afirmativas, por
exemplo, o uso do Nome Social por pessoas Transexuais, Travestis, etc. e cotas para
ingressos de estudantes negros (as) e indígenas nas universidades; políticas para
punição da violência contra as mulheres, e comunidade LGBTQI+, entre outras.

Em relação à Lei nº 13.006 (BRASIL, 2014), mesmo enfrentando problemas


desde a sua aprovação e implementação, ainda assim é uma vitória, quando pen-
samos num viés simbólico que o cinema pode produzir nas comunidades onde está
inserido, formando um espaço coletivo no qual diversos temas podem ser contextua-

54
lizados, muitos espectadores estarão vendo sua realidade cotidiana na tela, podendo
pensar sobre ela, e modificá-la, a cultura tem esse poder de construção. 

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 13.006, de 26 de junho de 2014. Acrescenta § 8o ao art. 26 da Lei
no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da edu-
cação nacional, para obrigar a exibição de filmes de produção nacional nas escolas
de educação básica. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-
2014/2014/Lei/L13006.htm. Acesso em: 09 de out de 2020.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:


pluralidade cultural e orientação sexual. 2 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

CANTON, Fabiane Raquel; RECH, Indiara; PUJOL, Maristela Silveira; OLIVEIRA,


Valeska Fortes de. Ruídos na tela... o cinema e a obrigatoriedade nas escolas. In:
Cinema e educação: a Lei 13.006 Reflexões, perspectivas e propostas.  FRESQUET,
Adriana. (Org.) Belo Horizonte, MG. Universo Produções, 2015.

CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. 3ª ed. São Paulo:


Paz e Terra, 1982. 

CÉSAR, Maria Rita de Assis. Gênero, sexualidade e educação: notas para uma “Epis-
temologia”. Educar. Curitiba, nº. 35, p.37-51, 2009. Editora UFPR.

BARBOSA, Maria Carmem Silveira.  SANTOS, Maria Angélica dos. (Orgs.) Cinema
e Educação: dentro e fora da lei. Porto Alegre: UFRGS/Programa de Alfabetização
Audiovisual, 2014.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Vol. 1: A vontade de saber. 11a ed. Rio
de Janeiro: Graal, 1988.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhe-


te. 40 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.FRESQUET, Adriana; MIGLIORIN, Cezar. Da
obrigatoriedade do cinema na escola, notas para uma reflexão sobre a Lei 13.006/14.

55
In:  FRESQUET, Adriana. (Org.) Cinema e educação: a Lei 13.006 Reflexões, pers-
pectivas e propostas. Belo Horizonte, MG. Universo Produções, 2015.

HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da


Silva e Guacira Lopez Louro. Rio de Janeiro: DP & A, 1997. 

HERMANN, Nadja. Ética e estética: a relação quase esquecida. Porto Alegre: EDI-
PUCRS, 2005.

HERMANN, N. Ética e educação: outra sensibilidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2014

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis, RJ: Vozes,


1997.

MORIN, Edgar. O cinema ou o homem imaginário. Lisboa: Relógio D´Água, 1997.

NÓVOA, A. Formação de professores e profissão docente. In: (Org.) Antônio Nóvoa.


Os professores e a sua formação. 2 ed. Lisboa: Dom Quixote, 1995.

OLIVEIRA, Valeska Maria Fortes de. Dispositivo grupal e formação docente. Educare
– Revista de Educação. Vol. 6 – Nº 11 – 1º Semestre de 2011.

OLIVEIRA, Valeska Fortes de. Imaginário, cotidiano e educação: por uma ética do
instante. Cadernos de Educação. FaE/PPGE/UFPel. Pelotas [48] – 18- 31maio/agos-
to 2014.

SERRES, Michel. Polegarzinha. Tradução Jorge Bastos. Rio de Janeiro: Bertrand


Brasil, 2013. 

SOUTO, Marta. El carácter de “artifício” Del dispositivo pedagógico em la formación


para el trabajo. Buenos Aires: Facultad de Filosofia y Letras, 2007.

SOUTO, Marta et al. Grupos y Dispositivos de Formación. Ediciones Novedades


Educativas, Buenos Aires, Argentina, 1999.

56
ESTUDOS CULTURAIS E FEMINISMO: RUPTURA
E DESENVOLVIMENTO

Simone Munir Dahleh10

INTRODUÇÃO

O movimento feminista, como qualquer outra organização em que há relações


de poder, não é caracterizado por constituir uma unidade. Sua narrativa é construida
por conflitos e algumas contradições.

Para suscitar tal discussão, propomos apresentar alguns marcos principais dos
estudos (culturais) feministas11, tendo como norte a “incursão” do feminismo nos es-
tudos culturais. É importante sinalizar que o olhar assumido pelo texto é com relação
à tradição anglo-saxônica dos estudos culturais.

Cabe ainda ressalvar, que reconhecemos a diferença tanto em termos


teóricos quanto políticos do Norte e Sul global. Temos a consciência do apa-
gamento das reivindicações dos estudos feministas emergentes do Sul12
. E apesar de necessários e relevantes, optamos aqui pela narrativa delimitada dos
estudos culturais feministas anglo-saxônico - principalmente, por possuir maior do-
mínio sobre.

A relação entre os estudos culturais e feminismo adquire relevância na área


da Comunicação, principalmente quando falamos de estudos de recepção. Os sen-
tidos e práticas femininas, anteriormente invisibilizados, passam a ser temas rele-
vantes para as produções científicas e adquirem legitimidade a partir dos estudos
10 Publicitária, Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria, Doutorando em
Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: [email protected]
11 Escosteguy (2018), afirma que os estudos inaugurais das feministas do CCCS, abrem brechas para
o desenvolvimento dos estudos culturais feministas. Disponível em: https://www.compos.org.br/anais.php
Acesso: 1 out. 2020.
12 Uma regressão mais detalhada sobre as reivindicações feministas Norte e Sul global pode ser encon-
trado em: DAHLEH, Simone Munir. FEMINISMO(S) MIDIÁTICO(S): APROPRIAÇÃO DE MULHERES A
PARTIR DO PROGRAMA TELEVISIVO AMOR & SEXO, dissertação de mestrado, 2020.

57
culturais. Dessa forma, torna-se pertinente um olhar mais atento ao desenvolvimen-
to do feminismo como teória e prática dentro dessa linha de estudos.

Para aborar a relação entre feminismo e tal vertente de estudos, propomos


apresentar a “ruptura” epistemológica que o feminismo provoca nos estudos cultu-
rais, construindo uma narrativa apresentada pelas estudiosas presentes no Center
for Contemporary Cultural Studies – CCCS, assim como em suas pesquisas desen-
volvidas no Centro da Universidade de Birmingham. Nosso objetivo é tratar de modo
amplo, o impacto do feminismo nos estudos culturais e, de modo mais espacífico, do
desenvolvimento da pesquisa que assume esse viés dentro do CCCS.

Objetivamos ao final do texto, abordar o impacto que o feminsmo provoca nos


estudos culturais. Sua relevância prática, com relação à valorização da esfera priva-
da como problemática de pesquisa e sua especificidade epistemológica, que desafia
as lógicas da ciência “neutra”, criando um novo modo de produção de conhecimento,
legitimando os sentidos, emoções, identidades e subjetividades. Ademais, procura-
remos fazer uma autoreflexão – própria dos estudos culturais feministas, sobre a
epistemologia feminista.

ESTUDOS CULTURAIS E FEMINISMO

O Center for Contemporary Cultural Studies – CCCS é formado em 1964. A ca-


racterística marcante dos estudos culturais está relacionada a constituição de balizas
teóricas associadas à época vivida. O projeto intelectual muda conforme a conjuntura
do momento, indo em direção oposta às ciências mais fixas e imutáveis, “mudanças
de uma problemática transformam a natureza das questões propostas” (HALL, 2003,
p. 131). Outra especificidade dos estudos culturais é o seu caráter aberto e inter-
disciplinar. Entretanto, as intelectuais mulheres do CCCS, ao tentarem introduzir a
problemática das questões de gênero dentro do centro, perceberam resistências e
dificuldades (DÍAZ, 2009).

Em especial, a partir da “virada cultural”, a ênfase das pesquisas passa a estar


centrada nas questões sobre a(s) linguagem(s) e, de modo mais amplo, sobre a pro-
dução de sentido e representação.

Os estudos culturais ultrapassam a análise do conteúdo da produção cultural e

58
buscam compreender os processos discursivos por meio dos quais objetos e identi-
dades são formadas e constituem sentido(s) (DÍAZ, 2009, p. 420).

Hall (2003, p. 208-209) aponta que o trabalho dos estudos culturais foi inter-
rompido diversas vezes por fatores externos, uma dessas interrupções foi a causada
pelo feminismo. As feministas chegaram como que de surpresa, “sem serem con-
vidadas”, arrombando as janelas dos estudos culturais: “chegou como um ladrão à
noite, invadiu; interrompeu; cagou na mesa dos estudos culturais” (HALL, 2003, p.
209). Antes de seguir nosso pensamento, é importante sinalizar aqui que, apesar
de Hall se referir ao feminismo como algo externo, as feministas já realizavam estu-
dos dentro do CCCS neste período. Isso pode ser constatado por meio do relato de
Brunsdon (1996, p. 280):

Na primeira vez em que li essa avaliação, eu queria esquecê-la imediata-


mente. Negá-la, ignorá-la, desconhecê-la – não reconhecer a agressão ali
contida. Não tanto para negar que as feministas do CCCS, durante os anos
70, haviam feito um poderoso desafio aos estudos culturais, na forma como
estavam constituídos naquele momento e naquele lugar, mas para negar que
tivesse acontecido da forma ali descrita.

É verdade que poucas mulheres trabalhavam no centro. Entretanto, afirmar que


o feminismo chegou como uma surpresa inconveniente, foi recebido com espanto
pelas estudiosas que participavam ativamente do centro de investigação.

Desde a instauração do CCCS (1964) até a data da formação do Women’s


Studies Group (1974), apenas duas ou três mulheres faziam parte do centro, diante
de cerca de vinte homens. Elas trabalhavam em vários subgrupos de estudos que se
formavam na instituição, mas em nenhum deles observavam o interesse em estudar
as mulheres como sujeito de pesquisa.

As estudiosas se encontravam em uma situação de isolamento, enquanto os


homens do centro discutiam os textos teóricos e acadêmicos e, sobretudo, demar-
cavam as problemáticas a serem investigadas. As pesquisadoras começaram a per-
ceber que havia uma ausência estrutural importante sobre questões referentes às
mulheres naqueles estudos (DÍAZ, 2009).

59
Com o apoio do Women Liberation Movement e a chegada em 1974 de mais
mulheres interessadas em pesquisar sobre mulheres, as pesquisadoras organiza-
ram-se para criar o Women’s Studies Group. O grupo inicialmente estava aberto à
participação de homens e mulheres. O primeiro homem que se juntou ao grupo, fez
isso no segundo semestre do ano de 1975 (DÍAZ, 2009).

Segundo Escosteguy (2018), as primeiras produções no CCCS com a temática


feminina, de um modo geral, preocupavam-se com a imagem da mulher produzida
pela mídia e como tal discurso reforçava papéis tradicionais e machistas de gênero.
Essas primeiras análises também preocupavam-se com a forma homogênea em que
as mulheres eram apresentadas, desconsiderando as diferenças raciais, de classe,
de sexualidade... Apesar dessa ênfase estar sob a mirada das pesquisadoras femi-
nistas, o grupo ainda trabalhava fechado na categoria universalizante de mulher, no
singular. Neste momento inicial, destaca-se o trabalho de Angela McRobbie e Jenny
Garber (1975) sobre a cultura juvenil. Por meio de entrevistas com adolescentes, as
autoras concluem que a cultura das adolescentes estava centrado na relevância de
ter um companheiro e na importância de suas aparências. Segundo as autoras, isso
era resultado da opressão vivenciada por esse grupo.

Nesse período inaugural, as pesquisadoras relatam uma preocupação e um


caráter ambíguo do grupo: possuía a função de apoio mútuo entre seus membros, o
que gerava problemas tanto em termos de trabalho quanto na maneira como elas o
realizavam. O dilema era: como mulheres poderiam ser o sujeito e o objeto de seu
próprio estudo. Isso gerava uma tensão, mas também lhes dava o impulso político
para realizar suas pesquisas (DÍAZ, 2009). As pesquisadoras feministas estavam
desafiando as lógicas da “ciência neutra” e validando os aspectos subjetivos dos su-
jeitos como parte do desenvolvimento do conhecimento científico.

Em junho de 1976, as mulheres do grupo decidem criar um fórum fechado


exclusivamente de mulheres para mulheres. Essa exclusão dos homens foi uma es-
tratégia para ampliar a expressão das mulheres, para que as vozes femininas opri-
midas - pelo poder patriarcal, pudessem falar por si mesmas e constituir confiança
(R. Larne apud BRUNSDON, 2007). Essa definição – teórica e política, separatista,
foi importante para que as mulheres compreendessem suas situações e pudessem

60
criar suas próprias análises (Mitchell apud BRUNSDON, 2007). Grupos minoritários,
geralmente necessitam de um espaço próprio para produzir conhecimento. A ciência
é um campo estruturado por relações de poder e, por isso mesmo, os outros – não
abarcados em uma determinada forma de fazer ciência, reivindicam um lugar diferen-
te, sem vozes dominantes.

Em 1978, o Women’s Studies Group organizou a primeira antologia de estu-


dos culturais focada exclusivamente em estudos femininos, intitulado: Women Take
Issue: Aspects of Women’s Subordination (1978). O livro não apresenta nenhum dos
membros de seu grupo editorial como editor principal, limitando-se a oferecer uma
lista de autores na primeira página. O primeiro ensaio explica como o volume foi pro-
duzido, isto é, por um grupo de pesquisadoras e pesquisadores do Women’s Studies
Group (nove mulheres e dois homens). A coletânea conta a história do Women’s Stu-
dies Group, as motivações e os desafios internos do coletivo.

Women Take Issue constitui a décima edição de Working Papers in Cultural


Studies – revista anual do Centro. O Women’s Studies Group afirma que das nove
edições anteriores, só haviam sido publicados quatro artigos relacionados aos estu-
dos de mulheres. A invisibilidade das mulheres nos trabalhos do Centro é a motivação
principal para construção dessa coletânea. Essa ausência é resultado de complexos
fatores que vão sendo detalhados ao decorrer da obra (DÍAZ, 2009).

O objetivo central do livro é político. Women Take Issue busca questionar mui-
tas das noções existentes na sociedade sobre o papel e a construção do sexo e do
gênero, como tais noções são adquiridas e transmitidas,

através de las preguntas que formula el feminismo, y de las ausencias que


detecta se va constituyendo la investigación feminista y los estudios de la
mujer como uno de los aspectos de la lucha por transformar la sociedad con
el fin último de que los ‘estudios de la mujer’ lleguen a ser algo innecesario
(Women’s Studies Group, p. 7, 1978 apud DÍAZ, p. 427, 2009).

As dificuldades assumidas nessa primeira analogia diziam respeito as seguin-


tes pautas: a quem interessava o que se estava produzindo? E para quem se estava
falando? Isso, de certa forma, demonstrava a insegurança dessas mulheres em um

61
campo dominado por vozes masculinas e de pouco espaço para a presença femini-
na. Mas também, revelava a autoreflexividade do grupo.

O principal desafio, nessa coletânea, era construir bases conceituais que pu-
dessem centrar em uma análise feminista. Porém, assumir tal compromisso, era res-
tringir as preocupações centradas exclusivamente nas mulheres, que por um lado,
representou desafiar os paradigmas já estabelecidos no Centro de investigação e por
outro, abriu brechas para demarcar um novo campo de estudos, delimitando diferen-
tes objetos de pesquisa.

Women Take Issue fez com que o feminismo fosse mais aceito dentro do CCCS
e que membros do grupo pudessem ter a experiência de politização (DÍAZ, p. 430,
2009).

A segunda antologia Off-Centre: Feminism and Cultural Studies (1991), busca-


va continuar o trabalho coletivo desenvolvido nos subgrupos do centro. A motivação
para a publicação dessa segunda coletânea feminista, foi a comemoração dos dez
anos de publicação de Women Take Issue, e, de certa forma, traz uma retorspectiva
dos estudos feministas dentro do CCCS (DÍAZ, 2009).

Em Off-Centre, as pesquisadoras esclarecem que a relação entre feminismo


e estudos culturais nem sempre é uma relação conciliadora, ressaltam ainda, que
essa narrativa não é linear nem unificada. Tanto no que diz respeito às práticas de
trabalho, quanto aos pontos de vista intelectuais e políticos. Mas, ao mesmo tempo,
afirmam que essa segunda antologia foi produzida com um forte compromisso de
aperfeiçoar essa relação (DÍAZ, 2009).

Nessa coletânea, segundo Díaz (2009), as estudiosas não se concentram ape-


nas em documentar a opressão das mulheres, mas também, começam a desenvol-
ver teorias mais gerais para explicar como e porquê se formava a subordinação entre
os gêneros.

As direções que as pesquisadoras buscam para explicar as relações de gênero


variam: algumas optam por analisar pelo viés marxista, destacando a opressão de
assalariados e a posição das mulheres trabalhadoras, tanto no ambito doméstico
quanto fora de casa – dupla jornada, outras procuram explicar as opressões pelas

62
estruturas do sistema patriarcal e algumas, se focam em analisar a subordinação
feminina pela perspectiva dos marcadores sociais, como raça, sexualidade e divisão
de classe.

As autoras de Off-Centre relatam o aumento expressivo do impacto do feminis-


mo dentro dos estudos culturais. O movimento feminsita foi importante na delimita-
ção de caminhos para a análise da posição das mulheres na sociedade em espaços
institucionais. Além de apontar a falta de atenção aos estudos de gênero dentro das
análises e debates, os estudos feminsitas ainda introduziram novos eixos de deba-
tes, como a violência masculina, sexualidade e reprodução (DÍAS, 2009).

Os estudos feministas desse primeiro período (década de 1970) no CCCS,


segundo Escosteguy (2016, p. 66), privilegiavam uma posição de equivalência entre
mulheres e feministas, mostrando como estamos inseridas numa mesma categoria,
no qual sofremos as consequências de uma sociedade patriarcal. Essas análises
objetivavam mostrar como os discursos dominantes da mídia reforçavam os papéis
desiguais e opressores de gênero. E, embora tivessem a motivação de demonstrar
essas desigualdades entre os homens e mulheres, estabeleciam uma unidade unifi-
cadora e universalizante.

Isso muda na década de 80, quando se questiona sobre tal universa-


lização. O foco das questões de desigualdades de gênero se desloca para
a valorização das diferenças em torno da categoria mulher. Passam a ser
destacadas, principalmente, questões de raça, geração e orientação sexual. Obvia-
mente, a questão da classe estava desde o início no horizonte dessas análises13.

Nessa fase, além da incorporação de novos temas, as experiências das mu-


lheres diante dos textos midiáticos passam a serem relevantes para as pesquisas.
Ou seja, o sentido de um texto não está necessariamente em si mesmo, e, sim, na
articulação entre sujeitos, textos e seus contextos (ESCOSTEGUY, 2016, p. 68).

O feminismo reorganizou a agenda de estudos do CCCS, introduzindo a ex-


pansão da noção de poder, questões políticas associadas ao pessoal, estudos da
13 Como na obra clássica dos Estudos Culturais, The Uses of Literacy, de Richard Hoggart (1958), e mais
tarde o trabalho Resistance through rituals: youth subcultures in postwar Britain, de Stuart Hall e Tony Jeffer-
son (1976).

63
subjetividade e da psicanálise. Houve uma consolidação pelo interesse em estudar a
vida cotidiana das pessoas – de onde emanaria as desigualdades, o modo de ser do
sujeito e a experiência vivida.

Fazer as mulheres falarem de suas experiências pessoais fizeram com que


elas reconhecessem aquilo como construções sociais – e políticas, e não como natu-
ral ou pessoal. Não questionar o pessoal é ignorar a especificidade de opressão que
é imposto no modo como vivemos. Estar atenta às experiências femininas é a chave
para entender o que determina que nossas experiências sejam opressivas e subordi-
nadas, de modo a modificá-las em um nível que ultrapasse o individual.

É possível dizer que as pesquisadoras feministas do CCCS abriram espaço


para a construção de uma epistemologia feminista.

EPISTEMOLOGIA FEMINISTA: DA ESPECIFICIDADE À AUTOCRÍTICA

O modo de fazer pesquisa feminista contradiz a tradição filosófica. Opondo


razão x emoção, público x privado, as feministas do CCCS desafiam essa lógica,
legitimando o conhecimento subjetivo, criando uma ruptura no modo de produzir co-
nhecimento. As mulheres transformam os saberes ao incorporar os espaços públicos
e a produção científica.

Falar em ruptura feminista implica pensar em uma (ou várias) epistemologia/


projeto feminista de ciência (RAGO , 2019). Não podemos negar que existem espe-
cificidades no modo de fazer ciência feminista.

A ciência “neutra” e até pouco tempo, única forma que se tinha conhecimento
de reflexão científica era a masculina. As feministas rompem com esse modo de
pensar e propõem um modo alternativo de produzir conhecimento. As pesquisadoras
trazem consigo uma experiência diferente da masculina e isso produz efeitos trans-
formadores e reais que vertem em suas investigações.

As mulheres trabalham na via da produção de um contradiscurso, convertendo


o conhecimento até então estável e inquestionável. “O feminismo não apenas tem

64
produzido uma crítica contundente ao modo dominante de produção do conhecimen-
to científico, como também propõe um modo alternativo de operação e articulação
nesta esfera” (RAGO, 2019, p. 373).

Desestabilizando as noções fixas, as pesquisadoras transformam o saber “uni-


versal”, operando e modificando as categorias excludentes, suas críticas “incidem na
denúncia de seu caráter particularista, ideológico, racista e sexista” (RAGO, 2019, p.
374). Além disso, trazem para o campo científico novos temas de estudos, anterior-
mente invisibilizados por essa mesma lógica inquestionável - da objetividade e da
neutralidade, que garantia a veracidade do conhecimento.

A crítica feminista traz à tona as diferentes relações de poder. O âmbito privado


passa a ser visto, as multiplicidades também. O sujeito deixa de ser ponto de partida
e passa a ser considerado dinamicamente em toda a sua complexa inserção nas
relações sexuais, sociais, étnicas, religiosas... com os estudos feministas, as identi-
dades são pensadas como construídas social e culturalmente.

Sandra Harding (2019), assim como outras feministas, questionam se o femi-


nismo não estaria também propondo um tipo de poder-saber que tanto criticamos.
Como Rago (2009) comenta, todos os grupos minoritários – relativamente organi-
zados, estão lutando também por um lugar de reconhecimento no campo científico.
Não podemos negar que mesmo grupos minoritários – como no caso das mulheres,
possuem diferentes relações de poder dentro dele. Ser mulher branca, ser mulher
negra, ser de classe média/alta/baixa, ser lésbica, ser indígena... são dimensões que
produzem níveis diferentes de desigualdades.

Ao produzir um tipo de conhecimento, obviamente, estamos relacionados com


uma certa forma de poder. Daí a importância também em pensar e pôr em prática estudos
interseccionais, para que não cair no abismo de criar o que nós mesmas criticamos. Fa-
lamos de intersecções porque estruturas de classe, raça e gênero não podem ser consi-
deradas como independentes, pois estão articuladas, se constituem e são constitutivas
uma das outras (BRAH, 2006). Entretanto, essa articulação não ocorre sem desafios14.

14 Apesar do texto não se aprofundar nas questões interseccionais, torna-se importante demarcar a pes-
quisadora que produz esse texto. Sou branca, universitária, logo, estou inserida em um grupo privilegiado.

65
Não podemos negar que como mulheres, somos grupos minoritários e iremos
sofrer opressões e desafios com relação às pesquisas, como relatado no desenvolvi-
mento dos trabalhos das feministas do CCCS. Porém, não podemos apagar as espe-
cificidades e as diferenças entre as mulheres. Torna-se essencial então, nos estudos
(culturais) feministas, perceber e refletir o que a ciência faz e não faz, também. O que
fica de fora destas teorias e as razões dessas exclusões e inclusões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Da invisibilidade da produção feminista dos estudos culturais anglo-saxônicos,


até a criação de novas categorias de análise, o texto procurou apresentar algumas
das pesquisas inaugurais de mulheres nos estudos culturais, principalmente aquelas
desenvolvidas na Universidade de Birmingham, as dificuldades assumidas no
desenvolvimento de seus trabalhos, até a consolidação de novos paradigmas de
análise das opressões de gênero e das diferenças entre as mulheres.

Procuramos destacar os principais trabalhos desenvolvidos pelas pesquisadoras


nos momentos iniciais de “ruptura” do feminismo na vertente dos estudos culturais.

Quando Hall afirma que o feminismo chega arrombando a janela dos estudos
culturais, já haviam mulheres estudando gênero no Centro. A pesquisa sobre a cultura
juvenil de meninas, de Angela McRobbie e Jenny Garber, por exemplo, já havia sido
desenvolvida.

O relato de Brundson escancara a invisibilidade que ocorria no CCCS com


relação as pesquisadoras e seus trabalhos. As mulheres conseguem destaque
apenas na décima edição de Working papers in cultural studies.

Com Woman take Issu, as pesquisadoras relatam seus anseios e dificuldades


no Centro, mas também começam a construir novas bases para uma análise feminina.
Já na segunda antologia, Off-center, as pesquisadoras afirmam que cada vez mais o
feminismo “irrompe” os estudos culturais, trazendo novas abordagens de estudos e
apesar de ser uma relação com desafios, o objetivo é aprimorar cada vez mais o viés
feminista dentro do Centro.

66
As feministas associadas aos estudos culturais, trouxeram para o campo
da ciência a possibilidade de estudar as subjetividades, os espaços privados e as
emoções. Objetos de estudos que estão em foco ainda nos dias atuais.

As pesquisadoras consolidam um modo diferente de produção de ciência


que hoje poderia ser chamado de estudos culturais feministas, como apontado por
Escosteguy (2018).

Ao final, procuramos provocar uma autorreflexão sobre estudos (culturais)


feministas. É só a partir dos anos 80 que as pesquisadoras associadas aos estudos
culturais anglo-saxônicos, começam a pensar em formas de não homogeneizar as
mulheres e colocá-las em uma mesma categoria. Já que isso, geraria exclusões e
subordinações, novamente.

As produções de mulheres, sobre mulheres sempre serão políticas. Mas é


preciso refletir também sobre que tipo de exclusões criamos no nosso processo de
produção de conhecimento. Apontar as diferenças e pontuar de onde se parte, torna-
se fundamental para não perpetuar as exclusões.

Por fim, o texto procurou fazer uma retrospectiva sobre as primeiras


pesquisas feministas dos estudos culturais, principalmente aquelas desenvolvidas
na Universidade de Birmingham, para apontar os desafios e as conquistas dessas
primeiras pesquisadoras na vertente anglo-saxônica dos estudos culturais, conquistas
que contribuem com as pesquisas ainda nos dias atuais, trazendo para o nosso campo
objetos de análises que anteriormente, a velha ciência -“neutra”, não considerava.

67
REFERÊNCIAS
BRUNSDON, Charlotte. A thief in the night: Stories of feminism in the1970’s at CCCS.
In MORLEY, David & CHEN, Kuan-Hsing (eds.) Stuart Hall - Critical dialogues in
cultural studies. London/New York: Routledge, p. 276-286, 1996.

COSTA, Cristiane. Rede. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque. Explosão feminista: arte,
cultura politica e universidade. São Paulo: Companhia das letras, 2018.

COSTA, Jurandir Freire. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do


espetáculo. Rio de Janeiro, Gramond, 2004.

DÍAZ, I. G. Mujeres que ‘interrumpen’ procesos: las primeras antologias feministas en


los Estudios Culturales. Estudos Feministas, 2009, 17 (2), p. 417-443.

ESCOSTEGUY, Ana Carolina D. A contribuição do olhar feminista. Intexto: UFRGS,


1998. Disponível em: Acesso em 19/11/2018.

______, Ana Carolina D. Comunicação e gênero [recurso eletrônico]: a aventura da


pesquisa / (Org.) – Porto. Alegre : EDIPUCRS, 2008. 173 p.

______, Ana Carolina D. Stuart Hall e feminismo: revisitado relações. MATRIZes.


V.10 - Nº 3 set/dez. 2016. São Paulo – Brasil, p. 61-76.

______, Ana Carolina. Estudos culturais e feminismo ou estudos culturais feministas?


Trabalho apresentado no GT Cultura da Mídia, Compós, 2018. Disponível em: https://
www.compos.org.br/anais.php Acesso em: 1/10/2020.

HALL, S. Os estudos culturais e seu legado tórico. In: SOVIK, Liv (org.) Da diáspora.
Identidades e mediações culturais. Stuart Hall. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

68
HARDING, Sandra. A instabilidade das categorias analíticas na teoria feminista. In:
HOLLANDA, Heloisa Buarque. Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio
de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

hooks, bell. O olhar opositor: mulheres negras espectadoras. In hooks, b. Olhares


negros – raça e representação. São Paulo: Editora Elefante, 2019.

LEAL, Tatiane. A invenção da sororidade: sentimentos morais, feminismo e mídia. Rio


de Janeiro, 2019.

NASCIMENTO, Fernanda. Estudos culturais e estudos descoloniais: diálogos e


rupturas na construção de uma pesquisa de recepção. Novos Olhares - Vol.7 N.1,
2018.

PINHEIRO, Luana Simões. Os dilemas da construção do sujeito no feminismo da pós-


modernidade. Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. - Brasília: Rio de Janeiro:
Ipea, 2016.

RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In HOLLANDA, Heloísa


Buarque de (org.) Pensamento feminista brasileiro – Formação e contexto. Rio de
Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017.

WHELEHAN, Imelda. Representing Women in Popular Culture. The SAGE Handbook


of Feminist Theory. 2014, pp. 232-250.

69
MULHERES PRIVADAS E HOMENS PÚBLICOS

Anna Ortiz Borges Coelho15

INTRODUÇÃO

Se existe um tema que move os debates sobre as diferenças entre homens e


mulheres é a diferença entre o mundo público e o privado. Atualmente compreende-
mos como as esferas públicas e privadas de misturam, mas nem sempre foi assim.
As críticas feministas à dicotomia entre o público e o privado, por vezes objetivam
chamar nossa atenção para a existência de uma visão inventada, fictícia que ocorre
a partir da relação opositiva que o mundo patriarcal faz entre as esferas privada e a
pública. Abandonar essa dualidade entre ambas as esferas não é apenas necessá-
rio, mas esperado, já que no Brasil do século XXI essas esferas se encontrem, se
misturam e por vezes até se confundem. (BIROLI, 2014)

Historicamente, diversos aspectos da vida privada não eram passíveis de in-


tervenção pública, como o cabelo da violência doméstica, que por muito tempo foi
vista como uma questão pessoal, privada que não dizia respeito ao mundo público
e que hoje já é vista como um problema social que diz respeito a segurança pública
como um todo. Outro exemplo que por muito tempo era normalizado é a questão da
obrigatoriedade das mulheres de saciarem as necessidades sexuais dos maridos,
sendo muitas vezes submetidas a abusos sexuais e estupros dentro do casamento,
atualmente já existe o entendimento de que o marido não possui a propriedade sobre
o corpo da sua companheira, devendo nestes casos haver uma intervenção estatal,
pública, sobre os excessos maritais. (BIROLI, 2014)

1) Compreendendo os conceitos

Um aspecto relevante é compreendermos que a construção das esferas pú-

15 Advogada, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUCRS e gradu-


anda em História pela PUCRS. Especialista em Ciências Penais pela PUCRS e em Advocacia Criminal pela
Verbo Jurídico. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4505698674800286 E-mail: [email protected]

70
blica e privada se dá com a normalização da ocupação do espaço público pelos
homens e privado por todos. Tornar os espaços públicos exclusivamente masculinos
se mostrou providencial para a permanência do estado tradicional das coisas. Com
a definição dos papéis sexuais se estabelece que o mundo político era masculino, o
mundo da casa e dos filhos, femininos, e qualquer distanciamento desses padrões
seria hostilizado. Sendo assim, naturaliza-se o ambiente doméstico como feminino,
naturaliza-se o cuidado dos idosos e das crianças como sendo papéis exclusiva-
mente femininos. Mancha-se a moral das moças que precisam trabalhar fora, que
escolhem não se casarem, que escolhem não engravidarem ou estudarem, pois tudo
que se distancia do estereótipo do papel criado para as mulheres não é “apropriado”
e acaba sendo fortemente contestado. Através de um olhar historiográfico fica nítido
que somente as mudanças no público não alteram as vivências no mundo privado,
por isso, as mudanças nas estruturas sociais necessitam tantos anos para se com-
pletarem. (PATEMAN, 1996)

Nancy Cott (1991) procura explicar em que momento a virada entre o público e
privado ganha força nos Estados Unidos, este fenômeno social poucos anos depois
se refletiria diretamente em outros países como o Brasil:

Na sua realidade tão diversa, as mulheres modernas emergiram das lutas an-
teriores pela emancipação política, econômica e sexual. As décadas em torno
da viragem do século geraram os mais eficazes movimentos feministas, as-
sim como operários e socialistas, jamais vistos nos Estados Unidos. A década
de 1910 assistiu a conquistas sem precedentes das mulheres nas profissões
qualificadas e de colarinho branco. No início do século XX, a linguagem do fe-
minismo emancipado tornou-se familiar. Por volta dos anos 20, empenhados
agentes da modernidade tinham de ter em conta os anseios e símbolos de
liberdade e de individualidade das mulheres. (COTT, 1991, p.95)

Através da antropologia social se torna perceptível que apesar de homens e


mulheres serem biologicamente diferentes, eles não são necessariamente desiguais
em suas relações sociais. Observando diferentes culturas e suas populações nota-
-se que o lugar ocupado pela mulher nas mais diversas sociedades nem sempre é
inferior ao lugar ocupado pelos homens. Existiram e ainda existem sociedades onde
se estabelece uma estrutura matriarcal, onde nem sempre o lugar feminino esta in-
terligado aos cuidados das crianças, dos doentes e dos idosos, onde as mulheres

71
caçam, lutam e são referências na chefia política ou espiritual, lugares bem diferen-
tes da cultura geral que predomina no mundo ocidental contemporâneo. Obviamente
estes são fatores que estabelecem claramente que a submissão feminina não é um
aspecto meramente biológico, uma inferioridade de força física, mas sim um pacto
social que depende da cultura e dos valores de cada grupo. Portanto, o lugar público
como exclusivamente masculino se mostra uma criação patriarcal estabelecida há
tantos anos que se naturalizou. (LERNER, 2019)

Essa construção estrutural do patriarcado delimitando o espaço feminino ape-


sar de ser tradicional mostra-se extremamente ultrapassada quando observamos o
importante lugar que a mulher ocupa no mundo público das civilizações ocidentais
contemporâneas. É indiscutível que as mulheres tomaram para si os postos de traba-
lhos, e que na atualidade elas são a maioria inclusive nas cadeiras das universidades,
cada vez mais qualificadas e mais experientes parece impossível que as mulheres
“voltem para seus armários”. Logo, apesar da exclusão das mulheres parecer uma
opção feita por muitas nações no momento de suas criações, a ocupação feminina
do mundo político se torna urgente. Se no Brasil as mulheres já compõem mais da
metade do eleitorado questiona-se o porquê de elas ocuparem tão poucos lugares no
legislativo ou executivo nacional. (RAGO, 1987)

2) Dominação Masculina moderna e pós-moderna

Mas, afinal, o que ganhariam os homens com a manutenção da vida feminina


restrita ao ambiente do lar? Para alguns autores, essa escolha de forma de estru-
turar a sociedade garantiria ao sexo masculina a dominação do sexo feminino. Isso
implicaria, por exemplo, na garantia para os homens o trabalho feminino gratuito, por
vezes podendo ser comparado ao trabalho escravo, entre eles o trabalho de lavar,
cozinhar, passar, limpar a casa, educar e ensinar a prole, manter todos os cuidados
do ambiente doméstico próprio e muitas vezes precisando vender seus cuidados
para o ambiente doméstico alheio para garantir uma melhor situação financeira para
a família. Apesar de isso tudo parecer arcaico, não podemos esquecer que para mui-
tas mulheres sem acesso a uma boa educação e boas oportunidades ainda hoje no
Brasil é o trabalho doméstico que sobra como atividade laboral para boa parte delas.
(BOURDIEU, 2012; BIROLI, 2014)

72
Devemos então perceber que tradicionalmente a dicotomia entre público e pri-
vado não confere as mulheres a posição de dominância nem mesmo dentro do am-
biente doméstico, exceto quando essas atuam na ausência de um homem como
chefe de família. Por muito tempo o trabalho doméstico era exclusivamente feminino
e era conduzido para agradar o marido, deixando a mulher em segundo plano inclu-
sive dentro da sua própria casa, o que conferiria aos homens o poder para utilizarem
das mulheres, dos seus corpos e da sua força de trabalho sem nenhuma limitação.
(RAGO, 1987; PERROT, 2019)

As mudanças se iniciam quando as mulheres passam a exercer cada vez mais


seu espaço no mundo público, em especial no meio do trabalho remunerado, pouco
a pouco as moças solteiras ocupam as fábricas e os bancos escolares, conferindo
a elas a oportunidade de adquirirem sua independência financeira. Apesar disso,
a independência financeira por sí só não resolveria como um todo o problema da
estrutura hierárquica social que colocava as mulheres como subordinadas ao sexo
masculino, pois apesar da conquistas financeiras as mulheres precisariam de uma
verdadeira revolução nos papéis sociais para serem aceitas sem a necessidade de
um homem como uma bengala para ocuparem os lugares que desejassem. (PER-
ROT, 2019)

Nessa lento ritmo que as grandes mudanças foram se dando, a ocupação fe-
minina ao espaço público se iniciou pelo mundo do trabalho, passando pelos valores
educacionais e alcançando o mundo político. Pouco a pouco as mulheres percebe-
rem que se passaram a ser economicamente autossuficientes todo um mundo de
mercado, marketing, venda e propagandas também se abriria para elas, e logo sur-
gem as revistas para as mulheres, as propagandas femininas, e diversas categorias
que antes se silenciavam sobre as necessidades femininas passaram a compreender
que as mulheres agora possuiriam capital para gastar no que bem entendessem. As
mulheres estavam adquirindo o direito à publicidade e tão logo passariam a adquirir
o direito à vida política, borrando ainda mais a retrograda dualidade entre as esferas
públicas e privadas. (PERROT, 2019)

Neste sentido:
Outro fenômeno do século XX, a massificação da cultura, ligada ao desen-
volvimento das sociedades de consumo, redefine a fronteira público-privado,

73
que se diz diretamente a respeito às mulheres. Estamos atualmente longe
de uma perspectiva totalmente negativa, em que a cultura das massas era
considera como um processo de uniformização geral e de alienação dos gru-
pos oprimidos. Esta surge como mais ambivalente, tendo por vezes constituí-
do, para as mulheres, uma via de emancipação, não só pelas mudanças de
comportamento que acarreta, mas também pela modificação do par cultural
masculino- feminino. Situados no seu contexto histórico, a imprensa feminina
ou o cinema de Hollywood, de que as mulheres foram grandes consumidoras,
são, a este respeito reveladores; e talvez, também a publicidade. (Thébaud,
1991, p. 313)

Se faz necessário lembrar que todas essas mudanças sociais que permitiram
que as mulheres encontrassem brechas no mundo público para que pudessem se
infiltrar nem sempre foram facilitadas pelos dominantes. Muitas barreiras foram im-
postas tentando travar o acesso feminino ao mercado de trabalho remunerado. As
oportunidades que apareciam para os indivíduos também dependiam do gênero que
esses tinham, pouco a pouco tanto o homem quanto a mulher passam a serem vistos
de maneira mais universal, se normalizando a ocupação feminina da esfera pública
tanto quanto a masculina. (BIROLI, 2014)

Outro aspecto fundamental que a autora Susan Okin (2008) traz é que as con-
figurações históricas da dicotômica relação entre o público e o privado acaba sendo
criticada, pois para as correntes feministas as teorias políticas liberais parecem ig-
norar os seguintes aspectos: a natureza política das famílias, a relevância da justiça
na vida pessoal e as desigualdades de gênero sobre a tutela do que Okin (2008)
chama de uma falsa neutralidade de gênero. Trazendo à tona que o mundo público e
o privado não deveriam ser observados como aspectos que se opõem, mas que na
verdade se complementam.

3) Movimento feminista, público e privado

Com isso, já nos anos 80, os grupos que se dedicavam ao movimento feminista
passam a lutar não mais pela inclusão das mulheres no mundo público, que nesse
altura já havia sido conquistado, as mulheres já eram livre para votar, trabalhar e
estudar, mas para que dentro do mundo privado os direitos dessas mesmas mulhe-
res fossem garantidos. Lutavam agora pelo direito à liberdade sexual e reprodutiva
feminina, por não serem castigadas por seus companheiros sofrendo uma grande
gama de violências físicas, morais, patrimoniais que muitas vezes resultava com

74
assassinato, como tantos famosos casos que a mídia divulgava. Anos mais tarde,
surge a Constituição Federal de 1988 que garantia uma igualdade formal total entre
os gêneros, sem nenhuma distinção dos seus direitos e deveres, acabando com a
hierarquia anteriormente imposta onde os homens eram vistos como a cabeça da
família. (RAGO, 1987; BIROLI, 2014)

A compreensão de que a esfera privada também é pública é fundamental para


o pensamento feminista, é necessário compreendermos que o privado sempre foi pú-
blico para os homens, que através das leis submetiam as relações privadas as suas
regras. Para as mulheres, diferentemente, o público por muito tempo foi privado a
elas, ou privativo aos homens. Sem o alcance feminino ao público elas não poderiam
mudar as leis que as submetiam, criando um ciclo sem fim de desigualdade, que só
está se modificado gradativamente conforme os homens permitem o acesso feminino
ao mundo político, aos processo legislativos, executivos e, até mesmo, as decisões
judiciais. (MIGUEL, 2000)

Com isso, é preciso compreender que o público e o privado é muito mais do


que um benefício dado as mulheres, mas um direito que não pode ser negado a elas.
Okin (1998) explica que na perspectiva liberal a privacidade é importantíssima, pois
funcionaria como uma espécie de freio para as atividades estatais que ameaçariam
liberdade referente a vida privada. Acontece que na perspectiva feminista a falta de
um estado não resultaria em uma garantia à vida privada com liberdade. Biroli (2014)
explica que:

Em contextos de dominação masculina, significou o direito dos “chefes de


família” a não sofrer interferência no controle nem no comando sobre outros
indivíduos na esfera privada. Há uma denúncia clara, nesse caso, de que a
privacidade ganha sentidos diferentes para os indivíduos segundo sua po-
sição nas relações de poder. Por isso seria importante redefini-lo a partir de
uma perspectiva feminista. Mas o gênero não esgota as questões relativas ao
acesso diferenciado à privacidade. O usufruto da privacidade está diretamen-
te relacionado à posição social dos indivíduos. Para homens brancos e com
carreiras profissionais bem remunerada, o usufruto da privacidade pode ser
possível no espaço público – escritórios com portas fechadas, com controle
sobre quem tem acesso a eles, são um exemplo – assim como no espaço
doméstico, em que uma posição privilegiada no acesso a recursos pode per-
mitir uma casa com espaço suficiente para usufruto da privacidade, enquanto
vantagens produzidas pela divisão sexual do trabalho garantem o tempo ne-
cessário para isso. (BIROLI, 2014, p.39)

75
No Brasil, o toque público nas feridas da vida privada é recente, a Lei Maria da
Penha visando a proteção das vítimas de violência doméstica foi criada apenas em
2006. Mais recente ainda é a Lei do Feminicídio criada em 2015 com a tentativa de
incluir a modalidade de feminicídio como homicídio qualificado, ou seja, uma tentativa
de aumentar a pena dos réus que cometem homicídios por razões de discriminação
da condição do sexo feminino. Todo esse arcabouço legislativo se dá em uma tentati-
va por parte do estado de garantir que dentro da vida privada as mulheres consigam
exercer a igualdade formal proposta pela Constituição Federal. (MIGUEL, 2014)

Essa normatização da violência contra a mulher é um claro sinal da vitória femi-


nina frente a batalha do público e do privado. Biroli (2014) tenta historicizar de manei-
ra geral as discussões feministas ao redor do mundo através da ideia de separação
entre as esferas pública e privada, passando por diversas correntes do movimento,
do feminismo radical até o liberal. Ela traz então a seguinte passagem:

A dualidade convencional entre vida pública e vida doméstica contribui para


impedir a tematização da violência doméstica e do estupro no casamento. A
primeira foi, por muito empo, tida como um problema particular e, em forte
medida, naturalizada como parte constitutiva da relação esperada entre ho-
mens e mulheres. O estupro no casamento, por sua vez, até recentemente
foi visto como uma impossibilidade lógica, uma vez que o direito ao corpo da
mulher era entendido como algo que é transferido para o marido no momento
do casamento. Um dos efeitos desse “pertencimento”, que é, simultaneamen-
te, uma localização (na esfera doméstica) e uma subordinação (ao marido
ou, antes dele, ao pai) é que em sociedades nas quais prevalecem práticas
sexistas e misóginas, a mulher é alvo de violência tanto na esfera doméstica
quando fora dela, quando esses laços “protetores” não são reconhecidos.
(BIROLI, 2014, p. 42 e 43)

Reforça-se, assim, a necessidade de proteção estatal a vida das mulheres não


apenas na esfera pública, mas também na privada. Outro aspecto relevante é que
faz sentindo abandonarmos a visão que o mundo privado e o mundo público corres-
pondem a lugares e tempos distintos na vida dos indivíduos. Passa-se, assim, a se
observar ambas as esferas como um complexo diferenciado de relações, práticas e
de direitos. Estas relações precisam ser vistas como permanentemente imbricados,
pois se complementam, não se opõem. (PERROT, 2019)

É preciso compreender que o ambiente doméstico impacta diretamente nas


oportunidades e condições tanto para homens, quanto para as mulheres, mas impacta

76
talvez de maneira mais profunda para elas que dedicam uma grande quantidade de
horas diárias para a execução de atividades dentro de casa. Por isso, não podendo
ser encarado o ambiente doméstico de maneira descolada da esfera pública. A divi-
são então não se mostra apenas fictícia, mas ilusória e acaba resultando não apenas
em espaços (erroneamente) diferentes de atuação para cada gênero, mas também
na formação de uma visão naturalizada de características femininas ou masculinas
que são formações apenas culturais. (BIROLI, 2014)

Biroli (2014) também se utiliza do termo “dona de casa” de maneira muito crí-
tica. Iniciando pela questão de que esta terminologia estaria atribuindo uma falsa
responsabilidade exclusiva do cuidado feminino com os afazeres domésticos e com
a maternidade que traz uma gama de características tidas como femininas entre elas:
a passividade, o carinho, a incapacidade de agir de forma racional e as emoções
afloradas. Obviamente essas características também servem para justificar perfei-
tamente o porquê o espaço político não é um ambiente próprio para as mulheres, já
que a política seria um espaço para a razão e não para o afloramento de rompantes
emocionais descabidos. (BIROLI, 2014)

Os homens defendem para si o oposto destas características, demonstrando


sempre uma grande racionalidade e, por longos períodos históricos o grande dife-
rencial masculino era o estudo, que por muito tempo foi privado das mulheres. Niti-
damente era mais fácil desqualificar a fala feminina ao vinculá-la com os excessos
emocionais e a ignorância, atualmente as mulheres já possuem tanta, se não mais,
qualificação que os homens, por isso, esse argumento foi deixado no passado. Além
disso, a dupla jornada de trabalho também se mostra um aspecto relevante sobre a
dicotomia no público e do privado. Quando as mulheres conseguem ocupar o espaço
público, sendo aceitas em serviços remunerados e posteriormente a trabalhos as-
salariados, isso não gerou de imediato uma redivisão do trabalho doméstico ou dos
cuidados com as crianças, portanto, as mulheres passaram a cumprir uma jornada
na rua, remunerada e outra jornada, sem remuneração, dentro de suas casas. Essa
sobrecarga de responsabilidades femininas pode ser uma das explicações para que
as mulheres não tivessem “tempo” hábil para se dedicarem a outras áreas como ao
campo político. (BIROLI, 2014)

77
Outro fenômeno valioso que pode ser percebido é que mesmo conquistando o
trabalho remunerado, quando as mulheres têm seus primeiros filhos elas começam a
sentir a exclusão do mercado de trabalho. Mulheres com filhos não são as funcioná-
rias mais desejadas, na verdade nunca foram. Historicamente, quando as mulheres
foram incluídas no mundo do trabalho, as primeiras a ocuparem os espaços públi-
cos eram as moças solteiras. Estas quando se casavam normalmente paravam de
trabalhar e passavam a ser sustentadas pelos maridos, onde dedicavam seus dias
exclusivamente para o cuidado de sua própria casa e dos filhos. Com a chega da
modernidade tudo se modifica, as mulheres passam a ocupar cada vez mais as fábri-
cas, indústrias e demais postos de trabalho, e mesmo quando se casavam tentavam
manter seus trabalhos como forma de garantir uma renda extra e sua independência
financeira. (PERROT, 2019)

Acontece que essa independência feminina, após adquirida dificilmente seria


deixada de lado pelas mulheres de forma voluntária, com o passar do tempo mesmo
as mulheres que tinham filhos seguiam trabalhando. As crianças, muitas vezes eram
levadas junto para ajudar no trabalho e com o passar dos anos e o progresso na
legislação trabalhista do mundo ocidental as mulheres passaram a ter garantias de
licença maternidade, auxílio a creche, entre outros. Fazendo com que a maternidade
não fosse mais uma questão decisória para o fim da carreira feminina. (PERROT,
2019)

78
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante ao exposto, fica evidente que as mulheres passaram a acumular uma


dupla jornada de trabalho, que muitas vezes se transformava em tripla quando as
mesmas decidiam também voltar a estudar. Todas essas questões propriamente fe-
mininas demonstram que apesar da tão sonhada igualdade entre homens e mulheres
o que mais observamos são as diversas diferenças nos papéis que a sociedade aca-
ba por impor sob cada gênero. Estas diferenças, em pleno século XXI passam a ser
utilizadas não mais apenas como forma de discriminação das mulheres por serem
mulheres, mas como uma possível forma de incluir e garantir os seus direitos. Exem-
plificando, temos as supracitadas Lei Maria da Penha, Lei do Feminicídio, e, a Lei de
Cotas, que através de uma política de discriminação positiva tenta proporcionar as
mulheres mais acesso ao mundo político. (MIGUEL, 2000)

Pensar o feminismo através de uma análise sobre as relações entre o mundo


público e o privado demonstra a importância deste tópico para o movimento, mas
além disso é importante observarmos que nem todas as mulheres são credenciadas
com o mesmo nível de exclusão ou de inclusão. Por exemplo, será que as mulheres
indígenas possuem o mesmo acesso ao ambiente público que as mulheres brancas?
Ou, será que as mulheres negras possuem o mesmo espaço no mundo político que
as mulheres brancas? Os recortes de gênero, por si só representam apenas a pon-
ta de um sistema de exclusão dos grupos tidos como minoritários, apesar disso um
aspecto é fato: a garantia de inclusão feminina no mundo público não é apenas um
direito, mas uma necessidade.

79
REFERÊNCIAS
BIROLI, Flávia. O público e o privado. In: Miguel, Luis Felipe; Biroli, Flávia. Feminismo e
Política. São Paulo: Boitempo, 2014.

BIROLI, Flavia. MELLO, Janine. Gênero e Representação Política: hipóteses sobre a


diferença entre a atuação de deputadas e deputados federais na 52ª legislatura (2003-
2006). Revista Ártemis, Vol. 11, 2010.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina / Pierre Bourdieu tradução Maria Helena Küh-
ner. - 11° ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

COTT, Nancy. A mulher moderna. In: DUBY, Georges; PERROT; Michelle (org.). História
das Mulheres no Ocidente. vol. 5. Porto: Afrontamento, 1991.

FRAISSE, Geneviève; PERROT, Michelle. Ordens e Liberdades. In: DUBY, G; PERROT, M.


(org). História das Mulheres no Ocidente. Porto: Afrontamento, 1991.

LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos ho-
mens / Gerda Lerner; tradução Luiza Sellera. – São Paulo: Cultrix, 2019.

MIGUEL, Luis Felipe. Teoria Política Feminista e Liberalismo: O caso das cotas de
representação. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Vol. 15 nº 44, 2000.

MIGUEL, Luis Felipe. Feminismo e política: uma introdução / Luis Felipe Miguel, Flávia
Biroli- 1.ed.- São Paulo: Boitempo, 2014.

OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado. Revista Estudos Feministas, vol.16 (2).
Florianópolis, 2008.

PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

PERROT, Michelle. Minha história das mulheres / Michelle Perrot; 2. ed., 6ª reimpressão. –
São Paulo: Contexto, 2019.

RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar. 1890-1930. Rio de Ja-
neiro: Paz e Terra, 1987.

THÉBAUD, Françoise. A Grande Guerra – O triunfo da divisão sexual. In: DUBY, Georges;
PERROT; Michelle (org.). História das Mulheres no Ocidente. vol. 5. Porto: Afrontamento,
1991.

80
FEMINISMO NEGRO: MINORIA DENTRO DAS
MINORIAS

Raíssa Schadeck16

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem o objetivo de analisar como surgiu o movimento das mu-
lheres negras dentro do movimento feminista. Primeiramente faz-se um resgate da
dominação do patriarcado, ainda inscrita no inconsciente coletivo da sociedade, que
historicamente se agregou a diferentes sistemas (político, religioso e outros), e con-
tinua exercendo um papel dominador muito importante na genealogia formativa de
reações e respostas libertárias próprias das últimas décadas do século passado, e
com um vigor ainda maior neste começo de século XXI.

Embora se evoluiu em termos de positivação de uma quantidade significativa


de dispositivos voltados à proteção dos dominados e violentados, as comunicações
do sistema patriarcal não foram interrompidas fazendo com que a dominação mas-
culina se perpetue.

Esse estudo tem como base a teoria feminista, que em sua essência, tem pre-
sumido que existe uma identidade definida, compreendida pela categoria de mu-
lheres, que não só deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu
próprio discurso, mas constitui o sujeito mesmo em nome de quem a representação
política é almejada. Desta compreensão de sujeito do feminismo, passa-se para aná-
lise de gênero, classe e raça, vivenciado pelas mulheres negra por meio do racismo
e do sexismo colonial branco.

A pesquisa é do tipo exploratória, utiliza no seu delineamento a coleta de dados


em fontes bibliográficas disponíveis em meios físicos e na rede de computadores. Na
sua realização é utilizado o método de abordagem hipotético-dedutivo.

16 Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ, Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uru-
guai e Missões - URI – Mestrado, [email protected].

81
O feminismo negro tomou forma a partir do movimento das mulheres em razão
do racismo e sexismo sofrido pelas mulheres negras dentro do movimento feminis-
ta. A consciência de que a identidade de gênero não se desdobra naturalmente em
solidariedade racial intragênero conduziu as mulheres negras a enfrentar, no interior
do próprio movimento feminista, as contradições e as desigualdades que o racismo
e a discriminação racial produzem entre as mulheres, particularmente entre negras
e brancas.

A relevância desta pesquisa repousa no sentido que de as mulheres negras


estão historicamente em um patamar muito inferior às mulheres brancas e pior ainda
e relação aos homens brancos. Dessa forma, o feminismo negro busca dar lugar à
estas mulheres na sociedade atual, dando-lhes reconhecimento e identidade.

PATRIARCADO E DOMINAÇÃO: as mulheres como sujeito do feminismo

O primeiro grande sistema de dominação, se estruturou a partir de uma rele-


vância externa dada ao gênero e à sexualidade, sobre uma lógica binária homem-
-não homem, macho-não macho e heterossexual-homossexual. Há que se conside-
rar que esse conjunto de operações comunicacionais, que historicamente se agregou
a diferentes sistemas (político, religioso e outros), jogou e continua jogando, com um
papel dominador muito importante na genealogia formativa de reações e respostas
libertárias próprias das últimas décadas do século passado, e com um vigor ainda
maior neste começo de século XXI. Existe um sistema mundial de comunicação/do-
minação, cujos conteúdos de suas comunicações são fundamentalmente patriarcais
e heterossexuais. Notadamente, por uma vontade de poder incontrolável, os homens
adultos dominaram a sociedade planetária, ocupando espaços de poder e submeten-
do todas as demais parcelas de seres humanos a vulnerabilidade e violações. Tais
estados de dominação desequilibraram de tal forma a configuração de convivência
entre os seres humanos, que, ao longo do século passado, as reações de mulheres,
homossexuais e outros sacrificados por esses dominadores foram circunstancial-
mente inevitáveis (LUCAS; SANTOS, 2015, p. 35).

Ressalta-se, que nem sempre a sociedade foi desequilibrada em termos de

82
relações entre gênero. Existem fortes evidências, a partir de releituras arqueológicas
e estudos antropológicos, que nos primórdios da humanidade existia uma estrutura
social de igualdade e parceria que foi a base da convivência humana (ANGELIN;
UNSER, 2016).

Nesse sentido, nenhum ser humano era colocado acima do outro, nenhuma
diferença foi igualdada a inferioridade ou superioridade. As alterações culturais ocor-
ridas nas relações humanas, antes de parceria, passaram para outras formas de
relações, como guerras, força e poder. Desse modo, o princípio essencial na subs-
tituição do modelo de parceria vivido pelas sociedades primitivas, foi o modelo de
dominação (EISLER apud ANGELIN; UNSER, 2016).

O patriarcado está no inconsciente coletivo da humanidade. Tal dogma da


sociedade, funciona mediante um sistema de comunicação silenciosa, mas extrema-
mente eficaz na estruturação e dinâmica dos processos de dominação das mulheres
pelos homens e de homossexuais por heterossexuais (e mais ainda em relação a
mulher negra). Ainda que sejam erradicadas das democracias ocidentais contem-
porâneas quaisquer espécies de dispositivos que permitam a legitimação de ações
discriminatórias explicitas contra as mulheres; ainda que haja a configuração de um
cenário, pelo menos plano normativo, de uma total igualdade de gênero, essas pers-
pectivas, se não aprofundadas, revela, um olhar absolutamente ingênuo, pois as in-
justiças e desigualdades permanecem presentes em nossas sociedades ocidentais,
ditas democráticas. Em outras palavras, embora se evoluiu em termos de positivação
de uma quantidade significativa de dispositivos voltados à proteção dos dominados
e violentados, as comunicações do sistema patriarcal não foram interrompidas, con-
tinuando a atuar fortemente nos processos de dominação e violência.

Na visão de Lucas e Santos (2015, p. 35):

Não há qualquer dúvida em afirmarmos que há placas tectônicas poderosís-


simas, cujo movimento é determinado pela diferenciação de gênero, e ainda,
que na superfície não percebamos, pelo menos no ocidente, terremotos dis-
criminatórios de alta magnitude sismológica, permanece lento o movimento
de continentes territoriais, determinados por essas placas patriarcais e he-
terossexuais que determinam a importância dos papéis e posições segundo
preferências de gênero, a partir de uma visão de mundo masculina.

83
Para Lucas e Santos, existe um inconsciente patriarcal diluído numa norma-
lidade supostamente igualitária. A partir disso, se percebe uma neutralidade quanto
ao gênero, no sentido de que as mulheres estão numa posição de igualdade em re-
lação aos homens, não estando excluídas em suas buscar por bens sociais valiosos.
Contudo, entrando a análise, é possível visualizar e entender que o que está sendo
buscado de maneira neutra quanto ao gênero é totalmente parcializado, direcionado,
levando-se em conta a preponderância profunda, silenciosa, inconsciente e eficaz
dos interesses e valores patriarcais. As mulheres estão em desvantagem porque a
sociedade inteira favorece sistemicamente os homens ao definir trabalhos, méritos,
etc.

Nesse quadro de desigualdades encontram-se processos de formação de


identidades que vislumbram as diversidades identitárias e que não podem ser estu-
dados de forma distinta. Assim, observa-se que o mundo está em plena transforma-
ção e consequentemente, os sujeitos e suas identidades se modificam (ANGELIN;
UNSER, 2016).

A consequência desta situação, é um sistema simbólico de identificações cul-


turais no qual a masculinidade é associada com a obtenção de renda e a feminilida-
de é definida em função de serviços sexuais e domésticos para os homens e para
criação de filhos. Essas situações de dominação não podem ser compreendidas em
toda a sua espessura desde aproximações subjetivas. Elas são amplamente objeti-
vas, pois os homens como grupos exercem um forte controle sobre as possibilidades
existências das mulheres (LUCAS; SANTOS, 2015, p. 36).

Neste contexto de dominação, encontra-se na posição de dominadores, tanto


homens brancos europeus, quanto homens negros africanos. Também se presencia
a dominação patriarcal em países árabes, mas também presente no extremo oriente,
no mundo contemporâneo, estados de dominação como justificativa religiosa não só
por cristãos americanos e europeus, mas também por muçulmanos e hindus da me-
tade oriental do planeta (LUCAS; SANTOS, 2015, p. 36).

Mesmo com os grandes avanços nas legislações e no reconhecimento dos


direitos humanos, a dominação masculina continua muito forte:

84
A gravidade dos estados de dominação impostos pelas comunicações pa-
triarcais-heterossexuais é tão significativa que ainda hoje, testemunhamos as
mulheres em posição de inferioridade social, econômica e política em prati-
camente todos os países do mundo. O peso da subjugação masculina é tão
grande que as mulheres que mantenham relações sexuais fora do contrato
matrimonial, ou mesmo após a morte do marido, são condenadas judicial-
mente por adultério e mortas por apedrejamento em países islâmicos ortodo-
xos. A opressão nesse aspecto, ainda é tão intensa que a homossexualidade
permanece sendo considerada um crime em um razoável número de países,
sendo previstas penas até de morte (LUCAS; SANTOS, 2015, p. 36).

Nesse sentido, busca-se descontruir esse paradigma de dominação através


de uma racionalidade de pensamento baseada na homogeneidade que excluía ou
não integrava diferenças. Na visão de Derrida (apud ANGELIN; HAHN, p. 72, 2015),
descontruir é fazer perceber as alienações políticas da linguagem, é lutar contra a
dominação dos estereótipos, é combater a tirania das normas.

Para Butler (2017, p.17), a teoria feminista, em sua essência, tem presumido
que existe uma identidade definida, compreendida pela categoria de mulheres, que
não só deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu próprio dis-
curso, mas constitui o sujeito mesmo em nome de quem a representação política é
almejada. Na visão de Butler, a representação serve como termo operacional no seio
de um processo político que busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres
como sujeitos políticos; de outro lado, a representação é a função normativa de uma
linguagem que revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a catego-
ria das mulheres.

Atualmente, essa concepção dominante de relação entre a teoria feminista e


política passou a ser questionada a partir do interior do discurso feminista. O próprio
sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis ou permanentes.
É significativa a quantidade de material ensaístico que não só questiona a visibilidade
do sujeito como candidato à representação, ou mesmo à libertação, como indica que
é muito pequena, afinal, a concordância quanto ao que constitui, ou deveria cons-
tituir, a categoria das mulheres. Os domínios da representação política e linguística
estabeleceram a priori o critério segundo o qual os próprios sujeitos são formados,
com o resultado de a representação só se estender ao que pode ser reconhecido
como sujeito. Em outras palavras, as qualificações do ser sujeito têm que ser atendi-

85
das para que a representação possa ser expandida (BUTLER, 2017, p.17).

Fazendo relação com a teoria de Butler e de Derrida, pode-se dizer que a


racionalidade descentrada possibilita pensar e viver os direitos humanos desde a
perspectiva da espacialidade, da territorialidade, da temporalidade, pois é o contexto,
o lugar que transborda sentido (ANGELIM;HANN, p. 72, 2015).

Desse modo, os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que subse-


quentemente passam a representar. As noções jurídicas de poder parecem regular a
vida política em termos puramente negativos – isto é, por meio da limitação, proibi-
ção, regulamentação, controle e mesmo proteção dos indivíduos relacionados àque-
la estrutura política, mediante uma ação contingente e retratável de escolha. Porém,
em virtude de a elas estarem condicionadas, os sujeitos regulados por tais estruturas
são formados, definidos e reproduzidos de acordo com as exigências delas. Se esta
análise é correta, a formação jurídica da linguagem e da política que representa as
mulheres como o sujeito do feminismo é em si mesma uma formação discursiva e
efeito de uma dada versão da política representacional. Assim, o sujeito feminista se
revela discursivamente constituído, e pelo próprio sistema político que supostamente
deveria facilitar sua emancipação, o que se tornaria politicamente problemática, se
fosse possível demonstrar que esse sistema produz sujeitos com traços de gênero
determinados em conformidade com um eixo diferencial de dominação, ou os pro-
duz presumidamente masculinos. Em tais casos, um apelo crítico a esse sistema
em nome da emancipação das mulheres estaria inelutavelmente fadado ao fracasso
(BUTLER, 2017, p. 18).

Nesta esteira, a ação dos movimentos sociais, tem como finalidade principal
buscar o reconhecimento de direitos civis frente ao Estado e à própria sociedade,
sendo mecanismos imprescindíveis para trazer à tona as desigualdades vivenciadas,
e com isso, pressionar a desconstrução de identidades equivocadas e a construção
de equidade nas relações sociais. Eles se organizam para resistir e descobrir, a partir
do contexto, das vivências e das experiências, uma ideia tida como hegemônica. Tal
exercício força a sociedade a buscar reconstruir uma nova forma de racionalidade e,
consequentes ações que possibilitam uma interação maior, quebrando tabus e dog-
mas naturalizados (ANGELIN;HAHN, p. 72, 2015).

86
Para Butler, os sujeitos políticos do movimento feminista, são criados por ex-
clusão, uma vez estabelecida a estrutura jurídica da política:

O sujeito é uma questão crucial para a política, e particularmente para a políti-


ca feminista, pois os sujeitos jurídicos são inevitavelmente produzidos por via
práticas de exclusão que não aparecem, uma vez estabelecida a estrutura ju-
rídica da política. Em outras palavras, a construção política do sujeito procede
vinculada a certos objetivos de legitimação e de exclusão, e essas operações
políticas são efetivamente ocultadas e naturalizadas por uma análise política
que toma as estruturas jurídicas como seu fundamento. O poder jurídico pro-
duz inevitavelmente o que alega meramente representar; consequentemente,
a política tem de se preocupar com essa função dual do poder: jurídica e pro-
dutiva. Com efeito, a lei produz e depois oculta a noção de sujeito perante a
lei de modo a invocar essa formação discursiva como premissa básica natural
que legitima, subsequentemente, a própria hegemonia reguladora da lei. Não
basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais plenamen-
te na linguagem e na política. A crítica feminista também deve compreender
como a categoria das mulheres, o sujeito do feminismo, é produzida e repri-
mida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das quais se busca a
emancipação (BUTLER, 2017, p.20).

Com certeza, a questão das mulheres como sujeito do feminismo suscita a pos-
sibilidade de não haver um sujeito que se situe perante a lei, à espera de representação
da lei ou pela lei. Quiçá o sujeito, bem como a evocação de um antes temporal, seja cons-
tituído pela lei como fundamento fictício de sua própria reivindicação de legitimidade. A
hipótese prevalecente da integridade ontológica do sujeito perante a lei pode ser vista
como o vestígio contemporâneo da hipótese do estado natural, essa fábula fundante que
é constitutiva das estruturas jurídicas do liberalismo clássico. A invocação performativa17
de um antes não histórico torna-se a premissa básica a garantir uma ontologia pré-
-social de pessoas que consentem livremente em ser governadas constituindo assim
a legitimidade do contrato social (BUTLER, 2017, p.20).

Apesar disso, além das ficções fundacionais que sustentam a noção de su-
jeito, há o problema político que o feminismo encontra na suposição de que o termo
mulheres denote uma identidade comum. Ao invés de um significante estável a co-
mandar o consentimento daquelas a quem pretende descrever e repensar, mulheres

17 A noção de performatividade é apropriada por diversos campos interdisciplinares como Antropolo-


gia, Artes, Ciências Políticas, física, dentre outras, é apresentada neste estudo com um recorte na Filosofia da
linguagem, a qual se dedica aos fenômenos linguísticos, e, em especial, na Filosofia da diferença, que busca
refletir sobre questões relacionadas à desconstrução da lógica metafísica que se pauta em binarismos, dicoto-
mias e hierarquizações, tendo a categoria gênero como pano de fundo (BRITO, 2017).

87
– mesmo no plural – tornou-se um termo problemático, um ponto de contestação,
uma causa de ansiedade (BUTLER, 2017, p.20). Se alguém é uma mulher, isso cer-
tamente não é tudo o que alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os
traços predefinidos de gênero da pessoa transcenderam o paradigma específico de
gênero, mas porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira consistente nos
diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com mo-
dalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e religiosas das interseções políticas e
culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida.

Em relação às lutas sobre gênero e raça, pode-se afirmar tanto o princípio da


igualdade quanto o da diferença. O movimento feminista teve de lutar para descons-
truir a injustiça econômica através da denúncia de que gênero estrutura a divisão fun-
damental entre trabalho produtivo e assalariado e trabalho reprodutivo, domésticos e
não-assalariados, típico de mulher. Além disso, o gênero também estrutura a divisão
de trabalho entre ocupações profissionais e bem pagas dominadas por homens e o
trabalho doméstico, mal pago, dominado por mulheres. Como solução para isso, a
transformação da economia política deveria eliminar a exploração, a marginalização
e a privatização específica de gênero, que significa eliminar as diferenças entre gê-
nero, a especificidade do gênero (MATTOS, 2004, p. 146).

Se presume haver uma base universal para o feminismo, a ser encontrada


numa identidade supostamente existente em diferentes culturas, acompanhada da
ideia de que a opressão das mulheres possui uma forma singular, discernível na
estrutura universal ou hegemônica da dominação patriarcal ou masculina (BUTLER,
2017, p.21).

A noção de patriarcado, tem sido criticada, recentemente, pela dificuldade em


explicar os mecanismos de dominação:

A noção de um patriarcado universal tem sido amplamente criticada em anos


recentes, por seu fracasso em explicar os mecanismos de opressão de gê-
nero nos contextos culturais concretos em que ela existe. Exatamente onde
esses vários contextos foram consultados por essas teorias, eles o foram
para encontrar exemplos ou ilustrações de um princípio universal pressupos-
to desde o ponto de partida. Esta forma de teorização feminista foi critica-
da por seus esforços de colonizar e se apropriar de culturas não ocidentais,
instrumentalizando-as para confirmar noções marcadamente ocidentais de

88
opressão, e também por tender a construir um terceiro mundo ou mesmo um
ocidente em que a opressão de gênero é sutilmente explicada como sintomá-
tica de um barbarismo intrínseco e não ocidental. A urgência do feminismo no
sentido de conferir um status universal ao patriarcado, com vistas a fortalecer
a aparência de representatividade das reivindicações do feminismo, motivou
ocasionalmente um atalho na direção de uma universalidade categórica ou
fictícia da estrutura de dominação, tida como responsável pela produção da
experiência comum de subjugação das mulheres (BUTLER, 2017, p.21).

Afirmar a existência de um patriarcado universal não tem mais a credibilidade


ostentada no passado, mas a noção de uma concepção genericamente compartilha-
da das mulheres, decorrente dessa perspectiva, tem se mostrado muito mais difícil
de superar. Houveram muitos debates, no sentido de existir traços comuns entre as
mulheres, preexistentes à sua opressão, ou estariam as mulheres ligadas em vir-
tude somente de sua opressão? Haverá especificidade das culturas das mulheres,
independentemente de sua subordinação pelas culturas masculinas hegemônicas?
Caracterizam-se sempre a especificidade e a integridade das práticas culturais ou
linguísticas das mulheres por oposição e, portanto, nos termos de alguma outra for-
mação cultural dominante? Existe uma região do especificamente feminino, diferen-
ciada do masculino como tal e reconhecível em sua diferença por uma universalidade
indistinta e consequentemente presumida das mulheres? A noção binária de mascu-
lino/feminino constitui não só a estrutura exclusiva em que essa especificidade pode
ser reconhecida, mas de todo modo a especificidade do feminino é mais uma vez
totalmente descontextualizada, analítica e politicamente separada da constituição de
classe, raça, etnia e outros eixos de relações de poder, os quais tanto constituem
identidade como tornam equivocada a noção singular de identidade (BUTLER, 2017,
p.23).

Assim, para combater a injustiça cultural é imperiosa uma desconstrução do


androcentrismo (padrões culturais que privilegiam as características da masculinida-
de) que caminha junto com o sexismo cultural (a desvalorização e depreciação de
coisas vistas como femininas tomadas como emotivas e irracionais). A solução aqui
está baseada na afirmação das diferenças, na valorização das práticas ligadas ao
feminismo (MATTOS, 2004, p. 147).

Desse modo, as supostas universalidade e unidade do sujeito do feminismo

89
são de fato minadas pelas restrições do discurso representacional em que funcionam.
Com efeito, a insistência prematura num sujeito estável do feminismo, compreendido
como uma categoria uma das mulheres, gera, inevitavelmente, múltiplas recusas em
aceitar essa categoria. Esses domínios da exclusão revelam as consequências coer-
citivas e reguladoras dessa construção, mesmo quando a construção é elaborada
com propósitos emancipatórios. Não há dúvida, a fragmentação no interior do femi-
nismo e a oposição paradoxal ao feminismo – por parte de mulheres que o feminis-
mo afirmar representar – sugerem os limites necessários da política de identidade. A
sugestão de que o feminismo pode buscar representação mais ampla para um sujeito
que ele próprio constrói gera a consequência irônica de que os objetivos feministas
correm o risco de fracassar, justamente em função de sua recusa a levar em conta os
poderes constitutivos de suas próprias reivindicações representacionais. Fazer ape-
los à categoria das mulheres, em nome de propósitos meramente estratégicos, não
resolve nada, pois as estratégias sempre têm significados que extrapolam os propó-
sitos a que se destinam. Nesse caso, a própria exclusão pode restringir como tal um
significado inintencional, mas que tem consequências. Por sua conformação às exi-
gências da política representacional de que o feminismo articule um sujeito estável, o
feminismo abre assim a guarda a acusações de deturpação cabal da representação
(BUTLER, 2017, p.23).

Para Saffioti (1994, p. 155):

Até o presente, as mulheres têm sido mantidas afastadas das políticas de


direitos humanos. Mais do que isso, o Estado tem ratificado um ordenamento
social de gênero através de um conjunto de leis que se pretendem objetivas
e neutras, porque partem da errônea premissa de que a desigualdade de
facto entre homens e mulheres não existe na sociedade. [...] Assim, o Estado
não somente acolhe o poder masculino sobre a mulher, mas o normatiza,
proibindo e até criminalizando seus excessos. A punição das extravagâncias
integra o poder disciplinador da dominação masculina sobre a mulher, exer-
cido pelo Estado. Este não fez, portanto, senão ratificar a falocracia em suas
dimensões material e “ideacional”, dando-lhe a forma jurídica que caracteriza
a dominação legalizada.

Com obviedade, a tarefa política não é recusar a política representacional


- como se pudesse fazê-lo. As estruturas jurídicas da linguagem e da política cons-
tituem o campo contemporâneo do poder, consequentemente, não há posição fora

90
desse campo, mas somente uma genealogia, crítica de suas próprias práticas de le-
gitimação. Assim, o ponto de partida crítico é o presente histórico, como definiu Marx.
E a tarefa é justamente formular, no interior dessa estrutura constituída, uma crítica
às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram,
naturalizam e imobilizam (BUTLER, 2017, p.23).

Para Butler, há na presente conjuntura político-cultural, período que alguns


chamam de pós-feminista, uma oportunidade de refletir a partir de uma perspectiva
feminina sobre a exigência de se construir um sujeito do feminismo. Para a autora é
necessário repesar radicalmente as construções ontológicas de identidade na prática
representacional capaz de renovar o feminismo em outros termos. Por outro lado, é
tempo de empreender uma crítica radical, que busque libertar a teoria feminista da
necessidade de construir uma base única e permanente, invariavelmente contestada
pelas posições de identidade ou anti-identidade que o feminismo invariavelmente
excluí. Será que as práticas excludentes que baseiam a teoria feminista numa noção
das mulheres como sujeito solapam, paradoxalmente, os objetos feministas de am-
pliar suas reivindicações de representação (BUTLER, 2017, p.24).

Talvez o problema seja ainda mais sério. Seria a construção de uma categoria
de mulheres como sujeito coerente e estável de uma regulamentação e retificação18
inconsciente das relações de gênero? E não seria essa reificação precisamente
o contrário dos objetivos feministas? Em que medida a categoria das mulheres só
alcança estabilidade e coerência no contexto da matriz heterossexual? Se a noção
estável de gênero dá mostras de não mais servir como premissa básica da política
feminista, talvez um novo tipo de política feminista seja agora desejável para contes-
tar as próprias reificações do gênero e da igualdade – isto é, uma política feminista
que tome a construção variável da identidade como um pré-requisito metodológico e
normativo, senão como um objeto político (BUTLER, 2017, p.24).

Determinar as operações que produzem e ocultam o que se qualifica como


sujeito jurídico do feminismo é precisamente a tarefa da genealogia feminista da ca-
tegoria das mulheres. No decurso desse esforço de questionar a noção de mulheres

18 No sentido de transformar uma ideia em coisa. Qualquer processo em que uma realidade social ou
subjetiva de natureza dinâmica e criativa passa a apresentar determinadas características - fixidez, automatis-
mo, passividade - de um objeto inorgânico, perdendo sua autonomia e autoconsciência.

91
como sujeito do feminismo, a invocação não problematizada dessa categoria pode
impedir a possibilidade do feminismo como política representacional (BUTLER, 2017,
p.24).

Na perspectiva dos Direitos Humanos das mulheres, esses direitos são rei-
vindicados. Na visão de Piovesan (apud ANGELIN; HAHN, 2015, p. 73), os direitos
humanos das mulheres compõem uma racionalidade de resistência na medida em
que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade
humana. Percebe-se assim, que dentro da lógica de uma racionalidade de resis-
tência, não há dignidade sem espacialidade, não há Direitos Humanos sem espaço
aos quais pertence pela vivência e pela experiência, não há Direitos Humanos sem
espaços apropriados através da luta contínua, não há Direitos Humanos se não há
possibilidade de pertencer a ser reconhecido por uma coletividade, não se pode falar
em eficácia de Direitos Humanos sem espacialidade (ANGELIN; HAHN, 2015, p. 73).

A identidade do sujeito feminista não deve ser o fundamento da política femi-


nista, pois a formação do sujeito ocorre no interior de um campo de poder sistemati-
camente encoberto pela afirmação desse fundamento. Quem sabe, paradoxalmen-
te, a ideia de representação só venha realmente a fazer sentido para o feminismo
quando o sujeito mulheres não for presumido (BUTLER, 2017, p.24).

Do estudo nos mecanismos de dominação do patriarcado, e da discussão so-


bre o sujeito do feminismo, passa-se a compreensão de gênero e classe a partir do
movimento das mulheres negras.

GÊNERO, CLASSE E RAÇA

No Brasil e na América Latina, a violação colonial perpetrada pelos brancos


contra as mulheres negras e indígenas e a miscigenação daí resultante, está na ori-
gem de todas as construções de nossa identidade nacional, estruturando o mito da
democracia racial latino-americana, que no Brasil chegou até as últimas consequên-
cias. Essa violência sexual colonial é, também, o cimento de todas as hierarquias
de gênero e raça presentes em nossas sociedades, configurado “a grande teoria do

92
esperma em nossa formação nacional”, através da qual, o papel da mulher negra é
negado na formação da cultura nacional; a desigualdade entre homens e mulheres é
erotizada; e a violência sexual contra as mulheres negras foi convertida em reificação
(CANEIRO, 2011).

O que poderia ser considerado como história ou reminiscências do período


colonial permanece vivo no imaginário social e adquire novos contornos e funções
em uma ordem social supostamente democrática, que mantém intactas as relações
de gênero segundo a cor ou a raça instituída no período da escravidão. As mulheres
negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre
a opressão da mulher, não tem reconhecido, assim como não tem dado conta da
diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade
feminina das mulheres negras (CANEIRO, 2011).

Para Saffioti, no que tange aos papéis femininos, a inconsistência cultural do


sistema de castas no Brasil teve consequências de ordens diversas:

As relações de produção prevalentes na ordem escravocrata-senhorial e as


inconsistências culturais do sistema de castas apresentam-se como elemen-
tos decisivos dos papéis que as mulheres, de uma e de outra casta, desem-
penhariam na sociedade brasileira de então. Do ângulo desses dois fatores, o
papel representado pela mulher negra tinha um caráter corrosivo. Com efeito,
a afirmação de Florestan Fernandes de que “a alienação social da pessoa do
negro se processou inicialmente como alienação social da pessoa do escra-
vo” deve ser esmiuçada quando referida especificamente ao elemento femini-
no da escravaria. Como as diferenças de posição econômica dos indivíduos
correspondiam diferenças de posição econômica dos indivíduos correspon-
diam diferenças de posição social, justificada esta em termos de raça e de
cor, a condição de escravo significava para o negro, ser instrumento de tra-
balho sem direitos de nenhuma espécie, ser, enfim, socialmente uma coisa.
Todavia, o processo de coisificação do nefro não foi total. Embora os brancos
lhe tivessem negado, objetiva e subjetivamente, a condição de pessoa huma-
na, acabaram, através da valorização diferencial das funções dos escravos
no processo produtivo, por dispensar tratamentos diferentes, mais ou menos
humanos, aos diversos contingentes da população negra. É verdade que a
maior valorização do escravo artífice representa muito mais o meio adequado
para o atingimento dos fins econômicos do senhor do que uma vinculação
de caráter efetivo. Entretanto, como os verdadeiros motivos da ação perma-
necem ocultos na própria ação, o melhor tratamento dispensado ao escravo
artesão, ainda que representasse um modo refinado como a contrapartida da
reificação (SAFFIOTI, 1976, p. 163).

De modo geral, a luta das mulheres na sociedade não depende apenas da

93
capacidade de superar as desigualdades geradas pela histórica hegemonia mascu-
lina, mas exige, também, a superação de ideologias complementares desse sistema
de opressão, como é o caso do racismo. O racismo estabelece a inferioridade social
dos segmentos negros da população em geral, e das mulheres negras em particular,
operando ademais como fator de divisão na luta das mulheres pelos privilégios que
se designam para as mulheres brancas. Nessa perspectiva, a luta das mulheres ne-
gras contra a opressão de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para
a ação política feminista e antirracista, enriquecendo tanto a discussão da questão
racial, como a questão de gênero na sociedade brasileira (CANEIRO, 2011).

Nesse sentido, a luta das mulheres negras por reconhecimento está intrinse-
camente ligada ao contexto histórico da sociedade brasileira. Para Saffioti, é clara
esta inconsistência social:

A crença de que a miscigenação processada fora dos quadros da família real


não poderia afetar substancialmente as posições recíprocas, que as duas
raças em presença ocupavam no sistema social, denotava, suficientemente,
uma inconsistência quanto à dependência da continuidade da ordem escra-
vocrata-senhorial em relação à composição étnica da população. A crescente
massa de população hibrida, ao lado da incapacidade da população escra-
va de crescer suficientemente a fim de atender as exigências da produção
(em virtude do alto índice de mortalidade nas senzalas) constituía, pois, uma
constante ameaça à ordem estabelecida. Embora homens e mulheres escra-
vos apresentassem componentes existências basicamente semelhantes, as
funções diferentes, que foram obrigados a desempenhar no solapamento da
ordem social estabelecida. Nem o emprego de técnicas mais refinadas no
tratamento do escravo artífice, objetivando a satisfação de interesses econô-
micos do senhor, nem a utilização da mulher escrava enquanto instrumento
de prazer sexual (quer diretamente pelo seu senhor, quer indiretamente quan-
do, numa exploração típica, seu senhor a alugava a outros brancos) seriam
capazes de formar, no escravo em geral, a consciência de sua condição e
condicionar uma atuação social apta a superá-las. Há que se buscar nos pro-
dutos dos papéis sociais dos escravos de ambos os sexos, a participação
diferencial que uns e outros, inconscientemente tiveram no solapamento da
sociedade de castas. Na medida em que a exploração econômica de escrava,
consideravelmente mais elevada que a do escravo, por ser a negra utilizada
como trabalhadora, como mulher e como reprodutora de força de trabalho, se
fazia também através de seu sexo, a mulher escrava se constituía no instru-
mento inconsciente que, paulatinamente, minava a ordem estabelecida, quer
na sua dimensão econômica, quer na sua dimensão familial. A valorização
sexual da mulher negra levava, de uma parte, a comportamentos antieco-
nômicos, por parte do senhor, tais como a venda e a tortura de negros com
os quais aquele competia no terreno amoroso. De outra parte, as relações
sexuais entre senhores e escravas desencadeavam, por mais primárias e ani-
mais que fosse, processos de interação social incongruentes com a expectati-
vas de comportamento, que presidiam à estratificação em castas. Assim, não

94
apenas homens brancos e negros se tronavam concorrentes na disputa das
negras, mas também mulheres brancas e negras disputavam as atenções do
homem branco. Evidentemente, a rivalidade entre brancas e negras não se
configurava totalmente uma competição. Pelo sistema de castas os fins a que
se destinavam umas e outras eram diversos. Embora com isto não se conse-
guisse eliminar as objetivações materiais das relações sexuais entre brancos
e negras, estas se destinavam à satisfação das necessidades sexuais do
senhor enquanto às brancas cabiam as funções de esposa e mãe dos filhos
(SAFFIOTI, 1976, p. 165).

Para Sueli Carneiro (2011), esse novo olhar feminista e antirracista, ao inte-
grar em si tanto as tradições de luta do movimento negro como a tradição de luta
do movimento de mulheres, afirmam essa nova identidade política decorrente da
condição específica do ser mulher negra. O atual movimento de mulheres negras, ao
trazer para a cena política as contradições resultantes da articulação das variáveis
de raça, classe e gênero, promove a síntese das bandeiras de luta historicamente
levantadas pelo movimento negro e de mulheres do país, enegrecendo de um lado,
as reivindicações das mulheres, tornando-as assim mais representativas do conjunto
das mulheres brasileiras, e, por outro lado, afeminando as propostas e reivindicações
do movimento negro.

Para Davis (2016), o movimento das mulheres negras ganha forma, a partir da
combinação do racismo e do sexismo:

À medida que o racismo criava raízes mais estáveis no interior das organizações
das mulheres brancas, o culto sexista da maternidade também se insinuava
no interior do mesmo movimento cujo objetivo declarado era a eliminação da
supremacia masculina. A combinação do sexismo com o racismo fortalecia-
os mutuamente (DAVIS, 2016, p. 127).

Os contornos de consolidação e reconhecimento público empreendidos


pelo movimento das mulheres negras estiveram relacionados à sua incisiva bus-
ca por influenciar e participar de espaços político-institucionais estatais e de or-
ganismos de regulação internacional. Tal estratégia teve por méritos estabelecer
relações profícuas entre o movimento das mulheres negras, o Estado e as orga-
nizações supranacionais, com o movimento ganhando visibilidade no cenário na-
cional e internacional. Contudo, também gera um dilema, pois ao avançar em ter-
mos de visibilidade, de legitimidade perante setores da sociedade dominante, em

95
particular do Estado, o movimento incorre no risco ser aliciado pelos poderes con-
sentidos, perdendo sua capacidade de radicalização e o poder de subversão19
, sendo disciplinado em suas ideias e ações, além do risco de reprodução de elitis-
mos – quando algumas falam por muitas diferentes, desiguais na classe, no gênero,
na raça e em outras inscrições que se pautam por subalternidades ou legitimidades
pendentes. Diante disso, não necessariamente um movimento legitimado socialmen-
te, valorizado, respeitado academicamente pela produção de autoras e autores ne-
gros tem capacidade de democracia participativa, difusão e multiplicação, colaboran-
do com os trabalhos cotidianos de grupos de base e resgate da história e autoestima
das mulheres negras de setores populares (RODRIGUES; PRADO, 2010).

Desse modo, a relação de gênero e classe em analogia às mulhe-


res negras é incontestavelmente cruel e desigual. As mulheres negras estão
em um patamar muito inferior na sociedade em detrimento às mulheres bran-
cas. Dados apontam que as mulheres negras ganham salários 59% menores20
em relação aos homens brancos, uma situação de gritante desigualdade social.

Conforme estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada,


Relato da Desigualdades - Gênero e Raça, conclui-se que as mulheres negras so-
frem dupla discriminação:

Da população negra, aproximadamente a metade é composta de mulheres.


As mulheres negras são mais de 41 milhões de pessoas, o que representa
23,4% do total da população brasileira. São estas que sofrem com o fenô-
meno da dupla discriminação, ou seja, estão sujeitas a “múltiplas formas de
discriminação social (...), em consequência da conjugação perversa do racis-
mo e do sexismo, as quais resultam em uma espécie de asfixia social com
desdobramentos negativos sobre todas as dimensões da vida”. As discrimi-
nações de gênero e raça não são fenômenos mutuamente exclusivos, mas,
ao contrário, são fenômenos que interagem, sendo a discriminação racial fre-
quentemente marcada pelo gênero, o que significa, portanto, que as mulheres
tendem a experimentar discriminações e outros abusos de direitos humanos
de forma diferente dos homens (IPEA, 2017).

Ainda em relação à dupla discriminação vivenciada pelas mulheres negras,


Ina Kerner (2012), discorre sobre semelhanças e paralelos entre racismo e sexismo:
19 Revolta contra a ordem social, política e econômica estabelecida.
20 A média salarial da mulher negra no Brasil quase dobrou nos últimos 20 anos (de R$ 570 em 1995
para R$ 1.027 em 2015) e, ainda assim, é 59% inferior à dos homens (de R$ 2.262 para R$ 2.509) (IPEA,
2017).

96
Apesar de podermos estabelecer semelhanças ou paralelos desse tipo en-
tre racismo e sexismo, ainda falta muito para obtermos um quadro completo
das relações entre ambos os fenômenos. Embora o diagnóstico da analogia
tenha marcado o feminismo de maneira decisiva há bastante tempo - é in-
corporado desde os primeiros movimentos feministas norte-americanos, que
surgiram no contexto do movimento pela abolição da escravidão, passando
por teóricas como Simone de Beauvoir até textos e slogans dos movimentos
de mulheres norte-americanos e da parte ocidental da Europa -, ele é, há mui-
to, incisivamente criticado. Todos, ativistas e cientistas de grupos “raciais” e
étnicos minoritários à frente, argumentaram que entender o racismo e o sexis-
mo como paralelos obstruía a visão para seus entrelaçamentos. Contrárias
a formulações aditivas como o conceito de “tripla opressão”, elas sugeriram
entender o racismo sob a perspectiva de gênero - gendered - e o sexismo
como “racificado” - racialized - e, a partir daí, diferenciar cada variante distinta
de racismo e sexismo. Isso significa partir do pressuposto de que racismo e
sexismo se cruzam de formas diferentes dependendo do contexto e, assim,
também podem se manifestar dessas formas correspondentes. Partindo da
observação de que as figuras de referência implícitas ao contexto de temati-
zação do racismo eram quase sempre homens e que as figuras de referência
implícitas ao contexto da tematização do sexismo eram quase sempre mu-
lheres brancas, nacionais ou que de alguma forma fizessem parte da “cultura
dominante”, foram convincentes ao mostrar que a força explicativa da criação
de analogias é especialmente fraca justamente em relação àquelas pessoas
que sofrem com formas de racismo e sexismo ao mesmo tempo. Disso de-
correu a seguinte recomendação para a análise política e científica: racismo e
sexismo não deveriam ser tratados como problemas análogos - o foco da re-
lação deveria estar antes em seus múltiplos entrelaçamentos e combinações.

Para Kerner (2012), à dimensão institucional, a interseccionalidade de racis-


mo e sexismo resulta em complexo entrelaçamento entre diferentes estruturas ins-
titucionais - um entrelaçamento entre, por exemplo, condições de acesso e perma-
nência no mercado de trabalho, estruturas familiares e a concreta situação da política
educacional. Seu efeito é, entre outros, o fato de que o papel tradicional da mulher
identificado pelo feminismo burguês e “branco” - a saber, a existência como dona de
casa e mãe - nunca se constituiu de fato para as mulheres afro-americanas.

Do estudo de gênero, classe e raça, trar-se-á da trajetória das mulheres ne-


gras no interior do movimento feminista, a partir da visão de Sueli Carneiro.

MINORIA DENTRO DAS MINORIAS: Enegrecendo o feminismo

Enegrecendo o feminismo é a expressão utilizada por Sueli Carneiro, para de-


signar a trajetória das mulheres negras no interior do movimento feminista brasileiro.

97
Busca-se assinalar, com ela, a identidade branca e ocidental da formulação clássica
feminista, de um lado, e de outro, revelar a insuficiência teórica e prática política para
integrar as diferentes expressões do feminino construídos em sociedades multirra-
ciais e multiculturais. Com essas iniciativas, pôde-se engendrar uma agenda espe-
cífica que combateu, simultaneamente, as desigualdades de gênero e intragênero;
afirma-se e visibiliza-se uma perspectiva feminista negra que emerge da condição
específica do ser mulher negra e, em geral, pobre, delineando, por fim, o papel que
essa perspectiva tem na luta antirracista no Brasil (CARNEIRO, 2003).

Ao politizar as desigualdades de gênero, o feminismo transforma as mulheres


em novos sujeitos políticos. Essa condição faz com esses sujeitos assumam, a partir
do lugar em que estão inseridos, diversos olhares que desencadeiam processos par-
ticulares subjacentes na luta de cada grupo particular. Ou seja, grupos de mulheres
indígenas e grupos de mulheres negras, por exemplo, possuem demandas especí-
ficas que, essencialmente, não podem ser tratadas, exclusivamente, sob a ótica da
questão de gênero se esta não levar em conta as especificidades que definem o ser
mulher neste e naquele caso. Essas óticas particulares vêm exigindo práticas igual-
mente diversas que ampliem a concepção e o protagonismo feminista na sociedade
brasileira, salvaguardando as especificidades. Isso é o que determina o fato de o
combate ao racismo ser uma prioridade política para as mulheres negras, questão já
enfatizada por Lélia Gonzalez, “a tomada de consciência da opressão ocorre, antes
de tudo, pelo racial” (CARNEIRO, 2003).

Com maior certeza, essa necessidade premente de articular o racismo às


questões mais amplas das mulheres encontra amparo histórico, pois a variável ra-
cial produziu gêneros subalternizados, tanto no que toca a uma identidade feminina
estigmatizada (das mulheres negras), como a masculinidades subalternizadas (dos
homens negros) com prestígio inferior ao do gênero feminino do grupo racialmente
dominante (das mulheres brancas).

Para Sueli Carneiro (1996, p. 190):

Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, pro-


vavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas este mito,
porque nunca foram tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente

98
de mulheres que trabalham durante séculos como escravas nas lavouras ou
nas ruas como vendedoras, quituteiras, prostitutas etc.; mulheres que não en-
tenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ga-
nhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com
identidade de objeto. Ontem a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores
de engenho tarados. Hoje empregadas de mulheres liberadas e dondocas, ou
mulatas tipo exploração.

Em face dessa dupla desvalorização, é válida a afirmação de que o racismo


rebaixa o status dos gêneros. Ao fazê-lo, institui como primeiro degrau de equaliza-
ção social a igualdade intragênero, tendo como parâmetro os padrões de realização
social alcançados pelos gêneros racialmente dominantes. Por isso, para as mulheres
negras atingirem os mesmos níveis de desigualdades existentes entre homens e mu-
lheres brancos significaria experimentar uma extraordinária mobilidade social, uma
vez que os homens negros, na maioria dos indicadores sociais, encontram-se abaixo
das mulheres brancas (CARNEIRO, 2003).

A diversificação das concepções e práticas políticas que as óticas das mulhe-


res dos grupos subalternizados introduzem no feminismo é resultado de um processo
dialético que, se, de um lado, promove a afirmação das mulheres em geral como no-
vos sujeitos políticos, de outro exige o reconhecimento da diversidade e desigualda-
des existentes entre essas mesmas mulheres (FERNANDES, 2016).

O feminismo negro utiliza-se da força semântica do termo feminismo, ou seja,


apoia-se em um conceito já solidificado que se dirige a questões mais amplas, como
acesso à educação, combate à pobreza, fomento de políticas específicas para as
mulheres etc. O movimento é visto como um espaço exclusivo de mulheres negras
que estariam lutando contra os homens. Compreendo que o racismo diz respeito ex-
clusivamente aos negros e que o machismo é necessariamente uma luta contra os
homens, como se não houvesse machismo entre as mulheres, como se a questão do
racismo não fosse de todos (FERNANDES, 2016).

Ainda tratando da carga semântica embutida no termo feminismo, este termo


designa as teorias e as práticas políticas empenhadas na libertação de todas as mu-
lheres, independentemente de questões raciais, origem étnica, orientação sexual etc.
Por isso, o combate não deve se limitar ao machismo e, sim, estender-se ao racismo,
bem como às lutas contra as desigualdades sociais, contra a homofobia, contra a

99
xenofobia. Neste sentido, o sujeito racista não poderia definir-se como feminista, tal
a incompatibilidade dos termos (FERNANDES, 2016).

A consciência de que a identidade de gênero não se desdobra naturalmen-


te em solidariedade racial intragênero conduziu as mulheres negras a enfrentar, no
interior do próprio movimento feminista, as contradições e as desigualdades que o
racismo e a discriminação racial produzem entre as mulheres, particularmente entre
negras e brancas no Brasil. O mesmo se pode dizer em relação à solidariedade de
gênero intragrupo racial que conduziu as mulheres negras a exigirem que a dimen-
são de gênero se instituísse como elemento estruturante das desigualdades raciais
na agenda dos Movimentos Negros Brasileiros (CARNEIRO, 2003).

Essas avaliações vêm promovendo o engajamento das mulheres negras nas


lutas gerais dos movimentos populares e nas empreendidas pelos Movimentos Ne-
gros e Movimentos de Mulheres nos planos nacional e internacional, buscando asse-
gurar neles a agenda específica das mulheres negras. Tal processo vem resultando,
desde meados da década de 1980, na criação de diversas organizações de mulheres
negras que hoje se espalham em nível nacional; de fóruns específicos de discussões
programáticas e instâncias nacionais organizativas das mulheres negras no país a
partir dos quais os temas fundamentais da agenda feminista são perscrutados pelas
mulheres negras à luz do efeito do racismo e da discriminação racial. Nesse sentido,
aponta-se aos principais vetores que nortearam as propostas do movimento, o que
resultou em mudanças efetivas na ótica feminista (CARNEIRO 2003).

Por isso, o desafio inicial do movimento feminista é agir no sentido de com-


bater o machismo incorporado nas práticas das mulheres. Isto porque a ideologia da
supremacia masculina não diz apenas da superioridade dos homens, também fala da
inferioridade do ser feminino. Assim, ensiná-las a desaprender o sexismo (FERNAN-
DES, 2016).

100
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo pretendeu analisar como surgiu o movimento das mulheres


negras dentro do movimento feminista. A dominação do patriarcado, ainda inscrita no
inconsciente coletivo da sociedade, que historicamente se agregou a diferentes sis-
temas (político, religioso e outros), e continua exercendo um papel dominador muito
importante na genealogia formativa de reações e respostas libertárias próprias das
últimas décadas do século passado, e com um vigor ainda maior neste começo de
século XXI.

Embora se evoluiu em termos de positivação de uma quantidade significativa


de dispositivos voltados à proteção dos dominados e violentados, as comunicações
do sistema patriarcal não foram interrompidas fazendo com que a dominação mas-
culina se perpetue.

Esse estudo teve como base a teoria feminista, que em sua essência, tem
presumido que existe uma identidade definida, compreendida pela categoria de mu-
lheres, que não só deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu
próprio discurso, mas constitui o sujeito mesmo em nome de quem a representação
política é almejada. Desta compreensão de sujeito do feminismo, passa-se para aná-
lise de gênero, classe e raça, vivenciado pelas mulheres negra por meio do racismo
e do sexismo colonial branco.

O feminismo negro tomou forma a partir do movimento das mulheres em razão


do racismo e sexismo sofrido pelas mulheres negras dentro do movimento feminista.
A consciência de que a identidade de gênero não se desdobrou naturalmente em
solidariedade racial e conduziu as mulheres negras a enfrentar, no interior do próprio
movimento feminista, as contradições e as desigualdades que o racismo e a discri-
minação racial produzem entre as mulheres, particularmente entre negras e brancas.

A relevância desta pesquisa repousa no sentido que de as mulheres negras es-


tão historicamente em um patamar muito inferior às mulheres brancas e pior ainda e
relação aos homens brancos. O desafio do movimento feminista é agir no sentido de
combater o machismo incorporado nas práticas das mulheres. Isto porque a ideolo-

101
gia da supremacia masculina não diz apenas da superioridade dos homens, também
fala da inferioridade do ser feminino. Dessa forma, o feminismo negro busca dar lugar
à estas mulheres na sociedade atual, dando-lhes reconhecimento e identidade.

REFERÊNCIAS
ANGELIN, Rosangela; UNSER, Rosemara. DIREITOS HUMANOS DAS MULHE-
RES NUM CONTEXTO PATRIARCAL: RESISTÊNCIA E AVANÇOS. Disponível
em:< https://www.publicacoeseventos.unijui.edu.br/index.php/salaoconhecimento/
article/view/7219/5984> Acesso em: 02 fev. 2018.

BUTLER, Judith P. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identida-


de.- 13ª ed.- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

BRITO, Leandro Teófilo de. A Noção De Performatividade Para Pensar Os Sen-


tidos Atribuídos Ao Masculino No Espaço Da Educação Física Escolar. Dispo-
nível em:<http://www.uneb.br/enlacandosexualidades/files/2015/07/Trabalho-Enla%-
C3%A7ando-Sexualidades-1-2015.pdf> Acesso em: 25 out.2017.

CARNEIRO, Sueli. Mulheres em Movimento. Disponível em: <http://www.scielo.br/


scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000300008> Acesso em: 21 out.
2017.

_______.Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América La-


tina a partir de uma perspectiva de gênero. Disponível em:<https://www.geledes.
org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-partir-
-de-uma-perspectiva-de-genero/> Acesso em 21 out. 2017.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

FARAH, Tatiana. Disparidades salariais homem-mulher. Disponível em:<https://


www.buzzfeed.com/tatianafarah/disparidades-salariais-homem-mulher-ipea?utm_

102
term=.pm66R90Kyk#.et30VmkAga> Acesso em: 29 out. 2017.

HAHN, Noli Bernardo; ANGELIN, Rosângela. A CONTRIBUIÇÃO DOS MOVIMEN-


TOS FEMINISTAS PARA A CULTURA DOS DIREITOS HUMANOS MEDIANTE A
PESPECTIVA DA RACIONALIDADE DESCENTRADA. In: Policromias da diferença:
inovações sobre pluralismo, direito e interculturalidade. Lisboa: Editora Juruá, 2015.

KERNER, Ina. Tudo é interseccional? Sobre a relação entre racismo e sexis-


mo. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0101-33002012000200005> Acesso em: 29 out. 2017.

MATTOS, Patrícia. O reconhecimento, entre a justiça e a identidade. Lua Nova,


nº 63, p. 143-161. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n63/a06n63.pd-
f&gt;> Acesso em: 12 fev. 2018.

RODRIGUES, Cristiano Santos; PRADO, Marco Aurélio Maximo. Movimento de Mu-


lheres Negras: Trajetória Política, Práticas Mobilizatórias e Articulações com
o Estado Brasileiro. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/psoc/v22n3/v22n3a05.
pdf> Acesso em: 29 out. 2017.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A Mulher na sociedade de classes: mito e


realidade. Petrópolis: Vozes, 1976.

______. Gênero, patriarcado e violência.- São Paulo: Editora Fundação Perseu


Abramo, 2004.

______. Mulher brasileira é assim/ oeganizadoras, Heleieth Saffioti, Monica Muño-


z-Vargas – Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos: NIPAS; Brasília, DF: Unicef, 1994.

SANTOS, André Leonardo Copetti; LUCAS; Doglas, Cesar. A (in)diferença no Direi-


to.- Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

103
VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A CONSTRUÇÃO DAS
RELAÇÕES DE GÊNERO DE HOMENS AUTORES DE
ABUSO SEXUAL CONTRA CRIANÇAS

Mirela Massia Sanfelice21

INTRODUÇÃO

Este artigo é uma produção inédita e propõe discutir sobre questões emer-
gentes como gênero, abuso sexual, o papel do homem e da mulher na sociedade
e a importância da educação. Propõe-se a uma discussão sobre o modo como se
constroem e se reproduzem as relações de gênero que levam homens a cometerem
abuso sexual contra crianças. Seu ponto de partida são os resultados da pesquisa
realizada com homens autores de abuso sexual contra crianças em Santa Maria no
Rio Grande do Sul – Brasil. Os resultados obtidos foram desenvolvidos pela autora
na dissertação de Mestrado em Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa
Maria. Esta pesquisa se insere no campo da grande área dos estudos de gênero e
trata, mais especificamente, da violência de gênero. Buscou-se apoio teórico nos
estudos de Heleieth Saffioti, sendo uma das precursoras dos estudos de gênero no
Brasil, para quem a identidade social de homens e mulheres é construída por meio
das atribuições dos distintos papéis que a sociedade confere às diferentes catego-
rias de sexo. A sociedade, através do sistema patriarcal de gênero, delimita os cam-
pos em que a mulher pode atuar e, do mesmo modo, delimita os campos em que o
homem pode operar (SAFFIOTI, 1987).

De acordo com Saffioti e Almeida (1995), a violência de gênero se caracteriza


por ser um fenômeno social que desconhece fronteiras de classes sociais, tipos de
culturas, grau de desenvolvimento econômico ou lugar, podendo ocorrer tanto no
espaço público quanto no privado. Esse tipo de violência engloba, além da violência

21 Psicóloga, Especialista em Psicologia Clínica: Ênfase em saúde comunitária (UFRGS), Especialista em


Psicologia Jurídica (CFP) e Mestre em Ciências Sociais pela UFSM.

104
de homens contra mulheres, a violência contra crianças e a violência entre homens.
Welzer-Lang (2004) afirma que a violência, especialmente a doméstica, tem um gê-
nero, o masculino, qualquer que seja o sexo do dominante.

Saffioti e Almeida (1995) utilizam a expressão “violência de gênero” como um


padrão específico de violência que visa à preservação da organização social de gê-
nero, a qual fundamenta a hierarquia e a desigualdade que subalternizam o gênero
feminino. Essa organização se amplia e se reafirma à medida que o poder masculi-
no é ameaçado. A violência de gênero se caracteriza por apresentar duas faces da
mesma moeda, ou seja, o poder e a impotência. Na visão das autoras, a violência
de gênero é produzida no interior das densas relações de poder de quem a perpetra
para exercer a dominação-exploração.

Com o artigo, busca-se chamar atenção à necessidade de lançar um olhar


sobre o problema a partir da perspectiva dos homens, além de enfatizar a neces-
sidade de pesquisas cientificas envolvendo os homens autores de abuso sexual
contra crianças e possíveis intervenções psicossociais e educacionais. A escassa
quantidade de pesquisas com esse público ocorre devido ao receio de que homens
acusados e condenados por abuso sexual cometam algum tipo de violência contra
os pesquisadores, já que, no imaginário social, eles são “perigosos”, frequentemen-
te reduzidos a uma patologia. Outro empecilho é a dificuldade de acesso aos par-
ticipantes, tendo em vista que, os homens autores de abuso sexual se encontram,
muitas vezes, encarcerados. Soma-se a isso a dificuldade que a própria sociedade
tem de abordar temas considerados tabu como o abuso sexual, percebendo-o, em
geral, como um fenômeno individual, frequentemente associado a casos particula-
res divulgados pela mídia. Quando, na verdade, o abuso sexual se configura como
uma das formas da violência de gênero, deixando de ser um problema individual e
se tornando um problema social (SAFFIOTI, 2004).

DESENVOLVIMENTO

A definição do campo de pesquisa ocorreu através de dois principais critérios:


primeiro foi escolhida a cidade de Santa Maria por apresentar um alto índice de abu-
sos sexuais na cidade e na região e pela facilidade de acesso aos participantes, já
que a pesquisadora trabalhava como psicóloga de um setor específico de instituição

105
prisional.

Participaram desta pesquisa seis homens condenados por abuso sexual con-
tra crianças e quatro companheiras dos condenados. Os resultados da pesquisa
indicam que cinco crianças abusadas sexualmente eram do sexo feminino e uma
criança do sexo masculino. A coleta de dados foi realizada no presídio e no domicílio
de dois homens condenados por abuso sexual contra crianças, os quais estavam
em prisão domiciliar, e na residência de três companheiras dos participantes. Em
todos esses ambientes da pesquisa, os participantes foram todos acolhedores e
respeitosos. Os participantes demonstraram se sentir mais à vontade em contar
sua história de vida por meio de entrevista aberta, pois assim, relataram a maneira
como transcorreram suas relações de gênero que antecederam a denúncia e a con-
denação por abuso sexual contra crianças. Destaca-se, a necessidade de mudança
das técnicas de entrevista, passando de entrevista semi-estruturada para entrevista
aberta, de acordo com a demanda.

Os dados coletados foram discutidos a partir das falas dos participantes e de


suas companheiras assim como através dos depoimentos que constam nos autos
dos processos jurídicos no Foro de Santa Maria, autorizados pelo Comitê de Ética
da UFSM, bem como, por todas as instituições envolvidas. Foi considerada a histó-
ria de vida dos participantes, na qual foram observadas as relações de gênero de
homens autores de abuso sexual contra crianças em Santa Maria.

A construção social da Infância e seus marcos teóricos

Ao longo da história, têm-se três doutrinas que registram as transformações


ocorridas no desenvolvimento da infância. A primeira doutrina, denominada “Doutri-
na do Direito Penal do Menor”, referia-se à aplicação da lei ao menor. Essa foi a pri-
meira vez que o termo “menor” foi citado na legislação brasileira. A preocupação so-
cial e jurídica referia-se ao recolhimento e reclusão de menores. Os menores nessa
nova legislação compreendiam os abandonados, infratores, vitimizados socialmente
e principalmente os denominados menores delinquentes. Nesse período entre 1927

106
a 1979, os menores somente interessavam ao direito a partir do momento em que
praticavam ou sofriam alguma ação possível de ser alcançada pela norma penal.
Cabe salientar que, nos países em que essa doutrina é aplicada, é feita pouca ou
até nenhuma distinção entre a criança e o adulto no que se refere à inimputabilidade
(SARAIVA, 1999).

A Doutrina da Situação Irregular foi à segunda doutrina adotada no Brasil,


quando foi elaborado e implementado o Código de Menores de 1979. Essa doutrina,
apesar de ultrapassada, constituiu-se um avanço em detrimento da doutrina ante-
rior. O menor passa a ser visto como aquele que está em uma “situação irregular”,
ou seja, passa a ser percebido como uma patologia social. Passa-se a distinguir
menores infratores de menores abandonados ou vitimizados. Assim, foram criadas
as primeiras instituições voltadas ao atendimento do menor infrator, denominadas
“Fundação do Bem-Estar do Menor - FEBEM” e os abrigos (SARAIVA, 1999).

Posteriormente, a Doutrina de Proteção Integral surge com intuito de trans-


cender paradigmas e passa pela primeira vez na história do Brasil a incluir a termi-
nologia “criança” na legislação brasileira. Esta doutrina fundamenta a elaboração
do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990, e todos os direitos de crianças
e adolescentes passam a ser reconhecidos. A Doutrina de Proteção Integral tem
por base a Convenção das Nações Unidas para o Direito das Crianças. As leis do
sistema jurídico brasileiro voltado à infância passa a garantir todos os seus direitos
através da lei (SARAIVA, 1999).

Neste sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, o qual corres-


ponde à Lei Federal 8.069/1990 de 13 de julho de 1990, em suas Disposições Pre-
liminares, destaca-se o Art. 1º “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança
e ao adolescente”. E a utilização do termo criança justifica-se através do Art. 2, no
qual “Considera-se criança, para efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade
incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”. No que se
refere à violência sexual, pode-se citar o Art. 17 do ECA. Segundo ele, “o direito ao
respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança
e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autono-
mia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”. O Art. 18 vai

107
ao encontro dessa perspectiva ao citar que “é dever de todos velar pela dignidade
da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano,
violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor. As três doutrinas que vigoraram
no Brasil ilustram a forma como os chamados menores eram percebidos pela so-
ciedade e o lugar que ocupavam correspondia a um lugar marginalizado. Ou seja,
desde as primeiras legislações, a criança é retratada como marginalizada e fica à
mercê dos adultos. Esse período se caracterizou pelo adultocentrismo.

Somado a isso, Lyra e colaboradores (2005) citam que a construção social da


infância, ocorrida durante a história, direcionou o cuidado e a criação dos filhos à
esfera feminina, e os homens foram cada vez mais se afastando do universo infantil.
Este fenômeno é ainda hoje percebido no sistema educacional em que os profes-
sores são praticamente mulheres. De outro modo, o âmbito da atuação masculina
prevalece no âmbito público exigindo dos homens uma conduta de enfrentamento
de riscos e mais vulneráveis às diversas formas de violência.

Nesta perspectiva, o abuso sexual cometido por homens autores de violên-


cia contra crianças se insere no campo da violência de gênero. Conforme Faleiros
e Campos (2000), o termo “abuso sexual” é o mais difundido e popularizado para
designar as situações de violência sexual contra crianças e adolescentes. De acor-
do com Sanderson (2005), o abuso sexual em crianças é de natureza social, tendo
em vista que é influenciado pela cultura e pelo tempo histórico em que ocorre, o
que dificulta uma definição aceita universalmente. Um importante problema que se
encontra ao se desenvolver uma definição, corresponde à decisão de quais atos
sexuais são abusivos ou não, o que inclui tanto comportamentos de contato quanto
de não-contato. Sabe-se que crianças de ambos os sexos são vítimas de abuso se-
xual, mas as estimativas apontam as meninas como as mais vulneráveis. Diferenças
de gênero na socialização das crianças podem apresentar um importante papel na
maneira como os homens interpretam o abuso sexual em crianças e lidam com ele.

A escolha pela utilização do conceito de abuso sexual em detrimento de outros


termos refere-se ao fato de o conceito de abuso sexual envolver o caráter relacional
e histórico. Mello (2006) explica que o termo abuso sexual sofreu transformações
ao longo da história e se tornou objeto do conhecimento científico, passando a ser

108
registrado de diferentes formas, seja através de exames clínicos, de modo que o
abuso sexual infantil passou a ser registrado e representado.

As estatísticas mostram que o agressor geralmente é o pai, irmão, padrasto


ou avô. A autora cita que 87% dos abusos sexuais contra crianças são cometidas
por algum conhecido, familiar, vizinho ou amigo da família. (SAFFIOTI, 2004b; SAN-
DERSON, 2005; WILLIANS & ARAUJO, 2009).

Salienta-se que a característica central desses autores de abuso sexual é o gênero


a qual pertencem, ou seja, o gênero masculino.

Teorias sobre a Violência de Gênero

Três correntes teóricas fundamentam os estudos sobre a violência contra a


mulher e a violência de gênero. Neste contexto, o uso da categoria gênero introduz
os estudos sobre violência contra a mulher uma nova terminologia para discutir este
fenômeno social, ou seja, a violência de gênero.

A primeira corrente é a “dominação masculina” e fundamentou os primeiros


estudos sobre a violência contra a mulher, os quais foram realizados na década
de oitenta. Estes primeiros estudos contribuíram para dar visibilidade à dominação
masculina e às relações de poder envolvidas nas relações violentas. Uma das prin-
cipais teóricas que se tornou referência na análise da violência contra as mulheres
é a filósofa Marilena Chauí. Concebe este fenômeno como resultado de uma ideo-
logia da dominação masculina, exercida e reproduzida tanto por homens como por
mulheres. As mulheres são compreendidas como cúmplices e sujeitos destituídos
de autonomia, contribuindo, assim, para a reprodução de sua dependência, tornan-
do-se instrumentos da dominação masculina.

A segunda corrente teórica que embasa os estudos sobre a violência de gênero


foi introduzida no Brasil pela socióloga Heleith Saffioti (SANTOS EIZUMINO, 2005).
Essa corrente é denominada de “dominação patriarcal” e a partir dela, a violência
passa a ser compreendida como expressão do patriarcado. Nessa perspectiva, a
dominação masculina está relacionada aos sistemas capitalista e racista, portanto,
além de ser um sistema de dominação masculina, afirmado pela ideologia machista,
é, sobretudo, um sistema de dominação-exploração. Essa forma de dominação está

109
inserida nos campos ideológicos e políticos, enquanto a exploração também está
vinculada diretamente ao campo econômico. Deste modo, a mulher passa a ser con-
cebida como sujeito social autônomo, porém historicamente vitimizada pelo controle
social masculino(SAFFIOTI, 1987, 2004; SANTOS E IZUMINO, 2005).

A partir desta corrente teórica, entende-se que a mulher possui autonomia e


apesar de ser dominada pelo sistema de opressão, não está assim “engessada”,
sem possibilidades de mudança. Entende-se também que os homens, do mesmo
modo que as mulheres são vitimizados pela ordem patriarcal de gênero. Isto pode
ser observado através da severa punição atribuída ao homem autor de abuso sexual
pelos apenados condenados pelos demais crimes e pela sociedade em geral.

De acordo com Santos e Izumino (2005), a terceira corrente teórica é intitulada


relacional. Nesta perspectiva, as relações de violência consistem numa forma de co-
municação e de um jogo, no qual a mulher é percebida como “cúmplice”. Portanto,
a violência de gênero pode ser entendida como o resultado das relações de poder
e força entre o masculino e o feminino, sendo tanto os homens quanto as mulheres
responsáveis pela manutenção dessas relações. Uma das principais teóricas da
corrente teórica relacional foi à cientista social e antropóloga Maria Filomena Grego-
ri. Destaca-se que, nesta abordagem teórica, a violência é entendida como resulta-
do das relações de gênero, nas quais as relações violentas também podem ser uma
forma de comunicação, ainda que perversa.

O gênero atua de modo a construir as diferenças, mas não as transforma


em desigualdades, isto é, a perspectiva de gênero não direciona e nem mostra o
vetor da desigualdade. (SAFFIOTI, 2004a). Torna-se correto afirmar que a violência
de gênero não pode ser entendida como sinônimo da violência contra a mulher. A
violência de gênero se distingue das demais formas de violência, pois possui uma
ampla dimensão e não indica o vetor dominação-exploração a um único alvo. A vio-
lência de gênero é um fenômeno universal que atinge mulheres, crianças e homens,
independente de idade, grau de instrução, classe social, raça/etnia e orientação
sexual.

110
RESULTADOS E DISCUSSÃO

Apresenta-se como resultado as relações de gênero construídas durante a


infância de homens que cometem abuso sexual contra crianças, bem como, uma
reflexão sobre o modo como eles a reproduzem em forma de violência. Os homens
autores de abuso sexual contra crianças em Santa Maria, participantes deste estudo
são todos brancos, têm baixa escolaridade e vieram do meio rural para a cidade
em busca de trabalho. Seus pais, eram agricultores e se dedicavam à plantação
de arroz e soja, casaram jovens e tiveram muitos filhos. Em relação á profissão, os
homens que foram entrevistados são mecânicos (dois homens), auxiliares de pe-
dreiro (dois homens), chacareiro, e controlador de vôo. Quanto à religião são evan-
gélicos, exceto um que é umbandista. Em geral, na infância, realizavam atividades
descritas como masculinas. Acampavam em fazendas, conviviam com peões, “pu-
xavam cavalo para capinar arroz” e entregavam viandas aos trabalhadores. Devido
à família ser numerosa, todos eles, desde pequenos, foram incentivados ao traba-
lho na lavoura. Conforme seus depoimentos, todos os filhos, homens e mulheres,
tinham o dever de acompanhar os pais com o objetivo de aprender o trabalho no
campo. As meninas acompanhavam a mãe na lavoura e, ao retornarem, eram
as responsáveis pelo trabalho doméstico, o que incluía a limpeza da casa e a pre-
paração dos alimentos, além do cuidado com os irmãos menores. Essas deveriam
sempre respeitar e ocupar uma posição de cuidado, responsabilidade e afeto. O
comportamento dos filhos homens era menos criticado e lhes foi ensinado que
deviam ser líderes, seguir o modelo do pai, ou seja, ser o

provedor do lar e detentor do poder sobre a família.

Os homens autores de abuso sexual contra crianças destacam que não era
permitido que crianças participassem da conversa de adultos. Relembram que não
possuíam um relacionamento de intimidade com os pais. Segundo eles, “teria evi-
tado muitas coisas se soubessem o que certo e o que é errado”.

Eles reclamam que, durante o período de sua infância, as crianças tinham mui-
tos deveres e poucos direitos. Isso se confirma por estudos que comprovam que a
criança passou a ter direitos com o advento do reconhecimento da infância no sécu-

111
lo XX, com a instituição do Estatuto da Criança e do Adolescente, somente em 1990.

Há consenso entre os depoimentos dos participantes sobre a educação que


receberam. Eles afirmam que tiveram uma educação rígida e conservadora. Os pais
não demonstravam e nem transmitiam afeto, eram mais severos que as mães e
batiam com frequência, uma vez que, a família era numerosa e sempre havia al-
gum desentendimento entre irmãos. Os participantes possuem em comum o fato
de, logo, após o período da infância, terem o primeiro relacionamento amoroso e
terem casado com as primeiras namoradas, constituindo assim, sua própria família.
Isto porque naquele período a adolescência ainda não era vivenciada, não havia
transição entre a infância e a idade adulta. Logo após a infância os participantes da
pesquisa constituíram sua própria família.

Em relação às construções das relações de gênero, os homens entrevistados


recordam que suas mães eram boas donas de casa e não deixavam faltar nada. Afir-
mam também que suas mães não tinham a liberdade que as mulheres de hoje têm.
Mencionam que antigamente as mulheres respeitavam a família, eram dedicadas ao
lar e as atividades domésticas, sabiam bordar e costurar. Os homens pesquisados
chamam atenção para o fato de as mulheres de hoje não saberem nem cozinhar e
não serem mais “prendadas como antigamente”. Também citam que suas mães não
possuíam a liberdade de circular por ambientes predominantemente masculinos.
Um dos participantes do estudo cita como exemplo, a pesquisadora que freqüen-
ta um presídio para entrevistar homens. “Naquele tempo, não existia isso...(risos)
uma mulher vir no presídio...entrevistar homens, hoje estão mais espertas que os
homens”.

Em relação aos pais, eles salientam que, como homens, tinham o direito à re-
lação sexual sem o consentimento da esposa. Da parte da mulher, atender o desejo
sexual do marido, era dever conjugal. Na visão dos participantes, os homens podem
ter vários relacionamentos, pois são as mulheres que devem impor o limite. Citam
que foi durante a busca por estabilidade econômica e os momentos de prazer do ho-
mem, como por exemplo, as festas e os bailes, que a família nuclear foi crescendo,
sendo, portanto, responsabilidade da esposa a criação dos filhos.

Os homens autores de abuso sexual pesquisados não negam, nem se sentem

112
constrangidos ao afirmar que mantiveram muitos casos extraconjugais. Segundo
eles, as outras mulheres eram suas “namoradas”. Afirmam ainda que suas esposas
sabiam dos relacionamentos, mas não queriam se separar, o que reafirma a ideolo-
gia masculina predominante. Neste sentido, a situação da mulher, presenciada na
infância, provavelmente contribuiu para que esses homens percebessem as mu-
lheres da família como inferiores, o que legitimou mais facilmente o poder exercido
sobre a mulher. A figura feminina, para eles, esta associada a valores negativos, a
crenças de que a mulher é incapaz de realizar uma atividade fora do lar, incapaz de
usar a razão e lutar contra imposições. Esses fatores são tomados como inerentes
às mulheres, ou seja, naturaliza-se essa condição, transmitindo-as assim através de
gerações.

Salienta-se que os homens têm muito mais condições socioeconômicas para


desenvolverem seus potenciais, pois possuem melhores oportunidades de empre-
gos, estão autorizados socialmente a frequentar diversos ambientes, o que acaba
por caracterizar a vida de homem no âmbito público. Ao contrário, ás mulheres é
mais atribuído socialmente o ambiente privado, ratificando o dito popular, o qual afir-
ma “lugar de mulher é em casa”. Enfatiza-se através do exposto, que as mulheres
não possuem as mesmas oportunidades que os homens. Entende-se, com isso, que
a ideologia dominante transmite valores no sentido de naturalizar as potencialidades
femininas desenvolvidas. Através dos depoimentos, constata-se que os participan-
tes entendem os papéis sociais atribuídos aos homens e às mulheres de modo es-
sencialista e fixo, ou seja, não há para eles possibilidades de mudança.

Verifica-se que as companheiras dos homens autores de abuso sexual con-


tra crianças atribuem a outras mulheres a responsabilidade pelo abuso sexual de
seus companheiros. A fala da companheira de um dos homens exemplifica esse
pensamento: - “Minhas amigas vieram me contar que Silvio (nome fictício) estava
se beijando com outras mulheres nos bailes, perdeu a cabeça, logo ele vai ver que
elas não prestam, só querem tirar o dinheiro dele. Aí ele volta pra casa, pra família”.
Comprova-se que o poder, como descreve Saffioti (1987), está a serviço de quem
controla o poder econômico e político na família e na sociedade (SAFFIOTI, 2007).
O poder masculino está presente nas classes dominantes e nas subalternas, exer-

113
ce o poder sob os menos privilegiados na escala social.

De acordo com Saffioti, (1987; 2004b) apesar das transformações sociais, a


maioria dos homens se omite na educação dos filhos e ainda, quando educam, não
se posicionam criticamente sobre o modo como foram socializados. De acordo com
os resultados da pesquisa há contradições visíveis geradas pela desigualdade de
gênero que privilegia os homens em maior escala e subjuga as mulheres, também
em maior escala. Mais que isso, ao alimentarem os modelos de mulheres honradas
e desonradas (termos utilizados por eles), os homens e as mulheres trabalham para
a reprodução e perpetuação das desigualdades de gênero.

Quanto aos relacionamentos sexuais, os homens pesquisados afirmam que


os pais nunca conversaram sobre esse assunto, pois era um tema proibido. Argu-
mentam que tudo que aprenderam, aprenderam sozinhos, na rua. A primeira relação
sexual dos homens autores de abuso sexual contra criança em Santa Maria foi entre
9 e 13 anos, com mulheres mais velhas. Este dado, além de apresentar o caráter
marcado de gênero, apresenta uma transformação do gênero para geração, ou seja,
os homens tiveram sua primeira experiência com uma mulher com idade superior à
deles. Eles entendem essa situação como “iniciação sexual do homem”, o que tam-
bém pode ser vista como abuso sexual.

No caso da condenação por abuso sexual, foram condenados por manter re-
lações sexuais com crianças do sexo feminino. Isso culturalmente não se pode ca-
racterizar como iniciação sexual, já que os abusos duraram anos até que fosse
realizada a denúncia. Ao mencionarem a causa de sua condenação, afirmam que
os pais não os criaram para serem “marginais”, portanto, não se consideram cul-
pados. Segundo eles, “estão presos”, mas é uma condição que impuseram a eles.
Na visão dos participantes, a separação do casal ocorreu porque acabou o amor e
não pelas relações de violentas, permeadas por violência psicológica e pelo abuso
sexual. Argumentam que antigamente não se separavam. Foram socializados para
constituir família e ser o chefe do lar, assim como seus pais. Afirmam ainda que,
atualmente, a

mulher faz as mesmas atividades que os homens e consideram isso um ganho para
as mulheres. No entanto, as brigas, as relações violentas, tornaram-se frequentes,

114
pois as mulheres não aceitam mais viver do modo que suas mães viviam, ou seja,
não querem ser mais submetidas às leis do homem. Essa reflexão foi feita pelo
participante mais jovem da pesquisa e indica que pode estar relacionado ao fato
de ele viver justamente nessa fase de transição da luta das mulheres por direitos e
melhores condições. Ele consegue perceber a diferença nas atitudes de sua mãe e
de sua ex-esposa em não se submeter à imposição do homem. Justifica a atitude
da ex-esposa, mas defende a posição de sua mãe em permanecer subordinada à
família.

Alguns estudos como os de Goldani (2002) e Cortizo e Goeneche (2010) têm


demonstrado que as atuais transformações no mundo do trabalho têm afetado em
muitas áreas de atuação masculina, como por exemplo, os homens têm dificuldade
em se manterem sendo os provedores do lar, alterando significativamente a configu-
ração familiar. Neste sentido, as mulheres têm se empoderado, passando sua atua-
ção da esfera privada também à esfera pública. Em contrapartida, entende-se que
a categoria social homens não tem conseguido grandes avanços, pois sua atuação
na área do trabalho tem sido percebida como ameaçada pelas mulheres, além de a
maioria não saber como exercer a paternidade de forma satisfatória.

A fim de tornar público o cotidiano de famílias que vivem relações violentas,


destaca-se que os abusos sexuais duraram em média de três a cinco anos. O pe-
ríodo da denúncia até a condenação destes homens durou aproximadamente três
anos. As denunciantes foram outras ex-companheiras dos participantes. De acordo
com dados obtidos nos autos dos processos jurídicos, no período entre a acusação
e a condenação, o qual durou em média três anos a família permaneceu morando
junto, somente após a condenação as esposas vieram a se separar.

As crianças vítimas de abuso sexual já haviam relatado às mães sobre o com-


portamento destes homens, seus pais, avós e padrastos. Em um dos depoimentos
a criança, afirma que sua mãe recomendou que ela gritasse bem alto caso “isso”
ocorresse novamente. Portanto, em uma das investidas a criança gritou e posterior-
mente foi espancada. Em outra tentativa, contrariada com o abuso sexual decidiu
correr para casa da vizinha. Foi neste momento

que tornou público o abuso sexual para a vizinha.No caso desta criança ela afirma

115
que a mãe e os irmãos também crianças, tinham conhecimento dos abusos sexuais,
pois o pai mandava os meninos saírem de casa. Isto demonstra que estas mulhe-
res tinham consciência dos abusos sexuais sofridos pelas crianças e não tiveram
coragem para denunciar, uma vez que, alegam medo e dificuldades financeiras. Do
mesmo modo, conforme verificado nos relatos dos autos dos processos jurídicos,
os homens tinham consciência e até mesmo premeditavam a ocorrência do abuso
sexual. Constatou-se que os participantes acreditam ter o direito sobre seus filhos e
mulheres, o que inclui o direito sexual sobre eles.

Do mesmo modo, ocorreu no caso de outra criança, a qual foi abusada sexual-
mente pelo pai e pelo avô paterno durante anos. A criança com seis anos de idade
pediu para que a mãe não deixasse mais o avô frequentar sua casa, pois ele fazia
brincadeiras de que ela não gostava. A mãe da menina afirma em seu depoimento
nos autos do processo jurídico que “já tinha desconfiado, porque ele gostava de
brincar com as crianças atrás do galpão”.

Verifica-se que houve uma inversão dos papéis sociais culturalmente atribuí-
dos à mulher e ao homem. As mulheres apresentam maior flexibilidade em exercer
diferentes papéis sociais, são acostumadas a exercer diferentes funções e atribui-
ções ao mesmo tempo. De outro modo, acredita-se que os homens condenados por
abuso sexual de crianças não apresentaram interesse e flexibilidade para realizar
outras tarefas que não sejam as relacionadas ao seu trabalho. Não conseguem
exercer outro papel social além do papel de homens provedores do lar, nem mesmo
com seus próprios filhos ou enteadas com as quais convivem há anos. Isto pode ser
observado, no momento em que esses homens permanecem no âmbito privado e
familiar. Pois, não conseguem desenvolver uma relação de intimidade saudável com
a criança.

Neste contexto, os homens autores de abuso sexual contra crianças se uti-


lizam de relações violentas, como no caso dos participantes. Impotentes quanto a
sua situação econômica e social, a única saída que encontraram para exercer seu
poder é contra aqueles que se encontram em posição inferior a sua, não somente
econômica, mas de gênero.

Os homens pesquisados alegam inocência e, em seus relatos, afirmam que

116
“não foi bem o que aconteceu”.

Nesta perspectiva, cita-se que muitas vezes surge a dúvida quanto à ocorrên-
cia do abuso sexual. Deste modo, também se recorreu aos depoimentos dos autos
dos processos jurídicos a fim de unir os dados obtidos nos autos dos processos
jurídicos com as entrevistas

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O abuso sexual se configura como uma das mais perversas formas da vio-
lência de gênero e tem raízes nas relações de gênero construídas a partir da infân-
cia. Do mesmo modo, mostrou-se que a construção social de ser homem e de ser
mulher é transformada e mantida pela ideologia masculina dominante e que tanto
o homem quanto a mulher mantem a violência de gênero através de relações desi-
guais, baseadas na discriminação e desigualdades de gênero. A socialização é um
processo que ocorre desde o nascimento, através de mensagens, valores, pressões
e limites que recebemos através de nossa educação. O modo desigual pelo qual
homens e mulheres são socializados confere privilégios à maior parte aos homens,
o que acaba por influenciar na ocorrência de abuso sexual contra a criança. Des-
taca-se que, os homens autores de abuso sexual estão reproduzindo as relações
desiguais de gênero aprendidas. Assim, torna-se importante estimular uma reflexão
sobre as relações de gênero tanto com mulheres quanto com homens para que tan-
to crianças quanto adultos tenham acesso à educação e a discussão sobre certos
modelos e comportamentos que garantam direitos iguais tanto ao feminino quanto
ao masculino.

117
REFERÊNCIAS

ARIÈS, Philippe. 1978. História Social da Criança e da Família. 2º ed., LTC. COR-
TIZO, María del Carmen; GOYENECHE, Priscila Larratea. 2010.

Judiciarização do privado e violência contra a mulher. Rev. katálysis, Florianópolis,


v. 13, n.1, June.

ESTAUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA) – 1996. Lei Federal nº

8.069/1990 – Conselho Municipal dos Direitos da criança e do Adolescente de San-


ta Maria, Julho.

FALEIROS, E.; CAMPOS. 2000. Repensando os conceitos de violência, abuso e


exploração sexual de crianças e de adolescentes. Brasília, DF: Centro de Referên-
cia, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes.

FONSECA, Vanessa (2008). Pelo fim da exploração sexual: o que os homens po-
dem fazer? Manual para sensibilização de adolescentes de 10 a 14 anos. Rio de
Janeiro: Promundo.

GOLDANI , A M. 2002. Família, gênero e políticas: famílias brasileiras nos anos 90


e seus desafios como fator de proteção. Revista Brasileira de Estudos de Popula-
ção, v.19,n.1, jan/jun,

GREGORI, Maria Filomena. 1993. Cenas e queixas: um estudo sobre as mulheres,


relações violentas e a prática feminista. São Paulo: Paz e Terra.

LYRA, Jorge. 2005. Homens e cuidado: uma outra família? In Família: redes, laços
e políticas públicas. In. Acosta A. R. & Vitaler, M. A. São Paulo: Cortez: Instituto de
Estudos Especiais – PUC/SP.

118
MÉLLO, Ricardo Pimentel. 2006. A construção da noção de abuso sexual infantil.
Belém: EDUFPA,

SAFFIOTI, Heleieth; ALMEIDA, S. 1995. Violência de Gênero – Poder e Impotên-


cia. Rio de Janeiro: Livraria e Editora Revinter Ltda.

SAFFIOTI, Heleieth. 2004. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Fundação


Perseu Abramo.

SAFFIOTI, Heleieth. 2007. A Síndrome do Pequeno Poder. In. Crianças Vitimizadas:


a síndrome do Pequeno Poder. Orgs: Maria Amélia Azevedo e Viviane Guerra.- 2ª
edição. São Paulo.

SANDERSON, Cristiane. 2005. Abuso sexual em crianças. São Paulo, SP: MBooks.

SANTOS, Maria Cecília. & IZUMINO, Wânia. 2005. Violência contra as mulheres e
violência de gênero: notas sobre os estudos feministas no Brasil. Estudios Interdis-
ciplinários de America Latina y El Caribe. 16(1), 147-164.

SARAIVA, João Batista. 1999. Adolescente e Ato Infracional: Garantias Proces-


suais e Medidas Socioeducativas. Porto Alegre. Livraria do advogado.

WELZER-LANG, Daniel. 2004. Os homens e o masculino numa perspectiva de


relações sociais de sexo. In. Masculinidades. São Paulo: Boitempo Editorial: São
Cruz do Sul, Edunisc.

WILLIANS, Lúcia Cavalcanti; ARAÙJO, Eliane Aparecida. 2009. Prevenção do


Abuso Sexual Infantil: um enfoque interdisciplinar. Curitiba: Juruá.

119
O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO À INCONSTITUI-
ÇÃO DO GRUPO ARCO-ÍRIS DE RONDÔNIA (GAYRO)
EM CACOAL

Ercedilio Guedes Junior22


Tadeu Pereira dos Santos23

INTRODUÇÃO

Na atual conjuntura política brasileira é necessário evidenciar as lutas que am-


pliaram os horizontes, para além do caos em que estamos imersos. Por isso, bus-
camos no passado as centelhas adormecidas, talvez silenciadas, mas que nos abre
outras possibilidades, para apresentar as experiências da população LGBTI, espe-
cialmente às vivenciadas por membros da comunidade LGBTI localizada no interior
do Estado de Rondônia. Trata-se de um Estado, criado durante a ditadura militar,
acentuado no presente, pela violência contra mulheres e a comunidade LGBTI, de
modo que o mesmo afigura no cenário nacional como o 9º lugar na elaboração do
índice de violência.

A carência de produções acadêmicas referentes ao movimento LGBTI no Es-


tado de Rondônia, especialmente no município de Cacoal, confere sentido ao caráter
inédito dessa pesquisa. Rememorar e construir a trajetória do primeiro movimento
LGBTI no município de Cacoal configura-se também em um ato político muito impor-
tante, afim de não permitir que as histórias, não só das lutas, mas das conquistas
continuem adormecidas. As memórias desse movimento foi o sopro que me propor-
cionou sentido a explorar essa temática.

22 Psicólogo. Especialista em Gênero e Diversidade na Escola pela Universidade Federal de Rondônia.


E-mail: [email protected].
23 Doutor em História pela Universidade Federal de Uberlândia, Minas Gerais, Brasil, com estágio pós-
-doutoral na mesma instituição; professor na Universidade Federal de Rondônia, Brasil; vice-coordenador do
Centro de Documentação Regional da Zona da Mata Rondoniense; líder do Grupo de Pesquisa em Ensino de
História, Teoria e Questão Étnico-Racial. E-mail: [email protected].

120
Foi analisado o processo de constituição do Grupo Arco-Íris de Rondônia no
município de Cacoal, realçando suas trajetórias iniciais e ações desenvolvidas na
cidade até a sua reorganização enquanto movimento social, militante e politizado.

O método de pesquisa utilizado neste trabalho foi o qualitativo, e os procedi-


mentos utilizados para desenvolvê-lo foi a análise documental, por meio da Ata de
registro, proporcionada pela Assembleia de Fundação do Grupo Arco-Íris de Rondô-
nia, do Estatuto Civil do Grupo Arco-Íris de Rondônia – GAYRO, matérias especificas
de sites locais, e o blog pessoal de Thonny Hawany, que contribui significativamente
para a construção deste trabalho, pois era por meio do blog que ele se expressa-
va e relatava os processos de constituição do grupo, as lutas e ações que o grupo
desenvolvia no município de Cacoal. As narrativas orais possibilitou vivenciar a ex-
periências a partir da história do outro, que é única e singular, o que possibilitou a
compreensão e a construção do presente trabalho e construir o trabalho. A entrevista
só adquire importância se transformada em diálogo pelos pesquisadores, na qual a
fonte oral deve ser respeitada e analisada de forma crítica, semelhante a qualquer
outro documento, por serem os depoentes indivíduos que vivenciaram determinado
momento e passaram por transformações ao longo do processo histórico. Com base
nessas colocações, fora selecionado entrevistados que auxiliem na compreensão do
objeto, conforme sugere Portelli:

O controle do discurso histórico permanece firmemente nas mãos do historiador.


É o historiador que seleciona as pessoas que serão entrevistadas, que contribui
para a moldagem do testemunho colocando as questões e reagindo às respostas;
e que dá ao testemunho sua forma e contexto finais (mesmo se apenas em tiver de
montagem e transcrição)24.

Compartilhamos conceitualmente com alguns apontamentos propostos por


Portelli e, dialogamos, num primeiro momento, com os membros do grupo GAYRO e
pessoas que a eles estavam ligados. Tais narrativas foram cruciais para compreen-
der as questões que envolviam o processo de constituição e reconstituição do grupo
GAYRO em Cacoal

24 PORTELLI, Alessandro. Op.Cit. p.37

121
O trabalho toma forma a partir das narrativas da experiência de duas pessoas,
que foram presidentes do grupo, Thonny Hawany25 que fora o idealizador e presiden-
te de honra do grupo, ele quem organizou e colocou o grupo em movimento, e Gutta
de Matos que foi uma personalidade importante, que contribuiu com sua experiência
pessoal, para o desenvolvimento e maturação do grupo Arco-Íris de Rondônia.

O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO À INCONSTITUIÇÃO DO GRUPO


ARCO-ÍRIS DE RONDÔNIA (GAYRO) EM CACOAL

No Brasil, o movimento LGBTI, desde o seu surgimento na década de 1970,


vem denunciando a violência praticada contra a população LGBTI, reivindicando a
criação de políticas públicas e de legislações específicas para a promoção da cida-
dania destes/as sujeitos/as (SIMÕES e FACCHINI, 2009). Assim os grupos de mili-
tância LGBTI são fundamentais para nomear e marcar seu espaço na sociedade. É
nesta lógica, que devemos considerar o fazer do movimento LGBTI local denomina-
do GAYRO, originado na cidade de Cacoal, no Estado de Rondônia, no ano de 2007.
Na época, em decorrência da violência por eles experimentada, a ausência de locais
de lazer e entretenimentos destinados ao existir enquanto sujeitos de direitos, des-
pertavam, nos mesmos à necessidade de se constituir um grupo que representasse
a população LGBTI local e que reivindicassem por espaços sociais, por segurança e
saúde.

Thonny Hawany lembra que na época se queixava: “A falta de um movimento


que pudesse levantar a bandeira da população LGBT no Município de Cacoal, me
incomodava e incomodava outros amigos profundamente”. Com isso, reforçava a
necessidade e o desejo de constituir um grupo e a percepção de práticas isoladas na
região, conforme o próprio enuncia ao narrar a sua experiência em uma festa LGBTI,
em uma cidade vizinha que o fez perceber que jovens LGBTI unidos poderiam mobi-
lizar não só festas, mas que poderiam fazer muito, por seus direitos.

25 Foi realizado o contato com alguns membros do GAYRO, composto por 09 pessoas em sua direto-
ria, onde o contato fora feito com 06 integrantes do GAYRO, mas apenas 02 se disponibilizaram a participar
da entrevista. Não foi possível rememorar outras experiências a partir de outros olhares e singularidades de
outros membros do GAYRO, então a pesquisa se reduz apenas as experiências e vivencias de Gutta e Thonny
enquanto presidentes do grupo GAYRO.

122
Neste sentido, pode-se dizer que essa é a memória construída por Thonny, ao
significar os sentidos que justificaria o início do Grupo Arco-Íris em Cacoal. Poste-
riormente, ele convida amigos e conhecidos para uma reunião em sua casa e tudo
começou a partir daí. Somam-se as lembranças do mesmo a interpretação de Gutta
de Mattos, ao afirmar que à constituição do grupo se deu em decorrência da necessi-
dade de organizar formas e meios de luta na defesa da sobrevivência da comunidade
LGBTI em Cacoal, a qual em sua narrativa é evidenciada ao mostrar o processo em
que diversas pessoas tomam consciências da violência experimentadas cotidiana-
mente, e se organizam para o enfrentamento de tais questões:

Daí, nós começamos a reunir voluntariamente sem a fundação do grupo inicialmen-


te, mas sim pela formação não documental, mas sim pela formação do interesse
dessas pessoas, e ai houve a necessidade de agregar pra ventilar o conhecimento
dessas pessoas (...) (GUTTA).

Considerando o caráter e a fluidez da memória, elucidativo da seletividade,


de que os sujeitos evocam lembranças do passado para que possa se orientar no
presente, a narrativa de Gutta, que também foi presidente do grupo GAYRO, em sua
interpretação ao rememorar o passado, vivenciado em meados de 2004, faz os se-
guintes apontamentos: “O movimento em Cacoal, surgiu da necessidade de ter uma
afirmação de pessoas LGBT, aqui em Cacoal para a busca de políticas que contem-
plasse o movimento LGBT”.

Devemos considerar as práticas apresentadas nas lembranças de Gutta, como


expressivas de intencionalidade coletivas, de modo a configurar diversos atores so-
ciais, como instituidores e mantedores do GAYRO em Cacoal.

O sentimento coletivo movimentou o grupo para uma organização, que o fez


transformar numa referência no Estado de Rondônia. Assim, é possível pensar o
processo de afirmação do GAYRO ao longo de seus aproximadamente dez anos de
existência em Cacoal, diversificando suas práticas e atuação no cenário público local.

É plausível afirmamos, que por um lado, nas ponderações de Thonny, que a


luta deveria ser dimensionada para o Estado, por outro, a narrativa de Gutta é dado

123
a ler ressaltando as demandas locais, ou seja, em Cacoal. De acordo com ela, a
constituição do grupo se fez agregando as seguintes categorias:

Uma vez que no aspecto de números de pessoas gays, lésbicas e travestis era
um número significativo, e essas pessoas, enfim, tinham diversas ocupações na
sociedade, enfim, professores, advogados e muitos estudantes. Era composta por
grande maioria de estudantes, até porque alguns tempos atrás, alguns membros
do grupo desenvolvia na escola um projeto do governo federal, chamava SPE Saú-
de e Educação nas Escolas, e esse projeto foi importante porque através desse
projeto, as pessoas LGBT acabaram se reunindo e acabaram indo até a casa do
professor Thonny, na época que foi o fundador do grupo e tinha propósitos políticos
de enfrentamento e combate ao preconceito e o principal objetivo do grupo foi for-
talecer as afirmativas das políticas LGBT até então que se discutia na época PLC
122/06 era um projeto de lei que criminalizava a homofobia que na época ele tava
em discussão e como sabe esse projeto se encerrou (GUTTA).

Deve-se considerar que o cenário vivenciado por eles/elas em Cacoal à épo-


ca contribuiu para a criação do GAYRO, já que a referida cidade se constituía um
polo na região, cuja atividade acadêmica passa a se tornar mais um atrativo para
confluência de novas pessoas, que passavam a dimensionar o viver em Cacoal. É
neste sentido, que a condição de professor universitário é utilizada por Thonny, para
colocá-lo como uma peça central das negociações, desenvolvida pelas pessoas que
participaram ativamente do fazer-se do grupo GAYRO à época, na medida em que,
talvez, fosse difícil o mesmo assumir tamanha envergadura em Cacoal, haja vista,
ser a moral cristã, especialmente de pessoas católicas e evangélicas os preceitos
orientadores que davam sentido ao viver ali.

Em julho de 2007 é oficializado o Grupo Arco-Íris de Rondônia em Cacoal, sen-


do o primeiro grupo de militância LGBTI no município de Cacoal, interior do Estado
de Rondônia, o Grupo Arco-Íris de Rondônia, mais conhecido como GAYRO, cuja
“sigla escrita com ‘y’ em lugar de ‘I’ para valorizar a palavra GAY”, como consta na
Ata da Assembleia de Fundação do Grupo. Porém antes da oficialização do grupo, o
coletivo LGBTI já se movimentava enquanto grupo de militância na cidade de Cacoal,
e segundo a narrativa de Gutta, em meados de 2004, o grupo começou a nascer atra-
vés dos primeiros contatos com pessoas que se relacionavam afins do movimento
político:

124
O Grupo Arco-Íris começou por meados de 2004, na época foi fundado pelo profes-
sor Thonny, que era professor universitário da UNESC e por algumas pessoas que
tinham em comum a defesa do movimento LGBT. O grupo surgiu, eu tinha o conhe-
cimento trazido de São Paulo, eu militava em paradas lá em SP e nós tínhamos um
propósito de ter um grupo de pessoas que fizesse uma afirmação deste movimento
para a busca de políticas que contemplasse o movimento LGBT (GUTTA).

Gutta ainda narra, que o grupo fazia questão em manter nas diretorias uma
lésbica, uma transexual, um gay e uma pessoa heterossexual, que o grupo chamava
de Hetero sem Preconceito, tudo isso para manter a diversidade no grupo.

O configurador político do grupo presentificado na constituição da composição


da diretoria do referido grupo, haja vista a necessidade de que o processo de luta de-
veria ser compreendido por todos, assim tinha se a necessidade de garantir a repre-
sentatividade dos diversos segmentos, que compunha à sociedade e que objetivava
a mesma finalidade: combater o preconceito e a violência.

Em relação às memórias do grupo no presente, Thonny atualiza-as em seu


blog pessoal, reavivando as finalidades que eles tinham na referida época: “propósito
expresso de minorar a discriminação de lésbicas, gays, bissexuais e de transexuais
no Estado de Rondônia, com especial atenção, para aqueles que residem na Região
Centro Sul do Estado” (HAWANY, 2011).

É possível considerar, que tal intencionalidade pode ser pensada, a partir da


configuração e ocupação do GAYRO, como referência para grupos minoritários no
Estado de Rondônia, tendo em vista que os mesmos passavam de proposição local,
ampliando suas lutas no Estado de Rondônia, na medida em que já tinha conquistado
legitimidade entre a comunidade LGBTI e o reconhecimento público de entidades
ligadas aos direitos humanos. Por sua vez, adquiriu respeito de parcela da população
de Cacoal, pela atuação no combate ao preconceito e a conscientização dos próprios
LGBTI por meio das campanhas e palestras, que buscavam afirmar a garantia de
seus direitos.

De acordo com Ferrari (2004, p. 105) os movimentos sociais “[...] articulavam-


-se pela defesa da visibilidade, pela construção de novas formas de conhecimento,

125
de cidadania plena e pela luta por direitos civis”. É nesta perspectiva que o grupo
GAYRO baseava-se:

Visando à promoção e à divulgação amplas dos interesses políticos, sociais e cul-


turais de gays, lésbicas, bissexuais e transexuais; de igual modo, tem ainda como
um de seus grandes objetivos implementar esforços no campo da educação, da
saúde, da segurança pública, dos direitos humanos, da assistência social e do vo-
luntariado para que seus membros sejam, como fulcro no princípio constitucional
da dignidade humana, nivelados aos demais membros da coletividade em que vive
e atua como cidadão de direito (HAWANY, 2011).

O grupo GAYRO almejava promover a afirmação da população LGBTI no mu-


nicípio de Cacoal e de cidades circunvizinhas, como relata Gutta, que o grupo tinha
como propósito político o enfrentamento e o combate ao preconceito e tinha na épo-
ca como principal objetivo, fortalecer as afirmativas das políticas LGBTI. Para tal, o
grupo desenvolvia suas ações em duas lógicas: na primeira, as atividades consistiam
no desenvolvimento de práticas que pudessem criar vínculos com o Estado e o muni-
cípio. Desse modo criava eventos regionais e municipais na tentativa de desenvolver
políticas públicas favoráveis a população LGBTI, e por outro, enviava seus mem-
bros para participarem de “congressos, seminários, encontros, conferências, cursos
de capacitação, entre outros eventos de natureza (in) formativa” (Hawany, 2011),
Hawany, ainda complementa, que o grupo buscava firmar lutas contra LGBTfobia,
através de práticas educativas, como “[...] trabalhar na formação de pessoal que pos-
sa atuar nas diversas frentes de trabalho contra a homofobia e a discriminação de
gays, lésbicas, bissexuais e de transexuais”.

As pautas das lutas locais, também incorporavam elementos das lutas dos mo-
vimentos nacionais, uma vez que os movimentos LGBTI, carregam uma história de
luta e resistência contra o “[...] preconceito e a discriminação dos sujeitos que não se
enquadram no modelo heteronormativo de sociedade” (MOURA, 2016, p.10).

Em relação a violência contra LGBTI é preciso considerar os alarmantes nú-


meros apresentados no Estado de Rondônia, pois de acordo com a matéria publi-
cada no jornal virtual Rondônia Ao Vivo: “ Rondônia teve (05) cinco casos, obtendo

126
uma medida de 2,77% de vítimas LGBT, por cada grupo de milhão de habitantes,
um pouco acima da média nacional que é 2,47%. O Acre foi o primeiro com 8,44%,
a maior do País” (2018).

Mediante ao exposto, consideramos os apontamentos de Thonny, ao qualificar


a existência do grupo em Cacoal, para ele: “Cacoal sempre foi uma cidade vanguar-
dista, que enquanto ser gay e ser lésbica eram algo individual, tudo estava certo,
mas quando gays e lésbicas se organizaram e passaram a ser um ser coletivo, tudo
passou a ser diferente”.

Assim, o GAYRO se movimentava em sua luta por visibilidade na sociedade


local, o preconceito também se fazia visível, como relatou Thonny:

“essa movimentação acordou todos os monstros: a homofobia deixou seu silêncio


e passou a mostrar sua face mais cruel. O pior de tudo, é que na maioria das ve-
zes, ela nem se mostrava, apenas era possível sentir seus efeitos, quase sempre
velados”.

A partir da narrativa de Thonny é possível apresentar as práticas configurativas,


em aceitar pessoas LGBTI em Cacoal e o processo da busca pelo reconhecimento
no fazer-se das mesmas na luta pelo direito em ter direito numa sociedade que não
os reconhecem. É desta feita, que podemos considerar, como o campo moral susten-
tador das práticas cotidianas que davam origem aos preconceitos velados e faz elu-
cidá-los, na proporção em que os mesmos começavam a ocupar cenários públicos,
e a exigirem a garantia de seus direitos.

A presença do Grupo GAYRO, por um lado, passava a ser um elemento que


suscitava o preconceito com a população LGBTI, experimentado as vezes de forma
veladamente em Cacoal, bem como publicização do ódio, por transformar à diferença
em desigualdade, uma vez que a heteronormatividade se faz intuída por uma pers-
pectiva binária, já que afigura pela negação dos valores, que nos faz lembrar sempre
o que nos compõe e jogamos fora. Por outro, a presença pública do grupo, constituía
e reorientava da proposição de lutas que se dava no âmbito individual a tentativa
de construção coletiva/compartilhada no enfrentamento da tradição que orientam as

127
práticas que se faz pilares da violência e do preconceito social em relação aos modos
de vidas das pessoas homoafetivas que viviam em Cacoal. Assim, Gutta, ao narrar
apresenta as estratégicas utilizadas pelo GAYRO, para dar vazão às propostas, de
modo que, ocupar os espaços sociais foram fundamentais:

O grupo, sim, ele conseguiu esse espaço porque até então, nós levamos, alavan-
camos juntos ABGLT as questões voltadas a que se tornou lei federal depois, que
era o nome social das trans dentro da sala de aula, o objetivo era pegar algumas
trans jovens que estavam no processo ainda de transformação, e elas serem acei-
tas nas salas de aula na inclusão com seu nome social, esse foi um objetivo que o
grupo conquistou e o outro nós tivemos uma visibilidade muito grande no contexto
político, cenário político, então nós éramos convidados para estar presente em
todos os eventos voltados a saúde e prevenção, então nós tínhamos um membro
representando o movimento LGBT dentro do conselho municipal de saúde, nós ti-
vemos membros representando nos conselhos da Assistência Social, da criança e
do adolescente, e no conselho do idoso. Nós tivemos também os espaços voltados
dentro das universidades, de debates abertos sobre o tema que era algo que não
se debatia, então nós tivemos ai conquista nos cenários sociais da população de
Cacoal muito importante (GUTTA).

Assim, o grupo ainda ressoa no presente, mesmo que seja no campo da me-
mória, como um importante movimento, na tentativa de solidificar políticas públicas
contra a LGBTfobia no município de Cacoal, pois de acordo com a interpretação de
Hawany (2011), na época a presidente do GAYRO era Gutta de Matos, que fez as se-
guintes ponderações: “afirmou que o Grupo vem trabalhando no sentido de quebrar o
átomo do preconceito, mas que isso não tem sido tarefa fácil, haja vista a resistência
de líderes religiosos fundamentalistas.”

Em relação a esse cenário religioso, Thonny faz questão de lembrar em sua


narrativa: “que Cacoal é uma cidade com um número muito grande de evangélicos e
com pastores influentes no Estado, isso nos fez travar algumas guerras”. O precon-
ceito produzido por ações de membros das diversas denominações religiosas que
alimentava e ainda alimentam as práticas preconceituosas em relação aos modos de
vida da população LGBTI, Thonny em sua narrativa diz que:

A homofobia na região, naquela época, era algo fora do comum, à gente é que não
via. Achava tudo normal. Travesti, gay e lésbica serem apedrejados e xingados
‘era normal’, ‘fazia parte da cultura’. Meu Deus! Quanta ignorância! Todos podiam
ser gays, lésbicas, bissexuais, transexuais desde que isso fosse algo só seu, não

128
poderia dar mostras para a sociedade ou dizer em público.

Conforme aponta Gutta em sua narrativa: “durante o período de existência do


GAYRO, ocorreram dois assassinatos de mulheres transexuais que se prostituíam,
uma foi a Elisa e o outro caso há três anos, a Nicole”. Isso explicita a imagem ne-
gativa que a população LGBTI carregava no município, aliado às práticas religiosas
condenatórias e outras violências vivenciadas pela comunidade em Cacoal e região.

As ações do grupo na cidade se apresentavam como um choque de realidade à


população de Cacoal, já que não aceitavam mais experimentar a violência em silên-
cio. A partir de então, as práticas naturalizadas e em relação a negação dos direitos
LGBTI, tornavam se públicas com vistas a exigir respeito pelo reconhecimento dos
seus modos de vida. “Alguns nos engoliam, outros nos amavam, mas havia os que
nos odiava”, aludiu Thonny. Por sua vez, o processo de resistência e o dimensionar
da luta pelo GAYRO também se fazia pelo âmbito Legislativo, conforme nos aponta
Thonny:

O Grupo nasceu para avançar e fazer cumprir seus objetivos e meta estatutárias.
O menor indício de preconceito, o Grupo procurava o Ministério Público, fomos lá
muitas vezes. Não dava em nada, mas ficava registrado. Nunca fomos desrespei-
tosos com nenhuma pessoa e com nenhum segmento da sociedade, mas também
nunca deixamos os ataques sem uma resposta. Usei muito o meu blog pessoal
para denunciar, registrar, informar, propagar (www.thonnyhawany.com). Usamos
também as redes sociais de modo geral.

A participação do GAYRO nos debates foi de grande importância, principalmen-


te no debate sobre projeto de lei PLC 122/06 da relatora Fátima Cleide (PT-RO), que
discutia tornar crime a discriminação e o preconceito contra homossexuais, projeto
que em 2019, ainda corre em discussão na Câmara. Gutta relata que o grupo parti-
cipou de uma audiência pública realizada na Câmara Municipal de Cacoal, onde a
associação de pastores evangélicos se revelava contra esse projeto de lei que era
debatido no Congresso. Ela ainda relatou que os pastores fizeram outro debate e o
grupo se manteve presente. Participar desses debates demonstra o quanto o grupo
estava garantindo o seu espaço e sendo responsável por representar e defender a

129
população LGBTI local.

Mesmo diante do preconceito que dificultava a garantia de direitos básicos da


população LGBTI do município, o GAYRO avançou em suas relações e desenvol-
viam seus projetos tomando como base as finalidades de seu próprio Estatuto Civil,
conforme o Art. 3º propõe:

a)promover e divulgar amplamente os interesses políticos, sociais e culturais da


comunidade de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros (GLBT) do Estado de
Rondônia sem discriminação de qualquer natureza; b) promover a educação, a
saúde, a segurança, os direitos humanos, a assistência social e o voluntariado,
bem como participar de fóruns e instancias de controle social e que tenham como
objetivo os mesmo previstos neste Estatuto; [...] h) colaborar para a consecução de
novos direitos que garantam o exercício pleno da cidadania de todos os membros
da Comunidade GLBT; i) promover assistência individual quando possível, median-
te comprovada necessidade do assistido, quer seja membro do grupo, quer seja
pessoa da comunidade externa a ele; j) trabalhar em prol da conscientização e do
combate às doenças sexualmente transmissíveis no meio homossexual; k) com-
bater veementemente a homofobia denunciando casos de abusos às autoridades
competentes (2008, p. 04).

As finalidades do Estatuto Civil do GAYRO assumem a mesma perspectiva de


luta programa “Brasil Sem Homofobia”, em que um dos seus princípios visa assegu-
rar:

A reafirmação de que a defesa, a garantia e a promoção dos direitos humanos in-


cluem o combate a todas as formas de discriminação e de violência e que, portan-
to, o combate à homofobia e a promoção dos direitos humanos de homossexuais é
um compromisso do Estado e de toda a sociedade brasileira (2004, p. 12).

Apesar das diversas tentativas que buscavam desarticular socialmente, o


GAYRO se mantinha firme em sua posição política, na luta pela erradicação do pre-
conceito, como afirma Guta: “mesmo diante do preconceito e de uma resistência
descabida, o grupo continuará desenvolvendo ações que minorem a condição subu-
mana de muitos de nós” (HAWANY, 2011).

Thonny em sua narrativa informa que o grupo GAYRO pretendia seguir os pas-
130
sos do movimento LGBTI nacional que na época era um movimento grande no país.
Thonny também deixa evidente o que pretendiam com a criação do grupo:

Criar espaços de resistência e de lazer. Queríamos seguir o movimento nacional


que já era muito grande. O movimento estadual também já se mostrava com o tra-
balho de outros grupos da Capital (GGR - Grupo Gay de Rondônia e Tucuxi), em
Vilhena havia o Beija Flor que também militava em favor da comunidade LGBT. O
GAYRO tornou-se por um tempo o grupo mais influente de Rondônia. Consegui-
mos atingir todos os nossos objetivos com o grupo (THONNY).

Ao analisar o fio condutor da narrativa de Gutta, em sua interpretação sobre a


desconstituição do grupo GAYRO, a mesma apresenta a ONG, como lócus de inter-
locução social, como elemento significativo utilizado como centralizador ou mediador
no processo de legitimação do referido grupo, não apenas na localidade e no Estado,
mas nacionalmente:

(...) a desconstituição do grupo eu não posso dizer pra você que ela se deu, ela
não acabou, hoje os grupos que na época se reuniam, tinham projetos e faziam
e aconteciam, eram propósito de uma ascensão de ONG que o governo federal
naquela época disponibilizava recursos para fazer o enfrentamento ao combate as
DST/AIDS que era o grande foco, só se conseguia recursos na época para entrar
com projetos dessa realidade (GUTTA).

Thonny e Gutta compartilham da mesma ideia, partindo de pontos diferentes, a


partir das experiências pessoais, em relação ao fim do GAYRO. Gutta em sua narra-
tiva diz: “a desconstituição do grupo, ela não se deu totalmente, o que houve, é que
muitos eram estudantes e acabaram tendo que se sair para fazer faculdade, e enfim,
terminaram suas universidades e acabaram não retornando para Cacoal”.

Na narrativa de Gutta fica claro que o motivo do declínio do GAYRO segundo a


percepção dela, é que cada membro, na medida em que iriam concluindo suas gra-
duações, iam embora de Cacoal deixando o grupo, ela diz ainda:

Um exemplo, o professor Thonny que foi o fundador do grupo passou num concur-
so federal e foi embora e hoje mora em Salvador, outros membros passaram em

131
faculdades de medicina e foram embora, eu uma época morei fora do Brasil, fiquei
fora e acabei voltando, enfim e hoje eu tenho uma ocupação, eu dou aula e não
tenho mais uma dedicação 24h, porque isso era voluntario (GUTTA).

De acordo com Thonny, o grupo foi perdendo sua força, quando precisou ir em-
bora de Cacoal, segundo ele:

O Grupo começou o seu declínio a partir de 2014 quando passei num concurso
para IFRO e fui morar em Ariquemes. (...) com a minha ida para Ariquemes e pos-
teriormente para Porto Velho, o Grupo esfriou um pouco. Não tenho ouvido falar
muito de ações (THONNY).

Percebe-se que Thonny se coloca em uma posição de responsabilidade pelo


grupo e suas ações, como se o grupo existisse a partir dele. Em sua narrativa ele diz:
“Quando o Grupo estava em baixa, eu encontrava um tempinho na minha agenda e
assumia a responsabilidade e levantava o moral do Grupo novamente. Fui presidente
dele, por mais de uma vez. Eu não me lembro de 02 ou mais” (THONNY).

Entende-se na narrativa de Thonny, que o grupo mantinha certa dependência


sua, como se apenas ele conseguisse fazer com que o grupo se movimentasse na
sociedade e atingisse seus objetivos. Thonny se coloca em uma posição de destaque
dentro do grupo, mesmo não fazendo mais parte dele, sua atuação foi considerada
marcante a ponto de que quando ele se distancia do grupo era quando ocorria seu
declínio.

De acordo com os entrevistados não houve um fim para o grupo GAYRO, o que
ocorreu, foi uma desativação do grupo, porém nos dias de hoje o grupo não promove
mais nenhuma atividade de militância ou que promova alguma visibilidade no muni-
cípio em prol da população LGBTI, como era realizado.

É relevante lembrar, que cada integrante que compôs o GAYRO contribuiu


significativamente para a construção histórica do movimento LGBTI, que atuou
ativamente no município de Cacoal, por um período de (10) dez anos, sendo um
grupo pioneiro, assumidamente LGBTI, que lutou e reivindicou seu espaço, em uma

132
sociedade heteronormativa e LGBTfóbica.

AÇÕES DO GAYRO NO MUNICÍPIO DE CACOAL – RO

Ao longo de (10) dez anos, o grupo GAYRO, foi se constituindo um represen-


tante institucional, da luta contra a violência, contra o preconceito e contra a homofo-
bia, a princípio na cidade de Cacoal, abriram espaços para ampliar a perspectiva de
luta no Estado e, ainda se transformou em uma referência no país.

As ações do grupo GAYRO enquanto uma ONG, que se valendo dos preceitos
legais, passou a assumir uma função social, a qual não permitia mais, que outros
grupos sociais promovessem ações, para se vincularem à população LGBTI do mu-
nicípio de Cacoal, de modo a transformá-lo em coadjuvante, num processo em que
os colocavam como os principais alvos de uma demanda, que eram utilizadas para
produzir o preconceito, em relação ao mesmo na sociedade. Assim, tem-se o caráter
configurativo de uma demanda, que envolvia toda à sociedade, mas era apenas atri-
buída aos LGBTI, uma vez que constituía num lócus de enfrentamentos social, haja
vista que a AIDS era, naquele momento, instrumento à promoção do preconceito e
desqualificação dos LGBTI.

Isto é, as interpretações construídas para “contaminação da AIDS”, tinham lu-


gar, definição e endereço: a comunidade LGBTI, em que se intensificaram as inter-
venções do governo federal para o combate as DST/AIDS em todo o país. Portanto,
percebermos como o grupo se dimensiona na luta contra o preconceito e na cons-
trução de plataforma que os tornavam públicos socialmente, afirmando o seu lugar
como representante da comunidade LGBTI local, ao apropriar das possibilidades
apresentadas pelo governo federal no contexto social brasileiro, haja vista a inter-
pretação apresentada por Gutta ao nos dimensionar à luz do seu presente (2019),
em seu diálogo com o passado (2004) ao evidenciar ações construídas por eles na
época:

Os grupos que na época se reuniam tinham projetos e faziam e aconteciam, eram


propósito de uma ascensão de ONG, que o Governo Federal naquela época dispo-
nibilizava recursos para fazer o enfrentamento ao combate as DST/AIDS que era
o grande foco, só se conseguia recursos na época para entrar com projetos dessa
realidade.

133
Assim, o grupo se desenvolvia em seus plurais atuações sociais, construindo
parceria, de modo a se fazerem presente em ações conjuntas com outras instituições
socialmente reconhecidas na localidade. Devemos atentar para interpretação de Gu-
tta ao afirmar que alguns dos membros do grupo GAYRO participavam do Projeto
Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE), que eram desenvolvidas nas escolas públi-
cas, e que conforme o Ministério da Educação (2006, p. 16):

A proposta resulta da parceria entre o Ministério da Educação, o Ministério da Saú-


de, com o apoio da Unesco e do UNICEF, na perspectiva de transformar os contex-
tos de vulnerabilidade que expõem adolescentes e jovens à infecção pelo HIV e à
aids, a outras doenças de transmissão sexual e à gravidez não-planejada.

Na perspectiva apresentada por Gutta, a intencionalidade da prática educativa,


consistia em um movimento de sensibilizar os docentes, uma vez que as mesmas
deveriam atentar para o fato de que naquele ambiente escolar se faziam presentes
discentes transexuais e que elas estavam em processo de transexualização. Assim,
fazia necessário, criar meios e instrumentos para que os colegas pudessem com-
preender a importância e o significado de chamá-las por seus nomes sociais. Gutta
nesse contexto narra que:

O grupo, ele fez parcerias com as escolas na qual circula o projeto SPE, então foi
parcerias que a onde tinha as Trans que estudavam nas escolas, o grupo fez uma
sensibilização na escola para que o corpo docente da escola tivesse um conheci-
mento que ali estava estudando Trans, e o grupo entrou com um pedido direto na
escola, ele não fez uma parceria com secretaria de educação, ai vem a afirmação
depois que isso se tornou Lei Federal que ABGLT fez uma mobilização nacional e
a onde passa a ser Lei Federal nas escolas, mas até então era uma sensibilização.

O processo de afirmativa e a busca do movimento pela legitimidade na cena


pública de Cacoal se valeram da necessidade de adentrar também as instituições pú-
blicas de ensino superior, estabelecendo parcerias. A narrativa de Thonny nos apre-
senta um diálogo tímido entre o grupo e as mesmas, mas que: “A participação das

134
faculdades junto ao GAYRO era muito tímida, mas mesmo assim, possibilitava que o
grupo fizesse palestras e campanhas de prevenção a saúde e contra a homofobia”.

Thonny conta que trabalhou cerca de (15) quinze anos em uma faculdade pri-
vada na cidade de Cacoal, e quando começou a se envolver no GAYRO e o grupo
passou a ter visibilidade na sociedade, sentiu que na faculdade onde trabalhava es-
tava sendo vítima de homofobia velada, onde acabou sendo demitido quando se
casou, sendo o primeiro casamento homoafetivo do Estado de Rondônia no ano de
2012.

Nessa lógica educativa, Gutta, nos apresenta outro elemento utilizado para
oportunizar práticas que se propõe a fomentar questões referentes à comunidade
LGBTI em Cacoal. Assim, as ações do grupo incidiam na promoção dos “Encontros
Anuais Amazônicos da Diversidade”, o que consistiam em fórum.

A proposta pautava-se numa proposição em que o GAYRO convidava várias


pessoas da sociedade, com vista a desenvolver um debate sobre as políticas, já de-
senvolvidas e as novas proposições a serem construídas em âmbito nacional, não
propriamente para o município.

Devemos considerar a participação efetiva na cena pública, assumindo as pau-


tas da comunidade LGBTI, significativa à manutenção da sua existência, na medida
em que poderia dimensionar os rumos e modo a orientar o seu existir. Na narrativa
de Gutta pode-se perceber como o grupo vinha garantindo seu espaço.

Nós tivemos uma visibilidade muito grande no contexto político, cenário político,
então, nós éramos convidados para estar presente em todos os eventos voltado a
saúde e prevenção, então nós tínhamos um membro representando o movimento
LGBT dentro do Conselho Municipal de Saúde, nós tivemos membros representan-
do nos conselhos da Assistência Social, da criança e do adolescente, e no conselho
do idoso. Nós tivemos também os espaços voltados dentro das universidades, de
debates abertos sobre o tema que era algo que não se debatia, então nós tivemos
conquistas nos cenários sociais da população de Cacoal muito importante.

A ocupação dos diversos setores públicos, que se vinculava a pauta da saúde,


foi uma estratégia utilizada pelo grupo, para se fazer presente na cena pública local,
como representante da comunidade LGBTI, ou seja, a ocupação significava partici-

135
par ativamente das decisões de setores estratégicos contribuindo na construção das
pautas relacionadas a outras minorias marginalizadas.

Assim, da condição de destinatários das demandas definidoras dos setores


que contribuíam para marginalizá-los e construir plataformas que reforçavam pre-
conceitos e produziam violência contra os mesmos, tornam-se referência de lutas
assumindo as orientações e os processos de elaboração de como conduzir ações
que favoreciam à comunidade LGBTI, sobretudo na construção de alternativas que
combatiam o preconceito velado, as práticas instituidoras de violências contra os
mesmos.

É plausível afirmar que a história do GAYRO, enquanto movimento de


afirmação LGBTI, se fez conquistando espaço na sociedade ao conduzir ações
que desarticulavam a sociedade organizada, por uma lógica da violência e do
preconceito velado, na medida em que promovia alianças importantes com alguns
órgãos municipais, a exemplo do “Conselho Municipal de Saúde e a inclusão de seus
membros em órgãos decisórios da política regional, estadual e nacional” (HAWANY,
2011).

A aliança com o conselho municipal de saúde, foi importante para desenvolver


ações de promoção à saúde da população LGBTI local. A partir dessa parceria, o
GAYRO teve como iniciativa no ano de 2008, a criação do “Bloco da Prevenção”, cuja
atuação se dava no período de carnavais de rua de Cacoal e região. De acordo com
o Jornal virtual Rondônia Ao Vivo (2011) a ação contava com o apoio do Governo
do Estado, por meio da Coordenação Estadual DST/AIDS e Delegacia Regional de
Saúde de Cacoal, uma vez que:

Tinha como objetivo chamar a atenção da população e conscientizar sobre a im-


portância do uso de preservativos para prevenir a infecção pelo vírus HIV e outras
Doenças Sexualmente Transmissíveis na época do carnaval, reforçando o trabalho
de prevenção à doença (RONDÔNIA AOVIVO, 2011).

Hawany (2011) relata em seu blog memórias sobre o desenvolvimento e parti-


cipação do GAYRO nos carnavais:

136
Neste carnaval de 2011, o Grupo Arco-Íris de Rondônia (GAYRO), com sede em
Cacoal, desenvolveu mais um de seus projetos em favor da saúde do folião de Ca-
coal e de Espigão do Oeste. O projeto “Bloco da Prevenção” foi desenvolvido, pelo
terceiro ano consecutivo, distribuindo preservativos e um folheto informando como
se prevenir da AIDS e de outras doenças sexualmente transmissíveis.

As plataformas sociais assumidas pelo GAYRO naquela época, se balizavam


em dois eixos: saúde e educação. Contudo, é possível apresentar, que as pautas
referentes ao âmbito da saúde, constituíam no principal meio de interlocução e lócus
em que o movimento utilizou para justificar sua existência, como uma organização
social representativa.

Assim, construíram ações que visavam conscientizar a população transexual


em vulnerabilidade, conforme nos narra Thonny: “fomos para o ponto das travestis
conversarem, militar, fortalecer, mostrar para elas que ali não era o melhor lugar, que
o melhor lugar era a escola, era ter um emprego digno e ‘socialmente mais adequa-
do”.

Soma-se tais práticas as ações apresentadas por Gutta, desenvolvidas pelo


GAYRO:

Além das campanhas de DST/AIDS realizadas nos carnavais, o grupo também dis-
tribuía preservativos nas ruas com as meninas profissionais do sexo, e fez parceria
com uma faculdade privada onde junto com acadêmicos dos cursos de enferma-
gem e medicina, abordavam os caminhoneiros, esclarecendo a questão do uso do
preservativo, com panfletos explicativos.

A partir de tais práticas o GAYRO, foi conquistando aceitação social e o re-


conhecimento, conforme podemos perceber em uma entrevista publicada no blog
pessoal de Thonny Hawany (2011), em que apresenta as memórias de Marco Aurélio
(diretor do GAYRO), o qual ressalta como surpresa a receptividade da população
para com o grupo:

O Grupo cumpriu com a principal de suas metas estatutárias que é a luta em favor
da saúde e da dignidade de homens e mulheres de Rondônia. Para Marco Aurélio
a população recebeu o projeto com muito respeito, superando as expectativas do
grupo.

137
Tal aceitação e reconhecimento derivaram-se das formas criadas estrategica-
mente pelo grupo, para nomear suas intencionalidades, numa sociedade orientada
pelo campo moral, oriundo da religiosidade evangélica e católica. Suas proposições
teóricas orientavam as práticas cotidianas, de modo que o ato de nomear quem e o
que fazem, pode ser considerado à luz das ponderações de Djamila Ribeiro (2017, p.
41), “Se não se nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma
realidade que segue invisível”.

Neste sentido, podemos dizer que o configurar das nomeações do grupo


GAYRO, se ampliaram para além dos limites da cidade de Cacoal-RO, pois em 2011,
de acordo o jornal virtual RONDÔNIA AO VIVO, foi realizado em Cacoal a II Confe-
rência Regional LGBT, o qual teve a seguinte finalidade: “espaço de discussões entre
a sociedade civil e o poder público municipal, onde a população de lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais irá decidir sobre os rumos das políticas públicas
para a cidadania e os direitos humanos LGBT”.

A conferência foi realizada pelas prefeituras dos municípios de Cacoal, Pimenta


Bueno, Espigão do Oeste, Ministro Andreazza, Primavera de Rondônia, São Felipe
e Parecis, e teve apoio do Grupo Arco-íris de Rondônia – GAYRO. Esta conferência
reuniu diversas pessoas, que estavam empenhadas em debater sobre a cidadania
LGBTI local.

A partir desta II Conferência Regional LGBT, é possível evidenciar que o


GAYRO, estrategicamente está construindo práticas, que agregam diferentes seto-
res na sociedade local, construindo proposições para à sociedade que vislumbrem
enfrentar o preconceito e a homofobia na sociedade local. É preciso considerar o
deslocamento de forças, na medida em que as ações são propostas por um grupo de
pessoas homossexuais, transexuais e lésbicas, que se organizam institucionalmen-
te e se vale das prerrogativas legais, para conduzir as diversas intervenções e não
mais, permite que outros setores da sociedade criem demandas para os mesmos e
define suas atuações.

O fato de a conferência ter reunido várias pessoas, foi algo positivo, o que pode

138
sinalizar um processo de aceitação e reconhecimento social e ao mesmo tempo, con-
figura o tornar público, práticas que se fazem necessárias, mesmo tendo que enfren-
tar o preconceito, a discriminação de setores que condenam a homossexualidade, e
que também produzem ações que visam desqualificá-lo cotidianamente.

A II Conferência Regional LGBT tinha como base, o tema “Por uma cidade,
um Estado, um país livre da pobreza e da discriminação: promovendo a cidadania
LGBT”. Tema de grande importância tanto para dar visibilidade quanto para fortalecer
a população LGBTI local, o tema da conferência foi discutido em três eixos:

I: análise do contexto municipal/regional e diagnóstico das políticas públicas para


o enfrentamento da violência e da vulnerabilidade relacionada à população LGBT”;
EIXO II: “avaliação da implantação e execução do Plano Nacional de Promoção da
Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transe-
xuais – LGBT” e EIXO III: “diretrizes para a formação e para a implementação de
políticas públicas de combate à pobreza da população LGBT (HAWANY, 2011)”.

Além da discussão destes três eixos, a II Conferência Regional LGBT tinha


dois objetivos importantes a serem desenvolvidos, proporcionou à população LGBTI,
protagonista social, um desses objetivos era “avaliar e propor diretrizes para a imple-
mentação de políticas públicas, voltadas ao combate, à discriminação e promoção
dos direitos humanos e cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transe-
xuais dos municípios acima citados” (RONDONIAAOVIVO, 2011), os responsáveis
por discutir, avaliar e propor novas políticas públicas eram a própria população LGB-
TI, organizações e entidades de direitos humanos LGBTI, parlamentares, estudantes
e gestores. Outro objetivo da conferência, segundo o jornal virtual Rondônia Ao Vivo,
foi “avaliar a implementação e execução nos últimos 02 anos, do Plano Nacional de
Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Tra-
vestis e Transexuais (LGBT) e fortalecer as políticas estadual e nacional para esta
população” (2011).

A parceria que o GAYRO mantinha com o Conselho Municipal de Saúde de


Cacoal, além de dar visibilidade ao grupo, possibilitou a realização em 2012 do 1º
Encontro Amazônico da Diversidade Sexual (ENADIS), que ocorreu na sala do Con-

139
selho Municipal de Saúde em Cacoal e segundo Hawany (2012) o “ENADIS, apesar
de sua fase embrionária, trouxe reflexões importantes para o desenvolvimento de
políticas públicas destinadas à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis,
transexuais e intersexuais da região”.

O evento possibilitou que os representantes do GAYRO pudessem falar sobre


suas realidades no município e debatessem possibilidades de enfrentamento à LGB-
TIfobia, além da promoção de saúde a população LGBTI local.

Segundo Hawany (2012), foram abordados temas, como saúde e prevenção


no contexto homoafetivo, dando ênfase ao preconceito dos profissionais de saúde no
tratamento das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, temática
que foi ministrado por uma enfermeira da rede pública. Além disso, Hawany também
ministrou no evento, uma palestra com o tema: “Direito Homoafetivo”, enfatizando
os avanços no direito, na saúde e na educação. Este encontro mostra a importân-
cia que o GAYRO estava tendo no município, discutindo sobre temas que afetavam
diretamente a população LGBTI e que muitas vezes o preconceito acaba sendo um
fator que impede pessoas LGBTI de buscarem os serviços de saúde nas unidades
básicas.

O ENADIS também abordou temas para além dos contextos em saúde como
relata Hawany (2012), que no evento a ex-presidenta do Grupo GAYRO Gutta de Ma-
tos abordou sobre transexualidade e os ganhos LGBT já conquistados em Rondônia.
Gutta ainda lembrou-se do evento que “para os descrentes, estamos atrasados na
luta, mas para os que sabem comparar o antes e o depois, com a criação do Grupo
Arco-íris de Rondônia, há (06) seis anos, avançamos muito na conquista de direitos”.

Outro tema de relevância abordada no evento, foi à questão do reconhecimen-


to do nome social de pessoas travestis e transexuais, nas unidades de saúde, pois
a “identificação pelo nome social é” um direito garantido no Sistema Único de Saúde
(SUS) desde 2009 pela Carta de Direitos dos Usuários do SUS (Portaria nº 1.820, de
13 de agosto de 2009) (BRASIL, 2016). De acordo com Hawany (2012) a presidenta
do Conselho Municipal de Saúde, falou no evento “que ao receber a solicitação do
Grupo Arco-íris de Rondônia, por escrito, deverá reunir o Conselho de Saúde para
decidir sobre a obrigatoriedade do cumprimento do Decreto do Ministério da Saúde,

140
nº 1.820 de 13 de agosto de 2009”.

Estas ações demonstram a importância do movimento GAYRO no município,


na luta por garantir direitos e desenvolver políticas públicas que beneficiem a popu-
lação LGBTI local. O evento possibilitou também, levantar propostas futuras a serem
desenvolvidas, tendo como público principal mulheres transexuais e travestis, que
viviam da prostituição e em situação de vulnerabilidade social, para estas pessoas
Hawany (2012) disse no evento que o grupo Arco-íris de Rondônia deverá desenvol-
ver capacitação profissional das travestis e transexuais que têm a prostituição como
único meio de sobrevivência a fim de capacitá-las para outras profissões socialmente
melhor aceitas. Hawany finaliza criticando a falta de parcerias “especialmente para
elaboração e execução de projetos nas áreas de saúde, educação e de segurança”.

Em 17 de maio de 2013, eventualmente, Dia Internacional contra a Homofobia


e a Transfobia, data que virou símbolo da luta por direitos humanos e pela diversida-
de sexual, contra a violência e o preconceito, nesta mesma data no ano de 1990 a
Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da Classificação
Internacional de Doenças, tornando-se o Dia Internacional contra a Homofobia e a
Transfobia (NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL, 2016).

Nesta mesma data em que se comemorava o dia internacional contra a Ho-


mofobia, acontecia em Cacoal o II Encontro Amazônico da Diversidade Sexual, no
Plenário da Câmara Municipal de Cacoal, que desta vez contava não só com o apoio
do Conselho Municipal de Saúde, mas também com o apoio da Faculdade de Ciên-
cias Biomédicas de Cacoal - FACIMED; do Governo do Estado de Rondônia, por
intermédio da Representação de Ensino de Cacoal; da Polícia Militar do Estado de
Rondônia, da Secretaria Municipal de Ação Social de Cacoal e da Câmara Municipal
de Cacoal (HAWANY, 2013). Por meio deste encontro, é possível apontar como o
GAYRO buscava construir novas parcerias, para enfrentar as questões referentes à
comunidade LGBTI da cidade de Cacoal.

Neste segundo ano o ENADIS discutia-se a respeito de (03) três temáticas,


Saúde e Diversidade, Segurança e Diversidade, e Educação e Diversidade. Estes
temas seriam apresentados e discutidos, por representantes do curso de psicologia
da faculdade FACIMED, por um Tenente do 4º Batalhão de Polícia Militar de Cacoal

141
e por uma professora que representava o ensino de Cacoal e região. De acordo com
Hawany (2013) o ENADIS proporcionou discutir sobre a história da homossexualida-
de, a sua relação com a psicologia e enfatizando o fato da homossexualidade não
ser doença. Foi discutida novamente sobre a importância de se aprovar a inclusão do
nome social de travestis e transexuais nos diários e documentos escolares, em todas
as escolas no Estado de Rondônia. O Tenente do 4º BPM/Cacoal discutiu sobre o
Regimento da Polícia Militar de Rondônia mencionou as mudanças importantes que
foram feitas em relação ao tratamento e abordagem as pessoas travestis e transe-
xuais. Essas discussões são de fundamental importância, não só para dar visibilida-
de, mas também fortalecer a luta LGBTI, por direitos e políticas públicas.

No encontro, Hawany fez questão de lembrar-se das lutas e das vitórias já con-
quistadas, no Município de Cacoal e região, desde a fundação da ONG Arco-Íris, em
2006. Desta feita, narra suas memórias em relação aos projetos que o grupo conse-
guiu desenvolver no município de Cacoal:

A) A criação da Cacoal Rainbow Fest. Pensávamos em transformar a Rainbow


numa festa pré-parada e criar a Parada do Orgulho Gay de Cacoal, mas nunca
tivemos fôlego para isso; B) Trabalhos para a aprovação do PLC 122 que visava
criminalizar a homofobia; C) Colocar um representante em cada um dos conse-
lhos municipais. Conseguimos figurar com representação no Conselho de Saúde,
Conselho da Juventude, Conselho da Mulher; D) Festa Junina Gay que tinha como
objetivo o lazer da comunidade; E) Criação do Encontro Amazônico de Diversidade
(com 03 edições); F) Participação em todas as conferências chamadas pelas esfe-
ras de governo.

É de grande importância lembrar, que o GAYRO, ao passo que vinha conquistando


seu espaço de afirmação na cidade de Cacoal, estava conseguindo também, mesmo
que de forma ainda muito tímida, marcar o espaço das pessoas transexuais. Em um
ato de afirmação da visibilidade de mulheres e homens transexuais, que em 29 de
janeiro de 2012, o GAYRO celebrava o Dia Nacional da Visibilidade Trans na cidade
de Cacoal, como relata Hawany em seu blog:

142
O Grupo Arco-Íris de Rondônia (GAYRO), comemorou, pela primeira vez, o Dia de
Visibilidade de Travestis e de Transexuais na esquina da Avenida Amazonas com
Rua Antônio Deodato Durce, centro, no município de Cacoal. Além de uma peque-
na confraternização com direito a distribuição de sanduiches natural e refrigerante,
o GAYRO também deu a cada travesti e transexual que encontrou pela cidade uma
rosa vermelha simbolizando a luta contra a homofobia (2012).

Comemorar essa data é um ato político em uma sociedade calcada na he-


teronormatividade cristã, que a todo custo tenta apagar a visibilidade da população
LGBTI. A busca por direitos básicos, sempre moveu os grupos minoritários, e essa
data é celebrada nacionalmente, como mais um dia de luta e de se manifestar em
uma sociedade calcada pela intolerância aos LGBTI.

Hawany (2012) ainda traz em seu blog, o relato da atual presidenta, na época
do GAYRO Gutta de Matos, que afirmou que esse dia “embora comemorado timida-
mente, representava muito na luta iniciada no município e região, há aproximada-
mente seis anos”. A atividade proposta pelo GAYRO, no dia nacional da Visibilidade
Trans, além da conscientização por respeito, colocava em pauta a necessidade de
discutir questões relativas à liberdade, igualdade e dignidade em relação ao viver das
mulheres transexuais e travesti.

Hawany relata em seu blog a narrativa de uma das integrantes do GAYRO, so-
bre a importância de celebrar o dia da visibilidade trans:

“Hoje, eu estou empregada, sou funcionária pública e sou respeitada da forma


como eu sou. O trabalho deu-me a dignidade e o reconhecimento de que eu pre-
cisava para me sentir feliz e segura. Gostaria que todas as travestis e transexuais
tivessem a mesma sorte que eu tive ao aderir à causa do Grupo Arco-Íris de Ron-
dônia, tornando-me militante LGBT. Hoje, luto por todos, mas confesso que estou
sempre buscando dias melhores para as minhas amigas que ainda dependem do
“ponto” para se manter” (2012).

O configurar existencial do Grupo GAYRO, se faz pela construção de uma rede


de solidariedade, em que tem como questão central, as demandas da comunidade
LGBTI local, de modo que a instituição de atividades (eventos) se configurassem,

143
não apenas em afirmar a razão de existir do referido grupo, mas, de algum modo,
trazer para cena pública os diversos atores sociais que justificavam a razão da luta
no Estado de Rondônia.

Para Simões e Facchini (2009, p. 22) paradas, visibilidade social, presença


no debate público, iniciativas legais e políticas não surgiram da noite para o dia. É
neste sentido que o grupo GAYRO, através de sua militância e compromisso social
com a população LGBTI local, foi se destacando na busca por direitos fundamentais
a população LGBTI de Cacoal, mantendo alianças importantes com setores públicos
que deram maior visibilidade ao grupo. Porém a população LGBTI de Cacoal era ca-
rente de locais de entretenimento, o que havia eram locais de lazer, que muitas vezes
exalavam a homofobia, mesmo que de forma sutil. Esses espaços heteronormativos
colaboram para a repressão do jeito de ser da pessoa LGBTI. O grupo frente a essa
carência de espaços de lazer e entretenimento para jovens LGBTI faz surgir a Cacoal
Rainbow Fest, uma festa voltada ao público LGBTI de Cacoal e cidades circunvizi-
nhas.

O GAYRO começou a promover anualmente a Cacoal Rainbow Fest, consi-


derada como um dos seus principais movimentos de visibilidade do grupo, chegando
até sua 10º edição. Segundo Hawany (2012) a Rainbow Fest, foi criada em 2006,
com a finalidade de dar visibilidade ao movimento LGBTI, que estava sendo criado
no município de Cacoal, e mais tarde veio a se denominar de Grupo Arco-Íris de Ron-
dônia (GAYRO).

Segundo relatos de Thonny Hawany em seu blog, sobre a tradicional festa


LGBTI e seu cunho político, ele diz:

Tradicionalmente, todos os anos, no último sábado de novembro, por ocasião do


aniversário da cidade de Cacoal, o Grupo Arco-Íris de Rondônia realiza a Cacoal
Rainbow Fest que é um evento cujo principal objetivo é dar visibilidade à comunida-
de LGBT da Região Centro Sul do Estado de Rondônia e proporcionar o encontro
da comunidade gay num evento festivo para tratar de assuntos políticos de forma
bem-humorada (2011).

De acordo com Gutta, a primeira edição da Rainbow Fest, teve a intenção,


além de promover o entretenimento da população LGBTI, de sentir se a festa seria
aceita ou não pelo seu público alvo. A aceitação da primeira edição foi tão positiva,

144
que a população LGBTI já cobrava do grupo por mais edições, como afirma em sua
narrativa:

É, o grupo na primeira edição da festa, a primeira Rainbow Fest, ele teve um


processo de sentir qual seria a aceitação pelo próprio público, e o impacto foi que
na segunda e na terceira edição as pessoas já cobravam isso, então assim, da
segunda para a terceira edição, é, as outras festas tiveram que acontecer por
que as pessoas LGBT acabavam cobrando esse entretenimento, a festa era o
entretenimento da comunidade LGBT, então isso foi algo de impacto, foi algo que,
foi muito, bom, como eu posso explicar para você, foi muito bem aceito pelo público
LGBT. Se a gente fala a nível de sociedade em geral, é digamos que existiu uma
grande afirmação dentro da cidade, então lá pela quinta festa a sociedade já estava
muito bem acostumada com essa circulação de informações, as próprias faculdades
como o professor Thonny era da universidade então ele acabava convidando todos
os alunos, então a festa não só agregava a população LGBT, como também alguns
membros simpatizantes a comunidade LGBT (GUTTA).

O dimensionamento político da festa é possível perceber a partir da narrativa


de Gutta, onde faz questão de enfatizar, que no decorrer das edições a festa era rea-
lizada com um público pequeno, uma vez que o foco não era o número de pessoas
na festa, mas, proporcionar um espaço para que pessoas LGBTI pudessem interagir.

O grupo não fazia a festa com o objetivo de ter ganhos no sentido, de vamos atrair
“x” quantidades de público LGBT, e na outra mais “x” quantidades, não, a festa
era uma interação, e ela sempre foi um público pequeno, ela nunca foi um público
que ultrapassou 300, 400 pessoas ali, era sempre nessa faixa etária, acredito que
essas maiores que nós realizamos não ultrapassaram de 400 pessoas. Os ganhos
para o grupo LGBT, para o grupo Arco-Íris ele vem quando o grupo se afirma dentro
da cidade e ele passa a ter uma referência que ali existe um grupo de pessoas que
defendem a população LGBT (GUTTA).

As ações não visavam quantidade de pessoas presentes na festa, ao contrá-


rio, o intuito era reafirmar à existência das mesmas, configurando-as como um coleti-
vo, que também tinha necessidades e o direito de instituírem seus espaços próprios,
numa sociedade, a qual a todo instante tentavam torná-los invisíveis. Assim sendo,
a publicização de suas experiências, buscava romper com espaços estigmatizados,

145
para além dos espaços de trabalhos em que situavam as mulheres transexuais e as
travestis. De acordo com a entrevista que Thonny Hawany fez ao Jornal virtual Tudo
Rondônia, ele diz:

Somos homens e mulheres que pagamos nossos impostos, que trabalhamos e que
criamos nossas famílias dignamente. O que queremos é só uma coisa: DIGNIDA-
DE. Não aquela palavra fria do dicionário, mas aquela que é princípio constitucional
e que emana do coração dos homens e mulheres justos como esses companheiros
que foram homenageados na noite de hoje (2008).

A festa representava a luta, em uma época em que era muito difícil falar so-
bre a população LGBTI de forma positiva em uma cidade do interior, pois devido ao
preconceito e aos estigmas sociais que a população LGBTI carregava se tornava
um tabu não somente incluí-las nos discursos políticos, bem como materializar suas
demandas na cidade para a comunidade LBGTI. Desta forma o grupo “pensando em
não afrontar a sociedade, fizemos a primeira festa há aproximadamente cinco quilô-
metros de Cacoal, no espaço denominado Castelinho do Cupim. Hoje, em face das
conquistas, sete anos depois, estamos realizando a Rainbow no centro de Cacoal, no
Armazém” (HAWANY, 2012).

A Cacoal Rainbow Fest para Gutta e Thonny, tinha a mesma intenção e sig-
nificado de uma “Parada do Orgulho LGBTI” que ocupa ruas e celebra a militância
LGBTI, a festa era um ato político. Considerando que a festa simbolizava a Parada
do Orgulho LGBTI, podemos levar em conta o que dizem Simões e Facchini:

As paradas são expressões concentradas da arrebatadora visibilidade que o pró-


prio mundo LGBT tem alcançado. Elas vêm coroar a formação de uma fulgurante
cena gay nas grandes cidades brasileiras, refletindo a crescente importância do
mercado na promoção e difusão de imagens, estilos corporais, hábitos e atitudes
associadas às variadas expressões da homossexualidade (2009, p. 18).

A combinação de festa e política trazia mais visibilidade ao GAYRO de uma


forma positiva, ao passo que o grupo estava conquistando seu espaço político e
comprometido a representar todos que fazem parte da sigla LGBTI. Ter ocupado o

146
espaço social, enquanto festa que carregava o símbolo e significados de uma parada
do orgulho LGBTI, podemos assim dizer que a festa era sim do Orgulho LGBTI, onde
essa população não aceitava mais se esconder para poder existir, e estavam dispos-
tos a “dar a cara a tapa” para se juntarem e gritarem que ser LGBTI é existir, resistir
e lutar por dias melhores.

CONCLUSÃO

A história do movimento LGBTI organizado em Rondônia, a partir do grupo


GAYRO de Cacoal, constituiu uma experiência singular, de modo a apresentar expe-
riências de lutas, em que os próprios LGBTI se lançaram na cena pública, enquanto
sujeitos de suas histórias ao tecerem suas narrativas e construírem suas memórias.

À luz do fazer-se do grupo GAYRO em Cacoal, fez-se necessário apresentar,


que tal história se constrói a partir das demandas comuns de pessoas que se
encontravam experimentando práticas machistas, homofóbicas e a violência produzida
pelo campo religioso local, para inferiorizarem, bem como da ocupação de espaço pelo
GAYRO na sociedade de Cacoal, assumindo o controle das próprias práticas sociais,
impedindo que pessoas desenvolvessem ações que orientavam suas condutas. Ao
contrário, situaram em diversos espaços da localidade, reclamando o seu direito a
orientar as ações referentes aos interesses da comunidade LGBTI, definindo pautas
e propostas, se apresentando como sujeitos capazes de contribuir socialmente com
as diversas instituições.

Assim, iam ocupando lócus de discussões, sobre as experiências LGBTI. No


âmbito da saúde, participaram de diversos conselhos, criaram ações na luta contra
o preconceito e as violências, com os mesmos, se valeram do diálogo e dos enfren-
tamentos na construção de proposições que os colocaram como sujeitos de suas
histórias na construção de suas memórias, apesar da violência e das perseguições
pelo grupo experimentado, ao ocuparem o cenário público em Cacoal-RO, não mais
se mantendo no silêncio ou às margens dos fóruns de discussões sobre os seus mo-
dos de vidas.

O GAYRO movimentava-se para dar visibilidade às causas LGBTI e assim ga-


rantir, políticas públicas que facilitem o acesso à saúde, educação e ao direito de

147
existir sem que sejam feridos.

O GAYRO foi se manteve resistente e forte em um Estado cuja moral é predo-


minantemente cristã, o que faz com que o movimento LGBTI, tenha dificuldades em
se afirmar, uma vez que a própria história do movimento LGBTI no Brasil foi marcada
por uma luta, que buscava uma imagem despatologizante, das identidades travestis
e transexuais, e uma imagem dos homossexuais livres de qualquer doença. Mesmo
diante ao cenário de preconceitos vivenciados na época, o grupo se manteve firme,
em suas propostas estatutárias, e com uma vontade demasiada em cumpri-la. Von-
tade essa, que se revive nas lembranças de Thonny Hawany e Gutta de Matos, que
nos faz perceber que o GAYRO se mantém vivo de alguma forma no município, pois
não houve segundo eles uma desconstituição oficializada do grupo, mas um adorme-
cimento do ativismo coletivo, que nos dias de hoje, nos faz pensar o quão importante
e significativo é o movimento LGBTI na sociedade, para em luta representar o jeito
de ser de cada uma dessas siglas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Saúde. Atenção Integral à Saúde das Pessoas Trans. Dis-
ponível em: <http://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2016/fevereiro/18/CAR-
TILHA-Equidade-10x15cm.pdf>. Acesso em: 4 de abril de 2019>.

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Programa Nacional


de DST e Aids. Diretrizes para implantação do Projeto Saúde e Prevenção nas Es-
colas / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. – Brasília, 2006.

CONSELHO NACIONAL DE COMBATE À DISCRIMINAÇÃO. Brasil Sem Homofo-


bia: Programa de combate à violência e à discriminação contra GLTB e promoção da
cidadania homossexual. Brasília : Ministério da Saúde, 2004.

DE SOUSA MOURA, Iago Henrique Fernandes. Ousando teimar por liberdade:


trajetória e lutas do movimento lgbt no Brasil. Revista Includere, v. 2, n. 1, 2016.

148
FERRARI, Anderson. Revisando o passado e construindo o presente: o movi-
mento gay como espaço educativo. Revista Brasileira de Educação, n. 25, pp.105-
115, 2004.

TUDO RONDONIA. Grupo Gay promove evento em Cacoal. Disponível em: < ht-
tps://tudorondonia.com/noticias/grupo-gay-promove-evento-em-cacoal-,9374.shtml>
Acesso em: 10 de abril de 2019.

HAWANY, Thonny. O Grupo Arco-Iris de Rondônia: Origem e Natureza. Disponível


em:< http://www.thonnyhawany.com/2011/02/o-grupo-arco-iris-de-rondonia-origem-
-e.html>. Acesso em: 2 de abril 2019.

HAWANY, Thonny. O Grupo Arco-Íris de Rondônia põe bloco da alegria e preven-


ção na rua. Disponível em:< http://www.thonnyhawany.com/2011/03/o-grupo-arco-i-
ris-de-rondonia-poe-bloco.html>. Acesso em: 3 de abril de 2019.

HAWANY, Thonny. I Encontro Amazônico da Diversidade Sexual (ENADIS)


é realizado em Cacoal/Rondônia. Disponível em: <http://www.thonnyhawany.
com/2012/05/i-encontro-amazonico-da-diversidade.html>. Acesso em: 4 de abril de
2019.

HAWANY, Thonny. II Conferência Regional LGBT é realizada em Cacoal. Disponí-


vel em:< http://www.thonnyhawany.com/2011/08/ii-conferencia-regional-lgbt-e.html>.
Acesso em: 5 de abril de 2019.

HAWANY, Thonny. Cacoal Rainbow Fest – Sétima Edição. Disponível em: <http://
www.thonnyhawany.com/2012/11/cacoal-rainbow-fest-setima-edicao.html>. Acesso
em: 10 de abril de 2019.

HAWANY, Thonny. Grupo Arco-Íris de Rondônia Comemora Dia de Visibilidade


Trans. Disponível em:< http://www.thonnyhawany.com/2012/01/grupo-arco-iris-de-
-rondonia-comemora.html>. Acesso em: 15 de maio de 2019.

149
HAWANY, Thonny. VI Cacoal Rainbow Fest. Disponível em:< https://www.
thonnyhawany.com/2011/12/vi-cacoal-rainbow-fest.html>. Acesso em: 19 de maio
2019.

ONUBR. Nações Unidas no Brasil. ONU lembra Dia Internacional contra a Ho-
mofobia e a Transfobia. Disponível em: < https://nacoesunidas.org/onu-lembra-dia-
-internacional-contra-a-homofobia-e-a-transfobia-veja-principais-acoes-no-brasil/>.
Acesso em: 6 de abril de 2019.

RONDONIA AO VIVO. Grupo Arco-íris coloca Bloco da Prevenção no Carnaval


de Rua de Cacoal e Região, 2011. Disponível em: <http://rondoniaovivo.com/geral/
noticia/2011/03/04/grupo-arco-iris-coloca-bloco-da-prevencao-no-carnaval-de-rua-
-de-cacoal-e-regiao.html>. Acesso em: 3 de abril de 2019.

RONDÔNIA AO VIVO. Cacoal realiza II Conferência Regional LGBT. Disponível


em: <http://www.rondoniaovivo.com/geral/noticia/2011/08/12/cacoal-realiza-ii-confe-
rencia-regional-lgbt.html>. Acesso em: 5 de abril de 2019.

RONDÔNIA AO VIVO. Intolerância: Região Norte teve maior índice de mortes de


LGBT motivados por homofobia. Disponível em: <http://www.rondoniaovivo.com/ge-
ral/noticia/2018/05/21/regiao-norte-teve-maior-indice-de-mortes-de-lgbt-motivados-
-por-homofobia-diz-estudo-do-ggb.html>. Acesso em: 10 de abril de 2019.

RIBEIRO, Djamila. Mulher Negra: O Outro do Outro. In: O que é: Lugar de fala?.
Belo Horizonte: Letramento, p.47, 2017.

SIMÕES, Júlio Assis; FACCHICI, Regina. Na trilha do arco-íris: do movimento ho-


mossexual ao LGBT. São Paulo: Perseu Abramo, 2009.

150
PATRIARCADO, RACISMO E DOMINAÇÃO

Raíssa Schadeck26

INTRODUÇÃO

As relações de poder estabelecidas entre Estado e sociedade, ou mesmo


entre grupos sociais, são marcadas por vários fatores, entre eles questões de
raça, gênero, religião, poder econômico, opções políticas, entre outros. O racismo,
como uma das patologias que aparecem no exercício de poder, existe há séculos,
apareceu e se desenvolveu escorado em justificativas de ordem econômica, como o
desenvolvimento do capitalismo, questões de gênero, como o patriarcado, além de
outras eivas que potencializam o domínio de uma raça ou grupo social em relação
a outro. A presença pesquisa investiga os negros no Brasil, os quais podem ser
considerados uma minoria social, tendo em vista que, em razão de suas diferenças,
sofrem discriminações expressas ou veladas, constituindo-se em grupo vulnerável
no contexto pátrio.

Desse modo, busca-se compreender melhor a inserção dos indivíduos e de


grupos sociais, particularmente os negros, no contexto da sociedade capitalista
brasileira. Entre os objetivos específicos visa-se descortinar raízes do racismo,
examiná-lo como elemento da sociedade desigual pátria, indicar possíveis situações
em que ele se manifesta e atuações possíveis para superá-lo.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A presente pesquisa tem relevância histórica, social e cultural. Trata-se de


reconhecer o negro na sociedade hodierna. De tal modo, o racismo se compõe
como, conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre as raças,
26 Bacharel em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul - UNIJUÍ, Mestre
pelo Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Regional Integrada do Alto Uru-
guai e Missões - URI – Mestrado, [email protected].

151
entre as etnias. Nesse sentido, não há como se falar em raças e etnias no território
brasileiro, em razão do processo de miscigenação. A carga histórica que o Brasil
tem com a população fez nascer o paradigma social, no qual se vive atualmente. A
política de branqueamento alimentou o paradigma no qual brancos são superiores
aos negros, assim, o culturalismo, que pode ser entendido como racismo velado, o
qual cumpre exatamente as mesmas funções do racismo científico da cor da pele.

O Brasil pode ser considerado um pais multicultural, o qual agregou costumes


e culturas de diferentes povos ao redor do mundo. Uma das principais características
da cultura brasileira é a diversidade cultural. A política identitária não deve ultrapassar
a liberdade individual, pois os indivíduos são únicos e não podem ser categorizados.
Assim, democracia é uma a alternativa não política para alcançar o reconhecimento
do outro, ou seja, da diversidade.

METODOLOGIA

A pesquisa foi do tipo exploratória, coletando dados em fontes bibliográficas


disponíveis em meios físicos e na rede de computadores, utilizando-se o método de
abordagem hipotético-dedutivo.

RACISMO NO EVOLVER HISTÓRICO

O século XV foi marcado por grandes mudanças ocasionadas pelas navegações


europeias, as quais, via Oceano Atlântico, chegaram à Ásia e a África Ocidental,
além de estabelecer relações com territórios que até então não tinham contato com o
mundo externo, como as Américas e a região Centro-Ocidental da África Subsaariana
(MATTOS, 2016, p. 63).

Essas navegações propiciaram a colonização do Brasil pelos portugueses,


cujo modelo, de acordo com Gilberto Freyre (2013), foi eminentemente agrário e
escravocrata, inicialmente por meio dos índios e, mais tarde, pelos negros, em razão
da própria origem do povo português: europeia e africana. Essa mescla de colonização

152
influenciou a vida sexual, a alimentação, a religião, “amolecendo nas instituições e nas
formas de cultura as durezas germânicas; corrompendo a rigidez moral e doutrinária
da Igreja medieval” (2013, p. 66). A forma agrária, escravocrata, aristocrática,
centralizadora do poder ficou marcada no decorrer de nossa história e explica, na
fase colonial, no Estado Absoluto, não apenas o modelo de desenvolvimento, mas
também a relação dos cargos públicos com o patrimônio do rei.

Para Silva (2017, p.11), a riqueza do Brasil foi construída pelo braço escravo,
e a escravidão moderna, obra dos portugueses e espanhóis, encontrou como uma
de suas justificativas a retaliação a atos dos mouros contra inimigos ibéricos, na
atuação religiosa, inserindo-se no modo de produção capitalista. Os ideólogos
do escravismo trabalharam duro para tentar limpá-lo, legitimá-lo e valorizá-lo. Os
brancos bons – racionais, civilizados e cristãos – agiriam pela recuperação dos seus
irmãos aprisionados e também em benefício da África e dos selvagens africanos
necessitados de salvação. Do ponto de vista jurídico o escravo era identificado
como um bem móvel, para o senhor, valia o montante despendido mais os cuidados
necessários para que trabalhasse. (MATTOSO, 2016, p. 144).

A libertação tardara demais, e representou o rompimento do último laço forte da


monarquia: os cafeicultores perderam a esperança de ver seus bens “ressarcidos” e
divorciam-se de maneira litigiosa, de seu antigo aliado. Comemorada no estrangeiro
como uma vitória do Governo Imperial, a Lei de 13 de maio foi recebida no Brasil,
após explosão inicial de júbilo, com muita expectativa, e se constituiu no ato mais
popular do Império (SCHWARCZ; STARLING, 2015, p. 310).

O quadro da sociedade brasileira ao final do século XIX é composto por


uma pequena elite branca, restos de uma economia escravista decadente, grande
número de escravos libertos, filhos ilegítimos de senhores brancos com escravas,
descendentes de índios e brancos pobres, e imigrantes pobres chegando em número
cada vez maior. Mais tarde, no transcorrer do século passado, o Brasil desenvolveu
sua própria versão de sociedade assalariada e de Estado de Social, beneficiando
apenas uma parcela dessa população. De certa forma esse é ainda o retrato do
país, com elevado contingente da população ativa trabalhando sem contrato formal,
estabilidade no emprego ou proteção social (SCHWARTZMAN, 2004).

153
Assim, como um subproduto do modelo capitalista agrário implantado no Brasil,
que escravizou índios, negros e até alguns imigrantes, abençoado pela religião que
acompanhava os colonizadores, nasceu e se desenvolveu o racismo que, em patamar
mais discreto do que o da época escravista, ainda mostra sua face na sociedade
hodierna.

PATRIARCADO, DOMINAÇÃO E RACISMO

O primeiro grande sistema de dominação, se estruturou a partir de uma


relevância externa dada ao gênero e à sexualidade, sobre uma lógica binária homem-
não homem, macho-não macho e heterossexual-homossexual. Há que se considerar
que esse conjunto de operações comunicacionais, que historicamente se agregou a
diferentes sistemas (político, religioso e outros), jogou e continua jogando, com um
papel dominador muito importante na genealogia formativa de reações e respostas
libertárias próprias das últimas décadas do século passado, e com um vigor ainda
maior neste começo de século XXI. Existe um sistema mundial de comunicação/
dominação, cujos conteúdos de suas comunicações são fundamentalmente
patriarcais e heterossexuais. Notadamente, por uma vontade de poder incontrolável,
os homens adultos dominaram a sociedade planetária, ocupando espaços de poder
e submetendo todas as demais parcelas de seres humanos a vulnerabilidade e
violações. Tais estados de dominação desequilibraram de tal forma a configuração de
convivência entre os seres humanos, que, ao longo do século passado, as reações
de mulheres, homossexuais e outros sacrificados por esses dominadores foram
circunstancialmente inevitáveis (LUCAS; SANTOS, 2015, p. 35).

Ressalta-se, que nem sempre a sociedade foi desequilibrada em termos de


relações entre gênero. Existem fortes evidências, a partir de releituras arqueológicas
e estudos antropológicos, que nos primórdios da humanidade existia uma estrutura
social de igualdade e parceria que foi a base da convivência humana (ANGELIN;
UNSER, 2016).

Nesse sentido, nenhum ser humano era colocado acima do outro, nenhuma
diferença foi igualdada a inferioridade ou superioridade. As alterações culturais

154
ocorridas nas relações humanas, antes de parceria, passaram para outras formas
de relações, como guerras, força e poder. Desse modo, o princípio essencial na
substituição do modelo de parceria vivido pelas sociedades primitivas, foi o modelo
de dominação (EISLER apud ANGELIN; UNSER, 2016).

O patriarcado está no inconsciente coletivo da humanidade. Tal dogma


da sociedade, funciona mediante um sistema de comunicação silenciosa, mas
extremamente eficaz na estruturação e dinâmica dos processos de dominação das
mulheres pelos homens e de homossexuais por heterossexuais (e mais ainda em
relação a mulher negra). Ainda que sejam erradicadas das democracias ocidentais
contemporâneas quaisquer espécies de dispositivos que permitam a legitimação de
ações discriminatórias explicitas contra as mulheres; ainda que haja a configuração
de um cenário, pelo menos plano normativo, de uma total igualdade de gênero, essas
perspectivas, se não aprofundadas, revela, um olhar absolutamente ingênuo, pois as
injustiças e desigualdades permanecem presentes em nossas sociedades ocidentais,
ditas democráticas. Em outras palavras, embora se evoluiu em termos de positivação
de uma quantidade significativa de dispositivos voltados à proteção dos dominados
e violentados, as comunicações do sistema patriarcal não foram interrompidas,
continuando a atuar fortemente nos processos de dominação e violência.

Na visão de Lucas e Santos (2015, p. 35):

Não há qualquer dúvida em afirmarmos que há placas tectônicas


poderosíssimas, cujo movimento é determinado pela diferenciação de
gênero, e ainda, que na superfície não percebamos, pelo menos no ocidente,
terremotos discriminatórios de alta magnitude sismológica, permanece lento
o movimento de continentes territoriais, determinados por essas placas
patriarcais e heterossexuais que determinam a importância dos papéis e
posições segundo preferências de gênero, a partir de uma visão de mundo
masculina.

Para Lucas e Santos, existe um inconsciente patriarcal diluído numa normalidade


supostamente igualitária. A partir disso, se percebe uma neutralidade quanto ao
gênero, no sentido de que as mulheres estão numa posição de igualdade em relação
aos homens, não estando excluídas em suas buscar por bens sociais valiosos.
Contudo, entrando a analise, é possível visualizar e entender que o que está sendo

155
buscado de maneira neutra quanto ao gênero é totalmente parcializado, direcionado,
levando-se em conta a preponderância profunda, silenciosa, inconsciente e eficaz
dos interesses e valores patriarcais. As mulheres estão em desvantagem porque a
sociedade inteira favorece sistemicamente os homens ao definir trabalhos, méritos,
etc.

Nesse quadro de desigualdades encontram-se processos de formação


de identidades que vislumbram as diversidades identitárias e que não podem
ser estudados de forma distinta. Assim, observa-se que o mundo está em plena
transformação e consequentemente, os sujeitos e suas identidades se modificam
(ANGELIN; UNSER, 2016).

A consequência desta situação, é um sistema simbólico de identificações culturais


no qual a masculinidade é associada com a obtenção de renda e a feminilidade é
definida em função de serviços sexuais e domésticos para os homens e para criação
de filhos. Essas situações de dominação não podem ser compreendidas em toda
a sua espessura desde aproximações subjetivas. Elas são amplamente objetivas,
pois os homens como grupos exercem um forte controle sobre as possibilidades
existências das mulheres (LUCAS; SANTOS, 2015, p. 36).

Neste contexto de dominação, encontra-se na posição de dominadores, tanto


homens brancos europeus, quanto homens negros africanos. Também se presencia
a dominação patriarcal em países árabes, mas também presente no extremo oriente,
no mundo contemporâneo, estados de dominação como justificativa religiosa não
só por cristãos americanos e europeus, mas também por muçulmanos e hindus da
metade oriental do planeta (LUCAS; SANTOS, 2015, p. 36).

Mesmo com os grandes avanços nas legislações e no reconhecimento dos


direitos humanos, a dominação masculina continua muito forte:

A gravidade dos estados de dominação impostos pelas comunicações


patriarcais-heterossexuais é tão significativa que ainda hoje, testemunhamos
as mulheres em posição de inferioridade social, econômica e política em
praticamente todos os países do mundo. O peso da subjugação masculina é
tão grande que as mulheres que mantenham relações sexuais fora do contrato
matrimonial, ou mesmo após a morte do marido, são condenadas judicialmente
por adultério e mortas por apedrejamento em países islâmicos ortodoxos.
A opressão nesse aspecto, ainda é tão intensa que a homossexualidade

156
permanece sendo considerada um crime em um razoável número de países,
sendo previstas penas até de morte (LUCAS; SANTOS, 2015, p. 36).

Nesse sentido, busca-se descontruir esse paradigma de dominação através


de uma racionalidade de pensamento baseada na homogeneidade que excluía ou
não integrava diferenças. Na visão de Derrida (apud ANGELIN; HAHN, p. 72, 2015),
descontruir é fazer perceber as alienações políticas da linguagem, é lutar contra a
dominação dos estereótipos, é combater a tirania das normas.

Para Butler (2017, p.17), a teoria feminista, em sua essência, tem presumido
que existe uma identidade definida, compreendida pela categoria de mulheres,
que não só deflagra os interesses e objetivos feministas no interior de seu próprio
discurso, mas constitui o sujeito mesmo em nome de quem a representação política é
almejada. Na visão de Butler, a representação serve como termo operacional no seio
de um processo político que busca estender visibilidade e legitimidade às mulheres
como sujeitos políticos; de outro lado, a representação é a função normativa de uma
linguagem que revelaria ou distorceria o que é tido como verdadeiro sobre a categoria
das mulheres.

Atualmente, essa concepção dominante de relação entre a teoria feminista e


política passou a ser questionada a partir do interior do discurso feminista. O próprio
sujeito das mulheres não é mais compreendido em termos estáveis ou permanentes.
É significativa a quantidade de material ensaístico que não só questiona a visibilidade
do sujeito como candidato à representação, ou mesmo à libertação, como indica
que é muito pequena, afinal, a concordância quanto ao que constitui, ou deveria
constituir, a categoria das mulheres. Os domínios da representação política e
linguística estabeleceram a priori o critério segundo o qual os próprios sujeitos são
formados, com o resultado de a representação só se estender ao que pode ser
reconhecido como sujeito. Em outras palavras, as qualificações do ser sujeito têm
que ser atendidas para que a representação possa ser expandida (BUTLER, 2017,
p.17).

Fazendo relação com a teoria de Butler e de Derrida, pode-se dizer que a


racionalidade descentrada possibilita pensar e viver os direitos humanos desde a

157
perspectiva da espacialidade, da territorialidade, da temporalidade, pois é o contexto,
o lugar que transborda sentido (ANGELIM;HANN, p. 72, 2015).

Desse modo, os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que


subsequentemente passam a representar. As noções jurídicas de poder parecem
regular a vida política em termos puramente negativos – isto é, por meio da limitação,
proibição, regulamentação, controle e mesmo proteção dos indivíduos relacionados
àquela estrutura política, mediante uma ação contingente e retratável de escolha.
Porém, em virtude de a elas estarem condicionadas, os sujeitos regulados por tais
estruturas são formados, definidos e reproduzidos de acordo com as exigências delas.
Se esta análise é correta, a formação jurídica da linguagem e da política que representa
as mulheres como o sujeito do feminismo é em si mesma uma formação discursiva e
efeito de uma dada versão da política representacional. Assim, o sujeito feminista se
revela discursivamente constituído, e pelo próprio sistema político que supostamente
deveria facilitar sua emancipação, o que se tornaria politicamente problemática, se
fosse possível demonstrar que esse sistema produz sujeitos com traços de gênero
determinados em conformidade com um eixo diferencial de dominação, ou os produz
presumidamente masculinos. Em tais casos, um apelo crítico a esse sistema em
nome da emancipação das mulheres estaria inelutavelmente fadado ao fracasso
(BUTLER, 2017, p. 18).

Nesta esteira, a ação dos movimentos sociais, tem como finalidade principal
buscar o reconhecimento de direitos civis frente ao Estado e à própria sociedade,
sendo mecanismos imprescindíveis para trazer à tona as desigualdades vivenciadas,
e com isso, pressionar a desconstrução de identidades equivocadas e a construção
de equidade nas relações sociais. Eles se organizam para resistir e descobrir, a partir
do contexto, das vivências e das experiências, uma ideia tida como hegemônica. Tal
exercício força a sociedade a buscar reconstruir uma nova forma de racionalidade
e, consequentes ações que possibilitam uma interação maior, quebrando tabus e
dogmas naturalizados (ANGELIN;HAHN, p. 72, 2015).

Para Butler, os sujeitos políticos do movimento feminista, são criados por


exclusão, uma vez estabelecida a estrutura jurídica da política:

158
O sujeito é uma questão crucial para a política, e particularmente para a
política feminista, pois os sujeitos jurídicos são inevitavelmente produzidos
por via práticas de exclusão que não aparecem, uma vez estabelecida a
estrutura jurídica da política. Em outras palavras, a construção política do
sujeito procede vinculada a certos objetivos de legitimação e de exclusão,
e essas operações políticas são efetivamente ocultadas e naturalizadas por
uma análise política que toma as estruturas jurídicas como seu fundamento.
O poder jurídico produz inevitavelmente o que alega meramente representar;
consequentemente, a política tem de se preocupar com essa função dual
do poder: jurídica e produtiva. Com efeito, a lei produz e depois oculta a
noção de sujeito perante a lei de modo a invocar essa formação discursiva
como premissa básica natural que legitima, subsequentemente, a própria
hegemonia reguladora da lei. Não basta inquirir como as mulheres podem
se fazer representar mais plenamente na linguagem e na política. A crítica
feminista também deve compreender como a categoria das mulheres, o sujeito
do feminismo, é produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por
intermédio das quais se busca a emancipação (BUTLER, 2017, p.20).

Com certeza, a questão das mulheres como sujeito do feminismo suscita


a possibilidade de não haver um sujeito que se situe perante a lei, à espera de
representação da lei ou pela lei. Quiçá o sujeito, bem como a evocação de um
antes temporal, seja constituído pela lei como fundamento fictício de sua própria
reivindicação de legitimidade. A hipótese prevalecente da integridade ontológica do
sujeito perante a lei pode ser vista como o vestígio contemporâneo da hipótese do
estado natural, essa fábula fundante que é constitutiva das estruturas jurídicas do
liberalismo clássico. A invocação performativa27 de um antes não histórico torna-se
a premissa básica a garantir uma ontologia pré-social de pessoas que consentem
livremente em ser governadas constituindo assim a legitimidade do contrato social
(BUTLER, 2017, p.20).

Apesar disso, além das ficções fundacionais que sustentam a noção de sujeito,
há o problema político que o feminismo encontra na suposição de que o termo mulheres
denote uma identidade comum. Ao invés de um significante estável a comandar o
consentimento daquelas a quem pretende descrever e repensar, mulheres – mesmo
no plural – tornou-se um termo problemático, um ponto de contestação, uma causa
de ansiedade (BUTLER, 2017, p.20). Se alguém é uma mulher, isso certamente

27 A noção de performatividade é apropriada por diversos campos interdisciplinares como Antropolo-


gia, Artes, Ciências Políticas, física, dentre outras, é apresentada neste estudo com um recorte na Filosofia da
linguagem, a qual se dedica aos fenômenos linguísticos, e, em especial, na Filosofia da diferença, que busca
refletir sobre questões relacionadas à desconstrução da lógica metafísica que se pauta em binarismos, dicoto-
mias e hierarquizações, tendo a categoria gênero como pano de fundo (BRITO, 2017).

159
não é tudo o que alguém é; o termo não logra ser exaustivo, não porque os traços
predefinidos de gênero da pessoa transcenderam o paradigma específico de gênero,
mas porque o gênero nem sempre se constituiu de maneira consistente nos diferentes
contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades
raciais, classistas, étnicas, sexuais e religiosas das interseções políticas e culturais
em que invariavelmente ela é produzida e mantida.

Em relação às lutas sobre gênero e raça, pode-se afirmar tanto o princípio


da igualdade quanto o da diferença. O movimento feminista teve de lutar para
desconstruir a injustiça econômica através da denúncia de que gênero estrutura a
divisão fundamental entre trabalho produtivo e assalariado e trabalho reprodutivo,
domésticos e não-assalariados, típico de mulher. Além disso, o gênero também
estrutura a divisão de trabalho entre ocupações profissionais e bem pagas dominadas
por homens e o trabalho doméstico, mal pago, dominado por mulheres. Como solução
para isso, a transformação da economia política deveria eliminar a exploração,
a marginalização e a privatização específica de gênero, que significa eliminar as
diferenças entre gênero, a especificidade do gênero (MATTOS, 2004,p. 146).

Se presume haver uma base universal para o feminismo, a ser encontrada


numa identidade supostamente existente em diferentes culturas, acompanhada da
ideia de que a opressão das mulheres possui uma forma singular, discernível na
estrutura universal ou hegemônica da dominação patriarcal ou masculina (BUTLER,
2017, p.21).

A noção de patriarcado, tem sido criticada, recentemente, pela dificuldade em


explicar os mecanismos de dominação:

A noção de um patriarcado universal tem sido amplamente criticada em


anos recentes, por seu fracasso em explicar os mecanismos de opressão de
gênero nos contextos culturais concretos em que ela existe. Exatamente onde
esses vários contextos foram consultados por essas teorias, eles o foram
para encontrar exemplos ou ilustrações de um princípio universal pressuposto
desde o ponto de partida. Esta forma de teorização feminista foi criticada
por seus esforços de colonizar e se apropriar de culturas não ocidentais,
instrumentalizando-as para confirmar noções marcadamente ocidentais de
opressão, e também por tender a construir um terceiro mundo ou mesmo um
ocidente em que a opressão de gênero é sutilmente explicada como sintomática
de um barbarismo intrínseco e não ocidental. A urgência do feminismo no
sentido de conferir um status universal ao patriarcado, com vistas a fortalecer

160
a aparência de representatividade das reivindicações do feminismo, motivou
ocasionalmente um atalho na direção de uma universalidade categórica ou
fictícia da estrutura de dominação, tida como responsável pela produção da
experiência comum de subjugação das mulheres (BUTLER, 2017, p.21).

Afirmar a existência de um patriarcado universal não tem mais a credibilidade


ostentada no passado, mas a noção de uma concepção genericamente compartilhada
das mulheres, decorrente dessa perspectiva, tem se mostrado muito mais difícil
de superar. Houveram muitos debates, no sentido de existir traços comuns entre
as mulheres, preexistentes à sua opressão, ou estariam as mulheres ligadas em
virtude somente de sua opressão? Haverá especificidade das culturas das mulheres,
independentemente de sua subordinação pelas culturas masculinas hegemônicas?
Caracterizam-se sempre a especificidade e a integridade das práticas culturais ou
linguísticas das mulheres por oposição e, portanto, nos termos de alguma outra
formação cultural dominante? Existe uma região do especificamente feminino,
diferenciada do masculino como tal e reconhecível em sua diferença por uma
universalidade indistinta e consequentemente presumida das mulheres? A noção
binária de masculino/feminino constitui não só a estrutura exclusiva em que essa
especificidade pode ser reconhecida, mas de todo modo a especificidade do feminino
é mais uma vez totalmente descontextualizada, analítica e politicamente separada
da constituição de classe, raça, etnia e outros eixos de relações de poder, os quais
tanto constituem identidade como tornam equivocada a noção singular de identidade
(BUTLER, 2017, p.23).

Assim, para combater a injustiça cultural é imperiosa uma desconstrução do


androcentrismo (padrões culturais que privilegiam as características da masculinidade)
que caminha junto com o sexismo cultural (a desvalorização e depreciação de
coisas vistas como femininas tomadas como emotivas e irracionais). A solução aqui
está baseada na afirmação das diferenças, na valorização das práticas ligadas ao
feminismo (MATTOS, 2004, p. 147).

Desse modo, as supostas universalidade e unidade do sujeito do feminismo são


de fato minadas pelas restrições do discurso representacional em que funcionam. Com
efeito, a insistência prematura num sujeito estável do feminismo, compreendido como
uma categoria uma das mulheres, gera, inevitavelmente, múltiplas recusas em aceitar

161
essa categoria. Esses domínios da exclusão revelam as consequências coercitivas
e reguladoras dessa construção, mesmo quando a construção é elaborada com
propósitos emancipatórios. Não há dúvida, a fragmentação no interior do feminismo e
a oposição paradoxal ao feminismo – por parte de mulheres que o feminismo afirmar
representar – sugerem os limites necessários da política de identidade. A sugestão
de que o feminismo pode buscar representação mais ampla para um sujeito que ele
próprio constrói gera a consequência irônica de que os objetivos feministas correm o
risco de fracassar, justamente em função de sua recusa a levar em conta os poderes
constitutivos de suas próprias reivindicações representacionais. Fazer apelos à
categoria das mulheres, em nome de propósitos meramente estratégicos, não resolve
nada, pois as estratégias sempre têm significados que extrapolam os propósitos a que
se destinam. Nesse caso, a própria exclusão pode restringir como tal um significado
inintencional, mas que tem consequências. Por sua conformação às exigências da
política representacional de que o feminismo articule um sujeito estável, o feminismo
abre assim a guarda a acusações de deturpação cabal da representação (BUTLER,
2017, p.23).

Para Saffioti (1994, p. 155):

Até o presente, as mulheres têm sido mantidas afastadas das políticas de


direitos humanos. Mais do que isso, o Estado tem ratificado um ordenamento
social de gênero através de um conjunto de leis que se pretendem objetivas
e neutras, porque partem da errônea premissa de que a desigualdade de
facto entre homens e mulheres não existe na sociedade. [...] Assim, o Estado
não somente acolhe o poder masculino sobre a mulher, mas o normatiza,
proibindo e até criminalizando seus excessos. A punição das extravagâncias
integra o poder disciplinador da dominação masculina sobre a mulher, exer-
cido pelo Estado. Este não fez, portanto, senão ratificar a falocracia em suas
dimensões material e “ideacional”, dando-lhe a forma jurídica que caracteriza
a dominação legalizada.

Com obviedade, a tarefa política não é recusar a política representacional -


como se pudesse fazê-lo. As estruturas jurídicas da linguagem e da política cons-
tituem o campo contemporâneo do poder, consequentemente, não há posição fora
desse campo, mas somente uma genealogia, crítica de suas próprias práticas de le-
gitimação. Assim, o ponto de partida crítico é o presente histórico, como definiu Marx.
E a tarefa é justamente formular, no interior dessa estrutura constituída, uma crítica

162
às categorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram,
naturalizam e imobilizam (BUTLER, 2017, p.23).

Para Butler, há na presente conjuntura político-cultural, período que alguns


chamam de pós-feminista, uma oportunidade de refletir a partir de uma perspectiva
feminina sobre a exigência de se construir um sujeito do feminismo. Para a autora é
necessário repesar radicalmente as construções ontológicas de identidade na prática
representacional capaz de renovar o feminismo em outros termos. Por outro lado, é
tempo de empreender uma crítica radical, que busque libertar a teoria feminista da
necessidade de construir uma base única e permanente, invariavelmente contestada
pelas posições de identidade ou anti-identidade que o feminismo invariavelmente
excluí. Será que as práticas excludentes que baseiam a teoria feminista numa noção
das mulheres como sujeito solapam, paradoxalmente, os objetos feministas de am-
pliar suas reivindicações de representação (BUTLER, 2017, p.24).

Talvez o problema seja ainda mais sério. Seria a construção de uma categoria
de mulheres como sujeito coerente e estável de uma regulamentação e retificação28
inconsciente das relações de gênero? E não seria essa reificação precisamente
o contrário dos objetivos feministas? Em que medida a categoria das mulheres só
alcança estabilidade e coerência no contexto da matriz heterossexual? Se a noção
estável de gênero dá mostras de não mais servir como premissa básica da política
feminista, talvez um novo tipo de política feminista seja agora desejável para contes-
tar as próprias reificações do gênero e da igualdade – isto é, uma política feminista
que tome a construção variável da identidade como um pré-requisito metodológico e
normativo, senão como um objeto político (BUTLER, 2017, p.24).

Determinar as operações que produzem e ocultam o que se qualifica como


sujeito jurídico do feminismo é precisamente a tarefa da genealogia feminista da ca-
tegoria das mulheres. No decurso desse esforço de questionar a noção de mulheres
como sujeito do feminismo, a invocação não problematizada dessa categoria pode
impedir a possibilidade do feminismo como política representacional (BUTLER, 2017,
p.24).

28 No sentido de transformar uma ideia em coisa. Qualquer processo em que uma realidade social ou
subjetiva de natureza dinâmica e criativa passa a apresentar determinadas características - fixidez, automatis-
mo, passividade - de um objeto inorgânico, perdendo sua autonomia e autoconsciência.

163
Na perspectiva dos Direitos Humanos das mulheres, esses direitos são rei-
vindicados. Na visão de Piovesan (apud ANGELIN; HAHN, 2015, p. 73), os direitos
humanos das mulheres compõem uma racionalidade de resistência na medida em
que traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade
humana. Percebe-se assim, que dentro da lógica de uma racionalidade de resis-
tência, não há dignidade sem espacialidade, não há Direitos Humanos sem espaço
aos quais pertence pela vivência e pela experiência, não há Direitos Humanos sem
espaços apropriados através da luta contínua, não há Direitos Humanos se não há
possibilidade de pertencer a ser reconhecido por uma coletividade, não se pode falar
em eficácia de Direitos Humanos sem espacialidade.

A identidade do sujeito feminista não deve ser o fundamento da política feminis-


ta, pois a formação do sujeito ocorre no interior de um campo de poder sistematica-
mente encoberto pela afirmação desse fundamento. Quem sabe, paradoxalmente, a
ideia de representação só venha realmente a fazer sentido para o feminismo quando
o sujeito mulheres não for presumido (BUTLER, 2017, p.24).

Desse modo, sociedade de classes, como estruturada atualmente, passou por


etapas ao longo da história, sendo construídas à luz de princípios norteadores. Os
princípios estruturais podem ser entendidos como princípios de organização que per-
mitem formas consistentes de distanciamento tempo-espaço com base em meca-
nismos definidos de integração social. Segundo Giddens, tais sociedades se clas-
sificavam em três organizações distintas: sociedade tribal, sociedade dividida em
classes e sociedade de classes. Nas sociedades tribais, ou pequenas culturas orais,
o princípio estrutural dominante opera ao longo de um eixo que relaciona tradição e
parentesco, inserindo-se no espaço. O princípio estrutural dominante da sociedade
dividida em classes encontra-se ao longo do tempo de um eixo que correlaciona as
áreas urbanas com seus espaços rurais. A cidade é um recipiente de armazenagem
de recursos administrativos em torno do qual são construídos os Estados agrários. A
diferença entre cidade e campo é o instrumento de separação entre integração social
e de sistema, embora uma e outra não sejam necessariamente coincidentes, pois a
relação simbólica de cidade e campo pode assumir várias formas (GIDDENS, 2003,
p. 216).

164
Existem fortes evidências, a partir de releituras arqueológicas e estudos antro-
pológicos, que nos primórdios da humanidade existia uma estrutura social de igual-
dade e parceria que foi a base da convivência humana. Nesse sentido, nenhum ser
humano era colocado acima do outro, nenhuma diferença foi igualdade a inferiorida-
de ou superioridade. As alterações culturais ocorridas nas relações humanas, antes
de parceria, passaram para outras formas de relações, como guerras, força e poder.
Desse modo, o princípio essencial na substituição do modelo de parceria vivido pelas
sociedades primitivas, foi o modelo de dominação (ANGELIN; UNSER, 2016).

Em relação ao tema em estudo, após a Segunda Guerra Mundial, com


a derrota do nazismo, o racismo de base biológica sofreu fortíssimo comba-
te, tanto internamente entre os países que o adotavam, quanto internacional-
mente, simbolizado em tratados como a Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos, da ONU, em 1948. Ocorre que o racismo não desapareceu, mas adotou
novos paradigmas, como ensina Jessé Souza (2017, p. 18), o culturalismo29
, que cumpre exatamente as mesmas funções do racismo científico da cor da pele,
prestando-se a garantir uma sensação de superioridade e de distinção para os povos
e países que estão em situação de domínio e, desse modo, legitimar e tornar mere-
cida a própria dominação.

A compreensão desse patamar distinto de discriminação passa pela ideia de


dominação, a qual, para a teoria marxista, tem a violência no cerne das relações de
dominação, nas quais nascem estados de dominação homogeneizadores contra os
quais aconteceram reações e respostas em processos sociais estruturados na no-
ção de diferença. Para Zizek, os sinais mais evidentes de violência são atos de cri-
me e terror, confrontos civis, conflitos internacionais. Esses atos são decorrentes de
uma violência visível, exercida por um agente identificável, porém é preciso perceber
os contornos dos cenários que engendram essas explosões. A partir da noção de
violência subjetiva, visível, surge a ideia de uma violência simbólica, encarnada na
linguagem e suas formas, é a violência sistêmica, que consiste nas consequências
catastróficas do funcionamento regular de nossos sistemas econômicos e políticos

29 O racismo culturalista surge da ideia de separação ontológica entre seres humanos, é uma continu-
ação do racismo científico da cor da pele e não sua superação. Os dois fazem parte do mesmo paradigma.
Presta a garantir a sensação de superioridade e de distinção para povos e países que estão em situação de
domínio.

165
(Zizek, 2010).

Para Luhmann (1997), é necessário pensar o funcionamento desses sistemas


de dominação. Não são os indivíduos que em sua atomização determinam o funcio-
namento desses sistemas e a ocorrência de suas violências. Os sistemas sociais
são, autorreferenciais, pois são capazes de operar com base em suas próprias ope-
rações constituintes; são também, autopoiéticos, porque se autorrepoduzem ou pro-
duzem a si mesmos enquanto unidade sistêmica. O elemento básico de reprodução
no sistema social é o processo de comunicação.

A partir da ideia de dominação é que surgem os papéis dos indivíduos na socie-


dade. O homem, mais precisamente o homem branco domina a sociedade de modo
a dominar também a economia, os meios de produção e o sistema de comunicação.
No início do capitalismo, necessitava-se de mão de obra, assim se buscou a mão de
obra escrava por um determinado tempo, tratando-se o negro como objeto, proprie-
dade móvel.

No capitalismo atual não há mais uma relação de dominação tão clara como
aquela do passado. A complexidade da época contemporânea só pode ser com-
preendida no contexto das profundas mudanças ocasionadas, nas sociedades no
mundo inteiro, pelo desenvolvimento do capitalismo em suas múltiplas facetas: ao
mesmo tempo econômico, político e ideológico; ao mesmo tempo nacional, multina-
cional e mundial; ao mesmo tempo, libertador e opressor, criador e destruidor (LU-
CAS; SANTOS, 2015, p. 41).

Para Bourdieu (2002), não se pode pensar esta forma particular de dominação
senão ultrapassando a alternativa da pressão (pelas formas) e de consentimento
(às razões), da coerção mecânica e da submissão voluntária, livre, deliberada ou
até mesmo calculada. O efeito da dominação simbólica (seja de etnia, de gênero, de
cultura, de língua etc.) se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes,
mas através dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são consti-
tuídos do habitus e que fundamentam, aquém das decisões de consciência e dos
controles da vontade, uma relação de conhecimento profundamente obscura a ela
mesma.

166
O capitalismo se reproduz e se mantém pela conjugação de mecanismos explí-
citos e mecanismos camuflados, inconscientes. O primeiro mecanismo é o consumo,
a produção de um trabalhador depende de sua reprodução. O segundo mecanismo
é a mais valia, por meio da qual a produção capitalismo prospera em explorar mais
tempo de trabalho do que o realmente pago. O terceiro mecanismo, que estaria ocul-
to e é fundamental para todas as sociedades: o fato de serem constituídas, sempre,
de uma base econômica, uma infraestrutura e uma superestrutura. A superestrutura
abrange o todo cultural (religião, política, lei, educação, artes, etc.) que é determina-
do por uma economia específica, podendo ser escravista, feudalista, mercantilista
ou capitalista. O sistema de ideias marxista se baseia na infraestrutura econômica,
e quem mais possui tais meios de produção. Está é a natureza oculta, camuflada in-
consciente do sistema econômico vigente (LUCAS; SANTOS, 2015, p. 41).

Desse modo, do patriarcado, da dominação histórica e sistêmica do colonialis-


mo, do imperialismo e do capitalismo, resultam nas reações e respostas de negros
e índios pelo resgate de suas condições sociais, culturais e econômicas, totalmente
aviltadas historicamente, e assim alinhadas às lutas das minorias raciais.

167
CONCLUSÃO

A dominação econômico-social é evidente, porém silenciosa e nem sempre


percebida pelos atores e/ou coadjuvantes do processo histórico. Muitas crenças pas-
saram a ser questionadas apenas após o fortalecimento do capitalismo industrial,
com o surgimento de movimentos de reação e resistência ao sistema vigente. A do-
minação sistêmica dos grupos vulneráveis deve ser compreendida no contexto de
uma sociedade complexa.

Nesse sentido, há um papel importante a ser desenvolvido pelas Universidades,


ampliando a compreensão dos mecanismos de dominação e auxiliando os cidadãos
e movimentos sociais a assumirem uma postura crítica, propondo novos parâmetros
de convivência.

O racismo, o sexismo, a misoginia, a homofobia e demais tipos de discrimina-


ção se perpetuaram por séculos de dominação. Agora é hora de se construir uma
sociedade mais justa, que não abandone a igualdade, mas que compreenda que a
igualdade de nossa sociedade complexa pressupõe respeito às diferenças e à diver-
sidade.

168
REFERÊNCIAS

ANGELIN, Rosangela; UNSER, Rosemara. DIREITOS HUMANOS DAS MULHE-


RES NUM CONTEXTO PATRIARCAL: RESISTÊNCIA E AVANÇOS. Disponível
em:< https://www.publicacoeseventos.unijui.edu.br/index.php/salaoconhecimento/
article/view/7219/5984> Acesso em: 02 fev. 2018.

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução Maria Helena Künder.-2ª


ed.- Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

BUTLER, Judith P. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade.- 13ª


ed.- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

BRITO, Leandro Teófilo de. A Noção De Performatividade Para Pensar Os Sen-


tidos Atribuídos Ao Masculino No Espaço Da Educação Física Escolar. Dispo-
nível em:<http://www.uneb.br/enlacandosexualidades/files/2015/07/Trabalho-Enla%-
C3%A7ando-Sexualidades-1-2015.pdf> Acesso em: 25 out.2017.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

FARAH, Tatiana. Disparidades salariais homem-mulher. Disponível em:<https://


www.buzzfeed.com/tatianafarah/disparidades-salariais-homem-mulher-ipea?utm_
term=.pm66R90Kyk#.et30VmkAga> Acesso em: 29 out. 2017.

FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o


regime patriarcal. São Paulo: Global, 2013.

GIDDENS, Anthony. A Constituição Da Sociedade. Tradução ÁLVARO CABRAL.-

169
São Paulo: Editora Martins Fontes, 2003.

HAHN, Noli Bernardo; ANGELIN, Rosângela. A CONTRIBUIÇÃO DOS MOVIMEN-


TOS FEMINISTAS PARA A CULTURA DOS DIREITOS HUMANOS MEDIANTE A
PESPECTIVA DA RACIONALIDADE DESCENTRADA. In: Policromias da diferença:
inovações sobre pluralismo, direito e interculturalidade. Lisboa: Editora Juruá, 2015.

KERNER, Ina. Tudo é interseccional? Sobre a relação entre racismo e sexis-


mo. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0101-33002012000200005> Acesso em: 29 out. 2017.

LUHMANN, N. O conceito de sociedade. In: NEVES, C. B. ; SAMIOS, E. M. B.


(Org.). Niklas Luhmann: a nova teoria dos sistemas. Porto Alegre: Ed. UFRGS,1997.

MATTOS, Patrícia. O reconhecimento, entre a justiça e a identidade. Lua Nova,


nº 63, p. 143-161. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ln/n63/a06n63.pd-
f&gt;> Acesso em: 12 fev. 2018.

MATTOS, Regiane Augusto dos. História e cultuta afro-brasileira. 2 ed., 6ª reim-


pressão.- São Paulo: Contexto, 2016.

MATTOSO, Katia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil: séculos XVI-XIX; tradução


de Sonia Furhmann. – Petrópolis, RJ: Vosez, 2016.

RODRIGUES, Cristiano Santos; PRADO, Marco Aurélio Maximo. Movimento de Mu-


lheres Negras: Trajetória Política, Práticas Mobilizatórias e Articulações com
o Estado Brasileiro. Disponível em:<http://www.scielo.br/pdf/psoc/v22n3/v22n3a05.

170
pdf> Acesso em: 29 out. 2017.

SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. A Mulher na sociedade de classes: mito e


realidade. Petrópolis: Vozes, 1976.

______. Gênero, patriarcado e violência.- São Paulo: Editora Fundação Perseu


Abramo, 2004.

______. Mulher brasileira é assim? organizadoras, Heleieth Saffioti, Monica Muño-


z-Vargas – Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos: NIPAS; Brasília, DF: Unicef, 1994.

SANTOS, André Leonardo Copetti; LUCAS; Doglas, Cesar. A (in)diferença no Direi-


to.- Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.

SILVA, Juremir Machado da. Raízes do Conservadorismo Brasileiro: a abolição


da imprensa e no imaginário social. – 1ª ed.- Rio de Janeiro. Civilização Brasileira.
2017.

SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1ª ed.-
São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. – Rio de Janeiro:


Leya, 2017.

ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução de Miguel Serras Perei-
ra. São Paulo: Boitempo, 2014. 195 p.

171
O DISCURSO E A PRÁTICA DA RELIGIOSIDADE FRENTE
À TRANSGENERIDADE
Vanessa Andriani Maria30

INTRODUÇÃO

Apesar de a heteronormatividade ser vista como um parâmetro de sexualidade


há indivíduos que fogem à norma heterossexual. Nem todas as pessoas condizem
com as expectativas que o imaginário social impinge, em se tratando de normas de
gênero e ao que vem a ser a representação social da figura do masculino e do femi-
nino e estas pessoas que não se enquadram nestes moldes são discriminadas. Um
desses grupos é designado como o grupo das transexuais.

As pessoas que fogem ao padrão heteronormativo, isto é, quando o gênero


é fundamentado no binarismo, sofrem preconceito e/ou discriminação em função da
sua identidade de gênero, o qual é denominado de transfobia. Indivíduos transgêne-
ros são alvo de preconceito, não possuem seus direitos fundamentais respeitados,
sofrem exclusão social, possuem dificuldade de acesso à educação, ao mercado de
trabalho e até ao uso de banheiros, além de sofrerem intimidações, abusos e homi-
cídios.

As identidades de gênero não estão restritas ao sistema binário (homem ou


mulher, necessariamente heterossexuais), mas são variadas – por exemplo, transe-
xuais, travestis, transgêneros, crossdressers, drag queen, drag king e gender queer,
gender fluid, dentre outros, cada qual com suas particularidades. A expressão trans-
gênero significa toda e qualquer subjetividade que escape à lógica da cisheteronor-
matividade, ao passo que a expressão transexual – que é uma das manifestações
da transgeneridade – é restrita aos casos nos quais há discordância entre o sexo
atribuído ao nascimento e ao gênero autodeclarado pelo sujeito – sendo o transexual
30 Vanessa Andriani Maria – Advogada, Pós-Graduada em Direito do Trabalho e Pós-Graduada em Ad-
vocacia Cível. Membro da Comissão de Direitos Humanos e do Grupo de Violência de Gênero da OAB Santa
Maria-RS / [email protected]

172
masculino aquele que nasceu mulher, porém se identifica ao gênero masculino; e
transexual feminino aquele que nasceu homem, porém se identifica ao gênero femi-
nino, decorrendo em muitos casos pela procura da cirurgia de redesignação sexual
(BENTO, 2012).

No trabalho em questão, será discutido o preconceito contra a transexual no


ambiente familiar e de que modo este tipo de violência pode afetar seus direitos de
personalidade e dignidade. Para isso, foi adotado o método teórico que consiste em
consultas a obras e artigos de periódicos especializados que tratam o assunto.

A aceitação das transexuais na igreja é importante ao próprio processo de


construção destas pessoas, cujas vidas são marcadas pela experiência social da
exclusão primeiramente do âmbito familiar e posteriormente, da sociedade na qual
está inserida.

São grandes as dificuldades para encontrar grupos religiosos que incluam efe-
tivamente, sem preconceitos e segregações a minoria transgênera. Em sua maioria,
estes indivíduos são tratados como verdadeiras aberrações e o anseio de buscar a
Deus torna-se cada vez mais remoto, carecendo de lugares que os/as acolham com
respeito e dignidade que merecem; aflorando assim, o desenvolvimento de sua reli-
giosidade e espiritualidade.

As Considerações Finais do trabalho remetem a uma reflexão sobre a discri-


minação e o preconceito, pronunciando-os à identidade, dia a dia e prática religiosa
das transexuais. Nesta seara, estes indivíduos elegem uma busca religiosa-espiritual
cotidiana em seus próprios lares, voltando-se à prática religiosa aprendida em suas
origens, independente de filosofias, dogmas e religiões tradicionais, como resposta à
rejeição e que passam nesses espaços religiosos ou em decorrência destes.

TRANSEXUALIDADE: OS CORPOS PODEM MUDAR!

Diferente do que se avalia na sociedade, a transexualidade não é recente ou


pouco conhecida, consiste em uma pseudossíndrome psiquiátrica, onde o indivíduo
se identifica com o gênero oposto, significando “manifestação extrema da inversão

173
psicossexual, em que o indivíduo nega o sexo biológico e deseja assumir a identida-
de do sexo oposto”.(FARINA, 1982, p. 117)

A Teoria Queer se opõe as perspectivas excludentes e lida com o gênero


como algo cultural. Considera que o masculino e o feminino presente em homens
e mulheres, de forma que cada pessoa tem características que podem se qualificar
como masculinas ou femininas, independente do sexo biológico. (MISKOLCI, 2012)

As transexuais são pessoas que sentem desconforto psíquico com seu sexo
oposto, ambicionando obsessivamente ter seu corpo readequado ao sexo contrário
que acreditam possuir. Para elas, a operação de mudança de sexo é uma obstina-
ção, já que não se conformam nem se admitem com o seu sexo biológico. A transe-
xual legítima tem repulsa por sua genitália, o que as distingue dos homossexuais,
nas quais a genitália desempenha um papel importante.

Transexualismo é uma questão que está em uma situação limítrofe que con-
fronta ideologias opostas e diferentes hierarquias de valores. A transexual representa
emblematicamente a patologia do incerto, é um sujeito que apresenta um contraste
eloquente e definido, ou seja, as características sexuais externas e as de natureza
psíquica. Isto leva a uma busca ansiosa por uma correspondência entre aparência fí-
sica e comportamento, hábitos, gestos, costumes, e atitudes em geral, que são as do
sexo que realmente sentem e profundamente vivenciam no quotidiano. Essa tendên-
cia, visando a sua própria identidade sexual, leva a que os transexuais se submetam
à cirurgia dos genitais, para que correspondam com o seu estado psicológico e suas
formas de vida (tradução nossa).(HIGHTOM, 1993, p. 207)

Fazendo-nos valer da denominação biomédica, transexuais são aqueles indi-


víduos que se consideram “afetados” por um transtorno envolvendo a sua identidade
de gênero, ou na linguagem diagnóstica, que não se reconhecem no corpo com o
qual vivem. Essa falta de identificação pode levar a uma aversão intensa ao seu sexo
biológico (PETRY, MEYER, 2011).

Sob o contexto médico a transexualidade é uma anomalia da sexualidade hu-


mana segundo a qual o indivíduo possui um “sentimento profundo de pertencer ao
sexo oposto e a vontade extremada de reversão sexual”. (SZANIAWSKI, 1999, p.53)

174
Uma pessoa transexual pode ser bissexual, heterossexual ou homossexual,
dependendo do gênero que adota e do gênero com relação ao qual se atrai afeti-
vossexualmente. Para entender melhor: mulheres transexuais que se atraem por
homens são heterossexuais, assim como seus parceiros; homens transexuais que
se atraem por mulheres também o são. Já mulheres transexuais que se atraem por
outras mulheres são homossexuais, e homens transexuais que se atraem por outros
homens também. Não se pode esquecer, igualmente, das pessoas com orientação
sexual bissexual. Nem todas as pessoas trans são gays ou lésbicas (JESUS, 2012).

O resultado das incessantes pressões sociais para a cisheteronormatividade


é que por diferentes motivos leva as pessoas transgênero e transexuais a desejar
tais transformações corporais para viver bem, pois independentemente da identidade
e da expressão de gênero ou da sua orientação sexual elas buscam harmonia entre
a autoimagem e a materialidade do corpo, crendo que essa adequação (corpo/subje-
tividade) garante sua autonomia (e felicidade). (MISKOLCI, 2009)

Em geral, quando pensamos na identidade de alguém, pensamos como uma


pessoa “é”, criamos a expectativa de que as pessoas devam agir e serem tratadas de
acordo com suas predicações. Trata-se do que Ciampa (2001) chama de identidade
pressuposta, que é atualizada pelas relações e rituais sociais, ou seja, é permanen-
temente reposta, fixando a pessoa em uma posição que a aprisiona.

Segundo Teixeira (2009, p.47), “o argumento do aprisionamento em corpo er-


rado é apropriado e reiterado constantemente como modelo explicativo da transe-
xualidade”.

Dessa forma, a identidade de gênero pode ser vista como um conceito mul-
tifacetado, fluido e sua estruturação depende do contexto histórico, cultural, político
e econômico, apontando para a constante influência do meio e da necessidade de
participar do mesmo – e das suas regras, o que constitui um paradoxo principalmen-
te para a autonomia transgênero e transexual, pois ao mesmo tempo em que essas
pessoas se opõem a um padrão de papéis de gênero heteronormativos que lhe foi
designado ao nascer, elas também o (re)afirmam aderindo às normas supostamente
opostas (PERES, TOLEDO, 2011; SILVA,CERQUEIRA-SANTOS, 2014).

175
Desde a perspectiva êmica, o termo transgênero “englobaria todas as pes-
soas que questionam, com sua própria existência, a validade do esquema dicotômico
de sexo-gênero, sejam elas partidárias ou não da cirurgia de redesignação sexual”.
(GARCIA, 2009, p. 67)

Assim sendo, é de simples dedução que o bullying cometido ao transexual


tende a agredir e dar ênfase a um ato discriminatório mediante a sua vontade de vi-
ver e ser identificada como pessoa do sexo oposto ao seu sexo biológico, sofrendo
ataques a sua dignidade e integridade.

UM TRANSEXUAL NA FAMÍLIA: E AGORA?

Grande parte da população trans enfrenta violência e humilhação justamente


onde deveria encontrar acolhimento. Constata-se que o bullying às transexuais é
ação que se inicia primeiramente dentro de seu ambiente familiar, onde sua própria
família condena e inferioriza a sua condição, tornando-se a transexual perante a
sociedade e o Estado um ser invisível, e tendo os seus direitos da personalidade e
fundamentais desrespeitados.

A família é o primeiro grupo a atuar de modo preconceituoso e recriminatório.


Neste contexto familiar os conflitos e os maus tratos se intensificam e culmina com
sua expulsão de casa ou até mesmo sua fuga.

De quase todas as bibliografias consultadas, o início do rompimento de vín-


culos e o processo de estigmatização ocasionado a transexuais a predisposição a
vulnerabilidades teve início a partir da exclusão ocorrida na família. Os processos
depreciativos vividos por elas influenciaram em toda a organização de suas subje-
tividades, construídas ao longo das relações estabelecidas com os outros, com o
mundo e consigo mesmas.

A descoberta do corpo e comunicação para a família é motivo para várias sur-


ras, ofensas e rejeições familiares. O sentimento destes indivíduos é um só: a mente
e o corpo não podem ir contra o que desejam ser e o que realmente são. Então é
preciso muita garra e coragem para confrontar-se com a conjuntura ao seu redor.

176
O IMPACTO NAS RELAÇÕES FAMILIARES

A dignidade da pessoa humana, surge como “uma verdadeira cláusula geral


de tutela e promoção da pessoa humana, adotada como valor máximo pelo ordena-
mento” (TEPEDINO, 1999, p. 48). Por ser um valor este atribuído a todo homem, o
transexual também é detentor de dignidade.

Quando se coloca em pauta o assunto “dignidade da pessoa humana”, não


há que se falar ou concordar que a pessoa ceda, renuncie ou negocie sua dignida-
de. “Quando se trata da proteção da dignidade do ser humano, não podemos admi-
tir tergiversação. A dignidade do ser humano exige proteção máxima, inegociável”
(ALMEIDA NETO, 2005, p.29). Com a dignidade do transexual não seria um fato em
isolado e diferente, esta dignidade é irrenunciável, inegociável.

Pode-se afirmar que a família exerce uma função social quando é capaz de
proporcionar um ambiente de convivência harmônica e de dignificação de seus mem-
bros (PEREIRA, 2008, p. 190).

A REALIDADE DAS RUAS

Em decorrência das injúrias e experiências negativas na conjuntura familiar, tra-


vestis e transexuais se sentem desamparados, à mercê de tudo e todos, “um mundo
de possibilidades totalmente desconhecido” e despontam à procura de outros con-
textos de sociabilidade, onde se sintam aceitas. É quando, geralmente, conhecem
outra travesti ou transexual mais experiente, exercendo papel como de uma “mãe” ou
“madrinha” que lhes apresente a vida noturna na rua.

As manifestações discriminatórias por parte da comunidade escolar também


colaboram para concretizar a segregação das pessoas transgênero, através da li-
mitação da participação destas no espaço social, ao serem avaliadas como fora da
realidade heteronormativa, onde não existe espaço para outras demonstrações de
gênero sobressair (BENTO, 2009).

Comumente, o primeiro apoio vem dos amigos alheios ao núcleo familiar, que
177
não oferecem oposições diante dos assuntos de gênero ou de identidade de gênero.
Este círculo de amizades que inicialmente efetiva os papéis esperados como de ca-
ráter familiar: apoio, direção e alento, enquanto a família somatiza o “problema” ou
expressa desgosto, deixando de falar com elas por certo período.

A rua é apresentada como um espaço receptivo, que ainda que mostre várias
temeridades, permite a edificação de uma nova rede de apoio social fundamentada
na experiência comum da vulnerabilidade. Nada mais é que um espaço de sociabi-
lidade por onde transgêneros circulam dia e noite, pois são por meio da prostituição
noturna que elas encontram aquele que parece o exclusivo modo de se obter uma
renda para proverem as suas necessidades e de sobrevivência. A prostituição é en-
carada com naturalidade, já que as situações que as levaram a este extremo fazem
parte do íntimo das histórias de vida de cada uma.

O fluxo de vida de cada transgênero parece apresentar vários pontos em co-


mum fazendo com que estes adotem a prostituição como meio de trabalho e subsis-
tência enfrentando situações de vulnerabilidade já instituídas.

CONVIVÊNCIA E INTERAÇÃO COM “UMA FORÇA SUPERIOR”

Alguns especialistas reconhecem o choque entre religião e mudança de gênero.


As religiões têm seus princípios relativamente fixos e acolhem as mudanças (quando
as aceitam) de modo extremamente lento. Cada nova configuração de gênero que
surge ocasiona sofrimento e não encontra apoio/respaldo em boa parte das religiões.

A religião pode ser vista como mais um componente repleto de enigmas, sem
explicação. O contato do ser humano com o sagrado através da fé engloba dimen-
sões cognitivas e afetivas, expressas no plano da razão e da emoção com o outro e
consigo mesmo.

O presente trabalho buscou observar e refletir sobre a experiência religiosa no


cotidiano de transgêneros, não teve o escopo de pesquisar precisamente a religião
destas, apenas perceber como estas pessoas se relacionam com algumas circuns-
tâncias do dia a dia a partir de vivências de religiosidade ou espiritualidade.

178
Passamani (2008, p. 22), ao falar sobre homossexuais e religiosidade, re-
fere-se ao termo “discriminados entre os discriminados” e enfatiza os sentimentos
de culpa e pecado, no sentido de oprimir os homossexuais, atrelados a contingên-
cias sociais que os leva a ocultarem-se, por medo da exclusão, da ridicularização e
da marginalização. Já no gueto, sem as mesmas pressões, o/a homossexual pode
experimentar, construir e assumir uma identidade equivalente e coerente aos seus
desejos e impulsos, constituindo em treinos que podem se expandir para lugares
menos restritos a ponto de ser reconhecido como homossexual nos ambientes que
frequenta, apresentando-se em outras áreas do seu convívio social.

As pessoas mais pobres, por não terem acesso à cultura e outros direitos bá-
sicos, dependem da Igreja para a socialização e como várias Igrejas estão presentes
nas periferias, estas devem cumprir essa função. O que na maioria das vezes ocorre
é que tais Igrejas não acolhem as diferenças, o que faz com que essas pessoas mais
humildes permaneçam mais vulnerabilizadas. Assim, ao descobrir-se transexual, a
maior brutalidade que estes indivíduos podem sofrer é a tentativa de tirar deles sua
essência, tornando-os desprezíveis. Muitos transexuais neste estágio podem inclu-
sive tentar acabar com sua própria vida, já que não têm o poder de nascer de novo,
segundo os moldes que a Igreja e a sociedade preconiza: heterossexual e cisgênero.

Importante ressaltar que o mais significativo na vida destas pessoas diz res-
peito a ser elas mesmas, aceitar-se como são perante si e principalmente à socieda-
de, isso inclui suas cirurgias estéticas. Tais indivíduos acreditam serem concebidos
por Deus e por isso, não creem ser um encosto ou uma abominação.

Nesta seara, convém citarmos Joseph Famerée:

...do corpo como caminho de nós até Deus e de Deus até nós. [...] precisa-
mente, em consonância com a descoberta que a fenomenologia fez do corpo
como lugar das relações com o outro, nossa intuição teológica confirma que
o corpo é verdadeiramente um lugar privilegiado de encontro com Deus (FA-
MERÉE, 2009, p. 14).

Alguns indivíduos transgêneros encaram o fato do preconceito religioso como

179
parte do seu cotidiano, como qualquer outro tipo de enfrentamento diante das vul-
nerabilidades relacionadas as suas respectivas identidades, mais um dentre tantos
comportamentos e atitudes racistas e preconceituosas.

Muitas religiões não aceitam em seus dogmas e cultos a expressão de corpos


dissidentes dos modelos hegemônicos de gênero e sexualidade. Por outro lado, em
outras, as travestis e transexuais são plenamente aceitas e se tornam “espaços pos-
síveis” de expressão de suas feminilidades. Este é o caso dos terreiros de religiões
afro-brasileiras, nas quais as travestis e transexuais estudadas neste trabalho se
inserem tranquilamente e são aceitas na plenitude da construção de seus gêneros e
de suas sexualidades. (NASCIMENTO, COSTA, 2015, p.183)

As interdições são, sobretudo, relacionadas aos espaços das religiosidades


cristãs, como igrejas católicas e evangélicas, mas, ao contrário, suas vivências são
possibilitadas às religiosidades de matriz africana, em terreiros e umbanda e can-
domblé. (ibidem, p.186)

Muitos desses sujeitos que fogem do padrão hegemônico da heteronormativi-


dade são vistos como “subversivos”, “desviados”. São pessoas que não são aceitas
dentro da plenitude de seu gênero e de sua sexualidade em diversos ambientes,
principalmente os relacionados à religiosidade.

Observando a literatura compilada, o que se pode acrescentar acerca de reli-


giosidade é a noção de respeito e amor ao próximo que as transexuais expõem como
atributos e motivações sobrevindas da força superior. As experiências religiosas pro-
vêm de memórias, a partir de rituais e dogmas da igreja, como o batismo, primeira
comunhão e crisma: momento em que reuniam familiares, parentes e amigos. Eram
boas recordações, lembram-se da hóstia, almoços na igreja e reuniões em família.

Adultas foram excluídas da igreja por serem como elas realmente são. Elas
acrescentam que respeito e amor ao próximo são o mais importante de tudo, caracte-
rísticas e motivações norteadoras provenientes da força superior, mas não exercitam
a sua fé e nem a religiosidade a partir das amplas práticas, filosofias e ensinamentos
em igrejas.

O importante para estas pessoas em uma Igreja é que esta acolha a todos,

180
não julgue seus atos, e não use a religião como instrumento de pressão e opressão.
Devemos nos ver como pecadores, e não ficar julgando o próximo, somente respei-
tá-lo, aconselhando quando necessário, mas nunca colocando a pessoa em posição
de inferioridade.

CONCLUSÃO

Ainda existe um longo caminho a ser percorrido até que possamos garantir os
plenos direitos e cidadania às pessoas transgêneros. A começar por uma legislação
que não invisibilize suas existências, que não anule suas potencialidades, que não
as deixem padecer nesta seara onde a norma de gênero cristalizou-se e desde então
massacra seus modos e suas expressões. Precisamos punir, com rigor, os agresso-
res que justificam seus atos em “nome do bem estar social” ou em “nome de Deus”.

A identidade do indivíduo transgênero, por já ser pré-definida ou interiorizada,


é vivida como claustrofóbica, portanto, interferindo nas relações que estabelecem, já
que são desqualificados/as como pessoas aos olhos da sociedade por mais que suas
ações comprovem que os estereótipos não condizem com sua vida diária.

Precisamos legislar para as classes mais vulneráveis de nossa sociedade e


reconhecer a Constituição Federal como um livro de todos e para todos desconstruin-
do mitos e preconceitos que rondam as identidades de gênero. Dignidade para uma
pessoa transgênero é ser respeitado na sua individualidade, ser reconhecida como
uma pessoa de direito e poder de se determinar socialmente sobre o gênero, pelo
qual se afirma.

É importante que haja certa flexibilização nas igrejas. As pessoas da igreja


não estão imunes a serem preconceituosas, mas procuram lutar contra a violência e
intolerância.

Resultados também assinalam para o fato de que o cotidiano e a religiosidade


de transexuais são mais bem vivenciados entre àquelas que melhor se adaptam ou
correspondem aos padrões heterossexuais hegemônicos, minimizando situações de
preconceitos e discriminações, majorando a aceitação social das mesmas.

181
De modo geral, algumas são religiosas, possuem fé em um ser superior e são
espiritualizadas, embora não atrelem tais práticas a igrejas ou grupos religiosos. A
força superior norteia tudo em suas vidas, seja a força que as faz viver, o bem-estar
e conquistas de sonhos e desejos almejados em seu cotidiano, guiando suas condu-
tas, valores e comportamentos.

Não se pretendeu no presente trabalho a exaustão do tema, que é complexo


em particularidades, e as respostas são diversas e muitas delas baseadas em foro
íntimo, envolvendo aspectos culturais e também de ordem religiosa, o que se pre-
tende é oferecer uma maior clareza às questões relacionadas à transexualidade em
seus aspectos familiares e sociais. O mais importante neste contexto é o reconheci-
mento e o respeito a estes indivíduos pela sociedade, ainda repleta de preconceitos,
para que todos possam ir de encontro a uma vida digna e feliz.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA NETO, Amaro Alves de. Dano existencial: a tutela da dignidade da pes-
soa humana. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 6, n. 24, mês out/dez, 2005, p. 29.

BENTO, Berenice. Sexualidade e experiências trans: do hospital à alcova. Ciênc.


saúde coletiva. 2012, vol.17, n.10, pp.2655-2664.

CIAMPA, A. C. (2001). A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio


de Psicologia Social. São Paulo: Brasiliense.

FARINA, Roberto. Transexualismo: Do homem à mulher normal através do es-


tados de intersexualidade e das parafiliais. 1 ed. São Paulo: Novalunar, 1982, p.
117.

FAMERÉE, Joseph. O corpo, caminho de Deus. A problemática. In: GESCHÉ,


Adolphe; SCOLAS, Paul (orgs.). O Corpo, caminho de Deus. São Paulo: Loyola,
2009. p. 13-34.

GARCÍA, Vásquez. Del sexo dicotómico al sexo cromático: la subjectividad


transgenérica y los límites del constructivismo. Sexualidad, Salud y Sociedad:
Revista Latinoamericana. 2009. n. 1, p. 63-88, 2009.

HIGHTOM, Elena. La salud, la vida y la muerte. Un problema ético-jurídico: el

182
difuso límite entre el daño y el beneficio a la persona. Revista de Derecho Privado
y Comunitario, nº 1, Rubinzal-Culzoni: Santa Fé. 1993, p.207.

JESUS, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e


termos. 2ª edição – revista e ampliada. Brasília. 2012.

MISKOLCI, R. Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da norma-


lização. Sociologias, Porto Alegre, v. 11, n. 21, p. 150-182, 2009.

MISKOLCI, Richard. Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Hori-


zonte: Autêntica Editora/UFPO, 2012. 80 p. (Série Cadernos da Diversidade 6).

NASCIMENTO, Taiane Flores, COSTA, Benhur Pinós da Costa. As Vivências Tra-


vestis e Transexuais no Espaço dos Terreiros de Cultos Afrobrasileiros e de
Matriz Africana. ESPAÇO E CULTURA, UERJ, RJ. N. 38, P.181-202, JUL./DEZ de
2015.

PASSAMANI, Guilherme Rodrigues. O arco-íris (dês)coberto: Homossexualida-


des masculinas, movimentos sociais e identidades regionais. – Os casos de
Porto Alegre e Bueno Aires. Santa Maria, 2008, 163 f. Dissertação (Mestrado em
Integração Latino- Americana – História Latino-Americana) - Universidade Federal de
Santa Maria – UFSM, Santa Maria; 2008.

PEREIRA, Rodrigo da Cunha (coord.). Família e Solidariedade: Teoria e Prática do


Direito de Família. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2008, p. 190.

PERES, William Siqueira,  TOLEDO, Lívia Gonsalves. Dissidências existen-


ciais  de  gênero:  resistências  e  enfrentamentos  ao  biopoder. Rev. psicol. polít.
[online]. 2011, vol.11, n.22, pp. 261-277. 

PETRY, Analídia Rodolpho, MEYER, Dagmar Elisabeth Estermann. Transexualida-


de e heteronormatividade: Algumas questões para pesquisa. Textos & Contex-
tos, v. 10, n. 1, p. 193-198, 2011.

SILVA, B. B.; CERQUEIRA-SANTOS, E. Apoio e suporte social na identidade de


travestis, transexuais e transgêneros. Revista da SPAGESP - Sociedade de Psi-
coterapias Analíticas Grupais do Estado de São Paulo, São Paulo, v. 15, n. 2, p. 27-
44, 2014.

SZANIAWSKI, Elimar. Limites e Possibilidade do direito de redesignação do es-

183
tado sexual. 1 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1999, p. 53.

TEIXEIRA, Flavia do Bonsucesso. Vidas que desafiam corpos e sonhos: uma et-


nografia do construir-se outro no gênero e na sexualidade. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual
de Campinas, Campinas. 2009.

TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar. 1ª edi-


ção, 1999. P. 48

184
O REPRESENTAR DE MONAS, MANOS E MINAS:
SUBJETIVIDADE, IDENTIDADE E POSIÇÃO
ENUNCIATIVA DA COMUNIDADE LGBTQIA+

Arthur Marques de Oliveira31

PALAVRAS INICIAIS

A história da visibilidade da comunidade LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais


Transexuais, Travestis, Transgênero, Queer, Intersexo, Assexuado e Mais) de acordo
com Fry e Macrae (1985) possui como estopim a noite de 28 de junho de 1969,
na cidade de Nova York, nos Estados Unidos da América. Quando o bar Stonewall
Inn, frequentado majoritariamente por homossexuais, foi invadido por forças policiais
decididas a reprimir de forma agressiva a concentração de gays e lésbicas. Entretanto,
nessa noite, a polícia enfrentou uma reação inesperada por parte dos frequentadores,
que iniciaram um movimento de resistência e luta que duraria um final de semana
inteiro.

No decorrer das décadas, a minoria e grupo social de pessoas LGBTQIA+


passou a ser estudado por historiadores, antropólogos e sociólogos tendo em vista
recuperar, suas vidas, cerimônias e costumes. Passou-se a analisar o modo de vestir,
de falar, os ambientes que frequentam, como também, a violência e preconceito
sofridos diariamente. A cultura LGBTQIA+ tornou-se objeto de pesquisas, pois além
da questão cultural também há a comercial/financeira conforme Dias (2019) elucida
sobre o termo “Pink Money”. Todavia, é necessário dar aos indivíduos que compõem
esse meio o seu lugar de sujeitos na história e apresentar as formas de resistência e
expressão também no/do ponto de vista linguístico.

31 Graduando em Licenciatura em Letras – PT/EN pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Atua desde 2016 com interdisciplinaridade; produções didáticas e bolsista BIC-UFRGS. Possui
como interesse o estudo de ideias linguísticas da Teoria da Enunciação e Linguística Aplicada em especial
aquelas que contemplem gênero, cultura e questões LGBTQIA+. E-mail: [email protected]

185
Nesse cenário, segundo Carrara (2006) surgem as Paradas Gays brasileiras
que possuem como origem, as marchas de rua organizadas para relembrar os
acontecimentos ocorridos em Stonewall Inn. Nesse viés, as paradas LGBTQIA+
tem sido a ação coletiva de maior visibilidade desse grupo porque prioriza em suas
temáticas questões e demandas atribuídas às minorias sexuais e de gênero. Os
temas destacados nas Paradas são atualizados anualmente por meio de debates
apresentados mediante conflitos e negociações nacionais, estaduais e regionais.
Com isso, a utilização de cartazes elaborados pelos participantes dessas paradas,
muitas vezes possuem como objetivo mostrar de forma explícita uma subjetividade e
universalidade.

Tendo em vista esse meio de expressão e sua forma de construir e expressar,


é possível observar, a enunciação desenvolve uma função primordial quanto aos
modos de dizer e significar no que tange ao indivíduo e/na sociedade. Nesse
pensamento, a presente pesquisa, assim como diversas outras na relação discente/
docente, surgiu a partir das seguintes reflexões de um estudante de graduação
e seu professor-orientador: como se constrói na enunciação a identidade? Quais
recursos enunciativos permitem falar que alguém enuncia de uma posição identitária
específica? No caso específico da construção das identidades LGBTQIA+, como
os aspectos enunciativos determinam uma posição de fala? Como abordar textos
geralmente críticos e autorais (complexos) – como cartazes, por exemplo – de uma
perspectiva que permita evidenciar os aspectos enunciativos de construção das
identidades? Partindo dessas inquietudes, o presente trabalho versa sobre a forma
como as linguagens verbal e não verbal podem retratar diferentes identidades e incitar
posições enunciativas. Vide Émile Benveniste: “É na linguagem e pela linguagem que
o homem se constitui como sujeito” (BENVENISTE, 1958-2005, p. 286).

Dessa forma, o objetivo deste texto é propor uma discussão e um recorte


enunciativo-discursivo sobre a construção das identidades LGBTQIA+ e posições
enunciativas produzidas pelos sujeitos desse grupo. Tendo isso em mente, nota-
se que a questão da identidade se torna de grande importância para a sociedade
e seus indivíduos, abarcando sua pluralidade e significância. Tal essa importância,
que foi aprovado pelo Superior Tribunal Federal (STF) o projeto de lei n. º 7.702,

186
que possui como finalidade criminalizar a homofobia e discriminação por identidade
de gênero ou orientação sexual no Brasil equiparando-o ao crime de racismo. Não
obstante à importância da questão social, algumas noções supracitadas – como a de
identidade e posição enunciativa - também são de interesse da Teoria da Enunciação,
teoria essa que norteará esta pesquisa. Como dito acima, as noções de identidade e
posição enunciativa são o cerne desta pesquisa. Entretanto, carecem de discussão
e significação, por essas razões, faremos uso da flutuação conceitual que há em
Benveniste. Conforme a seguinte citação do autor: “muitos dos conceitos propostos
por Benveniste têm valor primitivo, na medida em que fazem parte de outros conceitos.
Na verdade, há na teoria benvenistiana uma rede de relações conceituais em que
cada conceito é constituído por uma rede e é parte integrante dela.” (FLORES, 2012,
p. 152).

Na esteira dessas ideias, convidamos quem nos lê a percorrer uma trajetória


que tem como ponto inicial uma discussão e definição sobre o conceito de identidade.
Feito isso, será possível discutir e relacionar os conceitos de subjetividade e cultura
em um viés enunciativo. No decorrer dessa jornada, também iremos explorar como
da identidade é possível desenvolver e acentuar a subjetividade presente nos
indivíduos por meio da enunciação, demonstrar como as noções de subjetividade e
identidade se aproximam e distanciam e como a posição enunciativa emerge desse
movimento. Assim, a partir das noções de dado e fatos em uma cena enunciativa
tentaremos elucidar e exemplificar como na prática social esses conceitos se aplicam
e re/significam..

O QUE É IDENTIDADE?

No decorrer da pesquisa, nos deparamos com um percalço: como falar e significar


identidade aos olhos da Teoria da Enunciação, sendo que esse tema não é abordado
(pelo menos de forma direta) nos escritos de Benveniste? Nessa realidade, faz-se
necessária a busca e discussão sobre algumas definições e perspectivas do conceito
de identidade já existentes, principalmente em viés cultural e social, encontrado em
autores como Stuart Hall (2006) e Tomaz Tadeu da Silva (2011), respectivamente.

187
Iniciaremos nossa discussão com os pensamentos do sociólogo inglês Stuart Hall,
que estuda as identidades culturais na perspectiva pós-moderna. Em seguida, os
escritos do brasileiro Tomaz Tadeu da Silva, que centra seu pensamento nas relações
entre cultura, identidade e diferença na sociedade pós-moderna.

Nos escritos de Hall (2006), é possível encontrar uma continuidade histórica


da questão de identidade, pois a mesma seria compreendida por três diferentes
concepções de identidades culturais do sujeito: o sujeito que representa o iluminismo,
que teria como características o sujeito ser totalmente centrado e unificado,
nessa identidade há prevalência da razão e consciência; ou seja, o sujeito seria o
portador de uma identidade que emerge no nascimento e prevalece ao longo de
seu desenvolvimento. O segundo, seria o sujeito sociológico, esse, não sendo nem
autônomo e nem autossuficiente, mas constituído por culturas externas. Essa seria a
visão de identidade considerando a complexidade do mundo moderno, cujo papel é
de mediação da cultura, o sujeito se constitui no processo de interação com o outro
(sociedade), em relações infindáveis com culturas internas e externas. O terceiro e
último sujeito, seria o pós-moderno, que não tem uma identidade fixa, mas sim fluída e
transformada, e sempre sob influência das formas de diferentes sistemas culturais de
que toma parte. Com isso, esse sujeito se caracteriza pela mudança, pela diferença,
pela inconstância, pela pluralidade de ser e diferentes possibilidades identitárias.
Dessa forma, é possível observar que afloram por todas as partes da sociedade,
identidades culturais que não são fixas, mas sim transitantes e incompletas devido
à globalização e o contato com diferentes culturas e realidades que ela provém.
Conforme seguinte citação: “as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram
o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando
o indivíduo moderno, até aqui visto como sujeito unificado”. (HALL, 2006, p.7).

Tomaz Tadeu Silva trata a identidade como uma construção social, enfatizando
a dimensão política que se apresenta na configuração da identidade nos novos
movimentos sociais que surgem no cenário global. Neste contexto, a diferença é
considerada um elemento central para a produção de significados e, ambos os
termos (identidade e diferença), como criaturas oriundas da linguagem. A identidade
é marcada por meio de símbolos relativos a outras identidades e, ao mesmo tempo,

188
caracterizada por elementos que contribuem para explicar como ela é formada e
mantida. Com base nisso, identidade e a diferença são criadas no meio cultural e
social e são os indivíduos que as elaboram. Dizer, por sua vez, que identidade e
diferença são o resultado de atos de criação linguística significa dizer que elas são
criadas por meio de atos de linguagem. De acordo com a seguinte citação:

podemos dizer que a identidade é uma construção, um efeito, um processo


de produção, uma relação, um ato performativo. A identidade é instável, con-
traditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. A identidade está ligada a
estruturas discursivas e narrativas. A identidade está ligada a sistemas de
representação. A identidade tem estreitas conexões com relações de poder.
(SILVA, 2011, p. 96).

Os autores e olhares acima discutidos, podem levar ao seguinte questionamento:


como essas questões aqui discutidas podem ser abordadas na enunciação do sujeito?
Bom, essa fluída e plural definição de identidade nos lembra a flutuação conceitual que
há nos escritos de Benveniste e faremos uso disso adiante. Dentro das perspectivas
discutidas acima, decidi incitar uma própria que possui afinidade com as definições
de identidade proposta por Silva e Hall, pois julgamos que suas colaborações
sejam mais pertinentes ao diálogo enunciativo e para o recorte aqui apresentado.
Sintetizando, a identidade emerge do sujeito por meio de sua subjetividade que
faz dois movimentos, o de integrar e singularizar os indivíduos de uma sociedade.
Integrar, pois os indivíduos que possuem interesses em comum irão se agrupar e
com base nessa formação constituir sua identidade e dentro desse grupo para então
se singularizar, apropriando-se de sua subjetividade na/pela enunciação.

ENUNCIAÇÃO E SUBJETIVIDADE

Tendo construído uma definição de identidade, será apresentada uma discus-


são de como as questões de enunciação e subjetividade se relacionam com a cultura
nos escritos de Émile Benveniste. Nas obras Problemas de Linguística Geral I e II
(PLGs), Benveniste discute e define, especificamente em seu último artigo intitulado
O aparelho formal da enunciação, a questão da enunciação como um processo. O

189
autor define enunciação como: “colocar em funcionamento a língua por um ato indi-
vidual de utilização” (BENVENISTE, 2005, p. 82). Adiante, Flores et al. (2009), nos
mostram na obra Dicionário de Linguística da Enunciação (DLE) que a noção de
enunciação supracitada é uma das mais importantes e conhecidas entre os linguis-
tas. Entretanto, não é suficiente para abarcar suas diversas aplicações e res/signifi-
cações ao longo de vários anos dissertando sobre o tema.

Tendo em vista o descrito acima, é necessário dizer que Benveniste entendia


a enunciação por três vieses, são eles: i) “realização vocal da língua”; ii) “conversão
da língua em discurso” iii) como realização individual do exercício da língua “no qua-
dro formal de sua realização”. No presente estudo, manteremos o foco no sentido
de enunciação no segundo viés, pois acreditamos que seja o mais pertinente para
discussões e posteriores análises das situações de discurso que conforme o DLE é
uma “circunstância irrepetível de apropriação da língua que instaura a interlocução e
a instância espacial e temporal coextensiva e contemporânea da enunciação.”.

Dentro da discussão sobre enunciação, uso/ato da língua e situação de discurso


supracitada, emerge também a questão da subjetividade, Benveniste disserta sobre o
tema em seu texto Da subjetividade na linguagem. Ao falar de subjetividade tentaremos
ser sintéticos e minuciosos, pois ao apropriar-se do conceito de subjetividade é
necessário vinculá-lo a um contexto, devido ao fato de Benveniste ter abordado o
tema em diferentes contextos sócio históricos ao longo de trinta anos. Dito isso, a
subjetividade está atrelada à noção de enunciação podendo ser ligada ao ato do
discurso que é constituído pela temporalidade do discurso e pela linguagem, pois
a linguagem será o lugar onde o indivíduo se constitui como falante e como sujeito.
Conforme a citação: “É um homem falando que encontramos no mundo, um homem
falando com outro homem, e a linguagem ensina a própria definição do homem”
(BENVENISTE, 1958-2005, p. 285).

SUBJETIVIDADE

Neste ponto da pesquisa, será abordada uma das maiores contribuições de


Benveniste para a linguística moderna que é a noção da subjetividade que se torna

190
intrínseca ao indivíduo quando o mesmo se coloca como sujeito na/pela enunciação.
Em seu artigo intitulado Da subjetividade na linguagem o autor nos mostra que a sub-
jetividade é entendida como “a capacidade do locutor para se propor como “sujeito”
(BENVENISTE, 1958-2005, p.288). Desse modo, essa peculiaridade da subjetividade
é determinada pelo indivíduo e seu status linguístico. Ademais, a subjetividade pode
ser aferida em um enunciado através de algumas formas que a língua empresta ao
indivíduo para instituir seu discurso (enunciar) e ao fazê-lo, transforma-se em sujeito.

Quando se fala em enunciação, é fundamental tratar as relações interlocutivas


entre sujeitos e discursos também se faz necessária uma discussão sobre como a
cultura é vista por Benveniste. O termo cultura aparece diversas vezes nas duas
principais obras do autor (os PLGs) e já fora estudada e identificada por Flores e
Severo (2015). Dito isso, o viés cultural que é assumido será o de cultura como um
fato humano, pois ela constitui o homem. Vide citação: “Assim, não acreditamos que
cultura seja um fato humano porque produzido pelo homem, mas porque o produz, o
constitui. Se o homem se constitui na e pela língua e na e pela cultura, as relações
entre homens são também relações entre línguas e culturas. ” (FLORES; SEVERO,
2015, p. 325).

Visto que conseguimos elencar e estabelecer uma relação latente e inquietante


entre enunciação, indivíduo, subjetividade e cultura, é de nosso interesse verificar
como a cultura pode aproximar e distanciar as identidades dos sujeitos e sua
subjetividade e se há, nesse movimento, uma posição enunciativa.

DA IDENTIDADE À SUBJETIVIDADE: PROXIMIDADES E


DISTANCIAMENTOS ENUNCIATIVOS

Discutir identidade e subjetividade sob o olhar enunciativo não é uma tarefa


fácil, pois ambos são considerados conceitos distantes. De um lado a identidade
que dentro de nosso contexto enunciativo advém da ideia de reconhecimento no/do
outro que posteriormente evolui/conduz para uma ambientação e inserção em um
grupo social, ou seja, a identidade se refere aquilo que é comum entre os indivíduos
que compõem um grupo, como por exemplo, os LGBTQIA+. Por um outro ângulo,

191
o conceito de subjetividade que é conhecido pelos estudiosos da enunciação como
algo singular de cada indivíduo o que faz com que os mesmos consigam enunciar e
se diferenciar.

Imerso nesse cenário, é factível elencar o seguinte questionamento: como é


possível que dois aspectos tão diferentes à priori possam se relacionar? A resposta
para essa pergunta está na própria enunciação, pois é nas situações de discurso
(onde os indivíduos percebem-se como semelhantes a partir da identidade) que a ar-
ticulação da/na enunciação universaliza (identidade) e singulariza (subjetividade) os
indivíduos evocando a enunciação e transpondo-se de indivíduo para sujeito. Abaixo
um esquema (Figura1) de como a enunciação interpola e articula a subjetividade e a
identidade.
Figura 5 - Esquema de aproximação entre Subjetividade e Identidade

Fonte: Elaborado pelo autor.

SUBJETIVIDADE E POSIÇÃO ENUNCIATIVA: UMA QUESTÃO DE


IDENTIDADE

Tendo elucidado a relação (o meio de campo) que a enunciação faz entre a


subjetividade e identidade, agora faz-se necessário significar a posição enunciativa.
Em nosso entendimento a posição enunciativa emerge como um efeito de aproxi-
mação, onde nas situações as figuras de discurso são colocadas em contato com

192
o coenunciador. Nesse passo, a posição enunciativa é o espaço dentro da situação
de discurso que o “eu” coloca/define para o “tu”; esse espaço pode ser considerado
um reflexo com base na identificação através do contato e do contraste de diferentes
grupos e suas respectivas identidade.

Tendo como base que a enunciação pode ser definida como “a conversão da
língua em discurso” em nosso recorte uma “circunstância irrepetível de apropriação
da língua que instaura a interlocução e a instância espacial e temporal coextensiva e
contemporânea da enunciação.”.

Observa-se que ano processo de significar da enunciação ocorrem dois mo-


vimentos: quando o indivíduo enuncia ele confere sentido e reitera sua inclusão e
identidade já conhecida de/em um grupo e de modo simultâneo, traz o novo (subje-
tividade) que se vincula ao sujeito, pois o indivíduo só para a ser sujeito passando
pela enunciação.

Nesse processo, emerge a posição enunciativa, que advém dessa articulação


entre o conhecido e não-conhecido e pode ser caracterizado como o lugar do sujeito
em situações de discurso. Esse processo encontra-se no seio do ato enunciativo que
de acordo com Flores et al. (2019, p. 153.) na obra Manual de Línguística: Semânti-
ca, pragmática e enunciação “ O ato coloca em destaque a mobilização que o locutor
faz da língua. Essa mobilização determina as marchas linguísticas da enunciação”.
Em outras palavras, a enunciação enquanto ato, corrobora o dado fazendo uso do
que já se conhece e ao mesmo tempo, instaurando a subjetividade (o novo) do/no
sujeito. Vide Benveniste:

Se não pode haver vários “eu” concebidos pelo próprio “eu” que fala, é porque
“nós” não é uma multiplicação de objetos idênticos mas uma junção entre o
“eu” e o “não-eu”, seja qual for o conteúdo desse “não-eu”. Essa junção forma
uma totalidade nova e de um tipo totalmente particular, no qual os componen-
tes não se equivalem: é sempre “eu” que predomina, uma vez que só há “nós”
a partir de “eu” e esse “eu” sujeita o elemento “não-eu” pela sua qualidade
transcende. A presença do “eu” é constituviva de “nós” (BENVENISTE, 2005,
p. 256).

193
METODOLOGIA: SOBRE A NOÇÃO DE FATO E DADO NA EM
ENUNCIÇÃO

Flores e Nunes (2017) mostram em seu trabalho que: (a) o objeto a servir como
dado é o enunciado; (b) o pesquisador pode selecionar os dados que julga relevantes
para sua análise; (c) se a seleção por parte do pesquisador é realizada com vistas
a encontrar dados que suportem uma hipótese prévia, há uma orientação teórica
que regula os dados aprioristicamente. Com base nisso, primeiramente, será pos-
sível esclarecer nosso entendimento sobre as noções de dado e fato enunciativos;
apresentar os recortes e cartazes das paradas que serão analisados e definir alguns
princípios para análise.

Assumindo que o dado pode ser considerado o enunciado em si, de acordo


com Flores e Nunes (2017) é somente pela e na enunciação que o enunciado deixa
de ser virtual e passa a existir, tornando-se único. Já a noção de fato pode é conexa
ao conceito de ato; a enunciação é o ato em si, pois apesar de sua característica
efêmera podemos contemplá-lo por meio do fato. Em outras palavras, o ato é a ação
em si; o acontecimento dinâmico e irrepetível já o fato é a observação, o recorte feito
de uma enunciação sua (tênue) diferença está justamente no que se refere ao seu
grau de presença. Entendemos que em primeiro plano há o fato, ou seja, o episódio
ocorrido, o processo de enunciado e a enunciação estabelecidos. Em seguida, existe
o dado, que seria o fato aos olhos ponto de vista da análise do linguista. Propomos
aqui uma análise focada no resgate da enunciação imagética, ou seja, algo metalin-
guístico uma enunciação (análise) sobre/da enunciação (imagem), pois “buscamos
na imagem, no vídeo e no áudio, maneiras de mostrar o que não se pode dizer” (FLO-
RES; NUNES, 2017 p. 405).

APRESENTAÇÃO DOS DADOS E PRINCÍPIOS DE ANÁLISE

Nosso objeto de análise serão 3 imagens de cartazes elaborados por participantes


das Paradas LGBTQIA+ nas cidades de São Paulo, Porto Alegre e Belo Horizonte.
Entendemos que esse tipo de ato/movimento de afirmação e representatividade de
um grupo identitário monolítico que toma a orientação sexual por posição enunciativa

194
e universalidade. De fato, pode exemplificar o que foi discutido acima a partir do
ponto de vista que ao estar participando desses movimentos os indivíduos estão se
identificando e fazendo parte de seu grupo social e ao mesmo tempo, acreditamos
que, imersos nesse contexto (universalidade), de discurso enunciativo e social eles
se singularizam por meio dos cartazes, ou seja, manifestações verbais e não verbais
à luz de sua subjetividade.

Os cartazes/enunciados serão analisados em três esferas que de acordo com


Flores (2019) são: a) o ato, que seria a enunciação em si; b) a situação/contexto no
qual o enunciado está imerso e c) os instrumentos linguísticos presentes. Com isso,
o primeiro passo é descrever o ato, em seguida, a situação que o ato aconteceu e os
recursos linguísticos que permitem com que o ato ocorra.

Partindo disso, faz-se pertinente trazer uma a definição das três esferas su-
pracitadas; ato: “para descrever o ato é necessário situar os interlocutores (locutor e
alocutário) ” (FLORES, 2019, p. 157). Situação: “É o conjunto de das circunstâncias
que inclui a situação de discurso, isto é, as coordenadas de tempo, espaço e pessoa”
(FLORES, 2019, p. 157). Instrumentos: “todos os mecanismos que o locutor utiliza
para construir a referência de seu discurso” (FLORES, 2019, p. 159). Acredito que
ao enunciar, o sujeito é atravessado pelo inconsciente e pelas coerções sociais e
ideológicas, de maneira que o dito (ou exposto) é sempre composto pela intersecção
de outras vozes e discursos, abarcando os contextos que formam um (re)significar
social, resistente, plural e imensurável.

195
RESULTADOS E DISCUSSÃO

Figura 6 - Cartaz 21ª Parada do Orgulho LGBT – SP

Fonte: BuzzFeed, 2017.

Na Figura 2 vê-se um cartaz sendo erguido para frente, indicando a possibili-


dade da luta, do enfrentamento, além disso, no canto superior esquerdo do cartaz há
uma imagem que representa a igualdade de gênero. Nessa imagem, há dois movi-
mentos: um deles o do locutor no caso, que se apresenta como “eu” quem segura o
cartaz e constrói uma posição de sujeito (militante). Vide Benveniste: “A linguagem
está de tal forma organizada que permite a cada locutor apropriar-se da língua toda
designando-se eu” (BENVENISTE, 2005, p. 286). Sujeito esse, alguém que se opõe
a ideia de “armário”, ou seja, um sujeito que se apresenta e representa no discurso.
O outro movimento é do alocutário, ou seja, o “tu” a quem o cartaz está sendo direcio-
nado, acreditamos que esse enunciado foi elaborado com o intuito de constituir um
“tu” provocativo convocando as pessoas que ainda estão “no armário” para a interlo-
cução. Conforme a seguinte citação: ““eu” propõe, necessariamente, outra pessoa ‒
aquele que, embora sendo exterior a “mim”, torna-se o meu eco, ao qual eu digo “tu”
e que me diz “tu”” (BENVENISTE, 2005, p. 250).

O contexto do cartaz acima é a 21ª Parada do orgulho LGBT que acontece


anualmente na Avenida Paulista, no município de São Paulo, Brasil. Segundo os
organizadores o evento reuniu mais de 3.000.000 de pessoas e tinha como tema “In-
dependente de nossas crenças, nenhuma religião é lei! Todas e todos por um Estado
Laico”. O locutor usa como instrumento em sua enunciação a metáfora para partir
em defesa da orientação sexual (subjetividade). Analisando o enunciado acima, é

196
possível aferir que o armário e a poeira seriam o preconceito e a heteronormativida-
de enraizados em nossa sociedade contra os homossexuais; a rinite está associada
ao extremo desconforto e preconceito pessoas LGBTQIA+ passam por não poder se
expressar, mas mesmo assim, não abrem mão de sua individualidade e subjetividade
para poder significar e identificar.
Figura 7 - Cartaz da 13ª Parada do Orgulho LGBTS de Brasília

Fonte: Site G1, 2010.

A Figura 3 apresenta um jovem segurando um cartaz e fazendo um sinal de


hang loose com a mão, esse gesto significa que a situação no caso, o evento está
sob controle ou “de boa”. Na imagem, o locutor constrói uma posição de enunciador
(político), fazendo uso de expressões utilizadas pelo público LGBTQIA+ se colocan-
do contra a corrupção. Acreditados que nesse caso, o sujeito se identifica com dois
grupos ao mesmo tempo, o grupo de pessoas LGBTQIA+ e pessoas contra a corrup-
ção que não compõem a comunidade citada anteriormente. Já o alocutário, abrange
um “tu” que vai além da questão de da orientação sexual e identidade de gênero, mas
sim de valores sociais, principalmente éticos e morais.

No que tange ao contexto, o cartaz acima foi fotografado na 13ª Parada do


orgulho LGBT que acontece anualmente em frente à Esplanada dos Ministérios, na
cidade de Brasília, Distrito Federal, Brasil. Segundo os organizadores o evento reu-
niu mais de 100.000 pessoas e tinha como tema “Lugar de homofóbico é na cadeia!”.
Em seu discurso, no que tange aos instrumentos, o locutor fez uso de uma expressão
presente no Pajubá, que é o dialeto de gírias e expressões utilizadas pela comuni-
dade LGBTQIA+. A expressão “Dar a Elza” significa “Roubar; Surrupiar; Se apropriar
de algo indevidamente.”; assim, o locutor faz um pedido para que os políticos parem
de cometer atos ilícitos conta os cofres públicos. Com isso, podemos aferir que ele
recorre e se apropria da forma para evocar sua enunciação vide Benveniste: “o lo-

197
cutor se apropria do aparelho formal da língua e enuncia sua posição de locutor por
meio de índices específicos, de um lado, e por meio de procedimentos acessórios, de
outro.” (BENVENISTE, 2005, p. 84).
Figura 8 - Cartaz da 23ª Parada Livre de Porto Alegre

Fonte: Página do Facebook, 2018.

Na Figura 4 há um jovem segurando um cartaz que assim como na Figura1


indica a possibilidade da luta, do enfrentamento. Nessa imagem, o locutor é um par-
ticipante da parada e evoca uma posição enunciativa política. Já o alocutorário, acre-
ditamos que seja para uma decisão política específica que será discutida a seguir.

A situação do cartaz acima é a 23ª Parada Livre que acontece no Parque Far-
roupilha, na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. Segundo os organi-
zadores o evento reuniu mais de 80.000 participantes e seu tema era: “Resistir para
não morrer!”. Tendo como base o estudo feito pela Associação Internacional de Gays
e Lésbicas (International Lesbian and Gay Association), (2018) é fato que o Brasil é
o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ e que recentemente fora aprovada a lei
que flexibiliza o porte e a posse de armas por civis, é possível uma leitura em que o
locutor mostra na forma como decisões políticas são impactantes para sua qualidade
de vida enquanto LGBTQIA+. Fazendo com que o cartaz se torne um apelo para que
a violência contra esse grupo sesse e uma reafirmação político-social contrária aos
padrões heteronormativos.

198
POSIÇÃO ENUNCIATIVA: CONSTRUÇÃO DA COMUNIDADE
LGBTQIA+

A construção da identidade e comunidade LGBTQIA+ no Brasil, surge no início


da década de 80, o país passa por uma reabertura democrática, com o processo
ditatorial perdendo sua força. Com isso, aos poucos os movimentos democráticos vão
(re)aparecendo, surgindo nesse período vários grupos do denominado movimento
Gay e dando voz e características à esse grupo social. Amparados em Hall (2006)
e Silva (2011) a identidade do indivíduo na sociedade contemporânea é formada e
modificada a partir da interação entre o eu e a sociedade. Com base nisso, podemos
dizer que a forma como o indivíduo (antes de se instaurar como sujeito, pela
enunciação) se percebe diante dos outros influencia diretamente nas representações
culturais, sociais e enunciativas. Vide Benveniste:

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não o vemos


nunca inventando-a. Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo
e procurando conceber a existência do outro. É um homem falado que
encontramos no mundo, um homem falado com outro homem, e a linguagem
ensina a própria definição do homem (BENVENISTE, 2005, p.285).

Olhando para o trecho acima, é viável pensar que o mesmo expressa a


importância da posição do outro no processo de enunciação e relação do sujeito
com sua subjetividade, marca importância na obra de Benveniste. Dessa forma,
retomando os resultados obtidos através das análises enunciativas, é possível notar
que a posição enunciativa advém de uma articulação dos sujeitos se identificando
(construindo e compondo a comunidade LGBTQIA+) e se singularizando (através
da enunciação e subjetividade) ao mesmo tempo. A identidade está alocada no
indivíduo e a subjetividade no sujeito sendo ambas de extrema importância para as
relações interlocutivas e sociais. Nesse ponto, entendemos a subjetividade como
algo intrínseco e constitutivo do sujeito abarcando a psique humana, sendo expressa
no nível macro pela linguagem e micro pelas situações de discurso e a enunciação
em si; já a identidade é uma forma de nos reconhecer com o restante dos indivíduos
e por consequência, nos alocar em grupos com características similares.

199
É TEMPO DE CONCLUIR

Iniciei este trabalho nos questionando, quais proximidades e distanciamentos


existentes entre enunciação e identidade; qual a posição enunciativa está presente
em manifestações escritas em um cartaz. Para responder aos questionamentos
iniciais propomos analisar os níveis semiótico e semântico, apoiados na perspec-
tiva enunciativa de Benveniste, nosso estudo foi a partir de cartazes presentes em
manifestações LGBTQIA+. Observamos desde elementos presentes nos cartazes
como símbolos até os atos, posições, contextos e instrumentos enunciativos utili-
zados para criar as situações de discurso e relações entre identidade e subjetivi-
dade.

Acredito que as análises apresentadas neste trabalho poderiam ser


fundamentadas também por outros suportes teóricos, enxergamos, porém, ao utilizar
a ótica enunciativa da linguagem pensamos trazer algo inédito enquanto objeto de
pesquisa e um olhar para fatos linguísticos de maneira singular. Considerando que
há pouca pesquisa em torno deste tema dentro da enunciação, isso garante outras
possibilidades de estudos. Esperamos, portanto que os resultados aqui apresentados
possam contribuir para outras discussões em torno dessa temática. Enxergamos
nosso trabalho como uma das muitas faces que envolvem o complexo campo da
enunciação e sociedade.

AGRADECIMENTO

Gostaria de agradecer em especial ao meu orientador Prof. Dr. Valdir do


Nascimento Flores pelo incentivo, dedicação, perseverança e principalmente do seu
tempo ao meu trabalho de pesquisa.

200
REFERÊNCIAS

BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. Campinas, SP: Pontes, 2005.

BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Campinas, SP: Pontes, 2005.

CARRARA, Sérgio et al. Política, direitos, violência e homossexualidade: Pesquisa 9ª


Parada do Orgulho GLBT – São Paulo – 2005. Rio de Janeiro: CEPESC, 2006. 79 p.

DIAS, M. Pink money e comunicação: análise de vendas no consumo LGBTI na cidade de


Belém. 2019. Disponível em: <http://repositorio.ufpa.br/jspui/bitstream/2011/11275/1/
Dissertacao_PinkMoneyComunicacao.pdf> Acesso em: 15/06/2019.

EVANGELISTA, R.18 cartazes que brilharam na Parada do Orgulho LGBT. Buzz-


Feed, São Paulo, 17, junho, 2017. Disponível em: <https://www.buzzfeed.com/br/
raphaelevangelista/cartazes-que-brilharam-na-parada-do-orgulho-lgbt> Acesso em:
01/09/2019.

FLORES, Valdir do Nascimento et al. (orgs). Dicionário de Linguística da Enunciação.


São Paulo: Contexto, 2009.

FLORES, V.; SEVERO, R. Linguagem e cultura: uma abordagem com Benveniste.


Veredas on-line – Atemática – 2015/2 - p. 310-330 – PPG-Linguística/UFJF – Juiz de
Fora (MG) - ISSN: 1982-2243.

FRY, Peter; MACRAE, Edward. O que é homossexualidade. São Paulo: Brasiliense.


1985. Coleção Primeiros Passos.

HALL, S. (2006). A identidade cultural na pós-modernidade (11ª. Edição). São Paulo:


DP&A.

LIMA, D. 23ª Parada Livre de Porto Alegre. Porto Alegre, 08, dezembro, 2018. Dis-
ponível em:<https://www.facebook.com/pg/paradalivrepoa/photos/?tab=album&am-
p;album_id=2205852273025537> Acesso em: 26/10/2019.

NUNES, P.; FLORES, V. O trabalho com dado e banco de dados: considerações por
meio de uma teoria enunciativa da linguagem. 2017. Disponível em: <http://www.
scielo.br/pdf/lh/v52n3/0101-3335-letras-52-03-0401.pdf> Acesso em: 18/08/2019.

201
PALETTA, D. Annual Report 2018. Geneva. 17, maio, 2018. Disponível em: <ht-
tps://ilga.org/downloads/ILGA_Annual_Report_2018_eng_web.pdf>. Acesso em:
12/11/2019.

ROMERO, M. ; GOLDNADEL, M. ; RIBEIRO, P. N. ; FLORES, Valdir do Nascimento .


Manual de Linguística: semântica, pragmática e enunciação. 1. ed. Petrópolis: Vozes,
2019. v. 1. 243p. 

SANTOS, D. Parada Gay de Brasília faz campanha pelo voto consciente. G1, Bra-
sília. 15, agosto, 2010. Disponível em: <http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/08/
parada-gay-de-brasilia-faz-campanha-pelo-voto-consciente.html> Acesso em:
10/10/2019.

SILVA, Tomaz Tadeu da. (org.). Identidade e Diferença: a perspectiva dos Estudos
Culturais. Trad. Tomaz Tadeu da Silva. 10. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.

202
OS DESAFIOS DA INCLUSÃO DE MENORES TRANSGÊ-
NEROS E AS (PRO)POSIÇÕES ESCOLARES

Vanessa Andriani Maria32

INTRODUÇÃO

Vivemos em um mundo supostamente democrático e, por mais que tenhamos


legislações claras e políticas de direitos humanos consistentes no País, os transgê-
neros ainda estão à margem da sociedade, pois historicamente existe, e se mantém
arraigada, uma resistência à aceitação desses indivíduos na conjuntura social por
parte de grupos organizados, seja por religião, política e até mesmo por educação.

A diversidade pressupõe a existência de eventos diversos a uma identidade


central, única; centrando os discursos oficiais e os currículos escolares na identidade
e na promoção da homogeneização (Skliar, 2003). Os apelos ao “respeito à liberdade
e apreço à tolerância” (Brasil, 1999, p. 39) e ao “(...) conviver com a diversidade de
forma plena e positiva” (Brasil, 1999, p. 322) tornam-se chamadas à uniformização e
ao brocardo único.

Recentemente, há diversas pessoas assumindo sua identidade de gênero e


garantindo seus direitos. Entretanto, mesmo com práticas inclusivas, a escola ainda
não se faz presente na vida de muitas alunas travestis e transexuais, já que neste
ambiente, existem visões preconceituosas e de intolerância, pois a escola ainda se
funda em padrões heterossexuais firmados pela sociedade.

A negação à transexualidade não é algo racional. Do mesmo modo, afirmar


que professores podem exercer qualquer influência sobre a identidade de gênero

32 Advogada, Pós-Graduada em Direito do Trabalho e Pós-Graduada em Advocacia Cível. Membro da


Comissão de Direitos Humanos e do Grupo de Violência de
Gênero da OAB Santa Maria-RS / [email protected]

203
e a sexualidade das crianças exige evidências ainda não disponíveis. Permitir que
uma criança sofra bullying em espaços educacionais pelo fato de demonstrar identi-
dade transgênero é um desrespeito à dignidade desse menor. Deve-se combater o
desrespeito e a intolerância e não permitir que sejam alvos de um sistema coercitivo
informal, em um espaço que possui a obrigação de ensinar valores humanísticos de
boa convivência.

A inclusão exige medidas sérias e comprometidas com o propósito de melho-


rar a prestação de serviços públicos. Entretanto, para se deliberar acerca de políticas
apropriadas que levem à eficiente prestação da educação de qualidade, imperativo
conhecer as causas do problema, para em conjunto, buscar as soluções.

Vivenciar situações de discriminação, tirania e violência no ambiente escolar


pode impelir os jovens para fora da educação formal. Abandonar a escola passa a
ser um jeito de fugir da violência e da falta de respeito. Essa constitui uma das formas
com que a desigualdade se relaciona com a evasão e o abandono escolar.

Como objetivos do presente trabalho temos a discussão sobre papel da inclu-


são social de pessoas transexuais e identificar como está sendo realizada a inclusão
de pessoas transgêneras.

O CENTRO DAS ATENÇÕES NA ESCOLA: O DISCURSO DO BINARISMO

O conceito de sexo transcendente, fundamentado nas diferenças físicas, imu-


tável, binário que determina o gênero e suas relações em nossa sociedade. (LOURO,
2004) Assim a heterossexualidade é identificada como uma sexualidade padrão e
que se orienta através do discurso biológico da reprodução da espécie, que reitera os
papéis masculinos e femininos nesse processo. Nessa seara, pode-se argumentar
que o processo de heteronormatização começa já antes do nascimento.

Louro (2004, p. 15), assinala nessa direção ao alegar que, quando dizemos “é
uma menina” ou “é um menino”, “instala-se um processo que, supostamente, deve
seguir um determinado rumo ou direção”, desencadeando processos de feminização
ou de masculinização do corpo. Desse modo, a heterossexualidade é exposta como

204
norma, como sendo a sexualidade inerente à menina ou ao menino em questão.
Àqueles contrariam esse discurso, evadindo ao padrão de normalidade estabelecida
a partir da heterossexualidade compulsória, são vistos como exceção à regra, alcu-
nhados como diferentes e agrupados pelo currículo escolar através de discursos de
apelo à tolerância e respeito à diversidade.

Quando na escola surgem indivíduos que fogem à sexualidade normativa, a


racionalidade e a linearidade do planejamento escolar sofre um baque. O que mais se
observa é uma pedagogia que tenta ofuscar a identidade destas pessoas com apelos
ao respeito pela identidade heterossexual. Nada mais são que exceções à regra no
ambiente escolar, onde impera a heterossexualidade são considerados diferentes
demais, extrapolando os limites aceitação à diversidade da identidade, diferença que
o currículo tenta assimilar por meio de seus discursos à “diversidade tolerada”.

A anulação dos “diferentes” pelo Estado moderno através da exclusão e da


assimilação é analisada por Zygmunt Bauman:

O que faz certas pessoas estranhas e, por isso, irritantes, enervantes, des-
concertantes e, sob outros aspectos, ‘um problema’, é (...) sua tendência a
obscurecer e eclipsar as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas.
(BAUMAN, 1998, p. 37)

A amortização da diferença é desempenhada pela escola através da política


de tolerância antevista no currículo e empregada como prática pedagógica.

A homofobia, nas escolas, atinge com maior violência e crueldade principal-


mente travestis e transexuais que vivem um completo sentimento de exclusão e es-
tigmatização. Suas dificuldades começam com obstáculos à sua própria matrícula, à
participação em atividades pedagógicas, a terem suas identidades e integridade físi-
ca minimamente respeitadas até à utilização da própria estrutura física das escolas,
como banheiros (JUNQUEIRA, 2009a, p. 25).

O que é importante ser discutido, fundamentalmente, é o que, de fato, se


tem ensinado às crianças ao longo de todo esse tempo em termos de educação
infantil que englobe as relações sociais e o convívio com a diferença, bem como a
forma como esse ensino tem sido produzido (ARGUELLO, 2005, citado por FELIPE,
BELLO, 2009, p. 147).

205
A INCLUSÃO DO MENOR TRANSGÊNERO E A LEGITIMAÇÃO DOS
DISCURSOS

Em se tratando de crianças autodeclaradas transgêneros, o ambiente escolar


torna-se ainda mais invasivo e psicologicamente agitado, o que pode ocasionar da-
nos irreversíveis para estas.

A escola brasileira se fundamentou no decorrer de sua evolução, em pressu-


postos altamente valorativos como: em que esse “outro – diferente de mim” – seria o
estranho, o inferior, o doente, o pecador, o pervertido ou o contagioso (JUNQUEIRA:
2009 a, 14).

O sistema de gênero binário, isto é, a ideia que existem apenas a mulher/


feminino e o homem/masculino, é tão popularmente aceito que chega a ser tomado
como natural, entretanto é preciso notar que nada é natural, mas socialmente cons-
truído através dos discursos das instituições de poder que ditam aquilo que melhor
lhes convém e que sirva para satisfazer os seus interesses para determinada época
(FOUCAULT, 1998).

A sociedade atual peca pela falta de educação e acolhimento com as outras


pessoas. Segundo Dias (2014, p. 35): [...] “O que não se encaixa nos padrões é re-
jeitada pelo simples fato de ser diferente [...]”.

A respeito do assunto, Louro (2004, p.48) pondera que uma pedagogia e um


currículo queer estaria voltada para o processo de produção das diferenças e traba-
lhariam, com a instabilidade e a precariedade de todas as identidades, diferente de
programas multiculturais bem-intencionados onde as diferenças são retratadas como
meras curiosidades. A edificação desta pedagogia entabulada como queer seria in-
tegradora e dirigida a todos, não somente àqueles (as) que se reconhecem nessa
posição. Dessa forma, as dúvidas seriam instigantes, suscitando novas discussões
e a investigação de outros pontos de vista educacionais. Nesta seara, cabe conside-
rarmos que a escola pode difundir preconceitos, mas também pode desconstruí-los.

A resolução número 12 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e


Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais, orienta escolas
e universidades a garantirem o acesso e o reconhecimento desses estudantes em

206
suas dependências. Entre outras disposições, o texto prevê que eles sejam tratados
pelo nome social em listas de chamada e utilizem banheiros e vestiários de acordo
com sua identidade de gênero. Significa que um aluno registrado com um nome pode
ser chamado pelo seu nome social no registro de frequência e avaliação, porque se
identifica com o sexo oposto a sua anatomia, e escolheu esse nome social, além de
estar autorizado a frequentar livremente as dependências exclusivas para as meni-
nas ou meninos.

Preceitua o art. 6 da resolução de 12 de janeiro de 2015: “deve ser garantido


o uso de banheiros, vestiários e demais espaços segregados por gênero, quando
houver, de acordo com a identidade de gênero de cada sujeito”.

Seria apropriado que novas construções de escolas fossem feitas com vá-
rios banheiros unissex para evitar a discriminação para acolher a pessoa transexual.
Campanhas para melhorar a inclusão social, são necessárias para a população, já
que não se tem o controle absoluto da situação.

OUTRO AVANÇOS

Publicada no Diário Oficial da União em 17 de janeiro de 2018, a portaria n. 33


do MEC, tornou obrigatória para todas as escolas de ensino básico do país, públicas
ou privadas, o uso do nome social de alunos trans nos registros escolares.

Em 1º de março deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizou que


pessoas transgêneros alterem seu registro civil em cartórios sem a necessidade de
cirurgia de redesignação genital ou de laudo psicológico. Mas mesmo com a decisão
do Supremo, as medidas exclusivas para o ambiente escolar são vistas como
necessárias por alunos e profissionais da educação.

Para estudantes e professores, o próximo passo fundamental para o respeito


a pessoas transgêneros dentro das escolas é o uso do banheiro. Em 2015, o Con-
selho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT), da Secretaria de Direitos
Humanos da Presidência da República (SDH/PR), criou a resolução 12/2015, que

207
estabelece parâmetros para garantir o acesso e a permanência de pessoas trans nas
instituições de ensino. A resolução orienta que o uso do banheiro se dê conforme a
identidade de gênero de cada aluna ou aluno, mas não tem sido acatada por escolas
e universidades.

Um aspecto de extrema relevância é a inserção social no universo público e


privado da pessoa, partindo do pressuposto teórico-metodológico da identidade e da
relação do indivíduo com o meio social em que se encontra.

Nesse sentido, Martinelli (2006, p. 11) assinala que:

Identidades pedem reconhecimento, reciprocidade, são construções coleti-


vas. Não há como construir identidades de modo solitário e ninguém constrói
identidade no espelho, pois ela é construída no cenário público, na vida coti-
diana, juntamente com os movimentos sociais...

Os relatos encontrados na literatura sobre sujeitos transgêneros destacaram


que quando da sociabilidade familiar aparecem discursos heteronormativos com a
finalidade de discipliná-los, passando a excluí-los (principalmente travestis e transe-
xuais); a exclusão familiar os vulnerabiliza e pode trazer consequências para outros
aspectos do ser social, quer na dimensão educacional, territorial, mercado de traba-
lho, entre outras dimensões da vida.

EDUCAÇÃO “É DIREITO DE TODOS”

Embora a Constituição Federal assegure que a educação é “direito de todos”


e que se baseie no principio de “igualdade de condições para o acesso e permanên-
cia”, alunos transgêneros, vítimas de transfobia, têm mais dificuldade para permane-
cer na escola. 

Assim como os alunos transgêneros, os professores homossexuais são igual-


mente dignos de respeito, seja no âmbito da educação e/ou das políticas públicas.
Nessa conjuntura, os assuntos relacionados à diversidade, sexualidade e gênero de-
vem ser recebidas como alguma coisa natural intrínseca ao desenvolvimento do ser
humano e de sua constante evolução. (MARIA e RABENSCHLAG, 2020)

208
Frisa-se, nessa esteira, que um dos elementos que dificulta o acesso da popu-
lação trans ao mercado de trabalho é sua baixa escolaridade. O problema não é de
acesso à educação, mas de dificuldades de permanência na escola, especialmente
quando a pessoa começa a despertar sua identidade de gênero. A escola é um am-
biente hostil para quem é trans. As piadas, as perseguições, a falta do uso do nome
social, o preconceito, tudo isso contribui. (MARIA, 2020)

O Ministério da Educação, em 1997, elaborou os Parâmetros Curriculares Na-


cionais com a finalidade de assinalar referenciais à formação básica comum em todo
o território brasileiro. O tema que diz respeito às relações de gênero possui pouco
mais de uma página e explica que “o conceito de gênero diz respeito ao conjunto das
representações culturais e sociais”, sugerindo aos professores abordarem a parte
histórica nos conteúdos de História, promover discussões sobre valores, comporta-
mentos em diferentes culturas em momentos históricos diferentes. (PCN, 1997, p.
98)

O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, igualmente ela-


borado pelo Ministério da Educação, em 1998, tem por objetivo apontar metas de
qualidade que colaborem para que as crianças tenham um desenvolvimento integral
da própria identidade, cresçam como cidadãos cujos direitos à infância são reco-
nhecidos. Possui objetivo socializador dessa etapa educacional, em ambientes que
propiciem o acesso e a ampliação, pelas crianças, dos conhecimentos da realidade
social e cultural. (RCNEI, 1998, p.17)

Segundo as Diretrizes Curriculares da Educação, o estudo da sexualidade do


aluno deve promover o conhecimento científico além do senso comum. Conteúdos
sobre a sexualidade e diversidade sexual são, para a atualidade, complementos ne-
cessários para que a inclusão das pessoas com comportamentos sexuais diferentes
dos padrões da heterossexualidade sejam possíveis, sem atrapalhar a aprendiza-
gem de quaisquer educandos (PARANÁ, 2008).

Para aprofundarmos o tema tratado neste artigo, citamos um trecho de Louro


em sua análise à heteronormatividade da escola:

Uma noção singular de gênero e sexualidade vem sustentando currículos e

209
práticas de nossas escolas. Mesmo que se admita que existem muitas formas
de viver os gêneros e a sexualidade, é consenso que a instituição escolar tem
obrigação de nortear suas ações por um padrão: haveria apenas um modo
adequado, legitimo, normal de masculinidade e de feminilidade e uma única
forma sadia e normal de sexualidade, a heterossexualidade; afastar-se desse
padrão significa buscar o desvio, sair do centro, torna-se excêntrico. (2008,
p. 43-44).

A invisibilidade cotidiana da população transexual no Brasil ocorre em função


da ausência de debates, reflexões e pesquisas, que deveriam estar presentes, e em
plena discussão, constantemente nos institutos tecnológicos, científicos e educacio-
nais além das universidades públicas brasileiras. (SCOTE, 2016)

TERRITÓRIO OU AMBIENTE ESCOLAR? A QUESTÃO DA TRANSFO-


BIA

Desde que nascemos somos educados para estar dentro do padrão da norma-
lidade; primeiro na família; depois, pela escola (no início da vida escolar). A escola,
infelizmente, está sendo um espaço de “manutenção e conservação de condutas
e padrões estabelecidos”, pois “as reiterações que produzem os gêneros e a hete-
rossexualidade são marcadas por um terrorismo contínuo”. (BENTO, 2011, p. 552;
COSTA, 2013, p. 5)

Os estereótipos de gêneros podem surgir a partir das próprias crianças, mes-


mo que o ambiente seja flexível e que o professor interfira nestas situações de con-
flito. Desse modo, os professores exercem essencial papel de intervenção pedagó-
gica. Muitas dessas ingerências até escapam do planejamento de suas aulas, que a
cada turma se deparam com novos (as) alunos (as) com diferentes comportamentos
com os(as) quais ele se vê obrigado(a) a passar. O fato é de que essa situação, na
maioria das vezes, é respondida com desrespeito ao aluno que é quando o professor
o ignora ou ignora uma atitude de preconceito ou violência sob seus olhos.

As pessoas travestis e transexuais apresentam escolarização precarizada,


demonstrando a difícil, ou mesmo complicada, sociabilidade no âmbito escolar.

Conforme refere Bento (2011, p. 555):

A escola, que se apresenta como uma instituição incapaz de lidar com a dife-

210
rença e a pluralidade, funciona como uma das principais instituições guardiãs
das normas de gênero e produtora da heterossexualidade. Para os casos em
que as crianças são levadas a deixar a escola por não suportarem o ambiente
hostil, é limitador falarmos em “evasão”. No entanto, não existem indicadores
para medir a homofobia de uma sociedade e, quando se fala de escola, tudo
aparece sob o manto invisibilizante da evasão. Na verdade, há um desejo de
eliminar e excluir aqueles que “contaminam” o espaço escolar. Há um proces-
so de expulsão, e não de evasão...A escola brasileira sempre esteve atrelada
aos padrões de normalidade sóciocultural de seu tempo e todo aquele aluno
ou aquela situação que desviar-se, ou não “harmonizar-se” com a conduta
guiada pela heteronormatividade, encontrando-se fora de sua concepção pe-
dagógica.

Casos de transfobia são muito comuns em indivíduos que estejam cursando


o Ensino Fundamental e/ou o Ensino Médio, os quais estão passando pela fase de
transição e autoaceitação de sua identidade de gênero, que para muitos é um desafio
extremamente grande, frente a uma sociedade construída culturalmente machista e
heteronormativa.(VASCONCELOS,2018)

A sociedade é responsável por uma espécie de barreira entre travestis e tran-


sexuais, fazendo com que estas pessoas não possam desfrutar dos espaços sociais,
tornando-os sem acesso aos direitos constituídos em lei, como o direito à educação,
que é uma garantia fundamental para todos os cidadãos.

Nas palavras de Louro (2010, p. 81):

Não há dúvidas de que o que está sendo proposto, objetiva e explicitamente,


pela instituição escolar, é a constituição de sujeitos masculinos e femininos
heterossexuais – nos padrões da sociedade em que a escola se inscreve.
Mas, a própria ênfase no caráter heterossexual poderia nos levar a ques-
tionar a sua pretendida “naturalidade”. Ora, se a identidade heterossexual
fosse, efetivamente, natural (e, em contrapartida, a identidade homossexual
fosse ilegítima, artificial, não natural), por que haveria a necessidade de tanto
empenho para garanti-la? Por que “vigiar” para que os alunos e alunas não
“resvalem” para uma identidade “desviante”? Por outro lado, se admitimos
que todas as formas de sexualidade são construídas, que todas são legítimas
mas também frágeis, talvez possamos compreender melhor o fato de que di-
ferentes sujeitos, homens e mulheres, vivam de vários modos seus prazeres
e desejos.

Os colegas de mesma idade às pessoas trans, são responsáveis que na maio-


ria das vezes, por uma espécie de terrorismo heterossexista, outro fator que não

211
menos diz respeito ao despreparo das instituições escolares para trabalhar com a
questão, o que aduz falha no sistema pedagógico aliada à desinformação quanto às
questões de gênero.

Felipe e Bello (2009) destacam que seria por meio da aflição, da pressão
psicológica e da violência que se vai moldando o menino e a menina que se deseja.
No âmbito escolar, a prática da violência se daria pela presunção (ou pelo constran-
gimento).

Salienta-se nesse contexto, que a escola sempre proporciona aos alunos uma
educação sexual voltada aos heterossexuais, e esquecem-se dos demais grupos
existentes, com receio de “falsos” valores morais que censuram os adeptos como
delinquentes e sem vergonhas, como se a orientação sexual, fosse algo que o sujei-
to pudesse alterar em um “estalar de dedos”. As escolas não foram habilitadas para
lidar com corpos não binários e isso causa estranhamento, e o que é visto como es-
tranho, infelizmente é repelido. 

Pode-se asseverar que “[...] a escola é uma caricatura da sociedade. Por ela
passam, como não passam por nenhum outro lugar, limitadas por diminutivos, todas
as ideias que uma sociedade quer transmitir para conservar, tudo aquilo que se acre-
dita ou quer que se acredite” (MORENO, 1999, p.12).

A partir do prisma dos padrões sociais dominantes, os transgêneros são reite-


radamente expostos no ambiente escolar, sofrem transgressões de direitos, violên-
cias físicas e verbais e discriminações de todo tipo. 

A permanência (e supostamente o sentimento de pertencimento no ambiente


escolar) pode parecer, para a maioria das transexuais, algo impossível de se
imaginar, ou algo beirando ao inexistente. Isso ocorre devido ao fato de que,
as pessoas trans, no geral, não são aceitas por sua identidade e/ou expres-
são de gênero, muito menos respeitadas por sua individualidade, embora a
educação seja um direito coletivo, não podendo haver restrições de qualquer
natureza (SCOTE, 2017).

Precisamos favorecer que a educação sexual na escola aconteça de forma


efetiva respeitando a diversidade sexual e de gênero; por isso, é necessário que pen-

212
semos a princípio na formação de educadores, que os mesmos estejam abertos ao
diálogo, à reflexão, à superação de preconceitos, que sejam pessoas comprometidas
com a igualdade de Direitos e principalmente com a quebra de paradigmas, (FAGUN-
DES, 2009).

A educação pode contribuir para promover a diversidade, quebrar estereóti-


pos, evitar o avanço da violência, mas o que temos presenciado é que ela tem falha-
do em um dos seus papeis primordiais: o de ser um ambiente democrático, político,
campo de liberdade e discussão.

Ressalta-se que não seria a qualidade do ensino que levaria a uma coexis-
tência pacífica e um convívio democrático com a diversidade, mas, sim, a verdadeira
promoção da diversidade que geraria, ou gerará, um ensino de qualidade e a prática
genuína de uma “cultura da paz” (JUNQUEIRA, 2009b, 405).

Ainda que exista mais conscientização, nem todas as relações entre alunos
transgêneros e suas escolas são tranquilas, a questão versa sobre a criança ou ado-
lescente ser simplesmente aceito, estas pessoas viverem mais abertamente e com
maior apoio e integração de todos.

A escola como agente transformador através da educação, pode tentar tor-


nar o ambiente escolar mais receptivo e seguro, seja para garantir a permanência
do estudante transexual de maneira humana, assim como para aplacar a transfobia
através do ensino da diversidade a todos os estudantes nela presentes.

213
CONCLUSÃO
A escola compreende um espaço social onde coexistem profissionais e sabe-
res. Neste espaço, ela é sistematizada, ponderada e repassada através do ensino.
Não existe neutralidade presente nas escolas, tampouco os professores são neutros
e quem é LGBT sabe das humilhações, constrangimentos que passa diariamente.

É preciso tentar desconstruir a heteronormatividade dentro da escola,


proporcionando formação sobre direitos humanos e por inclusão. Devemos sugerir
mudanças curriculares, de postura e de luta por espaço. Desse discurso todo, o que
concluímos com veemência é : Não há vergonha em se ser quem se é”.

É de suma importância a abordagem desta temática nas escolas, pois ainda


há uma intensa resistência dos colegas em aventar ou refletir o tema em sala de aula
com os estudantes, mesmo tendo entre estes, sujeitos LGBT.

Precisamos considerar que é por meio da escola que são transmitidas e apren-
didas concepções de gênero, concepções de certo e errado, do que pode ou não ser
sonhado, feito e alcançado por cada indivíduo (MORENO, 1999).

O combate à violência e à discriminação contra LGBT’s advém da educação


em direitos humanos. É preciso, também, proporcionar o ambiente adequado para
que não haja evasão escolar, um lugar onde as pessoas sintam-se seguras.

Pode-se asseverar através dos resultados obtidos que necessitamos de maior


capacitação para conviver com a diversidade sexual no âmbito escolar, respeitando
os diversos valores, fortalecendo as ações de combate à discriminação e aos diver-
sos tipos de preconceitos existentes na sociedade. Compete ao profissional da edu-
cação transformar a sala de aula em uma atmosfera harmônica e de respeito mútuo,
que envolva também aspectos humanos, culturais e sociais. Tal comprometimento
destes profissionais da educação é fundamental evitando situações que possivel-
mente possam resultar na exclusão escolar de tais alunos.

A jornada escolar é crucial para a formação e o desenvolvimento da criança


devendo ocupar seu lugar privilegiado no seu acesso pleno de sua cidadania, não ig-
norando nenhum público. Cabe à escola acolher, incluir e garantir o desenvolvimento
integral de todos os meninos e de todas as meninas, inclusive de todos os meninos

214
que nasceram meninas e de todas as meninas que nasceram meninos e de todos os
meninos e meninas que estão em busca de suas identidades, procurando se enca-
minhar na vida, cada um com sua história pessoal e sua individualidade.

Se o currículo tem como ponto central a formação do cidadão, ele necessita


abordar as diversidades, os preconceitos estabelecidos ao longo da história humana
e principalmente as questões de gênero. A sala de aula precisa ser um espaço de re-
flexão sobre as transformações sociais revisando os temas para serem trabalhados
que versem sobre tolerância e respeito das diferenças, que já são contempladas em
lei; pois homens e mulheres são iguais dentro das suas diferenças.

É necessário exigirmos que o direito à educação seja assegurado a qualquer


cidadã ou cidadão brasileira/o e, logo, políticas que pugnam as desigualdades de
gênero e sexualidade precisam ser implementadas e o exercício da cidadania,
garantido.

215
REFERÊNCIAS
BENTO, Berenice. Na escola de aprende que a diferença faz diferença. Revis-
ta Estudos Feministas, Florianópolis. mai./ago., p. 549-559, 2011.Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/ref/v19n2/v19n2a16.pdf>. Acesso em 12 set 2020.

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 1998.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacio-


nais: pluralidade cultural e orientação sexual. Brasília: MECSEF, 1997. v. 10. 110 p.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional


para a educação infantil: formação pessoal e social. Brasília: MECSEF, 1998. v.
02. 85 p.

BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica.


Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília: Ministério da Educa-
ção, 1999.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Resolução 12 de janeiro de 2015. Acesso


em 10 de julho de 2016, pelo site < http:// https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-in-
formacao/participacao-social/old/cncd-lgbt/resolucoes/resolucao-012/view>. Acesso
em 17 de agosto de 2020.

COSTA, Vera Lúcia do Vale. Violência escolar e homofobia: reflexões a respeito


da diversidade. Disponível em: <http://www.redentor.inf.br/arquivos/pos/publica-
coes/25022013Vera%20Lucia%20Costa%20-%20TCC.pdf>. Acesso em: 17 ago.
2020.

DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os direitos LGBTI. 6 ed. Reformulada.


São Paulo: Revista dos tribunais, 2014, 526 p.

FAGUNDES, Tereza Cristina Pereira Carvalho. Pais conscientes, educadores ca-


pacitados: educação sexual para crianças e adolescentes. Revista Brasileira de
Sexualidade Humana. São Paulo, v.20, n.1, p.164-175, 2009.

FELIPE, Jane; BELLO, Alexandre Toaldo. Construção de comportamentos ho-


mofóbicos no cotidiano da educação infantil. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz

216
(Org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas
escolas. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diver-
sidade, UNESCO, 2009.

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Aula Inaugural no Collège de. France,


pronunciada em 2 de dezembro de 1970. 4 ed., São Paulo: Edições Loyola,1998.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Homofobia nas escolas: um problema de


todos. In: JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Diversidade sexual na educação: pro-
blematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: MEC/Secretaria de Educa-
ção Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009a.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz (Org.). Educação e Homofobia: o reconhecimento


da diversidade sexual para além do multiculturalismo liberal. In: JUNQUEIRA,
Rogério Diniz (Org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a
homofobia nas escolas. Brasília: MEC/Secretaria de Educação Continuada, Alfabe-
tização e Diversidade, UNESCO, 2009b.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho - ensaios sobre sexualidade e teo-


ria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

LOURO, Guacira Lopes et. AL. Corpo, gênero e sexualidade: um debate con-
temporâneo na educação. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, Sexualidade, e Educação: uma perspectiva


pós-estruturalista. Rio de Janeiro, Ed. Vozes. 2010. 180 p.

MARIA, Vanessa Andriani, RABENSCHLAG, Cristiano Dotto. Mosaico Acerca do


Cotidiano de Professores LGBTs no Âmbito Escolar. Conteúdo Jurídico, Bra-
sília-DF: 16 jul 2020. Disponível em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Arti-
gos/54899/mosaico-acerca-do-cotidiano-de-professores-lgbt-s-no-mbito-escolar.
Acesso em: 18 ago 2020.

MARIA, Vanessa Andriani. A Realidade e os Desafios para a Inserção de Trans-


gêneros, Transexuais e Travestis no Mercado de Trabalho. Âmbito jurídico, São
Paulo – SP: n. 199, Ano XXIII, 2020. Disponivel em: https://ambitojuridico.com.br/
cadernos/direitos-humanos/a-realidade-e-os-desafios-para-a-insercao-de-transge-

217
neros-transexuais-e-travestis-no-mercado-de-trabalho/ Acesso em 18 ago 2020.

MARTINELLI, M. L. Reflexões sobre o Serviço Social e projeto ético-político


profissional. Revista Emancipação, Paraná, ano 6, n. 1, 2006.

MORENO, M. Como se ensina a ser menina: o sexismo na escola. São Paulo:


Moderna; Campinas: Ed. da Unicamp, 1999.

PARANÁ, Secretaria de Estado da Educação – SEED. Diretrizes Curriculares da


Rede Pública de Educação Básica do Estado do Paraná (DCE):Ciências, Curiti-
ba,2008.

SCOTE, F. D. SERÁ QUE TEMOS OS MESMOS DIREITOS À UNIVERSIDADE?


O DESAFIO DO ACESSO E A PERMANÊNCIA DE PESSOAS TRANSEXUAIS NO
ENSINO SUPERIOR. 2017. 152f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universi-
dade Federal de São Carlos Campus Sorocaba, Sorocaba.

SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estives-


se aí? Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

VASCONCELOS, F.R.S. Evasão Escolar de Alunas Travestis e Transexuais. III


Seminário Internacional Corpo, Gênero e Sexualidade. Universidade Federal de Rio
Grande – FURG. 19 a 21 de setembro de 2018.

218
OS PARÂMETROS INTERNACIONAIS E INTERA-
MERICANOS NA PROTEÇÃO DA IDENTIDADE: AS-
SEGURAR A CONDIÇÃO HUMANA DE GÊNERO

Murilo Borges33

INTRODUÇÃO

Os denominados direitos sexuais são aqueles direitos que buscam, na sua


essência, a igualdade de gênero e a não discriminação, devem ser compreendidos
como direitos humanos e fundamentais resultantes da concretização da liberdade, da
igualdade e da dignidade humana (RIOS, 2006). Do mesmo modo, apresentam-se
na esfera jurídica com a indagação de algumas proteções constitucionais, em que se
percebe, no debate internacional, basicamente, argumentos relacionados à privaci-
dade e à igualdade (WINTEMUTE, 1995).

Nessa senda, é imprescindível o reconhecimento do Direito à Identidade às


pessoas transgêneros, vez que a própria Constituição Federal de 1988 estabelece
a promoção do bem estar social, declarando, como um de seus fundamentos a pro-
teção à dignidade da pessoa humana, tratando da igualdade de todos perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza. Isso significa dizer que, a Carta Magna veda a
discriminação por motivo de sexo ou identidade de gênero, amparando, assim, não
somente os heterossexuais como também os homossexuais, os transexuais e os
travestis em relação à sua sexualidade, ambos possuindo o direito fundamental à
liberdade, o qual fundamenta o direito ao livre desenvolvimento da personalidade e
da privacidade de cada pessoa (HOGEMANN, 2014).

Em igual sentido, percebe-se a proteção dos direitos à identidade, não somente


pelo sistema jurídico brasileiro, mas também pelo Sistema Universal de Proteção dos
33 Discente do curso de Direito na Fundação Escola Superior do Ministério Público e de Relações Inter-
nacionais no Centro Universitário Internacional. Pesquisador-bolsista do Grupo de Pesquisa “Sociedade da
Informação e Fake Democracy”, vinculado ao núcleo de Mestrado da FMP/RS. ID Lattes: 1858164428261194.
E-mail: [email protected]

219
Direitos Humanos e pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, circunstan-
ciado na Organização dos Estados Americanos (doravante “OEA”) regido, fundamen-
talmente, pela Convenção Americana de Direitos Humanos (ora “CADH”). Tornan-
do-se imperioso a proteção da não discriminação em relação ao gênero e também
para o reconhecimento da alteração do nome civil, a propósito de afirmar a própria
identidade como ser humano.

Para tanto, a presente pesquisa é pautada na investigação bibliográfica e do-


cumental. Sua natureza é qualitativa, considerando que o tema em estudo é fonte
de dados, essencialmente, jurisprudenciais, relacionados à proteção dos direitos se-
xuais e da identidade de gênero. Para a fomentação e interpretação dos dados será
utilizado o método dedutivo, dividindo-se o estudo nos seguintes momentos: primei-
ro, analisa-se o direito à identidade, com breves concepções acerca dos conceitos de
sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero; segundo, demonstram-se
os fundamentos dos direitos humanos atinentes à proteção ao direito à identidade;
terceiro, busca-se apresentar os fundamentos da proteção do reconhecimento de
gênero no Sistema Universal de Proteção dos Direitos Humanos e no Sistema Inte-
ramericano de Direitos Humanos (ora “SIDH”); e, por fim, a demonstração da rele-
vância da aplicação dos parâmetros internacionais e interamericanos na jurisdição
brasileira, para a salvaguarda da igualdade de gênero.

Outrossim, busca-se compreender o entendimento tanto da jurisprudência na-


cional, quanto da jurisprudência internacional, ambas em consonância com o que
estabelece a Constituição Federal de 1988, a Convenção Americana de Direitos Hu-
manos e todos os demais parâmetros sobre Direitos Humanos.

O DIREITO À IDENTIDADE

Inicialmente, em vista dos avanços científicos e políticos, buscou a sociedade


após a Segunda Guerra Mundial inserir proteção aos bens existenciais do indivíduo,
vista sua notada fragilidade após o caótico evento. E, com a inserção desses direitos
existenciais ampliou-se a gama dos direitos subjetivos clássicos já existentes no or-
denamento jurídico, visando à máxima proteção dos sujeitos vulneráveis (CHOERI,

220
2010).

Com efeito, é imperioso compreender que os direitos de personalidade não


possuem um rol taxativo ou típico, que deveriam estar previstos na Constituição ou
por outras Leis Civis, mas, na verdade, compreender que são direitos amplos, resul-
tantes de uma cláusula geral de tutela da pessoa humana, sendo a personalidade
humana, em todas as suas manifestações atuais ou futuras imprevisíveis, de tal sorte
(PERLINGIERI, 2007).

Por isso, o Direito à Identidade mostra-se uma espécie dos próprios direitos de
personalidade, vez que todo ser humano é detentor de seus direitos inerentes à sua
própria existência como pessoa, pois, estes são bens essenciais à humanidade. E,
o ser humano, tem o direito de ser conhecido na sociedade como se auto-reconhece
como indivíduo, da mesma forma, o Estado é responsável por garantir este direito
fundamental ao sujeito. No ponto, o autor Adriano de Cupis adverte sobre a importân-
cia de se ter a identificação pessoal como um direito de personalidade:

O indivíduo, como unidade da vida social e jurídica, tem necessidade de


afirmar a própria individualidade, distinguindo-se dos outros indivíduos,
e, por consequência, ser conhecido por quem é na realidade. O bem que
satisfaz esta necessidade é o da identidade, o qual consiste, precisamente,
no distinguia-se das outras pessoas nas relações sociais. Poderia pôr-se a
questão de saber se tal bem deve preceder na hierarquia dos modos de ser
morais da pessoal, os bens da honra e do resguardo, mas não sofre dúvida a
sua grande importância, pois o homem atribui grande valor, nos somente ao
afirmar-se como pessoa, mas como uma certa pessoa, evitando-lhe a confu-
são com outros (DE CUPIS, 2004, p. 195).

Insta salientar, a título exemplificativo, que a retificação do nome civil é um


grande marco de conquista acerca dos direitos à identidade e de personalidade. No
Brasil, a partir do julgamento do Recurso Extraordinário nº 67042234, julgado pelo
Supremo Tribunal Federal, sob o regime de repercussão geral, se passa a afastar
qualquer óbice jurídico que representa limitação ao exercício pleno pelo ser humano

34 Decidiu-se que o transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua
classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade
do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via adminis-
trativa (BRASIL, 2018).

221
da liberdade de escolha de identidade, orientação e vida sexual. No mesmo sentido,
defende-se que a vivência desimpedida do autodescobrimento é condição de pleni-
tude do ser humano, sendo dever do Poder Público promover a convivência pacífica
com o outro.

Destarte, é perceptível que todo ser humano, desde a sua concepção tem uma
determinada identidade, nesse caso, genética, que irá se desenvolver estavelmen-
te - mas não necessariamente imutavelmente - até o momento da sua morte. E, de
outro lado, esse mesmo indivíduo, através dos elementos externos irão modelar uma
determinada e específica personalidade a partir da sua projeção social (SESSARE-
GO, 1992).

A COMPREENSÃO DE SEXO, GÊNERO, ORIENTAÇÃO SEXUAL


E IDENTIDADE DE GÊNERO

É necessária a compreensão de que a proteção constitucional em matéria de


direitos sexuais vai além do sexo biológico, pois engloba gênero, orientação sexual
e identidade de gênero. Observa-se a imprescindibilidade do manuseio mais claro e
preciso possível das categorias envolvidas, sem o que esses direitos correm risco
de proteção deficiente, abrindo espaço para seu não reconhecimento, restrição ou
violação inconstitucionais (PIOVESAN, 2016).

Para tanto, embora haja o uso indiferenciado dos termos “orientação de sexo” e
“identidade de gênero”, cumpre ressaltar que não se confundem, pois ainda que haja
conexão entre eles, a linha que os separa não é nada tênue. Isso porque, a orienta-
ção sexual se refere à capacidade do indivíduo sentir atração emocional, afetiva ou
sexual por uma pessoa, do mesmo e/ou do outro gênero, já a identidade de gênero
caracteriza-se pelo sentimento interno de identificação que cada sujeito tem de si
mesmo, seja aquele equivalente, ou não, ao sexo atribuído quando do nascimento.

É possível, ainda, afirmar que o termo “transexualidade” foi adotado para


distinguir do homossexualismo. Isso, pois, o homossexualismo condiz com a
orientação sexual, sendo homossexual aquele que se sente atraído sexualmente por
pessoas do mesmo sexo, todavia não tem psicologicamente a vontade de mudar sua

222
anatomia para o sexo oposto (CHOERI, 2001). Entretanto, nada impede a existência
de transexuais que constatem uma condição de homossexualidade, bissexualidade
ou até mesmo assexualidade (CUNHA, 2015), sendo assim, percebe-se que a orien-
tação sexual é um elemento distinto da identidade de gênero.

Ainda, para alguns autores, como Olga Marega, deve ser ressaltada a impor-
tância da identidade de gênero, considerando que:

A identidade de gênero é a forma íntima de sentir-se a si mesmo como ho-


mem ou como mulher. Assim, a partir desse sentimento a pessoa desenvolve
toda a sua sexualidade e comportamento, em conformidade com essa identi-
dade de gênero: passa a vestir-se como tal, gesticular, comportando-se como
o homem ou a mulher que se sente ser; e, principalmente, chama toda a so-
ciedade a tratá-la como pertencente a esse gênero (MAREGA, 2008, p. 63).

Nessa toada, embora os conceitos de sexo, gênero, orientação sexual e identi-


dade de gênero encontram-se distanciados da esfera jurídica, o Direito, ao tratar da
não-discriminação por motivo de gênero, necessita apropriar-se das compreensões
desenvolvidas na sociedade, na cultura, nas ciências humanas.

Portanto, deve-se considerar que o texto constitucional é claro no seu artigo 5º


quando estabelece que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer na-
tureza (...)”. Ora, se a norma constitucional estabelece a não distinção, por qualquer
natureza, deve-se entender que a discriminação por sexo, gênero, orientação sexual
ou identidade de gênero fere diretamente o Estado Democrático de Direito.

OS FUNDAMENTOS DOS DIREITOS HUMANOS EM RELAÇÃO AO DI-


REITO À IDENTIDADE

A construção histórica dos direitos humanos, sob a perspectiva internacional,


se consolidou concomitante com o desenvolvimento da sociedade contemporânea
que, por sua vez, possui como princípio norteador a igualdade dos sujeitos (AlMEI-
DA; PERRONE-MOISÉS, 2007). É com a evolução da sociedade, que surge a ne-

223
cessidade de limitar os poderes do Estado, tornando-se como condição necessária
para efetivar a igualdade entre os indivíduos da sociedade.

Se faz a breve distinção entre os direitos humanos e os direitos fundamen-


tais, vez que, embora na sua essência, possuam viés protetivo, os direitos humanos
constituem uma proteção internacional dos direitos, já os direitos fundamentais são
reservados única e exclusivamente para o plano doméstico.

Nesse viés, os instrumentos internacionais de direitos humanos visam a pro-


teção de todos os indivíduos sem discriminação. Ainda que, muitas vezes nem a
identidade de gênero, nem a orientação sexual sejam mencionados explicitamente
como razões de discriminação nos tratados internacionais, estes tratados são apli-
cáveis a todas as pessoas, graças à amplitude das cláusulas contra discriminação
(HAMMARBERG, 2012). Isso se evidencia, a título exemplificativo, no caso do Pacto
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, em que foi já foi
confirmado pelo Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações
Unidas, que declarou que se reconhece a identidade de gênero dentro das causas
proibidas de discriminação, por exemplo, aquelas pessoas que são transgêneros,
transexuais ou intersexuais se afrontam, frequentemente, com graves violações dos
direitos humanos, tais como bullying na escola ou no trabalho (CESCR, 2009).

Percebe-se que o reconhecimento da identidade de gênero serve como uma


das razões para a discriminação universalmente protegida. Para tanto, o Alto Comis-
sário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, também se expressou no sen-
tido de que nem a existência de leis nacionais ou a prevalência do costume podem
justificar em nenhum caso o abuso, os ataques, a tortura, e inclusive os assassinatos
que gays, lésbicas, bissexuais e pessoas trans são objeto por causa de quem são
ou como são percebidos. Devido ao estigma associado a questões relacionadas à
orientação sexual e identidade de gênero, a violência contra as pessoas LGBTQIA+
frequentemente não se denuncia, ficando não documentada e sem resolução. Ra-
ramente provoca debate público ou escândalo. Este vergonhoso silêncio é o recha-
ço final do princípio fundamental da universalidade dos direitos humanos (UNCHR,
2006).

Igualmente, em um esforço internacional para promover padrões internacionais

224
em relação à orientação sexual e identidade de gênero, um grupo de distintos espe-
cialistas em Legislação Internacional dos Direitos Humanos, publicou em 2007, “Os
Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos
Humanos em Relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero” (O’FLAHERTY;
FISCHER, 2008). Esses princípios refletem a aplicação da legislação de direitos hu-
manos à vida e à experiência das pessoas de orientações sexuais e identidade de
gênero, diversificadas, sendo que nenhum deles deve ser interpretado como restrin-
gindo os direitos e liberdades dessas pessoas. Embora não seja oficialmente ado-
tado como um padrão internacional, tantos os órgãos da ONU, como várias cortes
nacionais e muitos governos já citam esses princípios e os converteram em um guia
para definir suas políticas nesta temática.

Ressalta-se a relevância do terceiro princípio de Yogyakarta, vez que estabe-


lece que “Toda pessoa tem o direito de ser reconhecida, em qualquer lugar, como
pessoa perante a lei. As pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero
diversas devem gozar de capacidade jurídica em todos os aspectos da vida. A orien-
tação sexual e identidade de gênero autodefinidas por cada pessoa constituem parte
essencial de sua personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua autodeter-
minação, dignidade e liberdade. Nenhuma pessoa deverá ser forçada a se submeter
a procedimentos médicos, inclusive cirurgia de mudança de sexo, esterilização ou
terapia hormonal, como requisito para o reconhecimento legal de sua identidade de
gênero. Nenhum status como casamento ou status parental, pode ser invocado para
evitar o reconhecimento legal da identidade de gênero de uma pessoa. Nenhuma
pessoa deve ser submetida a pressões para esconder, reprimir ou negar sua orienta-
ção sexual ou identidade de gênero.”

Conclui-se que a proteção contra a discriminação por identidade de gênero é


amplamente protegida pelos direitos humanos, no plano internacional, consequente-
mente, pelos direitos fundamentais, no plano nacional. Isso pois, embora o Princípio
de Yogykarta não seja um padrão oficializado pela legislação internacional, este, já
tem grande aplicação nas Cortes internacionais e nacionais. E, portanto, deve ser
levado em consideração nos julgados e na proteção dos indivíduos.

225
O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS NA PRO-
TEÇÃO DA IGUALDADE DE GÊNERO

É perceptível que o Direito Internacional dos Direitos Humanos constitui a origem


da proteção de todos os direitos humanos, aplicando-se a todas às Convenções
e princípios que visam a proteção destes direitos. Nesse sentido, o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos, circunstanciado na Organização dos Estados
Americanos, através da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (“CIDH”) e
Corte Interamericana de Direitos Humanos (“CtIDH” ou “Corte IDH”), visam a proteção
dos direitos humanos de forma universal.

Nesse contexto, a proteção dos direitos de toda pessoa, vigora o princípio pro
homine (GARCIA, 2002), em que estabelece que a interpretação de uma norma pre-
cisa ser feita da maneira mais favorável ao ser humano. Considerando isso, é pos-
sível afirmar que é imprescindível o reconhecimento da identidade de gênero pelos
órgãos protetores dos direitos humanos. Por isso, o SIDH objetiva aplicar e interpre-
tar a CADH e também outros tratados de Direitos Humanos através, essencialmente,
da Corte IDH através da sua função contenciosa, que determina sua competência
litigiosa, e também a sua função consultiva, que determina sua competência de emitir
pareceres.

Para isso, no marco da função consultiva da Corte IDH, em que con-


tribui com o esclarecimento de questões centrais à prevalência dos di-
reitos humanos, destaca-se a Opinião Consultiva nº 24 da Corte35,
que reitera a sua jurisprudência, no sentido de que a orientação sexual e a identida-
de de gênero são direitos protegidos pelo Pacto de San José. E esses direitos estão
vinculados ao direito às garantias de liberdade e de autodeterminação e seu reco-
nhecimento por parte dos Estados integrantes da OEA é de vital importância para o
pleno gozo dos direitos humanos.
35 A Corte IDH definiu a identidade de gênero como a vivência interna e individual do gênero tal como
cada pessoa a sente, a qual poderia corresponder ou não com o sexo designado no momento do nascimento,
incluindo expressões da corporalidade; refere-se a vivência que a pessoa tem com o seu próprio gênero. Já a
expressão de gênero é caracterizada como a manifestação externa do gênero da pessoa, através do seu aspecto
físico, podendo corresponder ou não com a identidade de gênero autopercebida. Por outro lado, a orienta-
ção sexual é definida como a atração emotiva, afetiva e sexual por pessoas de um gênero diferente do seu,
do mesmo gênero, ou de mais de um gênero, assim como as relações intimas ou sexuais com estas pessoas
(CORTE IDH, 2012).

226
No mesmo sentido, no marco da função contenciosa da Corte IDH, ela estabe-
lece que, o nome e a menção a sexo nos documentos de registro de acordo com a
identidade de gênero são garantias protegidas pela Convenção Americana de Direi-
tos Humanos, estando os Estados vinculados à reconhecer esta alteração no registro
público dos indivíduos.

Nota-se, ainda, que a Corte IDH foi categórica ao julgar o caso Atala Riffo y niñas
vs. Chile, no sentido de que não é possível admitir qualquer espécie de discriminação
por orientação sexual ou identidade de gênero. No caso, em específico, a senhora
Atala teria sido impedida de ter a guarda de suas filhas, em razão, unicamente, da
sua orientação sexual. Porém, a Corte IDH decidiu a desconformidade das decisões
chilenas com relação a vida da senhora Atala e suas filhas. Igualmente, determinou
que o Estado deveria realizar um ato público de reconhecimento de responsabilida-
de internacional pelos fatos deste caso, com autoridades e representantes do Poder
Judiciário, bem como continuar implementando cursos de capacitação a funcionários
públicos tanto da esfera estadual quanto nacional, principalmente a funcionários judi-
ciais de todas as áreas e escalões em: (i.) direitos humanos, orientação sexual e não
discriminação; (ii.) proteção dos direitos da comunidade LGBTI; e (iii.) discriminação,
superação de estereótipos de gênero contra a população LGTBI.

Percebe-se, desse modo, a preocupação tanto da CIDH, quanto da Corte IDH,


em buscar a abrangência da proteção de todos os direitos inerentes à condição de
humano, independentemente de sua orientação sexual ou de sua identidade de gê-
nero (ALAMINO, 2018).

227
CONCLUSÃO

Em conformidade com o desenvolvido ao longo da investigação, os direitos


humanos fundam-se no Direito Internacional Público, através dos tratados interna-
cionais celebrados não somente para estabelecer um equilíbrio de interesses entre
os Estados, senão, sobretudo, para garantir o pleno gozo dos direitos e liberdades
do ser humano, devendo ser interpretados restritivamente quando limitam os direitos
do ser humano e, ao contrário, ampliativamente quando possibilita o seu desfrute e
gozo.

Na perspectiva do Direito à Identidade, cumpre a jurisdição não obstaculizar


os direitos personalísticos inerentes à identidade de gênero de cada indivíduo. Para
que estes, possam se reafirmar como individuais dentro da sociedade, através do
registro do seu nome e gênero em seus documentos. Respeitando e protegendo,
desse modo, os direitos fundamentais e humanos que cada sujeito detém. Isso, pois,
o direito ao nome reafirma que o ser humano é único, que possui características di-
ferenciadas e é dono de uma identidade que o individualiza, merecendo respeito à
sua dignidade. Da mesma forma, é dever do Estado cumprir com as obrigações es-
tabelecidas nos pactos internacionais, como a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos, não discriminando os sujeitos, tão pouco os diferenciado por gênero.

Outrossim, deve-se respeitar os princípios da dignidade e da justiça, no que se


refere ao tratamento igualitário, acrescido ao conceito de equidade que nada mais é
que dar a cada o que lhe é devido de acordo com suas necessidades, considerando
que as pessoas são diferentes e que possuem diferentes necessidades.

228
REFERÊNCIAS

ALAMINO, Felipe Nicolau Pimentel; VECCHIO, Victor Antonio del. Os Princípios de


Yogyakarta e a proteção de direitos fundamentais das minorias de orientação sexual
e de identidade de gênero. R. Fac. Dir. Univ. São Paulo, São Paulo, v. 113, p. 15,
2018.

ALMEIDA, Guilherme Assis, PERRONE-MOISÉS, Cláudia. Direito Internacional dos


Direitos Humanos: instrumentos básicos. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2007.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de ou-


tubro de 1988. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 20 set. 2020.

BRASIL. Superior Tribunal Federal. Tema 761 sob Recurso Extraordinário nº 670422.
Possibilidade de Alteração de Gênero no Assento de Registro Civil de Transexual,
Mesmo Sem A Realização de Procedimento Cirúrgico de Redesignação de Sexo. Mi-
nistro Dias Toffoli, Brasília, 2018. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurispru-
denciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4192182&numeroPro-
cesso=670422&classeProcesso=RE&numeroTema=761. Acesso em: 20 set. 2020.

CESCR, UN Committee on Economic, Social and Cultural Rights. Statement of the


Office of the UN High Commissioner for Human Rights to the International Conferen-
ce on LGBT human rights, Montreal 26 July 2006. Disponível em: www.unhchr.ch/
huricane/huricane.nsf/0/B91AE52651D33F0DC12571BE002F172C?opendocument.
Acesso em: 23 set. 2020.

CESCR, UN Committee on Economic, Social and Cultural Rights. General comment

229
No. 20: Non-discrimination in economic, social and cultural rights (art. 2, para. 2, of
the International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights), 2 jul. 2009,
E/C.12/GC/20. Disponível em: https://www.refworld.org/docid/4a60961f2.html. Aces-
so em: 23 set. 2020.

CHOERI, Raul Cleber da Silva. O Direito à Identidade na Perspectiva Civil-Constitu-


cional, Rio de Janeiro, Renovar, 2010.

CHOERI, Raul. Transexualismo e identidade social: cirurgia de transgenitalização.


In: BARBOZA, Heloisa Helena; BARRETTO, Vicente de Paulo. Temas de biodireito e
bioética. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

Corte IDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinião Consultiva n. 24/2017.


24 de novembro de 2017. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/
seriea_24_esp.pdf. Acesso em : 25 set. 2020.

Corte IDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Atala Riffo y niñas vs.
Chile. Sentencia de 24 de febrero de 2012. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/
docs/casos/articulos/seriec_239_esp.pdf. Acesso em: 25 set. 2020.

CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: aspectos da


personalidade, da família e da responsabilidade civil. 1 ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2015.

DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Campinas, São Paulo: Romana,


2004. p. 195.

230
GARCÍA, Luis M., “El derecho internacional de los derechos humanos”, em Los de-
rechos humanos em el proceso penal, Buenos Aires: Editorial Ábaco de Rodolfo De-
palma, 2002.

HAMMARBERG, Thomas. Human Rights and Gender Identity. 2012. Council of Euro-
pe Commissioner for Human Rights. Disponível em: https://tgeu.org/issue-paper-hu-
man-rights-and-gender-identity-portuguese/. Acesso em: 23 set. 2020.

HOGEMANN, Edna Raquel. Direitos Humanos e diversidade sexual: o reconheci-


mento da identidade de gênero através do nome social. Revista SJRJ, Rio de Janeiro,
v. 21, n .39, p. 217-231, 2014. Disponível em: http://www.jfrj.jus.br/revista-sjrj/artigo/
direitos-humanos-e-diversidade-sexual-o-reconhecimento-da-identidade-de-genero.
Acesso em: 20 set. 2020.

MAREGA, Olga. Satisfacción sexual femenina, más allá del orgasmo. In: ARRIBÈRE,
Roberto (Org.). Bioética y derecho: dilemas y paradigmas en el siglo XXI. Buenos
Aires: Cathedra Jurídica, 2008.

OEA, Organização dos Estados Americanos. Convenção Americana de Direitos Hu-


manos (“Pacto de San José de Costa Rica”), 1969. Disponível em: <https://www.cidh.
oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 19 set. 2020.

O’FLAHERTY, Michael; FISCHER, John. Sexual orientation, gender identity and


International Human Rights Law: contextualising the Yogyakarta Principles. Human
Rights Law Review, Oxford, v. 8, n. 2, p. 207-248, 2008

PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional.


Tradução de: Maria Cristina de Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007.

231
PIOVESAN, Flávia; SOARES, Inês Virgínia Prado. Impacto das Decisões da Corte
Interamericana de Direitos na Jurisprudência do STF. Bahia: Juspodivm, 2016.

RIOS, Roger Paupp. Para um direito democrático da sexualidade. Horizontes Antro-


pológicos, v. 12, n. 26, p. 71-100, 2006. Disponível em: http://scielo.br/scielo.php?s-
cript=sci_arttext&pid=S0104-71832006000200004&Ing=pet&nrm=iso. Acesso em:
18 set. 2020.

ROCHA, Maria Vital da; SÁ, Itanieli Rodonto. Transsexualidade e o direito funda-
mental à identidade de gênero. RIDB, v. 2, n. 3, p. 2.337-2.364, 2013. Disponível em:
http://www.cidp.pt/revistas/ridb/2013/03/2013_03_02337_02364.pdf. Acesso em: 19
set. 2020.

SESSAREGO, Carlos Fernández. Derecho a la identidad personal. Buenos Aires:


Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1992.

WINTEMUTE, Robert. Sexual Orientation and human rights: The United States Cons-
titucion, the European convention, and the Canadian Charter. Oxford: Clarendon
Press, 1995.

232
POLÍTICA PÚBLICA ELEITORAL E A REPRESEN-
TATIVIDADE LGBT NO CONTEXTO BRASILEIRO

Vanessa Andriani Maria36

INTRODUÇÃO

Existe pouca literatura brasileira que retrate os vínculos do Movimento LGBT


e os partidos políticos no Brasil, sinalizando que este tema se estabelece como um
vasto campo a ser explorado pelos pesquisadores da área.

A luta por direitos iguais promovidas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis
e transexuais (também identificados pela sigla LGBT) tem ganhado grande visibili-
dade no debate público e nos meios de comunicação no Brasil. O poder geralmente
é centralizado por pessoas cisgêneros e a representação política pública voltada às
pessoas LGBT’s, é mínima. Os resultados indicam que há um desejo forte e perma-
nente das pessoas LGBT em participar da esfera pública e dos processos decisórios
estatais procurando desenvolver políticas públicas, concretizar direitos já previstos e
a conquista de novos, com o intuito de coibir a violência contra a população LGBT, a
exclusão social e garantir a cidadania desse grupo minoritário.

A força política do Movimento LGBT, construída tanto nas atividades de mas-


sa, como nas Paradas do Orgulho, na organização social composta por um conjunto
de grupos, organizações e redes de ativismo de LGBT, paralela a uma conjuntura
governamental em nível Federal mais favorável com as vitórias eleitorais consecu-
tivas do Partido dos Trabalhadores possibilitaram não só a construção de políticas
públicas de diversidade sexual e de gênero no Estado quanto a criação de canais
de participação social desse segmento que potencializaram exponencialmente a in-
terlocução do Movimento LGBT com o Estado, em especial o Poder Executivo, com

36 Vanessa Andriani Maria – Advogada, Pós-Graduada em Direito do Trabalho e Pós-Graduada em Ad-


vocacia Cível. Membro da Comissão de Direitos Humanos e do Grupo de Violência de Gênero da OAB Santa
Maria-RS / [email protected]

233
reverberações em outras instâncias estatais como o Judiciário e, em menor medida,
com o Legislativo (FEITOSA, 2016). Nesse sentido, é possível dizer que o Movimen-
to LGBT obteve relativos ganhos e conquistas ao conseguir fazer de suas necessi-
dades uma “questão de Estado” impulsionando temáticas e assuntos até então tidos
como próprios do campo privado para a esfera pública, tal qual as feministas fizeram
ao longo da sua trajetória política com destaque para a pauta da violência doméstica
(PINTO, 2003). Contudo, a conquista de políticas públicas como o “Brasil Sem Ho-
mofobia” (2004) e arenas de deliberação como as Conferências Nacionais LGBT, o
Conselho Nacional LGBT e outros espaços nunca foram tomados como suficientes
por si só para o Movimento.

Foi o Brasil Sem Homofobia que impulsionou a participação social da popu-


lação LGBT no Estado brasileiro e a criação de estruturas administrativas responsá-
veis pelo desenvolvimento de políticas públicas nos estados e municípios provocan-
do um fenômeno bastante característico dos anos 2000: o trânsito e o deslocamento
de ativistas para o interior do Estado e o ativismo institucional (ABERS; TATAGIBA,
2014). Além disso, o Brasil Sem Homofobia foi responsável pelo financiamento e im-
plantação dos Centros de Referência em Direitos Humanos e Combate à Homofobia,
Núcleos de Pesquisa e Promoção da Cidadania LGBT nas Universidades públicas
brasileiras e projetos de formação em direitos humanos para combater a homofobia.

A evidente exclusão dessa população das instituições representativas como


o Senado, a Câmara Federal, Assembleias Legislativas Estaduais e Câmaras Mu-
nicipais, além da baixíssima disputa por cargos majoritários como Prefeituras, Go-
vernadorias Estaduais e a Presidência da República requer maiores investigações
e pesquisas na Ciência Política, mas podem ser explicadas preliminarmente por fa-
tores estruturais (MIGUEL, 2016), simbólicos (BOURDIEU, 2000) e específicos da
população LGBT como a violência e a discriminação sofridas por fora e dentro das
instituições liberais (SANTOS, 2016; BORRILLO, 2010).

Buscamos analisar a dinâmica da participação política no movimento social


LGBT (Lésbicas, Gays,Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros) com o ob-
jetivo de compreender tanto fatores psicossociais, quanto fatores estruturais dos im-
pedimentos e possibilidades da participação política dos LGBT’s nesse movimento

234
social, e, consequentemente, contribuir para a articulação de diferentes dimensões
sobre as ações coletivas.

Com base nesta realidade este estudo tem como intuito analisar as relações
e barreiras entre a população LGBT e a representatividade política no Brasil, relatan-
do suas batalhas e resistências dentro de uma sociedade machista e patriarcal. Os
métodos utilizados foram o dialético e o observacional. Através da pesquisa biblio-
gráfica e documental, buscaram-se informações pertinentes a estas minorias com a
finalidade de promover a diversidade. A escolha do tema se deu pela indispensável
investigação da problemática ausência de LGBT’s nos espaços de poder, represen-
tando uma lacuna e também pela possibilidade de contribuir e estimular os LGBT’s
brasileiros a disputarem a política institucional.

Consideramos os movimentos sociais como importantes espaços de participa-


ção política na sociedade contemporânea, pois “se situam em um espaço de privaci-
dade compartilhada que possibilita a conversão de interesses privados em questões
de debate na esfera pública, e permitem encontrar uma estrutura de plausibilidade
para viver a cidadania vicaria [tradução nossa]” (TEJERINA, 2005, p. 81), sendo cada
vez mais necessários como motores da “inovação democrática [tradução nossa]”
(Op. Cit., 82) ao atentar para novas formas de articulações contra-hegemônicas.

A partir da ação afirmativa exercida pelos movimentos LGBT no Brasil, pode-


-se dar maior ênfase a uma agenda com as propostas que fundamentam medidas
jurídicas que atendam aos anseios dessas pessoas. Essas transformações partindo
de debates da sociedade civil organizada com os elaboradores da legislação podem
auxiliar a diminuir a intolerância que persiste em alguns locais e ainda ajudar na con-
secução de medidas de melhoria da dignidade dos LGBT.

235
DESENVOLVIMENTO

O Cenário Político Brasileiro e o Potencial Inclusivo LGBT

A incompatibilidade ou dificuldade em se articular vida pessoal e militância foi


outro fator apontado para explicar o desinteresse dos LGBT’s em participar politi-
camente no movimento social GLBT. Esta dicotomia entre vida pessoal e militância
também é encontrada em pesquisas de Baltazar (2003) e Tejerina (2005).

O receio de ser ofendido em virtude de sua orientação sexual ou identidade


de gênero na vida política: seja nas campanhas, nos mandatos e em outros momen-
tos sujeitos à carreira também geram um afastamento e um impedimento à ambição
política.

Zilli (2017, p. 127) compreende as trajetórias profissionais de pessoas engaja-


das em processos políticos relacionados aos temas de gênero e sexualidade conclui
que:

“[...] O sentimento que leva um indivíduo a se engajar na área de direitos se-


xuais vem de uma inquietude diante de desigualdades determinadas por questões
de gênero e sexualidade, e uma concomitante satisfação com tomar conhecimento
de formas de entender - de nomear - essas desigualdades e de se envolver em ini-
ciativas para saná-las [...] É o conteúdo moral de suas interpretações que faz a ponte
entre a identificação de problemas e o engajamento, permitindo passar da cognição
para o afeto que mobiliza.”

Para travestis, mulheres transexuais e homens trans, o uso do nome social


se configura como um constrangimento até para meros eleitores, sugerindo que a
igualdade política ainda está longe de ser consolidada no Brasil.

Alguns candidatos trans, quando postulam o registro de candidatura, fazem-


-no de porte de sua nova documentação civil, a qual já reflete a orientação sexual
com a qual se identificam. A situação não parece problemática, tendo em vista que
o registro de candidatura baseia-se nos documentos civis e, para fins de análise do

236
preenchimento da reserva de vagas de candidatura, será levado em conta o sexo
neles constante. Existem, entretanto, aqueles trans que permanecem, no registro
civil, com nome e indicação do sexo com o qual não se identificam psicologicamente,
nem se apresentam perante a sociedade. Quanto a esses paira a dúvida de como
sua candidatura deve ser contabilizada para fins de análise do cumprimento da cota
eleitoral por sexo. (Machado, 2018)

O nome civil da pessoa é o sinal de individualização mais visível no meio so-


cial. A partir do nome, a pessoa difere das demais no círculo familiar e social, bem
como das demais pessoas. Em razão disso, o nome deve receber especial proteção
do Estado.

Sobre a essencialização e personificação das identidades, Tomaz Tadeu da


Silva (2000) acredita que ver a diversidade simplesmente como um espaço de desti-
no é naturalizar a diferença, o que não nos permite compreender os regimes de po-
der envolvidos na construção da ‗diversidade de identidades‘. Para a autora, ser isto
ou aquilo não faz sentido absoluto a não ser enquanto processo discursivo conectado
com a produção da diferença.

Quanto às pessoas trans que já realizaram a retificação do seu nome e gênero


na documentação civil, não há maiores problemas, uma vez que o cadastro eleitoral
será um reflexo deste. A dúvida surge quanto às pessoas que ainda não fizeram essa
alteração. Para esses casos, foi editado o Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016,
que regulamenta o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero
de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta,
autárquica e fundacional, dispondo em seu art. 2º que os “órgãos e as entidades da
administração pública federal direta, autárquica e fundacional, em seus atos e proce-
dimentos, deverão adotar o nome social da pessoa travesti ou transexual, de acordo
com seu requerimento” e nos termos do decreto. (Machado, 2018)

No campo privado, formado pela família tradicional, homem e mulher e filhos


biologicamente gerados, os LGBTnão se enquadram, são “figuras” estranhas, atípi-
cos, sujeitos promíscuos, até mesmo depravados. Foram os LGBT’s que escolheram
a vida que têm, logo, a série de violências sofridas por estas pessoas nada mais é

237
que um forte mecanismo pedagógico de repressão e conversão de suas orientações
sexuais e identidades de gênero para a regra dominante. Olhando por este ângulo,
a supressão dos LGBT’s do rol político, torna-se mais fácil de entender. Primeiro,
porque é difícil, em um contexto de educação cerceada como o nosso, as pessoas
perceberem que a sexualidade e a identidade de gênero, mais do que meras carac-
terísticas humanas, são marcadores sociais que definem valores, lugares e desigual-
dades.

A  cultura do machismo e do patriarcado que se perpetua durante décadas no


Brasil, faz a sociedade não amar as pessoas trans, por isso é tão difícil uma pessoa
LGBT candidatar-se e obter êxito na política.

Participação Política e Ativismo do Movimento LGBT e no Brasil

Muitas das dificuldades enfrentadas pelas mulheres para ter acesso à carreira
política são também vivenciadas pelos candidatos assumidamente LGBT’s. A análise
dos dados das candidaturas demonstrou tais semelhanças e apontam para importan-
tes singularidades desse fenômeno político.

Na seleção de candidatos, as mulheres tem probabilidade menor do que os


homens de receber incentivos provenientes de uma fonte política como líderes par-
tidários, por exemplo. Além disso, elas têm menos probabilidade do que os homens
de se considerarem qualificadas para concorrer a um cargo político. Enquanto que
os homens que se julgam pouco qualificados tem muito mais chances de cogitarem
disputar eleitoralmente. Outro achado importante dessa pesquisa sobre as barreiras
para a participação política delas se refere à socialização cultural que faz com que
as mulheres não se sintam instadas a ingressar na disputa eleitoral (Fox e Lawless,
2012).

Outro dado importante ressaltado quando analisamos a filiação partidária das


candidaturas LGBT, diz respeito à forte correlação entre o número de candidaturas
LGBT e a posição ocupada no espectro político-ideológico do partido político. Signifi-
ca dizer, que quanto mais à esquerda encontra-se o partido político, maior será a pro-
babilidade de encontrarmos candidaturas abertamente “LGBT”. Tradicionalmente, as

238
esquerdas, ao menos nos regimes democráticos ocidentais, têm sido mais “abertas”
às novas temáticas e “acolhido”, em suas estruturas partidárias, setores marginaliza-
dos na sociedade e na política institucional (ARAÚJO, 2005).

Miguel e Biroli (2010) constatam, ainda, que são necessários três tipos de
recursos para a participação política: dinheiro, tempo livre e uma rede de contatos,
recursos esses concentrados entre os homens brancos e cisheterossexuais. O tem-
po livre configura-se como o maior obstáculo à participação política das mulheres
interditando o interesse pelos assuntos públicos. É importante ter em mente que não
é simplesmente uma questão de tempo, mas de atribuição de determinadas respon-
sabilidades impostas a elas. Essa constatação pode explicar o fato de que muitas
mulheres ativas na política herdam um capital político de perfil familiar, oriundo de
seus pais, maridos ou outras formas de parentalidade (Miguel e Biroli, 2010).

O que se pode ainda ressaltar é que apesar de quase não haver representan-
tes LGBT’s nos segmentos da área política, talvez devido a fatores pessoais, obser-
va-se que isso ocorre com todo um grupo social, acarretando uma enorme desigual-
dade na esfera política.

Para Urbinati, “pode-se dizer que, em uma democracia representativa, as pa-


lavras, dão vida‟ porque os cidadãos com sua variedade de reivindicações e opiniões
precisam fazer-se ouvir para se tornarem visíveis e se comunicarem com os cida-
dãos plenamente ativos que têm assento na assembleia.” Se o representado não
possui nenhum mecanismo de controle deste representante, ele fica à mercê da boa
vontade daquele que afirma falar em nome dele. (2010, p. 67).

Deste modo, é cristalina a importância da representatividade LGBT na esfera


política, além destes civis terem em suas mãos poderes para reivindicar e ou dialo-
gar com as autoridades que os representam alguma posição referente a um assunto
específico.

Além da clara sub-representação da população LGBT nos espaços de po-


der, semelhantemente às mulheres (MIGUEL e BIROLI, 2010) e aos/às negros/as
(CAMPOS e MACHADO, 2015), constata-se que tais candidaturas ocupam uma po-
sição inferior em termos políticos, ao observar que a maioria concorreu ao cargo de

239
vereador, o qual fica em posição inferior na categoria das carreiras políticas quando
comparado a outros cargos elegíveis. Ainda assim, concorrendo ao cargo de verea-
dor, o qual necessita de menor quantidade de votos para se eleger, a inclusão da
população LGBT é baixa.

Segundo Coradini (2010), as frentes parlamentares são grupos que promo-


vem a articulação de interesses, constituindo-se enquanto “espaços” de “opinião mo-
bilizada” dentro do Parlamento. Além de agregar deputados e senadores com posi-
cionamentos semelhantes em uma dada temática, as frentes parlamentares auxiliam
nos processos de definição e organização de interesses, que ocorrem em interação
tanto com a chamada “sociedade civil organizada” quanto os membros do poder
Executivo.

As políticas LGBT’s são frágeis institucionalmente e deficientes estruturalmen-


te em face de precariedades jurídicas que as tornam políticas de governo e não de
Estado, o que as deixam ao sabor das conjunturas e das conveniências políticas;
das dificuldades em gerir as políticas de maneira transversal e em diálogo com a
sociedade civil; do pouco ou nenhum recurso previsto em as legislativas orçamentá-
rias, como o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei
Orçamentária Anual (LOA); e do baixo número de servidores/as permanentes espe-
cializados/as responsáveis pela elaboração, a implementação, o monitoramento e a
avaliação. Mello et al (2012)

Nessa seara, sinalizamos a importância sobre as vinculações entre a popu-


lação LGBT e os partidos políticos, principalmente pela necessidade de casos de
extrapolação das violações de direitos políticos, que se configuram como violações
de direitos humanos e também por ser imperiosa a construção de regimes realmente
democráticos.

Esse conjunto de fatores e entraves age diretamente na ausência de motiva-


ção e pretensão política para que a população LGBT se lance na disputa eleitoral,
assim como outras minorias discriminadas socialmente. Logo, não se trata de “não
gostar” da política, mas sim de não vislumbrar nela possibilidades sólidas alcançá-
veis.

240
RESULTADOS E DISCUSSÃO

Limites Enfrentados à Representação Política LGBT

A participação de pessoas pertencentes a grupos minoritários e sem grande re-


presentatividade/visibilidade na política provém de muitas razões, seja pelos parcos
recursos financeiros, pelo pouco estudo, falta de anseio ou estímulo a participar de
posições no campo político, constrangimento de exposição ou até mesmo por auto
se acharem em situação subalterna em relação aos demais na sociedade.

Entre as barreiras para viabilizar a candidatura, esta minoria aponta o precon-


ceito, a resistência da classe política e dificuldades de ordem burocrática. Os partidos
aos quais estes se filiam são diversos, assim como os seus estados de origem.

No plano nacional, as candidaturas principalmente de transgêneros têm pou-


ca articulação e os obstáculos são muitos. Aqueles que transpõem os obstáculos e
conseguem tirar a candidatura do papel ainda enfrentam outros desafios, como o
constrangimento de se apresentar no registro eleitoral com o sexo diverso ao que se
identificam socialmente, por exemplo.

Esse panorama de desigualdade resulta em sistemas políticos ineficientes e


incapazes de responder aos anseios da população como também em sentimentos de
frustração coletiva com o funcionamento das nossas instituições, além da descrença
na política como instrumento de transformação social, de mediação dos conflitos e
de conquista de direitos.

Segundo Nancy Fraser

“a luta por reconhecimento” está rapidamente se tornando a forma paradig-


mática de conflito político no atual século XX. Demandas por “reconhecimento da
diferença” dão combustível às lutas de grupos mobilizados sob as bandeiras da na-
cionalidade, etnicidade, “raça”, gênero e sexualidade. Nestes conflitos “pós-socia-
listas”, a identidade de grupo suplanta o interesse de classe como o meio principal
da mobilização política. A dominação cultural suplanta a exploração como a injustiça
fundamental. E o reconhecimento cultural toma o lugar da redistribuição socioeconô-
mica como remédio para a injustiça e objetivo da luta política (FRASER, 2006, p. 01).

241
A luta pela livre expressão da orientação sexual e identidade de gênero tem
ocupado uma posição de marginalidade nas instituições representativas nacionais.
Mesmo com a mobilização de ativistas de grupos e entidades do movimento homos-
sexual (posteriormente denominado Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transe-
xuais - LGBT) junto a essas instâncias políticas desde, pelo menos, o fim da década
de 1980, os direitos sexuais da população LGBT têm experimentado um tortuoso e
difícil caminho em sua efetivação. A prova disso é a não aprovação de nenhum dos
projetos de lei (a exemplo da parceria civil registrada e da criminalização da homo-
fobia) que visava beneficiar, diretamente, o segmento LGBT da população brasilei-
ra. Mais ainda, a política brasileira tem testemunhado, nas últimas duas décadas, o
aumento no número de parlamentares eleitos (em sua maioria vinculados a denomi-
nações religiosas) que trazem entre suas bandeiras políticas o rechaço a qualquer
reconhecimento ou garantia de direitos a esta população. (Santos, 2016).

Nessa conjuntura de maior visibilidade pública e de maior resistência de se-


tores conservadores e religiosos à temática LGBT é que observamos o aumento das
candidaturas de pessoas assumidamente LGBT.

De fato, mais que nunca, é possível vislumbrar a politização das identidades


sexuais e de gênero em diferentes campos da sociedade, incluindo a mídia, signifi-
cativo campo produtor de visibilidade (BUTTERMAN, 2012). É importante também
reconhecer que a definição de Movimento LGBT também é algo aberto, inconcluso e
em disputa, seja no ativismo, seja na academia.

A maior dificuldade com o Estado, no que diz respeito às reivindicações do


movimento LGBT, não nos parece se encontrar na entrada destas nas esferas institu-
cionais, pois existem diversos parlamentares que declaram apoio à causa GLBT, mas
na aprovação e efetivação de políticas de interesse do movimento. Assim, a partir do
modelo de Engel (2001) sobre a representatividade do Estado, seria possível afirmar
que o Estado é aberto ao movimento LGBT, mas fraco quanto à execução de políti-
cas favoráveis ao movimento.

A participação limítrofe de indivíduos pertencentes a grupos sociais despri-


vilegiados na política institucional decorre de várias razões, seja pelas dificuldades

242
destes grupos disponibilizarem de recursos materiais/financeiros e do tempo livre
necessário à dedicação à política, seja pela auto exclusão e/ou não desenvolvimento
nestes grupos da ambição por ocupar posições de poder e das habilidades pressu-
postas para a ação na esfera político- institucional: reflexos da sua posição subalter-
na na sociedade (Miguel, 2014).

Outro fator salientado através das pesquisas feitas remete-se ao fato de que
o Estado várias vezes vale-se do movimento social LGBT em busca de benefícios
próprios, ou para a construção de uma imagem positiva do Estado, ou de membros
do Estado com relação ao combate às distintas formas de opressão. Logo, o fortale-
cimento de partidos políticos pode fazer uso dos LGBT’s para fazer deles candidatos
eleitos para o partido e não para a discussão das demandas e reivindicações do
grupo.

CONCLUSÃO
Atualmente, observamos um maior envolvimento nos partidos políticos de pes-
soas LGBT’s, o que reflete uma das principais transformações vivenciadas pela polí-
tica brasileira neste século.

O movimento LGBT segue sua senda de lutas e mobilizações por um futuro


mais inclusivo no âmbito partidário embora, o legislativo brasileiro aos poucos dê
demonstrações de maior permeabilidade quanto às diligências deste segmento da
população e os direitos sexuais da população LGBT têm experimentado penoso e
difícil passagem para sua real efetivação.

O primeiro desafio é a abertura aos partidos políticos, dirigidos por homens


cis-heterossexuais. Ademais, os partidos exibem em seus programas e projetos con-
teúdos priorizando o empresariado, latifundiários e banqueiros. Também na disputa
eleitoral, os partidos tendem a apostar em candidaturas com mais chances de vitória,
logo, as mulheres e o público LGBT teria uma chance bem menor de adentrar nesta
seara.

Segmentos que gozam de mais solidariedade social como o das crianças e


adolescentes, têm maior apelo social, sensibilizam mais população, defendem pau-
tas mais abrangentes como saúde, educação, diferente de uma candidatura que de-

243
fenda os direitos LGBT, o qual tende atrair bem menos eleitores. Tudo gira em torno
de capital.

Outro desafio para estas candidaturas é de ordem estrutural e relacionada à


posição subordinada tomada por indivíduos LGBT’s fazendo com que estes se sin-
tam depreciados frente aos outros candidatos. A exemplo disso, a grande maioria dos
candidatos LGBT postulou até hoje o cargo de vereador, o mais baixo na hierarquia.

O temor de ser ofendido em virtude de sua orientação sexual ou identidade


de gênero na vida política (nas campanhas, nos mandatos e em outros momentos
característicos dessa carreira) também promovem um afastamento e um obstáculo à
produção da ambição política.

O uso do nome social para travestis, mulheres transexuais e homens trans


se configura como um constrangimento, até para meros eleitores e para o simples
exercício do voto já que ainda vem sendo construído processualmente no Estado
brasileiro e nas instâncias eleitorais, indicando que a igualdade política ainda está
longe de ser consolidada no Brasil.

Outros constrangimentos são o reconhecimento do nome social, homofobia,


em virtude de sua orientação sexual ou identidade de gênero, na vida política.

A representação política por lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais


é quase nula. Existe um panorama desmotivador da participação política de LGBT’s
perante o governo federal o qual devem juntos, formar canais de ligação entre as
instituições representativas LGBT’s e de toda esta diversidade de sujeitos.

Ainda que sejam muitos os entraves enfrentados para a constituição de uma


representação política LGBT, a cada eleição mais candidatos assumem sua orienta-
ção sexual/identidade de gênero publicamente para pedir votos. A representatividade
política LGBT é muito importante, pois através dela, é que se conhece tão bem sua
tortuosa realidade, e pode-se reformar instituições, implantar políticas para combater
a discriminação e garantir a inclusão efetiva de mais pessoas LGBT’s, bem como ga-
rantir o acesso efetivo à justiça; incluindo reparação e investigações contra atos de
violência e discriminação à pessoas LGBT.

244
REFERÊNCIAS

ABERS, Rebecca, TATAGIBA, Luciana. Ativismo institucional na burocracia brasi-


leira: a mobilização em defesa da saúde da mulher. In: 38° ENCONTRO ANUAL DA
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS
SOCIAIS (ANPOCS), 38, 2014, Caxambu. Anais. Caxambu: ANPOCS, 2014. pp.
2-32. 2014.

ARAÚJO, Clara. Partidos políticos e gênero: mediações nas rotas de ingresso das
mulheres na representação política. Revista de Sociologia e Política, n. 24, p. 193-
215, jun. 2005. 

BALTAZAR, Bernadete. Participação política e psicologia social: A trajetória de lide-


ranças de movimentos populares. Revista Psicologia Política, 3(6), 247-266. 2003.

BORRILLO, Daniel. Homofobia: História e crítica de um preconceito. Belo hori-


zonte: Autêntica, 2010.

BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

BUTTERMAN, Steve. Invisibilidade vigilante: representações midiáticas da


maior parada gay do planeta. São Paulo: nVersos, 2012.

CAMPOS, Luis Augusto; MACHADO, Carlos. A cor dos eleitos: determinantes da


sub-representação política dos não brancos no Brasil. Revista Brasileira de Ciência
Política. Brasília, n. 16, pp. 121-151, janeiro/abril, 2015.

CORADINI, Odaci Luiz. Frentes parlamentares, representação de interesses e


alinhamentos políticos. Revista Sociologia e Política. Curitiba, v. 18, n. 36, Junho
2010, pp. 241-256.

PANFICHI, Aldo (Orgs.). A disputa pela construção democrática na América La-


tina. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

Engel, Stephen. The unfinished revolution: Social movement theory and the


gay and lesbian movement. Cambridge, MA: Cambridge University Press. 2001.

FEITOSA, Cleyton. Notas sobre a Trajetória das Políticas Públicas de Direitos Hu-
manos LGBT no Brasil. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, Bauru, v. 4, n.
1, 2016.

245
FOX, Richard; LAWLESS, Jennifer. (2012). Entrando na arena? Gênero e a decisão
de concorrer a um cargo eletivo. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 8, 2: p.
129-163, mai-ago.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa


era “póssocialista”. Cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, 2006.

MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. Direito Eleitoral. São Paulo: Atlas, 2016.

MACHADO, Raquel Cavalcanti Ramos. A Participação das Pessoas Trans na Polí-


tica: Identidade de Gênero, Cotas de Candidatura e Processo Eleitoral. Disponível
em: http://genjuridico.com.br/2018/03/08/participacao-das-pessoas-trans-na-politica-
-identidade-de-genero-cotas-de-candidatura-e-processo-eleitoral/ Acesso em: 02 de
julho de 2020.

MIGUEL, Luis Felipe. Democracia e representação: territórios em disputa. São


Paulo: Editora da Unesp, 2016.

MIGUEL, Luis Felipe. Desigualdades e democracia: O debate da teoria política.


São Paulo: Editora Unesp, 2016.

MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. “Práticas de gênero e carreiras políticas:


vertentes explicativas”. Revista Estudos Feministas, n. 18, 3: p. 653-679, set-dez.
2010.

PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

SANTOS, Gustavo Gomes da Costa. Diversidade Sexual, Partidos Políticos e Elei-


ções no Brasil Contemporâneo. In: 38° ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NA-
CIONAL DE PÓSGRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS (ANPOCS),
38, 2014, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPOCS, 2014. p. 01-32.

SILVA, Tomaz Tadeu. Teoria cultural e educação: um vocabulário crítico. Belo


Horizonte: Autêntica, 2000.

TEJERINA, B. Movimientos sociales, espacio público y ciudadanía: los caminos de


la utopia. Revista Crítica de Ciências Sociais, 72, 67-97.  2005.

URBINATI, Nadia. Representação como advocacy: um estudo sobre a deliberação


democrática.Política e sociedade.n 16 p. 51-88. 2010.

246
ANÁLISE DA REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA DA APRE-
SENTADORA DO PROGRAMA AGROINSPIRADORAS

Wenya Alves Alecrim37

INTRODUÇÃO

O programa especial Agroinspiradoras foi exibido em janeiro de 2017 e


2018 pelo Canal Rural (CR). De acordo com o material de divulgação38 usado pelo
CR para apresentar o projeto, o programa em formato de bate-papo com mulheres de
várias regiões e idades diferentes, visava abordar os principais temas na vida delas
como “sucessão familiar, equilíbrio na gestão dos negócios, o papel na vida pessoal
e visão feminina no comando das propriedades rurais”.

Os programas foram planejados para terem 44 minutos, divididos em três blo-


cos e, além de serem exibidos na TV, foram replicados num blog do canal com o
mesmo nome: Agroinspiradoras. De acordo com informações publicadas pelo Canal
Rural, havia o interesse em continuar com o programa televisivo em 2019, porém,
por “conta de agenda e de compromissos, o blog (que deu origem ao programa) se-
renamente “cochilou”. Até que um novo despertar surgiu em 2019”, sob o comando
de outras três mulheres. A partir do blog, Roberta Paffaro (jornalista e diretora de
Desenvolvimento de Mercado) e mais três amigas escreveram um livro contando
histórias de mulheres, que foi lançado durante o maior congresso de mulheres do
agronegócio do mundo, realizado em outubro em São Paulo (Congresso Brasileiro
da Mulher do Agronegócio).

Neste artigo, nossa proposta é observar qual a representação midiática


da apresentadora do programa Agroinspiradoras, Tereza Vendramini (mais conhe-
cida como Teka). O foco é a maneira como a mídia a trata e a produção de sentido
que essa narrativa pode gerar. Ao iniciar por esta análise pretendemos compreender
37 Doutoranda em Comunicação pela Universidade de Brasília (UNB). É coordenadora dos cursos de
Comunicação e professora univesitária na faculdade Unibrás. E-mail: [email protected]
38 In www.canalrural.uol.com.br . Acesso em setembro de 2019.

247
quem é a mulher que é a âncora do programa, objeto de uma pesquisa maior que
desenvolvemos. A biografia de Teka Vendramini, pode nos ajudar a traçar um pano-
rama sobre esta personagem e por fim dar suporte para a compreender a imagem da
mulher agricultora, por meio da mídia.

A biografia de Teka é representativa, ela é presidente do Núcleo Feminino do


Agronegócio (NFA), um grupo formado por 25 mulheres, referências no agro. Paulista
de Adamantina, graduada em Sociologia pela USP, administra hoje uma propriedade
no interior de São Paulo, após a morte do pai. Além disso, possui com a família outras
duas fazendas, em Mato Grosso do Sul. Neste sentido, cabe a nós compreender por
meio da Análise Crítica da narrativa qual a representação desta mulher que emana
das mídias em questão.

Historicamente conquistar espaço e reconhecimento é um desafio para a mu-


lher que atua em qualquer área e no agronegócio não é diferente. Talvez por esse
setor ser culturalmente/tradicionalmente visto como masculino, os desafios são ainda
mais evidentes, que abrem espaço para o preconceito (ALMEIDA, 2014). O nosso
olhar se volta nesta pesquisa para as mulheres que estão diretamente ligadas ao
agronegócio, a produção em grande escala, a industrialização: a mulher agricultora.

O Canal Rural tem uma das maiores audiências segmentadas39. Foi fundado
em 1996, pela Globosat, posteriormente foi vendido para a J & F participações, hol-
ding que controla a JBS, o maior frigorífico no setor de carne bovina do mundo. Tem
sede em São Paulo, porém conta com escritórios espalhados pelo país. Possui exibi-
ção por antena parabólica ou por TV a cabo. Em 2011 lançou uma plataforma on line
para ancorar boa parte do conteúdo exibido na TV. Entre a comunidade agricultora
é uma referência por contar com informações técnicas e em vários subsegmentos
como pecuária de corte, leite, cultivo de grãos entre outras atividades ligadas ao agro.

39 De acordo com pesquisa apresentada no portal do Canal Rural, a TV detém 47% da audiência seg-
mentada. A pesquisa aponta dados da Ipsos Marplan. In: https://docplayer.com.br/60184289-Agroinspirado-
ras-mulheres-no-agronegocio-brasileiro.html. Acesso em novembro de 2019.

248
REVISÃO TEÓRICA

Sobre feminismo e gênero

Para falarmos da mulher no agronegócio é preciso compreendermos, nem


que seja brevemente, a respeito de alguns conceitos entre eles feminismo e gênero.
No final do século XIX configurou-se um fenômeno que ficou conhecido como pri-
meira onda do feminismo. Este período é conhecido como sufragismo e voltava-se
principalmente a luta por direitos no campo político, principalmente ao voto. Lutou-se
por direitos igualitários e contra a discriminação. “O objetivo era retirar as mulheres
da invisibilidade do mundo privado, não havendo uma elaboração teórico-política a
respeito das diferenças e da desconstrução da universalidade do sujeito masculino
e, muito menos, do feminino” (PINHEIRO, 2016, p.9).

Em 1927 uma mulher se alistou para votar pela primeira vez, Celina Guima-
rães Viana, de Mossoró, no Rio Grande do Norte, e outras 20 mulheres ficaram regis-
tradas na História brasileira pela conquista. O Senado, porém, invalidou os votos da
eleição na qual elas participaram por não aceitar o voto feminino. Voto válido mesmo
só em 1933.

A segunda onda do feminismo intensifica-se nos anos 1960, a mulher des-


ta vez reivindica o direito ao trabalho. O movimento que começa na França e nos
Estados Unidos busca direitos iguais e outros exclusivamente femininos como, por
exemplo, o aborto.
Já nas décadas de 1960 e 1970, buscando questionar esta supos-
ta naturalidade da divisão social e hierarquizada entre homens e
mulheres, bem como a epistemologia também supostamente neu-
tra, o movimento feminista cunhou o conceito de gênero. O termo
gênero teve seu uso inicialmente difundido por feministas ameri-
canas para enfatizar o caráter fundamentalmente social das distin-
ções baseadas no sexo, ou seja, havia a rejeição ao determinismo
biológico embutido em termos como sexo e diferença sexual (PI-
NHEIRO, 2016, p)

249
Em uma publicação feita pelo Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea), Luana
Pinheiro procura explanar uma pouco mais sobre feminismo entre os anos 1900 e
2000, ao que muitos pesquisadores chamam de terceira onda. Para a autora, o
feminismo construiu, como seu sujeito de luta política, a categoria mulher e parado-
xalmente também uma categoria universal. Desde a década de 1990, porém, este
sujeito totalizador tem sido fortemente questionado. “De uma pretensa unicidade em
torno do conceito de mulher, tem se hoje uma pluralidade de sujeitos já descritos até
mesmo como hifenizados: mulher-negra, mulher-homossexual, mulher-camponesa-
-pobre” e nos permita acrescentar a esta lista a nomenclatura mulher-agro. Para
Pinheiro (2016), o feminismo é um movimento ao mesmo tempo teórico e de luta polí-
tica. Por meio das questões políticas é possível começar a compreender os embates
em torno da construção de seu sujeito, a desconstrução teórica da categoria mulher.
Nesta fase, observa-se questões de classe e sociais.

Muitos pesquisadores ainda divergem se já vive-se a pós-modernidade do


conceito. Até então, a fala principal do movimento era a respeito da igualdade. Ago-
ra fala-se em diferenças. Vargas e Brites (2018) explicam que a “quarta onda” in-
clui temas como o assédio nas vias públicas e no ambiente de trabalho, a violência
sexual nos campi universitários entre tantos outros. Esta nova fase do movimen-
to teria se resinificado principalmente a partir de 2012/2015. Com a força da inter-
net, muitas campanhas ganharam espaço, entraram no debate público, a maioria,
é claro, virtual. Algumas hashtags como #PrimeiroAssédio, #MeuAmigoSecreto e
#AgoraÉqueSãoElas viralizaram na rede e contribuíram para um debate que gira
em torno de feminismo, preconceito. “Nana Queiroz, diretora executiva da revista
virtual AzMina, site de jornalismo que se dedica a tratar de temas feministas, disse
que os termos são usados para se referir ao feminismo após o advento da internet”
(CAZARÉ, 2017).

Apesar das discussões se já estamos vivendo na quarta onda ou não, a bem


da verdade é que as reflexões a respeito desse assunto tem chamado mais a aten-
ção e força nos últimos anos.

250
GÊNERO

Para Jeffrey Weeks (apud LOURO 2000 p.29) os códigos e identidades se-
xuais têm sido frequentemente forjados nesse complexo processo de definição e
autodefinição, tornando a moderna sexualidade um tema central para o modo como
o poder atua na sociedade moderna. O pesquisador é didático e faz distinção entre
os termos sexo (que abarca diferenças anatômicas, internas e externas aos corpos,
dadas quando se nasce. Os significados são associados a processos históricos e
sociais) e gênero (que aporta a diferença social entre homens e mulheres).

O pensamento da professora Liliane Machado (2006, p. 30) também segue


esta mesma linha. Para ela, os gêneros são construídos e as mídias participam des-
sa construção, o conceito não está atrelado ao de diferença sexual. Louro (2000)
corrobora com esta teoria.

No entanto, podemos entender que a sexualidade envolve rituais, linguagens,


fantasias, representações, símbolos, convenções... Processos profundamen-
te culturais e plurais. Nessa perspectiva, nada há de exclusivamente “natural”
nesse terreno, a começar pela própria concepção de corpo, ou mesmo de na-
tureza. Através de processos culturais, definimos o que é — ou não — natural;
produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente,
as tornamos históricas. Os corpos ganham sentido socialmente. (LOURO,
2000, p.5).

Entende-se que o jeito não só que olhamos para o outro, mas também como
reagimos envolve de fato questões políticas sociais e culturais. Para alguns estu-
diosos o conceito de gênero perpassa, já há alguns anos por, um desenvolvimento.
Piscitielli (2002) explica que o conceito foi cunhado a luz das teorias sociais sobre a
diferença sexual e disseminou-se mesmo no Brasil a partir da década de 1980. O
que pretendemos aqui, mesmo que brevemente, é explicitar que as questões de gê-
nero também aparecem no setor de agronegócios e que podem reverberar sobre o
discurso produzido pela mídia especializada. Para Hall (2003), é impossível abstrair
a análise da cultura das relações de poder e das estratégias de mudança.

Pois bem, retornemos a Piscitielli. Para a autora, à época, esse novo conceito

251
residia num espaço em que se permitia olhar a realidade social de maneira diferente.
Foi entre os acadêmicos que as discussões ganharam espaço. “As diversas corren-
tes do pensamento feminista afirmam a existência da subordinação feminina, mas
questionam o suposto caráter natural da subordinação” (2002. p. 65). Esta subor-
dinação seria construída a partir de como a mulher é construída socialmente. Quer
dizer, ao ser construído, pode ser modificado. Na igualdade de direito, além disso, é
comum a confusão entre gênero e mulher e neste sentido o estudo sobre gênero se
desenvolveu no marco dos estudos sobre mulher.

Rubin Reiter define sexo/gênero como um “conjunto de arranjos através dos


quais a matéria prima biológica sexo humano e da procriação é modelada pela inter-
venção social humana”. Para a autora, gênero é um imperativo da cultura que opõe
homens e mulheres. Reiter (1975 apud PISCITELLI, 2001, p. 12) ressalta ainda que
as posturas das autoras que discutem o conceito de gênero, em geral, são diferentes:

Elas oscilam entre realizar uma crítica a várias das ideias associadas a distin-
ção sexo/gêneros procurando saídas, sem abandonar, porém princípios as-
sociados a noção de gênero, ou ao contrário, procurar categorias alternativas
uma vez que pensam o gênero como par inseparável numa distinção binária
(1975 apud PISCITELLI, 2001, p. 12).

Portanto, verifica-se que os movimentos feministas envolvem uma pluralida-


de de pensamentos. O feminino e as questões de gênero, se estabelecem entre as
opressões que as mulheres são submetidas e ecoam por meio de suas vozes, tantas
vezes sufocadas pelo sistema cultural.

O MULHER NO UNIVERSO AGRO

O Brasil é um país agrícola, uma dos maiores exportadores de alimentos.


Produziu cerca de 240 milhões de toneladas de grãos em 2018 e é o maior produtor
de proteína animal do mundo. A produção agrícola é realizada não só por pequenos
como também por grandes produtores e neste cenário se insere a mulher agricultora.
De acordo com o último Censo Agropecuário, do Instituto Brasileiro de Geografia e

252
Estatística (IBGE)40, em 2006, elas representavam pouco mais de 12% dos produto-
res rurais. Em 2017 passaram a ser 18% do total. Em 1,06 milhão de propriedades a
administração é dividida entre o casal. A maioria das mulheres que tocam as proprie-
dades sozinhas ou em parcerias, tem idade entre 25 e 45 anos.

Os números do IBGE são semelhantes aos de uma pesquisa feitas pela Asso-
ciação Brasileira do Agronegócio (Abag), que publicou uma pesquisa como título “To-
das as Mulheres do Agronegócio”, onde apresentou dados da mulher antes e depois
“da porteira”. Parte dos dados coletados nos ajudam a entender o cenário em que
está inserida a representação da mulher em programas especializados.

Os dados desta pesquisa mostraram que as mulheres são cobradas a desem-


penhar outros papeis que a sociedade lhe atribui, além do de agricultora. O mesmo
estudo revela que há uma predominância de mulheres que são proprietárias ou só-
cias das propriedades rurais (cerca de 60% das entrevistadas), o que mostra a par-
ticipação no setor.

Em busca de melhor infraestrutura, proprietárias e trabalhadoras rurais mais


jovens, optam por morar nas cidades, mas continuam com a lida na atividade rural.
Mais da metade das entrevistadas (54,4%) moram em cidades e trabalham no cam-
po. Em muitos casos a produção é tratada apenas como um negócio, e por isso mes-
mo a força de trabalho é investida somente na propriedade (38%). Mas há também a
mulher que nasceu e cresceu no campo, tendo a propriedade essencial com hábitos
e cultura, (ABAG, 2017). Algumas das informações apresentadas aqui são que mos-
tram do ponto de vista geográfico e estatístico quem são as mulheres do agro. Nossa
intenção e averiguar e apresentar como a mídia representa essa mesma mulher.

METODOLOGIA

Compreender a narrativa vai muito além de estar ciente do seu significado.


“Um discurso está carregado de intencionalidades”. A frase é de um dos pesquisa-
dores da teoria da Análise Crítica da Narrativa, Luiz Gonzaga Motta. Para o autor,
a narrativa é um modo de expressão universal que atravessa o conteúdo do jorna-
40 Disponível in https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/. Acesso em novembro de 2019.

253
lismo, do cinema da telenovela e das novas mídias. Por meio dessa metodologia e
teoria, pretendemos compreender quais as intencionalidades implícitas e explícitas
na narrativa midiática acerca da pecuarista Teka Vendramini. Por meio desta teoria
interpretativa poderemos compreender como os “homens articulam sentidos através
da comunicação narrativa” (MOTTA, 2006, p.11).

A narrativa nos permite perceber que o homem não apenas representa o mun-
do, mas o constitui na medida em que nomeia e classifica. “As narrativas não repre-
sentam simplesmente a realidade: elas apresentam e organizam o mundo, ajudam
o homem a construir a realidade humana” (MOTTA, 2012, p. 89). A narrativa é uma
construção discursiva, um texto linguisticamente organizado para dar sentido às nos-
sas experiências de vida num desenrolar lógico e cronológico (MOTTA apud MOTA,
2008). “As narrativas criam significações sociais, são produtos culturais inseridos em
certos contextos históricos, conformam as crenças, os valores, as ideologias, a polí-
tica, a sociedade inteira” (MOTTA, p. 121).

O discurso midiático se serve das construções de sentido produzidos pelo tex-


to e contexto de um fato. O que veremos a seguir é qual o sentido produzido, qual a
imagem que reverbera por meio da mídia a respeito da pecuarista e apresentadora
do programa.

CONSTRUINDO O CORPUS

Em dezembro de 2016, Teresa Cristina Vendramini, assumiu a posição de


Diretora Executiva da Sociedade Rural Brasileira41, sendo a primeira mulher em 98
anos de associação. Nesta função ela se tornou responsável pela estruturação do
comitê de pecuária no Brasil, entre as responsabilidades estavam as de fazer con-
tato com os grupos e associações de pecuária do país e realizar um levantamento a
fim de descobrir o desafios e dificuldades mais encontrados neste setor. Observa-se
41 Fundada em 1919, a Sociedade Rural Brasileira (SRB) é uma associação de produtores rurais de cem
anos que atua na representação política em defesa do setor agropecuário. Apoia a Frente Parlamentar da
Agropecuária (FPA) – que congrega mais de 200 Deputados Federais e Senadores –, a SRB também atua na
articulação de ações, no sentido de assumir lideranças, criar movimentos, questionar, impactar e influenciar a
tomada de decisões em diversos âmbitos, como autarquias públicas, Governos, Congresso Nacional, Ministé-
rios, Secretarias, Tribunais de Justiça, além de movimentos empresariais no Brasil e nas comunidades inter-
nacionais. Disponível In: http://www.srb.org.br/quem-e-a-srb/historia/. Acesso em novembro de 2019.

254
que a partir deste período a visibilidade da pecuarista, que já existia, aumentou e ela
passou a participar ainda mais de programas na mídia segmentada, principalmente
na TV e internet.

Ao fazermos uma busca na internet observamos que existe um vasto conteúdo


publicado a respeito dela, como entrevistas e reportagens, tanto audiovisual quanto
escrita. Por meio da ferramenta de um programa de clipping42 tentamos encontrar pu-
blicações para que fossem feitas as análises. Encontramos 33 produtos, publicados
a partir de 2016, e a maioria em 2017, ano em que ela passou a integrar a SBR. A
maior parte das publicações estão em canais segmentados que são transmitidos por
parabólica. Quando se pensa em sites, os números de inserções aumentam. Além
das grandes mídias como a revista Exame, portal Terra, Valor Econômico, existem
várias entrevistas, reportagens publicadas em sites de empresas ligadas diretamente
ao setor como de grandes indústria e peças agrícolas.

Diante desse cenário, para este trabalho escolhemos como corpus cinco pro-
dutos (05) audiovisuais/entrevistas (por ser o formato de produção midiática que uti-
lizamos no grande corpus) para fazermos a análise. Neste recorte procuramos ser
plural, diversificar, contemplando grandes veículos e publicações na internet. Os pro-
gramas são de entrevista e tem cunho jornalístico (Ver quadro 1).

Quadro 1 – Corpus de análise

N Programa Veículo Assunto/ano Tempo


1 Programa Mara Ramos TV Centro Oeste Chegada a SBR / 2017 11:45
Paulista
2 Jovem Pan News Jovem Pan News 1º Congresso Brasileiro das 11:00
/ Band Mulheres do Agronegócio
2016
3 Programa Mercado Futu- Canal do Boi Fala sobre a SRB 25:08
ro 2017

4 Programa Direito e Certo Terra Viva Chegada à SBR/ pecuária 22:56


2018
5 Giro do Boi Canal Rural Congresso Brasileiro das Mu- 16:32
lheres do Agronegócio 2019
Fonte: A AUTORA, 2019.
42 Clipping é a reunião de matérias sobre determinado assunto publicadas na mídia. É uma ferramenta muito comum
usada pelas assessorias de imprensa. (LORENZON, G. Manual de assessoria de imprensa. 2ª edição. Campos do Jordão: Editora
Mantiqueira, 2006).

255
REPRESENTANTE DE UM GÊNERO

Assistimos ao corpus selecionado por várias vezes. Em boa parte das entre-
vistas Tereza Vendramini está vestida de calça jeans, blusas claras, sapatos ou botas
bem discretos. O cabelo dela é loiro e, na maioria das vezes, está solto. Em boa parte
das entrevistas ela está com o semblante alegre e do ponto de vista visual, não há
elementos que chamem a atenção demais. É a figura de uma mulher branca de meia
idade, a maquiagem é discreta, brincos pequenos e de vez em quando aparece um
colar dourado (Figuras 1 e 2).

Figura 1

FONTE: TV CENTRO OESTE PAULISTA 2017.

Figura 2

FONTE: CANAL DO BOI, 2017.

256
As imagens também revelam um pouco da personalidade da pecuarista. Em
quatro, dos cinco vídeos, Teka está vestida de maneira discreta. Por meio da apa-
rência comum, Teka aparenta ser uma pessoa simples, sóbria, que não pretendia
chamar atenção. Durante as entrevistas observamos também que ela sempre fazia
questão de agradecer, logo de início, ter sido chamada para conversa. Sorridente e
de maneira afetiva destacava a importância da mídia, do veículo, do programa. Não
fala alto e nem é exagerada em gestos e expressões.

Do ponto de vista a Análise Crítica da Narrativa identificamos que o discurso


midiático e da própria pecuarista figuraram principalmente sobre dois aspectos: as
questões de gênero, a negação ao gênero e foi assim que categorizamos o material
analisado.

Em todos as cinco entrevistas analisadas é recorrente a fala tanto dos jornalis-


tas/comunicadores como também de Teka Vendramini, de que ela representa não só
o gênero feminino, como também a mulher do agronegócio. Vamos destacar alguns
trechos.

Você tem andado esse Brasil todo, tem dado várias palestras e em especial-
mente conversado com muitas mulheres. O que é que você tem visto nas mu-
lheres do agronegócio brasileiro?. (Mara Ramos/ apresentadora - TV CEN-
TRO –OESTE PAULISTA, 2017).
[..] eu acredito que você inspira muitas mulheres e você também se inspira
através do que você conhece por aí né” (TV CENTRO –OESTE PAULISTA,
2017).
No ano passado seu participei, eu falo 15, mas foram mais de 15 eventos de
mulheres pelo Brasil. Sempre convidadas por mulheres que estão aí. [...] elas
tão me chamando, tô participando de tudo, mas sou eu que ganho (Teka Ven-
dramini/ TV CENTRO –OESTE, 2017)

Nos recortes acima destacamos as palavras “conversado, inspira e convida-


das”. Do ponto de vista da ANC compreende-se que, dentro do contexto inserido,
a pecuarista foi legitimada pelo campus e pela mídia para falar e representar este
público: mulheres do agronegócio. No último trecho, a pecuarista, destaca que tem
viajado muito pelo país para falar com mulheres, e quando diz que é “convidada” por
elas, produz o sentido de que é uma pessoa com as quais as demais queriam estar,

257
que ela tem algo para dizer.

Em outra reportagem, desta vez exibida pela TV Jovem Pan News, na inter-
net e pelo rádio, o apresentador do programa fala da pecuarista como “uma mulher
à frente do seu tempo, que tem representado tantas outras do país”. Ele também dá
destaque aos cargos institucionais que ela ocupa e diz que ela não só representa,
como também inspira outras mulheres. A entrevista é sobre o primeiro Congresso
Nacional das Mulheres do Agronegócio, realizado em 2016.

Eu estou aqui neste momento, na rede jovem Pan com uma da estrelas des-
se encontro: a Tereza Vendramini. Ela é presidente do Núcleo Feminino do
Agronegócio, produtora e uma líder espetacular desse nosso mundo do
agro, feminino que cada vez mais vai tomando proporções de liderança [..]
é uma inspiradora desse nosso programa, (Paulo Tejon/ apresentador - TV
JOVEM PAN NEWS, 2016).

A imagem de líder também aparece neste momento acompanhada do adjetivo


“espetacular”. Em outra reportagem a apresentadora Samanta Pineda diz: “Eu tô
aqui com a mulher da pecuária”. A pecuarista por sua vez não declina e comenta:
“Olha a responsabilidade de ser a mulher da pecuária”. Ao dizer que Teka é “A” mu-
lher da pecuária conferiu a ela capital não só econômico como também social dentro
do universo agro (BOURDIEU, 1996).

Por meio destas análises, identificamos que a mídia apresenta e representa a


pecuarista como uma mulher que fala em nome de uma classe: das mulheres agri-
cultoras. Também observamos que Teka recebe/ reconhece este discurso, de falar
em nome de muitas, mas aparenta ser pés no chão, sabe que é uma mulher que tem
história, mas que é igual a muitas outras pelo país.

NÃO AO GÊNERO

As questões de gênero estão relacionadas ao contexto social e cultural. É


notório que nos últimos 30 anos tem se falado mais a respeito do assunto. E no agro-
negócio, um setor hegemonicamente masculino as discussões começam a ganhar
espaço. Por meio da análise as entrevistas observamos que em alguns momentos a

258
pecuarista “rejeita” o “título” que adquiriu, ou mesmo que foi cunhando pela mídia ao
assumir a diretoria executiva da SBR. Nos trechos a seguir, pode-se perceber que al-
guns apresentadores às vezes se sentem desconfortáveis quando Teka diz que “isso,
de primeira mulher a assumir um cargo na SBR é coisa do passado”.

Na entrevista, exibida pela TV Centro Oeste, em 2017, no programa “Mara


Ramos”, Teka Vendramini é entrevistada durante 11 minutos. A pecuarista e a entre-
vistadora estão sentadas em cadeiras de madeira, numa espécie de área externa,
existem plantas dos lados e um janela ao fundos. A primeira pergunta que a apresen-
tadora faz é sobre Teka fazer parte da diretoria da Sociedade Rural Brasileira. Teresa
responde dizendo que é um “presentão” participar da SBR, mas logo em seguida ten-
ta minimizar o fato de ter sido a primeira mulher a ocupar uma cadeira da Sociedade:

Participar da Sociedade Rural Brasileira, tá sendo, sabe um presente que


você ganha da vida, um presentão que eu ganhei da vida. Eu acho que existe
sim, óbvio que é um fato de eu ser a primeira mulher, ter um cargo executivo
na Sociedade Rural Brasileira, mas isso passou. Isso aí foi naquele primei-
ro momento, que houve né e aí as pessoas, assim como você falam “nossa é
a única mulher a ter esse cargo e tal, realmente é um fato, um fato marcante,
mas eu acho que a oportunidade que eu tô tendo trabalhar na rural, de estar
junto com aqueles homens, com aqueles conselheiros, aquele pessoal da di-
retoria tá sendo tão especial que esse negócio de mulher já ficou pra trás,
sabe eu brinco, gente eu sou mais um do time, nós tamo [sic] ali todo mun-
do trabalhando junto e eu tô achando ótimo, né porque aí não fica aquela
coisa sabe da mulher, então éee. Não, eu acho que foi importante de falar,
de ser a primeira mulher porque eu, foi uma celebração, isso uma abertura
da rural, um celebração pras mulheres né, então é bacana, mas gente já foi
vambora para outra (TV CENTRO OESTE PAULISTA, 2017).

Por meio do discurso da pecuarista nota-se que a incomoda o fato da apre-


sentadora destacar que ela foi a primeira mulher a se tornar diretora da SBR. No
mesmo trecho Teka se autorreferencia como “mais um do time”, no masculino, não
usa o feminino para falar de si mesmo, destaca que “esse negócio de mulher já ficou
pra trás. Num pequeno trecho, ela nega três vezes o fato que mais chamava a aten-
ção da própria mídia.

Na entrevista para a Jovem Pan News, a situação se repete. José Luiz Te-


jon pergunta se ela já enfrentou algum preconceito por ser mulher. De todo material

259
analisado, apenas nesta situação Teka é questionada diretamente sobre o tema
preconceito de gênero.

Essa pergunta é recorrente, é obvio que sim. Eu fui da uma entrevista e mi-
nha filha me cobrou, porque sempre eu dou uma sublimada na coisa.
Mas eu gosto de pensar que não sou eu que tô no agronegócio que tem um
problema, que é um meio totalmente masculino, são várias mulheres, são,
sabe eu vejo assim engenheiras, médicas qualquer um, em vários setores
da economia, eu gosto de pensar assim. (Teka Vendramini/ TV JOVEM PAN
NEWS, 2016).

Nesta narrativa da pecuarista percebemos que mesmo ao reconhecer que


sim, que há preconceito, Teka deixa claro que ela mesmo evita ficar reforçando este
discurso. Ao considerar que mulheres de outras áreas passam pela mesma situação,
ela tenta “minimizar” a polêmica e ao se “igualar” a outras mulheres, passa a sensa-
ção de encarar o fato com menos seriedade. O fato de não tocar no tema preconceito
já foi percebido até mesmo pela família de Teka e, talvez por isso, nesse momento
ela faça a “mea culpa” e reconheça.

Na entrevista exibida no canal Terra Viva o apresentador toca no assunto


que mais uma vez soa incomodar a pecuarista. Ao dizer que não quer que ela fique
marcada dessa forma, sugere que houve, talvez, um diálogo prévio sobre isso, de
que ela estava sendo marcada por ter sido a primeira mulher na SBR.

[...] e finalmente uma expoente do agro que é a Teka Vendramini, que ajudou
a criar o Núcleo Feminino do agro. Quase um século, não quero que você
fique marcada, o fato é que você é diretora da rural, quero saber como é
lidar com aqueles marmanjos? (TERRA VIVA, 2018)

Ao responder, a pecuarista diz que está tendo chances de conhecer alguns


departamentos: “Agora pra mim qual é oportunidade de ouvir aqueles homens, aque-
las cabeças. Ali tem muito mais do que eu imaginava”. Na mesma entrevista o apre-
sentador diz que esta história de gênero é uma bobagem.

Eu odeio essa história de gênero, essas bobagens todas, mas na TV, al-
gumas, as minhas experiências em trabalhar com chefes mulheres, eu acho
que já te falei isso, algumas delas eu gostava mais, porque elas é de uma

260
objetividade, isso não é só uma característica só das que eu trabalhei. Não
enrola. (TERRA VIVA, 2018).

Após dizer isso, Teka e o apresentador riem, ela comenta que mulher não en-
rola mesmo e em seguida ele parte para outra pergunta sobre algo técnico no traba-
lho da SBR e a entrevista segue. A pecuarista não comenta a visão do apresentador
sobre gênero e ao fazer isso nota-se, mais uma vez, que evita polêmicas, minimiza
o assunto.

No próximo trecho, o mesmo aspecto se repete. Teka está sendo entrevista-


da por uma mulher, Samanta Pineda, do canal Terra Viva. A apresentadora, logo na
introdução do quadro fala, sobre quanto esperava Tereza para um bate-papo, mas
imaginou que ela não tivesse tempo:
__Teka: Eu venho falar um pouco sobre a Sociedade Rural.
__Samanta/apresentadora: Então super novidade isso.
___ Ó tá meio velha, essa novidade tá fazendo uns três meses, quatro
__[...] Como foi esse convite para a Rural, a Rural tem 100 anos e nunca teve uma mulher na di-
retoria?
___ Então tem 98 anos. Olha, pra mim foi uma coisa muito especial, e houve sim esse momento
né, que foi ali em março, teve a eleição, nós fomos eleitos, começamos a trabalhar e muita gente,
muita mulher em geral perguntava muito. Acho que foi um marco, era a hora. [...] Eu tenho tanto
trabalho, já esqueci que foi a primeira mulher
__ Nem precisamos ficar lembrando disso também, isso foi uma curiosidade.
___[...] eu foquei tanto nesse lado, fico tão preocupada no bom sentido, que menina a mulher fi-
cou lá essa coisa de mulher ficou lá pra trás e bora pra frente.
___ Nós somos o Joanzinho, mais um do time (TERRA VIVA, 2017).

Observando o diálogo, logo no início da conversa, nota-se que a apresentado-


ra fica um tanto desconcertada, após Teka dizer que a novidade dela está meio velha.
Isso também aconteceu em outras situações. Logo em seguida, ela destaca que foi
mesmo importante ser a primeira mulher na SBR e neste trecho identificamos uma
dualidade no discurso de Teka. Ora se autorreconhece, ora faz questão de minimizar
a discussão de gênero a partir da chegada dela a SBR. A apresentadora até diz que
não é preciso ficar lembrando disso, e fim Teka usa o masculino para de definir, é um
Joaozinho. Ou seja, não quer ser diferente, a mulher meio a eles, é na verdade um
Joaozinho.

261
CONCLUSÃO

Compreendemos por meio dos discursos que Tereza Vendramini não faz ques-
tão de destacar sua chegada a SBR e isso é exatamente o que a mídia quer destacar.
Ao observar que os apresentadores dos programas em primeiro lugar chamavam a
atenção para este fato, compreendemos que os comunicadores entenderam este
episódio como relevante. Recorremos a Barbeiro (2002), para relembrar que o jorna-
lista, faz seleção dentro de um tema, de uma entrevista, de um produto jornalístico e
nesta seleção dá destaque a temas, que julga relevantes. O jornalismo se pauta no
diferente, nas novidades, e de fato ter uma mulher junto a uma instituição centenária
com a predominância masculina é chamativo, é novidade. O sentido que emana por
meio do discurso midiático acerca da pecuarista nos mostra que as narrativas são
representações que dão significado a vida humana. A mídia, em geral sabe que está
induzindo o receptor para o efeito desejado (MOTTA 2008). Desta forma, sempre
haverá ambiguidades e interpretações possíveis. A relação de linguagens e significa-
dos, entretanto, provocarão sentidos próximos, harmônicos, com o que se pretendia
na materialização do discurso. Por fim, conclui-se que representação construída por
meio do discurso midiático analisado é de que a pecuarista é uma líder, que repre-
senta uma categoria e um gênero, ao passo que a própria Teka tenta minimizar estes
aspectos.

262
REFERÊNCIAS

ABAG. Todas as mulheres do Agronegócio. Sorocaba, 2017.

AGÊNCIA BRASIL.

BARBEIRO H. e LIMA P, R de. Manual de Telejornalismo. Os segredos da notícia


na TV. 2ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2002.

BOURDIEU, Pierre. 1996. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papi-
ros.

CANAL DO BOI. Programa Mercado Futuro. Disponível In: https://www.youtube.


com/watch?v=MceGPi7-mgs. Acesso em novembro de 2019.

CANAL RURAL. Programa Giro do Boi. Disponível In: https://www.girodoboi.com.


br/videos/mulheres-ja-ocupam-30-do-comando-de-fazendas-no-brasil/. Acesso em
novembro de 2019.

CAZARÉ, M. 2015: o ano das mulheres. Disponível In: http://agenciabrasil.ebc.


com.br/direitos-humanos/noticia/2015-12/2015-o-ano-das-mulheres. Acesso em no-
vembro de 2019.

HALL, S. Da diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora


UFMG, Brasília, Representação da Unesco no Brasil, 2003.

INSTITUTO BRASIELIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSICA. Censo Agropecuário


2017. Disponível In. https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/ Acesso em novembro
de 2019.

JOVEM PAN NEWS / BAND. Disponível in: https://www.youtube.com/watch?v=2LG-


ZBmaWOdQ. Acesso em novembro 2016.

LORENZON, G. Manual de assessoria de imprensa. 2ª edição. Campos do Jor-


dão: Editora Mantiqueira, 2006).

LOURO, G. L. O corpo educado. Pedagogias da sexualidade. Traduções: Tomaz

263
Tadeu da Silva 2ª Edição Autêntica: Belo Horizonte 2000.

MACHADO, L. M. M. E a mídia criou a mulher: como a tv e o cinema constroem o


sistema de sexo/gênero. 2006. 244 f. Tese (Doutorado em História) -Universidade
de Brasília, Brasília, 2006.

MOTTA, L. G. Notícias do Fantástico. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.

MOTA, C. M. S. L. Representações da identidade Nacional na notícia da TV.


Brasília: UNB, 2008. 329 p. Tese (Doutorado em Comunicação) - Programa de
Pós-Graduação da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília –
PPGCO, Universidade de Brasília, 2008.

PINHEIRO, L. Os dilemas da construção do sujeito no feminismo da pós-moderni-


dade.

Texto para discussão / Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.- Brasília :


Rio de Janeiro : Ipea, 2016.

PISCITELLI, A. Recriando a (categoria) mulher? In: ALGRANTI, L. (Org.). A prática


feminista e o conceito de gênero. Textos Didáticos, n. 48. Campinas: IFCH/Uni-
camp, 2002, p. 7-42.

SOCIEDADE RURAL BRASILEIRA. Diretoria. Disponível em http://www.srb.org.br/


acesso em 10 de novembro 2019

TV CENTRO OESTE PAULISTA. Programa Mara Ramos Disponível In: https://www.


tvcentrooeste.com.br/quem-somos/. Acesso em novembro de 2019.

TV TERRA VIVA. Programa Direito e Certo. Disponível In: https://tvuol.


uol.com.br/video/direito-amp-certo-entrevista-com-teresa-vendramini-da-sr-
b-04028C1B3860E0916326. Acesso em novembro de 2019.

VARGAS, J. E JUREMA B. A Marcha das Vadias e seu feminismo: Práticas, expe-


riências e conflitos de uma geração de jovens feministas. INTERSEÇÕES [Rio de
Janeiro] v. 20 n. 1, p. 179-195, jun. 2018.

264
AS REPRESENTAÇÕES DA EDUCAÇÃO SEXUAL
ATRAVÉS DO CURRÍCULO E DAS PRÁTICAS DO-
CENTES

Adriane Cássia Silva Coitinho43


Denise Regina Quaresma da Silva44

INTRODUÇÃO

Abordar a temática da educação sexual é uma tarefa complexa e exigente, pois


permeia questões sociais que despertam reflexões e posicionamentos, na maioria
das vezes dissonantes, que se intensificam quando as discussões se referem ao
currículo escolar e as práticas docentes. Por um lado, existem aqueles que estão
convencidos que ao falar sobre a temática na escola, os/as estudantes serão incen-
tivados/as a uma iniciação sexual precoce, outros compreendem a sua importância
“para além do conhecimento do corpo, do desenvolvimento da autoestima, do ensi-
no sobre o exercício da sexualidade de forma segura e responsável e da proteção
contra as violências sexuais”. (FERNANDES E LORENZETTI, 2019. P. 01). Suplicy
(1997, p. 15), defende a educação sexual como uma temática pertinente ao âmbito
escolar, afirmando que “visa colocar o diálogo sobre a sexualidade dentro da sala de
aula, através de professores com o preparo adequado para bem desempenhar essa
tarefa informativa e formativa”.

De fato, no cotidiano das escolas observa-se que questões de gênero e se-


xualidade monopolizam os interesses e a atenção dos/das estudantes. Na maioria
das vezes, eles/elas as elegem como prioridades em relação as atividades propos-
tas pelos/as docentes em sala de aula. Por conta disto, frequentemente, envolvem-
43 Mestranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela Universidade FEEVALE. Especialista em
Orientação Educacional e Pedagoga pela Universidade Luterana do Brasil. [email protected].
44 Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2 - CA ED - Educação. Pós-Doutora em
Estudos de Gênero pela UCES Doutora e Mestre pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Psicóloga.
[email protected].

265
-se em situações que os/as colocam em conflito com o grupo de colegas ou com as
regras de convivência da escola, que tratam tais situações como indisciplina. Seffner
(2011), relata cenas escolares protagonizadas pelos/as estudantes, na tentativa de
se apropriar da sua sexualidade, tais como piadas, brincadeiras, bilhetes, desejos,
relatos de experiências, comportamentos afetivos (toques, beijos, namoro, etc.), em
contrapartida, a timidez demonstrada por alguns/algumas docentes que preferem se
afastar ou encaminhar a orientação dos/as estudantes para longe da sala de aula.

Estudiosas como Sayão (1997), Suplicy (1997) e Quaresma (2013) apontam


em suas pesquisas, que as escolas fracassam na instrumentalização da educação
sexual e que a curiosidade, os questionamentos dos estudantes estão acompanha-
dos por professores/as com pouco conhecimento e que não oportunizam espaços
abertos, para que as crianças ou os adolescentes encontrem respostas, sem de-
saprovações ou estigmas, prevalecendo o ensino dos aspectos biológicos e uma
tendência moralista.

À priori, destaca-se que o conceito de educação sexual eleito para embasar as


discussões deste estudo aborda “uma educação em sexualidade que contempla co-
nhecimentos sobre saúde, corpo humano, identidade, autoconhecimento, sentimen-
tos, bem-estar, responsabilidade, autoproteção e relações”. Sobretudo, uma prática
comprometida com a formação integral dos indivíduos, voltada à vida, ao respeito,
à diversidade e à transformação de comportamentos. (CENTRO DE REFERÊNCIA
EM EDUCAÇÃO INTEGRAL, 2019. p.01).

Diante destes fundamentos, elaborou-se pressupostos iniciais para o estu-


do, onde sugere-se que a educação sexual no currículo e nas práticas docentes do
Ensino Fundamental permanece ainda reduzida ao estudo do aparelho reprodutor,
métodos contraceptivos e estratégias de prevenção de doenças sexualmente trans-
missíveis, assim como na sala de aula manifestam-se contornos de masculinidades
e feminilidades, que re(produzem) situações de discriminação, exclusão entre gêne-
ros e as dificuldades dos/das docentes para falar abertamente, com argumentação
e afetividade sobre o tema.

Esta pesquisa de abordagem quali-quantitativa, é uma revisão sistemática da


literatura realizada na Base de Teses e Dissertações da CAPES no período de agosto

266
de 2013 a agosto de 2019, como objetivo de compreender quais as concepções dos/
as pesquisadores/as brasileiros/as sobre a educação sexual, compreendendo os
aspectos relacionados a sua história no Brasil, a sua institucionalização no currículo
escolar e as suas representações nas práticas docentes no Ensino Fundamental,
determinando assim a importância de novos investimentos em pesquisa.

A análise bibliométrica dos registros das publicações encontradas permitiu co-


nhecer o atual cenário da produção acadêmico-científica. Os resultados foram ana-
lisados a partir da perspectiva da análise de conteúdo proposta por Bardin (2011),
sendo as publicações incluídas neste estudo classificadas em duas categorias emer-
gentes: (a) formalização do currículo de educação sexual no Ensino Fundamental;
(b) práticas docentes sobre educação sexual no Ensino Fundamental.

Este estudo está divido em quatro seções. Na primeira seção apresenta-se em


linhas gerais, a história da educação sexual no Brasil no período de 1500 a 2019.
Na segunda seção é apresentada a metodologia utilizada para o desenvolvimento
das etapas da pesquisa, seguida pela terceira seção que apresenta os resultados da
análise bibliométrica das publicações selecionadas e pôr fim, a quarta seção, traz a
análise e discussão das categorias emergentes.

EDUCAÇÃO SEXUAL NO BRASIL NO PERÍODO 1500 a 2019

Em 07 de setembro de 2019, juntamente com divulgação das notícias sobre as


comemorações alusivas à Independência do Brasil, nos meios de comunicação na-
cionais e internacionais, foi amplamente comentada a nota em que a coordenação
da XIX Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro, anunciou que iria recorrer da
decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), a fim de garantir o pleno
funcionamento do evento e o direito dos expositores a comercializar obras literárias
sobre as mais diversas temáticas como prevê a legislação brasileira. Isso, após a
decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro autorizar o município a recolher
45
livros com conteúdo LGBT+ , pois segundo os gestores municipais, os exemplares
45 Termo aprovado no Brasil em 2008 para debater os direitos humanos e políticas públicas de gays,

267
estavam sendo comercializados, sem o devido esclarecimento ao público e sem a
embalagem apropriada. A nota argumenta ainda, que a Bienal do Livro é democrá-
tica e plural, onde todos são bem-vindos e não aceita a ideia de que um livro que
contenha a ilustração de um beijo homossexual seja comparado a pornografia46.

Este recorte do cenário cultural brasileiro, contribui para ilustrar a existência de


diferentes concepções sobre as questões de sexualidade e identidade de gênero
na sociedade, e ressalta a importância deste estudo revisitar os marcos teóricos da
história da educação sexual no Brasil, para posteriormente proceder da análise
da literatura selecionada sobre o tema. Neste aspecto, segundo Augusto (2015),
compreender o movimento, as intencionalidades e a trajetória da educação sexual
no Brasil, também é conhecer e considerar a influência do contexto histórico-social
do período no qual as ações ocorreram ou as publicações foram escritas.

No início do período Colonial no Brasil (1500 a 1822), segundo Freyre (2004),


o homem branco disfrutava de total liberdade em suas práticas sexuais, inclusive,
elas representavam uma forma de autoafirmação de sua masculinidade e implica-
vam na sua posição social. Bassegio e Silva (2015), corroboram essa ideia, afir-
mando que após a descoberta do Brasil, o homem branco despertou o interesse da
mulher índia, que num primeiro momento, entregou-se a ele em troca de presentes,
como espelhos e pentes, e isso era uma prática aceita pela sociedade da época
sem questionamentos. Com o passar do tempo, os colonizadores perceberam que
precisavam de trabalhadores mais resistentes que os indígenas, assim, com a es-
cravidão teve início a exploração sexual da mulher negra, que não era considerada
nada além de um bem de seus proprietários.

Neste período, somente o homem tinha acesso à educação escolar, a mulher


branca, referência para a formação da família e para a transmissão dos valores cul-
turais dos colonizadores europeus, era preparada em casa para vida doméstica e
religiosa, permanecendo reprimida, considerada propriedade do pai ou do marido. A
partir de 1545, com a chegada dos Jesuítas no Brasil, a educação letrada foi basea-
da na catequização, os índios em escolas improvisadas e os filhos dos colonos em

lésbicas, bissexuais, travestis e transsexuais. www.direito.mppr.mp.br


46 Conteúdo integral da nota disponível em https://www.facebook.com/bienaldolivro/.

268
colégios, seguindo um documento curricular chamado Ration Studiorum47 que exi-
gia dos estudantes que respeitassem os princípios morais cristãos, onde estavam
presentes aspectos relacionados ao processo de disciplinação sobre a sexualidade
para manutenção da sociedade, ou recebiam punições e castigos.

Em consequência dessa configuração sociocultural da época foram criados


os Tribunais do Santo Ofício da Inquisição (1591), que através de manuais, regras,
inquéritos, julgamentos e punições buscava conter e educar comportamentos se-
xuais considerados desrespeitosos e criminosos em relação às diretrizes estabeleci-
das pela Igreja Católica, tais como a bigamia, luxúria, o sexo libidinoso. (RIBEIRO,
2016).

O Brasil do XVII foi caracterizado pela interiorização do processo de colo-


nização em busca de riquezas, ocupação do território e a luta dos jesuítas contra
a escravidão indígena. O Século XVIII foi marcado por revoluções internas, lutas
pela demarcação de terras entre Portugal e Espanha e pela expulsão dos jesuítas do
Brasil, o que causou a degradação da educação e consequentemente dos valores
morais e sociais. Estes dois séculos transcorreram com o padrão de comportamento
da sociedade brasileira praticamente inalterado. (RIBEIRO, 2004).

No século XIX, segundo dados eclesiásticos e estimativas, no país já viviam


cerca de três milhões de habitantes, as questões de saúde eram preocupantes,
principalmente com a ocorrência de epidemias de doenças como febre amarela e
tuberculose. A partir da Independência do Brasil, o pensamento científico passa a se
sobrepor sobre as normas religiosas, referenciando na higiene e na saúde as ques-
tões sobre sexualidade. Neste período Imperial, a literatura sobre educação sexual
passa a existir através de livros, teses e principalmente em manuais que tratavam
da boa conduta sexual, baseada em princípios higienistas e moralistas. (RIBEIRO,
2004).

Na transição do século XIX, para o século XX, com o crescimento industrial, a


sociedade passou por significativas mudanças político-sociais. As grandes cidades
atraiam colonos que procuravam melhor qualidade de vida, mas que terminavam
47 Código de ensino que se pautou a organização e a atividade dos numerosos colégios que a Compa-
nhia de Jesus fundou e dirigiu durante cerca de dois séculos no mundo. https://ecclesiae.com.br/o-metodo-
-pedagogico-dos-jesuitas.

269
se submetendo a condições precárias de trabalho e a exploração da mão de obra
infantil e feminina. Os médicos sanitaristas, preocupados com as epidemias e com a
mortalidade infantil nos espaços urbanos, principalmente entre a classe mais pobre,
realizaram muitas publicações de caráter higienista que orientavam sobre saúde,
moral e educação sexual. Era necessário cuidar da população, educando-a a de-
senvolver novos hábitos, pois consideravam as doenças um fenômeno social que
colocava em risco a mão de obra trabalhadora. Os higienistas foram os primeiros a
considerar uma interversão na área da saúde através dos cuidados e da educação
das crianças. Isto se confirma efetivamente quando, a partir de 1842, o ensino de
higiene seria obrigatório, em todas as escolas durante uma hora por semana. (FER-
NANDES; OLIVEIRA, 2012).

Nas primeiras décadas da República, início do século XX, a produção cientí-


fica sobre educação sexual se intensificou, principalmente através do interesse de
médicos, educadores e sacerdotes. Destacou-se, as ideias do médico neurologista
e professor da Universidade de Medicina do Rio de Janeiro, Antônio Austregésilo,
que escreveu em 1919,” Psiconeuroses e sexualidade. I – a neurastenia sexual e
seu tratamento, considerada a obra mais antiga, encontrada no Brasil sobre edu-
cação sexual. No livro, apresenta conceitos a respeito do que chamou de desvios
funcionais do instinto sexual, tais como a indiferença ao homossexualismo, sonhos
eróticos, crimes sexuais, excesso de excitação, entre outros. Este médico também
compartilhou nas suas obras publicadas posteriormente, a contribuição das áreas da
Sociologia, Psicanálise e Antropologia sobre o desenvolvimento sexual, bem como
sobre a educação sexual nas escolas para jovens. (AUGUSTO, 2015).

Outro grande incentivador da educação sexual na década de 30 no Brasil, foi


José de Albuquerque, o médico, considerado radical na época, trabalhou para des-
construir a ideia de que a sexualidade era somente uma função biológica natural,
atividade humana perigosa, sobre a qual não se deveria falar em público. Criou o
Círculo Brasileiro de Educação Sexual, no Rio de Janeiro, onde valorizava a partici-
pação das mulheres em suas campanhas, principalmente as pedagogas, desenvol-
veu pautas importantes sobre o feminismo e diversas ações inovadoras sobre edu-
cação sexual, tais como conferências públicas, filmes, hinos, programas de rádio,

270
cartões postais, museu e pinacoteca. (REIS; RIBEIRO, 2015). Cercada pelo grande
interesse dos pesquisadores da época, em 1930, a educação sexual é introduzida
na escola, trabalhada a partir de pressupostos científicos e relacionada com a fun-
ção reprodutiva, como forma de diminuir a curiosidade das crianças. (REIS, 2006).

Entre as décadas de 1940 a 1950, conforme afirma Sayão (1997), não foram
registradas iniciativas evolvendo a educação sexual, uma vez que a Igreja Católica
centralizava a organização e o funcionamento do sistema educacional e controlava
as publicações sobre o tema no Brasil.

Em meados de 1960, sob a influência de autores como Antônio Austregésilo


e José de Albuquerque, educadores consolidaram a educação sexual nas escolas
de São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Cada escola desenvolveu a temá-
tica com uma metodologia diferente, eram seminários organizados com base nos
assuntos sugeridos pelos estudantes, aulas sobre a reprodução humana (aspectos
biológicos), que evoluíram para o esclarecimento de dúvidas e medos dos adoles-
48
centes. Todavia, logo foram interrompidas pelo Golpe Militar de 1964 , consideradas
impróprias, sendo suspensas e reprimidas juntamente com manifestações políticas,
sociais e culturais pela Comissão Nacional de Moral e Civismo, que afirmava a po-
sição oficial brasileira no sentido de que era reponsabilidade da família a educação
sexual dos filhos, podendo a escola, inserir ou não, o tema em programas de saúde.
(RIBEIRO, 2004; LARROSA, 1994).

Em 1978, o Conselho Federal de Educação aprovou a implantação da disciplina


intitulada Programa de Saúde na Escola no currículo do 1º e 2º Grau, atuais Ensino
Fundamental e Ensino Médio, respectivamente, que se aproximava de questões
físico-biológicas sobre o corpo humano, sem abordar questões de sexualidade. A
disciplina foi suprimida com a realização dos realinhamentos curriculares ocorridos
nas décadas seguintes. (SFAIR; BITTAR; LOPES, 2015).

Nos anos 80, a luta contra a ditadura, abarcou além dos direitos civis e políticos,
a discussão sobre a sexualidade e reprodução humana, ressurgindo assim as vozes
que defendiam a inclusão da educação sexual no currículo escolar, entretanto, per-
manecendo ainda a nível de discurso. (LARROSA, 1994).
48 Golpe Militar de 31 de março de 1964: conjunto de acontecimentos que culminaram com a deposição
do presidente João Goulart e instalação da ditadura militar. (RIBEIRO, 2004).

271
No início da década de 90, o combate a AIDS e a prevenção da gravidez inde-
sejada na adolescência, ressignificou e reforçou a necessidade da educação sexual
nas escolas. Diversos municípios desenvolveram projetos de educação sexual, me-
recendo destaque o trabalho desenvolvido nas redes municipais de ensino de São
Paulo e Porto Alegre. (RIBEIRO, 2012).

Em 1997, ocorreu novamente a aproximação da educação sexual com o Sis-


tema Nacional de Educação, conforme afirma Ribeiro (2012), quando o Ministério
49
da Educação implantou os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs para o En-
sino Fundamental, incluindo a educação sexual no conjunto dos seus Temas Trans-
versais, porém não de maneira obrigatória, uma vez que o documento tinha caráter
orientador, com o objetivo de subsidiar a elaboração dos currículos escolares e o
trabalho docente. No volume dedicado a “Orientação Sexual”, o documento descre-
ve que sua finalidade é contribuir para que o estudante possa exercer sua sexuali-
dade com prazer, reponsabilidade, no exercício de sua cidadania. Enfatiza o respeito
a si mesmo e ao outro, além da importância do/a estudante ter acesso a informações
sobre direitos básicos das políticas públicas de saúde. (BRASIL, 1997).

Em 2007, a ideia do Programa Saúde na Escola – PSE é retomada como polí-


tica intersetorial, com repasses garantidos pelo Governo Federal, através do Minis-
tério da Saúde e do Ministério da Educação. Atualmente, orienta 12 (doze) ações que
devem ser realizadas na rede de escolas dos municípios que optarem pela adesão
ao programa, porém somente à nível de ensino médio apresenta estratégias relacio-
50
nadas ao direito sexual e reprodutivo, bem como a prevenção de IST/AIDS . (RIO
GRANDE DO SUL, 2019).

O Ministério da Educação - MEC homologou em dezembro de 2017 a versão


final da nova Base Nacional Curricular Comum – BNCC, sendo sua implantação obri-
gatória em todos os sistemas de ensino até o final do ano de 2019. O texto recebeu
muitas críticas pela supressão das expressões “orientação sexual” e “gênero”, en-
tretanto, preconiza que o/a estudante deverá desenvolver competências de empatia
e respeito a diversidade (BRASIL, 2017). O argumento apresentado pelo MEC para
49 Documento que reúne um conjunto de referenciais que objetivam orientar e garantir “a coerência” no
planejamento do trabalho docente nas diversas áreas do conhecimento. (MEC,2006).
50 Doença crônica causada pelo vírus HIV que danifica o sistema imunológico e interfere na capacidade
do organismo lutar contra outras infecções. (RIO GRANDE SO SUL, 2019)

272
justificar a retirada dos termos defende que a discussão provocaria dissenso entre
as representações de identidades sociais constituídas no Brasil, porém sinalizou
com a possibilidade do Conselho Nacional de Educação – CNE elaborar poste-
riormente um documento com orientações sobre o tema, (PORTAL DE OLHO NO
PLANO, 2018), o que até o momento, não ocorreu. Através de uma leitura atenta do
documento norteador, observa-se que a referência direta sobre a temática somente
foi incluída na área de conhecimento Ciências da Natureza, na Unidade Vida e Evo-
lução, como habilidade a ser desenvolvida no oitavo ano do Ensino Fundamental.

Nesta perspectiva, atribui-se aos professores/as vislumbrar oportunidades para


desenvolver a amplitude das questões da educação sexual e transformar a sala de
aula num espaço acolhedor para escuta e desconstrução de pré-conceitos através
do diálogo para que o/a estudante expresse suas opiniões e dúvidas com liberdade,
respeito e seriedade.

PROCEDIMENTOS MEDOTOLÓGICOS

Realizou-se um estudo do tipo quanti-qualitativo, bibliográfico, descritivo, ex-


ploratório em publicações selecionadas no Banco de Teses e Dissertações da CA-
PES através do descritor “educação sexual”, compreendendo o período de agosto
de 2013 (ano de implantação da Plataforma Sucupira) a agosto de 2019. Foram
encontrados 227 registros, sendo 54 referentes a teses e 173 a dissertações dos
Programas de Pós-Graduação de instituições de nível superior, públicas ou priva-
das, do Brasil.

Para uma análise criteriosa da qualidade da literatura selecionada, foram ana-


lisados minuciosamente os registros encontrados, objetivando classificá-los confor-
me os seguintes critérios de inclusão: (a) ser tese ou dissertação relacionada ao
tema da educação sexual na escola; (b) estar seu conteúdo disponibilizado virtual e
integralmente; (c) estar redigido em português e se relacionar com estudos realiza-
dos no Brasil; (d) tratar sobre a etapa do Ensino Fundamental da Educação Básica;
(e) estudos que referenciam as Políticas Públicas de Educação; (f) estudos relacio-
nados a prática docente da educação sexual na escola. Simultaneamente, aplicados

273
os critérios de exclusão, apenas oito publicações atenderam as condicionalidades
para compor o presente estudo, conforme demonstra a Figura 1, abaixo:

Figura 1 – Principais etapas da busca realizada na base de dados da CAPES.

Fonte: As autoras.

Os resultados foram analisados a partir da perspectiva da análise de conteúdo


proposta por Bardin (2011), sendo as publicações incluídas neste estudo classifica-
das em duas categorias emergentes: (a) a formalização do currículo de educação
sexual no Ensino Fundamental; (b) as práticas docentes sobre educação sexual no
Ensino Fundamental.

274
RESULTADOS

ANÁLISE BIBLIOMÉTRICA

A análise bibliométrica dos registros de publicações permitiu conhecer o cená-


rio da produção acadêmico-científica atual e qual o nível de interesse dos pesqui-
sadores, bem como obter informações para orientar a formulação de hipóteses para
estudos futuros sobre o tema.

O Gráfico 1, a seguir, apresenta a relação das teses e dissertações analisadas


para este estudo por ano de publicação. Observa-se que entre os anos de 2014 e
2016, ocorreu um crescimento no número de publicações acerca da temática, des-
tacando-se ainda que neste último ano, registrou-se o indicador máximo de produ-
ção para o período analisado. Em tempo, destaca-se que em 2019, até a conclusão
deste estudo, nenhuma publicação foi encontrada.
Gráfico 1 – Gráfico analítico do número de teses e dissertações por ano de publicação.

Em continuidade, a relação entre o número de teses e dissertações publicadas

275
no período em estudo demonstra um número muito superior de dissertações de
mestrado, seis (75%) e somente duas (25%) teses de doutorado, e destas todas são
de autoras do sexo feminino.

A Região Sudeste apresentou o maior número de publicações sobre o tema,


seguida pela Região Centro-Oeste e Região Sul. Com relação às instituições de en-
sino superior, a que mais se destacou foi a Universidade Estadual Paulista (UNESP),
que possuí um programa de pós-graduação específico para a área de educação
sexual. A Figura 1, abaixo, apresenta o mapa ilustrativo, que relaciona o número de
artigos por instituição, estado e região brasileira.

Figura 1 - Mapa ilustrativo das regiões brasileiras com o número de publicações por estado e

instituição de ensino superior.

Uma comparação entre o caráter público ou privado das instituições de ensino


superior onde foram realizadas as pesquisas aponta que 75% das publicações foram
elaboradas por autoras referenciadas em universidades públicas e 25% do total, são
referentes a estudos realizados em instituições privadas. Destaca-se também que
a área de concentração à qual pertence a maioria dos programas de pós-graduação
aos quais as pesquisas selecionadas estão vinculadas é a área da Educação, con-
forme o Gráfico 4, a seguir:

276
Gráfico 4 – Gráfico analítico sobre as áreas de concentração das pesquisas

Fonte: As autoras.

E por fim, destaca-se que as palavras-chave mais empregadas pelas autoras


para identificar o seu trabalho foram, em escala decrescente, “educação sexual”,
localizada em cinco publicações; “sexualidade”, utilizada em quatro publicações;
“Ensino Fundamental” e “narrativas” utilizadas em duas publicações.

FORMALIZAÇÃO DO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO SEXUAL NO


ENSINO FUNDAMENTAL

Essa categoria relaciona duas publicações que tratam do processo de formali-


zação do currículo da educação sexual no Ensino Fundamental e serão analisadas
de forma mais detalhada a partir do levantamento dos seus objetivos, caracteriza-
ção do tipo de pesquisa e discussão dos seus resultados.

A primeira publicação é a tese de Santos (2016) – O currículo oficial do Estado


de São Paulo e a Educação Sexual: Uma análise sobre a produção de sentido das
sexualidades, onde a autora, apresenta os resultados de uma pesquisa qualitativa,
que levantou questionamentos sobre os reais sentidos presentes nos movimentos
para institucionalização da educação sexual no currículo escolar, considerando-a
como um campo de conhecimento, perpassado por diversos temas transversais
(saúde, planejamento familiar, currículo escolar, entre outros). Elabora sua argu-
mentação buscando referências nas obras de Foucault (1977; 1991; 1998; 2001;

277
2007; 2010; 2011; 2014), Bourdieu (1990; 1996; 203), Fischer (2001; 2012), Figueiró

(1995; 2001; 2006) e Quaresma da Silva (2014). A pesquisadora discute a respeito


dos estudos culturais e posiciona o currículo em um cenário multicultural, entretanto,
salienta que ele é construído para um sujeito cartesiano, individualista, branco, hete-
rossexual e dominante. Analisa o texto de leis e projetos de governo, validando sua
assertiva que existe a intenção de institucionalização da educação sexual na escola,
contudo, pelo ensino dos aspectos biológicos e pela prevenção a gravidez na ado-
lescência e doenças sexualmente transmissíveis. Conclui também, que o currículo,
em sua elaboração não contou com a participação do setor acadêmico, dos movi-
mentos sociais e comunidade escolar, atentando para o fato de que a sociedade
deve demarcar um lugar de fala neste debate e para a importância da continuidade
das pesquisas sobre a temática.

A segunda publicação é a dissertação de Lima (2018) - Educação Sexual


nas políticas públicas educacionais: um estudo na rede estadual de ensino de
Aparecida de Goiânia. Trata-se de uma pesquisa qualitativa que busca compreen-
der como as políticas públicas educacionais desenvolvidas nas escolas incluem/
excluem a educação sexual das suas práticas. Para aporte teórico, trouxe como
principais autores Saviani (2011), Freire (1992) e Foucault (1988), entre outros es-
tudiosos dos conceitos de educação, sexualidade na educação e a aplicação das
terminologias “orientação educacional/educação sexual”. Apresenta uma aprecia-
ção detalhada do texto das principais leis e documentos oficiais que preconizam
as políticas educacionais no Brasil e conclui que a educação sexual é ocultada
e silenciada em tais dispositivos. Por outro lado, analisa o posicionamento dos/as
docentes em relação a educação sexual. Nesse sentido, revela que para 100%
dos professores/as participantes da pesquisa, o conceito de educação sexual está
relacionado a educação preventiva e informativa sobre gravidez na adolescência
e doenças sexualmente transmissíveis, infere que esse aspecto se relaciona dire-
tamente com a proposta curricular que restringe a educação sexual ao controle da
sexualidade das crianças e adolescentes.

278
PRÁTICAS DOCENTES SOBRE EDUCAÇÃO S E X U A L
NO ENSINO FUNDAMENTAL

O conjunto dos seis estudos que compõem esta categoria registram uma aná-
lise a respeito das representações sociais, atitudes, posicionamento e estratégias,
dos/as docentes, especificamente, em suas práticas ou situações em que o seu
trabalho está relacionado diretamente com a educação sexual.

A pesquisa qualitativa de Alves (2014) objetiva caracterizar como, através da


educação sexual, são construídas as relações de gênero e sexualidade numa esco-
la pública de Educação Integral do Ensino Fundamental. Trouxe como principais au-
tores Cavaliere (2007), Coelho (2009), Foucault (1993), Freud (1996), Guará (2006),
Louro (2011), Teixeira (1997), Chistensen e James (2005), entre outros. Estuda a
proposta da Educação Integral no Brasil, relacionando-a com concepções de gêne-
ro, sexualidade e o tempo de permanência do estudante na escola. Na sua metodo-
logia, propõe um calendário de ações, envolvendo a equipe diretiva, professores/
as, pais e estudantes (separadamente), com vistas a registrar as narrativas e as
compreensões de cada grupo a respeito do tema. Conclui que os professores/as
enfrentam dificuldades em corresponder à demanda das curiosidades e interesses
dos estudantes sobre a temática, afirma que isto se deve à ausência de referências
curriculares, ao receio em relação a desaprovação das famílias, ao despreparo, a
influência de experiências pessoais e posicionamentos ideológicos que restringem
a aproximação com o tema.

A valorização da escola como espaço para a construção dos sentidos e equi-


dade sobre questões de gênero e sexualidade é o plano de fundo sobre o qual
Cespedes (2015) desenvolve sua dissertação. Trata-se de uma pesquisa qualitati-
va, realizada na etapa do Ensino Fundamental em escolas públicas da rede muni-
cipal e estadual. Parte da análise das narrativas dos professore/as a respeito das
suas interações com os/as estudantes, visando compreender qual o sentido que os
professores/as atribuem as relações de gênero e sexualidade na escola, pautadas
pelas suas experiências de vida e refletidas em suas práticas. Estuda os conceitos
culturais de gênero e sexualidade, a história da educação sexual no Brasil e destaca

279
ainda a importância da narrativa como estratégica metodológica. Como principais
teóricos, trouxe Foucault (1970;1988; 2008; 2012; 2013), Louro (1997; 2000; 2003;

2008; 2009; 2011; 20012) e Guizzo (2007; 2013). As conclusões que apresenta são
incisivas: os docentes são frequentemente “confrontados“ com suas experiências
pessoais na convivência com as crianças e adolescentes, resgatam memórias sau-
dosistas, onde sofrimento, violência, tristeza, medo e decepção não estão presen-
tes; a sexualidade é considerada pelos professores/as como um fenômeno biológico
e o corpo como um objeto da ciência, assim, o corpo do desejo, das relações consigo
mesmo e com o outro não existe. Finaliza dizendo que, na formação dos professo-
res/as participantes da pesquisa a educação sexual nunca foi tematizada.

“As crianças chegam às escolas com alguns conceitos e pré-conceitos sobre


sexualidade, que são construídos no meio social em que vivem”, afirma Silva (2015,
p.16) ao apresentar a pesquisa qualitativa, que tem como objetivo analisar as pos-
sibilidades e os limites da introdução da educação sexual nas aulas e projetos dos
professores/as do Ensino Fundamental de uma escola pública. Com o aporte teórico
de Felipe (2003; 2009; 2012), Figueiró (2001; 2006; 2007) entre outros e proporcio-
na uma discussão sobre educação sexual, relacionando-a com questões de gênero,
mídia, Ensino Fundamental e Parâmetros Curriculares Nacionais. Através da aná-
lise dos dados levantados nas observações e entrevistas com os professores/as,
conclui que não existe um planejamento efetivo para trabalhar o tema nas aulas, os/
as docentes apenas respondem aos questionamentos que surgem no dia a dia da
sala de aula, limitados pela falta de informação sobre a temática na sua formação e
nos documentos escolares.

Fiorini (2016), através de uma abordagem qualitativa, apresenta um estudo


realizado nos anos iniciais do Ensino Fundamental em uma escola pública com o
objetivo de identificar as práticas dos professores/as em relação à educação sexual.
A autora divide sua pesquisa em três etapas: na primeira etapa, realiza uma revisão
bibliográfica para caracterizar a educação sexual através Parâmetros Curriculares
Nacionais; na segunda etapa estuda o conceito de sexualidade em relação a reli-
gião, a sociedade capitalista, a contemporaneidade, a identidade de gênero e a in-
fância; na terceira etapa, dedica-se a observações e a entrevistas com professores/

280
as. No desenvolvimento das etapas metodológicas da pesquisa, apoia-se nas obras
de Figueiró (1996; 2001; 2006; 2009), Freire (1987;1997), Maia (2010; 2011; 2005),

Ribeiro (1989; 1990; 2002; 2005). Conclui que o/a docente não reconhece a educa-
ção sexual como parte do currículo escolar, uma vez que o mesmo, possuí uma
abordagem que direciona o trabalho para questões relacionadas ao aparelho repro-
dutor e doenças sexualmente transmissíveis. Ainda, evidencia a influência histórica
das Políticas Públicas e da Igreja sobre as práticas docentes que tendem a privile-
giar situações de repressão das manifestações da sexualidade na escola, ao invés
de favorecem a superação de preconceitos e estigmas.

Compreender as crenças, as dificuldades e atitudes dos professores/as em


relação às práticas de educação sexual escolar é o fator determinante para a reali-
zação de uma pesquisa do tipo qualitativa, por Meneghetti (2016), em aproximada-
mente cinquenta escolas públicas. Como referencial teórico a pesquisadora apre-
senta os conceitos de adolescência e sexualidade, indicando a escola como espaço
propício para serem trabalhadas tais questões, especialmente no que se refere as
suas dimensões biológicas, socioculturais e psicológicas. Nas suas discussões, se
aproxima de outros autores que se debruçam sobre as dificuldades dos professo-
res/as em abordar temas sobre a educação sexual na escola e utiliza uma extensa
bibliografia, inclusive os documentos oficiais das Políticas Públicas em Educação.
Após analisar dados levantados através da aplicação de questionários, sinaliza que
a maioria dos professores/as acredita ter um bom nível de conhecimento a respeito
do tema, entretanto, a concepção de educação sexual está relacionada com o fun-
cionamento biológico do corpo. Quando assuntos relacionados

a questões de gênero que são trazidas pelos estudantes, os professores/as sentem-


se despreparados, inseguros e desconfortáveis para abordar o assunto.

Através de uma abordagem qualitativa, Moraes (2017) desenvolveu uma pes-


quisa com o objetivo de investigar as representações sociais da educação sexual
por professores/as do Ensino Fundamental – Séries Finais de uma escola pública.
A autora, desenvolve uma revisão bibliográfica sobre sexualidade, realiza a distin-
ção entre os “termos educação sexual” e “orientação educacional” e uma análise
da legislação pertinente, destacando os Parâmetros Curriculares Nacionais- PCNs,

281
o Programa Saúde na Escola – PSE e o Plano Nacional de Educação – PNE. Dis-
cute a Teoria das Representações Sociais – TRS, com base nos autores Moscovici
(2012;1978) e Jodelet (2001). Através da realização de entrevistas semiestruturadas
com professores/as, conclui que a temática é vista por eles/elas como um “proble-
ma”, que deve ser resolvido pela família dos estudantes ou por outros profissionais
fora da sala de aula. Observou, que a escola delimita a área da educação sexual
como pertencente aos professores/as de biologia, agentes de saúde e psicólogos/as.
Nesse sentido, identifica que os/as docentes não têm conhecimento das políticas pú-
blicas ou programas que estão relacionados a educação sexual no âmbito escolar,
permanecem receosos em relação ao que pode ou não ser ensinado, favorecendo
a predominância de conceitos de senso comum nas suas práticas.

Na primeira categoria resultante, as duas pesquisadoras se debruçam sobre


o currículo escolar, evidenciam a intencionalidade deste em atribuir à educação se-
xual um caráter preventivo e biológico. Ao mesmo tempo, validam que o currículo
não acompanha as mudanças do cenário da diversidade cultural da atualidade, prin-
cipalmente pela ausência de oportunidades de qualidade, durante a sua elaboração,
para as contribuições da sociedade civil e meio acadêmico, respaldando assim, a
omissão e o silenciamento do tema nas salas de aula.

Na segunda categoria estabelecida, um grupo maior de pesquisadoras, seis no


total, se dedicam a compreender a atuação e as concepções dos professores/as a
respeito da educação sexual no Ensino Fundamental. Em três pesquisas, os resul-
tados apontam para o despreparo do/a docente no que se refere ao conhecimento
das dimensões sociais e psicológicas da educação sexual, inclusive destacam, que
estes, não percebem a desarticulação do currículo em relação a diversidade cultural
presente nas escolas. Já em cinco, dos seis estudos, as pesquisadoras validam a
hipótese de que a concepção do/a professor/a sobre a

sexualidade é defini-la como um fenômeno biológico, totalmente previsível, contro-


lável e que deve ser trabalhada em sala de aula pelos professores/as da área de
Ciências da Natureza, nas séries finais do Ensino Fundamental.

282
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conclui-se que os pressupostos indutores da problematização deste estudo


foram corroborados pelas autoras das publicações selecionadas quando estas afir-
mam que as experiências pessoais figuraram como aspectos dificultadores da prá-
tica docente no que se refere a educação sexual, evidenciando representações que
naturalizam situações de discriminação, exclusão entre gêneros e subjetividades na
escola.

As pesquisadoras apontam que as representações sociais, culturais e o senso


comum interferem nas práticas docentes, uma vez que os/as professores/as não re-
conhecem que a educação sexual deve acontecer também na escola, desvinculada
de qualquer tipo de questão ideológica e juízo de valor e deve transgredir ao simples
ensino do aparelho reprodutor e métodos contraceptivos. Nessa esteira, destacam
que os documentos norteadores do currículo escolar, especialmente a nova Base
Nacional Comum Curricular, contribuem para que esta situação siga inalterada, pela
ausência de referências diretas sobre as competências, habilidades e conteúdos
essenciais sobre sexualidade, permanecendo essa temática subtendida e velada.

Todavia é urgente assegurar aprendizagens essenciais as crianças e estu-


dantes na área da educação sexual, identificando situações que geram omissões de
informação, exclusões, em forma de pré(conceitos) e discriminações, fatores que
influenciam negativamente a formação humana e impedem a construção de uma
sociedade que proporcione a todos, com equidade, respeito e direito ao pleno exer-
cício da sua cidadania. Portanto, propõe-se a continuidade e ampliação dos estudos
na área da Educação Sexual, pois apesar da literatura e das pesquisas sinalizarem
a sua importância, no contexto escolar do Ensino Fundamental, no que se refere ao
currículo escolar e as práticas docentes, isto ainda não se reflete.

283
REFERÊNCIAS

ALVES, JOANA DARC MOREIRA. Relação de gênero e sexualidade: narrativas


de professoras e de crianças de uma escola pública de tempo integral, Goiás.
Paranaíba: Mestrado em Educação. Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul,
2014. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/
trabalhoConclusao/vie wTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=526450.
Acesso ago. 2019.

AUGUSTO, VIVIANE OLIVEIRA. Uma Contribuição à Historiografia da Educação


Sexual no Brasil: Análise de Três Obras de Antônio Austregésilo (1923, 1928
e 1939). Araraquara: Mestrado em Educação Escolar. Universidade Estadual
Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, 2015. Disponível e m :
https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/vie
wTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=2349206. Acesso out. 2019.

BARDIN, LAURENCE. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.

BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília: MEC. 2017. Disponível
em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_20dez_site.pdf

BRASIL. MINISTÈRIO DA EDUCAÇÃO. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSI-


CA.

Parâmetros nacionais de qualidade para o ensino fundamental. Orientação Sexual.


Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica: Brasília (DF), 2006

v. X; il. Disponível em http:// http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro102.pdf.


Acesso set. 2019.

CESPEDES, CRISTIANE ROJAS. Memórias de Infância, relações de gênero e


sexualidade nos significados e narrativas de professores/as – MT. Rondonópolis:
Mestrado em Educação. Universidade Federal do Mato Grosso, 2015. Disponível
em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclu-
sao/vie wTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=2564830. Acesso ago.

284
2019.

BASEGGIO, JULIA KNAPP; SILVA, LISA FERNANDA MEYER DA. As condições

femininas no Brasil Colonial. Revista Maiêutica, Indaial, v. 3, n. 1, p. 19-30, 2015.


Disponível em:

https://publicacao.uniasselvi.com.br/index.php/HID_EaD/article/viewFi-
le/1379/52. Acesso out. 2019.

FERNANDES, Priscila Dantas; OLIVEIRA, Kécia Karine S. de. Movimento higienista


e o atendimento à Criança. Universidade Federal do Sergipe, 2012. Disponível em
http://simposioregionalvozesalternativas.files.wordpress.com/2012/11/priscila- mo-
vimento-higienista-e-o-atendimento-c3a0-crianc3a7a.pdf . Acesso set. 2019.

FIORINI, JESSICA SAMPAIO. Educação Sexual nos anos iniciais do ensino funda-
mental: currículo e práticas de uma escola pública da cidade de pública da cidade
de Marília-SP. Mestrado em Educação. Faculdade de Filosofia e Ciências. Facul-
dade Estadual Paulista. Marília, 2016. Disponível em: https://sucupira.ca-
pes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/vie wTrabalhoCon-
clusao.jsf?popup=true&id_trabalho=3729452. Acesso em ago. 2019.

FREYRE, G. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime


da economia patriarcal. 49. ed. São Paulo: Global, 2004. Disponível em: https://
edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/229314/mod_resource/content/1/Gilberto%2
0Freyre%20-%20Casa-Grande%20e%20Senzala.pdf. Acesso set. 2019.

GERHARDT, ENGEL; SILVEIRA, DENISE TOLFO. Métodos de pesquisa.

Universidade Aberta do Brasil – UAB/UFRGS. Curso de Graduação Tecnológica –


Planejamento e Gestão para o Desenvolvimento Rural da SEAD/UFRGS. – Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2009. Disponível em http://
www.ufrgs.br/cursopgdr/downloadsSerie/derad005.pdf. Acesso out. 2019.

LARROSA, Jorge. Tecnologias do eu e educação. In: SILVA, Tomaz T. (Org.). O


sujeito da educação: estudos foucaultianos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. Dispo-
nível em: http://www.grupodec.net.br/wp-
content/uploads/2015/10/TecnologiasdoEuEducacaoLarrossa.pdf. Acesso set.

285
2019.

LIMA, LORENA CARVELO E SILVA. Educação Sexual nas políticas públicas edu-
cacionais: um estudo na rede estadual de ensino de Aparecida de Goiânia. Goiâ-
nia: Mestrado em Educação. Pontifícia Universidade Católica de Goiás, 2018. Dis-
ponível em:

https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/
vie wTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=6388431. Acesso em ago.
2019.

MENEGHETTI, VANIZE. Dificuldades relatadas por professores do ensino funda-


mental na implementação de ações de educação sexual. Foz do Iguaçu: Mestrado
em Ensino. Universidade do Oeste do Paraná, 2016. Disponível em: https://sucu-
pira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/trabalhoConclusao/vie wTraba-
lhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=3825969. Acesso em out. 2019.

PORTAL CENTRO DE REFERÊNCIA DE EDUCAÇÃO INTEGRAL. Educa-


ção

sexual. 14-01-2019. Disponível em: https://


educacaointegral.org.br/glossario/educacao-sexual/. Acesso em nov. 2019.

QUARESMA DA SILVA. Denise Regina. Educación (des)encantada: pedagogías


de género en las prácticas de educación sexual de instituciones escolares de Bra-
sil. Revista Científica de Vol. XVII Nº 1 - Otoño 2013. Disponível em http://dspace.
uces.edu.ar:8180/xmlui/bitstream/handle/123456789/3435/Educacion_ Quaresma-
-da-Silva.pdf?sequence=1. Acesso em set. 2019.

REIS, G. V.; RIBEIRO, P. R. M. (Org.). A Institucionalização do Conhecimento Se-


xual no Brasil. In: . Sexualidade e Educação: aproximações necessárias. São
Paulo: Arte e Ciência, 2004.

REIS, G. V.; Sexologia e educação sexual no Brasil nas décadas de 1920- 1950:
um estudo sobre a obra de José de Albuquerque. Araraquara: Mestrado em Edu-
cação Escolar - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras,
Campus de Araraquara, 2006.

286
Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/Deta-
lheObraForm.do?select_action=&co

_obra=42606. Acesso set. 2019.

RIBEIRO, P. R. M. Por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa... a


educação sexual no Brasil nos documentos da inquisição dos séculos XVI e

XVII. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 28., 2005, Caxambu. Anais... Rio de Ja-
neiro: Associação Nacional de Pós-graduação em Pesquisa em Educação, 2005.
p.01-15. Disponível em: http://28reuniao.anped.org.br/ge23.htm. Acesso out. 2019.

. (Org.). Sexualidade e Educação: aproximações necessárias. São Paulo:


Arte & Ciência, 2004.

RIO GRANDE DO SUL. Secretaria da Saúde. Departamento de Ações de Saúde.


Seção de Saúde da Criança e Adolescente. Manual de orientações 2019/2020 –
Programa Saúde na Escola – PSE. Porto Alegre. Disponível em: http:// https://
saude.rs.gov.br/upload/arquivos/carga20190747/09084757-10- manualorientacoes-
-pse-ciclo-2019-2020.pdf. Acesso em ago. 2019.

SANTOS, FRANCIELE MONIQUE SCOPECT DOS. O currículo oficial do Estado


de São Paulo e a Educação Sexual: Uma análise sobre a produção de sentido das
sexualidades. Araraquara: Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências e Letras.
Universidade Estadual Paulista. Campus Araraquara, 2016.
Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/tra-
balhoConclusao/vie wTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_trabalho=4996732.
Acesso em ago.2019.

SILVA, MIRTES PACHECO DA. A educação sexual nos anos iniciais do ensino
fundamental em uma escola pública de Santo André. Santo André: Mestrado em
Ensino, História e Filosofia das Ciências e Matemática. Universidade Federal do
ABC, 2015. Disponível em: https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consul-
tas/coleta/trabalhoConclusao/vie wTrabalhoConclusao.jsf?popup=true&id_traba-
lho=2405974. Acesso em ago.2019.

SAYÃO, Iara. Orientação sexual nas escolas: os territórios possíveis e necessá-

287
rios. In: Aquino, Júlio Gropa (org). Sexualidade na escola: alternativas teóricas e
práticas. São Paulo: Sammuns, 1997.

SUPLICY, Marta e outros. Sexo se Aprende na Escola. São Paulo: Editora Olho
d’água, 1995.

SEFFNER, Fernando. Um bocado de sexo, pouco giz, quase nada de apagador


e muitas provas: cenas escolares envolvendo questões de gênero e sexualidade.
ESTUDOS FEMINISTAS. 19(2):336, MAIO/AGOSTO/2011, P. 561-572. Disponível

em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0104- 026X2011000200017. Acesso em jul. 2019.

SFAIR, SARA CARAM; BITTAR, MARISA; LOPES, ROSELI ESQUERDO. Educação

sexual para adolescentes e jovens: mapeando proposições oficiais. Faculdade de


Saúde Pública da Universidade de São Paulo. Associação Paulista de Saúde Públi-
ca, 2015. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&-
pid=S0104-12902015000200620. Acesso em out.
2019.

288
SOLICITAÇÃO DE REFÚGIO DE LGBTQIA+ NO
BRASIL: UMA ANÁLISE DOS PRINCIPAIS PAÍSES
QUE PERSEGUEM E CONDENAM PELA DIVERSI-
DADE SEXUAL E GÊNERO

Eduarda Weber Duara1

Fernanda Sartori Machado2

Alberto Barreto Goerch3

INTRODUÇÃO

A atual crise de refugiados é o maior número já registrado desde 1950, e a


tendência para os próximos anos é de intensificação. Isso por que, atualmente os
refugiados não saem mais de seu país de origem somente por questões de conflitos,
guerras, questões políticas, econômicas ou religiosas, mas principalmente por ques-
tões ideológicas, como evidente atualmente as inúmeras solicitações de refúgio por
lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais, queer, intersexos e assexual (LGBTQIA+).
A importância do presente estudo, devido à identidade sexual e de gênero apropriado

1 Acadêmica do 2º semestre do Curso de Direito da Universidade Franciscana (UFN). E-mail: dudaw-


[email protected]
2 Acadêmica do 2º semestre do Curso de Direito da Universidade Franciscana (UFN). Acadêmica do
2º semestre do Curso de Letras Bacharelado em Língua Portuguesa e Literaturas da Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM). E-mail: [email protected]
3 Doutorando pela Universidade FEEVALE com bolsa CAPES. Mestre em Direito pela UNISC. Pós-
-graduado Lato Sensu em Direito com Especialização em Direito Constitucional pela UNIDERP e Pós-gra-
duado Lato Sensu em Direito com Especialização em Direito Processual Civil pela UNISC. Graduado em
Direito pela Faculdade Metodista de Santa Maria. Docente do Curso de Direito da Universidade Franciscana
- UFN e do Curso de Direito da Faculdade Dom Alberto. Professor em Cursos de Especializações e Prepa-
ratórios para Carreiras Jurídicas. Conselheiro, Membro da Comissão de Direitos Humanos e Presidente da
Comissão Especial da Diversidade Sexual e Gênero da OAB/Subseção de Santa Maria. Integrante do Grupo
de Pesquisa Arthemis - Direito e Gênero da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Tem experiência
em pesquisa na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: Constitucionalismo Contempo-
râneo, Politicas Públicas, Direitos Humanos, Direitos Sociais, Novos Direitos, Diversidade Cultural e Inclusão
Social. E-mail: [email protected]

289
à perseguição e a condenação em alguns países, assume grande relevância para
entender o porquê esses países continuam não cumprindo as orientações de entida-
des internacionais à luz dos direitos humanos, na proteção de liberdade sexual das
pessoas.

O método de abordagem utilizado foi o dedutivo, pois a pesquisa partiu de uma


visão geral do fluxo migratório e da crise migratória, até as solicitações de refúgio
LGBTQIA+ de seu país de origem, com destino ao Brasil. O método de procedimento
utilizado foi o histórico, pois, foi necessária a realização da pesquisa histórica do fluxo
migratório do Brasil e do mundo, sobretudo as solicitações de refúgio LGBTQIA+ na
contemporaneidade.

Como resultado obteve-se que países mulçumanos geram maiores números


de refugiados LGBTQIA+, por falha no seu sistema jurídico, os quais não oferecem
uma proteção legal a esta comunidade, além de apresentar no seu corpo legislativo
condenações às relações homossexuais. Em concordância a esses obstáculos, o
assunto se faz desafiador aos estudiosos da área do direito, a fim de discutir medidas
de inclusão e modificações legislativas.

FLUXOS MIGRATÓRIOS E A CRISE MIGRATÓRIA HISTORICAMENTE

Em consonância com a Organização das Nações Unidas (ONU), os refugiados


são pessoas que fogem de seu país de nascimento devido às perseguições, torturas
e até mesmo condenações a pena de morte.

Em 1951, o Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC), criou o Comitê


Nacional para Refugiados (CONARE) para auxiliar na seara do Ministério da Justiça,
no Brasil, recebendo as solicitações de refúgio deferindo se os solicitantes obtêm
as condições necessárias para serem reconhecidos como refugiados. O CONARE
é composto por representantes de países que têm demonstrado maior grau de com-
prometimento com a problemática dos refugiados, e que aprovam, atualmente, os
programas da ACNUR e suas diretrizes em matéria de proteção aos refugiados.

Ademais, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiado, retrata:

290
“É preciso coragem para ser refugiado”, visto que além das mazelas vividas pelos
refugiados em seus países de origem, quando chegam em um território novo, encon-
tram um novo obstáculo, se adaptar às diferenças culturais, dificuldades com idio-
mas, busca por emprego e inclusão social, entre outros. Dessa forma, se faz notório
que a luta não termina quando os refugiados mudam de país, a mesma continua com
desafios e esperanças diferentes em outro território.

A história de migrações existiu em todos os períodos da história, com diver-


sas modificações e transformações. As “grandes descobertas” da época nos países
europeus alteraram o padrão migratório, à saber, as Américas, África e Ásia foram
pioneiras nas correntes migratórias, a fim de conquistar ou povoar a região. Logo,
originou-se um novo tipo de migração com empecilhos profundos e com grandes im-
pactos mundiais, o tráfico de escravos. Com a abolição da escravatura surgiu uma
nova onda de migração relacionada ao trabalho, contudo, desta vez, migração volun-
tária. Ainda, surge um novo tipo de migração nesse contexto, a migração moderna,
esta surge com a Revolução Industrial, pois gerou inúmeros desempregados, logo
ocorreram migrações significativas. Desse modo, os países começaram a controlar a
entrada dos mesmos, devido a nova onda migratória. Diante desse contexto, revela-
-se que a migração faz parte da história da humanidade (ENRICONI, 2017).

O cenário catastrófico referente às agruras vividas dos refugiados se fez evi-


dente também durante a Segunda Guerra Mundial, que durou entre 1939 a 1945, no
qual os Judeus e homossexuais eram perseguidos, atacados e mantidos em campos
de concentração pelos nazistas, época conhecida como holocausto, o número de
refugiados desse período é abundante.

ATUAL CRISE MIGRATÓRIA DO BRASIL E DO MUNDO

A atual crise migratória do Brasil e do mundo, revela-se muito evidente na atua-


lidade e vários são os motivos que levam as pessoas a refugiar. Dentre eles, guerras,
conflitos, questões políticas, econômicas, religiosas ou ideológicas. Os refugiados
cruzam diariamente fronteiras à procura de uma vida digna. O atual fluxo migratório

291
do mundo está vinculado principalmente a guerras e direitos humanos cerceados
pelo poder local ou por forças dominantes.

A ONU já considera a crise dos refugiados a crise humanitária mais intensa


do século, em 2018 o número de refugiados foi o maior da história, sendo de maior
proporção que a crise migratória durante a Segunda Guerra Mundial (ONU, 2016).
O número exato de refugiados ao redor do mundo devido à orientação sexual não
é reconhecido, porém em 2018 o Brasil foi o quarto país do mundo a tornar dados
público perante essas solicitações, entre 2010 a 2016, pelo menos 369 solicitações
foram concebidas ao Brasil. A inadimplência quanto à tornar público esses dados,
torna-se ainda mais ausente o conhecimento sobre refugiados LGBTQIA+, visto que
atualmente apresentam-se como um dos maiores grupos de refugiados em todo o
mundo.

A Síria recentemente foi o principal país a gerar inúmeros refugiados, por ter
eclodido uma guerra de imensa proporção que gerou efeitos no mundo todo, e a po-
pulação necessitava no meio do conflito interminável de ajuda humanitária. Os cida-
dãos da Síria se deslocaram em massa para a Europa, através do Mar Mediterrâneo,
de forma precária e com embarcações inseguras. Contudo, países africanos, como
o Congo, o Sudão e a Nigéria, também sofrem com conflitos políticos que geraram
o refúgio. Ainda no Oriente Médio, o Afeganistão é um país com conflitos que envia,
na atualidade, a segunda maior quantia de refugiados para o mundo (Porfírio, 2017).

Na atualidade brasileira, o principal fluxo migratório se estabelece por meio


da Venezuela, em que venezuelanos cruzam diariamente a fronteira com o Brasil
em busca de uma vida digna. Isso por que, a crise político-econômica na Venezuela
se agrava constantemente, com um cenário sem perspectivas. Desse modo, os ve-
nezuelanos solicitam refúgio para o Brasil, não somente pela facilidade de acesso,
mas também pela legislação que garante um mínimo de proteção a eles.

Apesar de o país ser um caminho mais acessível para a entrada de venezuela-


nos, revela-se persistente os desafios à regulamentação e implementação da lei na
realidade concreta. Com frequência, no Brasil os debates são marcados pela pola-
rização e por discursos xenofóbicos, posto que ainda muitos brasileiros concordam
com maior controle à entrada de refugiados no Brasil. Surge, então, o desafio de

292
ampliar a sociedade civil o reconhecimento do direito de migrar, dos direitos e neces-
sidade de proteção social das pessoas em situação de mobilidade. É fundamental
respeitar refugiados em uma democracia.

Desse modo é preciso reafirmar nossa responsabilidade nesse contexto, de


lutarmos para a execução das normas com vistas a garantir a proteção jurídica de
migrantes e refugiados no Brasil, para que estes possam se inteirar na sociedade e
desfrutar dos direitos civis.

A HISTÓRIA DA LEI BRASILEIRA DE REFÚGIO

Diante do cenário catastrófico durante a Segunda Guerra Mundial, em que o


número de refugiados se revela um dos maiores da história. Mesmo com o mínimo
de amparos, por meio de ONG’S4 e grupos de ajuda à refugiados, se fez evidentes
as necessidades de melhorias dos mesmos, como também legislações e políticas
migratórias para salvaguardar as vidas que estavam sendo omitidas.

No ano de 1945, foi criado a Organização das Nações Unidas (ONU), devido
a eclosão da Segunda Guerra Mundial, a fim de promover a paz social e garantir os
direitos humanos. Em 1950, foi criado o Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR), com o propósito de dar apoio e proteção a refugiados de todo
o mundo. Contudo, no período entre 1976 até 1982, não havia o reconhecimento do
Governo Brasileiro perante a presença oficial e ativa do ACNUR e nem de leis que
protegessem os refugiados.

Nessa perspectiva, revela-se que os refugiados obtêm uma carga histórica


de desafios e ausência de amparos a eles. Desse modo, com o processo histórico de
avanço no ordenamento jurídico foram estabelecidos estatutos e legislações para re-
fugiados, a fim de finalmente promover um melhor apoio para os mesmos. Em 1961,
o Brasil promulgou a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados com reservas
(Decreto nº50.215/61).

4 Organizações Não Governamentais (ONG’S). Organizações civis que não tem nenhum vínculo com
o governo. São todas as organizações, sem fins lucrativos, criadas por pessoas que trabalham voluntariamente
em defesa de uma causa (ONU, 1950).

293
Ainda, outros instrumentos de proteção ao refugiado foram ratificados, como
a Declaração de Cartagena, a declaração de San José sobre refugiados e pessoas
deslocadas e a convenção sobre o Estatuto dos Apátridas. Além disso, cabe ressaltar
a atuação da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, que trabalha desde 2003 na promoção
e na difusão do trabalho do ACNUR na proteção dos refugiados.

Em âmbito nacional, o desenvolvimento da lei dos refugiados se deu no ano de


1997. A Lei nº 9.474/97 que instituiu a natureza jurídica do refugiado, bem como a
atuação do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE). Além do dispositivo legal,
um conjunto com instruções normativas foi elaborado para garantir a vigência e eficá-
cia desta lei. Revela-se sendo o resultado jurídico e histórico perante os empecilhos
vividos dos refugiados. No Brasil, à saber, os refugiados podem trabalhar, estudar,
obter documentos e exercer os direitos civis de qualquer cidadão regular.

Ademais, em 2017, entrou em vigor no Brasil a nova lei de migração nº 13.445,


dispondo sobre os direitos e deveres do migrante e do visitante, ainda, foi instituído
a concessão do visto temporário com finalidade de acolhida humanitária que poderá
ser concedido.

Outro avanço é o fato de o imigrante não ser mais visto como ameaça à segu-
rança nacional, com a inclusão do princípio da não criminalização da imigração. A
mudança na legislação brasileira revela-se sendo um caminho facilitador para refu-
giados, posto que estas leis representam um avanço ao tratar das migrações sob a
perspectiva dos direitos humanos. A Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 (a Lei de
Migração), tem como principal virtude prever pela primeira vez na história brasileira,
um paradigma humanista para a migração, por isso sendo um país com diversos re-
fugiados, pois se sentem amparados e protegido no Brasil.

Porém, não basta somente facilitar a vinda dos refugiados ao país através de
vistos humanitários e conceder a eles assistências, um país que mostra a imagem
de acolhedor precisa também ter políticas públicas que promovam a integração do
grupo migrante na sociedade, inclusive para o grupo de refugiados LGBTQIA+, vis-
to que são os mais desamparados e vulneráveis na sociedade.

“O refugiado no Brasil se torna grupo de risco porque não há políticas

294
públicas capazes de integrá-los na sociedade. Parece que o Brasil diz ‘seja
bem-vindo’ apenas por educação, O refugiado já chega com a dignidade
afetada e, por isso, é altamente vulnerável” (Hammade, Jihad, 2016).

Desse modo, observa-se que apesar do avanço no processo histórico da lei


brasileira de refúgio, ainda se faz notório que as políticas migratórias e as legislações
brasileiras precisam ser aperfeiçoadas, para que o refugiado não seja submetido no-
vamente, no seu país destino, à vulnerabilidade social.

AS ATUAIS POLÍTICAS MIGRATÓRIAS DO MUNDO E DO BRASIL

“A História é, em geral, contada do ponto de vista do dominador, sendo a voz


do outro – o dominado – desconsiderada, abafada e mesmo silenciada. Seu eco per-
manece, porém, nos vãos, nas fissuras do sistema, esperando a oportunidade de ser
ouvida.” (LARA, Glaucia, 2017).

Diante desse contexto, revela-se a ausência da verdadeira história dos refugia-


dos, isso porque eles são constantemente silenciados. Além da existência de países
que não aceitam a entrada de refugiados, mesmo por questões humanitárias. Isso
acontece por diversos fatores, pela situação econômica do país; pelo aumento de
gastos com serviços públicos para a nova população; o medo de atentados terroris-
tas; entre outros.

Donald Trump, durante a sua campanha à presidente dos Estados Unidos, se


pautava no objetivo de restringir a entrada de refugiados no país, em que discursa-
va que as políticas migratórias afetavam diretamente a ordem executiva, e a atual
política migratória dos Estados Unidos revela-se cada vez mais restrita a entrada de
refugiados. Entretanto, as políticas migratórias são ainda mais restritivas em outros
países, como na rota dos Balcãs, que inclui Macedônia, Montenegro, Hungria, Sér-
via, Eslováquia e Croácia, todos na rota dos Balcãs para os que buscam asilo, mar-
caram as piores notas de aceitação de refugiados.

Enquanto alguns países buscam evitar a entrada de novas pessoas, outros


buscam atrair mais imigrantes para o seu território. Desde 2012, o território turco

295
passou a receber um fluxo enorme de imigrantes e, em 2014, o país se tornou o prin-
cipal destino dos refugiados. Desde então, a Turquia ocupa a liderança da lista da
ACNUR, e recentemente abrigou 3,7 milhões de pessoas. Um motivo de destaque
para a atração de imigrantes que se apresenta na atualidade são as taxas decres-
centes de crescimento populacional, especialmente em países desenvolvidos, como
na Europa, em que essa taxa vêm decrescendo desde 1950.

As taxas populacionais decrescentes afetam diretamente a economia de um


país, pois prejudicam a sustentabilidade da previdência, fazendo com que menos
pessoas economicamente ativas tenham de sustentar a faixa da população já apo-
sentada. Por isso, muitos países desenvolvidos criam políticas de atração de migran-
tes. A União Europeia (UE) entre 2015 e 2016, submeteu-se a uma crise de fluxo mi-
gratório sem precedentes de refugiados, assim adotou diversas medidas para tentar
resolver as causas profundas dessa crise. Por exemplo, aumentar substancialmente
a ajuda às pessoas necessitadas de assistência humanitária. A EU tem sido pionei-
ro no mundo na política de migração, isso porque adotou uma política exemplar e
abrangente, diferente de todos os países, promovendo o acolhimento a refugiados e
migrantes.

Dessa forma, as leis e os amparos concedidos são de tamanha relevância, pois


os refugiados necessitam de ajuda humanitária perante a situação que enfrentam em
seu país de origem. Visto que, o Brasil é um dos principais destino para refugiados,
logo revela-se importante políticas públicas de amparo à esse grupo, para integrá-los
a sociedade e garantir a sua sobrevivência longe de seu país de origem, pois ainda
faz-se presente as dificuldades que esse grupo enfrentam ao chegar em outro país,
como o Brasil. Isto é, as políticas migratórias existem, mas sua efetivação concreta,
muitas vezes, é inexistente. A inclusão de refugiados na sociedade deveria ser um
elemento fundamental no processo de refúgio, pois fazem com que o refugiado ou
migrante sinta-se acolhido e incluso no país destino, com direito à saúde, trabalho,
estudo, todos os direitos civis do país, sendo um dos principais empecilhos que cir-
cunscrevem o cotidiano dos refugiados. Também são comuns os problemas na reco-
locação dessas pessoas no mercado de trabalho, onde estão à mercê de péssimas
condições laborais, além de serem vítimas potenciais de trabalho escravo, tráfico

296
de pessoas, racismo, e acabam por viver em moradias em péssimas condições. Ou
seja, a agrura ainda se faz presente apesar dos avanços nas legislações e políticas
migratórias.

PROTEÇÃO BRASILEIRA PARA REFUGIADOS LGBTQIA+

A orientação sexual também faz parte significativamente do atual fluxo migrató-


rio do mundo e do Brasil. Desse modo, revela-se de suma importância que, a prote-
ção concedida a refugiados LGBTQIA+ internacionalmente seja efetivamente eficaz
e executada, uma vez que os relatos são da falta de proteção, principalmente por
órgãos internacionais incumbidos de prestarem apoio a esse grupo social. O ACNUR
refere que são comuns os relatos de ameaças, abusos e violências nas solicitações
de refúgio LGBTQIA+. Principalmente, a intersexuais que sofrem ameaças de sub-
missão a procedimentos cirúrgicos com o intuito de “normalização”, configurando-se
a uma situação de perseguição. Ainda, são assistidos ferimento de “honra familiar”,
gravidez e casamento forçado com o objetivo de “correção” (PEREIRA, Gustavo,
2019). Diante desse contexto, revela-se que a proteção a refugiados LGBTQIA+
mostra-se ineficiente ao redor do mundo.

Entretanto, no Brasil, a proteção a refugiados LGBTQIA+ é priorizada, mesmo


que apresente diversas lacunas nas legislações e na proteção devida a esse grupo,
o país ainda é um dos mais profícuos para migrar. Isso porque, ao longo dos anos a
nação vem progredindo quanto a esse cenário, com novos projetos de amparos e fis-
calizações à órgãos incumbidos nas solicitações de refúgio, para um controle maior
de abusos e violências.

Ademais, no âmbito brasileiro, reconhecido a condição de refúgio, esse agora


passará a exercer o direito a proteção internacional. Essa condição se estenderá a
seus familiares, conforme previsto no artigo 2o da Lei 9.474/97. Com o seu reconhe-
cimento de refugiado no país, o mesmo pode deter de todos os direitos dos demais
estrangeiros, ainda tendo direito de receber do Brasil todo o amparo para a sua inte-
gração local, como forma de acolhida na sua vulnerabilidade.

Quanto ao reassentamento solidário no Brasil, o país vinha exercendo um im-


portante papel no desenvolvimento do programa Reassentamento Solidário na Amé-

297
rica Latina, como parte do Plano de Ação do México, tornando a imagem do país
como agregador. Ainda, o Estado do Rio Grande do Sul, no ano de 2012, criou o Co-
mitê estadual de Atenção a Migrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas do Tráfico de
pessoas (COMIRAT), com o intuito de proporcionar assistência e acolhida humanitá-
ria para estrangeiros nas referidas situações de debilidade, contribuindo e ampliando
o acesso desse público às políticas públicas (Pereira, Gustavo de Lima, 2019).

Entretanto, ainda se faz presente graves abusos de direito humanos no exte-


rior, por exemplo, muitas solicitações de refúgio são negadas por declararem suas
orientações sexuais, o que para os órgãos afronta o sistema do país, mostra-se o
preconceito assolado no mundo todo. O coordenador-geral do CONARE destacou a
importância de políticas voltadas para indivíduos que vivenciam essas atrocidades.
Recentemente, o Brasil tornou público os dados quanto à refugiados LGBTQIA+ no
país, o que se revela um progresso. “A divulgação destes dados é fundamental para
termos maior consciência das dificuldades enfrentadas por essa população e também
para nortear as políticas públicas sobre o assunto” (MARTINEZ, Frederico, 2018).

A divulgação sobre a informação dos processos de refúgio, e a nova plataforma


sobre os refúgios devido a orientação sexual, demonstra o compromisso do Brasil na
proteção à refugiados perseguidos por conta de sua orientação sexual (Pontel, Luiz,
2018). Desse modo, revela-se o país sendo extremamente coadjuvante quanto aos
refugiados LGBTQIA+, preocupado e disposto a proporcionar a melhor assistência
com os mesmos. O lançamento dessa plataforma está inserido no calendário de ati-
vidades dos chamados “16 Dias de Ativismo contra a Violência de Gênero”. Ainda, a
campanha brasileira “Livres & Iguais” tem o objetivo de promover a igualdade da po-
pulação LGBTQIA+, aumentando a conscientização sobre a violência e a discrimina-
ção homofóbica e transfóbica e promovendo um maior respeito pelos direitos destas
pessoas. Diante disso, revela-se o Brasil sendo um país promissor diante dessa si-
tuação, apesar de ainda haver lacunas nas políticas públicas e migratórias, mas con-
sidera-se ainda um dos melhores países para a proteção de refugiados LGBTQIA+.

298
A HISTÓRIA DE PAÍSES QUE CRIMINALIZAM A HOMOSSEXUALIDA-
DE E AS SOLICITAÇÕES DE REFÚGIO LGBTQIA+

Ainda quanto ao fluxo migratório do mundo, os refugiados LGBTQIA+ são um


dos únicos grupos aonde a penalidade pode ser a pena de morte, dessa maneira,
destacando a crueldade ainda vivida nos dias de hoje, há 70 países que possuem em
seu corpo legislativo, leis que criminalizam a homossexualidade, chamado de “homo-
fobia de Estado”, referente a esses países, 13 condenam a homossexualidade com
pena de morte e torturas, nesse grupo se faz presente Sudão, Irã e Arábia Saudita,
entre outros (BRAGA, Daniel, 2018).

De acordo com Daniel Braga Nascimento, os atos migratórios sempre estive-


ram presentes na sociedade, em busca de melhores condições de vidas, porém,
atualmente a busca é também por igualdade social, respeito e paz. Nessa lógica,
revela-se que o grupo LGBTQIA+, opta por migrar para outro país. Isso porque, reve-
la-se evidente, que uma pessoa LGBTQIA+ em um desses países sofre claramente
perseguições e graves atrocidades. Além disso, os pertencentes a este grupo social
sofrem punições de diversas formas. “Podem ser presos pelas autoridades, sofrer
graves ameaças de direitos humanos dos vizinhos, autoridades, nas ruas, na escola,
no trabalho, no hospital e nos diversos âmbitos de sua vivência social.” (GORISCH,
2017).

Além disso, a criminalização a homossexualidade que alguns países


exercem, estão relacionadas, principalmente, as questões religiosas. Na atualidade,
essa condenação prevalece em países predominantemente mulçumanos, por ques-
tões de crença e doutrina. Indivíduos LGBTQIA+ são alvos frequentes de violências
físicas ou simbólicas, como meio de sanções por desviarem das normas culturais
e, por vezes, juridicamente efetivas (REZENDE, 2017). Fica claro, portanto, que os
fatores culminantes para as agressões que LGBTQIA+ sofrem, são por motivos reli-
giosos.

Como marco de evolução a LGBTQIA+, surgiu recentemente a cartilha


para refugiados perseguidos por orientação sexual no Brasil, criada pela Organiza-

299
ção das Nações Unidas (ONU), com o objetivo de garantir que refugiados LGBTQIA+
conheçam seus direitos e saibam onde buscar apoio, além de informar a sociedade
brasileira sobre quem são essas pessoas, quais são suas trajetórias, quais são seus
direitos e quais são as suas necessidades (BRAGA, 2018). Porém, a cartilha ainda
não se faz suficiente diante do contexto catastrófico.

Ademais, as situações enfrentadas por LGBTQIA+ em países que per-


seguem e criminalizam relações homossexuais, precisam ser refletidas sobre um
determinado direito fundamental, o direito a doutrina. Se esse grupo sofre punições
como a prisão, tortura ou até então a pena de morte pela orientação sexual, estão
interferindo diretamente nos direitos humanos. “Todo ser humano tem direito à vida,
à liberdade e à segurança pessoal” (Declaração dos Direitos Humanos, 1948). Exis-
tem direitos fundamentais ao ser humano, inclusive a liberdade de crença e a liber-
dade sexual, contudo tais direitos apresentam-se, muitas vezes, em conflito devido á
crenças ou doutrinas, em que a homossexualidade é proibida. Assim, “Havendo uma
situação que coloca ambos os direitos em colisão, de forma que apenas um deles
possa ser atendido, deve incidir o princípio do primado do direito mais relevante, na
hipótese, o direito à vida”. (DINIZ, 2008).

Diante desse contexto, muitos países continuam não cumprindo as orientações


de entidades internacionais à luz dos direitos humanos, na proteção de liberdade
sexual das pessoas. Isso porque, muitos países apresentam uma história centenária
que, preserva o direito a doutrina, os preceitos da religião, a ideologia, entre outros
fatores, posto que antigamente o preconceito à homossexuais era mais corriqueiro.
Apesar doas avanços diante de tempos passados, ainda pode-se observar situações
comum na atualidade, como a presença de 70 países onde a homossexualidade
é crime, podendo levar à pena de morte, ou apedrejamento público. É por esses e
outros inúmeros fatores, que alguns países acabam por gerar diversos refugiados
LGBTQIA+.

Irã e Arábia Saudita, são exemplos de países que criminalizam a homossexua-


lidade, através da pena de morte por apedrejamento, em que seguem as leis criadas
dentro da religião Islâmica. Outro país que, recentemente incorporou no seu corpo
legislativo a criminalização à homossexuais foi Brunei, também seguindo preceitos

300
da religião Islâmica. Nos Emirados Árabes, Qatar, e Afeganistão, são países que
constituem no seu ordenamento jurídico a pena de morte à relações homossexuais.

Além disso, a prisão perpétua também se faz presente nas punições à LGB-
TQIA+. Tanzânia, Uganda e Guiana, à saber, utilizam desse método de punição.
Ademais, a maior punição é dada na Malásia, onde a lei da pena de morte vale para
homens e mulheres, e a “caça aos gays” é divulgada até no jornal.

Diante desse contexto, revela-se a tamanha agrura que pessoas homosse-


xuais enfrentam em seu país de origem, e por segurança pedem refúgio, com destino
principalmente ao Brasil, visto que na atualidade mostra-se um país avançado diante
dos demais, com legislações e políticas públicas de amparos a LGBTQIA+. A prote-
ção aos direitos dos refugiados encontra fundamentado na Constituição Federal de
1988, especialmente através do objetivo fundamental de promoção do bem de todos,
sem preconceitos de origem, raça ou quaisquer outras formas de discriminação e da
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, bem como por meio da extensão
das garantias fundamentais (Nascimento, Rodrigues, 2019).

Desse modo, é por isso que o Brasil revela-se um país líder perante a questão
de refugiados LGBTQIA+, pois proporciona, apesar das lacunas ainda existentes,
uma possibilidade de uma vida digna a homossexuais, que fogem de seu país devido
a inúmeras perseguições. Segundo a Cartilha informativa sobre a proteção de pes-
soas refugiadas e solicitantes de refúgio LGBTQIA+, “o Brasil tem realizado esforços
para garantir que pessoas LGBTQIA+ tenham acesso a um procedimento de deter-
minação da condição de refugiado sensível às necessidades de proteção específicas
dessa população” (ACNUR, 2017).

301
CONCLUSÃO
Com base em todo o exposto, pode-se perceber que a crise dos refugiados
ainda que, com as medidas já existentes os números são alarmantes, principalmente
quando relacionados aos refugiados por orientação sexual, que se encontram em
vulnerabilidade em países maiormente mulçumanos. Como resultado obteve-se que
estes países geram maiores números de refugiados LGBTQIA+, por falha no seu
sistema jurídico, os quais não oferecem uma proteção legal a esta comunidade, além
de apresentar no seu corpo legislativo condenações às relações homossexuais.

Portando, observou-se que a falha no ordenamento jurídico não é apenas vi-


gente nos países que condenam a homossexualidade, sobretudo em países desti-
nos, como o Brasil. O mesmo, sendo muito procurado pelos refugiados venezuelanos
para uma melhor qualidade de vida. Entretanto, essa qualidade de vida não é pro-
porcionada inteiramente ao grupo LGBTQIA+, mesmo com tamanhas solicitações de
refúgio ao país. Isso por que, o Brasil ainda apresenta lacunas em seu corpo legisla-
tivo, quanto a inclusão de refugiados da comunidade LGBTQIA+ na sociedade, que
facilite a entrada dos mesmos no mercado de trabalho, na educação pública ou no
âmbito jurídico. Embora o Brasil ainda apresente algumas falhas no corpo legislativo,
o país ainda proporciona melhores amparos para a comunidade LGBTQIA+ perante
outras nações. Atualmente, dia 28 de junho é celebrado o dia do orgulho LGBTQIA+,
criado a partir de protestos realizados em 1969. Ainda no âmbito das celebrações
do orgulho LGBTQIA+, a ONU realizou uma campanha “Livres e Iguais” sendo o pri-
meiro concurso de arte de cartões LGBTQIA+, também obteve-se como conquista a
Cartilha Informativa sobre a proteção de pessoas refugiadas e solicitantes de refúgio
LGBTQIA+ no Brasil.

Quando surge o questionamento referente a responsabilização dos países que


acolhem refugiados, os autores estudados e artigos retratados sustentam que, os di-
reitos mínimos devem ser garantidos e concedidos a comunidade LGBTQIA+. Nessa
perspectiva, a legislação dos países que criminalizam a homossexualidade diverge
da Brasileira, ainda que essa apresente negligências.

Em suma, a abordagem retratada no artigo, se faz crucial e relevante debater


no âmbito jurídico e civil, pois além das medidas governamentais, a população deve

302
incluir a comunidade LGBTQIA+ em todos os espaços sociais. Visto que, os refu-
giados possuem uma carga histórica pesada, atualmente, os amparos e legislações
desenvolvidas se fizeram profícuas, ainda que, deve-se melhorar. Em concordância
a esses obstáculos, o assunto faz-se desafiador aos estudiosos da área do direito, a
fim de discutir medidas de inclusão e modificações legislativas.

REFERÊNCIAS
ACNUR. Cartilha Informativa sobre a Proteção de Pessoas Refugiadas e Solicitantes
de Refúgio LGBTI. Brasília, 2017. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/
wp-content/uploads/2018/02/Cartilha-informativa-sobre-a-prote%C3%A7%C3%A3o-
-de-pessoas-refugiadas-e-solicitantes-de-ref%C3%BAgio-LGBTI_ACNUR-2017.
pdf>. Acesso em: 20 de maio de 2020.

ACNUR. Brasil protege refugiados LGBTI. Luiz Fernando Godinho e Nicole Minviel-
le, Brasília, 2018. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2018/11/29/brasil-
-protege-refugiados-lgbti-mostra-levantamento-inedito-do-acnur-e-do-ministerio-da-
-justica/.> Acesso em: 28 de Maio de 2020.

ACNUR. Eu nunca imaginei que iria viver no Brasil. Nina Borges, São Paulo, 2018.
Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2018/09/19/eu-nunca-imaginei-que-
-iria-viver-no-brasil/ > Acesso em: 22 de maio de 2020.

ACNUR. Perguntas e respostas. Agência da ONU para Refugiados. Disponível em:


<https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/perguntas-e-respostas/>
Acesso em: 15 de abril de 2020.

ACNUR. Legislação. Agência da ONU para Refugiados. Disponível em: <https://


www.acnur.org/portugues/acnur-no-brasil/legislacao/> Acesso em: 18 de abril de
2020.

303
ACNUR. Diretrizes sobre proteção internacional N. 09. Solicitações de refúgio ba-
seadas na orientação sexual e/ou identidade de gênero no contexto do artigo 1A(2)
da Convenção de 1951 e/ou Protocolo de 1967 relativo ao Estatuto dos Refugiados.
ACNUR documentos, 2012. Disponível em: < https://www.acnur.org/fileadmin/Docu-
mentos/BDL/2014/9748.pdf>. Acesso em: 15 de Abril de 2020.

Associação dos engenheiros Brasil – Alemanha. Como as empresas estão cons-


cientizando os colaboradores sobre inclusão LGBT. São Paulo. Disponível em: ht-
tps://www.vdibrasil.com/conscientizacao-colaboradores-inclusao-lgbt/ > Acesso em:
16 de maio de 2020.

BARRETO, Luiz Paulo. Refúgio no Brasil, a Proteção Brasileira aos Refugiados e seu
impacto nas Américas. Ed. Brasília: ACNUR, Ministério da Justiça, 2010. Disponível
em: <https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/02/Ref%C3%BA-
gio-no Brasil_A-prote%C3%A7%C3%A3o-brasileira-aos-refugiados-e-seu-impacto-
-nas-Am%C3%A9ricas-2010.pdf>Acesso em: 17 de abril de 2020.

CERVEIRA, Luís Alexandre. Dos levantes de castelã ás revoluções comuneras do


Paraguai: Apropriaçõese ressignificações de um conceito em três atos. São Paulo:
Repositório Jesuíta, 2014. Disponível em: http://repositorio.jesuita.org.br/bitstream/
handle/UNISINOS/3086/LuisCerveira.pdf> Acesso em: 3 de Abril de 2020.

DINIZ, Debora. Colisão de direitos fundamentais: análise constitucional. São Paulo:


Âmbito Jurídico, 2016. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-
constitucional/colisao-de-direitos-fundamentais-analise-constitucional/>. Acesso em:
17 de Abril de 2020.

304
ENRICONI, Louise. A história mundial é a história de Migrações. 2017. Disponível
em: https://www.politize.com.br/migracoes-historia-mundial/#>. Acesso em: 30 de
maio de 2020.

Fantástico. Mulheres são vistas como propriedades dos homens no Líbano, 2014.
Disponível em: http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2014/06/mulheres-sao-vistas-
-como-propriedades-dos-homens-no-libano.html > Acesso em: 23 de maio de 2020.

GORISCH, Patrícia. Direitos humanos e proteção dos refugiados LGBTI. Revista In-
terdisciplinar de Direitos Humanos, São Paulo, v. 5, n.1, 2017. Disponível em: <ht-
tps://www3.faac.unesp.br/ridh/index.php/ridh/article/view/468>. Acesso em: 1 de abril
de 2020.

MERELES, Carla. Crise dos Refugiados. Politize!, 2018. Disponível em: <https://
www.politize.com.br/crise-dos-refugiados/> Acesso em: 17 de abril de 2020.

MOREIRA, Julia Bertino. A questão dos refugiados no contexto latino-americano


e brasileiro. São Paulo, 2008. Disponível em: http://www.geocities.ws/politicausp/
relacoesinternacionais/soc_global/Moreira.pdf > Acesso em: 20 de maio de 2020.

Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Artigo 3, 1948. Dispo-
nível em: https://nacoesunidas.org/artigo-3-direito-a-vida/. Acesso em: 15 de Abril de
2020.

Nações Unidas. UNESCO e parceiro realizam enquete online com jovens LGBTI
sobre educação e inclusão. 2018. Disponível em: https://nacoesunidas.org/unes-
co-e-parceiro-realizam-enquete-online-com-jovens-lgbti-sobre-educacao-inclusao/
>Acesso em: 25 de maio de 2020.

305
NASCIMENTO, Daniel Braga. Refúgio LGBTI: boas práticas na declaração do status
de refugiado/a. Porto Alegre: UFRGS, Lume repositório digital, 2017. Disponível em:
<https://lume.ufrgs.br/handle/10183/173291> Acesso em: 18 de abril de 2020.

NASCIMENTO, Rodrigues. REFÚGIO LGBTI: RECONHECIMENTO E PROTEÇÃO


NO BRASIL E NA ARGENTINA. Revista de gênero, sexualidade e direito, 2019. Dis-
ponível em: https://www.indexlaw.org/index.php/revistagsd/article/view/5414/pdf>
Acesso em: 12 de maio de 2020.

PEREIRA, Gustavo de Lima. “Direitos Humanos e Migrações forçadas: introdução ao


direito migratório e ao direito dos refugiados no Brasil e no mundo”. Biblioteca Virtual
Universidade Franciscana. EdiPucrs, Porto Alegre, 2019. Disponível em: https://plata-
forma.bvirtual.com.br/Leitor/Publicacao/173089/epub/0?code=LTjQ4FiSUwN9BaU-
Vfa/oEgti1l9NeaIjIYMnO99k+bhOqCvO9UqxGtsagB+IuobGNmgK7sH7nJN-
J4O95HP58Mg > Acesso em: 27 de Maio de 2020.

PENA, Rodolfo F. Alves. “População de refugiados no mundo”. Brasil Escola. Dispo-


nível em: <https://brasilescola.uol.com.br/geografia/populacao-refugiados-no-mun-
do.htm.> Acesso em 18 de abril de 2020.

PORFÍRIO, Francisco. Crise dos refugiados. Mundo Educação, Goiânia, 2017. Dis-
ponível em: < https://mundoeducacao.uol.com.br/sociologia/crise-dos-refugiados.
htm>. Acesso em: 13 de junho de 2020.

REZENDE, Lucas. Sexílio, alteridade e reconhecimento: Uma análise teórica sobre


o refúgio de LGBTs. O social em questão, 2017. Disponível em: <http://osocialem-
questao.ser.puc-rio.br/media/OSQ_41_art_13_Rezende.pdf>. Acesso em: 9 de Abril

306
de 2020.

SARMENTO, Luciana. O Comovente relato de refugiada sobrevivente de um naufrá-


gio. EXAME, 30 set. 2015. Disponível em: < https://exame.abril.com.br/mundo/o-co-
movente-relato-de-refugiada-sobrevivente-de-um-naufragio/> Acesso em: 17 de abril
de 2020.

Tribunal Constitucional. A dignidade da pessoa humana e sua dimensão comunitária


como centro de unidade e promoção dos direitos humanos e fundamentais. Jus.com.
br, 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73590/a-dignidade-da-pessoa-hu-
mana-e-sua-dimensao-comunitaria-como-centro-de-unidade-e-promocao-dos-direi-
tos-humanos-e-fundamentais>. Acesso em: 16 de Abril de 2020.

UNICEF. UNICEF lança apelo global e pede U$ 64,5 milhões para a resposta à crise
migratória venezuelana. 2019. Disponível em: <https://www.unicef.org/brazil/comu-
nicados-de-imprensa/unicef-lanca-apelo-global-e-pede-usd-64-5-milhoes-para-res-
posta-a-crise-migratoria-venezuelana>. Acesso em: 19 de abril de 2020.

ZYLBERKAN, Mariana. Vida de refugiado: Por uma segunda chance. 2018. Disponí-
vel em: <https://tab.uol.com.br/refugiados/>.Acesso em: 20 de Abril de 2020.

307
T

REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADE DE GÊNERO E


RAÇA NA PARADA DA DIVERSIDADE, RECIFE, 2019.

Maria Cecilia Patricio1


André Luiz dos Santos2

RESUMO:

O mundo moderno, contemporâneo tem como pano de fundo a globalização, fruto de


uma hegemonia eurocêntrica que desenvolve uma cultura tecnológica e acaba por
estimular uma desigualdade socioeconômica de proporções jamais vistas. Diante
desse avanço tecnológico dos meios de comunicação de massa, a afirmação de
interseccionalidade (Akotirene, 2019) vem demarcando espaços de resistência,
movimentos sociais que atraem gente de todo lugar do mundo, seja este mundo
próximo ou distante, como exemplo as Paradas da Diversidade ganham a cada dia
destaque como locus de analise nas ciências socias, caracterizando-se uma interface
entre psicologia, antropologia e sociologia, como abordagens interdependentes sobre
a identidade como constituição do sujeito e individuo inserido em um contexto social.
Com a intenção de analisar a representação da população participante da 18ª. Parada
da Diversidade do Recife acerca da discussão sobre gênero e raça, e sua importância
como evento de atração turística, este estudo tem como principal intuito verificar os
diversos olhares e notícias sobre este movimento social, enquanto fazendo parte dos

308
“novos movimentos sociais” que surgiram no século XX e expõe reivindicações de um
coletivo cada dia mais diverso e contextualmente diferente, quando se trata de países
e seus coletivos valorando qual identidade de gênero e identidade sexual se colocam
na pauta da construção da sigla, no Brasil atualmente LGBTQIA+. Nossa pesquisa foi
na Parada LGBTQIA+ do Recife, 2019 com levantamento retrospectivo de Paradas
anteriores, com aproximadamente 30 pessoas entrevistadas, entre membros da
comissão organizadora, apoio e participantes, além de um coletivo, a RedAfroLGBT
que nos forneceu dados importantes sobre questões de representatividade.

Palavras-chave: Representação; Identidade de gênero e raça; Parada da Diversidade


Recife.

INTRODUÇÃO

A parada da diversidade do ano de 2019 em Recife, Pernambuco, teve como tema “Ontem,

hoje e sempre: Resistir para Libertar” aconteceu no domingo dia 15 de setembro de


2019 no espaço que ocupa desde o ano de 2007 conhecido como Parque Dona
Lindu, zona sul da cidade e localizado na Praia de Boa Viagem.

As Paradas de Orgulho LGBT são “momentos políticos de descontração e de


celebração do orgulho de viver a sexualidade e as expressões de gênero, livre de
opressão e discriminação”3.

Como um movimento social em todos os seus aspectos, a Parada da Diversidade,


como atualmente se intitulam, conta com a participação efetiva do Estado e do
Município na representação política de seus líderes, que nem sempre estão presentes,
mas enviam seus representantes e contribuem para a organização do evento. Órgãos
como a Polícia Militar, em seus específicos batalhões, sistema de saúde representado
pela presença do SAMU, A Autarquia de Trânsito e Transporte Urbano do Recife
(CTTU), assim como Secretarias de Saúde, da Mulher, da Diversidade, dos Direitos
Humanos, Organizações Governamentais e Organizações Não Governamentais,
estas, encabeçam a organização do evento através do Fórum LGBT de Pernambuco.
Ou seja, o caráter de organização social (Lakatos, 2010) que tem a Parada da
3 Da série Memórias de Futuro. Disponível em: http://paradadiversidade.blogspot.com/p/
sobre-as-paradas.html

309
Diversidade com seus elementos organizacionais (administrativos, financeiros e de
gestão) e legais (através da construção, e registro das reuniões e órgãos envolvidos)
constroem esse movimento social como atual na pauta reivindicativa de direitos de
uma população, repito, cada vez mais diversa.

É por esta diversidade que levantamos neste evento o seguinte problema: Como
os participantes da Parada da Diversidade se representam, além das identidades
que envolvem elementos de gênero e sexualidade, enquanto pertencentes a uma
identidade racial?

DESENVOLVIMENTO E RESULTADOS

Dentre as 18 edições das Paradas da diversidade de Recife, com suas


temáticas reivindicatórias, também diversas, 07 delas estão diretamente ligadas a
lutas por direitos em seu tema (2002, 2005, 2010, 2015, 2016, 2017 e 2018); outros
07 tem como bandeira de luta o combate à homofobia/violência sofrida pela maioria
LGBTQIA+ no estado e no Brasil (2003, 2006, 2008, 2009, 2011, 2012, 2014); outras
06 tem como temática questões que envolvem família (2004 e 2015) respeito (2007),
felicidade (2015) e liberdade (2015, 2019).

Em todas elas, levando em consideração que o movimento social tem como


pauta a luta por direitos e sua relação com a realidade social em que a população
LGBTQIA+ vive, a temática política sobressai pelo fato de algumas das versões
acontecerem em ano eleitoral. Por isso que diretamente por 03 vezes a Parada (2011,
2016 e 2018) utilizou o termo Democracia em seu tema.

No ano de 2019, a pauta privilegiou o tema Resistir para Libertar. E em nenhuma


delas se apresenta lutas reivindicatórias que envolvam questões raciais nem de
classe. Neste sentido, talvez ainda, não tenha havido “necessidade” ou a percepção
de questões relacionadas a raça/racismo envolvido na comunidade LGBTQIA+
para ser tema de pauta nas reuniões do Fórum LGBT, órgão que congrega, reúne e
organiza a Parada da Diversidade todos os anos.

310
Como aponta Corrêa4, é inegável a importância que a Parada da Diversidade
tem em se apresentar como um “campo de ação política a partir de um dispositivo
de sexualidade” (p. 10). Este autor, também representante do movimento social5,
faz suas análises a partir das obras de Michel Foucault e outros autores também
expressivos, e não tem como intenção destacar leituras sobre questões raciais do
tema.

Não podemos deixar de fora o “conhecimento elaborado na prática social”,


como Moura (1988) já aponta em sua obra, e esse poderia ser a intenção deste
escrito, embora não consigamos no momento realizar tal feito.

A literatura sobre as Paradas da Diversidade no Brasil destacam,


significativamente, seu viés político e de expressão de gênero de um coletivo cada vez
mais diverso. Silva6 identifica a relação forte com o evento carnaval/carnavalização
devido a estética das paradas e da maneira como se “grita” por direitos a partir de um
posicionamento “festivo” e “colorido”, o que, infelizmente permite o descrédito e a mal
querência da população não LGBTQIA+ para com o movimento.

Na literatura da Sociologia clássica, Clóvis Moura7 aponta que o fato de vivermos


em uma sociedade de classes,

grupos específicos de resistência que, dentro de uma sociedade contraditória


e conflitante, procuram, nos diversos níveis e de diversas maneiras,
organizar-se para sobreviver e garantir-se contra o processo de compressão
e peneiramento económico, social e cultural que as classes dominantes lhes
impõem. (p. 110)

São os valores em comum que faz com que as pessoas se unam em grupos
sociais para reivindicação de direitos, como os membros do movimento LGBTQIA+
que organizam desde a década de 1970 as Paradas de Orgulho Gay (da Diversidade).

O “espírito associativo” e a dinâmica organizacional da população que Moura


4 CORRÊA, Tiago Matheus. O governo carnavalizado ou o carnaval governado: política e
estética no campo de ação da 9ª. parada da diversidade Pernambuco: Recife, UFPE 2012.
5 Instituto PAPAI e Forum LGBT de Pernambuco.
6 SILVA, Marcos Autélio. Numa tarde qualquer: Uma antropologia da Parada da Diversidade
em Cuiabá e da cultura LGBT no Brasil contemporâneo. Revista Bagoas, n. 15, 2016, p. 101-130.
7 MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro brasileiro. Série Fundamentos. São Paulo: Ed. Ática,
1988.

311
se dedica em estudo, os negros e os movimentos que organizam para “resistirem
às forças desintegrativas que atuam contra eles” (p. 120), forças estas típicas de
uma sociedade de classe, podem ser comparados com o coletivo do movimento
LGBTQIA+, pois se encontram “com um nível de organização e grau de ideologização
capazes de levá-los a participar de movimentos mais globalizadores” (Moura, 1988,
p. 113). Motivo pelo qual os participantes da comissão organizadora das Paradas nas
capitais e principais cidades se desdobram para participar de vários destes eventos,
pois no Brasil eles acontecem em datas (dias e meses) diferentes e o coletivo se
alinha a forças nacionais de luta por direitos, como a ABGLT (Associação Brasileira
de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos)8 por exemplo.

Na abordagem de Alberto Ramos (1981), mesmo que o autor não trabalhe


especificamente com o fenômeno Parada da Diversidade, é possível linkar com
a discussão sobre cultura como “uma compenetração de elementos históricos e
biológicos. Que ela não é, por exemplo, um produto neutro, do ponto de vista sexual,
podendo ser, de fato, masculina e feminina.” (p. 23). Por isso, pode se entender
a Parada LGBTQIA+ como aspecto da cultura que segue padrões estéticos,
principalmente advindos de uma cultura norte-americana que aponta um cunho
político e de gênero, de estética feminina, de corpos generificados, pautado em uma
diversidade de femininos, principalmente pelo que se apresenta no evento ano a ano,
ou seja, que não se pode dizer que é nem masculino nem feminino propriamente dito,
como dá a entender algumas leituras sobre cultura.

Na Parada de 2019, o primeiro momento da festa, no palco do Parque


Dona Lindu, no bairro de Boa Viagem, aconteceu o que chamamos de ato político
propriamente dito, que se mostra a partir das 8h da manhã do dia do evento, em que
membros do movimento social LGBTQIA+ movimentam as atrações e a plateia que
cedo já estão prestigiando o evento. Um segundo momento inicia-se com a saída
8 Fundaram a ABGLT as seguintes Associações: Atobá / Rio de Janeiro-RJ; ADEH / Florianópolis-SC; AMHOR /
Recife-PE; ASBRAGEL / Curitiba-PR; Caras e Coroas / Rio de Janeiro-RJ; Cidadania Plena / Paranaguá -PR; Dialogay
/ Aracaju - SE; Etcetera e Tal /São Paulo - SP; Grupo de Gays e Lésbicas da USP /São Paulo - SP; Grupo Arco-Íris /
Rio de Janeiro-RJ; Grupo Canto Livre – Dignidade e Direitos Humanos /Fortaleza - CE; Grupo de Gays e Lésbicas
do PSTU /São Paulo - SP; Grupo de Gays e Lésbicas do PT /São Paulo - SP; Grupo Dignidade /Curitiba-PR; Grupo
Esperança /Curitiba-PR; Grupo Estruturação /Brasília-DF; Grupo Gay da Bahia (GGB) /Salvador - BA; Grupo Gay do
Amazonas/Manaus-AM; Grupo Habeas Corpus Potiguar /Natal-RN; Grupo Homossexual Unificado – ASTRAL /Rio de
Janeiro-RJ; Grupo Lésbico da Bahia /Salvador - BA; Grupo Tibira /São Luis - MA; Grupo 28 de Junho / Nova Iguaçu-
RJ; Movimento do Espírito Lilás (MEL) /João Pessoa-PB; Movimento Homossexual de Belém /Belém-PA; Núcleo de
Estudos da Homossexualidade – UFSE / Aracaju - SE; Organização Gay Norte do Paraná / Londrina-PR; Satyricon /
Carpina-PE; Shallom / São Paulo - SP; TULIPA /Santo André - SP; Um Outro Olhar / São Paulo - SP.

312
dos trios elétricos que compõe a pauta reivindicatória e apresenta de forma artística
(com dança, performances e música) a temática vigente. Ou seja, o momento em que
se destaca o que costumam apontar de “caráter festivo” do ato, no qual se configura
como nova forma de fazer política e movimentos sociais, o que direciona as Paradas
para a caracterização como Novo Movimento Social.

A chamada é sempre feita pelo tema do ano vigente, como grito de guerra, com
oralidades (textos em discursos) que apontam os motivos da temática e com todos os
envolvidos possível. Junta-se a isso apresentações, no palco destinado ao evento,
culturais, musicais e de dança e teatro que envolvem grupos gays, transformistas,
travestis e drag-queens.

Neste ano de 2019 tivemos apresentação de “Gaby do Carmo e Amigas do


Brega, além do DJ Jefferson e show performático”9, grupos musicais que apontam para
uma cultura de massa e movimento pop, brega e teatral que envolve a temática em
pauta, mas que se mostram em sua maioria representando a população público-alvo
da Parada, que mesmo diversa, se mostra de uma maioria popular, de comunidade
e de identificação racial, de matriz africana na manifestação musical, por exemplo,
como apontam as imagens a seguir:

Figura 1 Gaby do Carmo Figura 2 Grupo da Amotrans

Figura 3 Amigas do Brega

9 SILVA, Wellington. Parada LGBTI+ deve reunir 500 mil pessoas em Boa Viagem. O evento
será realizado neste domingo (15). Estão programados 12 trios elétricos, além de shows no parque
Dona Lindu. Disponível em parquedonalindu.com . Acessado em 01/10/2019

313
Ao chegarmos as 9:30 da manhã, as apresentações já haviam iniciado. Ficamos
na área do palco, entre a frente e sua lateral se protegendo do sol, estabelecendo
contatos com os conhecidos da liderança do movimento (ONGs, OGs e Associações)
e observando quem poderia e se dispunha a ser interlocutor. Juntamente com
um pequeno grupo de estudantes do Centro Universitário UNIFBV, iniciamos as
entrevistas roteiradas10 para que as pessoas não se sintam incomodadas e por isso
pensem estar deixando de aproveitar o evento, a praia e o sol que tanto chama a
atenção naquele espaço.

Conseguimos realizar 30 entrevistas, dentre elas houveram as monossilábicas,


algumas pessoas não quiseram dar informações sobre cor/raça, algumas não
identificaram seu gênero e muitas delas nem sabiam o tema da Parada deste ano
(grifo nosso). As entrevistas foram bem rápidas, pois a proposta era realiza-las no
primeiro momento da Parada, pois no segundo momento não entendemos que seria
justo interferir no trajeto das pessoas em meio ao cortejo dos trios elétricos, o que nos
faz concordar, por muito ter ouvido e entendido de boa parte dos participantes, com
o aspecto “festivo” do evento.

Na construção do roteiro, sobre o item relacionado a cor/raça, montamos duas


questões: a primeira se tratando de “Como a pessoa se identifica em relação a cor/
raça” e a segunda: “Como o entrevistador percebe cor/raça no indivíduo pesquisado”.
Muitos dos entrevistados não responderam à primeira pergunta ou não deram
importância a ela, mas o importante é verificar que dos 30 ouvidos, 5 se identificaram,
ou foram identificados, como brancos, 6 como negros e apenas 2 como pardos.
Existe aí um posicionamento muito forte quanto a identificação da pessoa em sua
condição de cor/raça, o que tenta-se desmistificar como eu vejo e como sou visto
pela sociedade que julga.

Devido à dificuldade em conseguir uma fala que pudesse dialogar com nossa
proposta11, fomos atrás da Rede AfroLGBT que se apresenta em redes sociais e se
reúnem como movimento social inserido nos eventos da Parada LGBTQIA+ também
10 Entrevistas roteiradas tem como intenção serem aplicadas de forma rápida, pois o
pesquisador já direciona as perguntas na conversa com o interlocutor, e o espaço e tempo da
Parada da Diversidade permite que esta estratégia seja utilizada por se tratar de um Movimento
Social e por isso com tempo determinado para acontecer.
11 Pois os interlocutores na Parada da Diversidade foram escolhidos de forma aleatória e isso
permitiu escutar rapidamente respostas também rápidas e sem muita reflexão.

314
em Pernambuco.

Para estabelecer algum diálogo, construímos um outro roteiro mais direcionado


e que não demorasse muito a ser respondido pelos interlocutores do grupo. Fomos
encaminhados para o Sr. Tomaz, que prontamente nos respondeu. A conversa se deu
através da rede social Instagram e continha questões sobre representatividade que o
coletivo afro, e as pessoas negras, tem no espaço e evento Parada da Diversidade,
como se veem representados, a partir do viés da raça, no momento da Parada e na
preparação da mesma que ocorre em várias reuniões de organização do movimento
social. As respostas vieram e se alinharam ao silenciamento (na fala) que percebemos
na investigação durante a Parada.

Está claro que a população que é habitué das paradas ano a ano são negras,
pardas, brancas, estrangeiras e/ou outras marcações de raça, gênero e orientação
sexual. As temáticas de políticas de cunho feminista, como aparecem enquanto
ferramenta de luta, estão presentes na população que grita por direitos. Nosso
interlocutor localizou:

(...) especificamente em Pernambuco não há um espaço cm destaque p o


tema racial. Nos últimos 4 anos as lésbicas negras tem se inserido mais,
mais por estarem na organização. Mas tb se adaptando a demandas das
organizações brancas. O que tem assegurado é somente uma fala no trio.
(sic)

As organizações brancas, que Tomaz se refere, assim o é pela criação das


Paradas como movimento social a partir da sociedade branca estadunidense na
década de 1970, como movimento que não surgiu como reivindicação de coletivo
negro. Pois, mesmo havendo participação de pessoas negras, em sua maioria e em
se tratando de movimento social, questões acerca de raça não prevaleciam na pauta
reivindicatória.

Na segunda parte das perguntas, a direção foi pensar sobre a participação


negra com vez e voz também na organização do evento, a partir destas reuniões do
movimento social. Perguntas sobre como se percebem com visibilidade ao longo do
processo de organização das Paradas e do evento em si. As respostas vieram nesta

315
direção:

Não há uma identidade mais importante e sim condições que promovem


determinados privilégios. Mas as questões raciais são pautas secundárias
para ainda boa parte do movimento organizado não negro.
Os gays brancos tem muito mais visibilidade. Mas natural numa sociedade
organizada nas estruturas patriarcal. Com esse modelo social os gays ocupam
mais espaços. E tem maior trânsito.


Percebe-se o grau de insatisfação que a fala demonstra confirmando o quanto os
temas das Paradas não incluem questões raciais, como também não se apresenta
nas entrevistas durante o evento. Fica claro como este interlocutor ironiza a
“naturalização” da organização social branca e patriarcal que privilegia a ocupação
dos espaços pelos brancos, assim como seu lugar de fala, colocado como de valor
secundário, porque, repetindo, o movimento é não negro.
É possível identificar uma hierarquia, ou mesmo uma defesa de identidade de
gênero como à frente (como se fosse superior) à identidade de cor/raça. Ou seja,
entende-se aqui que não se parte da afirmação do ser negro ou pardo, concordando
com a afirmação de Ramos (1981) no

(...) qual o homem de pele escura seja, ele próprio, um ingrediente, contanto
que este sujeito se afirme de modo autêntico como negro. Quero dizer,
começa-se a melhor compreender o problema quando se parte da afirmação
– niger sum. [no qual, o] (...) negro é povo, no Brasil. Não é um componente
estranho de nossa demografia. Ao contrário, é a sua mais importante matriz
demográfica (...) o negro no Brasil não é anedota, é um parâmetro da realidade
nacional” (Pp. 27-28).

Por esta afirmação, confirmamos, pelas participações em outras edições e


observações neste ano de 2019, que a maioria das apresentações do palco são de
pessoas negras ou pardas e que se identificam com a identidade racial pelos ritmos
de cultura popular que defendem – samba, coco, afoxé, maracatu, ou brega – e de

316
expressões estéticas de cultura de matriz africana. Como demonstra o cartaz de
atrações do Trio elétrico do Movimento Leões do Norte:

Como mais importante na matriz demográfica, segundo Ramos (1981), a resposta


de Rivânia Rodrigues, uma das coordenadoras do Fórum LGBT de Pernambuco,
mulher, lésbica e negra, aponta para a presença e sua importância, o que confirma
fala da RedeAfroLGBT:

A Parada é um ato político de visibilizar sujeitos/as LGBTs e pontuar as suas


reivindicações. Este é o momento de ficarmos juntos/as mães, irmãos, pais,
filhos, parentes, e somar com os outros movimentos como o feminista, negro,
da juventude, sem-terra, sindical, ambiental etc. Resistir para existir! (Rivânia
Rodrigues. sic)12

Falas como a de Rivânia não aparecem com grandes destaques no palco e


avenida no momento do evento, o que demonstra ser a luta que veicula o movimento
social Parada da Diversidade, não ter conseguido ainda ter visibilidade na pauta
reivindicatória ano a ano. E por isso, questionamos, segundo orientação de Lélia
Gonzales: que espaço tem o negro?

Frantz Fanon (2008) nos traz a discussão sobre os efeitos subjetivos da

12 Caetano, Marcela. Cores e luta: Recife celebra a 18ª Parada da Diversidade em Pernambuco. 12 de setembro
de 2019.
Disponível em https://www.anf.org.br/cores-e-luta-recife-celebra-a-18a-parada-da-diversidade-em-pernambuco/

317
alienação colonial e os processos neuróticos do comportamento do homem de cor e
do mito do homem de cor criados pelos ditos civilizados no tocante a sua sexualidade.

O autor reflete como marco da discussão de sua epistemologia a contribuição


da psicanalise não só em uma visão eurocêntrica, mas também em uma visão mais
ampla trazendo à tona as questões sociopsicológicas, e das relações neuróticas entre
o branco dito “civilizado” e o homem negro. Fanon não concorda com o pensamento
de Jung sobre o inconsciente coletivo, no tocante a colonização do homem branco
em virtude de que o homem de cor não tinha conhecimento desses fatos, como ele
aponta:
Como explicar, por exemplo, que um jovem estudante preto, chegando a
Sorbonne com o objetivo de se graduar em filosofia, antes mesmo de entrar
em contato com qualquer organização conflitante que o espera, assuma uma
atitude defensiva? (FANON, 2008, p. 130).

A visão do homem branco é exercida, antes de tudo, pela impiedosa tendência a


destruir a identidade do sujeito negro. Este, através da internalização forçada e brutal
dos valores e ideais do branco é obrigado a adotar para si modelos incompatíveis
com seu próprio corpo - o fetiche do branco, da brancura. Citemos como exemplos
comuns: o fenótipo no nariz fino e cabelo liso. Para o sujeito negro oprimido, os
indivíduos brancos, diferentes em suas realidades psíquicas, econômicas e sociais
assumem um caráter universal onde somente a “brancura” é percebida e mitificada.
A interiorização de tais ideais pode, e frequentemente leva, como veremos a seguir,
à alienação e à negação da própria natureza humana, oferecendo como única
“salvação” o embranquecimento físico e/ou cultural.

Fanon nos traz uma ideia que baseada no pensamento de Quijano sobre a
“colonialidade do Poder” como um sistema de classificação social baseada em uma
hierarquia racial e também sexual onde as identidades serão classificadas como
inferiores e superiores, dependendo da cor da pele que determinará o lugar de poder
a ser ocupado.

Para Fanon, nas questões relacionadas à (des) colonização e (des) humanização


se faz necessário que os seres humanos tomem consciência de sua existência e
assim poderão lutar contra as estruturas de dominação que os subalternizam e as

318
condições sociais que os aprisionam. No pensamento de Fanon não há libertação
enquanto os homens estiverem subordinados aos seus dominadores, ou seja, a
desumanização só dará espaço para a humanização quando os homens lutam dentro
de uma realidade concreta, conscientes de seu papel transformador e histórico. Para
Fanon a desumanização está associada a colonização e só haverá humanização
com a des-colonização.

Para Grada Kilomba, essa des-colonização passa pela fala, quando o indivíduo,
ocupa esse lugar não sendo silenciada, por uma sociedade repressora. A parada
da diversidade, estabelece um espaço de poder de fala de uma população que foi
silenciada por muito tempo, e que agora ocupa um espaço significativo de nossa
sociedade (Kilomba, p. 33)

Podemos dizer que a parada da diversidade se coloca como um evento do


movimento social que apresenta uma identidade de resistência, isso se constitui
através da construção de subjetividades do sujeito em nossa sociedade, criada por
personagem e grupos desvalorizados e estigmatizados pela lógica da dominação,
construindo posicionamentos através da fala, do canto, do grito (“de guerra”) e da
chamada à resistência a partir de valores distintos ou mesmo opostos aos que
permeiam as instituições da sociedade. Formam assim comunidades ou associações
ou grupos participativos. Ela poderia ser interpretada como uma possibilidade de
compreensão da interseccionalidade que “sugere que raça traga subsídios de classe-
gênero e esteja em um patamar de igualdade analítica” (Akotirene, 2019, p. 36),
nosso propósito com esta inicial investigação, pois concordamos quando Akotirene
afirma que “a identidade não pode se abster de nenhuma de suas marcações, mesmo
que nem todas, contextualmente, estejam explicitadas”(p.44), o que acontece nas
observações do evento ano a ano.

319
FANZINE: UMA NOVA FORMA DE LINGUA-
GEM NOS CURSOS DE SAÚDE SOBRE A REPRE-
SENTAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

Márcia Yane Girolometto Ribeiro1


Catheline Rubim Brandolt2
Dyan Jamilles Brum Maia 3

INTRODUÇÃO

A cada ano mais de um milhão de pessoas perdem a vida, e muitas mais so-
frem ferimentos não fatais resultantes de autoagressões, agressões interpessoais ou
violência coletiva. Da mesma forma que seus impactos, algumas causas da violência
são facilmente constatadas, enquanto outras estão profundamente enraizadas no te-
cido social, cultural e econômico da vida humana ou outros fatores externos, criando
situações em que a violência pode ocorrer (DAHLBERG; KRUG, 2007).

Conforme Wanderbroocke e Moré (2012), devido aos profissionais da saúde


na Atenção Primária à Saúde/Atenção Básica (APS/AB) desempenharem ações de
promoção e prevenção, acabam por desenvolver atuação direta nas relações de vio-
lência, e com isso o serviço de saúde auxilia na rede de suporte para o cuidado de
sua população.

Diante disso, é evidente a importância de capacitar os profissionais de saúde


para atuarem mais profundamente nas questões de violência. Além disso, é impor-
tante estar atento às manifestações da violência para além de algo materializado,
já que situações como essas ajudam na construção de sentimentos que podem po-
tencializar a fragilidade de sujeitos expostos a elas (WANDERBROOCKE; MORÉ,
2013).
1NutricionistaEspecialista em Sistema Público de Saúde, pela Universidade Federal de Santa
Maria. Email:[email protected]

2Psicóloga, Mestre em Psicologia, pela Universidade Federal de Santa Maria. Email:cathelinerb@


gmail.com
3Enfermeira, Especialista em Sistema Público de Saúde, pela Universidade Federal de Santa
Maria. Email:[email protected]

320
Em saúde, os métodos para discutir as práticas de formação necessitam extra-
polar o modelo tradicional para uma amplitude de experiências na qual a educação
“na/em” saúde esteja voltada para um espaço de trocas de saberes. Aqui se destaca
a pedagogia da problematização, bem como metodologias ativas que favorecem a
participação ativa, crítica-reflexiva. Assim, a troca de saberes e o diálogo são seus
principais instrumentos para convocar a implicação e/ou desacomodação para que
os sujeitos reflitam sobre possíveis situações que adentram ou vão adentrar suas
práticas nos serviços. Essas novas concepções orientam para uma educação popu-
lar em saúde, uma vez que não se pode distanciar a academia/educação das práti-
cas sociais, culturais e representações da sociedade atual (OLIVEIRA et al, 2015).

Segundo Brasil (2014), o enfoque da metodologia participativa valoriza os co-


nhecimentos e vivências reais ou imaginárias das participantes, provocando a re-
flexão, e busca construir sentidos às situações concretas da vida. Existindo várias
formas de trabalho em metodologias participativas, embasadas em saberes multidis-
ciplinares, as mais conhecidas são círculos de cultura, oficina e técnicas de grupo.

Nesse sentido, esta experiência parte de um projeto de intervenção no qual se


desenvolveram oficinas, utilizando um meio de linguagem escrito e visual denomina-
do “fanzine”, que proporciona uma discussão crítica-reflexiva perante um recorte que
reflete a realidade social; que possibilita a livre expressão de ideias sem censura,
uma transmissão de informações estimuladas pelo uso da criatividade. Os “zines”
são estabelecidos como produto da interação da vontade/escolha do locutor dentro
de um tema, através de um processo de busca constante de expressão, inquietação
e modificação de padrões, assim construindo e reconstruindo saberes que possam
intervir na maneira de cuidar e pensar no seu grupo social. (CAMPOS, 2009; LOPES,
BORBA, MONZELI, 2013; RIBEIRO, LOBO, PRADO, 2015).

Portanto, é importante aprofundar o conceito e as questões que envolvem a


violência, a partir da importância de discutir a temática para se repensar como as
grades curriculares dos cursos são abordadas na educação voltada para o Sistema
Único de Saúde (SUS). Dessa forma, percebe-se que é necessário intervir através
de sensibilização com os alunos e alunas dos cursos de Enfermagem, Medicina e
Odontologia de uma instituição pública de ensino superior, diante das situações de

321
violência que adentram os serviços de saúde. Os objetivos da pesquisa eram provo-
car mudanças e que esses futuros profissionais desenvolvessem o cuidado às víti-
mas de violências das mais diversas manifestações e reconhecessem as ações que
devem ser tomadas frente a essas situações.

Esta pesquisa de intervenção é de caráter descritivo exploratório de abordagem


qualitativa, que segundo Minayo (2010), trabalha com a realidade social humana (o
agir, o pensar, interpretar as ações dentro e a partir da realidade que é partilhada com
seus semelhantes). Com isso, o foco principal encontra-se na exploração do con-
junto de opiniões e representações sociais sobre o tema que se pretende investigar.
Essa intervenção integra um recorte de um macro projeto de pesquisa do PET-Redes
Urgência/Emergência intitulado Violência contra crianças, adolescentes, mulheres e
idosos (CAEE 32707114.0.0000.5346).

Após análise do banco de dados, se propôs a intervenção devido aos profis-


sionais terem relatado que o tempo de serviço passa a ser determinante para me-
lhor esclarecimento e reconhecimento da ocorrência da violência. Os profissionais
também relataram ser essencial abordar a temática da violência dentro do ambiente
acadêmico. Diante disso, utilizou-se a metodologia ativa do fanzine, um veículo de
comunicação que utiliza a expressão livre de construção coletiva, contribuindo com a
produção autônoma e a criatividade de cada aluno e aluna que tem algo a dizer sobre
fatos ou situações que o rodeiam.

O termo fanzine vem da junção de duas palavras, fanatic e magazine: “revista


de fanático” ou “revista de fã”. Uma produção e publicação autônoma de baixo custo
que estimula o uso da criatividade; uma forma de abordar assuntos de discussão
crítico-reflexivo perante um recorte que reflete a realidade social. Normalmente são
artesanais, com desenhos feitos à mão, colagens, montagens, gravuras, etc. O autor
é totalmente livre para expressar pensamentos e gostos, não necessitando seguir
uma periodicidade ou um formato (CAMPOS, 2009).

Participaram da intervenção um total de 31 alunos e alunas, sendo 18 do quarto


semestre do curso de Enfermagem e 13 do primeiro semestre de Odontologia. Fo-
ram incluídos os alunos e alunas dos cursos que estiveram presentes na disciplina
de Saúde Coletiva. Não participaram da intervenção os alunos e alunas de Medicina

322
devido ao processo de ocupação4 da universidade que ocorreu de outubro a novem-
bro de 2016.

Optou-se por realizar a intervenção na disciplina que aborda a Saúde Coletiva


por ter proximidade com a temática da violência, sendo previamente combinada com
as professoras. Inicialmente, foram selecionados somente os cursos de Enfermagem,
Medicina e Odontologia, pois cada equipe de saúde da família é composta por uma
equipe multiprofissional mínima com médico generalista ou especialista em saúde da
família, ou médico de família e comunidade, enfermeiro generalista ou especialista
em saúde da família, auxiliar ou técnico de enfermagem e agentes comunitários de
saúde (ACS). Pode-se acrescentar a essa composição, como parte da equipe multi-
profissional, os profissionais de saúde bucal (ou equipe de Saúde Bucal-eSB): cirur-
gião-dentista generalista ou especialista em saúde da família, auxiliar e/ou técnico
em Saúde Bucal (DAB, 2012).

A intervenção ocorreu nos meses de outubro e novembro de 2016, em salas de


aula do Centro de Ciências da Saúde (CCS) de uma instituição pública de ensino su-
perior localizada no município de Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul. Durante
a intervenção no horário da disciplina, organizaram-se oficinas de sensibilização com
os alunos e alunas de cada curso de saúde. Tais encontros aconteceram como estra-
tégia para maior aproximação com os estudantes e, para facilitar a compreensão da
temática proposta, cada turma foi dividida em grupos de seis pessoas para produção
dos fanzines. Foi adotada a observação participante, em que as pesquisadoras se
colocaram na posição dos observados, inserindo-se nos grupos a serem estudados
se colocando como um dos membros (SOUZA; KANTORSKI; LUIS, 2011).

Depois, cada grupo apresentou seu fanzine, partindo de um feedback da ex-


perimentação de conhecimentos, com a proposta de que incorporassem a temática
e entendessem o que devia ser discutido convidando-as a contribuir a partir de suas
experiências relacionadas ao tema violência. Tornando-os sujeitos ativos, sendo to-
dos os saberes importantes, cada pessoa é valorizada como dona de um saber. A
partir disso, houve discussão de casos disparadores, que possibilitaram a visualiza-
4 Movimento de repercussão nacional organizado pelos movimentos estudantis e sociais das universidades públicas em
protesto contra medidas do governo Michel Temer como a Reforma do Ensino Médio, a Proposta de Emenda Constitucional à
Constituição (PEC) de número 241 que estabeleceu um teto de gastos públicos como saúde e educação pelos próximos 20 anos e o
projeto Escola Sem Partido, também conhecido como Lei da Mordaça, após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff.

323
ção das posturas e encaminhamentos que os grupos realizariam enquanto profissio-
nais de saúde frente aos casos problemáticos.

As pesquisadoras coordenaram todas as atividades. Ao final, através de uma


exposição dialogada, houve uma apresentação de contextualização da violência: ti-
pologias, com seus 3 grandes grupos (autoprovocada ou auto infligida, interpessoal
e coletiva), natureza e seus 4 grupos (física, sexual, psicológica e negligência ou
privação), dados do TABNET, a importância e objetivos da notificação, fluxos de aten-
dimento a crianças e adolescentes, mulheres e idosos. Também foram apresentados
relatos de experiências vivenciadas na atuação profissional como residentes multi-
profissionais, em que as pesquisadoras trouxeram dados para exposição e relevân-
cia do tema violência para discussão. Os temas geradores contemplaram a identifi-
cação, intervenção e encaminhamentos frente a casos de violências.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Com a adoção da proposta metodológica do artigo, foram observadas diferen-


tes concepções e representações das violências entre os alunos e alunas e entre os
cursos de Enfermagem e Odontologia. Após análise dos fanzines produzidos, desta-
ca-se a relevância da categoria gênero para a compreensão da violência, baseada
na desigualdade entre homens e mulheres o que possibilitou discussões nas seguin-
tes subcategorias: a representação do símbolo feminino sob o olhar de alunas de
enfermagem, e “não se cale”: a violência física contra a mulher sob a ótica de alunas
de Odontologia. Essas categorias delimitam alguns dos achados deste artigo, a fim
de organizar os principais resultados por temáticas.

A REPRESENTAÇÃO DO SÍMBOLO FEMININO SOB O OLHAR DE


ALUNOS E ALUNAS DE ENFERMAGEM

A proposta metodológica do fanzine recebe extensão em outras áreas pouco

324
abordadas, como no caso da saúde, onde as alunas são convocadas a ver esse dis-
positivo como meio de linguagem disparador de ideias. Esta inserção na sala de aula,
como ferramenta de livre expressão, facilita a compreensão de temas mais densos
através de linguagens informais e a possibilidade de brincar com a linguagem visual,
que estimulam a produção artística, aproximando os alunos e alunas de suas vivên-
cias.

De acordo com a temática proposta, ficaram evidentes as diferenças de gênero,


que vêm sendo amplamente debatidas com a força que o movimento feminista vem
ganhando nos últimos tempos e abrangendo a sociedade de maneira geral. Entre-
tanto, é na universidade, principalmente pública, que esse debate ganha força, pois é
um espaço de aprendizagem e discussão da realidade social. Entende-se que nesse
meio busca-se a formação crítica e reflexiva de estudantes de diferentes áreas.

Nesse contexto, diante da relação desigual entre homens e mulheres, em que a


mulher comumente se encontra em situação de subordinação, a violência de gênero
– mais conhecida como violência contra a mulher – ganha destaque por ser tolerada
e naturalizada nas relações sociais cotidianas. Para Bandeira (2014), a correlação
da violência com a condição de gênero originou-se sob a inspiração das questões e
reivindicações do movimento feminista que veio a ser apresentado como categoria
sociológica e área de pesquisa e se caracterizou como questão central do movimento
feminista nacional.

Por ser um problema de saúde pública, cada vez mais a violência contra a mu-
lher é abordada pelos profissionais de saúde, sendo que muitas vezes as dificuldades
para cuidar das vítimas podem estar relacionadas à formação acadêmica, durante
a qual raramente são incluídos assuntos com produção de conhecimento técnico e
específico sobre o tema (FAÚNDES et al. 2006).

Para Sardenberg (2011), a violência de gênero é toda e qualquer forma de


agressão ou constrangimento físico, moral, psicológico, emocional, institucional, cul-
tural ou patrimonial, que tenha por base a organização social dos sexos e que seja
contra determinados indivíduos, explícita ou implicitamente, devido à sua condição
de sexo ou orientação sexual. Contudo, em virtude da ordem de gênero patriarcal
“machista”, dominante em nossa sociedade, são as mulheres que se veem comu-

325
mente na situação de vítimas desse tipo de violência.

Em consequência disso, o símbolo feminino tem, para muitas pessoas, uma


representação social mais profunda e sensível do que é ser mulher numa sociedade
patriarcal, em que o pensamento e a realidade nos mostram que, em diferentes lu-
gares, a mulher se encontra vulnerável à ocorrência da violência e vê seu corpo ser
objetificado, além da imposição de padrões estéticos através da mídia.

Na intervenção, apesar dos alunos e alunas não terem conhecimento teórico/


prático sobre a metodologia ativa do fanzine, esses conseguiram representar a vio-
lência de forma significativa como mostra a figura 1:

Figura 1: A representação do símbolo feminino (autoria alunos e alunas de enfermagem)

326
Nota-se a riqueza linguística deste fanzine, que permite o alcance de interpre-
tação e discussão em turmas semianalfabetas ou em processo de letramento, de
diferentes idades e classes sociais, facilitando a aproximação de qualquer pessoa
a representar a realidade social de forma simples, rompendo a relação burocrática
entre o estudante e o papel, entre o produtor e suas expressões (CAMPOS, 2009).

Barreto et al (2015), sobre a percepção de alunos e alunas de Enfermagem


sobre a violência contra a mulher, refere que afinidade, confiança e contato mais pró-
ximo com o público feminino e com procedimentos, são atributos associados à atua-
ção do enfermeiro e enfermeira que também presta assistência física e psicológica,
dando enfoque acerca da visão assistencial na totalidade humana.

Diariamente, as mulheres encontram-se condicionadas a opressão em dife-


rentes lugares, constantemente passam por humilhações como piadinhas, assobios,
buzinas e, de forma mais profunda, abusos e violências físicas como estupro e femi-
nicídio ou veem-se diante de novelas, comerciais, anúncios, toda uma produção cul-
tural que dissemina imagens e representações degradantes, ou que, de uma forma
ou outra, diminuem as mulheres. A violência de gênero se expressa com força nas
relações sociais e, de maneira mais naturalizada, na vida cultural, bombardeando
por todos os lados, sem que as pessoas tenham plena consciência disso. Essas
imagens são interiorizadas pela maioria esmagadora, muitas vezes elas contribuem
sobremaneira na construção de identidades e subjetividades, diminuindo, inclusive, a
autoestima. Isso tudo se constitui na violência simbólica de gênero, indubitavelmen-
te, uma das formas de violência mais difíceis de detectar, analisar e, por isso mesmo,
combater (SARDENBERG, 2011).

O homem, por ter na cultura brasileira o papel de dominar, acredita que toda
mulher é submissa a ele e lhe deve satisfações. Através da pornografia, compreende
que a mulher é um objeto e dele deve buscar a sua satisfação cultural de virilidade
e masculinidade. Também por influência da mídia, pelo modelo de padrão estético,
muitas mulheres implicadas na cultura machista acabam por se submeter a cirurgias
e a idealização do corpo perfeito para serem aceitas socialmente e conquistarem
atração masculina.

Em virtude de inúmeros casos de violências ocorrerem no âmbito familiar ou

327
doméstico, em 7 de agosto de 2006 foi criada a lei n° 11.340, a Lei Maria da Penha
– nomeada em homenagem a uma sobrevivente de violência doméstica – que visa
coibir, prevenir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher (BRASIL,
2006). Na figura 2 observa-se uma representação da lei Maria da Penha no fanzine
de um grupo da turma de Enfermagem.

Figura 2: lei Maria da Penha (autoria alunos e alunas de enfermagem)

Enfermeiros e enfermeiras estão em contato direto com a maioria das vítimas,


pois é nos serviços de saúde que as mulheres normalmente buscam ajuda e trata-
mento, o que possibilita a construção de elos de confiança com vistas a reduzir os
índices desse agravo. Isso aponta a necessidade de estabelecer uma relação de cui-
dado da enfermagem às vítimas de violência para promover segurança, acolhimento,
respeito e satisfação das suas necessidades individuais, assim como refletir sobre
seu planejamento, pautado nos instrumentos básicos de enfermagem, nas políticas
públicas de saúde e na legislação vigente, com intuito de proteger as vítimas e pre-
venir agravos futuros (FERRAZ et al., 2009).

Percebe-se que, para a enfermagem, a violência contra a mulher é uma temá-


tica relevante para o levantamento de discussões e de dados, que possam contribuir
de forma significativa para a compreensão ampliada da saúde da mulher e de sua
328
atuação profissional para além da assistência, implicando na promoção de ações
que visem modificar a sua realidade. Além disso, o fanzine se mostrou um dispositivo
inovador para a construção de conhecimento próximo da realidade local, uma ferra-
menta que possibilitou uma nova inserção de enfermeiros e enfermeiras nas práticas
de educação em saúde.

NÃO SE CALE: A VIOLÊNCIA FÍSICA CONTRA A MULHER SOB A ÓTI-


CA DE ALUNOS E ALUNAS DE ODONTOLOGIA

A violência contra a mulher é complexa, multifatorial e ocorre em todos os lu-


gares, sendo a de natureza física a que mais causa mortes, e ocorre muitas vezes
pelo simples fato da vítima ser mulher. Segundo o estudo de Costa et al. (2010) sobre
agressões físicas, 50% das lesões decorrentes de violência referem-se a traumas
orofaciais.

Para Dias (2008) a violência física contra a mulher é qualquer conduta que
ofenda a integridade ou a saúde corporal da mulher, mesmo que a agressão não
deixe marcas aparentes, ou seja, qualquer uso da força física que venha a ofender o
corpo ou a saúde da mulher configura violência física (Lei 11.340/2006 art.7°, I).

Nesse aspecto, o feminicídio é uma das formas mais cometidas. Entende-se


por feminicídio

A instância última de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da


morte. Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse, igualando a mu-
lher a um objeto, quando cometido por parceiro ou ex-parceiro; como subju-
gação da intimidade e da sexualidade da mulher, por meio da violência sexual
associada ao assassinato; como destruição da identidade da mulher, pela
mutilação ou desfiguração de seu corpo; como aviltamento da dignidade da
mulher, submetendo-a a tortura ou a tratamento cruel ou degradante. (BRA-
SÍLIA, 2013).

Dados do Mapa da Violência: homicídio de mulheres no Brasil, de Waiselfisz


(2015), mostra que dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados em 2013 no
Brasil, 50,3% foram cometidos por familiares, sendo que em 33,2% destes casos,

329
o crime foi praticado pelo parceiro ou ex. Essas quase 5 mil mortes representam 13
homicídios femininos diários em 2013. O mapa revela ainda que, entre 1980 e 2013,
106.093 brasileiras foram vítimas de assassinato. De 2003 a 2013, o número de víti-
mas do sexo feminino cresceu de 3.937 para 4.762, ou seja, mais de 21% na década.

A representação dessas questões fica clara em um dos fanzines produzidos


por um grupo da turma de Odontologia na figura 3:

Figura 3: dê um basta (autoria alunos e alunas de odontologia)

É visível a compreensão do impacto do contexto histórico e cultural em nosso país,


porém com a evolução de aspectos sociais e o crescimento do movimento feminista,
a mulher está modificando seu papel na sociedade em busca de emancipação e
empoderamento, além das denúncias e proteção na Lei Maria da Penha. Conforme
ilustrado na figura 4:

330
Figura 4: não se cale (autoria alunos e alunas de odontologia)

O Brasil tem dois importantes marcos para o fortalecimento da rede de enfren-


tamento à violência contra as mulheres e da rede de atendimento às mulheres em
situação de violência: a promulgação da Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) e a
criação, em 2005, da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), que funciona
como disque-denúncia e estabelece um canal direto com os serviços de segurança
pública e Ministério Público de cada estado do país (BRASÍLIA, 2011).

Outro grupo da turma de Odontologia produziu um fanzine sobre violência obs-


tétrica, como consta na figura 5:

331
Figura 5: violência obstétrica (autoria alunos e alunas de odontologia)

No meio acadêmico, a assistência obstétrica no Brasil tem sido constantemen-


te questionada. Apesar de o movimento feminista denunciar a violência obstétrica
há décadas, caracterizando-a como violência contra a mulher e violação dos direitos
humanos, essa é uma transgressão invisibilizada por afetar a integridade psicológica
da vítima sem, contudo, deixar evidências de sua ocorrência. Muitos casos, porém,
deixam marcas físicas e/ou culminam na morte das parturientes e de seus filhos ou
filhas (CARVALHO et al., 2015).

Para Diniz et al. (2015), no mundo, apesar de ser considerado um tema “recen-
te” ou um “novo” campo de estudo, o sofrimento das mulheres com a assistência ao
parto é registrada em diferentes momentos históricos e frequentemente tem impacto
importante na mudança das práticas de cuidado no ciclo gravídico-puerperal. Assim
como no Brasil, em outros países da América Latina, o termo “violência obstétrica” é
utilizado para descrever as diversas formas de violência perpetradas na assistência
à gravidez, ao parto, ao pós-parto e ao abortamento.

Para além do dano físico ao corpo da mulher, como foi citado no fanzine pe-
los alunos e alunas de Odontologia através da palavra episiotomia – procedimento
cirúrgico usado para aumentar a abertura vaginal com uma incisão no períneo, ao
final do segundo estágio do parto vaginal (ZANETTI, 2009) – é importante salientar
que essa violência também atinge a vida das mulheres em um contexto mais amplo,
afinal entende-se por violência obstétrica

332
apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profis-
sional de saúde que se expresse por meio de relações desumanizadoras, de
abuso de medicalização e de patologização dos processos naturais, resultando
em perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seu corpo e
sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.
Definição dada pelas leis argentina e venezuela, onde a violência obstétrica é
tipificada (Defensoria Pública do Estado de São Paulo, 2013).

Apesar dos estudantes apenas representarem a violência física na maioria dos


fanzines, é importante destacar o recorte racial apontado por eles na figura 5, evi-
denciando que a mulher negra ainda é alvo de violência mais frequentemente que a
mulher branca.

A percepção dos alunos e alunas de Odontologia sobre a violência contra a


mulher está voltada para um tipo de ocorrência que talvez se explique por sua for-
mação ser restrita à saúde bucal. Carvalho, Galo e Silva (2013), ao avaliar o conhe-
cimento dos profissionais de Odontologia da rede pública e privada do município de
Guaratinguetá (SP) sobre identificação e procedimentos frente à violência doméstica,
descobriram que a maioria dos entrevistados não recebeu nenhuma informação so-
bre o assunto durante a graduação. A pesquisa de Tornavoi, Galo, Silva (2011), com
odontólogas e odontólogos, também sinaliza a deficiência na temática de violência
contra a mulher, corroborando a necessidade de mais abordagem do tema no ensino
de graduação.

Ao final das oficinas, pode-se perceber que a utilização dos fanzines sensibili-
zou os alunos e alunas para a temática da violência, principalmente contra a mulher,
trazendo representações de diferentes concepções, proporcionando construções
criativas e reflexões críticas dessa temática. Nesse sentido, através da utilização de
metodologias ativas para ampliar as discussões e trocas entre os participantes do
grupo, buscou-se a saída da teoria para aproximação da realidade, já que o fanzine
convoca a autonomia do sujeito capaz de agir sobre a sua realidade, sendo o verda-
deiro ator social e sujeito do próprio processo de desenvolvimento.

333
CONCLUSÃO
A utilização da metodologia ativa possibilitou a descrição desse relato, que
mostrou a utilização do fanzine como nova forma de linguagem nos cursos de saúde,
através dos quais os alunos e alunas puderam se sensibilizar pelo tema da violência
contra a mulher. O fanzine foi uma metodologia expressiva de fácil abordagem, que
permite análise e discussão crítica reflexiva de temas complexos, facilitando a leitura
e interpretação para todas as pessoas através da linguagem não verbal.

Em relação à representação da violência pode-se observar a pluralidade de


vivências e conhecimentos de alunos e alunas de Enfermagem e Odontologia, com
riqueza de criatividade para construção dos fanzines. Esses trouxeram diferentes
concepções da questão de gênero, na qual a mulher, apesar da evolução e força do
movimento feminista na busca por equidade, ainda se encontra vulnerável a todo tipo
de violência.

Dessa forma, a discussão da violência não se esgota e precisa ser debatida


a todo o momento, principalmente no meio acadêmico, possibilitando a formação
de futuros profissionais mais críticos e engajados nas problemáticas da realidade
social. O trabalho reafirma a importância da reformulação da grade curricular dos
cursos de saúde, que procuram delinear uma formação técnica direcionada à prática
clínica, mas afasta as alunas do contexto social. Um reflexo do modelo atual é que
muitos profissionais, ao adentrar os serviços de saúde, não percebem a importância
de alguns instrumentos importantes que permitem o conhecimento das dimensões
e formas de violência, como a notificação compulsória, que possibilita o desenvolvi-
mento de ações de fortalecimento da Rede de Atenção à Saúde (RAS) e das políticas
públicas.

Ademais, a intervenção se mostrou inovadora nos cursos de saúde, já que


a metodologia é mais utilizada na Comunicação. Portanto, o fanzine se torna um
novo dispositivo para trabalhar com grupos de educação em saúde, fortalecendo a
autonomia e participação de cada sujeito, tornando-o parte do processo de conheci-
mento. Ainda revela um excelente instrumento para alunos e alunas e professores e
professoras da área da saúde trabalharem com diversas temáticas dentro da Saúde
Coletiva aproximando a teoria da prática.

334
Para que o fanzine seja efetivamente uma nova forma de linguagem nos cur-
sos de saúde e possa fortalecer a atuação profissional, é fundamental a ampliação
da equipe mínima da Estratégia de Saúde da Família (ESF). A inserção de outros
núcleos pode contribuir de maneira interdisciplinar no cuidado em saúde e cada es-
pecificidade pode ampliar o olhar diante de situações que envolvam a violência.

REFERÊNCIAS

BANDEIRA, L.M. Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de in-


vestigação. Soc. Estado, v.29, n.2, p.449-69, 2014. Disponível em: <http://dx.doi.
org/10.1590/S0102-69922014000200008>. Acesso em: 5 nov. 2016.

BARRETO, T.M. et al. A violência contra a mulher sob a percepção de acadêmicos de


enfermagem. Revista Eletrônica Estácio Saúde, v.4, n.2, p.52-66, 2015. Disponível
em: <http://revistaadmmade.estacio.br/index.php/saudesantacatarina/article/viewFi-
le/1753/879>.Acesso em: 10 nov. 2016.

______. Lei n°11.340, de 7 de agosto de 2006. Brasília, DF, 7 ago. 2006.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Aten-


ção Básica. Estratégia Saúde da Família. Brasília, 2012.

______. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa. II Ca-


derno de educação popular em saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.

______. Rede de enfrentamento à violência contra as mulheres. Secretaria Nacional


de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Secretaria de Políticas para as
Mulheres – Presidência da República, Brasília, 2011.

______. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito. Relatório final- Violência contra a


Mulher no Brasil. Brasília, 2013.

CAMPOS, F.R. AbraFANZINE: da publicação independente à sala de aula. Txt:


Leituras Transdisciplinares de Telas e Textos, Belo Horizonte, v.5, n.10, p.65-77,
2009. Disponível em: <http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/txt/article/
view/10053/8957>. Acesso em: 25 out. 2016.

CARVALHO, L.M.F; GALO, R; SILVA, R.H.A. O cirurgião-dentista frente à violência


doméstica: conhecimento dos profissionais em âmbito público e privado. Medicina,

335
Ribeirão Preto, v.46, n.3, p.297-304, 2013. Disponível em: <http://www.revistas.usp.
br/rmrp/article/view/69146/71601>. Acesso em: 25 out. 2016.

CARVALHO, G.A.M.P. de et al. Violência obstétrica: Uma questão de gênero, raça e


saúde. 2015. 136 p. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Gênero,
Desenvolvimento e Políticas Públicas), Universidade Federal de Pernambuco, Reci-
fe, 2015.

COSTA, M.C.O. et al. Avaliação do Programa Nacional de Ações Integradas e Refe-


renciais (PAIR) para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adoles-
centes, em Feira de Santana, Bahia. Ciênc. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n.
2, p. 563-574, mar. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S14138123201000020003> Acesso em: 08 out. 2016.

DAHLBERG, L.L; KRUG, E. G. Violência: um problema global de saúde pública. Rev.


Ciênc. Saúde Coletiva, v. 11, p.1163-1178, 2007. Disponível em: <http://www.scie-
lo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S14138123200600050007> Acesso em: 12
ago. 2015.

DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Violência obstétrica você


sabe o que é? Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher,
Associação Artemis. Coordenadoria de Comunicação Social e Assessoria de Impren-
sa da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, novembro, 2013.

DIAS, M.B. A Lei Maria da Penha na Justiça. Revista dos Tribunais, 2008. p.42.

DINIZ, S.G. et al. Abuse and disrespect in childbirth care as a public health issue in
Brazil: origins, definitions, impacts on maternal health, and proposals for its preven-
tion. J. Hum. Growth Dev, v.25, n.3, p. 377-384, 2015. Disponível em: <http://www.
revistas.usp.br/jhgd/article/view/106080/106629>. Acesso em: 10 out. 2016.

FAÚNDES A. et al. Violência sexual: procedimentos indicados e seus resultados no


atendimento de urgência de mulheres vítimas de estupro. Rev Bras Ginecol Obstet.,
v.28, n.2, p.126-35, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=s-
ci_arttext&pid=S01007203200600020009>. Acesso em: 25 nov. 2016.

FERRAZ, M.I.R. et al. O cuidado de enfermagem a vítimas de violência doméstica.

336
Cogitare Enferm, v. 14, n. 4, p. 755-9, out./dez., 2009.

LOPES,R.E.; BORBA, P.L.O.; MONZELI, G.A. Expressão livre de jovens por meio do
fanzine: recurso para a terapia ocupacional social. Rev Saúde e Soc., São Paulo, v.
22, n, 3, p.937-948, 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=s-
ci_arttext&pid=S01041290201300030007>. Acesso em: 29 set. 2016.

MINAYO, M.C. de S. O desafio da Pesquisa. In: ____ (Org.). Pesquisa Social: teoria,
método e criatividade. 31ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

OLIVEIRA, D.K.S. et al. A arte de educar na área da saúde: experiências com me-
todologias ativas. Rev Humanidades e Inovação, Palmas, v.2, n.1, jan./jul.,2015.
Disponível em: <https://revista.unitins.br/index.php/humanidadeseinovacao/article/
view/60/61>. Acesso em: 15 ago. 2015.

RIBEIRO, M.O.; LOBO, J.A.de F.; PRADO, S.I. O fanzine como meio de orientação
e prevenção contra maus-tratos à criança. Rev Soc. Bras. Enferm. Ped., v.15, n.1, p.
44-52, junho, 2015. Disponível em: <http://www.sobep.org.br/revista/images/stories/
pdf-revista/vol15-n1/vol_15_n_2 artigo-de-revisao-3.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2015.

SARDENBERG, C. M. B. A violência simbólica de gênero e a lei “antibaixaria” na


Bahia. OBSERVE: NEIM/UFBA, 2011.

SOUZA J; KANTORSKI, L.P; LUIS M.A.V. Análise documental e observação parti-


cipante na pesquisa em saúde mental. Rev Baiana Enferm., v.25, n.2, p.221-228,
2011. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/enfermagem/article/
view/5252/4469>. Acesso em: 9 jul. 2015.

TORNAVOI, D.C.; GALO, Rodrigo; SILVA, R.H.A. Conhecimento de profissionais de


odontologia sobre violência doméstica. RSBO, Joinville, v. 8, n. 1, p. 54-59, 2011. Dis-
ponível em: <http://vdisk.univille.edu.br/community/depto_odontologia/get/ODON-
TOLOGIA/RSBO/RSBO_v8_n1_janeiro-marco2011/v8n01a07.pdf>. Acesso em: 5
nov. 2016.

ZANETTI, M.R.D. et al. Episiotomia: revendo conceitos. FEMINA, v.37, n.7, p.367-371,
2009. Disponível em: <http://www.febrasgo.org.br/site/wp-content/uploads/2013/05/
feminav37n7p367-71.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2016.

337
WAISELFISZ, J.J. Mapa da violência 2015 homicídio de mulheres no Brasil. Brasília:
OPAS/OMS, ONU Mulheres, SPM e Flacso, 2015 Disponível em: <http://www.mapa-
daviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>Acesso em: 30 nov.
2016.

WANDERBROOCKE, A.C.N.S; MORÉ, C.L.O.O. Abordagem profissional da violên-


cia familiar contra o idoso em uma unidade básica de saúde. Cad. Saúde Pública,
v.29, n.12, p. 2513-22, 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/csp/v29n12/
v29n12a15.pdf>. Acesso em: 10 maio 2015.

WANDERBROOCKE, A.C.N.S, MORÉ, C.L.O.O. Significados de violência familiar


contra o idoso na perspectiva de profissionais da Atenção Primária à Saúde. Ciênc.
saúde coletiva, v.17, n.8, p.2095-2103, 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232012000800020>. Acesso em: 10
maio 2015.

338
NECROPOLÍTICA DE GÊNERO NO BRASIL CONTEM-
PORÂNEO: A PRODUÇÃO E A ADMINISTRAÇÃO DE
SOFRIMENTO E MORTE ÀS MULHERES

Joice Graciele Nielsson1


Maiquel Ângelo Dezordi Wermuth2

INTRODUÇÃO

Caso 1: Marina Mirtes, aos 57 anos, relembra da época em que trabalhava como
cabelereira autônoma. Atualmente, não consegue reunir forças para a execução de
nenhum trabalho. Vive em meio a contas atrasadas: aluguel, água, luz... Sua alimen-
tação é restrita a feijão e arroz. Sua realidade atual é muito diferente daquela vivida
há seis anos atrás, quando foi agredida pelo ex-namorado com golpes de martelo na
cabeça, que quase a levaram à morte3.

Caso 2: Geziane Buriola, com 33 anos, vive da ajuda de parentes, inclusive para
realizar tarefas básicas, como pentear os cabelos. Até 2017 ela atuava como empre-
gada doméstica. Foi quando teve ambas as mãos decepadas, a facão, pelo então
namorado. Ela tentou evitar ser atingida no pescoço, levando às mãos à frente para
se proteger daquele que seria um golpe fatal4.

Caso 3: Bárbara Penna, 24 anos, convive com a saudade dos filhos, em meio a
infindáveis cirurgias reparadoras – mais de duzentas – na cabeça, no olho, nas pál-
pebras, no pescoço, no braço, na axila, colocação de prótese na perna. Em 2013, ela

1 Professora-pesquisadora do Programa de Pós-Graduação - Mestrado e Doutorado em Di-


reitos Humanos –, do Curso de Graduação em Direito na UNIJUI. Doutora em Direito (UNISINOS).
Integrante do Grupo de Pesquisa Biopolítica e Direitos Humanos (CNPq).
2 Doutor em Direito Público pela UNISINOS. Coordenador e Professor do Programa de Pós-
-Graduação – Mestrado e Doutorado em Direitos Humanos, da UNIJUÍ. Professor dos Cursos de
Graduação em Direito da UNIJUÍ e da UNISINOS. Coordenador do Grupo de Pesquisa Biopolítica
e Direitos Humanos (CNPq).
3 Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50543503>. Acesso em: 11 fev.
2020.
4 Disponível em: <https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/01/16/violencia-domestica-elas-so-
breviveram-mas-ficaram-com-grandes-sequelas.htm>. Acesso em: 11 fev. 2020.

339
teve 40% do corpo queimado, além de vários ossos quebrados, após o ex-compa-
nheiro ter ateado fogo ao seu corpo e a empurrado do terceiro andar do prédio onde
morava. Quando acordou do coma induzido, depois de quatro meses, descobriu que
seus filhos tinham morrido asfixiados pela fumaça5.

Três casos. Três corpos femininos trucidados pela violência de gênero. Três
vidas femininas que assumem uma dimensão espectral mesmo que a morte tenha
sido adiada. Três exemplos do que, nos limites deste estudo, será abordado a partir
do conceito de “necropolítica de gênero”.

Neste contexto, este estudo versa sobre o fenômeno do crescimento e intensifi-


cação das práticas de violência contra mulheres, tendo como seu ápice o feminicídio
de mulheres pobres e negras no Brasil, considerando a existência e consolidação de
um dispositivo de produção e administração destas violências que conduzem à morte
(se não no sentido estrito, da eliminação física, no sentido de precarização extrema,
de transformação dessas existências em vidas espectrais), a partir da consolidação
do que chamamos de necropolítica de gênero em nosso país.

Para compreender tais fenômenos, partimos dos conceitos de biopolítica de


Michel Foucault (2010, 2012), e de necropolítica de Achille Mbembe (2016, 2017),
para analisar nosso contexto local, evidenciando de que modo a intensificação de
uma subjetividade necropolítica hegemônica, identificada por Sayak Valência (2010),
conduz à configuração de um dispositivo necropolítico, descrito por Ariadna Estévez
(2018, 2019, 2020, 2017), de produção e administração de sofrimento e morte de
mulheres, estabelecendo um regime de necropolítica de gênero.

DA BIOPOLÍTICA À NECROPOLÍTICA

A referência à biopolítica como a forma contemporânea de poder das socieda-


des ocidentais foi objeto de análise no percurso filosófico de Michel Foucault (2010,
p. 129) ao analisar as técnicas de governo que tinham como objetivo “fazer viver,
deixar morrer”. Em seus estudos, Foucault identificou uma forma de poder centrada
5 Reportagem disponível em: <http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2015/07/que-
ro-ser-feliz-diz-jovem-que-perdeu-2-filhos-e-teve-corpo-queimado-pelo-ex.html>. Acesso em: 22
jul. 2020.

340
na gestão de processos que são específicos da vida, como o nascimento, a morte,
a reprodução, a migração, a enfermidade e a mortandade, geridas por tecnologias
específicas deste poder: a medicina, a estatística, o controle de natalidade, a política
pública, ou qualquer intervenção governamental que tenha como fim o controle e re-
gulação da população. “La biopolítica entonces se refiere al conjunto de instituciones,
cálculos, análisis y tácticas que tienen como objeto principal la población, teniendo
como forma la economía política y como instrumentos los aparatos de seguridad.”
(ESTÉVEZ, 2017a, p. 50).

Constitui-se, portanto, um movimento que, na léxica foucaultiana, representa


uma verdadeira “assunção da vida pelo poder”, ou uma “estatização do biológico”,
representando “um dos fenômenos fundamentais do século XIX” justamente porque
se afigura como um corte em relação à teoria clássica da soberania, na medida em
que, “o velho direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder
de causar a vida ou devolver à morte.” (FOUCAULT, 2012, p. 150, grifou-se). Há,
portanto, um importante deslocamento na passagem do século XVIII para o século
XIX no que se refere ao modo como o poder soberano será exercido: ele deixa de ser
alicerçado na ideia de supressão (poder negativo) e passa a ser exercido enquanto
um poder que “gerencia a vida” (poder positivo).

Este poder, na contemporaneidade, passa a estar assentado por uma raciona-


lidade, que chamamos de governamentalidade, neoliberal (o neoliberalismo como
governo). No marco foucaultiano entende-se por governo não apenas as instituições,
mas as atividades que conduzem os indivíduos ao longo de suas vidas, colocando-as
sob a autoridade de um guia responsável pelo que acontece com eles. O neoliberalis-
mo como governo, por sua vez, afirma Estévez (2018), objetiva centralmente aplicar
o discurso econômico, seus conceitos, objetos, lógicas e linguagens, à analise social,
apagando as diferenças entre os campos, com a racionalidade econômica usada
para justificar e limitar a ação governamental. O Estado governamentalizado se torna
um administrador de “negócios”, universalizando a competência e criando sistemas
para a ação individual e social.

É desta forma que a economia deixa de ser apenas uma área da vida humana,
para recobri-la por completo. Nas palavras de Estévez (2018), universalizar a econo-

341
mia serve para entender o social e avaliar o desempenho estatal e social em termos
econômicos com o fim de subordinar todas as esferas e dinâmicas de mercado, de tal
modo que os estados neoliberais se converteram em estados gerencias que já não
controlam somente o comportamento individual através da disciplina, mas que regu-
lam e administram o crescimento e a mortandade da população para a reprodução de
si mesmo através de tecnologias do eu, ou seja, técnicas que deslocam ao indivíduo
a responsabilidade sobre sua própria saúde, educação, e tudo aquilo que incide na
reprodução do “capital humano” que cada indivíduo possui (ESTÉVEZ, 2017a).

É a partir deste marco que Achille Mbembe (2016, p. 125) busca analisar a
realidade de países periféricos e coloniais, descortinando aquelas “formas de sobe-
rania cujo projeto central não é a luta pela autonomia”, mas “a instrumentalização
generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e
populações”. Para tanto, o autor passa a fazer referência aos conceitos de necro-
política e necropoder para referir os modos pelos quais, na contemporaneidade, se
produzem “‘mundos de morte’, formas novas e únicas da existência social, nas quais
vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status
de ‘mortos-vivos’.” (MBEMBE, 2016, p. 141).

Ao dialogar com autores como Foucault e Giorgio Agamben, Mbembe (2016) sa-
lienta que tanto a vida e a morte são controladas pelo poder político; não são simples
fenômenos naturais. Pelo contrário: há um conjunto de elementos que contribuem
para que indivíduos vivam ou sejam exterminados, e a necropolítica, nesse sentido,
seria “certa forma de soberania sobre a vida e a morte que exerceriam certos grupos
delitivos ou Estados sobre comunidades” (MARTÍNEZ, 2013, p. 239).

Na esteira de Mbembe (2016), consideramos que, embora a biopolítica seja um


ponto de partida fundamental para a análise de regulação populacional, no contexto
do terceiro mundo, verifica-se que se trata de uma categoria filosófica insuficiente
porque não nos permite entender como a vida está subordinada ao poder de morte.
Mbembe (2016) afirma que a proliferação de armas e a existência de mundos da
morte – lugares onde as pessoas são tão marginalizadas que realmente vivem como
mortos-vivos, como na África, México e América– é um indicador de que existe uma
política de morte (necropolítica) em vez de uma política de vida (biopolítica).

342
Ele examina como o direito soberano de matar é reformulado em sociedades
nas quais o estado de emergência é permanente – seguindo a obra agambeniana
(2004). Segundo Mbembe (2017), em um estado sistemático de emergência, o poder
constantemente se refere e apela à exceção e a uma ideia fictícia de “inimigo”, em um
contexto no qual o direito de matar não é mais prerrogativas exclusivas do Estado go-
vernado e o exército regular não é mais o único meio de execução. Milícias urbanas,
exércitos particulares e polícia de segurança privada também têm acesso a técnicas
e práticas de morte. A proliferação de entidades necro-empoderadas (VALÊNCIA,
2010), juntamente com o amplo acesso a sofisticadas tecnologias de destruição e as
consequências de políticas socioeconômicas neoliberais, fazem com que campos de
concentração, guetos e plantations se tornem aparatos disciplinares desnecessários
porque são facilmente substituídos por massacres, uma tecnologia necropolítica que
pode ser executada em qualquer lugar a qualquer momento6.

Portanto, segundo Mbembe (2016, p. 135-136), essa narrativa se sustenta na


ideia de que o Estado possui “o direito divino de existir”, de modo que “a violência
colonial e a ocupação são profundamente subscritas pelo sagrado terror da verdade
e da exclusividade (expulsões em massa, reassentamento de pessoas ‘apátridas’
em campos de refugiados, estabelecimento de novas colônias).” As colônias, seriam
espaços nos quais “guerra e desordem, figuras internas e externas da política, ficam
lado a lado ou se alternam”, e assim, “são o local por excelência em que os controles
e as garantias de ordem judicial podem ser suspensos – a zona em que a vioplên-
cia do estado de exceção supostamente opera a serviço da ‘civilização’” (MBEMBE,
2016, p. 131). Nelas, direito e violência tornam-se indiscerníveis, consolidando um
espaço de exceção, “um espaço anômico onde o que está em jogo é uma força de
lei sem lei.” (AGAMBEN, 2004, p. 61). Com efeito, o estado de exceção “marca um
patamar onde lógica e práxis se indeterminam e onde uma pura violência sem logos
pretende realizar um enunciado sem nenhuma referência real.” (AGAMBEN, 2004,
p. 63).

É por isso que para a gestão necropolítica da vida a partir da governamenta-


lidade neoliberal, afirma Estéves (2017a), lei e políticas públicas tornam-se instru-
mentos necroempoderados. Na visão de Estevez (2017a), para além das tecnolo-
6 Sobre o tema, consultar Wermuth, Marcht, Mello (2020).

343
gias necropolíticas, e suas técnicas, que não simplesmente disciplinam os corpos,
mas os sujeitam à destruição, a necropolítica e a biopolítica também operam através
de tecnologias regulatórias do tipo tecnocrático, como normas e políticas públicas.
Por meio delas verifica-se uma necropolítica pública, implementada para gerenciar
e regular os efeitos adjacente ao aplicativo de morte, como sofrimento social. “En
la biopolítica y la necropolítica la ley ya no sirve a la justicia sino que es usada para
homogenizar poblaciones.” (ESTÉVEZ, 2018, p. 10).

Neste sentido, há uma relação de complementariedade entre as estratégias


biopolíticas e necropolíticas. Para Estévez (2020, p. 14), “en realidad son catego-
rias constitutivas; es decir, se construyen la una a la otra, en el entendido de que la
aplicación previa de necropolíticas que hayan destruido hábitats, cuerpos, modos de
vida y sectores económicos hacen posible la gestión de la vida.” É o que demonstra,
por exemplo, Berenice Bento (2018, p. 03) ao analisar contextos contemporâneos
complexos nos quais “a governabilidade, para existir, precisa produzir interruptamen-
te zonas de morte”, de tal modo que, em contextos de estados coloniais como os
latino-americanos, a “governabilidade e poder soberano não são formas distintas de
poder, mas têm [...] uma relação de dependência contínua – seja numa abordagem
sincrônica ou diacrônica”, cunhando uma noção de “necrobiopoder”. Reconhecendo
as especificidades teóricas dos marcos biopolítico e necropolítico, pode-se, portanto,
pensar em que medida “necropoder e biopoder (vida matável e vida vivível) são ter-
mos indissociáveis para se pensar a relação do Estado com os grupos humanos que
habitaram e habitam o Estado-nação.” (BENTO, 2018, p. 4).

Esta imbricação pode ser verificada especialmente em contextos de socie-


dades hiperconsumistas, forjadas nos marcos do avanço neoliberal. Para Valência
(2010), nestas sociedades, como a brasileira da atualidade, é possível identificar
uma radicalização da biopolítica, vinculada com o fato de que os processos de morte
foram comercializados. Se a biopolítica controla os processos da vida, demandas
capitalistas transformaram a vida e processos associados, como a morte. Nestas
sociedades, corpos hiperconsumidores tornam-se uma mercadoria e seus cuidados,
conservação, liberdade e integridade são produtos relacionados.

Isto porque, contemporaneamente, o neoliberalismo já “não atua segundo o

344
eixo dos exageros do poder soberano estatal, à maneira do nazismo e do stalinismo,
mas segundo o eixo flexível das demandas e exigências do mercado econômico
competitivo.” (NEGRI, 2015, p. 61), transformando o mercado em um instrumento de
governamentalização da população, regrando, normalizando, e administrando sua
conduta, e gestando uma atuação que investe sobre a vida da população “enquanto
bios, isto é, já não só como força de trabalho e sim como forma viva, não só como
máquina de produção e sim como corpo comum da sociedade.” (NEGRI, 2015, p.
61).

Na síntese de Pelbart (2011, p. 13), “nunca o capital penetrou tão fundo e tão
longe no corpo e na alma das pessoas, nos seus genes e na sua inteligência, no seu
psiquismo e no seu imaginário, no núcleo de sua vitalidade”. No mesmo sentido, e
na esteira de Walter Benjamin, Agamben (2012) assevera que “o capitalismo é uma
religião, e a mais feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não
conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o
trabalho e cujo objeto é o dinheiro.”

Essa economia que Valência (2010) chamou de “Capitalismo Gore”, destrói si-
multaneamente os órgãos e produz capital através de especulação dos corpos como
mercadoria e da violência como investimento, uma ferramenta que capacita e re-
produz o capital de maneira instantânea. A produção de corpos mortos ou mutilados
– tais como os das vítimas dos casos narrados na introdução – como mercadoria é
apoiada e justificada no processo de oferta e demanda. No Capitalismo Gore, assas-
sinato se torna uma transação; a violência uma ferramenta; e a tortura, empodera-
mento. Nesta lógica, para Valência (2010), não apenas atores estatais tem o poder
de aplicação da morte, mas atores não estatais passam a fazê-lo, tanto em corpos
individuais quanto na população em geral.

Para ela, agentes privados exercem poder paralelo de opressão, reconfiguran-


do a biopolítica e utilizando tecnologias de “necropráticas”: ações radicais destinadas
a violar a dor, o sofrimento e a morte, como assassinato, tortura e sequestro – para
aproveitar, preservar e lucrar com o poder de fazer morrer. Tudo isto movida por uma
subjetividade típica destas sociedades, que, na expressão de Valência (2010) cons-
tituem o sujeito da necropolítica, o “sujeito endriago”, termo utilizado para conceituar

345
homens que usam a violência como meio de sobrevivência e mecanismo auto-afir-
mação.

Para Valência (2010), endriago7 é a subjetividade dissidente do neoliberalis-


mo, cujas práticas violentas, em muitos casos, subvertem o sentimento de fracas-
so causado pela frustração material da impossibilidade de alcance deste padrão de
masculinidade e consumo típicos da exclusão neoliberal. Na visão da autora (2010),
três fatores sustentam socialmente este sujeito: as pressões de mercado, a mídia e
a masculinidade hegemônica8, todos, de acordo com Estevez (2020), técnicas de do-
mínio que permitem ao necropoder manter seus dispositivos por meio de uma guerra
contínua contra um inimigo que, neste caso, ganha contornos de mulher.

Ao estabelecer a masculinidade hegemônica como constituinte da subjetividade


típica do necroliberalismo, torna-se possível, na esteira de Valência (2010) e Estévez
(2017a, 2018), compreender como dispositivos bio e necropolíticos tem atingido cor-
pos femininos, resistentes e dissidentes, manuseando estereótipos de gênero para
controlar e gerir a vida, ao mesmo tempo em que intensifica a produção da morte,
como forma de exercício de uma soberania masculina, branca, colonial, heteronor-
mativa e neoliberal, que deixa no rastro de sua passagem avassaladora corpos tru-
cidados, como os de Marina Mirtes (Caso 1), Geziane Buriola (Caso 2) e de Bárbara
Penna (Caso 3). Nem sempre a morte (no sentido estrito) é o ato final; muitas vezes,
a necropolítica se presta à produção da morte em vida, ou a transformação de vidas
em meros espectros (BUTLER, 2009).

7 Embora este sujeito endriago possa ser masculino ou feminino, quando se reflete no homo
economicus de grande influência na política, no mercado, na mídia, que estão no controle da bioe-
conomia tecnológica, a masculinidade passa a representar um aspecto central de sua caracteriza-
ção (ESTEVEZ, 2020).
8 A masculinidade hegemônica do homo economicus é o que Connell (2015) chama mascu-
linidade corporativa, agressivamente reforçando os elementos mais prejudiciais da masculinidade
hegemônica, tais como: 1) foco na conquista competitiva e uma certa crueldade em atingir objetivos
pessoais e corporativos; 2) trabalhar longas horas sob alta pressão é valorizado e até essencial; e
3) relacionamentos pessoais, cultura, comunidade e filhos e filhas isolados em um mundo privado e
privatizado de esposas, namoradas, cuidadores; 4) desprezo por aqueles que falham destacam-se
no sistema competitivo (CONNELL, 2015).

346
A NECROPOLÍTICA DE GÊNERO E O DISPOSITIVO DE PRODUÇÃO E
ADMINISTRAÇÃO DE SOFRIMENTO E MORTE ÀS MULHERES

Compreendidos os modos de gestão bio e necropolíticas e sua complementa-


riedade em tempos de neoliberalismo, este tópico pretende evidenciar, no Brasil, a
existência desta necropolítica de gênero (SAGOT, 2013), que se manifesta através
da consolidação de um dispositivo de produção e administração de sofrimento, vio-
lência e morte (ESTÉVEZ, 2017a), que neste caso se destina às mulheres e sujeitos
não heteronormativos.

A existência deste dispositivo é pensada a partir do reconhecimento de uma ne-


cropolítica patriarcal, que associa a promoção e/ou a tolerância da morte de mulhe-
res dentro de um padrão que contribua para entender a racionalidade da expressão
letal da violência de gênero contra as mulheres (SOLYSZKO-GOMES, 2017, p. 139).
A esta necropolítica específica denominamos, a partir de Sagot (2013, p. 1), necro-
política de gênero, ou seja, a construção de “una definición de quien importa, quien
no, quien es desechable y quién no”, que instrumentaliza a vida das mulheres mais
vulneráveis e constrói “un régimen de terror, com complicidad del estado, y sentencia
a muerte a algunas”.

Compreender a necropolítica de gênero requer considerar a violência de gêne-


ro como um problema social endêmico, produto de uma sociedade estruturada sobre
a base da desigualdade de gênero e do patriarcalismo. Esta forma de violência pode
ser entendida, então, como uma manifestação extrema da discriminação e uma arma
letal para manter a subordinação das mulheres e pode englobar, em uma interpreta-
ção ampla, uma gama de acontecimentos, que vão além daquelas formas de violên-
cia doméstica tradicionalmente consideradas.

Trata-se da configuração de situações politicamente induzidas, nas quais “de-


terminadas populações sofrem as consequências da deterioração de redes de apoio
sociais e econômicas mais do que outras, e ficam diferencialmente expostas ao
dano, à violência e à morte” – o que Judith Butler (2009; 2018) chama de precarieda-
de. Uma condição induzida de vulnerabilidade e exposição maximizadas à violência
arbitrária legitimada ou perpetrada pelo próprio Estado, pelo manejo, inclusive das

347
prerrogativas do direito e da legalidade, de tal modo que “a precariedade é, portanto,
a distribuição diferencial da condição precária.” (BUTLER, 2018, p. 41).

É, portanto, um contexto sócio-político estrutural favorável à vulnerabilidade,


que promove e tolera/mantém as desigualdades de gênero, tornando-nos sujeitos
mais expostos à morte em algumas condições, definindo quem importa e quem é
descartável, e tornando os corpos das mulheres utilizáveis – seja no feminicídio, seja
no estupro, seja na prostituição forçada, ou seja, nas múltiplas formas de uso do cor-
po e da vida das mulheres para o outro. (SOLYSZKO-GOMES, 2017).

Isso se faz possível por uma descartabilidade biopolítica das mulheres na me-
dida em que se constituem dispositivos sociais de produção e administração do so-
frimento, da violência e da morte. Assim, na esteira dos estudos de Estevez (2017b),
o uso desses dispositivos9 como ferramenta analítica sugere a existência de tecnolo-
gias e mecanismos utilizados para garantir que as mulheres, especialmente pobres,
negras, de gênero e sexualidade dissidentes, morram ao não se subordinar ao con-
trole patriarcalista inscrito sobre seus corpos.

No caso da governamentalidade da violência de gênero, são várias as tecnolo-


gias colocadas em prática: políticas públicas, instituições, leis, centros de detenção,
tribunais, organizações civis, igrejas, escolas, e outras burocracias se projetam em
diferentes tipos de dispositivos de gerenciamento de vida das mulheres. Tais tecno-
logias complementam o gerenciamento biopolítico e a produção da morte, por meio
de dispositivos de controle da vida das mulheres, como, por exemplo, o dispositivo
amoroso, e o dispositivo materno, identificados por Zanello (2018), ou o dispositivo
da reprodutividade, identificado por Nielsson (2020), e o feminicídio – em todas as
suas formas - como um dispositivo necropolítico que está sempre pronto a empurrar
mulheres para o palco das mortes da governamentalidade neoliberal.

Ao feminicídio, portanto – dimensão necropolítica – se conectam diversas for-


mas de violência contra as mulheres, que constituem um regime de governamen-

9 Segundo Foucault (2010), um dispositivo é uma rede de elementos discursivos e não dis-
cursivos tais como leis, instituições, infraestrutura, com a função específica de manter o poder na
era da governamentalidade neoliberal. Para Agamben (2010), por sua vez, ampliando o conceito
foucaultiano, podem ser considerados dispositivos quaisquer coisas que tenham, de algum modo,
a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e garantir gestos,
comportamentos, opiniões e discursos de seres vivos.

348
talidade e técnicas de gerenciamento da vida que produzem constantes formas de
precariedade - que adquirem sentido e formas em cada contexto social - e que pos-
sibilitam a entrega da vida aos cálculos e gerências do poder – dimensão biopolítica
(NIELSSON, 2020). Estes dispositivos podem ser identificados no cotidiano de vida
de cada mulher, por exemplo, na aceitação de que elas são propriedade dos homens
e nos altos níveis de tolerância frente à violência praticada, contraditoriamente à
importância que as mulheres têm na produção e reprodução do capitalismo, sendo
também funcionais a ele (SAGOT, 2013).

Nesta perspectiva, o abuso físico e emocional, o estupro, o tráfico sexual, a


pornografia, a exploração sexual comercial, controle reprodutivo e esterilização ou
maternidade forçadas, a negligência com meninas, a violência obstétrica, dentre ou-
tras, são todas formas de expressão distintas de uma mesma opressão, e não fenô-
menos desconexos e individualizados. “En el momento en que cualquiera de estas
formas de violencia resulta en la muerte de la mujer o de la niña, ésta se convierte en
femicidio. El femicidio es, por tanto, la manifestación más extrema de este continuum
de violência.” (SAGOT, 2013, p. 4).

De tal modo que a produção da morte seja concomitante ao gerenciamento e


à precarização da vida, enquanto estratégia de exploração, por meio da qual o Es-
tado – e a sociedade e sua governamentalidade - mata por deixar morrer (omissão)
ou por sua cumplicidade com a reprodução contínua e dissimulada de um padrão de
gênero. “A necropolítica feminicida é a multiplicidade de mecanismos de soberania
postos em operação por grupos diversos que exercitam um direito de vida e morte
sobre corpos de mulher.” (MARTÍNEZ, 2013, p. 11).

No contexto brasileiro, todas estas situações são vivenciadas cotidianamen-


te, conforme destaca a CIDH (2019b, p. 11) ao indicar “un contexto de violencia y
discriminación estructural y endémica contra ellas”, como “el registro de altas tasas
de homicidios por razón de género, desapariciones, acoso y violencia sexual”, que
coexistem com “serios obstáculos, les impiden tener un acceso oportuno y sin discri-
minación a la justicia y a una reparación y protección integral frente a estos actos”, e
com dificuldade para obter acesso à educação, formação, serviços de saúde sexual
e reprodutiva, igualdade de oportunidade de trabalho e emprego livre de assédio,

349
dentre outros.

Com efeito, as estatísticas sobre violência de gênero no contexto brasileiro


apontam para números alarmantes: a) conforme os dados apresentados pelo Con-
selho Nacional de Justiça e Departamento de Pesquisas Judiciárias, foram deferidas
236.641 medidas protetivas no ano de 2017 (MONTENEGRO, 2018); b) conforme o
“Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil”, a taxa de reincidência
de crimes contra a mulher é de quase 50%, mais especificamente 49,2% (WAISEL-
FISZ, 2015, p. 51); c) em 2016, tramitaram na Justiça do País mais de um milhão de
processos referentes à violência doméstica contra a mulher, o que corresponde, em
média, a 1 processo para cada 100 mulheres brasileiras, conforme dados divulgados
pelo Conselho Nacional de Justiça (BANDEIRA, 2017).

Desde o ano de 1980 até 2013, houve um aumento de 252% no número de


mulheres vítimas de homicídios, passando de 1.353 vítimas, em 1980, para 4.762,
em 2013. É possível verificar, também, que o aumento do número de casos progride
anualmente, havendo o aumento de 7,6% ao ano de 1980 a 2006, ano que passou a
vigorar a Lei Maria da Penha, vindo este número a diminuir de 2006 a 2013, quando
passou a aumentar 2,6% ao ano, o que demonstra o efeito positivo da Lei no com-
bate à violência doméstica (WAISELFISZ, 2015, p. 39). Embora também haja um au-
mento anual do número de mulheres no país, as taxas para cada 100.000 mulheres
não deixam dúvidas quanto ao progressivo aumento de casos.

De todo este conjunto de estratégias bio e necropolíticas para gerir, instrumen-


talizar e maximizar a exploração de corpos femininos, a produção da morte acaba
sendo uma constante, de tal modo que, de acordo com Sagot (2013, p. 3) o feminicí-
dio se configura “la forma más extrema del terrorismo sexista”, e assim, na expressão
mais dramática da desigualdade, de gênero e outras, “y muestra una manifestación
extrema de dominio, terror, vulnerabilidad social, de exterminio e incluso de impuni-
dad”. Do que se pode depreender que as causas envoltas nas mortes de mulheres
não se encontram nas características individuais ou “patológicas”, mas expressam
crimes de poder, porque retêm, mantêm ou reproduzem uma lógica de submissão a
uma governamentalidade.

Nestes termos, tais práticas obedecem a uma prática social generalizada de

350
violência, especialmente no tempo e espaço histórico brasileiro da atualidade. Ao
contrário de serem crimes individualizados e privados, são práticas institucionaliza-
das marcadas por um caráter necropolítico, resultado de relações estruturais de po-
der nas quais os “cuerpos de las mujeres asesinadas se convierten así en un reflejo
y una manifestación concreta de um sistema social y de género profundamente desi-
guales.” (SAGOT, 2013, p. 4). Portanto, a necropolítica de gênero constitui um cená-
rio político de produção contínua de descartabilidade de mulheres, que opera através
de “normas sociales que justifican en los hombres un sentido de posesión sobre las
mujeres.” (SAGOT, 2013, p. 6). Tais normas reproduzem desumanização e, com ela,
alta tolerância diante de formas diversas de violência contra mulheres, especialmen-
te contra as mais vulneráveis em razão de classe, raça, sexualidade, idade, condição
migratória, dentre outras questões.

A dimensão política da violência de gênero é perceptível justamente pelo modo


como o Estado a tolera. Logo, a recorrência nas mortes que vitimam mulheres, quais
sejam, a intimidade, a violação sexual a prática de tortura e de mutilação dos cor-
pos (para mencionar apenas algumas) revelam um padrão que só pode ser enten-
dido quando exposta a dimensão estatal na sua produção (ainda que não direta ou
personalizada quando há agentes estatais envolvidos), mas porque implica as desi-
gualdades sociais, historicamente construídas, que ainda carecem ser desmontadas
(SOLYSZKO-GOMES, 2017).

Esta dimensão estatal, indica, conforme Sagot (2013, p. 08), que a violência de
gênero “no es casual o coyuntural, o el resultado de una institucionalidade fallida, sino
que es un componente estructural del sistema”, expressa na inefetividade política
para enfrentar e punir tais crimes, em especial as suas formas mais extremas. Para
Sagot (2013, p. 08), portanto, “existe complicidad de los Estados, lo que se convierte
en um componente esencial para el funcionamiento de la necropolítica de género”.
Neste sentido, a incidência de casos morte de mulheres por razões de gênero impli-
cam responsabilidade dos próprios Estados que deveriam garantir segurança, mas
que na prática operacionalizam o dispositivo necropolítico por meio de estratégias de
impunidade, negligência, omissão e conivência das autoridades, dentre outras.

351
CONCLUSÃO

A partir da abordagem realizada neste breve estudo, torna-se possível afirmar


que o dispositivo de administração de controle, sofrimento e morte às mulheres opera
biopoliticamente transmutando vidas femininas em espécies de vidas nuas, tal como
definidas pela teoria agambeniana10. Isso porque, no paradigma político denunciado
por Agamben, quando uma vida não se normaliza do modo imposto pelo status quo
vigente, ela poderá ser catalogada como vida perigosa e, nessa condição, indigna, si-
tuação na qual pode, a qualquer momento, sofrer uma suspensão do direito, ato que
a colocará, consequentemente, em uma forma de exceção e, consequentemente, em
algum tipo de “campo” – seja o lar, o hospital, a sala de espera de um consultório, um
espaço laboral, etc – e, portanto, exposta a uma violência inominável.

Deste modo, a necropolítica de gênero, ao operar a gestão da vida e a pro-


dução da morte necessita estabelecer critérios diversos de valoração e descartabi-
lidade de vidas femininas, conforme interesses de maximização das condições de
exploração e perpetuação de poder, não atuando do mesmo modo sobre todas as
mulheres: embora possa atingir todos os indivíduos, há pessoas e grupos que es-
tão desproporcionalmente expostos à violência e à morte, por estarem em posições
sociais mais perigosas e intensificadamente sujeitas a processos de precariedade
e descartabilidade, o que implica na relevância do conceito de interseccionalidade
(CRENSHAW, 2002), para a análise deste fenômeno. A partir da noção de intersec-
cionalidade pode-se compreender as múltiplas formas de dominação e precarização
da vida, pois, em conjunto, “o racismo, o patriarcado, a opressão de classe e outros
sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as possibili-
dades.” (CRENSHAW, 2002, p. 177).

No manejo da necropolítica, e sua gestão de corpos femininos a partir de re-


cortes e contextos específicos de opressões de gênero, raça, sexualidade e clas-
se, dentre outros, produzem-se sujeitos legítimos por um lado, e sujeitos indignos
e inaptos por outros, operando uma distinção que irá legitimar diferentes formas de
condutas estatais bio e necropolíticas sobre os corpos. (NIELSSON, 2020). Esta dis-
tribuição diferencial dos processos de precariedade de vidas reforça os marcadores

352
estruturais que irão compor e determinar a necropolítica de gênero, produzindo con-
juntamente as hierarquias que colocam mulheres negras, pobres e de sexualidade e
gênero dissidentes, em posição de maior desvantagem.

Enquanto tal, a necropolítica de gênero constitui um cenário biopolítico de pro-


dução contínua de descartabilidade de mulheres, de definição de quem importa e
quem não, instrumentalizando a vida das mulheres mais vulneráveis a partir de uma
governamentalidade necroneoliberal de terror, com cumplicidade estatal, que despu-
doradamente sentencia à morte. Seu objetivo: constranger as mulheres a se subor-
dinarem às regras masculinas de maximização das condições de exploração, a partir
do aniquilamento de todos os corpos rebeldes e resistentes ao avanço de suas for-
mas destrutivas de poder. As principais testemunhas desse processo, infelizmente,
não podem mais falar. Mas o testemunho de Marina Mirtes (Caso 1), Geziane Buriola
(Caso 2) e de Bárbara Penna (Caso 3), dentre milhares de outras mulheres brasilei-
ras em situação congênere, permitem uma aproximação ao terror da necropolítica de
gênero que grassa entre nós.

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.

AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte:
UFMG, 2010.

BANDEIRA, Regina. CNJ divulga dados do Judiciário sobre violência contra a mulher.
25 de outubro de 2017. [Brasília]. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/c nj/
85640-cnj-publica-dados-sobre-violencia-contra-a-mulher-no-judiciario>. Acesso em:
23 jul. 2020.

BENTO, Berenice. Necrobiopoder: quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos


Pagu, n. 53, 2018. Disponível em: <https://www.periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.
php/cadpagu/article/view/8653413/18511>. Acesso em: 16 fev. 2020.

BUTLER, Judith. Vida precária: el poder del duelo y la violencia. Buenos Aires: Pai-
dós, 2009.

353
CONNELLl, Raewyn. Masculinidades. México: PUEG-UNAM, 2015.

CRENSHAW, Kimberle. Documento para o Encontro de especialistas em aspectos


da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos Feministas, Rio de Ja-
neiro, v. 10, n. 1, p. 171-187, 2002.

ESTEVEZ, Ariadna. Biopolítica y necropolítica: ¿Constitutivos u opuestos? In. VARE-


LA HUERTA, Amarela. Necropolítica y migración en la frontera vertical mexicana: un
ejercicio de conocimiento situado. México: UNAM, 2020.

ESTEVÉZ, Ariadna. El dispositivo necropolítico de producción y administración de


la migración forzada en la frontera Estados Unidos-México. Estudios Fronterizos,
vol. 19, 2018. Disponível em: <http://ref.uabc.mx/ojs/index.php/ref/article/view/679>.
Acesso em: 23 jul. 2020.

ESTÉVEZ, Ariadna. La gubernamentalización necropolítica del Estado y la masculini-


dad hegemónica: dislocación y recomposición ontológica de los derechos humanos.
Derecho y Crítica Social, vol. 3, n. 1, p. 45-74, 2017a.

ESTÉVEZ, Ariadna. La violencia contra las mujeres y la crisis de derechos humanos:

de la narcoguerra a las guerras necropolíticas. Estudios de Género de El Colegio de


México, vol. 3, n. 6, p. 69-100, 2017b.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-


1976). 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A Vontade de Saber. 22. reimp. Rio de


Janeiro: Graal, 2012.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Arte e Ensaios, n. 32, 2016. Disponível em: <https://
revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169>. Acesso: 28 out. 2019.

MBEMBE, Achille. Política de Inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.

MARTÍNEZ, A. M. de la E. Alteridad y exclusiones: vocabulário para el debate social


y político. Cidade do México: UNAM, 2013.

MONTENEGRO, Manuel Carlos. Justiça concede 236 mil medidas protetivas em


2017. 22 de junho de 2018. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/8

354
7047-justica-concede-236-mil-medidas-protetivas-em-2017>. Acesso em: 23 jul.
2020.

NEGRI, Antonio. Biocapitalismo. São Paulo: Iluminuras, 2015.

NIELSSON, Joice Graciele. Corpo Reprodutivo e Biopolítica: a hystera homo sacer.


Revista Direito e Práxis, vol. 11, n. 2, p. 880-910, 2020. Disponível em <http://www.scie-
lo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2179-89662020000200880&lng=en&nrm=i-
so>. Acesso em: 10 de jul. de 2020.

PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2011.

SAGOT, Montserrat. El femicidio como necropolítica em Centroamérica. Labrys, es-


tudos feministas, 2013. Disponível em: <https://www.labrys.net.br/labrys24/feminici-
de/monserat.htm>. Acesso em: 26 out 2019.

SOLYSZKO-GOMES, I. A atualidade da sociedade necropolítica patriarcal: Um deba-


te necessário para pensar a violência de gênero contra as mulheres. In N. Albornoz-
-Arias, R. Mazuera-Arias, (Edits.), Adolescencia: vulnerabilidades. Una mirada inter-
disciplinaria. Barranquilla: Universidad Simón Bolívar, 2017.

VALÊNCIA, Sayak. Capitalismo gore. Melusina, 2010.

ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos. Cultura e processos de


subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.

WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da violência 2015: homicídio de mulheres no Bra-


sil. 1. ed. Brasília, DF: Flacso Brasil, 2015. Disponível em: <https://www.mapada-
violencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf>. Acesso em: 14 nov.
2018.

WERMUTH, Maiquel Ângelo Dezordi; MARCHT, Laura Mallmann; Mello, Letícia de.
Necropolítica: racismo e políticas de morte no Brasil contemporâneo. Revista de Di-
reito da Cidade, Rio de Janeiro, vol. 12, n. 2, p. 122-152, 2020. Disponível em: < ht-
tps://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rdc/article/view/49790>. 23 jul. 2020.

355
O SISTEMA CARCERÁRIO FEMININO E A DIGNI-
DADE DA PESSOA HUMANA

Bárbara Paiva1

INTRODUÇÃO

Dentre os países com maior população carcerária feminina, o Brasil ocupa o


quarto lugar na posição de nações com a maior população carcerária, vindo depois
de Estados Unidos, China, Rússia, situação que se alterou desde o ano de 2018,
conforme pesquisa realizada pelo Ministério da Justiça Brasileira.

É importante pontuar que essa população formou-se timidamente, por isso,


esse público não recebeu a devida atenção, o que só veio a acontecer em um
momento posterior à formação de um sistema carcerário mais fortalecido.

Quando se fala das prisões femininas brasileiras, deve-se lembrar da Con-


gregação do Bom Pastor d’Angers, instituição que, desde 1891 esteve presente no
Brasil e cuja missão primordial era a de proteger e auxiliar mulheres e meninas em
situação de miséria, de exclusão material e social. O Estado junto às Irmãs do Bom
Pastor atuavam no sentido de reestruturar o cárcere, tendo procedido à separação
de presos homens e mulheres, em um contexto em que a lei penal não o fazia (KAR-
POWICZ, 2016).

No início do século XIX, esse estabelecimento, de origem francesa e coman-


dado pela religiosa Maria Eufrásia Pelletier, destinava-se ao assistencialismo, quer
dizer, tinha como principal objetivo dar apoio às pessoas em situação de marginalida-
de, principalmente aos presos, às meninas órfãs, às prostitutas e às famílias pobres.

Contudo, há que se destacar que, no cenário da carceragem pátria, não havia


uma preocupação com a separação entre mulheres e homens, sequer se respeita-
1 Graduada em Direito pela Faculdade de Talentos Humanos (FACTHUS) Uberaba; pós-graduação em Direito
Tributário, pela Universidade de Uberaba (UNIUBE) e Mestrado em Educação, pela Universidade de Uberaba (UNIU-
BE). <[email protected]>

356
vam os direitos humanos, tão essenciais à sobrevivência com dignidade.

Foi a partir de 1930, que o Governo Federal, com o objetivo de regulamen-


tar as prisões brasileiras, adotou algumas medidas, tais como: implementação do
Regimento das Correições (1930), cujo objetivo era o de reorganizar o sistema car-
cerário. Em 1934, veio a criação do Fundo e do Selo Penitenciário, que visavam à
arrecadação de fundos e de impostos para investir nas prisões. Já em 1935, foi a vez
do lançamento do Código Penitenciário da República, que legislava sobre o ordena-
mento de todas as circunstâncias que envolviam a vida do indivíduo condenado pela
Justiça. Enfim, em 1940, entrou em vigor o Código Penal Brasileiro, que trouxe as
primeiras medidas efetivas com vistas à acomodação legal de mulheres infratoras.
Registre-se que essa foi uma atribuição dada ao Estado. Isso significa dizer que a
primeira diretriz legal que se refere às mulheres encarceradas foi determinada, em
1940, pelo Código Penal e pelo Código de Processo Penal e pela Lei das Contraven-
ções Penais, de 1941.

Nesse aspecto, pode-se dizer que o Estado ainda não se preocupava com
esse índice tão baixo e só começou a destinar maior atenção a esta parcela de de-
linquentes tempos mais tarde, quando percebeu ser necessária maior autoridade no
que concerne ao crescente número de infratoras. Veio o primeiro presídio feminino
brasileiro - o Reformatório de Mulheres - em Porto Alegre, em 1937, seguindo-se, em
1941, o Presídio Feminino em São Paulo, e a Penitenciária do Distrito Federal (então
localizada no Rio de Janeiro), em 1942.

É importante destacar que esses três estados, localizados no sul e sudeste,


foram os primeiros a inaugurarem instituições prisionais femininas no Brasil. Também
é relevante pontuar que o país passava por um momento em que se debatia o sistema
penitenciário nacional, fazendo-se refletir sobre o encarceramento feminino. Diante
dessa realidade, construíram-se propostas e pensamentos sobre o encarceramento
feminino.

Falar sobre carceragem de uma maneira geral é algo desafiador, pois, trata-se
de um assunto de extrema complexidade, eivado de polêmicas e grandes transgres-
sões. Quando se fala do encarceramento feminino no Sistema Prisional Brasileiro, o
cenário assume dimensões ainda maiores: modernamente, já se reconhece, mesmo

357
em nível internacional, que o sistema penitenciário feminino brasileiro é inadequado,
marcado pelas mais variadas precariedades, em que as mulheres são tratadas da
mesma forma que os homens, não possuem acesso à saúde, ou mesmo os cuidados
básicos com a higiene. Sequer respeitam a maternidade, momento tão sublime na
vida de uma mulher. Atualmente no Brasil, existem cinquenta e três penitenciárias
femininas. No entanto, várias mulheres são mantidas em delegacias de polícia ou
em carceragens superlotadas, alheias a qualquer estrutura adequada. É importante
salientar que a criminalidade a ser combatida pelo Estado possui fundos sociais, não
é por outro motivo que tráfico de drogas e roubos lideram o ranking da população
carcerária brasileira.

Diante desse cenário, mostra-se interessante conhecer a atual roupagem


apresentada pela população carcerária feminina no Brasil, apontando as principais
causas ensejadoras das respectivas prisões; como as detentas encaram a prisão; o
desrespeito para com os seus direitos fundamentais e, por fim, aplicar a Educação
nestes espaços, na tentativa de modificar o panorama atualmente presenciado por
essas mulheres.

SISTEMA CARCERÁRIO FEMININO - SITUAÇÃO ATUAL


Giovanna Penhalbel Sigilló (2019) assevera que a “população carcerária femi-
nina explodiu 455% entre 2000 e 2016 com a “guerras às drogas”. E a mesma autora
continua dizendo que “esse fenômeno vem de longe: da privação social domiciliar ou
em conventos, às prisões que puniam prostitutas e “ninfômanas””.

Nesse mesmo sentido, é importante anotar que a pena existe na sociedade


brasileira desde o seu início, como sendo uma forma punir uma violação às regras
fixadas por determinados povos. Historicamente, foram impostos castigos aos trans-
gressores; o homem primitivo também teve suas vinganças de sangue; atualmente,
de defesa social e de estudos de Vitimologia, traçando-se aqui uma comparação do
Direito Brasileiro com o de outros países.

Em síntese, a finalidade real da pena é a de reeducar o infrator, reinserindo-o


na sociedade, no entanto, percebe-se que o verdadeiro sentido da pena no Brasil
foi perdido, pois não se pode recuperar um ser humano mantendo-o em condições

358
subumanas.

De acordo com o Infopen Mulheres, lançado pelo Ministério da Justiça, o Bra-


sil passou da quinta para quarta posição entre as nações com maior população car-
cerária feminina em todo o mundo (há cumprimento das finalidades propostas pela
pena?).

Não é novidade que o Sistema Prisional Brasileiro está em franca ruína, viven-
ciando crescente decadência em razão do desrespeito aos preceitos humanitários
existentes na legislação pátria. E, quando se fala neste assunto, vêm à mente os
casos masculinos, até então mais evidentes em nossa sociedade. Ocorre que, ao
contrário do que supõe o senso comum, a população carcerária feminina existe, e
tem aumentado consideravelmente, experimentando a mesma forma de abandono
que os homens nas cadeias (por parte do Estado).

É de Abraham Harold Maslow, psicólogo americano, a Teoria da Hierarquia


das Necessidades Humanas, que diz que todo ser humano possui necessidades,
desde as mais básicas, às mais dispensáveis. No alto dessa hierarquia, represen-
tada por uma pirâmide, estão caracteres como status, necessidade de crescimento,
autorrealização, dentre outros. Enquanto isso, na sua base (que é maior) encontram-
-se as necessidades fisiológicas, como: alimentação, convivência familiar, descanso,
e outros, que não podem ser dispensados, pois nascem com o ser humano, devendo
ser supridos, sob pena de provocarem atitudes inadequadas e indesejadas nas pes-
soas.

A citada teoria discorre sobre o comportamento humano e confirma a rele-


vância de satisfazer as necessidades básicas de cada ser. Nesse sentido, ao ana-
lisar a realidade existente nos presídios femininos, percebe-se que o desrespeito e
a falta de interesse são evidentes. Na maioria dos casos, as detentas não possuem
sequer condições mínimas de higiene pessoal. E, pior que a falta de assistência é o
desprezo ao seu gênero, que, frequentemente é igualado a outro, totalmente distinto,
quer dizer, mulheres presas recebem tratamento semelhante ao dos homens presos,
mesmo diante de todas as particularidades. Pode-se dizer que algumas condições
tão especiais, como a maternidade, são ignoradas.

359
Nas prisões femininas, encontram-se alguns severos problemas, como: con-
dições insalubres das celas, tratamento desumano, além da superlotação, que não é
novidade no panorama da sociedade brasileira. A jornalista Nana Queiroz, que estu-
dou e analisou a vida das detentas, trouxe o testemunho de que em 2009, em meio
ao surto do vírus H1N1, na cidade de Votorantim, com a finalidade de não contaminar
as outras companheiras de cela, três presas foram isoladas no banheiro de uma de-
legacia local, já que não havia espaço apropriado para que fossem adequadamente
tratadas. E, sobre este fato, considerou a jornalista:

“Nos presídios masculinos, situações do tipo são causa de rebeliões contí-


nuas. Eles metem medo, exigem direitos. As mulheres são menos organiza-
das, mais passivas. Lideram poucas rebeliões, menos atrativas para a im-
prensa por sua carência de agressividade. Matam menos gente na cadeia
— às vezes, passam-se meses, anos até, sem que o Ministério da Justiça
registre um assassinato. Normalmente, ficam em silêncio como outras Marias
Aparecidas”.

Fatos dessa natureza não são isolados, ocorrem com frequência no cotidiano
das mulheres encarceradas. Nesse sentido, a passividade presente nos presídios
femininos contribui para que o abandono seja uma constante, pois, em regra, as mu-
lheres não provocam, não cometem atrocidades, e assim, não incomodam. A grande
razão para as autoridades fecharem os olhos diante desses problemas é o fato de
elas ainda não terem se tornado um impasse social de grande vulto. Dessa forma, a
mídia não lhes dá visibilidade suficiente, pois está mais preocupada com a explora-
ção de violência sanguinária, de imposição de medo, publicizando a condenação de
criminosos, que é muito mais vantajosa como forma de se noticiar.

Destarte, o objetivo não é o de incentivar o comportamento agressivo das de-


tentas. Ao contrário, deve-se incitar a reflexão sobre a conduta adotada pelas autori-
dades competentes, que só buscam soluções quando a situação atinge um grau de
elevação extremo, e mesmo assim, vêm adotando soluções paliativas pautadas no
temor, mas que não têm o condão de atingir a raiz da problemática prisional.

Em síntese, falar sobre carceragem de uma maneira geral é algo desafiador: o

360
assunto é de extrema complexidade, eivado de polêmicas e transgressões. Quando
se trata do encarceramento feminino, o cenário assume dimensões ainda maiores: o
sistema penitenciário feminino brasileiro é inadequado, marcado por precariedades e
violações de direitos fundamentais. São situações nas quais as mulheres encarcera-
das sequer têm a maternidade, momento tão ímpar, respeitada.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
O perfil socioeconômico brasileiro encontrado nos estudos é caracterizado,
em geral, por mulheres jovens, mães solteiras, afrodescendentes e condenadas por
envolvimento com tráfico de drogas ou entorpecentes. Elas conservam um vínculo
muito forte com suas famílias, por isso, preferem ficar em cadeias públicas insalu-
bres, inabitáveis e superlotadas, podendo ver seu cônjuge e filhos, a ir para uma
penitenciária distante (com possibilidade de remição da pena – por meio de trabalho
ou estudo). Todavia, inexistem dados oficiais acerca da mulher presa no Estado Bra-
sileiro ou do contexto a que estão submetidas (MANFROI, 2017). Os dados apre-
sentados permitem a identificação das mulheres inseridas neste âmbito, como sen-
do dotadas de vulnerabilidade social, econômica e sentimental. Constata-se, pois,
índice de escolarização inferior, levando ao enquadramento majoritário, no “Ensino
Fundamental Incompleto”. Os fatores que contribuem para baixa escolaridade são
a própria detenção, os processos de discriminação, ínfima condição econômica e a
maternidade (BRASIL, 2017).

Esse estudo ainda levou em consideração a análise de artigos, dissertações


e livros publicados. Ademais, foram utilizados documentos e dados oficiais, verifi-
cados a partir de pesquisas feitas no site do DEPEN (Departamento Penitenciário
Nacional), que é o órgão responsável por acompanhar a aplicação das normas de
execução penal em todo o Território Nacional, auxiliar tecnicamente os Estados e o
Distrito Federal, gerir os recursos do Fundo Penitenciário Nacional, possuindo ainda
outras atribuições.

Diante disso, é possível dizer que no Brasil, dados apontam uma população
de 579.781 pessoas custodiadas no Sistema Penitenciário, sendo 37.380 mulheres
e 542.401 homens. Entre 2000 e 2014, houve aumento de 567,4% da população
feminina. No mesmo período, a população masculina cresceu 220,20%, refletindo

361
a curva ascendente do encarceramento em massa de mulheres, o que se dá em
razão dos mais diversos fatores, situação que não merece prosperar, necessitando
da criação de políticas públicas que humanizem o sistema e devolvam a dignidade a
essas mulheres.

CONCLUSÃO

Segundo os últimos dados de junho de 2014, o Brasil conta com uma população
de 579.7811 pessoas custodiadas no Sistema Penitenciário, sendo 37.380 mulheres
e 542.401 homens. No período de 2000 a 2014 o aumento da população feminina
foi de 567,4%, enquanto a média de crescimento masculino, no mesmo período, foi
de 220,20%, refletindo, assim, a curva ascendente do encarceramento em massa de
mulheres.

Em geral, as mulheres submetidas ao cárcere são jovens, têm filhos, são as


responsáveis pela provisão do sustento familiar, possuem baixa escolaridade, são
oriundas de extratos sociais desfavorecidos economicamente e exerciam atividades
de trabalho informal em período anterior ao aprisionamento.

Frequentemente, essas mulheres enfrentam diversas discriminações, como


falta de ambientes adequados, descasos, opressões e negação de direitos básicos,
como a maternidade. Levando-se em consideração o atual cenário da população car-
cerária feminina, que cresce a olhos vistos, nota-se que é necessária uma mudança,
uma tomada de atitude, que rompa barreiras, que quebre preconceitos e, sobretudo,
que restitua a dignidade das mulheres em privação de liberdade, garantindo-se, pois,
maior humanização no cumprimento de suas penas e, sobretudo, restituindo-lhes a
Dignidade ora perdida...

362
REFERÊNCIAS
ALVARENGA, E. M. (Amarilhas, C., Trad.). Metodologia da Investigação Quantitativa
e Qualitativa. Ed. Própria: Assunção-Paraguai, 2014.

CORSI, E. C. Pena: Origem, Evolução, Finalidade, Aplicação no Brasil, Sistemas Pri-


sionais e Políticas Públicas que Melhorariam ou Minimizariam a Aplicação da Pena.
Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br>. Acesso: 10.08.2017.

KARPOWICZ, Débora Soares. Legado da Congregação Bom Pastor D’Angers na


Institucionalização do Cárcere Feminino no Brasil. Anais do III Encontro de Pesqui-
sas Históricas - PPGH/PUCRS. Porto Alegre, 2016. p.1227-1240. Disponível em:
<https://iiiephispucrs.files.wordpress.com/2017/02/104-st03-06-karpowicz-debora.
pdf>. Acesso: 15.10.2020.

LISBOA, Vinícius. População Carcerária Feminina no Brasil é uma das Maiores do


Mundo. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-11/po-
pulacao-carceraria-feminina-no-brasil-e-uma-das-maiores-do-mundo>. Acesso:
26.03.2019.

MELLO, Daniela Canazaro. Quem São as Mulheres Encarceradas? Disponível em:


<http://repositorio.pucrs.br/dspace/bitstream/10923/5009/1/000409563-Texto%2B-
Completo-0.pdf>. Acesso: 30.03.2019.

SALIM, B. Mulheres no Sistema Prisional Brasileiro. Disponível em: <https://bruna-


salim.jusbrasil.com.br>. Acesso: 06/08/2017.

SILVA, E. C. Mulheres no Cárcere. Disponível em: <http://www.fadiva.edu.br>.


Acesso: 10.08.2017.

363
NEM TÃO LIVRES, NEM TÃO IGUAIS:
UM PANORAMA BIOPOLÍTICO
SOBRE O REFÚGIO LGBTI NO BRASIL

Carolina Bonoto1
Fernando Hoffmam2

INTRODUÇÃO

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” anun-


ciou a Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948, e repetiu, em 2006, a
coalizão de 25 países, incluído o Brasil, nos chamados Princípios de Yogyakarta3,
desenvolvidos para reger a aplicação da legislação internacional às violações de
direitos humanos com base em orientação sexual e identidade de gênero. Tais prin-
cípios, por possuírem caráter vinculante, influenciaram a aprovação de legislações
e políticas públicas em diferentes países buscando garantir direitos de igualdade e
não-discriminação.

O cenário mundial, entretanto, segue um padrão contínuo e consolidado de


violência contra lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersex – LGBTI4. De acordo
1 Doutoranda no Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (PPGCOM/UFRGS). Mestra em Comunicação Midiática pelo Programa de
Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (POSCOM/UFSM). Gra-
duada em Comunicação Social: Jornalismo (UFSM) e em Direito pela Universidade Franciscana
(UFN). E-mail: [email protected].
2 Professor Adjunto I do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM); Doutor e Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISI-
NOS); Líder do Grupo de Pesquisa Núcleo de Estudos do Comum (NEC) registrado junto à UFSM/
RS e ao CNPQ; Especialista em Direito: Temas Emergentes em Novas Tecnologias da Informação
e Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). E-mail: ferdhoffa@yahoo.
com.br
3 Entre 6 e 9 de novembro de 2006, em Yogyakarta, Indonésia, a Comissão Internacional
de Juristas e o Serviço Internacional de Direito Humanos, em nome de organizações de direitos
humanos de 25 países, adotaram por unanimidade os Princípios sobre a Aplicação da Legislação
Internacional dos Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e à Identidade de Gênero, pu-
blicados em março de 2007, também conhecidos como “Princípios de Yogyakarta”. Disponível em:
<www.dhnet.org.br/direitos/principios_de_yogyakarta.pdf>. Acesso em: 9 mar. 2019.
4 Embora “LGBT” seja a sigla atual oficialmente reconhecida, tanto pela academia quanto
pelo movimento social, para representar a diversidade sexual e de gênero no Brasil, neste trabalho

364
com o recente relatório State Sponsored Homophobia da International Lesbian, Gay,
Bisexual, Trans and Intersex Association (ILGA), a maior organização transnacional
LGBTI, as relações consensuais entre homens adultos seguem criminalizadas em 70
países5, sendo que em 44 deles o mesmo se aplica às relações entre mulheres. As
punições variam: detenção, açoitamento, apedrejamento, prisão perpétua e também
pena de morte6.

Faz-se essencial esclarecer que não pretendemos reforçar a dualidade criada


entre um Ocidente caracterizado pelo respeito à diversidade, pelo igualitarismo e
pela modernidade; e um Oriente pautado pela negação de direitos, pelo extremismo
e pelo atraso. Paradoxo, não raro, acionado para fins racistas, xenofóbicos ou isla-
mofóbicos, como pontua Isadora Lins França (2017). A LGBTfobia, enquanto meca-
nismo de controle e dominação, faz parte de uma construção ideológica enraizada
em grande parte das sociedades contemporâneas, sejam ocidentais ou orientais.

Diante das potenciais violações de direitos humanos enfrentadas por esses


indivíduos, diversos países vêm, desde a década de 1980, reconhecendo o fundado
temor de perseguições motivadas por orientação sexual e/ou identidade de gênero
enquanto critério para a concessão de refúgio. Atualmente, estima-se que cerca de
40 países aceitem pedidos de refúgio de pessoas LGBTI ou percebidas como tal.

Já o Brasil, de acordo com França (2017), passou de país majoritariamente de


origem de solicitações de refúgio com base na sexualidade e gênero para um país
acolhedor de pedidos de refugiados LGBTI, nos últimos 20 anos. Ainda assim, como
lembra Daniel Nascimento (2018), brasileiros e brasileiras continuam emigrando em
busca de maior liberdade para suas vivências, sobretudo em virtude do conturbado

usaremos o termo “LGBTI” – incluindo o grupo de pessoas intersex, por ser a sigla utilizada em
relatórios recentes das Nações Unidas (ONU) e também pelo Escritório do Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).
5 Um número abaixo do relatório anterior já que, em setembro de 2018, em decisão unânime,
a Índia descriminalizou a homossexualidade em todo seu território. No primeiro levantamento feito
pela Organização, em 2006, a lista contava com 92 países onde o comportamento homossexual
era criminalizado.
6 A pena de morte por atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo é permitida em seis países-
-membros das Nações Unidas, sendo que em quatro (Arábia Saudita, Iêmen, Irã e Sudão) aplica-se
em todo território, enquanto em dois (Somália e Nigéria) apenas em províncias específicas. Ainda
de acordo com o relatório da ILGA (2019), outros cinco Estados (Afeganistão, Catar, Emirados
Árabes, Mauritânia e Paquistão) permitem pena de morte de acordo com certas interpretações da
Sharia.

365
campo político atual aliado aos altos índices de violência LGBTfóbica.

Neste complexo e contraditório cenário, o presente trabalho situa-se nos en-


trecruzamentos entre gênero, sexualidade e o direito ao refúgio, e é desenvolvido
dentro de uma perspectiva biopolítica. Buscamos discutir como se deu a evolução
do direito brasileiro sobre a concessão de refúgio com base em orientação sexual e
identidade de gênero dentro de um panorama de marginalização desses grupos so-
ciais. Nosso objetivo central é, portanto, apresentar criticamente um quadro teórico
que permita compreender as migrações forçadas dentro de uma lógica biopolítica de
controle sobre os corpos e comportamentos não-heterossexuais.

Com base em um panorama preliminar das pesquisas sobre refúgio LGBTI foi
notório o crescimento de produções nacionais, desde 2012, sob diferentes perspec-
tivas: Vitor Andrade (2017) analisou organizações da sociedade civil que atendem
refugiados/as LGTBI na cidade de São Paulo e também os desafios de acolhimento
e integração local (2016); França (2017) dedicou-se ao debate em um comparativo
com o contexto espanhol; Thiago Oliva (2012) e Nascimento (2017) focaram seus
trabalhos nos critérios de concessão de refúgio por orientação sexual e identidade
de gênero; já Fernanda Sobreira (2015) explorou as situações de intolerância e dis-
criminação enfrentadas por refugiados/as LGBTI no Brasil.

Poucos são, portanto, os trabalhos que partem de uma perspectiva biopolítica


sobre a hierarquização de determinadas vidas para apreender o refúgio LGBTI no
Brasil. Assim, na primeira parte deste trabalho, apresentamos alguns enlaces teóri-
cos entre as sexualidades e as redes biopolíticas de controle que recaem sobre os
corpos LGBTIs para, em seguida, debatermos o cenário nacional de concessão de
refúgio à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Tal percurso foi pensa-
do de forma ascendente para desenredar a história marginalizada das sexualidades
não-normativas, e explicitar as concepções forjadas culturalmente que, muitas vezes,
são determinantes para que alguém deixe seu país de origem em busca de refúgio
em uma nova nação.

366
SEXUALIDADES NÃO-NORMATIVAS E O ARMÁRIO
BIOPOLÍTICO

A sexualidade é um dispositivo histórico (Foucault, 2015). Uma invenção so-


cial constituída por meio de múltiplos discursos que instauram saberes e produzem
verdades. Para Michel Foucault (2015), em A História da Sexualidade: a vontade de
saber7, o constrangimento trazido ao se falar em sexo é recente, sendo que, até o
início do século XVII, as práticas sexuais não procuravam o segredo e “os corpos
pavoneavam” (FOUCAULT, 2015, p. 07).

Já no final do século XVII, a sexualidade vira tabu: assunto proibido, cheio de


mistérios, circunscrito às quatro paredes do quarto. O sexo e suas intimidades são
confiscados pela família conjugal. A sexualidade passa a ser restrita à figura do casal,
responsável pela procriação e, portanto, incumbido de legitimidade. Nesse momento
de desenvolvimento do capitalismo, Foucault (2015) questiona como seria possível,
na época em que se explora sistematicamente a força de trabalho, tolerar que ela
fosse dissipada nos prazeres, salvo naqueles reduzidos ao mínimo, que permitissem
a reprodução. O controle dos indivíduos é, então, exercido sobre seus corpos, torna-
dos dóceis e economicamente úteis, em uma sociedade “disciplinar”8.

A sexualidade passar a ser estruturada no interior de enquadramentos sociais


extremamente punitivos e sujeita a controles formais e informais, como a igreja, a es-
cola, a família e o consultório médico. É suposto que se deve falar de sexo não ape-
nas como algo a ser tolerado, mas como uma atividade a ser gerida e regulada para
o bem de todos. O sexo não se julga, apenas administra-se, pontua Foucault (2015).
Quem domina o discurso aberto passa a emanar autoridade, enquanto aqueles que
não se encaixam na lógica conservadora de sexualidade, viram foras-da-lei.

Conforme as décadas avançaram, viu-se uma explosão discursiva sobre a se-

7 Obra originalmente lançada em 1976.


8 Ainda que considere legítimo indagar a razão pela qual, durante tanto tempo, associou-se o
sexo ao pecado – o que chamou de “hipótese repressiva” –, Foucault (2015) desloca sua atenção
para a questão de “por que dizemos com tanto rancor contra nosso passado mais próximo, contra
nosso presente e contra nós mesmos, que somos reprimidos?” (FOUCAULT, 2015, p.13). O autor,
portanto, não nega a existência de uma repressão sexual, apenas a inscreve dentro de dinâmicas
de poder mais amplas.

367
xualidade. Porém, tais discursos, em grande maioria, convergiram para a monogamia
heterossexual como norma, enquanto as sexualidades “dissidentes” foram combati-
das, naquilo que Jeffrey Weeks (2013) denomina “institucionalização da heterosse-
xualidade”. Na mesma linha, Gayle Rubin (2012) destaca que os atos sexuais foram
avaliados de acordo com um sistema hierárquico de valores sexuais em que:

[...] a sexualidade que é “boa”, “normal”, e “natural” deve idealmente ser he-
terossexual, marital, monogâmica, reprodutiva e não-comercial. Deveria ser
em casal, relacional, na mesma geração, e acontecer em casa. Não deveria
envolver pornografia, objetos fetichistas, brinquedos sexuais de qualquer tipo,
ou outros papéis que não o masculino e feminino. Qualquer sexo que viole as
regras é “mal”, “anormal” ou “não natural”. O sexo “mal” pode ser o homos-
sexual, fora do casamento, promíscuo, não-procriativo, ou comercial (RUBIN,
2012, pp. 17-18).

Nossas definições, convenções, crenças, identidades e comportamentos se-


xuais não são o resultado de uma simples evolução, como se tivessem sido causa-
dos por algum fenômeno natural: elas têm sido modeladas no interior de relações
definidas de poder. Dentro da perspectiva foucaultiana, o poder é um mero conjunto
de instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos cidadãos a um Estado, mas
sim uma rede que está em toda parte “não porque englobe tudo e sim porque provém
de todos os lugares” (Foucault, 2015, 101).

Para o autor, o poder soberano foi substituído gradativamente pelo poder disci-
plinar em meados do século XVII e passou a ser complementado pela biopolítica na
segunda metade do século XVII. Assim, enquanto o poder disciplinar age sobre os
indivíduos, produzindo corpos dóceis e domesticados, o poder biopolítico age sobre
a vida da espécie e sua manutenção. De acordo com Foucault (2015), pela primeira
vez:

[...] centrou-se no corpo espécie, no corpo transpassado pela mecânica do


ser vivo e como suporte dos processos biológicos: a proliferação, os nasci-
mentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida, a longevidade,
com todas as condições que podem fazê-los variar: tais processos são assu-

368
midos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores: uma
biopolítica da população (FOUCAULT, 2015, p. 150, grifos do autor).

A sujeição dos corpos e o controle da população são incorporadas às preocu-


pações do poder – um biopoder, portanto. Foucault (2015) reforça que esse novo
fenômeno não significa a extinção da tecnologia disciplinar. Ao contrário, o poder
disciplinar, que age sobre os indivíduos, passa a ser complementado pela biopolítica,
que age sobre o corpo coletivo como um todo.

Para além de produzir um corpo dócil, a biopolítica busca gerir a população


como um problema científico, que é também político. Sobre isso, Foucault (2015) afir-
ma que o elemento nuclear na gestão da população é a norma e, por consequência,
os regimes de normalização, que não só distinguem o “normal” e o “anormal”, mas
também induzem, por técnicas polimorfas de poder, a adoção dos padrões instituí-
dos em sociedade. O soberano não mais detém o direito de “fazer morrer” ou “deixar
viver”, agora se trata de gerir a vida, mais do que decretar a morte, ou seja, “fazer
viver” e “deixar morrer”.

A LGBTfobia é estratégia fundamental ao biopoder. O termo indica, essencial-


mente, o ódio e a aversão à homo-bi-transexuais e a todas as manifestações de
sexualidades não hegemônicas ou expressões de gênero distintas do padrão binário
masculino-feminino (Bonoto, 2018). É, segundo Daniel Borrillo (2009), do mesmo
modo que a xenofobia, o racismo ou o antissemitismo, uma manifestação arbitrária
que consiste em qualificar o outro como contrário, inferior ou anormal.

Situa-se enquanto um fenômeno complexo que, por permear as práticas co-


tidianas, acaba se tornando banal e disseminada, incorporada no senso comum. A
matriz da qual se constroem as práticas LGBTfóbicas, conforme pontua Rogério Jun-
queira (2007), também é a mesma em que se estrutura o campo de disputas onde se
definem socialmente o masculino (e as masculinidades), o feminino (e as feminilida-
des), e também o neutro, o ambíguo ou o fronteiriço.

Dessa forma, Borrillo (2009) destaca o papel da LGBTfobia na atuação de uma


espécie de “vigilância do gênero”, denunciando os desvios e deslizes do masculino
em direção ao feminino e vice-versa. Toda suspeita de homossexualidade parece

369
soar como uma traição capaz de questionar a identidade mais profunda do ser. No
momento em que se pronuncia “veado!”, em geral, o que se faz é mais do que espe-
cular sobre a verdadeira orientação sexual da pessoa: é denunciar um não-respeito
aos atributos masculinos “naturais”.

Para além da noção simplista de um sentimento negativo contra determinadas


identidades, a LGBTfobia representa um grave fator de restrição aos direitos de liber-
dade e igualdade. Ela assegura a possibilidade de eliminação de vidas consideradas
não enlutáveis, menores, pois, ligadas a seres humanos dispensáveis. Nessa pers-
pectiva, Judith Butler (2018) explica que as vidas são consideradas enlutáveis ou não
a partir de um ponto de vista dominante e hegemônico de construção sociocultural
dos sujeitos dentro de quadros pré-determinados de aceitação e identificação do ser
humano.

Sob o controle de distintas instâncias de poder, as sexualidades marginais fo-


ram, ao longo dos séculos, valoradas e classificadas de formas diversas: pela Igreja,
como pecado; pela medicina, como doença; e pelo Estado, como crime. Os discur-
sos reguladores, constantemente reiterados, mantêm as chamadas minorias sexuais
como alvo direto de repressões e interdições. A partir de Butler (2018), faz-se possível
afirmar que essas sexualidades dissonantes têm suas precariedades potencializadas
em meio a um processo de classificação e diferenciação que possibilita a sonegação
de direitos fundamentais, de tratamento igualitário e, até mesmo, da própria condição
humana.

Nesse contexto, a recente tentativa de Brunei, país do sudeste asiático, em


aprovar nova legislação transformando o sexo entre homens crime punível com o
apedrejamento até a morte9; a castração de homens gays durante o regime nazista;
os relatos sobre a existência de grupos paramilitares anti-LGBTI organizados na Rús-
sia10; a prática crescente de estupros corretivos de mulheres lésbicas e bissexuais na
África do Sul11; o tiroteio em massa de LGBTs latinos na Boate Pulse, em Orlando,
Estados Unidos; o assassinato de Quelly da Silva, travesti que teve o coração arran-
9 Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/04/03/brunei-o-pais-onde-gays-a-
gora-podem-ser-apedrejados-ate-a-morte.ghtml. Acesso em: 18 set. 2019
10 Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/comunidade-lgbti-da-russia-teme-caca-
-aos-homossexuais-23857901. Acesso em 18 set. 2019.
11 Disponível em: https://www.estadao.com.br/noticias/geral,homossexuais-sul-africanas-so-
frem-com-onda-de-estupros-corretivos,740492. Acesso em 18 set. 2019.

370
cado e substituído pela imagem de uma santa católica, em Campinas, São Paulo,
Brasil12; são alguns exemplos que indicam a vulnerabilidade e precariedade da vida
LGBTI em diferentes lugares do mundo.

Para Butler (2018), a vida por si só é sempre precária, estando exposta aos
mais variados perigos. Contudo, há segmentos populacionais que vivenciam aquilo
que chama de “condição de vida precária”, assim definida:

A condição politicamente induzida na qual certas populações sofrem com re-


des sociais e econômicas de apoio deficiente e ficam expostas de forma dife-
renciada às violações, à violência e à morte. Essas populações são mais ex-
postas a doenças, pobreza, fome, deslocamentos e violência sem nenhuma
proteção. A condição precária também caracteriza a condição politicamente
induzida de maximização da precariedade para populações expostas à vio-
lência arbitrária do Estado que com frequência não têm opção a não ser re-
correr ao próprio Estado contra o qual precisam de proteção (BUTLER, 2018,
pp. 46-47).

A precariedade da vida é acirrada, de acordo com Butler (2018), no momento


em que não são consideradas passíveis de luto. A vida do Outro, quando não nos
representa uma identificação possível, está sujeita à desumanização. Esses enqua-
dramentos normativos estabelecem de antemão quais vidas serão dignas de serem
vividas, quais serão dignas de serem preservadas e quais vidas serão dignas de se-
rem lamentadas ou não.

Nesse caminho, a vida abjeta – aquelas que não encontram legitimidade social
por não se referenciarem nos ideais hegemônicos de gênero, sexualidade e raça, por
exemplo – são vidas sujeitas à condição de vida precária, uma vez que não são inte-
ligíveis13, ou seja, dóceis, consumíveis, passíveis de reconhecimento e identificação.

12 Disponível em: https://revistaforum.com.br/brasil/travesti-e-assassinada-e-tem-o-coracao-


-arrancado-em-campinas. Acesso em 18 set. 2019.
13 Corpos inteligíveis são aqueles que, em certo sentido, instituem e mantêm relações coeren-
tes entre sexo, gênero, prática sexual e desejo, edificando a noção de pessoa como uma agência
que reivindica prioridade ontológica aos vários papéis e funções pelos quais assume viabilidade e
significado sociais. Em outras palavras, a matriz de inteligibilidade, fundada no dimorfismo biolo-
gicista/naturalizado dos corpos e em binarismos dele decorrentes, presume que, por exemplo, um
indivíduo nascido com genitais femininas deve obrigatoriamente se identificar como mulher, assu-
mir papéis sociais reservados às mulheres e envolver-se sexual e afetivamente com homens. Não

371
A FUGA DO PAÍS-ARMÁRIO: O BRASIL COMO ALTERNATIVA
À VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS?

Constituir-se LGBTI em uma sociedade imersa em normatividades sexuais e


de gênero representa, não raro, significativa influência nas formações subjetivas in-
dividuais (Bonoto, 2018). As relações de poder-saber (Foucault, 2015) prescrevem
a normalização de determinados comportamentos enquanto marginalizam outros,
provocando intensos efeitos regulatórios nas experiências identitárias. As particulari-
dades do contexto histórico e sociopolítico edificam, em variados níveis, as posições
de indivíduos que se autodeterminam enquanto lésbicas, gays, bissexuais, trans e
intersex.

Nesse plano, as relações humanas que permeiam os sujeitos e seus modos


de vida não apenas os constituem, mas também os destituem na relação com o(s)
outro(s), muitas vezes materializando a necessidade de migrar por conta dessas
mesmas relações. Historicamente, a migração tem desempenhado importante papel
como instrumento de liberdade e sobrevivência. Lawrence La Fountain-Stokes (2004)
denominada como sexílio os movimentos que têm como objetivos fundamentais a
fuga da perseguição e violência, o distanciamento da família14 e/ou comunidade natal
ou o desejo de reestruturar a própria existência em lugares mais tolerantes e segu-
ros. Na mesma linha, trabalhos como o de Vieira (2011) e Teixeira (2015) propõem
que a mobilidade seja, inclusive, elemento constitutivo da subjetividade de pessoas
não-heterossexuais.

Importante ressaltar, então, a diferença fundamental entre migrantes e refugia-


dos. A migração é o deslocamento, interno ou internacional, geralmente provocado
por quatro razões principais: economia, trabalho, reunião familiar e migração forçada
(OIM, 2009). Já o refugiado, ou migrante forçado, desloca-se em função de fatores
externos à sua vontade. O refúgio é um instituto jurídico internacional “essencialmen-
te humanitário” (Piovesan, 2016, p. 273) que abarca perseguição por motivos religio-
ser inteligível, portanto, levaria essas pessoas a perderem, pelo menos parcialmente, seu status
humano (BUTLER, 2018).
14 De acordo com a pesquisa de Andrade (2016), ao analisar os desafios de acolhimento e in-
tegração local de refugiados/as no Brasil, a homofobia familiar é, comumente, a motivação principal
que impulsiona a emigração e o pedido de refúgio de pessoas LGBTI.

372
sos, raciais, de nacionalidade, de grupo social15 e de opiniões políticas16.

O Brasil está comprometido com a proteção internacional dos direitos huma-


nos desde que ratificou a Declaração Universal de Direitos Humanos, em 1948. Da
mesma forma recepcionou a Convenção de 195117, promulgada internamente em
1961, e o Protocolo de 196718, promulgado em 1972. Porém, durante quase duas
décadas apenas refugiados/as de origem europeia foram aceitos no país. Com a
pressão de entidades humanitárias, especialmente do Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados (ACNUR), o governo brasileiro passou a aceitar, em 1989,
que pessoas de qualquer país fossem reconhecidas como refugiados/as em território
nacional19.

Ao que se refere à posição do Estado Brasileiro em face do sistema interna-


cional, Flávia Piovesan (2016) observa que somente a partir do processo de demo-
cratização pós-ditadura militar é que se passou a ratificar tratados internacionais de
direitos humanos relevantes. O marco inicial de tal incorporação foi a assinatura, em
1989, da Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e
Degradantes. A Constituição Federal de 1988, ao primar pela prevalência dos direitos
humanos como princípio norteador das relações internacionais, possibilitou a ratifica-
ção de inúmeros outros importantes instrumentos de proteção aos direitos humanos.

Com base nas referidas Convenções e Declarações, foi implementado, com a


15 Inicialmente, a diretriz foi pensada para proteger pessoas pertencentes a grupos “indeseja-
dos” do Estado. No contexto em que a Convenção de 1951 foi escrita, a situação mais usual era a
de proprietários de terras, comerciantes e capitalistas em geral perseguidos em países socialistas.
Nas décadas subsequentes, segundo a pesquisa de Oliva (2012), grupo social passou a incluir
outros casos, como o de mulheres que contrariavam costumes religiosos ou sociais de seus países
de origem, por exemplo, e mais recentemente, pessoas LGBTI.
16 De acordo com o relatório anual da ACNUR, em 2018, existem 70,8 milhões de pessoas
forçadamente deslocadas de seus países de origem, sendo 25,9 milhões refugiadas.
17 A Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados – um dos primeiros tratados de Direito In-
ternacional dos Direitos Humanos –, definiu como refugiado toda pessoa que, dentro do continente
europeu, estivesse fora de seu país de nacionalidade em razão de fundado temor de perseguição
por motivos de raça, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou por pertencer a determinado gru-
po social, no período pós-Segunda Guerra Mundial. O Estatuto, inicialmente, apresentava a condi-
ção do refugiado em caráter universal, dispondo sobre seus direitos e deveres, entretanto, continha
limitação temporal (pós-Segunda Guerra) e também geográfica (vindos da Europa).
18 O Protocolo Adicional sobre o Estatuto dos Refugiados extinguiu as restrições dos Estatuto
anterior e a compreensão de refúgio tornou-se, de fato, universal. O termo passou a abranger qual-
quer indivíduo buscando proteção em outro país que não o de sua origem ou residência habitual,
em decorrência de ameaça por algum dos motivos citados anteriormente.
19 Em 1986, o Brasil recebeu os primeiros refugiados não europeus. Tratava-se de 50 famílias iranianas perten-
centes à religião Bahá’í, que foram recepcionadas através de asilo político (NASCIMENTO, 2018).

373
Lei n. 9.474 de 1997, o Estatuto dos Refugiados, que estabelece em seu art. 1º:

I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião,


nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país
de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;
II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua re-
sidência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das
circunstâncias descritas no inciso anterior;
III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a
deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país. (BRASIL,
1997).

Destaca-se a presença tanto da definição clássica de refúgio, inciso I, quanto


a definição ampliada, inciso III, permitindo uma interpretação flexível sobre a con-
cessão de refúgio a pessoas LGBTI. Com base nessa legislação, ainda que sem
mencionar orientação sexual ou identidade de gênero, parte do Comitê Nacional para
Refugiados (CONARE) – órgão responsável pela análise das solicitações – passou a
considerar, desde 2002, o temor de perseguição motivada por identidade de gênero
e orientação sexual enquanto critério válido para concessão de refúgio.

Necessário destacar que orientação sexual e identidade de gênero não são ex-
pressões intercambiáveis. Enquanto a orientação sexual se refere a forma pela qual
alguém se relaciona afetivo-sexualmente ou ainda pelo modo como torna pública –
ou não – essa percepção de si; a identidade de gênero pode ser entendida, sintetica-
mente, como a atitude individual frente aos construtos sociais de sexo e gênero pelos
quais as pessoas se identificam, percebem-se e são percebidas.

Corpo, gênero e sexualidade – e por extensão, o sexo, o desejo, as práticas e


identidades sexuais –, têm adquirido posição nuclear nas experiências individuais e
também nas formas pelas quais essas experiências são interpretadas nas socieda-
des contemporâneas, fortemente enraizadas em valores heteronormativos20. Assim,
percebemos a importância de localizar as definições de gênero e sexualidade dentro
de uma perspectiva legal, como pontua Butler (2019):
20 De acordo com Richard Miskolci (2009), a heteronormatividade expressa as expectativas,
demandas e obrigações que derivam do pressuposto da heterossexualidade como algo natural.

374
É importante afirmar que nossos corpos são, em certo sentido, nossos, e que
temos o direito de reivindicar direitos de autonomia sobre eles. Essa afirma-
ção é tão verdadeira para as reivindicações de direitos de lésbicas e gays à
liberdade sexual quanto para as reivindicações do direito de pessoas trans à
autodeterminação, assim como para as reivindicações de pessoas interse-
xuais de estarem livres de intervenções médicas e psiquiátricas coercitivas
(BUTLER, 2019, p. 45).

Nesse contexto, a concessão de refúgio a pessoas LGBTI soma-se ao arca-


bouço legal indispensável à garantia e concretização de direitos fundamentais. O
primeiro caso de concessão de refúgio por orientação sexual no Brasil aconteceu em
2002, acolhendo dois namorados colombianos perseguidos por grupos paramilitares
que abertamente promoviam assassinatos LGBTfóbicos no país. Desde então, esti-
ma-se que 130 pessoas LGBTI ou assim percebidas estejam vivendo em solo brasi-
leiro como refugiadas. Em relatório de 2018, a ACNUR divulgou que, nos últimos oito
anos, foram realizadas 369 solicitações com base em perseguição por orientação
sexual e identidade de gênero no Brasil21.

É necessário destacar que esses dados dificilmente apreendam o número


real de pessoas LGBTI solicitantes e/ou refugiadas/os. Como discute José Lafuente
(2014), temendo perseguições, muitos indivíduos LGBTI optam por não expressar
sua verdadeira orientação sexual e/ou identidade de gênero e acabam solicitando
refúgio por outros motivos, a fim de evitar discriminação, violência ou pela própria di-
ficuldade em falar sobre o tema. O silêncio sobre o assunto pode, inclusive, dificultar
o processo de solicitação, como relata Vieira (2011):

[...] a dificuldade que para muitos dos requerentes é falar da sua orientação
sexual, pois é sentida por muitos como um “segredo bem guardado” que terá
sido a origem de muita discriminação e violência. Efectivamente, o tempo e o
modo no qual o requerente refere a sua orientação sexual é um dos elemen-
tos de análise no processo que provoca dificuldades no processo (VIEIRA,
2011, p. 55).

21 O levantamento da ACNUR ainda indica que os principais países de origem dos/as solicitan-
tes são aqueles onde as homo-bi-transexualidades são criminalizadas, mas também aqueles que
não garantem institucionalmente a segurança de pessoas LGBTI.

375
Outro efeito é a exclusão social que solicitantes de refúgio encontram no país
de chegada. O medo de confraternizar com conterrâneos devido ao preconceito so-
mado à dificuldade de inserção num novo contexto cultural podem agravar o isola-
mento dessas pessoas. Pesquisas como as de Sobreira (2015) e Andrade (2017) re-
latam a intolerância, discriminação e violência enfrentadas por refugiados/as LGBTI
no Brasil, desde a dificuldade em obter empregos até agressões por parte de outros/
as solicitantes de refúgio, inclusive em albergues, centros de registro e casas tem-
porárias22. Sobre a precariedade de determinadas vidas, retomamos as reflexões de
Butler (2018):

Esse enquadramento interpretativo funciona diferenciando tacitamente popu-


lações das quais minha existência e minha vida dependem e populações que
representam uma ameaça direta à minha vida e à minha existência. Quando
uma população parece constituir uma ameaça direta à minha vida, seus in-
tegrantes não aparecem como “vidas”, mas como uma ameaça à vida (uma
representação viva que representa a ameaça à vida). (BUTLER, 2018, p. 69).

Disso, podemos compreender outro ponto relevante ao contexto brasi-


leiro: o alto número de violência LGBTfóbica. Em 2018, de acordo com o tradicio-
nal relatório do Grupo Gay da Bahia (GGB), 420 pessoas identificadas como LGBT
morreram no Brasil, sendo 320 assassinatos e 100 suicídios. Uma pequena redução
em relação ao ano de 2017, quando foram registradas 445 mortes – o maior número
em 38 anos de mapeamento do grupo. Em perspectiva, a cada 20 horas um/a LGBT
perde a vida no país. Com efeito:

O corpo implica mortalidade, vulnerabilidade, agência: a pele e a carne nos


expõem ao olhar dos outros, mas também ao toque e à violência, e os cor-
pos também ameaçam nos transformar na agência e no instrumento de tudo
isso. Embora lutemos por direitos sobre nossos próprios corpos, os próprios
corpos pelos quais lutamos não são apenas nossos. O corpo tem uma di-
mensão invariavelmente pública. Constituído como um fenômeno social na
esfera pública, meu corpo é e não é meu. Entregue desde o início ao mundo
dos outros, ele carrega essa marca, a vida social é crucial na sua formação;
22 O caso brasileiro de violência contra refugiados/as em abrigos soma-se a outros diversos
registrados em países como Alemanha, Espanha, Holanda, Portugal, Suécia e Finlândia.

376
só mais tarde, e com alguma incerteza, reivindico meu corpo como meu, se é
que o faço (BUTLER, 2019, p. 46).

Percebemos que a vulnerabilidade à que somos expostos/as e a partir da qual


nos constituímos “torna-se altamente exacerbada sob certas condições sociais e po-
líticas, especialmente aquelas em que a violência é um modo de vida e os meios para
garantir a autodefesa são limitados” (Butler, 2019, p. 49). Tal entendimento se aplica
ao objeto de análise do presente artigo, uma vez que refugiado/as LGBTI são social
e politicamente excluídas sob duas perspectivas: em primeiro lugar, justamente pela
sua orientação sexual e/ou identidade de gênero; e, em segundo lugar, pela condi-
ção de refugiados/as. Trata-se de uma situação de dupla exclusão e dupla violência,
gerando um espaço-tempo de vulnerabilidade humana que leva à precariedade total.

Sendo assim, é possível notar que o desenvolvimento de um aparato jurídico


voltado à proteção de direitos, como a aprovação do casamento igualitário; a possi-
bilidade de adoção por casais homoafetivos; e, mais recentemente, a criminalização
da LGBTfobia – ainda que constitucionalmente frágeis, favorecem a construção de
um Brasil receptivo à diversidade no imaginário social. Entretanto, faz-se necessário
ponderar o lugar que refugiados/as LGBTI têm ocupado nesse mesmo imaginário
coletivo.

Além do exposto, emergente onda conservadora, tornada mais aguda após a


eleição de Jair Bolsonaro (Sem Partido), reforça o questionamento sobre o status do
Brasil enquanto país receptor de refugiados/as LGBTI. O racismo, a intolerância reli-
giosa e a xenofobia aliadas ao preconceito por orientação sexual e identidade de gê-
nero constituem a dupla precariedade (Butler, 2019) de pessoas LGBTI refugiadas.
Sem reconhecimento no país de origem e tampouco plenamente pertencentes àque-
le que os/as recebe, refugiados/as LGBTI têm, muitas vezes, rompida a expectativa
da fuga do “país-armário”.

377
CONCLUSÃO

O ato de migrar, voluntariamente ou não, faz parte da experiência de vida de


lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersex tanto quanto a discriminação que muitas
vezes o motiva. Seja das áreas rurais para os grandes centros urbanos; de uma
região para outra em um mesmo território nacional; ou no atravessar de fronteiras
internacionais, o deslocamento espacial está associado à liberdade e à cidadania.

Porém, ainda é recente o reconhecimento do fundado temor de ameaça contra


pessoas LGBTI enquanto critério de solicitação e concessão de refúgio. Como visto,
as primeiras normas sistematizadas, assim como os estudos clássicos de mobilidade
humana, em sua maioria, trataram migrantes e solicitantes de refúgio ou asilo como
uma massa de sujeitos heterossexuais e sem gênero, movidos exclusivamente por
questões religiosas, políticas e/ou econômicas.

Por meio do resgate histórico, entendemos que é possível a solicitação basea-


da em orientação sexual e a identidade de gênero enquanto pessoas pertencentes a
um “grupo social”. Trata-se de termo flexível, incorporado pela doutrina e, em território
nacional, corroborado pela decisão do CONARE, em 2002. Paralelamente, também
o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) tem recomen-
dado, desde 2002, que gays, lésbicas, bissexuais e transexuais sejam entendidos/
as enquanto um grupo social e possam, portanto, receber o status de refugiado/a.
O Brasil é um dos países que tem seguido as orientações do ACNUR e concedido
refúgio a pessoas LGBTI desde o mesmo ano.

Nesse sentido, a presente pesquisa buscou contribuir academicamente com


uma investigação exploratória, porém contextual, capaz de fortalecer a temática do
direito dos refugiados e refugiadas por identidade de gênero e orientação sexual e
aprofundar sua aplicação, com isso impulsionando novas pesquisas que busquem
a preservação dos direitos humanos dessa população, especialmente na América
Latina.

Como vimos, cada solicitante de refúgio é consequência de um padrão


consolidado de violação de direitos humanos. De mesmo modo, cada pessoa

378
LGBTI perseguida em seu país de origem é produto de mecanismos históricos de
poder e controle sobre os corpos e comportamentos não-normativos. Ao abordar o
refúgio LGBTI a partir de uma perspectiva biopolítica, foi possível tensionar algumas
estruturas que hierarquizam identidades, inclusive dentro da própria sigla LGBTI,
buscando a desconstrução desses “países-armário”.

REFERÊNCIAS

ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS (ACNUR).


Declaração de Cartagena. Cartagena, 1984. Disponível em: www.acnur.org/scripts/
Documentos/portugues/Publicacoes/2017/Cartilha_Refugiados_LGBTI. Acesso em:
20 abr. 2019.

ANDRADE, Vítor Lopes. Imigração e Sexualidade: solicitantes de refúgio, refugiados


e refugiadas por motivos de orientação sexual na cidade de São Paulo. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social). Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, 2017.

BONOTO, Carolina. Ativistas LGBT em rede: os usos sociais da internet no combate


à LGBTfobia. Dissertação (Mestrado em Comunicação Midiática). Programa de Pós-
-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria,
RS, 2018.

BORRILLO, Daniel. A Homofobia. In: Homofobia & Educação: um desafio ao silêncio.


LIONÇO, Tatiana; DINIZ, Debora (Orgs.). Brasília: Letras Livres, 2009.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradu-


ção: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

379
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Tradução:
Sérgio Lamarão; Arnaldo Marques da Cunha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2018.

BUTLER, Judith. Vida Precária: os poderes do luto e da violência. Tradução: Andreas


Lieber. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

FRANÇA, Isadora Lins. “Refugiados LGBTI”: direitos e narrativas entrecruzando gê-


nero, sexualidade e violência. In: Cadernos Pagu, São Paulo, 2017.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1993.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. São Paulo: Paz e


Terra, 2015.

JUNQUEIRA, Rogério. Homofobia: limites e possibilidades de um conceito em meio


a disputas. In: Bagoas: Revista de Estudos Gays, v. 1, 2007, pp. 1-22.

LA FOUNTAIN-STOKES, Lawrence. De sexilio(s) y diáspora(s) homosexual(es) la-


tina(s): el caso de la cultura puertorriqueña y nuyorican queer. Debate Feminista,
México, v. 15, 2004, pp. 138-157.

LAFUENTE, José Díaz. Refúgio y asilo por motivos de orientación sexual y/o iden-
tidade de género enel ordenamento constitucional español. Tese (Doutorado em Di-
reito Internacional). Departamento de Direito Constitucional e Ciência Política e de
Administração, Universidade de Valência, Valência, 2014.

380
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-es-
truturalista. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Sociologia: o desafio de uma analítica da


normalização. Revista Sociologias. Porto Alegre, nº 21, 2009, pp. 150-182.

NASCIMENTO, Daniel Braga. Refúgio LGBTI: panorama nacional e internacional.


Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2018.

OLIVA, Thiago Dias. Minorias sexuais enquanto ‘Grupo Social’ e o reconhecimento


do status de refugiado no Brasil. In: ACNUR Brasil, 2012, pp. 1-30.

PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2016.

SOBREIRA, F. M. Refugiados LGBTI no Brasil. Travessia – Revista do Migrante, São


Paulo, nº 77, 2015, pp.49-65.

TÜRK, Volker. Ensuring protection for LGBTI Persons of Concern. In: Sexual Orien-
tation and gender identity and the protection of forced migrants. Oxford: University of
Oxford, 2013.

VIEIRA, Paulo Jorge. Mobilidades, migrações e orientações sexuais. percursos em


torno das fronteiras reais e imaginárias. Ex aequo, Lisboa, Portugal, n. 24, pp. 45-59,
2011.

WEEKS, Jeffrey. O corpo e a sexualidade. In: LOURO, Guacira Lopes (org). O corpo
educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013, pp.
35-82.

381
DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO NO ENSI-
NO SUPERIOR: LIMITES E POSSIBILIDADES
Gustavo de Oliveira Duarte1
Kayla Araújo Ximenes Aguiar Palma 2

INTRODUÇÃO

Este estudo propõe uma reflexão acerca da formação no ensino superior


em uma instituição pública, federal, do interior do estado do Rio Grande do Sul, a
partir das temáticas transversais dos estudos de Gênero e Sexualidade nas áreas
da Saúde, da Educação e da Arte. Após uma contextualização da realidade dos
Cursos de Educação Física, Terapia Educacional e Dança, todos da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM) apontamos os limites e as possibilidade de trabalho
na formação de Educadores e de profissionais da Saúde.

Debater temas como Gênero e Sexualidade na Educação na contemporaneidade


é uma demanda vigente, seja na educação básica e/ou na educação superior. Aliar
esse debate à formação de professores e de profissionais da Saúde, aponta sobretudo
o quanto é necessário preparar os(as) novos(as) profissionais para o mundo do
trabalho e a tematização desses assuntos no contexto de formação superior em
uma Universidade pública. No atual cenário sócio-político brasileiro, somente o
estudo, a reflexão, o conhecimento e a conscientização são capazes de fundamentar
posicionamentos e argumentos em defesa do respeito à diversidade sexual e de
Gênero e a educação desempenha um papel central.
1 Pós-Doutor em Arte. Doutor em Educação. Docente e pesquisador na Universidade Federal
de Santa Maria/RS. Líder do Grupo de Estudos em Educação, Dança e Cultura (GEEDAC) e Coor-
denador do Laboratório de Improvisação e Coreografia (LICOR). Professor dos Cursos de Educa-
ção Física e Dança e do Mestrado em Gerontologia. Orientador de TCCs e de Estágio Curricular
Supervisionado. Coordenador do PIBID Educação Física. E-mail: [email protected]
2 Doutora em Gerontologia Biomédica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), Coordenadora do Programa de Apoio a Cuidadores da Terapia Ocupacional PACTO, pesquisadora
do Grupo de pesquisa Envelhecimento, Complexidade e Interdisciplinaridade em Saúde UFSM. Coordena-
dora do estágio curricular em Terapia ocupacional no campo da Gerontologia. Email:[email protected]

382
Nessa direção, acreditamos que o(a) professor(a) precisa dialogar com
a realidade atual e seus diferentes contextos, não somente no que diz respeito à
questão macro social, mas também sobre as peculiaridades e contingências da
realidade em que trabalha. Nesse sentido, muitos são os temas que emergem das
realidades social, principalmente dos(das) jovens, e que precisam ser debatidos para
apresentar esclarecimentos conceituais e partilhar conhecimento, causa, empatia e
respeito nos jogos das relações ente saberes e poderes da sociedade atual.

Gênero e Sexualidade são temas que, muitas vezes, no contexto brasileiro


e, sobretudo no “Sul do Sul”, despertam a curiosidade de adolescentes e jovens
uma vez que dialogam com os dilemas dessa faixa etária, as mudanças físicas e
hormonais, as dúvidas e tensões, ou seja, todo um universo desconhecido a ser
explorado, debatido, compreendido. Ao mesmo tempo, é necessário certo jogo de
cintura, intuição, afetividade e cautela para que o tratamento pedagógico com esses
assuntos seja abordado com a devida importância, respeito e associado ao paradigma
maior da Diversidade, dos Direitos Humanos e da Inclusão social.

383
GÊNERO E SEXUALIDADE COMO ÁREA DE CONHECIMEN-
TO: ENSINO E PESQUISA

Tratar sobre Gênero e Sexualidade é abordar politicamente tais temáticas,


é posicionar-se frente à realidade atual de modo a considerar e compreender os
sujeitos a partir de identidades múltiplas, plurais, não fixas e, portanto, que podem se
transformar e até mesmo mostrar-se contraditórias (LOURO, 1999). A orientação deste
cenário epistemológico privilegia a centralidade da linguagem a partir da produção
das relações que a cultura pode estabelecer entre corpo, sujeito, conhecimento e
poder. O corpo, neste sentido, é compreendido como um construto sociocultural e
linguístico, produto e efeito de relações de poder (MEYER, 2003), ou seja, o corpo
também é construído pela linguagem.

Nesta perspectiva a cultura é caracterizada com um campo de luta e de contestação


na qual são produzidos múltiplos sentidos de masculinidade e feminilidade a partir
de suas “marcas” sociais tais como classe, etnia, geração, religião, nacionalidade,
entre outras. A perspectiva dos Estudos Culturais, Estudos Gays e Lésbicos, estudos
da Gerontologia e da Teoria Queer fundamentam nosso olhar investigativo. A escrita
e o processo de pesquisa e produção deste artigo estão ancorados, principalmente,
nas teorizações e na trajetória de Michel Foucault, sobretudo na última fase de seus
estudos.

Compreendemos que a categoria de Gênero, a partir de uma visão construcionista


do social, configura-se como uma ferramenta analítica e, ao mesmo tempo, política,
uma vez que articulada à(s) sexualidade(s) e a outros marcadores culturais acaba
funcionando como um organizador cultural e destacando o caráter relacional das
práticas sociais. Ao pesquisar na interface e nas articulações entre Educação, Gênero
e (homo)sexualidade(s) percebo que os estudos de gênero são capazes de (des)
construir a percepção e a organização concreta e simbólica das relações sociais.

O Gênero, então, fornece um meio de decodificar o significado e de


compreender as complexas conexões entre as várias formas de interação

384
humana. Quando os/as historiadores/as buscam encontrar as maneiras
pelas quais o conceito de gênero legitima e constrói as relações sociais,
eles/elas começam a compreender a natureza recíproca do gênero e da
sociedade e as formas particulares e contextualmente específicas pelas
quais a política constrói o gênero e o gênero constrói a política (SCOTT,
1995, p. 89).

Assim, portanto, concordamos que as identidades de gênero e sexuais são


produzidas na e pela cultura e mostram-se permeadas por complexas relações de
poder em diferentes articulações e instâncias sociais. As identidades, portanto, são
nomeadas a partir de diferentes classificações como normais, desviantes, marginais,
e/ou alternativas, no entanto, cabe destacar que algumas identidades não necessitam
ou precisam de explicação, enquanto outras, não podem ou não devem falar por si
(LOURO, 1998).

Destacamos a cultura como um campo de relações de poder. O poder de


representar o outro, de se autorrepresentar, de estabelecer conexões positivas a
partir de sua identidade, o poder de se apresentar como confiável, como digno, e
não ser visto como um ser abjeto. Neste campo de negociações, podemos perceber
que as construções culturais e as representações sociais são constituídas em meio
a disputas de poder, ou seja, elas estão imersas em redes de poder em diversos
campos e lugares sociais. Desse modo, a sexualidade não se constitui apenas como
uma questão pessoal, mas configura-se no âmbito social e político na medida em
que ela é aprendida, é construída ao longo da vida, de muitos modos e por diferentes
atravessamentos. Ao relacionarmos as compreensões de corpo e de sexualidade
faz-se necessário articular os conceitos de identidades, práticas sexuais e de gênero.
As diferentes formas de viver e desfrutar prazeres e desejos contribuíram para a
construção dos chamados processos de afirmação e diferenciação, conforme Stuart
Hall (2000), denominado de políticas de identidade.

385
EDUCAÇÃO, SAÚDE, ARTE E ENVELHECIMENTO: O CENTRO
DE EDUCAÇÃO FÍSICA E DESPORTOS

Nos cursos de Educação Física, Licenciatura ou Bacharelado, não há no cur-


rícu-lo, de maneira explícita, direta, uma disciplina cujo nome conste as palavras
gê-nero ou sexualidade. no entanto, há uma disciplina, obrigatória, que dentre outros
assuntos aborda as questões de gênero, é a disciplina chamada Antropologia do Mo-
vimento Humano. As disciplinas de Atividades Rítmicas e de Dança, de manei-ra in-
direta, também acabam abordando a temática em relação aos seus conteú-dos. Em
ambas as disciplinas isto só acontece devido ao interesse isolado dos dois docentes
por esta área de estudo.

No curso de Dança, Licenciatura, a partir da reformulação curricular, desde


2019, há uma disciplina específica e obrigatória que trata das relações de gênero e
sexualidade: Estudos do Corpo III. A partir de uma iniciativa inédita do corpo docente
do Colegiado do curso de Dança, tais temáticas passaram a fazer parte, de maneira
pontual, da formação de todos os alunos do Curso de Dança. Em re-lação ao univer-
so de cursos e alunos do CEFD, é uma minoria, mas é um come-ço, um avanço se
comparado a um passado recente. Portanto, na graduação, somente os alunos do
Curso de Dança, de maneira obrigatória, estudam as rela-ções de Gênero e Sexua-
lidade em sua formação inicial.

Em relação aos cursos de Pós-graduação, em nível de Mestrado, na área de


Educação Física não há uma disciplina que aborde esta temática. Cada aluno poderá
pesquisar o tema, ou não, devido ao seu recorte e contexto de investiga-ção. Já no
Mestrado em Gerontologia, que trata do processo de envelhecimento humano, há
uma disciplina sobre gênero e sexualidade no envelhecer, mas de maneira optativa,
não obrigatória. Isso, por si só de alguma maneira já evidencia “o lugar” que esta
temática ocupa no Curso. Em todo o caso, todos os alunos do Centro de Educação
Física e Desportos (CEFD) têm, pelo menos, a oportunidade de cursar esta discipli-
na. Cabe ressaltar que este é o mesmo docente que aborda a temática nos cursos
de Graduação, isto é, tais temáticas só são abordadas na formação em Educação

386
Física, Dança e Gerontologia, seja na graduação ou no mestrado, devido ao trabalho
de apenas um professor.

Por outro lado, no CEFD, as temáticas de Gênero e Sexualidade são abor-


-dadas, de maneira mais “livre” e prazerosa em atividades vinculadas aos projetos
de extensão e em eventos acadêmicos. Em projetos como o PIBID (Programa de
incentivo de bolsas de iniciação à docência) e o Residência Pedagógica (imersão
de alunos de licenciatura nas Escolas) os alunos dos Cursos de Dança e Educa-ção
Físicas podem escolher temáticas para aprofundar e, constantemente, as relações
de Gênero e Sexualidade são recorrentes. Os discentes relataram ex-periências
muito significativas em estudar, na práxis, e de maneira contextualiza-da o tema junto
e com os professores e alunos das escolas públicas onde os pro-jetos desenvolvem
atividades durante dezoito meses. Ações de extensão também se configuram exce-
lentes espaços de estudo e intervenção junto à sociedade lo-cal. Tanto os Cursos de
Educação Física e de Dança já desenvolveram projetos de formação de professores
sobre a temática diretamente no contexto de escolas públicas da cidade de Santa
Maria/RS. Destacamos as ações do Projeto “LGB-TCHÊ” onde palestras acerca do
tema e posterior debate tanto com professores e alunos das escolas acabaram por
movimentar ambientes tradicionais e, algu-mas vezes, até mesmo preconceituosos
em relação às diferenças de gênero e sexuais. Muitas vezes, percebeu-se que a
maioria dos professores e equipe dire-tiva das escolas não estão preparados, ou não
querem tratar desses assuntos na escola, sobretudo pelo envolvimento dos pais.

387
CORPO, GÊNERO, SEXUALIDADE E SAÚDE NA FORMAÇÃO
EM TERAPIA OCUPACIONAL

Em Terapia Ocupacional, onde o sujeito é estudado nas esferas biopsicossocial


e cultural, valorizando, portanto, os papéis ocupacionais dos indivíduos ao longo da
vida, observa-se a necessidade de incluir na formação acadêmica a reflexão e análise
sobre a relação do corpo, sexualidade e saúde em toda a complexidade inerente ao
processo do desenvolvimento humano.

Pela Organização Mundial da Saúde (OMS) a Terapia Ocupacional é a ciência


que estuda a atividade humana e a utiliza como recurso terapêutico para prevenir e
tratar dificuldades físicas e/ou psicossociais que interfiram no desenvolvimento e na
independência do cliente em relação às atividades de vida diária, trabalho e lazer. É
a arte e a ciência de orientar a participação do indivíduo em atividades selecionadas
para restaurar, fortalecer e desenvolver a capacidade, facilitar a aprendizagem
daquelas habilidades e funções essenciais para a adaptação e produtividade, diminuir
ou corrigir patologias e promover e manter a saúde. E o Terapeuta Ocupacional é
um profissional dotado de formação nas áreas de Saúde e Sociais. Sua intervenção
compreende avaliar o cliente, buscando identificar alterações nas suas funções
práxicas, considerando sua faixa etária e/ou desenvolvimento, sua formação pessoal,
familiar e social. A base de suas ações compreende abordagens e/ou condutas
fundamentadas em critérios avaliativos com eixo referencial pessoal, familiar, coletivo
e social, coordenadas de acordo com o processo terapêutico implementado.

O Terapeuta Ocupacional compreende a atividade humana como um processo


criativo, criador, lúdico, expressivo, evolutivo, produtivo e de auto manutenção e o
Homem, como um ser práxico interferindo no cotidiano do usuário comprometido
em suas funções práxicas objetivando alcançar uma melhor qualidade de vida. As
atividades do profissional estendem-se por diversos campos das Ciências de Saúde
e Sociais. O terapeuta ocupacional avalia seu cliente para a obtenção do projeto
terapêutico indicado; que deverá, resolutivamente, favorecer o desenvolvimento e/

388
ou aprimoramento das capacidades psico-ocupacionais remanescentes e a melhoria
do seu estado psicológico, social, laborativo e de lazer. (COFFITO). Assim, se
faz necessário estudar questões inerentes a sexualidade, gênero, corpo e saúde
envolvendo a dimensão social ao qual o indivíduo é inserido constantemente.

Para Monzele Esquerdo (2012) a partir da análise de estudos com temas sobre
sexualidade e Terapia Ocupacional observou que nas poucas vezes em que os
terapeutas ocupacionais se debruçam sobre a questão, estes partem da concepção de
sexualidade relacionada às pessoas com algum tipo de deficiência. Compreendendo
a sexualidade como uma atividade da vida diária ou cotidiana dos sujeitos que,
como qualquer outra, precisa ser abarcada profissionalmente no processo de
habilitação/reabilitação. Estudar o cotidiano dos sujeitos atrelado as suas questões
subjetivas e individuais se torna importante.

Butler (2003) reconfigura as relações entre sexo, gênero, sexualidade e


subjetividade, indicando a multiplicidade de desejos e prazeres que não se limitam ao

feminino e ao masculino concebidos como categorias fixas. O sexo não só funciona


como norma, mas também é parte de uma prática que regula e que produz os
corpos que governa (BUTLER, 2002, p.18)

Portando, se faz necessário que os cursos de formação em Terapia Ocupacional


possam ampliar essa discussão envolvendo a temática em todos os seus campos
de atuação, da criança ao idoso, fazendo a relação entre corpo, sexualidade e
saúde de uma forma mais integral. A expressão do corpo e da sexualidade vem
se colocando “ em discurso” e se transformando em elemento de investigação
cientifica de pesquisadores, religiosos , educadores e profissionais de diversas áreas,
incluindo a área da saúde desde o século XIX (FOUCAULT, 2005), sendo descrita,
compreendida, explicada, regulada, saneada, educada, normatizada, a partir das
mais diversas perspectivas (LOURO, 2004).

Monzele e Lopes (2012) fazem uma ampla reflexão acerca da compreensão


mais acurada sobre o que vem sendo produzido nesse âmbito, é necessário
que se apreenda o tratamento dado às categorias “sexo” e “gênero”. Os autores
destacaram o movimento feminista como sendo o primeiro a questionar estas divisões

389
e hierarquias que buscava o reconhecimento de demandas políticas e coletivas, como
o acesso ao voto, referindo a Mary Wollstonecraft como uma de suas principais
representantes em 1792 , com a obra Em Defesa dos Direitos da Mulher (MOTTA,
2009). A sexualidade e o sexo foram historicamente objeto de disputa pública entre
as demandas do poder público e as demandas individuais. Para Foucault, a partir
do século XVIII os governos percebem que não têm que lidar simplesmente com
sujeitos, nem mesmo com um ‘povo’, porém com uma ‘população’, com seus
fenômenos específicos e suas variáveis próprias: natalidade, morbidade, esperança
de vida, fecundidade, estado de saúde, incidência das doenças, forma de alimentação
e habitat (FOUCAULT, 2005). A formação de Terapeutas Ocupacional no Brasil é
predominantemente feminina que vem acompanhando a expansão do mercado de
trabalho e do sistema educacional, ocorrida em virtude da modernização do país,
surgindo novas oportunidades para as mulheres, ainda excludente (FIGUEIREDO,
MIRELA DE OLIVEIRA et al. 2018).

Para Sarti (2004), esse processo de modernização foi também acompanhado


por transformações nos comportamentos afetivos e sexuais, que entraram em
conflito com o padrão de valores nas relações familiares da época, sobretudo por seu
caráter autoritário e patriarcal. Os estereótipos associados à figura feminina, como a
habilidade para “o cuidar” e para realizar tarefas que envolvessem movimentos finos
associados às características de bondade infinita e paciência, constituíram qualidades
exigidas para as primeiras terapeutas ocupacionais e influenciaram a questão do
gênero feminino na terapia ocupacional (FIGUEIREDO, MIRELA DE OLIVEIRA et al.
2018). No mundo contemporâneo ainda se observa que muitas questões relacionadas
a gênero e sexualidade, aparecem como tabu ou mesmo com enorme carga de
preconceito em salas de aula, seja na educação básica ou no ensino superior. Fazer
interlocuções sobre a temática no processo educativo em um curso como a Terapia
Ocupacional é primordial para uma formação realmente igualitária e não excludente.

390
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir sobre debates contemporâneos, a exemplo, das questões de Gênero e


Sexualidade, nas áreas da Educação e/ou da Saúde é um desafio complexo, delica-
do e necessário. É dar voz a questões silenciadas, marginalizadas e instituídas se-
jam dentro ou fora do espaço escolar. Para tanto, os(as) professores(as) necessitam
de constante formação e suporte para abordar esses conteúdos/temas que ainda
são tabus societários, o que faz da formação inicial e continuada um tempo/espaço
fundamental e relevante.

Destacamos que promover e aprofundar os estudos e debates a partir das


temáticas de Diversidade de Gênero e Sexual é, também, uma função das universi-
dades brasileiras, sobretudo as públicas. Identidades marginalizadas e invisibiliza-
das historicamente começam a aparecer e a “incomodar”, a desafiar as estruturas
e hierarquias sociais tradicionais e hegemônicas. Faz-se necessário, urgentemente,
investir na formação de profissionais, de todas as áreas, licenciaturas e bacharela-
dos, de modo a contemplar, realmente, para além do discurso “inclusivo” as questões
identitárias contemporâneas. É preciso incluir no debate acadêmico as questões e
problemáticas sociais que acompanhamos diariamente nos veículos de comunicação
e que ainda não fazem parte, efetivamente, dos conteúdos de escolas e universida-
des brasileiras.

Apostar na modificação dos currículos dos cursos de todas as áreas, fortalecer


e aprofundar tais temáticas tanto na formação básica quanto na formação superior é
fundamental para que se avance em relação à políticas públicas das aéreas da Edu-
cação e da Saúde. Humanizar os atos pedagógicos e de cuidado deve constituir-se
um ato político, de escolha consciente em favor de relações menos desiguais e mais
justas, solidárias e equilibradas.

No meio do caos contemporâneo em que vivemos, a formação superior deve


e precisa se abrir para os movimentos atuais da sociedade, deve educar a partir do
paradigma da complexidade de modo a dialogar e acolher àqueles e àquelas que por
muito tempo sofreram as mais diversos impedimentos e sanções pelo simples fato de

391
existirem. Por uma educação que acolhe, que dialoga e que mostra caminhos onde a
tal felicidade não seja um fim idealista ou utópico, mas uma prática concreta, contex-
tualizada e politizada a partir das subjetividades empoderadas. LGBCTHÊ para você.

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, M. História da sexualidade I a vontade de saber. Rio de Janeiro:


Edições Graal, 2005.

LOURO, Guacira Lopes. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria


queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.

___________________. O corpo educado: pedagogias da sexualidade (org).


Tradução: Tomaz Tadeu da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

MEYER, Dagmar E. Gênero e educação: teoria e política. In.: Corpo, Gênero e


sexualidade – um debate contemporâneo na educação. Guacira L. Louro, Jane F.
Neckel, Silvana V. Goellner (orgs.). Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.

SILVA, Tomaz Tadeu da; HALL, Stuart; WOODWARD, Kathryn (org.). Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.

SCOTT, Joan. Gênero: uma Categoria útil de Análise Histórica. In.: Revista
Educação e Realidade, v.2, n.2, UFRGS - Porto Alegre/RS, 1995.

MONZELI, Gustavo Artur; LOPES, Roseli Esquerdo. Terapia ocupacional e


sexualidade: uma revisão nos periódicos nacionais e internacionais da área. Rev.
Ter. Ocup. Univ. São Paulo, v. 23, n. 3, p. 237-44, set./dez. 2012

MOTTA, I. P. A importância de ser Mary. São Paulo: Annablume, 2009

MIRELA DE OLIVEIRA FIGUEIREDO, et al. Terapia ocupacional: uma profissão


relacionada ao feminino. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro,
v.25, n.1, jan.-mar. 2018, p.115-126

SARTI, Cynthia Andersen. O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando


uma trajetória. Estudos Feministas, v.12, n.2, p.35-50. Disponível em: http://www.
scielo.br/pdf/ref/v12n2/23959.pdf. Acesso em: 5 de outubro de 2020. 2004

392
O MOVIMENTO FEMINISTA E A LUTA
HISTÓRICA DAS MULHERES NO BRASIL

Fernanda Marcela Estevão Gonçalves Bezerra1

Hilziane Layza de Brito Pereira Lima2

Tamires Eidelwein3

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo o estudo das ondas do movimento femi-
nista de maneira geral, afim de compreender a história de lutas feministas no Brasil.
Historicamente, as mulheres viveram num cenário de violência e submissão, e por
muito tempo conviveram e ainda convivem com a dominação masculina. Entretanto,
nesse contexto, intensificaram-se cada vez mais as lutas, eclodindo, no final do Sé-
culo XX diversos movimentos em busca da igualdade de tratamento entre os gêneros
e pelo empoderamento das mulheres.

Daí surge a importância do movimento feminista para a conscientização, tanto


das própias mulheres, quanto da sociedade como um todo, dado que esse movimen-
to busca o fim da opressão sofrida constantemente pelas mulheres e a igualdade de
tratamento e de direitos entre homens e mulheres. Inclusive, busca a eliminação da
diferença existente entre o papel do homem e da mulher na sociedade, objetivando,
assim, que ambos sejam livres para tomar suas próprias decisões e para fazerem
1 Graduanda em Direito da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). E-mail: [email protected].

2 Advogada. Atualmente Vice-Presidente da OAB Subseção de Piripiri - PI. Graduada em Direito pela Univer-
sidade Estadual do Piauí (UESPI). Professora do Curso de Direito da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Es-
pecialista em Docência do Ensino Superior e Direito e Processo do Trabalho. Mestranda em Políticas Públicas pela
Universidade Federal do Piauí (UFPI). E-mail: [email protected].

3 Advogada. Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Subseção de Picos - PI. Graduada em Direito
pela Universidade do Vale do Taquari/RS (UNIVATES). Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Mestranda em
Antropologia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected].

393
suas próprias escolhas, ou seja, alcançarem sua autonomia tanto no âmbito familiar,
como também no profissional e social.

O feminismo como movimento social de defesa dos direitos das mulheres já


realizou importantes conquistas, como o direito ao voto e a inserção da mulher no
mercado de trabalho. A luta vem ocorrendo também no combate ao feminicídio e a
violência doméstica contra a mulher, além de sua importante contribuição no empo-
deramento e na luta pela independência feminina.

A importância do trabalho demonstra-se pela sua relevância social no contexto


vivenciado atualmente no país, evidenciado pelos recorrentes casos de violência
doméstica e feminicídio que acontecem no Brasil, enxergando no movimento feminista
uma ação coletiva capaz para combater essa deplorável realidade. Assim, para que
haja a modificação desse quadro de dominação e opressão faz-se necessária uma
verdadeira conscientização da sociedade, almejando-se pôr fim a essa realidade
cruel, bem como para alcançar uma existência mais justa e equânime para as mu-
lheres.

A pesquisa adota como principal metodologia a pesquisa bibliográfica (GIL,


1999), a partir das contribuições das autoras Célia Regina Jardim Pinto e Mariana
de Lima Campos. Portanto, trata-se de pesquisa de natureza qualitativa (CHEMIN,
2015), que será realizada por meio de método dedutivo (MARCONI; LAKATOS, 2000)
e de procedimento técnico bibliográfico e documental (MARCONI; LAKATOS, 2006).
O estudo inicia com a elaboração do conceito de feminismo e a descrição das ondas
do movimento feminista de modo geral, passando para um breve relato da história
do movimento feminista no Brasil como instrumento de luta, resistência e empodera-
mento.

394
AS ONDAS DO MOVIMENTO FEMINISTA E A LUTA FEMINISTA
NO BRASIL

Conceito de movimento feminista

O feminismo é um movimento social, político, ideológico e filosófico, surgido


no final do século XIX, com forte influência dos ideais Iluministas e das ideias trazi-
das pela Revolução Francesa. Possui uma definição difícil e complexa, pois emerge
como um processo que teve origem no passado e vem se consolidando dia após dia.

Todavia, é representado pela ruptura com a ordem social até então existente,
pela luta em busca da igualdade de gênero, de direitos e contra a opressão vivencia-
da pelas mulheres nos diferentes âmbitos sociais. Segundo Alves e Pitanguy (1985):

O feminismo busca repensar e recriar a identidade de sexo sob uma ótica em


que o indivíduo, seja ele homem ou mulher, não tenha que adaptar-se a mo-
delos hierarquizados, e onde as qualidades “femininas” ou “masculinas” sejam
atributos do ser humano em sua globalidade. Que a afetividade, a emoção,
a ternura possam aflorar sem constrangimentos nos homens e serem viven-
ciadas, nas mulheres, como atributos não desvalorizados. Que as diferenças
entre os sexos não se traduzam em relações de poder que permeia a vida de
homens e mulheres em todas suas dimensões: no trabalho, na participação
política, na esfera familiar, etc. (ALVES; PITANGUY, 1985, p. 9).

O movimento feminista busca a desconstrução dos papéis historicamente atri-


buídos ao homem e a mulher, através do enfrentamento à cultura patriarcal e do
empoderamento das mulheres. São mulheres que almejam um mundo mais justo,
onde não sejam vistas como inferiores, mas sim como seres tão capazes quanto os
homens, para fazer suas próprias escolhas e determinarem o rumo de suas vidas.

Como assevera Alvarez (2014) os movimentos feministas, bem como os de-


mais movimentos sociais, se formam através da conjunção de vários fatores como as
disputas político-sociais, as divergências socioculturais e a luta pelo poder. Ou seja,
estão embasadas em relações de desigualdade e dominação.

Assim, sabendo que as relações sociais possuem, também, elementos de hie-

395
rarquia e poder, o movimento feminista buscou suplantar as formas tradicionais de
estruturação sociais e políticas, que eram pautadas, basicamente, em relações de
despotismo, opressão e desigualdade. Dessa forma, sua origem não se deu de forma
centralizada, com regras fixas a serem seguidas pelas militantes.

Ao contrário, se ergueu como um movimento que possui muitas frentes de luta,


construídas através da experiência trazida por cada integrante, como forma de auxí-
lio e proteção. Nele a vivência de cada mulher é relevante para fortalecer e engran-
decer o movimento (ALVES; PITANGUY, 1985). Nesse ponto, para Campos (2017):

O feminismo pode ser considerado ao mesmo tempo uma teoria crítica em


permanente construção sobre a sociedade e as desigualdades de gênero nela
existentes, por meio de diferentes visões e posicionamentos políticos, e um
movimento político que, confrontando os sistemas de dominação, exploração
e opressão das mulheres, reúne um conjunto de discursos e práticas na luta
por direitos e transformações no que se refere à igualdade e à justiça social.
Essa linha teórica essencialmente política perpassou pelo longo processo de
conscientização das mulheres e de suas lutas através da história pela redefi-
nição de seu papel social, por direitos e pela equidade de gênero, no âmbito
da sociedade civil e domínios institucionais (CAMPOS, 2017, p.36).

Dessa forma, apesar de não possuir um conceito simples e estático, nota-se


que esse movimento diz respeito a um conjunto de ideias e ações que visam à des-
construção dos padrões sociais vigentes (padrões estes, que são baseados em re-
lações altamente patriarcais) de dominação dos homens sobre as mulheres, para a
construção de um mundo mais justo, onde homens e mulheres sejam tratados com
igualdade e justiça.

Considera-se, como ressalta Campos (2017), que os comportamentos guia-


dos pelas ideias feministas objetivam eliminar as diversas formas de subordinação e
opressão a que as mulheres são expostas, consolidando, com isso, sua autonomia.
Buscam, ademais, o alcance da igualdade efetiva entre homens e mulheres nos di-
versos âmbitos das relações sociais. Como teoria, o feminismo se posiciona como
uma ação social reflexiva, que questiona a proliferação das desigualdades históricas
e dos padrões enraizados na sociedade, motivando as mulheres a lutarem pela sua
valorização, autonomia e liberdade.

396
Nascimento do movimento feminista: primeira e segunda
ondas

Por ser um movimento social que pela sua essência vai se transformando com
o passar do tempo, o movimento feminista modificou-se ao longo da história, tendo
em cada época uma luta predominante. E, por conseguinte, pode ser dividido dida-
ticamente em algumas ondas, que são momentos marcantes de efervescência em
que alguma pauta específica dominou a militância por certo período.

A primeira onda do feminismo deu-se do final do século XIX à década de 1930,


momento em que as mulheres lutavam primordialmente por direitos políticos, ficando
conhecido como movimento sufragista. Apesar de já terem ocorrido outros movimen-
tos pela luta dos direitos das mulheres em datas anteriores a essa, é nesse período
que o feminismo surge como movimento social organizado.

O movimento das Sufragistas teve dois nomes importantes, reconhecidos como


pioneiras do feminismo, como Olympe de Gouges “uma das primeiras feministas”
(SCOTT, 2005, p. 11) e Mary Wollstonecraft, que influenciaram a construção do mo-
vimento pela luta pelo direito ao voto, a democracia e direitos das mulheres. Nesse
sentido,

dois nomes bastante importantes nesse processo são o de Olympe de Gou-


ges (1748-1793) que em 1789 fez críticas a Declaração dos direitos do ho-
mem e do cidadão, publicando uma versão do mesmo documento para o
feminino a “Declaração dos direitos da mulher e da cidadã” na França, e Mary
Wollstonecraft (1759-1797) que publicou a obra “uma reivindicação dos di-
reitos da mulher” em 1792 trazendo reflexões sobre a emancipação das mu-
lheres, defendendo a democracia e o direitos das mulheres na Inglaterra [...]
(MARQUES; XAVIER, 2018, p. 3).

Nessa época, o papel social da mulher não era questionado, ou seja, a luta
ainda não era contra o patriarcalismo que dominava as relações e ditava as regras a
serem seguidas, mas pelos direitos políticos de votar e serem votadas. O movimento
foi formado, basicamente, por mulheres de classe média e alta e teve suas primei-
ras manifestações na Europa, se expandindo, posteriormente, para diversos países.
Para Caetano (2017):

397
A primeira onda do feminismo surgiu em meados do século XIX, onde as
reivindicações eram pelo reconhecimento de direitos políticos, sociais e eco-
nômicos para as mulheres, que eram subordinadas socialmente pelo estatuto
civil. Este movimento foi motivado por fatores como a Revolução Industrial e a
Primeira e a Segunda Guerra mundiais. Foram marcas da época o movimento
de mulheres proletárias pela igualdade de direitos e condições de trabalho,
e o movimento sufragista, formado majoritariamente por mulheres de classe
alta [...] (CAETANO, 2017, p.4).

Além do direito ao voto, outras reivindicações importantes eram o direito ao


trabalho fora de casa e sem a necessidade de autorização do marido. Além de outras
demandas relacionadas à vida pública, como melhores condições de trabalho e a
igualdade de salário. Isso porque,

com a consolidação do capitalismo, as mulheres são incluídas nesse sistema,


sendo superexploradas e postas a situações abusivas e precárias, passando
a trabalhar o dobro do que os homens trabalhavam e a receber um compa-
rativo de 1/3 do salário masculino [...] Com isso, essas mulheres passam a
vivenciar as lutas operárias e a se aproximar dos estudos marxistas, o que se
torna outra corrente do movimento feminista. (MARQUES; XAVIER, 2018, p.
2).

Apesar disso, logo após esse período o movimento perdeu forças e permane-
ceu adormecido. Passados alguns anos, foi apenas a partir de 1960 que o movimen-
to se reorganizou, período que ficou conhecido como segunda onda do feminismo, e
que se deu entre os anos de 1960 e 1990.

Durante os anos em que o movimento passou por uma espécie de recuo, as


mulheres perceberam que a conquista de direitos políticos não foi suficiente para
reverter o quadro de desigualdade que lhes era imposto. E, em vista disso, passa-
ram a buscar a construção de uma nova forma de relacionamento entre homens e
mulheres.

Na década de 60, como enfatiza Campos (2017), vários movimentos sociais


começaram a se organizar. Foi nesse cenário que o feminismo ressurge ainda mais
forte e mais organizado, dando grande ênfase ao papel que a mulher ocupava na

398
sociedade e abrindo espaço para uma impetuosa reflexão sobre as diferenças de
gênero que dominavam as relações sociais. Assim, essas desigualdades foram alvo
dos questionamentos de grupos feministas, que pretendiam, entre outras coisas, al-
cançar a liberdade das mulheres.

Nesse período muitos acontecimentos importantes para o movimento aconte-


ceram, como explica Pinto (2010). Os Estados Unidos entraram na Guerra do Vietnã,
o que implicou o envolvimento de muitos jovens. Ainda, no mesmo país, surge o mo-
vimento hippie, que rompe com os ideais consumistas e com os valores morais que
vigiam na época, propondo uma nova forma de vida.

Em Paris, em 1968, estudantes se rebelam contra a ordem acadêmica vigente


há muitos anos. Nesse contexto, Simone de Beauvoir, escritora, filósofa, intelectual,
ativista e professora, publica o livro “O segundo sexo” (1980) [1949], representando
o marco teórico e histórico para o feminismo.

Ainda, nesse quadro de mudanças, em 1963, Betty Friedan (1971) lança seu
livro “A mística feminina” que serve de base e de guia para o novo momento do femi-
nismo. É nessa etapa que as mulheres começam a lutar contra a relação de poder
e opressão entre homens e mulheres, aspirando à construção de uma nova forma
de relacionamento, no qual conquistariam sua autonomia e liberdade, sendo esta,
a grande novidade do movimento. Ou seja, a luta nesse período foi no sentido de
romper com o lugar “natural” de mulher, mãe, cuidadora e “do lar” e ocupar espaços
públicos. Para Campos (2017):

Sua atuação pode ser considerada a partir da perspectiva de busca por direi-
tos civis e políticos em um repertório de ação que se ampliava em um discur-
so comunicativo político de identidade e influência, visando desconstruir, nos
diferentes âmbitos da vida cotidiana, as desigualdades históricas e padrões
enraizados de opressão e desvalorização do feminino, moldados por práticas
culturais e sociais, naturalizados por diferentes valores e crenças (CAMPOS,
2017, p.44).

Nessa fase, a luta por igualdade social e de direitos foi bastante intensificada.
Desse modo, passou-se a questionar todas as formas de opressão sofridas pelas

399
mulheres, que, nesse período, lutavam por diversos direitos das esferas psicológicas
e pessoais, além da luta pela liberdade sexual:

é nesse período que o movimento feminista traz discussões em torno da de-


fesa de liberdade sexual da mulher; o aborto também passa a ser uma pauta
do movimento nesse período, assim como a pauta da discussão sobre o di-
reito de ser mãe a partir da vontade da mulher, a qual pudesse ter a liberdade
de decidir se quer ou não ter filhos, bem como o momento de ter filhos seja
escolha da mulher. Todas essas pautas foram construídas e desenvolvidas
na chamada segunda onda, porém o movimento feminista logo sofrerá por
mudanças em suas discussões (MARQUES; XAVIER, 2018, p. 6).

O movimento buscava uma nova forma de estruturação social, que rompesse


com os papéis até então impostos a homens e mulheres, para que estes pudessem
ser vistos como iguais, objetivando sempre o alcance de sua autonomia. Para isso,
pregavam uma verdadeira transformação sociocultural, no intuito de que a mulher
deixasse de ser vista como ser inferior e incapaz.

Atualização do movimento feminista: terceira onda

Posteriormente, vem à tona a terceira onda, que se dá a partir dos anos 90. A
luta é pela liberdade total de escolha das mulheres. Nessa época, o movimento pas-
sa por um processo de diversificação, e as feministas enfatizam que a opressão às
mulheres é fruto de uma construção social machista e patriarcal.

Assim, suas ações tinham por intuito a busca da igualdade efetiva, através da
quebra de desigualdades históricas, que desvalorizavam as mulheres nos mais va-
riados âmbitos. Buscavam, enfim, sua autonomia, liberdade e igualdade.

Nesse sentido, por exemplo, conforme as autoras Marques e Xavier (2018),


na terceira onda, desenvolveu-se o movimento feminista negro, juntamente com o
movimento feminista lésbico, interseccional, transfeminino, entre outros. Destaca-se
a discussão “Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade”, de Judith

400
Butler (2016) [1990]. Enfim, surge, então, uma discussão a partir da realidade con-
temporânea vivida pelas mulheres, com a finalidade de representar as demandas
que surgiam na sociedade:

também, na terceira onda, desenvolvem-se vertentes que surgem na mesma


perspectiva do movimento negro, na ideia de representar mulheres com ne-
cessidades específicas, como o movimento feminista lésbico, interseccional,
transfeminismo, entre muitas outras vertentes que surgem de acordo com as
demandas e as necessidades de discussão da realidade das mulheres (MAR-
QUES; XAVIER, 2018, p. 6).

Assim, terceira onda foi marcada pelo reconhecimento da pluralidade feminina


do movimento, que até então era composto pela reivindicação, em sua maioria, de
mulheres brancas e de classe média. Durante muito tempo, o movimento feminista
foi protaginizado por uma camada de mulheres privilegiadas da sociedade, excluindo
desse modo as mulheres pobres e negras. Desse modo,

Inicia-se um processo de desconstrução “universal” da mulher, ou seja, o pró-


prio movimento feminista tratava a vida da mulher de forma coletiva como
se todas as mulheres, de todas as classes e raças, vivessem os mesmos
problemas, estivessem expostas à mesma forma de opressão (MARQUES;
XAVIER, 2018, p. 6).

Ou seja a segunda onda não contemplava a problemática da mulher negra e


pobre. Isso porque, problematizava os anseios da mulher branca, “a dona de casa”,
mas jamais considerou as dificuldades e demandas da “empregada negra”, que tra-
balhava fora e, quando chegava em casa, ainda tinha que lidar com as suas deman-
das domésticas do lar, casa, filhos e marido. Portanto, a terceira onda é caracterizada
pela crítica ao movimento da segunda onda, que emancipou a mulher branca de
classe média, mas ignorou a mulher negra e pobre.

Uma nova corrente feminista surge, o movimento feminista negro, que consi-

401
dera classe, raça e região. Isto, a partir da necessidade de reconhecimento de que
as lutas das mulheres negras são diferentes das mulheres brancas de classe média
e alta. Seguindo esta crítica, destaca-se a intelectual negra, teórica feminista, crítica
cultural, artista e escritora, bell hooks (2019), na obra E eu não sou uma mulher?
[1981], em que a autora relata o envolvimento da mulher negra no movimento femi-
nista, o racismo entre as feministas, bem como o sexismo, imperialismo, patriacardo
e a desvalorização da mulheridade negra.

Dentre as autoras do feminismo negro, também destaca-se Angela Davis (2016)


[1981], filósofa e ativista na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, cuja obra vem
sendo estudada e difundida pelo feminismo negro e outros setores da academia. Sua
obra é referência pela intersecção entre feminismo, antirracismo e luta de classes.
E, Kimberlé Crenshaw (2002), ativista norte-americana nas áreas dos direitos civis,
da teoria legal afro-americana e do feminismo. A autora desenvolveu o conceito da
“intersecção” das desigualdades de raça e de gênero, vindo a influenciar fortemente
na elaboração da cláusula de igualdade da Constituição da África do Sul.

Breve histórico do movimento feminista no Brasil

Ao longo da sua história, a sociedade brasileira sempre foi marcada por uma di-
ferenciação exacerbada entre homens e mulheres, sendo estas frequentemente tra-
tadas como objeto de opressão. Pode-se considerar que a submissão e a dominação
da mulher fez parte do próprio desenvolvimento cultural do Brasil, presente desde a
época da colonização até a contemporaneidade, em decorrência de uma sociedade
estruturada em bases extremamente patriarcais.

Cansadas dessa realidade, as mulheres começaram a lutar contra a dominação


que lhes era imposta. Diante disso, o movimento feminista surge no final do século
XIX como fundamento da luta pela emancipação das mulheres.

Na primeira fase do feminismo brasileiro, segundo Pinto (2003), ele possuía


três vertentes: a primeira, sob a direção de Bertha Lutz, tinha como principal objetivo
o alcance de direitos políticos, sem dar relevância à luta contra os privilégios mas-

402
culinos. Assim, buscando apenas a inserção das mulheres na vida política do país,
esse movimento teve abrangência nacional e ficou conhecido como “feminismo bem-
-comportado”.

A segunda vertente, conhecida como “feminismo difuso”, defendia a educação


das mulheres. Sem se preocupar com questões políticas, questionava a dominação
masculina e a exclusão das mulheres do mercado de trabalho. Era encabeçado por
jornalistas, professoras e escritoras. E a terceira vertente foi representada pelas mili-
tantes de esquerda, anarquistas e, depois, pelo Partido Comunista, que buscavam a
libertação das mulheres de forma ampla.

Sem embargo, esse período teve como sua principal representação a luta pelo
direito ao voto feminino, seguindo assim a tendência mundial. Como dito, o movimen-
to sufragista teve como figura emblemática Bertha Lutz, uma bióloga e cientista, que
deu início à luta pelo direito ao voto das mulheres, sendo este conquistado em 1932
com a promulgação de um novo Código Eleitoral.

Ainda nesse período, como assevera Pinto (2010), operárias, de ideologia


anarquista, se reuniram em um movimento conhecido como “União das Costureiras,
Chapeleiras e Classes Anexas”. Elas lutavam por melhores e mais dignas condições
de trabalho e também contra a exploração e a opressão que sofriam no ambiente de
trabalho. Entretanto, passado esse momento inicial, o movimento perdeu força du-
rante um longo período.

O movimento feminista reaparece no Brasil por volta da década de 1970, carac-


terizando a segunda onda do feminismo no Brasil. Isso em um cenário de repressão
do Regime Militar, que dominava o país nessa época, e que repudiava quaisquer for-
mas de manifestação feminista, por tê-las como uma ameaça. De acordo com Mota
(2017):

A segunda onda, por sua vez, se intensificou no Brasil a partir dos anos 1970,
com maior diversificação de mulheres ligadas à causa. Questões como se-
xualidade e corpo, violência contra a mulher e relações de trabalho ganharam
destaque neste período. Foi a partir dessa vivência que os grupos passaram a
se reunir em formato de rede, pois entendiam que as discussões que afligiam
as mulheres eram questões coletivas e não individuais. As definições entre
ser homem e ser mulher passaram a ser refletidas como construção sociocul-

403
tural também nesse período (MOTA 2017, p.112).

Em 1975 a Organização das Nações Unidas (ONU) promoveu I Conferência


Internacional da Mulher, dando, assim, ampla visibilidade à defesa dos direitos das
mulheres em âmbito mundial, denunciando a discriminação das mulheres e promo-
vendo a luta pela igualdade de direitos. No Brasil, ainda em 1975, foram realizados
debates que tinham como tema norteador “O papel e o comportamento da mulher na
sociedade brasileira”, dando uma maior abrangência ao problema questionado pelo
movimento (PINTO, 2010).

Nesse sentido, no artigo “Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e con-


flitos (1970-1978)”, publicado em 2006, pela Revista Brasileira de História, a historia-
dora Joana Maria Pedro faz uma análise detalhada das narrativas, focando nas dis-
putas que se constituíram nesse cenário. A historiadora relata que há uma narrativa
sobre a origem do ressurgimento do feminismo no Brasil, na década de 1970, que
prevalece até os dias atuais, sendo esta narrativa resultado de disputas de poder
entre diversos grupos feministas, todos envolvidos na luta contra a ditadura militar
(PEDRO, 2006, p. 250). Porém, a autora destaca a importância do apoio da ONU
para o Brasil nesse período de repressão militar:

Convém, aqui, destacar a importância do Ano Internacional da Mulher e do


apoio da ONU para o Brasil. Vivendo, desde 1964, em plena ditadura militar,
durante a qual qualquer reunião, especialmente de grupos constantemente
vigiados, constituía um risco muito grande, a Década da Mulher e o Ano da
Mulher proporcionaram o lançamento de vários eventos acerca de questões
relativas à mulher. Convém destacar, antes de mais nada, que a iniciativa da
ONU apenas repercutiu o que estava acontecendo desde os anos 60 e, prin-
cipalmente, no início dos anos 70, em vários países da Europa e nos Estados
Unidos, onde as manifestações feministas enchiam as ruas das cidades rei-
vindicando direitos — entre estes, o de livre disposição do corpo. No Brasil, o
evento patrocinado pelo Centro de Informação da ONU, em julho de 1975, no
Rio de Janeiro, realizado na ABI, teve o tímido título de “O papel e o compor-
tamento da mulher na realidade brasileira” (PEDRO, 2006, p. 251).

Depois de um longo período de repressão vivenciado durante a ditadura militar

404
(1964-1985), foi na década de 80, com a redemocratização do país, que o movimento
feminista se expandiu e ganhou força. Nesse período, várias frentes de luta se
formaram no intento de alcançar diversos direitos, como, por exemplo, a sexualidade
e a liberdade. Simultaneamente a isso, o movimento se popularizou e chegou às ca-
madas mais populares da sociedade.

Uma das maiores conquistas do feminismo dessa época, como destaca Pin-
to (2010), foi à criação, em 1984, do Conselho Nacional da Condição da Mulher
(CNDM), que organizou uma campanha para a inserção dos direitos das mulheres
na nova Constituição, o que resultou na inclusão de vários direitos das mulheres na
Constituição Federal de 1988.

Desse modo, como afirma Campos (2017), foi durante a democratização do


país e através das novas formas de relacionamento com o Estado que várias de-
mandas passaram a fazer parte das atividades públicas do Brasil, o que é ainda mais
evidenciado durante a elaboração do Constituição Federal de 1988, quando grupos
de todo o país reivindicavam a inserção e a ampliação dos direitos das mulheres na
nova carta constitucional. Nessa época, o movimento foi muito importante para a
inclusão da luta das mulheres na pauta pública e jurídica do país, pretendendo com
isso a conquista de direitos com o novo regime democrático que se instaurava no
Brasil.

Na década de 90, o movimento entra na sua terceira onda e, como afirma Pinto
(2010), passou por um processo de profissionalização, através da criação de Or-
ganizações Não-Governamentais (ONGs), que visavam uma intervenção junto aos
poderes públicos para aprovar medidas de proteção às mulheres e buscar a sua
emancipação social e política. Uma das principais lutas dessa época era contra a
violência sofrida pelas mulheres, especialmente a violência doméstica, luta na qual
o movimento obteve importantes conquistas, como a implantação das Delegacias
Especiais da mulher e a Lei Maria da Penha, que “criou mecanismos para coibir a
violência doméstica e familiar contra a mulher” (BRASIL, 2006).

Foi também nesse período que se intensificaram as discussões sobre as dife-


renças existente no tratamento entre os gêneros, já que as mulheres são discrimi-
nadas apenas por sua condição de mulher, pelas diferenças biológicas existentes

405
entre os sexos. Ainda, nessa época, como explica Matos (2010), o movimento femi-
nista passou a se estruturar de uma maneira diferente, diante das novas formas de
organização da política e da cultura, com outras características. Tentaram realizar
uma reforma no Estado com maior participação das mulheres, procuraram remodelar
instituições democráticas, tentaram construir um espaço público que contasse com
a participação ativa das mulheres e dos movimentos por elas organizados, além da
profissionalização e da especialização do movimento. É nesse momento que as mu-
lheres se aproximam do Estado para lutar por seus direitos.

Para algumas estudiosas, como Heloísa Buarque de Hollanda e Marlise Matos,


o movimento feminista do Brasil estaria passando, atualmente, pela sua quarta onda.
Ou seja, a quarta onda do feminismo é vivenciada após o surgimento das jornadas
de junho de 2013, passando pela primavera feminista de 2015 e pela trajetória das
hashtags:

Foi nesse quadro que o feminismo ganhou terreno e se tornou o maior re-
presentante da continuidade da nova geração política. Na sequência das
grandes marchas, as mulheres conquistaram o primeiro plano e roubaram a
cena da resistência ao cenário conservador que ameaça o país (HOLLANDA,
2018, p.29).

Isto posto, pode-se notar, que apesar das mudanças ocorridas no movimento
feminista com o passar do tempo, ele sempre foi e continua sendo um movimento
pela inserção das mulheres na sociedade, na política e na economia. Nesse sentido,
o movimento feminista sempre buscou o fim da opressão e da dominação dos ho-
mens sobre as mulheres, que, infelizmente, desde tempos remotos, tem feito parte
da história da humanidade.

Depois de anos de luta, as mulheres foram, aos poucos, conquistando seu es-
paço na vida pública do país. Começaram a ocupar posições de destaque e a ocupar
cargos nos Poderes Legislativos e até mesmo no Executivo. Em contrapartida, nesse
período, houve um grande desenvolvimento e também a consolidação de políticas
públicas voltadas para o público feminino.

406
Para Matos (2014), após os anos 2000, o movimento feminista encontrou uma
nova forma de se organizar, tendo, desde então, várias frentes de luta como “comu-
nidades de política de gênero”, e é isso que o diferencia do feminismo que acontece
em outros países. A autora assevera que as mudanças no movimento feminista dão
origem, consequentemente, a novas teorias e a novas formas de pensar, baseadas
nas ligações existentes “gênero, raça, sexualidade, classe e geração”. A quarta onda
feminista, para Matos (2010):

[...] inaugura aqui um movimento de profunda reorganização do Estado que


passa a se ocupar, na região, de modo mais efetivo, com perspectivas, desta
vez multidimensionais, da justiça social (e não apenas no eixo da redistribui-
ção econômica). A “quarta” onda traz também os desafios da horizontalização
dos movimentos feministas e da construção coletiva do diálogo intercultural e
Inter movimentos[...] (MATOS,2010, p.81).

Dessa forma, esse novo momento ergue-se como uma ação coletiva, que per-
faz a interseção de várias frentes de luta, que buscam não apenas a melhoria de vida
e a conquista de direitos das mulheres, mas que também se empenha na remode-
lação das políticas públicas, de modo a se adequar aos novos desafios trazidos por
uma sociedade globalizada que ainda supervaloriza o masculino.

Na visão de Heloisa Buarque de Hollanda (2018), essa nova forma de orga-


nização do movimento, que caracteriza o feminismo atual, possui algumas caracte-
rísticas marcantes, como a predominância do coletivo e a renúncia à formação de
hierarquias de liderança, além do uso de uma linguagem política e do uso do corpo
como meio de expressão. Para ela, a principal questão que reúne todas as vertentes
do movimento é a violência contra a mulher, questão que assombra a sociedade bra-
sileira como uma prática reincidente, ainda invisibilizada socialmente, e que arruína
a vida de muitas mulheres.

407
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O movimento feminista é a base da luta contra a cultura patriarcal e pela eman-


cipação das mulheres, dado que tem se empenhado para promover os direitos das
mulheres e a busca da tão almejada igualdade. À vista disso, acredita-se que, através
das ideias de isonomia difundidas pelo movimento, além da contribuição de outros
vetores sociais, culturais e dispositivos legais, seria possível uma efetiva redução das
desigualdades e dos índices de feminicídio e de violência doméstica e familiar. Assim
sendo, o movimento segue se reinventando, como uma batalha obstinada contra a
desigualdade de gênero. Continua sua luta incansável pela autonomia e liberdade
das mulheres, além de combater a violência de gênero, um problema grave e persis-
tente no Brasil.

Para tanto, se faz necessário pensar uma “Nova história das mulheres no Bra-
sil” (PINSKY; PEDRO, 2012), novos engajamentos políticos, novos princípios e crí-
ticas para que diferentes espaços sejam ocupados por mulheres. O Brasil possui
regiões diversificadas e a opressão ao feminimo aparece de maneira simbólica, visto
que a mulher ainda é projetada em seu papel “natural” de mãe e dona de casa, a
qual, quando trabalha “fora”, sustenta uma dupla jornada, entre outras violências
simbólicas.

Além disso, historicamente, o movimento feminista brasileiro, assim como o


americano e o europeu, também desconsiderou a pluralidade e a interseccionlidade
em seu contexto de maneira geral. Portanto, sem consenso de “qual onda do femi-
nismo se fala”, atualmente, no Brasil, uma corrente do feminismo negro se destaca
com as autoras Sueli Carneiro, Nilma Lino Gomes, Jurema Werneck, Lélia Gonzalez,
Luiza Bairros, Nilza Iraci, Beatriz Nascimento, Djamila Ribeiro e Carla Akotirene.

Nos últimos anos, o movimento tem encontrado nos meios digitais um forte
aliado, difundindo suas ideias através das redes sociais. Dessa forma, alcança uma
ampla divulgação, o que é muito útil para o engajamento de um maior número de
pessoas no movimento, bem como pode ser usado como uma eficaz ferramenta
para que mulheres denunciem casos de violação de seus direitos. Todavia, apesar
dos avanços obtidos, a tão sonhada igualdade entre homens e mulheres ainda está

408
muito distante. Por isso, faz-se necessário que o feminismo continue desenvolvendo
a sua utopia histórica.

REFERÊNCIAS
ALVAREZ, S. E. Para além da sociedade civil: reflexões sobre o campo feminista.
Dossiê o gênero da política: feminismos, estado e eleições. Cadernos Pagu, (43),
janeiro-junho de 2014:13-56. ISSN 0104-8333. Disponível em: http://www.scielo.br/
pdf/cpa/n43/0104-8333-cpa-43-0013.pdf. Acesso em: 15 de set. de 2019

ALVES, B. M.; PITANGUY, J. O que é Feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1985.

BEAUVOIR, S. O segundo Sexo: Fatos e Mitos [1948]. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira,

1980.

_________, S. O Segundo Sexo: A Experiência Vivida. Rio de Janeiro: Ed. Nova

Fronteira,1980.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Bra-


sília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

______. Lei Maria da Penha. Lei n. 11.340/2006. Coíbe a violência doméstica e fa-
miliar contra a mulher. Presidência da República, 2006.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade [1990].


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.

CAETANO, I. F. O feminismo brasileiro: uma análise a partir das três ondas do mo-

409
vimento feminista e a perspectiva da interseccionalidade. Artigo apresentado como
exigência de conclusão do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu Gênero e Direito
da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2017. Dis-
ponível em: http://www.emerj.tjrj.jus.br/revistas/genero_e_direito/edicoes/1_2017/
pdf/DesIvoneFerreiraCaetano.pdf. Acesso em: 15 out. 2019.

CAMPOS, M. L. Feminismo e movimentos de mulheres no contexto brasileiro: a


constituição de identidades coletivas e a busca de incidência nas políticas públicas.
Revista Sociais & Humanas, v. 30, n. 2, 2017. Disponível em: https://periodicos.
ufsm.br/sociaisehumanas/article/view/27310/pdf. Acesso em: 10 set. 2019.

CHEMIN, Beatris F. Manual da Univates para trabalhos acadêmicos: planejamento,


elaboração e apresentação. 3. ed. Lajeado: Univates, 2015.

CRENSHAW, Kimberlé. A intersecionalidade da discriminação de raça e gênero.


Cruzamento: raça e gênero. UNIFEM, 2002. Disponível em <https://static.tumblr.
com/7symefv/V6vmj45f5/kimberle-crenshaw.pdf>: Acesso em: 01 de nov de 2020.

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe [1981]. São Paulo : Boitempo, 2016.

FRIEDAN, Betty. A mística feminina [1963]. Petrópolis: Vozes, 1971.

GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5.ed. São Paulo: Atlas,
1999.

HOOKS, Bell. E eu não sou uma mulher? [1981]. 4ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tem-
pos, 2019.

410
HOLLANDA, H, B. Explosão Feminista: Arte, Cultura, Política e Universidade. 2. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

MARCONI, Marina de Andrade. LAKATOS, Eva Maria. Metodologia Científica. 3.ed.


São Paulo: Atlas, 2000.

MARCONI, Marina de Andrade. LAKATOS, Eva Maria. Técnicas de pesquisa: pla-


nejamento e execução de pesquisas, amostragens e técnica de pesquisa, elabora-
ção, análise e interpretação de dados. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2006.

MARQUES, Melanie Cavalcante. Kella Rivetria Lucena. A gênese do movimento fe-


minista e sua trajetória no Brasil. Anais do VI seminário CETROS. Crise e mundo
do trabalho no Brasil: desafios para a classe trabalhadora. Agosto de 2018. Dis-
ponível em: <http://www.uece.br/eventos/seminariocetros/anais/trabalhos_comple-
tos/425-51237-16072018-192558.pdf>. Acesso em: 01 nov. 2020.

MATOS, M. A quarta onda feminista e o campo crítico-emancipatório das diferenças


no brasil: entre a destradicionalização social e o neoconservadorismo político. 38º
Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 2014. Disponível em: http://www.anpocs.
com/index.php/encontros/papers/38-encontro-anual-da-anpocs/mr-1/mr20/9339-a-
-quarta-onda-feminista-e-o-campo-critico-emancipatorio-das-diferencas-no-brasil-
-entre-a-destradicionalizacao-social-e-o-neoconservadorismo-politico/file. Acesso
em: 09 ago. 2019.

______. Movimento e teoria feminista: é possível reconstruir a teoria feminista a


partir do Sul global? Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 18, n. 36, p. 67-92, junho de
2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/v18n36/06.pdf. Acesso em: 01
out. 2019.

411
______. MR20 Teoria Feminista e a Teoria Política: encontros, convergências e
desafios. 38º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu, 2014. Disponível em: https://
anpocs.com/index.php/papers-38-encontro/mr-1/mr20/9339-a-quarta-onda-feminis-
ta-e-o-campo-critico-emancipatorio-das-diferencas-no-brasil-entre-a-destradicionali-
zacao-social-e-o-neoconservadorismo-politico/file. Acesso em: 07 set. 2019.

MOTA, K. R. S. Feminismo Contemporâneo: como ativistas de São Paulo


compreendem uma terceira onda do movimento no país. Revista Extrapen-
sa, v. 11, n. 1, 2017. Disponível: http://www.revistas.usp.br/extraprensa/article/
view/139729/137419. Acesso em: 10 set. 2019.

PEDRO, Joana Maria. Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e con-


flitos (1970-1978). Rev. Bras. Hist., São Paulo , v. 26, n. 52, p. 249-272, Dec.
2006 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0102-01882006000200011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 01 Nov. 2020.

PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (Org.). Nova História das mulheres
no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012. p. 238-245.

PINTO, C. R. J. Feminismo, história e poder. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, v. 18, n.


36, p. 15-23, June 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0104-44782010000200003&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 19 mai.
2019.

________. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abra-
mo, 2003.

SCOTT, Joan W.. O enigma da igualdade. Revista Estudos Feministas, Floria-


nópolis , v. 13, n. 1, p. 11-30, Abril/ 2005 . Disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2005000100002&lng=en&nrm=iso>.
Acesso em: 03 nov. 2020.

412
SOBRE OS ORGANIZADORES

GABRIELLA ELDERETI MACHADO

É Licenciada em Química pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia


Farroupilha - IFFar - Campus Alegrete (2015) e Pedagoga pelo Centro Universitá-
rio Facvest - Unifacvest (2020). Especialista Educação Ambiental pela Universidade
Federal de Santa Maria (2016), Mestre em Educação pela Universidade Federal de
Santa Maria (2018). Atualmente é Discente do Programa de Pós - Graduação em
Educação - Doutorado em Educação na Universidade Federal de Santa Maria.

413
IVANIO FOLMER

Graduado em Geografia Licenciatura pela Universidade Federal de Santa Maria


(2014). Mestre em Geografia pelo Programa de Pós Graduação em Geografia-PP-
GGEO/UFSM (2018). Doutorando em Geografia-PPGGEO/UFSM com previsão de
término em 2022. Participante de diversos projetos de pesquisa e extensão, com as
temáticas de Educação no campo; Educação Ambiental; Gênero e sexualidade; Mor-
talidade Infantil; Catadores e Memória e Patrimônio Cultural. É professor da Rede Es-
tadual do RS na Área das Humanas - Componente Curricular: Geografia. Tutor EAD
no Curso Licenciatura em Educação do Campo UAB/UFSM desde 2018. Integrante
do Grupo de Pesquisa em Educação e Território- GPET.

414
ALBERTO BARRETO GOERCH

Doutorando pela Universidade FEEVALE com bolsa CAPES. Mestre em Direito pela
UNISC. Pós-graduado Lato Sensu em Direito com Especialização em Direito Consti-
tucional pela UNIDERP e Pós-graduado Lato Sensu em Direito com Especialização
em Direito Processual Civil pela UNISC. Graduado em Direito pela Faculdade Me-
todista de Santa Maria. Docente do Curso de Direito da Universidade Franciscana
- UFN e do Curso de Direito da Faculdade Dom Alberto. Professor em Cursos de
Especializações e Preparatórios para Carreiras Jurídicas. Conselheiro, Membro da
Comissão de Direitos Humanos e Presidente da Comissão Especial da Diversidade
Sexual e Gênero da OAB/Subseção de Santa Maria. Integrante do Grupo de Pesqui-
sa Arthemis - Direito e Gênero da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM. Tem
experiência em pesquisa na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes
temas: Constitucionalismo Contemporâneo, Políticas Públicas, Direitos Humanos,
Direitos Sociais, Novos Direitos, Diversidade Cultural e Inclusão Social.

415
416

Você também pode gostar