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Carlos Eugênio Marcondes de Moura (Org.) - Candomblé. Religião Do Corpo e Da Alma

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Candemble Tipos psicológicos nas religiões

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Carlos Eugênio Marcondes de Moura


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PALLAS
Em 1981, Carlos Eugênio
Marcondes de Moura publicou
Olóórisa, livro que inaugurou uma
série de escritos sobre a religião dos
orixás, da qual a presente obra é o
sétimo volume. Desde então, cada
novo título tem sido aguardado
com justa expectativa e redobrado
interesse por um público sempre
crescente, formado de pesquisa-
dores, intelectuais, religiosos e lei-
tores em geral, que se habituou,
com esses livros, a conhecer me-
lhor, entender e apreciar a religião
dos orixás.

Reunindo os mais variados


temas do candomblé, xangó, tam-
bor-de-mina e outras religiões tra-
dicionais afro-brasileiras, tratados
por autores experientes no campo
dos estudos africanos e afro-ame-
ricanos, além de escritos de muitos
autores inéditos, as coletâneas de
Carlos Eugênio sobre os oórixás
têm contribuído em muito para a
difusão do conhecimento que se
tem sobre a religião. dos voduns,
orixás, e inquices na diáspora. À
própria religião tem ganhado com
essas publicações, recuperando
por meio da escrita dos pesqui-
sadores muitos elementos míticos
Copyright O 2000, by
Carlos Eugênio M. de Moura
Editor:
Cristina Fernandes Warth
Coordenação Editorial:
Heloisa Brown
Organizador:
Carlos Eugênio M. de Moura
Revisão Tipográfica:
Carlos Eduardo de A. Lima
Wendell S. Setúbal
Léia Elias Coelho
Heloisa Brown
Capa:
Marcello Gemmal
Fotolitos de Capa:
Beni
ú Foto de Capa:
Edson Engel, “Taô de Oxalufa”
Editoração Eletrônica:
Geraldo Garcez Condé
Geni Garcez Condé

Todos os direitos para a língua portuguesa reservados à Pallas Editora e Distribuidora ltda.
E vetada a reprodução por qualquer meio mecânico, eletrônico, xerográfico, etc.,
sem a permissão por escrito da editora, de parte ou da totalidade do material impresso.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE.
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

C223 Candomblé: religião do corpo e da alma : tipos psicológicos


nas religiões afro-brasileiras / organização de Carlos Eugênio
Marcondes de Moura. — Rio de Janeiro: Pallas, 2000.
Inclui bibliografias
ISBN 85-347-0198-9
1. Candomblé. 2. Tipologia (Psicologia). I. Moura, Carlos
Eugênio Marcondes de.

99-0599 CDD —-299.67


CDU =299.6.3

2
Pallas Editora e Distribuidora Ltda.
Rua Frederico de Albuquerque, 44 — Higienópolis
CEP 21050-840 — Rio de Janeiro — RJ
Tel./ fax: (21) 270-0186/ 590-6996
E-mail: pallas(Dalternex.com.br
Homepage: http://www.editoras.com/pallas/afrobrasil s >w
SUMÁRIO

REINTRODUZINDO — Carlos Eugênio Marcondes de MOURA / 7

1. DE IYÁ MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS


DA LIBIDO — Monique AUGRAS / 17

2. INVENTANDO A NATUREZA: FAMÍLIA, SEXO E GÊNERO NO


XANGÔ DO RECIFE — Rita Laura SEGATO / 45

3. O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS


— José Flávio Pessoa de BARROS e Maria Lina Leão TEIXEIRA / 1083

4. OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ


— Claude LÉPINE/ 139

5. EXU/OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO FERIDO NA


TRANSFERÊNCIA — Pedro Ratis e SILVA / 165

6. LOROGUM - IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ


— Maria Lina Leão TEIXEIRA / 197
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REINTRODUZINDO

Carlos Eugênio Marcondes de MOURA


“Morrer não é nada. Não viver é que é medonho.
(Raul de Xangó — um mago)

Esta é, em certo sentido, uma coletânea de coletâneas. A


primeira de uma série que não supúnhamos alcançar tamanha
longevidade foi Ólooórisá — Escritos sobre a religião dos orixás,
lançada em 1981, a que se seguiram Bandeira de Alairá —
Outros escritos sobre a religião dos orixás (1982), Candomblé
— Desvendando identidades — Novos escritos sobre a religião
dos orixás (1987), Meu sinal está no seu corpo (1989), As
senhoras do pássaro da noite (1994) e Leopardo dos olhos de
fogo (1999).
A proposta inicial era editorialmente ousada, no momen-
to de sua formulação: recuperar a produção de sociólogos,
antropólogos e psicólogos, nacionais e estrangeiros, que
elegeram a religiosidade de origem africana no Brasil como
campo privilegiado de suas investigações. Para tanto, lhes foi
solicitada a colaboração, sob a forma de ensaios inéditos, nos
quais eles divulgaram parte de sua produção, em muitos
exemplos originalmente elaborada como teses acadêmicas de
mestrado ou doutorado, defendidas em instituições univer-
sitárias do Brasil e do exterior. Outra linha de estruturação
foi a reedição de estudos fora de circulação havia décadas,
publicados pela primeira vez em periódicos de acesso
relativamente dificultado. Procedeu-se também à tradução de
ensaios divulgados no exterior, relacionados aos diversos temas
8 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPOE DA ALMA

privilegiados nas coletâneas. Seu organizador, Carlos Eugênio


Marcondes de Moura, julgou necessário realizar um
levantamento bibliográfico extenso sobre a temática abordada,
abrangendo obras de referência, catálogos, livros, periódicos,
discografia e filmografia, incluindo não apenas o Brasil, mas
também Cuba, Haiti, Nigéria e Benin, e que vem acompa-
nhando as coletâneas, tendo chegado, até o momento, a cerca
de dois mil títulos, em constante ampliação.
Com exceção dos dois últimos títulos da coleção — se é
que podemos assim denominá-la — isto é, As senhoras do
pássaro da noite e Leopardo dos olhos de fogo — os demais
estão esgotados. Foi irresistível a proposta editorial da Pallas,
no sentido de reeditar doze ensaios publicados nas diferentes
coletâneas.
O presente volume — Candomblé: religião do corpo e
da alma — reúne seis desses ensaios. Em breve, a Pallas
publicará outro volume, com ensaios relativos ao panteão
das divindades, nas religiões afro-brasileiras, e ao culto dos
ancestrais.
Os seguidores das religiões que nos legaram algumas
populações negro-africanas, sequestradas para as Américas pela
brutalidade do escravagismo, vivenciam, inspirados por suas
divindades — orixás, voduns, inquices — a crença de que a vida
é o bem supremo. A recompensa por uma existência vivida em
plenitude não se situa numa eterna bem-aventurança, na
contemplação infinda do Divino, após a morte. Na concepção
dos nagôs, o Ayê, o mundo em que estamos, não é o vale das
lágrimas, mas das venturas. Passar do plano supraterrestre do
Órun para a realidade material do Ayê não é uma imposição
cármica, uma expiação de faltas passadas, mas uma escolha,
ditada pelo Ori de cada um, isto é, a cabeça, sede de todo
conhecimento, de todo arbítrio e que, por isto mesmo, tem de
ser constante e cuidadosamente louvada, zelada, cultuada. É
sobre o suporte material do Ori — mas não apenas sobre ele —
REINTRODUZINDO My
que escrevem José Flávio Pessoa de Barros e Maria Lina Leão
Teixeira, cujo escrito O código do corpo: inscrições dos orixás
abre esta publicação. Em uma religião que celebra a vida,
ensinam eles, fica fácil perceber que um corpo saudável é
requisito essencial, já que problemas físicos, psíquicos e sociais
são vistos como algo que possui caráter essencialmente
sobrenatural, justificado pelos fatores considerados como
responsáveis por sua instalação no corpo humano, e que esses
autores enumeram e desenvolvem: ação ou “marca”de um dos
orixás sobre alguém escolhido para cumprir a iniciação total
ou parcial; ação ou “marca” de um dos orixás sobre um iniciado
que tenha negligenciado suas obrigações religiosas e sociais;
quebra de regras, transgressões de tabus alimentares ou de
interditos sexuais estipulados pelos laços de parentesco inerentes
à família-de-santo; contaminação pelo contacto com os “eguns”,
espíritos de mortos, e pela fraqueza decorrente de contato com
a morte. Os autores elaboram um sistema classificatório de
sintomas e doenças, observando que as representações em torno
deles congregam um inter-relacionamento simbólico, que
associa e une as diferentes partes do corpo, os orixás, seus mitos
e histórias, bem como os princípios da organização social. Barros
e Teixeira também se referem ao sistema próprio de classificação
das espécies vegetais consideradas fundamentais e essenciais
para o bom andamento da vida dos participantes do candomblé.
Plantas, ervas, arbustos, árvores são utilizados a partir de um
sistema classificatório que os diferencia, separa e ordena como
elementos ligados aos orixás. As espécies vegetais são concebidas
como elementos de ligação entre o humano eo divino e também
como fonte de axé.! Rituais de limpeza e purificação, realização
de oferendas propiciatórias são alguns dos procedimentos
terapêuticos desenvolvidos nos terreiros de candomblé, e

1. De José Flávio Pessoa de Barros. A Pallas, em co-edição com a UERJ, publicou


O segredo das folhas — sistema de classificação de vegetais no candomblé jeje-
nagô do Brasil (1993), originalmente tese de doutorado defendida na USP, o
primeiro estudo sistemático que se fez sobre este tema.
10 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPQ E DA ALMA

mostram como a comunidade religiosa pensa e resolve os


problemas que lhes são trazidos.
No escrito de Claude Lépine — Os estereótipos da
personalidade no candomblé *- voltamos a nos deparar com
sistemas de classificação, que obedecem a princípios lógicos,
relativos a determinadas categorias entre as quais se repartem
os orientes, os dias da semana, os elementos da natureza, os
deuses, os vegetais, os animais, os tipos humanos. As divindades
se ligam a determinada cor, a determinados elementos ou
forças primordiais, plantas, animais. Elas possuem, cada qual,
seu temperamento e, de acordo com as crenças dos fiéis do
“candomblé, os seres humanos a elas consagrados herdam e
reproduzem esse temperamento. Classificar as pessoas, expli-
car seu comportamento, determinar expectativas tomando os
orixás como referência é postura constante na vida cotidiana
desses fiéis. Reportando-se à sabedoria dos iniciados no
candomblé jeje-nagô da Bahia, a autora ressalta a importância
que, para eles, tem o sistema de classificação dos tipos
psicológicos. O temperamento dos deuses é uma das chaves
para a explicação do ritual, das obrigações e dos interditos de
cada um. Tal sistema permite classificar e julgar as pessoas de
acordo com o que se sabe de seu orixá, explicar e prever o seu
comportamento; proporciona aos fiéis modelos de persona-
lidade e padrões de comportamento condizentes com estes
últimos. A autora mostra também que essa psicologia popular
vem sendo elaborada, enriquecida, diversificada, o que
evidencia um dos aspectos mais dinâmicos do candomblé e
onde mais se revela a imaginação popular. Em seu ensaio,
Lépine nos oferece uma idéia da concepção do homem, dos
modelos da personalidade e da classificação lógica desses tipos

2. Um estudo mais aprofundado sobre o tema encontra-se na tese de doutorado


de Claude Lépine intitulada Contribuição ao estudo do sistema de classificação
dos tipos psicológicos no candomblé Kkétu de Salvador, apresentada em 1978 no
Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP.
REINTRODUZINDO aê |

no sistema nagô de pensamento; mostra que o crescimento do


candomblé se explica parcialmente porque sua “psicologia”
atende aos anseios de certas categorias de cidadãos brancos.
Do modelo jeje-nagô, predominantemente baiano,
passamos para o universo do xangô pernambucano, estudado
por Rita Laura Segato em Inventando a natureza: família, sexo
e gênero no xangô do Recite* Nesse culto, de tradição nagô,
um dos motivos recorrentes, tanto nas representações quanto
na organização social de seus membros, é o esforço sistemático
de liberar as categorias de parentesco, de personalidade, de
gênero e de sexualidade das determinações biológicas e
biogenéticas a que se encontram ligadas na ideologia domi-
nante da sociedade brasileira. Nesses cultos xangô, há tam-
bém um esforço no sentido de remover o matrimônio da
posição primordial que ele ocupa na estrutura social. A autora
elabora o princípio de indeterminação biogenética e a concep-
ção do matrimônio e da família, próprias do xangô, e que ela
desenvolverá amplamente em seu ensaio: 1) a prática de
atribuir “santos-nomem” e “santos-mulher” indistintamente
a homens e mulheres como tipos de personalidade; 2) o
tratamento dado pelos mitos aos papéis femininos e masculinos
dos orixás que formam o panteão e as relações que eles mantêm
entre si; 3) a visão crítica dos membros do xangô com relação
aos direitos derivados da maternidade de sangue ou
biogenética; 4) a importância dada à família fictícia que é a
“família-de-santo” e à adoção de “filhos de criação” em
detrimento do parentesco baseado em laços de sangue; 5) a
definição dos papéis masculinos e femininos dentro da família-
de-santo: 6) a bissexualidade da maioria dos membros
masculinos e femininos do culto, assim como as noções relativas
à sexualidade que se revelam no discurso e na prática. Esses

3. Santos e daimones — o politeísmo atfro-brasileiro e a tradição arquetipal (Brasília,


Editora da Universidade de Brasília, 1995) é o desdobramento da tese de doutorado
da autora, defendida em 1984 em The Queen”s University of Belfast, Irlanda,
onde se encontram substancialmente ampliadas suas colocações.
12 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

aspectos descrevem conceitos e comportamentos dos membros


iniciados ou iniciantes do culto xangô. Segato retoma as
observações de Lépine relativas aos orixás como descritores
femininos e masculinos da personalidade. A relação de equi-
valência que se estabelece entre os membros do culto e os
orixás do panteão baseiam-se em similaridades de
comportamento entre fiéis e divindades. Os orixás servem,
assim, como uma tipologia para classificar pessoas de acordo
com sua personalidade. Em suas conclusões, a autora observa
que, ao relativizar o biológico e ao tratar peculiarmente a
identidade de gênero, os membros do xangô postulam a
independência da esfera da sexualidade, deixando transpare-
cer a premissa implícita na fluidez e na liberdade do desejo
humano, só com dificuldade subordinável a categorias
essenciais ou identidades rígidas.
Outra voz que não a do antropólogo ou do sociólogo,
que tomaram o espaço da religiosidade afro-brasileira como
objeto de suas investigações científicas, se faz ouvir no ensaio
de Pedro Ratis e Silva, Exu/Obaluaiê e o arquétipo do médico
ferido na transferência. Psicanalista de orientação junguiana,
o autor parte do relato de vivências de uma infância marcada
pela carência e pelo sofrimento físico (doenças de pele),
reportando-se a sonhos que se repetiam em torno de um ser
estranho, de cabeça ovóide, cheio de marcas e pintas, que mais
tarde se apresentava inteiramente recoberto de palha e que
bem mais tarde, já no exercício de sua profissão, ele vem a
reconhecer, em suas características, como o orixá Obaluaiê, o
senhor da vida e da morte, a divindade das doenças, sobretudo
aquelas ligadas às erupções cutâneas, à variola, à peste. Após
essa constatação, seguida de outras vivências profundas, em
que retornaria-a figura do orixá, O autor até entao
completamente apartado do universo mítico do candomblé,
sobre o qual não tinha maiores conhecimentos, procura
compreender, em seu escrito, um pouco mais de sua vida e de
um material clínico que, com muita frequência, surge em sua
REINTRODUZINDO 13
experiência psicoterápica: o fenômeno da transferência
manifestando-se ao nível da pele. Busca, na literatura
disponível (Pierre Verger, Juana Elbein dos Santos), novas
informações, e a figura de Exu, com suas polaridades e
inversões, faz lembrar que Obaluaiê, com seu Exu, seu
princípio dinâmico do existir não é apenas sofrimento e morte,
mas também transformação e vida. Exu e Obaluaiê encontram-
se na péle e, entre as múltiplas e elaboradas colocações do
autor, evoque-se aquela em que ele se refere ao desenvol-
vimento da consciência, em condições normais, sem grandes
adversidades existenciais. Então a pele apenas necessita de suas
aberturas naturais — poros, boca, olhos, narinas, ouvidos, ânus,
genitais — para desempenhar seu papel estruturante como zona
erógena e “gnoseógena?”. A pele e suas descontinuidades
funcionam simbolicamente como oportunidades de contacto
entre consciente e inconsciente, com Exu fazendo as vezes de
simples porteiro. O eixo ego-self está livre de conflitos, mas
há momentos em que a existência interfere contingencialmente
no processo, alterando a permeabilidade do sistema. Surgem
então as defesas ao longo do eixo ego-self e as afecções da
pele podem sinalizar essas ocorrências. Talvez, para o autor,
elas fossem comparáveis a epifanias de Obaluaiê/Omolu/
Xapanã, com seus Exus, forças curativas arquetípicas,
mobilizados agora para reabrir os caminhos obstruídos.
Durante a análise, feridas e cicatrizes são reativadas, podendo
surgir no corpo ou em qualquer outra coluna do eixo ego-
self. “Sinais” de Obaluaiê, Omolu, Xapanã “irrompem na
simbiose transferencial, e é necessário que o médico se deixe
ferir por eles, para que no ferido possa emergir o médico”,
observa o autor, numa das passagens mais essenciais deste
estudo tão iluminador e rico de sugestões.
Em sua dissertação de mestrado intitulada Transas de
um povo de santo: um estudo sobre identidades sexuais, Maria
Lina Leão Teixeira focalizou o estreito relacionamento entre
identidades sexuais/divisão de trabalho/poder, nos terreiros
14 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

de candomblé por ela investigados no Rio de Janeiro. No


presente ensaio, Lorogun — Identidades sexuais e poder no
candomblé, a autora repensa os terreiros de candomblé como
um espaço masculino e não como um espaço primordialmente
feminino, conforme têm sido percebidos por estudiosos,
literatos e público, de maneira geral. A sexualidade e suas
representações, nos terreiros, são vistas, segundo ela, como
mecanismos ou estratégias de poder. A existência de quatro
identidades sexuais e de seus respectivos papéis, que ela
explicitará ao longo de seu ensaio, reconhecidos e legitimados
no âmbito do povo de santo de Salvador e do Rio de Janeiro,
conduz à necessidade de pensar tais identidades como parte
de um sistema classificatório, o que, por sua vez, leva a
considerá-las como manifestações do poder inerente ao ato de
classificar, que, por si só, subentende uma hierarquização,
assim como um ethose uma visão de mundo particulares. Os
valores específicos do povo de santo, no entanto, somam-se ou
fundem-se com as idéias dominantes na sociedade mais ampla.
Assim, não se pode falar de um sistema simbólico indepen-
dente, no âmbito do candomblé, mas sim da reprodução ou
reinterpretação, parcial ou integral, do discurso hegemônico
sobre a questão da sexualidade e de seu exercício, presente na
sociedade brasileira abrangente, conforme foi colocado pelo
antropólogo Peter Fry, citado pela autora. Retomando a questão
da sexualidade, a autora mostra que ela está inscrita na lógica
da vida social dos terreiros, onde não só falam dela, como a
ritualizam nas várias instâncias da vida social. A aceitação de
identidades sexuais estigmatizadas ou marginalizadas na
sociedade abrangente promove, por um lado, a peculiaridade
da visão do mundo e do ethos do povo de santo e, por outro,
propicia uma hierarquização diferenciada das categorias ou
“classes” sexuais, na qual, entretanto, fica mantida a relação
de dominação/subordinação.
Que aspectos da sexualidade feminina têm sido privi-
legiados, em termos de mitos, pelos adeptos das religiões brasi-
REINTRODUZINDO 15
leiras de origem africana? Para responder a esta interrogação,
Monique Augras, em seu ensaio De Iyá Mi a Pomba-Gira:
transformações e símbolos da libido, assume, como hipótese
de trabalho, que, ao partir de imagens míticas que se referem
explicitamente ao poder genital feminino, as representações
brasileiras têm sofrido processo de progressiva pasteurização,
ao serem difundidas na sociedade mais ampla. Assim é que os
terreiros tradicionais de candomblé mantêm o culto dos deuses
em toda sua complexidade — embora de modo bastante discreto
no que se refere aos aspectos mais ameaçadores da sexualidade
feminina —, enquanto a umbanda parece ter promovido, em
torno da figura de Iemanjá, um esvaziamento quase total do
conteúdo sexual. Essa sublimação — ou repressão? — deu ensejo
ao surgimento de nova entidade, criação puramente brasileira,
a Pomba-gira, que a autora vê como síntese dos aspectos mais
escandalosos que pode apresentar a livre expressão da
sexualidade feminina, aos olhos de uma sociedade ainda
dominada por valores patriarcais.
Mães, esposas, amantes, as Aiabás, as rainhas, termo que
designa os orixás femininos, são as ancestrais poderosas,
cultuadas ao lado das Iyami Oxorongá, as terríveis Mães
Ancestrais, as senhoras do pássaro da noite, as Awon Iyá, mães
do segredo, andróginas, que contêm em si todas as oposições,
o Bem e o Mal, a feitiçaria e a antifeitiçaria, seres redondos,
primordiais. São muitos os mitos que, no candomblé tradi-
cional, fazem referência à sexualidade das Aiabás, vivida em
toda sua plenitude e multiplicidade. A umbanda, porém,
moraliza a figura de Iemanjá, mãe de todos os orixás,
assimilando-a com Nossa Senhora, mãe de Deus. Nela se
condensam as características das diversas entidades femininas
da umbanda. Ela torna-se, segundo Augras, pura sublimação
da sexualidade. A umbanda, porém, produz o seu contrário: a
Pomba-gira, entidade sensual, agressiva, originariamente
Bombojira, equivalente congo do Exu iorubá. O perigo que
ela representa relaciona-se claramente com a sexualidade, e
16 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

ela está ligada à desordem. No entanto, a umbanda recupera


essa figura transgressora, controlando-a, bem como a
subversão que ela representa, para favorecer a ordem vigente
e reafirmar os valores tradicionais da sociedade patriarcal.
DE IYÁ MI A POMBA-GIRA:
Transformações e Símbolos da Libido
Monique AUGRAS *
“Eu sou eterna.
(Palavras de Pomba-gira incorporada)

A presente comunicação! objetiva descrever que aspectos


da sexualidade feminina têm sido privilegiados, em termos de
mitos, pelos adeptos das religiões brasileiras de origem afri-
cana.
Minha hipótese de trabalho é a de que, partindo de
imagens míticas que se referem explicitamente ao poder
genital feminino, as representações brasileiras têm sofrido
processo de progressivas “pasteurizações”, por assim dizer,
ao serem difundidas na sociedade mais ampla. Enquanto os
terreiros tradicionais de candomblé mantêm o culto dos
deuses em toda sua complexidade (ainda que de modo
bastante discreto no que diz respeito aos aspectos mais
ameaçadores da sexualidade feminina), a umbanda parece
ter promovido, em torno da figura de Iemanjá, um esva-
ziamento quase total do conteúdo sexual. Tal sublimação (ou
repressão?) deu ensejo ao surgimento de nova entidade, pura
criação brasileira, a Pomba-gira, síntese dos aspectos mais

* (Fundação Getúlio Vargas) Nascida na França, onde se formou em Psicologia,


com doutorado pela Sorbonne, residente no Brasil desde 1961, é professora titular
do Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC-Rio.
1. O presente trabalho reproduz o texto de conferência proferida no dia 26.10.87
no V Ciclo de Estudos sobre o Imaginário — Imaginário e Sexualidade —
organizado pela Fundação Joaquim Nabuco em Recife.
18 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

escandalosos que pode representar a livre expressão da


sexualidade feminina aos olhos de uma sociedade ainda
dominada por valores patriarcais.

1. O Poder das Grandes Mães

Entre os iorubás, o poder feminino é sintetizado por um


termo coletivo, Awon Iyá wa, “nossas mães”, que são particu-
larmente homenageadas na ocasião do festival Géléde realizado
entre março e maio, antes do começo das chuvas. O objetivo
do Géléde é precisamente aplacar as terríveis mães ancestrais
para que a fecundidade dos campos se possa processar. As
cantigas evocam de maneira não-equivoca as características
que fazem das Grandes Mães, designadas ainda mais
diretamente pela forma singular Iyá mi, “minha mãe”, as donas
de tão poderoso axé:
Mãe destruidora, hoje te glorífico:
O velho pássaro não se esqueceu no fogo.
O pássaro doente não se esqueceu ao sol.
Algo secreto toi escondido na casa da mãe...
Honras a minha Mãe!
Mãe cuja vagina atemoriza a todos.
Mãe cujos pêlos púbicos se enroscam em nós.
Mãe que arma uma cilada, arma uma cilada.
Mãe que tem montes de comida em casa
(Drewal, /n: Pemberton, 1982, p. 56).
Na simbologia iorubá, o pássaro representa o poder
procriador da mãe. As penas do pássaro, como as escamas do
peixe, aludem ao número infinito de descendentes, que estão,
por assim dizer, implicitamente presentes no corpo materno.
Nada pode aquecer o velho pássaro porque ele mesmo é fonte
de calor, de vida. Esse poder é essencialmente misterioso, .
secreto, escondido no âmago do corpo da mãe, casa e morada.
O medo de ficar preso para sempre dentro do corpo materno
DE IyÁ MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS DA LIBIDO 19

é claramente assumido, pois que cilada é essa, senão a própria


vagina aterradora?
Falar claramente desse tema constitui, conforme Carneiro
da Cunha, transgressão própria dos cultos que promovem a
inversão dos valores sociais para permitir a regressão periódica
do mundo, como é o caso do Gelede: “A finalidade principal é
aplacar, mimar, agradar as Iami e, para tanto, a comunidade
masculina abdica de suas prerrogativas de homens (dançam
vestidos de mulher) para agradarem totalmente às mães
ancestrais (...) Há uma grande licença verbal. Adultos e
crianças falam livremente dos enormes pêlos, da imensa vulva
de Iami” (Carneiro da Cunha, 1984, p. 6). Vale dizer: o poder
da mãe é tão terrível, que só pode ser evocado pela sátira ou
pela mascarada. Afirmar sua realidade implica a desva-
lorização do poder masculino.
De acordo com Waldeloir Rego (1980), há uma história
do odu Osá Méji que conta como Iyá Mapo, a “Mãe da Vagina”,
recorreu aos bons ofícios de Iyá mi Oxorongá — que constitui
um dos aspectos mais aterradores da Grande Mãe —, para
colocar o sexo “no devido lugar na mulher”. Várias partes do
corpo tinham sido experimentadas como localização da vagina,
mas todas se revelaram inconvenientes. Foi Exu que, mediante
ebó “feito com duas bananas e um pote”, acertou o lugar
definitivo, “bem como o do pênis no homem, do qual Exu é o
dono”. Como se vê, para o sexo assumir sua correta posição, é
preciso que o poder masculino e o poder feminino trabalhem
de comum acordo.
O que assusta, porém, no caso da Grande Mãe, é sua
inteireza. “Ela é a matriz primeira da qual surge toda a criação”
(Carneiro da Cunha, 1984, p. 6), ou, para citar outra cantiga
do Gelêde..
Mãe todo-poderosa, mãe do pássaro da noite (...)
Grande mãe com quem não ousamos coabitar
Grande mãe cujo corpo não ousamos olhar
20 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Mãe de belezas secretas


Mãe que esvazia a taça
Que fala grosso como homem,
Grande, muito grande mãe no topo da árvore iroko,
Mãe que sobe alto e olha para a terra
Mae que mata o marido mas dele tem pena
(Beier, /n: Pemberton, 1982, p. 192).
Origem de todos nós, a mãe é inteiramente sacralizada. O
seu poder, como sua beleza, reside no âmago do segredo da
criação. Ela basta a si própria, fala grosso como homem, olha-
nos do alto da árvore iroko, assumindo portanto características
bem fálicas; o seu marido desempenha rápido papel fecundante,
qual zangão, e depois ela o mata. “Ela é o poder em si, tem tudo
dentro do seu ser. Ela pode tudo. Ela é um ser auto-suficiente,
ela não precisa de ninguém, é um ser redondo, primordial,
esférico, contendo todas as oposições dentro de si. Awon Iyá wa
são andróginas, elas têm em si o Bem e o Mal, dentro delas elas
têm a feitiçaria e a antifeitiçaria, elas têm absolutamente tudo,
elas são perfeitas” (Carneiro da Cunha, 1984, p. 8).
É praticamente impossível lidar-se diretamente com
poder tão absoluto, a não ser nos momentos privilegiados da
promoção ritual do caos, como o festival Geléde. Em conse-
quência, ocorre o desdobramento do poder da Grande Mãe
Ancestral nas diversas figuras das divindades femininas. Para
que haja trocas, para que a sociedade se organize, é preciso
que o poder feminino e o masculino se oponham e se comple-
tem. Vários mitos relatam como deuses masculinos, por astúcia
e ardil, conseguem despojar a Grande Mãe de parte de seu
poder. Nos terreiros brasileiros, é bem conhecido o caso de
Oxalá com Nanã. Seduzindo-a, roubou-lhe a exclusividade do
poder sobre os espíritos dos mortos. Para tanto, vestiu-se de
mulher, fingiu que era Naná, e, por assim dizer, domesticou
os temíveis Egungun que, até então, faziam tudo o que ela
mandava (Augras, 1983, pp. 136-138). Para desapossar a
DE IYÁ MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS DA LIBIDO 21
Grande Mãe do seu poder, é preciso pagar o preço. Oxalá usa
saia até hoje.
Nanã, no entanto, ainda permanece como imagem
amedrontadora da mãe que, tendo o poder da vida, possui
também o poder da morte. Outras Iabás conservam igualmente
características ameaçadoras, ainda que hoje bastante veladas.
Entre nós, Obá continua sendo homenageada como patrona
das sociedades secretas das mulheres. Iansá, heroína como
Nanã de um mito em que o poder é retirado das mulheres
pelos homens, defendidos nesse caso por Ogum, que também
recorre à mascarada para chegar a seus fins, continua no
entanto sendo a “Rainha e Fundadora da Sociedade Secreta
dos Egungun na terra” (Santos, J.E., 1976, p.123). Além disso,
sua fama de feiticeira é bem estabelecida. “Iansã é cheia de
magias”, isso é ponto pacífico nos terreiros da Bahia e do Rio
de Janeiro.
Oxum, cujo poder se relaciona claramente com a fecun-
didade, é personagem de um mito conhecido, em que um
simbolismo transparente mostra que até mesmo Oxalá supera
o tabu da menstruação para prosternar-se aos pés da
representante do poder feminino. Transformando em penas
vermelhas de papagaio-da-costa o sangue que gotejava do
corpo de uma sacerdotisa, Oxum ouve Oxalá declarar: “Nunca
hei de me separar desta pena vermelha que é ekodidé e que
será o único sinal desta cor que carregarei sobre o meu
corpo” (Santos, D.M., 1966, s/p). Do mesmo modo, Iemanjá,
mãe da possibilidade de ser, Dama das Origens, é exaltada em
seu papel fecundo, sem que seu poder seja percebido como
ameaçador. Parece que tais deusas representam exclusivamente
o aspecto de mãe boa.
Nessa perspectiva, infere-se que a divisão do poder de
procriação com os deuses masculinos tem como consequência
o despojamento dos aspectos da Grande Mãe Ancestral. A partir
do momento em que os papéis se vão diferenciando, divindades
22 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPOSE DA ALMA

masculinas e femininas individualizam-se, os poderes são


distribuídos, cada entidade responde por um aspecto
específico. Há, contudo, como que um poder residual que
permanece indômito, impermeável, às investidas dos valores
patriarcais, e no qual se condensam todas as potencialidades
negativas. É o poder de Ajé, temíveis feiticeiras, tão terríveis
que não se lhes pronuncia o nome. São aludidas como Eleiye,
Dona do Pássaro, pois também formam um coletivo que, na
verdade, expressa a síntese dos poderes da mãe terrível,
reduzida agora aos aspectos aterradores, e que se cnama Iyá
mi Oxorongá.
Quando se pronuncia o nome Iyá mi Oxorongá quem
estiver sentado deve se levantar, quem estiver de pé tará uma
reverência, pois esse é um temível orixá, a quem se deve
respeito completo (...) É a dona da barriga e não há quem
resista aos seus ebós fatais (..) Com Iyá mi todo cuidado é
pouco, ela exige o máximo de respeito. Iyá mi Oxorongá, bruxa
e pássaro (Amado, 1979, p. 32).
Diversos são os meios de aplacar a terrível deusa, que é
ainda cultuada no Brasil. Já tive a oportunidade de ver-lhe o
assento na Bahia, grande jarro enterrado no chão, ventre cheio
de coisas misteriosas.
Via de regra, !yá mi Oxorongá não se costuma apresentar
em sua singularidade, antes reveste a figura das bruxas ou até
mesmo se expressa no poder de certos orixás femininos menos
conhecidos. Seria, por exemplo, o caso de Apáoká, a jaqueira,
a “verdadeira mãe de Oxóssi”. Conforme tradições africanas,
é “a árvore ao pé da qual o caçador encontrou mel, e em cujo
redor desenvolveu-se a cidade de Kétu, substituída em Salvador
pela jaqueira” (Lépine, 1978, p. 252). De acordo com uma
informante, sacerdotisa com casa-de-santo no Grande Rio,
“Apáoká é o santo da jaqueira, é uma das Iyá mi, é a mãe de
Oxóssi, e um aspecto de Iyá mi Oxorongá. Tem um tabu, para
não falar o nome deste orixá”. Seja como for, todo terreiro
DE Iyá MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS DA LIBIDO 23

costuma ter jaqueira, mas não colhem as jacas, deixam-nas


cair no chão, pois não se pode comer, “por causa de Apáoká”.
Mas, geralmente, a tradição parece reduzir Iyá mi
Oxorongá à força que se manifesta no poder das Ajé, as
feiticeiras. Informa Rego (1980) que as Ajé “foram paridas
pelo odu Osá Méj?. Vale lembrar que é uma história do mesmo
odu que nos fez conhecer Iyá Mapo, a “mãe da vagina”, e
certamente esse tema está relacionado com a caracterização
de Iyá mi Oxorongá, em termos mais gerais, como “dona da
barriga”. As histórias do odu Osá Méji recolhidas por Bascom
(1980) tratam principalmente de Iansã e Oxum, com predo-
mínio das temáticas de fecundidade. Interessante é que a
comida votiva de Oxum, omolucum, feita de feijão fradinho
amassado com camarão seco, cebola, azeite-de-dendê, e
encimada por dezésseis ovos cozidos colocados em pé, constitui
precisamente oferenda feita por Oxum para se livrar das Ajé.
Diz uma informante: “Os ovos do omolucum foram ebó que
ela fez para as Ajé, por isso, a gente nunca pode comer.” Vale
dizer: o ovo, símbolo de vida, fecundação, de fertilidade, torna-
se comida de morte. Tanto Oxum como Ajé são particu-
larizações do poder eterno das Grandes Mães e, por isso
mesmo, a primeira pode neutralizar as demais. Seus poderes
respectivos têm, no fundo, a mesma origem.
Verifica-se, nesses poucos exemplos, que nas casas tradi-
cionais de candomblé permanecem vivos os valores referentes
ao poder das Mães Ancestrais, cultuando a terrível Iyá m
“Oxorongá ao lado das Iabás, ou seja, das Rainhas, nome
geralmente dado entre nós às divindades femininas.
A exaltação da fecundidade, no entanto, não esgota c
significado da sexualidade feminina. No candomblé brasileiro,
as Iabás não são descritas apenas como mães, mas também
como esposas e amantes.
É sabido que Iansã, assim como Oxum, manteve ligações
com praticamente todos os orixás masculinos. De acordo com
24 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

as informantes, aliás, as histórias são contadas de modo


diferente. Ao mesmo tempo que são relatadas as aventuras
sucessivas de Oiá-lansã, por exemplo (vide Augras, 1983, pp.
142-143 e 151-157), com Oxóssi, Ogum, Xangô, Ossâim,
Omolu e Exu, ouve-se dizer que Oiá-Onira é uma lansã casada
com Ogum, e que a esposa de Xangô, na verdade, é Oiá-Petu,
a dona do vento (Lépine, 1978). Isso sugere que a designação
Oiá-lansã é genérica, agrupando uma série de divindades
oriundas de diferentes cidades africanas, hipótese essa que se
torna bastante consistente quando se verifica que, sob o mesmo
vocábulo, são encontrados, entre outros contrastes, uma deusa
agrária, um orixá do vento e do raio e a mãe dos espíritos
ancestrais. A mesma observação pode ser feita em relação a
Oxum. Oxum-lyanlá (a avó) “era uma mulher poderosa e
guerreira, que ajudava Ogum Alagbedé, seu esposo, na forja”,
na dizer de Vercer(1981Pp MB Outra Oxum plo ke
guerreira de arco e flecha, é mulher de Oxóssi. Mas como sua
grande rival Iansã, Oxum é mesmo conhecida como esposa de
Xangô e inúmeras são as versões que contam os detalhes dos
seus amores (Augras, 1983, pp. 163-165).
O agrupamento, sob única denominação, de divindades
com características diferentes, e, portanto, consortes variados,
teria tido, como consequência prática, a atribuição de diversas
aventuras a Iansã e a Oxum. O que nos interessa aqui, porém,
é menos a justificativa histórica do que a observação que, nos
terreiros brasileiros de hoje, essas divindades femininas são
vistas como possuidoras de uma libido exigente e que, tais como
seus parceiros, têm intensa vida amorosa.
Entre as Iabás, Nanã ocupa um lugar específico. Velha,
muito temida, parece ter mantido imagem mais ligada as antigas
Iyá mi. É dada como amante ou esposa mais velha de Oxalá
que, ao seduzi-la, roubou parte de seus poderes, mas em troca
fez dela mãe de Omolu e Oxumarê. De acordo com um
informante, contudo, Nanã teria tido uma ligação com Xangô:
DE Iyá MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS DA LIBIDO 25
“Saiu Xangô pelo mundo, teve um caso com Nanã. Ele
ficou louco, todo arrebentado, vagando pelos matos. Foi um
babalaô que o salvou, fazendo um ebó para Nanã com cágado,
aí botou o casco do cágado como um capacete na cabeça de
Xangô.” Esse episódio parece afirmar, mais uma vez, as
características ameaçadoras das Grandes Mães Ancestrais.
Qualquer relacionamento com elas é sumamente perigoso e
Xangô, o grande macho triunfante, sedutor de todas as
mulheres, aprendeu à sua custa que não se pode lidar impu-
nemente com as antigas representantes do poder feminino. O
mesmo informante, sacerdote com mais de 25 anos de “feito”
na nação Keto, acrescenta que esse poder temível permanece
evidente nas diversas “qualidades” de deusas que usam a
espada: “Para as Iábás de espada se mata bicho macho castrado,
ora se criam capões, ora se castra bode ou carneiro na hora.
Tudo o que empunha espada, tem a ver com castração.” Isso
se aplica, portanto, a Iemanjá também, tida como a grande
mãe da maioria dos orixás, e que tem, entre suas diversas
“qualidades”, várias caracterizações com espada na mão. É o
caso de Ogumté, casada com Ogum.
É costume considerar-se que Iemanjá é a esposa de Oxalá
e várias lendas aludem à sua rivalidade com Nanã. Mas,
novamente, encontramos tradições que dão Iemanjá como
amante de Orumilá, de quem teve Ifá, o oráculo, e de Orânhia,
o fundador da cidade de Oyó. Sob o nome de Iyá Massé,
Iemanjá unida a Orânhiã, deu início à sagrada dinastia dos
primeiros reis de Oyó. Sabemos que sacerdotes e principes
daquela cidade, vendidos como escravos na primeira metade
do século passado, contribuíram significativamente para a
fundação dos grandes templos tradicionais da Bahia. Foi !yá
Massé que deu nome ao terreiro de Gantois, !lé Iya Omin Axé
Iya Massé, “casa da Mãe D'água, força sagrada de Iyá Massé?.
O Engenho Velho, por sua vez, mantém a seguinte tradição:
Ogiyân (Oxalá novo) veio viajando para cá montado em
tronco de árvore. No meio das águas do mar, encontrou Yémójá
26 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Ogúnté. Durante a viagem, nasceu um filho deles, Ogunjá. E


foi assim que eles chegaram aqui (Barros, 19883, p. 42).
Como se vê, as grandes mães não ficaram morando lá na
África. Vieram para cá para proteger seus filhos e participar
da fundação dos grandes templos.
Em relação a Iemanjá, aparece outro tema, o do incesto. A
partir da publicação, em 1894, do livro de A.E. Ellis The Yoruba
speaking people, avidamente lido por Nina Rodrigues e retomado
mais tarde por Arthur Ramos, difundiu-se entre nós o mito pelo
qual Orungan, filho de Iemanjá com Aganjú, violentou a mãe
que, em consequência, deu à luz todos os demais deuses do rio e
do mundo. De acordo com Verger (1982), essa lenda foi copiada
por Ellis de texto de 1844, da autoria do Pe. Baudin, missionário
francês. Interessante é observar como o incesto de Orungan foi
desenvolvido e repetido pelos pesquisadores sucessivos, que, no
entanto, não se furtaram a registrar o desconhecimento desse
mito pelo povo-de-santo. O próprio Nina Rodrigues pondera: “É
de crer que esta lenda seja relativamente recente e pouco
espalhada entre os nagôs. Os nossos negros que dirigem e se
ocupam do culto iorubano, mesmo os que estiveram recentemente
na África, de todo a ignoram e alguns a contestam” (1977, p.
226):
Meio século mais tarde, Bastide atribui à influência cató-
lica a recusa do incesto pelos seus informantes. Iemanjá seria
“identificada frequentemente com a Imaculada Conceição.
Como, nesse caso, aceitar que ela tenha esposado o irmão
(Aganjú) e que tenha sido violada depois por seu próprio filho?
O mito do nascimento dos principais orixás saindo do ventre
de Iemanjá que se abre (...) choca a mentalidade mais puritana
do negro brasileiro de hoje” (1971, p. 354).
A primeira hipótese que ocorre é que a lenda de Iemanjá
violentada por Orungan seria fruto, digamos assim, da
capacidade criadora do Pe. Baudin, ampliada e enriquecida
pelas contribuições pessoais de Ellis. Essa parece ser a posição
de Verger (1982), e o fato de Nina Rodrigues, tão atento ao
DE IyÁ MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS DA LIBIDO 27

discurso de seus informantes, velhos africanos de raiz, nada


ter encontrado entre eles a esse respeito parece depor a favor
dessa hipótese.
Seja como for, o papel dos pesquisadores como difusores
de mitos não pode ser subestimado. Como bem observou Motta
(1982, p. 3), “o candomblé busca sua teologia nos estudos
antropológicos. Assumimos o papel de doutores da igreja”, e,
acrescentaria eu, é comum encontrar, nos terreiros mais
recentes, estantes com as obras dos principais pesquisadores
da área. Esses escritos passam a representar fonte de
conhecimentos litúrgicos e míticos. Deste modo, é de esperar-
se que, embora discutível, essa lenda de Iemanjá tenha sido
absorvida pelo grupo religioso, passando portanto a integrar
o seu acervo mítico. Será que isso ocorre?
Em minha experiência de campo, este não é um tema
frequentemente explicitado. Somente encontrei referências em
relação não a Orungan, que parece praticamente desco-
nhecido, mas a Xangô, e sem contexto de mito de origem, tal
como foi contado por Baudin e Ellis. O mesmo pai-de-santo
que citei acima, informante quase incansável de tudo que diz
respeito à vida amorosa de Xangô, contou:
“A primeira mulher que Xangô teve como homem foi a
mãe dele, Iemanjá. Foi por isso que Oxalá falou: já que vocês
são dois carneiros que bebem da mesma cuia, vão ficar juntos
para sempre”, daí o assento de Iemanjá é sempre ao lado de
Xangô.”
É fato que esse assento de Iemanjá, junto com o de Oxum
e de Iansã, é colocado no “quarto” de Xangô. Mas não é menos
verdade que o assento de Nanã acompanha igualmente o dos
filhos Omolu e Oxumarê, sem que nenhuma implicação de
incesto nos tenha sido colocada em relação a essa deusa.
Em Cuba, Lydia Cabrera (citada por Verger, 1957, p. 294)
ouviu quem contasse que Iemanjá abandonou seu filho Xangô
e Obatalá o criou: “Mais tarde, ele quis namorar Iemanjá, não
28 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

sabia que era a mãe dele.” Recolhendo informações no muito


ortodoxo templo do Axé Opó Afonjá, em São Gonçalo do Retiro,
Bahia, Lépine comenta, a respeito de-Iyá Massé: “Dizem que
ela teve um caso incestuoso com Sangô, que “comeu a mãe?”
(1978, p. 186). Como se vê, o tema do incesto parece ter sido
definitivamente incorporado ao repertório mítico do can-
domblé, e Iemanjá, por essa situação de transgressão, vê sua
imagem acrescida de todos os poderes e perigos inerentes à
força das antigas !yá mi.
Ao aceitar o filho como amante, Iemanjá estabelece o
círculo da auto-suficiência. É como se fosse recuperada a
inteireza das Mães primordiais, “que têm tudo dentro de seu
ser?. Os mitos do candomblé tradicional assumem, portanto,
diversos aspectos da sexualidade feminina como totalidade.

2. A moralização de Iemanjá e a invenção da Pomba-gira

Foi Bastide quem chamou a atenção sobre a “morali-


zação” acentuada a que vinha sendo submetida a figura de
Iemanjá, atribuindo-a ao sincretismo com a Imaculada
Conceição. Como vimos, no entanto, o candomblé tradicional
mantém bem vivas as características das Mães Ancestrais e
parece que tal “moralização”, ou seja, o despojamento dos
aspectos mais explicitamente sexuais, tem sido, nitidamente,
obra da umbanda.
Sabe-se que a umbanda incorpora em seu acervo
elementos de diversas tradições religiosas presentes no Brasil,
particularmente de origem africana, indigena, católica,
espírita e ocultista. Ao longo dos anos, foi-se diversificando e,
ainda hoje, apresenta-se em contínuo processo de
transformação. Se, no seu início, podia ser vista como tentativa
de “valorizar a macumba através do espiritismo” (Bastide,
1971, p. 439), adequando-se aos valores da classe média
emergente nos anos trinta, a tal ponto que Ortiz pôde detectar
DE Iyá MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS DA LIBIDO 29
sinais de “morte branca do feiticeiro negro” (1978), agora
está sofrendo processo inverso de “candomblezação”, que
parece refletir o prestígio que o candomblé vem recentemente
obtendo junto à sociedade mais ampla.
No Rio de Janeiro, entre outros desdobramentos, a
umbanda deu origem a um culto específico, o “iemanjismo”,
e sua grande festa, na última noite do ano, foi incorporada
recentemente ao calendário oficial do Estado do Rio. A
representação de Iemanjá que se vem difundindo superou em
muito a imagem antiga da sereia ou da grande mãe cujos seios
descem até o chão. É uma moça branca, linda, de cabelos
compridos, com vestido branco azulado que sai do mar, cheia
de luz. Essa imagem impôs-se como única representação de
Iemanjá, a ponto de moldar a expressão corporal de suas
sacerdotisas, conforme observou Fry:
A mãe-de-santo se colocou em frente ao altar vestida com
uma saia longa de lamê prateado e blusa de cetim azul. Ao
receber os fluidos de Iemanjá, assumiu a postura corporal da
conhecida representação pictórica desse orixá, com os braços
levemente erguidos. Logo em seguida, começou a cantar com
uma voz redonda e afinada e com trêmulo de cantora de ópera.
A melodia era a Ave Maria de Gounod (1982, p. 14).
A assimilação de Iemanjá, mãe de todos os orixás, com
Nossa Senhora, mãe de Deus, torna-se patente. A curiosa
coletânea reunida por Zora Seljan (1973) bem mostra a
amplitude que o culto foi ganhando ao longo dos anos na cidade
do Rio de Janeiro. De acordo com Labanca (1973), foi a partir
do ano de 1952 que a oferenda no mar e nas praias começou
a ser feita publicamente. Mais precisamente, a noite do 31 de
janeiro de 1957 marcou o primeiro grande culto organizado
na praia do Leme, sob a licença de Tancredo da Silva Pinto,
umbandista ilustre. Daí para diante, o culto a Iemanjá tem-se
tornado cada vez mais visível, espalhando-se das praias do
Rio de Janeiro para o resto do Brasil.
30 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Paralelamente, parece que essa expansão se acompanhou


de um processo de condensação, na figura de Iemanjá, de todas
as características das diversas entidades femininas da um-
banda. Uma publicação recente (Cortez, 1987, p. 16) afirma
que “é sincretizada com diversas Nossas Senhoras e a legião
de espíritos ligada a ela reúne as caboclas Yara, Indayá, Nanã-
Buruku, Estrela-do-Mar, Oxum, Iansã e Sereia do Mar”. Vale
dizer: embora se afirme a permanência das deusas oriundas
das religiões africanas e indígenas, seu poder está submisso
ao de Iemanjá, que passa a representar excelso modelo de
figura feminina.
Ainda que apresente traços sedutores (vestido colante),
Iemanjá é antes de tudo a mãe boa, desafricanizada, espiri-
tualizada, “vibração do mar”. Perdeu qualquer característica
concreta que possa aludir a uma mulher real. E, do ponto de
vista que nos interessa aqui, é pura sublimação da sexualidade.
Contrastando com essa figura quase imaterial, vem
aparecendo, no cenário de umbanda, uma entidade que, em
todos os aspectos, é o seu contrário, a Pomba-gira. É bem
verdade, que, frequentemente, o discurso dos umbandistas
tende a situar a Pomba-gira como entidade que pertence à
quimbanda, ou seja, área da magia negra. No entanto, a
observação de campo ensina que umbanda e quimbanda na
realidade não se apresentam como cultos tão distintos assim,
e aqui será assumido o ponto de vista desenvolvido por Birman
(1983a) conforme o qual a quimbanda constitui uma categoria
de acusação dentro da própria umbanda.
No caso preciso da Pomba-gira, é óbvio que sua inclu-
são numa vertente vista de antemão como desprezível, negativa
e comprometida com o mais “baixo espiritismo” só vem re-
forçar a importância de sua imagem em contraposição à
lemanjá da “umbanda branca”. Mais chamativo ainda é o fato
de que se trata de uma pura criação carioca, consistindo no
desvirtuamento, por assim dizer, do nome de uma divindade
DE Iyá MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS DA LIBIDO 31

masculina, equivalente congo do Exu iorubá, transformado de


repente na mais sensual e agressiva entidade dos terreiros
fluminenses.
Não se dispõe, por enquanto, de dados históricos que
permitam situar com exatidão a época de seu aparecimento.
Pesquisadores que escreveram nos anos trinta sobre a
“macumba carioca”, como Arthur Ramos (1934), ou “negros
bantos” como Édison Carneiro (1937), não lhe fazem
referência. Em seu sempre clássico Candomblés da Bahia, cuja
primeira edição é de 1948, Carneiro assinala contudo o nome
de Bombojira, pelo qual é invocado Exu em candomblés de
nação Congo.
“Bombojira, vem tomar xôx6” (Carneiro, 1961, p. 83),
convidando o homem da rua a vir receber seu despacho. Do
mesmo modo, Waldemar Valente indica Bambojira (sic) como
um dos nomes de Exu nos xangôs de Recife (1977, p. 101).
Bastide, por sua vez, estabelece quadro comparativo de
correspondências entre orixás nagôs, voduns jejes e inquices
dos Angolas e dos Congos, alistando entre estes últimos o nome
de Bombongira, equivalente de Exu/Legba (1971, p. 272). Mas
quando descreve o grande desenvolvimento da umbanda nos
anos cinquenta, não registra a presença de Pomba-gira entre
as entidades, sejam da “macumba urbana”, sejam da “nova
religião”.
Chegando no Brasil em 1961, contudo, encontrei o culto
da Pomba-gira bem estabelecido no Rio de Janeiro, e cabe
perguntar por que pesquisadores como Carneiro, no Rio, e
Bastide, em São Paulo, deixaram de perceber a importância
dessa figura entre os ritos populares. É possível que seu fascínio
pelo candomblé jeje-nagô tenha obnubilado sua visão de cultos
de origem bantu e, como bem mostrou Negrão (1986) a
respeito de Bastide, canalizou suas energias para o fortale-
cimento do padrão nagô de qualidade. Até onde foi possível
verificar, aliás somente trabalhos recentes de jovens antro-
32 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

pólogos vêm dando destaque à pesquisa da umbanda e,


consequentemente, assinalam o papel da Pomba-gira. Mesmo
assim, raríssimos são os artigos em que a mesma é focalizada
como figura central da investigação (Cotins e Goldman, 1984;
Birman, 1983b e1985). As notas que seguem devem, portanto,
ser lidas como tentativa de sistematização que visa sobretudo
a levantar questões em torno das significações simbólicas que
acompanham a imagem mítica da Pomba-gira.
A transformação de Bombojira, equivalente congo do Exu
iorubá, deus fálico, mediador e frickster, em divindade
feminina, está por merecer estudo específico. Nesse fenômeno,
poder-se-ia talvez encontrar algum eco das teorias de F. Max
Muller (cf. Augras, 1967, pp. 6-7), que via no mito uma
“doença da linguagem” e postulava que palavras ambíguas
geram deuses. Não parece haver dúvidas de que o nome de
Pomba-gira resulta de um processo de dissimilação que
primeiro transforma Bombonjira em Bombagira, depois, em
Pomba-gira, recuperando assim palavras que possam fazer
sentido em português. Pois a “gira”, palavra de origem bantu
(njila/njira, “rumo, caminho”, segundo Castro, 1938, p. 100)
remetida ao português girar, é, como sabemos, a roda ritual
da umbanda. E “pomba”, por sua vez, além de ave, designa
também órgãos genitais, masculino no Nordeste e feminino
no Sul. Até no nome, aparecem a ambiguidade e a referência
sexual. Nos terreiros do Rio de Janeiro, porém, a Pomba-gira
nada tem de masculino. É um Exu fêmea.
A literatura especializada é bem explícita a esse
respeito. “A mulher de Exu, ou a fêmea é Pomba-gira ou
Bombo-Gira?”, escreve Teixeira Neto (s/d, p. 30), que tem,
como se vê, referências eruditas. De acordo com esse autor,
seriam três as modalidades fundamentais de Pomba-gira.
Além da entidade propriamente dita, há mulheres que,
“quando desencarnadas, entregam-se a sete Exus e assim
também passam a se apresentar como pertencentes ao povo
de Pomba-gira” (ibid, p. 31, grifo do autor). Além deste, há
DE Iyá MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS DA LIBIDO 33
também o caso de mulher “que, em vida, tenha-se excedido,
qual verdadeira Messalina, na prática de atos sexuais, ao
desencarnar, poderá muito bem passar a se apresentar como
Pomba-gira” (ibid. p. 33). Vale dizer, o povo de Pomba-gira
é formado por espíritos de mulheres que se entregaram à
fornicação, seja em vida, seja depois da morte.
Outro autor afirma que “Pomba-gira, Exu mulher, assim
denominada em nossa lei, é a entidade conhecida na umbanda
e na quimbanda como mulher de 7 Exus (...) obtendo, desta
forma, a força e a ajuda necessárias de seus companheiros
(maridos)” (Molina, 1, p. 13). É interessante a oposição. Tei-
xeira Neto apresenta uma Pomba-gira que possui poder por si
só, ainda que ela esteja subordinada diretamente a Exu Calunga
(intermediário, por sua vez, de Exu Marabô, Exu Mangueira,
Exu Tranca-Rua, Exu Tiriri, Exu Veludo e Exu dos Rios), e
comênta que sendo ela “a única mulher ou o único Exu
feminino existente ao lado de 17 outros “pode-se imaginar” o
que Ela pode fazer, ou, se preferirem, o de que Ela é capaz”
(s/d, p. 38). Para Molina, ao contrário, esse poder lhe advém
dos seus sete maridos. Em outras palavras, o poder feminino é,
nessa perspectiva, simples emanação do poder masculino. Em
nível da prática concreta, porém, os dois aspectos se confun-
dem. Pomba-gira é poderosa por ter sete maridos ao mesmo
tempo, o que não é dado a qualquer uma. Diz o ponto:
Pomba-gira é
Mulher de sete marido!
Não mexa com Ela,
Pomba-gira é um perigo! (Teixeira Neto, p. 91).
Fica portanto em aberto a questão de saber se é o fato de
ter sete maridos que a torna perigosa ou se o poder de sua
sedução é tão forte que lhe garante a posse dos sete.
Em todo o caso, o perigo é claramente relacionado com a
sexualidade. “Trata-se de uma entidade perigosa sob muitos
aspectos, por isso que em sua atuação nas criaturas humanas
34 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORRO E DA ALMA

encarnadas baseia-se in totum no sexo” (ibid, p. 33, grifo


meu). A capa do livro de Teixeira Neto 4 magia e os encantos
da Pomba-gira retrata uma dançarina de cabaré, com a mímica
bastante obscena, rodeada de borboletas, das quais a maior
representa claramente uma vulva, a própria “pomba”. Insiste
ainda esse autor: “Quando incorporada, a Pomba-Gira dá a
seu médium uma aparência onde a vibração do sexo, da
luxúria, dos desejos carnais, da lascívia, pois, é por demais
acentuada?” (1bid, p. 39).
É portanto Pomba-gira sinônimo de lascívia, e parece
que o maior perigo reside no fato de que “todo médium do
sexo feminino tem uma Pomba-gira ao seu lado” (Molina, p.
17). É voz corrente nos terreiros que muitas oferendas são
feitas para mulheres que “têm Pomba-gira de frente”, o que
significa, fatalmente, forte impulso para ter vida sexual
desregrada. Por esse motivo, a oferenda visa a apaziguar a
terrível entidade, de modo que ela dê descanso às pobres moças,
permitindo-lhes vida mais decente.
Vê-se que a Pomba-gira, embora entidade ligada à
desordem, pode também ser controlada pelas normas da boa
sociedade. Esse duplo movimento, muito bem colocado em
evidência por Birman (1938a), parece constituir um dos
principais motores da umbanda. As entidades que promovem
a subversão são recuperadas para favorecer a ordem vigente.
O controle social das entidades enquadradas na categoria de
quimbanda parece aliás constituir preocupação constante dos
dirigentes umbandistas:
Não permita em seu terreiro a talsa concepção de Pomba-
gira como sendo uma mulher prostituída; vamos abolir este
absurdo, esclarecendo aos médiuns sua real e verdadeira ação
nos trabalhos de magia; retirem as estátuas que apresentam
uma mulher de peito nu, pois isto é absurdo, cegueira e atraso
espiritual (Jorge de Oliveira, 1971, citado por Ortiz, 1978,
p. 146).
DE Iyá MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS DA LIBIDO 35
Atendendo a esta preocupação, algumas informantes de
Trindade podem afirmar que “a Pomba-gira que eu recebo é
pacífica, humilde, não é chegada aos homens” (1985, p. 55) ou
ainda que Maria Padilha, Pomba-gira das mais destacadas, “em
vida, era uma professora, tinha conhecimentos, pessoa elegante.
Embora prostituta, sabia e sabe se portar como uma senhora,
por isso ela só quer coisas brancas” (ibid, p. 50). É curioso esse
amálgama de categorias aparentemente contrastantes. Prostituta
é “mulher da rua”; opõe-se à figura da mulher que permanece
trabalhando no recesso do lar. Retomando a oposição tão bem
identificada por DaMatta (1985) entre a casa e a rua, poder-
se-ia observar que a professora é a mulher que trabalha “fora”,
mas desempenha atividade de cunho paramaternal, por assim
dizer, já que visa a aprimorar a educação das crianças. Nesse
sentido, vê-se que-a categoria “professora” não se opõe à
categoria “prostituta” de modo tão contrastado como poderia
parecer. É-lhe complementar. Sem falar de todas as fantasias
veiculadas pela imagem da professora solteira, e portanto
disponível, nem da designação clássica da “tia”, que ao mesmo
tempo situa-se no referencial familiar e sublinha a sua
marginalidade em relação à mulher produtora de filhos, a figura
da professora parece atuar como intermediária entre a mulher
de rua e a mulher do lar. É a quase-mãe (mas não é mãe),
pertence ao mundo de fora da casa (mas não é da rua), e sua
marginalidade é compensada pelo saber. É este o caso dessa
Maria Padilha, que, embora prostituta, comporta-se “como uma
senhora” que só quer coisas finas.
A preferência por “coisas brancas”, além de evidenciar
os valores racistas da sociedade mais ampla, onde “branco” é
necessariamente sinônimo de “fino”, parece ilustrar mais uma
tentativa daquilo que chamei “pasteurização” das divindades
representantes do poder sexual feminino.
O depoimento acima ilustra claramente o processo de
recuperação das entidades que promovem a desordem, para
afinal reafirmar os valores tradicionais da sociedade patriarcal.
36 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

A Pomba-gira, no entanto, parece atender a muitos


aspectos reprimidos, que clamorosamente pedem passagem e,
nos terreiros, seu comportamento permanece escandaloso.
Incorporada, ela declara:
“Eu sou eterna (...) tudo que existe no mundo, da
maconha à bagunça, é o meu reino (...). Quando uma mulher
se perde, dou gargalhada, quando um homem vira efeminado,
eu dou gargalhada, porque meu mundo é bom e bonito. Pra
mim tudo está bem porque eu não tenho mais nada a perder”
(ibid, p. 127). É a própria assunção de tudo o que é considerado
marginal pela sociedade brasileira. Além de eterna, seu nome
é legião. Diz Teixeira Neto que há milhares de Pombas-giras e
Molina informa que para cada Pomba-gira “batizada”, isto é,
com nome identificável, há mais sete sem nome, “conhecidas
como obsessores” (1, p. 11). Não há possibilidade de estabe-
lecer listas exaustivas das diversas entidades, mas são bastante
conhecidas e cultuadas a Pomba-gira Cigana, Maria Molambo,
Maria Padilha, Rosa Caveira, Maria Quitéria, Pomba Rainha,
Pomba-gira Menina, Pomba-gira da Porteira, do Cruzeiro, da
Calunga, da Praia, da Sepultura, das Almas, das Sete
Encruzilhadas, e Pomba-gira Arripiada (sic).
Todas elas têm em comum o uso das cores vermelha e
preta (acrescidas de branco quando se trata de Pomba-gira
“cruzada” com a linha das almas), a oferenda de rosas
vermelhas (sempre bem abertas, nada de botão), bebidas que
vão de cachaça a champanhe (conforme o grau de “fineza” da
entidade), velas, toalhas, cigarros ou cigarrilhas em despachos
preferencialmente “arriados” na sexta-feira, à meia-noite,
“hora grande, a de maior força” (Molina, 1, p. 21).
O local do despacho varia com a “qualidade” da Pomba-
gira e o tipo de “trabalho” que se lhe pede. Basicamente, as
solicitações podem ser agrupadas em duas categorias de
pedidos, de ajuda ou de demanda. A Pomba-gira Cigana, por
exemplo, encarrega-se de resolver casos na Justiça, Maria
DE Iyá MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS DA LIBIDO 37
Padilha atende problemas de vida conjugal, Pomba-gira Rainha
lida com casos de amor, Rosa Caveira atende pedidos “relativos
a doenças materiais e espirituais” (Teixeira Neto, p. 53).
Outras, como Maria Molambo, são especialistas em solucionar
casos de inveja, mas a impressão que se tem, ao percorrer a
literatura especializada, é que praticamente todas atendem
tanto às. pessoas que querem ser ajudadas quanto às que
desejam prejudicar alguém. Como diz um de seus pontos,
Ela trabalha pro bem
mas também trabalha pro mal.
Chama a atenção o fato de que, embora a representação
da Pomba-gira enfatize seus aspectos de mulher sexualmente
ativa, a maioria dos trabalhos realizados por ela são vinculados
a temas de morte, com forte predomínio de despachos
realizados em cemitério. São os casos de Rosa Caveira (que
trabalha sob as ordens diretas de Omolu, dono do cemitério
na umbanda), Pomba-gira das Sete Encruzilhadas, Pomba-gira
do Cruzeiro, da Porteira, da Calunga (que é o nome do
cemitério entre os adeptos), e Maria Padilha. O culto a esta
última tem-se desenvolvido de tal maneira que chega às vezes
a ser considerada uma entidade à parte, separada da Pomba-
gira. Merece por isso especial destaque.”
De início, afirma-se sua característica de representante
do poder feminino:
Maria Padilha,
Rainha do Candomblé

2. Devo à invulgar erudição do prof. Roberto Motta, da Fundação Joaquim Nabuco,


a observação de que Maria Padilha já aparece como entidade cigana no livro de
Mérimeé, Carmem, publicado em 1845: “Ela cantava algumas dessas canções
mágicas onde evocam Maria Padilha, amante de D. Pedro, que, dizem, foi a Bari
Crallisa, ou seja, grande rainha dos ciganos” (Mérimée, P. Carmem, Monaco, Ed.
du Rocher, 1947, p. 180). A partir dessa indicação, foi fácil verificar que Maria
Padilha é, de fato, personagem histórica, amante de Pedro I, rei de Castela (1350-
1369). A transformação de uma figura da história espanhola em rainha de
quimbanda está por merecer investigação específica.
38 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Firma Curimba,
Que tá chegando muié
Considerada como “uma das mais poderosas orixás da
quimbanda”, muito traz de Iansã” (Teixeira Neto, p. 97).
Interessante é ver ressurgir a referência ao candomblé e aos
orixás, ao se tratar da temível “Rainha dos 7 cruzeiros da
Calunga”. Molina, que lhe dedicou um livro inteiro, Saravá
Maria Padilha, lembra que Iansã é a rainha dos Eguns e, por
conseguinte, deve ser homenageada em cada trabalho feito em
cemitério. Psicografando o depoimento da própria Maria
Padilha, realça os diversos aspectos de seu poder.
Saravá Maria Padilha, grande Oxirá da quimbanda.
Quando cruzada com as Almas, muita luz e força tem o
dar na umbanda (..)
Não me interesso muito por presentes, mas sim por
guerra (...) Se demora, o inimigo também tem defesa, e vamos
ver quem tem mais garrata para encher (...)
Eu ajudo a ser formosa, não existe um burro meu feio,
todas são mulheres bonitas e invejadas (...)
Não gosto de muita conversa, e digo logo a verdade, se
otendo, xingo gostoso, com nome muito gostoso, que até açúcar
tem, faço-o com proveito...” (Molina, 2, pp. 20-27).
É mulher bonita, atrevida, guerreira. Pôe o mundo de
cabeça para baixo. Ofende e transforma o xingamento em doce.
Assume a quimbanda para iluminar a umbanda. Sua morada
são as encruzilhadas do cemitério. Cheia de vida, é a própria
rainha da morte.
De acordo com Molina, Maria Padilha já viveu diversas
encarnações neste planeta, “é conhecida e chamada na
umbanda e na quimbanda como um Exu-Egum, que vem a ser
espírito de morto” (ibid, p. 17). Resulta curioso esse típico
processo do sincretismo, que cristaliza na mesma repre-
sentação um orixá nagô e um espírito ancestral, para designar
DE Iyá MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS DA LIBIDO 39

uma entidade feminina. Sabe-se que o culto tradicional dos


Egungun é estritamente masculino, desde que Oxalá roubou
de Nanã o poder que tinha sobre os mortos.
Nessa ordem de idéias, parece que Maria Padilha de
alguma maneira vem a resgatar o antigo poder terrível das Iyá
mi. Tal como Nanã fazia antigamente, quando castigava os
maridos faltosos, mandando os eguns assustá-los (Augras,
1983, p. 137), Maria Padilha hoje avisa:
Jogo muito eguns
Em cima de vagabundos (Molina, 2, p. 90).
O poder total, completo, ambivalente das 1yá mi parece
ressurgir nas proclamações de Maria Padilha:
Saravá Menino Exu.
Saravá minha estrela.
Saravá meu garfo e minha caveira.
Saravá a menga grande que há de correr do inimigo
CGbidvo. 29):
Os aspectos fálicos são claramente assumidos, a ligação
com a morte também, e a menga, o grande fluxo de sangue
em que se esvairá o inimigo, além de sua expressão expli-
citamente guerreira, parece afirmar que no sangue que corre
é que reside o verdadeiro poder da mulher.
É como se assistíssemos ao retorno do reprimido. Todas
as representações moralizadas, todas as repressões dos aspectos
concretamente sexuados do poder feminino voltam nessa
figura selvagem da rainha das encruzilhadas.
Diz uma informante de Trindade (1985, p. 52): “Pomba-
gira morava na Freguesia do Ô. Ela se revoltou contra a
situação da mãe dela. Matou quatro homens e castrou um deles.
Matou os homens que exploravam a mãe dela. Acabou na
prostituição.”
Nessa pura criação do imaginário popular, a figura da
mãe prostituta somente pode ser resgatada pelo sacrifício do
40 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

poder masculino. Assim como para as “labás de espada”


matam-se bichos machos castrados, Pomba-gira teve de castrar
e matar para libertar a mãe. Mas, no mundo patriarcal, não é
permitida a livre expressão do poder feminino e, em conse-
quência, ela acabou tornando-se prostituta.
A figura da Pomba-gira, ao mesmo tempo que afirma a
realidade da sexualidade feminina, devolve-a ao império da
marginalidade.
Seu reino é a encruzilhada, a praia, a soleira da porta
que compartilha com Exu, mas seu território privilegiado é
na verdade o cemitério. Além da clássica ligação entre Eros e
Tanatos, essa preferência parece aludir às características
próprias do cemitério como lugar de ausência e presença,
situado dentro e fora do tempo, espaço liminar por excelência,
onde a rígida ordenação das sepulturas mal consegue disfarçar
a intolerável desordem da morte. Sabe-se, desde Douglas
(1976), que todas as margens são perigosas e também
carregadas de imenso poder. Pomba-gira, rainha da
marginália, tem sua morada no corpo das mulheres, nos
lugares de passagem de um ponto para outro ou deste mundo
para além. Maria Molambo, mais especificamente, assume às
claras a ligação com aquilo que a sociedade rejeita para a
periferia. Chamada também de Pomba-gira da Lixeira, recebe
despachos arriados nas bordas dos depósitos de lixo, local onde
fica rondando. Um de seus pontos mostra que ela também está
ligada aos espíritos dos mortos, o que viria sugerir alguma
semelhança (desagradável, ainda que inevitável) entre depósito
de lixo e cemitério:
Mas que caminho tão escuro
Que vai passando aquela moça
Com seus farrapos de chita
Estalando osso por osso (Molina, 1, p. 107).
Maria Molambo, tal como suas irmãs Rosa Caveira, Maria
Padilha, Rainhas do Cruzeiro e da Calunga, reúne em si a
DE Iyá MI A POMBA-GIRA: TRANSFORMAÇÕES E SÍMBOLOS DA LIBIDO 41
escuridão, a sujeira, a desagregação, a presença da morte. Seus
trabalhos são de demanda, isto é, de magia destinada a fazer o
mal.
Parece que, nesse ponto, reencontramos os atributos das
velhas feiticeiras, que se bastam a si próprias, e por isso são
tão perigosas:
Pomba-gira da Calunga
Não é mulher de ninguém
Quando entra na demanda
Só sai por sete vintém (Molina, 1, p. 107).
Mas enquanto as Ajé representam aquela parte obscura
e indômita que, por assim dizer, sobrou quando Iyá mi se foi
personificando em divindades diversas, o povo da Pomba-gira,
em sua multiplicidade, religa sexualidade ativa e feitiçaria.
Na “umbanda branca”, afirma-se a imagem etérea de Iemanjá,
mãe pura e luminosa, mas logo atrás perfila-se sua contra-
partida, dançando despudoradamente, soltando gargalhada,
trabalhando tanto para o bem como para o mal, e, deste modo,
desempenhando papel de reativação da própria umbanda, para
a qual “muita força e luz tem para dar”.

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INVENTANDO A NATUREZA:
Família, Sexo e Gênero no Xangô do Recife!

Rita Laura SEGATO*

Introdução

Cada sociedade humana ou época tem, manifestamente,


um número de preocupações ou temas em torno dos quais são
construídas partes significativas de seus sistemas simbólicos.
O trabalho do antropólogo, como intérprete, consiste em
detectá-los, expor analiticamente a maneira como eles são tra-
tados na cultura em questão e iluminar a forma como orien-
tam a interação social. Como tentarei demonstrar, nos cultos
xangô da tradição nagô, um dos motivos recorrentes nas re-

1. Este artigo divulga alguns aspectos da vida dos membros de casas de culto nagô
do Recife abordados na minha tese de doutoramento (Segato, 1984). A tese teve
por tema central o uso dos orixás nagô como rótulos de personalidade com rela-
ção a uma concepção do eu que é peculiar a estes cultos. O trabalho de campo foi
desenvolvido em três períodos: o primeiro foi de janeiro a junho de 1976; o se-
gundo, de julho a setembro de 1977; e o terceiro, de dezembro de 1979 a agosto
de 1980. Contei para a sua realização com verbas da Organização dos Estados
Americanos e dos auxílios de pesquisa de Wenner-Gren Foundation for
Anthropological Research, assim como respaldo institucional através de convê-
nios entre o Instituto Interamericano de Etnomusicologia y Folklore (INIDEF) de
Caracas, o Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais de Recife e o então
Centro Nacional de Referência Cultural (hoje Fundação Pró-Memória) de Brasília.
Agradeço a Alcida Rita Ramos e a José Jorge de Carvalho, que leram o texto ori-
ginal, seus comentários e sugestões.
Publicado originalmente em Anuário Antropológico 85, Rio de Janeiro.
Tempo Brasileiro, 1986, pp. 11-54.

* antropóloga, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de


Brasília, autora do livro Santos e daimones — o politeísmo afro-brasileiro e a
tradição arquetipal (Brasília, Ed. da Universidade de Brasília, 1995).
46 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA
presentações e na organização social dos seus membros é o
esforço sistemático de liberar as categorias de parentesco, de
personalidade, de gênero e sexualidade das determinações
biológicas e biogenéticas a que se encontram ligados na ideo-
logia dominante da sociedade brasileira, assim como remo-
ver a instituição do matrimônio da posição pivô que ela ocu-
pa na estrutura social, de acordo com essa ideologia. Estas
características da visão do mundo do xangô, parece-me, po-
dem ser relacionadas à experiência histórica da sociedade
escravocrata no Brasil, já que dela emergiu o grupo humano
que originou o culto.
Fui levada a prestar atenção a esta temática pela ênfase
espontânea dada, pelos membros com quem me relacionei, a
certos aspectos da sua vida social e da mitologia do xangô, e
pelos assuntos que despontam com maior frequência nas suas
conversas. Como tentarei demonstrar, tanto o princípio de
indeterminação biogenética como a concepção do matrimô-
nio e da família próprios do xangô podem ser identificados:
1) na prática de atribuir “santos-nomem?” e “santos-mulher”,
indistintamente, a homens e mulheres como tipos de persona-
lidade; 2) no tratamento dado pelos mitos aos papéis femini-
nos e masculinos dos orixás que formam o panteão e às relações
que estes mantêm entre si; 3) na visão crítica dos membros
com relação aos direitos derivados da maternidade de sangue
ou biogenética; 4) na importância dada à família fictícia que
é a “família-de-santo” e à adoção de “filhos de criação”, em
detrimento do parentesco baseado em laços de sangue; 5) na
definição dos papéis masculinos e femininos dentro da fami-
lia de santo; e 6) na bissexualidade da maioria dos membros
masculinos e femininos do culto, assim como nas noções rela-
tivas à sexualidade que se revelam no discurso e na prática.
Nas seções que seguem, passarei a referir-me a cada uma des-
tas questões apontando para o que elas têm de comum, e as
vincularei às vicissitudes da família negra durante o regime
de escravidão e depois dele, na tentativa de chegar à explica-
INVENTANDO A NATUREZA ... 47

ção histórica e contextual que permita fazer sentido desta vi-


são de mundo. Além disso, é importante ressaltar que os as-
pectos mencionados descrevem noções e comportamentos dos
membros iniciados ou iniciantes e não daquelas pessoas que
se aproximam do culto como clientes esporádicos em busca
de soluções para problemas específicos ou para solicitar uma
leitura do oráculo de búzios.
Antes de continuar, quero advertir que parte dos meus
dados poderá surpreender os estudiosos do assunto, como,
por exemplo, as minhas referências à aversão que muitos dos
meus informantes manifestaram, pelo caráter de Iemanjá e a
minha ênfase na homossexualidade, particularmente a fe-
minina, como um aspecto estrutural e não acidental ou su-
pérfluo para compreender a visão do mundo do culto. Com
respeito a Iemanjá, ela é sempre descrita na literatura como
o venerado orixá mãe, para quem esplêndidas oferendas flo-
rais são devotadamente depositadas em todas as praias do
Brasil. De acordo com meus informantes, esta é apenas a
faceta estereotipada do orixá, cujas qualidades negativas fi-
cam ocultas para o grande público. Sobre a homossexuali-
dade feminina, as mulheres dos cultos afro-brasileiros têm
sido descritas repetidamente como poderosas e independen-
tes (Landes, 1953, 1967; Bastide, 1978; Silverstein, 1979,
entre outros), mas pouco foi falado sobre sua sexualidade.
De fato, a alta incidência de homossexuais masculinos entre
os membros do culto já é bem conhecida, havendo sido apon-
tada e analisada em muitos trabalhos antropológicos sobre
ela em várias cidades do Brasil (Landes, 1940, 1967; Bastide,
1945, pp. 93-94; Ribeiro, 1969; Leacock e Leacock, 1975;
Fry, 1977, entre outros), enquanto a presença de comporta-
mento homossexual entre as mulheres tem sido menos
divulgada e mereceu não mais que umas três linhas no total
da vasta literatura sobre religiões afro-brasileiras (Ribeiro,
1970, p. 129; Fry, 1977, p. 121). Contudo, durante o meu
terceiro período de campo no Recife, depois de ter morado
48 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA
alguns meses dentro de uma casa de culto, e como resultado
da minha crescente intimidade com o povo do santo, vim a
saber sobre a prática tradicional e muito generalizada de
amor sáfico entre a grande maioria das filhas-de-santo das
casas em que trabalhei. Estas mulheres são, geralmente,
bissexuais e são raros os casos de homossexualidade exclusi-
va. A homossexualidade feminina constitui uma tradição, um
costume transmitido de geração a geração e, de acordo com
as minhas observações, as mães não a escondem dos seus fi-
lhos, e até seus parceiros masculinos são cientes dela. A sua
negação, por parte de alguns pais ou mães-de-santo interes-
sados em adquirir boa reputação frente aos leigos que se
aproximam do culto, deve-se a que eles sabem da contradi-
ção existente entre este aspecto da tradição do xangô e o sis-
tema de valores dominantes na sociedade brasileira.
É possível que as peculiaridades do culto que mencio-
no, tais como a aversão a Iemanjá e a aceitação da homosse-
xualidade, estejam presentes no Recife. De fato, como se sabe,
existem diferenças que caracterizam o culto dos orixás em
cada uma das cidades onde ele existe. Por exemplo, alguns
orixás que são muito importantes e que, frequentemente,
descem em possessão em outras partes do país, como Odé
(Oxóssi), Obaluaiê, Nanã, Oxumaré e Exu, têm poucos ou
nenhum adepto dedicado exclusivamente ao seu culto na tra-
dição nagô do Recife. Também diferem os repertórios musi-
cais e os tambores usados. Mas práticas essenciais, como a
de atribuir um orixá a cada membro como patrão da sua
identidade pessoal e classificador da personalidade (o “dono
do ori” ou “dono da cabeça”, ver Bastide, 1973, p. 42, 1978,
pp. 257 e 280; Ribeiro, 1978, pp. 126-129; Motta, 1977, p.
17; Binon-Cossard, 1981; Lépine, 1981; Augras, 19883;
Verger, 1981; Segato, 1984), assim como o estilo de vida dos
membros do culto, parecem não exibir variações dramáticas
em lugares distantes. As diferenças apontadas pelos mem-
bros que costumam viajar fazem referência, sobretudo, ao
INVENTANDO A NATUREZA ... 49

código de etiqueta, aos comportamentos obrigatórios duran-


te rituais e, como já disse, aos oxirás que descem em posses-
são e são normalmente usados como modelos de identificação.
Contudo, os valores, noções e estilo de vida que os viageiros
do Recife dizem achar em casas de culto que visitam em ou-
tras cidades parecem-lhes perfeitamente compatíveis com os
seus próprios e permitem-lhes alcançar uma rápida familia-
ridade.

A Etnografia do Culto Xangô da Tradição Nagô

1. Os orixás como descritores femininos e masculinos da per-


sonalidade

Um dos aspectos fundamentais do culto é a relação de


equivalência que se estabelece entre seus membros e os orixás
(“santos”) do panteão sobre a base das similaridades de com-
portamento entre uns e outros. Desta maneira, os orixás ser-
vem como uma tipologia para classificar pessoas de acordo
com a sua personalidade.
No Recife, são seis os orixás, entre os quais, normal-
mente, se faz a escolha do santo a ser adscrito pelo processo
de iniciação que vincula, ritualmente e de maneira definiti-
va, cada novo membro ao seu “dono da cabeça”. Na maioria
dos casos, dentre estes seis, um segundo orixá ou “ajuntó” é
também apontado para completar o quadro das afinidades
espirituais do novo filho-de-santo. Destes seis, três são mas-
culinos e três, femininos e entendidos como sendo psicologi-
camente femininos ou masculinos, independentemente do seu
SEXO.
Geralmente, quando uma pessoa se aproxima pela pri-
meira vez de uma casa de culto, os membros da casa obser-
vam-lhe o comportamento e tentam dar-lhe o santo “de
cabeça”, isto é, intuir seu santo sem recorrer ao oráculo ou
50 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

jogo de búzios. Tanto o pai como a mãe-de-santo da casa


como outros membros se empenham nesta busca de simila-
ridades entre o recém-chegado e um dos orixás do panteão.
Nos casos em que é difícil definir o santo de entrada, mui-
tas vezes o que se faz é tentar entender se a pessoa tem um
“santo-homem” ou um “santo-mulher”. Para isto, alguns
aspectos são especialmente observados, tais como a expres-
são facial e a maneira como a pessoa parece tomar suas
decisões.
Deste modo, é possível dizer que os orixás, na sua pri-
meira subdivisão em masculinos e femininos, constituem es-
tereótipos de gênero. A oposição entre ambos os estereótipos
se baseia nuns poucos traços que cada grupo compartilha
com exclusividade. Os “santos-homens” — e, portanto, os fi-
lhos e filhas-de-santos-homens — são descritos como “autô-
nomos” na maneira de agir, e os “santos-mulher” como
“dependentes”. A “autonomia” é apontada como uma carac-
terística dos santos masculinos, mesmo no caso de Oxalufa,
o velho Orixalá, que é extremamente paciente e calmo; o
seu oposto, “dependência”, caracteriza os santos femininos,
mesmo no caso de Iansã, que tem um temperamento “quen-
te”, é voluntariosa, lutadora e agressiva. Embora a “autono-
mia”, entendida como a capacidade de tomar decisões e
resolver problemas sem necessitar de orientação ou estimu-
lo externo, seja vista como um traço vantajoso, diz-se que
ela faz as personalidades masculinas muito inflexíveis e re-
fratárias às críticas. Por outro lado, os filhos e filhas-de-san-
tos femininos têm a fraqueza de depender da aprovação ou
da direção dos outros e, em muitos casos, essa aprovação
constitui o objetivo mesmo das suas ações, mas se diz que
isto não só lhes permite procurar ajuda e conselho, como
também cooperar e engajar-se em empresas por outros lide-
radas. Devido às vantagens e desvantagens de cada um dos
grupos, o povo considera que é sempre melhor ter uma com-
binação de um santo masculino e um santo feminino como
INVENTANDO A NATUREZA ... 51

“dono da cabeça” e “ajuntó”, respectivamente, ou vice-ver-


sa.? De qualquer maneira, considera-se que todo membro
sempre tem uma personalidade predominantemente mascu-
lina ou feminina, a primeira apresentando uma fisionomia
“áspera” e a segunda traços faciais mais delicados.
Dentro de cada categoria, fala-se também em graus
relativos de feminilidade e masculinidade. Entre os orixás
mulher, Oxum, a filha mais nova, é considerada como
epítome do feminino: sensual, ingênua, dócil e infantil, de-
sejosa de curar, ajudar e cuidar dos fracos. Iemanjá é vista
como um pouco menos feminina porque é a mãe dos orixás
e é, por isso mesmo, mais velha e mais inibida. Apesar de
seus gestos meigos, ela mostra menos interesse em dar-se
ou prestar atenção nos outros. Ela é, em geral, mais distan-
te, e sua meiguice é interpretada, simplesmente, como “boas
maneiras” ou “polidez” no trato. No outro extremo, Iansã é
descrita como uma mulher masculina, com uma personali-
dade quase andrógina. Não poupa esforços para alcançar
os seus objetivos e, no papel de esposa de Xangô, é a sua
companheira e a colaboradora na guerra, mas não aceita
coabitar com ele. Mesmo assim, embora Iansã difira. dos
outros orixás femininos por seu temperamento agressivo e
sua vontade de vencer, ela ainda compartilha com eles a
disposição de acompanhar Xangô e cooperar com ele na

2. Uma mulher do culto que tinha dois santos femininos — Oxum e Iansã —
como “dono da cabeça” e “ajuntó” queixou-se de não ter um “santo-homem”,
dizendo:
Eu me sentiria muito mais segura se eu tivesse Xangô (seu terceiro santo)
em segundo lugar e não lansã, assim eu teria um homem a quem recorrer:
um (santo) homem é sempre um braço forte para sustentar-se. Iansã é uma
santa muito forte, muito decidida, mas ela não necessitou de um homem
(Xangô) para ir à querra?. ... Com duas santas mulheres eu sempre sinto
um vazio dentro de mim mesma que eu não consigo explicar. Então, quando
eu quero resolver um problema dificil, fixo meus pensamentos no meu
terceiro santo, Xangô, e parece que eu estou com ele, que atuo como ele.
Xangó é masculino, e quem é masculino é sempre mais autônomo, mais
capaz de tomar uma decisão rápida e se virar sozinho em qualquer situação.
52 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

empresa de conquistar a terra dos malês (um mito famoso


de Xangô), bem como no sentido de identidade que se defi-
ne como feminino.
Por outro lado, entre os santos-nomens, Ogum é visto
como epítome de masculinidade, o dono do trabalho e da guer-
ra, um homem solitário da floresta que não se relaciona hu-
manamente com ninguém; ele é tenso, sisudo, sério e objetivo.
Xangô é considerado como algo menos masculino que Ogum,
“já que é mais emocional e afetivo. Também ele teve que de-
pender umas poucas vezes da proteção do seu pai Orixalá e
de sua mãe Iemanjá. Finalmente, Orixalá, o pai de todos, ape-
sar de ser descrito como muito masculino no seu grau de au-
tonomia e na inflexibilidade das suas opiniões, exibe alguns
traços comuns a Iemanjá e a Oxum, tais como sua suavidade e
meiguice; é mais paciente e tolerante que Ogum ou Xangô.
Em síntese, embora Orixalá tenha grandes diferenças tem-
peramentais com relação a Ogum e a Xangô, é semelhante a
estes em sua percepção do eu como um agente eminentemen-
te autônomo. Portanto, a qualidade essencial para definir o
gênero da personalidade ainda não é o temperamento, mas o
sentido do eu como agente autônomo ou dependente. Só esta
última qualidade é entendida como um componente relevan-
te da identidade de gênero do sujeito, indicada pelo santo a
ele atribuído.
De fato, as qualidades classificadas dentro desta visão
de mundo como femininas e masculinas não diferem muito
dos estereótipos ocidentais de comportamento masculino e
feminino tal como eles são apresentados na literatura psico-
lógica (ver, por exemplo, Williams e Bennett, 1975; e uma
resenha em Archer e Lloyd, 1982). A abordagem do xangô
aproxima-se, também, da psicologia ocidental no seu reco-
nhecimento da existência de componentes masculinos e fe-
mininos na psique de homens e mulheres (Freud, 1962: ver
Mitchell, 1982, para uma análise atualizada da teoria
freudiana sobre a constituição bissexual da psique humana).
INVENTANDO A NATUREZA ... 53

A própria preferência do povo do xangô por uma combina-


ção de um santo masculino e um feminino “na cabeça” de
cada filho ou filha-de-santo parece também coincidir com
achados recentes da psicologia ocidental com respeito às van-
tagens que os indivíduos com personalidade “andrógena”
apresentam sobre aqueles que exibem atributos exclusiva-
mente masculinos ou femininos (Lipsitz Bem, 1974 e 1975;
Williams, 1979).
Apesar destas semelhanças, no entanto, o culto tem a
peculiaridade de colocar à disposição dos seus membros um
sistema de classificação de personalidades em predominante-
mente femininas e predominantemente masculinas, isolando
claramente este aspecto psicológico de outros componentes
da identidade de gênero da pessoa. De fato, o santo da pessoa
é independente, não só do seu sexo anatômico, mas também
da forma preferencial em que ela expressa a sua sexualidade,
isto é, da sua preferência por parceiros homossexuais ou he-
terossexuais (isto é bem enfatizado em Binon-Cossard, 1981,
p. 132). Eu mesma ouvi vários pais e mães-de-santo comentar
sobre o desejo de algumas mulheres e homossexuais masculi-
nos de serem iniciados como filhos de Oxum e criticarem tal
preferência por evidenciar uma ignorância dos “fundamen-
tos” de culto; segundo eles, Oxum viria a descrever a perso-
nalidade e não a sexualidade do filho. Por outro lado, há
homens de definida orientação heterossexual que são filhos
de Oxum, assim como não é incomum que um homossexual
tenha Ogum como dono da cabeça.
Finalmente, é conveniente advertir que não existe uma
preferência generalizada por santos femininos ou masculinos.
Cada um deles apresenta vantagens e desvantagens, virtudes e
defeitos, e cada um deles exibe um tipo de talento específico
que lhe permite exercer um estilo próprio de liderança. Nes-
se sentido, o culto difere do que Jean Miller (1979) descreve
como a desvalorização sofrida pelos atributos do caráter fe-
minino na cultura ocidental.
54 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

2. Papéis masculinos e femininos, e relações entre os mem-


bros da família mítica dos orixás

A família mítica dos orixás combina elementos típicos


da família patriarcal característica da classe dominante bra-
sileira com noções claramente não-patriarcais. Orixalá, o pai,
tem, por sua idade e posição, uma autoridade potencial sobre
as outras deidades, mas devido ao seu temperamento passivo,
quase feminino, só raramente ele exerce tal autoridade. De
fato, frequentemente sofre abusos de sua nora, lansã* e de sua
própria mulher, Iemanjá, que o “enganou” com um orixá de
idade superior, Orumilá, e teve uma filha, Oxum, como con-
sequência desta união.* Mas Orixalá, longe de rejeitá-la, ado-
tou Oxum e criou-a com os maiores cuidados. Esta filha de
criação se tornou, então, a favorita e a protegida do pai dos
orixás, retribuindo-lhe com muito afeição, cozinhando e la-
vando para ele, e atendendo solicitamente a todas as suas ne-
cessidades. É por isto que eles são tão apegados um ao outro.”
Iemanjá, a mãe, é reconhecida como estando na segun-
da posição de autoridade, mas é concebida como apática, falsa
e pouco disposta a atender as necessidades dos outros. Por-
tanto, a autoridade que ela possui como mãe dos orixás é

3. Dois episódios relatam abusos que lansã infligiu a Orixalá. Num deles, Iansã
tomou uma moringa pertencente a Orixalá (um elemento do assentamento ritual
deste orixá) e jogou-a ao mar (nada de Orixalá pode entrar em contato com sal
ou tocar as águas do mar). Noutra ocasião, encontrou Orixalá queixando-se de
uma ferida na perna e, dizendo que iria curá-lo, colocou-lhe sal e pimenta e
cobriu-lhe a ferida com uma venda. Em ambos os casos, abandonou Orixalá
chorando de dor e foi Oxum que veio socorrê-lo.

4. Diz-se que Iemanjá foi uma esposa falsa e fria para Orixalá, que não cuidava
dele nem tomava conta da casa e dos filhos. Comenta-se também que ela “enganou
o velho com Orumilá” (um orixá de “patente” superior à de Orixalá) e teve com
ele Oxum, que não é filha “legítima” de Orixalá, mas de criação.
5. Fala-se ainda de um outro caso de adoção paterna: Idou, um filho de Oxum,
teria sido criado nas florestas por Obaluaiê. Um dia, Oxum viu que Idoú tinha-se
convertido em um jovem forte e bonito e quis tê-lo de volta, mas este se negou a
voltar com a sua mãe legitima e preferiu ficar com Obaluaiê.
INVENTANDO A NATUREZA ... 55

vista pelos membros como um privilégio que ela tem sem


merecer. Oxum, pelo contrário, representa a mãe de criação
que toma conta dos filhos dos outros orixás. Diz-se que ela é
“provedora”, atende às necessidades dos outros e que, por-
tanto, merece o reconhecimento dado a uma mãe. Enquanto
nada senão obediência e respeito são oferecidos a Iemanjá,
carinho e gratidão são os sentimentos que Oxum desperta.
De fato, os adeptos do culto questionam em infindáveis con-
versas a maternidade “de sangue” como fonte de legitimida-
de para a autoridade de Iemanjá. Esta legitimidade e os
direitos que dela derivam são ativamente criticados, porque,
como se argumenta, fundem-se na sua função meramente
biogenética de procriadora. Só aqueles membros iniciados
como filhos ou filhas de Iemanjá divergem deste ponto de
vista e, na tradição nagô do Recife, eles são vistos, geralmen-
te, com certa antipatia. De acordo com os depoimentos, eles
são parecidos com Iemanjá por apelarem frequentemente a
privilégios e prerrogativas, assim como por seu apego às nor-
mas e às formalidades.º Este tipo de comportamento é asso-
ciado à maternidade “legítima” de Iemanjá em oposição à
maternidade “verdadeira” de Oxum.

6. Transcrevo aqui algumas das descrições que recolhi sobre Iemanjá e seus filhos:
C.: Eu não gosto de falar disto e, na verdade, poucas vezes revelei o que
penso sobre Iemanjá, mas eu já escutei mais de mil pessoas dizendo as
mesmas coisas: fui a São Paulo, fui ao Rio, e em todo lugar constato que as
pessoas têm a mesma opinião. Eu fico totalmente inibido na frente de um
filho de Iemanjá e não sou capaz de agir espontaneamente, não sinto
nenhuma vibração. É que eles são tão polidos! Você sabe o que a palavra
“mãe” quer dizer: ela dá aquela proteção, aquela cobertura e o filho se
sente inflado, dono da verdade. Por um lado, eles parecem muito calmos,
muito meigos, têm aquela humildade; mas no fundo eles são muito
arrogantes e você nunca sabe o que eles estão pensando. Eles jamais re velam
o que estão pensando de você. Eles têm é boas maneiras, mas não são
sinceros. Isto é exatamente o que significa ser mãe, a mentalidade de mãe:
se sentem superiores a todo mundo.

J: Quando eu estou na frente de um filho de Iemanjá nunca me sinto


cômoda. Parece que eles estão sempre julgando a gente. Parece que eles
falam com vocês só por boas maneiras, por obrigação. Eles nunca são
56 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Ogum, o filho mais velho, é descrito como aquele que


tem o direito à primogenitura e, portanto, à coroa. Ele tem as
maneiras, o porte e as responsabilidades de um rei.” Contudo,
Xangô, graças ao seu gênio, fez um truque e tomou a coroa de
Ogum, apesar de não possuir nenhuma das três qualidades
do irmão. Mais uma vez, o princípio do nascimento e do san-
gue é posto em dúvida. Iansã, segundo o mito, foi homem num
passado distante e tornou-se mulher em tempos mais recentes.

capazes de ajudara uma outra pessoa incondicionalmente. Não são abertos.


Quando eles dão uma pancada, é como a pancada do mar: a gente nunca
sabe de onde nem quando ela vem. Mas os filhos de Iemanjá nunca
anarquizam, nunca brigam ou se divertem livremente. Não gostam da
anarquia. Todos os orixás têm que render homenagem a Iemanjá, ainda
que não gostem dela, porque ela é mãe. Ela tem influência e autoridade
porque ela é mãe.
L: Um filho de Iemanjá jamais fala realmente bem de ninguém. Eles
parecem que estão se compadecendo pelos seus problemas, mas podem
estar rindo por trás. Você não pode ler a mente de um filho de lemanyjá:
são falsos. Muitos deles não podem ter sentimentos verdadeiros. Eles são
quadrados, contormistas, mesquinhos, escrupulosos, mas não duvidariam
em trair você para conseguir alguma coisa.

Lu (filha de Iemanjá): Jemanjá é melancólica mas é também feroz... Ela é


uma sereia, um ser misto, com suas qualidades: mulher e peixe. Ela tem
sobrevivido no fundo do mar por tanto tempo porque, apesar de ser mulher,
ela tem autoridade. Neste sentido, ela tem beleza por um lado, e ela domina
pelo outro. Ela é a rainha do mar, domina sobre os peixes. Ela tem uma
personalidade forte, autoritária, mas ela conserva suas boas maneiras, sua
meiguice. O povo diz que os filhos de Iemanjá são falsos, mas Isso é porque
eles têm uma aparência calma embora no fundo sejam grossos: mal-
humorados. Nesse sentido eles podem enganar.
7. Sobre Ogum, um membro me disse:
lemanjájá ia dar a coroa para Ogum, mas Xangô fez um truque e a coroa
ficou com Xangô. Ogum é muito conservador: Xangô é extrovertido,
charmoso, e se tornou rei. Mas Ogum ainda tem aquele ar de rei e Xangô
não tem. Ogum jamais perdeu a postura, a seriedade, o ar grave de um rei,
porque ele tem nobreza. Xangó é exatamente o contrário: ele é rei mas não
tem nada de rei. Você vê que os filhos de Ogum são sisudos, sérios.
8. O mito conta que Xangô, ávido por tomar a coroa de Ogum, deu a este um
sonifero no café e correu ao lugar onde a cerimônia ia ter lugar. Ali, Iemanjá
mandou apagar a luz para começar e ele, aproveitando a escuridão, cobriu-se
INVENTANDO A NATUREZA ... 57

Mas, como mulher, rejeita a maternidade e é descrita por al-


guns como estéril e por outros como tendo dado à luz filhos
que entregou a Oxum para criar (dar os filhos para criar é
mencionado como uma prática costumeira entre os orixás).
Além disso, Iansã comanda os espíritos dos mortos ou eguns, o
que é visto como a mais masculina de todas as tarefas possi-
veis (só homens podem oficiar e ajudar nos rituais dedicados
aos espíritos dos mortos); é descrita como um orixá guerreiro
que carrega uma espada e exibe um temperamento agressivo.
No extremo oposto, como já disse, Orixalá é visto como um
pai com temperamento feminino.
Finalmente, é interessante analisar o comportamento dos
dois casais constituídos: o de progenitores, formado por Orixalá
e Iemanjá, e o casal formado por Xangô e Iansã. Como mos-
trei, em ambos uma incompatibilidade essencial separa os
esposos. De acordo com os mitos, o casal progenitor é incom-
patível por suas diferenças quanto ao uso do sal. Enquanto
Iemanjá é no Brasil a dona do mar e das águas salgadas, Orixalá
abomina o sal, o mar e a comida salgada. Todas as comidas
para as oferendas de Orixalá são preparadas sem sal e se diz
que um filho ou filha deste santo pode chegar a morrer se
frequentar a praia ou se algum elemento ritual de seu santo
tocar a água do mar. Igualmente, Iansã e Xangô, apesar de
serem descritos como os únicos casados formalmente, discor-
dam ferozmente em relação ao carneiro e são também incom-
patíveis em relação ao mundo dos mortos. Por um lado, lansã
concordou em casar-se com Xangô legalmente, mas jamais
aceitou coabitar com ele porque Xangô come carneiro e Iansã

com uma pele de ovelha e sentou-se no trono. A pele de ovelha serviu para parecer-
se a Ogum na hora em que a mãe o tocasse, já que Ogum, por ser o primogênito,
é tido como um homem pré-histórico coberto de pêlos. Depois que Iemanjá
colocou a coroa sobre sua cabeça e as luzes voltaram, todo mundo viu que era
Xangô, mas já era tarde para voltar atrás. Os membros mostram a estampa de
São João menino coberto com a pele de ovelha com a representação sincrética
de Xangô. É interessante que Iemanjá, e não Orixalá, é quem entrega a coroa,
que legitima a investidura de rei.
58 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPQ E DA ALMA

abomina a mera menção ou o cheiro desse animal. Por outro


lado, Xangô é o único orixá que não pode entrar no “quarto
de balé” (quarto dos eguns ou espíritos dos mortos) e tem aver-
são à morte e aos eguns, espíritos sobre os quais, justamente,
reina Iansã. Todos os outros casais, tanto heterossexuais como
homossexuais, de que os mitos falam são instáveis. Xangô se-
duz Oxum, raptando-a do palácio de seu pai, segundo uns, ou
tomando-a de Ogum, segundo outros; mas eles mantiveram
uma relação esporádica como amantes. Iansã foi mulher de
Ogum, mas “foi embora com Xangô”. Oxum seduziu Iansã,
mas logo abandonou-a e, finalmente, algumas versões falam
de uma relação entre Ogum e Odé que, apesar disso, continua-
ram suas vidas solitárias na floresta.
Todas essas relações entre os orixás expressam uma ne-
gação consciente dos princípios sobre os quais a ideologia
dominante na sociedade brasileira baseia a constituição da
família. O matrimônio e o parentesco de sangue são removi-
dos da posição central que têm de acordo com esta ideologia.
Na seção anterior, ficou claro que o determinante natural do
sexo biológico é subvertido na definição do gênero da perso-
nalidade pela atribuição de um orixá à “cabeça” da pessoa.
Nesta seção, a determinação biológica dos papéis familiares
que a ideologia patriarcal pressupõe é sistematicamente sub-
vertida pelo aspecto andrógino de Iansã e pela passividade do
pai, e se evidencia, também, na presença de um caso de ado-
ção paterna por parte de Orixalá e na importância que assu-
me a relação entre este e a sua filha de criação, Oxum. Da
mesma forma, os direitos “de sangue” de Iemanjá e Ogum, a
primeira à posição de mãe e o segundo à posição de herdeiro,
são relativizados. Por outro lado, na incompatibilidade sim-
bólica dos casais míticos, expressam-se os conceitos relativos
ao matrimônio que caracterizam a visão de mundo do culto.
Nas próximas seções, tentarei mostrar como estes mesmos te-
mas reaparecem na organização social dos membros. Quero
deixar claro que não pretendo haver esgotado o conteúdo dos
INVENTANDO A NATUREZA ... : 59

xangô; extraí apenas aqueles fragmentos que são ordinaria-


mente invocados no curso da interação social, à guisa de co-
mentário por parte dos membros.

3. Matrimônio, família e família-de-santo entre os membros


do culto

Apesar de a família patriarcal ter sido sempre caracte-


rística das classes altas brasileiras, entre as classes baixas e,
particularmente, entre a população negra e mulata, se en-
contram formas de organização familiar similares aquelas tidas
como típicas do parentesco afro-americano. O povo do culto
reflete esta tendência e muitos membros pertencem a famili-
as do tipo descrito na literatura como “matrifocal”? (Smith,
1956), “família materna negra” (King, 1945), ou “unidade
doméstica consanguínea” (em oposição a “unidade doméstica
familiar”, Clarke, 1957). De qualquer maneira, a organiza-
ção das unidades domésticas apresenta uma variedade enor-
me de formas. A maior parte das casas é habitada por uma
combinação de pessoas relacionadas por parentesco consan-
gúineo, chamado de parentesco “legítimo” pelos membros do
culto, e pessoas não-relacionadas por parentesco de sangue.
Um padrão comum é, por exemplo, uma unidade do-
méstica tendo à cabeça uma mãe-de-santo, que poderá morar
com filhos de criação pertencentes a mais de uma geração, e/
ou alguns filhos “legítimos”. Alguns dos filhos de criação se-
rão, geralmente, também “filhos-de-santo” seus, assim como
outros filhos-de-santo poderão também estar morando na casa.
Ela poderá ou não ter um parceiro sexual masculino, moran-
do com ela ou visitando-a, e manter, simultaneamente, uma
parceira feminina. Como alternativa, ela poderá viver só em
parceria com outra mulher, que poderá atuar como “mãe pe-
quena” ou segunda pessoa a cargo da casa; este último é um
padrão muito comum. Poderá também haver outros morado-
60 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

res: amigos, parentes de sangue ou parentes “de santo”, que a


ajudarão nas tarefas necessárias.
Outras unidades são lideradas por pais-de-santo, embo-
ra menos frequentemente, porque o culto conta com mais
mulheres do que homens. Neste caso, o chefe da casa poderá
ter filhos “legítimos” e/ou filhos de criação, muitas vezes de
mais de uma geração, mais uma mulher ou um parceiro e,
por alguns períodos, os dois simultaneamente. Alguns dos seus
filhos de criação poderão ser seus filhos-de-santo. Alguns
amigos e parentes de sangue e/ou de santo poderão também
morar na casa e cooperar com ele, mas é importante advertir
que, em todos os casos, a composição das unidades domésticas
é muito instável, já que é grande a mobilidade dos membros.
Também quero acentuar que todas as variantes mencionadas
foram observadas em casos concretos.
As casas de mães-de-santo e a maioria daquelas onde
moram filhas-de-santo são lideradas por mulheres, mesmo nos
casos em que tenham marido. Geralmente, os maridos das
mulheres do culto, quando moram com elas, não exercem
autoridade alguma no lar, nem tomam decisões. Predominam
as uniões consensuais, geralmente de curta duração, entre os
membros do culto (chamadas relações de amasiado na Bahia
e discutidas em Frazier, 1942: Herskovits, 1943 e 1966; Ri-
beiro, 1945). Os pais-de-santo de orientação predominante-
mente heterossexual e que têm esposa visitam geralmente
alguma outra casa ou “filial” onde têm outra mulher. Como já
disse, parentes fictícios, filhos de criação ou membros da fa-
mília-de-santo da pessoa que é chefe da casa, geralmente for-
mam parte da unidade doméstica: moradores temporários
também são acomodados com frequência. Além disso, o qua-
dro se complica pelo costume muito comum de dar e receber
filhos de criação, em caráter temporário ou permanente, e
pela presença frequente de parceiros homossexuais dos líde-
res das casas. A adoção (não-legal) de crianças é uma ativida-
de altamente valorizada por mães e pais-de-santo; os casais
INVENTANDO A NATUREZA ... 61

homossexuais costumam cooperar na criação de filhos, o que


é ainda mais comum entre as mulheres.
À luz das minhas observações e dos depoimentos reco-
lhidos, concluí que, no meio social do culto, as uniões con-
sensuais podem ser definidas simplesmente como acordos mais
ou menos estáveis entre qualquer par de indivíduos que deci-
de conviver e cooperar, e manter uma interação sexual. Em
síntese, a bissexualidade me pareceu a orientação predomi-
nante entre os membros do culto, impressão que foi
reiteradamente confirmada nos depoimentos dos meus infor-
mantes, e que encontra eco nos dados de Peter Fry em Belém
do Pará (1977:121):
Um pai-de-santo foi mais explícito; em todo o Bra-
sil e especialmente no Pará e Maranhão, se você
observa cuidadosamente, achará ditícil encontrar
um pai-de-santo ou mãe-de-santo totalmente or-
todoxos no referente ao sexo. Todos eles têm algu-
ma falha. O Candomblé nasceu, em parte, para a
homossexualidade.
Outro aspecto fundamental para a compreensão do tema
que me ocupa é que a vida do culto é entendida pelos seus
membros como sendo virtualmente incompatível com o ma-
trimônio, tal como este é definido pela sociedade mais abran-
gente. Além disso, devido ao fato de a mulher ser vista pela
ideologia dominante da sociedade brasileira como subordina-
da ao marido, essa incompatibilidade é particularmente
enfatizada com respeito às mulheres e expressada de várias
formas. Em primeiro lugar, a maior parte das mulheres que
tinham uma relação estável com um homem quando se apro-
ximaram do culto contaram que seus parceiros se opuseram
terminantemente a essa aproximação. Nestes casos, só quan-
do o santo, na sua insistência em ser “feito”, chega a arriscar
a vida da filha com doenças, desmaios repentinos, ou provas
de desequilíbrio mental iminente, é que, preocupados com a
62 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

opinião pública, os cônjuges se curvam ao desejo do santo e


aceitam a iniciação da mulher. De qualquer maneira, em
muitos dos casos registrados, essas uniões terminan pouco tem-
po depois da entrada desta no culto. Pais e mães-de-santo ad-
vertem antes e, às vezes, dedicam uma curta fala de abertura
durante o primeiro ritual da iniciação a lembrar que as res-
ponsabilidades e a dedicação que o culto exige estão em con-
flito aberto com as expectativas de obediência e dedicação
relativas à vida de casada de acordo com os valores vigentes.
Como eles dizem, as periódicas saídas de casa durante vários
dias para ajudar nos rituais na casa-de-santo, a frequente de-
manda de abstinência requerida para entrar no “quarto-de-
santo” (onde as pedras de assentamento e os símbolos rituais
são guardados) e para que o santo possa “baixar” em posses-
são, e os longos períodos de reclusão durante a iniciação e os
rituais de “renovação” da mesma exigem um grau de liberda-
de que um matrimônio ortodoxo não permite. A prioridade do
santo sobre o marido é repetida até o cansaço pelos líderes do
culto, esperando-se que ele aceite perder uma parte impor-
tante da influência que tinha sobre a mulher.
Além disso, o desestímulo ativo da instituição do matri-
mônio por parte do culto é indicado pela ausência de qual-
quer forma de ritual para a legitimação religiosa deste vínculo.
Por outro lado, proclama-se repetidamente que depois que uma
pessoa entra no culto, especialmente uma mulher, somente o
santo comandará a sua vida, e é a ele que se deve lealdade e
obediência em primeiro lugar.” Em muitos casos, a autoridade
do santo chega a atuar como uma proteção para ela frente ao
marido, e não são raros os casos em que o santo de uma mu-

9. O seguinte depoimento ilustra bem como isto acontece. Quem conta é uma
famosa e bem-sucedida mãe-de-santo do Recife.
T: Uma vez eu morei com um homem que já morreu. Este homem tinha-
me dito que, se eu não aceitasse morar com ele, ele me mataria. Meu
Orixalá, meu santo, já tinha falado que não era para eu ficar com ele
dentro de casa porque não me daria bem. Mas o homem insistiu. Ele era
INVENTANDO A NATUREZA ... 63

lher em possessão ameaça gravemente ou dá conselhos impe-


rativos ao cônjuge, dando lugar a situações que seriam
impensáveis no contexto fortemente patriarcal da sociedade
nordestina como um todo.
Entre os homens, algumas regularidades são também
aparentes. Todos os pais-de-santos que conheci mantinham

um filho de Xangô. Um dia eu estava com ele e Orixalá me pegou” (bai-


xou em possessão) e disse: — “Filho de Xangó: eu sou Orixaogiã Bomim
(fica implicada a autoridade paterna de Orixalá sobre Xangô), o dono do
ori da minha filha (a mulher possuída e que agora relata a história). Que
dia é hoje?”
— “Quarta-feira.”

— “Bem, outro dia como este não verá você com ela.” Tinha muita gente
ali que viu isto e que ainda hoje lembra, mas eu não acreditei. No domin-
4º seguinte, eu estava comendo com ele quando perdi a voz, minhas
pernas ficaram como mortas e as lágrimas começaram a cair. Ele me
perguntou o que estava acontecendo. Eu não consegui falar. Eu tinha um
dinheiro para dar para ele ir embora, mas eu estava triste de ter que
mandá-lo ir-se. Fiquei sem poder dizer nada por um tempo e fui levada
para a cama. Depois de um pouco, eu consegui outra vez falar e disse
que não era nada sério e que lhe daria um pouco de dinheiro para ele ir
embora; que estava muito triste por ter que mandá-lo embora, mas que
o santo não queria nos ver juntos, de modo que ele tinha que ir-se. Ime-
diatamente aquilo me tomou e fiquei sem voz. Aí ele falou:
— “Não, não, outra vez se é assim mesmo eu vou-me embora.” Quando
deu as seis, eu juntei as coisas dele e botei o que poderia necessitar. E
cada vez que a força de Orixalá me deixava por um instante, eu chorava.
Ele disse: — “Mas T., se é para você viver comigo, você vive, e, se não é,
você não vive. Fique trangúila, pare de sofrer.” Ele foi embora às quatro
da manhã. Eu o levei até o portão sem chorar, sem dizer uma palavra. Eu
não estava em mim. Quando voltei, eu chorei tanto que pensei que ia
sofrer um ataque. Todo mundo chorou. Dois dias depois, Ogum baixou
(em possessão) e disse: — “Não quero a minha filha gastando lágrimas
por nenhum homem. Minha filha não deve pensar ou se preocupar por
causa de nenhum homem.” (Ogum é o quarto santo da cabeça de T)
Então acabou tudo e não chorei mais. Logo depois, Orixalá baixou num
toque e disse a mim que dali por diante eu poderia gostar de qualquer
outro homem porque eu era de carne, eu era matéria, mas que homem
nenhum poderia entrar na minha casa para ser o dono: que os donos de
minha casa eram só eles, os meus santos. Eu poderia sair com um ho-
mem, um homem poderia me vísitar, que eu poderia “gostar”... mas que
nenhum homem poderia ficar para ser o chefe, o dono da casa.
64 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

ou mantiveram mais de uma parceria sexual simultaneamen-


te, o que costuma ser de conhecimento público. Esse tipo de
promiscuidade (que não inclui incesto) é visto pelos membros
do xangô como desempenhando o mesmo papel que o celiba-
to dos padres tem para os católicos. De fato, a liberdade sexual
dos pais-de-santo, só restringida nas relações com seus pró-
prios filhos e filhas-de-santo, assegura que sua disponibilida-
de não seja inibida pelas exigências de vínculos familiares
intensos e exclusivos. Como Fry argumenta, tentando explicar
a presença de muitos homossexuais nas casas de culto de
Belém, um líder que não tem uma família dispõe mais livre-
mente dos seus ganhos e pode, constantemente, reinvesti-los
no culto (Fry, 1970416).
As polêmicas sobre o caráter sistemático ou assistemático
do parentesco afro-americano começaram no início da déca-
da de quarenta. Naqueles primeiros anos, Franklin Frazier
descreveu as classes pobres da Bahia que se agrupam ao redor
dos candomblés como carentes de uma base familiar consis-
tente e reconhecível (Frazier, 1942:470-478), havendo con-
siderado o casamento ou os arranjos de parcerias sexuais como
práticas fortuitas. Disse, por exemplo, sobre um importante
pai-de-santo do candomblé baiano: “o comportamento sexual
do meu informante era obviamente promíscuo” (Frazier, 19483,
p. 403). Herskovits veio contradizer as apreciações de Frazier,
tentando atribuir o que parece casual ou desorganizado no
parentesco afro-americano à persistência de concepções afri-
canas sobre organização familiar num novo meio social: a fa-
mília poligínica africana teria sido “reinterpretada em termos
de parcerias múltiplas sucessivas e não mais simultâneas”
(Herskovits, 1966:58). No caso das populações negras do
Caribe e dos Estados Unidos, a variabilidade e a instabilidade
dos arranjos domésticos foram geralmente entendidas como
uma consequência negativa de fatores econômicos (Smith,
1956; Clarke, 1957), históricos (King, 1945) ou demográficos
(Otterbein, 1965). As unidades domésticas matrifocais foram
INVENTANDO A NATUREZA ... 65

vistas como defeituosas, e o parentesco como uma consequên-


cia do colapso social.
Mais recentemente, Raymond Smith, que nos anos cin-
quenta cunhou o termo “matrifocal”, reagiu contra esse enfoque
e voltou a enfatizar o caráter sistemático do parentesco afro-
norte-americano. Segundo esse autor, a ênfase ideológica e
normativa das classes baixas, em geral, e das populações afro-
americanas, em particular, não é posta na família nuclear, como
ocorre nas classes médias, mas sim na solidariedade entre mãe
e filho (Smith, 1970, p. 67), o que não deve ser interpretado
como falta de sistema, mas como uma forma de organização
alternativa.
Nesta mesma linha de raciocínio, autoras como Stack
(1974) e Tanner (1974) procuram achar um modelo que
mostre a maneira como as relações de parentesco entre os
negros norte-americanos de classe baixa são sistemáticas e
organizadas. Segundo Stack, a coerência deste sistema de
parentesco pode ser encontrada se forem tomadas em con-
sideração as estratégias que nele se articulam para expan-
dir e fortalecer laços de afinidade e, assim, ampliar a rede
de relações das quais se poderá depender em casos de ne-
“cessidade. Nos termos usados por Tanner, “o sistema de pa-
rentesco afro- (norte) americano prioriza a flexibilidade” e
depende de redes extensas e relações “que podem ser
ativadas de acordo com as necessidades”; “muitas vezes
parentes (consangúíneos) moram juntos, e uns tomam conta
dos filhos dos outros” (1974, p. 153). Uma destas estraté-
gias reconhecíveis é ter “unidades domésticas com frontei-
ras elásticas” (Stack, 1974, p. 128), isto é, adaptáveis a
frequentes mudanças na sua composição e abertas para alo-
jar tantos parentes quantos forem necessários, a ponto de
tornar, às vezes, difícil dizer em que casa um determinado
indivíduo mora (p. 116). Outra estratégia observada con-
“siste em limitar, sistematicamente, as possibilidades de su-
cesso das uniões conjugais, já que todo matrimônio estável,
66 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

constituindo uma família nuclear, implica a perda de um


parente para a rede de parentesco consangúíneo de onde
vem um dos cônjuges. Contudo, e apesar de que as relações
verticais entre mãe e filhos e as horizontais entre irmãos
são os eixos do sistema e tiram do matrimônio a posição de
pivô, os vínculos de afinidade com a rede consangúiínea do
cônjuge continuam disponíveis e podem ser ativados.
No Recife, é na família-de-santo e na importância atri-
buída às formas de parentesco fictício que esta sistematicidade
aflora e assume características similares às apontadas por Stack
e Tanner. A grande diferença entre o parentesco descrito por
estas autoras e aquele que me ocupa é que o primeiro ainda se
apóia na consangiiinidade como fundamento dos vínculos fa-
miliares, enquanto o segundo não atribui ao sangue esta Sig-
nificação relevante. Tentarei mostrar dois pontos importantes
em relação à familia-de-santo. O primeiro deles retoma a
questão da negação do matrimônio como instituição central
na organização social, questão que, como ficou claro, é im-
portante para entender o comportamento social dos membros
do culto, é indicada pela incompatibilidade simbólica dos ca-
sais míticos e é apontada por Stack e Tanner como uma das
estratégias centrais para compreender o parentesco dos ne-
gros de classe baixa da América do Norte. Segundo procura-
rei demonstrar, este tema se encontra também presente na
estrutura da família-de-santo. O segundo ponto tentará ex-
por a irrelevância das determinações biológicas na definição
dos papéis sociais dentro da família-de-santo, em oposição ao
forte determinismo biológico que rege a definição dos papéis
rituais.
A “família-de-santo” representa a cristalização de um
sistema de normas básicas de interação que são expressas em
termos de parentesco. O núcleo desta família religiosa fictícia
é constituído por uma “mãe” ou um “pai-de-santo” e seus “fi-
lhos-de-santo”, e o local é a “casa-de-santo”, onde o pai ou a
mãe-de-santo mora, embora não seja necessário que todos os
INVENTANDO A NATUREZA ... 67

filhos aí habitem. O que caracteriza esse local é que as pedras


de assentamento e os símbolos materiais pertencentes ao orixá
do líder da casa (mãe ou pai-de-santo), assim como os per-
tencentes a alguns dos seus filhos-de-santo, são aí guardados
(ver Carvalho, 1984). O pivô desta estrutura de parentesco
fictício é a relação vertical que existe entre o líder da casa-
de-santo e seus filhos-de-santo. A relação entre irmãos e ir-
mãs-de-santo vem em segundo lugar de importância. Embora
toda iniciação requeira a participação ritual de um pai e de
uma mãe-de-santo do novo filho, este só se considerará mem-
bro da casa de um deles, isto é, geralmente do líder da casa
onde a iniciação foi feita. Portanto, é possível dizer que há
familias-de-santo encabeçadas por homens e outras enca-
beçadas por mulheres, sem que isto implique qualquer dife-
rença na sua estrutura. Se o líder de casa é homem, ele ou o
iniciante designará uma mãe-de-santo para cooficiar no ritu-
al da “feitura”; se o líder é mulher, um pai-de-santo será con-
vidado.
Depois da iniciação, pai, mãe, irmãos e irmãs “legíti-
mos” (de sangue) do novo filho-de-santo, se existem, pas-
sam a ser relegados a uma posição secundária, e os novos
parentes fictícios passam a ser cnamados por estes termos e
a substituir aqueles em todas as prerrogativas que tinham —
laços de solidariedade, obediência, respeito etc. Uma vez mais,
fatores biológicos são relativizados pelas normas do culto.
Não pode haver — e, curiosamente, jamais há — superposição
entre o parentesco religioso e o parentesco legítimo. Tal
superposição é tratada como uma espécie de incesto, embo-
ra este nome não seja utilizado. Uma pessoa não pode tor-
nar-se mãe ou pai-de-santo dos seus filhos legítimos, nem
de seu pai ou mãe legítimos, nem de seu cônjuge ou parceiro
sexual atual ou anterior. Um pai ou mãe-de-santo não pode
tornar-se parceiro sexual de um dos seus filhos-de-santo e,
quando isto ocorre, acaba geralmente com o afastamento
voluntário do filho ou filha.
68 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Uma omissão significativa deve ser notada: nada é pres-


crito em relação à superposição entre parentesco de santo e
parentesco legítimo para as pessoas que atuam juntas como
pai e mãe-de-santo numa iniciação. De fato, não existe regra
alguma, seja prescrevendo ou proibindo qualquer tipo de re-
lação entre um pai e uma mãe-de-santo que oficiem juntos
numa ou mais iniciações: eles poderão ser irmão e irmã legi-
timos, pai e filha, cônjuges ou parceiros sexuais, ou simples-
mente amigos e colegas. Apesar de existir um conceito para
cada um dos papéis sociais dentro da família-de-santo — mãe,
pai, filha, filho, irmã e irmão-de-santo —, não existe qualquer
noção de marido e mulher dentro do parentesco religioso, nem
qualquer termo que denote a existência de um papel social
relacional entre estas duas pessoas dentro da família-de-san-
gue. Além disso, cada membro de um par de pessoas que co-
oficiou um ou mais rituais de “feitura de santo” pode participar
individualmente em outras iniciações, cooficiando com qual-
quer número de parceiros rituais. Em outras palavras, o pai e
a mãe-de-santo de um membro não são entendidos como um
casal do ponto de vista do parentesco fictício do santo. A fra-
gilidade da relação conjugal dentro da família-de-santo, em
contraste com a importância da relação vertical entre mãe e
pai-de-santo e filhos-de-santo, assemelha-se ao princípio de
organização já identificado por Stack e Tanner no parentesco
afro-norte-americano.
Como uma unidade social, a família-de-santo coloca ao
alcance dos seus membros um sistema de parentesco alterna-
tivo que é organizado e estável, apesar de ser bastante esque-
mático, o que libera as pessoas da incerteza de terem que
depender unicamente da cooperação e solidariedade das re-
lações de parentesco legítimo, que são, geralmente, frágeis e
pouco articuladas. Neste sentido, a família-de-santo simula
uma família afro-americana simples e inteiramente confiável,
já que se apóia em sanções sobrenaturais e é ritualmente legi-
timada. Em alguns casos, quando o membro provém de uma
INVENTANDO A NATUREZA ... 69

família bem constituída nos termos da ideologia dominante


na sociedade brasileira, a família-de-santo funciona como uma
extensão daquela, ampliando a rede de pessoas que podem
ser chamadas a ajudar em caso de necessidade. Este sistema
tem a peculiaridade de não excluir as mulheres da liderança
familiar, como é o caso da família patriarcal, nem os homens,
como acontece com a família matrifocal, já que qualquer ho-
mem ou mulher iniciados dentro do culto têm a possibilidade
aberta de tornar-se chefe de uma família-de-santo.
As estratégias que, de acordo com Stack e Tanner, dão
consistência e regularidade ao parentesco afro-norte-ameri-
cano, também podem ser identificadas no sistema normativo
da família-de-santo, ainda que expressas em termos religio-
sos e rituais. O parentesco fictício religioso se estende flexi-
velmente ao longo-de uma ampla rede de casas aparentadas,
cujos membros podem ser convocados a cooperar. Apesar de
haver uma ênfase nas relações verticais mãe ou pai-de-san-
to/filhos-de-santo em detrimento da relação mãe-de-santo/
pai-de-santo, um filho pode contar com ajuda e solidariedade
de qualquer dos dois lados (de qualquer uma das suas famílias
fictícias de orientação). Desta maneira, por exemplo, um fi-
lho iniciado por um pai-de-santo, em colaboração com uma
mãe-de-santo em uma determinada casa, poderá contar, às |
vezes, com a ajuda de um outro filho-de-santo “feito” noutra
casa pelo mesmo pai, em colaboração com outra mãe-de-san-
to. Um número de estratégias, invocando, geralmente, a von-
tade dos orixás e os seus poderes para punir a desobediência,
são corretamente implementadas para recrutar novos mem-
bros e evitar que os velhos se afastem. O objetivo é expandir
constantemente e preservar a rede de relações fictícias como
recurso de sobrevivência. Dentro dessas redes, os líderes de
casas-de-santo, como acontece com os afro-norte-america-
nos, se consideram obrigados a oferecer acomodação e servi-
ços — incluindo a aceitação de filhos para criar — de qualquer
membro relacionado, se este o solicita.
70 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Finalmente, é importante ressaltar que a casa-de-santo


é, ao mesmo tempo, um centro de culto onde vários tipos de
rituais são realizados e o locus de uma unidade social, a fa-
mília-de-santo. Esses dois aspectos não devem ser confundi-
dos. Além disso, é importante distinguir os papéis sociais dos
papéis rituais atribuídos aos membros da família-de-santo.
No entanto, como mostrarei, os últimos são distribuidos es-
tritamente de acordo com o sexo biológico da pessoa, mas os
primeiros não. De fato, embora durante um ritual uma mãe
e um pai-de-santo tenham a seu cargo a execução de ativi-
dades específicas, na esfera estritamente social, qualquer um
deles indistintamente, como já disse, pode ser o líder de uma
casa e, como tal, ter a seu cargo as mesmas obrigações e des-
frutar dos mesmos direitos, bem como satisfazer ao mesmo
tipo de necessidade dos seus filhos-de-santo. Uma das fra-
quezas dos estudos afro-brasileiros tem sido a sua dificulda-
de em diferenciar entre papéis sociais e papéis rituais dentro
da família-de-santo.
Se se considera a família-de-santo como uma unidade
social, os papéis masculinos e femininos não são diferencia-
dos. De acordo com meus informantes, mãe e pai-de-santo
são papéis sociais equivalentes e não é possível apontar ne-
nhuma atribuição que distinga o desempenho social de cada
um deles. Nenhum dos meus informantes jamais aceitou a
sugestão de que mãe e pai-de-santo, na qualidade de líderes
de uma comunidade, atuem de maneiras específicas, e toda
variação de comportamento foi sempre atribuída a
idiossincrasias pessoais ou aos santos (personalidade) do lí-
der. Embora eles se diferenciem, e se oponham nas atribui-
ções rituais, socialmente as suas responsabilidades são
idênticas: ambos dão orientação e conselho aos filhos,
intermedeiam entre os orixás e filhos ou clientes através da
consulta do oráculo de búzios, e captam e redistribuem os
recursos disponíveis na rede de relações religiosas (essa fun-
ção está bem descrita em relação às mães-de-santo da Bahia
INVENTANDO A NATUREZA ... Ta

em Silverstein, 1979). Da mesma maneira, espera-se que fi-


lhas e filhos-de-santo, indiferenciadamente, obedeçam as
diretivas do líder e compareçam quando são chamados a co-
operar. De fato, tanto os papéis sociais de liderança como os
de subordinação podem ser descritos como papéis andróginos
e tanto homens como mulheres podem desempenhá-los mais
confortavelmente se exibirem uma combinação de atitudes
masculinas e femininas no seu comportamento. Noutras pa-
lavras, considera-se que homens que apresentam facetas fe-
mininas e mulheres com facetas masculinas acumulam uma
gama mais ampla de experiência e são capazes de compre-
ender as necessidades espirituais de um número maior de
filhos e clientes. Daí também a preferência, antes mencio-
nada, por uma combinação de um santo masculino e um fe-
minino na cabeça dos membros.
Por outro lado, todas as atividades executadas nos ritu-
ais são estritamente distribuídas de acordo com o sexo da
pessoa. Tive repetidas indicações de que, na esfera ritual, as
categorias naturais de macho e fêmea adquirem uma signifi-
cação de que carecem em todas as outras esferas de interação.
Revisando rapidamente a distribuição de papéis na organi-
zação dos rituais, constata-se que só os homens podem sa-
crificar os animais oferendados aos orixás, cortar os oberés
(incisões na pele) e raspar a cabeça dos iniciantes, entrar no
“quarto de Igbalé”, onde os espíritos dos mortos habitam, e
oficiar para eles, tocar os tambores, cantar para Exu e abrir
e fechar os “toques” ou rituais públicos — embora tivesse pre-
senciado ocasiões em que as últimas três proibições não fo-
ram cumpridas, o que fez pensar que elas são menos rigorosas
que nas quatro primeiras, sempre obedecidas. No entanto, os
papéis femininos são vistos como indispensáveis e comple-
mentares aos masculinos, mas as responsabilidades a eles
associadas consistem na execução ritualizada de tarefas do-
mésticas. As iabás (ajudantes rituais) assistem ao oficiante
no que for necessário, cuidam das pessoas em estado de pos-
Ti, CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

sessão e preparam as comidas que serão oferecidas aos san-


tos. As mães-de-santos supervisionam todas estas atividades
e ajudam o pai-de-santo e o seu acipá (ajudante do pai-de-
santo) na manipulação dos materiais necessários para a
oferenda. A proibição que veda às mulheres menstruadas
receber santo em possessão ou entrar no “quarto-de-santo”
(onde as pedras dos santos e os seus símbolos rituais são guar-
dados) parece confirmar os fundamentos “naturais” das ca-
tegorias enfatizadas pela ordem ritual. Além disso, nos toques,
a distribuição espacial dos dançadores é organizada de acor-
do com o sexo, os homens dançando num círculo interior e
as mulheres em círculo externo. Só quando uma pessoa é
possuída por seu santo é que ela deixa esta formação e vai
dançar em frente dos tambores. De fato, com a possessão, o
sexo biológico se torna de novo irrelevante e só o sexo do
santo é expressado nos gestos, nos simbolos materiais e na
roupa exibidos na dança do orixá que “baixou”.
A ênfase do ritual em categorias baseadas no sexo bio-
lógico se opõe à falta de uma divisão sexual do trabalho na
família-de-santo como unidade social e com a irrelevância
do sexo biológico para a definição da personalidade indivi-
dual e da sexualidade. Voltarei a referir-me à sexualidade
na próxima seção e nas conclusões, mas é importante assi-
nalar que os homens que são exclusivamente homossexuais
oficiam em rituais em papéis masculinos, atuando como pais-
de-santo ou acipás. Desta maneira, o ritual põe em evidên-
cia que a esfera da sexualidade é concebida como estando
inteiramente separada das categorias naturais de macho e
fêmea. Além disto, a rigorosa abstinência sexual que deverá
ser seguida pelas pessoas que tomarão parte em rituais indi-
ca, igualmente, que a esfera ritual está excluída da esfera da
sexualidade, com sua relativização do sexo biológico. O ri-
tual aponta para a natureza como um horizonte de referên-
cias imutável, mas o faz para contrastá-la com a fluidez das
opções humanas: macho e fêmea são fatos da natureza e como
INVENTANDO A NATUREZA ... 8

tais contam no ritual, mas se tornam irrelevantes no mundo


humano da cultura, quer dizer, nos papéis sociais, na perso-
nalidade e nas preferências sexuais. Todos estes níveis apa-
recem vinculados na ideologia dominante, que os força a se
ajustarem a equivalências convencionais; mas, através da
visão de mundo peculiar do xangô, o caráter arbitrário des-
tas equivalências torna-se evidente.!?

4. Sexualidade e conceitos que expressam identidade sexual

Em seus muitos anos de pesquisa nas casas de culto xangô


do Recife, Ribeiro achou que uma grande porcentagem de ho-
mens experimentam o que ele descreveu valorativamente como
“dificuldades na identidade sexual” (1969, p. 8) e que a ho-
mossexualidade entre mulheres do culto não é incomum
(1970). Por minha parte, ouvi repetidamente dos meus infor-
mantes a opinião de que a homossexualidade “é um costume”
entre o “povo-do-santo”, especialmente entre as mulheres. Isto
é tido como verdadeiro a ponto de que, sempre que duas mu-
lheres moram juntas e se ajudam mutuamente, presume-se
automaticamente que elas sejam, também, parceiras sexuais;
pelo menos isto aconteceu com todos os casais de amigas que
conheci.

10. À guisa de curiosidade, lembremo-nos aqui que Lévi-Strauss aponta para


uma oposição entre ritual e mito, onde o ritual é visto como uma reação ao modo
como o homem pensa o mundo. Só que no texto de Lévi-Strauss o rito, por sua
sintaxe, corresponde à fluidez do viver, enquanto o mito reflete as unidades
descontinuas do pensar (Lévi-Strauss, 1983, p. 615). Nos termos de Leach:
Ritual, according to Lévi-Strauss... is a procedure we adopt to overcome the
anxieties which are generated by this lack of fit between how things really
are and how we would like to think about them (Leach, 1976, p. 13).

Do meu ponto de vista, esta oposição existe no xangô, mas ao inverso: o ritual,
no xangô, enfatiza a descontinuidade de certas categorias recortadas sobre a
base das descontinuidades do mundo da natureza, enquanto o pensamento mítico
reflete a versatilidade das combinações possíveis no mundo humano do pensa-
mento e da cultura.
74 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO-E DA ALMA

Contudo, é comum que estas mesmas pessoas declarem


que a homossexualidade é um costume indecente e acusem
outros de praticá-la, fazendo pilhéria sobre eles. Conforme já
disse, por muitos meses durante meu terceiro período de tra-
balho de campo as afirmações dos meus informantes pareciam
expressar conformidade à ideologia dominante da sociedade
brasileira e encontrar-se em aberta contradição com seu pró-
prio estilo de vida. Isso me ensinou a jamais ficar apenas no
nível do discurso enunciado ou acreditar que este representa
linearmente a ideologia do grupo; aprendi também a impor-
tância de diferenciar a consciência discursiva da consciência
prática (Giddens, 1979, pp. 5 e 208). Depois, percebi que,
sem conflito aparente, as pessoas reconhecem e aceitam os
méritos e vantagens dos valores reinantes mas, de alguma ma-
neira, não se vêem a si mesmas atingidas por estes valores.
Assim, não surge culpa, pesar ou ressentimento pela certeza
de “ser errado”. Há apenas a prudência e o cuidado de deixar
claro que se conhecem as regras (embora não se jogue com
elas).
Por muitas razões, a maior parte proveniente da assime-
tria dos papéis femininos e masculinos, tal como eles são con-
cebidos pela ideologia dominante, a homossexualidade dos
homens e das mulheres não constitui fenômeno totalmente
equivalente. Isto fica claro, por exemplo, no fato de que, en-
quanto para os homens existem alguns termos que reificam a
preferência sexual numa identidade, isto é, há certos concei-
tos que indicam identidade em relação à preferência sexual,
para as mulheres não se aplica qualquer noção deste tipo.
As expressões “amor” ou “estar apaixonado” não são uti-
lizadas, e as pessoas descrevem seus casos amorosos, de curta
ou longa duração, falando em “gostar de alguém”. Especial-
mente entre as mulheres, quando o nome da pessoa de quem
se está gostando ou já se gostou não é mencionado, este é subs-
tituído pelo termo “criatura”, por exemplo: “naquele tempo
eu estava gostando de uma criatura da casa da mãe Lídia”,
INVENTANDO A NATUREZA ... 75

apontando, não sem um toque de humor, a irrelevância do


sexo da pessoa preferida. A palavra “lésbica”, embora conhe-
cida, jamais é usada e, de fato, não há qualquer termo que
denote uma noção de oposição entre uma mulher que tenha
relações homossexuais e uma que não as tenha, ou que indi-
que que elas pertençam a categorias distintas. O seguinte exem-
plo evidencia bem o ponto de vista do povo-do-santo: numa
casa-de-santo que estudei, havia uma filha-de-santo cuja mãe
tinha sido uma famosa filha de Xangô, conhecida em todo o
Recife. A mãe manteve uma relação com outra filha-de-santo
da casa por muitos anos, e ambas criaram a menina que, na
época da minha pesquisa, já tinha uns trinta e cinco anos e
havia sido iniciada vinte anos antes. Esta tinha se casado le-
galmente, mas estava separada e era mãe de um menino e de
uma filha de criação. Sobre ela, as pessoas frequentemente
comentavam que “ela ainda nunca gostou de mulher” e faziam
brincadeiras entre si e na sua frente, manifestando convenci-
mento de que chegaria o dia em que isto iria acontecer. Este
caso é uma boa ilustração de como, pelo menos para as mu-
lheres, a homossexualidade não é considerada em si como uma
questão de identidade separada, mas em relação à gama de
experiências que se pode atingir. Além disso, a norma para as
mulheres é mais a bissexualidade que a homossexualidade ou
heterossexualidade exclusivas e muitas delas vivem em par-
ceria com um homem e uma mulher simultaneamente. Existe,
sim, a noção de que certas mulheres são mais masculinas do
que outras, mas isto surge de uma avaliação de sua identidade
de gênero como um todo e não, exclusivamente, da sua sexua-
lidade, Por exemplo, conheci uma mãe-de-santo da qual
algumas pessoas diziam ser “mulher-homem?”, e o que argu-
mentavam era que o seu santo dono da cabeça, seu “ajuntó”? e
um terceiro orixá que tinha, eram todos “santos-nomens”,
que ela jamais teve relações sexuais com homem e que já não
tinha menstruação. Mas também existem mulheres que
declaram ter preferência por relações homossexuais, mas que
são consideradas muito femininas, em função dos seus santos.
76 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

O caso dos homens é diferente, a preferência sexual se


traduz em termos que expressam identidade, tais como “bi-
cha”, “frango”, adétero ou akuko adie— estes dois últimos sen-
do palavras da língua iorubá!! — embora não exista palavra
equivalente ao termo inglês straight. Adéferos são homens que
têm preferência por relações homossexuais e, geralmente, ex-
pressam esta orientação exibindo gestos diacríticos de fácil
reconhecimento. Contudo, estes gestos não são considerados
indicadores da personalidade, mas da sexualidade do indivi-
duo e, de fato, existem muitos adéferos cujo dono da cabeça é
um orixá masculino. Da mesma forma, como já disse, adéferos
oficiam em papéis rituais masculinos e são muito bem-suce-
didos no papel andrógino de líderes de casas-de-santo. Com
suas explicações, o pessoal do santo deixa claro que os adéferos
não são transexuais. Na verdade, a transexualidade só pode
existir no seio de uma visão de mundo onde os atributos do
gênero feminino, assim como os do masculino, são concebi-

11. A ortografia e a tradução das palavras adéfero e akuko adie me foram ensina-
das por meu colega iorubá Yemi Olaniyan. Ele também me disse estar convencido
de que não existe homossexualidade entre os iorubá da Nigéria e que jamais teve
conhecimento de qualquer caso. Mais ainda, disse não conhecer termo algum na
lingua iorubá que sirva para denominar este tipo de comportamento. Informa-
ções levantadas por Ribeiro (1969, p. 118) parecem confirmar esta afirmação.
Akuko adie significa “frango” e é portanto a tradução literal do termo vulgar-
mente usado no Recife para chamar aqueles homens que têm preferência por
relações homossexuais. O termo adéfero tem duas traduções possíveis, depen-
dendo da entonação original da palavra, que se perdeu com a passagem da pala-
vra ao meio português. As duas traduções são nomes pessoais. Adéfero significa:
“a coroa se estende até a corte” ou “o homem que porta a coroa se tornou parte
da corte” e geralmente indica que a pessoa assim chamada pertence a uma fami-
lia cuja posição foi elevada por um membro da corte. Por outro lado, pode-se
tratar da contração da expressão ade fe oro, que significa: “a coroa se estende até
o culto de Oro” ou “o homem que carrega a coroa ama o culto de Oro”. O culto
de Oro é um ritual de mascarados dedicados aos espíritos dos mortos no qual só
homens participam e assustam as mulheres usando uma matraca. De fato, é o
único culto iorubá sob a exclusiva responsabilidade de homens, já que até no
egungun, também de mascarados e dedicados aos mortos, as mulheres podem ter
alguma participação. Na época da minha pesquisa, nenhum membro conhecia a
tradução literal de qualquer uma destas palavras nem tinha conhecimento sobre
o culto de Oro.
INVENTANDO A NATUREZA ... “Po

dos em bloco, isto é, onde personalidade, papel social e sexua-


lidade estão indissoluvelmente vinculados a um ou outro gê-
nero.
Indo um pouco mais fundo, é importante esclarecer que,
embora a identidade do adéfero seja definida pela preferên-
cia por relações homossexuais, muitos adéferos mantêm, pelo
menos, uma relação heterossexual durante um período das
suas vidas e outros — entre estes alguns famosos pais-de-santo
do Recife — têm mulher e filhos. A maior parte tem ou pro-
cura ter um okó (palavra iorubá que significa marido). O
okó não denomina um status, mas um tipo de relação; quer
dizer, ninguém é um okó mas um okó em relação a outra pes-
soa, seja esta um adéfero ou uma obinrin (“mulher na língua
iorubá). Além disto, pode-se dizer que existe uma margem
de mobilidade nestas categorias e conheci, pelo menos, um
caso. de um homem que tinha sido um adéfero conhecido e
tornou-se o okó de uma mulher, abandonando a identidade
de adéfero. De fato, chegou um momento na minha pesquisa
em que tive clara percepção de que a sexualidade, ou seja,
as preferências sexuais dos membros do culto não têm seu
fundamento no sexo biológico, nem na personalidade, nem
no papel social, e que a atividade sexual é, em última ins-
tância, um tipo específico de interação que se estabelece en-
tre dois indivíduos, independentemente dos seus atributos
genéricos, biológicos, caracterológicos ou sociológicos. No
caso das mulheres, essa fluidez nas opções sexuais é clara-
mente expressa nas opiniões dos membros do culto, mas no
caso dos homens, como já disse, ela é encoberta pela super-
posição de categorias que provêm da ideologia dominante e
que congelam a preferência sexual numa identidade que po-
deria ser cnamada de pseudo-social, porque se traduz em
termos de uma categoria social.
Desta maneira, a complexa composição da identidade
de um indivíduo resulta do seu desempenho em quatro ní-
veis ou esferas que, embora vinculados por equivalências
78 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO.E DA ALMA

forçosas na visão do mundo dominante, na experiência dos


membros do xangô mostram-se independentes; tais são os
níveis biológicos, psicológicos, social e sexual. Com referên-
cia à identidade de gênero, o indivíduo se situa num ponto
de um continuum que vai do masculino ao feminino, de acor-
do com uma combinação de traços que lhe é peculiar; al-
guém que tem uma anatomia masculina, que tem dois santos
homens e que só se relaciona como okó com seus parceiros
sexuais estará próximo do pólo masculino, e alguém que tem
uma anatomia feminina, dois santos femininos e que só “gos-
ta” de homem, encontrar-se-á próximo do pólo feminino.
Além disso, se a primeira destas pessoas tem Ogum como
primeiro santo, estará mais próxima ainda do pólo corres-
pondente, e se a segunda tem Oxum como dona da cabeça,
ficará mais próxima do extremo feminino. No caso das mu-
lheres, um quarto fator é também tomado em consideração
e, como ocorre em muitas sociedades africanas, uma mulher
que já passou pela menopausa é classificada como sendo mais
próxima do pólo masculino que uma que ainda tem mens-
truação. A relevância deste sistema complexo de composi-
ção da identidade de gênero está em que uma pessoa que se
situa na parte central do espectro, como alguém que combi-
na um santo-homem e um santo-mulher e tem uma orienta-
ção homossexual, poderá invocar os componentes masculinos
e femininos de sua identidade de acordo com a situação e
como parte de estratégias para acumular papéis sociais e ri-
tuais. Esse tipo de pessoa, portanto, além de ser mais nume-
roso dentro do culto, tem também mais sucesso como líder
dentro do parentesco religioso. Um bom exemplo disso é o
caso anteriormente mencionado da mulher considerada por
alguns como “mulher-homem?”: ela invocava sua proximi-
dade com o pólo masculino para legitimar-se na execução
de alguns papéis reservados aos homens no ritual, embora
jamais chegasse a substituir completamente o homem em ta-
refas mais “pesadas”, como a manipulação dos espíritos dos
mortos ou eguns.
INVENTANDO A NATUREZA ... 79

Conclusões

1. Os possíveis efeitos da escravidão nas categorias de homem


e mulher

Nesta seção, analisam-se as possíveis consequências da


escravidão no Brasil, com sua ruptura dos padrões de com-
portamento tradicionais e das concepções relativas ao casa-
mento, ao vínculo de sangue e aos papéis sexuais. Numa revisão
crítica do conceito de casamento, Riviêre conclui que:
as funções do matrimônio, assim como o matrimônio
mesmo, são simplesmente uma expressão, uma con-
sequência de uma estrutura subjacente mais protun-
da. O que sugiro é que o princípio ordenador desta
estrutura profunda (...) é a distinção universal entre
macho e fêmea, e que o matrimônio é um aspecto da
consegiente relação entre estas duas categorias
(197 E/pe TO).
Segundo este autor, também os casais homossexuais
seriam uma expressão da relação estrutural entre os “pa-
péis conceituais de macho e fêmea” (p. 68). De minha par-
te, uso o argumento de que a experiência da escravidão pode
ter abalado a oposição estrutural entre os conceitos de mas-
culino e feminino que estava na base da instituição da fa-
mília nas sociedades africana e portuguesa, oposição essa
que parece ter sido logo reinterpretada por alguns grupos
de descendentes de escravos no Brasil, tirando, ao mesmo
tempo, o casamento da sua posição central na estrutura
social. De fato, com a escravidão, a família negra foi desfei-
ta, o que pode ter resultado numa transformação do signi-
ficado e dos valores tradicionalmente associados à oposição
entre estas categorias.
Degler, em sua bem documentada comparação da escra-
vidão no Brasil com a dos Estados Unidos, produz algumas
80 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

evidências de como este processo provavelmente se desenvol-


veu. De acordo com este autor, os donos de escravos não só
podiam vender e, certamente, venderam separadamente es-
cravos que eram cônjuges (Degler, 1971,p. 37), mas também
a maior parte da população escrava jamais se casou ou viveu
em uniões consensuais estáveis:
Antes de 1869 (...) à lei não dava proteção alguma à
família escrava no Brasil (...) um vigoroso comércio
Interno com escravos destez muitas famílias, seja com
uniões legitimadas pela Igreja ou não. O comércio
Interno de escravos foi especialmente ativo depois de
1850, quando o tráfico externo estava fechado (..)
(pp. 37-38).
Além disso, também as crianças eram separadas de suas
mães pelo tráfico e houve até casos em que os donos vende-
ram seus próprios filhos com mulheres escravas (Degler, 1971,
p.38). Por um longo período histórico, a grande maioria dos
escravos não contraiu uniões estáveis nem formou familias. A
falta de interesse na criação de escravos por parte dos escra-
vocratas foi outro fator fundamental. Enquanto nos Estados
Unidos prevaleceu uma preocupação em manter o equilíbrio
entre o número de mulheres e homens, assim como o reco-
nhecimento e a expectativa de que o acasalamento resultaria,
naturalmente, na procriação de filhos (Degler, 1971, p. 63)
e, portanto, na reprodução da força de trabalho, no Brasil isto
não foi considerado economicamente proveitoso e se optou
pela compra de escravos adultos já capazes de trabalhar, em
vez da produção dos mesmos, a curto prazo mais dispendiosa.
A consequência desta política mais ou menos generalizada no
pais foi que
de fato, as próprias horas durante as quais homens e
mulheres podiam permanecer juntos (...) eram
deliberadamente limitadas. Alguns donos restringiam
conscientemente a possibilidade de os escravos se
INVENTANDO A NATUREZA ... 81

reproduzirem, encerrando-os em compartimentos se-


“ parados durante a noite (Degler, 1971, p. 64).
Outro aspecto desta estratégia foi um enorme desequilíbrio
na proporção de homens e mulheres, ao ponto de que
em algumas plantações mulheres escravas nunca che-
garam a existir e, na maioria dos casos, os homens
foram, de longe, muito mais numerosos que as mu-
lheres (Degler, 1971, p. 66).
Este desequilíbrio teve, no Brasil, duas outras consequên-
cias. Uma delas foi um número mais alto de escravos fugidos,
o que incidiu na já grande mobilidade horizontal (geográfi-
ca) da população negra neste país, enquanto nos Estados Uni-
dos,
com os escravos, mais ou menos distribuídos em uni-
dades familiares, fugir significava para um escravo
uma grande perda pessoal, já que deveria deixar para
trás mulher e filhos (Degler, 1971, p. 67).
A outra provável consequência pode ter sido o curioso
decréscimo, tantas vezes mencionado na literatura, da popu-
lação negra no Brasil (Fernandes, 1969; Saunders, 1958;
Bastide, 1974b: vide uma visão crítica em Hutchinson, 1965).
O desequilíbrio mencionado pode ter influenciado nas con-
cepções tradicionais dos escravos sobre a oposição e comple-
mentaridade dos sexos.
Outro aspecto que pode ter levado a uma transformação
das noções que regem as relações entre os sexos é o que pode
ser chamado de inimizade ou antagonismo generalizado en-
tre estes. Gilberto Freyre, no seu livro clássico sobre a família
escravocrata (1973), fornece evidências suficientes das ten-
sões que caracterizavam as relações entre homens e mulheres
das duas raças confrontadas pela escravidão. Outros autores
como Bastide (1972 e 1974a), Fernandes (1969), Soeiro
(1974), Russel-Wood (1977) e o próprio Degler analisaram
82 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

diferentes ângulos desta faceta característica da história bra-


sileira (a sociedade norte-americana experimentou-a em grau
muito menor, mas o Caribe manteve certas semelhanças com
o caso brasileiro — ver, por exemplo, Patterson, 1967 e M.G.
Smith Osso):
Em primeiro lugar, a exploração das mulheres negras
por seus amos é bem conhecida, e abundam na literatura
detalhes dos seus aspectos aberrantes e desumanos. Em se-
gundo lugar, as relações entre os branco escravocratas e suas
mulheres eram também caracterizadas por tensão e, em
muitos casos, por ódio manifesto. As mulheres destas famílias
eram obrigadas a viver uma vida de reclusão que já foi com-
parada com o purdah das sociedades islâmicas, o que asse-
gurava a pureza de raça dos descendentes, e garantia,
portanto, a concentração da riqueza pelos brancos (Russell-
Wood, 1977). Elas eram destinadas, exclusivamente, ao pa-
pel reprodutor e, em muitos casos, observaram com impotência
e ressentimento seus maridos buscarem prazer na compa-
nhia de mulheres escravas (casos cruéis de vinganças por
este motivo são enumerados na obra de Gilberto Freyre). Em
terceiro lugar, as relações entre as mulheres e os homens de
raça negra também eram tensas e à escassez numérica das
primeiras somaram-se outros inconvenientes. Por um lado,
os homens não podiam oferecer proteção ou qualquer outro
benefício a suas possíveis mulheres; pelo contrário, muito
provavelmente eles poderiam tornar-se seus dependentes e
uma carga para elas. Assim, muitas mulheres negras rejeita-
ram casar-se ou tentar qualquer tipo de união com escravos
ou seus descendentes. Por outro lado, nos casos em que os
homens negros adquiriram meios econômicos e podiam es-
colher suas companheiras, eles, sistematicamente, rejeitaram
casar-se, unir-se consensualmente ou reproduzir com mu-
lheres da sua cor, fenômeno que já foi descrito na literatura
como uma “desvantagem” das mulheres negras na busca de
parceiros. Este último é um outro fator frequentemente
INVENTANDO A NATUREZA ... “88

invocado pelos autores para tentar explicar o chamado “bran-


queamento” da população brasileira, isto é, o declínio rela-
tivo da população negra do país (Fernandes, 1969; Saunders,
1958; e Bastide, 1974b).
Finalmente, para a mulher escrava e seus descenden-
tes, as condições da escravidão e dos períodos subsequentes
tiveram o efeito de sacudir a relação de subordinação com
respeito aos seus pares, à qual teriam sido relegadas nas suas
sociedades de origem. Elas tinham mais chances de se em-
pregar nos serviços domésticos ou de ser tomadas como con-
cubinas por seus amos, e por tal razão tiveram, em geral, um
contato mais próximo com o estilo de vida das classes altas
do que os homens e, portanto, puderam adquirir certas ha-
bilidades e conhecimentos que lhes permitiram lidar me-
lhor com aqueles no poder. Estas habilidades, incluindo a
possibilidade de recorrer ao comércio ocasional do sexo em
situações de necessidade, elas continuaram a ter para sua
sobrevivência mesmo depois de terminada a escravidão, en-
quanto os homens foram maciçamente condenados ao de-
semprego e, em muitos casos, até expulsos dos trabalhos em
que haviam servido por três séculos, para serem substituídos
por imigrantes europeus. Em relação a isto, Landes chegou a
sugerir que
devido ao fato de a personalidade feminina continuar
a modelar-se sobre a base das necessidades primárias
da família e dos filhos, é provavelmente menos lesada
ou exposta que a dos homens quando a ordem social
é destruída, enquanto a destruição social desarraiga
violentamente a personalidade masculina das empre-
sas de governo, propriedade e guerra, prestigiosas e
intrincadas, embora socialmente secundárias. Sob o
regime de escravidão, pois, os homens negros experi-
mentaram uma humilhação provavelmente mais pro-
funda e mais inconsolável que as mulheres (Landes,
1959/65):
84 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

De fato, o poder e a autoridade que os homens tradicio-


nalmente podiam exercer sobre suas mulheres e descenden-
tes, mesmo naquelas sociedades africanas onde elas têm mais
acesso à independência econômica e a posições de alto status,
foram minados no Brasil pelas leis da escravidão. Estes ho-
mens, então, perderam qualquer tipo de controle sobre espo-
sas e filhos e foram expulsos dos papéis sociais que sempre
haviam desempenhado. Nenhuma identidade alternativa foi
deixada ao seu alcance no que diz respeito às relações fami-
liares. O modelo do pater familias branco ficou igualmente
fora das suas possibilidades. Com isto, um dos produtos sociais
da escravidão foi, provavelmente, não só a mudança dos pa-
drões de comportamento, mas, sobretudo, no que se refere às
concepções do que homens e mulheres representam cultural-
mente e do que se espera que façam socialmente. Esta situa-
ção foi prolongada depois do fim da escravidão como
consequência da marginalidade econômica a que ficaram con-
denados os homens de cor.
Como parte deste processo, a própria sexualidade pare-
ce ter adquirido um novo significado. Florestan Fernandes
atribuiu o chamado “erotismo” do negro brasileiro à desor-
ganização social decorrente da sua condição. Embora eu não
concorde com o tom valorativo de seus termos, é interessante
citá-los:
(..) ocorriam relações heterossexuais entre irmãos e
irmãs e entre primos e também se formavam pares e
grupos homossexuais, dos quais podiam participar
amigos da vizinhança (..) Privados das garantias so-
ciais que mereciam e necessitam urgentemente, e
deslocados dos centros de interesse vitais para o cres-
cimento econômico e para o desenvolvimento sócio-
cultural, eles descobriram no corpo humano uma
fonte indestrutível de auto-afirmação, compensação
do prestígio e auto-realização (..) Nenhuma disci-
plina interna ou externa sublimou a natureza
INVENTANDO A NATUREZA ... 85

emocional ou o significado psicológico do prazer se-


“xual (...) Foi a escravidão que quebrou estas barrei-
ras (...) impedindo a seleção de parceiros e até os
momentos de encontros amorosos, forçando uma mu-
lher a servir a vários homens e encorajando o coito
como um mero meio de aliviar a carne (...) A maneira
pela qual o sexo se tornou o tópico central do inte-
resse das pessoas e denominou suas relações sociais,
transformando-se numa esfera de expressão artísti-
ca, competição por prestígio e congenialidade (e, por-
tanto, de associação comunitária), claramente indica
a falta de certas influências socializantes que se ori-
ginam e são controladas pela família (..); mas a fa-
mília não conseguiu estabelecer-se e não teve um
efeito sócio-psicológico e sócio-cultural sobre o de-
senvolvimento da personalidade básica, o controle do
comportamento egocêntrico e anti-social, e o desen-
volvimento dos laços de solidariedade. Isto pode ser
historicamente confirmado com uma simples reterên-
cia à principal política da sociedade senhorial e
escravocrata no Brasil, a qual sempre procurou im-
pedir a vida social organizada da família entre os es-
cravos (Fernandes, 1969, pp. 82-85).
Talvez a mudança do comportamento sexual dos afro-
brasileiros em relação aos seus antepassados africanos e, par”
ticularmente, à frequência de comportamentos homossexuais
característica de alguns grupos, como é o caso do xangô,
possa ser atribuída à igualdade imposta a todos os escravos,
homens e mulheres, pelo sistema escravocrata e à consequen-
te perda de poder por parte dos primeiros. Esta igualdade
resultou de virtual erradicação da instituição da família, já
que cada indivíduo era propriedade de um amo. Esta sujei-
ção direta ao dono e o desestímulo sistemático da procriação
obliteraram legalmente qualquer forma de organização hie-
rárquica tradicional baseada no parentesco entre escravos
86 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

ou, pelo menos, dificultaram gravemente sua continuidade.


Pode ter acontecido, então, que os escravos e seus descendentes
se transformaram, na qualidade de grupo, na mais elementar,
na menos socializada de todas as sociedades possíveis, uma so-
ciedade na qual tanto as velhas instituições africanas como as
novas luso-brasileiras puderam imprimir somente marcas su-
perficiais. Se isto for verdade, então torna-se compreensível
que a verdadeira natureza indiferenciada da pulsão sexual
tenha transparecido nas práticas dos membros destes grupos.
Resenhando criticamente o tratamento que Lévi-Strauss
(1971, p. 348) dá à mulher nos seus trabalhos sobre paren-
tesco, Rubin analisa a afirmação desse autor de que a divisão
sexual do trabalho não é mais que um artifício para instituir
um estado de dependência recíproca entre os sexos (e, assim,
garantir a procriação), e comenta:
(..) (ao dizer que) os indivíduos são encaixados em
categorias do gênero para que a cópula seja garanti-
da, Lévi-Strauss chega perigosamente perto de dizer
que a heterossexualidade é um processo instituído.
Se os imperativos biológicos e hormonais fossem tão
determinantes como a mitologia popular os conside-
ra, não seria necessário promover uniões heterosse-
xuais por meio da interdependência econômica
(Rubin, 1975, p. 180).
Desta maneira, para Rubin, oposições entre homens e
mulheres, “longe de ser uma expressão das diferenças natu-
rais..., é a supressão de similaridades naturais” e “requer a
repressão, nos homens, de quaisquer que sejam os traços “fe-
mininos” de comportamento na versão local e nas mulheres,
daqueles traços definidos localmente como “masculinos”, com
a finalidade cultural de opor uns aos outros. Este processo re-
sulta num “sistema sexo/gênero” que a autora descreve como
“o conjunto de arranjos pelos quais uma sociedade transfor-
ma a sexualidade biológica num produto da atividade huma-
INVENTANDO A NATUREZA ... 87

na e através dos quais tais necessidades sexuais são satisfei-


tas” (Rubin, 1971, p. 159). Segundo Rubin, em todas as socie-
dades, a personalidade individual e os atributos sexuais são
“oenerizados”, isto é, forçados pela cultura a adequar-se a
«“camisa-de-força do gênero” (p. 200). Tais sistemas sexo/gê-
nero “não são emanações a-históricas da mente humana?” mas
“produtos da atividade humana, que é histórica”? (p. 204). É,
então, historicamente que o componente homossexual da se-
xualidade humana é suprimido como parte do processo de
imposição do gênero sobre os indivíduos e com a finalidade
de garantir a existência e a continuidade da instituição do
matrimônio. Desta perspectiva, torna-se compreensível que,
apesar de muitas sociedades humanas aceitarem a existência
de homossexuais (vide resenha do registro antropológico exis-
tente sobre os casos mais conhecidos em Fry e MacRae, 1985,
pp. 33-45), e ainda outras, o casamento entre pessoas do mes-
mo sexo (é clássico o exemplo relatado na literatura por Evans-
Pritchard, em 1945 e 1951, e vide resenha sobre o tema em
O'Brien, 1977), isto não abala o processo mesmo de gene-
rização, já que, para estes casais existirem, eles devem, outra
vez, transformar-se em equivalentes sociais dos casais hete-
rossexuais, isto é, traduzir sua relação em termos de gênero.
Seus membros passam, então, a ser concebidos como homens
e mulheres sociais: “uma união de sexos opostos socialmen-
te definidos” (Rubin, 1975, p. 181), ou um casamento “en-
tre os papéis conceituais de homem e mulher” (Riviére, 1981,
p. 68).
Mas, no caso brasileiro, os fatores que acabo de vincular
ao regime escravocrata podem ter determinado um afrouxa-
mento dos imperativos que, tradicionalmente, regeram a cons-
trução do gênero e a consequente determinação genérica da
sexualidade. Isto não significa que a homossexualidade tenha
sido diretamente promovida, mas que a heterossexualidade, de
acordo com o sugerido por Rubin, pode ter perdido seu papel
central, deixando a escolha aberta às oposições individuais.
88 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

De outro ponto de vista, Ortner e Whitehead sugerem


que “um sistema de gênero é, em si mesmo, primeiramente e,
sobretudo, uma estrutura de prestígio... Sendo os homens, en-
quanto homens, superiores... em toda sociedade conhecida”
(1981, p. 16). De acordo com estas autoras, as estruturas de
prestígio são tão relevantes para “generizar” a sociedade que
a própria forma que a sexualidade assume depende delas. As-
sim, o erotismo é tão condicionado por preocupações de or-
dem social que, pesquisando as estruturas subjacentes da
fantasia em diferentes sociedades, os estudiosos acham “um
universo de psiques ansiosas por status, onde, por um lado,
insiste-se numa direção na qual o erótico ameaça o acesso a
posições sociais almejadas e, por outro, tenta-se descobrir de
que maneiras este último pode ser evitado” (p. 24). Se for as-
sim, é possível que o colapso da estrutura hierárquica familiar
e o consequente nivelamento das relações entre homens e mu-
lheres escravos tenham tido um efeito liberador sobre seu ero-
tismo. Pelo fato de escravos, especialmente os homens, terem
tido pouco acesso às estruturas de prestígio vigentes, o erotis-
mo pode ter perdido a orientação hierárquica entre eles. Além
disto, não deve ser esquecido o fato de que, apesar de sempre
frequentes, as relações sexuais entre brancos e pretas ou mu-
latas, os casamentos racialmente mistos foram e continuam a
ser muito raros, podendo-se dizer que a mistura das duas so-
ciedades nunca foi efetiva no nível institucional, e os negros,
como grupo social, foram maciçamente mantidos fora das es-
truturas de prestígio vigentes e das famílias da sociedade bran-
ca brasileira (ver, por exemplo, Ianni, 1972, pp. 123-129,
137). Por outro lado, como já foi dito, a família negra não
conseguiu abrir caminho ao longo dos anos de escravidão, nem
depois. Com isto, é possível que a sexualidade e suas formas
prescritas de expressão tenham-se liberado do filtro ideológi-
co que escurece sua verdadeira essência e que transforma o
erotismo em meio apto à negociação por prestígio. A ênfase
na heterossexualidade, então, se não desapareceu, foi, prova-
INVENTANDO A NATUREZA ... 89

velmente, debilitada e, tal como se depreende da análise de


Rubin, quando a heterossexualidade deixou de ser promovida
ativamente pelos mecanismos da cultura, ela continuou ape-
nas como uma das opções possíveis e não mais como a prática
exclusiva e “natural”.
Há poucos dados históricos sobre a sexualidade duran-
te a escravidão. Bastide, no seu intento de abordagem psica-
nalítica do cafuné, sugere que ele constitui uma sublimação
da proclividade homossexual entre as mulheres e enumera
abundantes alegações de lesbianismo entre meninas e mu-
lheres de diferentes classes sociais levadas às cortes da
Inquisição na Bahia e em Pernambuco (Bastide, 1959). Em
outra publicação, o mesmo autor procura uma explicação
para o grande número de homens homossexuais no culto,
apontando a presença de escravos islamizados entre os quais
a homossexualidade teria sido frequente, segundo Bastide,
assim como a prática de encerrar, separadamente, homens e
mulheres nas horas de descanso (Bastide, 1954, pp. 93-94).
Ele acrescenta que a prática contemporânea de atribuir san-
tos femininos a homens pode reforçar esta propensão à ho-
mossexualidade, já que os induz a desenvolver os aspectos
femininos de sua personalidade. Mais recentemente, Mott
(1982a e b) fez um levantamento dos casos de homossexua-
lidade no Brasil colonial e escravocrata. João Trevisan, em
publicação de 1986, também oferece abundantes exemplos
das acusações de sodomia e homossexualidade nas cortes co-
loniais da Inquisição e defende a tese de que o luxo de um
“desejo indômito” (1986, p. 34) seria uma característica da
experiência histórica brasileira.
Além das explicações de cunho histórico dadas por
Bastide, outros autores tentaram entender a importância nu-
mérica dos homossexuais apoiando-se em aspectos contem-
porâneos dos cultos afro-brasileiros na Bahia (Landes, 1940),
no Recife (Ribeiro, 1969) e em Belém (Fry, 1977). No primei-
ro caso, Landes presume que, devido a ser o culto um
90 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

“matriarcado” (as mulheres detêm o poder no seu papel de


mães-de-santo), “o candomblé proporciona amplas oportu-
nidades” para homens que “querem ser mulheres”? (1940, p.
394). No segundo caso, argumenta-se que o culto é procura-
do por homossexuais ou homens “com problemas de ajusta-
mento sexual” porque ele satisfaz sua necessidade de estar em
companhia de mulheres e “exibir seus maneirismos ou iden-
tificar-se com deidades femininas”, e porque é um modo de
achar compensação pelas frustrações que sofrem na socieda-
de envolvente. Assim, nos diz Ribeiro, o culto “não pode ser
tido como responsável pelos seus desvios sexuais” (Ribeiro,
1969, p. 119); a visão preconceituosa do autor torna-se evi-
dente nos termos da sua argumentação. Finalmente, Fry, ins-
pirado por Mary Douglas, Petter Brown e loan Lewis, sugere
que, devido aos poderes mágicos serem relacionados com a
periferia da sociedade, não surpreende que também sejam as-
sociados com as pessoas definidas como marginais (1977, pp.
120-121). Todos estes autores mencionam, em algum ponto
de seus argumentos, que os homens podem dançar possuídos
por espíritos femininos e identificar-se com estes, e que o cul-
to lhes oferece a possibilidade de sobressaírem no desempe-
nho de tarefas domésticas, reservadas às mulheres na sociedade
mais ampla. Nenhum destes autores abordou a forte presença
da homossexualidade feminina.
Quanto a mim, vejo as homossexualidades masculina e
feminina como formando parte da gama de comportamen-
tos normais dos componentes das casas estudadas e, por isto,
pareceu-me apropriado buscar a raiz desta peculiaridade na
história do grupo. Quero advertir que isto não significa pro-
curar uma explicação para a homossexualidade mesma, que
é parte da natureza do homem, mas tentar entender como
aquilo que contravém as normas da sociedade brasileira não
contravém as normas do xangô. Se o que aqui proponho é
correto, o trauma imposto pela escravidão aos velhos siste-
mas de parentesco permitiu a emergência das formas de
INVENTANDO A NATUREZA ... oi

sexualidade que eles reprimiam. Estas formas, então, tradi-


cionalizaram-se e foram descritas por muitos dos meus in-
formantes como “um costume” entre o povo do culto. Mais
do que a uma mudança aparente de comportamento, tento
apontar para o que considero uma reformulação das catego-
rias cognitivas relativas ao gênero e à sexualidade e, portan-
to, à concepção do Eu e da identidade entre os membros do
culto xangô da tradição nagô do Recife. Fica ainda por ana-
lisar a maneira com que fatores como os que pretendi
iluminar podem ter afetado estas mesmas categorias e os
comportamentos que elas ordenam entre classes que não
passaram pela experiência direta da sujeição no regime
escravista, assim como avaliar a incidência desta experiên-
cia na visão de mundo e no comportamento desses outros
setores da sociedade brasileira.
- Não foram apenas os padrões tradicionais de casamento
e sexualidade que parecem ter-se alterado com o colapso so-
cial causado pela escravidão, mas também a noção mesma de
relacionamento “de sangue” ou substância biogenética. De fato,
como foi dito, não só encontrei difundidos o costume da ho-
mossexualidade e uma atitude militante contra o matrimônio,
mas também uma preferência explícita pelas relações de pa-
rentesco fictício, seja as de mãe ou pai de criação — filhos de
criação, seja as constituídas pela familia-de-santo. Os dados
biológicos relacionados a sexo e nascimento são, consistente-
mente, relativizados pela ideologia, pelas normas e pelas prá-
ticas dos membros do culto. Os traços da personalidade
individual, expressos através da atribuição de um santo, têm
preeminência sobre atributos biológicos do sexo, assim como
os parentes “de santo” têm preeminência sobre os “de san-
gue”. Como vimos no começo deste trabalho, todas estas no-
ções e valores estão representados nas descrições dos orixás
contidas nos mitos.
É também no processo histórico da escravião que podem
ser buscadas as raízes desta ênfase no parentesco fictício. Mintz
92 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

e Price, numa tentativa conjunta de aplicar a análise antropo-


lógica ao passado afro-norte-americano, registram que os es-
cravos
defrontados com a ausência de parentes verdadei-
ros (...) igualmente modelaram seus novos vínculos
sociais sobre aqueles do parentesco, frequentemente
tomando emprestados os termos usados por seus
amos para denominar seu relacionamento com pes-
soas da mesma idade e outras mais velhas — “bro”,
“uncle”,7 «é“auntie,22 GEgran etc QMiniZze Price, 1210,
p.35).
De fato, estas pessoas, tendo às vezes que suportar “im-
posições terríveis, e geralmente inevitáveis”, bem como “o
poder total” dos amos, necessitaram “gerar formas sociais que
permitissem sua adaptação, ainda sob estas condições difíceis”
(p. 35). Quem sabe, este mesmo tipo de formas de parentesco
fictício, frequentemente transitório, foi também o anteceden-
te da família-de-santo no Brasil. Além disso, a separação de
mãe e filhos, de acordo com os interesses do tráfico, ou a im-
possibilidade delas de criá-los devido ao duro regime de tra-
balho, doenças e morte prematura, pode ter originado o valor
positivo atribuído ao parentesco de criação sobre o que eles
descrevem como parentesco “legítimo”, ou seja, biogenético.
O mesmo fato de que as mulheres negras, muitas vezes, tive-
ram que servir como babás das crianças brancas, devotando
muitos anos das suas vidas a estas, pode também ser uma res-
posta a esta preferência.

2. Mobilidade (ou transitividade) de gênero: a relativização


do biológico no complexo simbólico do xangô

Como espero ter ficado claro nas seções precedentes,


apesar de os laços de sangue serem considerados de impor-
tância secundária, de todo modo os termos de parentesco são
INVENTANDO A NATUREZA ... 93

usados e as relações familiares servem de modelo para a rede


de relações cnamadas família-de-santo. Da mesma maneira,
as noções de masculino e feminino, tal como são definidas pela
ideologia das instituições brasileiras, são também usadas, ape-
sar de seu significado ser subvertido pela própria forma em
que elas são aplicadas a indivíduos particulares para classificá-
los. Por este último fator, o culto xangô proporciona um caso
útil para testar se o “gênero enquanto esquema cognitivo”
(Lipsitz Bem, 1979, p.1052) tem caráter histórico ou é
imanente à natureza humana.
Archer e Lloyd, aplicando o modelo de Bateson, sus-
tentam que “o potencial para classificar e atuar sobre a base
de categorias, tais como a de macho e fêmea”, é inato (Archer
e Lloyd, 1982, pp. 211-212), embora o conteúdo associado
a estas categorias dependa de influências ambientais exter-
nas. Em relação a essa questão, Lipsitz Bem toma a posição
exatamente oposta, sugerindo que é a prática da heteros-
sexualidade e a “onipresente insistência da sociedade na
importância da dicotomia de gênero” que faz com que os
indivíduos “organizem a informação, em geral, e seus con-
ceitos de si mesmos, em particular, em termos de gênero”
(Lipsitz Bem, 1981, p. 362). Lipsitz Bem argumenta daí, que,
numa sociedade constituída por indivíduos andróginos — isto
é, indivíduos “não-tipificados por sexo” que são “flexivel-
mente masculinos ou femininos segundo as circunstâncias”
porque “incorporam o masculino e o feminino dentro de si
mesmos” — , os conceitos de masculino e feminino tornar-
se-ão ultrapassados juntamente com a “ênfase gratuita” no
“processamento com base no esquema de gênero” (1981,
pp. 362-363).
Em síntese, as condutas humanas e os atributos de
personalidade deverão deixar de ter género e a socie-
dade deverá deixar de projetar gênero em situações
que são irrelevantes para a genitália (...) Serão elimi-
nados os artificiais imperativos do gênero sobre a
94 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

singular combinação de temperamento e conduta pró-


pria de cada indivíduo (1981, p. 363).
Como mostrei, o desestímulo da reprodução pela políti-
ca escravocrata no Brasil, juntamente com uma série de fato-
res relacionados, parece ter liberado, pelo menos em alguns
meios, as práticas sexuais de interesse funcional na heteros-
sexualidade. Sugiro que, com isto, emergiu uma sociedade onde
a opção pela heterossexualidade e a opção pela homossexuali-
dade ficaram igualmente abertas à preferência individual, ge-
rando-se uma nova maneira de operar com a oposição
feminino-masculino. De fato, os membros do culto xangô po-
dem ser considerados uma instância da “sociedade andrógina”
postulada por Lipsitz Bem. Contudo, invalidando predição de
Lipsitz Bem, o esquema cognitivo de gênero não desapareceu,
mas foi, sim, efetivamente liberado da camisa-de-força das
associações obrigatórias entre dados da natureza (represen-
tados no ritual), papéis sociais (desempenhados pela família-
de-santo), personalidade (expressa no santo da pessoa) e
sexualidade. Consequentemente, entre os membros do xangô,
a identidade pessoal caracteriza-se por um certo grau do que
se poderia denominar “mobilidade de gênero” (que Lipsitz
Bem chama de androginia), o que significa que os indivíduos
podem, em momentos diferentes e de acordo com a situação,
invocar componentes diversos de gênero que formam parte
de sua identidade e, assim, transitar da identificação com uma
categoria de gênero a outra fluidamente. Resumindo, embora
os membros do culto continuem usando este tipo de categoria,
sua concepção da sexualidade pode ser descrita como “não-
essencialista”:
“essencialismo” (...) é a compreensão da sexualidade ou
a prática sexual como “uma essência”, uma parte da
natureza humana ou “inerente” (..) Em outras pala-
vras, o sexual é visto como tendo a ver com uma carac-
ferística permanente baseada na constituição biológica
da pessoa. É fixo e imutável. (Ettorre, 1980, ps26).
INVENTANDO A NATUREZA ... 95

Uma postura de caráter não-essencialista permeia três


conjuntos de noções da visão de mundo do xangô: 1) a nega-
ção do imperativo do fundamento natural (o que Schneider,
1977, denominou “substância física compartilhada”, ou
“aparentamento biológico”, como base de relacionamentos
caracterizados pela solidariedade mútua e organizados de
acordo com o modelo da família; 2) a negação do funda-
mento “natural” das categorias de gênero, isto é, a decom-
posição do sistema sexo/gênero em suas partes constitutivas,
que não são vistas como interdependentes; e 3) a negação do
fundamento “natural” da relação materna, isto é, a decom-
posição da equivalência entre mãe progenitora e mãe de
criação. Ainda mais, é na figura de Iansã, “a rainha dos espi-
ritos”, que o axioma não-essencialista do culto encontra sua
expressão mais sintética: Iansã foi homem e se transformou
em mulher, tem corpo de mulher e determinação masculi-
na, rejeita a maternidade, e é um orixá de guerra e defensor
da justiça.
Com sua relativização do biológico e seu peculiar tra-
tamento da identidade de gênero, os membros do xangô pos-
tulam a independência da esfera da sexualidade, deixando
transparecer a premissa implícita na fluidez e liberdade do
desejo humano, só com dificuldade subordinável a categori-
as essenciais ou identidades rígidas. Tal premissa aproxima
o pensamento do xangô ao pensamento ocidental contempo-
râneo que descobre o “nomadismo” do desejo e levanta sus-
peitas contra todo intento de “reterritorialização” do sexual,
onde “a multiplicidade nômade dos relacionamentos circuns-
tanciais” (Perlongher, 1986, p. 10) seja substituída por iden-
tidades de ordem social ou psicológica. É possível, então, que
esta premissa fundamental da visão de mundo do xangô es-
teja no cerne do fato, tão repetidamente mencionado na lite-
ratura, da afinidade entre esse tipo de culto e a vivência
homossexual.
96 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

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Inscrições e Marcas dos Orixás*
José Flávio Pessoa de BARROS**
Maria Lina Leão TEIXEIRA ***

De acordo com nossa visão, o candomblé pode ser definido


como uma manifestação religiosa resultante da reelaboração
das várias visões de mundo e de ethos provenientes das múlti-
plas etnias africanas que, a partir do século XVI, foram trazidas
para o Brasil. É somente no século XVIII que esta designação vai
ser encontrada aplicada aos grupos negros organizados e espa-
cialmente localizados. Verger (1981), porém, indica as primei-
ras menções às religiões africanas no Brasil como as existentes
nas anotações feitas pela Inquisição em 1680.
Os terreiros, roças ou casas-de-santo, denominações cor-
rentes utilizadas para nomear os espaços e grupos de culto
aos deuses africanos — orixás, inquices e voduns — represen-
tam assim, historicamente, uma forma de resistência cultural
e de coesão social (Nina Rodrigues, 1977). As formas de ex-
pressão da religiosidade africana, no caso brasileiro, podem
ser consideradas fatores fundamentais para a formação de
reagrupamentos institucionalizados de africanos e seus des-

* Este trabalho foi originalmente apresentado na Eight International Conference


of the Southern Neuropsychiatric Institute: Folk Healing and Occult Practices of
South America, RJ, janeiro de 1988.

** Antropólogo, professor adjunto da UERJ, doutor pela USP e pós-doutor pela


Universidade de Paris V.
*** Doutora em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP. Professora aposentada da UFRJ e prof! visitante com bolsa do
CNPq, no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFRN.
104 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

cendentes, escravos, foragidos e libertos. Ao lado de associa-


ções religiosas propriamente ditas, como terreiros e irmanda-
des de igrejas católicas, desenvolveram-se durante a escravidão
formas de resistência política — os quilombos — que geralmente
estavam associadas a práticas religiosas africanas. Nesta pers-
pectiva, a religiosidade originou e alicerçou formas especiífi-
cas que particularizam e definem relações interpessoais, regras
e valores que identificam os adeptos e as suas respectivas for-
mas de expressão religiosa.
A religião também proporcionou a existência de uma lin-
guagem peculiar que reúne termos e expressões em português
e outros africanizados, cujos conteúdos simbólicos obedecem
a uma lógica própria. No texto, as palavras de origem africa-
na estão em itálico e as que figuram em língua portuguesa
que representam terminologia empregada nos terreiros apa-
recem entre aspas, conforme grafia, sentido e pronúncia ob-
servados nas casas-de-santo, pelos participantes.
É importante notar que originalmente, na África, as di-
vindades cultuadas estavam ligadas à família, cidade ou re-
gião, o que promovia a caracterização de cultos grupais e
regionais, ou, mais raramente, de cultos de caráter nacional.
No Brasil, devido à diáspora negra, os orixás, inquices e voduns
assumem um outro caráter, sendo que “cada um deve assegu-
rar pessoalmente as minuciosas exigências do orixá, tendo,
porém, a possibilidade de encontrar num terreiro de candom-
blé um meio onde inserir-se e um pai ou mãe-de-santo com-
petente capaz de guiá-lo e ajudá-lo a cumprir corretamente
suas obrigações em relação ao seu orixá (...) Existem, em cada
terreiro de candomblé, múltiplos orixás pessoais, simbolo do
reagrupamento do que foi dispersado pelo tráfico” (Verger,
1981:33).
Portanto, de acordo com Geertz (1978, p. 103), com-
preendemos e definimos o candomblé como um complexo no
qual se verifica um conjunto de significados transmitidos his-
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS 105

toricamente, reelaborados em novo contexto e que vão dar


origem a formas simbólicas específicas, por meio das quais os
adeptos transmitem e desenvolvem seu conhecimento e suas
atitudes em relação à vida. Os terreiros de candomblé con-
gregam negros, mulatos, brancos e estrangeiros que adotam e
vivenciam esta perspectiva religiosa.
As comunidades de candomblé possuem características
próprias referentes a sua organização social extremamente
regrada e hierarquizada, bem como aos respectivos processos
de aquisição e transmissão de conhecimentos. Tais padrões e
maneiras de ser são passados e reafirmados, quase sempre,
através da iniciação religiosa e da vivência constante num ter-
reiro ou casa-de-santo.
Independentemente da configuração espacial e das
autodenominações que se atribuem, os terreiros de candom-
blé congregam indivíduos que, mediante um processo de ini-
ciação adequado a cada caso, são integrados à hierarquia
sócio-religiosa e ficam ligados por laços de parentesco mítico.
Deve-se ressaltar que os terreiros se diferenciam entre si atra-
vés da nomenclatura baseada em diferenças rituais e do
vocabulário africanizado que utilizam em suas cerimônias re-
ligiosas e atividades cotidianas.
Estes rótulos diferenciadores são as “nações”, que alu-
dem às possíveis ligações com partes do continente africano.
Assim, encontram-se terreiros ketu, angola, jeje, efam, Ijerá
etc., e ainda alguns que somam estas classificações nomean-
do-se jeje nagó, ketu-etam, angola-congo etc., todos porém
aludindo a “raízes” ou tradições africanas que consideram
importantes para suas respectivas identificações.
É interessante notar além disso que os terreiros desen-
volvem uma rede de relacionamentos sociais entre si, bem
como com outros grupos de culto que fazem parte das cha-
madas religiões afro-brasileiras, mantendo, porém, bem
demarcada a identidade de cada associação religiosa. A ma-
106 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

nutenção de um constante intercâmbio sócio-religioso faz


com que se perceba uma comunidade mais ampla e comple-
xa de “macumbeiros”, isto é, daqueles que praticam e/ou
acreditam em uma das formas de culto aos orixás, inquices e
voduns, o que torna possível a formação de um conjunto que
pode ser chamado genericamente de “povo-do-santo?”.
À iniciação é condição básica para a inserção não só no
povo-do-santo, mas para inserção numa familia-de-santo. Cos-
ta Lima (1977), investigando grupos de candomblé na Bahia,
relaciona o plano religioso e ritual com a organização social e
a estratificação presentes nos terreiros. Aponta a família-de-
santo, os laços adquiridos mediante o cumprimento do processo
iniciático, como responsável pela rede de relacionamentos e
pelos referenciais sociais, assim como pela inserção dos prati-
cantes de determinado terreiro no conjunto do povo-do-san-
to e, consequentemente, pelo enquadramento social mais
amplo. Estes laços de parentesco assumidos subentendem di-
reitos e deveres, e talvez sejam os responsáveis principais pela
minimização de diferenças sociais e de procedência étnica
porventura existentes entre os membros de cada uma das ca-
sas-de-santo. É sempre bom relembrar que atualmente as co-
munidades de candomblé reúnem indivíduos de todas as cores,
níveis socioeconômicos e até estrangeiros. A nosso ver, são es-
ses laços de parentesco que permitem a convivência de pesso-
as de posições sociais e níveis de instrução diversificados. A
iniciação faz com que os participantes de um grupo de culto
se tratem como “irmãos”, “tios”, “sobrinhos”, “filhos” etc. Isto
quer dizer que partilham uma “família”, opiniões e rituais;
melhor dizendo, possuem bens simbólicos comuns.
O relacionamento dos fiéis de cada uma das modalida-
des de culto aos orixás, inquices e voduns, e a sua inserção
na sociedade abrangente se processam de tal maneira que
demonstra não um processo dinâmico de intercâmbio de in-
divíduos e bens simbólicos, mas também uma constante tro-
ca de influências. Forma-se assim um mapa sociocultural de
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS “07

caráter amplo que é definido por essas relações e inter-rela-


ções e que compreende identidades sociais bem demarcadas.
Essas identidades, por sua vez, subentendem e caracterizam
maneiras de ser marcadas também pelos padrões da socie-
dade mais ampla, na qual são relevantes as relações de do-
minação-subordinação. Neste painel social, o item do binômio
referido está diretamente associado aos membros do povo-
do-santo.
Neste trabalho, iremos debruçar-nos sobre parte deste
complexo campo sócio-religioso, tratando de aspectos que di-
zem respeito à questão da saúde e ao sistema de classificação
das doenças.
Primeiramente pesquisamos grupos religiosos de Salva-
dor, Bahia, e num segundo momento voltamos nosso interesse
a grupos da cidade do Rio de Janeiro e da Baixada Fluminense,
todos, porém, mantendo entre si uma unidade de universo sim-
bólico e ritual, se autodenominando de candomblés ketue as-
sumindo, direta ou indiretamente, uma “origem” ou tradição
afro-baiana.
Nossa questão central diz respeito à crescente proli-
feração dos terreiros de candomblé em ambas as cidades,
bem como ao contingente maior de adeptos e de “clientes”
que recorrem às práticas terapêuticas próprias das casas-
de-santo.
Seguindo uma orientação metodológica que privilegia
as representações do corpo e os procedimentos considerados
legítimos para seu controle, objetivamos apreender a lógica
interna dessa perspectiva religiosa no que concerne à saúde.
Este foi o ponto de partida para, através das técnicas antro-
pológicas usuais, percebermos um discurso específico alia-
do a estratégias para aquisição e conservação de bem-estar
físico e social de uma parcela significativa da população ur-
bana que nem sempre deseja e/ou dispõe de recursos para
recorrer ao sistema oficial de saúde.
108 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

As representações da pessoa e do corpo

A construção social do indivíduo, da pessoa, no âmbito


dos terreiros de candomblé é desenvolvida gradualmente a
partir de, como já foi dito, um processo iniciático. A inicia-
ção e a vivência num terreiro são responsáveis pela instau-
ração lenta e paulatina de uma visão de mundo e uma
maneira de ser peculiares (Maggie & Contins, 1980; Cossard-
Binon, 1981) em um sistema de crenças que privilegia o corpo
humano e a vida.
Portanto, crenças e sentimentos básicos na vida social
dos terreiros estão associados e são remetidos ao corpo huma-
no, constituindo-se um conjunto de representações que ultra-
passam as características biológicas inerentes ao ser humano.
Esta valorização ainda pode ser explicada por ser o corpo hu-
mano o veículo da comunicação com os deuses, forças da na-
tureza, que, através da possessão ritual, incorporam em seus
“cavalos”? ou médiuns. A possessão é um dos aspectos mais
estudados e discutidos do candomblé. Os trabalhos de Roger
Bastide (1973), Juana Elbein dos Santos (1977), Pierre Verger
(1981), René Ribeiro (1982), Monique Augras (1983), Patrí-
cia Birman (1985) e Márcio Goldman (1987), entre outros
autores, abordam este fenômeno social no candomblé sob di-
ferentes enfoques metodológicos.
A nós interessa principalmente a iniciação como meca-
nismo social que subentende a internalização gradativa, no
pensar e no agir dos iniciados, da dicotomia aiéê e orum -—
mundo dos homens e mundo dos deuses, respectivamente. Esta
distinção de domínios é de fundamental importância para
marcar a especificidade da maneira de ser do participante do
candomblé. A dicotomia aludida, no entanto, apresenta-se
mediatizada pelo constante encontro dessas duas dimensões
da existência, mundo sobrenatural e mundo físico ou concre-
to, no corpo dos iniciados habilitados a “receber”, isto é, a
serem possuídos pelos orixás.
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS 109

A descida periódica dos orixás no corpo dos homens e


mulheres, geralmente já iniciados, não importando se são ido-
sos, jovens ou crianças, promove uma estreita ligação entre os
habitantes do orume do até. Se, por um lado, o corpo é veícu-
lo para as divindades, por outro ele é também fonte maior da
expressão da individualidade humana, expressando a marca
da vida social. Os autores estudaram e analisaram dois momen-
tos rituais: a roda de santo e a roda de samba dos candomblés
(Leão Teixeira, Santos & Barros, 1985), apontando para o pa-
pel relevante do corpo, podendo-se até dizer primordial, nas
instâncias sagrada e profana dos terreiros.
A maneira de ser do adepto do candomblé exprime esta
valoração dada pela perspectiva religiosa que se imprime no
corpo, estipulando seus usos e marcando a estrutura somática
individual, de forma que o psíquico, o físico e o coletivo pos-
sam formar um complexo que somente a abstração pode se-
parar (Rodrigues, 1979, p. 47).
Pode-se dizer então que a possessão suprime perio-
dicamente a distância entre estes dois mundos —o aié e o orum
— “fazendo com que os orixás encarnem nos homens e trans-
mitam a estes alguma coisa de sua essência divina, ao mesmo
tempo em que uma certa dose de humanidade lhes é insuflada
pelos fiéis que concordam em recebê-los” (Goldman, 1987,
Bash Lab).
Tais colocações nos permitem considerar que, neste con-
texto, doenças e doentes são categorias sociais explicadas de
acordo com a visão de mundo do candomblé, variando, então,
obviamente, tanto doenças como doentes. As causas de males
e os diagnósticos subsequentes apresentam-se indissociados
da cosmologia e da concepção mágico-religiosa, refletindo o
conjunto das relações sociais e os princípios básicos desse
universo.
Percebemos que no correr da iniciação a noção de equi-
líbrio é identificada à de saúde. A valorização do equilíbrio e
110 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

da ordem conduz à exigência de que todos os animais utiliza-


dos nos sacrifícios que acompanham os rituais iniciáticos se-
jam perfeitos e em conformidade com outros de sua espécie,
evidenciando assim que tais noções são sinônimos de saúde,
sendo esta considerada bem inestimável e própria da nature-
za. Na maioria dos casos observados, o processo iniciático de-
senvolveu-se justamente por motivos de doença, isto é, para a
obtenção de um estado de saúde equilibrado que seja mani-
festo em bem-estar físico e social. Observamos ainda que um
dos apelos mais fortes e constantes para a inserção e conse-
quente cumprimento da iniciação parcial ou total são os pro-
blemas de saúde, interpretados e diagnosticados como
manifestação ou “marca” de um dos orixás sobre alguém que
é seu “filho”. Isto significa que a doença é vista como um si-
nal de uma causa sobrenatural, ao que voltaremos mais adi-
ante.

Acreditam os adeptos do candomblé que a saúde e o bem-


estar só serão restabelecidos após o cumprimento de certas
obrigações rituais que formalizem e, a partir daí, equilibrem
a relação entre o indivíduo e seu orixá.
No candomblé, não encontramos o dualismo corpo e
alma. Ao contrário, percebemos, como Lépine (1983, pr em
que a “alma tem qualquer coisa de material e o corpo alguma
coisa de espiritual”, o que está de acordo com a idéia de que
tudo que existe no aié, mundo físico ou natural, também se
encontra no orum, mundo sobrenatural, e vice-versa. Note-
se ainda, como mostrado por Elbein dos Santos (1977, p. 56),
que os habitantes do “Além”, dobles espirituais dos humanos,
são denominados arca-orum (corpos do orum); e os habitan-
tes da Terra, a humanidade, são os ara-aié (corpos da Terra).
À iniciação, cumprindo a formalização do contrato en-
tre indivíduo e divindade, marca diacriticamente o ser soci-
al em formação, uma vez que a relação estabelecida é única
e individualizada. Mesmo quando os adeptos apenas cum-
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS “au
prem parcialmente a iniciação, ficam eles definidos por esta
relação contratual e inseridos socialmente na comunidade
religiosa.
Isto se refere às etapas preliminares da “lavagem de con-
tas”, o recebimento do colar sacralizado cujas contas são da
cor insígnia do seu orixá, ou a rituais como o bori, cerimônia
mais complexa destinada a reforçar a cabeça do iniciante, que
supõe um período de recolhimento e descanso do corpo, e ain-
da ao “assentamento do santo”, quando é construída
ritualmente uma representação e são sacralizados objetos que
representam o orixá associado ao fiel.
Entendemos que a construção social da pessoa no can-
domblé expressa, desta forma, tanto o processo de individuação
como o de integração social. Evidentemente as relações soci-
ais não são reproduções exatas do pensamento religioso, mas
as articulações produzidas pelos padrões desse ethos geram a
peculiaridade do sistema de relações sociais e do discurso
(Montero, 1985).
O panteão das divindades presentes nos candomblés Ketu
pesquisados compreende 16 orixás, referenciais básicos para
a organização das relações sociais, uma vez que são os opera-
dores classificatórios (Lévi-Strauss, 1970) e ordenadores de
um sistema expresso nas atividades religiosas e cotidianas dos
participantes dos terreiros. As pesquisas desenvolvidas por
Claude Lépine (1978), Pierre Verger (1981), Cossard-Binon
(1981) e Monique Augras (1983) examinam detalhadamente,
sob diferentes enfoques metodológicos, as relações existentes
entre os arquétipos dos orixás e a personalidade dos inicia-
dos, com evidente preocupação de estabelecerem uma psico-
logia social própria do candomblé.
Cada um desses orixás é concebido como associado a um
dos quatro elementos naturais: água, fogo, terra e ar. São con-
cebidos ainda como masculinos, femininos e “metá-metá” —
divindades ao mesmo tempo ou alternadamente masculinas e
1142 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

femininas. Cada divindade é relacionada intimamente a fenô-


menos meteorológicos, cores, formas, dias da semana, animais,
minerais e espécies vegetais. Assim sendo, pode-se pensar cada
orixá como um arquétipo que informa e fornece padrões de
temperamento e comportamento.

De acordo com a idéia fundamental da existência de vín-


culos entre o indivíduo e as divindades, é primeiramente ne-
cessário a alguém saber a qual dos orixás “pertence”, melhor
dizendo “de quem é filho”, ao mesmo tempo que conhece de
quais outras divindades recebe influências secundárias. Isto é
tomar conhecimento do que é chamado de “carrego de san-
to?, característica de todo ser humano. Percebemos que neste
caso está implícita a tentativa de construção de uma família
através da reconstrução da família mítica, tentativa esta que
talvez vise minorar a desagregação familiar inerente ao siste-
ma escravocrata brasileiro.
Para tanto, é necessário consultar um especialista, pai
ou mãe-de-santo, por meio do “jogo de búzios”, sistema
divinatório que se exprime por sinais que estão remetidos a
histórias e mitos —os Odu. O veredicto do especialista não só
revela tal questão como produz diagnósticos referentes a do-
enças e a outras aflições manifestas pelos clientes e adeptos,
sobretudo aquelas que dizem respeito a problemas econômi-
cos e sentimentais.
Uma vez conhecido o orixá principal e o tipo de inicia-
ção e/ou tratamento pertinente a que o consulente deve se
submeter, uma série de atividades rituais geralmente são pres-
critas e devem ser cumpridas. É claro que nem todos precisam
chegar à etapa máxima da iniciação — a “feitura do santo” —
que permite ao iniciante receber a sua divindade e ingressar
na categoria sacerdotal. Os diferentes períodos de reclusão
cumpridos e os rituais realizados, como já foi dito, é que vão
marcar diferencialmente os graus de compromisso e, conse-
quentemente, o status dentro do grupo.
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS 113

O corpo, dentro desta perspectiva religiosa, se encontra


diretamente relacionado a uma divindade e, por extensão, a
um dos elementos naturais primordiais e demais coisas a ela
associadas. É percebido, assim, como uma manifestação da ação
sobrenatural. Conta-se que a sua criação se deve a um orixá
primordial, uma qualidade de Oxalá chamada Ajalá, o fazedor
de cabeças, que, aleatoriamente, combina diferentes elemen-
tos naturais no orum, na moldagem do doble do ser humano.
Explica-se desta maneira não só a importância da cabeça —
Ori —- e o papel destacado que ela assume em qualquer dos
rituais de iniciação, mas também a do orixá Oxalá, conside-
rado “pai de todos”. Uma vez produzido este doble, a vida lhe
é insuflada pelo hálito divino — emi —de Orinxalá, outro titu-
lo de Oxalá.
O orixá principal do indivíduo é definido a partir da
predominância de determinado elemento a ele associado na
composição de seu corpo. Ao elemento água estão associa-
das as divindades femininas — as “iabás” — Nanã, Iemanjá,
Oxum, Euá e Obá; ao elemento ar, Oxalá (masculino) e Iansã
(feminina); à terra, Ogum, Oxóssi, Obaluaiê, Iroko e Ossãim
(masculino): ao fogo, Exu e Xangô (masculinos). Os orixás
Oxumaré e Logunedé são considerados “metá-metá”, es-
tando, por sua essência dupla, associados tanto à terra como
a água.
Apesar de o corpo humano ser pensado como um verda-
deiro microcosmo, certas partes são vistas como fundamen-
tais para o equilíbrio da totalidade.
A parte superior do corpo, a cabeça, está diretamente
associada aos orixás, e “feitura da cabeça” ou “feitura do orixá”
se direciona para a descoberta dos elementos que a compóem,
e em busca de uma identidade própria. “Fazer o santo” ou
“fazer a cabeça” pode significar para o iniciante a possibili-
dade de se descobrir enquanto pessoa e, ao mesmo tempo, es-
tabelecer elos religiosos e sociais permanentes.
114 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

A frente do corpo, especialmente a fronte, se encontra


associada ao futuro; a parte posterior, sobretudo a nuca, ao
passado.
Os membros inferiores estão associados aos ancestrais,
sendo que nos rituais de iniciação esta relação é reforçada e
atualizada. O lado direito do corpo é considerado masculi-
no; o esquerdo, feminino, dizendo respeito à ancestralidade
masculina e feminina, respectivamente. Observamos que em
vários rituais a sola dos pés deve permanecer em contato
com o chão, visando ao estabelecimento da ligação com im-
portantes poderes que emanam do elemento terra, também
chamado de aiê. Já as mãos são consideradas como entrada e
saída de forças provenientes dos orixás incorporados em seus
“filhos”: Desempenham desta forma papel importante na
dramatização da vida social, pois gestos adequados são es-
senciais no cotidiano das relações sociais. Exemplificando,
quando as palmas das mãos se encontram estendidas, volta-
das para cima, frente ao corpo, em direção à autoridade,
expressam uma atitude de submissão, de “pedir a bênção”.
Quando apenas a palma da mão direita é levantada, indica a
bênção concedida por uma pessoa portadora de prestígio e
autoridade.
Em sentido amplo, o toque das mãos sobre o corpo de
alguém é ritualizado e exprime diferença de status no grupo
e tempo de iniciação. Porém, por ocasião da presença dos
orixás, isto é, quando se dá o fenômeno da possessão, é permi-
tido e recomendado à pessoa “mais nova”, de iniciação mais
recente, tocar o corpo e até mesmo abraçar aqueles que são
“mais velhos”? ou mais antigos no terreiro, mas que se encon-
tram incorporados pelos seus respectivos orixás.
Os órgãos sexuais são concebidos como fonte de prazer,
extrapolando assim sua função utilitária de reprodução. Esta
concepção viabiliza e legitima variadas expressões da sexua-
lidade no âmbito do povo-do-santo, já que o modelo mítico
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS 115

comporta uma multiplicidade de papéis sexuais (Leão Teixeira,


1986). O órgão sexual masculino — okani — e o feminino —
iamapô — são complementares tanto quanto os papéis sexuais
e sociais a eles atribuídos. Isto quer dizer que as noções de
masculino e feminino sofrem processo de reelaboração no ní-
vel simbólico que pode ou não corresponder às representa-
ções que delas faz, em geral, o mundo ocidental de tradição
judaico-cristã. A valorização da sexualidade se encontra ex-
pressa no aspecto lúdico das atividades sexuais; “dar comida
a iamapô6” ou “dar de comer a okani” são expressões empre-
gadas indiferentemente em relação a qualquer das identida-
des e papéis sexuais legitimados.
Um dos mitos contidos nos Odu conta as dificuldades e
peripécias do orixá Exu para localizar os órgãos sexuais no
corpo humano. Inicialmente Exu experimenta colocar o sexo
nos pés, o que provocou o desconforto de tê-lo sempre
empoeirado e sujo. Experimenta novamente colocando o sexo
abaixo do nariz e também não fica satisfeito, pois os odores
que dele exalam incomodam o orixá.
Na terceira tentativa, Exu coloca o sexo nas axilas, po-
rém o suor constante impede-o de deixá-lo nesta posição. Fi-
nalmente, Exu descobre a localização ideal, ficando o sexo fixo
entre as pernas, em local que o orixá considera preservado e
confortável. Esta posição é considerada privilegiada, pois está
a meio caminho entre os pés e a cabeça, em ponto visto como
central, o que ressalta a relevância da sexualidade para esta
visão de mundo. Vale lembrar que a Exu é atribuído um cará-
ter fálico e de trickster, de propiciador das artimanhas que
dão ensejo às relações sexuais, ao mesmo tempo que é perce-
bido como o responsável por qualquer tipo de comunicação
ou de mediação entre os seres humanos e entre estes e os orixás.
Assim, o corpo pode representar no candomblé um pólo
ou centro de forças opostas que devem estar e ser unidas numa
relação de equilíbrio complementar. Da mesma forma, a pes-
116 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

soa pode ser pensada como resultado do equilíbrio das diver-


sas partes do corpo, bem como da coerência estabelecida en-
tre o mundo natural e o sobrenatural. Pode-se até mesmo dizer
que a pessoa humana nestes cultos é concebida à semelhança
e imagem do seu ambiente sócio-religioso, e não apenas
construída à imagem de seu Criador.
Os mitos e ritos dramatizados nos diferentes rituais cri-
am possibilidades de reinterações em domínios diferenciados
da existência daqueles que participam do culto aos orixás, em
cujos corpos incidem inscrições ou “marcas” das divindades
que delimitam identidades.

Axé e saúde

Para se ter uma noção mais completa do que é saúde


para os adeptos do candomblé, há necessidade de se entender
o significado de axé. Axé é um conceito que pode ser definido
como força invisível, mágico-sagrada de toda divindade, de
todo ser e de toda coisa (Maupoil, 1943, p. 334). Segundo
Pierre Verger (1966), axé é força vital, energia, a grande for-
ça inerente a todas as coisas. E, ainda de acordo com Barros
(1983, p. 59), axé é a força contida em todos os elementos
naturais e seres, porém que necessita de certos rituais e da
palavra falada para ser detonado ou dinamizado.
Este autor ainda nos aponta para o fato de que são as
cantigas e os encantamentos os principais agilizadores do po-
tencial vital dos seres humanos e dos vegetais. Estudando o
sistema de classificação dos vegetais em grupos de candomblé
Jeje-nagó, mostra a importância não só da presença das plan-
tas nas cerimônias religiosas, mas da sua relevância nos trata-
mentos de doenças nos terreiros. Presença obrigatória nos
rituais religiosos, sobretudo nos de iniciação, certas espécies
vegetais algumas vezes são identificadas como moradas de cer-
tas divindades, como o orixá Iroko, que habita a gameleira
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS 117

branca (Ficus doliaria, M., Moraceae). Além disso, vale a pena


pensar na afirmativa corrente em quase todos os terreiros:
kosi ewe, kosi orixá, isto é, “sem folhas, não há orixá”, que
demonstra ser fundamental a relação ser humano/vegetal.
Pode-se ainda inferir que os vegetais utilizados servem de
mediadores no estabelecimento das relações entre os homens
e os deuses. Os rituais religiosos, especialmente os de “limpe-
za” ou purificação do corpo, sempre utilizam o líquido pro-
veniente da maceração e infusão de folhas indicadas para cada
ocasião e divindade. Este apresenta-se sob duas formas: a de
abô, líquido preparado e guardado em grandes talhas de bar-
ro que reúne vários elementos vegetais, aos quais são adicio-
nados outros materiais como o sangue de animais sacrificados,
água lustral, minerais etc.; ou sob a forma de amaciou omieró,
literalmente “água de calma”, que consta de água límpida e
purificada misturada ao sumo de ervas maceradas frescas.
Convém ressaltar que ambas as preparações são utilizadas para
banhos e/ou para ingestão pelos adeptos.
Verger (1972, p. 6) aponta para a importância dos en-
cantamentos, da palavra proferida no ambiente africano, para
a ativação do poder das flores, folhas, sementes e cascas de
vegetais destinadas ao preparo de remédios e feitiços. Estes
encantamentos no Brasil foram substituídos em grande parte
pelas “cantigas de folha” — cânticos que cumprem o papel de
detonar a potencialidade da espécie que é louvada. Os versos
de muitos desses cânticos enumeram concisa e rapidamente
as qualidades supostas da espécie vegetal, ao mesmo tempo
que a incitam a agir de acordo com as intenções pretendidas
pelo oficiante e pelos adeptos e clientes. Também são feitas
menções e analogias que as associam a cada uma das divinda-
des, a seres humanos e a elementos naturais, explicitando-se
assim um sistema classificatório próprio, de acordo com Bar-
ros (19883).
É necessário ainda ressaltar que, de acordo com os es-
tudos de Silva (1981, p. 142), no século XIX, no Rio de Ja-
118 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

neiro, estava presente uma medicina negra paralela à ciên-


cia médica dos brancos. Diz a autora que “em cada bairro da
cidade existe um cirurgião africano, cujo consultório, bem
conhecido, é instalado simplesmente à entrada de sua ven-
da. Generoso consolador da humanidade negra, dá suas con-
sultas de graça, mas, como os remédios recomendados contêm
sempre algum preparado, fornece os medicamentos e cobra
por eles. E finalmente, para cúmulo dos seus grandes conhe-
cimentos, vende talismãs curativos, sob forma de amuletos”.
Enfatizando este aspecto mágico, cabe ainda mencionar
a colocação de Júlio Braga (1980, p. 71) sobre as práticas cura-
tivas em terreiros baianos: “esta terapêutica, ainda que possa
possuir certas virtudes médicas já testadas pela farmacologia
científica, como é o caso para um número considerável de
plantas, o seu grau de poder curativo está diretamente ligado
ao conteúdo mágico-religioso que se lhe empresta.”
Desta forma, sendo o corpo humano e a pessoa vistos
como veículo e detentores de axé, dá-se a necessidade de
periodicamente serem cumpridos certos rituais que possibili-
tem a aquisição, intensificação e renovação desse princípio
vital, responsável pelo equilíbrio ou saúde dos adeptos. Em
sentido amplo, ter axé significa a harmonia da relação entre
o fí bon ange (pequeno anjo bom) e o gros bon ange (grande
anjo bom), elementos constitutivos do ser humano no vodum
haitiano, responsáveis pelo equilíbrio da pessoa (Davis,1985).
Estar equilibrado interna e externamente possibilita gozar
da plenitude da vida, isto é, ter saúde e bem-estar social. A
falta de axé é então característica da doença, sendo esta en-
tendida seja como desordem físico-mental, seja como dis-
túrbio manifesto em qualquer dos domínios da vida social.
As expressões “corpo fechado” e “corpo aberto” se refe-
rem a estados que, pensamos, podem ser compreendidos como
estados limites e opostos. O primeiro diz respeito ao corpo
ritualmente preparado e considerado imune, isto é, com to-
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS 119

das as obrigações sócio-religiosas cumpridas e em dia, o que


lhe acarreta idealmente saúde e equilíbrio. O segundo, “cor-
po aberto”, se refere a um estado decorrente de uma poluição
momentânea, ocasionada, por exemplo, pela menstruação ou
pela cópula, ocasiões nas quais se verificam perdas de axé
através da saída de sangue e de sêmen. Outras excreções cor-
porais como lágrimas, saliva, fezes e urina, bem como aparas
de unhas e fios de cabelos, são considerados também canais
de saída de axé ou de sua perda, sendo por conseguinte obje-
tos de cuidados especiais. Nos terreiros de candomblé acredi-
ta-se que estas substâncias podem ser utilizadas por um
inimigo ou rival, ou ainda por alguém, a pedido, para mani-
pulação mágico-religiosa. A utilização destes materiais visa
justamente a atingir o axé, a enfraquecê-lo ou a “abrir o cor-
po” daquele que se descuidou com o destino de seus detritos
corporais. Os “trabalhos”, feitiços e “coisas-feitas” são práti-
cas genericamente chamadas de macumba e que têm por ob-
jetivo a desagregação ou perturbação do equilíbrio de um rival
ou inimigo.
O “corpo aberto”, como observamos, pode ainda ser
decorrência de transgressão ou deslizes das regras estabele-
cidas pelo pensamento sócio-religioso, como será visto
adiante.
De acordo com o exposto, as doenças e a cura possuem
um caráter essencialmente sobrenatural, justificado pelos fato-
res que são considerados como responsáveis pela sua instala-
ção no corpo humano.
São eles:

1. Ação ou “marca” de um dos orixás sobre alguém es-


colhido para cumprir a iniciação parcial ou total.
A adesão a um dos grupos de candomblé parece-nos ser
decorrência de motivações sociais, já que a relação de perten-
ça a uma dessas comunidades proporciona compensações sig-
nificativas em termos de amenizar o individualismo e a solidão,
120 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

características marcantes do sistema social urbano brasileiro


abrangente. A integração a um desses grupos de culto faz com
que indivíduos se tornem pessoas em um contexto mais fe-
chado, não deixando de ser um retorno à tribo, da mesma
forma que o observado por Maffesoli (1987) na análise de
certos grupos sociais contemporâneos.
As doenças e distúrbios psicossomáticos constituem a
maioria das motivações individuais nos casos por nós obser-
vados para desenvolvimento do processo iniciático. O diag-
nóstico de pais e mães-de-santo considera, sobretudo, a ação
sobrenatural como responsável pelos distúrbios manifestos.
De acordo com as informações recebidas, os sintomas apre-
sentados na ocasião da consulta e do início do processo
iniciático desaparecem ou melhoram substancialmente du-
rante o desenvolvimento gradual da iniciação e/ou das obri-
gações religiosas recomendadas. É bastante frequente a
referência, por parte de iniciados entrevistados, a tempos ca-
racterizados como “antes” e “depois” da iniciação para expli-
cação de mudanças benéficas em todos os domínios de suas
respectivas vidas, especialmente no que se refere a bem-estar
e saúde.
2. Ação ou “marca?” de um dos orixás sobre um iniciado
que tenha negligenciado suas obrigações religiosas e sociais.
A inserção em grupo de candomblé gera compromissos
tanto no âmbito individual quanto social. O cumprimento das
tarefas religiosas prescritas individualmente é acompanhado
de deveres para com a comunidade onde se processa a inicia-
ção. Desenvolve-se assim, paralelamente a um processo de
auto-observação, a construção social do indivíduo que o mar-
ca e o diferencia enquanto pessoa cujo corpo é alvo de cons-
tante preocupação. Vale ainda lembrar mais uma vez que o
corpo é considerado como centro de inscrições e símbolo do
contrato sócio-religioso que se estabelece a partir da inicia-
ção. A “marca” de um dos orixás concebida como a instalação
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS A

de males físicos atesta este vínculo. Ao mesmo tempo, esta


“marca”, ou sinal, é indício ou pode apontar a transgressão
de regras estabelecidas. Vale a pena enfatizar que a doença
quase sempre é entendida como perda de axé individual, o
que é percebido também como uma situação diretamente re-
lacionada a perigo ou ameaça de abalo no axé coletivo do ter-
reiro.
Negligenciar o cuidado com os “assentamentos” indivi-
duais pode significar ruptura, assim ocasionando o flagelo sob
forma de doença. Tais ocorrências são entendidas como um
modo de os orixás demonstrarem descontentamento para com
aqueles que são relapsos.
Da mesma forma, a ausência às atividades litúrgicas
públicas ou restritas dos terreiros é vista como uma possível
quebra de laços, abalando assim a organização social, privan-
do a comunidade não só de axé, mas de força de trabalho in-
dispensável para o bom andamento e prestígio do grupo no
âmbito do povo-do-santo mais amplo.
3. Quebra de regras, transgressões de tabus alimentares
ou de interditos sexuais estipulados pelos laços de parentesco
inerentes à família-de-santo.
Autores como Augras (1987), Cossard-Binon (1981) e
Costa Lima (1977) têm estudado aspectos de tais fatores e
apontam para a importância destes na construção da identi-
dade social do recém-iniciado. Consideramos que o controle
das infrações se refere à manutenção do equilíbrio instituído
recentemente. As duas primeiras autoras referidas mostram a
importância do estabelecimento desses interditos alimentares
no processo de construção social do perfil do novo adepto no
seio do grupo, enfatizando a concepção de que estas regras se
constituem em auxiliares também para a preservação do axé
comunitário. Desta forma se configuram tabus ou “quizilas”
individuais, ao mesmo tempo que se encontram estabelecidos
interditos coletivos que dizem respeito a toda a comunidade.
122 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Percebemos, no entanto, que não se trata de preconcei-


tos rígidos, mas de regras e valores que estão dirigidos para a
reafirmação do poder sobrenatural, isto é, da ação dos orixás
sobre os seres humanos.
Costa Lima (1977), ao estudar as regras formalizadas de
“incesto” na familia-de-santo, mostra a sua relativização atra-
vês da justificativa “o santo permite se quiser, ou impede se
quiser”, ficando demonstrada a flexibilidade de um sistema
que reafirma a imponderabilidade da ação divina.
Problemas físicos, psíquicos e sociais são vistos, portan-
to, como decorrência destas infrações, podendo ser resolvidos
pela mediação do pai ou mãe-de-santo que, além de estipular
as sanções de acordo com a gravidade do caso, prescrevem a
realização de rituais de purificação e reintegração para aque-
les que ameaçaram o equilíbrio individual e coletivo.
4. Contaminação pelo contato com os eguns — espíritos
de mortos.
A doença também pode ser ocasionada pela fraqueza
advinda de contato com a morte. Deve ser levada em conside-
ração a distinção feita pelos adeptos entre eguns, espíritos de
qualquer morto e egunguns, espíritos de ancestrais. Ambos os
contatos, no entanto, são considerados perigosos e motivos de
preocupação quando realizados proposital e inadvertidamente.
De acordo com a visão de mundo dos adeptos de uma
forma religiosa na qual se observa uma rígida separação en-
tre os domínios da vida e da morte, este contato com os eguns
é extremamente poluidor. Os distúrbios e malefícios provoca-
dos pelos “espíritos” são denominados de “encosto”, palavra
que conota a desordem provocada pela junção de instâncias
que devem ser mantidas separadas.
A ocorrência de uma morte na família consangúínea ou
na familia-de-santo é percebida como uma situação limite na
qual estas duas instâncias opostas, vida e morte, são drama-
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS 123

tizadas. É necessário afastar ou separar ritualmente a ambi-


gúidade ou desordem decorrente de estados opostos ocasio-
nalmente colocados lado a lado. Para tanto, rituais de
purificação são realizados, nos quais se promove a separação
desses dois domínios através da atualização da memória,
revivendo-se as aversões e simpatias existentes entre o morto
e aqueles que permanecem vivos. Desta maneira é que são
cortados os laços e solucionados os conflitos inerentes a essas
crises.
A contaminação pode se dar fora dos limites familia-
res, isto é, de forma mais ampla nas relações interpessoais.
Da mesma forma que o “morto conhecido” traz ou evoca a
possibilidade de recontar as histórias individuais ou pesso-
ais, o “morto desconhecido” desencadeia poluição e perigos
decorrentes da proximidade com a morte em hospitais e ce-
mitérios.
O “encosto” é sinônimo de desordem, de distúrbio no
equilíbrio físico e social do indivíduo. O afastamento da po-
luição é essencial para o restabelecimento de uma ordem
(Douglas, 1976) que significa vida e saúde. Convém ressaltar
que, para a família-de-santo, além do ritual geral de separa-
ção dos domínios vida e morte — axexé — de caráter amplo e
social, verificamos a existência de outras formas rituais — os
“sacudimentos” — que promovem tal separação ou “limpeza”
do indivíduo e que serão abordados mais detalhadamente
adiante.
Por outro lado, a poluição proveniente do contato com
os egunguns requer oferendas — ebós — destinadas ao
restabelecimento da ordem ameaçada pela junção de dominios
que devem ser mantidos separados. Tais procedimentos cita-
dos visam, por conseguinte, à separação de instâncias opostas
— vida e morte — cujos limites devem ser demarcados para o
restabelecimento do bem-estar físico e social dos indivíduos e
da comunidade da qual fazem parte.
124 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

5. Contaminação por elementos naturais.


À ação de vírus, micróbios etc. não é desconhecida, e é
justificada através de dois estados substancialmente diferentes
e já mencionados. O primeiro é o de “corpo aberto”. Aquele
que “perde axé” está fragilizado, podendo ser atingido por
qualquer contaminação e ser penetrado por agentes infecto-
contagiosos. Suas resistências — seu axé — geralmente são resta-
belecidas por procedimentos ritualísticos que podem ser
associados a qualquer das outras práticas médicas disponíveis.
É que dentro desta visão de mundo, a doença, ao instalar-se no
“corpo aberto”, coloca-o em estado de impureza, que necessita
ser afastada para o restabelecimento das condições ideais de
morada eventual dos orixás e de contato com as divindades.
Numa religião que celebra a vida, fica fácil perceber que
um corpo saudável é requisito essencial. Sendo a doença de
origem sobrenatural, os procedimentos terapêuticos devem sem-
pre começar por práticas que reassegurem o perfeito relacio-
namento entre o mundo físico ou natural — o corpo — e o mundo
dos orixás, numa permanente troca ou intercâmbio de axé.
É conveniente ressaltar que a classificação de sintomas e
doenças geralmente obedece às terminologias pertencentes à
medicina popular e caseira, cujas práticas estão presentes no
ambiente dos terreiros. Muito embora se verifique uma arti-
culação entre saberes, qualquer sintoma ou agravamento deste
no estado do paciente implica práticas nas quais o que preva-
lece é a perspectiva religiosa. Isto quer dizer que procedi-
mentos rituais complementam e implementam a utilização de
ervas sob a forma de chás, cozimentos, infusões, banhos e de-
mais formas de remédios populares. Verificamos ainda que
tais práticas complementam e “reforçam” tratamentos médi-
cos, como cirurgias e demais procedimentos receitados por
agências e agentes de saúde estranhos ao ambiente dos terrei-
ros, que são concomitantemente utilizados pelos adeptos para
tratamento de seus males.
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS 125

Sistema classificatório de sintomas e doenças

Observamos que as representações de sintomas e doen-


ças congregam um inter-relacionamento simbólico que asso-
cia e une as diferentes partes do corpo, os orixás e seus mitos
e histórias, assim como os princípios da organização social.
O diagnóstico, na maioria das vezes, resulta da consulta
oracular que decodifica os sintomas, identifica os fatores cau-
sadores de males e orienta os procedimentos subsequentes para
a recuperação de um estado de bem-estar físico e social. Pode-
se perceber melhor a lógica do sistema classificatório quando
se observa a relação estabelecida entre as partes do corpo e os
orixás, e o complexo associado a cada divindade.
Consideramos então que fica conotado um sistema de
classificação próprio, que tem como característica básica a
existência de doença de caráter individual, de um lado, e, de
outro, de doenças de caráter coletivo.
As primeiras são vistas como decorrências dos fatores
mencionados nos itens 1, 2, 3, 4, isto é, são manifestações do
indivíduo associadas à atuação de divindades individuais prin-
cipais. A segunda categoria compreende as doenças epidêmicas
como varíola, gripes etc., resultantes, principal mas exclusiva-
mente, da ação genérica do orixá Obaluaiê, considerado “o dono
da vida e da morte”, pois é aquele que é visto como responsável
pela causa e pela cura dos males que afligem os seres humanos.
Desta forma, estão mais relacionadas ao fator 5, à ação de vi-
rus, micróbios etc.
Os distúrbios que se apresentam sob forma de desordem
física podem ser diagnosticados, em se tratando de indivíduos
sem vínculo iniciático — “clientes” — como apelos para o cum-
primento, parcial ou total, da iniciação. Deve ser lembrado
que, em se tratando de pessoas que recorrem usualmente à
comunidade religiosa para resolução de seus problemas, o
126 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

diagnóstico e os procedimentos recomendados evidenciam uma


substancial diferença. Para um cliente eventual, para aqueles
que não têm uma “história” no terreiro, usualmente é diagnos-
ticada uma situação de “encosto” ou contaminação pela mor-
te e recomendado um ritual de purificação ou “limpeza”
um “sacudimento”. Se, no entanto, o “cliente” é conhecido e,
além disso, já consultou várias outras agências médicas, este
fato reforça o diagnóstico de apelo para iniciação.
É conveniente ressaltar que, em se tratando de um inicia-
do, a sintomatologia pode exprimir a “marca” ou sinal de sua
divindade principal ou de uma que faça parte de seu “carrego
de santo”.
As doenças da pele são de responsabilidade de Obaluaié,
a quem também são atribuídas as doenças de caráter epidê-
mico, como varíola, catapora, rubéola, sarampo, coqueluche,
caxumba, tuberculose etc. O vitiligo, porém, é atribuído a
Oxumarê, assim como a erisipela é a Nanã, o que pode talvez
ser explicado pelos laços de parentesco mítico entre essas três
divindades. As alergias cutâneas e outras dermatoses como co-
ceiras e manchas, muito comuns em grande parte da popula-
ção brasileira, são importantes referenciais para a marcação
da relação de pertença, sendo tratadas ritualmente com ba-
nhos de ervas e ofertas de pipocas, “as flores de Obaluaiê”.
As doenças venéreas femininas, a falta ou o excesso de
regras menstruais, abortos, infertilidade e os demais distúrbios
incluídos na categoria “doenças da barriga” constituem apelo
ou “marcas” de Iemanjá e Oxum, ligadas ao elemento água, à
feminilidade e à maternidade. Ressalte-se que em quase todas
as oferendas para Oxum verificamos a presença de ovos, sim-
bolos da fertilidade, e que a esta orixá cabe o restabelecimento
das “doenças de menino”.
A impotência e a infertilidade masculina aparecem li-
gadas a Xangô e a Exu, divindades viris do elemento fogo, sen-
do geralmente prescritas “garrafadas”, cujos componentes são
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS EZ7

creditados como possuidores de características afrodisíacas e


regeneradoras.
Os distúrbios respiratórios e problemas de visão são atri-
buídos às divindades femininas Iansá e Oxum. Pensamos que
tal relação tem origem no fato de Oxum ser considerada a
padroeira da adivinhação — “jogo de búzios” — sendo seus
iniciados vistos como os melhores adivinhos ou “olhadores”.
Já Iansã, ligada ao elemento ar por ser a “dona dos ventos”,
imprime sua marca em “filhos” transgressores, sobretudo atra-
vés de asma, falta de ar, enfisemas e outros males semelhantes.
Os distúrbios emocionais, “as doenças da cabeça” e as ma-
nifestações de loucura aparecem associados especialmente a
Oxóssi (elemento terra), considerado o “dono de todas as cabe-
ças”, nos candomblés. Ketu, podendo também ser atribuídos a
Ossáim, “o dono das folhas” e, mais raramente, a Iansã, a quem
também é associada a ninfomania. A categoria kolori engloba to-
das as manifestações de desequilíbrio mental e psíquico.
Os males do fígado e da vesícula, as úlceras estomacais e
as enxaquecas são vistos também como sinais de Oxóssi, sendo
algumas vezes percebidos como “marcas de seu filho Logunedé”.
A magreza constitui uma das características arquetípicas des-
tes orixás, sendo o emagrecimento a eles atribuídos.
Já a obesidade se apresenta relacionada tanto às iabás
Iemanjá e Oxum, como ao orixá masculino Xangô, todos as-
sociados, em suas respectivas histórias, ao acúmulo de ri-
queza material e à gulodice.
Os ferimentos e cortes produzidos por instrumentos e
acidentes automobilísticos são associados a Ogum (elemento
terra), patrono do ferro e do progresso tecnológico. As quei-
maduras, no entanto, são de responsabilidade de Xangô e Exu,
divindades do elemento fogo.
As doenças do sistema circulatório e cardiovascular vi-
mos que estão relacionadas aos orixás primordiais da criação
128 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Oxalá, Nanã e Iemanjá. A esses deuses estão ainda associadas


as inchações, as artrites e artroses. Os distúrbios e dores re-
nais, assim como o reumatismo, são vistos como “males de
velhos”, sendo atribuídos a Oxalá e Nanã, percebendo-se aí
uma relação com a senioridade destes orixás.
Doenças recentemente reconhecidas são também classi-
ficadas: a Aids é considerada um flagelo característico do orixá
Ossâim, pensamos que devido à relação deste deus com a sexua-
lidade de maneira geral e em especial com a homossexualidade.

Terapia e simbolismo

Como já foi notado por Roger Bastide (1950), em alguns


dos mais famosos terreiros de candomblé da Bahia, mesmo
quando pais ou mães-de-santo e outros iniciados portadores
de status e conhecimento elevado nos grupos de culto recei-
tam chás, infusões, unguentos e banhos de ervas, a ação destes
é referenciada por atitudes rituais e/ou por histórias míticas
ou casos acontecidos com outros fiéis que apontam para ana-
logias com as divindades, enfatizando desta forma sua eficá-
cia e virtudes curativas.
Como também mostrado por um dos autores, Barros
(1983),o mundos dos candomblés possui um sistema próprio
de classificação das espécies vegetais consideradas fundamen-
tais e essenciais para o bom andamento da vida dos partici-
pantes das casas-de-santo. O autor aponta ainda para o íntimo
relacionamento destas espécies vegetais, assim como de qual-
quer outro elemento do mundo natural, com o panteão dos
orixás. Isto significa que todas as plantas, ervas, arbustos e
árvores são utilizados a partir de um sistema classificatório
próprio que os diferencia, separa e ordena como elementos
ligados a cada um dos 16 orixás cultuados em terreiros Ketu.
Desta forma, as espécies vegetais são concebidas, por um lado,
como elementos de ligação entre o humano e o divino e, por
outro lado, como fonte de axé.
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS 129

Nome Classificação Nome nos |orixá


Popular terreiros
Jarrinha Aristolochia brasiliensis, M. | Jokojé Oxum
ARISTOLOCHIACEAE
Maracujá Passiflora macrocarpa, Roiz Iansã
PASSIFLORACEAE
Melissa Melissa officinalis, L., Oxum
LABIATAE
Boldo/Tapete | Peltoodon tormentosa, Pohl Ewê Babá Oxalá
de Oxalá LABIATAE
Ássa-peixe Eupatorium altissimum, L. Oxum
COMPOSITAE
Mamona Ricinus communis, L Ewê lará Ossáim
EUPHORBIACEAE
Aroeira branca] Lithrea molleoides Engl.et Vell.,| Ajobi funfun] Xangô
ANACARDIACEAE
Piper marginatum Jacq., lemanjá
PIPERACEAE

SOLANACEAE
Saião Kalanchoe brasiliensis Camb., | Odundun Oxalá/
CRASSULACEAE Iemanjá
Alumã Vernona baihensis Toledo. Ewuró Ogum
COMPOSITAE
Sangolovo Costus spicatus SW. Teteregun Oxalá
ZINGIBERACEAE
Jurubeba Solanum paniculatum L., Igbá Ajá Ossãim
SOLANACEAE
Carqueja Borreria captata Roiz et. Pay, Oxóssi
RUBIACEAE
Obí Cola acuminata Schott & Endl | Obi Ossãim
STERCULIACEAE
Quitoco Pluchea quitoco DC, Obaluaiê
COMPOSITAE

OBS.: A relação completa das 143 espécies vegetais utilizadas e


respectivas classificações encontra-se em Barros, 19865.
130 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Das 143 espécies vegetais arroladas e identificadas no


herbário formado, quase todas as utilizadas pelos adeptos em
cerimônias litúrgicas e em seus preparados medicinais perten-
cem também a uma medicina caseira e popular. Como exem-
plo, listamos 16 cuja ação farmacológica é reconhecida através
de seu uso em remédios bastante conhecidos.
Por conseguinte, os procedimento terapêuticos estão in-
seridos em um todo complexo, no qual os rituais são essenciais
para a reconstituição da totalidade individual fragmentada
pela ocorrência de perda ou falta de axé. A manifestação de
um mal físico, não importando qual seja ele, é vista como uma
desorganização ameaçadora da ordem ou equilíbrio indivi-
dual que pode ser estendida ao grupo social. Assim sendo, a
doença manifesta e devidamente diagnosticada conduz à rea-
lização de uma sequência ritual que, usualmente, compreen-
de três momentos significativos.

1. Período de transição —“o descansar do corpo”

Qualquer pessoa, “cliente” ou participante, que chega


ao terreiro, antes do início de qualquer atividade ou consul-
ta, deve descansar. A observação de um ritual de separação
da vida ordinária e cotidiana, de preparação para entrada
em uma instância ou domínio extraordinário, é obrigatória.
Nesta transição, o corpo supostamente deve “esfriar” , isto é,
deve despir-se de tensões e suores contaminadores e entrar
em um ritmo adaptável às novas rotinas a serem vivenciadas.
Em se tratando de um “cliente”, este é um momento impor-
tante de familiarização com o ambiente. É necessário adap-
tar-se à imponderabilidade do tempo nos terreiros. Noções
de hora marcada, pressa e precisão devem ser gradativamente
abandonadas e deve ser assumida uma atitude de espera.
Geralmente esse período não ultrapassa uma ou duas horas,
constituindo-se numa etapa fundamental de reconhecimen-
to mútuo, de relaxamento individual e de distanciamento do
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS 131

mundo externo. Este tempo é ocupado por conversas, mais


ou menos descontraídas, nas quais observamos muita
jocosidade e muito falatório a respeito do terreiro, tentando
demonstrar a excelência e os méritos da comunidade para
solucionar problemas.

2. Rituais de limpeza e purificação

Obedecem a uma gradação estabelecida pelo pai ou mãe-


de-santo, responsável pelo jogo de búzios, que diagnosticou
ou referendou o distúrbio, classificando sua gravidade e com-
plexidade. De acordo com o caso, beberagens, defumações e
banhos podem ser receitados independentemente, dentro ou
fora do terreiro, porém sempre sob o acompanhamento de
um especialista.
Nos casos de maior gravidade, observamos rigor no cum-
primento de certas regras, sendo que os procedimentos
envolviam várias pessoas do terreiro e obedeciam a um enca-
deamento ou sequência ritual preestabelecida — “sacu-
dimento”. A sua realização é concebida pelo povo-de-santo
como o meio eficaz de promover uma mudança de estado, isto
é, retirar os males, a poluição ou sujeira através da purifica-
ção do corpo, afastando os possíveis elementos responsáveis
pela instalação da desordem, propiciadores do “corpo aber-
to”, assim controlando os distúrbios indicadores de doença
ou desequilíbrio.
Este procedimento envolve geralmente espécies vegetais,
animais e certos alimentos preparados ritualmente para se-
rem passados no corpo inteiro do paciente, seguindo a dire-
ção da cabeça para os pés. Tais movimentos são acompanhados
de cânticos evocativos que exortam à limpeza do corpo. Deve-
se notar que esses cânticos são entoados em linguagem
africanizada cujo sentido é implícito. Reconhecemos, entre-
tanto, algumas palavras de origem iorubana como ara, “corpo”,
132 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

e aiê, “terra ou mundo”, empregadas várias vezes numa se-


quência lenta e repetitiva.
O paciente permanece imóvel, de pé, enquanto o ofici-
ante à sua frente percorre seu corpo, passando-lhe cuidado-
samente os diferentes ingredientes, obedecendo a uma ordem
na qual a fronte e a frente do corpo são tratadas primeira-
mente, seguindo-se a nuca e a parte posterior do corpo.
Este procedimento exige um local apropriado, sendo este
preferencialmente próximo a uma das entradas da casa-de-
santo, considerado adequado para a saída dos males. Exige tam-
bém uma ambientação prévia. O chão é cuidadosamente limpo
e, ao lado de um pote de barro (quartinha) cheio de água, são
acesas velas e colocados pratos onde estão arrumados separa-
damente os itens a serem utilizados. São estendidos, super-
postos, retângulos de pano de algodão nas cores preta,
vermelha e branca. Vale lembrar que essas cores, de acordo
com Verger (1982, p. 8), simbolizam o pôr-do-sol, a noite e o
dia, aspectos poéticos que expressam a sequência e o simbo-
lismo do cotidiano, ou, de acordo com Elbein dos Santos (1977:
41), são representações de todos os axés, da força propulsora
inerente aos orixás e aos humanos.
O paciente deve permanecer sobre estes panos (1,20m
x 0,90m, geralmente), que recolherão as sobras dos materiais
utilizados considerados contaminados e que, no final do
sacudimento, serão cuidadosamente embrulhados e deposita-
dos em local afastado do terreiro (“despachados”). Observa-
mos que, da mesma forma que os panos, todos os itens
empregados devem ter número impar. Unidades, pedaços ou
punhados seguem o princípio da imparidade, ao qual é atri-
buído um caráter dinâmico, de propiciador de mudanças, ao
contrário da paridade significativa de estabilidade.
Como em outros procedimentos rituais, Exu é o primeiro
orixá a ser evocado. Seu alimento ritual preferido — farofas de
água, de mel e de azeite-de-dendê — são os primeiros três itens
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS 133

a serem utilizados. Sua bebida ritual, a cachaça, é apresentada


ao paciente, que não a bebe, mas pronuncia no gargalo da gar-
rafa seus anseios e desejos. Após a passagem pelo corpo de uma
ou mais espécies vegetais — geralmente ramos de aroeira (Lithrea
molleoides Engl. et Vell., ANACARDIACEAE) e/ou de espada-de-
são-jorge (Sansevieria zeilanica Willd., AGAVACEAE), ou ainda
São Gonçalinho (Cassiaria sylvestris Sw., FLACOURTIACEAE) —,
é passado no corpo do paciente um frango ou um pombo, que
“de acordo com o caso” é ou não sacrificado, sendo depois co-
locado embaixo de seus pés. Outros itens como caixas de fós-
foros, velas, cigarros, charutos, carretéis de linha, ovos etc.
podem ser incorporados ao ritual, seu número variando de acor-
do com a complexidade do caso, porém sempre sendo observa-
da a imparidade.
Dois alimentos rituais obrigatórios merecem destaque por
estarem associados aos orixás Oxalá e Obaluaiê, responsáveis
respectivamente pela vida e pela saúde. A sequência do
sacudimento culmina com a passagem de pipocas — “flores de
Obaluaié” — e com o milho branco cozido — “ebô de Oxalá” —,
ambos evocativos da pureza e equilíbrio por sua brancura. A
presença recorrente das teobrominas associadas a Oxalá e
Obaluaiê atesta a relevância da vida e da saúde na visão de
mundo do candomblé. Conta-se que Oxalá foi capaz de afas-
tar a morte de uma aldeia africana assustando-a; esta tarefa
foi cumprida por ter o orixá pintalgado de branco uma gali-
nha preta. Este ato divino instaura a possibilidade de comba-
ter a morte, ao mesmo tempo que cria um novo animal, a
galinha-d'angola ou conquém, cujo canto, acreditam os adep-
tos, afasta as enfermidades. Já as pipocas — doburú — lem-
bram o tempo mítico em que Obaluaiê, que em criança fora
abandonado pela mãe, a orixá Nanã, está acometido por vario-
la. É recolhido e tratado com ungiúentos por Iemanjá, “a mãe
de todos os orixás”, transformando-se em divindade de corpo
saudável e temida. Esta transformação da doença em saúde,
da feiúra em beleza é evocada pela pipoca, que remete a dois
134 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

aspectos simbólicos opostos: a potencialidade curativa ou pu-


nitiva associada a este orixá, considerado tanto como o “mé-
dico dos pobres” quanto como o “terrível cujo nome não deve
ser pronunciado”. Notamos ainda que preferencialmente os
iniciados “filhos” deste orixá são os escolhidos para oficiarem
os rituais de sacudimento.
Complementando a sequência desta fase, o paciente é
conduzido a outro local onde deve ser banhado com omieró
— “água de calma” — sendo que, de acordo com a circunstân-
cia, são utilizadas espécies vegetais classificadas como gun
(excitantes), ou como eró (calmantes), ou ainda com uma
combinação envolvendo equilibradamente partes de gun/eró
(Barros, 1983).
Pode também ser utilizado o abó, líquido resultante da jun-
ção de maceração de vegetais, de sangue de animais sacrificados
e de outros elementos colocados para fermentação em grandes
potes de barro. Tanto um como o outro podem ser recomenda-
dos sob forma de beberagens, o que ocorre mais raramente.
O ato final desta etapa é a defumação proveniente da
queima de essências aromáticas, vegetais e minerais, espalhan-
do-se a fumaça pelo paciente e demais participantes do ter-
reiro com a finalidade de purificar todo o ambiente.
Cabe ainda acrescentar que esta descrição etnográfica
corresponde às nossas observações de campo, porém achamos
necessário salientar que podem ocorrer modificações na se-
quência ritual, o que, no entanto, não descaracteriza seus as-
pectos simbólicos fundamentais.

3. “Ebós de saúde”

Esta terceira etapa envolve a realização de oferendas


propiciatórias e pode ser realizada no mesmo dia, com algu-
mas horas de intervalo, ou em data próxima à realização do
sacudimento.
O CÓDIGO DO CORPO: INSCRIÇÕES E MARCAS DOS ORIXÁS 135

Inicia-se obrigatoriamente com uma oferenda para Exu,


geralmente o sacrifício de uma ave ou mais para este orixá.
Trata-se de restabelecer a comunicação e o equilíbrio na re-
lação ser humano/divindade, na relação dos seres humanos
entre si ou ainda entre os seres humanos e seus antepassados.
É essencial agradar o orixá considerado mensageiro e media-
dor, cuja atuação é essencial para contornar situações
desagregadoras e potencialmente “doentes”.
Pierre Verger cedeu-nos uma das histórias onde é expli-
cado o relacionamento existente entre as oferendas e os re-
médios. Este relato aborda uma disputa pela senioridade
travada entre os orixás Ossãim e Orumilá. No calor da com-
petição foram até Ifá, o responsável pelo sistema divinatório,
que lhes recomenda enterrar seus filhos por sete dias para
ver quem é o mais resistente e poderoso. O pai do vencedor
gozaria das regalias da senioridade e de prestígio. O filho de
Ossáim era Remédio; o de Orumilá, Oferenda, ambos com ca-
racterísticas e poderes semelhantes aos dos pais. Orumilá con-
seguiu, através de Exu, enviar alimentos para Oferenda,
cumprindo as indicações fornecidas por Ifá. Ossãim, porém,
não fez o que lhe foi recomendado, ficando Remédio sem re-
ceber alimentos. Na situação em que se encontravam, Oferenda
e Remédio entram em acordo, sendo o último alimentado por
Oferenda. No sétimo dia, Ifá foi ver quem resistira, cnaman-
do-os. A resposta veio de Oferenda, sendo depois constatado
que Remédio também estava vivo. Este longo relato mítico ter-
mina com a seguinte colocação: Oferenda é mais poderoso e
confiável que Remédio...
Os “ebós de saúde” são geralmente constituídos de ali-
mentos e temperos especiais de cada orixá, preparados cui-
dadosamente de acordo com as regras da culinária litúrgica,
arrumados em pratos e travessas “com arte”. Almejam captar
o axé das divindades mediante a apresentação de uma oferenda
(junto à representação do orixá no terreiro ou em locais as-
sociados ao elemento primordial da divindade: mar, mata, rio,
136 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

montanha etc.) que restabeleça a “boa vontade” ou vínculo


com os orixás envolvidos com o paciente. A saúde, condição
inalienável do ser humano, é ao mesmo tempo um bem con-
cedido pelos deuses, necessitando ou supondo dádivas cons-
tantes que atualizem e renovem a relação harmoniosa, a
unidade — entre o aiée o orum —entre o mundo dos homens e
o mundo dos deuses.
Em suma, os procedimentos terapêuticos desenvolvidos
no âmbito dos terreiros de candomblé revelam como a comu-
nidade religiosa pensa e resolve a seu modo os problemas que
lhe são trazidos.
A pessoa é vista como um ser social total, possuidora de
um corpo identificado não a uma máquina cujos componen-
tes estão avariados ou quebrados, mas como personagem de
uma história, o que lhe confere unicidade dentro do drama
social do qual participa. Não são figuras ou personagens anô-
nimos, mas seres portadores de identidade. A inserção de
indivíduos em uma comunidade de candomblé deve ser en-
tendida como um fenômeno complexo no qual se insere uma
mudança social significativa envolvendo a adoção de uma nova
postura ideológica que, apesar de não rejeitar o modelo do-
minante de saúde, promove um novo padrão de significado.

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OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE
NO CANDOMBLÉ NAGÔ

Claude LÉPINE*

À expansão dos cultos afro-brasileiros constitui um fe-


nômeno notável de nosso tempo, que recoloca a questão do
inevitável desaparecimento das religiões, levantando inter-
rogações, suscitando pesquisas. A denominação global de
“cultos afro-brasileiros” abarca desde certas formas de
espiritismo, a umbanda e seu reverso, a quimbanda, até as
várias “nações” do candomblé, o xangô, o catimbó etc. Den-
tro deste vasto conjunto, o tradicional candomblé dito Jeje-
nagó da Bahia tem suas feições próprias, e seu desenvolvimento
parece assumir características diversas daquelas que mar-
cam a incrível proliferação, em particular, das tendas de
umbanda.
Devemos frisar que candomblé não é folclore, nem é
apenas religião ou ideologia, quer entendamos por ideologia
uma visão globalizante do mundo, quer entendamos uma
fantasmagoria, um conjunto de idéias falsas, que disfarçam
a situação real de um grupo oprimido. Trata-se de socieda-
des, de comunidades com vida própria. Um terreiro de can-
domblé tem sua gente, seu pedaço de terra, suas técnicas
tradicionais de trabalho, seu sistema de distribuição e de

* Claude Lépine é antropóloga, prof! do Departamento de Antropologia da UNESP


— Universidade do Estado de São Paulo, campus Marília.
140 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

consumo de bens, sua organização social, bem como seu


mundo de representação. O terreiro insere os homens em
novas relações, articulando-se, no entanto, ao nível da infra-
estrutura, com a sociedade de classes, já que muitos de seus
membros pertencem simultaneamente aos dois sistemas, e
que parte dos rendimentos da comunidade provém do tra-
balho destes membros como elementos de uma classe inserida
na sociedade capitalista.
Estas sociedades possuem um sistema global e coerente
de explicação que integra todos os aspectos de sua experiên-
cia. Tudo é classificado de acordo com certos princípios ló-
gicos, numa ou noutra de um reduzido número de categorias,
entre as quais se repartem os orientes, os dias da semana, os
elementos da natureza, os deuses, os vegetais, os animais e
até os tipos humanos.
O presente artigo condensa alguns dos resultados de
uma pesquisa que foi realizada em Salvador de 1973 a 1975,
e atualizada em 1979, em dois terreiros representativos: o
Alakétu (rua Luiz Anselmo, 65, Brotas) e o Axé Opó Afonjá
(São Gonçalo do Retiro, Cabula), tendo focalizado precisa-
mente o panteão dos orixás sob este aspecto de sistema de
classificação.

D ia E jakuta [Obatali]
Orient [leste
l none foste [sul |
Nação
Co r castanho preto
Aja-Tado [Daomé|
vermelho | branco
Fermento [água, Tama ,

Atividade | adivinhação | guerra /indústria


fg NAdiar

criação

Esboço do sistema de classificação africano nagó, segundo


Maupoil (La géomancie à Vancienne Cóte des Esclaves)!

1. Paris, Institut d'Ethnologie, 1943.


OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ 141

Os orixás, com efeito, como bem o havia visto Bastide,?


operam como categorias lógicas, que permitem ordenar os
múltiplos aspectos da realidade num número restrito de com-
partimentos: seis, de acordo com nossas análises. De fato,
todo santo está ligado a determinada cor, a determinados ele-
mentos ou forças primordiais, plantas, animais etc., a classifi-
cação englobando praticamente tudo. Mas a pesquisa
interessou-se, em particular, pela classificação dos tipos hu-
manos. Os deuses possuem cada qual seu temperamento que,
de acordo com crenças populares, os seres humanos a eles
consagrados herdam e reproduzem. Realmente desperta a
curiosidade do pesquisador a constante referência aos orixás,
na vida cotidiana, para classificar as pessoas, explicar o seu
comportamento, determinar expectativas. O trabalho, pois,
focalizou de preferência a sabedoria dos iniciados: esta reli-
gião vivida pelo povo baiano. Isto não significa, no entanto,
que outros aspectos da classificação não sejam importantes
e não possam igualmente ter servido de ponto de partida,
nem que a visão de mundo do candomblé se reduza a este
tipo de interpretação, pois ela comporta vários níveis de co-
nhecimento e de expressão.
A convivência com o povo-de-santo logo revela dois fa-
tos interessantes:
1. a grande importância de que se reveste este sistema
de classificação dos tipos psicológicos ao nível da religião po-
pular. O temperamento dos deuses fornece, com efeito, uma
cômoda explicação do ritual, das obrigações e do euó de cada
um. Por exemplo, não se pode oferecer a Oxalá animais pre-
tos ou avermelhados, porque ele odeia estas cores e tudo o
que não é branco. Tal sistema ainda permite classificar e jul-
gar as pessoas de acordo com o que se sabe do seu santo, ex-

2. Bastide, Roger — O candomblé da Bahia (Nacional, 1961); As religiões


africanas no Brasil (Pioneira,1971); Estudos afro-brasileiros (Perspectiva
1973).
142 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

plicar e prever o seu comportamento; proporciona, enfim, aos


fiéis, modelos da personalidade e padrões de comportamento
condizentes com estes últimos.
2. o desenvolvimento dinâmico desta psicologia popular.
Podemos supor que os estereótipos tradicionais da personali-
dade são bastante antigos, pelo menos no que diz respeito ao
caráter dos orixás. Uma observação de Verger* sugere, por exem-
plo, que certas versões do mito de Xangô poderiam ter surgido
na África para explicar a crueldade atribuída a este deus. Mas,
de qualquer maneira, a pobreza dos dados africanos ou brasi-
leiros antigos sobre o assunto e as declarações de certos velhos
sacerdotes nos deixam pensar que esta psicologia representa
um desenvolvimento recente do candomblé. Os estereótipos tra-
dicionais deveriam ser bastante esquemáticos; mas foram sen-
do elaborados, enriquecidos, diversificados, e parece que temos
aí um dos aspectos mais dinâmicos do candomblé, e onde mais
se revela a imaginação popular.
O candomblé jeje-nagó, longe de estar desaparecendo,
como haviam previsto alguns antropólogos da primeira me-
tade do século, resiste ao tempo, conserva suas tradições e
vem atraindo um número considerável de indivíduos, sobre-
tudo brancos das classes média e média alta. Trata-se, pre-
dominantemente, de indivíduos masculinos que se podem
dizer bem-sucedidos na vida: donos de indústrias, gerentes
de bancos, arquitetos, advogados, professores, oficiais da Ma-
rinha e da Aeronáutica, que são incorporados ao culto ge-
ralmente na qualidade de ogans. Não devemos ver como mero
esnobismo, pois os recém-convertidos demonstram um zelo
religioso de fazer inveja aos próprios negros. Como explicar
este fato curioso, de homens brancos, com formação cultu-
ral completamente diferente, aderirem a este sistema afri-
cano de pensamento?

3. Verger, Pierre. “Automatisme verbal et communication du savoir chez les


Yorubá”. L'Homme, V, XVII. Cahier 2, 1972.
OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ 143

O presente trabalho pretende dar uma idéia da concep-


ção do homem, dos modelos da personalidade e da classifica-
ção lógica destes tipos no sistema nagô de pensamento, para
mostrar, a seguir, que o crescimento do candomblé se explica
parcialmente porque a sua “psicologia” atende aos anseios de
certas categorias de cidadãos brancos.

IH

De acordo com a concepção nagó, a pessoa humana con-


siste numa conjunção de elementos, o primeiro dos quais é o
corpo, que os mitos nos descrevem como tendo sido moldado
por deus no barro primordial. O segundo é o princípio da vida,
o emi, sopro, respiração, que anima a matéria e cria a diferen-
ça entre um corpo vivo e um corpo morto; emi tem sido tradu-
zido por espírito, ou alma. O terceiro, chamado orí, ou cabeça,
é responsável pela consciência, pelos sentidos, pela inteligên-
cia. O oríé constituído por uma parcela de uma substância
ancestral que varia segundo os indivíduos. Estas substâncias são
simbolizadas por grupos de orixás, tais como Nanã, lemanjá,
Oxum no caso da água, por exemplo. Na verdade, estas subs-
tâncias devem ser entendidas num sentido espiritual e a cabeça
ou oríque Oxalá atribui a cada novo ser que nasce é uma fra-
ção do espírito dos antepassados. O quarto elemento é
manifestação individual do princípio de expansão da matéria,
personificado por Exu, que retirou da matéria e das substânci-
as ancestrais as frações que constituem o indivíduo. Este ele-
mento, o bara, é responsável pelo equilíbrio fisiológico, pela
conservação e pela reprodução da vida. Liga-se à boca, ao estô-
mago, ao sexo, à comunicação e à fala. O último elemento que a
pessoa adquire e sem o qual ela não chega a completar-se real-
mente é o orixá individual, manifestação singular de uma das
divindades do panteão. Possui as características e os atributos
gerais desta divindade, mas distingue-se por símbolos próprios,
funções específicas, traços psicológicos individuais.
144 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Os elementos da pessoa são duplos: a cada um deles


corresponde no mundo sobrenatural, o orum, um duplo que
é fixado em nosso mundo, o aré, num objeto material. Graças
a este assentamento, podemos entrar em contato com a parte
sobrenatural do nosso ser, fortificá-la através de oferendas
que nos serão retribuídas na forma de saúde, vigor, prosperi-
dade. O mundo sobrenatural é pensado como uma espécie de
mundo paralelo, complementar, que mantém com o nosso
constantes trocas de matéria e de força, nas quais convém pre-
servar o equilíbrio, restituindo por meio de oferendas a subs-
tância que recebemos do orum. Orum e aiê nutrem-se um do
outro.

Antes de dar uma idéia do que são os modelos da perso-


nalidade que o panteão do candomblé nos oferece, devemos
explicar que os orixás são entidades que governam o mundo
em nome de Deus, atuando em vários níveis da realidade. No
nível cosmológico, os orixás representam elementos da natu-
reza, ou poderes primordiais: o ar, a água, o fogo, a terra, a
natureza, a civilização. Estão associados a funções sociais ou
naturais, tais como ofícios mecânicos, caça, justiça, guerra,
maternidade... e geralmente identificados com antepassados
miticos. Representam finalmente estereótipos da personali-
dade, possuem um temperamento próprio, que seus devotos
reproduzem, e constituem um dos elementos da pessoa hu-
mana.
São conhecidos aproximadamente uns 16 orixás principais:
os chamados “orixás gerais”. Estas divindades distinguem-se umas
das outras, no ritual, por ornamentos, colares, “ferramentas”,
cores, alimentos, ritmos, cânticos, isto é, por um conjunto de atri-
butos e de características que aparecem como a expressão do seu
temperamento.

Uma análise comparativa do caráter dos orixás revela


que há certas características comuns a vários deles, permitin-
do reagrupá-los em classes. Estas classes correspondem aos
OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ 145

quatro elementos tradicionais da natureza: ar, água, terra, fogo,


aos quais, contudo, faz-se necessário acrescentar mais duas
categorias, que podemos qualificar respectivamente de nature-
za, representada pela vegetação, e os animais selvagens, per-
sonificados por Ossáim e Oxóssi, e de cultura, representada
pelo ferro e Ogum.
Estas seis classes, por sua vez, podem ser reagrupadas
em três grandes divisões: a das divindades frias, funfun, da
criação; a das divindades dinâmicas, quentes, constituída pe-
los orixás filhos de Oxalá, e a terceira categoria, ambígua e
intermediária, é a das divindades femininas-mães, ne per-
tencem ao mesmo tempo ao branco e à cor.
Enfim, cada orixá se apresenta sob diversas formas, ou
“qualidades”, que se diferenciam umas das outras por fun-
ções específicas, por sua associação com um aspecto particu-
lar do elemento que o orixá personifica, por seu sexo, sua
idade, relações míticas de parentesco com outros membros do
panteão, características morfológicas e psicológicas, atributos
e símbolos próprios, além daquelas comuns a todo o grupo de
“qualidades” do mesmo orixá. Assim é que dentre as “quali-
dades” de Oxalá, encontramos, por exemplo, Oxaguiã, jovem
guerreiro do sexo masculino, valente e generoso, associado à
fertilidade e ao culto de vegetação; Odudua, do sexo femini-
no, velha, invejosa, tagarela e autoritária, representando a
fecundidade e a maternidade; Oxalutã, do sexo masculino, ve-
lho, impotente e cansado, ligado à criação.
O santo de cabeça ligado pelo ritual da iniciação à pes-
soa do devoto é uma manifestação individual e única de uma
desta “qualidades” do “orixá geral”.
Este orixá é um antepassado sobrenatural; é o eledá, o
criador da pessoa que herda de modo geral o seu tempera-
mento. Chamam-no de “meu pai”, baba mi, ou de “minha
mãe”, iyá mi, “Ô meu pai Ogum, venha me valer”, dirá um
filho de Ogumem apuros. Nas famílias africanas e entre seus
146 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

descendentes na Bahia, o orixá passa de pai para filho. Mas


a pessoa pode herdar também, em Salvador, o santo de ou-
tros parentes, tais como uma avó, ou de uma madrinha...
Além disso, seu signo, o odu, que contém seu destino, vai
ligá-la a outras divindades associadas por suas funções ao
santo de cabeça. Vemos, portanto, que as influências que
constituem a personalidede são complexas. Mas, sem dúvida
alguma, a do santo de cabeça é determinante.
Da análise dos estereótipos da personalidade surge uma
concepção da pessoa humana, que combina quatro aspectos
principais. Encontramos em primeiro lugar os traços que di-
zem respeito ao corpo: aparência física, tipo morfológico, saú-
de, defeitos de nascença que permitem identificar o dono da
cabeça. Vigor, agilidade, beleza são atributos altamente valo-
rizados. Em segundo lugar, podemos citar as características
que se referem à sexualidade: potência, fecundidade, ou, pelo
contrário, impotência, frieza. A seguir, encontramos aqueles
dados que delineiam o perfil psicológico propriamente dito
do sujeito: vaidade, segurança, generosidade, egoísmo, falsi-
dade, indolência, impulsividade etc. Finalmente, todos os
estereótipos da personalidade incluem uma forma de com-
portamento social que se define pelo grau de agressividade.

HI

Ão ar, concebido como elemento frio, associado à criação


e à paz, corresponde o grupo constituído por todos os Oxalás
velhos. Os filhos destas entidades são de constituição frágil, sen-
do frequentemente marcados por algum defeito de nascença.
Aleijados, mancos, corcundas, por exemplo, são-lhes consagra-
dos. O tipo Oxalá é delicado, friorento, qualquer excesso po-
dendo desregular-lhe a saúde. Sua vida sexual é caracterizada
pela moderação, pela castidade, quando não pela frieza ou im-
potência. O tipo Oxalá vive afastado do mundo dos instintos
carnais e das paixões. Seu traço psicológico mais notável é sua
OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ 147

inabalável tranquilidade, a lentidão de suas reações emocio-


nais, o autocontrole. Odeia barulho, desordem, confusão, bri-
gas, sujeira. Possui grande força moral, uma segurança trangúila
fundada na consciência de sua inteligência e do seu valor.
Irrepreensível, inflexível, tem sede de perfeição moral e de sa-
bedoria. Tem gostos simples e modestos. É lento, porém obsti-
nado, perseverante; integro, é incapaz de uma mentira, de uma
traição. É generoso, tolerante, paternal, hospitaleiro. É obser-
vador e, embora quieto, percebe tudo e não esquece nada.
Quando conseguem ofendê-lo, não perdoa nunca. Mas é abso-
lutamente desprovido de agressividade, algumas “qualidades”
sendo até indolentes, apáticas, indiferentes a tudo.
À água dos rios e dos mares correspondem todas as
Jemanjás, todas as Oxuns, Euás, algumas qualidades de Nanãs,
de Jansãs, Obás. Estas divindades relacionam-se com a
fecundidade e a riqueza, a feminilidade e a maternidade. Dis-
finguem-se, globalmente, pelo charme, pela sensibilidade, pela
emotividade, pela ausência de agressividade. Mas, fora disto,
cada uma delas se destaca por traços peculiares.
A mulher do tipo /emanjá costuma ser alta e robusta, de
ossatura grande, ancas largas, seios generosos. É calma, séria,
cheia de dignidade. Sensual, fascinante, ela cuida com muita
vaidade da sua aparência. É esposa e mãe fiel, eficiente, enér-
gica, mas ciumenta e possessiva. As filhas de Jemanyjá, aliás,
são muito mais mães do que esposas, mostrando-se bastante
independentes em relação aos homens, maridos, amantes, ou
pais. Entretanto, os seus sentimentos maternais exprimem-se
antes no zelo e no amor com que se dedicam à educação de
crianças que podem até não ser delas, do que dando a luz
numerosos rebentos. Elas são fechadas, tranquilas, doces, pa-
cientes, prestativas; porém, às vezes, enfurecem-se de modo
imprevisível. Algumas, mais combativas, são bem-sucedidas
nos negócios.
O tipo Oxumé menos robusto e menos imponente e não
tem a vigorosa saúde das filhas de Jemanyá. As filhas de Oxum,
148 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

delicadas, graciosas, costumam ser muito bonitas. São de todo


meiguice, de todo sedução; sua voz suave, seus olhos brilhan-
tes, seu sorriso alegre num rostinho inocente e seu perfume
viram a cabeça dos homens. São mulheres sensuais, voluptuo-
sas; mas extremamente emotivas, são instáveis, inconstantes,
podendo ser infiéis, levianas, fúteis. Algumas são ingênuas,
crédulas, infantis; outras, preguiçosas, moles, indecisas. Uma
filha de Oxum tem geralmente um caráter muito mais fraco
que uma filha de Jemanjá e é mais dependente. Nunca se zan-
ga, nunca briga com ninguém e não sabe recusar nada. Adora
bebês e criancinhas pequenas. Muitas são ambiciosas, apreci-
am o luxo, o conforto, a riqueza; sabendo-se atraentes, julgam
que o caminho para vencer na vida consiste em usar seus en-
cantos para conseguir o que querem; são astutas, intrigantes,
hipócritas, mentirosas, interesseiras.
Euá é casta, apagada e devota; tímida, tem medo dos ho-
mens. A terra, quente, seca, dura é representada principal-
mente por Nanã e Obaluatê, que se distinguem pela aparência
pesada e desgraciosa, pelo fracasso na sexualidade e no amor,
pela falta de habilidade no trato social e pela agressividade.
Naná personifica um tipo de mulher sem idade definida,
sem beleza, sem vaidade. Apesar das aparências, tem extraor-
dinária resistência física. Não gosta de homens e é pratica-
mente assexuada. Possui uma capacidade de trabalho e uma
eficiência fora do comum; tem hábitos austeros e não tolera
preguiça, falta de educação, desordem, desperdício. É previ-
dente, organizada e tem rigorosos princípios morais. As filhas
de Nanã são zeladoras dos bons costumes, e não perdoam
mentiras, traições, desonestidades. Mas são intolerantes,
ranzinzas, rabugentas, queixando-se continuamente de tudo
e de todos. Podem também ser boas, sábias e carinhosas.
O tipo Omolu ou Obaluaiéé atarracado, pesado, taurino;
e frequentemente uma pessoa que leva as marcas de alguma
doença, e um indivíduo rústico, desajeitado. Não sabe com-
OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ 149

portar-se em sociedade; falta-lhe tato, diplomacia, bom gosto.


Reprimido, frustrado, torna-se amargo e vingativo. Ambicioso
e combativo, ele luta com obstinação. Falta-lhe espontaneida-
de; é um tipo lento, que amadurece durante muito tempo os
seus projetos; mas, firme como a rocha, manifesta na ação tre-
menda perseverança. Gosta de situações estáveis e não aceita
facilmente mudanças; é um indivíduo conservador, ao qual
faltam agilidade e capacidade de adaptação. Mas o que ele
perde em flexibilidade, ganha em profundidade. É realista,
objetivo, lógico. Alguns são resignados, humildes, optam por
uma vida de renúncia, pobreza e mortificação. Este tipo não
sabe lidar com as mulheres e não tem muito sucesso com elas;
tornam-se misóginos ou solteirões. Não gostam de crianças, e
as mulheres não costumam ser boas mães. No trabalho, o tipo
Omolu é exigente, meticuloso e tem grande senso de suas res-
ponsabilidades. Seu relacionamento social é difícil; é agressi-
vo e até cruel e perigoso.
Oxumaré também pertence ao panteão da terra, embo-
ra represente, mais precisamente, a força que move os astros.
Seus filhos destacam-se pela beleza aristocrática; são indiví-
duos nervosos, originais, geralmente cheios de cacoetes e que
se tornam precocemente enrugados. O tipo Oxumaréé inteli-
gente, dinâmico, curioso, observador, indiscreto, irônico e ma-
ledicente. Elegante e altivo, eloquente, um pouco exibicionista
e esnobe, ele atrai, seduz, fascina. É um sujeito esperto, geral-
mente bem-sucedido e que sabe ser generoso. Tem muito gosto
e aprecia as artes. Sendo Oxumaré uma divindade bissexual,
acreditam alguns que seus filhos são homossexuais, o que não
é verdade.
Citemos ainda Odudua que, embora sendo considerado
como uma “qualidade” de Oxalá, está ligada à terra; Odudua
representa um tipo de mulher invejosa, dominadora, Regio
la, ninfomaniíaca e hipócrita.
Ao elemento fogo correspondem essencialmente Jansã e
Xangó, que se caracterizam pelo tipo físico vigoroso, nervoso,
150 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

dinâmico, pela intensa sexualidade, pelo temperamento im-


pulsivo, pela agressividade e pelo caráter autoritário.
O tipo Xangó é robusto, pesado, imponente e nobre.
Tem, entretanto, certa tendência para a obesidade, quando
abusa dos prazeres da mesa. É um indivíduo sensual, amigo
dos bons vinhos, da cerveja, da boa mesa e também um eter-
no apaixonado, um incorrigível conquistador, um libertino
e um marido infiel, embora ciumento e vingativo. É orgu-
lhoso, prepotente, teimoso; não ouve conselhos de ninguém
e não admite jamais ter-se enganado. É caprichoso, impulsi-
vo, imprevisível, mais instintivo que racional. É freqiuente-
mente muito apegado à mãe. Os filhos de Xangô costumam
ter qualidades de liderança; são atrevidos, valentes, agressivos
e mesmo cruéis. Dizem que temem a morte não por covar-
dia, mas por amarem demais a vida; entretanto, alguns têm
certa propensão para o suicídio. Uns são militares; outros, li-
deres políticos, ou ainda patriarcas severos; outros, ainda, inte-
lectuais, filósofos.
As filhas de Jansã são dotadas de inesgotável energia, mu-
lheres dinâmicas, nervosas, irrequietas. São também mulhe-
res de intensa vida sexual, provocantes, que conquistam e
dominam os homens. Excêntricas, atrevidas, fazem-se notar,
usando cores vibrantes, roupas ousadas, jóias vistosas. As fi-
lhas de Jansã são extremamente ciumentas e não toleram ser
enganadas. Quando ofendidas, ou quando descobrem que têm
rival, não hesitam em armar tremendos escândalos e pouco
ligam pelo que delas possam dizer. São mulheres orgulhosas e
teimosas, rebeldes e impertinentes, impacientes, coléricas, cru-
éis, sempre dispostas a brigar. Não gostam de crianças nem de
afazeres domésticos; quando apaixonadas, são extremamente
dedicadas ao seu homem. Mas, de modo geral, são ingratas e
egoístas.
Mencionaremos ainda Exu, que por alguns de seus as-
pectos relaciona-se com o fogo. O tipo Exu é robusto e incan-
OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ 151

sável, cheio de contradições. É um grande amigo dos prazeres


da vida; adora comer, beber, dançar, rir, fazer amor; é um
sujeito animado, alegre, brincalhão, inteligente, vivo. Mas,
principalmente quando bebe, adora divertir-se à custa dos ou-
tros, contando mentiras ou obscenidades; torna-se briguento,
insolente, desordeiro, indesejável. É mal-educado, sujo, não
paga suas dívidas, cínico, manhoso e amoral. Entretanto, tam-
bém é dado a fiscalizar a vida dos outros, que ele pretende
manter no caminho certo da moral e dos bons costumes. Sen-
do venal, e tendo em vista o que irá ganhar, é capaz de reali-
zar com sucesso qualquer tarefa, por mais difícil que seja;
mas, se não lhe interessar, é capaz de fazer tudo errado de
propósito. Nunca desanima, nem fica preocupado, seja lá com
o que for; é prestativo, um excelente amigo que resolve
encrencas, brigas, problemas amorosos ou financeiros com
extrema habilidade e costuma por estas razões ser muito que-
rido e popular. Basta acrescentar que é um mulherengo con-
tumaz e um amante fantástico.
À natureza selvagem correspondem as várias “qualida-
des” de Oxóssie de Ossáim, assim como, também, o aspecto
masculino de Logunedé e, numa certa média, Oxaguia. Estas
divindades distinguem-se pela beleza e pela elegância, pela
sensibilidade e pelo caráter romântico, pela inteligência, pela
intuição e pela sociabilidade.
O tipo Oxóssi é um dos mais atraentes dos tipos mas-
culinos, esbelto, ágil, fino, nervoso. No seu comportamento
amoroso, se revela apaixonado, romântico, carinhoso; mas é
volúvel e instável. É dotado de um espírito curioso, observa-
dor e de grande penetração. Possui um temperamento
introvertido, discreto, uma sensibilidade aguçada, e é tido
por complicado. Tem gosto depurado, qualidades artísticas e
criatividade. Exerce enorme fascínio tanto sobre as mulhe-
res como sobre certos rapazes, e alguns Oxóssis são um pouco
efeminados. No convívio social são amáveis, educados, cal-
mos e muito estimados.
152. CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Logunedé pode ser masculino ou feminino. É muito bo-


nito e tem grande orgulho de sua beleza e de seu corpo. É de
trato fácil, bem-humorado, calmo, educado.
Quanto ao tipo Ossáim, ele é de constituição mais frágil;
tem saúde delicada, e com a idade pode tornar-se aleijado.
Tem certa propensão para a homossexualidade. Possui um tem-
peramento secreto, imprevisível; é sonhador, esquisito, desli-
gado. Os filhos de Ossáim, dados ao estudo, à reflexão, são
geralmente cientistas, pesquisadores, médicos. São generosos,
afetuosos, muito tolerantes, mas fazem questão de preservar a
sua liberdade. Gostam de animais, com os quais dão a impres-
são de saber conversar, e de plantas, que conhecem a fundo e
tratam com carinho. São despojados, sem ambição, completa-
mente desprendidos de interesses materiais.
O princípio da cultura, finalmente, é representado pelas
múltiplas “qualidades” de Ogum, que se salientam por cons-
tituição atlética, virilidade, dinamismo, agressividade e mau
humor. Os filhos de Ogum, com efeito, são sujeitos vigorosos,
saudáveis, relativamente magros, mas com forte musculatura.
Têm sólido apetite e gostam de beber. São extrovertidos, emo-
tivos, mas também suscetíveis, impacientes, intolerantes. Agem
antes de pensar; ofendem-se facilmente, mas acalmam-se tão
rapidamente como se irritam e arrependem-se em seguida de
seus atos de violência. Devido ao seu caráter difícil, irascível,
intransigente, são geralmente considerados desagradáveis e
antipáticos. O tipo Ogum é essencialmente ativo; é um traba-
lhador eficiente, rápido, energético. É audacioso, arrebatado,
empreendedor; não tem medo de nada e de modo geral nin-
guém se atreve a enfrentá-lo. É um tipo essencialmente viril,
que não tem das mulheres um conceito muito alto, sendo um
marido brutal e insensível. Os filhos de Ogum dedicam-se
habitualmente a ofícios mecânicos; são técnicos, engenheiros ?
ou ainda militares.
É claro que cada um dos estereótipos acima se subdivi-
de, já o dissemos, em “qualidades” com características
OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ 153

próprias; porém, para os nossos fins, era suficiente apresentar


aqui, de modo esquematizado, os traços típicos dos “orixás
gerais” mais conhecidos.

IV

Apesar das previsões de Bastide, cujas pesquisas foram


realizadas entre 1944 e 1953, e que julgava que a industria-
lização de Salvador e a integração do negro no sistema capita-
lista seriam fatores de desagregação do candomblé, o culto
não está desaparecendo.
Entretanto, a cidade de Salvador e o Recôncavo estão
passando por um processo de rápida industrialização e de
intenso crescimento demográfico. Implantaram-se numero-
sas indústrias, provocando migrações das populações do in-
terior da Bahia para a capital em busca de trabalho e de
melhores condições de vida, e a vinda de técnicos do Sul e
até do exterior. A cidade de Salvador, que até há poucos anos
havia conservado seu aspecto e seus padrões tradicionais,
praticamente isolada do resto do país, tem passado por radi-
cais transformações.
A cidade contava:
— em 1938: 350.000 habitantes
— em 1969: 1.000.000 habitantes :
— em 1980: 2.000.000 habitantes”
O candomblé cresceu também e mais, aliás, do que se
poderia esperar do simples crescimento demográfico:

4. Os dados relativos a 1938 foram tirados do trabalho de Ruth Landes A cidade


das mulheres (Rio de Janeiro, Civilização, 1967); os que se referem a 1969 são os
da pesquisa realizada pelo Centro de Estudos Afro-Orientais de Salvador, sob a
direção do Prof. Vivaldo Costa Lima. Os dados referentes a 1980 foram fornecidos
pela Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro.
154 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

— havia em 1938: 80 terreiros para 350.000 habitan-


tes, isto é, 1 para 4.375 habitantes;
— havia em 1969: 992 terreiros para 1.000.000 de ha-
bitantes, ou seja, 1 para 1.008 habitantes;
— haveria em 1980: 1.500 terreiros registrados, sem
contar os inúmeros terreiros clandestinos, para uma popula-
ção de 2.000.000 de habitantes.
O prestígio do candomblé foi reconhecido oficialmente;
em 15.1.1976, o então Governador do Estado da Bahia, Sr.
Roberto Santos, assinou, diante de 800 pais e mães-de-santo e
de enorme multidão, o decreto que liberava finalmente o culto
do registro obrigatório na Secretaria da Segurança Pública e do
controle policial. A vida religiosa é integrada à vida cotidiana,
à vida pública; acontecimentos, tais como confirmações de ogãs,
deká, falecimentos, aniversários, fundação de novos terreiros
são objeto de notas na imprensa local.
A multiplicação dos terreiros se faz por um processo de
segmentação. Uma filha, ou um filho-de-santo, com sete anos
de iniciação, que tenha cumprido as suas obrigações rituais,
recebe de sua mãe — ou pai-de-santo —- o dekáe tem daí por
diante o direito de iniciar seus próprios filhos e de fundar o
seu terreiro, se tiver para tanto os recursos financeiros e o
prestígio suficiente. Esta segmentação implica, por sua vez, o
recrutamento de novos adeptos.

Observamos que aderem ao candomblé numerosos ele-


mentos brancos do sexo masculino, que são integrados ao culto
na qualidade de ogãs. Estes elementos não pertencem as classes
de baixa renda; as pessoas sem perspectivas de ascensão social
costumam buscar consolo, de preferência, em religiões que
valorizam a pobreza, a humildade, a paciência, o sofrimento,
OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ e)

prometendo recompensas no além, como é o caso da umbanda


e das seitas cristãs. Os novos ogãs pertencem, em sua maioria,
às classes privilegiadas. Antigamente recrutados na comunida-
de negra e na classe social em que eles se inserem, os ogãs são
cada vez mais escolhidos nos estratos mais altos da sociedade
baiana. As mães-de-santo atribuem cada vez mais este título a
industriais, comerciantes, profissionais liberais, artistas ou in-
telectuais de renome, fato aliás que vem criando certo distan-
ciamento entre estes membros masculinos e o corpo das
filhas-de-santo, que são humildes lavadeiras, empregadas
domésticas, costureiras. É pequeno o número de mulheres bran-
cas nos terreiros tradicionais; algumas delas são damas da
sociedade baiana, dificilmente aceitas por suas irmãs-de-san-
to. Não se contentam em permanecer na condição de humildes
iaós, e quase sempre ascendem aos mais altos cargos dentro da
hierarquia. Mas as velhas sacerdotisas negras negam-se a ins-
truí-las completamente, de modo que sua atuação é limitada e
sua influência no terreiro praticamente nula.
As casas tradicionais gozam de enorme prestígio, e re- ,
ceber um título em alguma delas é uma honra altamente co-
biçada. Certos indivíduos, para obter um daqueles postos,
envolvem-se em toda espécie de intriga. Para ser escolhido
ogã, é preciso não somente ter uma posição, um nome e di-
nheiro, mas ainda frequentar a casa durante anos a fio, saber
conquistar as boas graças da mãe-de-santo e das sacerdotisas
mais importantes.
Verifica-se, pois, atualmente, uma inversão da situação
descrita por Ruth Landes, que estudou o candomblé por volta
de 1938, época na qual eram as mulheres que, com seu tra-
balho de lavadeiras ou vendedoras de quitutes, sustentavam
os homens, na maioria dos casos sem emprego fixo.
Os novos adeptos, pois, são admitidos na qualidade de
ogãs, termos da língua iorubá que significa senhor, superior,

5. Op. cit.
156 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

chefe. Trata-se de um posto honorífico dentro da hierarquia


do terreiro. O ogã desempenha funções civis como protetor
da Casa; tem por obrigação participar das despesas do terrei-
ro, principalmente por ocasião das festas do santo “dono da
Casa”, do santo da mãe, por ocasião das obrigações de suas
afilhadas e, naturalmente, das festas do seu próprio santo. Es-
tas contribuições são estipuladas pela mãe-de-santo. Alguns
ogãs, quando negros, desempenham também funções religio-
sas, por exemplo, como sacrificador, músico. O ogã é alta-
mente respeitado no terreiro, onde é saudado ritualmente pela
orquestra, por suas afilhadas, e onde tem sua poltrona reser-
vada, à direita do trono da mãe.
O orgulho dos ogãs, seu sentimento de pertencerem a
uma elite, é uma constante: “Eu não sou qualquer um: sou
ogã de Xangóda Casa Branca.” Por outro lado, os mais antigos
dentro do grupo de culto fazem questão de afirmar sua supe-
rioridade sobre os mais novos: “Eu não sou qualquer um: já
assentei três santos.”
Enfim, parecem deleitar-se comentando durante horas
as peculiaridades, as idiossincrasias do seu santo, do seu Oxóssi
ou do seu Xangô, por exemplo, e o tema da personalidade dos
filhos de tal ou qual orixá é o assunto predileto de suas con-
versas.
Por que estariam aderindo ao candomblé homens com
formação cultural ocidental? Como podem eles aderir a uma
visão de mundo africana, tão diferente, tão dificilmente
conciliável com nossa educação racionalista, cientificista? A
posição social destes homens, o prestígio de que já gozam na
sociedade baiana excluem certas motivações: não buscam no
candomblé a cura de doenças, uma solução para problemas
de desemprego, compensação pela miséria, refúgio contra a
solidão.
São pessoas que pertencem as classes privilegiadas, que
se beneficiam do desenvolvimento industrial de Salvador, com-
OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ 157

prometidas por interesses econômicos e com a ordem vigente,


que elas não pensam em questionar. Por outro lado, são pes-
soas que procuram obter prestígio dentro do grupo de culto,
que procuram demonstrar o seu zelo: buscam uma integração
no grupo de culto, querendo ser nele aceitas e reconhecidas.
São, enfim, pessoas que atribuem a maior importância ao tem-
peramento do seu santo pessoal.
Podemos então nos perguntar se o meio urbano da mo-
derna Salvador não ofereceria condições favoráveis à eclosão
do que foi chamado de “crise de identidade”, à perda parcial
da identidade pessoal e se o candomblé tradicional, tal como
existe em Salvador, não ofereceria, por sua vez, condições de
recuperação desta identidade.

VI

A pessoa é uma noção formal; designa um sistema de


relações intra e interindividuais, uma constelação de elemen-
tos que assume formas diversas segundo o quadro cultural.
A pessoa, em si, é vazia, posicional: é o lugar ocupado pelo
indivíduo na trama das relações sociais. A identidade pesso-
al, pois, seria a identificação do indivíduo com esta posição
que lhe compete e os papéis sociais correspondentes.
Numa sociedade tradicional, a pessoa é definida de modo
inequívoco e, individuada, ocupa um lugar único na trama
das relações de parentesco na cadeia das gerações e das clas-
ses de idade. Em nossa sociedade, pelo contrário, toda refe-
rência ao cosmos, aos deuses e aos antepassados foi eliminada.
Resta-nos a identificação com um núcleo familiar reduzido, e
com uma categoria social muito vagamente definida, em ter-
mos principalmente econômicos.
A noção de pessoa livre, autônoma e independente pa-
rece acompanhar as políticas de desenvolvimento, cortando
as relações do indivíduo com seu meio, sua comunidade, sua
158 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

tradição cultural, seus mortos e sua família, transformando-


o em mão-de-obra indefesa. A necessidade premente de man-
ter relações econômicas passa antes das relações afetivas,
engendrando a indiferença. A necessidade do consumo está
ligada à valorização do novo, do dinamismo, da agressividade,
tidos por manifestações de juventude e de criatividade. Tudo
é instável, passageiro: emprego, residência, amizades, amo-
res, idéias. Modos de vida e valores transformam-se rapida-
mente e duram menos que uma geração; não há mais
permanência à escala da vida humana. Desenvolve-se o in-
dividualismo, que se exprime na “realização pessoal”, a qual
seria a atualização dos dotes potenciais do indivíduo e a sa-
tisfação das necessidades e das legítimas aspirações do ser
humano.
Além disto, encontram-se nos grandes centros urbanos
pessoas procedentes das mais diversas regiões do país, inclu-
sive estrangeiros e descendentes de estrangeiros, trazendo mo-
delos culturais, sistemas de valores ligados a formações sociais
de origens e de idades diferentes. A experiência cotidiana do
homem urbano é fragmentada pelo fato de ele pertencer a
grupos distintos, que lhe impõem por vezes comportamentos
contraditórios.
Numa sociedade heterogênea e móvel, que se define mais
por seu futuro que por suas regras, a identificação e a inte-
ração numa posição e num papel social tornam-se proble-
máticas. O homem urbano, diante de uma realidade social cujo
sentido lhe escapa, sente dificuldade em definir seu lugar no
mundo; não consegue apreender a sociedade como um todo;
falta-lhe uma visão global que lhe permita inserir-se e perce-
ber-se como parte de um todo.
A identidade pessoal é inseparável da identidade social
e étnica. Edifica-se progressivamente através do jogo de dois
processos complementares: de um lado, a identificação com
o outro, pai, antepassado; do outro, a percepção das diferen-
ças e das oposições. A identidade pessoal resulta tanto da
OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ 159

identificação com o grupo social e da interiorização dos seus


modelos culturais, como da consciência do que nós não so-
mos e do que nós não temos. Num meio heterogêneo (assim
como ocorre em situações de contato interétnico, ou com
imigrantes) como os grandes centros urbanos, o indivíduo
vê-se numa situação onde os modelos culturais que ele
interiorizou não são os mesmos que os das pessoas com as
quais tem de conviver. Não encontrando mais o sistema de
valores e de padrões que constituem o núcleo de sua perso-
nalidade, ele perde seus pontos de referência e não sabe mais
oque ele é.
Em tal meio, constituído de grupos pouco coesos, uni-
dos por relações impessoais, exteriores, mediadas pelo apa-
relho burocrático ou pelos meios de comunicação de massa,
as relações interpessoais aparecem como incertas, proble-
máticas; o outro surge como um enigma e até um perigo. Em
consequência, a curiosidade volta-se para o indivíduo, tema
de infindáveis conversas; generaliza-se o psicologismo. O
global sendo dificilmente apreendido, perde-se a dimensão
sociológica. A pessoa e a personalização adquirem inusitada
importância. Por outro lado, a existência tende a restringir-
se ao plano dos problemas domésticos. Neste contexto, a re-
ligião tende a ser pensada igualmente em termos de
intimidade, como relação com uma entidade protetora e
individual, espécie de pai sobrenatural. Certos indivíduos,
pois, encontrariam uma solução à sua busca de identidade
na relação íntima com uma divindade particular, na devo-
ção a um santo pessoal.

VII

A estes indivíduos desestruturados, o sistema de pensa- .


mento nagó oferece possibilidades de individuação e de in-
serção no cosmos, modelos de personalidade, diferenciação
no plano social e orientação psicológica.
160 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

A individuação realiza-se progressivamente. Com a for-


mação dos ori, surgem seis grandes categorias de seres huma-
nos, que descem respectivamente dos espíritos simbolizados
pelo ar, pela água, pela terra, pelo fogo, pela natureza e pela
civilização. Graças à atuação do princípio de expansão da ma-
téria personificado por Exu, estes seres humanos são separa-
dos e individuados do ponto de vista biológico. Graças aos
orixás, eles são individuados do ponto de vista espiritual, a
individuação seguindo um processo de encaixamento em clas-
ses cada vez menores, incluídas umas nas outras, do geral ao
singular.
À pessoa nagônão é isolada nem autônoma; recebe parte
do seu ser de Deus; recebe outra parte de uma substância
primordial pela qual está ligada aos antepassados da huma-
nidade, da “nação”, do terreiro e de sua própria família. Com
o orixá, ela participa dos poderes que governam estas subs-
tâncias. A pessoa completa é uma criação adquirida através
das instituições. O homem do candomblé apreende-se como
situado no mundo, num ponto preciso do contínuo das gera-
ções humanas, relacionado com determinados deuses e inti-
mamente ligado pela iniciação ou pelo assentamento a uma
manifestação única de um deles; apreende-se como situado
na hierarquia do terreiro e na sociedade abrangente, como
membro do culto.
O candomblé oferece um conjunto de tipos tradicionais
da personalidade suficientemente esquemáticos para adaptar-
se à diversidade dos indivíduos concretos, sendo possível
elaborá-los, integrando anseios individuais. Através do ritual
do assentamento, o novo adepto estabelece uma relação ínti-
ma com seu orixá pessoal, que corresponde a um dos tipos
culturalmente definidos da personalidade, com o qual ele passa
a identificar-se.
A identificação com esta entidade vai proporcionar ao
novo adepto um lugar bem definido no plano das relações so-
OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ 161

ciais. Cada membro do candomblé distingue-se dos demais,


por exemplo, como filho-da-Terra; distingue-se a seguir dos
outros filhos-da-Terra como filho de Obaluaiê, distingue-se
ainda entre todos os filhos de Obaluaiê por ser filho de um
Obaluaiê jovem e guerreiro, digamos Tetu; finalmente se iden-
tifica com seu ser único, talvez 1ji Ghemi, manifestação indi-
vidual de Tetu. Esta identificação determina em certa medida
seu relacionamento com os outros membros do terreiro, pois
com efeito certas funções, certos trabalhos ser-lhe-ão atribuí-
dos em função do seu orixá. Paralelamente, pela sua inserção
no grupo de culto, o novo adepto diferencia-se do não-grupo.
Mas, ao mesmo tempo, sua ligação com determinado orixá
determina, na sociedade mais ampla, seu relacionamento até
com indivíduos que não pertencem ao candomblé, definindo
afinidades, incompatibilidades, atividades profissionais, côn-
Juges possíveis.
Graças à sua ligação com o orixá pessoal, o indivíduo
adquire ainda um lugar definido na ordem cosmológica, pois
o orixá determina afinidades ou oposições com os diversos
aspectos da natureza e poderes primordiais.
Constantemente consultado pela mediação do jogo de
búzios, o orixá reforça esta identificação, incentivando certos
comportamentos, proibindo outros. O adepto, com a aprova-
ção dos membros do grupo de culto, passa a assumir as atitu-
des esperadas, e sensíveis modificações comportamentais
seguem à integração do indivíduo no candomblé.
Enfim, o orixá orienta e ajuda seu filho a alcançar seus
objetivos, definidos de acordo com os ideais da classe social à
qual pertence. Nada se faz sem consultar o santo: negócios,
viagens, mudanças, visitas, casamento etc. O orixá exige o cum-
primento das obrigações rituais, dando em troca saúde, pros-
peridade, êxito. Ademais, através do oráculo, o futuro pode
ser previsto; as desgraças, evitadas; todos os acontecimentos
são explicados, o absurdo e o incompreensível, eliminados.
162 CANDOMBLE: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

CONCLUSÕES

Parece-nos que a expansão dos cultos afro-brasileiros


em geral é paralela ao desenvolvimento do capitalismo e da
urbanização. No caso específico de Salvador, este desenvolvi-
mento é bastante recente, e estamos assistindo hoje ao impac-
to das mudanças sobre as classes média e média alta, que estão
se ressentindo mais dos seus efeitos. Por outro lado, a organi-
zação dos grandes terreiros de candomblé nagó data do sécu-
lo XIX, sendo portanto bem anterior às mudanças decorrentes
da industrialização e do crescimento urbano. Estes terreiros,
pois, já estão solidamente estruturados, já possuem uma tra-
dição integrada à vida da cidade, estando aptos a fornecer uma
inserção e uma identificação. Explicar-se-ia assim a atração
que exerce hoje o candomblé nagó, e a crescente adesão de
membros das classes sociais privilegiadas. Podemos dizer que
o candomblé nagó exerce, no contexto aqui descrito e dentro
dos seus limites, uma função terapêutica, oferecendo uma so-
lução de compromisso a certa categoria de pessoas que, por
um lado, estão atravessando uma crise de identidade provocada
pela transição para o modo de vida dos grandes centros urba-
nos modernos, mas que, por outro lado, estão ligadas por in-
teresses econômicos a ordem vigente.
Em consequência, os deuses passam, cada vez mais, a
personificar tipos psicológicos, a significar individuação, e,
não raro, o novo adepto branco parece estar mais ligado ao
seu santo do que à própria comunidade africana. O desenvol-
vimento desta “psicologia” poderia então ser visto como uma
manifestação da influência da infra-estrutura da sociedade
de classes brasileira, que começa a se exercer sobre a super-
estrutura africana, prenunciando a inversão do mecanismo
anterior descrito por Bastide, que afirmou* que, nos terreiros

6. Bastide, Roger. As religiões africanas no Brasil, op. cit.


OS ESTEREÓTIPOS DA PERSONALIDADE NO CANDOMBLÉ NAGÔ 163

de candomblé, eram as superestruturas africanas que haviam


orientadoa recriação da infra-estrutura. O tipo de psico-
logismo aqui estudado seria, em última instância, um efeito
da atomização das relações sociais na sociedade global sobre a
visão de mundo do candomblé.
decir: é oERioia aoQui pi
prbanização: No caso crpeciíico deSalrndonc ds
ainda é bastante neconie; e<stemes essi
lo dal mudanças sobre as clasiet médiae nadam
peÀ
se Pessendindo mais dos seus efeitos Por Va si, É a o
gição dos grandes terreiros de candomble aan
FO XIX, sento portanto bem anterior às mudançande
e
qa jndus Piutiaação e do csescimetnto urbaio, Estes tá NE
por, já estão solidamente sgtratiaraddos, fá peter ma A
Alção inte rada à vida da cidade estando apioda for j
innérção é sima identificação. Explicar-se-ia assim ai”
va
que Exerce hou O cindomts sagó, e 3 crescente desão.
membros das clásses sociais privilegiadas, Todentore Na ai
UE
crosndomblé ngidexcrie, no comEsto aqui descrito: ae
dos sous Limites, uma Finção Lerapéutica, ofere q o a so.
ração de contprontiaso» certa catetoria de REA o
are facto ESÃO atravessando uma crise de Mentidaúe pi
pelitesntição para o sudo de vida:dos grandes centro
nos modernos, tras que, pl cuiro Bado, esa
terpsmes econômicos À ordem vigente vo ni,
“Em consegibncia; os desinks passam, sida
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EXU / OBALUAIÉ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO
FERIDO NA TRANSFERÊNCIA

Pedro Ratis e SILVA *

COMEÇO
(Sentimento Introvertido)

Exu é quem me possibilita fazer esta reflexão.


Ela começa por uma viagem de retorno à infância, ten-
do como ponto de partida um sonho que, aos três ou quatro
anos de idade, se repetia com muita frequência, sempre do
mesmo jeito: eu estava num lugar desconhecido, com pessoas
desconhecidas; era um recinto, um quadrilátero como uma
grande sala. De repente, entrava um ser muito estranho, alon-
“gado, com uma espécie de cabeça em forma de ovo, cheio de
marcas e pintas. Dançando com movimentos lentos, ele vinha
se aproximando de mim, mas antes de.chegar muito perto eu
acordava aterrorizado. Depois demorava muito a dormir de
novo, com medo de que o sonho continuasse. Algum tempo
depois, aquele ser estranho passou a surgir inteiramente co-
berto de palha. Mesmo assim, eu acordava sempre antes de
ele me tocar, com muito medo.
Era uma época de minha vida em que a barra era mui-
to pesada. Doía dor física. Sofrimento e abandono eram com-
ponentes concretos. Éramos muito pobres — coloquei “éramos”,
mas já por essa época experimentava um sentimento de ex-
clusão e de ser diferente bastante doloroso, que me separava

* Terapeuta junguiano, com clínica em São Paulo.


166 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPOE DA ALMA

dos demais. Além da pobreza material, a atmosfera que se


respirava era de indigência moral, espiritual, cultural etc.
Meu pai bebia e não ligava a mínima para nenhum de nós;
minha mãe não cuidava de mim. Desnutrido e raquítico, com
os cabelos quase brancos (por falta de proteinas), sofria cons-
tantemente de tersóis (problema ligado à avitaminose), e
terminei pegando uma doença de pele — talvez impetigo, em
todo caso, algo infeccioso — que me deixou coberto de pústulas
da cabeça aos pés. Não sei quantos dias, semanas ou meses
durou minha doença, só lembro que doía muito e eu gemia,
pois não tinha força para chorar. Era difícil dormir porque
qualquer posição na cama causava dor; além disso, quase
todas as noites ocorriam os pesadelos. O pior sofrimento era
na hora do banho, quando a água tocava as feridas. Para to-
mar banho, minha mãe me levava à casa de uma conhecida,
que era a única pessoa que tinha jeito para me dar banho.
Acho que era a única pessoa que me causava tanto medo que
eu preferia entrar na bacia e enfrentar a dor, a ter de en-
frentar a cara feia dela. Depois, quando comecei a tomar
penicilina, era ela quem aplicava as injeções. Ela era dentis-
ta e muito caridosa, segundo me disseram.
Lembro de mim nessa época como uma espécie de apên-
dice de minha mãe, pendurado em seu pescoço e gemendo.
Ainda mamava em seu peito. Ela era gorda.
Tinha sido o quinto filho. O filho anterior, que viveu
apenas algumas horas, tinha nascido com cinco quilos e ha-
via arrebentado o períneo da minha mãe durante o parto.
Como esse períneo só veio a ser reconstituído oito anos de-
pois de eu ter nascido, imagino o pavor e o sofrimento dela
ao se ver grávida de mim e, à medida que eu ia crescendo,
notar sua barriga crescendo e pesando e aumentando a amea-
ça. Fantasia minha. O fato é que nasci um mês antes do es-
perado. Esperado é maneira de dizer, pois não havia nada
me esperando, os vizinhos é que acudiram, emprestando
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 167

roupas, berço. O nome que me deram era de meu avô, pai de


meu pai, típico exemplar do patriarcado nordestino mais va-
gabundo.
Acho que vou pular agora o resto da minha infância,
que foi toda ela muito difícil, se não, fica um pouco baixo
astral demais. Basta dizer, antes que eu me esqueça, que hou-
ve um período em que eu pedia esmolas nas ruas de Olinda
(PE) para sustentar minha mãe, até que entrei num seminário
de frades, por determinação dela, onde passei o resto da in-
fância e RE ali o sob suas ghariageno
e ameaças. Saí do tal seminário com 18 anos.
As imagens daqueles sonhos nunca se apagaram da
minha lembrança, mas não tinham outro significado além
de retratos de uma infância muito ruim. Retratos que fica-
vam no fundo de uma gaveta pouco utilizada.
Passando à época atual: foi para mim a maior surpresa
quando, no Moitará de 1980, foi mostrada uma imagem de
Obaluaiê, isto é, da sua sacerdotisa paramentada. Era a pró-
pria imagem que aparecia nos sonhos repetidos de minha in-
fância. E o xaxará, seu emblema, uma espécie de bastão,
lembrava muito o ser estranho que invadia meus pesadelos.
Fiz imediatamente a conexão entre as imagens do culto
nagô e as dos meus sonhos, o que muito me surpreendeu, pois
nunca tinha tido antes contato com essa religião, a vida toda
proibida como “coisa de macumbeiro”. Apesar de muito fre-
quente em Olinda, o xangô (nome local para o candomblé)
era rigorosamente tabu para minha família. “Coisa de negros”,
embora nós fôssemos os brancos que éramos. Não conseguia
porém captar o sentido profundo da conexão entre as ima-
gens e, terminado o Moitará, minha atenção acabou se desvi-
ando para outras coisas.
Até que um belo dia, numa sessão de análise, quando a
analista anunciou que suas férias de meio de ano começariam
dali a algumas semanas, as imagens daqueles sonhos infantis e
168 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

todo o medo e o sofrimento associados a elas se fizeram pre-


sentes. Uma imaginação ativa envolvendo essas figuras aju-
dou a iniciar a elaboração do material transferencial, bem
como a discussão de muitos aspectos que já vinham sendo
mencionados havia algum tempo na análise.
A proposta da imaginação ativa era a invocação e o con-
fronto daquelas imagens. Fechei os olhos e imediatamente en-
trei no “clima?” dos pesadelos; era como se estivesse sonhando
de novo um daqueles sonhos. Sentia-me naquele lugar estra-
nho, com gente desconhecida. De repente surge o tal ser alon-
gado. O medo tomou conta de mim e meu primeiro impulso foi
o de abrir os olhos e interromper o contato, como o sonho cos-
tumava interromper-se. Mas não fiz isso; talvez por estar na
companhia da analista, consegui me manter dentro da propos-
ta da imaginação ativa. A figura, dançando, foi chegando cada
vez mais perto de mim. Parou na minha frente e começou a
girar em torno de si mesma com uma velocidade incrível. Aos
poucos, aquele movimento de rotação foi criando expansões
em torno do eixo, como tiras de palha, e o conjunto foi adqui-
rindo uma forma semi-humana. Quando parou finalmente,
aquilo se dirigiu a mim com evidente intenção de me abraçar.
Reagi tentando afastá-lo com as mãos e perguntando o que que-
ria de mim. “Quero levar você”, foi a resposta. Gelei. Já com-
pletamente sem esperanças e desistindo de reagir, perguntei
para onde ia me levar. A resposta foi de tal modo inesperada
que me causou um choque e mudou completamente a atmosfe-
ra de medo: “Quero levar você ali para aquele banco para a
gente conversar.” E apontou um banco de jardim trangúilo, fora
do quadrilátero onde estávamos. Fomos para lá e sentamos. Em-
bora o pavor tivesse desaparecido, eu continuava tenso e as-
sombrado diante daquele desconhecido, que afinal não parecia
querer me fazer mal. Mas o contato não era nada fácil: não
conseguia enxergar direito por entre as palhas, mas percebia
algo vivo ali dentro; ao mesmo tempo um cheiro (impressão de
cheiro) nauseante de pus e sangue se desprendia dali. Pedi que
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... - 169

me dissesse quem era e a sua resposta foi: “Eu sou a sua bonda-
de. Você não me conhece porque eu não tenho rosto. Eu queria
só me apresentar, agora já vou embora.”
Perguntei por que já tinha de ir embora, pois já estava
começando a me sentir melhor em sua companhia. “É por você.
Você não agiientaria receber tudo hoje. Mas eu voltarei.” Res-
pondeu e desapareceu. Terminou a imaginação ativa.
A emoção foi muito grande. Era como se as duas pontas
de um fio tivessem se unido formando um círculo onde cabia
o sentido da minha vida inteira. Intuitivamente, claro, não que
este sentido já estivesse dado para mim. Mas a volta prometi-
da de Obaluaiê era também uma promessa de desvendamento
do mistério desse sentido.
Compreendi também, acho, que a segunda vinda de
Obaluaiê teria de ter uma participação mais ativa de minha
consciência, e me dispus a prepará-la. Não sendo adepto da
religião nagô, não tinha muito sentido para mim “fazer a ca-
beça”, “dar comida para o santo” ou qualquer obrigação ritu-
al; mas tentei captar do ritual de iniciação o respeito e a
dedicação necessários para a integração do símbolo. Lembrei-
me das palavras de Jung:
Although we naturally BELIEVE in symbols in the first
place, we can also UNDERSTAND them, and this ís
indeed the only viable way for those who have not
been granted the charisma of faith .'*
(“Apesar de naturalmente ACREDITARMOS nos símbo-
los em primeiro lugar, podemos também COMPREENDÊ-LOS,
e na verdade este é o único caminho viável para aqueles que
não foram agraciados com o dom da fé.”)
E decidi passar à execução do presente trabalho como
parte desse esforço de integração. Não como um adepto, não
como um antropólogo, não pretendo compilar um tratado so-
bre Obaluaiê, não pretendo estabelecer grandes teorias; dese-
170 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

jo apenas compreender um pouco mais de minha vida e de


um material clínico que com muita frequência aparece na
experiência psicoterápica: o fenôrieno da transferência ma-
nifestando-se na pele.
E Exu, onde entra nisto?
Comentando uma série de fotografias que retratam uma
cerimônia para Obaluaiê, Pierre Verger, em seu livro sobre os
orixás, cnama a atenção para “o ar trocista e desligado dos
mais velhos, em contraste com a expressão concentrada e ten-
sa dos iniciados”.?! Houve uma inversão da polaridade habi-
tual: o ar grave está nos jovens e a descontração, nos velhos. E
é nessa inversão que se pode detectar Exu (nome dado pelos
nagô ao aspecto dinâmico do existir), a nos lembrar que
Obaluaiê não é somente sofrimento e morte, mas também
transformação e vida. Os velhos das fotos, em sua sabedoria,
como que expressam a integração das polaridades desse ar-
quétipo.
É então uma dupla: Exu e Obaluaiê. Ou melhor, Obaluaiê
com seu Exu, seu princípio dinâmico, o símbolo central ao
redor do qual se organiza este trabalho, que se apóia, por um
lado, basicamente no livro de J.E. Santos Os Nagô e a morte,
que como ela própria declara em entrevista: “... provocou dis-
cussões até de teólogos, porque pela primeira vez houvera uma
tentativa séria de desenhar uma epistemologia da religião
nagô”;'º e, por outro lado, apoiando-se em vivências pessoais
e da clínica. Com isto, acredito seguir a recomendação de
Byington, que lembra que: “Cada Símbolo é a expressão do
Todo e para se chegar à vivência simbólica plena é necessária
uma abertura não só intelectual mas sobretudo existencial,
pois somente aí a vivência simbólica e a sua interpretação se
tornarão claras.”º E um pouco mais adiante: “A abundância
de Símbolos Multiculturais nos costumes, sonhos e no Proces-
so de Individuação dos Brasileiros contrasta com o seu quase
nenhum conhecimento das culturas onde esses Símbolos ope-
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 171

ram significativamente. É como se existisse uma Identidade


latente que já vive nos Símbolos mas para a qual a Consciên-
cia Coletiva ainda mal despertou.Ӽ
Tudo bem, tem isso. Mas tem também, e principalmente,
uma intenção de, em muitos sentidos, tentar salvar minha pele.

MEIO
(Intuição Introvertida)

Quiron, o centauro sábio, recebera a incumbência de


instruir Asclépios, filho de Apolo — o deus solar — nos mistéri-
os da medicina. O grande segredo revelado por Quíron a
Asclépios foi que, para curar, o médico precisa ser, ele pró-
prio, ferido. Acessoriamente, transmitiu-lhe quanto sabia a res-
peito de ervas medicinais. “A ferida de Quiíron era uma ferida
na pele.
Obaluaiê, o orixá das doenças, médico dos pobres, ao
manifestar-se em suas sacerdotisas, precisa ser inteiramente
recoberto por uma vestimenta de palha, que lhe oculte o as-
pecto repugnante. É que o “médico dos negros” sofre ele tam-
bém de uma terrível doença, a bexiga, ou varíola, uma doença
de pele.
O fato de duas culturas tão distantes e distintas no tempo
e no espaço, como a nagô contemporânea na África e no Bra-
sil, e a cultura grega na Antiguidade clássica, terem produ-
zido representações que podem ser superpostas em muitos
aspectos, não chega a ser surpreendente nem inédito para a
psicologia analítica. Foi mesmo a partir de fatos semelhantes
que C.G. Jung construiu a hipótese do inconsciente coletivo
e dos arquétipos. O que chama a atenção e o que me propo-
nho estudar é o fato de a doença do médico ferido ser uma
doença de pele. O segredo de Quíron era que o médico devia
ser ferido, mas não havia nenhuma explicitação a respeito
da natureza do ferimento. As suposições correntes falam a
172 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

respeito da necessidade de uma correspondência pelo me-


nos analóica entre a ferida do médico e a ferida que quer
curar. ai À primeira vista, a limitação parece muito gran-
de, deixando o campo de ação do médico reduzido ao trata-
mento exclusivo dos casos em que o ferimento seja exatamente
o mesmo no paciente e no terapeuta. No entanto, sabemos
que Quiron não tratava apenas de pacientes flechados por
engano por Héracles, mas era muito mais receptivo. O que
haveria, pois, de tão abrangente na ferida de Quíron que o
habilitava a mexer com tantas patologias “diferentes” da sua?
Acho que era o fato de sua ferida situar-se na pele.
A possibilidade da cura através da ferida já nos alertava
para a necessidade de uma intervenção da personalidade to-
tal do médico, dentro de uma relação intensamente pessoal.
O detalhe de esta ferida localizar-se na pele nos conduz di-
retamente ao problema da transferência, que discutiremos
ao longo deste trabalho.
O processo usado pelo centauro para curar através da
sua ferida não nos é dado pelo mito; a psicologia profunda,
porém, fornece à imaginação, através do estudo do fenômeno
da transferência, o material necessário à composição do qua-
dro. O termo técnico transferência usado aqui designa um fe-
nômeno que ocorre na relação analítica mas que não é
privativo dela, e sim inerente a toda relação significativa. Não
se refere apenas à repetição de padrões de comportamento
estruturados durante a infância (transferência defensiva), mas
também à transformação desses padrões atualizados na
vivência terapêutica, isto é, que visa à integração das trans-
formações à personalidade (transferência criativa). A pele se-
ria então, por esta nossa hipótese, o órgão centralizador das
manifestações simbólicas, na coluna do corpo no eixo ego-
self, do fenômeno da transferência.
Se a cura se dá pela transferência, a pele é o seu órgão
efetor simbólico.
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 173

Mas qual a necessidade de ela ser uma pele ferida?


É que a pele, como órgão de relação, funciona como
fronteira entre o mundo interno e o mundo externo; e se
esses dois mundos não se comunicarem, se nenhuma aber-
tura existir de um para o outro, se não houver possibilidade
de troca, não há possibilidade de vida. A necessidade de a
pele ser ferida é a necessidade da abertura entre esses dois
mundos e, por extensão, entre o “eu” e o “não-eu”, entre o
que está na consciência e o que está no além (além-consci-
ência): entre o eu e o outro. A ferida na pele surge então
como uma abertura maior para o outro, não importa se in-
terna ou externamente. A transferência só se realiza como
relação que cura quando essa abertura maior para o outro
está presente e, através dela, o fluxo vital se estabelece, pre-
sidido por Eros e vivenciado conscientemente pelo médico
(ferido). A pele é um símbolo central dessa relação que cura
— a transferência — com um potencial para expressar suas
nuances, desde as mais sutis até as mais dramáticas. Se esti-
vermos atentos para a linguagem simbólica da pele e nos
abrirmos para a sua leitura, podemos acompanhar o anda-
mento da transferência e dela obter imagens instantâneas de
surpreendente precisão e nitidez. Por outro lado, a observa-
ção da “contratransferência” na pele abre caminho para que
o analista conscientize a simbiose transferencial através da
qual a diferenciação vai-se desdobrando. Esta, segundo
Byington, “se faz sempre na relação com o Outro, seja ele
pessoa, corpo, natureza ou ideação-emoção, o que nos torna
sempre Sujeito e Objeto no processo de diferenciação. É cla-
ro que isto não afasta a função da discriminação em cada
aumento da consciência, através do qual o selfse separa no
Eue no Outro. A discriminação, porém, é efêmera e não deve
por isso nos iludir com a capacidade de se manter um estado
objetivo permanente. O selfque se sujeita à discriminação e
produz mais consciência estruturando a identidade a partir
da sua diferenciação do Outro, no momento seguinte já se
174 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

apresenta outra vez indiscriminado, onde o Eue o Outro se


apresentam outra vez condensados”. Na transferência, a
pele está o tempo todo sinalizando-essas vicissitudes, forne-
cendo as imagens mais imediatas das mesmas.
Agora, o deus da pele ferida é o orixá nagô Obaluaiê, o
Grande Médico da cultura iorubá, que tem a pele atacada pelas
pústulas da varíola em toda a sua extensão. Não uma abertura
apenas, como em Quiron, mas milhares delas pelo corpo todo.
E cicatrizes. E uma grande sensibilidade. Não se deve irritá-lo.
Não se deve esquecê-lo, nem arriscar qualquer possibilidade
de faltar-lhe com o devido respeito. Acho que essa atitude “re-
ligiosa”, no sentido de “observação cuidadosa” como ensina
Jung, é a mesma que se impõe ao vivenciarmos o fenômeno da
transferência.
Quando pessoas que têm algum conhecimento ou algu-
ma vivência da cultura dos nagô referem-se a Obaluaiê, fa-
zem-no em geral com uma atitude que reflete um grande
respeito e também algum medo. Não se fala muito de Obaluaiê,
e quando se fala é como se estivéssemos diante de um horren-
do mistério. É como se a numinosidade desse arquétipo fosse
mais intensa, mais misteriosa, mais perigosa e mais próxima.
Omolu, a representação desse orixá sob forma de um velho,
evoca morte, cemitérios, caveiras e todo um clima de decom-
posição. Não se fala o nome de Xapanã (outra representação
do mesmo orixá), pois basta pronunciá-lo para que a pessoa
contraia uma doença de pele. Xapanã é a representação desse
orixá sob sua forma mais terrível, a de disseminador de doen-
ças como castigos, sendo ele colérico e vingativo.
Essa atitude de respeito e medo é sugestiva de que este-
jamos diante da experiência de um símbolo vivo. A imagem
de Quíron, filtrada por inúmeras camadas de estudos erudi-
tos, ficou muito menos acessível a uma experiência direta.
Não é contribuir para que isso ocorra também com Obaluaiê/
Omolu/Xapanã que nos move a estudá-lo, e sim detectar sua
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 175

presença viva em nossa experiência diária sempre que esta-


belecemos uma relação significativa com o “outro”. Como a
observação das relações significativas, com uma proposta de
transformação, ocorre privilegiadamente dentro do contex-
to de uma análise, é compreensível que Obaluaiê tenha na
transferência um lugar preferencial para suas manifestações,
e na pele das pessoas envolvidas, seu “assento”. Segundo o
Dicionário de cultos afro-brasileiros, de Olga Gudolle
Cacciatore, o “Assento dos Santos” é o caterial sagrado onde
o orixá mora, onde reside sua força mágica”. “Numa lingua-
gem um pouco mais clínica, poderíamos talvez falar de “si-
nais”: sinal de Obaluaiê, sinal de Omolu, sinal de Xapanã,
conforme o sentido da manifestação dermatológica tenha a
ver com as polaridades doença/saúde, morte/vida ou casti-
go/redenção. Voltaremos a essas polaridades e “sinais” na
quarta parte deste trabalho, para examiná-los mais detida-
mente, junto com o material clínico. Antes precisamos situ-
ar Obaluaiê no universo mítico nagô e estudá-lo mais
detalhadamente junto com Exu — o que faremos no restante
desta seção e na seção seguinte.
Como estávamos vendo, admitir uma relação como sig-
nificativa é atribuir a ela um sentido para a individuação e
conceder-lhe uma potência transformadora. A atitude diante
desse sentido e dessa potência ainda desconhecidos só pode
ser de respeito e algum temor. Como diante de Obaluaiê. Di-
ante do mistério da transformação.
Mas quem é Obaluaiê dentro do sistema religioso naaoa
Como localizá-lo nessa constelação?
O livro de J.E. Santos Os Nagô e a morte nos fornece
uma descrição pormenorizada do universo cultural nagô. É a
ele que nos remetemos obrigatoriamente e é de sua leitura
que nos vieram algumas intuições que passaremos a expor,
numa tentativa de estabelecer genericamente o contexto em
“que surgirá a figura de Obaluaiê com seu Exu.
176 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

O nagô pensa a existência cosmicamente como Olórun,


a suprema entidade, o Ser, onde estão contidos todo o espaço e
todos os conteúdos materiais e imateriais. Se por um lado essa
concepção se aproxima bastante do que em psicologia analíti-
ca chamaríamos de Self Cósmico, a primeira discriminação
introduzida pelo sistema nagô, fazendo a existência transcor-
rer simultaneamente em dois níveis — o aiêe o orum- é quase
superponível à divisão “consciente” e “inconsciente”, pois dá
possibilidade e sentido à existência individual em equilíbrio
dinâmico, dialético, com o Todo. Tanto que o aiê, o mundo
das representações conhecidas, o mundo da consciência, se
constituiria numa materialização do orum, do além, do que
está além da consciência, o Inconsciente, portanto, do qual
proviria, ao qual pertenceria, mantendo-se a ele permanen-
temente ligado por um eixo. Nas escrituras sagradas dos nagô
(odus) o orum é descrito como sendo composto por nove es-
paços, sendo o aiê um desses nove espaços, formando um todo
harmonioso, e unidos por um pilar. Essa concepção macro-
cósmica encontra correspondência naquilo que a psicologia
analítica, em âmbito microcósmico, postula como origem da
consciência e sua mutação e desenvolvimento através do eixo
ego- self Hr
A idéia de que tudo que existe no aiê tem um doble abs-
trato no orum, do qual seria a forma concreta, individualiza-
da, reporta-nos à teoria dos arquétipos e do desenvolvimento
arquetípico da consciência. Se atentarmos agora para o signi-
ficado da palavra Olórun ou obá-orum — “rei do orum” - e o
compararmos ao significado da palavra Obaluaiê (Obá + olu
+ aiyé: rei dos espíritos do aié),já poderemos talvez pressen-
tir a posição central e a importância que este arquétipo está
demonstrando ter. Não seria nenhum exagero tomá-lo como
uma imagem do Arquétipo Central, ou talvez a do Velho Sá-
bio, sem forçar um redutivismo, mas colocando-o como algo
muito próximo à imago Dei.
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 177

Logo voltaremos a isso; antes há ainda a necessidade de


examinarmos alguns aspectos da cosmogonia nagô, para ten-
tarmos compreender as forças que mantêm aquela divisão ini-
cial a que nos referimos e intervêm nas trocas necessárias ao
equilíbrio dinâmico dos dois sistemas.
Para tanto, resumiremos dois mitos de criação da tra-
dição nagô documentados por J.E. Santos em seu trabalho já
citado.
No primeiro deles, Olórum, o Ser Supremo, identificado
com o elemento abstrato, o ar ou “éter”, é o Ser Primordial, e
de seus movimentos respiratórios, numa progressiva conden-
sação, surgem as águas e destas, a lama. Da interação destes
três proto-elementos, ar (Olórum), ar-água (Obatalá) e água-
terra (Odudua), surge a primeira forma criada, uma bolha de
lama que se solidifica e adquire vida ao receber o hálito divi-
no de Olórum: Exu, o filho, o elemento procriado.
Daí por diante, subentende-se a presença de Exu como
o terceiro elemento, resultante da união dos princípios criati-
vos masculinos (Obatalá, água da chuva, caída do céu, de
Olórum, o ar, componente espiritual) e feminino (Odudua, a
terra, fecundada pela chuva, o componente material).
O outro mito a que nos queremos referir relata detalha-
damente os primeiros movimentos daqueles dois princípios
criativos (masculino e feminino, Obatalá e Odudua). Por ele
ficamos sabendo de uma divisão inicial do trabalho da Cria-
ção, com desentendimentos e posterior reconciliação dos dois
princípios. Assim Obatalá, o princípio masculino, criou o orum
e todas as entidades abstratas que o compõem. Por sua vez,
Odudua, o princípio feminino, escorregando pelo pilar que o
une ao orum, veio para o aié, onde criou a terra. É da reunião
subsequente de Obatalá a Odudua que nascem todos os seres
deste mundo. A harmonização desses dois princípios, a
interação entre o orum e o até, entre o Ser e a sua reflexão, é
mantida através da dialética do sacrifício, que prepara a su-
178 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

peração final daquela com a morte e a reintegração no Todo.


E todo o ciclo pode então se reiniciar.
Esses dois mitos cosmogônicos nagô podem ser lidos tam-
bém como descrições admiráveis da psique originando-se do
Self Cósmico e diferenciando-se gradativamente, passando
por fases em que as forças criativas originais (patriarcais e
matriarcais) estão divididas, trabalham separadamente, esta-
belecendo-se e estruturando sua parte específica na tarefa da
Criação, posteriormente se reúnem, completam juntos a
estruturação e juntos preparam a transcendência, a volta ao
cosmos.
O ponto que gostaria de destacar agora diz respeito a
uma teogonia nagô, a genealogia dos orixás, que nos permiti-
rá situar Obaluaiê nessa constelação de entidades míticas.
Já vimos como se originaram as três entidades primor-
diais, Obatalá, Odudua e Exu. Ora, ao criar o orum, Obatalá
estabelecia um domínio abstrato que viria a ser povoado por
entidades criadas diretamente por Olórum, os “orixás da di-
reita”, com tarefas específicas na criação e manutenção do
universo. Todos, sob o comando de Obatalá, representam o
poder criador masculino. Além desses, há os “orixás da es-
querda?”, representantes do poder criador feminino, com
Odudua à frente e englobando também todas as entidades —
“filhos” resultantes da interação dos orixás da direita com os
da esquerda. Ainda no orum, mas separados dos orixás, estão
os eguns, espíritos dos ancestrais humanos, também divididos
em da direita e da esquerda, conforme sejam ancestrais mas-
culinos ou femininos.
Por sua vez, todos os seres do aié são formados a par-
tir das entidades abstratas do orum. Das entidades sobre-
naturais do orum desprende-se a energia vital que animará
a matéria e orientará a diferenciação daquele ser no ajê.
Completado o seu desenvolvimento pleno, aquela energia
vital deverá ser restituída ao orum, e a porção material,
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 179
restituída à terra. O que possibilita o eterno renascer e as
transformações.
Essas concepções encontram paralelo na teoria do de-
senvolvimento arquetípico da consciência.
Dentre os orixás da esquerda, destaca-se a figura de
Nanã, imagem de Grande Mãe ctônica, tão importante nesse
grupo que às vezes é confundida com o próprio princípio fe-
minino, Odudua.
Seu filho, fruto de sua interação com Obatalá, é o gran-
de orixá da esquerda Obaluaiê, que passaremos a estudar
detalhadamente.

MIOLO
(Fantasia)

Obaluaiê é o filho abandonado de Nanã.

Da união de Obatalá (água da chuva, princípio gerador


masculino) com Nanã (princípio feminino em seu aspecto
maternal ctônico), nasce Obaluaiê, rei dos espíritos do azê.
Seu grande corpo negro cheio de feridas é o testemunho de
suas origens, ao mesmo tempo celestes — o céu estrelado de
seu pai — e terrenas: a lama preta de sua mãe.
“Rei de todos os espíritos do mundo”, nas palavras de
JE. Santos, Obaluaiê é a “imagem coletiva de espíritos an-
cestrais”. Imagem arquetípica do divino no humano, do es-
pírito na matéria, Obatalá + Nanã, Obaluaiê é uma imagem
do arquétipo do espírito humano. Rei porque, presente em
cada ser humano, preside o seu desenvolvimento espiritual,
reintegrando posteriormente aquela manifestação individu-
alizada a uma somatória de todas as contribuições individu-
ais ao longo dos séculos da existência humana. A tradição
nagô expressa essas duas características dos arquétipos — a
universalidade e a síntese evolutiva — através do uso abun-
180 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

dante de cauris (pequenos caracóis que servem para repre-


sentar os descendentes) na liturgia de Obaluaiê, e no fato de
o conjunto de cauris que serve de-instrumento de consulta
ao oráculo pertencer ritualmente a esse orixá. Isso nos per-
mite visualizar a consulta ao oráculo como uma abertura,
dentro de uma vivência de sincronicidade, para a totalidade
da experiência humana armazenada nos arquétipos. O orá-
culo não é de Obaluaiê; mas o conjunto de cauris, seus des-
cendentes, sim.
Mas que participação teria nessa estrutura a dinâmica
do abandono?
A ligação com Nanã, sob o aspecto mitológico, preserva-
ria a integridade da pele de Obaluaiê, seus cuidados de mãe
poderiam ter mantido aquele invólucro perfeito para conti-
nente de suas aspirações. Mas Obaluaiê não era apenas um
pedaço desprendido do corpo de Nanã. Obaluaiê é o espírito
humano, e a sua diferenciação através das aquisições da cons-
ciência durante o desenvolvimento arquetípico é um “opus
contra Naturam?, que o leva irremediavelmente para uma
tensão com suas origens. Nanã não reconhece aquele filho que
não a reproduz integralmente, ali existe alguma coisa que não
lhe pertence, não é ela. E o rejeita.
A febre e pequenas bolhas começam a se espalhar pelo
corpo. Como pequenas estrelas cintilando em sua pele,
relembram-lhe a origem celeste — Obatalá.
Na liturgia nagô, segundo nos informa Pierre Verger,
“nos dias de certas cerimônias os sacerdotes de Oxalá (Obatalá)
têm o corpo decorado com pontos de giz branco”. E “na Áfri-
ca, como no Brasil, o corpo do iniciado (de Obaluaiê) é deco-
rado com desenhos feitos com (pontos de) SIZ branco”> É um
detalhe cerimonial apenas, porém especialmente significativo
para o contexto que vínhamos estabelecendo.
Desejo nesse momento deslocar a ênfase da dor das feri-
das do abandono para sua transformação em calor e cintilações.
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 181

C.G. Jung, em seu trabalho On the Nature of the Psyche


(Sobre a Natureza da Psique), descreve a formação da luz de
ilhotas que se reúnem em arquipélagos e estes em continentes:
As we know from direct experience, the light of
consciousness has many degrees of brightiness and
the ego-complex many gradations of emphasis. On
the animal and primitive level there is a mere
“luminosity”, ditfering hardly at all from the glancing
fragments of a dissociated ego. Here, as on the infantile
level, consciousness is not a unity, being as yet
uncentered by a tirmly-knit ego-complex, and just
flickering into life here and there, wherever outer or
inner events, instincts and affects happen to call 1t
awake. At this stage it is still like a chain of islands or
an archipelago. Nor is it a fully integrated whole even
“ at the higher and highest stages; rather, it is capable
of indefinite expansion. Gleaming islands, indeed
whole continents can still add themselves to our
modern consiousness — a phenomenon that has
become the daily experience of the psychotherapist.
Therefore we would do well to think of egocons-
ciousness asbeing surrounded by a multitude of little
Juminosities.
(“Como sabemos, por experiência direta, a luz da cons-
ciência tem muitos graus de claridade e o complexo do ego,
muitas graduações de ênfase. No nível animal e primitivo, o
que existe é uma mera “luminosidade”, diferindo muito pou-
co dos fragmentos instáveis de um ego dissociado. Aqui, como
no nível infantil, a consciência ainda não constitui uma uni-
dade, não sendo ainda centralizada por um complexo de ego
firmemente entretecido, e que fica penetrando, de forma va-
cilante, na vida, aqui e ali, onde quer que eventos internos ou
externos, instintos e afetos aconteçam de despertá-la. Nesse
estágio é ainda como uma cadeia de ilhas ou um arquipélago.
Mas nem mesmo nos mais altos e elevados estágios ela chega a
182 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

ser um todo completamente integrado; antes, é capaz de ex-


pansão indefinida. Ilhas resplandecentes, na verdade conti-
nentes inteiros podem ainda se adicionar à nossa consciência
moderna — um fenômeno que se tornou a experiência diária
do terapeuta. Por isso, faríamos bem em considerar a consci-
ência do ego como sendo rodeada por uma multidão de pe-
quenas luminosidades.”
À seguir, justifica essa hipótese de luminosidades múl-
tiplas em parte pelo “qguasi-conscious state of unconscious
contents” (estado quase-consciente dos conteúdos incons-
cientes), e em parte pela “incidence of certain images which
must be regarded as symbolical ”(“incidência de certas ima-
gens que devem ser vistas como simbólicas”), dando como
fontes dessas imagens sonhos e fantasias de indivíduos, mas
também descrições em documentos históricos. Destaca ci-
tações de alguns dos alquimistas que descrevem a imagem
de scintillae (“centelhas”) surgindo como ilusões visuais na
matéria-prima, sementes da consciência em formação. Daí
passa ao exame de um outro motivo mas com o mesmo sig-
nificado: imagens contendo muitos olhos (polioftalmia), em
escritos alquímicos, na lenda de Argos e em uma visão de
Santo Tomás de Aquino, em que lhe aparecia uma serpente
cheia de olhos brilhantes. Na maior parte das vezes, o apa-
recimento dessas imagens é precedido por uma fase de ca-
lor e ressecamento que corresponde aproximadamente à
calcinatio do processo alquímico, por meio da qual pro-
duz-se a albedo da matéria-prima. É oportuno lembrar a
esta altura um dos títulos de Obaluaiê: “Baba Igbona?” (Pai
da Quentura), derivada da palavra ina, significando vio-
lento calor, fogo, associado à fepre que acompanha as erup-
ções na pele.
Jung menciona ainda imagens de sonhos e fantasias do
mesmo motivo encontradas frequentemente na clínica, apare-
cendo como “... the star-strewn heavens, as stars reflected in
dark water, as nuggets of gold or golden sand scattered in black
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 183

earth, as a regatta at night, with lanterns on the dark surface of


the sea, as a solitary eye in the depths of the sea or earth, as a
parapsychic vision of luminous globes, and so on” (4... o céu
estrelado, como estrelas refletidas na água escura, como pepi-
tas de ouro ou ouro em pó disperso na terra negra, ou como
uma regata noturna, com lanternas na superfície escura do mar,
como um olho solitário nas profundezas do oceano ou da terra,
como uma visão parapsíquica de globos luminosos, e assim por
diante”). A estas belas imagens gostaria de acrescentar a ima-
gem menos esteticamente favorecida da pele bexiguenta de
Obaluaiê testemunhando, na coluna do corpo no eixo ego- Self,
a estruturação da consciência.

A-idéia que reúne falha, ferida, lacuna, dor (por aban-


dono da totalidade indiscriminada) a fogo, calor, brilho e
claridade (da consciência) é uma idéia arquetípica que pode
ser encontrada em culturas tão diferentes da iorubá como a
grega de Heráclito (“Brilho seco é a alma mais sábia e me-
lhor); * a dos alquimistas medievais (scintillae aureae), a
dos hindus (“Purusha, o dos mil olhos”) e mesmo a dos chi-
neses (onde, no livro de sabedoria I Ching, a forma do
trigrama Li, fogo: ||| sugere, pela insinuação de um espaço
vazio numa estrutura compacta, uma linha fraca entre duas
linhas fortes, “a natureza em sua radiância”. Li apresenta
também o sol de verão, cuja claridade, iluminando todas as
coisas, permite que as pessoas se percebam umas às outras, €
para o qual se voltam os homens sábios quando lhes toca a
tarefa de governar.
Essas amplificações das feridas da pele de Obaluaiê, as-
sociando-as ao fogo, coloca-nos em situação de poder discutir
um outro aspecto fundamental desse arquétipo, sua possibili-
dade dinâmica consequente à sua ligação com Exu, ou, me-
lhor dizendo, com seu Exu. Pois justamente o fogo é uma das
representações desta divindade, presente simbolicamente em
seu “assento”, assinalado por uma vela acesa.
184 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Acontece que Exu é o PROCESSO, o elemento criado do


Ser, o filho. Portanto tão eterno quanto o Ser presente nos mo-
vimentos respiratórios de Olórum, origem da criação e pri-
meira forma criada. Possibilidade contida nas estruturas, ela
mesma força estruturante capaz de ultrapassá-las e recriá-las
novas.
Quando o Todo começou a mover-se — e esse começo é
mítico, eterno, impensável, pois o Todo necessariamente já
contém o movimento —, surgiu a primeira discriminação:
móvel/imóvel, possibilitando a existência individualizada (di-
nâmica), discriminada mas não separada da existência gené-
rica (estática).
Exu é a representação iorubá desse princípio dinâmico
que possibilita a existência individualizada. A tradição, os mitos
e rituais referentes a essa divindade descrevem suas “peri-
pécias” e suas funções, e seu exame vai pouco a pouco desve-
lando um dos símbolos centrais na concepção nagô do
universo: o sacrifício.
No sistema nagô, sacrifício integra a idéia de restituição,
absolutamente indispensável para compreensão da interação
(dialética) que harmoniza as forças cósmicas. Assim, se lem-
brarmos do mito de criação anteriormente mencionado, no
“começo” era apenas o Ser, o éter, pura energia. Seus movi-
mentos respiratórios é que deram origem à criação, por
condensação. Essa transformação de energia em matéria im-
plica dialeticamente a necessidade de uma transformação no
sentido inverso: da matéria em energia. Toda energia “con-
densada” na matéria deve refluir para seu estado original. Este
é o sentido da restituição: só assim novas formas poderão ser
criadas e com elas a possibilidade do desenvolvimento pro-
cessual do Todo. Isto tendo em vista a totalidade. Do ponto de
vista do processo individual, contingencialmente desenvolvi-
do no tempo, o sacrifício é a forma simbólica de restituição,
enquanto a diferenciação ainda está se completando. E é ne-
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 185

cessário que a diferenciação individual se complete, que o in-


divíduo atinja sua plenitude porque o processo do Todo (ex-
pansão do Inconsciente Coletivo, do universo) necessita do
desenvolvimento das partes (desenvolvimento da consciência).
Por isso o sacrifício é aceito e a morte, adiada. Com inter-
mediação de Exu, é claro. Exu, como representante de todo
elemento criado, é o próprio sacrifício e o que sacrifica, mas
também é aquele a quem o sacrifício é oferecido. Há uma iden-
tidade entre o Filho e o Pai, mas trata-se de uma dualidade na
unidade.
Assim Exu participa da essência de todo ser criado, seja
ele divino seja humano, abstrato ou concreto, no orum ou no
aiê, sendo o responsável pelos contornos de seu destino indi-
vidual. Por polarizar com a existência genérica (estrutura, or-
dem) Exu, princípio da existência individual (estrutura,
desordem), tem sido objeto de distorções que levam a confun-
di-lo com o puramente negativo.
“Exu é, para nós, o elemento dialético do cosmos”, afir-
ma Roger Bastide. Está em toda parte, “é ser-força que parti-
Toi 20
cipa e pertence a todos os domínios existentes”.
Os orixás são entidades que também “um dia” foram
criados, portanto cada um deles tem o seu Exu individual,
particular, quer dizer, seu dinamismo próprio, inconfundível.
No caso de Obaluaiê, o caráter de intermediador de Exu, dono
dos caminhos e das encruzilhadas, assume a expressão pecu-
liar de “senhor das aberturas” (das feridas). Em uma nota de
R. Bastide lemos que: “O mesmo caráter de senhor das aber-
turas que faz comunicar o humano e o divino, é encontrado
nos cânticos de Legba (Exu) no Haiti:
Papa Legba barrié pour moi, ago-ê
Papa Legba ouvri chimin pour li, ago-ê
Poderíamos então pressentir a ação da dupla Exu-
Obaluaiê na transferência, provocando o rompimento das
186 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

barreiras que estejam obstruindo a relação, sendo que o


surgimento de sintomas na pele seria sua linguagem expressi-
va, assinalando vicissitudes na trajetória dos símbolos dessa
relação ao se encaminharem para a consciência, onde irão
estabelecer uma nova ordem.”

MEIO DE NOVO
(Sensação Extrovertida)

Textos que podem ser considerados clássicos na litera-


tura psicossomática (Franz Alexander, Jean Delay, Weiss &
Englisa, Grinker & Robbins, Leopold Bellak) destacam a pele
como “órgão importante para a expressão emocional”
(Alexander), que por poder ser vista e tocada, “constitui um
meio de comunicação interpessoal” (Leopold Bellak),. ser-
vindo como receptor e condutor, transmitindo e despertan-
do emoções. Eventualmente as lesões da pele “podem também
expressar comportamento” (Weiss & English), com “fatores
emocionais sendo responsáveis por alterações mais perma-
nentes na pele”. “O caminho que leva “da emoção à lesão”,
descrito por Jean Delay, postula que “a linguagem emocio-
nal, da mesma forma que a verbal, depende de mecanismos
cerebrais”, remetendo-nos à origem embrionária comum da
pele e do sistema nervoso, a partir do mesmo folheto
germinativo (ectoderma). Como “fronteira do corpo, sobre
ela se projetam diversas sensações vindas dos órgãos inter-
nos. Recebe também a maior parte das impressões sensoriais
vindas do exterior. É um órgão muito sensível e adaptado à
expressão dos sentimentos” (Grinker & Robbins).
Todos os autores revistos dão destaque para um compo-
nente essencial da patologia psicossomática da pele: a visibi-
lidade de suas alterações com repercussões emocionais
importantes para o portador no que diz respeito à imagem
corporal, à auto-estima, como também para o observador de
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 187

fora, mobilizando conteúdos que diríamos “contra-


transferenciais”. Os autores falam em um “complexo de le-
proso” para caracterizar conteúdos fortemente carregados de
emocionalidade ligados às doenças da pele. O enfoque porém
recai mais sobre a reação afetiva no portador da lesão ao ser
observado e quase nada referente aos efeitos sobre o observa-
dor de fora (aí incluídos os próprios autores citados). Acho
que o “complexo de leproso” pertence à relação observador-
observado, é uma criação dela e só pela abertura bilateral de,
e para, suas feridas pode ser curado. A postura do médico que
não se abre para a ferida em si próprio ou que não se deixa
ferir, pode retardar ou mesmo impedir a emergência do médico
(forças curativas próprias) no ferido. -
Sinto necessidade de ver mais a pele como símbolo, per-
manentemente ativo ao longo do processo de individuação,
podendo estruturar (ou desestruturar) a consciência, expres-
sando-se criativamente tanto através da patologia como da nor-
malidade.
Preciso porém deixar bem explícito que estou usando os
termos “simbolo”, “simbólico”, “simbolizador”, “simbolização”
etc., em suas acepções mais abrangentes. De forma que simbolo
é tudo que funciona como elemento de ligação entre o incons-
ciente e o consciente. O símbolo traz conteúdos do inconscien-
te para a consciência, podendo assumir expressões abstratas
(vivência do símbolo através das colunas das idéias e emoções e
das relações interpessoais, no eixo ego- Self) ou concretas (co-
luna do corpo, coluna da natureza). Simbólico é portanto todo
elemento que estrutura (mas que pode também desestruturar)
a consciência ao colocá-la em ligação com o inconsciente.
Assim, a pele é um símbolo (concreto) que tem um pa-
pel dos mais centrais para a estruturação da consciência den-
tro do dinamismo matriarcal ao longo de toda a nossa vida.
Quando nascemos, naquela fase em que somos quase que
Va
apenas nosso corpo (body-self), é também quase que exclu-
188 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

sivamente através da pele que a consciência vai-se formando.


A relação com a mãe — e nessa fase da vida do bebê tudo é
mãe, não há possibilidade de estabelecer contato com ele (bebê)
senão como mãe — é uma relação essencialmente de pele, onde
esta exerce em plenitude sua grande capacidade discrimi-
nadora, sendo ela própria já uma grande discriminação (se-
paração) entre o indivíduo-filho e o todo-mãe. Discriminação,
no contexto dessa fase do desenvolvimento, conserva as ca-
racterísticas dos princípios que regem seus dinamismos, como
o prazer, a sensualidade, o afeto, a nutrição e todos os cuida-
dos relacionados com a conservação da vida como dominan-
tes fundamentais. A nutrição é um dos símbolos centrais nessa
fase: todo o corpo precisa ser alimentado para poder crescer,
e com ele a consciência; a pele, por seu turno, tem seu ali-
mento específico — o contato, com todas as suas nuances de
temperatura, maciez, pressão, movimento, umidade etc., in-
dispensáveis para o indivíduo desenvolver sua capacidade de
erotizar-se e erotizar, na relação consigo mesmo e com o ou-
tro, como caminho de estruturação da consciência. Isto, con-
forme nos informa Leboyer em seu livro Shantala — Un art
traditionnel — Le massage des enfants, as mães indianas pa-
rece que já compreenderam, ao aplicarem sistematicamente
em seus bebês uma técnica especial de massagem.
Se o desenvolvimento da consciência pode prosseguir em
condições normais, isto é, sem grandes adversidades existen-
ciais, a pele apenas necessita de suas aberturas naturais — po-
ros, boca, olhos, narinas, ouvidos, ânus, genitais — para
desempenhar seu papel estruturante como zona erógena e
“onoseógena”. Nessas condições, a pele e suas descon-
tinuidades funcionam simbolicamente como oportunidades (do
latim apperire — abrir) de contato entre consciente e incons-
ciente, com Exu fazendo as vezes de simples porteiro (num
sincretismo com os santos da igreja católica, Exu é assimilado,
em algumas regiões do Brasil, também a São Pedro, porteiro
do céu): o eixo ego-Selfestá livre de conflitos.
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 189

Há momentos, porém, em que a existência interfere


contingencialmente no processo, alterando a permeabilidade
do sistema: surgimento de defesas ao longo do eixo ego- Self.
As afecções da pele podem sinalizar essas ocorrências, e seriam
comparáveis talvez a epifanias de Obaluaiê/Omolu/Xapanã,
com seus Exus — forças curativas arquetípicas no interior do
sistema —; mobilizados agora para reabrir os caminhos
obstruídos. Pelo menos para criar um caminho alternativo que
garanta a continuidade do desenvolvimento, mesmo que com
redução da eficácia. Pois o padrão de enrijecimento, a for-
mação defensiva, permanece. A cicatriz fica. Literalmente
como cicatriz na coluna do corpo, mas podendo diversamente
localizar-se em qualquer outra coluna — como idéias e emo-
ções, ou no relacionamento eu/tu — o tecido cicatricial não
tem mais da pele a mesma elasticidade, permeabilidade, be-
leza. Cumpre apenas suas funções de invólucro e garante a
sobrevivência.
Durante a análise, feridas e cicatrizes são reativadas, po-
dendo surgir no corpo ou em qualquer outra coluna do eixo
ego- Self “Sinais” de Obaluaiê, Omolu, Xapanã irrompem na
simbiose transferencial, e é necessário que o médico se deixe
ferir por eles, para que no ferido possa emergir o médico.
Na clínica, alguns destes “sinais” são muito evidentes e
por isso mesmo fáceis de detectar, embora nem sempre seja
fácil trabalhá-los. Tudo depende de existirem ou não defesas.
Mas um rubor ou uma palidez súbitos, uma coceira ou uma
transpiração excessiva dificilmente passam despercebidos e
representam portas de entrada para elaboração de material
transferencial. Mas, se apurarmos nossa sensibilidade (nossas
feridas) e se estivermos realmente ligados nesse símbolo im-
portantíssimo que é a pele e suas alterações durante o proces-
so analítico, poderemos detectar, no analisando mas também
no analista, inúmeros fenômenos, nem sempre de natureza
patológica, sinalizando intercorrências significativas na
simbiose transferencial. O próprio estado em que a pele se
190 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

encontra na primeira entrevista já permite toda uma leitura


de como anda o funcionamento dos dinamismos estruturantes
dos diversos ciclos do desenvolvimento naquela personalida-
de. Neste sentido, pode ser muito útil valorizar como signifi-
cativa no início ou durante todo o decorrer da análise a
presença ou o aparecimento de odores (naturais ou artificiais,
agradáveis ou desagradáveis), manchas, vincos, rugas, desca-
mações, erupções, rachaduras, hipocromias, hiperpigmen-
tações, arranhões, cicatrizes, sangramentos etc. — ao lado das
patologias dermatológicas propriamente ditas, como eczemas,
pruridos, dermatites factícias, acne etc., extremamente ricas
de conteúdo simbólico. Também vivências subjetivas na pele
podem conter material transferencial, tais como: percepção
de zonas de maior ou menor sensibilidade, adormecimentos,
formigamentos, dor, frio, arrepios, horripilação, boca seca,
maciez, aspereza, oleosidade, friabilidade etc. A lista seria
enorme, e não pretendo ser exaustivo; apenas desejaria não
deixar de mencionar uma outra vertente de simbolos ligados
à pele e aos seus anexos e que dizem respeito aos cuidados a
eles dispensados: corte de cabelos, depilação, penteados, uso
de cosméticos, tamanho em que são deixadas as unhas, cirur-
gias plásticas, tatuagens, exposições de áreas menores ou maio-
res da superfície epidérmica ou de determinados segmentos
do corpo etc., cujas alterações no contexto da transferência
podem ser muito relevantes.
Gostaria de apresentar agora, à guisa de ilustração do
qué viemos dizendo até aqui, exemplos recortados de casos
clínicos publicados na literatura e da experiência de consul-
“ tório. )
Franz Alexander menciona um caso em que uma paci-
ente de 22 anos, solteira, sofria de eczemas desde os oito dias
de nascida. Durante a gestação da paciente, sua mãe perdera
um filho de sete anos e tinha sido deixada pelo marido. Entre-
gue a parentes, a infância da paciente foi uma infância de
criança abandonada. Ao relatar o seu tratamento, Alexander
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 191

faz menção, entre outras coisas, ao surgimento, na transfe-


rência, de “uma agravação das lesões cutâneas, simultânea à
demonstração que a doente fazia, por todos os meios, de seu
medo de ser abandonada pelo analista e de uma culpa por
seus sentimentos hostis e eróticos em relação ao mesmo”.
Grinker & Robbins contam o caso de uma moça, a mais
nova de dois irmãos, criada numa família em que “o traço
mais marcante era a incoerência” e que estimulava a
competitividade entre os irmãos, com o favorecimento do ir-
mão mais velho. A mãe da paciente tinha uma cegueira his-
térica e, devido a esse fato, os contatos corporais com a filha
tinham sido muito precários. No decorrer do tratamento, o
primeiro ataque de dermatite teve lugar no terceiro mês, no
dia em que a paciente avistou num restaurante o psiquiatra
e sua esposa”.
Uma cliente de aproximadamente trinta anos, com defe-
sas intelectuais importantes, sobretudo as racionalizações, tem
uma história de vida de muita repressão, da qual fazem parte
vários episódios em que, na infância, foi severamente
espancada. Em sua vida adulta, observa o aparecimento de
manchas violáceas por todo o corpo, semelhantes a equimoses,
sempre que experimenta sentimentos hostis que não conse-
gue expressar e que posteriormente direciona contra si pró-
pria em ataques de autodepreciação. O surgimento dessas
manchas no decorrer da análise e a possibilidade de vivenciar
e elaborar sua agressividade com o analista abriram caminho
para uma transformação de sua atitude hostil em relação ao
mundo. As manchas que se assemelhavam a equimoses conse-
quentes a espancamentos desapareceram.
Um colega relata um caso de uma cliente, com uma
fixação patriarcal séria, que apresenta como sintoma a reti-
rada de fragmentos da pele, expondo a carne viva de deter-
minados segmentos do corpo, a fim de retirá-los, já que
considera seu aspecto errado. O analista, intensamente mo-
192 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

bilizado, começa a reproduzir em sua própria pele o sinto-


ma da paciente e, ao dar-se conta desse fato, inicia uma re-
visão profunda de toda a dinâmica do caso. Com isto, a
análise, que encontrava sérias dificuldades para progredir,
pôde retomar sua fluência.
São apenas alguns exemplos. Não pretendo provar nada
com eles. Apenas despertar para o problema, lembrar como é
frequente que a pele se comporte como um espelho, refletin-
do o que está acontecendo na terapia, não apenas do lado do
cliente, mas também do lado do analista.

FIM
(Função Inferior: Pensamento Extrovertido)

Nourrir Pentant?
Oui
Mais pas seulement de lait.
1 faut le prendre dans les bras
1 faut le caresser, Je bercer.
Et le masser.
Ce petit, il faut parler à sa peau
1 taut parler à son dos
qui a soif et faim
autant que son ventre.
(Frédérick Leboyer)
A pele é um tesão. Toda pele e toda a pele. Somente a
pele maltratada, isto é, mal-amada, mal transada não é zona
erógena, não é capaz de evocar Eros. De resto, os mais ou menos
450 centímetros quadrados da pele que recobrem nosso cor-
po podem formar um grande órgão sexual — isto é, vital — que
pode responder com enorme e diferenciada sensibilidade ao
contato com a vida: com o sol, a chuva,o mar, o vento, a casca
da árvore, a grama molhada, o pêlo de um gato, a água morna
do banho, a pétala de uma flor, uma pedra, a areia macia, a
EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 193

seda, a lã, mas acima de tudo a pele de outro ser humano.


Relacionar-se com o mundo através da pele é relacionar-se
com ele eroticamente, mas relacionar-se eroticamente com o
outro ser humano é relacionar-se com a própria vida através
da pele.
Exu e Obaluaiê encontram-se na pele. Na liturgia nagô
eles se encontram em muitos pontos, são colocados com fre-
quência em associação: o mesmo dia da semana lhes é consa-
grado — a segunda-feira (a Exu por ser o primeiro dia útil da
semana e ele deve ser homenageado sempre em primeiro lu-
gar; a Obaluaiê por uma questão de respeito maior e medo), a
ambos é oferecido o mesmo alimento — as pipocas (a Exu por
seu caráter irreverente, “infantil”; a Obaluaiê, em memória
de suas feridas, ou “pipocas” em linguagem popular); os dois
têm como característica essencial o fato de serem filhos (Exu
a nível cósmico, Obaluaiê a nível terreno).
Na pele, o símbolo do filho do elemento criado da exis-
tência atinge um máximo de expressividade. É a pele que pos-
sibilita a existência individualizada, destacada do todo, mas
ao mesmo tempo a ele unida e em permanente troca. Obaluaiê
e Exu — filhos — encontram-se na pele, como consistência e
porosidade, matéria e espírito. Um inimaginável ser sem pele
erraria pelo mundo como um fantasma ambulante, nunca se-
ria um filho.
É por isso que o contato da pele com outra pele é tão
numinoso: ao mesmo tempo que estrutura nossa identidade
individual, assegura a possibilidade de continuarmos unidos
ao todo, representado simbolicamente pelo “outro”. O reco-
nhecimento, através da pele, de que não somos seres ilhados é
um dos componentes essenciais do tesão. E não estou-me re-
ferindo à vivência de fusão, onde justamente a consciência
individual se dissolve no contato com esse todo simbólico que
é o outro, já não se sabendo de quem é a pele de quem. Falo do
tesão, uma experiência muito mais abrangente e da qual a fu-
194 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

são pode até participar, como um dos tempos, a que se segue o


emergir de uma nova consciência, mais diferenciada —
dualidade na unidade.
Na adolescência, quando a consciência, seguindo seu
desenvolvimento arquetípico, se abre para essas vivências de .
dualidade na unidade, a pele está no auge. A pele adolescen-
te tem uma textura, um brilho, que não se encontram mais
nas outras épocas da vida. A não ser quando a pessoa se apai-
xona. Daí tudo muda naquela pessoa. Também a qualidade
da pele é outra, como que recuperando a luminosidade da
adolescência.
Mas não quero mais falar da pele agora. É um símbolo e,
como tal, inesgotável. Tenho consciência de que disse apenas
umas duas ou três coisas das muitas que poderiam ser ditas a
seu respeito. Mas essas coisas que disse fizeram muito sentido
para mim. Foi uma viagem por demais envolvente a elabora-
ção deste trabalho. Olho agora para minha própria pele e sin-
to que minha relação com ela mudou. Vejo-a diferente. Lembro
de tudo pelo que ela já passou. Ao que já a submeti! Olho para
o trabalho e o vejo pronto: não concluído, esgotado, termina-
do; mas aberto, poroso, querendo ser. Gostaria que a minha
pele também já estivesse assim. Mas sinto que ainda tenho de
dar a ela muito mais do que dei até agora, amar esta pele.
Permitir que ela se exerça em sua função estruturante, que se
descubra na vida — no fundo é ela mesma, o médico ferido,
quem vai se resgatar: minha luta com as defesas é muito mais
uma questão de deixar-lhe o caminho livre, desobstruí-lo para
que ela possa ser, integralmente, como pele.
Sinto meu coração disposto para essa luta. Minha pele
está (quase?) pronta. Não sei quando, não sei onde, não sei
como. Meu amor vem. Atotô, Obaluaiê! Laroiê, Exu!

São Paulo, 23 de julho de 1983.


EXU / OBALUAIÊ E O ARQUÉTIPO DO MÉDICO... 195

Agradecimentos:

Um grande abraço de agradecimento a Glauco, meu


orientador neste trabalho; a Mery e Nairo, meus analistas; a
Iraci, Byington, Lacaz, Lu e Walter, meus professores durante
o curso de formação da SBPA e amigos o tempo todo.
Um grande carinho às pessoas que foram lendo o ma-
nuscrito e que falaram que estava bom, que era por aí mesmo,
ou que não, e deram sugestões. Foram muito importantes para
eu ir até o fim.

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LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E
PODER NO CANDOMBLE *

Maria Lina Leão TEIXEIRA **

Introdução

Os terreiros de candomblé têm sido percebidos por es-


tudiosos, literatos e público de maneira geral como espaços
primordialmente femininos. Desde o final do século XIX e iní-
cio deste, a visão de Nina Rodrigues e Xavier Marques perma-
neceu subjacente aos escritos de Edson Carneiro, Ruth Landes,
Roger Bastide, Pierre Verger e Jorge Amado, entre outros.
O prestígio alcançado por mães-de-santo como Senhora
do Axé Opô Afonjá, Menininha do Gantois e Olga de Alaketu
reforça a concepção do terreiro de candomblé enquanto “ci-
dade das mulheres”.
Paralelamente, outro aspecto foi sendo disseminado, a
partir das crônicas de João do Rio: os terreiros são “antros de
libidinagem”, “de perdição”, “homossexualismo” etc. O suces-
so de alguns pais-de-santo, como Joãozinho da Goméia, contri-
bui substancialmente para a cristalização desta imagem. Além
disso, os meios de comunicação, primeiramente os jornais e agora
também a TV, sublinham e caricaturam tais características.

* Adaptação de capítulo da dissertação de mestrado aprovada em 1986 no


Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
**Doutora em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP. Professora aposentada da UFRJ e prof! visitante com bolsa do
CNPq, no Programa de pós-graduação em Ciências Sociais da UFRN.
198 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Minha intenção aqui é repensar o candomblé como ter-


ritório masculino, focalizando o estreito relacionamento co-
locado anteriormente (Leão Teixeira, 1986) entre identidades
sexuais! /divisão de trabalho/poder.
Deste modo, a sexualidade e suas representações nas
casas-de-santo são vistas como mecanismos ou estratégias de
poder. A existência de quatro identidades sexuais e de seus
respectivos papéis, reconhecidos e legitimados no âmbito do
“povo-de-santo”? de Salvador e do Rio de Janeiro, conduz à
necessidade de pensá-las como parte de um sistema classifi-
catório. Isto por sua vez leva a considerá-las como manifesta-
ções do poder inerente ao ato de classificar, que, por si,
subentende uma hierarquização, assim como um ethos e uma
visão de mundo particulares.
As identidades e os papéis sexuais estão, portanto, ins-
critos no domínio do social e do cultural. No que concerne
aos terreiros de candomblé, é necessário admitir que os va-
lores específicos e do “povo-de-santo” somam-se ou fundem-
se às idéias dominantes na sociedade mais ampla. Não se pode
falar de um sistema simbólico independente, mas sim da re-
produção ou reinterpretação, parcial ou integral, do discurso
hegemônico sobre a questão da sexualidade e de seu exerci-
cio, presente na sociedade brasileira abrangente (Fry, 1982).
As articulações entre domínios ou mundos diferencia-
dos — o dos terreiros e o dos centros urbanos — são responsá-
veis por um discurso próprio e um sistema peculiar de relações
sociais. Não obstante, ambas as instâncias refletem a situação

1. Define-se identidades sexuais como as experiências particulares dos papéis


sexuais, sendo estes a expressão pública da sexualidade (Tucker & Money, 1972).
Neste sentido, as identidades sexuais marcam as identidades sociais, o que é
regulado e codificado pelo ethos e a visão de mundo do “povo-de-santo”.
2. As palavras e expressões entre aspas fazem parte do “dialeto do santo”, linguajar
específico dos terreiros de candomblé. A expressão “povo-de-santo” é uma
abstração que serve para designar os que crêem e praticam uma das modalidades
dos cultos afro-brasileiros.
LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ 199

subordinada dos grupos religiosos estudados em pesquisa


realizada em casas-de-santo, de diferentes “nações” ou
autoclassificações, localizadas nas zonas urbana e periférica
das cidades do Rio de Janeiro e Salvador (Leão Teixeira, 1986).
Cabe salientar que este estudo compreendeu basicamente dois
níveis, numa adaptação da metodologia de Turner (1971):
— o do falar — entrevistas formais e informais com participan-
tes de status diferenciados na organização social dos vários
terreiros pesquisados; anotações dos ditos e das cantigas joco-
sas que permeiam o cotidiano das casas-de-santo e são mo-
mento maior de descontração e lazer ( a Roda de Samba);
longas conversas nos intervalos dos rituais, cujos temas usu-
almente se referem às histórias dos orixáse à vida amorosa —
“as transações” — dos “macumbeiros”,º presentes e ausentes;
— o do agir — verificação do posicionamento dos princípios de
classificação sexual na vivência ritual, ou seja, na “Roda de
Santo? ou “Xirê?”, a festa pública religiosa do candomblé, e na
“Roda de Samba” ou “Brincadeiras”, a festa restrita, o lazer
do “povo-de-santo?”. A interpretação desses dados forneceu —
com relação ao falar: as definições das categorias
classificatórias da sexualidade, quais sejam: homem (“homem
que gosta de mulher"; “nomem mesmo”): adé/adé tontó (“ho-
mem que gosta de homen”; “veado”, “bicha” e ainda “vicia-
do”); e monokó/mona do aló (“mulher que gosta de mulher”;
“sapatão”, “viciada”). Forneceu também a importância do
relacionamento entre uma sexualidade humana e uma sexua-
lidade mítica, já que as histórias dos orixássão utilizadas tam-
bém para explicar os papéis sexuais: “Se Oxumaré é, por que
eu não posso ser?...” (Lauro). É sabido que estas histórias in-
formam as relações entre os entes sobrenaturais e os huma-
nos e que a sua introjeção marca o processo iniciático e as
relações sociais dos adeptos (Augras,1983; Maggie e Contins,
1980; Santos, 1976 e 1981).

3. Maneira carinhosa e jocosa de autodefinição dos adeptos.


200 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

Além disso, mostrou a importância do “dialeto do santo”,


de uma maneira específica de falar, enquanto sinal diferenciador
de uma identidade específica, e de membro do “povo-de-santo”
— com relação ao agir: a significância do ser homem, mulher, adé
ou monokó nas instâncias religiosa e não-religiosa dos terreiros
e suas implicações no jogo de poder — no “lorogum?* — que
permeia as relações sociais nesses grupos religiosos.
É conveniente lembrar que, apesar de existir uma possí-
vel “defasagem” entre a “prática” e as representações (Fry,
1982), a relação entre poder e exercício da sexualidade nos
terreiros se encontra manifesta sobretudo na divisão social do
trabalho litúrgico e cotidiano.
Para caracterização e análise do “povo-de-santo” estu-
dado, foi necessário utilizar o conceito de rede social (Both,
1976), devido, primeiramente, à variedade de unidades de
informação (entrevistados e terreiros) e, em segundo lugar,
ao fato de que grande parte do tempo das pessoas-de-santo é
preenchida por relacionamentos implícitos na fé e na família-
de-santo (Costa Lima, 1977); os quais ultrapassam os con-
tornos espaciais de cada casa-de-santo. Sua complexidade não
diz respeito apenas a um terreiro, pois atinge os diversos gru-
pos de culto e as relações destes com as várias esferas da
sociedade abrangente. Assim, os “macumbeiros” objeto desta
pesquisa (v. Quadros A e B), apesar de suas diferentes proce-
dências, compartilham interesses, crenças e modo de vida,

4. Expressão de uso corrente nas casas-de-santo e que se refere a conflito,


discussão, competição entre adeptos e/ou terreiros. É também o nome de uma
cerimônia religiosa que celebra e atualiza as contendas entre os orixás (Ver
Almeida, 1954; Santos, 1962).

5. Costa Lima (1977) investiga grupos de candomblé da Bahia, relacionando o


plano religioso e ritual com a organização e estratificação presentes nos terreiros.
Aponta a família-de-santo como responsável pela rede de relacionamentos e pelos
referenciais sociais, assim como pela inserção dos participantes de um terreiro
no conjunto do “povo-de-santo”, e consequentemente, pelo enquadramento social
mais amplo.
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CANDOMBL E: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

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LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ 203

REDE DE RELACIONAMENTOS ENTRE OS ENTREVISTADOS

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sendo seus respectivos terreiros “malhas” de uma rede social


que se inter-relaciona, a despeito da diversidade socioeco-
nômica que possuem (Fig. 1).

O discurso

A análise dos discursos dos rituais mencionados e a pró-


pria observação participante conduziram ao estabelecimen-
to de um modelo ou de uma maneira de ser característica do
204 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

“povo-de-santo”. O conjunto das representações presentes


nas linguagens oral e gestual é, pois, entendido como o qua-
dro daquilo que pode ser pensado e vivenciado no âmbito
dos terreiros.
À importância e a recorrência do fator sexual são pen-
sadas como propiciadoras da correlação de forças — o jogo de
poder — que permeia o relacionamento entre as diferentes
identidades sexuais. Os comportamentos individuais dos adep-
tos do candomblé adquirem sentido por estarem ligados à sua
realidade física e social.

A linguagem e o “sotaque”

“(..) a linguagem tanto diz como faz coisas. Depende de


como é vista, de por quem é vista e de quando é vista” (Vogt,
1982). O falar transmite significados e categorias do meio re-
ligioso dos terreiros e da sociedade abrangente. Por isso nem
todas as falas estão simbolicamente relacionadas de modo di-
reto a vivência nas casas-de-santo.
Percebe-se um compromisso ou comprometimento du-
plo nos discursos: o que é falado exprime tanto a lógica inter-
na do candomblé, esta baseada sobretudo nos princípios
masculino e feminino que regem a divisão de trabalho e a
hierarquia social, quanto remete a idéias dominantes no am-
biente urbano.
Ser homem, mulher, adé ou monokó — sexualidade hu-
mana — na vivência cotidiana ou aboró, iabá ou metá-metá —
sexualidade mítica — na instância sagrada são identidades que
se complementam e trazem em si, implícitas, características
de dois mundos: o dos terreiros e o da sociedade mais ampla.
A vivência nesses dois mundos não pode ser dissociada, e como
experiência complexa que é torna-se responsável pela adap-
tação e reinterpretação de bens simbólicos de ambas as reali-
LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ 205

dades sociais. Então, a fala sobre as identidades sexuais per-


mite ver o compromisso de quem fala enquanto membro de
um “povo-de-santo” e participante de uma classe ou segmen-
to social determinado.
As palavras e o modo de falar — “o dialeto do santo” — a
língua ritual africanizada e a jocosidade marcam a distância e
a legitimidade específicas dos “macumbeiros” enquanto indi-
víduos que possuem um estilo de vida próprio no conjunto
maior da sociedade brasileira: “os do santo”.
Para meus entrevistados, “ser do santo” significa algo
mais do que ser homem, mulher, “bicha” ou “sapatão”. Signi-
fica possuir uma identidade sócio-religiosa legitimada, e exer-
cer uma posição de maior poder. Para eles, o fato de alguém
“ser do santo” (iniciado) pode ser uma salvaguarda para os
estigmas e discriminações usualmente dirigidos aos “nomens
que gostam de homens” e às “mulheres que gostam de mu-
lheres”, o que aliás já foi mostrado por Peter Fry (1982).
Em geral, as pessoas me disseram que o candomblé “não
discrimina”, “nem tem preconceitos” quanto à sexualidade:
“Para procriar, eu preciso de um macho, para amar nem sem-
pre... mas minha cabeça ainda está cheia de preconceitos; peito
de mulher ainda me agride porque eu tenho um igual... mas
eu acho que algum dia poderia me apaixonar por uma mu-
lher” (Alice).
O adé Gustavo diz: “Estou no candomblé porque, entre
outras coisas, aqui sou agente... ninguém diz nada.” Ao que
ajunta Inácio: “Não tem discriminações como em outros luga-
res, em outras religiões” (grifo meu) Tais colocações refor-
çam a de Jonas: “Minha família tinha horror que eu entrasse
no candomblé porque era antro de “veados”, puro preconcei-
to. Os “veados” vão para o candomblé porque são aceitos, as
monokóstambém, ninguém diferencia ou discrimina. Tem adé
de peitinho postiço e tudo, e eles são respeitados e considera-
dos, são até bem machos, ninguém folga com eles.”
206 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

O falar dos meus entrevistados enfatiza a dedicação: “Os


adés, quando são bons, são ótimos, na casa-de-santo fazem
tudo e bem-feito” (Nair). Vale notar que alguns deles, ao ten-
tarem me explicar as categorias sexuais que pensam ser obje-
to de estigma e marginalização, lançaram mão de termos como
“vício” (Inácio) e “viciados” (Félix). Embora assim o fizes-
sem, afirmaram que os indivíduos com essas posturas sexuais
são “pessoas como todas as outras”, como nas seguintes colo-
cações: “Veado para mim é estado de espírito, cada um faz o
que gosta e quer... deve haver recato, ninguém tem nada a ver
com o que cada um faz com seu corpo” (Elza); “dizem que as
monokós viciam as iaôs, se eu visse ia dar bronca, ia me me-
ter, a não ser que elas já tivessem pacto” (Carmem).
A mãe-de-santo Elza, apesar de se apresentar “discrimi-
nando?” os adés, pois faz questão de dizer que não aceita ne-
nhum em sua casa-de-santo, afirma: “Se eu tivesse um adélá
no terreiro, ele estaria lá todo dia para brilhar e tudo andaria
bem. Mas eu não gosto. Aí a casa fica do jeito que está.”
A exaltação dos méritos dos adés não é estendida às
monokós. Estas são menos faladas e, quando os homens e
adés lhes fazem referência, mostram um sentimento mes-
clado de “respeito medroso”, como Bené: “Para as monokós
eu me curvo, são mais perigosas que os adés nas disputas,
adoram um Jorogum”, ou como Jonas: “São mais discretas,
menos camufladas, dizem que são porque gostam, mesmo
as que não são masculinizadas; são mais sérias, mais duras,
de menos brincadeira, mas são ótimas e não negam fogo
numa provocação.” Sobre elas, dizem as mulheres e
monokós: “São mais discretas que os adés, têm mais classe”
(Carmem); “quando esquentam, ninguém segura, têm von-
tades maiores que os homense adés” (Elza); “agora é moda,
é chique ser roçadeira, acho que elas querem é competir
com os adés mais do que com os homens” (Quininha); “têm
a mesma face do adé, porém se dão mais respeito, ninguém
mexe com elas” (Tereza).
LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ 207

No entanto, o sistema de classificação sexual possui


parâmetros fundamentais ligados à perspectiva religiosa: “Para
o público em geral, o que interessa é se alguém é homem ou
mulher, se leva vida legal (heterossexual) ou ilegal (homosse-
xual). No candomblé, todos se aceitam como irmãos. Não exis-
tem duas situações, existem quatro: homem/homem, mulher/
mulher, homossexual/homem, homossexual/mulher” (Gustavo).
Vale notar que o emprego do termo homossexual conota a pre-
sença de categorias externas ao mundo dos terreiros.
O relacionamento estreito entre o mundo dos terrei-
ros e a sociedade abrangente é visto como responsável pela
complexidade do ethos e da visão de mundo do “povo-de-
santo”. Isto supõe também que as várias identidades sexu-
ais são explícitas e visíveis, existindo papéis sociais legítimos
para todas. De acordo com Dario: “O candomblé não faz
restrições sobre o fazer sexo de alguém. É por isso que lá
tem maior número de filhos-de-santo “veados”. Todo mun-
do sabe quem é quem e pronto. Não se vê isto em outras
religiões.” (grifo meu)
“Ser do santo”, não importa de que “nação”, supõe
ainda o uso do “sotaque”. Tanto na “Roda de Santo”, como
na “Roda de Samba”, são utilizadas linguagens específicas.
Na primeira, a língua ritual africanizada; na segunda, o
uso abundante de provocação através de metáforas e alego-
rias em português, que aludem à realidade do “povo-de-
santo”. Porém, quase sempre, o significado foge do campo
semântico usual dos termos empregados, sendo comum o
hermetismo de iniciados.
“Ser do santo” significa também saber provocar joco-
samente, fazer picuinha, zombar das pessoas e fatos, conhe-
cer como “fazer presença” (autovalorização). “Ser do santo”
é conhecer a vida daqueles que “são do santo”. O “sotaque”
como troca de insultos pessoais, como desafio, pode ou não
gerar conflitos, pois comporta a crítica, o elogio, o convite e
208 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

a recusa deste, especialmente na “Roda de Samba” (Leão


Teixeirateralip 1985)
O “sotaque” é um mecanismo direto para enquadrar so-
cialmente um adepto através da identidade sexual assumida
ou atribuída. A utilização dessa maneira de falar pode ser vis-
ta também como uma estratégia de preservação dos grupos de
candomblé em situação de perigo externo, como a presença
de desconhecidos ou da polícia (Leão Teixeira et a/ii,1985).Vogt
e Fry (19883), examinando a comunidade do Cafundó, mos-
tram como a “lingua” descoberta pelos pesquisadores tornou-
se um “tesouro” ao mesmo tempo que se constitui num
“segredo”, distintivo, ou sinal diacrítico, de sua identidade so-
cial, e sobretudo como fonte de poder.
O “dialeto do santo” e o “sotaque”, da mesma forma,
constituem “segredos”, além de credenciais indispensáveis
para alguém ser considerado “do Santo”. É precisamente este
linguajar que encobre o “segredo” maior: a supervalorização
da sexualidade, que aparece subjacente nos discursos orais e
gestuais, nas posturas corporais das “Rodas de santo” e “Sam-
ba” e na organização social dos terreiros.
O “dialeto” pode, então, ser considerado também como
uma estratégia de poder, que limita ou separa os “de den-
tro” (iniciados) e os “de fora” (não-iniciados). Este linguajar
visa, ainda, encobrir a “verdade” dos terreiros: que neles a
valorização do corpo é máxima, uma vez que este é veículo
da manifestação das divindades individualizadas (fala-se
sempre do Ogum de fulana, da Jemanyá de sicrana etc.), ou
como Jocus do prazer.
A sexualização do falar e dos rituais está inscrita na ló-
gica da vida social dos terreiros. Nas casas-de-santo todos fa-
lam de sexo; não só falam como o ritualizam. Assim vai se
cumprindo uma profecia (Merton, 1970): guardando as “ver-
dades” pertinentes a cada mundo, misturando-se, erigindo-se
uma versão familiar a toda sociedade, a respeito do mundo
LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ 209

dos candomblés. Isso, no entanto, não quer dizer que não exista
uma “moralidade” própria aos “macumbeiros”. Existe, sim;
ela diz respeito à explicitação e à visibilidade das identidades
sexuais por eles reconhecidas.

A divisão social de trabalho

A divisão de tarefas nas atividades litúrgicas e de ma-


nutenção das instalações dos terreiros, e ainda a preparação
de festividades, é feita de acordo com os critérios dados pe-
los princípios masculino, feminino e da senioridade (Lépine,
1982). Estes são fatores preponderantes no sistema de clas-
sificação dos “macumbeiros” (Barros, 1983) e se refletem
na organização social das casas-de-santo. Outros fatores,
como aptidão individual, posição social, nível econômico e
disponibilidade de tempo, são importantes, e, em certa me-
dida, relativizam o principal: o sexo biológico de cada mem-
bro do terreiro.
Somente um dos meus entrevistados mencionou o fator
econômico como relevante, correlacionando-o também à si-
tuação privilegiada dos adés. Segundo Márcio, “a maior parte
dos homossexuais que procuram os terreiros tem uma situa-
ção econômica mais elevada que os outros participantes. Os
terreiros estão mais preocupados em sobreviver do que em
não aceitar alguém que pode ajudar o grupo...”
Observei, no entanto, que todas as pessoas de “nível
alto” têm vantagens em termos de se livrarem de trabalhos
ditos mais pesados e desvalorizados: cozinhar, lavar, passar
roupa, arrumar, varrer etc. Notei também que estes agen-
tes especiais contribuem com mais dinheiro e cumprem
tarefas condizentes com o seu status dentro e fora dos ter-
reiros, o que Dantas (1979) também observara. São os res-
ponsáveis pelo transporte, usando seus carros ou pagando
veículos para compras e atividades rituais, como idas a ca-
choeiras e praias, ou acompanhando os dirigentes das casas
210 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

nas visitas a outros terreiros. Isso se dá, no entanto, sob for-


ma de “convite” e não de “ordem” ou de regra geral. É
conotado que a participação é uma “honra”, obviamente
não oferecida a todos, e uma oportunidade para aprender
o “fuxico?, os fundamentos do candomblé, argumento bas-
tante convincente na maior parte das vezes. Trata-se de uma
estratégia ou mecanismo que estão associados e associam
hierarquização social e saber à autoridade que, enfim, visa
respaldar o poder de pais ou mães-de-santo sobre todos os
adeptos.
À primeira vista, a classificação dos indivíduos em ter-
mos de sua força de trabalho repousa sobre o seu sexo fisio-
lógico e associação deste com o sexo mítico, i.e., com o do
seu orixá principal. As declarações de todos os entrevistados
enfatizam que determinadas coisas não podem ser feitas pe-
las mulheres. Na organização social, existem cargos e fun-
ções estritamente masculinos ou femininos, como os de Oga
e Ekedi, respectivamente. Essa dicotomia se revela acentua-
da no acesso à hierarquia de poder. De acordo com Gustavo:
“Mulher com homem sempre dá briga em casa de candom-
blé, porque não querem aceitar que tem coisas que elas não
podem fazer. Todo Axé (casa-de-santo) fundado por mulhe-
res tem sempre um homem no meio. A mulher tem esses
impedimentos mesmo que seja de santo aboró; é aí que co-
meça a desavença.”
Essa é a regra geral explicitada, muito embora não
impeça a existência de uma manipulação da sexualidade
através da sexualidade mítica. É dito que “prevalece” em
relação ao trabalho o “sexo”das divindades: aborô (mascu-
lino), iabá (feminino) e metá-metá (masculino/feminino).
Porém, o relacionamento e a manipulação dessas duas ins-
tâncias de classificação, sexo biológico e sexo mítico, po-
dem mascarar ou confundir as relações sociais entre os sexos
e as diferentes identidades sexuais. Como diz Dario: “Mu-
/heré raspa de panela no candomblé. O pai-de-santo Ao-
LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ 2H

mem ou.adé prefere sempre ensinar aos adés e aos homens.


As mães-de-santo também. Não abrem o jogo com as iabás,
se forem mulheres.”
A situação dos adés está bem próxima do que foi rela-
tado por Clastres (In: Fry e MacRae, 1983). No entanto, os
adés possuem flexibilidade, ou melhor, uma ambigiiidade que
lhes permite ora ser vistos como mulheres (“veados”, “bi-
chas?), ora como homens, de acordo com o que está séndo
valorizado no momento, se a condição biológica masculina
(instância religiosa) ou a feminina adotada na instância não-
religiosa. Não tem muito peso o fato de serem considerados
“ativos” ou “passivos”, pois de acordo com Bené, “quem dá
come e quem come dá”.
É interessante notar que ninguém se refere aos Ogãs
como adés, apesar de alguns deles procederem como tal. A
importância destes agentes sociais na hierarquia religiosa, o
seu prestígio, o poder de “Pai” das divindades a que são con-
sagrados, ou ainda o seu poder econômico, no caso dos “ogãs
de salão”, que não possuem maior grau de conhecimento
esotérico, impedem que lhes seja dado ou que eles assumam o
rótulo de adé de acordo com a maioria dos adeptos. Tal fato
evidencia o status maior da identidade de homem.
As Ekedis, ao contrário, recepem a priori a designação
de monas de aló, até “prova” que as classifique como mulhe-
res. Este fato leva a considerar a grande importância do fator
biológico em todas as esferas da vida social dos terreiros, pois
elas jamais são percebidas como homens.
Birman (1985) mostra que o jogo da ambiguidade — o
relacionamento entre sexo biológico e o “sexo” da entidade
que alguém “recebe” — se reflete positivamente no prestígio
de um pai-de-santo. “A construção de adé vai, portanto, reti-
rar da relação com os santos uma fonte importante para a sua
alimentação.” É, em outras palavras, o que diz Lauro: “Exis-
Io CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

tem coisas que só os homens ou adés podem fazer, isto dá a


eles uma posição que dá para conservar o machismo, mesmo
que o terreiro seja de uma mãe-de-santo”. (grifo meu)
A ambigúidade de adé fontó fica expressa também nas
palavras de Elza: “Ele não deixa de ser um homem”, podendo
desempenhar as tarefas e os cargos estritamente masculinos.
Esta mãe-de-santo lembra que os euós, as proibições e segre-
dos, são acarretados pela menstruação e que após a meno-
pausa as mulherese monokós adquirem certas prerrogativas
ritualísticas masculinas.
É devido à sua faculdade da gestação que as mulherese
monas do aló não podem exercer certas atividades essenciais
ao culto dos orixás, e assim competir em igualdade de condi-
ções com os homens e adés. Pela regra, elas não devem nem
podem cuidar de Exu, Ossáim e Egum, conforme acentuado
pelo “povo-de-santo” estudado. Mas toda regra tem exceção...
algumas ignoram as interdições e infringem a Jei do santo, o
que lhes traz sanções e descréditos perante aqueles mais zelo-
sos dos dogmas religiosos.
A doutrina, no entanto, favorece mulheres de aboró
(Orixá masculino), monokós ou não, concedendo-lhes fazer
certos rituais “se não tiver por perto um homem ou adé, não
importando que eles sejam ou não de iabá (Nanã, Iemanjá,
lansã, Obá ou Eud)”, de acordo com Félix. Podem sacrificar
“para os orixás animais de duas pernas (galos, pombos etc.)
se tiverem recebido a “mão de faca” (título), de acordo com
vários dos entrevistados. Vale assinalar que tal prerrogativa é
conseguida geralmente por aquelas cujo orixá principal é
aborô ou metá-metá, não importando se tratarem ou não de
monokós. Porém, se estiverem menstruadas na ocasião das ce-
rimônias, de nada lhes vale o santo masculino. Às mulheres
está negado o direito de sacrificar animais de quatro pernas
(bodes, cabritos, cágados etc.), mesmo no caso de Jalorixás ou
de idosas.
LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ 213

É interessante notar que o sangue desses animais é es-


sencial nos ritos de passagem, como os da “feitura de santo”,


nos quais age como mediador de uma categoria social à outra,
neste caso de abiá para iaô. O sangue humano, no entanto, é
visto como refugo físico e como poluidor. É como “material
marginal” (Douglas, 1976), que contamina a mulher.
Para manutenção da ordem social, é preciso controlar a
inserção das mulheres e monokós na hierarquia do mando. É
uma forma de amenizar o “perigo feminino” em termos de
poder nos grupos e de colocar a figura feminina na depen-
dência da masculina nos principais rituais do processo
iniciático, por exemplo.
Não deve ser esquecido, entretanto, que o fato de uma
mulher ou mona-do aló ter como orixá principal um dos
aboró pode, e quase sempre isso ocorre, trazer-lhe algumas
vantagens. De acordo com a maioria de participantes do
“povo-de-santo”, essas mulheres suscitam maior respeito,
presumindo regalias, como comer primeiro e as parte me-
lhores da comida ritual. Estão liberadas dos trabalhos consi-
derados femininos (varrer, lavar roupa ou costurar), embora
tais privilégios não interfiram na estrutura maior de prestí-
gio e poder.
Às Ekedis (“as mães dos orixás”) estão reservados traba-
lhos e responsabilidades mais penosos e constantes que dos Ogãs.
Como é dito por Ursulina: “Homens geralmente se encostam.
Eu sou Ekedi, por isso posso mandar. É claro que não vou pedir
nada que não seja próprio do serviço de cada um”. (grifo meu)
Os Ogãs, sua contrapartida na organização social, pos-
suem maiores vantagens e status dentro dos grupos; execu-
tam, via de regra, apenas os trabalhos rituais, como a
participação na orquestra dos candomblés, o sacrifício de
animais e, ocasionalmente, os sacudimentos (ritual de pu-
rificação). No entanto, são imprescindíveis, principalmen-
te nos terreiros cuja chefia é feminina. Casas-de-santo que
214 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

não o possuam em seu quadro contrataram os serviços des-


te agente social em outro terreiro para festas e sacrifícios
especiais. Vale notar que pais e mães-de-santo se curvam e
tomam a bênção de Ogãse Fkedis, já que ambos são objeto
do maior respeito por todos os do “povo-de-santo”; mas
apenas os primeiros recebem deferências, como a coloca-
ção de mesas especiais para as refeições.
Em relação ainda às “mulheres que gostam de mulhe-
res”, não há quase possibilidade de elas serem consideradas
homens, sobretudo em termos da divisão de trabalho religioso.
Seu sexo biológico as conduz imediatamente ao enqua
-
dramento na categoria ampla mulher, apesar de ocuparem
posições elevadas como mães-de-santo ou Ekedi. A figura fe-
minina está, pois, sempre subjugada à masculina, sobretudo
no que diz respeito às atividades religiosas essenciais à manu-
tenção e reprodução dos grupos de culto, o que lhes acarreta
diminuição de poder.
Por tudo que já foi colocado, os giletes (“o 5º sexo do
candomblé”, “os enrustidos”, os “malhados”, “os que tran
sam
com homens e mulheres”) geralmente são malvistos. É neces
-
sário sempre assumir uma das quatro identidades sexua
is le-
gitimadas; ficar em cima do muro é contra à mora
l do
“povo-de-santo”.
Assim, as identidades são constituídas a partir
do
direcionamento sexual explicitado por cada um, porém é
revelante o fator biológico (Quadro O). Isso, no entan
to, não
produz uma inversão nos papéis sociais, como entre os
berdaches da América do Norte e os Sguaiaquis do
Paraguai
(Fry e MacRae, 1983).
da UT Sto amnineani
6. Costa Lima (1977), detalhando as atribuições
próprias dos Ogãs e Ekedis,
evidencia a maior relevância do agente masculino,
sobretudo por seus inúme-
ros titulos honoríficos e especialidades rituais. Pode-s
e dizer mesmo, como al-
guns dos meus entrevistados, que a “imprescindibilida
de” do Ogã favorece e é
favorecida pela valorização e poder do elemento
masculino.
LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ 215

QUADRO C
RELACIONAMENTO DAS IDENTIDADES:
SEXO BIOLÓGICO E SEXO MÍTICO

Identidades
Sexuais

Homem/Aborô
Homem/Iabá
Homem/Metá-Metá MOD

| Mulher/Aborô | 7 | Foro
Mulher/Iabá | E
Mulher /Metá-Metá | ED

Adé/Aborô M
MO
Adé/Tabá
| MO
Adé/Metá-Metá

E?
Monokó/Aborô
Monokó/Tabá E
Monokó/Metá-Metá | pad

M = Macho/Masculino (1) prevalece o sexo biológico


F = Fêmea/Feminina (2) prevalece o sexo mítico
M/F = Macho/Fêmea (3) prevalece a ambiguidade

É importante perceber a existência de dois códigos se-


melhantes aos que foram mostrados por Maggie (1975):
1. o “purocrático”, que diz respeito à organização e à
legalização das casas de candomblé em termos de compra, ven-
da e aluguel de imóveis — quase todos os terreiros têm um
“corpo administrativo”, geralmente composto por Ogas e fi-
lhos-de-santo de melhor condição socioeconômica, que
216 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

auxiliam o dirigente máximo. Esse código está remetido às


atividades eternas do terreiro, às transações com Órgãos e ins-
tituições que não os do “povo-de-santo”;
2.0 “do Santo”, relacionado aos fundamentos (axé, co-
nhecimento esotérico, iniciação), que privilegia, sem deixar
de considerar fatores tais como o econômico, o sexo biológico
e o “sexo mítico” dos adeptos.
É óbvio que essa duplicidade pode redundar numa fonte
de conflitos, pois alguns preferem privilegiar mais um código
que o outro. No entanto, aponta, por um lado, para o estreito
relacionamento de duas realidades: o mundo dos candomblés
e o da sociedade abrangente, e, por outro lado, influencia na
correlação das forças, no jogo de poder, no Jorogum entre as
identidades sexuais.
Assim, um terreiro é aparentemente uma “cidade das
mulheres”, como afirmado por Ruth Landes (1967), autora
que reduz a questão ao número maior de adeptos femininos;
os adés (no seu entender “homossexuais passivos?) são perce-
bidos como figuras identificadas à mulher. Mas será à toa
que
os homens, os adés, as mulheres e as monokós de orixá aboró
possuem os mais altos postos na hierarquia, são servidos
pri-
meiramente nos banquetes rituais e nas refeições diárias
com
as melhores porções?...
Silverstein (1979) considera que existe uma inversão
simbólica em termos de “poder físico”, “poder econômic
o” e
“poder simbólico”, com referência à subordinação da mulh
er
como fato universal. Diz: “O candomblé da Bahia conti
nua
até hoje a transmitir e ao mesmo tempo criar uma ideologia
popular, não só dele ou das religiões afro-brasileiras em
ge-
ral, mas também da mulher negra como “mãe de todo
mun-
do??. Conclui que a inversão simbólica tem “sua raiz últim
a
no fato de que a hierarquia do parentesco ritual que comp
õe
a família-de-santo tem uma estrutura de poder oposta ao
tipo
ideal da família brasileira, a família patriarcal”.
LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ RE,

De acordo com o exposto, o mundo sexualizado dos


terreiros de candomblé não constitui uma inversão, mas
uma reinterpretação e uma reprodução parcial do modelo
classificatório vigente na sociedade brasileira mais ampla,
o qual supõe uma relação de dominação/subordinação en-
tre machos e fêmeas, incluindo-se aí, numa gradação espe-
cial, os adés.

As relações de poder

O “povo-de-santo” estudado e os terreiros de candom-


blé em geral, ao englobar pessoas de diferentes níveis sociais e
econômicos, possuem duas perspectivas que se mesclam no
tocante às identidades e papéis sexuais: a “tradicional” e uma
“mais moderna”, conforme mostraram Fry e MacRae (1983).
Na sociedade abrangente, os indivíduos que se definem
ou são definidos como “homossexuais” estão colocados nas
margens da estrutura social, classificados quase sempre como
“pervertidos” e “desviantes” (Fry, 1982). No mundo dos ter-
reiros, as identidades de adé e monokó, por possuirem
respaldo mítico, têm este cunho marginal e patológico mini-
mizado. É importante notar que uma hierarquização estipu-
la e rege as relações de poder entre as diferentes identidades
sexuais. E vale ressaltar que esta reproduz, em termos, o
modelo “tradicional” legitimando relações de dominação/
subordinação inerentes às existentes entre homens e mu-
lheres. A colocação de Fry e MacRae (1983) se aplica à situa-
ção percebida do “povo-de-santo” estudado, qual seja, a de
que “neste Brasil popular, as relações entre homens e mu-
lheres não são caracterizadas apenas por complementaridade
de funções. São caracterizadas também por diferenças de po-
der, de tal forma que o homem é considerado socialmente
superior à mulher (...) o candomblé, então, oferece a possi-
bilidade de um jovem rapaz ou menina homossexual
218 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

transformar seu estigma social em vantagem”, porém de for-


ma mais relevante para os adés.
Cabe considerar que a ambigiiidade do adéé a principal
responsável pela sua valorização. Afinal os orixás Logunedé
e
Oxumarê não são, alternada ou simultaneamente, macho e
fêmeas? O orixá Exu também não comporta os princípios mas-
culinos e femininos, sendo considerada a sexualidade propr
ia-
mente dita? O entrevistado Salvador diz sobre o relacionam
ento
da sexualidade mítica com a humana: “Uma pessoa de
Jansã,
sendo homem, é claro que vai ser bem mais fácil assumir
sua
“veadagem”. Uma mulher possuindo orixá macho (aborô)
po-
derá se valer disso para explicar por que gosta de mulheres..
.
Agora bom mesmo é ser de Logunedé ou de Oxumaré, melho
r
ainda ser de Exu, ninguém pode dizer nada... Eles são
as varia-
ções do sexo em sua plenitude. É por isso que todo
“veado” ou
“sapatão” quer ser de Logunedé ou Oxumaré” No
entanto, as
monas do aló possuem menos respaldo mítico (não
existe uma
divindade feminina, uma iabá, que tenha características
seme-
lhantes às dos orixás anteriormente mencionados)
e não rece-
bem o mesmo tratamento positivo, em termos
de posição e
prestígio, como visto no item anterior.
É necessário ressaltar que a classificação met
á-metá
dada aos orixás Logunedé e Oxumaré fica restr
ita ao plano
mítico. Esse orixás, na prática dos terreiros,
são ditos tam-
bém aborôs, i.e., seu apecto masculino prevalec
e, no que toca
à divisão social do trabalho e nas atividades litú
rgicas, como
no Xiré (Leão Teixeira, 1986), quando são
reverenciados
(cantados e dançados) na sequência do cand
omblé, junto a
outros orixás aboró.
As festas em louvor aos orixás estão mar
cadas pelos
princípios da senioridade e da classificação
da sexualidade.
Rc pa eoato
a ND
7. De acordo com o poeta macumbeiro Ruy Dias (1975): “Ele é um Oxum
Ele é homem mas não é/Ele é mulher aré/
mas não é/Ele é os dois mas não é/Ele
um Oxumaré.” é
LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ 219

São eles os principais elementos na sua organização e realiza-


ção. Primeiramente são louvados os orixás aboróôse/ou os mais
velhos, como a iabá Nanã. Embora pequenas modificações pos-
sam ocorrer na sequência dos Xirês, de acordo com as normas
ou fundamentos de cada casa-de-santo, inevitavelmente a
“Roda de Santo” é iniciada com os cânticos para Exu e Ogum
(aborós) - São louvados a seguir, geralmente, Oxóssi, Ossáim,
Obaluaiê (aborós), Nanã, Iansã, Obá, Euá, Oxum, lemanjá,
(iabás) e Logunedé (meta-metá). Depois dessa divindade, o
dirigente faz uma parada para descanso. Após o intervalo pe-
queno, reinicia-se o Xirê com os cânticos “de fundamento ou
de chamar Santo”, momento denominado Roda de Xangó ou
Roda de Dadá, considerado o mais propício para o transe.
É importante notar que cada um dos orixás é saudado
por seus respectivos filhose filhas com reverências próprias:
o iká para os aborós e o adobale para as iabás. É interessante
observar que Oxumaré recebe o cumprimento ritual dos
aborôse Logunedé um adobale parcial.
A importância da sexualidade mítica aparece ressaltada
também nos trajes e adereços que homens, mulheres, monokós
e adés portam. Por exemplo, os ojás (turbantes ou panos de
ori) são indicadores do “sexo” do orixá principal de quem os
usa, assim como podem indicar também o tempo de iniciação
do adepto: com asas ou abas mostram que o iniciado é consa-
grado a uma das iabás. Caso contrário, estando a cabeça ape-
nas envolta, é a um dos aborós.
Estes aspectos, entre outros observados, indicam que no
Xirê estão simbolizadas noções abstratas como sexualidade,
poder, autoridade etc. (Zaluar, 1983) e seus relacionamentos
na prática social do “povo-de-santo”.

8. Esses dados são fruto da observação de vários candomblés na Casa de Carlinho


d'Oxum, Nação Ketu-efam, situada em Vaz Lobo, RJ. À este Babalorixá e às
Jalorixás Antonieta Alvez, Marilda de Jansãe Omindareuá agradeço a colabo-
ração e as atenções recebidas em todos os momentos da pesquisa.
220 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORRO E DA ALMA

À concorrência — o Jorogum — entre os sexos fica ex-


pressa através do controle que é exercido sobre as diferentes
identidades apontadas. Daí a necessidade da explicitação de
cada um sobre o seu papel sexual (“Roda de Samba”). É atra-
vés da classificação da sexualidade, assumida ou atribuída,
que a gradação hierárquica de poder encontra legitimidade.
O Quadro C esquematiza a lógica que fundamenta e legitima
a posição privilegiada dos homens e dos adés.
O “povo-de-santo” em questão reproduz assim o qua-
dro vigente na sociedade mais ampla: à mulhere à monokó
cabem as tarefas menos valorizadas e uma posição de poder
relativizada. Apesar de terem uma atitude “mais agressiva”,
“mais liberta” e de “não levarem desaforos para casa”, são
ainda percebidas como objetos de prazer e/ou de simples uso
prático. Em resumo, estão submetidas à lógica masculina. A
seguinte colocação de Jonas evidencia gradação de poder
e
prestígio em termos de opção sexual: “Minha mãe-de-santo
todo mundo tem medo dela, dizem que é bruxa, que ela é
perversa... eles têm é inveja... ela e outras lá de Casa enfren-
tam qualquer polícia e não são monokó não...”
Ser homem ou adé, por conseguinte, é fato extrema-
mente valorizado. Os discursos a seguir e os anterior
mente
mencionados evidenciam a posição privilegiada destes
agen-
tes sociais: “É a mesma coisa que aqui fora. Os home
ns le-
vam a melhor, os Ogãs, e os filhos de santo aborô... eu
não
queria ser mulher num terreiro” (Honório); “quem
coman-
da o candomblé aqui no Rio são os adés, eles ente
ndem de
candomblé, eles é que fazem o candomblé, eles cant
am e se
vestem muito bem, eles querem abrir Casa e soltar
as plu-
mas, eles se julgam superiores às mulheres e aos
homens?
(Dario); “os adés todo mundo aceita numa boa, o
candom-
blé para eles é o máximo, eles se dedicam como ning
uém”
(Raimundo); “pai-de-santo homem não tem tanto
sucesso
quanto o adé, são mais tímidos, não têm a ginga, o
jeitinho, a
política do adêé” (Jonas); “adé tem arte, mulher
não tem
LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ “95

arte, então eles são necessários” (Bené). É conveniente assi-


nalar que esses depoimentos são de homens ou de adés, os de
mulheres e monokós são menos enfáticos...
Participando ativamente e executando todo o processo
da vida social dos terreiros, os adés adquirem maior realce
no cenário religioso e no dia-a-dia das casas-de-santo, da
mesma forma que o relatado por Alvim (1972) em relação
aos “artistas do ouro”.
Em grande parte, é a mobilidade do adé a responsável
por sua “arte”. Daí poder-se pensar sua valorização como de-
corrência da mediação que este agente social estabelece entre
as categorias complementares e opostas. Como ambíguo — o
que não acontece com a monokó — pode transitar em qual-
quer instância da vida social e religiosa.

Considerações finais

A sexualidade, como mostrado, está inscrita na lógica


da vida social dos terreiros. Nas casas-de-santo todos não só
falam dela como a ritualizam nas várias instâncias da vida
social.
Foi percebido que uma “verdade” se esconde no “segre-
do” que todos — “macumbeiros” e “não-macumbeiros” — sa-
bem: a supervalorização do fator sexual.
A aceitação de identidades sexuais estigmatizadas ou mar-
ginalizadas na sociedade abrangente, como as de adé e monokó,
por um lado promove a peculiaridade da visão de mundo e do
ethos do povo de santo estudado. Por outro, propicia uma
hierarquização diferenciada das categorias ou “classes” sexuais,
na qual, no entanto, fica mantida a relação de dominação/su-
bordinação. Paralelamente, pode-se perceber que não existe
uma inversão nas relações de poder, pois ao macho (homem) e
ao ambíguo (adê é concedida a maioria das vantagens e bene-
222 CANDOMBLÉ: RELIGIÃO DO CORPO E DA ALMA

fícios, em termos de valorização de suas respectivas forças de


trabalho e, consequentemente, alcance de prestígio (mesmo em
casas-de-santo cuja chefia é exercida por uma mulher ou
monokoó). Esta situação é que, em última instância, traz o poder
às suas mãos. A mulhere a mona do aló vivenciam uma situa-
ção de dependência explícita devido ao sexo biológico femini-
no. O prestígio que alcançam pode ser até muito grande, mas
seu poder quase sempre está cercado pela necessidade de uma
figura masculina auxiliando-a na instância religiosa.
Desta forma, os terreiros e os “macumbeiros” em geral,
apesar de possuírem uma política sexual própria, não conse-
guem escapar do “machismo” que geralmente pauta as rela-
ções entre os sexos, sendo este produzido pelos adés em relação
à mulhere à monokó. Por sua vez, é bom frisar, o adé fontó se
encontra submetido ao homem.
Em suma, o mundo dos candomblés não pode ser visto
como comumente é colocado, ou seja, como um espaço privi-
legiadamente feminino. Deve ser pensado como um território
masculino, principalmente em termos de poder.
O mundo dos terreiros deve ser pensado também como
um espaço onde a sexualidade, ou o exercício das identidades
sexuais, se constitui num “caminho para o poder”.
LOROGUM — IDENTIDADES SEXUAIS E PODER NO CANDOMBLÉ - 223

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do café no Vale do Paraíba, 1976; Os Galvão de França no
povoamento de Santo Antônio de Garatinguetá, 3 “ed. DRI
Notas para a história do espetáculo na Província de São
Paulo, 1978; Retratos quase inocentes (organizador), 1983;
Vida cotidiana em São Paulo no século XIX —- memórias, de-
poimentos, evocações (organizador), 1999; A travessia da
Calunga Grande — três séculos de imagens sobre o negro no
Brasil (1657-1899), no prelo.

Principais traduções: Pierre Clastres. Arqueologia da vio-


Iência. Ensaios de antropologia política, 1982; Michel T aussig.
Xamanismo, colonialismo e o homem selvagem — um estudo
sobre o terror e a cura, 1993; Mike Featherstone. O desman-
che da cultura — globalização, pós-modernismo e iden tidade,
1997; Pierre Verger. Notas sobre os cultos dos orixás e voduns
na Bahia de Todos os Santos, no Brasil e na antiga Costa dos
Escravos, na África, 1999; Lydia Cabrera. A mata (Igbo - Fin-
da - Ewe Orisha - Vititi nfinda), no prelo.
CULTURA E RELIGIÕES
AFRO-BRASILEIRAS EM GERAL
Este selo concentra títulos que trazem a público discussões sobre a condição do
negro na sociedade brasileira, segundo diferentes perspectivas: preconceitos enfren-
tados e sobrepujados e os muitos a vencer; questões inerentes às religiões dos orixás,
voduns, inquices e entidades assimiladas das religiões de origem européia e indígena.
Os textos foram escritos por professores universitários, pesquisadores, antropó-
logos, sociólogos, lingiiistas, etc. que centram seus trabalhos no desvendamento dessas
facetas da identidade sócio-cultural brasileira. O objetivo é conscientizar a sociedade
sobre as dificuldades e as barreiras enfrentadas pelo negro em nosso país, para que seja
possível o debate, a diminuição e a aceitação das diferenças.

BRASIL, UM PAIS DE NEGROS?


PR | JerersoN BACELAR E CARLOS CAROSO (ORGS.)
Cóp. 2195 288r. 2 rD.
O livro traz dezoito artigos sobre a construção da identidade e as
políticas públicas para afro-descendentes, a relação entre a
Academia e a Militância negra e a afirmação cultural do negro.

FACES DA TRADIÇÃO AFRO -BRASILEIRA


CARLOS CAROSO E JEFERSON BACELAR (ORGS.)
Cóp. 2201 344». 1.ED.
Corpição PALLAS / CEAO
Dezoito artigos apresentados no V Congresso Afro-brasileiro, realizado
em Salvador — BA, abordam temas como religiosidade, sincretismo,
reafricanização, práticas terapêuticas, etnobotânica, alimentação, etc.

O LIVRO DA SAÚDE DAS MULHERES NEGRAS


io fã Nossos Passos VEM DE LONGE
y Na Jurema WERrNECK, Maisa MENDONÇA E EVELYN C. WHITE (orGS.)
hs Cóp. 2210 260. 1.tp.
Coletânea de textos que somados aos da edição americana retratam
a realidade cruel e segregacionista em que vivem as mulheres negras
de a nos Estados Unidos e no Brasil. Entre os assuntos abordados estão
pd saúde, violência urbana e doméstica, abuso sexual, preconceito, edu-
cação, engajamento político.
Este livro foi composto na tipologia Footlight
MT
Light 12/14,4 para o texto e Humanst 521 Lt
Bt 14/
16,8 para os títulos.
Foram utilizados os papéis Off Set 75g/m?
para o
miolo e Cartão Supremo 250g/m para a capa.
e rituais cuja transmissão pelos
mecanismos tradicionais baseados
na oralidade, tão caros ao can-
domblé, não lograram perpetuar.

Depois de Olóôrisa, vieram


Bandeira de Alairá (1982), Candomblé
desvendando identidades (1987), Men
sinal está no ten corpo (1989), As
senhoras do pássaro da noite (1994) e O
leopardo dos olhos de fogo (1998). Mas
os títulos logo se esgotam nas
livrarias, transformando-se em o-
bras guardadas, por quem as tem,
como preciosidades. Com o pre-
sente volume, Carlos Fugéênio
Marcondes de Moura põe à dis-
posição dos leitores trabalhos an-
teriormente publicados, mas que
se acham em títulos não mais dis-
poníveis no mercado. Inova, por-

tanto. Além disso, ele reúne em um


mesmo volume textos que guar-
dam entre si uma unidade temática,
como nos adianta o título deste
Candomblé: religio do corpo e da alma.

Reginaldo Prandi
Professor Titular de Sociologia da USP
Resultantes de um extenso e minucioso levantamento
bibliográfico com mais de dois mil títulos sobre as religiões
dos orixás em países como Brasil, Cuba, Haiti, Nigéria e
Benin, os livros organizados por Carlos Eugênio
Marcondes de Moura têm como carac-
terísticas fundamentais estimular a
produção acadêmica, reeditar textos já
publicados em livros esgotados, traduzir
textos de autores estrangeiros sobre
diversos temas ligados às religiões de
origem africana e seu desenvolvimento
no continente americano. Têm por
objetivo recuperar relatos imprescin-
díveis às religiões e à preservação da
cultura negra e suscitar o interesse das
novas gerações nas tradições de seus
antepassados.

* A»
*
O
is
Q
|
E |

(ão)
=
*

ISBN 85-5347-0418-9

2
E 7
9788534 701983

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