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Solange Araujo de Carvalho - Tese - Entre A Ideia e o Resultado

Este resumo discute o processo de urbanização de favelas no Brasil a partir de experiências recentes desde a década de 1990. Analisa os programas de urbanização de favelas nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, baseando-se nos escopos de projeto que delimitam a abrangência e foco do projeto nestes programas. Estuda casos de referência para identificar conflitos e qualidades do processo, tendo o projeto urbano em favelas como objeto central.

Enviado por

GiovanyBicalho
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Solange Araujo de Carvalho - Tese - Entre A Ideia e o Resultado

Este resumo discute o processo de urbanização de favelas no Brasil a partir de experiências recentes desde a década de 1990. Analisa os programas de urbanização de favelas nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, baseando-se nos escopos de projeto que delimitam a abrangência e foco do projeto nestes programas. Estuda casos de referência para identificar conflitos e qualidades do processo, tendo o projeto urbano em favelas como objeto central.

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ENTRE A IDEIA E O

RESULTADO:
O PAPEL DO PROJETO
NO PROCESSO
DE URBANIZAÇÃO DE
UMA FAVELA

Solange Araujo de Carvalho

Orientador Prof. Dr. Pablo Cesar Benetti

Rio de Janeiro 2020

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO


FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM URBANISMO
ENTRE A IDEIA E O
RESULTADO:
O PAPEL DO PROJETO
NO PROCESSO
DE URBANIZAÇÃO DE
UMA FAVELA

Solange Araujo de Carvalho

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em


Urbanismo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de
Doutora em Urbanismo.

Orientador Prof. Dr. Pablo Cesar Benetti

Rio de Janeiro 2020


FICHA CATALOGRÁFICA

Carvalho, Solange Araujo de


cc331e Entre a Ideia e o Resultado: o papel do projeto
no processo de urbanização de uma favela / Solange
Araujo de Carvalho. -- Rio de Janeiro, 2020.
334 f.

Orientador: Pablo Cesar Benetti.
Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Programa de Pós-Graduação em Urbanismo, 2020.

1. Projeto. 2. Favela. 3. Políticas públicas. 4.


Urbanismo. I. Benetti, Pablo Cesar, orient. II.
Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados


fornecidos pelo(a) autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu
Amorim Neto - CRB-7/6283.
ENTRE A IDEIA E O RESULTADO:
O PAPEL DO PROJETO NO PROCESSO
DE URBANIZAÇÃO DE UMA FAVELA

Autora
Solange Araujo de Carvalho

Orientador
Prof. Dr. Pablo Cesar Benetti

Tese submetida ao Programa de Pós-graduação em Urbanismo, Faculdade de Arqui­-


tetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte
dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Urbanismo.

Aprovada por:

Prof. Dr. Pablo Cesar Benetti Profa. Dra. Alessia de Biase


Orientador PROURB/FAU/UFRJ Membro externo LAA/ENSA–Paris La Villette

Profa. Dra. Ana Lúcia Nogueira de Paiva Britto Profa. Dra. Rosana Denaldi
Membro interno PROURB/FAU/UFRJ Membro externo LEPUR/UFABC

Prof. Dr. Guilherme Carlos Lassance dos Santos Abreu Prof. Dr. Pedro da Luz Moreira
Membro interno PROURB/FAU/UFRJ Membro externo EAU/UFF

Rio de Janeiro, abril 2020.


AGRADECIMENTOS

Ao meu mais que maravilhoso orientador Pablo, que incrivelmente esteve sempre, sem-
pre, sempre ao meu lado e disponível para trocar ideias e acalmar minhas inseguranças.
Todas as suas orientações foram fundamentais para corrigir o prumo e me fazer ver a
importância política desta pesquisa, sobretudo nestes tempos sombrios que o Brasil
vem atravessando. Meus agradecimentos máximos, ainda, pelas suas rápidas e precisas
revisões!

À minha orientadora de doutorado-sanduíche Alessia, agradeço o caloroso e animado acolhi-


mento na França, seu olhar atento e preciso que me acompanhou na estruturação e escrita
desta pesquisa, assim como seus convites para diversas colaborações que, tenho certeza,
deram bases sólidas para uma nova parceria.

À CAPES, que financiou parte desta pesquisa através de Bolsa de Doutorado Sanduíche no
Exterior - PDSE através do Processo nº 88881.189053/2018-01. O presente trabalho também
foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Ao Elilson, que, com suas revisões eficientes e perspicazes, organizou as diferentes escritas
que este texto apresenta. Obrigada pelo bom humor e pela infinita paciência com meus
atrasos e, ao mesmo tempo, com minhas demandas urgentes para que esta pesquisa pudesse
ser publicada.

V Aos colegas da UFABC e FAUUSP, sobretudo à Rosana Denaldi, que me receberam de bra-
ços abertos em São Paulo. Do mesmo modo, agradeço à Tássia Regino, profissional cheia
de energia, competência e eficiência, e aos técnicos da SEHAB-SP e da PMSBC, que me
acompanharam nas visitas de campo e me forneceram informações fundamentais para
o avanço desta pesquisa. O suporte logístico dado por Rosana e Tássia nas cidades de
São Paulo e São Bernardo do Campo, foi fundamental para o início de minha pesquisa
de campo.

Aos colegas e amigos do LAA – ENSA Paris La Villette, que me acolheram tão generosamente
e que me proporcionaram ótimas trocas e discussões.

Obrigada à Piero, pelos seus comentários mais que precisos e pelas deliciosas “pâtisseries”
trocadas com afeto, que transformaram a hora do lanche em um dos momentos mais espe-
rados do dia, não só pelo prazer da gula, mas pelas ricas conversas e pelas inspirações.
Aos amigos da ex-SMH e IPP, em especial à Sérgio Magalhães, Wilson Queiroz, Ana Luna,
Andrea Cardoso, Nando Cavallieri, Adriana Vial e Luis Valverde, pelas entrevistas, ideias e
informações que muito alimentaram esta tese.

Aos amigos e parceiros do Instituto Raízes em Movimento e aos moradores do Morro do


Alemão, que gentilmente me receberam e abriram suas portas para esta pesquisa.

Aos queridos colegas e parceiros arquitetos e urbanistas, e engenheiros, em especial à Neide


Ferreira, Marcos Boldarini, Hector Vigliecca, Jorge Mario Jáuregui, Pedro da Luz, Eduardo
De Carolis e Pedro Massunaga, que trabalham na prática do projeto em favelas e que gen-
tilmente receberam esta pesquisa para entrevistas, visitas de campo e responderam a inter-
mináveis solicitações de material sobre seus projetos e obras.

Aos colegas e funcionários do PROURB, que me acompanharam no longo processo de cons-


trução e de conclusão de uma tese de doutorado.

Aos meus colegas do DARF, que gentilmente me liberaram para o período de doutorado-
-sanduíche no LAA e que sempre me incentivaram na conclusão desta pesquisa.

Às minhas amigas Tatiana Terry e Daniela Aduan, eternas sócias e parceiras, que mesmo à
distância me estimularam e contribuíram para esta pesquisa.

Aos meus pais queridos, que sempre se interessaram pelo meu trabalho e foram plateia
incansável nas longas horas da defesa de tese, mesmo que atrás de uma tela e isolados por
conta da pandemia do COVID-19.
VI
Aos meus irmãos e cunhada-irmã, sobrinhas e sobrinhos, que aguentaram o tranco na minha
ausência temporária. Obrigada por terem me incentivado e apoiado nesta etapa da vida.

À Ana, que teve a coragem de se aventurar e me acompanhar nesta empreitada no momento


em que eu alçava voo para morar em Paris. Por sua calma, sabedoria, companheirismo,
otimismo, amor e carinho – e muita paciência – meus agradecimentos infinitos.
APRESENTAÇÃO

Esta pesquisa se iniciou, em mim, na cidade de Medellín, Colômbia, durante o VII Fórum
Urbano Mundial, em 2014, quando, conversando numa cabine de teleférico com quem seria
meu orientador nesta empreitada, decidi que este seria o momento de discutir a prática do
projeto de arquitetura e urbanismo em favelas e seu processo de implementação nos pro-
gramas de urbanização de favelas no Brasil.
O projeto em favelas é o campo de prática profissional em que atuo desde os primórdios do
Favela Bairro, em 1994, até os dias de hoje, com experiência em todos os programas de urba-
nização de favelas da cidade do Rio de Janeiro. Na academia, leciono há 10 anos na FAU/UFRJ
a representação do projeto e projetos de urbanização alternativa, onde implementamos o
ensino do projeto, cuja metodologia envolve os atores locais, que depois serão os gestores
dos espaços construídos coletivamente, através de mutirões entre alunos, professores e
moradores da favela. Ambas as experiências são distintas, mas nesta pesquisa de Doutorado
se complementaram e me fizeram ressignificar minha postura perante os autores e os dife-
rentes atores (projeto, habitantes, gestores) que congrego neste texto e, sobretudo, sobre
quem represento neste processo e o que pretendo com o texto que apresento. Do mesmo
modo, desejaria que minha pesquisa servisse para também ressignificar práticas, ações e
posturas que se perpetuam no processo, mas que merecem revisão crítica.
Entendi que a solução virá de uma construção conjunta – como deve ser o processo de
fabricação da cidade – e, por isso, tentei construir um texto acessível aos diversos atores
do processo: aos arquitetos e urbanistas, e outros profissionais que atuam neste campo de
projeto; aos técnicos do poder público; aos moradores de favelas, que pouco participam do
processo de construção de programas públicos e do projeto; aos que implementam políticas
VII públicas urbanas e sociais; e aos interessados na fabricação de cidades mais igualitárias.
ENTRE A IDEIA E O
RESULTADO:
O PAPEL DO PROJETO
NO PROCESSO
DE URBANIZAÇÃO DE
UMA FAVELA

RESUMO

Este trabalho discute o processo de urbanização de favelas, a partir de experiências recen-


tes de políticas públicas desde a década de 1990 no Brasil. Nosso objeto de pesquisa é o
projeto urbano em favelas, campo da prática de projeto de arquitetura e urbanismo no Sul
VIII Global. Apresentamos um espectro dos programas de urbanização de favelas dos últimos
30 anos nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, baseando nossa análise nos escopos
de projeto – documentos oficiais que delimitam a abrangência, o enfoque do projeto e sua
atuação nestes programas. Casos de referência de favelas urbanizadas pelos programas ana-
lisados são instrumentos para fazer emergir conflitos e qualidades do processo. Mostramos
que as políticas de urbanização, que se estabelecem na lógica regulatória do Estado, não
conseguem impedir que dinâmicas preexistentes – que denominamos a lógica da favela –
continuem após a urbanização. Consideramos que a revisão destas políticas deve se basear
na construção de um novo pacto urbano cuja parceria de ambos os agentes – local e estatal –
parece ser a saída: o Estado fixando-se nestes territórios através da gestão urbana contínua,
como em qualquer outro bairro da cidade, mediando com os atores locais as soluções para
as transformações sucessivas características destes territórios.

Palavras-chave: Projeto; Favela; Políticas públicas; Urbanismo.


BETWEEN IDEA
AND RESULTS:
THE ROLE OF URBAN
DESIGN IN THE SLUM
UPGRADING PROCESS

ABSTRACT

This work proposes to discuss the slum upgrading process from the perspective of public
policies enacted in Brazil since the 1990s. Our study object is urban design in favelas, a rel-
evant area of practice for Architecture and Urban Design in the Global South. We present
IX a spectrum of slum upgrading programs put in place over the last 30 years in the cities of
Rio de Janeiro and São Paulo. Our analysis was based on the scope of projects – i.e. official
documents that delimited the reach and focus of projects and the government actions to
be taken under these programs. Reference cases of slum upgrades conducted through
the programs above are used to present the conflicts and positive points of this process.
We show that urban upgrading policies that are rooted in the regulatory logic of the State
fail to prevent existing dynamics – which we call favela logic – from continuing to be in place
after the upgrading. We consider that reviews of these policies should aim to build a new
urban pact wherein partnership between both parties involved – local citizens and the State
– seems to be the solution: the State focusing on these territories through permanent urban
management, just like any other neighborhood in the city, while mediating solutions with local
agents to achieve successive transformations that are characteristic of these territories.

Keywords: Urban design; Slums; Public Policies; Urbanism.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 1

1.
O QUE SIGNIFICARIA
URBANIZAR
UMA FAVELA? (a ideia) 8

1.1.
A Lógica da Favela 12
1.1.1. A favela: a dimensão legal e simbólica 12
1.1.2. O lugar da favela na cidade 21
1.1.3. A luta pela edificação da favela 24
1.1.4. Os poderes locais e os atores da favela 28
1.2.
A Lógica Regulatória
do Estado 33
1.2.1. O espaço da favela como objeto das intervenções públicas 33
1.2.1.1. Os espaços coletivos ou públicos nas favelas 37
1.2.1.2. Sistema viário nas favelas 39
1.2.1.3. Saneamento ambiental nas favelas 41
1.2.1.4. A ideia de integração da favela à cidade 43
1.3.
O Papel Social do Projeto
Urbano em Favelas 51
2.
O PROJETO URBANO
EM FAVELAS NOS PROGRAMAS
PÚBLICOS NO BRASIL 62

2.1.
O Programa Favela Bairro 66
2.1.1. A formulação do programa 70
2.1.2. A fase Favela Bairro 1 – o início do programa (1994-1996) 74
2.1.2.1. Temas de projeto do Favela Bairro 1 81
2.1.3. A fase Favela Bairro 2 – o PROAP (1996-2006) 84
2.1.3.1. Temas de projeto do Favela Bairro 2 95
2.1.4. Conclusões sobre as fases do Favela Bairro 103
2.1.5. Programas integrados ao Favela Bairro 105
2.2.
Programas pós-Favela Bairro:
diferenciais e procedimentos 111
2.2.1. Programa PAT-PROSANEAR (2000-2007) 111
2.2.2. Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (2007-2014) 117
2.2.3. Morar Carioca e Renova/SP (2010-2018) 128
2.3.
Temas de projeto no âmbito
dos programas analisados 132
2.3.1. Consolidação da análise dos Escopos 132
2.3.2. Infraestrutura Urbana 135
2.3.2.1. Sistema viário 135
2.3.2.2. Saneamento Básico 137
2.3.2.3. Espaços Coletivos 141
2.3.3. Meio Ambiente 141
2.3.4. Edificações 142
2.3.4.1. Equipamentos Sociais 142
2.3.4.2. Produção de Unidades Habitacionais (UHs) 143
2.4.
Síntese e Reflexões sobre o
processo de projeto em favelas 145
2.4.1. O vulto de investimentos determina os resultados
em urbanização de favelas? 145
2.4.2. O que mudou na forma de fazer o projeto em favelas? 149
2.4.3. O projeto a serviço de quem? 151
2.4.4. Quais os ganhos no processo de desenvolvimento de projeto? 151
2.4.5. Qual é o papel do arquiteto ao longo do processo? 152

3.
O PROCESSO E O
RESULTADO 156

3.1.
Parque Royal – Favela Bairro 1 161
3.1.1. O projeto (ou a ideia) 165
3.1.2. Como se deu o processo 170
3.1.3. O que se vê 20 anos depois da urbanização 180
3.2.
Parque Fernanda I –
PAT-PROSANEAR 198
3.2.1. O projeto (ou a ideia) 204
3.2.2. Como se deu o processo 208
3.2.3. O que se vê 10 anos depois da urbanização 220
3.2.3.1. Primeiro trecho: uma rua degradada 223
3.2.3.2. Segundo trecho: espaço coletivo sim, senhor!
(ou Caminho Verde, propriamente dito) 226
3.2.3.3. Terceiro trecho: o flagrante
(ou uma rua-fundos, um quintal perfeito para privatizar) 232
3.2.3.4. Considerações sobre a análise do Caminho Verde
em Parque Fernanda I 236
3.3.
Alemão – PAC-Favelas 238
3.3.1. O surgimento de um projeto para investimento 239
3.3.2. Como se deu o processo 244
3.3.2.1. Subdivisão do Complexo do Alemão entre
Governo do Estado e Prefeitura 244
3.3.2.2. Enquadramento adotado pela Pesquisa –
Av. Central, no Morro do Alemão 247
3.3.2.3. Obras e modificações de projeto em paralelo 255
3.3.2.4. Efeitos do processo no território do Morro do Alemão 264
3.3.3. O que se vê anos depois da urbanização 272
3.4.
Reflexões sobre a ideia, o processo e os
resultados nas favelas estudadas 279
3.4.1. Investimentos 280
3.4.2. Escopo dos Projetos 283
3.4.3. Contratações 285
3.4.4. Desenvolvimento dos Projetos 286
3.4.5. Papel do Arquiteto 287

4.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS 290

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 297

ÍNDICE DE FIGURAS 312

ÍNDICE DE TABELAS 318

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS 319


INTRODUÇÃO
INTRODUÇÃO

Este trabalho pretende discutir de maneira crítica e propositiva o processo de urbanização


de favelas, a partir das experiências recentes brasileiras que, desde a década de 1990, colo-
caram o projeto urbano1 como objeto de politicas públicas. Nos move a intenção de enten-
der suas possibilidades e limitações, questões e conflitos que precisam ser enfrentados para
o aumento da performance dos programas de urbanização de favelas que usam o projeto
como sua principal ferramenta.
No Brasil, 22,3% da população urbana reside em favelas (UN-HABITAT, 2015). No entanto,
desde 2016 o contexto político brasileiro tornou-se adverso a investimentos públicos em urba-
nização de favelas, que estão escassos e praticamente inexistentes desde 2018. Considerando
que este contexto, ao que parece, se manterá nos próximos anos, entendemos que este é um
momento oportuno para refletir e contribuir, no campo da arquitetura e urbanismo, aos ajustes
que devem ser subsidiados às políticas públicas, que certamente serão reconquistadas.2
Neste contexto, nosso objeto de pesquisa é o projeto urbano no processo de urbanização
de favelas dentro de políticas públicas no Brasil, novo campo da prática de projeto de ar-
quitetura e urbanismo que se abriu no Sul Global a partir de 1988, quando o tema entrou na
agenda urbana mundial. O projeto urbano virou elemento central no processo decisório e
é utilizado por estas políticas públicas, até os dias de hoje, como instrumento para viabilizar
integração física e social destes territórios ao restante da cidade.
Mais do que um aprofundamento sobre o projeto em si, esta pesquisa tem como base a
análise dos processos de elaboração dos projetos, de sua implementação e do que aconteceu
com as favelas anos depois de sua urbanização via programas públicos.
Entre a ideia (o projeto) e o resultado (o construído) há um processo que não é evidencia-
do nas pesquisas acadêmicas, mas que interfere nos resultados pretendidos, ou anunciados
pelas políticas públicas. Os temas recorrentes de pesquisa são as políticas públicas, a par-
ticipação e as metodologias de projeto, e há pouco aprofundamento sobre o processo de
implementação de um projeto em favelas e, sobretudo, a respeito das interferências e con-
flitos que ocorrem e como estes afetam os resultados.
Diante dessa lacuna, algumas questões se impõem como diretrizes para nossa abordagem:
o que há por trás das experiências de urbanização de favelas? De que território estamos

1. Projeto urbano, nos programas de urbanização de favelas, é o projeto cuja disciplina urbanismo é a que centraliza e
integra todas as outras necessárias para a completa urbanização de uma favela. No Brasil, o projeto urbano, campo de
interesse desta pesquisa, é uma atribuição exclusiva do arquiteto-urbanista.
2. Não há como não alertar, frente à pandemia mundial do COVID-19, sobre a importância da retomada deste tema na
agenda urbana brasileira, pois sabemos que, pelas desigualdades urbanas e sociais impressas espacialmente nas cidades
brasileiras, as favelas e suas populações podem vir a ser as mais afetadas.
falando e quais as dinâmicas existentes? Qual é o papel dado ao projeto neste processo?
O que o projeto pode enfrentar? Como é dada a continuidade das políticas públicas nestes
territórios após a conclusão das obras? A partir destas questões pretendemos analisar, iden-
tificar e trazer à discussão, no processo de urbanização de favelas, o modo de fazer projeto e
de implementá-lo, seus resultados propriamente ditos e se as dinâmicas existentes após a ur-
banização trazem conflitos e limites aos desejos de transformação urbana destes territórios.
O projeto urbano lida, de fato, com as visões correntes do senso comum sobre as favelas,
que em geral estão calcadas na informalidade e na precariedade urbanas, e por isso são
consideradas fora dos padrões adequados, e, assim, precisam ser enquadradas pelo Estado
e transformadas em bairro dentro do modelo vigente de cidade formal. Vários autores con-
testam esta visão da informalidade urbana pela precariedade (RAO, 2012; ROY, 2005; SILVA,
2009) e propõem uma redefinição mais ampla e positiva dos assentamentos informais que
leve em conta a complexidade e diversidade destes territórios na cidade contemporânea, e
é nesta revisão que esta tese se ancora. É a partir desta redefinição que visamos, no campo
da arquitetura e do urbanismo, contribuir para a ressignificação do projeto em favelas.
Do ponto de vista das políticas públicas de urbanização, as favelas urbanizáveis3 precisam
de melhorias urbanas, por isso é prioritário agir na infraestrutura urbana nestes territórios,
promovendo qualidade de vida e, indiretamente, benefícios sociais a seus habitantes. Finan-
ciamentos e escopos destas políticas determinam temas que obrigatoriamente devem ser
abordados pelo projeto para a urbanização de uma favela. O projeto urbano, portanto, é
dirigido por estas políticas a promover soluções para o ambiente físico das favelas, identifi-
cando-se, assim, o problema do projeto.
Para os moradores de favelas, por seu turno, o processo de urbanização implementa-
do pelo Estado traz as melhorias urbanas, que geralmente são bem-vindas. No entanto, o
controle urbano e a regularização que o Estado visa implementar após a urbanização são
2 construídos a partir de regras e leis que não observam as dinâmicas preexistentes, isto é,
a lógica da favela, o que muitas vezes gera conflitos entre os interesses do Estado e os da
população local.
Sob a ótica do projeto, as favelas representam um desafio, visto que as tradições do
urbanismo e do projeto urbano se baseiam no pensamento normativo. O Sul Global está

3. São consideradas urbanizáveis (termo utilizado no Rio de Janeiro), ou consolidáveis (termo utilizado em São Paulo) as
favelas passíveis de serem (ou que já foram parcialmente) urbanizadas através de políticas públicas. Esta não é a única
forma de lidar com a questão dos assentamentos informais. As políticas de intervenção em assentamentos informais
precários podem variar entre: a erradicação do assentamento; a reurbanização do assentamento, com a demolição do
assentamento e sua reconstrução no mesmo local nos padrões urbanísticos e edilícios “semelhantes à linguagem do-
minante”; e a urbanização, mantendo as características e o edificado, mas melhorando a qualidade urbana e ambiental
do assentamento (BUENO, 2000). Estas três formas de política de intervenção em assentamentos informais coexistem
e são adotadas contemporaneamente, dependendo da situação de cada assentamento e da política municipal vigente.
(BUENO, 2000; ROLNIK, 2016).
influenciado por modelos urbanos herdados, cuja teoria gera normas e representações
que se distanciam da realidade existente, definindo padrões e até desejos de cidade.
As favelas, por sua vez, cresceram sem arquiteto e sem urbanista, na lógica da necessi-
dade (ABRAMO, 2003), através da autorregulação (NISIDA, 2017) e fora das normas e dos
padrões urbanísticos do Estado. Com atuação focando em resultados normativos e dire-
cionados pelo Estado, o projeto acaba por ignorar as práticas cotidianas do território a ser
urbanizado (RAO, 2012).
Por isso, nossa primeira hipótese é que as favelas possibilitam que repensemos as prá-
ticas da arquitetura e do urbanismo, sobretudo o papel do projeto neste contexto conso-
lidado informalmente. Neste sentido, buscamos analisar as práticas de projeto urbano em
favelas brasileiras e identificar conflitos entre o pensamento normativo que guia o projeto
e as características e dinâmicas locais que dão identidade ao ambiente urbano das favelas.
Esta questão central sobre o projeto nos abre outras hipóteses sobre o cerne do fenômeno
da favela e seus possíveis conflitos com a lógica regulatória do Estado.
No processo de urbanização de favelas, o Estado foca suas ações no ambiente físico.
No entanto, não é possível dissociar o tempo e as relações sociais do espaço construído na
cidade. A cidade não é só espaço, mas um conjunto de atividades e de relações que aconte-
cem num espaço e que ajudam a construí-lo ao longo do tempo. A favela é um espaço da ci-
dade que foi construído de modo particular em relação ao restante da cidade (VALLADARES,
2005). Desse modo, nossa segunda hipótese é que o processo de construção das favelas,
através do esforço coletivo dos próprios moradores e marginal ao Estado e ao Mercado
formal, teria determinado, além das características físicas particulares, vantagens (ABRAMO,
2003) e uma organização social própria (SANTOS, 1981; MACHADO DA SILVA, 2011), com atores
e forças locais que imprimem a lógica da favela. Por isso, buscamos compreender como e
por que se dá a lógica da favela e como as políticas públicas de urbanização, que visam incor-
3 porar as favelas à lógica regulatória do Estado, lidam com esta lógica.
O projeto é direcionado para ações que possibilitem a incorporação das favelas na lógica
regulatória do Estado. A partir da urbanização, a favela seria incluída no sistema de gestão
pública com princípios e instrumentos semelhantes aos que regem a cidade formal. Com-
preendemos que aceitar o informal dentro do processo de planejamento urbano ainda tem
grande resistência institucional, o que nos impede de criar novos paradigmas no enfrenta-
mento das desigualdades urbanas (GOUVERNEUR, 2015). Por isso, nossa terceira hipótese é
que a fragilidade destas políticas públicas se reflete na crença de que a lógica regulatória
do Estado, através do projeto e da urbanização, interromperia a lógica da favela que opera
estes territórios, o que faz com que as dinâmicas locais sejam ignoradas.
Para verificar e responder a estas hipóteses, adotamos casos de referência de favelas
no Rio de Janeiro e em São Paulo cujas obras através de programas públicos foram consi-
deradas entregues. Os projetos analisados serão instrumento para fazer emergir acertos e
descompassos da política de urbanização de favelas, visando enfrentar, reforçar e ajustar sua
abordagem. O objetivo foi observar e analisar como aconteceu o processo de implementa-
ção de projetos, seus resultados, e a posterior gestão e apropriação dos moradores.
Os projetos destes casos de referência não são de nossa autoria, por questões metodo-
lógicas e éticas, pois é difícil assumir um distanciamento necessário para analisar sua própria
criação e, assim, não ser tendencioso. No entanto, nos utilizamos de alguns episódios ocor-
ridos em projetos dos quais participei, que vêm complementar a análise dos documentos e
pesquisa de campo. O interesse por ilustrá-los é trazer à tona questões que somente através
de nossa posição de ator/a interno/a ao processo foram possíveis de serem observadas:
interferências, acertos e conflitos surgidos “nos bastidores” e que normalmente não são
explicitados. Nosso interesse é apresentar um olhar crítico sobre o processo, entendendo o
projeto como seu instrumento.
Esta tese foi escrita em diferentes tempos e espaços, e isto se reflete nas diferentes
formas discursivas e tipologias textuais que reunimos neste trabalho. O aporte antropoló-
gico adquirido ao longo da estadia na França para doutoramento-sanduiche no Laboratoire
Architecture Anthropologie (LAA), da Escola Nacional Superior de Arquitetura de Paris La
Villette, repercutiu, entre outros, no trabalho da escrita.
Por isso, a congregação de diferentes vozes dos atores do processo de urbanização de
favelas (gestores, arquitetos e outros profissionais do projeto, e moradores de favelas)4,
numa etnografia multi-situada (MARCUS, 2010), também é uma característica desta tese.
Relatos pessoais sobre a realidade dos informantes foram preferidos, muitas vezes, a discus-
sões acadêmicas que trazem conteúdos semelhantes. Ressaltamos que isto foi uma escolha
crítico-metodológico, pois buscamos transcrever diferentes vozes para mostrar a comple-
xidade do processo de urbanização de favelas e fazer emergir conflitos, diferentes lógicas
e distintas percepções sobre um mesmo fato (LEWIS, 1972). Um importante trabalho de re-
visão foi realizado com o intuito de formular um texto contínuo, mas variado, que desper-
4 tasse o interesse do leitor, sem anular estas diferentes vozes nem as diferentes escritas que
assumimos ao longo do processo.
A experiência de ser estrangeira no Norte Global, num espaço acadêmico onde poucos
sabiam o que é uma favela e o que significaria urbanizá-la, me fez perceber conhecimentos
que nós, do Sul Global, carregamos sobre nossa realidade e que menosprezamos devido à
relação Norte–Sul Global baseada no poder econômico e que tem suas origens na oposição
colonizadores–colonizados, que nos é culturalmente imposta. Compreendendo que esta
pesquisa foi construída buscando romper esta relação de assujeitamento, privilegiamos no

4. Nosso método de pesquisa envolveu entrevistas qualitativas, que ocorreram de agosto de 2018 a fevereiro de 2019.
Adotamos o anonimato para preservar a identidade dos entrevistados, embora seu papel no processo fique evidenciado
na fala e/ou em nota, quando assim for pertinente, visto ser uma questão central à nossa pesquisa. O único entrevistado
que teve sua identidade divulgada exercia cargo público envolvido diretamente com a urbanização de favelas e, por isso,
foi objeto de entrevista.
debate sobre o tema de políticas de urbanização de favelas o diálogo com autores originá-
rios do Sul Global.
No Capítulo 1, discutimos o lugar da favela na cidade, pautado pela dimensão legal e
simbólica impostas pelo Estado e pela sociedade, e seu reconhecimento tardio como parte
integrante que tem a urbanização como resposta. Este último aspecto traça as diretrizes
do projeto para melhorias urbanas, a partir de uma compreensão espacial do que é o
problema da favela. Analisamos como as relações entre Estado, Mercado e favela impul-
sionam uma organização social, com atores e forças locais (Estado, traficantes, associa-
ções, polícia etc.) que imprimem uma lógica própria a este território, a qual denominamos
lógica da favela. Dentro deste contexto, abordamos as características inerentes ao pro-
jeto urbano e o papel que lhe é dado nas políticas de urbanização. Além de sua importân-
cia simbólica e política, ao incorporar a favela como cliente, destacamos conflitos que o
projeto precisa enfrentar para a ressignificação de seu papel social e de sua potência no
processo de fabricação urbana.
No Capítulo 2, apresentamos um espectro dos programas de urbanização de favelas dos
últimos 30 anos nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, com maior aprofundamento
no Favela Bairro (1994-2006), da cidade do Rio de Janeiro, no PAT-PROSANEAR (2000-2007)
e no PAC (2007-2014), ambos federais. Nossa análise se baseou nos escopos de projeto dos
programas – documentos oficiais que delimitam a abrangência, o enfoque do projeto e sua
atuação. Em cada um dos programas analisados, apresentamos metodologia, operaciona-
lização, atores, os temas de projeto que emergem dos escopos e outras questões que in-
fluenciaram no papel do arquiteto no processo e no modo de fazer projeto em favelas.
Discutimos ainda um contexto maior que define o processo de projeto e a atuação dos
arquitetos nesses programas. Elencamos categorias para a análise deste contexto maior
e da própria produção do projeto, visando estabelecer um comparativo entre a atuação
5 dos diversos programas de urbanização em favelas, quais as condições que foram dadas ao
projeto, e como as diferenças de cada contexto incidiram na qualidade dos projetos. Além
dos Escopos de Projeto, este contexto é também composto pelas categorias Investimentos,
Contratações, Desenvolvimento dos Projetos e o Papel do Arquitetos. Estas 5 categorias nos
permitiram levantar algumas reflexões sobre o processo de projeto em favelas nestes 30
anos de programas de urbanização e como o projeto urbano foi ocupando diferentes papéis
ao longo dos programas aqui investigados.
No Capítulo 3 apresentamos a análise dos processos de três casos de referência de
favelas urbanizadas através dos programas que ganharam destaque no Capítulo 2 – Favela
Bairro, PAT-PROSANEAR e PAC-UAP – de modo a estabelecer uma relação entre a análise de
documentos que direcionam projeto e processo (no Capítulo 2) e a efetiva aplicação dos
procedimentos e metodologias preconizados nestes documentos, observando os próprios
processos em si e seus resultados anos após a urbanização. A primeira favela – Parque Royal
– urbanizada nos anos 1990 pelo Favela Bairro 1, na cidade do Rio de Janeiro. A segunda –
Parque Fernanda I – na cidade de São Paulo, foi objeto de projeto desenvolvido dentro das
diretrizes do PAT-PROSANEAR, nos anos 2000, e com obras posteriormente implementadas
com recursos do PAC-UAP, finalizadas nos anos 2010. Finalmente, o terceiro território – o
Alemão – na cidade do Rio de Janeiro, teve projetos e obras financiados pelo PAC-UAP, cujo
desenvolvimento e implementação foram através do programa estadual PAC-Favelas e do
programa municipal do Morar Carioca nos anos 2010.
Apresentamos processos, projetos e os resultados obtidos anos após a inauguração das
obras de urbanização nestas três favelas, além de uma análise comparativa entre estes casos
de referência a partir das categorias elencadas no Capítulo 2. Discutindo os contextos e as
situações encontradas, buscamos confirmar como estas categorias determinaram as con-
dições de produção do projeto e os resultados obtidos em cada processo de urbanização.
Em suma, as dimensões abordadas nesta tese apontam conflitos, qualidades e atores
influentes que não podem ser menosprezados no processo de melhorias urbanas nas favelas.
Neste sentido, argumentamos que as políticas de urbanização não se assentam em nenhum
novo pacto urbano, pois se estabelecem na lógica regulatória do Estado e não consideram a
lógica da favela. Novos pactos podem ser teoricamente formulados, mas serão dificilmente
construídos e preservados sem os atores que estão efetivamente nas favelas.
Consideramos que a parceria entre os dois âmbitos – local e estatal – parece ser a saí-
da para se garantir um novo pacto urbano: o Estado fixando-se nestes territórios através
da gestão urbana contínua, como em qualquer outro bairro da cidade, mediando com os
agentes locais as soluções para as transformações sucessivas que são características destes
territórios.

6
1.
O QUE SIGNIFICARIA
URBANIZAR
UMA FAVELA? (A IDEIA)
1.
O QUE SIGNIFICARIA URBANIZAR
UMA FAVELA? (a ideia)

Nas cidades do Sul Global5, as relações estreitas entre Estado e Mercado exercem forças que
interferem na valorização especulativa da terra urbana resultando na exclusão socioespacial,
na manutenção do estigma territorial e no crescimento da dita informalidade urbana, a qual
é mantida às margens do sistema jurídico estatal (SANTOS, 1980), do planejamento urbano,
que corrobora para a produção do “não-planejado e o não-planejável”6 (ROY, 2005, p. 156,
tradução nossa), da legislação urbana num quadro de negligência urbanística (BARANDIER,
2015), do mercado formal e de financiamento da habitação (ABRAMO, 2007; ROLNIK, 2016), e
em estado de transitoriedade permanente (ROLNIK, 2016). É a presença perversa do Estado
na dita informalidade urbana e no estado de exceção que ela incorpora (ROY, 2005; ROLNIK,
2016) e não ausência do Estado, como muitos autores defendem.
Vários autores contestam a visão da informalidade urbana pela precariedade (RAO, 2012;
ROY, 2005; SILVA, 2009) e propõem uma redefinição mais ampla e positiva dos assentamentos
informais que leve em conta a complexidade e diversidade destes territórios na cidade contem-
porânea. Afinal, ao considerar a favela7 como informal, o Estado nega os atributos reais daquele
espaço, impondo uma definição a partir do que ele não tem em relação à “arquitetura formal” das
outras áreas da cidade. Em outras palavras, ao caracterizar a favela como “não-plane­jada”, tanto o
Estado se exime de suas responsabilidades, uma vez que ao refutar as potências próprias daquele
espaço, na verdade o toma como “não-planejável”, perpetuando a ausência de direitos básicos
que constituem seu dever de atuação (ROY, 2005). Trata-se de um posicionamento urbanístico
8 obsoleto, pois entender a favela pelo seu potencial é fundamental para reverter o paradigma de
anormalidade e de informalidade que exclui suas populações e estes territórios da cidade.

5. Os conceitos de Sul Global e Norte Global foram explicados na Introdução. Como vimos na referida seção, a adoção
destes termos na pesquisa se refere ao poder econômico que tem suas origens no antônimo colonizadores–colonizados,
relação de assujeitamento que se inicia no Brasil-colônia.
6. A autora usa os termos “unplanned and unplannable”, este último também inexistente em inglês, idioma original do texto.
7. Favela é uma denominação dada na cidade do Rio de Janeiro a um tipo específico de assentamento urbano humano
informal, similar a outros existentes nas grandes cidades brasileiras, porém denominados por outros termos locais (vilas,
invasões, baixadas, mocambos etc.), como também ocorre em outras cidades do mundo (slums, bidonvilles, quebra-
das, comunas, shanty town etc.). São assentamentos habitacionais que se formaram geralmente de modo espontâneo
(NOTA: Espontâneo é utilizado aqui a partir do conceito proposto por Rapoport (apud BUENO, 2000), quanto à natureza
do espaço construído), com a ocupação irregular de solo, urbanística e edilícia – sem a observância das normas e padrões
de uso e ocupação do solo oficiais, e que muitas vezes estão sujeitas à precariedade de serviços e de infraestrutura, além
de riscos. Nesta pesquisa, estamos adotando o termo favela para denominar os assentamentos informais brasileiros com
características similares às favelas do Rio de Janeiro e que eram objeto dos programas públicos de urbanização dentro
da política habitacional nacional vigente até 2018.
A adoção do planejamento modernista como modelo, que pressupõe “o controle total e
o projeto de todos os sistemas urbanos e industriais pelo interesse do Estado ou comercial
[...], se revelou impossível em escala global ou mesmo na escala da metrópole” (RAO, 2012, p.
672, tradução nossa). No Sul Global, a situação atual de informalidade não vem apenas deste
modelo adotado, mas da atuação de um planejamento de mercado. Como resultado, grande
parte do ambiente construído hoje no mundo cresceu de modo informal, ou seja, fora dos
padrões e das normas do Estado, a priori sem planejamento e sem arquiteto e urbanista.
Os dados mais recentes da UN-Habitat estimam que, em 2015, cerca de 880 milhões de pes-
soas já viviam em assentamentos informais (slums8), aproximadamente 25% da população do
planeta, e esse número só tende a crescer9 (UN-HABITAT, 2016).
A UN-Habitat afirma que os assentamentos informais e a pobreza urbana não são apenas
manifestações de explosão demográfica e forças da globalização, mas devem ser encarados
“como resultado de uma falha nas políticas, leis e sistemas de provisão habitacional, bem
como das políticas nacionais e urbanas.” (UN-HABITAT, 2010, p. 4, tradução nossa). Apesar das
melhorias urbanas e ambientais alcançadas, inclusive em assentamentos informais, desde a
primeira conferência em Assentamentos Humanos em 1976, a Nova Agenda Urbana, docu-
mento resultante da Conferência Habitat-III que aconteceu em Quito, em 2016, reconhece
que ainda persistem múltiplas formas de pobreza, o crescimento das desigualdades e a de-
gradação ambiental, e que a exclusão econômico-social e a segregação espacial constituem
uma “realidade irrefutável nas cidades e nos assentamentos humanos” (UN-HABITAT, 2017,
p. 3, tradução nossa). Ademais, há o reconhecimento de que os assentamentos informais e a
pobreza afetam tanto os países em desenvolvimento como os países desenvolvidos, e que:

a organização espacial, a acessibilidade e o desenho10 do espaço urbano, bem


como a infraestrutura e a prestação de serviços básicos, juntamente com as
9 políticas de desenvolvimento, podem promover ou prejudicar a coesão social,
a igualdade e a inclusão. (UN-HABITAT, 2017, p. 11, tradução nossa).

8. A UN-Habitat passou a adotar, a partir de 2002, o termo operacional slums para caracterizar o vasto universo de assen-
tamentos humanos informais no planeta, cujos critérios eram: serviços básicos inadequados, habitação inadequada ou
ilegal, superpopulação ou alta densidade, baixas condições de moradia ou em risco, assentamento irregular ou informal
sem a posse da terra, pobreza e exclusão social, e área mínima de ocupação. Após revisão em 2008, slums passou a ser
definido pela ausência de pelo menos quatro dos cinco conceitos: acesso à água potável, acesso ao saneamento básico,
durabilidade da habitação, área suficiente de habitação e segurança na posse da terra (UN-Habitat, 2010). Este é um
termo criticado, pois além do cunho negativo que carrega, seria uma abstração incapaz de representar a diversidade de
tipos de assentamentos humanos informais no planeta (MAYNE, 2017).
9. Segundo UN-Habitat, até 2030, 6 entre 10 habitantes do planeta viverão em áreas urbanas. A expectativa é de que 90%
deste crescimento urbano ocorra na África, na Ásia, na América Latina e no Caribe. Na Ásia e na África Subsaariana, a
expectativa é ainda mais dramática: o incremento de população em assentamentos informais deve dobrar nestas regiões
até 2030 (ONU, 2016).
10. O termo utilizado em inglês é design, que tem um conceito mais amplo de concepção de projeto e desenho urbano
do que o termo desenho em português.
As políticas públicas de urbanização de favelas a partir dos anos 1980/1990 passaram a
adotar ações que reforçam a ideia de território permanente a ser definitivamente inserido
na gestão urbana, mas vendendo a imagem de que vão transformar a favela em um “bairro
bonito e seguro”, pressupondo-se que esta seja “feia e suja” (PIZARRO, 2014, p. 268).
Por todos estes motivos, discutimos o termo informalidade, visto que este coloca o for-
mal como parâmetro a ser atingido, considerando o que está fora de seus padrões como
algo a ser combatido e enquadrado pelo Estado. O termo informal surgiu na área de Econo-
mia, quando Hart (1973) estudava as taxas de desemprego em Gana e percebeu que, embora
os dados apontassem que grande parte da população estava desempregada, e então consi-
derada inativa, isso não refletia a realidade. Hart identificou que grande parte da população
de Gana, na verdade, era produtiva e estava vinculada a atividades precárias de baixa pro-
dutividade fora das regras do mercado, como uma massa excedente (surplus) à economia
formal. Embora informais, estas atividades eram consideradas legítimas em Gana, ou seja,
atividades que estão dentro do que é considerado respeitável pela moralidade de Gana, que
não beiram a criminalidade, mas que estão às margens do emprego formal.
O termo informal, e o dualismo formal x informal, foi adotado por outras áreas do conheci-
mento e sendo cada vez mais associado a irregular. A questão da produtividade foi-se perdendo ao
longo do tempo, e a partir dos anos 1970, informal também começou a ser adotado no debate habi-
tacional, visando a substituição do termo pejorativo invasões (squatter settlements) (VARLEY, 2013).
No campo da arquitetura e do urbanismo, o termo informal foi associado a con-
figurações espaciais não condizentes com as formas esperadas e desejadas na cida-
de moderna definidas por padrões edilícios e urbanísticos oficiais da cidade dita formal.
Observamos que estar fora dos padrões não deveria significar que sejam formas urbanas ina-
propriadas por não se encaixarem no que é considerado formal, como o termo subentende.
A nosso ver, estes padrões precisariam ser revistos de modo a considerar e englobar as
10 favelas como territórios integrantes das cidades do Sul Global. Por isso, defendemos que
os territórios ditos informais, como as favelas, muito além da precariedade e informalidade
urbanas, representam uma oportunidade para a diversidade nas cidades (SILVA, 2014), com
valor estético e paisagístico (BUENO, 2000), ricos em interstícios urbanos (PIZARRO, 2017)
e onde estão emergindo novas estratégias de governança (CHATTERJEE; APPADURAI apud
RAO, 2012), com atores influentes que não podem ser menosprezados no processo de trans-
formações urbanas no território em que habitam. Utilizaremos aqui o termo informal(idade)
apenas para a identificação do tipo de assentamento humano ao qual estamos nos referindo,
pontuando que o consideramos não como anomalia por estar fora das conformidades de um
padrão, que brota independente e autônomo, mas como um território com especificidades
próprias e que é parte integrante do projeto que fabrica11 as cidades do Sul Global.

11. Adotamos o termo fabricar a cidade, em tradução direta do conceito francês “fabriquer la ville”, que carrega um sentido amplo com
a tripla dimensão material, social e temporal, cujo “processo pelo qual a interação entre sociedade urbana e cidade, na sua realidade
material, espaço e territórios, produz um urbano específico em transformação contínua.” (NOIZET, 2013, p. 389, tradução nossa).
Ao contrário do que ocorre no Mercado formal ou nas expansões urbanas conduzidas
pelo Estado, em que a infraestrutura tende a preceder à ocupação, nestes casos a última
é que precede a primeira. As favelas foram construídas deste modo: primeiro a ocupação,
depois a infraestrutura, e em grande parte pelo esforço dos moradores, muitas vezes sem
definição prévia do arruamento e dos espaços coletivos. Este processo de ocupação ge-
rou características particulares a estes territórios, que variam dependendo de sua inser-
ção urbana, dos agentes na ocupação, de sua formação e identidade. Há diferentes modos,
tempos e dinâmicas de ocupação que geraram, e continuam gerando, morfologias distintas
e diferentes tipos de consolidação. As favelas são diferentes entre si. No entanto, há de-
terminados tipos de padrão que permitem a caracterização destes assentamentos, como
veremos mais adiante.
A implementação de políticas públicas de urbanização de favelas, a partir dos anos
1990, vem tentando dirimir os conflitos urbanísticos e de riscos, e a precariedade, através
de intervenções físicas baseadas em Projetos Urbanos e de Infraestrutura que devem ser
aprovados pelos órgãos competentes, e por isso devem, em princípio, estar enquadrados
dentro de padrões e normas vigentes12. Gonçalves (2013) critica o termo urbanização da
favela13, visto que a favela, por definição, sempre foi um território urbano e já tinha, in-
clusive, certo grau de urbanização quando estas políticas começaram a atuar, como vere-
mos a seguir. Pizarro (2014) defende sua substituição pelo termo Requalificação Urbana,
“já empregado para demais situações urbanas e com menor grau de subjugação” (PIZAR-
RO, 2014, p. 269). Esta colocação é importante por tentar polemizar com as definições fre-
quentes do território favelado imbricadas às ideias de carência e ausência (in-formalidade,
ir-regularidade etc.) com o intuito de formular definições que entendam a favela como
outra realidade, outra forma peculiar de construir cidade. Urbanizar uma favela passou
a significar a requalificação do lugar que obrigatoriamente está atrelada à requalificação
11 de suas múltiplas articulações com o contexto e com o restante da cidade (FIORI, 2014).
No entanto, compreendemos que urbanização de favelas, pelo fato de ser o termo oficial
brasileiro, ficou consagrado como bandeira popular de luta por políticas públicas com esta
abordagem e sua dimensão política não pode ser ignorada. Por isso, utilizaremos este ter-
mo urbanização de favelas, pontuando que sua revisão deve ser no campo político e com
os diferentes atores envolvidos no processo.
Do ponto de vista das políticas públicas de urbanização, as favelas urbanizáveis precisam
de melhorias urbanas que incluem tratar acessibilidade e conectividade com o entorno pró-
ximo, com outras áreas da cidade através da mobilidade, dar qualidade aos espaços coletivos,

12. Devido à impossibilidade, na maioria das vezes, de se atender aos padrões vigentes, para viabilizar as intervenções
públicas são negociadas caso a caso as tolerâncias e padrões diferenciados: “Esses ambientes exigem parâmetros e
eventualmente ‘formatos’ de serviços diferenciados” (BUENO, 2000, p. 270).
13. O termo em inglês é slum upgrading, que poderia ter sido melhor traduzido para o português como atualização da favela.
prover de equipamentos e serviços públicos, implementar saneamento, coleta de lixo e tratar
as áreas sujeitas a riscos; e através da promoção da qualidade de vida urbana nestes territórios,
enfim, trazer benefícios sociais a seus habitantes. O projeto urbano em favelas é dire-
cionado por estas políticas a trazer soluções para estes temas, identificando-se assim o
problema do projeto. A partir da urbanização, a favela seria incluída no sistema de gestão
pública com os mesmos princípios que regem a cidade formal, incorporando-a à lógica
regulatória do Estado de modo a interromper e substituir a lógica da favela que opera
estes territórios.
Para os moradores de favelas, por seu turno, o processo de urbanização implementa-
do pelo Estado traz as melhorias urbanas, que geralmente são bem-vindas. No entanto,
o controle urbano e a regularização que o Estado tenta implementar após a urbanização são
construídos a partir de regras e leis que não observam nem aceitam a lógica da favela, o que
muitas vezes gera conflitos entre os interesses do Estado e os da população local.
Neste Capítulo, trataremos do processo de construção das favelas, que determinou
características físicas particulares a estes territórios, que são objeto de ação pelas políti-
cas de urba­nização. Este mesmo processo, a nosso ver, determinou também o que chama-
mos de lógica da favela, que, mesmo intrínseca a estes territórios, não é considerada pelas
políticas de urbanização. Do mesmo modo, mostraremos como as favelas são reconhe-
cidas pelo Estado, que constrói e implementa os programas públicos para urbanizá-las e
incorporá-las à sua própria lógica regulatória. Finalmente, discutiremos o papel do projeto
neste processo, que é direcionado por estes programas a resolver o ambiente físico da
favela. Nosso objetivo é compreender como e por que se dá a lógica da favela e como as
políticas públicas de urbanização, que visam incorporar as favelas à lógica regulatória do
Estado, e o projeto, lidam com esta lógica.

12
1.1.
A Lógica da Favela

Nesta seção, discorreremos sobre o processo de construção das favelas e como este gerou
dinâmicas e espaços próprios à favela. Mostraremos como o Estado esteve presente e como
seu modo de tratar as favelas influenciou para o surgimento destas dinâmicas e de novos
atores urbanos que operam estes territórios e que determinam a lógica da favela.

1.1.1. A favela: a dimensão legal e simbólica


As descrições oficiais brasileiras se detêm a caracterizar a favela através de questões fundiárias,
urbanas e físicas, definindo-a como um lugar da precariedade, de ilegalidade, temporário,
como um fenômeno passageiro que deveria ser removido ou transformado em bairro den-
tro do modelo vigente de cidade formal. Claramente, a favela não é mais passageira, uma
vez que já ultrapassa os 100 anos de existência no Rio de Janeiro. Segundo dados oficiais
(IBGE, 2010), cerca de 11,5 milhões de brasileiros viviam em favelas, o que correspondia a
7,1% do total da população urbana do país. Se tomarmos como escopo de análise as gran-
des regiões metropolitanas e cidades do país, este percentual gira em torno dos 20%. De
acordo com os dados modelados pela UN-HABITAT (2015)14, em 2014 o Brasil ocuparia a
68ª posição entre 96 países que possuem mais populações urbanas vivendo em favelas15.
Embora o quadro brasileiro não seja tão grave quanto vários países africanos, onde cerca
de 80% a 90% da população urbana vive em favelas, e independentemente de que dados
sejam mais precisos, as favelas merecem forte atenção e investimentos, pois, no mínimo,
como ordem de grandeza, a população residente em favelas no Brasil é maior do que o
total de habitantes em Portugal.
As favelas são consideradas ocupações ilegais pelo direito brasileiro quanto à proprie-
dade da terra. No entanto, parte significativa das ocupações de favelas do Rio de Janeiro
foi autorizada e controlada pelo proprietário das terras numa modalidade conhecida como
aluguel de chão (SILVA, 2005, p. 100), na qual se permite a construção em troca de dinheiro,
mas sem a concessão da propriedade do pedaço de terra que era ocupado. O cunho de
invasão não pode ser aplicado nesta situação. É irregular a permissão do proprietário, pois
esta ocupação consentida ocorria, e ainda ocorre, em áreas não passíveis de ocupação pela
legislação urbana e/ou ambiental. O proprietário geralmente se aproveita destas áreas, dos
trechos desvalorizados ou não visíveis, como os fundos de terreno, para renda. Claro, isso
é irregular. Os “inquilinos” ocupantes não recebem o título de propriedade pelo pedaço de
terra que ocupam, e os “proprietários” também são irregulares. Em outras situações, nem
mesmo existe este proprietário irregular, mas na realidade grileiros que ocupam uma grande
gleba e depois a alugam para barracos. Em outras palavras, algumas terras, que depois se
transformaram em favelas, também foram exploradas através do já citado “aluguel de chão”
13 por pessoas que se diziam proprietárias e que lucravam com aluguel de terras alheias, fato
que origina, por exemplo, o Morro do Borel (GOMES, 1980, p. 6-14). Trata-se de um esquema
de “concessão” ilegal que desencadeia um negócio lucrativo que passa de mão em mão, nos
moldes que operam hoje as milícias.

14. Dados disponíveis em: https://millenniumindicators.un.org/unsd/mdg/SeriesDetail.aspx?srid=710 / Fonte: UN HABITAT,


extraído de: “the United Nation’s Millennium Development Goals database”, disponível em: http://mdgs.un.org
15. Há grande discrepância entre as estimativas da UN-HABITAT e os dados apresentados pelo IBGE sobre a população
em favelas no Brasil. A UN-HABITAT observa, além dos dados oficiais do país, os dados de publicações internacionais e
os seguintes critérios: o acesso à água, o acesso ao saneamento, o adensamento domiciliar, a qualidade da moradia e a
segurança da posse da moradia. Já o IBGE considera os dados do censo demográfico relativo aos aglomerados subnormais.
No entanto, este número é questionável pela Fundação João Pinheiro, instituição de referência sobre o déficit habitacio-
nal brasileiro. “É de amplo conhecimento que o número identificado de domicílios nessas áreas, que segundo definição
do IBGE se aproxima do conceito de favelas, é pouco representativo.” (FJP, 2006, p. 30). De todo modo, este ranking
mundial apresentado pela UN-HABITAT é fundamental de ser observado, visto ser um instrumento importante para a
tomada de decisão das agências internacionais sobre investimentos e países prioritários.
Há ainda casos em que a ocupação ocorre em terras que apresentam algum grau de
incerteza quanto a sua propriedade, o que leva a que ela seja gradualmente ocupada, ou em
terras públicas, que geralmente estão sem uso determinado ou sem função social. Constrói-
-se um barraco aqui, outro ali, esperando ver se alguém aparece para reclamar ou proteger
a propriedade da ocupação indevida. Daí surge a ilegalidade fundiária, que é um aspecto que
exclui as favelas e sua população do âmbito do Direito.
Pelo fato de estarem infringindo a lei neste âmbito, suas populações também são consideradas
ilegais, como se “a legalidade da posse da terra se repercutisse sobre todas as outras relações so-
ciais” ligando “o status de ilegalidade com a própria condição humana dos habitantes de Pasárgada”
(SANTOS, 1981, p. 114). É o que Santos denomina ilegalidade existencial (SANTOS, 1980 apud MAGA-
LHÃES, 2010, p. 51), relacionada à “ilegalidade coletiva da habitação à luz do direito oficial brasileiro.
Esta ilegalidade coletiva condiciona de modo estrutural o relacionamento da comunidade enquan-
to tal com o aparelho jurídico-político do Estado brasileiro” (SANTOS, 1981, p. 110), pois se transporta
para as relações sociais e para a própria existência dos favelados. Nas favelas, o direito à vida, à
liberdade, à propriedade, que garantem, entre outros, o direito de ir e vir, e a inviolabilidade do
lar, são permanentemente desrespeitados pela ação de forças policiais e de agentes do Estado
que insistem em considerar estes territórios como governados por outras leis que não as apli-
cadas no resto da cidade. Por isso, na favela, a confiança nas instituições públicas está abalada.
A ilegalidade, a instabilidade e a temporariedade destes assentamentos muitas vezes
são exploradas politicamente, o que fragiliza seus moradores. Benefícios concedidos por
governos e políticos podem ser revogados a qualquer momento, pois não legalizar as favelas
mantém suas populações fora do mercado formal e do Direito, além de gerar um estado de
suspensão temporário. Em inúmeros casos, o próprio Estado já constrói irregularmente ou
não oficializa as intervenções públicas (ROLNIK, 2016).
Embora seja um senso comum que nas favelas não há regras, Santos (1981, p. 110) demonstra
14 que nestes territórios foram criados “mecanismos jurídicos informais e não oficiais destinados a
garantir o mínimo de segurança e de estabilidade das relações sociais centradas na terra e na ha-
bitação”, para suprir a ilegalidade coletiva perante o Estado e para prevenir e resolver conflitos.
Estes sistemas próprios foram criados internamente nas favelas a partir da necessidade de se ter
regras, já que o Estado é omisso em inúmeros aspectos. Nas favelas há um pluralismo jurídico
(SANTOS, 1981), com regras e mediadores próprios, convencionados e aceitos por aquele grupo
social específico a cada favela, e com relativa autonomia territorial, além da ordem jurídica oficial.
Estes “mecanismos jurídicos informais e não oficiais” passaram a ser considerados por
órgãos oficiais, como, por exemplo, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e
a Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ). Dados do Censo do IBGE de 2010 registram
que, no Rio de Janeiro, “76% dos domicílios em favela são próprios” (IPP, 2013). Neste caso,
não é a posse da terra que é considerada como a propriedade, mas a edificação – com as
opções “alugada” ou “própria” – cuja comprovação de “propriedade” é a autodeclaração,
para efeitos de dados. Nas obras públicas em favelas, em casos de remoção, as Prefeituras
negociam as indenizações16 do patrimônio construído com quem apresente documentação
lavrada por mecanismos jurídicos informais e não oficiais para o Direito brasileiro como, por
exemplo, documentos emitidos por Associações de Moradores. Esta metodologia foi ado-
tada nas políticas públicas de urbanização de favelas em todo o Brasil.
Este pluralismo jurídico gera outra dinâmica nos territórios favelados, onde os acordos
são fechados com muito mais agilidade do que no sistema jurídico brasileiro. Nas favelas,
os conflitos são rapidamente resolvidos, seja de forma consensual – dentro dos mecanis-
mos jurídicos informais e não oficiais, ou de forma violenta. É inegável que esta agilidade
gera uma dinâmica própria de ocupação, de crescimento e do cotidiano nas favelas. É mais
ágil comprar, construir, vender, alugar, abrir ou fechar comércio, fazer festas e se apropriar
das áreas coletivas. Desde que dentro das regras estabelecidas e através dos mediadores e
agentes reconhecidos no território, ou através da força. Mas, ao mesmo tempo, este sis-
tema pode ser frágil e perverso, pois os moradores das favelas ficam vulneráveis, expostos
a regras ou decisões que muitas vezes são dadas por grupos que controlam o território
através da violência e que a qualquer momento podem alterá-las, como verdadeiros tiranos
(SOARES, 2000). Silva (2012, p. 10) afirma que o Estado não regula, nem organiza a vida na
favela, deixando espaço para outros grupos que ditam suas próprias regras:

Esse controle é realizado pelos grupos criminosos autocráticos, que negociam


sua legitimidade através da segurança. Se o comércio fechar porque um tra-
ficante morreu, não adianta a polícia dar ordem para reabrir, que não vai ser
obedecida. Por outro lado, a segurança patrimonial na favela é muito maior que
no resto da cidade. Na Maré, eu nunca tive bens roubados.

Há vários interesses na favela como mercado, tanto o formal como o informal, além do
15 controle do território para enriquecimento ilícito. De um lado, as instituições capitalistas,
que chegam nas favelas “por trás” das melhorias urbanas:

O que importava para ele era chegarem essas coisas: ‘agora a favela tem digni-
dade, agora tem Embratel, agora tem Sky, agora tem banco.’ Ele era secretário e
vinha apresentar o outro que seria candidato a vereador.... se a gente não pensar
nessas relações de poder, pra mim parece ingênuo demais só ficar discutindo uma
estrutura macro [...]. A favela é vendida como um mercado. (informação verbal)17

16. Há três modalidades de negociação para efeitos de compensação pela casa a ser demolida: troca por uma nova
moradia construída pelo Estado ou órgão público responsável pelas obras de urbanização da favela; compra assistida
de uma outra moradia existente na favela; ou pagamento em dinheiro de valor compensatório pelo bem edificado, sem
inclusão do valor da terra.
17. Entrevista concedida por “D.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
Estas políticas de melhorias urbanas implementadas pelo poder público, sem dúvida,
trazem benefícios para os moradores, mas ao mesmo tempo abrem espaço para interes-
ses nos favelados como consumidores. O fato é que, desde seu surgimento até os dias
de hoje, as favelas e suas populações mudaram e a miséria não é mais uma característi-
ca geral (VALLADARES, 2005; IPP, 2013). Quanto mais bem localizada a favela na cidade,
menos miseráveis ela terá, pois é preciso recursos para nela se manter. Ao mesmo tempo,
a favela não é só lugar de subsistência, mas também território para investimento, espe-
culação imobiliária, para o comércio num sistema capitalista reproduzido, mas ainda com
uma grande vantagem: sem taxas e impostos18. Este sistema também abriu caminhos para
a entrada do poder paralelo, que atualmente controla a economia em grande parte das
favelas. Em pesquisa sobre as atividades do narcotráfico do Complexo do Alemão, o respon-
sável pelo serviço de inteligência da polícia relatou sua surpresa ao identificar a amplitude
do ramo de negócios deste grupo.

Um dos processos de gestão desenvolvidos que mais chamaram a minha atenção


foi a diversificação das fontes de rendimento do narcotráfico. Distribuição de
gás, água, TV a cabo e transporte (mototáxi, van e kombi) costuma ser mono-­
pólio dos donos do morro. Quando isso não ocorre, quem explora estes serviços
legalmente paga taxas periodicamente para que seus negócios possam funcionar.
Logicamente, a cobrança é compulsória. Lembro-me de que fizemos umas ex-
periências e solicitamos a empresas de fora entregas desses serviços no interior
e todos nos disseram que estavam proibidos de desenvolver atividades na área.
(MONTENEGRO, 2015) 19

Não apenas o tráfico de drogas, mas outros grupos paraestatais também exploram um
16 mercado lucrativo de dominação econômica.20 Atendendo à demanda reprimida por mobi-
lidade interna às favelas, visto que raros são os transportes públicos que penetram nesses
territórios, surgiu a partir dos anos 1990 um sistema privado de transportes alternativos,
alheio ao sistema oficial da cidade, com pontos nas bordas das favelas, feito por vans e kom-
bis, com trajeto definido, e mototáxis que passam até por becos, se necessário, para chegar
ao destino do cliente. Cada favela tem seu sistema, que começou a ser operacionalizado por

18. Pelo menos, os cobrados pelo Estado.


19. A fonte, embora seja controversa, traz dados sobre a pesquisa desenvolvida pelo serviço de inteligência do Exército
ao longo do processo de pacificação no Complexo do Alemão.
20. No âmbito desta dominação econômica, alguns dados sobre as favelas do Rio de Janeiro estão sendo levantados em
pesquisa desenvolvida pelo Observatório de Favelas, que ainda não foi publicada. Nesta pesquisa, está sendo verificado
que a venda de drogas não é a atividade mais lucrativa dos grupos reconhecidos como narcotraficantes, mas, dentre
outras, a venda de gás e o mercado imobiliário, já que a construção e aluguel de moradias e pontos comerciais são uma
das principais fontes de renda dos traficantes e milicianos.
pequenos empreendedores locais e posteriormente se organizou através de cooperativas21.
O que seria inicialmente uma ideia criativa e alternativa à falta de transportes oficiais, com
o tempo virou um negócio lucrativo explorado nas favelas22. Parte destes sistemas de trans-
portes foi sendo cooptada por grupos (milícias e facções) que controlam o território, assim
como outras atividades lucrativas.
Ex-Secretário municipal de habitação do Rio de Janeiro, Sérgio Magalhães identifica
nesta dominação recente um agravante do quadro que enfrentou durante o Programa
Favela Bairro.

É a dominação! [...] Grande parte da informalidade está sob dominação tam-


bém, só que não é sob a dominação constitucional, do Estado, mas sob a do-
minação dessas forças de outros atores. Então, acho que é esse o panorama
central e esse é o panorama brutal da situação dos bairros populares do Rio
de Janeiro e de muitas cidades brasileiras. Acho que é sob esse foco que uma
revisão dos programas de urbanização precisa ser considerada. (informação
verbal) 23

Embora o Estado atue publicamente como se enfrentasse o poder paralelo que controla
as favelas, negociações ocultas são necessárias para que as obras possam acontecer. Tais
negociações são feitas por quem está à frente das obras. Esta, que é uma prática necessá-
ria para que os investimentos públicos se concretizem em favelas controladas por grupos
criminosos, infelizmente representa o lado mais perverso de uma lógica dominante que é,
na verdade, do próprio Estado, o qual mantém a farsa de combate ao narcotráfico, e mais
recentemente à milícia, enquanto acordos desta ordem são construídos fora da esfera pú-
blica. Neste jogo, os moradores de favelas acabam por não ter a quem recorrer. Quando
17 a ordem vem de cima, “a gente tem que obedecer, né? Temos que olhar e ficar quietos...”
(informação verbal)24
Na literatura sobre as favelas cariocas, estas são consideradas como um “espaço absoluta-
mente específico e singular”25 (VALLADARES, 2005), por terem tido uma ocupação e crescimento
diferentes dos demais bairros. No entanto, o universo das favelas brasileiras é bastante diverso em

21. Para a regularização do serviço de vans e kombis, a prefeitura exigiu a criação de cooperativas que seriam as respon-
sáveis e autorizadas a operacionalizar este tipo de transporte. A partir de 2009, apenas as vans legalizadas foram inseridas
no Bilhete Único, conforme Lei 5628/2009. Fonte: https://gov-rj.jusbrasil.com.br/legislacao/820940/lei-5628-09).
22. O valor da passagem de vans e mototáxi em favelas geralmente equivale ou é muito próximo ao de uma passagem
de ônibus no restante da cidade, mesmo o trajeto sendo curto se comparado com a outra modalidade. Logo, é um trans-
porte considerado caro e nem todos podem utilizar, pois não atende a idosos e crianças acompanhadas.
23. Entrevista concedida a esta pesquisa, em dezembro de 2018.
24. Entrevista concedida por “B.”, morador do Morro do Alemão, a esta pesquisa, em fevereiro de 2019.
25. Um dos três consensos dogmáticos identificados por Valladares (2005) na literatura sobre as favelas cariocas.
termos de paisagem urbana, topografia, dimensão26, morfologia e inserção urbana – em morros,
baixadas ou vales, em margens de rios, de mananciais ou linhas de trem, visíveis na paisagem ou
escondidas, assentamentos densos ou esparsos, longilíneos, verticalizados ou expandidos (BUENO,
2000). Toda essa gama de situações das favelas pode variar de cidade para cidade e dentro da mes-
ma cidade. Apesar de toda essa variedade, é a favela da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro – em
morro e com grande visibilidade na paisagem, enclausurada entre edifícios e floresta – que ainda
persiste no imaginário mundial do que seria a representação da favela brasileira.
A informalidade urbanística foi um fator que ajudou a gerar um ambiente urbano diferen-
ciado. De fato, o modo de ocupação, fora das normas e dos padrões urbanísticos, gerou cara-
terísticas, estéticas e padrões particulares às favelas, identificando-as como território distinto
na cidade. No entanto, esta é uma afirmação que, observamos, deve ser considerada parti-
cular às favelas em áreas centrais das cidades, onde o contraste morfológico com os bairros
do entorno é notável. Nas periferias das cidades brasileiras, este contraste é praticamente
inexistente. Formado por bairros e loteamentos populares, e por favelas, o conjunto urbano
da periferia das cidades brasileiras mais parece um “contínuo aglomerado de casas de alvena-
ria sem revestimento” e sem “nenhuma praça ou área verde que quebre a monotonia visual”
(BUENO, 2000, p. 281), pois o formal e o informal mal se distinguem entre si e suas fronteiras
são imperceptíveis. Nas periferias, as favelas começaram a se formar seguindo uma estrutura
semelhante aos loteamentos do entorno, e a irregularidade ficou por conta da posse da terra,
do tamanho do lote mínimo inferior ao permitido, e dos parâmetros urbanísticos adotados.
Com o tempo, estas favelas foram se adensando e é neste aspecto que muitas vezes se perce-
be sutilmente uma diferença entre favela e entorno formal. Na Zona Oeste do Rio de Janeiro, as
favelas que passaram por urbanização acabaram por se tornar territórios privilegiados em relação
ao entorno, que, apesar de formal e por isso não considerado favela, era e continuou precário
em termos de infraestrutura e de equipamentos e serviços urbanos. Na Grande São Paulo, uma
18 característica principal foi a formação de favelas nas áreas dos loteamentos que eram destinadas
a espaços públicos e áreas verdes para proteção de margens de rios e de mananciais, e que, geral-
mente, estavam localizadas aos fundos destes loteamentos, sem visibilidade na paisagem urbana.
Há muito se discute soluções, no processo de urbanização de favelas, para os limites
delas. Magalhães (2004, p. 125) afirma que para a transformação da favela em bairro, o que
era o mote do Programa Favela Bairro, é importante diluir as “fronteiras materiais” e as
“fronteiras simbólicas entre favela e bairro, isto é, modificar a percepção que se faça da
favela como anticidade”. No projeto urbano, as diretrizes materiais passam por “melhorar
as condições de acesso no interior da favela”, “ampliar as possibilidades de interligação”

26. Em termos de dimensão, não há área mínima de assentamento para ser considerado favela. No entanto, o assenta-
mento precisa ter mais de 51 domicílios. Por exemplo, um conjunto de 20 domicílios precários não é considerado favela
para os órgãos oficiais brasileiros.
com o entorno e “melhorar a definição dos espaços públicos”. Mas é no “reconhecimento
das preexistências ambientais e culturais do lugar” e “a preservação dos valores e espaços
reconhecidos pela comunidade”, que se inicia a “diluição das fronteiras simbólicas” (Idem).
Nas fronteiras das favelas com a cidade dita como formal, há vários aspectos que depen-
dem de sua inserção urbana, do grau de desigualdades entre o assentamento e o entorno,
da natureza do entorno etc. Lobosco (2012, p. 19) nos mostra que estas fronteiras vão além
do físico, pois o contato e proximidade “podem se organizar através de diversas possibili-
dades, incluindo relações de alcance físico, visual, social ou simbólico, nas quais cada uma
delas parece produzir um resultado distinto na produção do espaço urbano”. A proximidade
entre favela e entorno gera diferentes influências nos dois territórios. O trecho da favela
com maior acessibilidade, perto do bairro formal, do transporte e das facilidades urbanas,
geralmente é a área mais valorizada em relação ao resto da favela. Já no entorno, esta proxi-
midade, que pode ser física ou apenas visual, gera desvalorização dos imóveis: o barulho e a
sujeira associados à informalidade, assim como a violência do narcotráfico que produz zonas
de risco de bala perdida, são fatores geradores desta desvalorização e até do abandono dos
imóveis do entorno. Lobosco (2012) classifica estas áreas de influência simbólicas da favela,
que não estão demarcadas em nenhum mapa das cidades, como: Linha de Contato Visual,
Área de Acesso, Visibilidade direta da Rua. Estas três categorias, afirmamos, não acontecem
em todas as favelas, pois dependem de sua inserção urbana.

Figura 1: Linha de Contato Visual entre edifícios


formais e favela da Babilônia, no Leme/RJ.
Fonte intervenção da autora sobre foto
de Tales Lobosco de 2011.

19
Os trechos de acesso no entorno formal sofrem influência de expressões da informa-
lidade ligadas às favelas, como o comércio ambulante ocupando as ruas, estacionamento
irregular nas calçadas, música alta, pontos de mototáxi etc., como se o controle urbano pa-
rasse de existir na área formal próxima à favela. Este processo se agrava quando os acessos
contam com a presença do tráfico de drogas armado, que intimida o acesso à favela e leva
insegurança à zona de fronteira. A abertura de novos acessos pode significar novo lugar de
troca e de convívio entre os dois territórios, mas ao mesmo tempo pode ter efeito perverso
ao desejado pela intervenção urbana. Em várias favelas, novos acessos foram abertos com
o processo de urbanização e, imediatamente após o término das obras, o tráfico de drogas
apropriou-se dos pontos, transmutando-os em novos postos avançados de controle do ter-
ritório e de venda de drogas.

20

Figura 2 Rua Saint Roman, em Copacabana, com as


calçadas “ocupadas” informalmente nas proximidades
com as favelas do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho.
Fonte Google Street View/2018.

Essas problemáticas demonstram que melhorias físicas no ambiente da favela e do en-


torno não resolvem questões simbólicas quando o Estado insiste em manter as favelas fora
da gestão urbana e na ilegalidade, permitindo que outros atores operem e controlem estes
territórios.
1.1.2. O lugar da favela na cidade
Os direitos civis, que garantem a existência da sociedade civil e são os direitos fundamen-
tais a vida, como a liberdade, o ir e vir, a igualdade perante a lei etc., demoraram para sair
do papel no Brasil e, ainda assim, não são garantidos a todos.27 Holston (2008) afirma que
está arraigada na sociedade brasileira a ideia de que há diferentes classes de cidadãos – uns
com mais direitos do que os outros. Para uns, como os ricos, influentes e os amigos, tudo é
possível mesmo que através da ilegalidade, mas, para os outros, restam as “desvantagens e
humilhação”, impostas muitas vezes por órgãos oficiais.

Num sistema de direitos de cidadania assim baseado na imunidade de alguns e


na incapacidade de outros, os direitos se tornam relações de privilégio que atuam
sem a obrigatoriedade do dever para com aqueles que não têm o poder de impor
suas reivindicações. Os desprivilegiados não têm direitos e são vulneráveis ao
poder de outros. Os privilegiados vivenciam a cidadania como um poder que os
liberta das reivindicações de outros, deixando-os livres de deveres legais e isen-
tos de responsabilidade legal. Essas relações de privilégio e desprivilégio sinte-
tizam a formulação dominante da cidadania brasileira. (HOLSTON, 2008, p. 258,
tradução nossa).

E é assim, mesmo no cidadão insurgente (HOLSTON, 2008) que confronta esta situação,
mas que ainda está preso ao passado que herdou, que a aceitação de uma diferenciação de
direitos de cidadania perpetua a discriminação e as desigualdades em nossa sociedade. Tudo
isso contribui para a passividade da população favelada diante do desrespeito, das injustiças
e de críticas simultâneas de instituições autorizadas.
A América Latina e, sobretudo, o Brasil são reconhecidos mundialmente pelo alto grau
21 de desigualdade. Przeworski (1999, p. 348) sugere que, em sociedades desiguais, o Estado
“é justamente muito fraco para fazer respeitar a lei de forma universal”. O Estado ainda se

27. Na Inglaterra, por exemplo, primeiro vieram os direitos civis, depois os políticos e finalmente os sociais. Já no Brasil,
a conquista efetiva dos direitos foi lenta e, em muito, ainda incompleta, numa ordem invertida da sequência inglesa. Com
direitos civis e políticos precários, os direitos sociais foram os primeiros a serem efetivamente conquistados através das
leis trabalhistas nos anos 1930, excluindo os autônomos e trabalhadores domésticos que não eram sindicalizados e não
teriam acesso à política de previdência social. Quem trabalhava era considerado cidadão de bem. Aos outros, cabia o
assistencialismo. Os direitos políticos, que foram implementados com a Independência na Constituição de 1824, só re-
sultaram num Estado com democracia representativa, ainda que questionável, muitos anos depois de sua promulgação.
O voto, que sempre foi obrigatório, inicialmente só era destinado aos homens, incluindo os analfabetos, e excluindo as
mulheres e os que não eram considerados cidadãos – os escravizados. Numa sociedade onde a maioria esmagadora era
de analfabetos rurais, distante dos governos nas cidades, o voto “era um ato de obediência forçada ou, na melhor das hi-
póteses, um ato de lealdade e de gratidão” (CARVALHO, 2002, p. 35) aos chefes políticos locais e não o exercício de uma
vida política. Fraudes, troca de favores pelo voto e/ou sua compra são práticas que surgiram com os direitos políticos no
Brasil e que perduram até os dias de hoje, assim como a falta de interesse pela vida política, num sistema que mantém
as classes dominantes no poder.
enfraquece mais ao recorrer ao Capital: trata-se do que Abramo (2007) denomina retorno
do mercado na produção das cidades neoliberais, através da redução do papel regulatório do
Estado transformando o mercado em “principal mecanismo de coordenação da produção
de materialidades urbanas” (ABRAMO, 2007, p. 25) 28, seja via privatização de serviços urba-
nos coletivos ou pela hegemonia da produção residencial e comercial.29
Enquanto a cidade formal é produzida para as elites dentro da lógica do Mercado e do
Estado, a cidade popular ou informal segue a lógica da necessidade (ABRAMO, 2003), a par-
tir de movimentos de ocupação e/ou do surgimento do mercado informal de solo urbano.
Abramo (2007, p. 28) afirma que “estes dois movimentos são uma das principais caracterís-
ticas da formação socioespacial das grandes cidades da América Latina”. Segundo Abramo
(2007), este mercado informal de solo urbano vem crescendo em praticamente todos os
países da América Latina, e sua conjugação é baseada em duas dimensões da informalidade:
a informalidade urbana (urbanística, construtiva, propriedade da terra), e a informalidade
econômica (contratos fora do regulamento das transações mercantis). Essa conjugação, se-
gundo o autor, resultou em vantagens que os assentamentos populares informais têm sobre
o mercado formal, como a liberdade urbanística, construtiva e de ocupação do solo fora
das normas do Estado, as relações comunitárias de bens e serviços através da troca. Estas
externalidades promovem a compactação destes assentamentos, sobretudo os que estão
localizados em áreas centrais e consolidadas das cidades, onde o valor do solo é elevado e
de oferta limitada. Outras externalidades que provocam a verticalização dos assentamentos
informais em áreas centrais são as locacionais30, devido à proximidade de oferta de emprego
e serviços (saúde, educação, lazer, comércio etc.). Ao mesmo tempo, a falta de elasticidade
do mercado informal nestas áreas da cidade, onde a oferta de solo é racionada, gera o au-
mento de preços nos assentamentos informais e consequentes deslocamentos do morador

22

28. O autor entende como materialidades urbanas: Habitação, Equipamentos e Infraestrutura.


29. Guardando as devidas proporções com a realidade do Sul Global, até mesmo Estados fortes e com poder regulador
como o francês vêm cedendo ao Capital. A crítica urbanista destaca o papel protagonista que o Mercado vem ganhan-
do na fabricação das cidades francesas (BOURDIN, 2001; ZETLAOUI-LÉGER, 2002). Concertações públicas estão dando
liberdade programática urbanística ao vencedor da concorrência, o qual passa a assumir o múltiplo papel de investidor,
promotor urbano, criador e até de operador do território urbanizado por um determinado período, sendo responsável
pela manutenção da própria criação e exploração do solo urbanizado. Ora, se a adoção de um ou de outro programa
urbano influencia diretamente no investimento, como deixar este papel decisório a quem tem o lucro como objetivo
principal? Neste processo de concertação pública, a participação da sociedade civil não tem o devido lugar, como se
pode imaginar. A administração pública francesa defende a liberdade programática como oportunidade para dar possibi-
lidade de ineditismo ao projeto que, associado a uma carteira financeira, abre a cidade a inúmeros cenários. No entanto,
esta prática compromete o processo de elaboração das decisões, agora deixado ao privado, e na verdade mascara,
segundo Zetlaoui-Léger (2002, p.17, tradução nossa), uma “ausência de um projeto político e urbano do conjunto no
qual se integra a operação a implementar” cuja origem está na “fraqueza política e técnica do gestores”, sobretudo em
cidades médias da França.
30. Em algumas favelas da cidade do Rio de Janeiro, pode ocorrer que o aluguel de um apartamento na favela tenha valor
próximo ao de um apartamento no mercado formal, mas com as vantagens da informalidade como a falta de necessidade
de comprovação de renda, de fiador, de taxas condominiais etc.
de favelas para áreas periféricas, exploradas para parcelamento de glebas baratas e sem
infraestrutura. Esta lógica determinou, no mínimo, distintas morfologias para os assenta-
mentos informais centrais e nas periferias das cidades.
O mercado informal é atuante nas favelas mesmo depois do processo de urbanização
pelo poder público e potencializado, como veremos no Capítulo 3, seja pelo fato de não
concluir o processo de regularização das favelas ou pela falta de controle do Estado so-
bre o mercado imobiliário. Smolka (2003, p. 119) alerta que o Estado, ao manter-se fora do
controle do mercado imobiliário, pode “estar promovendo um efeito inverso ao desejável
sobre o conjunto do mercado”. Quando a urbanização é bem-sucedida chegando até à re-
gularização, “o resultado, na melhor das hipóteses, é o creamming ou seleção darwiniana
entre ocupantes que permanecem e os expulsos (mesmo que ‘expulsão branca’ pela via de
ofertas irrecusáveis) pelo mercado” (SMOLKA, 2003, p. 132). Caso sejam malsucedidas, estas
políticas públicas acabam por consolidar uma área irregular de baixa renda.
Muitas favelas geralmente surgem em áreas urbanas que não são necessariamente
apropriadas para uso residencial e que frequentemente estão sujeitas a riscos ambientais.
A maioria das favelas do Rio de Janeiro e de outras grandes cidades brasileiras está locali-
zada em encostas, baixadas e margens de cursos d’água, propensas a inundações e desliza-
mentos de terra causados por fortes chuvas tropicais. Portanto, os riscos geomorfológicos
e hidrometeorológicos são um problema intrínseco a esses assentamentos. Muitas vezes, os
territórios das favelas incluem áreas designadas como de risco, que precisam ser desocupa-
das ou exigem soluções técnicas.
A demanda por moradias geralmente faz com que os riscos ambientais pareçam um
problema distante e menor. Viver em uma área de risco significa estar exposto a perigos
que podem, algum dia, se materializar em desastres. No entanto, não ter um lugar para
morar significa ser exposto permanentemente a riscos sociais. Por exemplo, a ausência de
23 um domicílio implica uma invisibilidade que corta o acesso a serviços de educação, saúde
e emprego. Nesse sentido, não ter lugar para morar é quase sinônimo de não existir for-
malmente. Escolher entre viver em uma área de risco ambiental ou ser exposto ao risco
social é uma decisão muito tensa e cruel. Além disso, o custo da terra urbana é tão alto
que deixar áreas vazias, embora propensas a riscos ambientais, parece um desperdício de
recursos, e esse fato é ainda mais acentuado quando estas áreas estão localizadas perto de
oportunidades de emprego, transporte público e equipamentos urbanos. Essas dimensões
da vulnerabilidade social não devem ser negligenciadas nas políticas de mitigação de riscos
(MARCHEZINI, 2015).
As fortes conexões entre riscos ambientais e vulnerabilidade social são discutidas por
vários autores. Beck (1992), por exemplo, aponta que as desigualdades socioambientais e
a localização da pobreza andam de mãos dadas. Numa pirâmide de distribuição de riscos
por renda, os mais pobres seria a base da figura enquanto que a riqueza estaria no topo.
Os pobres costumam viver em lugares precários, não por causa de alguma preferência pelo
risco, mas por falta de outras possibilidades. Com base nesse fato, Bullard (1994) propôs o
conceito de “zonas de sacrifício”, identificando espaços urbanos onde os males do desen-
volvimento industrial predatório – como poluição atmosférica e sonora, ou outros riscos
iminentes – estão concentrados, como ilustrado, por exemplo, pela existência de bairros
em torno de uma usina nuclear. Em conexão com o contexto brasileiro, Cunha et al. (2015)
desenvolveram ainda mais essa ideia, considerando as favelas como “zonas de sacrifício”,
isto é, territórios segregados, onde os maiores encargos ambientais estão concentrados em
populações discriminadas e de baixa renda.
No mesmo sentido, abordando a relação entre riscos e pobreza, Thouret (2007, p. 89)
afirmou que a pobreza “força as pessoas a viverem em áreas menos caras, mas perigosas, e
domina as preocupações diárias de pessoas que não têm os meios – em termos de dinheiro
e tempo – para preservar o meio ambiente”. Em uma declaração extrema, poderíamos dizer
que os riscos ambientais nas favelas só seriam eliminados quando a vulnerabilidade social,
física e institucional não existisse mais.
Os programas públicos, como os que serão apresentados no Capítulo 2, têm como um
dos objetivos mitigar os riscos ambientais para que não se transformem em desastres com
perda de vidas e propriedades. Contudo, a ausência de uma política habitacional que ofere-
ça terras urbanas acessíveis a moradias de baixo custo significa que as populações de baixa
renda, excluídas da lógica do Mercado formal e da proteção do Estado, estão sujeitas à ocu-
pação irregular da terra, ao risco ambiental, à informalidade urbana e ao Mercado informal
de terras dentro da lógica da necessidade.

1.1.3. A luta pela edificação da favela


Um dos fatores que resultou no fenômeno da favela, e que a caracteriza, é a “insuficiência
histórica de investimentos do Estado e do Mercado formal, principalmente imobiliário, finan-
24 ceiro e de serviços” e, devido a este fato, os moradores de favelas “foram forçados a cons-
truir suas próprias soluções” (SILVA, 2012, p. 9). Este esforço coletivo de prover condições
mínimas urbanas fez com que, hoje em dia, as favelas brasileiras (pelo menos as consolidadas
e urbanizáveis) estejam dotadas de um mínimo de infraestrutura e de serviços, que, no en-
tanto, tem baixa qualidade e fornecimentos inadequados ou informais (IBGE, 2010; IPP, 2013).
No Rio de Janeiro, as ações governamentais para prover minimamente infraestrutura
começaram nos anos 1940. Entre os anos 1950 e 1960, o Estado proveu o mínimo, colocando
bicas d’água31 e cabines de energia nas proximidades das entradas das favelas, seguido pos-
teriormente pelo sistema de adução, bombeamento e cisternas para a distribuição de água.
As redes de distribuição até a moradia ficavam por conta dos moradores. Assim, o território

31. Com as bicas instaladas pelo Poder Público, a água ficou mais próxima e mais abundante, mas os moradores conti-
nuavam a ter que usar baldes para abastecer suas casas.
foi construído e urbanizado pelos moradores, impulsionados por investimentos públicos em
pequena escala através de ações incompletas e intermitentes. O que dizer da colocação de
pontos d’água e de energia sem que o sistema de redes de abastecimento até as casas seja
implementado? Para os moradores, sem dúvida, isto pôde significar o princípio da estabili-
dade no território e a possibilidade de implementação de um sistema de abastecimento de
água e de energia até sua casa, mesmo que por conta própria. Mas estas ações do Estado,
ao permanecerem pontuais e incompletas, além de precarizarem os sistemas32, mantiveram
a prática clientelista, o jogo das relações de poder e de influência política para futuras e
necessárias melhorias nas favelas. Já em São Paulo, a política de desfavelamento33 negou por
completo às favelas os serviços públicos básicos até os anos 1970. A situação só começou a
ser revertida ao final desta mesma década, quando aconteceram os primeiros investimentos
da Prefeitura em melhorias urbanas através de mutirões (ver cap. 2).
Aliás, a precariedade dos sistemas ainda não se resolveu, mesmo nas favelas que rece-
beram investimentos nos anos 1990 e 2000 para sua urbanização. Os serviços de infraestru-
tura nas favelas são problemáticos e esta é geralmente a principal queixa dos moradores
(LABHAB-FAUUSP/FUPAM, 1999; IBAM, 2002; MAGALHÃES; VILLAROSA, 2012). Na cidade do
Rio de Janeiro, a falta d’água é uma questão recorrente nas favelas em encostas. Os troncos
principais das redes de abastecimento d’água não têm pressão suficiente para que a água
chegue aos reservatórios instalados nas partes altas dos morros, o que faz com que a água
precise ser bombeada. As bombas quebram constantemente e a manutenção não é imediata.
Por isso, é comum os reservatórios em favelas em encostas não estarem completos para
abastecimento de toda a rede existente. A situação ainda piora nas favelas devido a uma
atitude consciente da concessionária em

priorizar a área formal nos períodos de alta demanda de água colocando as áreas
25 carentes para um segundo plano, ou seja, abastece primeiro os consumidores que
pagam o serviço para depois liberar o fornecimento para as favelas. Isto ocorre
principalmente no verão, onde o consumo é maior. (informação verbal)34

Destacamos a importância da gestão local no histórico da construção e da urbanização


dos territórios das favelas. Os moradores que lideravam as melhorias de infraestrutura, e pos-
teriormente as Associações de Moradores, tiveram papel fundamental na gestão e no pa-
gamento dos serviços nas favelas. A cogestão foi uma solução encontrada pelos municípios

32. Todo este sistema híbrido, entre ações do Poder Público que instalava as estruturas principais, e dos locais que pro-
viam as redes de abastecimento domiciliar, era afinal precário.
33. Termo que significava a erradicação da favela, excluído na administração do prefeito Reynaldo de Barros (1979-1982)
(BUENO, 2000).
34. Entrevista concedida por “E.”, engenheiro da área de saneamento em favelas, para esta pesquisa em abril de 2019.
a partir dos anos 1990 para resolver serviços em favelas. Tal solução consistia na gestão mu-
nicipal, que fornecia recursos e minimamente fiscalizava para garantir que os serviços fos-
sem implementados em conjunto com as Associações de Moradores, gerindo os recursos
repassados e a mão de obra local, que era contratada pela entidade. No entanto, os moldes,
diretrizes e escopo dos serviços não eram montados de modo coparticipativo, mas propos-
tos pela gestão municipal. A participação das entidades locais nestes moldes de gestão vem
perdendo campo para empresas privadas prestadoras de serviço para as prefeituras, que,
apesar da exigência da natureza de prestação de serviço sem fins lucrativos, agem se bene-
ficiando como organizações privativas de lucro.35
Nas favelas, o que não está ocupado é passível de disputa. Área vazia não é espaço público,
com exceção de alguns espaços consagrados pelo uso popular, como campos de futebol.
A história de construção desses territórios mostra uma ocupação progressiva das áreas va-
zias para acomodar necessidades particulares. A pressão para ocupar mais espaços – por
necessidade ou por especulação – está sempre presente nas favelas. Os espaços sem um
destino claro são fontes de tensão permanente e conflito potencial. Essa tensão advém
tanto do conflito inerente à formação das favelas, onde as áreas vazias podem significar a
possibilidade de expansão de uma casa (CARVALHO, 2009) ou para especulação (BENETTI,
2017). Duas formas de expansão – horizontal e vertical – são típicas da história das favelas
e dirigidas pelo esforço individual dos moradores, mesmo que hoje não necessariamente
vinculado a uma necessidade real. Processos especulativos de pequenos empreendedores
urbanos fazem parte também destas expansões, sobretudo quando o Poder Público investe
nas áreas, e estes processos não podem ser ignorados.
A mediação é uma das caraterísticas das relações em favelas, sobretudo nas origens.
Demarcações de limites, permissão para construir e conflitos entre vizinhos, por exemplo, eram
mediados pelas Associações de Moradores. A legitimidade desta mediação advinha do papel po-
26 lítico das Associações na resistência contra as remoções, o que não apenas as legitimava politi-
camente como as colocava no papel de autoridade reconhecida na resolução de conflitos. Com
o progressivo esvaziamento político das Associações, com a interferência do poder armado,
com a ausência jurídico-legal do Estado nestes territórios e com a cooptação política por par-
tidos tradicionais, esta legitimidade é definitivamente corroída, embora em alguns casos ainda
funcione. Estes processos de mediação, fora da lógica de regulação do Estado, e muitas vezes
não explícitos, fazem parte da lógica da favela e construíram – e constroem – estes territórios.

35. É o caso das Organizações Sociais de Saúde (OSS), no Rio de Janeiro, que são enquadradas como organizações pri-
vadas de interesse público sem fins lucrativos. Morais et al. (2018, p. 11) demonstram que, na prática, as OSS têm agido
como organizações privativas de lucro, pois não há aplicação do excedente dos recursos públicos captados por estas or-
ganizações em benefícios públicos no serviço de saúde. “Ao mesmo tempo em que as OSS se afirmam por estratégias as
mais atuais e incitantes do sistema do capital, estratégias de fazer o dinheiro se valorizar e de criar valor, elas tornam a re-
ferendar antigas práticas que vão distanciando o sistema de saúde brasileiro de sua condição de público e democrático”.
Construir suas próprias soluções para subsistir na cidade de modo marginal ao Estado
e ao Mercado formal, ao mesmo tempo gerou “em seus habitantes uma sensação de
pertencimento e de negação de direitos” (BUENO, 2000, p. 280), de resistência e de
solidariedade nas relações de vizinhança, sobretudo nos processos de mutirão (LIMA,
2016). A solidariedade ainda é uma característica forte nas favelas, embora venha se per-
dendo assim como no restante da cidade. A sensação de pertencimento também não
é uma tônica do novo morador36 em favelas, que tem grande mobilidade no Mercado
informal e que geralmente vai de uma favela para a outra37, conforme identificado por
Abramo (2003). A acessibilidade, os laços com a vizinhança e o “estilo de vida” são fa-
tores locacionais que influenciam na decisão das famílias sobre em que favela morar
(ABRAMO, 2003). Este Mercado é também impulsionado pelas obras públicas de urba-
nização, que trazem a evidente valorização dos locais de moradia (ABRAMO, 1998), pois
dão a sensação de que a remoção está definitivamente afastada do horizonte dos mo-
radores da favela. Estes fatores desencadeiam um processo de crescimento urbano nas
favelas absolutamente diferente da lógica que as originou. A especulação imobiliária é
uma realidade. Ao mesmo tempo, o surgimento de atores externos38 à favela, que pas-
sam a controlar o território, é um fator que influi na sensação de segurança, outrora
atrelada sobretudo à remoção, que trouxe medo, violência e constrangimentos na li-
berdade de ir e vir. Todas estas condicionantes transformaram a sensação de perten-
cimento ao lugar, dando às favelas o caráter político das urbs romanas, as quais podem
ser interpretadas, segundo Aureli (2008, p. 95), “como apenas a agregação genérica
de pessoas [...] e seus sistemas necessários para a circulação. A forma da agregação é
uma ‘coabitação’, o que significa que o que é compartilhado é simplesmente a condição
material de habitar um lugar”. A favela não é uma exceção, pois tal caráter político de
urbs romanas é compartilhado na cidade formal, assim como os critérios de escolha do
27 novo local de moradia são similares tanto para a favela como para o restante da cidade.
A diferença se dá praticamente na natureza dos Mercados que operam dentro (formal)
ou fora das regulações do Estado (informal).
Em linhas gerais, atingida pela negligência do Estado e por disputas de poder entre a
esfera pública, o Mercado e os agentes do poder paralelo, a favela trava uma luta por edifi-
cação que não se restringe ao caráter urbanístico, uma vez que no plano discursivo também
se perpetuam as desigualdades em relação ao restante da cidade.

36. Chamamos aqui de novo morador aquele que não tem laços familiares na favela ou vínculos com o lugar. A favela é
apenas um novo lugar de moradia escolhido a partir de suas possibilidades dentro do mercado imobiliário informal e das
preferências locacionais (ABRAMO, 2003).
37. É interessante observar que Abramo (2003) identificou que, geralmente, os moradores de favelas do Rio de Janeiro
não entram no Mercado formal ao mudarem de domicílio, mas continuam no Mercado informal escolhendo sua nova
moradia em uma outra favela.
38. O narcotráfico, a partir dos anos 1980, e a milícia, a partir dos anos 2000.
1.1.4. Os poderes locais e os atores da favela
A construção da cidade marginal ao Estado e ao Mercado formal também gerou especifi-
cidades em termos de organização social (ou sua “não organização social”, diriam alguns),
atores e forças locais (Estado, traficantes, associações, polícia etc.) que imprimiram uma
lógica própria ao território das favelas.
Vários líderes das favelas surgiram a partir do movimento de organização para prover as
necessidades coletivas, conquistadas através de luta, negociações, demandas e boas rela-
ções, dando origem a várias Associações de Moradores em favelas. Em 1954, surge a União
dos Trabalhadores Favelados (UTF), que lutava pelo reconhecimento das favelas na cidade,
pelo direito à permanência e por investimentos do poder público em melhorias urbanas.
Na década de 1960, através do incentivo do Poder Público para a criação de um canal oficial
de interlocução com as favelas, as Associações assumiram um papel híbrido de representar
os moradores perante o Poder Público e ao mesmo tempo de interlocutores do Estado para
o controle do território. As tentativas de controlar o crescimento e expansão das favelas
foram sempre uma questão do Estado. Já que não se conseguia solucionar habitação regular
para todos, que pelo menos as favelas não crescessem. Isto foi uma batalha perdida.
Em troca de recursos públicos e gestão destes para as melhorias urbanas da favela, às Asso-
ciações de Moradores cabia também o controle da expansão do assentamento. A ação local das
Associações para este controle se estruturou em pactos urbanos internos, ditados por questões
técnicas, como a conscientização de que a infraestrutura ficará saturada caso mais moradores
cheguem, de não ocupar áreas ambientalmente frágeis devido ao risco de desabamentos ou ala-
gamentos, ou proteger as matas que ajudam a segurar o solo, entre outros. Mas diante da lógica
da especulação e valorização do território, os pactos urbanos e a mediação são insuficientes.
Já a ação estatal, descontínua, tenta controlar a expansão através da repressão39 e de
leis elaboradas sem a participação dos moradores, dentro da lógica regulatória do Estado.
28 Na realidade, trata-se de uma política estruturada contra a lógica dominante da construção
das favelas até esse momento, e como ela não se assenta em nenhum novo pacto urbano,
aparece mais como uma face repressiva do que como uma ação de mediação. Este processo
se torna ainda mais frágil quando o território não é assumido pela gestão pública após os
investimentos de urbanização. A parceria de ambos – local e estatal – parece ser a saída para
se garantir um novo pacto urbano: o Estado fixando-se nestes territórios através da gestão
urbana contínua, como em qualquer outro bairro da cidade, mediando com os agentes locais
as soluções para as transformações sucessivas características destes territórios.

39. Um dos “indicadores” para a fiscalização e controle da expansão vertical adotados pelo Posto de Orientação
Urbanística e Social (POUSO) (ver Capítulo 2) era a observação da chegada de material de construção e sua destinação.
Já para a expansão sobre áreas ambientais, a demolição pode ser uma ação do Estado. No Cantagalo, o Governo do
Estado demoliu em 2007, simbolicamente, algumas construções que estavam surgindo junto à mata, mas sem que depois
houvesse qualquer continuidade.
Mas será que as Associações de Moradores ainda representam de fato os interesses da
favela, ou passaram a defender o Poder Público dentro da favela? Em resposta à desarti-
culação política que ocorre nas favelas durante a repressão da ditadura militar, o primeiro
governo democrático, Governo Brizola (1983-1987), se usa da estratégia de abrir espaço po-
lítico para os representantes das favelas dentro do próprio governo. Num sentido oposto
ao desejado, esta estratégia de fortalecimento político vira uma inversão de mão – as Asso-
ciações passando a representar o Estado – visto que o governo “inibiu a alternativa possível
representada pela dissidência da FAFERJ40, cooptando suas lideranças e dando continuidade
à ambígua relação com as associações de moradores” (BURGOS, 1998, p. 42). Também a par-
tir dos anos 1980, cresce a violência urbana e o narcotráfico em toda a América Latina.
No Rio de Janeiro, é nesta época que cresce a presença de grupos paraestatais41 nas favelas
e conjuntos habitacionais populares, que passam a controlar estes territórios, fato que aju-
dou a aprofundar o “descompasso entre a ordem política e a ordem social” (BURGOS, 1998,
p. 44), impondo constrangimentos às organizações políticas locais, comprometendo os di-
reitos políticos das favelas, e incentivando o retraimento do Estado e sua falta de legitimi-
dade nestes territórios. Inúmeras Associações de Moradores foram cooptadas e passaram a
representar os atores que controlam o território da favela. Ainda assim, as Associações de
Moradores, até os dias de hoje, continuam a ser os interlocutores que o Estado escolhe nos
projetos oficiais nas favelas.
A participação da população nos projetos públicos, inclusive de urbanização de favelas,
vem sendo cada vez mais exigida pelos órgãos financiadores,42 com a metodologia variando
por programa e por município. Ao longo destes quase 30 anos de investimentos em favelas,
houve uma evolução de estratégias metodológicas utilizadas para tentar aumentar a parti-
cipação no processo de projetos em favelas, ou ao menos para garantir certo controle para
que haja participação no processo, passando inclusive nos últimos anos a ser necessária para
29 a liberação dos recursos de obras.
Mas que tipo de participação vem sendo articulada? Primeiramente, a falta de partici-
pação popular efetiva nos processos decisórios é uma constante em obras públicas, e não
é exclusividade na urbanização de favelas, nem apenas no Brasil. Muitas vezes isso se deve
ao formato das concertações públicas, a escopos e tempos de contrato de projeto que não
consideram a efetiva participação dos usuários no processo decisório, parecendo até, pelo
contrário, ser parte de uma estratégia governamental para reduzir a participação e o debate
no processo.

40. Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro.


41. Jogo do bicho, narcotráfico e, mais recentemente, a milícia.
42. Esta participação, no entanto, tem sido exigida apenas no processo de projeto e de obras, cujas diretrizes já
estão previamente alinhavadas pela ação ou programa público, assim como nas concertações francesas analisadas por
Zetlaoui-Léger.
É sabido que a participação efetiva ajuda na aceitação e na sustentabilidade pós-obras.
Mesmo assim, as metodologias e processos para conseguir maior participação parecem estar
ainda distantes desse objetivo. Isto não é exclusivo do processo de urbanização de favelas,
nem do Brasil, mas em geral das obras públicas. Zetlaoui-Léger (2017) observa43 que, na França,
há uma ausência de participação dos usuários e agentes nas concertações que influen-
ciam nas decisões programáticas antes do projeto (do que chamamos projeto de cidade),
cuja gestão os terá, posteriormente como os principais agentes. A participação se abre ge-
ralmente apenas para o processo da construção – projeto e obra – e não na decisão do
programa, que já chega pré-definido. Neste formato, os diferentes atores são ignorados e,
muitas vezes, os interlocutores são menos adequados (membros do administrativo) do
que aqueles que estariam mais capacitados a opinar, por exemplo, sobre o funcionamento
de um edifício (usuários e utilitários). Segundo a autora, estes são alguns dos motivos que
ocasionam a fragilidade do processo, o qual acaba por não ser efetivamente participativo.
A autora defende que a participação dos diferentes atores (habitantes, usuários e gestores)
ocorra ao longo de todo o processo, desde a definição do programa, na escolha das propos-
tas vencedoras em concursos, ao longo do projeto e das obras e finalmente na gestão. Este
processo de coprodução (ZETLAOUI-LÉGER, 2017) garantiria parceiros que dariam segurança
ao processo de projeto e consequentemente uma melhor aceitação e gestão, pois eles se
reconheceriam no resultado construído.
Por outro lado, é importante destacar que, tanto interna como externamente, há
interesses políticos na favela, muitas vezes configurados pela prática da troca de benefícios
ou votos, de disputas internas e de pequeno poder e no controle da gestão de serviços e
até de equipamentos construídos pelo Estado, cujo caráter público fica comprometido. Tais
interesses muitas vezes interferem e até manipulam o processo de projeto em favelas. Estes
são alguns dos problemas políticos da lógica da favela que não devem ser menosprezados
30 nos processos participativos dos programas de urbanização e nem pela gestão pública, que
deveria sucedê-los nas favelas urbanizadas.
Quem é o sujeito político na favela? Existe um interesse comum? A favela é um grupo
coeso, é uma comunidade? A ideia de comunidade, originária da antiguidade, está fincada
em princípios como união, solidariedade, proteção, segurança, compartilhamento de códi-
gos, homogeneidade. A individualização, através da emancipação do indivíduo, é uma das
bases da Modernidade e a ideia de comunidade, em sua essência, entrou em colapso na
sociedade moderna. Houve um esvaziamento do sentido da palavra e, atualmente, comuni-
dade é utilizada indiscriminadamente para denominar grupos sociais que compartilham um
mesmo território, virtual ou local, que não necessariamente têm os mesmos princípios, mas
um ou mais objetivos em comum em um espaço de tempo. Se o objetivo é alcançado, ou

43. A partir de estudos sobre 187 projetos, entre 2009 e 2014, derivados de concertações públicas.
simplesmente perde importância, os indivíduos deste grupo podem se desengajar sem qual-
quer constrangimento ou obrigação de vínculo (BAUMAN, 2003). Considerar os moradores
de uma favela como um grupo homogêneo e coeso, e com apenas objetivos comuns, é um
dos equívocos das metodologias de participação. Há claramente conflito entre os interesses
no âmbito do coletivo – o público, e do indivíduo – o privado.
O Estado, por sua vez, também não é unívoco, mas “formado por agentes que atuam de
diferentes formas com os moradores” (BLASI CUNHA, 2018, p. 140), e se usa ainda de diferen-
tes metodologias, o que fragiliza o sujeito político da favela. Nas práticas das negociações
das melhorias urbanas, por exemplo, o gestor ora abre fóruns de discussão ampla e coletiva
para aprovação de propostas, ora trata individualmente as desapropriações de benfeitorias
para a implementação das obras.
Vejamos a situação de um alargamento de uma via em uma favela: em praticamente
todos os casos, é preciso retirar mais do que uma casa para a via poder ser alargada. Então,
por que não se negocia com todo o grupo afetado pelo evento para viabilizá-lo? Isso evitaria
o trauma da remoção e demolição sem que a conclusão do alargamento de vias aconteça,
como no caso relatado por Blasi Cunha (2014) do Pavão-Pavãozinho, onde algumas casas
foram demolidas e outras não, impedindo o alargamento da via e deixando rastro de des-
truição e de incompletude. Para os moradores, bem como para o projeto e para obra, isto
seria o ideal. No entanto, geralmente esta não é a metodologia aplicada pelo Estado, que
convoca individualmente os moradores afetados para as negociações de desapropriações.
Em termos financeiros, negociar coletivamente poderia levar o Estado a se ver obrigado a
aumentar o valor indenizatório, já que o coletivo tem mais força do que o individual. Mas
os resultados de negociações individuais também variam diante de influências políticas, do
poder de barganha, na favela ou em outras áreas da cidade44, e até do quanto o Estado está
disposto a pagar para viabilizar as inaugurações.
31 Se por um lado a participação é muitas vezes utilizada para legitimar decisões já prees-
tabelecidas, “lideranças e moradores lutam buscando outros mecanismos e estratégias para
assegurar seus objetivos num contexto que sabem ser de possibilidades limitadas.” (BLASI
CUNHA, 2018, p. 140). Neste sentido, o sujeito político na favela, assim como o político da fa-
vela, “não é absolutamente ingênuo nem inábil − pelo contrário, é extremamente perspicaz
− e adota uma atitude que poderia ser qualificada de ‘realista’, cuja principal característica é
orientar-se para os resultados em curto prazo”. (MACHADO DA SILVA, 2011, p. 716).
Blasi Cunha (2014) acrescenta ainda que a polarização individualistas versus coletivistas,
geralmente colocada como a recorrente nos movimentos sociais no Brasil, efetivamente

44. Um caso clássico de mudanças de projeto por negociações de desapropriação no Rio de Janeiro foi a abertura da
estrada Lagoa-Barra. Seu projeto original, que passava em terras da Igreja, foi desviado sobre o edifício de habitação de
interesse social, furando-o. Demandando reforço estrutural no edifício, este gesto urbano significou um trauma para os
moradores, que hoje convivem com a poluição sonora e do ar.
não representa bem as práticas sociais de participação experimentadas por ela ao longo do
processo de obras de urbanização das favelas do Cantagalo/Pavão-Pavãozinho pelo Estado45.
Assim como o Estado não é unívoco, também não há um grupo unido em negociação com
o Estado, o que torna ainda mais frágil as demandas locais. O Estado pode “ser amigo ou
inimigo, com quem se produz alianças ou rupturas, dependendo dos interesses em jogo.”
(BLASI CUNHA, 2014, p. 213).
Mesmo com as tentativas de aprimoramento das metodologias de participação ao longo
destes 30 anos e de sua obrigatoriedade no processo de urbanização, há uma insatisfação
por parte dos moradores de favelas que passaram por melhorias urbanas através dos pro-
gramas públicos, pois a participação parece ter sido usada para legitimar projetos “ditos”
participativos. Além de denúncias de manipulação dos instrumentos de comprovação de
participação, moradores reclamam que não têm influência nas decisões e pautam a discus-
são na importância do seu papel como protagonistas no processo, em oposição ao que está
sendo praticado em várias situações, lutando pelo direito à cidade – conceito de Lefebvre
(2001) que discutiremos mais adiante no item 1.2.
Como vimos, um dos principais atores do processo de fabricação da favela é o pró-
prio Estado, através de uma série de ações incompletas, deixando rastros de melhorias que
se deterioram devido à falta de manutenção e gestão. Enquanto isso, os moradores e ou-
tros agentes continuam produzindo o território da favela dentro da ciência da Mecnologia46
(THÂMARA; LISBOA, 2019) de conhecimento e de habilidades do “faça com o que tem”, como
“espaços permanentes de invenção de formas novas de significar a vida cotidiana” (SILVA,
2014), como protagonistas de sua própria realidade, mas também através da lógica da explo-
ração do lucro sobre estes territórios.
As ações públicas direcionadas para a urbanização, aos moldes da nova geração de pro-
gramas a partir dos anos 1990, foram um marco importante e fundamental no processo de re-
32 conhecimento dos assentamentos humanos informais (TURNER, 1976), mas que precisam ser
atualizadas diante da realidade e da lógica que ao longo dos anos imprime seus resultados nas
transformações urbanas nas favelas. O debate atual trata do protagonismo dos moradores de
favelas no processo de transformações urbanas, que não pode mais ser levado apenas dentro da
lógica do Estado. Roy (2009) defende que este debate precisa ser mais aprofundado, visto que
“a preocupação com a inclusão e a participação não desafia fundamentalmente as bases sobre

45. Obras de urbanização do PAC levadas a cabo pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro através da SeObras, de 2007
a 2015. Blasi Cunha (2014) fez a etnografia de 2011 a 2013 nas duas favelas, no momento de implementação da segunda
fase do PAC.
46. “Mecnologia é um modo de vida. É a capacidade de sonhar com um outro futuro possível, acreditando em si mesmo.
[...] É entender que a superação vem de dentro para fora e que o pensamento é força criadora. E, nesta via, o primeiro
mandamento é ficar mec. E quem sabe, assim, começar a disseminar a filosofia, pra dentro e pra fora, de que a favela é
um lugar de solução e não de problemas.” (THÂMARA; LISBOA, 2019) Ver https://medium.com/@thamyrathmaradearajo/
mecnologia-a-ciência-da-tranquilidade-9a07808639f9
as quais tais projetos de renovação ou transformação urbana [...] se baseiam” (ROY, 2009 apud
RAO, 2012, tradução nossa). Afinal, a favela precisa ser entendida “como um espaço a partir do
qual novas estratégias de governança e autogovernança estão emergindo para cidadãos desem-
pregados em todo o mundo, e não como um espaço a ser administrado pelo Estado através da
provisão gradual de incentivos.” (APPADURAI apud RAO, 2012, p. 680, tradução nossa).
Esta lógica precisa ser transformada para o reconhecimento da importância de que as
soluções só virão conjuntamente. Precisamos do Estado, não apenas como provedor de
recursos técnicos e financeiros para fazer as obras, mas para a operação e manutenção dos
sistemas no futuro, assim como para legitimar as favelas como território integrante da ci-
dade. Precisamos do Capital – por que não? – já que a urbanização é, enfim, foco deste para
a acumulação do lucro e o Estado não tem recursos para resolver isoladamente a cidade.
Como já apontado por Hart (1973), a economia informal é parte indissociável da estrutura
de produção capitalista global, e pode ser um complemento passivo do crescimento que se
origina em outros lugares ou um ingrediente crucial da transformação econômica em al-
guns casos. Logo, quem sabe a ideia seja a de pacto social, ou gestão compartilhada? Como
não pensar em todas as partes investindo e trabalhando respeitosamente? O problema está
na exclusão dos atores locais do processo de decisões e da gestão sobre o território que
estes construíram e que continuam a construir, em quem o Poder Público escolhe como
interlocutores, no desprezo dos saberes e dinâmicas locais e das reivindicações populares,
entendidas como fora do campo do Direito, mas dentro do campo da dádiva (ROLNIK, 1999).

1.2.
A Lógica Regulatória
do Estado
33
Nesta seção, discutiremos como o Estado implementa os programas públicos em favelas,
construindo suas bases e diretrizes a partir de sua visão sobre a favela, e dentro de uma
lógica regulatória para urbanizá-las e depois incorporá-las ao sistema de gestão pública.
Destacaremos, quando oportuno, como esta lógica regulatória do Estado muitas vezes não
considera a lógica da favela preexistente à intervenção pública de urbanização, tema que
tratamos na seção precedente. Críticas e correções sugeridas neste texto caminham no
sentido de reafirmar a importância destas políticas públicas, pois acreditamos que há revi-
sões possíveis para a melhoria da performance do projeto e, consequentemente, do próprio
processo de urbanização de favelas.

1.2.1. O espaço da favela como objeto das intervenções públicas


Estar invisível, por algum período, foi estratégia de permanência e de ocupação, mas esta
invisibilidade perdurou por muito mais tempo nas cartografias oficiais das cidades, visto que
estas até pouco tempo só representavam as áreas públicas regularizadas. As áreas ocupadas
por favelas restavam vazias. No Rio de Janeiro, foi somente a partir do governo César Maia
(1993-1997), com a demanda de bases digitais para o Programa Favela Bairro, que surgiram
os mapas digitalizados das favelas.47 Ainda assim, as favelas não foram definitivamente inse-
ridas como território integrante nas plantas aerofotogramétricas48 da cidade, mesmo tendo
passado por obras públicas de urbanização (Fig. 3).

47. Assim como a atualização de grande parte do acervo digital do restante da cidade.
48. São plantas digitalizadas com informações vetorizadas com as edificações, muros, ruas e meio-fio, posteamento etc.
utilizadas como base técnica do projeto urbano e arquitetônico.

34

Figura 3
Planta aerofotogramétrica
sem as casas das favelas.
Fonte PCRJ, 1997.

Figura 4
Planta aerofotogramétrica
já com as casas das favelas.
Fonte elaboração própria sobre
arquivos da PCRJ, 1997.
Os arquivos de cada favela são vendidos pela PCRJ separadamente dos bairros do en-
torno, exigindo um gasto extra49 e uma outra etapa de trabalho para a inserção da favela no
entorno (Fig. 4). Este fato não ocorre para plantas que abrangem, por exemplo, trechos de
diferentes bairros da cidade. Todo o edificado, a diversidade de tecidos e elementos urbanos
que compõem aquele trecho de cidade aparecem num continuum, como se não houvesse
limites entre bairros. Por que as favelas já não viriam representadas nas plantas, junto aos
bairros que as circundam? Apesar de cartografadas, as favelas ainda são tratadas como ter-
ritório diferenciado e alheio à malha ortogonal contínua que divide e organiza todo o acervo
de cartografia da cidade.
A representação das favelas nos mapas da cidade do Rio de Janeiro passou a ser tema de
reivindicação dos favelados nos anos 2010, cujo caráter era de luta política pela visibilidade
na cidade. As favelas quase não apareciam no mapa turístico oficial da PCRJ, cujos territórios
eram esmaecidos intencionalmente, nem nos principais aplicativos de mapas50. Um esforço
oficial para inserção das favelas na cartografia da cidade foi iniciado em 2011 pelo IPP51 atra-
vés do Programa Rio+Social em conjunto com a ONG Redes da Maré, cujo trabalho consis-
tiu no levantamento, identificação e mapeamento dos logradouros do Complexo da Maré
com metodologia participativa e inclusiva (REDES; OBSERVATÓRIO DE FAVELAS, 2004)52.
Esta iniciativa, que se expandiu até 2015 incluindo outras favelas53 que haviam recebido inter-
venções do PAC e tinham UPPs, trouxe enormes ganhos quanto à inserção dos logradouros
destes territórios no Cadastro de Logradouros (CadLog).

49. De acordo com a PORTARIA 53 – disciplina a venda, consignação e a cessão de produtos do acervo cartográfico
do Instituto Pereira Passos - IPP: mapas, cartas, fotos aéreas, ortofotos e arquivos digitais, publicada no Diário Oficial
do Município de 03 de dezembro de 2010, o arquivos digital Folha, com a planta aerofotogramétrica, custa R$340,00.
O arquivo digital Favela custa outros R$340,00 a ser comprado separadamente, mesmo a Folha abrangendo a região em
35 que a favela estaria inserida. Fonte http://www.data.rio/datasets/992db8a84ecb4011be3e7f04af4bae99.
50. Dentre outros, o Google Maps, que serve de base para outros localizadores digitais. A Google fez, em parceria com
a AfroReggae, o trabalho Beyond the Map, efetivando o levantamento de algumas favelas do Rio de Janeiro e a história
de moradores. Sem dúvidas, esta iniciativa trouxe visibilidade às favelas no mapa, mas também ajudou a contribuir para a
imagem internacional de cidade segura e aberta, no período em que iria ser sede dos eventos esportivos da Copa do Mundo e
dos Jogos Olímpicos 2016. Para mais informações sobre as favelas na cartografia, pode-se consultar o Capítulo 3: “The favela
and cartography” da tese “Rio, City of Ghettos: a study of the impact of violence on the urban form” de Soveral (2018).
51. O Instituto Pereira Passos (IPP) é uma empresa municipal de pesquisa e planejamento urbano do Rio de Janeiro e de
produção de informações sobre a cidade. A identificação dos logradouros em favelas e sua integração ao Cadastro de
Logradouros (CadLog) da PCRJ é considerado um “instrumento fundamental para a formulação de políticas públicas”
(VIAL et al., 2017, p. 6).
52. Ver: http://redesdamare.org.br/media/livros/GuiaMare_26mai.pdf
53. O resultado final foi o acréscimo no CadLog de 322.797m de extensão de logradouros no interior de 191 favelas, 80%
a mais em malha viária cadastrada para as favelas em questão.
36

Figura 5
Resultado do mapeamento dos logradouros
em favelas no CagLog do Rio de Janeiro.
Fonte IPP, 2017, p. 25.
Destacamos também a importância deste tipo de ação municipal, que representa o reco-
nhecimento pelo poder público da qualidade de um trabalho pioneiro em favelas empreendi-
do por uma instituição local, e que merece a devida continuidade para mapear o restante das
favelas da cidade e para manter este cadastro atualizado, além de ser fundamental a divul-
gação desta ação para outros municípios. Entretanto, este trabalho não substitui a neces-
sidade de regularização urbanística e reconhecimento de logradouro público, instrumento
que dá obrigações à Prefeitura quanto à responsabilidade legal sobre sua conservação,
visto que a maioria da malha viária mapeada ainda não foi reconhecida oficialmente.54

1.2.1.1. Os espaços coletivos ou públicos nas favelas


Entender os processos de ocupação que geraram a favela é fundamental para a compreensão
do caráter dos espaços comuns ditos públicos, onde incidem as ações públicas de urbanização
de favelas. O espaço público tornou-se objeto de intervenções públicas das administrações ur-
banas a partir da década de 1980, quando também passou a ser um termo utilizado na literatura.
O espaço público é também objeto central dos programas de urbanização de favelas.
Entendendo que o termo espaços públicos dá a ilusão de espaços democráticos de “convi-­
vência pacífica e harmoniosa com o heterogêneo da sociedade” (DELGADO, 2011, p. 20) en-
quanto, na verdade, oculta uma política de controle de exploração e segregação resultante
do capitalismo, preferimos adotar o termo espaços coletivos, entendido como áreas de livre
acesso que podem fomentar relações com o poder público e certos laços sociais.
O sistema de espaços coletivos é parte da estrutura urbana de uma cidade, é onde se dá
a esfera pública, e que quase sempre está associado à propriedade pública e ao livre acesso
a estes espaços. Nas favelas, geralmente os espaços coletivos ocorrem como sobras do
ambiente construído, e não são pensados para dar qualidade urbana a estes assentamentos.
As construções acontecem onde for possível, interferindo nos espaços coletivos e na circu-
37 lação interna nas favelas. É justamente o predomínio das áreas privadas sobre as coletivas
a característica que deu sentido para a forma da favela (CONDE; MAGALHÃES, 2004). Nas
favelas densas, as áreas livres chegam a ficar extremamente reduzidas, quase que compri-
midas pelo edificado. Em muitos casos, as relações entre o ambiente edificado e a área livre
chegam a determinar a sua apropriação (CARVALHO, 2010). É comum moradores do entorno
de largos e praças se incomodarem com determinados tipos de apropriação da área livre,
assim como das áreas livres é comum se perceber a intimidade dos lares. Falta de privaci-
dade, apropriação pela criminalidade, sujeira e barulho advindo da animação são alguns dos
constantes conflitos entre moradores e usuários das áreas livres em favelas.

54. Atualmente, as ruas e becos das favelas mapeadas pelo Rio+Social estão já identificados no SABREN - Sistema de
Assentamentos de Baixa Renda, disponível na base de informações da cidade do Rio de Janeiro, sobre base de ortofoto
e, ainda não têm previsão de serem inseridos definitivamente na cartografia oficial da cidade. Ver: http://www.data.rio/
app/sabren
Os espaços coletivos em favelas sofrem com potenciais conflitos e disputas de uso, de
apropriação e da sempre possível ocupação por interesses privados. O predomínio do indi-
vidual sobre o coletivo não é uma situação que acontece apenas nas favelas, uma vez que

também moradores de condomínios da Barra da Tijuca tem a mesma relação


com o espaço público. Na urbanização brasileira, infelizmente, a dimensão
pública é muito restrita e permanentemente ameaçada pelo avanço do privado.
[...] A dimensão débil ou ausente tanto nos condomínios da Barra como nas
favelas cariocas é a dimensão do público, do coletivo, da diferença e da convi-
vência para além dos iguais. (BENETTI, 2017, p. 98-99).

Mas há uma grande diferença entre as áreas regularizadas da cidade e as favelas. Nas
primeiras, o Estado normalmente garante a continuidade da natureza pública dos espaços
coletivos, usando os códigos urbanos como suporte. Nas favelas, o Estado não se mantém
do mesmo modo que no restante da cidade quando a urbanização é concluída, e a falta de
códigos urbanos escritos que forçam o Estado a estar presente cria uma situação não re-
gulamentada na qual poderes paralelos podem estabelecer suas próprias regras. Portanto,
a ideia de espaços coletivos varia muito entre favelas e outras partes da cidade (BENETTI,
2017). Os espaços coletivos na cidade formal são mantidos por uma combinação de regras,
sanções e comportamentos estabelecidos que preservam os limites entre áreas públicas e
privadas, mesmo que os espaços coletivos possam suportar alguns usos particulares (como
mesas nas calçadas, fornecedores informais etc.) sem que estes sejam propriamente priva-
tizados. Os limites privados geralmente são preservados nas favelas, mas este não é exata-
mente o caso dos espaços coletivos.
Nas favelas, “a vida coletiva se dá onde é possível, seja em promiscuidade com a vida
38 privada ou nos interstícios residuais do espaço privado” (GROSBAUM, 2012, p. 33), o que faz
com que o sistema de espaços coletivos seja complementado por “um efetivo sistema de
espaços livres privados” (PIZARRO, 2016, p. 206.), caracterizando uma espacialidade própria
de dinâmicas urbanas às favelas. Muitas vezes os espaços coletivos nas favelas são carentes
de qualidade de iluminação, de mobiliário urbano, de paisagismo... Isso advém, entre ou-
tros motivos, pela falta de investimentos públicos nestas áreas tanto para o planejamento e
construção dos espaços coletivos quanto para a sua manutenção. E, justamente, essa fraca
presença do poder público que permite uma apropriação dos moradores nestes espaços
com usos muito diferentes de outros lugares da cidade e com uma criatividade que gera
uma riqueza urbana que dificilmente existiria na cidade regulada por normas do Estado.
Silva (2014, p.75) ainda considera que fatores sociais são determinantes para toda uma
animação e multiplicidade urbana nestes territórios, o que “gera uma estética paisagística
que marca de forma significativa o imaginário das favelas na cidade”. A riqueza do cotidiano
das favelas é defendida por Silva como oportunidade para a diversidade na cidade e como
Figura 6
Chuveiro instalado
pelos próprios
moradores, na Maré/RJ.
Fonte acervo pessoal de
Laura Taves, 2015.

“base para novos encontros urbanos” (p.73). Por que o poder público não considera estas
apropriações que agregam valor aos espaços coletivos em vez de compreendê-las como um
problema a ser controlado?

39 1.2.1.2. Sistema viário nas favelas


Como é composto o sistema viário nas favelas? O sistema viário, como é chamado tecnica-
mente em Urbanismo, é um conjunto de vias que alimenta as diversas áreas de um território.
O sistema viário tem importância em diferentes aspectos. Rua significa, antes de mais nada, aces-
so, conexão, encontro. Através de uma malha viária mínima, permite-se também a penetração
de serviços urbanos, como as redes de saneamento, de água, coleta de lixo, iluminação e energia
elétrica, transportes e todos os serviços que abastecem as edificações. Dentro de uma escala
de prioridades de ações de urbanização de favelas, a UN-HABITAT (2012) recomenda que as ruas
sejam a ferramenta-guia do projeto urbano, pois além de garantir permeabilidade à favela, ainda
funcionam como leito para a infraestrutura e possibilitam a posterior regularização urbanística.
Este último aspecto tem importância social, pois a falta de regularização urbanística, aquela
que provê o reconhecimento dos logradouros públicos das favelas, colabora para a discriminação que
sofrem os moradores de favelas por não possuírem endereço oficial na cidade. Além disso, com o
reconhecimento legal das ruas, estas se tornam oficialmente responsabilidade da gestão urbana.
Os processos55 de crescimento e de ocupação nas favelas definiram, de modo geral,
um sistema de vias internas particulares às favelas, onde prevalecem geralmente as vielas e
becos, e nas encostas, as escadarias. Poucas são as vias carroçáveis internas a estes assen-
tamentos, que por este motivo sofrem com a sobrecarga de trânsito e engarrafamentos.
O histórico de várias favelas mostra que suas formações se deram a partir de caminhos que
serviram de vetor de ocupação de terrenos baldios vazios ou de passagem, seja ao trabalho,
à mata, à praia, que ao longo do tempo foram sendo habitados. Em várias favelas, estes pri-
meiros caminhos se transformaram em suas ruas principais.
Estas vias principais geralmente são as que permanecem um pouco mais largas do que
o restante do sistema viário. É comum, em quase todas as favelas, a circulação de pedestres
nas caixas de rolamento, junto aos carros, seja porque o trânsito de veículos não é tão intenso
ou porque as calçadas são inexistentes, desconfortáveis ou obstruídas. É frequente, nas vias
carroçáveis, a ocupação das calçadas e bordas por mercadorias ou móveis abandonados, e
por carros estacionados, estreitando as vias e gerando problemas de circulação.

55. Não há um só modo de crescimento e ocupação das favelas. Existem favelas que foram se formando sem um plane-
jamento prévio e outras que foram geradas a partir de loteamentos, com demarcação de arruamento e lote.

40

Figura 7
Calçadas de rua da Baixa do Sapateiro, Maré/RJ, ocupadas pelo comércio.
Fonte acervo pessoal, 2009.
Nas favelas, a ocupação das áreas ainda livres – seja do próprio lote, entre construções
ou das áreas ditas “públicas” – é uma característica que vai paulatinamente reduzindo a lar-
gura das vias até serem transformadas em becos estreitos que muitas vezes acabam sendo
bloqueados. Este processo de ocupação, feito muitas vezes através da mediação, definiu
vias com características particulares às favelas e que geram problemas de acessibilidade e
de legibilidade do território. O beco é uma tipologia característica do ambiente urbano das
favelas e sua largura final muitas vezes depende do bom senso entre vizinhos, podendo ficar
tão exígua ao ponto de impedir a penetração de diversos serviços urbanos. Há casos em que
nem uma maca consegue ir até o domicílio e o doente precisa ser carregado até uma rua
mais larga. Silva (informação verbal)56 relata inclusive o fato de que, com o estreitamento
paulatino que ocorreu nas ruas da Favela Santa Marta, no Rio de Janeiro, em algumas mora-
dias a geladeira não consegue mais sair da casa sem ser desmontada. Indubitavelmente, este
é um fato extremo que interfere na qualidade da moradia e do ambiente da favela. Mas que
padrões podem e devem ser respeitados no tecido das favelas?

1.2.1.3. Saneamento ambiental nas favelas


O saneamento ambiental depende de um conjunto de sistemas de redes e de serviços –
Abastecimento de Água, Esgotamento Sanitário, Drenagem, Coleta de Resíduos Sólidos
– que têm no sistema viário sua base de distribuição. A ideia principal do que seria urbani-
zar uma favela pressupõe a implementação de saneamento de modo a dar condições bási-
cas de saúde e de higiene ao ambiente urbano das favelas. As primeiras ações públicas em
favelas, como vimos na seção anterior, já estavam associadas ao saneamento básico, mas de
modo precário e incompleto. As políticas de urbanização a partir dos anos 1900 passaram
a promover melhorias da estrutura urbana, de modo a implementar sistemas completos de
saneamento básico e promover a recuperação ambiental das favelas.
41 O lixo representa um dos principais problemas de saneamento e de meio ambiente nas
favelas. A malha viária interna pouco acessível a veículos dificulta o serviço de coleta. Nos
casos em que o veículo de coleta não passa na porta da moradia, este serviço precisa ser
complementado pelo transporte manual do lixo até um ponto de coleta, que geralmente
depende dos moradores de o fazerem e isto nem sempre acontece. Logo, a eficiência do
serviço público de coleta de lixo em favelas está relacionada ao sistema viário e à solução de
coleta domiciliar na microescala. É comum a formação de áreas de vazadouro de lixo e/ou
entulho57 nas favelas, conhecidas como lixões, que geralmente se situam em zonas menos
densas das bordas da favela, de difícil acesso ou em espaços sem uso consolidado. Além de

56. Palestra de Itamar Silva na mesa de encerramento do II Seminário Nacional sobre Urbanização de Favelas – II URB-
favelas, em novembro de 2016 na UERJ.
57. Outro agravante é o longo trajeto da moradia até o ponto de lixo, o que é usado como justificativa para a prática
de jogar lixo em locais não apropriados.
foco de vetores trazendo graves problemas para a salubridade, em épocas de chuvas, os
lixões se tornam verdadeiras zonas de risco, porque o lixo acumulado se desprende resul-
tando em deslizamento de encostas ou em grandes volumes descendo na correnteza dos
talvegues, dos rios, destruindo as construções no caminho e entupindo redes de drenagem.
Quando menos se imagina, o solo que está visível não é solo, mas uma espessa camada de
lixo.58 Diante destes aspectos, o lixo é uma questão complexa e multidisciplinar, afetando
questões ambientais, de saneamento, de educação e de saúde pública. O serviço de coleta
de lixo mecânico está diretamente relacionado ao sistema viário. Quanto mais permeável a
favela, mais eficiente pode ser o serviço, bem como todo o sistema de saneamento básico.
Por isso, a articulação entre sistema viário e saneamento é fundamental para ajudar a quali-
ficar o ambiente urbano das favelas.
Mas qual a largura ideal do sistema viário nas favelas para que se estabeleçam estas
relações? Conde e Magalhães (2004, p. 61) entendem a questão como “dimensionamen-
to inadequado do sistema viário”, visto pela ótica dos padrões urbanísticos defendidos
como adequados, que está “associado quase sempre a uma implantação igualmente débil,
em especial nas declividades, tantas vezes acentuadas a ponto de impossibilitar o acesso
por veículos”. Deveria então ser o veículo penetrável em todo o território da favela?
Quais os critérios? Seriam os padrões urbanísticos os que o projeto deve respeitar?
Ou os padrões que atendem às demandas dos sistemas de saneamento e dos serviços
urbanos?
Vigliecca (2012) recomenda a reestruturação da malha urbana, de modo a redefinir, evi-
denciar, hierarquizar uma rede viária que integre a favela e seu entorno, fazendo com que a
favela deixe de ser uma barreira urbana e um espaço de exclusão. Para este arquiteto,

a hierarquização do tecido urbano, a circulação coerente com o transporte


42 público, a localização das centralidades e a geografia, sempre subjacente ao solo
urbanizado, formam um quarteto de reflexão, conjunto chave para estabelecer
uma condição básica de inclusão física. Legibilidade significa precisamente a
possibilidade de o indivíduo estabelecer mentalmente o mapa de sua localização
no território. O reconhecimento dessa leitura contribui na reconstrução da ci-
dadania, favorecendo a apropriação e a incorporação social e estabelecendo o
sentido de lugar. (VIGLIECCA, 2012, p. 94).

Já Terry et al. (2013, p. 42) recomendam viabilizar o alargamento de vias em favelas


privilegiando as já existentes, de modo a reforçar o valor afetivo e a história do lugar, os

58. A investigação passa tanto pela aparência quanto pelo histórico da área, a espessura da camada de lixo depositada
ao longo dos anos confirmando-se, geralmente, através de escavação e sondagem.
laços de vizinhança. No entanto, as autoras orientam intervir com dimensões adequadas
para a penetração dos serviços urbanos e do saneamento, mas que minimizem o impacto
no tecido existente. Para tal, quando o caso for de demolições, recomendam como crité-
rio a análise do padrão construtivo das edificações, buscando remover as mais precárias,
e a manutenção de atividades que dão suporte à vida urbana nestas vias. Devido à falta de
padronização da nomenclatura das vias características das favelas, Terry et al. (2013) pro-
puseram uma classificação hierárquica viária, para fins de organização no projeto urbano
em favelas, visto não haver “consenso quanto à classificação hierárquica de vias urbanas
no Brasil” (TERRY et al., 2013, p. 25), além de ainda não se contemplar vias características
de favelas. A classificação proposta de vias em favelas tem relação com as dinâmicas
urbanas que ocorrem nestes espaços. Assim, as vias das favelas podem ser classificadas
como: vias de acesso, confrontantes com o entorno ou de importância histórica, que con-
centram linhas de transporte e que conectam sub-bairros das favelas; vias carroçáveis,
que são aquelas “que permitem a passagem de veículos, mesmo de pequeno porte (vias
com mais de 2,5m)” (TERRY et. Al., 2013, p. 32), que podem ser principais ou coletoras, e
secundárias ou locais; e, finalmente, os becos e escadarias, que podem ser principais ou
coletores, e locais. Cabe, até hoje, à cada programa uma classificação própria que geral-
mente não dá conta das diferentes características viárias da favela, ou até à cada equipe
de projeto o bom senso e intepretações para a adoção de uma hierarquia própria em sua
metodologia de projeto.
Deveríamos, segundo a ideia defendida por Vigliecca, privilegiar a forma guiando as so-
luções pelas relações espaciais? Não estaria esta ideia impondo uma outra lógica ao terri-
tório, que não observa ou se baseia em dinâmicas locais e em outras relações que não as
espaciais? Como vimos na seção anterior, a favela é constituída de riqueza urbana derivada
da combinação entre morfologia e ambiente social particulares, que, afinal, trouxeram iden-
43 tidade a estes territórios. Neste sentido, urbanizar uma favela deveria ser o equilíbrio entre
a dotação de melhorias urbanas e a preservação do ambiente urbano das favelas: implemen-
tar sistemas viário e de saneamento não deveriam pressupor a reestruturação completa
do tecido urbano da favela. Estariam os escopos dos programas de urbanização de favelas
imbuídos em orientar projetos desta natureza? Analisaremos as orientações contidas nos
escopos de projeto no Capítulo 2 para responder a estas perguntas.

1.2.1.4. A ideia de integração da favela à cidade


As políticas de urbanização de favelas defendem a integração física e social destes territó-
rios ao restante da cidade. Mas o que significaria tal integração? Se as favelas são territórios
marginais à lógica do Mercado formal e da proteção do Estado, isto não quer dizer que
suas populações também sejam isoladas. Estas estão integradas de modos diferentes “à vida
urbana através de sua inserção em diversos mercados: o mercado de trabalho, o mercado
político e o mercado da cultural (em particular do Carnaval)” (VALLADARES, 2005, p. 129).
Em outros termos,

a favela não é uma comunidade isolada: sua própria existência depende muito
mais de determinadas condições estruturais da sociedade global do que dos me-
canismos internos desenvolvidos para mantê-la. Em segundo, porque a noção de
que a favela é uma ‘comunidade marginal’ não passa de um julgamento de valor
que, por um lado, dá origem a uma atitude paternalista e assistencialista e, por
outro, fornece as bases ‘teóricas’ para tentativas de imposição das normas e
valores dos grupos de classe média que detêm o poder de escolha das ‘soluções’
adotadas por eles (e não pelos próprios favelados), consideradas as mais ade-
quadas para aquele ‘problema social das favelas’. Trata-se, assim, de uma visão
deformada da realidade desses locais. (MACHADO DA SILVA, 2011, p. 699).

Do mesmo modo, não se pode dizer que há um tipo único de favelado, embora haja uma
“forte estigmatização socioespacial, especialmente inferida por moradores de outras áreas
da cidade. Ser favelado é ofensa [...] e a expressão ‘favelado’ também virou ofensiva” (SILVA,
2012, p. 9). Esta estigmatização é também reforçada pelo Estado ao tratar de modo diferen-
ciado a favela dentro da gestão urbana.
Há grande enfoque dos programas de urbanização de favelas na morfologia e estrutura
urbana. Fiori et al. (2001) nos lembram que o diferencial e pioneirismo dessa nova geração de
políticas públicas para a redução da pobreza urbana e da exclusão social – na qual o projeto
urbano, objeto desta pesquisa, se inclui – foi a combinação e a sinergia de elementos59 já
presentes em políticas antecessoras de combate à pobreza e exclusão, mas que passaram
a ser trabalhados de modo integrado e combinados. Embora esteja dentro de seus objeti-
vos amplos a inclusão social, “a prioridade de um projeto de urbanização é fazer obras para
44 melhorar a acessibilidade e o saneamento da comunidade e, consequentemente, a sua qua-
lidade de vida urbana” (BUENO, 2000, p. 344). Portas (2004, p. xxv) afirma que intervenções
urbanísticas em favelas não resolvem problemas sociais ou a violência urbana, mas corrobo-
ram para “criar ambientes mais favoráveis às relações quotidianas (para além da saúde, edu-
cação...) e ainda mais se as comunidades reconhecerem nelas o resultado dos seus próprios

59. Os elementos identificados por Fiori et al. (2001) como presentes nesta nova geração de políticas de combate à
pobreza foram: 1) abordagem multisetorial para tratar o problema da pobreza como um fenômeno complexo e multifa-
cetado; 2) a valorização dos equipamentos e espaços públicos através do projeto urbano e de arquitetura de qualidade
como meio para integração física e social; 3) o impacto na cidade através da atuação em escala, para reduzir diferenças
entre favela e vizinhança; 4) parcerias público-privadas através da contratação de empresas para desenvolver projetos e
obras; 5) reforma estatal com descentralização, revisão fiscal e legislativa, o que deu mais eficiência e transparência ao
governo e garantiu uma legislação urbana menos contraditória; 6) participação e democratização, dando mais poder de
decisão aos pobres. Estes elementos, trabalhados de modo integrado e combinados, ajudam a “condicionar continua-
mente cada um dos componentes e, portanto, determinar a qualidade e a extensão da política como um todo” (FIORI
et al., 2001, p. 49).
esforços participativos”. Na prática, o projeto urbano nos programas de urbanização de fa-
velas age sobre as áreas livres de edificação, intervindo no construído quando necessário de
modo a reestruturá-las e/ou prove-las. É nesta esfera dos espaços coletivos que incidem as
relações com as vizinhanças como mecanismo para a integração física e social.
Delgado (2011, p. 73) critica a pretensão do idealismo urbanístico de que a morfologia
urbana60 determina o comportamento e a atividade social, lembrando que é a morfologia
social que “tem a última palavra acerca do que serve e o que significa um determinado lugar
construído”. Só a forma não determina o comportamento social. Dentro do campo do pro-
jeto urbano, há limites para a inclusão urbana e o combate à pobreza, pois envolvem diversas
competências e ações além daquelas que visam responder aos problemas de organização
espacial. O projeto urbano é o instrumento que materializa o primeiro passo destas políti-
cas, e enquadrar a favela na gestão urbana do território requer mais que um projeto e inter-
venções físicas. O abandono de equipamentos públicos construídos em favelas testemunha
a intermitência das políticas sociais, mostrando a descontinuidade como traço distintivo no
tratamento das favelas para o restante da cidade. Há inúmeras críticas a este modelo de
política de urbanização que tem a abordagem demasiadamente enfocada nas intervenções
físicas em detrimento dos investimentos em programas de desenvolvimento social e de
combate à pobreza que deveriam vir integrados ao processo de melhorias urbanas.
Roy (2004) defende que a ênfase nas melhorias físicas preconizadas por estas políticas
de urbanização de assentamentos informais, e sem o devido avanço no desenvolvimento
econômico e social, é apenas uma estetização da pobreza, e afirma que não se trata apenas
de limitações da urbanização, mas de quem define esta agenda. Pesquisas e autores lati-
no-americanos, por seu turno, afirmam que a abordagem integrada do projeto aumenta
a qualidade de vida urbana, mas que os benefícios sociais implantados61 pela urbanização
de favelas não são suficientes para garantir a inclusão social, visto que os programas so-
45 ciais de suporte não são prioridade frente às intervenções físicas (BUENO, 2000; FIORI et
al., 2001; CARDOSO, 2002; CAVALLIERI, 2003; DIAGONAL; DEMANDER, 2005; MAGALHÃES;
VILLAROSA, 2012).
É necessário pontuar que, em todas estas afirmações, há um certo reducionismo, por-
que mesmo o eventual desenvolvimento econômico e social não resolve a questão do status
legal e simbólico da favela perante a sociedade, que definitivamente regula a relação dos
moradores de favelas com o Estado, conforme explanamos na seção anterior, “A Lógica da

60. Sem dúvidas, a forma pode induzir a certas atitudes sociais, como a proximidade com a rua e com o encontro com
o outro, estimulando uma discussão mais imediata sobre questões comuns. No entanto, a forma não é a única determi-
nante do comportamento social. Se o fosse, como explicar que os Conjuntos Habitacionais dos subúrbios de Paris, onde
os espaços coletivos não pretendiam promover a aglomeração, foram foco de revoltas sociais desde os anos 1970/80?
Neste caso, é a segregação social que foi, segundo Delgado, a geradora deste comportamento, independente da mor-
fologia urbana existente.
61. Equipamentos e de serviços, como creches, programas sociais, de emprego e geração de renda etc.
Favela”. A chamada ausência do Estado não está localizada na carência de políticas sociais e
de desenvolvimento, embora seja óbvio que podem ser incrementadas e melhoradas, mas
está focada no tratamento hipócrita dado a estes locais, que são reconhecidos, mas não são
legitimados.
Não há como desconhecer que problemas sociais, de renda, de discriminação e de se-
gregação têm uma dimensão espacial evidente. A cidade que nos foi legada tem as marcas
da desigualdade impressas no espaço. Intervenções espaciais são esforços importantes de
correção destas marcas. A desvalorização maniqueísta das intervenções espaciais, embora
ancorada em uma suposta valorização dos programas sociais, como contraponto acaba ser-
vindo, mesmo que involuntariamente, para perpetuar o abandono destes territórios à sua
própria lei.
Pretende-se, através das políticas públicas de urbanização, sanear e melhorar o am-
biente urbano das favelas, mas também é objetivo final o controle urbano e a regularização
destes assentamentos através de novas legislações62 que permitirão que a favela passe a
ser reconhecida oficialmente, a ser integrada ao sistema de gestão urbana e incorporada
às regras da cidade. O processo de regularização traz benefícios e obrigações tanto para o
Estado e órgãos públicos como para os moradores. Através da regularização urbanística,
ruas, largos e praças ficam reconhecidos oficialmente como áreas públicas. Assim, o Estado
pode transferir a responsabilidade sobre a manutenção das redes às concessionárias.
Ao mesmo tempo, cabe à gestão urbana a manutenção dos espaços coletivos. Esta mesma
regularização também traz em si a possibilidade de endereço oficial na cidade para os mora-
dores das favelas, o que tem um valor simbólico e fundamental para a cidadania. No entanto, a
regularização de favelas se baseia em leis que geralmente não consideram a realidade social e
construída63 nem as dinâmicas, normas e posturas preexistentes, que são dificilmente admiti-
das pela lógica regulatória do Estado. Este processo de regularização, muitas vezes, gera con-
46 flitos entre os interesses do Estado e os interesses da população local. Com a regularização,

62. A regularização urbanística – legislação fundamental para que as áreas públicas das favelas sejam oficializadas –
geralmente tem como base o Projeto Urbano executado nas obras e todo o arruamento da favela. No entanto, projeto
e legislação são processos dissociados. Não necessariamente as obras executadas nas urbanizações de favelas foram
posteriormente transformadas em legislação. Ou seja, o Projeto Urbano é um instrumento para gerar a legislação, mas
apenas ele não é suficiente para que a legislação exista. A eliminação da irregularidade da favela só é possível a partir da
aprovação de legislação urbanística específica. Mesmo as obras estando concluídas de acordo com o Projeto Urbano,
se não houver regularização urbanística, as áreas públicas da favela nunca viram oficiais. Ou seja, o Projeto Urbano não
é capaz de mudar o conflito de irregularidade do território, embora ele seja fundamental para trazer soluções para as
questões urbanas, de saneamento e de risco nos assentamentos precários.
63. O Decreto n.º 28341 de 21 de agosto de 2007, que trata da legislação de uso e ocupação do solo da área de especial
interesse social do Bairro da Rocinha, estabelece número máximo de pavimentos por setores na Rocinha. Interessante
observar que o Decreto de 2007, na maior parte da Rocinha, estabelecia gabarito máximo de 2 pavimentos, enquanto
que, à época, já se verificava que a maioria das construções possuía 3 ou 4 pavimentos (M&T, 2008). A legislação já nasceu
obsoleta, ignorando a realidade construída. Qual seria o real objetivo desta legislação senão perdurar a ilegalidade da
favela?
o Estado passa a tentar combater a própria lógica da favela, como a flexibilidade de constru-
ção através da expansão horizontal ou vertical das moradias, certos modos de apropriações
dos espaços coletivos, ou serviços de baixo ou sem custo, entre outros, o que provoca a
resistência dos moradores. Passar pelo processo de urbanização significa, para seus mora-
dores, passar a ser regulado, a pagar taxas cuja população não está habituada e muitas vezes
não tem condições de arcar, a seguir as regras oficiais e ser incorporado pelo sistema que
rege a cidade formal.
Roy (2005) afirma que, ao não envolverem os moradores de favelas na construção e
estabelecimento das prioridades, estas políticas se usam de uma metodologia de-cima-para-
-baixo64 imposta pelos programas de urbanização. Seria interesse dos moradores de favelas
serem regularizados e romperem com a lógica da favela? No Brasil, os processos de regu-
larização tanto fundiária como urbanística não acompanharam o avanço das obras. Isto se
deve, em parte, tanto à morosidade do processo de regularização como à falta de interesse
tanto do Estado em finaliza-lo, uma vez que obras dão mais visibilidade política, como dos
moradores das favelas. Cavallieri (2003) sugere que a regularização, para os próprios mo-
radores, acabou passando para segundo plano após o abandono da política de remoções,
visto que as políticas de urbanização ajudaram a consolidar as favelas e deram estabilidade
às populações. Além disso,

A integração urbana, com todos seus benefícios, gera também obrigações que,
neste caso, acabariam por restringir liberdades de construir e de ocupar o solo,
de que favelados desfrutam de forma muito mais ampla do que os moradores
das áreas formais. [...] Cessadas as ameaças de remoção e despejo de épocas
passadas, as favelas se consolidaram, se autorregularam, estruturaram merca-
dos de compra, venda e aluguel de imóveis sem que fossem necessários títulos
47 legais de propriedade. (CAVALLIERI, 2003, p. 294).

Nisida (2017) discute conflitos e desafios entre a regulação urbanística pretendida pelo
Estado e a autorregulação existente nas favelas. Esta autorregulação é estruturada por uma
rede complexa65 de atores, princípios e regras, que surgiu como controle e manutenção da
ordem urbana própria a estes territórios, que permaneceram marginais à gestão pública.
A complexidade de tais práticas, segundo o autor, não é assimilada pelos instrumentos de
planejamento do urbanismo tradicional que embasam a lógica regulatória do Estado. Pelo

64. O termo utilizado pela autora, em inglês, é top-down.


65. De acordo com o autor, estes princípios são o Terra para Moradia, “Não Tinha Lote, Tinha Barraco”, Direito de Construir,
Direito de Passagem, Irreversibilidade ou Fato Consumado e o próprio Direito Estatal, que embora não seja aplicado literal-
mente nas favelas, gera regras recíprocas que ajudam a conformar a autorregulação. Para informações pormenorizadas,
ver Nisida (2017, Cap.2).
contrário, o Estado regula as favelas simplificando a questão na crença de que, ao tornar
a favela regular dentro da lógica estatal, a rede de autorregulação seria desmontada e o
controle seria transferido ao Estado. Lobosco (2014, p. 203) ainda afirma que estas estrutu-
ras complexas de autorregulação, que o autor chama de Direito Alternativo, “mostram-se
muito mais adequadas às condições e especificidades do espaço que ocupam do que suas
equivalentes formais”. Neste sentindo, tendo em vista a pouca efetividade da regulação e
controle urbanos aos moldes do Estado em favelas apontada por Lobosco e Nisida, have-
ria um modo de equilibrar a lógica regulatória do Estado e a lógica da favela, rumo a um
novo pacto urbano? Nisida sugere, neste sentido, uma “construção coletiva do novo direito”
(2017, p. 221-222), mas, assim como o autor, não trazemos resposta ao formato deste novo
pacto. Acreditamos, no entanto, que este novo acordo urbano só pode ser construído em
conjunto entre os atores que praticam a autorregulação e imprimem a lógica da favela, e
a gestão pública urbana, que pretende acompanhar estes territórios a partir de sua urbani-
zação como parte integrante da cidade, de modo a recriar novos instrumentos que funcio-
nem, que sejam respeitados por ambos e que efetivamente regulem as favelas dentro de
uma nova lógica compartilhada.
Gouverneur (2015) sugere uma nova abordagem de projeto e de gestão denominada
Armaduras Informais66, cujo conceito combina as qualidades do informal – que para nossa
pesquisa seria similar à lógica da favela – com as do formal – do mesmo modo, a lógica regu-
latória do Estado – para o planejamento urbano de novos assentamentos. O autor defende,
entre outras questões, que lotes formais sejam combinados em uma mesma quadra urbana
com as manchas receptoras67, as quais seriam destinadas ao processo de construção espon-
tâneo que ocorreria na informalidade independente da lógica regulatória do Estado.
No nosso caso, tratamos nesta pesquisa sobre o projeto em favelas, territórios que se
formaram distantes das regras e da lógica regulatória do Estado. Como já vimos neste mes-
48 mo Capítulo, o crescimento espontâneo em favelas muitas vezes acaba por afetar a qualidade
deste ambiente urbano quando limites não são respeitados. Por isso, acreditamos que as
manchas receptoras em favelas deveriam seguir processo de acompanhamento constante ba-
seado em regras cujas premissas seriam permitir novas construções – aceitando que a lógica
da favela permanece mesmo após a urbanização – mas dentro de limitação máxima de ocu-
pação para que estas não afetem as qualidades propostas pelo projeto ao ambiente urbano.
Diante da ampla abrangência que um projeto urbano em favelas precisa ter, novos lotes
resultantes da intervenção urbana poderiam ser indicados em projeto. Mas esta pequena
escala de ocupação das manchas receptoras precisa ser trabalhada após as obras e com os

66. Tradução livre do original em inglês, Informal Armatures. Para informações pormenorizadas, ver Capítulos 3 a 5 de
Gouverneur (2015, p. 119-201).
67. Tradução livre do original em inglês, Receptor Patches. Ver discussão sobre Manchas Receptoras na p. 60 no texto
original (GOUVERNEUR, 2015, p. 172-177).
próprios moradores da localidade em conjunto com a assistência técnica e o poder público.
No entanto, não de forma repressiva, como geralmente pretende a lógica regulatória do
Estado, mas construindo regras e procedimentos compartilhados que teriam maior potencial
de respeito e controle, não só pelo poder público, mas também pelos próprios moradores
da localidade, que estariam apoiados na presença constante da gestão pública no território.
Não é só a favela que resiste a mudanças. Aceitar a favela dentro das instituições do
Estado ainda é um desafio. O preconceito institucional chega à pequena escala, dentro da
hierarquia administrativa de uma prefeitura, perpetuando a favela como território excluído
da gestão pública e da cidade, mesmo recebendo investimentos públicos. “Q.”, que trabalha
na administração pública desde os anos 1980 em obras e projetos em favelas, conta que
vários colegas seus se recusam a entrar ou a trabalhar com favelas. “Nem iam na favela, não
queriam nem saber.” (informação verbal)68. Bueno (2000, p. 343) considera que

Há uma muralha legal contra a regularização e a manutenção urbana das favelas,


mesmo quando urbanizadas. A justiça formal do estado de direito burguês crimi-
naliza o brasileiro que vive em condições precárias e ‘fora’ do mercado de terras
e habitação.

Do mesmo modo, é importante observar que a intersetorialidade na gestão urbana


também encontra resistências institucionalmente. Mesmo com a adoção de uma política
habitacional que deveria trabalhar de modo integrado através do Programa Favela Bair-
ro (ver Capítulo 2), Fiori et al. (2001) identificaram69 que a cultura mono-setorial insti-
tucional ainda prevalecia no planejamento e intervenção, e apresentaram críticas sobre
o enfrentamento de vários setores que relutavam em atender às populações faveladas.
No setor público, ainda é muito complexo trabalhar de forma integrada, há muita resistên-
49 cia em todos os níveis institucionais. Anos depois desta constatação, a situação permane-
ce atual nas instituições públicas brasileiras. A intersetorialidade administrativa depende,
em grande parte, de decisão política, mas também dos funcionários, “da ação efetiva das
pessoas” (MAGALHÃES; VILLAROSA, 2012, p. 101), sobretudo quando se trata de ações nos
territórios das favelas.
O direito à cidade (LEFEBVRE, 2001) defendia a construção do projeto de cidade com a
participação efetiva da classe operária, segregada, e só assim seria possível sua integração.
Passou a ser referência dos movimentos sociais como conceito de projeto de cidade que
representaria as vontades coletivas e garantiria a todos o direito à vida urbana, “ao trabalho,
à instrução, à educação, à saúde, à habitação, aos lazeres, à vida” (LEFEBVRE, 2001, p. 139).

68. Entrevista concedida por “Q.”, arquiteto e técnico da PCRJ, a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
69. Em pesquisa feita em 1999-2000, que teve como objeto o Programa Favela Bairro.
Virou slogan de luta dos movimentos sociais urbanos, mas ainda não entrou para a agenda
internacional das cidades nos moldes do conceito defendido por Lefebvre. Diante das desi­-
gualdades urbanas crescentes, a UN-Habitat promoveu o V Fórum Urbano Mundial, no
Rio de Janeiro, em 2010, com o tema “O direito à cidade: unindo o urbano dividido”70.
O encontro trouxe como resultado a colocação da questão urbana na agenda internacional.
No entanto, as agências internacionais defendem o direito à cidade como direito ao acesso
a serviços e riquezas urbanas, mas como consumo, o que é radicalmente diferente do con-
ceito defendido por Lefebvre, que é o de direito ao projeto de cidade. A cidade que vem se
fabricando incentiva as desigualdades urbanas e exclui diversos atores urbanos do processo.
Logo, é fundamental o debate sobre a reconstrução do projeto de cidade, aos moldes de-
fendidos por Lefebvre, para as transformações efetivas da sociedade urbana e trazer de fato
o direito à cidade universal. No entanto, este debate não conseguiu avançar no 5o FUM, que
é um espaço institucional que, embora promova o encontro e debate entre os diferentes
atores urbanos – poder econômico, governos e organizações sociais – é criticado por não
enfrentar a continuidade do domínio do Capital na produção das cidades. Este debate ficou
concentrado no Fórum Social Mundial, encontro que ocorria em paralelo, de resistência po-
lítica ao projeto de cidade defendido pelo poder econômico e institucional no FUM, que foi
capitaneado pelos movimentos sociais. Mas não seria paradoxal um debate isolado sobre o
projeto de cidade, apenas entre seus pares, onde a sociedade urbana não está devidamente
representada? É preciso lutar por mais representatividade dos atores urbanos excluídos
para que se tornem agentes efetivos no processo decisório do projeto de cidade, mas no
foro diverso que compõe a sociedade urbana, pois cada ator é importante e tem seu papel
na fabricação da cidade.
Os movimentos sociais enfraquecidos, dispersos e desorganizados não conseguiram
combater o controle que o sistema financeiro exerce sobre as cidades. Nesse contexto,
50 a urbanização tem papel crucial como a grande geradora de lucro, através de novas institui-
ções de financiamento da construção e dos serviços, entre outros. Diante deste fato, Harvey
(2003) reitera a importância da pauta do direito à cidade, pois é através desta que aparecem
os conflitos entre a produção da cidade – urbanização – e a produção do lucro. Por isso, a
luta pelo direito à cidade deve ser pautada na criação de uma gestão democrática sobre o
uso do dinheiro e de sua aplicação na fabricação urbana, de modo a gerar novas formas de
urbanização. Ou seja, enquanto o sistema não consegue ser repensado e alterado, que se
controle o dinheiro e que se consiga protagonismo no direcionamento dos investimentos no
sentido da fabricação de uma cidade mais igualitária e inclusiva.
No Brasil, o Direito à Cidade de Lefebvre foi referência para o movimento da Reforma
Urbana iniciado nos anos 1980, que resultou no Estatuto da Cidade (BRASIL, 2008), só

70. Tema-título do forum: “The Right to the city: bringing the urban divide”.
promulgado em 2001. Este é o instrumento base brasileiro vigente para as políticas urbanas,
cujas diretrizes devem garantir o “direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à
terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e
aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (BRASIL,
2008, p. 15). Esta legislação é um grande avanço em termos de reconhecimento da função
social da terra urbana71, porque fornece instrumentos para o planejamento participativo e
dá poder à sociedade civil para a gestão democrática das cidades. Mesmo assim, é preciso
analisar que projeto de cidade está sendo espelhado na legislação. No Estatuto da Cidade,
a terra urbana “cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de or-
denação da cidade expressas no plano diretor” (BRASIL, 2008, p. 26). É no plano diretor que
se determina o que pode ou não ser regulado, as leis, normas e padrões urbanos do que seria
considerado aceitável na cidade.
Ora, o Sul Global está influenciado por modelos urbanos e práticas arquitetônicas her-
dados do Norte, cuja teoria gera normas e representações que se distanciam da realidade
existente, definindo padrões, desejos de cidade (RAO, 2012) e a própria lógica regulatória
do Estado. Diante disso, uma nova pauta do direito à cidade recoloca a questão da dita
informalidade na discussão urbana no Brasil no Estatuto da Cidade: a definição da função
social da propriedade e da cidade requer uma virada na compreensão do que está dentro e
do que está fora da cidade. A noção da diversidade, incluindo aqui a questão da autoconstru-
ção como legítima, discute a própria noção de cidade e, consequentemente, as políticas de
intervenção nestes territórios.

1.3.
O Papel Social do Projeto
51 Urbano em Favelas

Direcionado por programas de urbanização de favelas formulados dentro da lógica regu-


latória do Estado, o projeto urbano tem como objeto o ambiente das favelas, que, como
vimos, foi construído por atores e processos particulares que determinaram a lógica da
favela. Está aí posto um desafio, visto que, ao longo de décadas, a arquitetura e o urbanis-
mo estiveram às margens do ambiente construído informalmente. Isso se deve, em gran-
de parte, porque os assentamentos informais não faziam parte dos espaços de trabalho e

71. Atualmente está em tramitação no Senado Federal a Proposta de Emenda Constitucional 80/19, apresentada em
maio de 2019 por Flávio Bolsonaro (PSL/RJ) e outros 26 senadores. De cunho liberal, visa dar supremacia à propriedade
privada sobre a função social da propriedade, elemento central do capítulo Política Urbana vigente da Constituição.
As mudanças propostas representam um retrocesso, visto que dão direitos e liberdade aos proprietários para dispor
como bem entenderem das terras urbanas, isentando-os do cumprimento de deveres de função social definida pelo
Poder Público. (ALFONSIN, 2019).
projeto da arquitetura, configurando uma des-espacialização do projeto (FIORI; BRANDÃO,
2010), ou seja, o enfraquecimento, no debate urbano, da preocupação com o espaço dos
assentamentos informais e das consequentes estratégias para lidar com estes. A crítica
sobre o planejamento urbano modernista, que responsabilizou o projeto pelas falhas nas
políticas urbanas e habitacionais, e a valorização do crescimento orgânico do informal sem
arquiteto nem planejador por parte de alguns teóricos, foram alguns dos motivos desta
des-espacialização no debate urbano. Houve também uma ênfase nas dimensões socioeco-
nômicas e políticas, e em etnografia urbana, enquanto foi dada pouca atenção à dimensão
de projeto na cidade dita informal (FIORI; BRANDÃO, 2010; RAO, 2012).
A informalidade desafia as tradições do urbanismo e do projeto urbano, pois “é a desordem
que desafia o pensamento normativo em termos de expectativas e resultados” (RAO, 2012,
p. 672). Isto revela uma oportunidade para se repensar as práticas do urbanismo e da arqui-
tetura, sobretudo o papel do projeto, visto que suas ações,

quer invocando ‘abordagens participativas’ ou não, são realizadas assumindo


o resultado normativo, a priori, [perdendo-se] a escala das práticas cotidianas de
fabricação de locais e as diferentes escalas de atividade econômica que comprovam
a presença de diferentes grupos e comunidades na cidade. (RAO, 2012, p. 682-683).

A urbanização de favelas (slums), dentro dos moldes de políticas curativas72, entra na


agenda mundial assumida pelos países da ONU a partir de 1988, através da Estratégia Global
para Habitação até o ano 200073. Foi o que impulsionou a nova geração de políticas públicas
para a redução da pobreza urbana e da exclusão social (DENALDI, 2003; FIORI et al., 2001) nos
países da América Latina e no Sul Global.
É diante deste desafio e deste contexto consolidado informalmente que a nova
52 geração de programas de urbanização insere os arquitetos e urbanistas como atores-
-chave para pensar as transformações urbanas para as favelas, contratando equipes
multidisciplinares coordenadas por estes profissionais, abrindo assim um novo campo
na prática do projeto de arquitetura e urbanismo em favelas (DENALDI, 2003; BARAN-
DIER, 2015). Isto tem também importância simbólica, pois “significa, entre outras coi-
sas, incorporar a ‘cidade informal’ como ‘cliente real’ dos escritórios de arquitetura e
não mais vê-la apenas como objeto de intervenção do poder público.” (DUARTE; SILVA;
BRASILEIRO, 1996, p. 182).

72. São consideradas políticas curativas aquelas que agem sobre áreas informais já consolidadas, e que tem como dire-
cionamento remediar os problemas resultantes da ocupação informal. As políticas preventivas são aquelas que atuam
sobre as terras urbanas ainda não ocupadas de modo a se antecipar ao Mercado e à ocupação informais (SMOLKA, 2003).
73. Global Strategy for Shelter to the Year 2000, da ONU, assinado em 20 de dezembro de 1988.
O projeto urbano é “uma qualificação espacial cuja transcrição se faz a partir de instru-
mentos próprios ao arquiteto-urbanista-paisagista74, através de uma série de parâmetros
aparentemente heteróclitos” (TSIOMIS, 1996), e no caso tratado nesta pesquisa, além da de-
finição de Tsiomis, também é instrumento de ação direta no espaço urbano via políticas e
programas públicos que estão inseridos dentro de um planejamento de cidade. Este projeto
urbano tenta traduzir os preceitos propostos por estas políticas públicas, o contexto con-
solidado específico com múltiplos atores, demandas e com lógica própria, como vimos, e se
materializa em forma, como instrumento técnico que tem como papel a orientação para a
execução de obras para promover transformações urbanas neste contexto.
Projeto é ainda o registro de um momento, um documento que marca um tempo específico,
como se congelasse o contexto estudado para a representação de um futuro desejado.
Neste sentido, há um conflito inerente ao projeto, que tem uma temporalidade delimitada,
dentro do processo, que é contínuo. Como lidar com um território em permanente transfor-
mação, com tempos mais ágeis que os normativos, que vêm desde os primeiros momentos
da ocupação e imprimiram uma lógica ao território estudado?
Enquanto o território nas favelas vai sendo construído e transformado dentro dos tempos
ágeis da favela, os projetos de urbanização são desenvolvidos respeitando tempos contratuais.
Muitas vezes, entre o início e o final do projeto, o território da favela já se modificou.
Ou ainda, entre o tempo do projeto e a implementação das obras, longos anos se passam e
o território da favela estudada já não é mais o mesmo. Os tempos de duração dos projetos
e das obras públicas em favelas são geralmente superiores aos tempos programados. Isto se
deve a vários motivos: por se tratar de obra pública e sujeita a maior controle; pelo ambiente
já estar construído, habitado e em pleno funcionamento ao longo de todo o processo; pela
necessidade de troca e participação dos moradores, e de levantamentos diversos do am-
biente da favela para entendimento do território; pela lentidão nas aprovações e sucessi-
53 vas paralisações, entre outros. Estes elementos determinam uma temporalidade específica
(PETRAROLLI, 2015) à urbanização de favelas.
Ademais, praticamente todo processo de projeto público é atropelado pelo tempo político
(PETRAROLLI, 2017, p. 45), que, com demanda de inaugurações, interfere nos cronogramas
de projeto, na definição de prioridades e na boa execução das obras. O descompasso entre
as temporalidades da favela e do processo de urbanização é um conflito que precisa ser en-
frentado e incorporado no projeto. Efetivamente, as favelas são territórios em permanentes
transformações, e nem o projeto nem a gestão conseguiram, até o momento, modificar esta

74. No Brasil, o projeto urbano é uma atribuição exclusiva do arquiteto-urbanista, que também tem dentro do seu campo
de atuação “a Arquitetura Paisagística, concepção e execução de projetos para espaços externos, livres e abertos, priva-
dos ou públicos, como parques e praças, considerados isoladamente ou em sistemas, dentro de várias escalas, inclusive
a territorial” , conforme art.2, parágrafo único, inciso III da Lei Nº 12.378, de 31 de dezembro de 2010, que regulamenta o
exercício da Arquitetura e Urbanismo.
lógica. Por que não incluir esta variável no processo, encarando-a como uma realidade e não
como um problema a ser controlado?
Sabemos que lidar com as temporalidades dos diferentes atores (tempo político, técnico,
administrativo, financeiro, de negociações) é parte do processo, pois, como nos diz Tsiomis,
“Conceber o território é saber assumir o risco do tempo” (2006, p. 79). Mas há mecanismos
que podem ser articulados para que o projeto esteja mais presente, de certa forma mais
contínuo, e próximo do território ao longo do processo. O faseamento do projeto75, com
metodologias diferenciadas de acordo com a especificidade de cada fase,76 é fundamental
dentro destas estratégias para privilegiar a participação e envolvimento dos usuários nas
decisões que manterão e/ou transformarão o construído, e para que o projeto vire instru-
mento de luta por ideias construídas coletivamente que nele estariam configuradas.
O projeto é uma pequena parte temporal de todo o processo, que pensa a urbanização
da favela em diferentes dimensões e escalas. A prática do projeto em favelas é, atualmente,
para “J.” (informação verbal)77 “talvez uma das poucas possibilidades de aplicar tudo aquilo
que se tem como atribuição e disciplina de arquiteto, da escala quase do planejamento
para o desenho urbano até chegar ao detalhe da madeira, [...] e é onde se consegue ter
uma envergadura social absurda” alcançando muitas vezes 5.000, 10.000 famílias. No en-
tanto, se constata a prática dos programas públicos em favelas de urbanização por camadas
(CARDOSO; DENALDI, 2018), com intervenções pontuais ou parciais cujos projetos não são
implantados em sua completude (PETRAROLLI, 2015; CARDOSO; DENALDI, 2018), devido à
complexidade de todo o processo. Neste sentido, o projeto estaria sendo forçosamente
fragmentado, com etapas de execução que não são determinadas por seus autores, mas
geralmente pelo poder público. Na definição das prioridades do que deve ser executado dos
projetos, assim como a população local,

54 O arquiteto é o último a ser consultado. Nós sempre tivemos uma noção clara
de onde começar a obra, quais seriam os pontos mais interessantes. Nós sempre
sabíamos como fazer isso. Mas o Estado não nos dá autoridade para poder opinar
sobre esse assunto, lamentavelmente (informação verbal) 78.

O projeto completo poderia ser um documento questionável, visto ser a urbanização por
camadas a prática recorrente. No entanto, o projeto completo é um documento necessário79

75. Veremos no Capítulo 2 as diferentes estruturas e metodologias dos projetos dentro dos programas públicos buscando
trazer mais eficiência ao processo, não necessariamente dentro da lógica que aqui estamos defendendo.
76. Ora envolvendo a população para construir, participar e decidir as propostas, ora se tornando atividade exclusiva da
equipe para estudar a viabilidade técnica das propostas elencadas.
77. Entrevista concedida pelo arquiteto “J.” a esta pesquisa em agosto de 2017.
78. Entrevista concedida pelo arquiteto “H.” a esta pesquisa em agosto de 2017.
79. No projeto completo, não necessariamente todos os eventos devem estar com mesmo nível de definição.
como registro de um compromisso de ações resultantes de um processo a princípio par-
ticipativo, interdisciplinar e interinstitucional com vários atores envolvidos: para o poder
público, é documento imprescindível para o planejamento e para a captação de recursos,
e para garantir autonomia em relação às pressões de empresas interessadas nas obras,
que, como é próprio de sua natureza, visam obter lucro máximo propondo rearranjos e
modificações de projeto na execução de obras; para as populações locais beneficiadas,
é instrumento para negociações e reinvindicações junto ao poder público para a imple-
mentação e conclusão das ações nele constantes; para as empresas, que tem nesse do-
cumento respaldo contra pressões políticas que muitas vezes influenciam cronogramas
e alterações de escopo ao longo das obras ou pressões de atores locais que controlam o
território.
Entendendo que o tempo do projeto é determinado por seu contrato, é aí que a me-
todologia tem importância para garantir voz aos diferentes atores na sua elaboração.
A aproximação da equipe técnica à favela é uma estratégia necessária em urbanização de
favelas não só para o reconhecimento das estruturas físicas e sociais preexistentes, dos
interlocutores e do saber local que, como vimos, construiu ao longo do tempo o territó-
rio, mas e sobretudo para a escuta aos usuários. Afinal, não seriam estes os verdadeiros
clientes do projeto? Articular a escuta e o saber técnico com o saber local ainda é um de-
safio do projeto e do processo. Por não terem conhecimento técnico, dentro do conceito
do campo profissional normativo, os moradores (oprimidos) tem suas ideias e propostas,
quando faladas, muitas vezes minimizadas ou não são levadas em consideração pelos téc-
nicos e órgãos públicos (opressores) (FREIRE, 1987). “B.”, morador do Morro do Alemão,
traz relatos de suas tentativas de diálogo com os técnicos do projeto, ele que sempre
botou a mão na massa nos mutirões e é referência nas obras, há muito anos, na favela
onde mora.
55
Lá em cima tem condições de fazer um campo de futebol, uma quadra espor-
tiva [polivalente]. Mas se você fala isso com o arquiteto... Ele olha pra sua
cara e fala: ‘mas tu(sic) é burro, hein?’ A gente não sabe muito, né? Mas tem
condições de fazer. Essa rua aqui começou a ser feita, tinha o projeto e tinha
um engenheiro encarregado. E perguntei pro cara: ‘Por que você não faz igual
a uma pista de corrida? No caso, é meio ondulada, um pouquinho mais alta
dos lados e no meio.... pra água não correr só nos cantos? Em vez de você
deixar correr toda a água pelos cantos, [por que] não deixa correr um pouco
pelo meio? Sobe 5cm dos lados e 2,5cm no meio, ia aliviar um pouco, distribuir.
Os carros nem iam sentir....’ Aí ele me perguntou: ‘Onde você aprendeu isso?’
‘Sabe o que é, moço? Aqui é morro. Se o senhor soubesse como é que desce
água.... O senhor nunca viu uma chuva aqui! Quando é chuva aqui, ninguém
sobe, porque a água toma conta da rua todinha. Então, se fosse como eu falo,
a água ia passar pelo meio, ia correr um pouco pras pontas....’ Aí, me vem o
cara e me bota o ralo no meio e ao contrário e pra cima. Como que a água vai
entrar? (informação verbal)80.

Ao mesmo tempo que “B.” foi desconsiderado nas tentativas de diálogo no projeto, ele
foi contratado posteriormente pela empresa construtora, por conta de sua experiência em
obras, para capacitar a mão de obra. Mas sua postura, que parecia não estar de acordo com
o cargo que ocupava, foi motivo de chamada do engenheiro quando ele estava no buraco
com os peões:

‘Eu estou pagando o senhor pro senhor mandar! Olhe a sua roupa, olhe a sua
posição! Pro senhor mandar, não pro senhor botar mão em ferramenta. O senhor
acha que eu vou botar mão numa enxada? É para o senhor sentar e falar o que
é pra fazer.’ Eu ia responder, mas fiquei quieto... (risos) ‘O senhor tem vergonha
de falar?’ Na ocasião, eu tive que mudar, senão eu ia perder meu emprego...
Se o arquiteto, se o engenheiro pegasse um pouquinho só na ferramenta, ele ia
ver que não é assim que se ensina... (informação verbal)81

Estas situações mostram o vácuo que existe entre as partes, que não conseguem uma
troca de saberes, limitada por determinações e diálogos truncados, cujo resultado não é a
parceria e confiança mútua, mas uma hierarquia normativa, impositiva e exclusiva.
O escritório de campo foi metodologia defendida por algumas equipes vencedoras do
Concurso Favela Bairro (DUARTE; SILVA; BRASILEIRO, 1996) para aproximar a equipe técnica
ao território estudado. Embora não tenha sido posteriormente exigido nos contratos de
projeto82, vários arquitetos adotaram o escritório técnico avançado na favela como estra-
56 tégia de comunicação e de participação, geralmente ocupando uma sala da Associação de
Moradores ou de algum edifício comunitário. Na prática, sua realização tem sido delegada
aos próprios arquitetos, que devem assumi-la sozinhos, pois geralmente não é exigido em
contratos de projeto. Assim, o escritório de campo fica totalmente a cargo da equipe pro-
fissional contratada, que não recebe verba para tal, e o poder público não fica obrigado a dar
respaldo à equipe em campo. Mesmo sendo o escritório de campo um importante lugar de
troca entre o técnico e o local, reconhecidamente necessário e defendido em metodologias
que prezam privilegiar o diálogo entre os saberes técnico e local, sua realização ainda não
conseguiu ser institucionalizada no processo de urbanização de favelas.

80. Entrevista concedida por “B.”, morador do Morro do Alemão, a esta pesquisa em fevereiro de 2018.
81. Idem.
82. No Favela Bairro 1, vários escritórios instalaram escritório de campo desde o início dos projetos, incentivados pelo
poder público, embora isto só fosse exigido para a adequação dos projetos em obra. Ver Capítulo 2.
No projeto urbano, “toda concepção é autônoma e heterônoma” (TSIOMIS, 2006, p. 78),
pois, ao mesmo tempo que os projetos são desenvolvidos com metodologias com certa
autonomia pelas equipes contratadas pelo Estado83, estes estão amarrados por uma série de
especificações, devem se articular com os diferentes atores e são submetidos a fiscalizações
e aprovações. E ainda, ao longo da implementação das obras, os projetos sofrem modifica-
ções que nem sempre são desenvolvidas pelos autores e o resultado construído pode perder
a concepção original do projeto urbano (CARVALHO, 2010). Por isso, é importante lembrar
que o que foi construído a partir de um projeto, na verdade não representa uma ideia livre
e independente, ou até a própria proposta original, surgida exclusivamente no âmbito da
equipe multidisciplinar autora do projeto, mas sim o resultado de um processo em que o
projeto é um instrumento fundamental.
A inserção do projeto no processo de urbanização de favelas trouxe um grande salto
na qualidade de intervenção pública nestes territórios (BUENO, 2000; DENALDI, 2003) e o
projeto urbano, a partir de então, se torna peça exigida para o processo decisório de ações
públicas em assentamentos precários para melhorias urbanas até os dias de hoje no Brasil.
No entanto, a dimensão dos projetos depende do desenho institucional dos programas, do
escopo de trabalho, de sua abrangência, dos recursos disponibilizados e das metodologias
empregadas (MAGALHÃES; VILLAROSA, 2012). Estas questões – e outras, que chamamos de
categorias e discutimos no Capítulo 2 – são decisivas, porque o projeto urbano em favelas so-
mente opera a partir de programas oficiais em um campo restrito e delimitado pelos mesmos.
Há uma forte relação entre projeto e recursos públicos para as obras nas favelas.
Do ponto de vista técnico, é a partir de um projeto que são gerados custos estimativos
para o processo de decisão das ações públicas. Em projetos urbanos, as soluções abrangem
ações multidisciplinares e os custos estimativos são um fator essencial para a escolha das
soluções mais adequadas. Na pior das hipóteses, os custos estimativos podem até indicar
57 que a urbanização da favela é inviável. Qualquer alteração no projeto que gere mudanças no
orçamento passa por fiscalização e deve ser justificada para ser aprovada, e, assim, a obra se-
guir adiante. Neste sentido, quanto mais o projeto estiver detalhado e especificado, melhor
para se ter um controle mais preciso sobre a aplicação do dinheiro público. Por isso, o pro-
jeto é instrumento de controle de recursos públicos para operacionalizar obras nas cidades.
O grau de definição do projeto em favelas é uma questão. Até que nível se consegue garan-
tir o custo de uma ação, visto que o contexto é consolidado, muitas vezes de difícil acesso,
e em constante transformação? São necessários ajustes ao longo do processo, diante de
tantas variáveis. “Tendo um projeto mais detalhado e um acompanhamento constante do
projeto, você consegue ter um controle do orçamento, dá pra fazer um trabalho completo.

83. Ou por empresas construtoras ou representantes do Estado, como veremos a seguir, na prática, acontecendo em
urbanização de favelas.
Se faz [agora] um projeto básico só pra gerar um orçamento, aí...” (informação verbal)84.
O processo mudou e o projeto virou instrumento de manipulação de dinheiro público,
perdendo seu papel protagonista, como veremos no Capítulo 2.
O fato é que um mesmo programa tem produzido diferentes projetos, alguns mais sen-
síveis, outros mais autoritários. O que interfere nestas circunstâncias? Inegavelmente, as
metodologias de projeto influenciam. No entanto, as modalidades de contratação e os es-
copos de projeto direcionam fases, produtos, entregas e prazos dos serviços de projeto,
que muitas vezes engessam as metodologias das equipes contratadas. Mas, muito além das
especificações técnicas de escopos que direcionam metodologias e projetos, ou de mani-
pulações do protocolo de participação, as escamoteações do processo podem vir através
de trâmites oficiais, como a discriminação prévia da destinação dos recursos por item de in-
vestimento, dada pelo Quadro de Composição de Investimentos (QCI) já determinado pelo
poder público antes mesmo da contratação do projeto. Esta é uma modalidade que passou
a ser praticada. Numa ordem inversa do que deveria ser o processo85, a previsão de investi-
mentos acaba direcionando e limitando o projeto, este se tornando subserviente à intenção
política e às diretrizes de projeto de cidade. Na concorrência pública para a contratação de
projetos para o bairro da Rocinha, no âmbito do PAC-Favelas financiado pelo PAC-2 (ver item
2.2.2), por exemplo, grande parte dos investimentos constantes no QCI presente no edital86
já estava destinada a um sistema de teleférico, mostrando que havia uma intenção prévia
do poder público de construção deste equipamento, em detrimento das necessidades que
por ventura poderiam ser levantadas ao longo do projeto, representando um enorme retro-
cesso no processo decisório e no papel do projeto no processo de urbanização de favelas.
O projeto da cidade compreende hipóteses e propostas (SECCHI, 2015), mas o que fazer
quando as propostas estão previamente direcionadas por interesses minimamente obs-
curos? Em projetos públicos, a hipótese vem antes de qualquer conhecimento prévio do
58 território, pois, “se existe um desejo político, primeiro existe uma hipótese.” (informação
verbal)87. Cabe ao arquiteto, a partir da hipótese, levantar os fatos e interpreta-los para a
construção do projeto. Deste modo, “o projeto, por ser um instrumento de pesquisa, con-
segue junto ao cliente rever o desejo político e, portanto, rever a hipótese” (informação
verbal)88. Mas, neste caso, onde claramente há interesses prévios na construção de grandes

84. Entrevista fornecida por “Q.”, arquiteto e técnico da PCRJ, a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
85. O projeto é justamente o instrumento que auxilia o processo decisório dos investimentos e ações públicas para
urbanizar uma favela. Logo, ele antecede o Quadro de Composição dos Investimentos, que só poderia ser construído a
partir de um projeto minimamente desenvolvido.
86. Na ocasião, era inclusive exigência para participar da concorrência que a equipe demonstrasse ter em seu quadro
ao menos um profissional que detivesse atestado de projeto de teleférico, fato que depois foi questionado pelo IAB-RJ
por representar reserva de mercado. Diante da pressão, esta exigência foi retirada do edital divulgado pelo Governo do
Estado do Rio de Janeiro (GERJ).
87. Entrevista concedida pelo arquiteto “H.” a esta pesquisa em agosto de 2017.
88. Idem.
equipamentos e em “obras emblemáticas” (CARDOSO; DENALDI, 2018), teria mesmo o pro-
jeto um poder político de interferir no projeto de cidade?
O ex-Secretário de Habitação da PCRJ Sérgio Magalhães lembra e defende

a potencialidade do projeto como articulador de políticas públicas - o desenho


da urbanização, o projeto - era capaz de articular e até coordenar as diversas
políticas, que antes estavam isoladas - de assistência social, de educação, de
saúde, de saneamento de transportes - enfim, as diversas políticas que existem,
elas se potencializavam quando integravam. E o projeto era instrumento para
isso, tinha esse papel. (informação verbal)89

Além disso, o projeto é um instrumento de articulação entre os diferentes atores. Caso


a metodologia contemplasse ampla participação no processo, o projeto poderia ser também
instrumento de controle dos moradores que, a princípio, seriam os diretamente beneficia-
dos, mas que, por articulações do jogo urbano de construção das cidades, e por diferentes
motivos, perderam força nas negociações.
Sérgio Magalhães fala da potencialidade do projeto nos tempos do Programa Favela
Bairro, que, apesar das intenções legítimas dos formuladores do programa (ver item 2.1.1),
assim como os outros programas públicos de enfoque urbanístico na cidade do Rio de Ja-
neiro nos governos César Maia (1993-1996) e Luiz Paulo Conde (1997-2000), surgiu dentro de
um planejamento estratégico neoliberal, com um “novo discurso sobre a cidade que preco-
nizava: o combate à desordem urbana; a inserção da cidade no circuito das ‘cidades globais’;
a planificação estratégica; as parcerias público-privadas; a flexibilização da legislação urba-
nística” (BARANDIER, 2015, p. 131), para melhorar a imagem da cidade, que então estava as-
sociada à violência urbana e à criminalidade, e atendendo a interesses tanto públicos quanto
59 privados. (BRANDÃO, 2004).
Ambos os autores Barandier e Brandão nos mostram que este planejamento estratégico
foi fundamental, no campo da arquitetura e do urbanismo, para a valorização do projeto e
dos desenhos urbanos como ferramentas para intervenção direta no espaço público – o
que Conde (2003) chamou de urbanismo de projetos (2003 apud BARANDIER, 2015) – pois o
projeto urbano tinha o papel de instrumento para a integração social e o desenvolvimen-
to urbanos. No Favela Bairro acreditava-se que, através de “investimentos feitos nas áreas
públicas, onde a integração social primeiramente ocorre, a autoestima dos moradores au-
mentaria”, como se o programa assumisse “uma disseminação sistemática e efetiva des-
tas melhorias, [...] contribuindo para o desenvolvimento da área como um todo” (2004, p.
243), o que Brandão denomina de efeito metástase (2004, p. 243). No urbanismo de projetos,

89. Entrevista concedida a esta pesquisa em dezembro de 2018.


o arquiteto e urbanista passa a ser reconhecido como protagonista no planejamento urbano,
quando antes lhe era destinada apenas a materialização gráfica, ao final do processo, de
propostas que haviam sido previamente concebidas por outros profissionais. “O novo papel
desempenhado pelos arquitetos no planejamento contemporâneo não só aumenta seu po-
der no processo de tomada de decisão urbana, mas também enfatiza sua responsabilidade
social como projetistas90” (2004, p. 313, tradução nossa).
Ao mesmo tempo, este planejamento estratégico da cidade, que “reivindicava normas
urbanísticas flexíveis, menos intervenção do Estado no funcionamento do mercado”, colo-
cava os “projetos urbanos como instrumento para atração de investidores internacionais e
fortalecer a competitividade das cidades no mercado global” (BARANDIER, 2015, p. 131). Neste
sentido, Brandão alerta que a falta de consciência dos arquitetos no desempenho deste
papel pode ter consequências sociais graves, pois, ao mesmo tempo que o projeto tem in-
tenções de melhorias urbanas, ele também pode significar direcionamento de verba pública
para favorecer certos investidores e grupos sociais privilegiados. Ao mesmo tempo que é
valorizado no planejamento estratégico, há um consequente declínio do papel do projeto
na fabricação das cidades, visto que passa a servir aos interesses dos agentes financeiros.
Esta é a realidade do projeto nas cidades liberais, enquanto os arquitetos continuam
produzindo o urbanismo dos homens de boa vontade (LEFEBVRE, 2001), numa ideologia hu-
manista que remete a um passado arcaico, sem a compreensão das mudanças de posição
conferidas ao Homem moderno na cidade. Levar em conta os aspectos aqui discutidos do
processo, dos diferentes atores e das lógicas que nele atuam contribuiria para metodologias
de projeto mais ajustadas à realidade urbana e para a ressignificação de seu papel social e de
sua potência no processo de fabricação urbana.
No próximo Capítulo, trataremos do papel do projeto dentro das políticas de urbaniza-
ção de favelas, construindo um panorama de programas brasileiros e de suas metodologias
60 e escopos, que delimitam o enfoque, a abrangência e a ação do projeto urbano em favelas.
Mostraremos que vários aspectos da lógica da favela discutidos neste primeiro Capítulo,
apesar de não serem identificados e assumidos pelos programas como organizadores das
práticas cotidianas nas favelas, fazem parte do processo de projeto. Estas práticas e con-
flitos entre as lógicas da favela e do Estado serão ilustrados nos casos de referência apre-
sentados no Capítulo 3, onde mostramos processos de urbanização de três favelas, que vão
muito além da ideia e do resultado pretendido pelos projetos.

90. Tradução nossa para a palavra designers. Utilizamos o termo projetista por ser a palavra usualmente aplicada para o
profissional que desenvolve projetos no Brasil, mas destacamos que este termo em português não tem a devida corres-
pondência ao termo inglês design, que abrange um conceito mais amplo de projeto, concepção e desenho.
2.
O PROJETO URBANO
EM FAVELAS NOS PROGRAMAS
PÚBLICOS NO BRASIL
2.
O PROJETO URBANO
EM FAVELAS NOS PROGRAMAS
PÚBLICOS NO BRASIL

Neste Capítulo, analisaremos as condições de produção do projeto dentro dos programas


de urbanização de favelas no Brasil. Tendo em vista que nosso objeto de pesquisa é o projeto
em favelas, nos baseamos na análise de programas públicos que inseriram o projeto urbano
como elemento central no processo decisório de ações públicas de melhorias nas favelas.
Não temos aqui a pretensão de fazer um histórico dos programas de urbanização de favelas, mas
de apresentar o papel que ocupa o projeto urbano nesta política habitacional.
Considerando o vasto universo de experiências brasileiras neste campo desde os anos
1990 até os dias de hoje no Brasil, e devido à impossibilidade de abranger sua totalidade e
nas diferentes regiões e cidades brasileiras, nos restringimos a analisar programas que dire-
cionaram ações do poder público em favelas nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Mesmo tendo consciência de que o universo de experiências brasileiras não estaria inteira-
mente representado nesta pesquisa, a partir dos programas analisados pretendemos apre-
sentar e discutir procedimentos e metodologias que influenciaram o modo de fazer projeto
no processo de urbanização de favelas. Esperamos que nossa base analítica aqui apresentada
possibilite alimentar revisões dos programas públicos e ressignificar o projeto em favelas.
Os escopos de projeto, dentro dos programas e dos financiamentos, determinam temas e/ou
metodologia a serem obrigatoriamente abordados pelo projeto para a urbanização de uma favela.
Por isso, nossa pesquisa foi primeiramente estruturada na análise de escopos de projeto – e na
sua ausência, nos manuais de instruções para a obtenção do financiamento que determinam os
62 temas de projeto passíveis de investimento. Estes temas têm importância crucial por delimitarem
a abrangência, o enfoque do projeto e sua atuação. Mas seriam os escopos de cada programa
diferentes entre si? O que muda, o que é acrescentado e o que desaparece de um para o outro?
Como metodologia, foram analisados os escopos de projeto dos seguintes programas
públicos de urbanização de favelas de instância federal, estadual e municipal que atuaram
nestas duas cidades brasileiras a partir dos anos 1990: Favela Bairro e Morar Carioca, da cidade
do Rio de Janeiro; Bairro Legal e Renova/SP, da cidade de São Paulo; e os federais HBB,
PAT-PROSANEAR, PAC 1 e PAC-UAP. Visando a compreensão da sequência temporal destes
programas, construímos uma linha do tempo apresentada na página a seguir. Como primeiro
passo metodológico, extraímos, dos escopos analisados, os temas de projeto preconizados
como fundamentais para a urbanização de uma favela. Após uma matriz comparativa, obser­
vamos que os temas de projeto tiveram seu marco inicial no Programa Favela Bairro com
poucas diferenças significativas entre um programa e outro desde então. Em termos de pro-
cedimentos e metodologias de programas, também nos deparamos com poucas variações
que influenciaram o modo e as condições de produção do projeto em favelas. Por isso,
não apresentamos dados de todos os programas analisados, mas optamos por destacar os
diferenciais de alguns programas em relação ao Favela Bairro, que trouxeram, a nosso ver,
novas condições de produção do projeto em favelas. Observamos que, embora os programas
HBB, Bairro Legal, Morar Carioca e Renova/SP não sejam intensamente discutidos neste
Capítulo, a análise de seus escopos foi fundamental para confirmarmos o quadro de temas e
as condições que incidem sobre o projeto em favelas até os dias de hoje.
Por isso, na estrutura deste Capítulo, optamos por dedicar um item ao Programa Favela
Bairro, visto que este serviu como modelo para programas de outros países (BRAKARZ, 2002;
SILVA JUNIOR, 2006), e para programas federais como o Programa Habitar Brasil/BID - HBB91,
e de outros municípios brasileiros, que se basearam em suas diretrizes e em seu escopo de
projetos para a construção de programas próprios, como o Programa Bairro Legal92 (2001-
2004), da cidade de São Paulo; o Programa Baixada Viva93 (1999–2007), que, embora não tivesse
o foco em favelas, agiu de modo similar em bairros populares de diferentes municípios da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro; dentre outros.

Programa Guarapiranga / Mananciais (SP)

Bairro Legal Renova/SP


Bairro Legal
PAC-Favelas (RJ)

PAT-PROSANEAR PAC-UAP

HB HBB PAC 1 PAC 2

Favela Bairro 1 Favela Bairro 2 Morar Carioca

1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020
(pref. SP) Gilberto Kassab
Celso Pitta

(pref. SP) José Serra


(gov. SP)Mário Covas

(pres.) Lula

(gov. SP) Geraldo Alckmin


(gov. SP) José Serra
(pref. RJ) Cesar Maia

(pref. SP) João Dória


(gov. RJ) Sérgio Cabral

(gov. RJ) Wilson Witzel


(pres.) Jair Bolsonaro
(pref. RJ) Cesar Maia

(pref. RJ) Cesar Maia

(gov. SP) João Dória


(gov. SP) Geraldo Alckmin

(gov. SP) Geraldo Alckmin

(pref. SP) Fernando Haddad

(pref. SP) Bruno Covas


(gov. SP) Mário Covas

(gov. RJ) Luiz Fernando Pezão


(pref. SP) Gilberto Kassab

(pref. RJ) Marcelo Crivella


(gov. RJ) Rosinha Garotinho

(pref. RJ) Eduardo Paes


(gov. RJ) Marcello Alencar

(gov. RJ) Antonhy Garotinho


(pref. SP) Paulo Maluf

(pref. RJ) Eduardo Paes

(pres.) Michel Temer


Jogos Olímpicos
(pref. SP) Marta Suplicy
Paulo Conde

(pres.) Dilma Roussef

(pres.) Dilma Roussef


Copa do Mundo FIFA
(pres.) FH Cardoso
(pres.) FH Cardoso

(gov. RJ) Sérgio Cabral


(pres.) Lula
(pref. SP)
(pref. RJ) Luis

Figura 8
Linha do tempo dos programas de urbanização de favelas
que atuaram nas cidades de RJ e SP a partir dos anos 1990
analisados nesta pesquisa. Fonte elaboração própria.

91. O programa Habitar Brasil (1992-1999), do Governo Federal, era dividido em dois subprogramas: Desenvolvimento
Institucional (DI) e Urbanização de Assentamentos Subnormais (UAS). Com o financiamento do BID a partir de 1999,
o programa passou a ser chamado de Habitar Brasil/BID (HBB) (1999-2005). Para mais informações sobre o programa,
ver DENALDI, 2003; MCIDADES, 2007; MAGALHÃES; VILLAROSA, 2012.
92. Para mais informações sobre o Programa Bairro Legal, ver SAMORA, 2009 e RUBIO, 2011.
93. Nome político do Programa de Urbanização Integrada de Bairros da Baixada Fluminense – Nova Baixada. Para mais
informações sobre o Nova Baixada, ver MAGALHÃES; VILLAROSA, 2012.
Na sequência, apresentamos outros programas de urbanização pós Favela Bairro que,
a nosso ver, trouxeram novos procedimentos para o processo de projeto em favelas. Destes,
destacamos apenas os diferenciais em relação ao Favela Bairro.
Nos casos em que foi possível, fizemos a análise das diferentes etapas de projeto. Identi-
ficamos que alguns temas que faziam parte da primeira etapa, Diagnóstico94, não resultavam
em desenvolvimento de projeto, mas serviam para orientar ações através de outros progra-
mas95 que, em princípio, deveriam estar articuladas com o processo de urbanização de favelas.
Por isso, observamos os temas de cada programa a partir da etapa de projeto que direciona
para o Projeto Básico e/ou Executivo, que, por sua vez, é base para as obras nas favelas. Os
temas de projeto de cada programa analisado estão apresentados em tabelas, compondo um
conjunto de informações que nos possibilita estabelecer um marco comparativo do projeto no
âmbito dos programas e entre situações construídas em favelas resultantes destes programas.
Ao final deste Capítulo, apresentamos uma grade de temas de projeto própria a esta pes-
quisa baseada nos resultados da análise dos escopos de projeto dos diferentes programas.
Entendemos que a análise dos escopos é fundamental para verificar o direcionamento e limita-
ções impostos pelos mesmos ao projeto em favelas e para dar subsídios a futuras revisões. Do
mesmo modo, esta análise e o quadro apresentado buscam dar subsídios para possibilitar res-
significações do projeto em favela dentro do âmbito dos programas públicos, da atuação dos
arquitetos e urbanistas e do próprio poder público no processo de urbanização destes territórios.
Os escopos de projetos de cada programa delimitam, em tese, um campo de intervenção
e, dentro dele, as atribuições que cabem ao projeto urbano. Mas, na realidade, há um contexto
maior que define a atuação dos arquitetos nestes programas. Além dos temas de projeto que
emergem dos escopos (ou dos manuais de instruções, como já comentamos), há outras con-
dicionantes que determinam a produção do projeto. Por isso, em cada um dos programas aqui
salientados, apresentamos ainda metodologia, operacionalização, atores e outras questões
64 que influenciaram no papel do arquiteto no processo e no modo de fazer projeto em favelas.
Esta análise mais ampla além dos temas de projeto nos ajudou a elencar algumas cate-
gorias, que estão resumidamente destacadas a seguir:

• Investimentos, que dão a dimensão das intervenções e têm relação direta com
a abrangência das mesmas;
• Escopo, que define as disciplinas a serem enfrentadas por cada projeto e, da
mesma maneira que o item anterior, estabelece o que é possível projetar e o que
está fora do alcance de cada programa;

94. O Diagnóstico e o Plano de Intervenção são as duas primeiras etapas do projeto, que tanto no Favela Bairro 1 quanto
no PAT-PROSANEAR são denominados diferentemente. Explicaremos esta diferenciação, mais adiante, no subitem cor-
respondente a cada um destes programas.
95. Alguns destes programas serão apresentados no item 2.1.5.
• Contratações, que compõem um item central, porque a maneira com que elas
são feitas podem definir o papel dos arquitetos em cada programa: é radical-
mente diferente ser contratado através de um concurso ou licitação públicos
e pelo poder público, ou por uma empreiteira. Mesmo dentro de um programa
público, o tipo de contratação subordina o projeto aos interesses do contratante.
No primeiro caso, contratualmente, o projeto deve atender às diretrizes do pro-
grama e interesses públicos, o que, no segundo caso, nem sempre acontece;
• Desenvolvimento dos projetos, que se refere a como acontece a elaboração
dos projetos. Estes podem ser entregues como projeto básico ou executivo,
complementados na obra, contratados por partes, sendo que de cada processo
surgem ações que interferem no modo de fazer projeto em favelas;
• Papel do arquiteto, que é um resumo das questões anteriormente citadas,
apresentando o grau de liberdade e as condicionantes que incidem na produção
do projeto. Em resumo, este papel é formado por todas as categorias anteriores,
compreendendo o volume de investimentos, o escopo dos trabalhos, a maneira
em que são feitas as contratações e a mecânica de desenvolvimento dos projetos.

Entendemos que estas categorias elencadas não seriam as únicas que condicionam o con-
texto maior e a própria produção do projeto. No entanto, estas são determinantes no campo
do projeto e na atuação dos arquitetos e urbanistas nos programas públicos de urbanização
de favelas. Partindo das categorias elencadas nesta pesquisa, pretendemos estabelecer um
comparativo entre as diversas maneiras de atuação dos programas de urbanização em favelas
e como estas diferenças incidem na qualidade ou não dos projetos – um de nossos objetivos,
neste Capítulo.
Não restam dúvidas de que, para um mesmo local, cada arquiteto convocado a proje-
65 tar deve pensar soluções diferentes. Mas o que queremos discutir neste Capítulo são as
condições de produção dos projetos em cada programa, olhando para escopos de projeto
e demais variáveis impostas pelos programas. Com as mesmas condições, é possível que
surjam projetos mais adequados que outros. Não é a diferença entre projetos que estamos
discutindo, mas as diferentes condições de produção que cada programa tem colocado para
arquitetos e urbanistas.
Este texto caminha no sentido de reafirmação da importância destas políticas públicas
de urbanização de favelas, mesmo que com correções e sugestões de modificação possíveis
para a melhoria da performance do projeto. No final do capítulo, faremos uma avaliação
das diferenças entre os programas analisados apontando vantagens e desvantagens de cada
uma das dinâmicas criadas por cada programa, no intuito de firmar posição sobre a impor-
tância de continuar com programas de urbanização de favelas e de refletir e modificar as
formas de atuação que vem sendo praticadas com os mesmos.
2.1.
O Programa
Favela Bairro

A partir dos anos 1980, obras de urbanização de favelas começaram a ser institucionalizadas
no Brasil no âmbito municipal, através de programas de baixos investimentos para prover
infraestrutura e serviços básicos, sem projetos prévios, com mão de obra local em regime
de mutirão, remunerado ou não, que pouco a pouco foi sendo substituída por contratações
de pequenas empresas privadas.
A urbanização gradual96 da favela foi uma modalidade implementada em alguns municí-
pios da Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), na qual a ação de urbanização poderia
estar baseada na reestruturação do edificado, mesmo que isso significasse demolição da
moradia existente e sua reconstrução de modo a estar inserida em um lote que depois seria
regularizado97 (BUENO, 2000; DENALDI, 2003). Era um processo experimental, conforme
aponta Denaldi (2003, p. 95-96), cuja falta de recursos era um limitante, e por isso a ur-
banização acontecia muitas vezes nos trechos menos complexos ou consolidava situações
consideradas inadequadas. Apesar das dificuldades, destacamos que desde os anos de 1980
a reestruturação do construído, no processo de urbanização de favelas, foi uma questão
mais enfrentada pelos governos paulistas do que praticada no Rio de Janeiro, seja através da
reconstrução da moradia em lotes individuais ou através do atendimento em novas edifica-
ções coletivas em substituição às antigas moradias.
No município do Rio de Janeiro, foi implementado pela Secretaria Municipal de Desen-
volvimento Social (SMDS) o Projeto Mutirão98 (1983-1984) seguido pelo Projeto Urbanização
Comunitária/Mutirão Remunerado (1985-1992) para executar obras em favelas, reunindo en-
genheiros e arquitetos da Prefeitura. O foco eram as áreas públicas para implementação de
66 infraestrutura, não cabendo remoção ou reordenação do edificado, apenas relocação das
famílias em situações de risco. É o que expõe “Q.” (técnico da PCRJ), que começou traba-
lhando na SMDS fazendo orçamentos para as obras nas favelas.

96. Denaldi (2003, p. 56) define como urbanização gradual (ou parcial) aquela que “consiste na execução de melhorias
ao longo de muitos anos. Trata-se da urbanização parcial, de setores da favela, ou da somatória de intervenções pon-
tuais realizadas pela população e pelos governos que, com o passar dos anos, acabam resultando na sua consolidação.
As intervenções executadas podem ou não ser orientadas por um plano geral de urbanização. Em função de condicio-
nantes financeiras, sociais e políticas, a urbanização gradual é a modalidade que mais tem sido adotada pelos governos
municipais.”
97. Mesmo que a regularização fundiária não tenha avançado como desejado inicialmente. Para informações mais de-
talhadas, ver BUENO (2000).
98. O Projeto Mutirão está sendo chamado pela administração atual de “Mutirão Obras Comunitárias”, tendo sido alte-
rado seu escopo original para qualquer tipo de obra em favelas que use mão de obra local remunerada. (Ver: http://www.
rio.rj.gov.br/web/smhc/projeto-mutirao).
Era muito difícil na Prefeitura a gente tocar (a obra) porque não tinha condição,
não tinha projeto, não tinha nada. [...] Começou pela rede de esgoto, depois a
gente começou a fazer as pavimentações pra proteger essas redes, depois foram
as pavimentações das escadarias, a drenagem e água. Depois passei para projeto
e levantamentos. O projeto? A gente pegava uma planta, tirava a metragem no
local, fazia uma reunião com a comunidade e tocava o mutirão. Era difícil por-
que a gente não tinha muita experiência com mutirão. [...] Não tinha Trabalho
Social99... [...] No início começou com engenheiro sanitarista, depois começou a
pegar arquiteto, engenheiro... (todos da Prefeitura). Nesta época, nós vimos que
tinha necessidade de ter um projeto. Aí começamos a ter as plantas, a fazer os
desenhos nas plantas, a fazer uma apresentação para a comunidade, a fazer
um planejamento. [...] Dali partiu pro mutirão remunerado e começamos a nos
preocupar com a urbanização em si, mais completa, urbanizar mesmo. Porque
nós começamos a construir creches também. A gente tinha que proteger nossa
creche, né? Então tinha que fazer todo o entorno, com pracinha, com drenagem,
iluminação pública, com tudo. [...] Nós começamos a contratar empresas para
poder construir as creches, porque as creches a gente não estava conseguindo
fazer com a mão de obra local, demorava muito. No dia que tinha tijolo, não
tinha cimento. No dia que tinha cimento, não tinha areia.... Aí começamos a
fazer licitações para contratar as empresas. (informação verbal, grifo dele)100.

Estas práticas de diversas administrações municipais em favelas na década de 1980, num


processo de aprender fazendo, “resultou num acúmulo de experiência que, sem dúvida, con-
tribuiu para a construção institucional das políticas de urbanização (implementadas na déca-
da seguinte) e para o desenvolvimento de parâmetros técnicos de intervenção” (DENALDI,
67 2003, p. 100). Foi assim que, da experiência do Projeto Mutirão, foi surgindo o Programa
Favela Bairro, no Rio de Janeiro:

99. O Trabalho Social (TS), que tratamos nesta tese, é um dos componentes sociais introduzidos pelos financiadores
internacionais nos programas de urbanização de favelas. O TS é operacionalizado de diferentes formas: pelo poder
público, que desenvolve internamente ou terceiriza, e que geralmente anda em paralelo ao projeto, mas raramente
está incorporado ao processo de elaboração de projeto, como foi o caso do Programa PAT-PROSANEAR (ver Capítulo
3). Dentre as atividades do Trabalho Social, estão “levantamento de dados, diagnóstico e cadastro da população a ser
atendida; mobilização e organização da mesma, comunicação social e educação sanitária e ambiental; negociação das
intervenções físicas a ser realizadas; acompanhamento de famílias nas frentes de obras, reassentamentos, remoção tem-
porária, autoconstrução ou melhoria habitacional; e seguimento no pós-obra. Trata-se de uma variedade de atividades,
instrumentais à viabilização e sustentabilidade das intervenções físicas, que convergem para um conjunto de objetivos
comuns: adaptar os projetos, na medida do possível, às necessidades locais; facilitar a execução da obra e suas eventuais
complementações individualizadas; garantir a adequada operação e manutenção dos investimentos realizados, assim
como a convivência em contextos que podem representar uma novidade (prédios, por exemplo) para a população aten-
dida, sobretudo a reassentada.” (MAGALHÃES; VILLAROSA, 2012, p. 50-51).
100. Entrevista concedida por “Q.”, arquiteto e técnico da PCRJ, para esta pesquisa em fevereiro de 2019.
Não tinha recursos, [...] não tinha corpo técnico para enfrentar isso. Desde o
ano de 1987, 1988, que já se tinha uma ideia de fazer uma coisa mais ampla...
e mais planejada, né? Como é que a gente ia conseguir recursos sem projeto?
O Favela Bairro nasceu nessa época (do Projeto Mutirão), não foi da noite pro dia.
Foi uma coisa muito bem pensada. (informação verbal)101.

Nos anos 1990, a urbanização de favelas ganha dimensão e investimentos. Denaldi


(2003) contextualiza o momento: a descentralização federal, que deu aos municípios bra-
sileiros autonomia para a implementação de políticas habitacionais a nível local e captação
de recursos para tal; a globalização, dentro do espírito neoliberal, cujos investimentos inter-
nacionais eram disputados pelas cidades e a urbanização de favelas (slums) ingressando na
agenda mundial assumida pelos países da ONU a partir de 1988 através da Estratégia Global
para Habitação até o ano 2000102. Burgos (1998) acrescenta que, no caso do Rio de Janeiro,
o crescimento da violência urbana disparado pelas ações dos poderes paralelos nos terri-
tórios informais foi também um fator decisivo para a construção de uma nova política de
combate à exclusão.
O Programa Favela Bairro (1994-2007), implementado na cidade do Rio de Janeiro para
urbanização de favelas já consolidadas, surge neste contexto de acúmulo de experiências
anteriores e de um marco legal que possibilitava investimentos significativos na urbanização
de favelas. É, neste sentido, uma continuidade, mas também, e ao mesmo tempo, um pro-
grama inteiramente novo, se tornando referência no Brasil103 e no mundo (BRAKARZ 2002;
FIORI et al., 2001, p. 48), e sua importância é devida à mudança de enfoque dada a como
tratar o problema da favela, aos seus amplos objetivos, aos arranjos institucionais e à escala
de abrangência e de atuação (FIORI et al., 2001; DENALDI, 2003), e consequente visibilidade
alcançada à prática de urbanização de favelas (CARDOSO, 2002). Este modelo de política de
68 intervenção em favelas104 foi adotado, na mesma década de 1990, em vários países do Sul
Global, estando vigente até os dias de hoje. Por isso, estamos destacando este programa,

101. Idem.
102. Global Strategy for Shelter to the Year 2000, da ONU, assinado em 20 de dezembro de 1988.
103. Outras políticas habitacionais em moldes abrangentes e de forma integrada antecederam o Favela Bairro, como,
por exemplo, a política habitacional do governo Brizola (1983-1986) na urbanização das favelas Pavão-Pavãozinho e Can-
tagalo (CARDOSO, 2000); ou a adotada pelo governo Erundina (1989-1992), que estabeleceu diretrizes para projetos e
obras em favelas (DENALDI, 2003). Mas ambos os programas não alcançaram a performance do Favela Bairro, o que o
levou ao destaque mundial.
104. Esta não é a única forma de lidar com a questão dos assentamentos informais no Brasil e no mundo. As políticas de
intervenção em assentamentos informais precários podem variar entre: a erradicação do assentamento; a reurbanização
do assentamento, com a demolição do assentamento e sua reconstrução no mesmo local nos padrões urbanísticos e
edilícios “semelhantes à linguagem dominante”; e a urbanização, mantendo as características e o edificado, mas melho-
rando a qualidade urbana e ambiental do assentamento (BUENO, 2000). Estas três formas de política de intervenção em
assentamentos informais coexistem e são adotadas contemporaneamente, dependendo da situação de cada assenta-
mento e da política municipal vigente. (BUENO, 2000; ROLNIK, 2016).
já que, em termos de processo de projeto em favelas, tornou-se norteador para outros pro-
gramas no Brasil como um todo.
A primeira fase do Favela Bairro (1994-1996), “embrionária”, iniciada com recursos pró-
prios municipais e que abrangia 16 favelas105, foi usada para demonstrar capacidade institu-
cional para gerir e implementar o programa, visando um financiamento externo.106 Impor-
tante destacar que o financiamento foi resultado de negociações do município com o Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID), com algumas imposições do financiador, visto
que “o regulamento do banco tinha uma série de exigências”107 (CÉLULA URBANA, 2003, p.
66), mas também com conquistas, entre elas o conceito diferencial de urbanização de fave-
las de forma mais ampla e integral, que foi defendido pela equipe municipal como viável e
mais eficaz do que a simples provisão de saneamento e arruamento (LABHAB-FAUUSP, 1999,
p.136). A implementação do Programa foi garantida pelo contrato de financiamento com o
BID, cabendo ao banco os recursos para obras e ao município a contrapartida para os pro-
jetos. Para intermediar o contato entre BID e SMH, estruturou-se o PROAP-RIO - Programa
de Urbanização de Assentamentos Populares, que resultou em dois contratos: o PROAP I
(1996-2000) e o PROAP II (2000-2006), sendo investidos US$600 milhões108 em 143 favelas
beneficiando 556.000 moradores109 (PINHEIRO, 2008). A captação de recursos permitiu dar
escala de abrangência e visibilidade ao programa, assim como deu uma dimensão política
nunca antes vista no Brasil à urbanização de favelas.
Em 2010, a prefeitura fechou junto ao BID um novo contrato, o PROAP III, de financiamen-
to no valor de US$150 milhões a serem investidos em Urbanização Integrada, Ação Social,
Regularização Urbana e Desenvolvimento Institucional. Neste mesmo ano, foi lançado um
programa sucessor ao Favela Bairro – o Morar Carioca, que trataremos mais adiante. Embora
o discurso político de então fosse o de urbanizar todas as favelas da cidade até 2020 como
parte do “legado olímpico”, a coisa não aconteceu como anunciada. De 2009 a 2013, quando
69 a gestão municipal estava mais focada na preparação da cidade para os eventos esportivos

105. Segundo a Gerente Lu Petersen, os projetos para as dezesseis favelas serviram de base para as negociações.
(LABHAB-FAUUSP, 1998, p. 136).
106. Nos primeiros anos do Favela Bairro, “o comprometimento do Governo municipal foi absoluto, chegando a cana-
lizar cerca da metade do orçamento da cidade para a Secretaria de Habitação, dando-lhe um papel político central na
gestão.” (MAGALHÃES; VILLAROSA, 2012, p. 5).
107. Entre elas, “a obrigatoriedade de licitação de projetos e de obras.” (CÉLULA URBANA, 2003, p. 66).
108. Cada um dos contratos no valor de US$ 300 milhões, sendo US$ 180 milhões oriundos de empréstimo do BID e US$
120 milhões liberados como contrapartida pelo município do Rio de Janeiro.
109. Estes dados se referem ao Programa Favela Bairro, para favelas de médio porte entre 500 e 2.500 domicílios, iniciado
em 1994. A partir de 1998, outros dois programas aos moldes do Favela Bairro foram implementados para favelas de
outros portes: o Programa Bairrinho, para favelas de pequeno porte de 100 a 500 famílias, alcançou 44 assentamentos
e 62.000 moradores atendidos; e o Grandes Favelas, para favelas acima de 2.500 moradias em 4 assentamentos e com
163.316 moradores atendidos, que serviu de base para algumas intervenções do Governo do Estado do Rio de Janeiro
no PAC-Favelas. O nome Favela Bairro foi vulgarmente adotado para o conjunto destes três programas municipais de
urbanização de favelas no Rio de Janeiro, que ao todo beneficiaram um total de 781.316 moradores em áreas de baixa
renda concentradas em 191 favelas (PINHEIRO, 2008).
internacionais, mais de 60 mil moradores foram removidos de favelas no Rio de Janeiro,
número superior à soma do praticado em ambos os governos Pereira Passos (1902-1906)
e Carlos Lacerda (1961-1965), reconhecidos por adotarem a política de remoção na cidade
(AZEVEDO; FAULHABER, 2015, p. 36).
A falta de prioridade na pasta de urbanização de favelas tem sido um fato no Rio de
Janeiro desde o fim do PROAP II. Dados da Prefeitura indicam que o PROAP III está em anda-
mento desde 2011, no entanto, as informações sobre que programa está dando as diretrizes
para as obras em favelas não estão claras e até confusas. Ao que parece, o PROAP III está,
no momento, viabilizando a execução de obras de infraestrutura baseadas, sobretudo, no
banco de projetos da SMH desenvolvidos nos anos 2000110. A “marca” Favela Bairro aparece
na página institucional da Prefeitura111, voltando a ser adotada pelo governo Crivella como
programa vigente de urbanização de favelas, o que, no nosso entendimento, é oportunismo
político, tendo em vista a descaracterização dos projetos nas obras implementadas em fa-
velas pela administração atual. Nossa crítica não recai sobre o fato de não haver, há muito
anos, contratação de projetos de urbanização de favelas. O banco de projetos é necessário
para o planejamento e captação de recursos, mesmo levando em conta a necessidade de
atualização dos projetos frente à dinâmica de transformação das favelas no longo período
entre projeto e obra. Contratar projetos mesmo não tendo verba para a implementação
imediata das obras foi uma atitude institucional extremamente importante no Favela Bairro
e que, geralmente, não é prioridade nas administrações municipais no Brasil, assim como
em outros países, como a França, conforme delineamos no Capítulo 1. O que criticamos é o
uso de um programa de renome para tirar vantagem política sobre obras que, no fundo, são
apenas de manutenção ou de infraestrutura, ou de projetos modificados que não seguiram
as diretrizes e premissas urbanísticas que originaram e celebrizaram o dito programa. Por
este motivo, está sendo considerada, nesta pesquisa, a vigência do Programa Favela Bairro
70 até o término do contrato do PROAP II.

2.1.1. A formulação do programa


Em 1993, com parte da equipe técnica que já havia atuado no Projeto Mutirão nos anos 1980,
foi criada a Secretaria Extraordinária de Habitação, sendo depois oficializada como Secreta-
ria Municipal de Habitação (SMH)112, para desenvolver os seis programas de ações coordena-
das em favelas e loteamentos precários formulados pelo GEAP, dentre eles o Favela Bairro.

110. Esta informação foi fornecida pelo Coordenador de Projetos, Túlio Fábio Guida, em entrevista em fevereiro de 2019,
na qual não compartilhou dados mais precisos.
111. Identificamos nesta pesquisa que a página oficial da Prefeitura, consultada ao longo de 2019, tem variado o nome do
programa e a cada consulta a informação é diferente: ora o “Morar Carioca” é o programa vigente, ora é o Favela Bairro.
Ver: http://noticias.prefeitura.rio/habitacao/programa-favela-bairro-urbaniza-area-e-entrega-120-apartamentos-no-
-jardim-america/.
112. Atual Subsecretaria de Habitação, da Secretaria Municipal de Infraestrutura e Habitação – SMIH.
A estrutura institucional, a qualificação técnica e a prioridade política foram fundamentais
para a boa operacionalização e o sucesso do programa. A SMH e outras secretarias foram
criadas para a articulação institucional.

Quando a secretaria foi promovida, criaram-se diversas secretarias – IPP,


Desenvolvimento Social, de Obras etc. e tinha 230 funcionários, sendo 80 técnicos
de nível superior, a maior parte engenheiros e pouquinhos arquitetos que tinham al-
guma experiência em áreas pobres. Então, logo que foram criadas estas secretarias,
essas metas da Prefeitura tinham gasto, naquele ano, oito milhões da moeda com
as políticas relacionadas a esses 6 programas. (Informação verbal)113.

A SMH era a responsável pelo gerenciamento e desenvolvimento do Favela Bairro, com


seus funcionários supervisionando as fases de projeto, as obras de melhorias urbanas, a po-
lítica de regularização fundiária, a política social de manutenção, entre outras funções. O
programa promoveu diversas parcerias, mas a SMH manteve o controle e propriedade sobre
ele. Mesmo com a centralização de praticamente todas as funções na SMH, o Favela Bairro
foi reconhecido como a primeira iniciativa habitacional no Rio de janeiro que envolveu uma
ampla gama de atores (cultura, meio ambiente, assuntos urbanos etc.) (FIORI et al., 2001,
p. 53). As secretarias articuladas desde o início do Favela Bairro foram as de Desenvolvimento
Social, Educação, Saúde e Desenvolvimento Urbano (RIBEIRO, 1996, p. 13), articulação que
depois foi sendo institucionalizada através da macro função, na fase subsequente, com a
entrada do PROAP. O IPLANRIO dava suporte à SMH, ficando responsável pela operacionali-
zação dos contratos de projetos. Este órgão era também responsável pela atualização e for-
necimento, às equipes, dos dados e informações sobre as favelas, assim como a contratação
de levantamentos, voos para restituição aerofotogramétrica, topografia, enfim, elementos
71 necessários para o bom desenvolvimento dos projetos.
Algumas estratégias foram articuladas ao longo da concepção dos programas para
lidar com as pressões políticas. A primeira foi uma matriz classificatória114 das favelas,
montada por

113. Entrevista concedida a esta pesquisa em dezembro de 2018.


114. A matriz classificatória estabeleceu os seguintes critérios de seleção das favelas para receber o programa:
“a dimensão da favela deve ter entre 500 e 2.500 domicílios, que corresponde a 60% da população de favelas no Rio; o
déficit de infraestrutura, estimado pela percentagem de domicílios com serviços inadequados de água potável e esgota-
mento sanitário; a carência socioeconômica, avaliada para cada favela pela média dos seguintes fatores: percentagem de
chefes de família com rendimentos de até um salário-mínimo; percentagem de domicílios cujos chefes são analfabetos,
percentagem de domicílios chefiados por mulheres e a percentagem de crianças de 0 a 4 anos; o grau de facilidade de
urbanização, avaliado em termos da existência de infraestrutura prévia e do custo e complexidade em complementá-la;
a dimensão estratégica, que considera a existência de programas complementares já planejados, localização em rela-
ção a outras ações planejadas nas redondezas e factibilidade de realização do projeto no momento previsto.” (CÉLULA
URBANA, 2003, p. 69).
um grupo de técnicos da prefeitura, já na Secretaria, para classificar o que fa-
zer nesses diversos programas e quais deveriam ser as prioridades. [...] E ele
(o prefeito) publicou no Diário Oficial a nossa classificação. Essa classificação
dizia o seguinte: todas as favelas, as 200 e tantas, se tiver recurso, quando tiver
recurso, vão ser (urbanizadas) [...]. Mas nesta ordem! Aí ele chamou os verea-
dores.... porque, o que acontecia? O vereador ia lá, pedia uma bica aqui, pedia
um caninho ali.... E ele disse: ‘Olha, agora acabou isso. Vocês vão ter obra inteira
nas favelas, nessa classificação.’ Então, as lideranças comunitárias passaram a
saber isso, que tinha uma ordem, uma classificação e a razão da classificação
qual era... então não houve disputa sobre isso. Aí tinha os que não queriam...
‘Se não quiserem, não entram! Ninguém vai forçar ninguém.... as lideranças que
não estiverem querendo, não vai ter (urbanização)!’ Claro que, em seguida, todas
quiseram e com isso foi um processo político muito mais tranquilo. Depois como
metodologia não era para fazer o projeto e levar lá. Era para fazer uma investiga-
ção junto com os moradores, as lideranças, do que era necessário na visão deles,
com o que era os objetivos do programa.” (informação verbal, grifo dele)115.

O grau de dificuldade foi um dos critérios de classificação das favelas, mas isso não sig-
nificou que as mais problemáticas fossem as prioritárias. Havia nisso um dilema: ao mesmo
tempo que as favelas mais pobres poderiam ser imaginadas como as prioritárias para receber
os programas, ao investir nelas primeiro será que os recursos não seriam todos consumidos
sem que o quadro pudesse revertido e sem trazer resultados palpáveis que dessem credibi-
lidade ao programa?

Nós botamos em classificação essas favelas, por grau de dificuldade. A ideia,


72 quase que uma ironia, era que tínhamos que escolher aquelas mais pobres, mais
difíceis, e eu insisti que tinha que ser o contrário, que tinha que ser as mais fáceis.
Porque nós íamos trabalhar em 15 favelas. Essa era a meta. Nós tínhamos que
trabalhar de tal modo que o resultado fosse visível, fácil de entender no curto
prazo, para o programa ser bem-sucedido! Senão, ia passar um tempo, ia gastar
o governo e a gente… (informação verbal)116.

A formulação do Favela Bairro foi montada por um grupo de técnicos da Prefeitura com
experiência em favelas. “Todos nós (do Projeto Mutirão) participamos o tempo todo da for-
mulação do Favela Bairro, ouvindo nossas opiniões, as dificuldades que a gente passava no

115. Entrevista concedida para esta pesquisa em dezembro de 2018.


116. Idem.
dia a dia dentro das comunidades.” (informação verbal)117. O tratamento das áreas coletivas
e a implementação de infraestrutura básica, que representavam o foco das obras do Projeto
Mutirão, foram transportados para a formulação do Favela Bairro, atribuindo um viés urba-
nístico ao programa.
O principal objetivo do Favela Bairro era promover a integração urbanística, idealizada
como instrumento para a integração social, com ações focadas em intervenções físicas
para melhorias coletivas118, e não atender a demandas particulares dos mais necessitados.
Buscava-se a transformação das favelas através da melhoria de sua reorganização espa-
cial interna e da conexão com o entorno, o que, segundo os objetivos do Favela Bairro,
promoveria sua integração à cidade formal, com implantação de malha viária, espaços
e equipamentos públicos, garantia de estrutura urbana básica e melhoria das condições
ambientais, além da oferta de serviços (coleta de lixo, abastecimento de água, esgoto
e drenagem) em condições similares às existentes no resto da cidade. Estes objetivos
perduraram ao longo de todo o programa, mas as ações aos poucos foram perdendo seu
caráter de integração urbanística para o predomínio da implementação de infraestrutura
na fase final do programa.
O Programa Favela Bairro foi sofrendo ajustes ao longo de sua operacionalização.
Na literatura acerca de seu processo (DENALDI, 2003; JAENISCH, XIMENES, 2019), encontra-
mos um consenso sobre as fases do programa, que estão geralmente ligadas à questão do
financiamento. O Favela Bairro teve três fases: a fase inicial, o PROAP I e o PROAP II. Nesse
ciclo, a entrada do financiador BID promoveu mudanças significativas na estrutura institucio-
nal e operacional do programa, que influenciaram no projeto em favelas e seus resultados.
Porém, entre o PROAP I e o PROAP II, aconteceram apenas ajustes119 não consideráveis para
o projeto. Por isso, para nosso objeto que é o projeto em favelas, classificamos as fases do
Favela Bairro de outro modo: a fase inicial, que denominamos aqui Favela Bairro 1 (1994-
73 1996), a qual englobou os primeiros contratos de projeto resultantes do Concurso Favela
Bairro; e a segunda fase, que denominamos aqui Favela Bairro 2 (1996120-2006), que engloba
tanto o PROAP I quanto o PROAP II.

117. Entrevista fornecida por “Q.”, arquiteto e técnico da PCRJ, para esta pesquisa em fevereiro de 2019.
118. Este programa se restringia às áreas públicas e promovia remoções das edificações em áreas de risco e daquelas
necessárias para viabilizar a implantação do projeto urbanístico e de equipamento, tendo por princípio intervir o mínimo
possível nos domicílios.
119. Durante o PROAP I houve atualizações nos documentos de contratação do Programa, que a SMH chamou de Favela
Bairro 2ª, 3ª e 4ª fases. Estas se relacionavam às revisões dos escopos de contratação dos serviços de projeto. Apresen-
taremos adiante as mais significativas para o projeto.
120. Embora o Decreto Legislativo no. 129 que regulamenta o PROAP-RIO tenha sido publicado em setembro de 1995,
esta pesquisa está adotando o ano de 1996 como o início do PROAP, quando os primeiros contratos de projeto em seus
moldes começaram a ser assinados.
2.1.2. A fase Favela Bairro 1 – o início do programa (1994-1996)
O projeto-piloto para o Complexo do Andaraí, que estava entre as primeiras favelas a serem
urbanizadas pelo Favela Bairro, foi inicialmente desenvolvido pelo corpo técnico da Prefeitura121,
numa estratégia de capacitação e de alteridade, com o intuito de dar credibilidade institu-
cional à iniciativa ao viabilizar “a liberação de recursos, por iniciativa do Prefeito Cesar Maia,
para as primeiras 16 áreas de intervenções, abrangendo 23 favelas” (CÉLULA URBANA, 2003,
p. 64). Uma equipe de técnicos municipais, que seriam fiscais de projeto das equipes contra-
tadas pela Prefeitura, desempenhava o papel de projetista. “Nós éramos tocadores de obra
(no Projeto Mutirão) e (no Favela Bairro) passamos a ser fiscais de projeto e fiscais de obra.
O escritório (de arquitetura) veio trazer uma nova visão para a Prefeitura” (informação verbal)122.
Esta experiência contribuiu significativamente para que a gestão pudesse compreender as
dificuldades do projeto e de sua implementação no processo de urbanização de favelas.
Para as outras 15 áreas123, o Favela Bairro buscou no setor privado a elaboração dos projetos
urbanos, com equipes multidisciplinares contratadas após seleção por concurso público de me-
todologia. Tais equipes deveriam obrigatoriamente ser coordenadas por arquitetos e urbanistas.
O objetivo do concurso era selecionar equipes multidisciplinares cuja metodologia pos-
sibilitasse “resolver o máximo com o mínimo de homem/hora”, com soluções metodológicas
capazes de “enfrentar problemas complexos”, visto que, como afirmava o ex-Secretário
Sérgio Magalhães, não havia

conhecimento sistematizado sobre o que fazer nas favelas. Se houvesse normas


claras sobre como projetar em favelas e que estas condicionassem o desenho,
o Concurso seria outro: de provimento de cargos para contratar profissionais
para desenvolver um trabalho para o qual existe uma metodologia própria do
Poder Público.” (CONCURSO FAVELA BAIRRO, 1994, p. 7, apud RIBEIRO, 1996, p. 12).
74

121. O plano urbanístico foi empreendido pelo corpo técnico da SMH. Posteriormente, foi desenvolvido até o nível Pro-
jeto Básico pela equipe contratada para a implementação das obras.
122. Entrevista concedida por “Q.”, arquiteto e técnico da PCRJ, para esta pesquisa em fevereiro de 2019.
123. Favela ou agrupamento de favelas, dependendo do caso.
(Figura 3.14)

Quadro 3.1 - As favelas da primeira etapa do Favela Bairro reunidas por grupos de
especificidades das intervenções.

PRIMEIRA ETAPA DO PROGRAMA FAVELA BAIRRO

ÁREAS BAIRRO DOM. POP. CARACTERÍSTICAS


GRUPO 1
COMPLEXO DO ANDARAÍ ANDARAÍ 1.740 6.951 ÁREAS DE ENCOSTAS COM ALTO
NÍVEL DE CARÊNCIA EM
MORRO DOS PRAZERES SANTA TERESA 709 2.836 INFRAESTUTURA URBANA.
MORRO DO ESCONDIDINHO SANTA TERESA 709 3.421 PRIORIDADES: SANEAMENTO BÁSICO
REFLORESTAMENTO, CONTENÇÃO DE
ENCOSTAS, E REASSENTAMETNO
MORRO DA SERRINHA MADUREIRA 566 2.389
PONTUAL
GRUPO 2
MORRO DA FÉ PENHA 526 2.104
ÁREAS DE ENCOSTA DOTADAS EM
GROTÃO PENHA 526 2.104 MAIOR OU MENOR GRAU DE
INFRAESTRUTURA, MAS QUE
CERRO CORÁ/ VILA
COSME VELHO 685 2.891 SOFRERAM INTERVENÇÕES
CANDIDO/GUARARAPES
SIGNIFICATIVAS.
CAMINHO DO JOB PAVUNA 523 2.092 PRIORIDADES: COMPLEMENTAÇÃO DE
MORRO UNIÃO PAVUNA 523 2.092 INFRAESTRUTURA E EQUIPAMENTOS
SOCIAIS
MATA MACHADO ALTO DA TIJUCA 511 2.044
GRUPO 3
TRÊS PONTES SANTA CRUZ 866 3.464 ÁREAS PLANAS SUJEITAS A
INUNDAÇÕES, DOTADAS DE
CANAL DAS TACHAS RECREIO 570 2.362 INFRAESTRUTURA E ALTAMENTE
FERNÃO CARDIM PILARES 682 2.747 DENSIFICADAS.
PRIORIDADES: SOLUÇÕES DE
ILHA DO MACRODRENAGEM, INTERVENÇÕES
PARQUE ROYAL 698 2.851
GOVERNADOR NO ENTORNO E REASSENTAMENTO
GRUPO 4

CHACARA DEL CASTILHO DEL CASTILHO 559 2.236


ÁREAS PLANAS OU SEMIPLANAS
DOTADAS DE INFRAESTRUTURA, DE
LADEIRA DOS ALTA DENSIDADE.
FUNCIONÁRIOS / PQ. SÃO CAJU 833 3.332 PRIORIDADE: INTERVENÇÕES NO
SEBASTIÃO ENTORNO

Fonte: Política Habitacional da Cidade do Rio de Janeiro – publicação maio de 1995 com base em
dados
Tabelado
1 IBGE 1991
Listagem das 16 primeiras favelas a s
erem urbanizadas pelo Favela Bairro 1.
Observa-se que, de modo geral, o número de domicílios nas favelas variava entre 500 e
Fonte RUBIO (2011, p. 98).
850 e o de moradores agrupados variava entre dois mil e 3,5 mil habitantes, com
75

O Decreto n°14.332, de 7 de janeiro de 1995, regula mentou o Programa Favela Bairro


Logo após o Concurso, o Programa Favela Bairro foi lançado e, junto com a minuta de
em dezembro de 1995 a Prefeitura assinava um contrato com o BID no valor de 300
contrato, as equipes vencedoras receberam os documentos com especificações e prazos de
milhões de dólares, sendo 60% financiados pelo Banco e o restante como contrapartida
projeto, que afinal determinavam a metodologia a ser seguida. Além disso, cada equipe ven-
da Prefeitura.
cedora recebeu a área-projeto que seria objeto do contrato, com o correspondente valor
de projeto, que estava atrelado ao número de moradias existentes na favela. A área-projeto
correspondia à área ocupada pela favela, cujos limites estavam aprovados em AEIS pelo mu-
nicípio124. Embora algumas metodologias vencedoras do Concurso abordassem a importân-
cia de tratar também o entorno para a integração urbana e social da favela, a poligonal de
98
projeto, durante todas as fases do FavelaFavela
Bairro sempre foi restrito à favela incluir outras
Bairro

124. As AEIS foram oficializadas através da Lei municipal nº 2499 de 26 de novembro de 1996.
áreas do entorno125. Apesar de não haver metodologia sistematizada pelo Poder Público,
conforme afirmava o ex-Secretário, os documentos de contratação, de certo modo, mini-
mamente padronizaram as diferentes metodologias vencedoras do Concurso. Era preciso
ter documentos que buscassem orientar, nivelar os diferentes projetos e controlar prazos
de entregas, mas os arquivos fornecidos pelo contratante não foram devidamente discuti-
dos com as equipes vencedoras. Os ajustes antes dos contratos serem assinados se concen-
traram na atualização dos valores de projeto, visto que os levantamentos da PCRJ estavam
desatualizados e as favelas, naquele momento, já apresentavam 30% a mais de moradias.
O documento Instruções para Implementação do Programa126, recebido na contratação
dos projetos, indicava as seguintes diretrizes para as propostas urbanísticas, visando a inte-
gração da favela ao entorno:

• criação de praças e áreas de lazer, se possível balizadas por equipamentos


públicos como ‘escola, comércio, administração regional, clube, igreja’ etc., tanto
no interior da favela como na fronteira com a cidade formal;
• definição de ruas e caminhos que irriguem com veículos o máximo possível a
comunidade;
• configuração e tratamento viário de modo a otimizar a integração com logra-
douros existentes;
• implantação de infraestrutura (esgoto, drenagem, pavimentação, escadaria,
pequenas contenções) (RIBEIRO, 1996, p. 20).

Este mesmo documento continha orientações amplas que, durante o período de elabo-
ração dos projetos, foram revistas por serem consideradas imprecisas (RIBEIRO, 1996, p. 34).
Um novo documento – Especificações para Elaboração do Projetos127 (SMH, 1995) – foi então
76 fornecido às equipes em 1995, com os projetos em andamento, para o desenvolvimento dos
Anteprojetos e Projetos Básicos, com especificações mais definidas, quase tão precisas ao
escopo de projetos da fase Favela Bairro 2. O nível de imprecisão do primeiro documento e
a mudança radical que o escopo sofreu no segundo documento, mostravam, na verdade, que

125. A inclusão de outras áreas do entorno dependia de cada caso. Quando fosse necessário desapropriar terrenos à
volta para, por exemplo, realocar moradores afetados pelo projeto urbano, estas novas áreas eram incluídas na propos-
ta de alteração da AEIS, que deveria passar por aprovação na Câmara Municipal. Nesta primeira fase, as plantas com
os novos limites da AEIS eram de responsabilidade do contratante, que depois passou para os contratos de projeto.
As negociações para sua aprovação sempre foram tarefa institucional, e os desenhos fornecidos serviram de base para
o projeto de lei que iria para a Câmara Municipal.
126. Este documento seria o que denominamos Escopo de Projetos, que aparece com nomes distintos em todos os
programas aqui apresentados.
127. Este segundo documento é denominado por Ribeiro (1996, p. 27) como “embrião” do Escopo de Projetos do Favela Bairro
2, com data de 23/05/95, quando foi publicado internamente na SMH. Na publicação, foram incorporados comentários da
própria SMH sobre o primeiro documento de escopo de projetos. Este é bem similar ao Escopo de Projetos do Favela Bairro 2.
o Programa estava sendo construído ao longo da elaboração dos projetos, considerado como
maior mérito por Ribeiro (1996, p.38) como um “programa de capacitação a partir da prática”.
Este processo de ajustes do Favela Bairro 1 trouxe duas questões aos projetos. Por um
lado, a falta de procedimentos rígidos gerou incertezas, já que houve mudanças durante o
processo de projeto, além de critérios “subjetivos”, visto que não havia descrição precisa
no início dos trabalhos nem normas a serem seguidas ou explicitação das expectativas por
parte da fiscalização da SMH sobre o nível que cada produto deveria ser entregue. Metodo-
logicamente, por outro lado, deu certa liberdade às equipes para trabalhar a seu modo cada
etapa do projeto, ajustando-o conforme as particularidades de cada área.
Ribeiro (1996, p. 27) identificou em sua pesquisa que os projetos, cujos prazos de realização
eram de 5 meses, só foram concluídos de 10 a 12 meses após a assinatura dos contratos, devido,
dentre outros fatores, “à inexperiência de todos os envolvidos em planejamento e gerenciamento
de projetos urbanísticos multidisciplinares e participativos”. Além disso, as informações e dados
sobre as favelas, que deveriam ser fornecidas às equipes de projeto pelo contratante, não estavam
atualizadas ou não existiam. Os projetos começaram sem estas informações, que foram recebi-
das ao longo do processo. A topografia, por exemplo, imprescindível para o desenvolvimento dos
Projetos Básicos, e que era obrigação do contratante IPLANRIO, foi fornecida com atraso devido
à concentração dos serviços de levantamento das 16 favelas da primeira fase128 em uma única em-
presa. Por este motivo, a topografia e outros levantamentos de campo fundamentais para o desen-
volvimento dos projetos passaram a ser incorporados no contrato de projetos do Favela Bairro 2.
Os projetos eram desenvolvidos sobre bases imprecisas, complementadas pela topografia
apenas do que seria o sistema viário carroçável. Este nível de informações não era satisfatório
para poder gerar projetos com alto grau de definição, visto que os projetos de infraestrutura
demandam levantamentos planialtimétricos mais precisos para definição das cotas de implan-
tação das redes. Por isso, a adequação dos projetos in loco, durante as obras, era fundamental.
77 Em Parque Royal, por exemplo, a equipe de projeto teve que montar sua própria base
cadastral para poder mapear as características da favela na primeira etapa, que consistia no
Estudo Preliminar do projeto. O processo de elaboração desta base partiu da interpretação de
foto aérea fornecida pelo contratante (Fig. 9, na próxima página), seguida de levantamentos
de campo complementares até chegar à planta cadastral preliminar (Fig. 10) (ARCHI5,1995).
Somente a partir da 3ª etapa, o projeto foi desenvolvido sobre base digitalizada fornecida
pelo contratante. Não se tratava ainda da topografia, mas de uma planta aerofotogramétrica.
As imagens na próxima página ilustram as bases precárias sobre as quais foram desenvolvidas
as duas primeiras etapas do projeto, antes do fornecimento de outras bases pelo contratante.

128. Os projetos se iniciaram a partir de plantas bastante imprecisas e desatualizadas das favelas, que foram ajustadas,
pelas equipes contratadas, à realidade do local. Este desenho foi a base cartográfica até quase a etapa final do projeto. As
topografias, terceirizadas pela SMH em outro contrato de serviços, deveriam ter sido fornecidas no início dos projetos, o
que não ocorreu. Ainda não existiam levantamentos aerofotogramétricos de favelas nesta primeira fase do Favela Bairro.
Figura 9
Base inicial utilizada para o projeto. Fonte Archi5, 1995.

Figura 10
Mapa cadastral preliminar, elaborada à mão.
Fonte Archi5, 1995. (A imagem original foi rotacionada e colocada na mesma escala
gráfica que a Figura 9 ao lado para efeitos de comparação entre plantas.)

78 Além do projeto, nos contratos dos escritórios de arquitetura e urbanismo desta primeira
fase do Programa estava prevista também a Assistência Técnica à Obra, que consistia na
adequação dos Projetos Básicos e sua complementação durante todo o período de exe-
cução das obras, com escritório montado em campo para atender às demandas operacio-
nais. Este fato foi extremamente significativo em termos de resultados dos projetos, visto
que, durante a sua elaboração, havia descrença das populações faveladas no Programa,
acostumadas às políticas ora “de bica d’água”, ora de remoções que pautavam as ações
estatais nas favelas até então. Embora a participação dos moradores fosse preconizada
pelo Programa, poucos procedimentos estavam especificados no documento que guiava
sua metodologia. As assembleias de apresentação do Anteprojeto e dos Projetos Básicos
aos moradores eram, praticamente, o único componente de participação exigido nos con-
tratos de projeto. A participação dos moradores na elaboração dos projetos, desse modo,
ficava a atrelada à metodologia de cada equipe, sem regras precisas. Em outras palavras,
essa participação era recomendada, mas não obrigatória. A articulação entre equipes de
projeto e representatividades locais, que era de responsabilidade do setor público, não foi
corretamente sistematizada.
A SMH considerava como instituições de contato as Associações de Moradores, mesmo
nas áreas onde estas não tinham representatividade. Assim, cabia à equipe de projeto com-
preender as dinâmicas políticas locais e articular-se com as lideranças reconhecidas. Devido
à descrença no Programa antes das obras, a definição sobre a permanência de sua casa era
uma das principais preocupações dos moradores. Uma vez os moradores compreendendo
que permaneceriam na área, as melhorias urbanas na favela eram sempre bem-vindas. Foi,
então, no momento das primeiras obras que apareceram os conflitos com os moradores e
com os grupos que controlavam o território, que muitas vezes pediam alterações do proje-
to, antes não previstas, considerando que o projeto já havia sido aprovado pela população
local. A presença dos arquitetos autores dos projetos ao longo de toda a obra possibilitou
dar agilidade às decisões conjuntas com os fiscais de obras da SMH e da RioUrbe129, assim
como uma maior qualidade às soluções construídas sob consenso dos moradores envolvidos
com as obras.

No Favela Bairro 1, a gente conseguia fazer tudo. Com o recurso que a gente
recebia, consegui ir até o fim da obra. [...] Ainda fazia coisa além! Depois pas-
sou a não ser mais assim. Ficou mais difícil, os projetos começaram a ter muita
modificação, aí começou a ter problema de recurso...” (informação verbal)130.

É fato que, no Favela Bairro 1, havia muita liberdade na obra. Com os diferentes atores
juntos no local, as decisões poderiam ser tomadas direta e conjuntamente através de ajustes
técnicos, além de negociações com a população envolvida para resolver os entraves comuns
no processo de obras em favelas. Naquela época, havia a prática de se negociar com o mo-
79 rador a retirada de parte da casa como alternativa à indenização do conjunto da moradia e
sua total demolição. Esse procedimento, além de ter a vantagem de manter o morador no
local, era uma alternativa para dar agilidade sem grandes alterações de projetos que deman-
dassem uma revisão no orçamento, o que congelava a obra.

Quando o morador não queria, tinha um outro morador que tinha interesse
naquela casa que precisava ser cortada, porque ele não tinha opção. [...] A gente
conseguia fazer isso: negociava a moradia, quando não conseguia dar uma
casa, pelo menos dava um pedacinho de terra ou de casa. Reconstruía pra ele...

129. Nesta primeira fase do Favela Bairro, as contratações das empresas construtoras foram feitas pela RioUrbe, que fis-
calizava as obras em parceria com a SMH, que, por seu turno, tinha como papel principal na obra o controle da adequação
do projeto para garantir sua concepção original e a continuidade das obras.
130. Entrevista concedida por “Q.”, arquiteto e técnico da PCRJ, para esta pesquisa em fevereiro de 2019.
A própria construtora fazia isso! Era mais vantajoso pra construtora construir
uma parede do que ter que remover o cara, ter que tirar a casa, deixar aquilo
abandonado. Mas não era o fiscal sozinho que fazia isso! A própria Associação
de Moradores ajudava (no processo). Fazia com a Administradora Regional, com
as agentes de saúde que estavam na área e a construtora. Ela fazia e a gente pa-
gava, ou às vezes nem pagava isso! [...] Era mais vantajoso (pra construtora) fazer
do que ficar esperando até o morador sair. [...] Antigamente a gente conseguia
fazer isso, hoje não se consegue fazer mais nada disso. Hoje é impossível.... Tudo
(agora) pode dar Ministério Público. Hoje a gente não pode fazer nada, estamos
totalmente engessados....” (informação verbal)131.

Este método, que foi usual tanto no Projeto Mutirão como no Favela Bairro, hoje em dia
não é mais possível de ser praticado. O aumento do controle e da transparência de gastos
públicos, desde então, tem gerado procedimentos muitas vezes impostos pelos órgãos de
controle (Tribunais de Contas, Ministério Público, auditorias) que inviabilizam certas ade-
quações e alternativas durante as obras. Há que se encontrar equilíbrio nos procedimentos.
O controle sobre o dinheiro público é fundamental para se evitar desvios, mas, ao mesmo
tempo, regras sem um grau de flexibilidade passaram a inviabilizar obras outrora possíveis
de serem concluídas, como na primeira fase do Favela Bairro.
Podemos dizer que esta fase do Favela Bairro foi marcada por diretrizes amplas e infor-
mações imprecisas sobre a elaboração dos projetos e por problemas na operacionalização do
Programa, que se refletiam nos procedimentos sendo ajustados ao longo da elaboração dos
projetos. Todas estas questões impactaram no cumprimento dos prazos de projeto (RIBEIRO,
1996, p. 35). No entanto, há méritos que precisam ser destacados. A SMH, com equipe pe-
quena para esta empreitada, articulou com outros órgãos e secretarias para conseguir im-
80 plementar o Programa. Isto foi uma virtude, pois contou com uma estrutura pública já exis-
tente e envolveu os futuros gestores nas obras de suas redes e equipamentos. Infelizmente,
nem todas as parcerias deram certo, como o caso da CEDAE, que veremos adiante. No Favela
Bairro 1, os arquitetos foram contratados para prestar assistência técnica às obras.
Este fato trouxe várias vantagens: ajudou a suprir as informações cartográficas impreci-
sas e insuficientes para o desenvolvimento a nível executivo dos projetos; garantiu agilidade
no processo decisório de projeto, com todos os atores reunidos nas obras; trouxe mais qua-
lidade às soluções implementadas, visto que eram os próprios arquitetos que conceberam
o projeto os que faziam as adequações; além disso, com a equipe completa locada em obra,
moradores tinham mais acesso às informações e conseguiam expressar suas demandas,
materializando-as em vários momentos nas soluções construídas. O Escopo de Projetos,

131. Entrevista concedida por “Q.”, arquiteto e técnico da PCRJ, para esta pesquisa em fevereiro de 2019.
embora impreciso e impactando nos prazos e planejamento, deu liberdade aos projetos e
serviu de base para a fase seguinte do Favela Bairro e de programas que foram, depois,
implementados no Brasil, como veremos adiante. Apesar dos problemas de planejamento
e operacionalização, o que fica desta primeira fase do Favela Bairro é, seguramente, sua
importância em demonstrar que era possível pensar institucionalmente a questão da favela
de modo articulado e integrado, com diversos atores envolvidos em todas as fases, inclusive
nas obras, aprendendo juntos. Este procedimento foi fundamental para capacitar profissio-
nais, moradores e o setor público no processo de urbanização de favelas.

2.1.2.1. Temas de projeto do Favela Bairro 1


Devido à dificuldade de localizar o primeiro documento das contratações de projeto do Favela
Bairro 1, utilizamos outro documento como fonte secundária: o relatório da pesquisa de
Avaliação do Planejamento dos Projetos do Favela Bairro 1, coordenada por Ribeiro (1996),
que se tornou uma fonte importante, pois desenvolveu a análise dos dois primeiros Escopos
de Projeto132 e registrou etapas, prazos e temas contidos nestes.
As diretrizes do Programa contidas no escopo de projetos indicam para as melhorias
urbanas e ambientais:

• a criação de praças e áreas de lazer, na fronteira e/ou no interior da favela, que


estejam associadas a equipamentos públicos quando possível;
• a concepção geral da estrutura viária na favela, integrado ao sistema viário do en-
torno para pedestres e “que irriguem com veículos o máximo possível a comunidade”
(RIBEIRO, 1996, p. 20), permitindo acesso a todos os domicílios do assentamento; e
• a implantação de infraestrutura, como esgotamento sanitário, drenagem,
pavimentação, escadarias e pequenas contenções.
81
Conforme o relatório de Ribeiro (1996), os projetos estavam estruturados em quatro
etapas: Estudo Preliminar; Plano de Intervenção; Anteprojeto, e Projeto Básico, num total
de 150 dias ou 5 meses, além da Assistência Técnica à obra (ver Tabela 3, p. 115). A primeira
etapa do projeto, embora fosse denominada Estudo Preliminar, tinha seu conteúdo rela-
cionado a levantamentos primários, secundários e a uma avaliação físico-espacial-social da
favela estudada. O título Diagnóstico seria mais adequado ao escopo desta etapa de projeto,
o que foi corrigido na fase seguinte do Programa. Já o Plano de Intervenção, segunda etapa
de projeto, tinha como descrição ampla expor “os principais conceitos abordados, o partido
e propostas de integração ao entorno (malha viária, redes etc.)” (RIBEIRO, 1996, p. 21).

132. Como vimos anteriormente, os dois primeiros Escopos foram: o documento Instruções para Implementação do Pro-
grama, o qual não conseguimos acesso; e o subsequente Especificações para Elaboração do Projetos (SMH, 2015).
Para o desenvolvimento do Anteprojeto, eram solicitadas informações sobre:

• a concepção geral da estrutura viária para pedestres e veículos;


• circulação e transportes;
• indicação das áreas livres e equipamentos comunitários;
• uso e ocupação do solo; traçado das redes de esgotamento sanitário e drenagem
e destino final de ambas;
• áreas de proteção ambiental e arborização; de utilização da área de risco, caso
fosse viável;
• e do reassentamento, quando houvesse.

Interessante observar que, para o abastecimento de água, apenas era solicitada a localização
de reservatório, quando fosse o caso. No Projeto Básico, os temas permanecem mudando a es-
cala de apresentação dos projetos, que passam basicamente da 1:1000 do Anteprojeto para 1:500
no Projeto Básico. Esta, incontestavelmente, não é uma listagem de especificações precisas.
As diretrizes e orientações do Escopo de Projetos que estão apresentadas no relatório de
Ribeiro (1996) nos pareceram tão amplas e imprecisas que precisamos recorrer a outros docu-
mentos para confirmar estas informações. Observamos que o Escopo de Projetos de 1995 (SMH,
1995) já era muito semelhante ao da fase seguinte do Programa (SMH, 1996), com especificações
precisas de projeto. Por isso, entendemos que nem todas as particularidades contidas nele con-
seguiram ser incorporadas aos projetos do Favela Bairro 1, pois este surgiu no meio de processo
de projeto. Por este motivo, estudamos também outras publicações que contêm informações
sobre projetos desta fase (LABHAB-FAUUSP/FUPAM, 1999; Fundação Bienal SP, 2002; CONDE, MA-
GALHÃES, 2004; KROFF, 2017), observando conteúdo e componentes de projeto implementados.
Através deste procedimento metodológico, nos foi possível identificar que o Escopo de
82 Projetos do Favela Bairro 1 configurava-se como um documento amplo, cujo projeto resul-
tante parecia flexível e passível de ser moldado às características, especificidades e deman-
das de cada favela. Nem todos os temas precisavam ser obrigatoriamente projetados, mas
poderiam ser adequados às demandas de cada favela e da concepção urbanística da equipe.
Com todas estas informações, elaboramos a Tabela 2 para a ilustrar os temas abordados em
uma amostra de projetos do Favela Bairro 1 (ver Tabela 2).
Dos componentes dos projetos, podemos observar que o Sistema Viário, as Praças e
Áreas Esportivas, assim como os projetos de Esgotamento Sanitário, Drenagem e das arqui-
teturas das habitações de reassentamento, foram os que emergiram em praticamente todos
os projetos listados na Tabela 2. O Abastecimento de Água, que seria implementado em par-
ceria com a CEDAE, em vários casos foi absorvido pelo Favela Bairro, destacando-se ainda
a construção de reservatórios em algumas favelas. Os outros componentes foram imple-
mentados de acordo com as demandas de cada área-projeto. Equipamentos comunitários
e sociais foram ativados em praticamente todas as favelas, com grande variedade de usos.
Os projetos para as áreas de reassentamento também apresentaram tipologias diversas, de
casa-sobrado a edifícios multifamiliares de pequena escala, com grande variedade de soluções
arquitetônicas, mas geralmente inseridos na malha urbana da favela.
O Escopo de Projetos do Favela Bairro 1 foi ajustado a partir da experiência prática e
com o surgimento do financiamento através do BID, sendo inseridos especificações mais
precisas, componentes e temas de projeto obrigatórios, como veremos a seguir.

Tabela 2
Componentes de projeto
dentro do Favela Bairro 1.
Fonte elaboração própria.
Morro dos Prazeres/

Lad. Funcionários/
Pq. São Sebastião
Morro da Serrinha

Canal das Taxas/


Escondidinho

Caminho do Job
Fernão Cardim

Mata Machado
LEGENDA

Del Castilho

Morro União
Parque Royal

Morro da Fé
Vila Amizade
Chácara

Andaraí
PROJETOS DESENVOLVIDOS PELAS CONCESSIONÁRIAS,

Grotão
IMPLEMENTADOS COM AS OBRAS DO FAVELA BAIRRO.
COM RESERVATÓRIO DE ÁGUA

COMPONENTES DE PROJETOS

INFRAESTRUTURA URBANA
Sistema viário, Circulação Interna e Acessos
Praças
Áreas esportivas
Iluminação pública (através da RIOLUZ)
Projeto paisagístico
Comunicação Visual
Mobiliário Urbano
Energia elétrica
Transportes
SANEAMENTO BÁSICO
Água potável
Esgotamento Sanitário
Drenagem pluvial
Canalização de rio
Coleta de lixo (através da COMLURB)
SERVIÇOS E EQUIPAMENTO SOCIAL
83
Locais e serviços comunitários
Creches
Serviços para grupos vulneráveis
Postos de saúde
Posto COMLURB
POUSO
Geração de trabalho e renda
Comércio
SOLUÇÕES DE HABITAÇÃO
Reassentamento (por Risco ou Intervenção)
Melhoria habitacional
Desadensamento
MEIO AMBIENTE
Recuperação e mitigação ambiental
Estabilização de Encostas (através da GEORIO)
Arborização
Avaliação de Impactos Ambientais da proposta
Reflorestamento
FONTES: CONDE, MAGALHÃES, 2004; Parque Royal: KROFF, 2017; Ladeira dos Funcionários: LABHAB-FAUUSP/FUPAM, 1999. FUNDAÇÃO BIENAL
DE SÃO PAULO, 2002.
NOTAS: 1) Não foram conseguidas informações sobre os projetos para as favelas Cerro Corá/Vila Guararapes e Três Pontes,
que também faziam do Favela Bairro 1.
2) Não conseguidas informações sobre os projetos de saneamento para o Complexo do Andaraí.
2.1.3. A fase Favela Bairro 2 – o PROAP (1996-2006)
O início do financiamento do BID no Favela Bairro acrescentou mudanças à gestão institu-
cional e de projetos, e na agenda que se moldou às demandas do financiador (SILVA JUNIOR,
2006, p. 62). A consolidação dos componentes sociais133 foi gradual no processo de urbani-
zação de favelas no Brasil, sendo um item exigido

pelos bancos internacionais de desenvolvimento, BID e Banco Mundial, que pro-


moveram a participação por meio de uma abordagem integrada de urbanização
de assentamentos precários. Isso permitiu a construção de componentes sociais
mais consistentes e profissionalizados, assim como a incorporação às operações
de exigências formais de participação e consulta à população. (MAGALHÃES;
VILLAROSA, 2012, p. 49).

Novos procedimentos foram implementados para ampliar a participação e para possi-


bilitar maior divulgação e comunicação entre os diferentes atores – projeto, poder público,
incluindo órgãos e concessionárias, e moradores – para que as propostas representassem
um consenso entre os envolvidos. A articulação e gestão da participação era feita pela equipe
social da SMH, que perpassava todo o processo de projeto e era responsável pela organi-
zação, comunicação e implementação dos métodos e instrumentos de participação, assim
como pela articulação das ações sociais para promover a integração não apenas urbanística.
Oficinas temáticas com os moradores, equipe de projeto e representantes dos órgãos e
das secretarias específicas da área foram realizadas durante as primeiras etapas do projeto
– Diagnóstico e Plano de Intervenção – nas quais se discutiram os temas “O que temos?”,
“O que queremos?” e “O que podemos?” para o nivelamento de informações, como espaço
aberto às demandas e troca com os moradores, e para a compreensão de todos os partici-
84 pantes sobre os limites orçamentários, institucionais e de projeto.
Foi incluída nos contratos de projeto a produção de material de divulgação que permi-
tisse dar boa leitura às questões, aos problemas identificados e às ideias surgidas a partir da
leitura do território e das oficinas, além da obrigatoriedade de reuniões de discussão e apro-
vação das propostas urbanas com os moradores134, como na fase anterior. A SMH investiu

133. Os componentes sociais estão divididos em 3 eixos: 1) Trabalho social em apoio à intervenção física; 2) Ações sociais
intersetoriais para a inclusão social e/ou desenvolvimento; 3) Fortalecimento do capital social local. O Trabalho Social
(TS), que tratamos ao longo desta pesquisa, consiste no primeiro eixo descrito por. Para informações pormenorizadas,
consulte-se MAGALHÃES; VILLAROSA (2012), especificamente o Capítulo 2 e a nota 99.
134. Estas reuniões já existiam na fase inicial do Favela Bairro, mas tinham outro cunho, visto que “a maior preocupação
da população era a insegurança da moradia, e todos temiam a retirada integral da favela. A credibilidade na implantação
do projeto só se deu no início das obras, quando as máquinas começaram a mudar o cenário existente.” (CARVALHO,
2000, p. 6). Foi somente a partir da segunda fase que as Assembleias de Aprovação do Plano de Intervenções foram
formalizadas nos contratos e ganharam novo peso no processo, dando aos moradores poder de veto sobre as soluções
apresentadas no projeto.
também em maquetes das favelas135, que davam visibilidade e boa leitura do território aos
moradores. O ex-Secretário destaca a importância do material de divulgação e do desenho
para a compreensão dos moradores e para a participação destes nas decisões de projeto.

O primeiro levantamento [...] era feito já com a participação deles. Então, o


Plano de Intervenção já aparecia com essas respostas, as possíveis, apresentado
numa Assembleia… e os caras entendiam, sabiam que ‘isso aqui é a minha casa’,
‘eu queria que tal coisa acontecesse lá’. O projeto, o desenho era compreensível.
Isso que eu fiquei muito surpreendido, porque sempre tinha aquela ideia de que
o desenho era uma coisa de especialista, que as pessoas compreendiam pouco,
só com perspectivas…. e não era o caso. Depois nós fizemos maquete depois que
o projeto ficava, uma maquete pra cada favela, ficou show! Adoravam a ma-
quete, se viam ali…. ajudava muito na compreensão. E depois, na intervenção….
Vai perder casa, vai abrir rua, vai ter…. Em primeiro lugar, isso era racional: nin-
guém estava fazendo arbitrariedade. Era visto que era vantajoso para a comu-
nidade, e para a família atingida também, porque as alternativas eram boas: ou
era uma casa nova, ou um dinheiro para comprar uma outra ou era para viajar,
para ir para um lugar, mas em geral o que mais prevaleceu foi comprar na pró-
pria comunidade uma casa melhor. [...] Então, eu acho que essa participação foi
uma participação efetiva dos moradores, das lideranças. (Informação verbal)136.

A SMH teve que se reestruturar e passou a contar com equipes de apoio terceirizadas
através de empresas gerenciadoras137, que entraram como suporte institucional para geren-
ciamento, fiscalização e avaliação dos projetos e obras. Com tantas empresas de controle
no processo, a operacionalização do Programa e o processo de projetos foram se profissio-
85 nalizando e, ao mesmo tempo, se enrijecendo.
Devido ao aumento do volume dos investimentos e de contratos de projetos e de obras,
foi necessário ampliar o quadro e setorizar a SMH em Coordenadorias de Projetos e de
Obras. “Q.” lembra que, apesar do quadro institucional favorável e do Favela Bairro ter sido

135. Este material, que não fazia parte dos contratos de projeto, foi colocado no hall da SMH, ficando por muito tempo
exposto, e, assim, dando visibilidade à produção do Favela Bairro.
136. Entrevista concedida pelo ex-Secretário para esta pesquisa, em fevereiro de 2019.
137. “Já na primeira etapa do PROAP duas empresas auxiliavam na fiscalização e controle de qualidade do programa e
dos projetos, uma atuando no apoio à supervisão (AMBIENTAL) e a outra no gerenciamento do programa (TECNOSOLO).
Em 1998, um novo contrato de gerenciamento de projetos e obras foi assinado e três consórcios foram contratados, for-
malizando três gerenciadoras, AMBIENTAL/LOAR, LOGOS/PLANAVE e NORONHA/BUREAU, empresas paulistas e cariocas
consorciadas. Por sua vez, as gerenciadoras estabeleceram equipes e procedimentos de trabalho coadunados com as
exigências e as especificações dadas pela SMH, por meio da TECNOSOLO. Os consórcios de gerenciamento tinham em
seu organograma equipes de projeto, planejamento, obras e assistência técnica, que davam suporte à equipe da SMH.”
(RUBIO, 2011, p. 103).
assumido como prioridade política, técnicos tinham problemas de articulação entre as se-
cretarias, visto que algumas relutaram em atender às populações faveladas, prevalecendo
a cultura monossetorial no planejamento e na intervenção. No setor público, trabalhar de
forma integrada não está institucionalizado.

Segundo um funcionário da SMH, ‘.... alcançar uma integração interna no setor


público é muito complexo; existem muitos conflitos que basicamente resumem-
-se a conflitos de poder’, enquanto segundo outro, ‘... o que existe é a ideia
de integração, mas existe resistência em todos os níveis e ninguém foi capaz de
quebrar as barreiras que impedem a verdadeira integração’. (FIORI et al., 2001,
p. 53, tradução nossa).

“Q.”, por seu turno, relata que é preciso, muitas vezes, ter conhecimento ou amizades, e
contar com “ajudas” entre técnicos para que as ações possam ganhar corpo.

Dentro da prefeitura tinha muita gente que não gostava de trabalhar com
favela. [...] A gente tentava.... Por exemplo, a RioÁguas, na época ajudava muito
a gente. A gente ia lá, por causa do conhecimento, a Ana Luna era muito amiga
da Cláudia, do Carlos Dias138, então eles davam orientação pra gente, nos auxi-
liavam na drenagem, nos trabalhos que a gente tinha que fazer pros deságues...
Nisso eles sempre ajudaram a gente. A GeoRio também a gente não pode re-
clamar. Dentro da prefeitura a gente não tinha muito problema, não. Porque
a gente fazia conhecimento com as pessoas. A GeoRio ajudava a gente, ia nas
contenções....” (informação verbal)139.

86 Até mesmo dentro da própria Secretaria, o volume de trabalho a partir da segunda fase
começou a causar desentendimentos entre os diferentes setores da SMH:

O conflito que existia era a gente aqui dentro, o conflito era de gente de
Projetos com Obras. Porque chegava projeto pro fiscal do seu projeto. ‘Olha,
está tendo problema lá na comunidade que o projeto não está casando.’ Aí dava
problema pra gente aqui dentro... Não era questão de atrasar obra, não.... eram
outros desentendimentos.... o negócio é meio complicado.... [...] As pessoas que
fiscalizavam projeto não tinham experiência em obra. [...] Eu era uma pessoa

138. Este funcionário foi depois cooptado para trabalhar na Coordenadoria de Projetos, ficando responsável pela análise
dos projetos de infraestrutura na SMH.
139. Entrevista concedida por “Q.”, arquiteto e técnico da PCRJ, para esta pesquisa em fevereiro de 2019.
estressada!140 O Borel era muito difícil.... Porque tinha que subir o morro, bandido
em cima criando confusão, o fiscal da obra – principal figura ali dentro, única pes-
soa que poderia estabelecer uma ordem ali era a gente.... Em todas as obras era
o fiscal. Não tinha outro.! [...] Até na própria Secretaria, a gente tinha dificulda-
des com o arquiteto que era responsável pelo projeto, dele acompanhar as obras,
porque não conseguia acompanhar. A gente tinha que tratar diretamente com os
escritórios (atropelando a estrutura operacional do programa). Era uma situação
bem complicada na época. E foi piorando cada vez mais. (informação verbal)141.

O conflito se dava quando havia adequações de projeto que demandavam ajustes no


orçamento. O conhecimento adquirido na primeira fase do Favela Bairro em Parque Royal,
quando foi fiscal de projeto e também da obra, foi considerado por “Q.” uma experiência
ímpar que lhe acrescentou capacitação para tocar as obras. Já no Favela Bairro 2, quando foi
apenas fiscal de obras do Borel sem ter participado do projeto, “Q.” percebeu que o processo
se complicou ao ponto de que nem o fato de ter o auxílio de gerenciadora e assistentes
conseguiu compensar os problemas de adequação de projeto ao longo da obra.

Tinha dificuldade nos arquitetos aqui de dentro (da Secretaria) de tocarem a obra.
Tinha que ter certa presença (na obra), mas todo mundo tinha um certo receio [...]
de mexer muito com projeto. Quando você mexe com projeto, está mexendo com
o orçamento. E não pode alterar o orçamento. (informação verbal)142.

O aumento significativo do volume de projetos e de obras a partir do financiamento do


BID também passou a demandar uma necessidade de maior controle do processo. Este foi
um dos motivos para a sofisticação do Escopo de Projetos, que se tornou um Caderno de
87 Encargos143, cujo objetivo era

Orientar as Projetistas para a garantia e controle da qualidade e para o plane-


jamento e controle da execução dos projetos para o PROAP-RIO, dando à SMH
os elementos básicos para o planejamento, a programação e os controles físico-
-financeiro e técnico dos projetos, e provendo as ferramentas para a administração
dos mesmos (SMH, 2003).

140. Quando esteve locado na Coordenadoria de Obras da SMH, “Q.” chegou a ser o fiscal responsável por quatro obras
ao mesmo tempo, respondendo, dentre outras tarefas, pela mediação e pelo acompanhamento da adequação do projeto
à realidade encontrada.
141. Entrevista concedida por “Q.”, arquiteto e técnico da PCRJ, para esta pesquisa em fevereiro de 2019.
142. Idem.
143. Este documento é chamado no meio dos profissionais e instituições que trabalham com favelas como “Escopo de
Projetos”.
O escopo dos projetos se tornou mais rigoroso, o que exigiu das empresas de arquite-
tura e urbanismo uma adaptação para conseguir cumprir os contratos e o surgimento de
parcerias com as empresas de projetos de infraestrutura. Itens de projeto foram acrescen-
tados144, assim como os serviços adicionais, como topografia, sondagem etc. foram trans-
feridos para os contratos de projeto, ampliando a complexidade de gerenciamento pelas
empresas contratadas. Este fato provocou uma mudança de atuação dos arquitetos no pro-
cesso: ao mesmo tempo que passaram a ter que administrar maiores valores e contratos de
serviços que eram terceirizados, este acréscimo de escopo também permitiu aos arquitetos
ter maior controle sobre os serviços complementares necessários para o bom desempenho
dos projetos. O Escopo de Projetos, ao mesmo tempo que deu mais qualidade no controle
institucional dos serviços por este terceirizados145, trouxe também mais rigidez ao processo
projetual, com especificações obrigatórias, dando pouca margem à inovação na metodolo-
gia de atuação das equipes. O escopo do Favela Bairro, de tão amplo e completo146, virou
modelo para os outros programas de urbanização de favelas no Brasil, com adaptações e
ajustes à realidade local e às políticas municipais e suas prioridades.
Nesse contexto de mudanças, a fase de Projeto Executivo surgiu no Favela Bairro aten-
dendo à exigência do financiador para ser parâmetro norteador de orçamento e licitação das
obras, e passou a ser desenvolvida dentro dos escritórios e não mais na obra, como ocorria
no Favela Bairro 1. O acompanhamento de obra, para adequação e detalhamento do projeto,
que fazia parte do contrato e escopo de trabalho das equipes de execução, durou até apenas
parte da segunda fase147 do programa, quando passou a ser assumido pelas gerenciadoras,
e os escritórios de arquitetura autores dos projetos foram definitivamente afastados das
obras. “Q. “identifica aí um problema que começou a influenciar no andamento e qualidade
na execução das obras na segunda e subsequentes fases do Favela Bairro.

88 Tudo é uma questão financeira. Porque se tivesse um recurso, desde o início até
o final da obra, com o escritório, seria uma outra história, não teria problema.
Porque tinha que ter aquele agente, como era no Favela Bairro 1; ele tinha que

144. Novos componentes foram incorporados, como projetos de iluminação pública, contenções, edificações, comuni-
cação visual, projeto paisagístico e mobiliário urbano (CARVALHO, 2000).
145. O escopo de projetos trouxe também especificações claras, protegendo o setor privado de mudanças do quadro
técnico do município, que poderiam ocorrer durante os contratos. Este controle institucional também foi fundamental
para evitar mudanças de projeto após definições que já haviam sido aprovadas, mas não registradas. A partir da existên-
cia das gerenciadoras no processo, todas as reuniões passaram a ser registradas através de atas que viraram instrumento
de controle tanto do contratante quanto do contratado.
146. O documento de 2000 tem cerca de 150 páginas e está dividido em 3 partes para especificações dos projetos:
Planejamento e Controle Físico e Técnico de Projetos para os Projetistas (11 páginas); Procedimentos para Apresenta-
ção dos Projetos (5 páginas); e, finalmente, as Especificações para Elaboração dos Projetos, em que estão detalhados
critérios do programa, normas dos órgãos a serem seguidas, planilhas etc. para todos os projetos e serviços adicionais
contratados (SMH, 2000).
147. Desta fase até a extinção do programa, os contratos de projeto não contaram mais com acompanhamento de obras.
ser a pessoa responsável pelo projeto e pela obra! [...] Teve um início, meio e fim.
Porque no início, o escritório trabalhava junto o tempo todo, era parte integrante
da história. Depois, já não tinha mais recurso [...]. O escritório participava de
parte da obra e outra parte não148. E depois, virou entregar o projeto e ficar por
isso mesmo. (informação verbal)149.

Imaginava-se compensar a ausência do acompanhamento do escritório na obra150 com


aumento dos prazos de projeto e maior detalhamento de projeto antes da obra, medidas
que não necessariamente foram sinônimo de melhoria de qualidade no processo. A exigên-
cia de Projetos Executivos buscava evitar, ou minimizar, adequações do projeto ao longo da
obra. Esta imposição dos bancos internacionais (BID e BM), com a pretensão de instaurar um
elemento de controle, constituiu, na verdade, um enorme atraso. A prática de projetos e
obras em favelas evidenciou que as adequações de projeto são necessárias no processo de
urbanização desses territórios, fato constatado por técnicos da Prefeitura, que observam
“em quase todas as favelas do Programa Favela-Bairro trechos onde o projeto tem dificul-
dades de ser implantado.” (BUENO, 2000, p. 243).
Nas favelas, mesmo com os escritórios de projeto coordenando os serviços de topogra-
fia e sondagem, era praticamente impossível ter todos os dados para um Projeto Executivo
completo e sem erros. Esta questão tem origem, por um lado, nos contratos, que não englo-
bavam todos os levantamentos necessários para se fazer um projeto detalhado. Não havia
como topografar toda a favela, então se concentrava no sistema viário, em espaços coletivos
e nos terrenos livres existentes onde haveria obras. Inclusive, em trechos muito construídos
e densos, só era possível topografar as frentes das casas e os miolos de quadras permaneciam
sem informações. Também não havia nos contratos de projeto grande quantidade de pontos
de sondagem e, muitas vezes, nem o tipo de sondagem necessário para o caso a ser levantado.
89 As investigações de solo se concentravam, de modo amostral, em terrenos que iriam receber
novas edificações e em certos trechos onde estava previsto novo viário. Por outro lado, a
própria característica do território da favela – habitado e com vários trechos de difícil acesso
– impossibilitava muitas vezes a realização da topografia e das sondagens. Em certos becos,
o equipamento de sondagem nem conseguia entrar, só sendo possível fazer o serviço após a
demolição das casas. Na prática, ocorreram “surpresas” como, por exemplo, a descoberta,
durante a obra, que o solo abaixo de uma rua existente, que seria recapeada, era, na verdade,
um acúmulo de camadas de lixo. Devido a isso, foi necessário não só o recapeamento, mas
refazer as camadas de subleito e leito novamente, que não estavam previstas em orçamento.

148. “Q.” se refere à fase 2 do Favela Bairro, quando ocorreu a transição entre o escritório de arquitetura estar contra-
tado para adequar os projetos na obra e sua retirada, que foi o formato das fases subsequentes.
149. Entrevista concedida por “Q.”, arquiteto e técnico da PCRJ, para esta pesquisa em fevereiro de 2019.
150. O acompanhamento foi retirado dos contratos de projeto durante a segunda fase do Favela Bairro.
Todas estas situações descritas aqui mostram que só durante as obras é possível conseguir
todas as informações para que o projeto possa ser bem detalhado e preciso. Cumpriam-se
os contratos e a exigência do financiador com entrega de Projetos Executivos incompletos,
aceitos pelos técnicos tanto dos órgãos que os aprovavam como da SMH, que compreendiam
a impossibilidade de mais precisão devido à experiência prática em favelas. Infelizmente, os
Projetos Executivos, que demandaram tempo de produção e gastos, com muito papel gera-
do, iriam ser depois revisados ao longo das obras, o que era sabido no meio técnico.
Mesmo com levantamentos topográficos mais precisos, é fato que o ambiente das fa-
velas sofre transformações numa dinâmica mais rápida do que o processo de projeto, numa
temporalidade que não é acompanhada pelo intervalo muitas vezes longo entre projeto e
início da obra. É praticamente impossível um nível de definição do projeto que evite ade-
quações ao longo da obra, pois, afinal, como prever o custo exato de um alargamento ou
implantação de via num ambiente totalmente construído?

A área de intervenção era muito adensada, era a área mais pobre da comunidade,
havia muitos barracos dentro do rio, rio que se espraia sobre as pedras, sem um
leito marcado; quando enchia, enchia tudo, havia palafitas em cima, criação de
porcos em baixo, um ambiente completamente insalubre. Para a elaboração do
projeto executivo, tivemos que esperar a retirada das moradias. (depoimento de
arquiteto In: CONDE, MAGALHÃES, 2004, p. 135).

Para o projeto executivo e o orçamento serem precisos, as negociações com as famílias


que receberiam indenizações, as demolições e a limpeza do terreno deveriam ocorrer du-
rante o processo de projeto, e não depois. Só assim se minimizariam os imprevistos, que ge-
ralmente ocorrem nas obras e que influenciam no custo final da urbanização. Este processo
90 aconteceu no Favela Bairro 1, mas depois foi abandonado nas fases subsequentes.
Depois destes processos, o poder de modificação dos projetos durante as obras passou
para as gerenciadoras, sem que os autores dos projetos fossem consultados. Tal procedi-
mento ameaçava a concepção e qualidade dos projetos, além de infringir regras de direitos
autorais. Fica aqui a pergunta: se havia alguém contratado para mexer nos projetos durante
as obras, por que então não eram os próprios arquitetos autores dos projetos que o faziam?
O papel das empresas gerenciadoras é ainda mais amplo em São Paulo, onde em vários
municípios, inclusive na capital, toda gestão do processo foi praticamente terceirizada atra-
vés de contratos “guarda-chuva” entre Estado e gerenciadoras: são elas que contratam as
equipes de projeto, que fiscalizam obras e projeto, que detêm os documentos e controlam
o gerenciamento do processo.151

151. Para mais informações sobre o papel das gerenciadoras em São Paulo, ver PULHEZ (2014).
Dentre os novos procedimentos exigidos pelo BID, estavam as Aprovações dos Projetos
nas concessionárias e os órgãos públicos. Os projetos de arquitetura eram isentos de apro-
vação – pelo menos isto não constava como exigência nos contratos de projeto – pois havia
o entendimento de que esse era um trâmite interno à própria Prefeitura, isto é, a ser resol-
vido entre SMH e SMU. Como as favelas se constituíam AEIS e ainda não existia legislação
urbanística regulamentada antes da urbanização, a aprovação dos projetos arquitetônicos
não poderia acontecer. Uma situação sem muita lógica aparente, visto que é a própria pre-
feitura que faz a legislação urbanística e que também aprova os projetos. Por que então
não viabilizar a legislação urbanística a tempo de aprovar os projetos que ela mesma iria
construir? Para resolver o imbróglio, a SMH renunciou às aprovações dos projetos e ape-
nas orientava os arquitetos na observância de parâmetros vigentes para a cidade, sendo a
quebra de regras tolerada através do bom senso para adaptações ao ambiente construído
da favela. Os projetos dos equipamentos públicos, mesmo sem aprovação das arquiteturas,
eram discutidos com os futuros órgãos gestores do serviço, que depois da obra, iriam re-
ceber o equipamento.152 No entanto, não havia uma construção coletiva com os moradores
sobre o programa arquitetônico nem sobre a gestão dos futuros equipamentos que seriam
construídos nas favelas, ficando esta discussão restrita ao âmbito técnico e institucional.
Os moradores apenas opinavam sobre que equipamentos eram necessários na região.
Visando a melhoria da articulação entre órgãos e projeto, a facilitação das aprovações que
eram exigidas em contrato e a garantia mínima à gestão futura dos equipamentos, foi criado
oficialmente um Grupo de Trabalho com representantes dos órgãos e secretarias. Eram promo-
vidas reuniões de projeto com técnicos dos diferentes órgãos e concessionárias, não habitua-
dos a projetos em favelas, que eram fundamentais também para aproximá-los com as especi-
ficidades da favela e suas dificuldades em atender aos padrões e normas da cidade dita formal.
Um dos imbróglios dos contratos de projeto sempre foram os longos intervalos entre
91 entrega e recebimento, o qual estava atrelado à análise da qualidade das informações contidas
no material, revisão e posterior aprovação do fiscal de projeto do produto entregue. Entre
a avaliação e o aceite do produto, o tempo era geralmente superior ao previsto e os fatura-
mentos ficavam presos, comprometendo a capacidade de gestão dos contratos de projeto.
À medida que os projetos e o gerenciamento da SMH, com a entrada das gerenciadoras fa-
zendo a análise dos produtos, foram ficando mais complexos, os recebimentos passaram a
ser ainda mais distanciados. Além disso, algumas etapas de projeto dependiam também da
aprovação dos moradores e dos futuros gestores, o que dificultava ainda mais o processo de
faturamentos das empresas. Na intenção de dar fluxo de caixa aos escritórios de arquitetura,

152. Antes da implementação das reuniões de macro função, eram convocados encontros entre equipe de projeto
e técnicos de outras secretarias para discutir o programa do equipamento que seria construído pelo Favela Bairro.
Frequentemente, as secretarias não estavam articuladas com a SMH e eram os arquitetos contratados que levavam, sem
saber, a notícia de que a secretaria em questão iria ser responsável pela gestão do novo equipamento.
que entre uma etapa e outra de projeto tinham que manter o custo da equipe trabalhando
para garantir a continuidade dos projetos, foram implementados pagamentos particionados na
contra entrega das etapas de projeto e na contra-aprovação153. Esta medida ajudou, mas não
evitou que os prazos não conseguissem ser cumpridos. Importante destacar que este é um pro-
blema ainda não resolvido em contratos de projetos e não foi exclusivo do Favela Bairro. Um dos
aspectos que dificulta o gerenciamento dos contratos pelos escritórios pode ser compreendi-
do através da experiência professional de “C.” (informação verbal)154, arquiteto de São Paulo,
que trabalhou internamente em gerenciadora e depois como autor de projetos em favelas. Ele
nos comentou o descompasso que há em termos de remuneração entre os dois profissionais.
O arquiteto da gerenciadora, que tem o papel de analisar os projetos e aprová-los para a libera-
ção do faturamento155, recebe por hora trabalhada, o que faz com que não haja pressão financei-
ra na aprovação dos produtos. Já o projeto é pago por produto entregue e aprovado, e o rece-
bimento da fase entregue é fundamental para dar fluxo de caixa e manter a equipe do projeto.
Com o início do financiamento do BID, a contratação das equipes de projeto passou a
ser por licitação na modalidade Proposta Técnica e Preço156, uma alternativa à licitação de
Menor Preço157, que conseguiu garantir um mínimo de qualidade às propostas urbanísticas
e valores de projeto compatíveis com a dimensão dos serviços propostos. Com o grande
volume de projetos em favelas colocados no mercado pela SMH e com valores de contrato
de projeto mais significativos158, grandes empresas de consultoria159 passaram a ter interesse

153. Contra-aprovação das etapas Plano de Intervenção, Projeto Básico e Projeto Executivo.
154. Entrevista concedida pelo arquiteto “C.” à autora em 24 de agosto de 2017.
155. No Rio de Janeiro, as gerenciadoras analisavam os produtos entregues, mas não tinham o papel de liberar os paga-
mentos, visto que os escritórios estavam diretamente contratados pela SMH. Apenas orientavam a SMH se o faturamento
poderia ser ou não liberado após a análise do produto entregue.
156. Importante observar que esta modalidade era considerada entre os arquitetos e urbanistas como a ideal, mesmo ela significan-
92 do um investimento alto para a montagem das Propostas Técnicas sem garantia de contratação. Apesar de os critérios poderem ser
lidos como subjetivos, o conhecimento sobre a favela e as propostas de urbanização dos concorrentes estavam claras, com partidos
urbanísticos muitas vezes diferentes, permitindo um debate e uma melhor avaliação sobre a capacidade da empresa vencedora da
licitação para o futuro cumprimento do contrato. A modalidade de Menor Preço significaria apenas um achatamento do valor de
mercado do projeto, sem permitir qualquer critério de avaliação das soluções que poderiam surgir no projeto contratado.
157. Esta é uma modalidade bastante praticada pelo setor público para contratação de fornecimento de material, serviços
de obra etc. que busca exclusivamente os menores preços para os serviços licitados. No entanto, visto que para a urba-
nização de favelas o projeto também estava incluído no conjunto de serviços a ser contratado, esta modalidade não seria
a ideal por não conseguir garantir a qualidade do projeto, mas apenas o menor preço do serviço. Por um curto período,
esta modalidade foi utilizada pela SMH para licitação de projetos em favelas, mas após protestos tanto do corpo técnico da
SMH como dos arquitetos e urbanistas, isto conseguiu ser revertido, voltando à modalidade de Proposta Técnica e Preço.
158. O valor de contrato de projeto é uma porcentagem do custo estimativo do investimento na favela baseado num
custo por domicílio multiplicado pelo número de domicílios da favela. Na primeira fase do Favela Bairro, o valor de re-
ferência do investimento em favelas era de US$1.300 por domicílio. A partir da segunda fase do projeto, o valor passou
a ser US$3.500 por domicílio. Mesmo não acompanhando na mesma proporção o aumento dos valores de obra, tendo
sido inserido coeficiente multiplicador para ajustar valores dos contratos de projeto, estes passaram a ser melhor remu-
nerados. No PROAP II, ficou estabelecido o valor máximo de US$4.500 por domicílio e o valor médio de US$3.800, a ser
ajustado conforme as características de cada favela. Para informações mais detalhadas conferir o Decreto 18667/2000.
159. Estas empresas de consultoria, por terem equipe permanente disponível, maior capacidade de gerenciamento de
contratos e um poder de endividamento, passaram a ser concorrentes dos escritórios de arquitetura e urbanismo.
em urbanização de favelas e começaram a disputar o mercado, que antes estava restrito
a escritórios de arquitetura e urbanismo de pequeno porte. Como não eram experientes
em projetos em favelas, estas grandes empresas subcontratavam equipes que haviam tra-
balhado nas primeiras fases do Favela Bairro, e se inseriram neste mercado.160 Este período
coincidiu com as modificações institucionais do programa, quando a SMH passou a priori-
zar investimentos em infraestrutura e a cada vez menos valorizar propostas urbanísticas
inovadoras.

Na gestão do Prefeito César Maia, no ano de 2001, a estrutura da SMH foi


modificada. Apesar disso, alguns projetos ainda foram elaborados e obras par-
cialmente executadas, porém, com características bastante diferenciadas do
que se conheceu e pode ser tratado pela alcunha de Favela Bairro. O Programa
Favela Bairro nos moldes do período compreendido entre os anos 1994 e 2000
não foi retomado [...]. A equipe que assumiu os cargos de confiança da SMH em
2001 em nada se assemelhava, no que diz respeito à forma de atuação junto às
favelas, daqueles que faziam parte da secretaria no período entre os anos de
1996 e 2000. Considera-se que a postura com ênfase na atuação política frente
a atuação técnica foi a principal mudança na atuação da Prefeitura junto às
favelas. Poucas obras estruturais foram realizadas e o acompanhamento junto
às favelas que foram beneficiadas pela urbanização no período de vigência do
Programa Favela Bairro foi de pequeno vulto” (RUBIO, 2011, p. 136).

As diretrizes de integração urbanística, que foram as bases que estruturaram o Programa,


e que trouxeram diferencial e qualidade ao Favela Bairro, não foram institucionalizadas,
mesmo o Programa tendo perpassado cinco mandatos. A mudança de prioridades da ad-
93 ministração em relação à urbanização integral das favelas transformou o Favela Bairro em
mero “cumprimento de metas”, sendo priorizada apenas o que é exigido pelo financiador – a
infraestrutura. Esta questão já havia sido levantada por dirigentes da PCRJ, no momento da
formulação do financiamento junto ao BID sobre os componentes do programa, quando foi
identificado “que para o BID, seria necessário resolver basicamente os problemas de sanea-
mento e arruamento, o que a equipe da Prefeitura defendia como não sendo suficiente.”
(LABHAB-FAU-USP, 1998, p. 136). Compreender isso tecnicamente foi pouco para manter
o Favela Bairro dentro de suas diretrizes estruturantes ao longo de tantos anos. Em 2006,
junto com o financiamento, o Programa Favela Bairro foi suspenso.

160. Podemos citar como exemplos a Concremat, a Cobrape, entre outras. Mais adiante, estas mesmas empresas se
tornaram avaliadoras dos projetos do PAC-Favelas para o Governo do Estado do RJ.
Vários ajustes nas fases e prazos de projeto foram testados ao longo da implementa-
ção do Favela Bairro161. A fase Projeto Executivo, que era uma imposição do financiador, foi
incorporada e mantida até o fim do Programa, mesmo sendo compreendido por técnicos e
arquitetos que trabalham com projetos em favelas que nem todas as situações são passíveis
de terem projetos desenvolvidos até o Executivo antes das obras serem iniciadas. Os arqui-
tetos autores dos projetos, que fizeram um diferencial ao participarem das obras adequando
os projetos no Favela Bairro 1, foram substituídos pelas gerenciadoras. Estes procedimentos,
que aconteceram na adequação do Favela Bairro 1 para o financiamento do BID, trouxeram
impasses entre projeto e obra na fase subsequente do Programa que, infelizmente, foram
incorporados por outros programas de urbanização de favelas no Brasil.
Na Tabela 3 (na página a seguir), podemos visualizar as etapas e prazos de projeto que
foram continuamente ajustadas para tentar melhorar a performance do projeto e minimi-
zar conflitos que aconteciam na fase subsequente. Interessante observar que, embora não
tenha havido muita alteração no prazo total do projeto entre o Favela Bairro 1 e o Favela
Bairro 2, o conteúdo a ser produzido era significativamente mais amplo, trazendo muito
mais dificuldades para o cumprimento dos prazos, por obrigar as equipes de projeto a serem
maiores e mais eficientes no gerenciamento para conseguir dar conta do volume de pro-
jetos, das aprovações e da coordenação dos serviços terceirizados. Destacamos ainda um
procedimento que ocorreu na transição entre o PROAP I e PROAP II, que foi a subdivisão do
Projeto Básico em duas etapas – viários e edificações – para só depois serem desenvolvidos
os projetos complementares. Esta subdivisão foi fundamental para ajudar a evitar muitas
modificações nos projetos complementares, que usam como base o projeto viário. Uma vez
este aprovado, o restante dos projetos estaria liberado para ser desenvolvido.
Nas fases anteriores, os projetos eram desenvolvidos em paralelo. Se houvesse alguma
modificação do sistema viário, todos os projetos precisariam ser revistos. Verifica-se tam-
94 bém na Tabela 3 (na página ao lado) que, efetivamente, no PROAP II os prazos de Projeto
Executivo foram estendidos consideravelmente, aumentando em 4 meses o prazo total
do projeto. No campo profissional da arquitetura e do urbanismo, é notório que, quando
se tem urgência de fazer as obras, são os prazos de projeto os primeiros a serem enxutos
para viabilizá-las. No caso em questão foi exatamente o oposto que aconteceu. É também
neste momento que desaparece a vinculação entre o projeto e a previsão de licitação de

161. “A partir dos resultados obtidos nos projetos das favelas incluídas na segunda fase e dos problemas sucessivos que
estavam ocorrendo nas obras, a coordenação do Programa propôs a reformulação dos novos contratos a serem feitos
para as favelas da terceira fase. A qualidade de projeto executivo dos projetos da 2a fase ainda era considerada aquém
do desejado. Para tentar reverter este quadro, optou-se pela extensão dos prazos de projeto para 9 meses. A única co-
munidade licitada nestes termos, foi, no entanto, a Favela de Casa Branca e Bananal. Apesar de a mudança proposta ser
positiva, os técnicos envolvidos temiam o atraso geral dos projetos, prejudicando o cronograma de atividades previstas
pelo BID. A solução encontrada foi a alteração das fases de projeto, optando-se pela licitação da obra ainda durante o
projeto básico e execução do projeto executivo durante o acompanhamento das obras.” (CARVALHO, 2000, p. 9).
obras162. Todos estes fatos, de certo modo, já estavam anunciando a falta de interesse po-
lítico no Programa e na execução das obras pela administração pública, que culminaram
no fim do Favela Bairro.

Tabela 3
Etapas de projeto no Favela Bairro 1 e 2.
Fonte elaboração própria.

MESES 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 110 120 130 140 150 160 170 180 190 200 210 220 230 240 250 260 270 280 290 300
DIAS
5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5
FASE INICIAL
FAVELA BAIRRO 1

Estudo preliminar
Plano de Intervenção
Anteprojeto
Projeto Básico
Obra (13 MESES) Executivo ao longo da obra (escritório contratado)

2a FASE (PROAP I)
Diagnóstico
Plano de Intervenção
Anteprojeto
Projeto Executivo
Adeq. Executivo ao longo da obra
Obra * (escritório contratado em parte da obra)

3a FASE (PROAP I)
FAVELA BAIRRO 2

Diagnóstico + Plano de Intervenção


Projeto Básico
Projeto Executivo
Obra ** PExecutivo em paralelo à obra, sem acompanhamento do escritório na obra.

4a FASE (PROAP II)


Diagnóstico
Plano de Intervenção
Projeto Básico
Projetos Viários,
Entrega 1 Geométrico e Edificações

Entrega 2 Demais projetos

Projeto Executivo
Obra **
FONTES: Fases 1, 2 e 3: CARVALHO, 2000; Fase 4 e PROAP II: SMH, 2003.
NOTAS:
* O tempo entre a Licitação e o início das Obras depende de cada caso.
** Nesta fase, havia previsão de licitação de obras durante PBásico.
*** Nesta fase, já não havia vinculação entre o projeto e o momento da licitação de obras, já anunciando a falta de previsões de início das obras.
**** Os tempos de Diagnóstico e de Plano de Intervenção dependiam das especificades de cada área, podendo ser adequados mas atendendo em conjunto ao prazo de 60 dias.

95
2.1.3.1. Temas de projeto do Favela Bairro 2
Assim como para o Favela Bairro 1, houve dificuldade para localizar todos os documentos
das contratações de projeto nos anos do Favela Bairro 2. Desta fase, analisamos o primeiro
escopo de projetos do Programa, de agosto de 1996, e os escopos de projeto de 2000 e 2003
que conseguimos ter acesso163. Outro documento de referência foi o artigo “Sugestões para
Maior Eficiência do Programa Favela Bairro: Uma Visão Do Parceiro Privado” (CARVALHO,
2000), publicado pelo IHS, que traz um histórico sobre as mudanças nos escopos de projetos

162. No Favela Bairro 1 e no início do Favela Bairro 2, o acompanhamento de obras fazia parte dos contratos de projetos.
No Favela Bairro 2 - 3ª fase SMH, licitações de obras ocorreram sobre os Projetos Básicos. Os Executivos foram finalizados
em paralelo ao processo licitatório das obras (CARVALHO, 2000, p. 9).
163. No caso, optamos por apresentar a referência da especificação sempre em relação ao primeiro documento em que
esta aparece, uma vez que depois passa a ser incorporada nos escopos subsequentes.
do Favela Bairro 1 e parte do Favela Bairro 2, de 1994 a 2000, que foram analisados para sub-
sidiar os resultados apresentados neste estudo.164
As diretrizes do Programa se mantêm focadas na provisão de praças e áreas de lazer,
de equipamentos públicos, do sistema viário na favela integrado ao entorno e de infraes-
trutura/saneamento, sendo adicionados alguns novos elementos a serem observados para a
elaboração dos projetos:

• uma proposta de zoneamento que direcionaria para a legislação e controle


urbanístico do assentamento após as melhorias;
• a preocupação com espaços livres que teriam potencial para ocupação desor-
denada, determinando destinação a estas áreas;
• a introdução de limites físicos demarcando a área de ocupação da favela, para
controle da expansão do assentamento;
• o tratamento das áreas limítrofes entre favela e entorno, quando possível;
• a associação do sistema viário ao sistema de coleta de lixo, sugerindo alarga-
mento de becos para circulação de veículos de pequeno porte que não impliquem
em grande número de remoções;
• o aproveitamento, preferencialmente, de vazios internos à favela para a cons-
trução de novas unidades habitacionais (UHs) para relocação dos moradores e
de equipamentos coletivos;
• a introdução de elementos físicos que demarquem os limites entre o espaço
de caráter coletivo e o privado nas vias e praças, como guias, elementos da pa-
vimentação ou outros elementos;
• a preocupação com abertura de vias que sejam vetores de expansão do assen­
tamento; e
96 • o menor número de relocações de moradias, atendo-se ao necessário e ao
baixo padrão construtivo como critério de prioridade.

Observamos que passam a existir, no Favela Bairro 2, diretrizes claras de projeto para a
introdução de elementos físicos que auxiliem no controle visual da expansão da favela, seja
ela sobre espaços livres no interior da favela, sobre os espaços de caráter coletivo ou sobre
as áreas livres no entorno do assentamento. Esses elementos também deveriam evitar a
abertura de vias que teriam potencial de vetor de expansão. Há também a introdução de cri-
térios para o sistema viário proposto para considerar os veículos motorizados do sistema de
coleta de lixo. Esta questão, que foi adotada na experiência prática do Favela Bairro 1, agora

164. Torna-se válido ressaltar que trabalhei em todas as fases do Programa e, portanto, foi a experiência profissional que
me possibilitou ter acesso a estas informações, conforme delineei na Introdução.
aparece descrita no escopo de projetos, oficializando a parceria com a COMLURB, que passa
a aprovar o sistema viário proposto visando a gestão dos resíduos sólidos após as melhorias.
Os temas que foram objeto dos projetos do Favela Bairro 1 se mantiveram no Favela Bairro 2,
que agora aparecem estruturados no escopo em três grupos: Infraestrutura Urbana,
Edificações e Meio Ambiente (ver Tabela 4 abaixo). Cada tema de projeto contém especi-
ficações técnicas, normas e critérios a serem considerados para a elaboração dos projetos.
A Infraestrutura Urbana é o grupo principal, que reúne a maioria dos temas obrigatórios
de projeto: o saneamento básico, o sistema viário e os espaços de caráter coletivo como praças
e áreas esportivas, e todo um conjunto de projetos complementares – iluminação pública,
paisagismo, mobiliário urbano, comunicação visual – que têm o papel de qualificar o sistema
viário e espaços coletivos, trazendo signos da cidade para estes territórios.

118

NOMENCLATURA
ESCOPO DE TEMAS DE PROJETO
PROJETOS

Abastecimento de Água

Saneamento Esgotamento Sanitário


Básico Drenagem
Coleta e Remoção de Lixo

INFRAESTRUTURA Iluminação Pública


URBANA Sistema Viário, Circulação Interna e Acessos
Áreas Esportivas e de Lazer
Paisagismo
Comunicação Visual
Mobiliário Urbano
97
Comunicação Visual
Serviços e Equipamentos sociais
Geração de Renda
EDIFICAÇÕES
Relocação de Edificações
(por Risco ou Intervenção Urbana)
Cobertura Vegetal
MEIO AMBIENTE Estabilização de Encostas
Avaliação de Impactos Ambientais da Proposta

Tabela 4: Temas de projeto levantados do escopo de projetos do Programa Favela Bairro.


Fonte: elaboração própria sobre SMH (1996).
Tabela 4
Temas de projeto levantados do
O Saneamento
escopo Básico é
de projetos do Programa um conjunto de sistemas de redes que não depende
Favela Bairro. Fonte elaboração
apenas de implementação (construção física das redes) para serem consideradas
própria sobre SMH (1996).
atendidas, mas também do fornecimento adequado dos serviços e de sua
manutenção periódica (concessionárias). Em paralelo ao Favela Bairro 1, estavam em
O Saneamento Básico é um conjunto de sistemas de redes que não depende apenas de im-
plementação (construção física das redes) para serem consideradas atendidas, mas também
do fornecimento adequado dos serviços e de sua manutenção periódica (concessionárias).
Em paralelo ao Favela Bairro 1, estavam em curso projetos e obras no âmbito do Programa
ProSanear, através da CEDAE. Houve uma tentativa de parceria entre SMH e CEDAE que
resultou desastrosa em termos operacionais. Por isso, no Favela Bairro 2, os projetos dos
sistemas de redes de água e esgotamento sanitário passam a ser integralmente assumidos
pelo Programa, sendo inseridos no escopo de projetos, e a execução das redes da favela
passa a fazer parte tanto do custo da urbanização como das obras dentro do Programa.
A manutenção e operacionalização dos sistemas deveriam ficar a cargo da CEDAE165, o que não
aconteceu. A municipalização dos serviços nas favelas, que seria a solução, também nunca
funcionou de forma adequada no Rio de Janeiro166. Foram identificados inúmeros problemas
ao longo do Favela Bairro nas obras e na manutenção dos sistemas de abastecimento de
água e esgotamento sanitário, causados pela desarticulação entre Prefeitura e concessio-
nária. Para tentar solucionar parte do impasse, nas favelas localizadas distante de redes co-
letoras de esgoto, o BID passou a exigir a construção de ETEs nestas favelas167 (PCRJ, 2000).
A Prefeitura tentou novo convênio em 2000 com a CEDAE168, assumindo a manutenção das
ETEs, mas após fim do acordo, os serviços não foram mantidos pela concessionária. Este
jogo de empurra-empurra trouxe perdas para a infraestrutura das favelas. Ao final, as ETEs

resultaram em equipamentos degradados (alguns ocupados para moradia). Isto


porque a Companhia Estadual de Águas e Esgoto – CEDAE não realiza sua ma-
nutenção, uma vez que não trabalha com este tipo de sistema de tratamento de
esgoto pontual e disperso, mas com uma lógica de coleta centralizada de esgoto.
(MAGALHÃES; VILLAROSA, 2012, p. 31).
98
Não adianta só implantar redes de infraestrutura nas favelas, pois o problema é de ges-
tão dos serviços e manutenção destas redes. A própria CEDAE, que deveria ser responsável

165. Foram feitas inúmeras tentativas através de convênios entre Prefeitura e Companhia Estadual de Águas e Esgotos
do Rio de Janeiro (CEDAE) para determinar responsabilidades sobre a manutenção dos sistemas. O convênio no 35/95,
assinado em 21 de setembro de 1995, “estabelecia dentre as competências da CEDAE, operar e manter os sistemas de
abastecimento de água e esgotamento sanitário, existentes ou a serem implantados, nas áreas incluídas no Programa”.
Levando em consideração que a concessionária não cumpria o acordo, a Prefeitura assumiu os serviços de manutenção,
para “evitar a perda dos investimentos realizados na execução dos sistemas”.
166. Esta falta de articulação entre município e concessionária de água e esgoto não foi exclusiva do Rio de Janeiro, em-
bora no município carioca a situação parece nunca ter sido resolvida nas favelas. Já em São Paulo, a municipalização dos
serviços, que aconteceu logo após a urbanização das favelas Vila Olinda e Barão de Uruguaia, trouxe resultados positivos
percebidos pelos moradores (LABHAB, 1999, p. 28).
167. Procedimento efetivado através do Decreto no. 18.667 de 8 de junho de 2000, que aprova o regulamento do PROAP II.
168. Convênio nº 11A, de 3 de março de 2000, firmado entre o Estado do Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Saneamento e Re-
cursos Hídricos, o Município do Rio de Janeiro e a Secretaria Municipal de Habitação, com a interveniência da CEDAE (PCRJ, 2000).
pela gestão, exclui os sistemas das favelas do restante da cidade, e a Prefeitura não conse-
gue dar conta. Interessante observar que o formato de gestão coparticipativa adotado no
passado nas favelas pela CEDAE, conforme mostramos no Capítulo 1, envolvendo Associação
de Moradores e mão de obra local, não foi implementado para tentar resolver a manutenção
das ETEs nem das redes construídas pelo Favela Bairro. O que terá impedido?
A execução das redes coletoras principais169 – chamadas de retaguarda – que ligam o sistema
da favela até o tronco do sistema geral também foi outra questão cujas responsabilidades nun-
ca ficaram claras. Os projetos das retaguardas estavam embutidos nos contratos a partir do
Favela Bairro 2, que deveriam ser aprovados pelos órgãos competentes. Por terem custo muito
alto e comprometerem parte significativa do orçamento previsto para a urbanização, mesmo
com projeto desenvolvido, as retaguardas não eram executadas nas obras da SMH. Estas eram,
então, deixadas para as concessionárias executarem, o que não acontecia ou se dava de modo
desarticulado das obras do Favela Bairro. Logo, as favelas urbanizadas tinham seus sistemas
internos de água, drenagem e esgoto implantados, mas o destino dos sistemas eram redes
obsoletas, o que causava enormes problemas nos sistemas do entorno da favela. Ao menos
este problema foi solucionado após o Favela Bairro, com o aumento de investimentos no PAC e
com a atualização da concepção de urbanização de favelas, como veremos nos próximos itens.
Para o sistema viário, as orientações contidas no escopo de projetos do Favela Bairro 2 –
especificação para elaboração de projetos de urbanismo – indicam que o projeto deve reor-
ganizar o sistema viário de modo a otimizar “a integração com os logradouros existentes,
evitando ‘couls-de-sac’, dando continuidade, na medida do possível, às ruas já reconhecidas”
(SMH, 2000, p. 3). Recomenda-se ainda “o estabelecimento de critérios de projetos alterna-
tivos às normas existentes [...] utilizados apenas nos casos onde não for possível a aplicação
das normas para Projeto de Estradas de Rodagem do DNER.” (SMH, 1996, p. 3). Deve-se re-
definir um sistema viário considerando a hierarquização proposta de Vias de Acesso, Vias de
99 Serviço Carroçáveis e Vias de Pedestre (Becos, Vielas e Escadarias), compreendendo as vias
preexistentes na favela e tratando-as de forma a melhorar as conexões internas e externas
para viabilizar a penetração dos serviços no território das favelas. Um dos procedimentos
adotados é o alargamento de vias, sendo recomendado apenas “quando não impliquem na
remoção de um número significativo de moradias, possibilitando a circulação de veículos de
pequeno porte e o acesso mais fácil a cada moradia” (SMH, 2000, p. 3). No entanto, a reso-
lução não oferece parâmetros para o que considera acesso mais fácil ou distância máxima
de caminhada até vias carroçáveis, cabendo o bom senso para a elaboração dos projetos.
No Favela Bairro 2, todas as disciplinas do Saneamento Básico, assim como Iluminação
Pública e parte do Sistema Viário170, precisam ser aprovadas pelas concessionárias e órgãos,

169. Para os sistemas de abastecimento de água, esgotamento sanitário e drenagem.


170. Neste caso, o Projeto Geométrico.
o que contribuiu significativamente para o aumento do grau de dificuldade na elaboração dos
projetos. As especificações técnicas que regem os projetos não consideram a realidade das
características do território da favela. Assim, inúmeras negociações com técnicos destas ins-
tituições eram necessárias para estabelecer padrões alternativos que fossem aprováveis, visto
que em muitos casos era impossível a adoção dos padrões técnicos e normativos existentes.
O Favela Bairro 2 traz como orientação para o projeto urbano “a introdução de elemen-
tos espaciais reconhecidamente urbanos, como áreas de lazer, praças e equipamentos pú-
blicos” (IBID., p. 3) nas favelas, como parte da reestruturação destes territórios. Há poucos
parâmetros para o planejamento do sistema de espaços coletivos, apenas se orienta para
que sejam projetadas

nas áreas maiores, espaços multifuncionais de esporte e lazer, que atendam à todas
as faixas etárias, dando preferência sempre às crianças, adolescentes e idosos,
com cada subdivisão de espaço recebendo equipamentos específicos para cada
faixa etária, e nas menores, locais de convivência diária, que contribuam para
preservação do espaço público. (SMH, 2000, p. 184)

Uma das dificuldades do projeto está na possibilidade de atender às especificações das


quadras e áreas esportivas, que devem “apresentar dimensões oficiais e correta orientação”
(1996, p. 184). Sabe-se que nem sempre em favelas há áreas livres que permitam tal dimen-
sionamento, realidade que pode até impedir esta implantação.
Por sua vez, o grupo Edificações reúne os projetos para novas arquiteturas de caráter
coletivo, bem como a produção de novas unidades habitacionais como compensação para
os moradores realocados. O escopo diz que nos contratos devem ser feitos projetos para
edificações de usos variados, que “podem incluir desde unidades habitacionais até centros
100 de uso comunitário ou prédios destinados à programas de geração de renda” (2000, p. 169).
Isto minimamente resume o que ocorreu no Favela Bairro 1, quando uma enorme gama de
edificações coletivas foi construída, atendendo à demanda de cada situação.
A primeira edificação de caráter coletivo que foi introduzida no Favela Bairro 2 de modo
obrigatório171 foi a creche, que recebe diretrizes específicas172 a partir do PROAP I. Após a cria-
ção do programa Posto de Orientação Urbanística e Social - POUSO (do qual tratamos no
subitem 2.2.4), este passa a ser a segunda edificação obrigatória, cujas especificações progra-
máticas fazem parte do escopo de projetos (SMH, 2000). Na revisão do escopo de 2003, outras
edificações são incluídas com definições de compartimentação e área mínimas, e seus projetos
passam a ser obrigatórios para a urbanização da favela, conforme destrinchado na Tabela 5:

171. Implementação a partir do Decreto no. 14.332 de 07 de novembro de 1995, que aprova os regulamentos do PROAP I.
172. Através da NP 002/98.
PROAP I. Após a criação do programa Posto de Orientação Urbanística e Social -
POUSO (do qual tratamos no subitem 2.2.4), este passa a ser a segunda edificação
obrigatória, cujas especificações programáticas fazem parte do escopo de projetos
(SMH, 2000). Na revisão do escopo de 2003, outras edificações são incluídas com
definições
Tabela 5 de compartimentação e área mínimas, e seus projetos passam a ser
Edificações a serem projetadas pela
obrigatórios para a urbanização da favela, conforme destrinchado na Tabela 5:
Contratada, de acordo com o escopo
de projetos do Favela Bairro 2.
Fonte SMH, 2003, p. 59.

Programa Favela-Bairro Bairrinho Grandes Favelas


Tipo de Edificação (de 100 a 2500 dom.) (de 50 a 500 dom.) (acima de 2500 dom.)

Creche Obrigatório Obrigatório Obrigatório


CEMASI Obrigatório Opcional
Biblioteca Obrigatório Opcional
POUSO Obrigatório Opcional
Posto de Saúde Conforme resultado de consulta à SMS
Casa de apoio, pátio de
compactação, estação de
Conforme resultado de consulta à COMLURB
tratamento de lixo e controle de
vetores - COMLURB

Tabela 5: Edificações a serem projetadas pela Contratada, de acordo com o


escopo de projetos do Favela Bairro 2.
Fonte: SMH,
As UHs, no Favela Bairro 2, ganham apenas2003, p. 59.
especificação de área útil mínima de 36m2
(SMH, 1995, p. 10), sem nenhuma orientação quanto à compartimentação interna. Somente
na revisão de escopo de projetos de 2003 aparece uma compartimentação mínima sugerida,
as UHs podendo ter de 1 quarto, com área útil de 36m2, a 2 quartos, com área útil de 42m2
(SMH, 2003, p. 87). Não havia qualquer especificação quanto à tipologia habitacional, dando li-
berdade a variações e adaptações conforme as especificidades locais e os terrenos disponíveis
para
172
sua construção.
Implementação Unidades
a partir comerciais
do Decreto também
no. 14.332 deeram parte
07 de do escopo
novembro de projeto
de 1995, quandoos
que aprova
regulamentos do PROAP I.
necessário, que serviriam ou para relocação de algum comércio ou para geração de renda
173
Através da NP 002/98.
101 reestruturando e reorganizando pequenos negócios já existentes na favela. A construção das
unidades comerciais era promovida por investimento da PCRJ em contrapartida, visto que o
BID não financiava esta modalidade, mas apenas UHs, Creches e Centros Comunitários ou de
Atividades Sociais, como passaram depois a serem chamados (PCRJ, 1995; PCRJ, 2000).
Com tantas possibilidades e variações das arquiteturas a serem projetadas, de favela
para favela, o item Edificações dos contratos, que tinha verba fixa para englobar todos os
projetos para as arquiteturas, independentemente de quantas fossem, era um impasse:
quando a favela demandava poucas edificações novas, o projeto das arquiteturas era muito
bem remunerado, acima até do valor de mercado, mas quando era necessário projetar várias
edificações, era fato que os escritórios teriam prejuízo. Por isso, a verba fixa de contrato
para Edificações passou a ser medida por m2 projetado e com a possibilidade de ser amplia-
da ajustando-se à demanda da favela.
No escopo de projeto do Favela Bairro 2, o grupo Meio Ambiente engloba apenas três
temas de projeto: a Avaliação dos Impactos Ambientais da proposta urbanística, numa
preparação para a aprovação do projeto e futura licença ambiental das obras pela SMAC;
propostas para Cobertura Vegetal com indicação de áreas de reflorestamento; e Estabili-
zação de Encostas. As duas primeiras apenas ocorrem na etapa Plano de Intervenção, não
derivando para projetos básicos para ações em obra, embora outros temas de projeto resul-
tem em melhorias ambientais.
Em projetos urbanos em favelas, as soluções ambientais perpassam a mitigação do risco,
a estabilização de encostas e até a drenagem e o tratamento dos cursos d’água, o esgota-
mento sanitário, a arborização e o reflorestamento para preservação de matas, das encos-
tas, de nascentes e margens de cursos d’água. Somam-se ainda a identificação de proble-
mas relativos ao lixo, além da conscientização dos moradores sobre o risco de (re)ocupação
de áreas inadequadas. Todos estes temas constam nas especificações para a elaboração da
Avaliação dos Impactos Ambientais, mas nas etapas seguintes de projeto são tratados de
modo específico e isoladamente.
Nas favelas, soluções para melhorias ambientais geralmente demandam remoção de
moradias de áreas sujeitas a riscos e a necessidade de transformar os espaços resultantes
destas remoções em espaços úteis para a coletividade a fim de evitar a reocupação para mo-
radia. Esta é uma das maiores dificuldades dos projetos urbanos nas favelas, e é justamente
nesse tipo de situação que os projetos urbanos podem desempenhar um papel fundamental,
pois podem otimizar os investimentos de modo a atender o máximo de questões urbanas e
ambientais dentro de um mesmo evento.
Conectar as demandas de programas governamentais às necessidades locais na mesma
intervenção torna-se uma estratégia de projeto que permite a implementação de prioridades –
a exemplo da mitigação de riscos e desenvolvimento de um novo espaço público aberto –
como uma solução integrada. Esta estratégia de projeto, no entanto, é fruto da prática de
projeto e não está registrada nem recomendada no escopo de projetos do Favela Bairro.
102 Outra questão crucial é saber como interromper um círculo vicioso de ocupação urbana
das áreas de risco. Em outras palavras, como intervir nas áreas de risco ou de preservação
ambiental de modo a evitar que elas não sejam reocupadas após a urbanização da favela, pois
se tornariam novamente uma ameaça para os moradores locais?
Quando o número de remoções é elevado para o tratamento das áreas de risco ou de
preservação ambiental, acima do limite máximo de 5% das moradias da favela financiado
pelo BID a partir do Favela Bairro 2 (PCRJ, 1995, p. 29), o custo para a implementação da so-
lução urbana pode ir além do orçamento alocado para um projeto de urbanização da favela.
Nestes casos, a solução urbana é direcionada para ser atendida por outros órgãos, como
a GEORIO, para a estabilização das encostas, ou a Fundação RIO ÁGUAS, para tratamento
das margens de cursos d’água, ou através de outros programas governamentais que com-
plementariam as melhorias urbanas, como o Mutirão Reflorestamento (do qual tratamos
no subitem 2.2.4). Na pior das hipóteses, os custos podem até inviabilizar a urbanização da
favela, a qual passa a ser classificada como assentamento não urbanizável.
2.1.4. Conclusões sobre as fases do Favela Bairro
Nesta pesquisa, classificamos o Favela Bairro em duas fases, por nós identificadas como defi-
nidoras do processo de projeto e do papel do arquiteto no Programa. Construímos a Tabela 6
(na página a seguir), que graficamente resume as diferenças entre estas fases, que foram
discorridas ao longo do texto.
O Favela Bairro 1, ou a fase inicial e embrionária, trouxe especificações de projeto que
iam sendo ajustadas enquanto este era elaborado, como se os procedimentos do Programa
estivessem sendo construídos a partir da prática. Esta fase foi fundamental, pois ajudou a
consolidar uma metodologia de urbanização de favelas com diferentes atores articulados
e integrados, embora apresentasse falhas e incertezas ao longo do processo. Apesar disso,
como já observamos neste Capítulo, estas incertezas deram liberdade aos projetos que não
tinham escopo rígido definido e podiam ser adaptados mais facilmente às demandas de cada
favela. Esta foi a única fase em que o arquiteto autor do projeto estava inserido na obra,
adequando os projetos à realidade, processo que ajudou a suprir deficiências das bases car-
tográficas municipais, dentre outras. Este fato também possibilitou uma equipe completa
locada nas obras – gestor do Programa, autor do projeto, construtor – em contato direto
com os moradores, o que trouxe agilidade e mais qualidade às decisões, assim como possi-
bilitou maior participação dos beneficiários.
O Favela Bairro 2, foi marcado por mudanças com a ampliação substancial dos investi-
mentos, através do financiamento do BID, que obrigou a uma reorganização institucional para
operacionalizar o Programa. A SMH criou setores e introduziu um novo ator no processo –
as gerenciadoras – que incialmente tinham o objetivo de auxiliar na gerência do Programa e
dos projetos. Uma das imposições do financiador foi a etapa Projetos Executivos e Aprovações
nos órgãos e concessionárias. Acreditava-se que a inclusão desta etapa de projeto dispensa-
ria a necessidade dos autores dos projetos das obras, o que se mostrou ineficaz, e estes fo-
103 ram substituídos por profissionais das gerenciadoras – quadro que permaneceu até o fim do
Favela Bairro. O BID, em contrapartida ao financiamento, impôs outros procedimentos
como as contratações por licitações, a sistematização do processo participativo, a obrigato-
riedade de creches independente da demanda local.
Com o início do financiamento via PROAP, o escopo de projetos é ampliado, exigindo
maior capacidade de gerenciamento dos escritórios de arquitetura, que então precisavam
ampliar equipe, contratar empresas de infraestrutura e de serviços complementares de
projeto, como topografia, sondagem etc. para conseguirem concluir os contratos. Sur-
gem também especificações, normas e diretrizes que em vários momentos sofrem pe-
quenas revisões de ajuste do processo, sem influenciar fundamentalmente no modo de
fazer dos projetos. O aumento significativo dos investimentos deu visibilidade à agenda
de urbanização de favelas, mas os procedimentos inseridos no Favela Bairro 2 profis-
sionalizaram e enrijeceram o processo de projeto em favelas, tornando-o burocráti-
co e não necessariamente mais eficiente. Finalmente, nesta fase, a rede de parcerias
Tabela 6
Diferenças entre as fases do Favela Bairro que influenciaram
no processo de projeto e no papel do arquiteto no Programa.
Fonte Elaboração própria.

Classificação da
Favela Bairro 1 Favela Bairro 2
pesquisa
Financiamento - PROAP I PROAP II
Revisões
fase inicial 2a fase 3a fase 4a fase PROAP II (2000) PROAP II (2003)
escopos/fases SMH
Data 1994 1996 1997 1998 2000 2003
Instruções para Implementação
do Programa e o subsequente
Especificações para a Elaboração dos Projetos , com vários tomos, que iam sendo
Especificações para Elaboração
Escopo de Projetos revisadas conforme as experiências adquiridas na fase anterior,
do Projeto s:
chamado de ESCOPO DE PROJETOS
amplo, impreciso e cambiante
Investimento /
U$1.300,00 U$3.500,00 U$3.800,00
domicílo
Por curto período,
mudou para
Licitação menor
Licitação Técnica e Preço
Preço, voltando
Forma de para Licitação
Concurso Público Licitação Técnica e Preço Técnica e Preço
Contratação
Passa a permitir consórcios
Critérios agregados ao valor de projeto por dificuldade
(“áreas planas”, “áreas de encosta” e “áreas complexas”)

Prazos Projetos 150 dias 180 dias 285 dias

Pagamentos Contra-aprovação Contra-aprovação Contra-entrega e Contra-aprovação


Arquiteto na obra, com Creches Prazos extendidos de POUSO
desenvolvimento de projeto Projeto executivo projeto
para obra Infraestrutura
Serviços adicionais
Componentes que Material de
se agregam ao divulgação
projeto Aprovação dos
projetos de
infraestrutura nos
órgãos

Componentes que
- Arquiteto sai da obra substituído pelas Gerenciadoras
saem
104
Operacionalização / Projeto: Operacionalização / Projeto:
SMH SMH + Gerenciadoras
IPLANRIO IPLANRIO
SMDS-Creches
Obras: Obras:
SMH SMH + Gerenciadoras
SMO SMO
Estrutura
RIOURBE RIOURBE
Institucional
Participação: Participação:
RIOLUZ RIOLUZ
LIGHT LIGHT
GEORIO CEDAE (convênio nº 35 de 21/09/1995)
GEORIO
SMAC (reflorestamento / analise ambiental)
SME
SMEL
I - água e esgoto - CEDAE
II - sistema viário e drenagem pluvial - SMO
III - contenção e estabilização de encostas - GEO-RIO
IV - reflorestamento - SMAC
Gestão - V - coleta de lixo e limpeza pública - COMLURB
VI - iluminação pública - RIOLUZ
VII - creches - SMDS e SME
VIII - esportes e lazer- SMEL
IX - praças, parques e jardins - PARQUES E JARDINS
institucionais que já ocorria no Favela Bairro 1 passa a ser consolidada através de decreto
municipal (PCRJ, 1995), que visava garantir minimamente a sustentabilidade do Programa,
registrando as obrigações das diferentes instituições como participação do processo de
projeto e gestão pós-obras. Esta rede não foi garantida por decreto, pois nem todas as
parcerias foram cumpridas, mas foi a capacidade do Programa de articular políticas pú-
blicas que propiciou ações no território das favelas de modo integrado. Nesse contexto,
o projeto se instaura como peça central para este processo.

2.1.5. Programas integrados ao Favela Bairro


Ao longo da implementação do Favela Bairro, o programa destacou-se pela articulação e
integração institucional da SMH com outras secretarias municipais, como a SMDS, SMAC,
SMEL, SME e SMTb, e órgãos públicos como GeoRio173, Fundação RioÁguas, CEDAE, RioLuz,
COMLURB. Muitas destas parcerias resultaram em programas complementares criados ou
impulsionados por estas secretarias ou pelos próprios órgãos, potencializando a urbanização
integrada e a gestão urbana das favelas. Destacamos alguns destes programas, uns pela sua
importância – apesar da articulação não ter sido bem-sucedida –, e outros pelos ganhos ao
processo de urbanização de favelas na cidade do Rio de Janeiro e que se mantiveram, mes-
mo com o fim do Favela Bairro.
O Programa Saúde da Família174 foi implementado, no município do Rio de Janeiro, pela
Secretaria Municipal de Saúde, atendendo a uma política nacional de Estratégia da Saúde
da Família e potencializando o trabalho que já vinha sendo desenvolvido pelos agentes co-
munitários. As primeiras equipes de saúde da família ligadas ao programa foram locadas, a
partir de 1999, em favelas, integrando esta política ao Favela Bairro. Esta articulação entre
os programas da SMH e SMS se deu pelo fato de o projeto de urbanização englobar um novo
equipamento público aos moldes de Posto de Saúde, construído pela SMH e a ser gerido pela
105 SMS, dependendo da demanda175 da região para atendimento à população da favela e seu
entorno. Após anos de resultados positivos, o serviço de saúde da família176 vem sofrendo
precarização com atrasos de salários e constantes reduções de equipe, que ameaçam a con-
tinuidade do Programa Saúde da Família.

173. No Favela Bairro 1, as contenções relativas à mitigação de riscos eram de responsabilidade da GeoRio, enquanto a
SMH assumia o projeto e execução das contenções relativas ao sistema viário. A partir do PROAP, os projetos de con-
tenções para mitigação de riscos ficaram a cargo da SMH. Quando coubesse no recurso para as obras do Favela Bairro,
a SMH as executava. Existia, à época, “uma resolução entre as Secretarias de Habitação e de Obras, que todas as conten-
ções que [fossem] executadas pelo Favela Bairro [seriam] acompanhadas por técnicos da GEORIO que [atestariam] se os
serviços foram realizados a contento e de acordo com o projeto” (LABHAB, 1999, p. 136, grifos acrescentados).
174. Para mais informações sobre os programas de saúde pública e sobre a ESF, ver LIMA (2014).
175. Esta demanda era verificada pela equipe responsável pelo projeto junto à SMS e aos moradores da favela, que eram
ouvidos trazendo dados sobre a qualidade do serviço utilizado. Observamos este procedimento no decorrer desta pes-
quisa, através da participação em reuniões de projeto.
176. Operacionalizado desde 1994 no Brasil por Organizações Sociais da Saúde (OSS).
Os agentes comunitários de saúde177, nas favelas desde os anos 1980, são atores impor-
tantes na articulação entre a política de saúde pública e os moradores das favelas, afinal, são
moradores da favela contratados pela SMS para caminhar e fazer visitas domiciliares em uma
determinada área, estabelecendo a ponte entre o território e sua equipe. São eles os atores
da Saúde mais próximos do território da favela, e por serem conhecidos e por estarem as-
sociados à Saúde, são figuras respeitadas e com livre acesso à toda a região da favela onde
trabalham.

Sou nascido e criado na favela [...]. (Mas) quando eu comecei a trabalhar como
agente comunitário, eu não conhecia a realidade de onde eu moro. Passei a
conhecer a partir do meu trabalho. Fome, miséria, condições sub-humanas, eu
só passei a ver depois do trabalho. Até então eu não achava que isso existia
perto de mim. (informação verbal)178.

O trabalho dos agentes comunitários também consiste em mapear as ruas e casas da


sua área de atuação, alimentando uma base de dados da Saúde que, a nosso ver, é de suma
importância por trazer informações espaciais dos problemas que poderiam estar também
ligados a questões urbanas.

No primeiro desenho que a gente fez do mapeamento, a gente percebeu que


as áreas mais urbanizadas são as áreas com melhores condições de vida. Por
exemplo, até onde o carro vai, o caminhão de gás, as condições de saúde são
melhores de escolaridade, de vida, de renda. E quanto mais afastado do acesso,
as condições de vida são piores. Aí vem mais miséria, saneamento básico total-
mente precário, baixas condições de renda, gestações múltiplas, escolaridade
106 muito baixa, fome, miséria bem mais acentuada. Não que nessas áreas que tenha
urbanização não se encontre, mas é bem menor. (informação verbal)179.

No entanto, no início de cada projeto, não está institucionalizado o fornecimento dessas


bases para a equipe contratada pela SMH, cabendo a cada uma descobrir sua existência e
solicitá-la para complementar o conhecimento sobre o território. Tampouco as bases carto-
gráficas do projeto de urbanização são fornecidas para a SMS após a finalização dos projetos,
o que poderia contribuir muito ao trabalho dos agentes comunitários.

177. A partir dos anos 1990, passaram a integrar o Programa de Agentes Comunitários de Saúde – PACS, implementado
pela SMS.
178. Entrevista concedida por “W.” para esta pesquisa em fevereiro de 2019.
179. Idem.
Figura 11
Exemplos do mapeamento das Zonas de Trabalho
feitos por agentes comunitários da Rocinha, em 2004.
107 Fonte TERRY, JAVOSKI, 2016.

A Secretaria Municipal de Meio Ambiente (SMAC) criou o Programa Mutirão Reflores-


tamento, em 1994, programa contínuo de reflorestamento através de mão de obra remu-
nerada local, que trouxe resultados significativos nas encostas próximas às favelas e que se
mantém até os dias de hoje em operacionalização na cidade do Rio de Janeiro.
Na favela da Babilônia, esse programa evoluiu para a fundação de uma cooperativa local,
a CoopBabilônia, que atua há 20 anos, e para uma parceria público-privada frutífera. O Sho-
pping Rio Sul, estabelecimento comercial vizinho à encosta do Morro da Babilônia, passou
a colaborar com o Município, e vem financiando as atividades de reflorestamento, sob a
supervisão da SMAC, e iniciativas de ecoturismo empreendidas pela CoopBabilônia (Fig. 12)
Figura 12
Ortofotos da encosta do Morro da Babilônia, no Rio
de Janeiro, em 1984 (esq.) e em 2013 (dir.), com resul-
tados visíveis do reflorestamento feito pela parceria
público-privada. Fonte IplanRio/1984; IPP/2013.

Havia também o Programa Guardiões dos Rios (1995-2016), que consistia na limpeza dos
cursos d’água com retirada de lixo, revegetação das margens, quando fosse o caso, e pro-
moção da educação ambiental nas favelas que os margeavam. Na favela de Vila Canoas, o
ambiente junto ao rio se transformou:
108
Com implantação de rede de esgoto na favela e a ação do grupo Guardiões
do Rio Canoas (dentro do Programa Guardiões dos Rios, da SMAC), a poluição
e o lixo que eram visíveis (à época do projeto de urbanização, em 1996) no Rio
Canoas, foram eliminados, o que contribuiu significativamente para a requalifi-
cação ambiental da área. (CARVALHO, 2008, p. 51).

Este teor de requalificação ambiental e a postura mais política do programa se eviden-


ciam no relato de um de seus agentes:

Tinha 900 homens na rua. A gente também tomava conta dos parques: por exem-
plo, parque que tinha favela ao lado, eu trabalhava. Eles tinham muita dificuldade
de trabalhar com favelas lá (na SMAC), como Dois Irmãos e Parque da Cidade.
[...] Era outra coisa, (o programa) mudou muito (nas favelas)! O programa
acabou180, era um programa mais político. Mas conseguimos colocar uma geren-
ciadora para ajudar, o corpo técnico era muito pequeno... Tinha que ter corpo
técnico também, né? Não é botar 2 pessoas e com 900 homens na rua. Aí o César
Maia tirou o programa, que era da Rosa Fernandes....” (informação verbal)181.

O Programa Favela Limpa182 (1995-2018), vinculado à COMLURB, implementou o sistema de gari


comunitário nas favelas, que transferia verba às Associações de Moradores para a contratação de
mão de obra local que fazia a coleta domiciliar do lixo e o transporte manual até pontos de acúmulo
de lixo oficiais e a varredura das vias, serviço este que era organizado e fiscalizado pela COMLURB.
Apesar de considerado um programa exemplar e bem-sucedido (PINTO & LOBATO, 2004)183,
empregando mais de 1,7 mil garis em 87 favelas184, sua continuidade está ameaçada, pelo
menos como gestão coparticipativa. Em 2018, o Ministério Público do Trabalho considerou
o Programa Favela Limpa ilegal, no entendimento de que se tratava de contratação indireta
da Prefeitura de pessoal sem concurso público185, determinando o afastamento imediato
de todos os garis em atividade e um concurso público para novas contratações. Sugere-se
nesta ilegalidade o preconceito do Estado de que as Associações de Moradores estariam
repassando verba para os grupos criminosos. Caso se confirme realmente esta suspeita, por
que então não investigar quais e suspender apenas os contratos com as que estariam asso-
ciadas ao crime, dando continuidade ao programa? Tramita na Câmara dos Vereadores um
Projeto de Lei186 para viabilizar contratos de terceirização, que “poderão ser estabelecidos
com empresas civis ou com entidades sem fins lucrativos”. Este projeto de lei pode até ter

180. Este programa voltou a ser anunciado pela administração atual, de Marcelo Crivella, em 2018, com o nome de Conser-
vando Rios, com metas de “25 frentes de trabalho”. Pouco mais de um ano depois, este programa já encontra problemas,
visto que tenta transferir obrigações trabalhistas para as Associações de Moradores, que estão se negando a assinar o con-
trato de parceria, como ocorreu no seguinte caso: “A presidente da Associação de Moradores do Recreio (Amor), Simone
109 Kopezynski, reitera que o item impossibilita o acordo […]: todo o peso trabalhista seria da AMOR. Como isso seria possível,
se a associação é sem fins lucrativos? O programa é importante porque tem uma função social, ajudando a quem precisa
e cuidando da área, mas nesses moldes é impraticável — afirma.” (Fonte https://oglobo.globo.com/rio/bairros/recreio-re-
cusa-proposta-da-prefeitura-para-implantar-projeto-de-limpeza-de-rios-23798400 https://oglobo.globo.com/rio/bairros/
recreio-recusa-proposta-da-prefeitura-para-implantar-projeto-de-limpeza-de-rios-23798400, acessado em 04/11/2019).
181. Entrevista fornecida por Q. a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
182. Ficou conhecido como “Programa Gari Comunitário”.
183. Para conferir dados mais detalhados, ver: http://www.tcm.rj.gov.br/Noticias/4556/VI-185~1.PDF
184. Idem.
185. Os garis comunitários eram contratados diretamente pelas Associações de Moradores, ficando elas responsáveis
pelo pagamento e pelos encargos trabalhistas. A COMLURB fazia o repasse da verba de custos da mão de obra. Mas o
Ministério do Trabalho interpretou a situação de outro modo. Este é mais um exemplo que demonstra a falta de prepa-
ração da legislação trabalhista para programas de gestão coparticipativa, e desatualizada em relação à realidade urbana.
Na mesma notícia, divulga-se a suspeita, talvez infundamentada se generalizada, de que a “Prefeitura pode estar dando
verba para associações envolvidas em crimes”. (Ver: idem http://www.rocinha.org/noticias/view.asp?id=1115).
186. Projeto de Lei nº 755/2018, do vereador Marcelo Arar (PTB). “Entre os requisitos do contrato, estão a contratação
de moradores das localidades atendidas e a ficha limpa da empresa ou entidade contratada, com relação a causas tra-
balhistas e processos de corrupção e inadimplência”. (Fonte https://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro1720.
nsf/249cb321f17965260325775900523a42/1a47570e1cad567b8325825d00639039?OpenDocument, acessado em
13/05/2019).http://www.camara.rj.gov.br/noticiasavisosdetalhes.php?m1=comunicacao&m2=notavisos&idnoticia=13987
intenções legítimas de dar continuidade a um programa que tem viabilizado ao longo de
23 anos a coleta de lixo nas vielas e becos das favelas cariocas. No entanto, parece atender
diretamente a interesses privados para a exploração do território das favelas, abrindo um
grande mercado ao capital, a espelho da terceirização da saúde.
O Favela Bairro impulsionou a criação da SMTb, em 1997, que seria responsável pela im-
plementação das políticas de geração de trabalho e renda e pela articulação de questões
relacionadas aos objetivos mais amplos do Favela Bairro, de combate à pobreza e redução
das desigualdades urbanas que marcam o território das favelas. As primeiras atribuições da
SMTb, dentro do Favela Bairro, eram: compor junto com SMH e SMF o Comitê de Seleção
para ocupação dos espaços comerciais construídos pelo Programa, que foram ampliadas
com a criação e implementação de programas de geração de trabalho e renda nestas áreas;
fomentar e manter cursos de capacitação e centros de geração de renda nas favelas, assim
como estimular a criação de cooperativas de trabalho a partir das ações da SMTb nas favelas.
Para combater as expansões das favelas após as obras, tentar controlar e garantir a sus-
tentabilidade das melhorias urbanas, prestar orientação aos moradores nas novas obras e
implantar o processo de regularização urbanística e edilícia, e assim garantir o pós-obras,
a prefeitura carioca introduziu nas favelas urbanizadas, a partir de 1997, o Posto de Orien-
tação Urbanístico e Social – POUSO. A tentativa de gestão urbana teve bons resultados no
controle e expansão horizontal das favelas onde o POUSO foi instalado (IPP, 2009), com
menor índice de crescimento destas favelas em relação às que não contaram com a equipe
da Prefeitura no local. Mas o controle da expansão vertical e adensamento das quadras, nas
favelas urbanizadas, não foi alcançado. O POUSO em nenhum momento entendeu que era
necessária uma negociação através da qual o “congelamento” da favela pudesse significar
uma mudança efetiva de reconhecimento do status da favela. Mesmo contando com fun-
cionários e colegas competentes, dedicados e sensíveis, sua prática esteve sempre sujeita a
110 esta limitação essencial, e sua voz de fato ficava em um meio caminho entre a legalidade da
favela e a legalidade oficial, visto que a regularização, na maioria das favelas, não veio após
a urbanização. Ademais, esta política nunca foi prioridade e hoje está sem expressão institu-
cional, o que enfraquece ainda mais o papel dos técnicos nas áreas fiscalizadas.
Como vimos, todos estes programas foram criados, alavancados ou potencializados a
partir da urbanização da favela, cujo processo envolveu articulação com diversos campos de
conhecimento. Esta articulação e integração entre programas foi um diferencial do Favela
Bairro que, destacamos, está além do campo do projeto urbano, mas demonstra todo o
potencial do projeto como articulador das políticas de combate à exclusão e à pobreza.
O Favela Bairro foi fundamental por colocar o projeto como peça central e instrumento
decisório para as ações públicas nas favelas. Não necessariamente todos os aspectos do
projeto aconteceriam através do Favela Bairro, mas através do papel central do projeto
era possível organizar outras políticas públicas que acontecessem de forma independente,
como programas de esportes, cultura, geração de renda, capacitação e de infraestrutura.
O projeto urbano, no Favela Bairro, era articulador destas diferentes políticas públicas, e in-
dutor e integrador de ações sociais complementares às melhorias urbanas. Isto se mantém,
até os dias de hoje no Brasil e em outros países, nos programas posteriores ao Favela Bairro
de urbanização integral de favelas, embora apresentem diferentes metodologias e as ações
indicadas em projeto não estejam sendo implementadas em sua completude.

2.2.
Programas pós-Favela Bairro:
diferenciais e procedimentos

Neste item, destacamos os diferenciais ou procedimentos de outros programas de urbani-


zação que influenciaram o processo de projeto em favelas.

2.2.1. Programa PAT-PROSANEAR (2000-2007)


O Programa “Projeto de Assistência Técnica ao PROSANEAR”, conhecido como PAT-PRO-
SANEAR, foi uma atualização do Programa Prosanear dos anos 1990, que tinha foco exclusi-
vamente nas obras de saneamento. Com o financiamento internacional do Banco Mundial
a partir dos anos 2000, o escopo do PAT-PROSANEAR foi ampliado para promover projetos
que integravam saneamento, urbanização e produção de novas unidades para atendimento
às famílias removidas de áreas de risco. O PAT-PROSANEAR, que tinha como objetivo inicial
subsidiar os municípios e Estados na elaboração dos projetos, sofreu ajuste em 2005, quan-
do houve ampliação dos investimentos visando a execução de algumas obras demonstrati-
vas da aplicabilidade da metodologia do Programa.187
Apesar de ser um programa com foco no saneamento e recuperação ambiental, o pro-
111 duto inicial dos serviços de projeto era o Plano de Desenvolvimento Local Integrado (PDLI),
que funcionava

como instrumento indutor de um novo padrão urbano para comunidades de


baixa renda. Isto se realiza através da identificação de uma área de influência
direta e indireta da área objeto de intervenção, para o qual será apresentado
um conjunto de ações e intervenções sustentáveis, necessárias para a melhoria
e recuperação das áreas selecionadas pelo PAT-PROSANEAR. Merece ser desta-
cado que as propostas de um Plano e as almejadas melhorias devem estar sem-

187. Devido à pouca expressividade em termos de obras executadas, o PAT-PROSANEAR foi basicamente um programa
que financiava a elaboração de projetos, que serviriam posteriormente para a captação de outros recursos para a exe-
cução de suas obras. O PAT-PROSANEAR abrangeu 30 municípios no Brasil, tendo sido elaborados 35 projetos, 3 obras
iniciadas, e apenas 1 delas foi integralmente concluída com recursos do Programa.
pre centradas nos membros das comunidades locais a quem se busca atender, e
não apenas nas obras físicas que serão necessárias para alcançar as melhorias.
(MCIDADES, 2003, p. 49).

O PDLI era composto por dois planos: o Plano Urbanístico e Ambiental e o Plano de
Infraestrutura. Partia-se do PDLI, buscando compreender uma área de influência fora dos
limites da favela, cujo território mais amplo potencializaria a integração e o desenvolvimen-
to social dos moradores da favela e a efetiva gestão urbana após as obras. As propostas do
PDLI deveriam estar integradas com os Planos Municipais e Estaduais previstos para a área.
O território do PDLI seria definido a partir das particularidades da(s) favela(s)188 em questão
e da região onde esta(s) estivesse(m) inserida(s). A segunda etapa consistia no Projeto de
Saneamento Integrado (PSI), que fechava o foco no território da(s) favela(s) indicado no
documento base da licitação de projetos do PAT-PROSANEAR, e que deveria ser o objeto
dos Projetos Básicos e/ou Executivos para as obras físicas, que formariam a última etapa do
Programa. Destacamos que não havia obrigatoriedade de Projetos Executivos no PAT-PRO-
SANEAR, ficando a critério da administração local a decisão. Havia certa liberdade nesta
ordem sequencial de desenvolvimento das etapas de projeto e obra, podendo ser invertida
– o PSI e obras antes do PDLI, nos casos onde as soluções seriam mais simples para resolver
as diretrizes de saneamento integrado da favela (MCIDADES, 2003, p. 50).
Esta escala territorial ampla do PDLI visava atender ao objetivo “de definir ações e in-
vestimentos necessários para o desenvolvimento integrado da área e buscar os mecanismos
para a sua viabilização, além de estabelecer estratégias para a recuperação de áreas urbanas
degradadas.” (MCIDADES, 2003, p. 61).
Este, sem dúvida, foi um diferencial na metodologia do PAT-PROSANEAR: extrapolar os
limites territoriais da favela beneficiava não só os assentamentos, mas seu entorno ime-
112 diato, evitando soluções técnicas pontuais, além de ser um parâmetro fundamental para
sistemas de saneamento e meio ambiente, e de especial importância para a qualidade da
integração urbana e social das favelas com o entorno. Este tipo de abordagem territorial foi,
anos depois, apropriada pelo Programa Morar Carioca, como veremos adiante.
Todo o processo de projeto era permeado pelo Trabalho Social, que tinha como objetivo
ampliar a participação durante a elaboração do PDLI e PSI, assim como a formação de agen-
tes locais para o acompanhamento das obras. A metodologia apresentada num Plano de Tra-
balho Social (PTS) era objeto e critério de seleção do processo licitatório da contratação de
projetos. Diferentemente do Favela Bairro, no qual o Trabalho Social era desenvolvido pelo
gestor e separadamente do processo de projeto, no PAT-PROSANEAR, o PTS era construído

188. Um contrato de consultoria de projetos poderia abranger diferentes favelas. Estes territórios eram definidos pela
administração local, que geralmente coincidiam com os limites das favelas, assim como no Favela Bairro.
e implementado pela própria equipe responsável pelos projetos, o que de certo modo am-
pliava ainda mais os vínculos entre projeto e população beneficiada.
Destacamos que a metodologia do Trabalho Social do PAT-PROSANEAR privilegiava a parti-
cipação efetiva dos beneficiários nas diversas fases de elaboração e de implementação dos pro-
jetos, atribuindo um novo caráter ao “trabalho social (que) não se restringiria mais à mobilização
comunitária e à educação ambiental no período de obras, como foi realizado em programas ante-
riores.” (MCIDADES, 2015, p. 2). Do mesmo modo, a vinculação do Trabalho Social com o projeto
não se limitava a consultas de apresentação, discussão e aprovação do Projeto, como era basica-
mente o que acontecia em outros programas. Entre as ações da metodologia participativa do PAT-
-PROSANEAR estavam: a formação de comissões de representantes dos moradores para acom-
panhamento de todo o desenvolvimento do projeto e das obras; oficinas temáticas com grupos
locais de moradores e, posteriormente, com a comunidade envolvida em todo o projeto; além
do fomento à organização local visando a gestão futura. Metodologia similar foi adotada pelo
Trabalho Social do PAC-UAP, embora aplicada de modos distintos em todo o território nacional.

113

Figura 13
Diferentes atividades de participação e planejamento do projeto nas favelas Parque Fernanda, Jardim Irene e
Jardim das Rosas, na cidade de São Paulo, dentro do mesmo contrato de projetos do PAT-PROSANEAR. A me-
todologia do PTS foi desenvolvida pela equipe de projeto, atendendo ao escopo do Programa. Fonte GTA/2006
Outro marco importante do PAT-PROSANEAR foi o enfoque dado à gestão e à sustenta-
bilidade das ações ao longo do tempo. Estava determinado, na metodologia do Programa,
que tanto os órgãos quanto os beneficiários – os moradores – deveriam estar inseridos ao
longo de todo o processo: do PDLI e PSI até o acompanhamento das obras e no pós-obras,
através das metodologias de participação do PTS.
No PSI, havia uma etapa intermediária entre Diagnóstico e Plano de Intervenção – os
Estudos da Concepção – que tinha papel estratégico para o envolvimento da população be-
neficiada nas decisões de projeto. Era obrigatória a preparação de estudos com diferentes
abordagens relacionadas às viabilidades técnica, econômica, de gestão e de retorno dos inves-
timentos num determinado período pós-obras. Estas diferentes alternativas dariam base para
o processo decisório, numa metodologia muito próxima à utilizada nos estudos desenvolvidos
no IPT (ROCHA et al., 2002) sobre Procedimentos para Tomada de Decisão em Programas de
Urbanização de Favelas189. Quanto aos Estudos de Concepção, o debate se daria para a escolha
conjunta da solução urbana de melhor alternativa de custo–benefício, imaginando-se diferen-
tes níveis de impacto na estrutura urbana preexistente, nos modos de gestão e, inclusive, nas
tarifas dos serviços de água e esgoto que variavam de acordo com o modo de gestão. Salienta-
mos que a aceitação de diferentes modos de gestão foi um diferencial deste programa, ao me-
nos no escopo que direcionava a metodologia de construção dos projetos, pois possibilitava
considerar a gestão comunitária existente na favela antes do Programa, indo além das normas
e procedimentos padronizados por concessionárias. Além disso, esta metodologia unia órgãos
e moradores como participantes efetivos da construção da gestão futura do pós-obras, cada
qual assumindo sua parte na tomada de decisão conjunta.
Tendo em vista a grande diferença metodológica em relação ao Favela Bairro, apresen-
tamos a seguir a Tabela 7, comparativa das etapas e prazos de projeto deste Programa com
os do PAT-PROSANEAR.
114 Embora o prazo total de 9 meses para a elaboração dos projetos se assemelhe ao Favela
Bairro 2 na 4ª. fase, os produtos e tempos de elaboração das etapas intermediárias são bas-
tante diferentes. O Diagnóstico e Planejamento190, que no Favela Bairro 2 somavam juntos
menos de 3 meses do cronograma de projetos, no PAT-PROSANEAR seriam etapas elabora-
das em 5 meses. Enquanto o Favela Bairro dedicava quase 7 meses para Projetos Básicos e
Executivos, no PAT-PROSANEAR estas fases mais técnicas teriam 4 meses para desenvolvi-
mento. Estas diferenças são fundamentais em termos de metodologia de projeto. Enquanto
o Favela Bairro parecia investir tempo na elaboração de documentos técnicos e executivos,
o PAT-PROSANEAR privilegiava o reconhecimento do território, da população e do contexto,
dando tempo à maturação e consolidação das demandas e do planejamento.

189. Esta metodologia também influenciou o Programa Bairro Legal (SAMORA, 2009, p. 108), que tinha como terceira
etapa de projeto Estudos de Alternativas de Intervenção.
190. Etapas PDLI no PAT-PROSANEAR e Plano de Intervenção no Favela Bairro.
MESES 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 110 120 130 140 150 160 170 180 190 200 210 220 230 240 250 260 270 280 290 300
DIAS
5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5
4a FASE (PROAP II)
FAVELA BAIRRO 1

DIAGNÓSTICO
PLANO DE INTERVENÇÃO
PROJETO BÁSICO
Projetos Viários,
Entrega 1 Geométrico e Edificações

Entrega 2 Demais projetos

PROJETO EXECUTIVO
FONTES: Fase 4 e PROAP II: SMH, 2003.

MESES 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 110 120 130 140 150 160 170 180 190 200 210 220 230 240 250 260 270 280 290 300
DIAS
5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5 5
PLANO DE TRABALHO REVISADO
DIAGNÓSTICO
Levant / Diag. Jur-Legal / Diag. Gestão Serv Públicos

Diag.Físico-ambiental e Socio-econômico-organizativo
PAT PROSANEAR

PDLI consolidado
Plano Urbanístico e Ambiental
Plano de Infraestrutura

PSI
Estudo de Concepção

140
Estudos Preliminares (+PDLI rev.)
Projetos Básicos / Executivos
Projetos Complementares
Os temas de projetos do PAT-PROSANEAR são bastante similares aos
FONTE: MCIDADES, 2003
adotados pelo Favela Bairro 2, como podemos verificar na Tabela 8, com algumas
diferenças de nomenclatura que analisamos a seguir.

NOMENCLATURA
ESCOPO DE TEMAS DE PROJETO
PROJETOS
Abastecimento de Água
Esgotamento Sanitário
Drenagem
Coleta e Remoção de Lixo
PROJETOS BÁSICOS Projeto Urbanístico
Sistema Viário, Circulação Interna e Acessos
Estabilização de Encostas / Contenção
115 Relocação de Edificações (por Risco, Saneamento ou
Intervenção Urbana)
Obras de Arte especiais (como pontes, pontilhões e passarelas)
Paisagismo (Áreas de Lazer e vegetação)
PROJETOS
Equipamentos Comunitários
COMPLEMENTARES
Iluminação Pública
Avaliação de Impactos Ambientais da
NO PDLI (não derivam Proposta
Meio Ambiente
para Projetos Básicos)
Proteção Ambiental
Tabela 8: Temas de projeto extraídos do escopo de contratação dos serviços
de projeto do Programa PAT-PROSANEAR.
Tabela 7 Fonte: elaboração própria sobre MCIDADES (2003).
Comparação entre as etapas de projeto do
Favela Bairro 2 (4ª. fase) e do PAT-PROSANEAR.
O tema Áreas Esportivas e de Lazer, prioridade do Favela Bairro, deixa de ser
Fonte Elaboração própria.
isolado no PAT PROSANEAR, conforme as especificações do escopo. Esta perda de
Tabela
status, 8
desaparecendo como Tema de Projeto192 e com imprecisões quanto a sua
Temas de projeto extraídos do193 escopo de contratação
abordagem no escopo do projeto , se justifica pelas diretrizes do Programa, cujo
dos serviços de projeto do Programa PAT-PROSANEAR.
foco Fonte
principal não é o espaço coletivo, mas o saneamento básico e a recuperação
elaboração própria sobre MCIDADES (2003).
ambiental. Embora os espaços coletivos fossem também construídos pelo PAT-
PROSANEAR, nas especificações de projeto estes são preconizados como
instrumento de controle de reocupação das áreas resultantes do tratamento do risco
Os temas de projetos do PAT-PROSANEAR são bastante similares aos adotados pelo
Favela Bairro 2, como podemos verificar na Tabela 8, com algumas diferenças de nomencla-
tura que analisamos a seguir.
O tema Áreas Esportivas e de Lazer, prioridade do Favela Bairro, deixa de ser isolado
no PAT PROSANEAR, conforme as especificações do escopo. Esta perda de status, desapa-
recendo como Tema de Projeto191 e com imprecisões quanto a sua abordagem no escopo
do projeto192, se justifica pelas diretrizes do Programa, cujo foco principal não é o espaço
coletivo, mas o saneamento básico e a recuperação ambiental. Embora os espaços coletivos
fossem também construídos pelo PAT-PROSANEAR, nas especificações de projeto estes são
preconizados como instrumento de controle de reocupação das áreas resultantes do tra-
tamento do risco e de proteção ambiental, e perdem a abordagem de suporte para a inte-
gração social que destacou o Programa Favela Bairro. Do mesmo modo, o tema de projeto
Equipamentos Comunitários é considerado como ação complementar, com possibilidade de
solicitação de elaboração de projetos para edificações como creche, posto policial, pontos
de coleta seletiva e outros importantes serviços para o desenvolvimento comunitário, con-
forme escopo, sem que haja necessariamente obrigatoriedade. Finalmente, no escopo de
projetos estão previstas intervenções nas moradias, através de demolição parcial, e quando
não for suficiente, através de demolição total, para resolver questões sanitárias, estruturais,
urbanísticas e geotécnicas, devendo ser projetadas UHs para a relocação dos moradores nos
casos de remoção total do domicílio.
Com enfoque originalmente pensado para capacitação institucional, o Programa PAT-
-PROSANEAR teve como mérito a alocação de recursos para a preparação de projetos de
infraestrutura com ações integradas em favelas no Brasil193, funcionando quase como um
programa de urbanização integral. Vários dos projetos desenvolvidos no âmbito do PAT-
-PROSANEAR194 foram depois executados com recursos do PAC. Cardoso e Denaldi (2018,
116 p. 43) destacam que, na produção do PAC-UAP,

de forma geral, alcançaram melhor desempenho as urbanizações que já contavam


com projetos mais detalhados, elaborados no âmbito de programas anteriores

191. No Programa Bairro Legal, isto também ocorre, pois se trata de um programa de urbanização de favelas onde o
foco, em termos urbanísticos, está na reorganização do assentamento para fins de regularização fundiária e urbanística.
192. É citado no escopo de projetos ora em Equipamentos Comunitários, ora em Paisagismo.
193. “As intervenções do PAT- PROSANEAR abrangeram 30 municípios distribuídos por quase todas as regiões do Brasil,
com exceção da Região Norte. Foram desenvolvidos 35 projetos e 3 obras, sendo 18 projetos e 2 obras na Região Sudeste,
2 projetos na Região Centro–Oeste, 14 projetos e 1 obra na Região Nordeste e 1 projeto na Região Sul.” (MCIDADES, 2015,
p. 7) Praticamente 50% dos projetos estava concentrado na RMSP e na capital SP.
194. Para maiores informações sobre operacionalização e entraves do Programa, ver: CARDOSO; DENALDI, 2018 e
“Informações PAT-PROSANEAR e HBB BIRD - Pedido 80200000548201527”, do MCidades, de 02/09/2015. Disponível em
http://www.consultaesic.cgu.gov.br/busca/SitePages/principal.asphttp://www.consultaesic.cgu.gov.br/busca/ SitePa-
ges/principal.aspx. Acessado em 31/10/2018.
como o PAT-PROSANEAR e HBB. [...] Há indícios de que o nível elevado de exigên-
cias técnicas em relação à qualidade do projeto e à participação da comunidade,
tenha reduzido a necessidade de revisões de projeto e imprevistos.

Nossa análise sobre o escopo de projetos do PAT-PROSANEAR não identificou inovação


dos temas, os quais são similares aos do Favela Bairro, como vimos, nem grande rigor técnico
quanto às especificações para a elaboração dos projetos. O PAT-PROSANEAR é um programa
federal e, como tal, o escopo de projetos se referencia constantemente ao atendimento de
legislações e padrões vigentes no município beneficiário do financiamento. O escopo de
projetos do Favela Bairro 2, que é municipal, é muito mais rigoroso e específico em termos
de especificações de projeto. Por isso, consideramos que a qualidade dos projetos, provavel-
mente, adveio da metodologia do Programa, que privilegiou o reconhecimento mais preciso
das demandas locais e o planejamento, além do enfoque na gestão futura das intervenções
e na abordagem em diferentes escalas territoriais através do PDLI. Esta postura metodoló-
gica exigia uma dinâmica de participação efetiva dos diferentes atores na elaboração e nas
decisões de projeto e na formação de agentes locais para acompanhamento do processo de
implementação dos projetos. Este foi, ao que parece, o diferencial que resultou em projetos
mais estruturados e com mais qualidade, e num maior controle nas obras do PAC de modo
a garantir que as decisões tomadas conjuntamente durante o projeto no PAT-PROSANEAR
fossem rigorosamente implementadas.
Muito embora a qualidade dos projetos do PAT-PROSANEAR tenha ganhado destaque
na produção em urbanização de favelas, identificamos lacunas entre a ideia preconizada e a
efetiva implementação do idealizado, conforme apresentamos no próximo Capítulo. Entre
as duas, há um processo que interfere no resultado construído, que nem sempre espelha o
que foi estruturado, costurado e aprovado no projeto, mesmo que com a participação efe-
117 tiva dos beneficiários e dos gestores.

2.2.2. Programa de Aceleração do Crescimento – PAC (2007-2014)


O Programa de Aceleração do Crescimento – PAC, de financiamento federal195 a projetos
e programas locais196, se tornou a principal fonte de captação de recursos no país, a partir
de 2007. Neste sentido, o caráter do programa foi muito influenciado pelas prefeituras e
governos estaduais, que imprimiram sua marca diferentemente. Por isso, o PAC se distinguiu

195. As diretrizes do PAC indicam que seus recursos podem ser aplicados em programas locais. Deste modo, o selo do
PAC fortalece os programas locais, que acabam sendo os protagonistas e reconhecidos pela população como o respon-
sável pelas obras públicas na sua localidade. O PAC financia diferentes áreas: Infraestrutura, Habitação, Meio Ambiente
etc. O tema da Urbanização de Favelas estava inserido, até o fim do Governo Dilma (2015-2016), na pasta da Secretaria
Nacional de Habitação, do Ministério das Cidades.
196. Os municípios são os solicitantes do financiamento, devendo apresentar propostas de acordo com Manuais de
Instruções específicos de cada linha de financiamento, sujeitas à aprovação do Ministério das Cidades.
de acordo com o local de implementação. O tema da urbanização de favelas ganhou o âm-
bito nacional através do PAC-UAP197, com um aumento significativo de investimentos na área
praticados até então. O auge dos investimentos foi entre 2007 e 2010, com R$20,8 bilhões
em 3.113 empreendimentos no PAC-1 (2007-2010) contra uma previsão de R$12,7 bilhões no
PAC-2 (2011-2014)198 em apenas 415 novas contratações199 (BRASIL, 2014200). O último balanço
do PAC publicado sobre o interstício 2015-2018 mostra que os investimentos em Urbanização
de Assentamentos Precários201 foram apenas para conclusão de obras que já estavam em
andamento (BRASIL, 2018202).
O PAC-UAP preconizava a integração de ações em infraestrutura, regularização fundiária,
inclusão socioambiental e em habitação, e tinha como premissa a integração urbana, com
ações que melhorassem as relações funcionais da favela com o tecido urbano do entor-
no (BRASIL, 2010). Com o lançamento do Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV203,
a provisão de habitação dentro dos programas de urbanização de favelas passou a ser majo-
ritariamente contemplada por verba específica do PMCMV complementar à urbanização204.

197. Os primeiros investimentos em urbanização de favelas do PAC, em 2007, saíram do Eixo Infraestrutura Social e
Urbana, quando ainda estava sendo criado o PAC-UAP. Seu escopo reproduziu o “desenho programático do HBB, que
já previa o financiamento de diversos componentes na lógica de promover a Urbanização Integrada”, possibilitando
“financiar obras de urbanização, equipamentos sociais, produção de novas moradias, requalificação habitacional, traba-
lho social e regularização fundiária.” (DENALDI; CARDOSO, 2018, p. 27).
198. Esta é a data considerada como fim dos investimentos do PAC-UAP por Cardoso e Denaldi (2018), quando o PAC esteve
ligado ao primeiro governo Dilma (2011-2014). Após 2014, houve franca redução dos investimentos e paralisações de obras.
A página oficial do Governo Federal, no entanto, o apresenta como programa ainda vigente. (ver http://www.pac.gov.br/)
199. “Vale destacar que, a partir do Governo Dilma (2011), praticamente não foram realizadas novas contratações do PAC
voltadas para a urbanização de favelas. Das cinco novas contratações realizadas no período de 2011 a 2014, três foram
direcionadas para a Região do Grande ABC (Municípios de Mauá, São Bernardo do Campo e Santo André).” (CARDOSO;
DENALDI, 2018, p. 26).
200. Relatório BRASIL, 2014. 11º Balanço Completo do PAC 2 - 4 anos (2011-2014), de 11/12/2014. Disponível em: http://
118 www.pac.gov.br/pub/up/relatorio/f9d3db229b483b35923b338906b022ce.pdf
201. Investimentos em urbanização de favelas também aconteceram através do programa PAC/Projetos Prioritários de
Investimentos-PPI/Intervenções em Favelas – Saneamento Integrado, da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental.
Mais específico que o PAC-UAP, o PAC/PPI/Saneamento Integrado tem como foco o saneamento, a eliminação do risco
ambiental e o reassentamento das populações em vulnerabilidade socioambiental, através de ações integradas. Todas estas
ações são representadas no projeto urbano, moldadas aos objetivos de cada programa, que geralmente estão enfocados
nas melhorias da infraestrutura e das condições ambientais, na mitigação dos riscos, na reorganização espacial interna da
favela e na conexão com o entorno, com implantação de malha viária, espaços e equipamentos públicos, para a oferta
de serviços (coleta de lixo, água, esgoto, drenagem etc.) em condições similares às existentes no restante da cidade.
202. Relatório BRASIL, 2018. 7º Balanço do PAC 2 (2015-2018), de 10/08/2018 Disponível em http://pac.gov.br/sobre-o-
-pac/divulgacao-do-balanco http://pac.gov.br/sobre-o-pac/divulgacao-do-balanco. Acessado em 07/11/2019.
203. De provisão de novas unidades habitacionais, o PMCMV foi ganhando protagonismo sobre o PAC-UAP e se trans-
formando no principal programa em Habitação do Governo Federal, pois viabilizava obras mais rápidas e mais simples
que a urbanização de favelas, atendendo melhor aos interesses das construtoras e ao tempo político de inaugurações.
204. Esta não foi uma imposição do PAC-UAP, pois a produção habitacional continuou como componente do financia-
mento para UAP. No entanto, a associação dos dois programas trazia vantagens financeiras aos contratos e muitos muni-
cípios optaram para migrar a produção de habitação prevista na urbanização de favelas para o PMCMV. Entre os motivos,
estão que: i) o valor da UH no PAC-UAP era mais baixo que no PMCMV; (ii) deste modo, havia liberação dos recursos
previstos para a produção de habitação, que poderiam ser direcionados para executar outros serviços não previstos ou
com quantitativo insuficiente.
A associação destas duas modalidades de programas – de provisão habitacional e de urba-
nização de favelas – foi adotada não apenas no Brasil205, mas em outros países na América
Latina, tendo sido considerada um ganho para as políticas públicas de urbanização de assen-
tamentos precários (MAGALHÃES, 2016). No entanto, embora os programas de urbanização
de favelas e o PMCMV pudessem ser associados, a operacionalização dos recursos dos dois
programas não era integrada e suas obras aconteciam independentes e de forma desinte-
grada, fato que gerou descompassos e problemas nas obras de urbanização206. Na RMSP, por
exemplo, obras de urbanização da favela só conseguiram executar intervenções que não
demandassem demolições207, pois as obras das novas habitações pelo PMCMV não puderam
ser iniciadas e o processo de reestruturação do tecido urbano ficou incompleto (MORETTI,
2012). Já nos municípios de São Paulo e do Rio de Janeiro, para permitir o andamento das
obras, os moradores afetados por eventos de obra eram alocados em programas de auxílio
aluguel208 até que as novas moradias estivessem concluídas. Há casos em que a nova mora-
dia do PMCMV não foi construída e até hoje estes moradores dependem do auxílio aluguel.
Em outras situações, os moradores foram forçados a aceitar a transferência para uma nova
moradia distante da favela de origem, solução que contrariava as diretrizes do PAC-UAP,
que orienta que o reassentamento dos moradores, quando imprescindível, deve ser feito
em novas unidades habitacionais a serem construídas dentro ou o mais próximo possível
do local de origem das famílias (BRASIL, 2015). Embora apresente resultados negativos por
conta da desintegração dos procedimentos, a associação entre os dois programas gerou,
inegavelmente, uma mudança significativa para a concepção dos projetos de urbanização de
favelas. Antes do PAC-UAP e PMCMV, havia uma verba ínfima para a produção habitacional,
o que exigia interferências mínimas no ambiente construído. Do ponto de vista urbano, o
aumento dos investimentos na produção de habitação em urbanização de favelas abriu mais
possibilidades às soluções, pois permitiu maior número de relocação de moradores afetados
119 por intervenções urbanísticas. As ações públicas ganharam novas dimensões, desde estru-
turas viárias, de saneamento e de transporte, até equipamentos públicos de referência para
a região da favela e edifícios de habitação social, os quais viraram referência na arquitetura
em favelas, sobretudo nas obras realizadas em grandes favelas.

205. No Brasil, esta associação só passou a acontecer a partir do PAC.


206. Para maiores informações sobre a articulação entre o PAC-UAP e PMCMV, ver: CARDOSO; DENALDI, 2018 (p.40-42)
207. O PAC-UAP tem como diretriz construir novas moradias dentro ou próximo do assentamento para reassentar estas
populações.
208. Esta é uma modalidade utilizada pelas administrações públicas para alocar temporariamente os moradores afeta-
dos pelas obras enquanto sua nova moradia não é resolvida. No município de São Paulo, Auxílio Aluguel é o termo em
uso para este benefício, em substituição ao Bolsa Aluguel, do governo Marta Suplicy (2001-2004) e posterior Programa
Parceria Social, da gestão Serra-Kassab (2005-2007). No Rio de Janeiro, o benefício é conhecido como Aluguel Social,
termo utilizado pelo GERJ até os dias de hoje. Já a PCRJ passou a adotar o termo Auxílio Habitacional Temporário a partir
de 2013 através do decreto no. 38.197.
120

Figura 14
Conjunto Heliópolis Gleba G. Projeto: Biselli + Katchborian Arquitetos, Heliópolis, SP.
Fonte acervo pessoal/Daniela Engel, 2015.

Figura 15
Conjunto Habitacional Duarte Murtinho, Silvina Audi, São Bernardo do Campo, SP.
Projeto Boldarini Arquitetos Associados. Fonte ProjetoDesign/foto: Leonardo Finotti.
Disponível em: https://www.arcoweb.com.br/projetodesign/arquitetura/boldarini-arquitetos- associa-
dos-urbanizacao-integrada-jardim-silvina-audi-sao-bernardo-do-campo-sp .
O objetivo inicial do PAC era o de investir em “resultados rápidos, para impactar na
economia e criar um ciclo virtuoso de expectativas”209 (CARDOSO; DENALDI, 2018, p. 25),
que teve como efeito extremamente negativo a pressão política para mudanças de proce-
dimentos de modo a acelerar projetos e obras, resultando num retrocesso de processos an-
teriormente bem-sucedidos, o que fortaleceu argumentos para o desmonte dos programas
de urbanização de favelas. O caminho mais rápido para as administrações locais captarem
verba seria o de apresentar projetos já prontos ou contratos de obras paralisados210, adap-
tando-os às premissas do PAC. O Projeto Básico era o documento mínimo de projeto exigido
para captar recursos do PAC, mas também poderiam ser apresentados Projetos Executivos,
caso já existissem. 211 Outra possibilidade consistia em apresentar projetos incompletos que
levariam o selo de Projetos Básicos, para garantir os recursos federais212, já que estes eram
os projetos exigidos. Indubitavelmente, garantir investimentos federais nos municípios na
pasta de urbanização de favelas é de suma importância, pois não há disponibilização perma-
nente de recursos na área. Mas, no campo do projeto, esta prática resultou na desqualifica-
ção técnica do produto Projeto Básico, que passou a ser associado, pelos menos conhece-
dores do processo, a documento insuficiente para as licitações de obras de urbanização de
favelas, embora experiências como a do Favela Bairro 1, como já discutimos no item 2.1.2,
tenham demonstrado exatamente o contrário.
Além de projetos de urbanizações integrais, o PAC também financiou obras pontuais
em grandes favelas, nas capitais São Paulo e Rio de Janeiro, que tiveram resultados ques-
tionáveis. Para as grandes favelas, apenas planos haviam sido desenvolvidos para estes ter-
ritórios, que foram transformados em projetos de eventos pontuais para gerar obras no
PAC. Ora, os planos não têm a mesma escala de atuação nem a mesma temporalidade de
implementação que um projeto. O resultado percebido é um conjunto urbano contínuo
de favelas com melhorias estruturais em uma região específica, mas que não ressoa em
121 transformações urbanas do território como um todo: afinal, não só os baixos resultados
atingidos em grandes favelas estão “evidenciando o longo tempo e a vultuosidade dos re-
cursos necessários para urbanizações mais complexas”, como afirmam Cardoso e Denaldi
(2018, p. 71).

209. Estratégia similar foi utilizada no FB, que embora não tivesse o objetivo de impactar na economia, serviu para trazer
credibilidade ao Programa e resultados políticos efetivos em curto tempo. A estratégia técnica foi a de agir primeiro
nas favelas mais fáceis de serem urbanizadas para dar efetividade e visibilidade, resultando no financiamento do BID no
PROAP, como vimos anteriormente.
210. Este foi o caso das obras do PAC no Complexo do Cantagalo/Pavão-Pavãozinho, cujo contrato estava paralisado,
pois o projeto de urbanização não havia sido aprovado pela CEF. O contrato foi retomado com novo Projeto Básico,
atendendo às exigências do MCidades (PATRÍCIO, 2017).
211. Como foi o caso de projetos no âmbito do PAT-PROSANEAR, cujas obras foram viabilizadas com verba do PAC, como
vimos no item anterior.
212. Petrarolli (2015, p. 89) identificou em sua pesquisa sobre as obras do PAC-UAP no Grande ABC paulista que “a maio-
ria das intervenções selecionadas […] não contava com projeto básico de urbanização completo, atualizado e aprovado”.
Nesse contexto, tendemos a concordar com Sérgio Magalhães, ex-Secretário que im-
plementou no Rio de Janeiro o Programa o Grandes Favelas (1998-2004), derivação do
Favela Bairro para estes territórios, que considera que para grandes favelas, “a coisa não foi
bem equacionada sob o ponto de vista dos conceitos”, que pelas dimensões e complexidade,
é “para planejamento, não é para projeto” (informação verbal)213. Em outras palavras, não é
a aplicação literal de diretrizes de um plano, como foi operacionalizado através de financia-
mentos do PAC, que garante a qualidade de um projeto. É preciso uma metodologia especí-
fica para enfrentar a complexidade destes vastos territórios, e abranger diferentes escalas
e temporalidades, atores, mudanças de gestão, recursos etc.
Apresentamos na Tabela 9, um resumo comparativo entre o escopo do PAC 1 (2007-2010)
e do PAC-UAP (2011-2014), no que tangencia o direcionamento dos projetos para que estes
sejam passíveis de financiamento.

EVENTOS FINANCIÁVEIS TEMAS DE PROJETO


Escopo PAC 1 (2007-2010) Escopo PAC-UAP (2012-2015)
estabilização da expansão da ocupação
--- Adequação ou melhoria das relações funcionais
da área de intervenção em relação ao tecido
urbano.
Recuperação Ambiental Recuperação das áreas degradadas
Adequação do sistema viário, de forma
Pavimentação e Obras viárias possibilitar acesso a serviços públicos e
atendimentos emergenciais
Abastecimento de Água
Esgotamento Sanitário
Drenagem Eliminação do déficit de infraestrutura
saneamento, drenagem
Resíduos Sólidos
Instalações Hidrosanitárias
122
Energia Elétrica e Iluminação Pública

Provisão, qualificação e articulação


Equipamentos Comunitários
equipamentos e espaços públicos

Proteção, Contenção e Estabilização do Solo Estabilidade do solo e eliminação de riscos


Melhorias Habitacionais, para eliminação da
Recuperação ou Melhorias Habitacionais
precariedade habitacional
Remoção e Edificação de UHs unidades Remoção e reassentamento em unidades novas
Tabela 9: Resumo comparativo entre os escopos do PAC 1 e do PAC-UAP, de itens
Tabela 9 que direcionavam os projetos objeto do financiamento.
Fonte:entre
Resumo comparativo elaboração própria
os escopos sobre
do PAC documentos do MCidades (2007; 2012).
1 e do PAC-UAP,
de itens que direcionavam os projetos objeto do financiamento.
Fonte elaboração própria sobre documentos do MCidades (2007; 2012).
No escopo do PAC 1 (MCIDADES, 2007), não havia qualquer especificação
sobre quais deveriam ser os temas de projeto. Por isso, extraímos do documento os
itens da Composição de Investimentos, nos quais o projeto precisava estar inserido
213. Entrevista concedida para esta pesquisa em dezembro de 2018.
para ser passível de financiamento 216
. Já o escopo do PAC-UAP (MCIDADES, 2012),
além da itemização da Composição de Investimentos da fase anterior, apresenta o
No escopo do PAC 1 (MCIDADES, 2007), não havia qualquer especificação sobre quais de-
veriam ser os temas de projeto. Por isso, extraímos do documento os itens da Composição
de Investimentos, nos quais o projeto precisava estar inserido para ser passível de financia-
mento214. Já o escopo do PAC-UAP (MCIDADES, 2012), além da itemização da Composição de
Investimentos da fase anterior, apresenta o item Concepção das Intervenções215, de apenas
duas páginas, que seria o mais próximo de um escopo de projeto mínimo exigido para urba-
nização de uma favela dentro do Programa. Todos estes fatos ilustram como o projeto passa
a ser secundário, mesmo sendo um documento imprescindível para investimentos de uma
ordem nunca vista anteriormente em urbanização de favelas no Brasil.
Ainda comentando os itens apresentados na Tabela 9, “Regularização jurídico-fundiária”
e “Inclusão social e resgate da cidadania”, que aparecem nos documentos analisados do
PAC-UAP, geralmente acontecem em paralelo e independentes do projeto, sendo operacio-
nalizados pelo gestor público. Logo, não foram considerados por esta pesquisa como Tema
de Projeto.
Destacamos que a precariedade habitacional só passa a ganhar vulto como investimento
associado à urbanização de favelas a partir do financiamento federal do PAC-UAP, quando
3% do total das obras passou a ser dedicado ao tema216. No entanto, o Manual do PAC-UAP
só apresenta as diretrizes absolutamente amplas de promoção de “melhoria das condições
de habitabilidade das edificações e a construção de unidades novas, quando necessário”
(MCIDADES, 2012, p. 14), cabendo a cada município determinar os critérios de habitabilida-
de e as ações. Não era um investimento obrigatório, mas, para não perder esta verba, os
candidatos ao financiamento (municípios ou estados) passaram a apresentar propostas para
melhorias habitacionais. No entanto, como o PAC-UAP não tinha critérios específicos sobre
o que deveria ser tratado como melhoria das condições de habitabilidade, o investimento no
tema foi bastante variado e não compõe um quadro representativo de ações de combate à
123 precariedade habitacional. Embora quase sem investimentos na área desde 2016, o PAC-UAP
e o PMCMV continuam vigentes no Brasil.
Neste contexto, consideramos importante ressaltar a distinção entre o PAC-UAP (PAC 1 e 2)
e o programa estadual adotado no Rio de Janeiro217, que ficou nacionalmente conhecido,
PAC-Favelas. Observamos que o PAC-Favelas foi particular ao Governo do Estado do Rio de

214. É possível o município inserir outros itens complementares à urbanização, para atender a diretrizes do programa local,
que comporiam o QCI, mas este é custeado através da contrapartida do município e não financiado pelo programa federal.
215. No PAC-UAP, aparece a exigência de apresentação de Diagnóstico, que deveria ser elaborado de forma participativa
e embasaria a concepção da intervenção que seria objeto do financiamento. Isto demonstra uma tentativa de correção
do processo e de controle sobre os projetos apresentados num nível incipiente no PAC 1.
216. O item “Melhoria habitacional” já existia no Programa HBB/UAS, mas com verba limitada a R$1.500 por família e
para “a troca de telhados, revestimento para a prevenção de focos de infecção e execução de cimentados nos pisos”
(MCIDADES, 2004, p. 22).
217. Para informações pormenorizadas sobre os procedimentos diferenciados do PAC-UAP nas regiões do país e sobre o
PAC-Favelas, ver CARDOSO; DENALDI (2018).
Janeiro (GERJ), que implementou ações cujos resultados foram extremamente negativos
em urbanização de favelas, com altos investimentos que não se mantiveram, obras paralisa-
das e muita corrupção envolvida. Por isso, as ações do PAC-Favelas não foram similares ao
conjunto das intervenções do PAC-UAP218, que, embora também tenha apresentado falhas,
não deveria se situar no mesmo campo de análise crítica, como tem acontecido. Este tipo
de confusão é comum inclusive entre especialistas em urbanização de favelas, gerando até
dificuldades de comunicação em eventos nacionais sobre a urbanização de favelas discutida
como programa.219
No PAC-Favelas, as problemáticas operacionais influenciaram nas condições de produ-
ção do projeto em favelas, que foi cooptado por interesses políticos diversos. Sérgio Cabral
(2007-2014), quando recém-eleito governador, de olho nos recursos do PAC 1, viu nas gran-
des favelas uma oportunidade política, já que reuniam territórios negligenciados pelo Estado
por décadas. Foi então criado o nome PAC-Favelas, que captou recursos para intervenções
em cinco grandes favelas220, que, em termos de população, equivaliam, cada uma, a uma
cidade de médio porte do estado fluminense221. Afirmamos que o PAC-Favelas não era um
programa, pois não tinha escopo próprio, apenas diretrizes gerais222 de integração dos com-
plexos de favelas com transportes públicos e a implementação da macro infraestrutura223.
Mas, como fazer para captar recursos se o GERJ não tinha nem programa nem projetos
de urbanização de favelas prontos? A pressão por resultados rápidos acarretou duras con-
sequências ao processo de desenvolvimento dos projetos, de implementação das obras e,
consequentemente, na aplicação dos investimentos públicos. Num momento de oposição
política com o então prefeito César Maia e num contexto em que era o município do Rio
de Janeiro quem detinha programas, capacidade institucional e projetos em favelas, a solu-
ção adotada pelo GERJ foi montar estratégia com as empresas interessadas nas obras para

124
218. Sobre a produção do PAC-UAP, ver CARDOSO & DENALDI (2018).
219. Conflitos deste tipo foram identificados no processo desta pesquisa através de minha participação no II Seminário
Nacional de Urbanização de Favelas – II URB favelas, que aconteceu no Rio de Janeiro em novembro de 2016, e no coló-
quio “Diálogos sobre Urbanização de Favelas: Desafios para Urbanizar, Integrar e Garantir Moradia Adequada”, organiza-
do pela UFABC e FAUUSP, em agosto de 2017 na cidade de São Paulo. Os participantes dos eventos eram especialistas em
urbanização de favelas de diferentes cidades do Brasil e seus diálogos expressavam fortemente estes conflitos críticos.
220. Complexo de Manguinhos, Complexo do Alemão, Rocinha, Cantagalo/Pavão-Pavãozinho, na cidade do Rio de
Janeiro, e Morro do Preventório, em Niterói.
221. Se comparadas “as densidades demográficas entre os municípios de baixo IDH como Japeri, Queimados, Mesquita,
Piraí com os Complexos do Alemão e Manguinhos, bem como com a favela da Rocinha. Nesta comparação ficam claras
as diferenças entre os investimentos feitos nos municípios e nas favelas, no que tange às áreas de saúde, educação e
servidores públicos, lotados naqueles municípios e comunidades.” (EMOP, 2007, p. 1). Disponível em: http://www.emop.
rj.gov.br/ata_aud_alemao.asp . Acessado em: 19/04/2019.
222. Após escândalos de corrupção envolvendo as empresas construtoras que atuaram no PAC-Favelas, no Rio de Janeiro,
vieram a público “algumas diretrizes não explicitas, como a necessidade de dar visibilidade às obras e de se atender à
agenda das grandes construtoras” (FERREIRA, 2017, p. 88).
223. Havia um acordo entre Estado e Prefeitura para que ambos pudessem trabalhar no mesmo território: Estado en-
trando com a macro infraestrutura e a Prefeitura entrando com a urbanização nas capilaridades da favela. Isso sucedeu
no Complexo do Alemão, e é discutido nesta tese no Capítulo 3.
viabilizar Projetos Básicos necessários para a obtenção do financiamento para as obras224.
Esta aliança deu poder e autonomia às construtoras na elaboração do escopo dos investi-
mentos, das prioridades e no processo de implementação das obras.
Após garantir recursos federais a partir de Projetos Básicos com baixa qualidade e sem
definições suficientes para serem executados, parte da rubrica Projetos225, dos QCIs de
obras, foi utilizada para a contratação de projetos que não se caracterizavam apenas como
adequações de Projetos Básicos, como deveria ser. Eram através desta rubrica contratados
novos projetos, que tinham como diretrizes as alinhavadas nos Projetos Básicos aprovados
no financiamento, mas com certa flexibilidade para mudanças, como veremos no Capítulo 3,
mais especificamente no item 3.3 sobre o Alemão. Isto ocorreu motivado pelo fato de que
o projeto de urbanização de favelas, até então contratado pelo Estado através de licitações
públicas, passou para as mãos das construtoras, que detinham também o controle sobre o
orçamento. Este fato complicou absolutamente o processo, visto que o interesse das cons-
trutoras, legítimo, diga-se de passagem, está em frentes de obra de fácil e rápida execução,
que geram, consequentemente, maior lucro.226 Com projeto e orçamento – informações de
base que alimentam o processo decisório – controlados pelas construtoras, o projeto virou
instrumento do capital e não mais dos objetivos da política pública que gerou o seu propósito.
Desta forma, projeto e obra aconteciam em paralelo, descoordenadamente, sem trans-
parência e com supressão de etapas de projeto que garantiriam um mínimo de qualidade ao
processo, com o intuito de dar agilidade à obra. Para tentar garantir minimamente qualidade
e as premissas de interesse público nos projetos, o poder público indicou equipes de sua
confiança experientes em projetos de urbanização de favelas para serem contratadas dire-
tamente pelas empreiteiras. Com esta nova modalidade de contratação227, os arquitetos e
urbanistas assumiram um papel controverso: ao mesmo tempo que precisavam atender ao

125

224. Segundo o Conselho Administrativo de Defesa Econômica - CADE, foi verificado nas investigações sobre a formação
de cartel para a licitação de obras para a Rocinha, Manguinhos e Alemão, que “a conduta anticompetitiva iniciou-se em maio
de 2007, quando os investigados tiveram ciência de que o certame seria futuramente dividido em três lotes (Rocinha, Man-
guinhos e Alemão). A partir desse conhecimento, os investigados compuseram um grupo de trabalho para estudar os lotes
e auxiliar na elaboração do projeto básico, bem como do edital da licitação. O objetivo era que todos os requisitos neces-
sários para obtenção de recursos do PAC fossem atendidos e que as exigências técnicas do edital fossem capazes de limitar
a participação de outras empresas não participantes do conluio, facilitando, assim, a habilitação das empresas do cartel.”
(CADE, 2016). Disponível em http://www.cade.gov.br/noticias/cade-celebra-acordo-de-leniencia-em-investigacao-de-car-
tel-na-licitacao-para-urbanizacao-de-favelas-no-rio-de-janeiro http://www.cade.gov.br/noticias/cade-celebra-acordo-de-
-leniencia-em-investigacao-de-cartel-na-licitacao-para-urbanizacao-de-favelas-no-rio-de-janeiro, acessado em 19/04/2019.
225. Este item, que correspondia a 3% do valor de obras, não era se convertia no valor dos projetos subcontratados, pois
as empreiteiras costumavam embutir outros serviços como topografia e sondagem etc. que subsidiavam a elaboração
dos Projetos Executivos.
226. Observamos que grandes empresas como a OAS, Odebrecht, Carioca, Queiroz Galvão e Dimensional, entre outras,
também eram exigentes no padrão de qualidade de acabamentos, o que não era característico até então em obras de
urbanização de favelas no Brasil.
227. Da mesma forma que para o projeto, esta modalidade também se aplicou ao Trabalho Social, em várias obras, o qual
passou a ser serviço desenvolvido por organizações contratadas diretamente pela construtora.
poder público – que dialogava com e demandava diretamente aos responsáveis pelos proje-
tos como se ainda fosse seu contratante –, também sofriam demandas por parte de quem
de fato lhes pagava, no caso, as empreiteiras.
No Rio de Janeiro, com o fim do Favela Bairro, as licitações públicas de projetos em
favelas desapareceram e a única opção dos profissionais para continuar neste ramo era ser
contratado diretamente pelas construtoras. Mesmo com a deformação da hierarquia con-
tratual significando perda do prestígio e submissão a constrangimentos, a contratação de
projetos diretamente através das empreiteiras, inesperadamente, trouxe alguns ganhos para
os arquitetos. Os projetos passaram a ter medições parciais mensais, dependendo das ne-
gociações que fossem firmadas entre empresas, o que deu fluxo de caixa aos escritórios de
projeto, antes amarrados ao lento processo de aprovações e medições pela administração
pública para receber a parcela executada228. Os arquitetos autores dos projetos voltaram
também às obras nas favelas. As reuniões de projeto aconteciam nos barracões das obras
e, embora raramente fossem contratados para acompanhá-las, a presença esporádica dos
arquitetos no local acabava por influenciar nas decisões que estavam sendo construídas a
partir do andamento em paralelo entre o projeto e a obra.
Destacamos algumas questões que foram trazidas pelo PAC-Favelas para o processo de
urbanização de favelas, não necessariamente com bons resultados, mas importantes de serem
observadas nas revisões de futuros programas. Com o PAC-Favelas, surgiu a associação do
tema mobilidade urbana à urbanização de favelas pautada pela agenda do GERJ, que começava
a implementar grandes eixos de transportes BRT e obras de expansão do Metrô, preparando
a cidade do Rio de Janeiro para os eventos olímpicos de 2016. A referência para o GERJ foi a
cidade de Medellín, na Colômbia, um dos principais exemplos utilizados de cidade integrada a
partir das transformações urbanas229 (MAGALHÃES, 2016). Através da integração da mobilidade
e o urbanismo social como estratégias para transformações urbanas na cidade, Medellín se
126 tornou pioneira no que seria a nova geração de projetos urbanos em territórios favelizados,
cuja mobilidade passou a constituir uma variável para a integração destes com o restante da
cidade (BRAND & DÁVILA, 2013). Mas tudo isso dentro do planejamento da cidade. O Plano de
Desenvolvimento Municipal de Medellín (2004-2007) incluía as favelas como áreas estratégicas
para a cidade, tendo dois eixos fundamentais que possibilitaram este êxito: a hierarquização e
a qualidade dos espaços públicos na cidade e a solução de graves problemas e carências nas
favelas (ALCALDÍA DE MEDELLÍN, 2004). Novos equipamentos e espaços públicos de referência

228. Após a aprovação pela fiscalização, passava-se à medição e faturamento da fase de projeto, que dependia de vários
documentos e assinaturas até chegar à instância que procedia os pagamentos. Esse trâmite demorava 30 dias em média,
podendo atrasar dependendo da data do faturamento. Os impostos, no entanto, deveriam ser recolhidos na data, inde-
pendente do recebimento, para não pagar multas previstas em lei.
229. “O modelo de urbanismo social de Medellín é um bom exemplo de como a melhoria dos serviços e espaços públicos
e o aumento da mobilidade podem ser usados como instrumentos essenciais para promover a integração e a coesão
social.” (MAGALHÃES, 2016, p. 7)
para toda a cidade foram construídos também nos territórios favelizados, promovendo uma
inversão do “lugar” da favela na cidade, tornando-a centralidade.
No caso do PAC-Favelas, infelizmente, este modelo foi aplicado de modo raso e dissociado
do planejamento da cidade, trazendo “intervenções emblemáticas”230 (CARDOSO et al., 2018,
p.124) controversas, de alto custo e de grande visibilidade nunca antes vistas em urbanização
de favelas, tais como: o Teleférico do Alemão, que consumiu um terço do investimento no
Complexo do Alemão, e há três anos está paralisado; a Elevação da Linha do Trem em Mangui-
nhos, correspondendo a um quarto do investimento no complexo de favelas (PATRÍCIO, 2017),
que foi implementada para criar uma área de lazer, hoje é uma área abandonada entre favelas
e conhecida como cracolândia. O PAC-Favelas trouxe o tema da mobilidade extra favela para a
urbanização de favelas no Brasil, mas o seu desastroso processo de implementação e resultados
acabou transformando a questão em um calcanhar de Aquiles no debate público sobre o tema.
Outra particularidade do PAC-Favelas foi a integração da urbanização de favelas com a
Política de Pacificação, da Segurança Pública Estadual, que preconizava a retomada do con-
trole dos territórios favelados das mãos dos grupos criminosos, através da ocupação pelo
Estado com uma nova polícia em UPPs, da gestão urbana e de políticas sociais que viriam jun-
to com o processo de urbanização. Infelizmente, percebeu-se que se tratava de uma política
de segurança imediatista para a preparação da cidade para os eventos esportivos interna-
cionais, do PAN 2007 ao Rio 2016. Em outros termos, do uso midiático e político da retomada
de favelas de grande visibilidade para dar a ilusão de cidade segura e a criminalização das
favelas como QG do crime organizado (SILVA, 2015). A Política de Pacificação direcionou os
investimentos nas favelas do Rio de Janeiro, tanto do GERJ231 como do município, num raro
momento de alinhamento político entre governo estadual e municipal232. A administração
municipal do Rio de Janeiro, por sua vez, conseguiu financiamento do PAC-UAP para obras233
baseadas em projetos já desenvolvidos, e para novos projetos de distintas dimensões que
127 levaram o selo do Morar Carioca tão logo o programa foi criado.
Tanto o tema mobilidade urbana associado à urbanização de favelas, como sua integra-
ção com políticas de segurança pública e ações sociais, precisam ser enfrentadas e absorvi-
das como indispensáveis às transformações urbanas envolvendo os territórios e populações
favelizadas. Porém, infelizmente, não do modo como ocorreu no PAC-Favelas.

230. Além dos dois eventos de obra no Alemão e em Manguinhos, Cardoso et al. (2018, p. 125) classificam também a
Passarela da Rocinha, um dos últimos projetos do arquiteto Oscar Niemeyer, como intervenção emblemática porque,
segundo os autores, “existe um grande desequilíbrio entre o investimento financeiro realizado para a execução da obra
e sua funcionalidade”.
231. Esse era o discurso do Governo do Estado, embora na Rocinha e no Alemão as UPPs tenham entrado muito depois
das obras de urbanização, quando a Política de Pacificação já apresentava problemas e estava em declínio.
232. Quando Eduardo Paes, do mesmo partido que o Governador do Estado, foi eleito para o cargo de Prefeito.
233. As obras de reurbanização das favelas Babilônia e Chapéu Mangueira, por exemplo, foram apresentadas para o
Governo Federal como dentro do Programa Morar Maravilha, e depois transferidas para o Morar Carioca, tornando-se
o projeto-piloto em sustentabilidade para favelas.
2.2.3. Morar Carioca e Renova/SP (2010-2018)
Os Programas municipais Morar Carioca, da cidade do Rio de Janeiro, e Renova/SP, da cidade de
São Paulo, tiveram o grande mérito do resgate da metodologia de contratação do Favela Bairro:
concursos públicos para a seleção de equipes multidisciplinares, que depois deveriam ser con-
tratadas234 para desenvolvimento dos projetos. Os investimentos municipais em favelas haviam
arrefecido, as licitações públicas de projetos desapareceram do mercado e, dentro do PAC-UAP,
as modalidades de contratação eram por indicação. Os concursos públicos nas principais capi-
tais do Brasil reativaram o interesse no tema, atraindo novos arquitetos à modalidade de proje-
tos em favelas. Infelizmente, os concursos não passaram de promessas e os poucos contratos
e projetos acabaram desconfigurados do vigor conceitual anunciado por ambos os programas.
No Morar Carioca, apenas 11 das 40 equipes foram contratadas, mas os serviços foram
paralisados um ano após o início. Já no Renova/SP, as contratações de projeto ocorreram,
mas não eram prioridade da administração municipal. Mesmo após mais de 5 anos das con-
tratações de projetos pelo Renova/SP, as intervenções ainda não tinham saído do papel
(FERREIRA, 2017). Pouco temos a dizer das implementações e do escopo de projetos do Morar
Carioca e do Renova/SP235, pois as poucas obras executadas não conseguem dar expressi-
vidade a ambos, e as descaracterizações das diretrizes dos programas foram acontecendo
antes mesmo de sua implementação. Por este motivo, não apresentamos Etapas e Temas
de Projeto destes dois Programas, como fizemos com os outros programas analisados, nos
concentrando aqui apenas nos diferenciais que influenciaram o processo de projeto.
O Renova/SP, ainda durante a elaboração dos projetos, sofreu transformações que o desfi-
guraram para viabilizar a captação de recursos do PAC-UAP. Para tal, não eram mais as diretrizes
do Renova/SP que guiavam os projetos, mas as do PAC-UAP, que financiariam as obras. Ferreira
(2017, p. 107) conceitua este processo de atropelo do Renova/SP, a partir de seu estudo de caso,
como “licitabilidade”, no qual, além da perda das diretrizes originais do Programa, etapas de pro-
128 jeto foram modificadas para compor licitações atrativas ao mercado das empreiteiras. Neste
processo, as favelas que passaram a ser priorizadas eram “o filé” (Ibid., p. 245-251), ou seja, as
de menos complexidade em termos de urbanização, com eventos de obras de maior porte e de
localização central na cidade, enquanto que “a sobra” (Ibid., p.252-262), como favelas de perife-
ria, com vulnerabilidade ambiental e precariedade urbana e habitacional, iam para o final da fila.
Já o Morar Carioca foi lançado em 2010 pela PCRJ, após a extinção do Favela Bairro e
por anos sem atuar em favelas236, o qual pretendia avançar conceitualmente e ampliar ainda
mais a escala da intervenção. Mas a promessa de urbanizar todas as favelas “urbanizáveis”237

234. No Favela Bairro, todas as equipes vencedoras foram, após o concurso, contratadas. Nem todas, após o primeiro
contrato, se mantiveram no campo do projeto de urbanização de favelas.
235. Para maiores informações sobre o Renova/SP, ver Ferreira, 2017. Sobre o Morar Carioca, pode-se consultar Souza, 2017.
236. No âmbito da concepção ampla de urbanização integrada como no Favela Bairro.
237. As favelas cariocas consideradas urbanizáveis são aquelas não situadas em áreas de risco ou de proteção permanente,
e aquelas que sua urbanização ficou incompleta por programas anteriores ao Morar Carioca (IPP, 2011).
da cidade até 2020 praticamente não saiu do discurso político e muito pouco foi feito.
O programa, que surgiu como o grande sucessor do Favela Bairro, sofreu um redireciona-
mento das prioridades a partir de 2013 e acabou por ter suas diretrizes completamente des-
caracterizadas. Novas moradias integradas ao projeto urbano, assim como os tratamentos
das áreas de risco, componentes sociais e equipamentos públicos, questões centrais em
urbanização integral da favela, foram itens retirados dos contratos de projeto (SOUZA, 2017).
No entanto, o Morar Carioca acrescentou três grandes contribuições às políticas pú-
blicas de urbanização de favelas no Rio de Janeiro. Embora não tenham sido efetivamente
implementadas, essas perspectivas merecem destaque e incorporação na próxima geração
de programas de urbanização de favelas.
A primeira contribuição do Morar Carioca foi a revisão da classificação das favelas cariocas,
feita por técnicos do IPP e da SMH na montagem do programa “com vistas ao planejamento de
política pública de atuação nas favelas” (IPP, 2012, p. 4). Estas passaram a ser classificadas como
isoladas, que “eram as que apresentavam limites claramente identificáveis, com denominação
própria e distante de outros assentamentos”, e os complexos “formados por favelas que, por sua
proximidade, conformavam uma mancha urbana única ou guardam fortes relações entre si” e
que pertençam à mesma bacia hidrográfica de contribuição, como unidades de planejamento
de bacias (IPP, 2012, p. 4). Esta classificação otimiza os investimentos sobretudo em infraestru-
tura tratando, num mesmo contrato de projeto, favelas de uma mesma bacia de contribuição.
Interessante observar que esta classificação deu a ilusão, em termos de unidade complexo –
isolada, de que o número de favelas na cidade do Rio de Janeiro teria reduzido. Percebendo
esta falha, os técnicos do IPP reapresentaram a classificação de favelas, apenas organizando-as
entre complexo – isolada, sem que o número de favelas fosse efetivamente modificado.

Figura 16
Em amarelo, as favelas que compõem, segundo a PCRJ,
129 o complexo do Morro dos Macacos. Fonte SMH, 2011, p. 22.
Figura 17
Plano de Intervenção para as
favelas Barreira do Vasco e Vila
do Mexicano, dentro do projeto
de urbanização no Morar Carioca
desenvolvido pela HDAA em 2014.
A linha em vermelho corres-
ponde aos limites da favela, mas
as propostas de intervenção
transbordam estes limites,
intervindo em diversos terrenos
do entorno.
Fonte SOARES, 2016, p. 14.

Figura 18
Projeto Básico para as mesmas
favelas Barreira do Vasco e Vila
do Mexicano, já sem interven-
ções no entorno da favela.
Fonte SOARES, 2017, p. 16.

130
A segunda contribuição foi a ampliação da poligonal de projeto, que no Favela Bairro
estava delimitada à favela sem englobar o entorno. As soluções urbanas para a favela não se
dão exclusivamente pelo tratamento interno do território da favela, demandando geralmente
ações também no entorno. Esta questão havia sido ainda mais aprofundada, mais de dez anos
antes, por Davidovich (1997), baseada na análise sobre o Programa Favela Bairro. Para ampliar
a integração das populações faveladas com a cidade, objetivo central do Favela Bairro,

não importaria, assim, nela localizar postos de saúde e escolas, sobretudo em as-
sentamentos de pequeno porte; importaria, porém, proporcionar meios eficazes
de transporte, a fim de assegurar o acesso da população aos estabelecimentos
do entorno ou do bairro. Tal procedimento visaria estimular a convivência en-
tre moradores de áreas diferentes da cidade, objetivo esse que se fez certamen-
te presente na organização de espaços de encontro, como praças, quadras de
esporte e de lazer. (RIBEIRO, LAGO & DAVIDOVICH, 1997, p. 18 apud KROFF, 2017).

A partir do Morar Carioca, o projeto passou a englobar também áreas do entorno e


equipamentos de potencial integração social, trazendo em si o conceito de que as melhorias
devem se expandir para além das fronteiras da favela para se atingir a integração entre fave-
la e os bairros do entorno, como podemos perceber na figura 17 acima. Infelizmente, depois
dos cortes das diretrizes do Programa, as áreas-projeto foram excluídas dos contratos, limi-
tando-se ao território da favela (Fig. 18).
A terceira contribuição foi a adoção das obras de retaguarda de infraestrutura como even-
to integrante nos contratos de obras de urbanização de favelas, extrapolando efetivamente os
limites das favelas para solucionar problemas de infraestrutura de toda uma região e pensando a
urbanização de favelas integrada à cidade. A incorporação deste evento no custo de urbanização
131 de favelas foi possibilitada pelo aumento substancial dos investimentos em favelas através do
financiamento federal do PAC, mas também como concepção ampla e integrada à cidade.

Figura 19
Obras das retaguardas do
programa Morar Carioca em
Babilônia e Chapéu Mangueira
interditam parcialmente o trá-
fego de ruas do bairro do Leme,
como na Rua General Ribeiro
da Costa. Foto Luiz Gustavo
Schmitt/ O Globo, 28/03/2012.3
Disponível em: https://oglobo.globo.
com/rio/bairros/obra-interdita-parcial-
mente-trafego-na-ladeira- ary-barro-
so-4436896
Tanto as diferentes escalas territoriais quanto as obras de retaguarda, representando as
ações públicas para além da favela, não eram uma novidade na época da montagem do Morar
Carioca, pois já faziam parte da metodologia do Programa PAT-PROSANEAR, como vimos nas
seções anteriores. No entanto, ressaltamos que foi o Morar Carioca que incorporou esta rees-
truturação na política urbana da cidade do Rio de Janeiro, onde o PAT-PROSANEAR não atuou.

2.3.
Temas de projeto no âmbito
dos programas analisados

2.3.1. Consolidação da análise dos Escopos


A Tabela 10, apresentada a seguir, esquematiza a consolidação dos temas de projeto extraídos
dos escopos analisados e que obrigatoriamente devem ser atendidos através de soluções de
projeto. Destacamos algumas observações: agrupamos os Programas por região, com o intuito
de comparar diferenças de direcionamento do projeto nas duas cidades, e na instância federal.
Na grade, é possível perceber que o Favela Bairro 2 foi um marco em relação aos temas
de projeto, que foram depois seguidos pelos programas subsequentes, tornando-se refe-
rência do que significa até hoje o arcabouço do projeto em favelas. Embora haja variações
na organização da estrutura dos escopos e na hierarquização dos temas, assim como cer-
tas diferenças entre metodologias, os temas são praticamente os mesmos, e poucos foram
acrescentados ao longo do processo, que comentaremos a seguir.
No Rio de Janeiro, podemos observar que a tentativa de parceria entre o Favela Bairro
1 e os órgãos e concessionárias cujos temas de projeto estavam associados ao Saneamento
Básico, os quais fariam projeto e posteriores obras, acabou por não ser eficiente e foi ab-
sorvida pelo Favela Bairro 2. Estes projetos passaram a fazer oficialmente parte do escopo
132 dos projetos contratados, que precisavam ser aprovados por estes órgãos. No programa
sucessor, o Morar Carioca, surgem os temas da Sinalização Viária, apenas complementando
os projetos viários, e das Melhorias Habitacionais, a grande novidade que anunciava ações
públicas no ambiente construído das favelas. Há indícios que a precariedade habitacional
foi incluída no programa carioca como ajuste de seu escopo ao financiamento federal do
PAC-UAP, que era à época a fonte principal de recursos de urbanização de favelas no país.
Não passou de um anúncio. Este foi retirado dos contratos de projeto do Morar Carioca
ainda no primeiro ano de contratações, para se transformar em um programa específico238
complementar à urbanização da favela, que não se concretizou.

238. Em 2011, foi montado um Grupo de Trabalho com arquitetos consultores em urbanização de favelas, e técnicos da
Prefeitura, com seminário sobre Melhorias Habitacionais, dentro do convênio Morar Carioca – IAB-RJ, para a montagem
do Programa de Melhorias Habitacionais, que seria articulado com o Morar Carioca, mas que não foi finalizado nem
implementado.
Tabela 10
Temas de Projeto a serem abordados,
de acordo com orientações dos escopos
dos programas de urbanização analisados.
Fonte elaboração própria.

LEGENDA
RIO DE JANEIRO SÃO PAULO FEDERAL
TEMAS DE PROJETO

PAT-PROSANEAR
Favela Bairro 1

Favela Bairro 2

Morar Carioca
POR CONCESSIONÁRIAS E OUTROS PROGRAMAS

(PROAP-1996)

Bairro Legal

Renova/SP
DESENVOLVIDOS INDEPENDENTE DO PROJETO

PAC-UAP
(1994)
PELO PODER PÚBLICO

(2000)
(2010)

(2007)
(2011)
(2001)
! OBRIGATÓRIO

TEMAS DO ESCOPO DE PROJETOS

INFRAESTRUTURA URBANA
Sistema viário, Circulação Interna e Acessos
Áreas Esportivas e de Lazer
Iluminação pública
Projeto paisagístico
Comunicação Visual
Mobiliário Urbano
Sinalização Viária
SANEAMENTO BÁSICO *
Água potável
Esgotamento Sanitário
Drenagem pluvial
Coleta de lixo
SERVIÇOS E EQUIPAMENTOS SOCIAIS **
Apoio a serviços
Creches !
Comunitários e Sociais
SOLUÇÕES DE HABITAÇÃO
Reassentamento (por Risco ou Intervenção)
133 Melhoria habitacional
Desadensamento
Reordenação Urbana
MEIO AMBIENTE
Recuperação e mitigação ambiental
Estabilização de Encostas
Arborização
Reflorestamento
DESENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO
Trabalho Social
Plano de Gestão
REGULARIZAÇÃO
FONTES: FB1: Carvalho,2000; Ribeiro, 1996. FB/PROAP: Escopos 2000 e 2003. PAT PROSANEAR: Edital de Licitação,
2003. BAIRRO LEGAL: Normas gerais para elaboração de projetos, 2001. PAC-UAP: PPA 2012-2015. MORAR CARIOCA:
Termo de Referência do Edital Concurso, 2010.
NOTAS: * SANEAMENTO BÁSICO é um item que existe apenas em alguns escopos, embora todas as disciplinas
contantes nele estejam presentes em todos os programas de urbanização analisados. Quando Saneamento Básico não é
item, estas disciplinas fazem parte do item Infraestrutura Urbana.
** OS EQUIPAMENTOS SOCIAIS não são obrigatórios, com exceção dos indicados na tabela. O projeto para estes
depende da demanda local para seu desenvolvimento, mas já estão contemplados no contrato de projetos.
Em São Paulo, os temas do Adensamento e da Reordenação Urbana aparecem no es-
copo de projeto do Programa Bairro Legal, os quais poderiam induzir a questões de remo-
ções e consequente aumento da produção de UHs para resolver a relocação das famílias
afetadas. O Bairro Legal tinha como objetivo final a regularização fundiária e urbanística
da favela após a urbanização e estes dois temas de projeto trariam soluções como a rees-
truturação dos lotes e consequentes interferências no ambiente construído. Estes foram
importantes temas que embasaram os Programas de Mutirão dos anos 1980 da RMSP e que,
infelizmente, depois foram abandonados pelo Renova/SP. O enfrentamento de problemas
de Adensamento e Reordenação Urbana, com a produção de número equivalente de UHs
para atendimento das famílias deslocadas, são um diferencial da política de urbanização de
favelas de São Paulo em relação à do Rio de Janeiro, que nunca enfrentou de fato a questão.
Todos os programas de urbanização da cidade carioca evitavam grandes interferências no
ambiente construído, mesmo com problemas de alta densidade e baixas condições de habi-
tabilidade nas moradias, deixando a cargo dos moradores as transformações do edificado.
Após a urbanização, a PCRJ iniciou processo de regularização urbanística, edilícia e fundiária
em algumas favelas que passaram pela urbanização, mas adotando critérios inaceitáveis de
habitabilidade mínima para a regularização edilícia das moradias (CARVALHO, 2008).
O Desenvolvimento Comunitário era geralmente implementado pelos gestores, ou por
equipes contratadas especificamente para o Trabalho Social, que acontecia em paralelo e, de
certa forma, independente do processo do projeto. A vinculação do Trabalho Social com o pro-
jeto frequentemente se limitava a consultas à população para apresentação, discussão e apro-
vação do Projeto. Destacamos que o PAT-PROSANEAR ampliou a articulação do Trabalho Social
com o projeto de urbanização de favelas. A partir dos documentos de projeto dos diferentes
programas analisados nesta pesquisa, percebemos que, no PAT-PROSANEAR, o TS fazia parte do
contrato de projeto239 e assim foi inserido como uma tarefa da equipe de projeto, o que trouxe
134 novas condições de produção do projeto, como veremos no Cap.3. Ou seja, quando terceiriza-
das, as equipes de projeto eram também responsáveis pelo TS durante a elaboração do projeto
e obrigatoriamente trabalhariam dentro de metodologia participativa implementando ações de
desenvolvimento social e formando atores locais para o acompanhamento das obras.
Discutiremos a seguir os temas de projeto, apresentando uma revisão analítica e compa-
rativa das especificações que direcionam o projeto dentro dos programas analisados. Basica-
mente, o projeto em favelas está direcionado para o atendimento de Infraestrutura Urbana
(que engloba Sistema Viário, Espaços Coletivos e Saneamento Básico), Meio Ambiente240 e

239. Não temos como afirmar que isto ocorreu em todos os contratos de projeto do PAT-PROSANEAR.
240. A partir do Favela Bairro 2, Serviços Adicionais passaram a fazer parte dos contratos de projeto. As regularizações
eram complementares ao projeto, como a Pesquisa Fundiária, o Projeto de Alinhamento e o novo traçado da AEIS, quando
fosse o caso. Estes serviam de base para alimentar os processos de regularização, que deveriam ser implementados pelo
poder público após a urbanização da favela.
a produção de Edificações (para apoio de Serviços, Equipamentos Sociais e UHs para reas-
sentamento dos moradores afetados pela urbanização). É sobre estes grupos principais, que
darão a estrutura da revisão, que nos concentraremos a seguir. Componentes de projeto
complementares ao Sistema Viário e aos Espaços Coletivos, como iluminação pública, paisa-
gismo, mobiliário urbano, comunicação visual e sinalização viária, serão comentados apenas
quando houver diferencial sobre o tema.

2.3.2. Infraestrutura Urbana

2.3.2.1. Sistema viário


Para uma melhor compreensão do que preconizam os escopos de projetos dos programas
de urbanização de favelas analisados nesta pesquisa, apresentamos a tabela abaixo com os
parâmetros viários mínimos a serem seguidos pelos projetos.

Tabela 11
Parâmetros para projetos viários, dentro de
diferentes escopos de programas de urbanização
de favelas analisados. Fonte elaboração própria.

Parâmetros Largura caixa rolamento Vias Carroçáveis Larguras Becos e Vielas Distância edificações – Via Carroçável
(mínimo) (mínimo) (máximo)
Programas
Acesso– 6,0m
Favela Bairro quando possível, -- --
Carroçável – 3,0m
(2000) 1,0m de calçada
Micro-trator – 2,0m
Carroçável – 4,0m
PAT PROSANEAR * quando possível,
Leito Carroçável -- 50m (max)
(2000) 0,50 m de calçada
Mínimo – 4,0m
Bairro Legal -- 2 pessoas passando --
(2001) simultaneamente
PAC-UAP 135
compatibilização com a legislação local
(2007)
Coletoras – 7,0m
Morar Carioca Locais – 6,0m -- --
(2010) Carroçáveis – 3,0m
Micro-trator – 2,0m
Compartilhada – s/dimensionamento até 300m (ideal)
2 carros (1 passando + Acesso até 150m (para favelas
Legislação SP ** 0,80m
Carro separado 1 estacionado) = 4,60m Transportes em encosta)
(2012)
de Pedestre carro + caminhão = Públicos até 600m (para favelas
5,50m planas)
* Os parâmetros servem como referência, na falta de normas locais específicas das concessionárias ou Prefeitura.
** Da PORTARIA no. 21 de 2012, da SEHAB. Embora não tenha sido implementada por um programa de urbanização de favelas específico, e
já esteja revogada desde 2018, apresentamos aqui apenas como referência do que seriam os parâmetros mais atuais para sistema viário
em favelas.

Alguns programas indicam parâmetros mínimos para a largura de becos, e o que for mais
estreito se torna inadequado e não pode ser urbanizado. Não há um consenso dos parâme-
tros mínimos nem para vias carroçáveis e sua abrangência, nem para vias de pedestre, nem
para a estruturação de uma malha viária. No Favela Bairro 2, recomenda-se a observância das
normas técnicas e, quando for impossível respeitá-las, o bom senso. Já o escopo do Bairro
Legal apenas indica a largura mínima das vielas e becos para serem urbanizados (SEHAB, p. 16).
Neste sentido, a legislação da cidade de São Paulo de 2012241, é a mais completa, apresen-
tando dimensionamentos mínimos de vias e distâncias máximas a serem percorridas a pé.
Levando em consideração que os projetos viários devem ser aprovados pelos órgãos oficiais,
este processo dependeria de negociações e do bom senso entre técnicos, podendo até
chegar ao crivo político para resolver entraves técnicos. Entendendo que há parâmetros
mínimos a serem respeitados para a urbanização do assentamento, pressupõe-se então que
situações consideradas inadequadas não poderiam ser mantidas? Teriam estes trechos sido
demolidos? Ou foram consolidados após a urbanização do assentamento?
Importante observar que a questão da mobilidade ainda não foi tratada pelos progra-
mas de urbanização de favelas com o devido destaque. O tema começou a ser perpassado
através do transporte, que aparece desde o Favela Bairro 1, mas ficando restrito a levanta-
mentos de linhas de transportes públicos no entorno da favela, no Diagnóstico; e no Plano
de Intervenção, a proposta seria o desdobramento para sugestões de mudança de trajeto
de modo que os transportes públicos, quando viável, cruzem o território da favela, mas sem
direcionar esta questão para um projeto específico. Estas orientações se mantiveram nos
escopos de todos os programas analisados. O fato é que a implementação destas sugestões
de novos trajetos dos transportes públicos englobando as favelas depende de negociações
entre secretarias, diferentes instâncias do poder público e concessionárias, o que raramente
ocorre. A mobilidade interna tampouco é tema de projeto e não é tratada pelos programas
de urbanização de favelas. Como vimos no Capítulo 1, são as soluções próprias, como o mo-
totáxi e as vans e kombis, fora da esfera do poder público, que até hoje dão suporte aos des-
locamentos dos moradores dentro das favelas. No Rio de Janeiro, algumas intervenções em
136 favelas destacaram-se pela implementação de planos inclinados desde os anos 1980242 para
facilitar a mobilidade em favelas e morros, e até de elevador243 e de teleférico244 de conexão
entre favela e transportes de massa, mas se caracterizam como exceção e com resultados
questionáveis, como mostraremos no Capítulo 3.

241. Na Portaria 21, de 27 de dezembro de 2012, hoje revogada e sem nenhuma outra legislação que subscreva os parâ-
metros desta portaria. “Recomenda-se que a distância a ser percorrida entre o último ponto de acesso a veículos até o
domicílio mais afastado seja de, no máximo, 300 metros” (SEHAB, 2012, p. 7).
242. No Pavão-Pavãozinho, um plano inclinado foi construído pelo Governo Brizola nos anos 1980 durante da urbanização
das favelas do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo. Na Favela Santa Marta, o plano inclinado, construído nos anos 2000 pelo
Governo do Estado dentro do projeto de urbanização da favela, resultado de concurso público nacional de projetos, não
só serve de transporte interno como também é elemento físico que delimita a favela com o terreno vizinho.
243. Elevador Rubem Braga, que conecta a Estação de Metrô General Osório, em Ipanema, à favela do Cantagalo através
de passarela. Este elevador é mantido e operacionalizado pelo Metrô Rio e é gratuito.
244. Teleférico do Complexo do Alemão, que conectava a Estação de Trens de Bonsucesso às estações locadas nos topos
dos morros das favelas do Complexo. Este sistema, que era operacionalizado pela Supervia, está desativado desde 2016.
2.3.2.2. Saneamento Básico
O tema Saneamento Básico existe como subitem da Infraestrutura Urbana em alguns es-
copos de projeto: no Favela Bairro 2 (SMH, 1996), do Bairro Legal e do PAT-PROSANEAR).245
Nestes escopos, o Saneamento Básico se compõe pelas disciplinas Abastecimento de Água,
Esgotamento Sanitário, Drenagem e Coleta de Lixo. No entanto, em todos os programas de
urbanização analisados, essas quatro disciplinas estão presentes, sendo diretamente rela-
cionadas à Infraestrutura Urbana. Esta estrutura sem o tema Saneamento Básico dá a ideia
de que estas quatro disciplinas são isoladas e que podem ser implementadas separadamen-
te. Por isso, defendemos o Saneamento Básico como tema de projeto, ganhando o devido
destaque e atenção nos escopos, visto ser fundamental nas melhorias urbanas e ambientais
(MAGALHÃES; VILLAROSA, 2012) e, ao mesmo tempo, um dos problemas que afeta a sus-
tentabilidade do processo de urbanização de favelas (LABHAB-FAUUSP/FUPAM, 1999; IBAM,
2002; MAGALHÃES; VILLAROSA, 2012).
O Saneamento Básico é consenso no processo de urbanização de favelas: pensar em
urbanizar uma favela pressupõe a implementação de saneamento básico. As primeiras
ações públicas em favelas já estavam associadas a esse tipo de ação, mas de modo pre-
cário e incompleto, e sem promover melhorias da estrutura urbana, como já tratamos no
Capítulo 1. É através da malha viária que se dá a penetração de serviços urbanos e esta é
leito para as redes de infraestrutura e saneamento. Por isso, destacamos a importância da
urbanização integrada. Muitas vezes, para a implantação de saneamento, são necessários
alargamentos viários ou abertura de vias para sanear todo o território da favela. Em outras
circunstâncias, as dificuldades de implementar soluções de infraestrutura para certos tre-
chos da favela, e seu alto custo de manutenção, podem inviabilizar a urbanização destes.
Nestes casos, não seria recomendável abertura de vias que irrigassem os trechos de urba-
nização inviável. Logo, a associação de soluções para o sistema viário e para o saneamento
137 básico é fundamental para que os investimentos nas favelas sejam mais eficientes. Houve
um grande ganho na geração de programas de urbanização de favelas, que associou o sa-
neamento básico com ações urbanas e sociais no combate à pobreza, com forte impacto
em questões urbanas, ambientais, de saúde, de habitabilidade e bem-estar. Isto caracteri-
za um avanço em termos de concepção ampla de transformações urbanas das favelas, e,
neste sentido, implementar apenas saneamento básico nas favelas, atualmente, seria um
retrocesso no processo.
O Saneamento Básico é um conjunto de sistemas de redes de diferentes disciplinas que
não depende apenas de implementação (construção física das redes) para serem considera-
das atendidas, mas também do fornecimento adequado dos serviços e de sua manutenção

245. No Programa PAT-PROSANEAR, o Saneamento Básico ganha total destaque, dando nome à segunda fase do Projeto
de Saneamento Integrado – PSI.
periódica (concessionárias). Dados apresentados no Plano de Saneamento, do MCidades
(BRASIL, 2013), mostram que, em áreas urbanas, 53% do esgoto coletado não é tratado no
Brasil246 e que 52 milhões de pessoas abastecidas247 têm serviço precário de abastecimento
de água, cuja “intermitência prolongada ou racionamento” é critério para a precariedade
deste serviço (BRASIL, 2013).
Por isso, a preocupação com a gestão desses serviços é de suma importância para
garantir a sustentabilidade dos sistemas implantados, a qualidade dos serviços e a qua-
lidade de vida das populações beneficiadas pelas urbanizações. É fundamental ressaltar
que problemas aqui levantados não dependem apenas de investimentos, mas de uma
reestruturação do setor do Saneamento Básico, cuja inércia institucional dificulta a in-
tersetorialidade e não absorve mudanças necessárias para trazer mais eficácia ao setor
(BRITTO et al., 2012).
Outro enfoque fundamental são as tarifas dos serviços para populações em vulnerabili-
dade social, cujo valor ameaça a permanência das populações beneficiadas nas favelas após
a urbanização, que ou deixam de pagar por falta de condições ou são obrigadas a procurar
outro lugar menos valorizado para morar. O enfoque na gestão só foi encontrado no Pro-
grama PAT-PROSANEAR, como já comentado neste texto, cuja metodologia incluía o Plano
de Gestão de Serviços de Saneamento, a discussão durante o projeto com a população be-
neficiada pelas melhorias sobre “a questão tarifária sinalizando a ‘faixa provável’ da tarifa a
ser cobrada e o montante de subsídios necessários para implantação e sustentabilidade dos
sistemas”, indicando, após consenso com os moradores, a “Disposição a Pagar – DAP, obti-
da mediante modelos econométricos de Avaliação Contingente” (MCIDADES, 2003, p. 144).
Em resumo sem a observância das questões que determinam o contexto das favelas, a im-
plementação de redes de saneamento sem a sustentabilidade dos serviços não resolve a
exclusão urbana destes assentamentos, pois:
138
uma vez que não consideram as desigualdades sociais e estruturais entre grupos
populacionais, as políticas do setor são, em sua maioria, traduzidas em práticas
que negligenciam o contexto, dificultando a universalização do acesso e pro-
movendo a exclusão sanitária. Como não conseguem tratar o saneamento em
sua complexidade e multidimensionalidade, as decisões e ações acabam sendo
pouco efetivas. (FIOCRUZ, 2018, p. 32).

Fazer projeto dentro das normas e padrões vigentes e aprováveis pelas concessionárias,
como orientam os escopos de projeto dos programas de urbanização de favelas, é questão

246. No Sudeste, este número muda para 46%.


247. No Sudeste, de cerca de 30 milhões de pessoas têm serviço precário de abastecimento de água.
técnica facilmente resolvível. Construir redes também o é. O difícil é manter os sistemas e
serviços adequados no modelo vigente e insustentável até o momento. Por que então não
pensarmos em ajustar processos e soluções de projeto, de construção e de gestão dos sis-
temas e serviços à realidade, envolvendo as populações locais?
Salientamos que há ausência, em todos os programas de urbanização, da Energia
Elétrica como tema obrigatório de projeto, pois parece ser considerado um serviço de res-
ponsabilidade das concessionárias privadas que detêm este mercado no Brasil. No entanto,
observamos que a Energia Elétrica é imprescindível para garantir tanto qualidade de vida à
habitação como os sistemas de saneamento básico nas favelas. O fornecimento de energia
elétrica ao domicílio é básico para dar condições de habitabilidade e higiene, como o funcio-
namento de geladeiras e outros eletrodomésticos que garantem qualidade de vida mínima e
saúde, sem mencionar a luz elétrica, fundamental para os estudos e outras tarefas exercidas
no ambiente da moradia. Do mesmo modo, é comum a necessidade de implementação
de equipamentos, como bombas nos sistemas de abastecimento de água, ou elevatórias e
ETEs, nos sistemas de esgotamento sanitário. Todos estes equipamentos demandam for-
necimento de energia elétrica para funcionar. Uma vez que as obras de energia elétrica
não estejam coordenadas com as obras de urbanização, estas acabam interferindo na qua-
lidade dos serviços e dos sistemas. Por isso, entendemos ser fundamental a inclusão da
Energia Elétrica como tema de projeto, independente dos acordos entre setor público e
concessionárias privadas. Se o tema Energia Elétrica deve ser incluído em Saneamento
Básico ou Infraestrutura, não nos cabe definir, mas considerar esta disciplina como pro-
jeto obrigatório seria uma forma de enfrentar o problema que foi transferido às conces-
sionárias privadas, mas que efetivamente são de responsabilidade do Estado. Do mesmo
modo, destacamos a importância de se discutir e encontrar uma solução para os custos de
tarifa do serviço em favelas. Mesmo após a urbanização e com toda a rede e ligações do-
139 miciliares executadas, há falta de contribuição pelo serviço e os “gatos” se mantêm como
prática comum nas favelas. Apontamos que a questão das tarifas deveria ser enfrentada
pelos programas de urbanização de favelas, como assim propõe o PAT-PROSANEAR, pois
urbanizar não se limita apenas à implementação de obras, mas precisa ser garantida sus-
tentabilidade e gestão do território continuada.
Outro serviço ausente nos escopos de projeto é o abastecimento de gás, só sendo con-
templado para as novas UHs. A falta de habitabilidade nas moradias das favelas,248 com am-
bientes não ventilados internamente, coloca em risco os moradores e a coletividade, ainda
mais quando o botijão de gás fica dentro das cozinhas, devido à falta de espaço e planeja-
mento da habitação. Defendemos que o abastecimento de gás seja também englobado no
projeto, de modo a discutir a viabilidade de implementação de redes nas favelas junto às

248. Para mais informações sobre a habitabilidade nas moradias de favelas, ver Carvalho (2008) e Coelho (2017).
concessionárias249 ou até o controle da venda pelo Estado de botijões de gás, hoje em várias
favelas sob a exploração de mercado pelos grupos paraestatais que dominam e controlam
estes territórios.
Quanto ao plano de coleta de lixo, sua elaboração, baseada no novo sistema viário e
com indicação do trajeto dos veículos, pontos de acúmulo de lixo oficiais, onde os mora-
dores estariam “autorizados” a depositar lixo e entulho, é tema de projeto. Este plano deve
ser aprovado pela empresa de coleta local, que depois operacionaliza o sistema. Conforme
escopo (SMH, 1996), o projeto em favelas deve viabilizar a coleta domiciliar com caminhões
compactadores sempre que possível, buscando penetração dos veículos do serviço de cole-
ta de lixo na malha urbana da favela. O dimensionamento das vias, inclusive, segue padrões
para atender às manobras dos equipamentos mecânicos do sistema de coleta de lixo.
Mas não seriam só as favelas que deveriam ser reconfiguradas para que os serviços pos-
sam penetrar em seu tecido. Destacamos a qualidade do serviço que a empresa de coleta
de lixo da cidade do Rio de Janeiro, a COMLURB250, tem exercido nas favelas. Esta empresa
trabalha constantemente buscando soluções para que o serviço de limpeza urbana possa
ser feito nas favelas. Equipamentos mecanizados e procedimentos foram criados para con-
seguir penetrar nas vias das favelas e, assim, tentar atender a todo o território de modo
adequado. O microtrator, por exemplo, é um equipamento para acessar vias com menos de
3m de largura e com fortes inclinações para a retirada mais eficiente do lixo, virou, inclusive,
definidor de parâmetro para vias de serviço no Favela Bairro. A COMLURB também imple-
mentou o serviço de Gari Comunitário251 para a coleta domiciliar e varreção dos becos, tido
como exemplar (PINTO; LOBATO, 2004) mas que vem sofrendo ameaças de desativação,
como vimos no item 2.1.5. Consideramos as práticas desta empresa pública um referencial
que deveria ser seguido por outras gestoras públicas e privados dos serviços em favelas.
É comum a formação de lixões nas favelas pelos próprios moradores, o que denota que,
140 apesar de todo o esforço da COMLURB, por exemplo, há necessidade de conscientização das
populações locais para prevenir e evitar os lixões e despejos de lixo. Esta é uma das ações
abordadas pela Educação Ambiental, componente dos programas de urbanização de favelas
implementado geralmente pelo poder público separadamente do projeto.

249. A ausência de redes de abastecimento de gás na maioria das favelas não necessariamente é decorrente da falta de interesse das
concessionárias em implementar os sistemas. No projeto de urbanização do Complexo de favelas Cantagalo/ Pavão-Pavãozinho, no
Rio de Janeiro, através do PAC-Favelas (2007-2011), propusemos a implementação de rede de gás para resolver o sistema de abas-
tecimento de gás dos novos edifícios de UHs, na Estrada do Cantagalo. A concessionária CEG se mostrou interessada em imple-
mentar as redes neste trecho da favela, desde que o Estado garantisse a proteção destas para prevenir acidentes. O Estado optou
por não assumir este risco e as redes de gás não foram implantadas. Então, para os edifícios de UHs, a única solução seria projetar
um sistema de abastecimento de gás por central de botijões coletiva, mantido através de cota condominial. Após algum tempo,
vários moradores dos edifícios de UHs desistiram de utilizar este sistema, pois nem todas as UHs pagavam a cota condominial, e
a solução foi colocar seu próprio botijão dentro da moradia, embora isto seja proibido pelas normas, devido ao risco de explosão.
250. Companhia Municipal de Limpeza Urbana – COMLURB.
251. Este serviço foi desativado em várias favelas, como vimos neste mesmo Capítulo.
2.3.2.3. Espaços Coletivos
Embora apareça com diferentes nomenclaturas, os espaços coletivos252 são tema de projeto
em todos os escopos dos programas analisados. No entanto, em nenhum destes são forne-
cidos parâmetros para o planejamento do sistema de espaços coletivos – nem em relação à
articulação entre os espaços coletivos existentes, nem com os projetados, assim como seus
dimensionamentos – cabendo soluções específicas para cada situação encontrada. O Favela
Bairro estruturou suas ações na utilização de espaços coletivos para impacto nas relações
com as vizinhanças e como mecanismo para a integração física e social.
Os espaços coletivos continuam permeando outros programas, mas sem a ênfase dada
ao Favela Bairro quanto ao seu papel integrador, ao menos não está explícito no escopo de
projeto. No entanto, em todos eles há recomendações visando garantir a consolidação do
uso coletivo nos espaços propostos, seja identificando as demandas locais, seja através da
participação dos moradores nos projetos definindo coletivamente usos, público e possíveis
gestores, que implementariam atividades nestes espaços.
Ao falarmos em espaços coletivos, acionamos uma problemática bastante presente nas
favelas, que diz respeito à constante pressão para a privatização que sofrem as áreas livres.
Em relação a esta questão, o Favela Bairro 2 indica também a implementação de elementos
físicos para demarcar os limites entre o público e o privado, de modo a auxiliar no controle
urbano após a urbanização. Seriam estes elementos efetivos para evitar a apropriação priva-
da dos novos espaços projetados?

2.3.3. Meio Ambiente


O tema do Meio Ambiente, nos programas de urbanização de favelas, está enfocado no
atendimento a questões relacionadas à “cobertura vegetal existente, áreas de desmatamen-
to e reflorestamento, problemas ambientais existentes (poluição, erosão, áreas degradadas
141 etc.), verificação da adequação às normas ambientais vigentes.” (MCIDADES, 2003, p. 58).
É um tema central, já que nas favelas há, geralmente, áreas sujeitas a riscos ambientais.
Todos os programas analisados exigem o mapeamento das áreas de risco da favela com
indicação para sua mitigação. No entanto, nem todos assumem o atendimento pleno à esta
questão nem direcionam para um único modo de atuação do poder público. Há casos de
remoção completa do assentamento, outros de avaliação minuciosa da casa a ser mantida e
da que será removida, buscando promover a recuperação ambiental e minimizar os impactos
da intervenção no assentamento, e até há casos de tratamento urbano da vulnerabilidade
ambiental para transformar a área urbanizada em solo para novas UHs (ALVIM et al., 2015).

252. Este tema de projeto leva diferentes nomenclaturas, como: Áreas Esportivas e de Lazer, no Favela Bairro; Áreas
de Lazer inserido em Paisagismo, no PAT-PROSANEAR; Áreas Livre e de Lazer inserido em Paisagismo, no Bairro Legal;
Espaços Públicos, no PAC-UAP. Todos eles se referem a espaços livres de edificação e de uso coletivo, por isso adotamos
a nomenclatura Espaços Coletivos.
No Favela Bairro, o reflorestamento e mitigação de riscos eram direcionados para outros ór-
gãos e programas, cujas ações não necessariamente eram implementadas. Já o PAT-PROSA-
NEAR, programa específico de recuperação ambiental, determina a desocupação das áreas
de proteção de ambiental e de margens de cursos d’água, cujo projeto deve apresentar

soluções que propiciem: (i) a manutenção de um ambiente urbano equilibrado,


(ii) a recuperação das áreas degradadas pela ocupação desordenada do solo e
(iii) a proteção de elementos naturais significativos existentes. Tais elementos
podem ser: resquícios de vegetação nativa, encostas não ocupadas, manguezais,
lagos naturais e artificiais, bem como, mananciais de abastecimento e áreas de
recarga de aquíferos subterrâneos.

Traçar alternativas de solução para a área, como a relocação de populações,


revegetação de taludes e áreas verdes de uso comum. Propor a implantação de
sistemas de drenagem e muros de contenção de diferentes portes. Em todos os
casos deverão ser indicadas as soluções aplicáveis para posterior detalhamento.”
(MCIDADES, 2003, p. 62).

Muitas vezes, a solução é desocupar para prevenir os riscos: medida que se desdobra em
demolições e projetos de contenções para estabilizar as áreas de proteção desocupadas, e
dos novos espaços de uso coletivo no mesmo local. É certo que as políticas de urbanização
estudadas nesta pesquisa buscam atender tanto às melhorias quanto à mitigação dos riscos e
recuperação das áreas de proteção ambiental nestes territórios, anteriormente ocupadas. A
meta dos programas é manter, dentro do possível, as populações nas favelas em que vivem.
No entanto, as legislações ambientais, desarticuladas da realidade urbana e não embasadas
142 por estudos técnico-científicos (ALVIM et al., 2015), adotam parâmetros que não consideram
as ocupações existentes. Urbanizar uma favela, atender à legislação ambiental e evitar ao
máximo remoções, é geralmente conflituoso. Por isso, como garantir que as soluções para
mitigação de riscos sejam incorporadas pela população através do uso público, e impedir a
reocupação das margens dos rios e das encostas por novas moradias após a urbanização,
quando a agenda ambiental não é compartilhada pela população local?

2.3.4. Edificações
2.3.4.1. Equipamentos Sociais
Não há definição clara sobre quais equipamentos devem ser projetados na gama de possi-
bilidades a partir da demanda local. O escopo do Favela Bairro 2 (SMH, 2003) é o mais com-
pleto e único a especificar edificações obrigatórias com usos definidos e compartimentação
mínima (ver item 2.1.3.1, Tabela 5, p. 122). Neste Programa, recomenda-se preferencialmente
a articulação dos equipamentos sociais com os espaços coletivos, para fortalecer a esfera
pública destes. No entanto, não há especificações quanto à localização dos novos equipa-
mentos em relação à favela e ao entorno, que seria determinada pela oferta de áreas livres
que possibilitassem a construção destas edificações. Tanto o PAT-PROSANEAR como o Morar
Carioca, ao ampliarem os limites territoriais do projeto, abriram a possibilidade destas edifi-
cações serem implantadas em terrenos fora da favela, o que fortaleceria a integração social.
Em nenhum dos escopos há menção sobre o Plano de Gestão dos equipamentos sociais,
ficando a cargo dos órgãos que assumirem os equipamentos. Os gestores dos Programas
buscam construir alianças e compromissos duradouros com as diferentes secretarias e ór-
gãos. O Favela Bairro trabalhou a gestão através de convênios e acordos entre instituições,
com GT criado para envolver técnicos dos órgãos e de secretarias que futuramente seriam
gestores dos equipamentos construídos pelo Programa. No PAT-PROSANEAR, os gestores e
concessionárias estariam envolvidos na construção do projeto através de metodologia par-
ticipativa garantida pelo Trabalho Social. No entanto, estes procedimentos não garantem
continuidade, como veremos no Capítulo 3. Em nenhum dos Programas há menção sobre
gestão coparticipativa entre moradores e setor público nos equipamentos sociais. Este mo-
delo de gestão era até construído através do Trabalho Social em paralelo ao projeto em al-
guns dos programas analisados, mas não era colocado como linha de atuação, como o foi no
PAT-PROSANEAR, onde era explicitado como um dos modelos possíveis nas especificações
do Plano de Gestão dos Serviços.

2.3.4.2. Produção de Unidades Habitacionais (UHs)


Os escopos de projeto apresentam linhas gerais sobre área útil mínima, sem abordar nem
determinar tipologias de edificação a serem projetadas. Estas poderiam ser unifamiliares ou
multifamiliares, o que seria determinado a partir de cada situação, da oferta de terrenos e
do número de atendimento que demandaria o projeto urbano. O escopo fica aberto a uma
143 gama de possibilidades de modo que o projeto possa adotar o melhor partido urbanístico e
arquitetônico para atender às demandas e às áreas disponíveis para a construção de novas
moradias. Mas a falta de parâmetros técnicos não é sinônimo de qualidade na produção
habitacional em favelas. Samora (2009, p. 334) apontou em sua pesquisa que esta era uma
questão ainda a ser enfrentada. A autora defendia que deveriam ser inseridos nos escopos
de projeto requisitos de apoio à variação tipológica, além de parâmetros de habitabilidade,
dimensionamento, identidade e flexibilidade, os quais poderiam orientar para melhorar a per-
formance da produção habitacional em favelas.
Parâmetros de habitabilidade e dimensionamento foram inseridos por acaso no escopo de
projeto da produção habitacional em favelas, não através de revisão do próprio escopo, mas
devido à associação do PMCMV ao PAC-UAP. Não é objetivo desta pesquisa fazer uma análise
da legislação local e federal que incidem sobre a produção habitacional do PMCMV, mas que-
remos destacar algumas questões que influenciaram, por conta da associação do PAC-UAP
com PMCMV, nos projetos de habitação no âmbito dos programas de urbanização de favelas.
O PMCMV trazia diversas especificações técnicas que incluíam a acessibilidade do em-
preendimento e de UHs253, e em relação a compartimentação, área, mobiliário e circulações
mínimos das UHs, que deveriam ser atendidas também pela produção de UHs em favelas
dentro do PAC. Muito embora estas especificações trouxessem habitabilidade e dimensio-
namento às UHs em favelas, a imposição de UHs de dois quartos254 – que as especificações
do PMCMV também traziam – congelou qualquer possibilidade de variação tipológica de
UHs. Este é um problema para a produção do PMCMV em geral, mas que, salientamos, re-
presentou um retrocesso na produção habitacional em favelas, pois, como vimos, o escopo
do Favela Bairro permitia UHs de quarto e sala e de dois quartos. A variedade de tipologias
habitacionais, qualidade destacada por Magalhães e Villarosa (2012, p. 9), que é fundamental
para possibilitar maior atendimento às diferentes estruturas familiares da população be-
neficiária e adequação ao contexto local, foi, portanto, eliminada da produção de UHs em
favelas dentro do PAC.
A partir do financiamento federal do PAC, todos os projetos de arquitetura em favelas
passaram a ter que ser aprovados pelos municípios, por exigência do financiador. Além da
instância municipal, estes também eram analisados pela CEF255, que liberava os pagamentos.
Isto incluía tanto o PMCMV como os empreendimentos habitacionais no âmbito do PAC-UAP.
Como vimos no item 2.1.3, a produção habitacional dentro do Favela Bairro nunca preci-
sou ser aprovada oficialmente pelos arquitetos autores dos projetos na instância municipal.
Esta questão só foi modificada, no município do Rio de Janeiro, a partir do PAC, quando
o GERJ passou a ter que apresentar projetos aprovados pelo Município à CEF. Durante o
PAC-1, o alinhamento político entre Estado e Município256 viabilizou a criação de decreto257
que gerava parâmetros para permitir o processo de aprovação de projetos em favelas pelo
Município, suprindo momentaneamente a ausência de legislação própria nas AEIS objeto
do programa. Este decreto trazia dispensas de exigências mínimas para afastamentos, área
144 livre, prismas e estacionamento e limitava as novas edificações ao máximo de quatro pa-
vimentos, sendo exclusivo para as favelas dentro do PAC-Favelas no município do Rio de

253. Nos empreendimentos habitacionais, além de 3% das UHs adaptadas para PNE, o pavimento onde estes estivessem
locados teria que ser acessível, no mesmo nível da calçada ou com rampas para transpor o desnível entre calçada e cor-
redor de acesso às UHs para PNE.
254. Para a Faixa 1 do PMCMV, na qual os empreendimentos habitacionais do PAC-UAP se inseriam.
255. A aprovação dos projetos foi exigência do financiador federal. Os servidores do antigo Banco Nacional de Habitação –
BNH, com vasta experiência em urbanização de favelas e habitação de interesse social, migraram para a CEF, que virou
o banco federal de financiamento da habitação. A CEF tem um setor específico, a GIDUR - Gerência de Apoio ao Desen-
volvimento Urbano, que conta com equipes de arquitetos e engenheiros que analisam, fiscalizam e aprovam projetos e
obras para fins de desembolso dos recursos federais. Estas equipes, no entanto, não estão centralizadas em Brasília, mas
por região, ocorrendo procedimentos diferenciados num mesmo agente fiscalizador e financiador.
256. Quando o então Prefeito Eduardo Paes e o Governador Sérgio Cabral Filho eram do mesmo partido político e
estavam alinhados com o Governo Federal.
257. Decreto n°. 30.875 de 7 de julho de 2009 que era exclusivo para as obras do PAC nas favelas Complexo do Alemão,
Morro do Adeus, nas comunidades do Complexo de Manguinhos, Pavão, Pavãozinho e Cantagalo, segundo o decreto.
Janeiro. Com o PAC-2, o processo de projeto e de aprovação só se complicou. As relações
entre Estado e Município já não estavam mais amistosas e nenhum outro decreto foi lançado
para viabilizar a aprovação das edificações em favelas na sequência do programa federal.
Tendo em vista a ausência de legislação própria nas AEIS que o PAC-2 estava atuando, os pro-
jetos habitacionais tiveram então que seguir a legislação vigente para a cidade formal, cujos
parâmetros urbanísticos eram difíceis de serem implementados em favelas. Desse modo,
a aprovação dos projetos habitacionais do PAC-Favelas virou objeto de jogo político entre
Estado e Município, impedindo que soluções habitacionais fossem adotadas dentro do ter-
ritório das favelas.

2.4.
Síntese e Reflexões
sobre o processo
de projeto em favelas

Como vimos neste Capítulo, as metodologias dos programas de urbanização de favelas, fo-
ram se modificando ao longo do tempo, trazendo diferenciais que impactaram no modo de
fazer projeto. Através das categorias elencadas no início deste Capítulo, apresentamos um
resumo comparativo entre os programas que ganharam destaque nesta pesquisa (Tabela 12,
na próxima página).
Este resumo comparativo nos ajudou a levantar algumas reflexões sobre o processo
de projeto em favelas nestes 30 anos de programas de urbanização, que apresentamos
a seguir.

145 2.4.1. O vulto de investimentos determina


os resultados em urbanização de favelas?
Os Investimentos – primeira das categorias elencadas – são fundamentais para a retoma-
da da política de urbanização integral em favelas, por hora arrefecida, nas dimensões e
abrangência já conquistadas nos anos 1990. Por isso, nossa pesquisa busca levantar ques-
tões do processo que interferiram ao longo destes anos na abrangência e desempenho dos
Programas, visando o aumento da performance dos investimentos em urbanização de favelas,
quando estes voltarem a ganhar vulto.
Não é apenas o vulto dos investimentos que define a qualidade do processo e dos resul-
tados. As experiências aqui analisadas tiveram recursos diferentes, e não necessariamente
o programa com mais investimentos teve resultados melhores ou condições de produção
do projeto mais satisfatórias. Percebemos que as diretrizes que estruturaram o programa,
a metodologia, e o respeito ou não a estas, e como os investimentos foram aplicados têm
grande influência no processo.
Programas Favela Bairro PAT-PROSANEAR PAC-UAP Morar Carioca / Renova-SP
Categoria (1994 - 2006) (2000 - 2007) (2007 - 2014) (2010 - 2018)

$$$ $ $$$$$ Promessas


Basicamente em Obras, com
Projetos Executivos nos contratos
de obra.
Projetos e Obras Basicamente em Projetos * Basicamente em Projetos *
Investimentos Projetos Básicos eram
apresentados para captar
recursos.
R$20,8 bilhões (PAC-1) / R$12,7
U$600 milhões / 143 favelas / US$ 11,43 milhões / 35 projetos
bilhões (PAC-2) / 1,8 milhões de -
556.000 moradores (IPP, 2008) (Pré-investimentos)
famílias (BRASIL, 2014)
Favela como área de projeto Plano de Desenvolvimento Local Urbanização associada à Provisão
Integrado (favela + entorno) Habitacional Nova classificação (complexos,
Ações focadas em intervenções
isoladas): unidades de
físicas no Espaço Público Favela como área de projeto visando Magalhães (2016): grande
planejamento de bacias
obra ganho nas políticas de
Escopo urbanização de favelas Aumento da poligonal: além das
Ações focadas em saneamento e
fronteiras da favela
recuperação ambiental Moretti (2012): Processo de
reestruturação do tecido Obras de Retaguarda
urbano fica incompleto
Prefeituras (através de licitações)

Prefeitura Prefeituras Ou por Construtoras (RJ) (através Prefeituras


Contratações dos de indicações)
projetos ** (através de licitações) (através de licitações) (através de concurso)
Ou por Gerenciadoras (SP) (através
de indicações)
Projeto antes e durante a obra
Projetos Executivos muitas vezes
Desenvolvimento dos (FB1) Projeto e Trabalho Social juntos no
como novo projeto, em paralelo às Só projetos *
Projetos Surge o Projeto Executivo (FB2), processo de elaboração dos projetos Obras
arquiteto sai da obra

Coordenador de Projeto e do Depende da área e das relações


Papel do Arquiteto Coordenador Poucos contratos
Trabalho Social contratuais

* Obras são exceção.


** Quando o poder público terceirizava os projetos e não os fazia internamente.

Tabela 12
Comparativo entre os programas analisa-
dos nesta pesquisa, através das categorias
que direcionam e delimitam o projeto e
o papel do arquiteto no processo. Fonte
146 elaboração própria.

Nos anos 1990, a nova política de urbanização de favelas ganhou consistência, escala e
visibilidade graças, em parte, ao volume de investimentos. A primeira fase do Favela Bairro,
que chamamos de Favela Bairro 1, começou com recursos próprios e modestos para a pro-
dução de 16 projetos e respectivos inícios de obras, com o objetivo de demonstrar capaci-
dade institucional de gestão e implementação do programa, visando financiamento externo
para a ampliação dos investimentos. O financiamento do BID, no Favela Bairro 2, trouxe prós
e contras que merecem ser comentados: o volume de investimentos em favelas ampliado
fez com que a pasta de urbanização integral de favelas ganhasse destaque e importância
dentro da política habitacional; este mesmo financiamento, sem dúvida, foi fundamental
para dar durabilidade ao Favela Bairro dentro da agenda urbana da cidade do Rio de Janeiro,
pois garantiu um contrato de repasses que perpassou diversas administrações, indepen-
dentemente de políticas partidárias; ao mesmo tempo, procedimentos inseridos no Favela
Bairro 2 por imposição do BID enrijeceram o processo de projeto em favelas, tornando-o
mais burocrático e não necessariamente mais eficiente.
Os últimos anos do Favela Bairro 2 não se traduziram em obras, por falta de interesse
político no Programa, mas serviram para construir um banco de projetos que depois ali-
mentou uma nova leva de investimentos do PROAP III. No entanto, a aplicação destes novos
recursos do PROAP III se traduziu em ações duradouras, que tampouco se assemelharam ao
que foi preconizado no Favela Bairro 1 e 2. Os recursos do PROAP III foram basicamente apli-
cados em ações de infraestrutura esvaziadas da concepção integrada original do Programa.
Com isso, houve o desmonte das diretrizes do Programa e o uso político de projetos desen-
volvidos no Favela Bairro 2, que geraram obras de manutenção ou de infraestrutura sem as
premissas urbanísticas que originaram e celebrizaram o referido programa.
Neste sentido, levantamos uma questão a partir do ocorrido no Favela Bairro: é possível
controlar o uso político que pode ser feito sobre os projetos? Não nos restam dúvidas de
que o projeto é um documento imprescindível para o planejamento, captação e otimização
dos investimentos. No entanto, nem sempre as obras são imediatas após a conclusão dos
projetos, ou são implementadas pela mesma administração. O projeto, como documento
isolado e atemporal, pode ser fragmentado e manipulado para atender a interesses particu-
lares. É preciso contar com uma rede de atores para controlar o processo. Ao que vimos no
PAT-PROSANEAR, a metodologia envolvendo diferentes atores tanto na elaboração do pro-
grama, dos projetos como na implementação das obras, parece ser o caminho para trazer
transparência, controle e qualidade ao processo de urbanização de favelas.
O PAC, que objetivava resultados rápidos para impactar na economia, trouxe investi-
mentos em urbanização de favelas através do PAC-UAP, com um volume de investimentos
cerca de 50 vezes maior que o Favela Bairro 2, e em todo o território brasileiro. Foi sem dú-
vida uma oportunidade, mas a urgência do PAC teve como efeito negativo, em urbanização
147 de favelas, a pressão política para mudanças de procedimentos de modo a acelerar projetos
e obras. Quando existentes, projetos já prontos ou contratos de obras paralisados foram
utilizados pelas administrações locais para captar verba federal, adaptando-os às premissas
do PAC-UAP. No entanto, raras são as administrações públicas que investem em planeja-
mento e projetos, quando não há recursos para as obras. Por isso, também foram utilizados
projetos muitas vezes inconsistentes ou incompletos, que figuraram como Projeto Básico
sem efetivamente o ser e cujos processos de elaboração merecem ser questionados. Esta,
por exemplo, foi uma prática utilizada pelo GERJ para implementar o PAC-Favelas, no Rio de
Janeiro, com recursos federais do PAC-UAP, que, como destacamos neste Capítulo, infeliz-
mente desqualificou o papel do projeto no processo de urbanização de favelas.
Quando não se tem recursos para executar o todo, vale a pena investir em projetos?
Conforme destacaram Cardoso e Denaldi (2018), as obras do PAC-UAP que apresentaram
melhor qualidade se originaram em projetos mais detalhados, que estavam já finaliza-
dos antes do início do PAC-UAP, e cujo processo de elaboração provavelmente respeitou
metodologia e tempo necessário para o bom desenvolvimento destes. Por isso, defendemos
a volta dos investimentos em projetos de urbanização de favelas através de metodologia e
diretrizes consistentes, mesmo que os recursos não sejam suficientes para a implementação
imediata das obras, como observamos com o PAT-PROSANEAR.
Com enfoque originalmente pensado para capacitação institucional, o Programa federal
PAT-PROSANEAR teve como mérito a alocação de recursos para a preparação de projetos de
infraestrutura com ações integradas em favelas no Brasil. Os recursos eram escassos e insu-
ficientes para garantir obras, mas mesmo assim o PAT-PROSANEAR investiu em projetos, os
quais depois foram utilizados pelas administrações locais para captar recursos federais do PAC-
-UAP para as obras. O curto intervalo entre a elaboração dos projetos no PAT-PROSANEAR
(2000-2006) e os investimentos em obras do PAC (a partir de 2007), neste caso, foi uma opor-
tunidade, pois os projetos não ficaram obsoletos diante da temporalidade ágil de transforma-
ção das favelas. Não só a rigidez no controle de qualidade dos projetos, no PAT-PROSANEAR,
parece ter contribuído significativamente para os bons resultados nas obras, mas, como já
apontamos, a metodologia do Programa envolvendo os moradores no processo parece ter
sido elemento para garantir que decisões tomadas conjuntamente durante o projeto no PAT-
-PROSANEAR fossem rigorosamente implementadas nas obras depois através do PAC.
Este ponto nos faz levantar algumas questões: seria o fato de não haver recursos para as
obras, o que permitiu que os projetos pudessem seguir os tempos necessários para seu bom
desenvolvimento, frequentemente interrompidos ou atropelados por pressões políticas
para inaugurações? De fato, a metodologia participativa do PAT-PROSANEAR, com Trabalho
Social efetivamente atrelado ao processo de elaboração dos projetos – o qual não se limi-
tava a consultas de apresentação, discussão e aprovação do Projeto – demanda tempos
alongados para as fases iniciais de projeto (como podemos perceber na Tabela 7, p. 139). Este
tempo inicial alongado é geralmente necessário para dar consistência ao processo partici-
148 pativo nos projetos, envolvendo e formando atores no processo de projeto, visando, de cer-
to modo, o controle dos processos, o que nem sempre é interessante quando há urgência
política. Do mesmo modo, estas fases iniciais de projeto não se transformam rapidamente,
no caso de pressão política, em documentos que viabilizem licitações de obras.
Seria este tempo inicial mais alongado dado às primeiras etapas de projeto um dos
pontos de interesse do PAT-PROSANEAR e que deve ser considerado na revisão dos futuros
programas de urbanização de favelas? Como compatibilizar diferentes agendas, de modo a
que os tempos e demandas dos diferentes atores sejam conciliáveis? Comparando com os
outros programas, suspeitamos que o diferencial do PAT-PROSANEAR esteja efetivamente aí.
E desta análise, podemos recomendar que umas das revisões nas metodologias dos progra-
mas de urbanização de favelas seja no sentido de trazer um maior equilíbrio entre tempos
de projeto e o tempo político, e, através deste equilíbrio, buscar a conciliação das diferentes
demandas, o projeto sendo instrumento para tal. A ausência de recursos para obras não
deve ser uma justificativa para que processos e metodologias de projeto sejam respeitados.
Assim, defendemos que as temporalidades dos diferentes atores (tempo de transformação
da favela, político, técnico, administrativo, financeiro, de negociações), que são distintas e
muitas vezes conflituosas, sejam assumidas, enfrentadas e incorporadas nos processos e
metodologias dos programas de urbanização de favelas. Neste sentido, visto que o tempo
político parece interferir nos investimentos, nas condições de produção do projeto e em
obras, não seria fundamental pensar metodologias e práticas de projeto que pudessem tam-
bém viabilizar eventos de obras em favelas de modo a atender a urgências políticas, as quais
são parte do modus operandi do sistema político brasileiro? Este poderia ser um ponto que,
a nosso ver, contribuiria na revisão dos programas de urbanização de favelas.

2.4.2. O que mudou na forma de fazer o projeto em favelas?


Mostramos através de nossa análise sobre os Escopo de Projetos que os Temas de Projeto
que direcionam o projeto em favelas não se modificaram significativamente ao longo destes
anos. Identificamos que o Escopo de Projetos do Favela Bairro 2 foi base para os outros
programas analisados nesta pesquisa e o projeto em favelas tem como escopo a provisão de
infraestrutura urbana desde os anos 1990.
A entrada do BID no financiamento do Favela Bairro acrescentou regras e exigências ao
Programa que modificaram a estrutura institucional, a agenda, o papel do arquiteto no pro-
cesso e o modo de fazer o projeto, entre outros. O Favela Bairro 2 introduziu, no processo
de urbanização de favelas, um Escopo de Projetos com especificações e parâmetros técni-
cos que atribuíram mais rigor ao processo de projeto. Certos parâmetros foram depois apri-
morados, mas, efetivamente, os Temas de Projeto do Favela Bairro 2 foram incorporados
por outros programas e continuam praticamente os mesmos nos programas mais recentes.
Instaura-se uma reflexão: estamos há quase 30 anos com direcionamento muito simi-
lar do projeto em favelas ligado ao aspecto físico no Brasil desde o Favela Bairro. Seriam
149 estes Temas de Projeto suficientes para urbanizar uma favela, considerando o papel dado
ao projeto neste processo? No Favela Bairro, a provisão de infraestrutura urbana serviria
de base para a articulação de outros programas sociais que deveriam vir integrados às
melhorias urbanas. Esta complementação, inevitavelmente, é fundamental para que as
ações públicas não se limitem apenas ao aspecto físico, mas este procedimento não foi
amplamente seguido pelos outros Programas analisados neste Capítulo. Seria possível,
através do projeto, firmar uma vinculação mais profunda entre programas sociais com-
plementares e a urbanização física em si? Este questionamento poderia guiar o aprimo-
ramento de metodologias dos programas de urbanização, visto que benefícios sociais são
fundamentais para gerar inclusão social. As intervenções físicas, sem dúvidas, aumentam a
qualidade de vida urbana, mas, isoladamente, não são suficientes para alterar as condições
sociais das populações faveladas.
É importante destacar que as diretrizes dos Programas e demandas do projeto têm sido
construídas pelo poder público isoladamente, e por financiadores que introduzem itens de
seu interesse. A participação dos beneficiários não é uma prática na construção das dire-
trizes dos programas. Por outro lado, o direcionamento técnico dos projetos em favelas
ainda está construído sobre padrões de cidade distintos do território a ser urbanizado.
As normativas existentes, em muitos casos, não são viáveis de serem adotadas para o am-
biente construído das favelas. Por isso, são geralmente necessários pactos entre técnicos
para o estabelecimento de padrões alternativos aprováveis junto aos órgãos. De modo con-
trário, urbanizar significaria a reestruturação do tecido urbano sem o respeito à morfologia
e identidade da favela. Não seria momento de rever os padrões técnicos que guiariam os
futuros projetos a partir das experiências de urbanização de favelas implementadas ao longo
destes quase 30 anos no Brasil? Por que não oficializar, a partir destas experiências e de uma
maior troca com os beneficiários, o que seria ou não aceitável no ambiente da favela – colo-
cando a favela, agora sim, como padrão e parâmetro para projetos e envolvendo os atores
que imprimem a lógica da favela neste debate?
O PAT-PROSANEAR trouxe alguns ganhos no processo de projeto: este programa insere
a articulação da favela com o entorno através do PDLI, com ampliação da escala de interven-
ção visando o desenvolvimento local e a gestão das melhorias urbanas. O Trabalho Social,
que no processo de projeto do Favela Bairro frequentemente se limitava a consultas à po-
pulação para apresentação, discussão e aprovação do Projeto, no PAT-PROSANEAR passou a
integrar a metodologia de elaboração dos projetos. Esta metodologia integrando o Trabalho
Social viabilizava a participação efetiva dos beneficiários nas diversas fases de elaboração
dos projetos. Após a finalização dos projetos, por terem participado das decisões formaliza-
das nos projetos, os moradores conseguiam ser protagonistas no controle das tentativas de
mudanças dos projetos que iam de encontro aos seus interesses durante as obras. O PAC-
-UAP seguiu, em seu escopo, metodologia do Trabalho Social similar ao PAT-PROSANEAR.
No entanto, não foi possível ter procedimentos-padrão em todos os contratos de finan-
150 ciamento, visto que os projetos apresentados na captação do recurso federal tinham dife-
rentes status. Nos casos onde os projetos já estavam prontos, o Trabalho Social acabou por
assumir o papel de minimizar os impactos das obras. A experiência do PAC-Favelas, do Rio
de Janeiro, neste aspecto foi desastrosa. Projeto e obra aconteciam em paralelo, descoor-
denadamente, sem transparência e com supressão de etapas de projeto que garantiriam um
mínimo de qualidade ao processo, com o intuito de dar agilidade à obra. As empreiteiras,
que viraram as contratantes dos projetos, ganharam papel protagonista ao impor eventos
de obra em detrimento do interesse público, numa prática criminosa que foi extremamente
danosa à política de urbanização de favelas, gerando enormes desperdícios dos recursos
públicos em obras emblemáticas sem sustentabilidade. Por isso, apontamos que não são
apenas as disciplinas embutidas no Escopo de Projetos e a metodologia dos Programas que
delimitam projeto e resultados. Quem detém o controle sobre o processo de implementa-
ção, e o próprio processo de implementação dos Programas, interfere também nos resulta-
dos e na sustentabilidade das ações.
2.4.3. O projeto a serviço de quem?
As modalidades de contratação dos projetos foram se modificando nestes anos de expe-
riência acumulada em urbanização de favelas. Concursos e licitações públicos eram a moda-
lidade de contratação do Favela Bairro e do PAT-PROSANEAR, que depois foi retomada pelo
Morar Carioca e pelo Renova/SP. Destacamos que esta foi uma qualidade destes dois últi-
mos programas que permitiram colocar o projeto a serviço dos interesses públicos, muito
embora o volume de contratações de projeto não tenha sido nas dimensões prometidas nas
bases dos concursos e tanto o Morar Carioca como o Renova/SP sofreram esvaziamento de
suas premissas originais pouco tempo após seus lançamentos.
Indicações e contratações via construtoras, no Rio de Janeiro, passaram a ser uma
prática nos programas locais financiados pelo PAC-UAP. Ao ser contratado pelas cons-
trutoras, o projeto assumiu um papel controverso, pois precisava atender tanto aos inte-
resses do contratante quanto às premissas do Programa, que afinal originou o contrato.
A forma que o poder público encontrou de tentar minimamente controlar a qualidade
e processo de projeto, foi a de indicar equipes que já haviam desenvolvido projetos
em favelas para a Prefeitura na época do Favela Bairro. O PAC-Favelas, do Governo do
Estado no Rio de Janeiro (GERJ) – que é frequentemente confundido com o PAC-UAP,
mas que na verdade é um programa do GERJ financiado pelo PAC-UAP – foi exemplo
dos atropelos desta modalidade de contratação: as construtoras detinham o controle
do projeto e do orçamento. Deste modo, as construtoras ganharam papel protagonista
na definição do escopo de atuação do poder público, fazendo com que este perdesse
a autonomia do processo decisório, numa inversão de papéis que colocou o projeto a
serviço dos interesses privados.
Embora os arquitetos tenham voltado a frequentar as obras no período do PAC-Favelas
e Morar Carioca, já que as reuniões de projeto aconteciam nos barracões das construtoras,
151 destacamos que este processo é radicalmente diferente das condições de adequação dos
projetos durante as obras praticadas no Favela Bairro 1. Nesta fase do Programa carioca, a
presença do arquiteto autor dos projetos era garantida em contrato com o poder público,
que gerenciava projeto e obras, e a atuação dos arquitetos nas obras se limitava a ajustes
das soluções sacramentadas no projeto para a realidade da favela e demandas locais que
ocorriam ao longo das obras, respeitando a concepção original do projeto. As construtoras
e arquitetos eram, portanto, subordinados ao poder público, que controlava o processo de
obras e a implementação dos projetos para continuar atendendo às premissas do Programa
e ao interesse público.

2.4.4. Quais os ganhos no processo


de desenvolvimento de projeto?
Ao mesmo tempo que o Escopo de Projetos, introduzido pelo Favela Bairro 2, trouxe maior con-
trole sobre o processo de projeto em favelas e a exequibilidade destes, este institucionalizou
procedimentos que profissionalizaram o modo de fazer o projeto em favelas, exigindo maior
capacidade gerencial, mas que não necessariamente aumentaram a qualidade aos projetos.
A etapa Projeto Executivo foi introduzida ao processo de projeto por exigência do BID,
o que até hoje é questionável quanto à validade e efetividade na substituição desta etapa
pela presença constante da equipe autora do projeto na obra. Como vimos, a experiência do
Favela Bairro 1, com Projetos Básicos sendo modificados pelos autores dos projetos direta-
mente nas obras, se mostrou exitosa e adequada à realidade das favelas. Projetos Executivos
nem sempre conseguem garantir a exequibilidade das soluções e é consenso entre técnicos
que nem todas as situações são passíveis de terem projetos desenvolvidos até o Executivo
antes das obras serem iniciadas.
No Favela Bairro 2, também foi adotada a etapa de Aprovações dos projetos pelos ór-
gãos gestores dos serviços, que em tese visava garantir a manutenção futura. Mesmo en-
volvidas nas aprovações dos projetos, algumas concessionárias não assumiram a gestão e
manutenção dos serviços, colocando em risco as infraestruturas construídas.
Estas novidades introduzidas pelo Favela Bairro 2 no desenvolvimento dos projetos fo-
ram seguidas por outros programas de urbanização e ainda pautam o projeto em favelas,
mas que precisam ser revistas, de modo a retomar procedimentos já utilizados com êxito,
como o arquiteto autor do projeto adequando os Projetos Básicos nas obras, o que conferia
maior agilidade, qualidade e melhores condições de produção do projeto em favelas.
No PAC-UAP, o Projeto Básico voltou a ser documento-base para o financiamento das
obras em favelas. O Projeto Executivo, por sua vez, virou item dos contratos de obras cujo
foco seria a adequação dos Projetos Básicos nas obras. O que poderia ser uma retomada
de um procedimento positivo no processo de projeto em favelas – Projeto Executivo feito
durante as obras para melhor adequação à realidade – na verdade foi questionável. Como
apontamos neste Capítulo, o desenvolvimento de alguns Projetos Básicos, objeto de finan-
152 ciamento do PAC-UAP, não seguiram passos fundamentais para lhes dar qualidade. Além
disso, o item Projetos Executivos dos contratos de obras muitas vezes era utilizado para
contratação de novos projetos que substituiriam os Projetos Básicos que não tinham consis-
tência para execução. Com isso, projeto e obra andavam em paralelo, gerando um atropelo
no processo de desenvolvimento de projeto. No campo do projeto, esta prática resultou
na desqualificação técnica do produto Projeto Básico, que passou a ser associado, pelos
menos conhecedores do processo, a documento insuficiente para as licitações de obras de
urbanização de favelas, embora experiências como a do Favela Bairro 1, como já discutimos,
tenham demonstrado exatamente o contrário.

2.4.5. Qual é o papel do arquiteto ao longo do processo?


Como vimos, todas as questões elencadas acima interferiram no papel do arquiteto no pro-
cesso. O Favela Bairro deu destaque ao projeto como peça central, instrumento decisório
para as ações de melhorias urbanas e articulador de políticas públicas nas favelas. O arquiteto
também ganha papel protagonista, ao ser exigido na contratação de projetos equipes multi-
disciplinares que sejam coordenadas por ele. Deste modo, o projeto em favelas torna-se um
novo campo de prática profissional da arquitetura e urbanismo, e o arquiteto é colocado a
serviço do cliente – a favela.
Um dos procedimentos que funcionava no Favela Bairro 1 era a equipe composta pelos
diferentes atores – arquiteto autor do projeto, gestor, executor – reunida na obra e em
contato constante com os moradores. Este procedimento estava firmado desde o início
do projeto, visto que a fase de adequação dos projetos em obra fazia parte dos contratos
das equipes de projeto, no Favela Bairro 1. No entanto, e infelizmente, esta fase foi retirada
dos contratos de projeto no Favela Bairro 2 com a ampliação do papel das gerenciadoras no
processo. Com isso, se perdeu a garantia da presença dos autores dos projetos nas obras.
Embora esta tenha trazido bons resultados no Favela Bairro 1, foi interrompida no Favela
Bairro 2 e nunca foi incorporada nos Programas subsequentes. Isto se deve, em parte,
à introdução das gerenciadoras no processo. No Favela Bairro 2, os procedimentos de con-
trole de projeto impostos pelo BID demandaram uma reorganização institucional da SMH,
cujo resultado foi o surgimento das gerenciadoras, que, inicialmente, tinham a função de
assistência técnica ao processo de gerenciamento dos técnicos da Prefeitura. Pouco a pou-
co, seu escopo de trabalho foi sendo ampliado e estas passaram a assumir modificações de
projeto em obra sem o conhecimento dos autores, que, por sua vez, foram definitivamente
excluídos das obras. Insistimos que tal procedimento ameaçou a concepção e qualidade dos
projetos, além de infringir regras de direitos autorais, e não se justifica, pois, se havia alguém
contratado para mexer nos projetos durante as obras, por que então não eram os próprios
arquitetos autores dos projetos que o faziam?
As gerenciadoras também assumiram papel controverso em São Paulo, passando a
contratar as equipes de projeto, a fiscalizar projeto e obras, e se tornaram detentoras do
153 gerenciamento do processo. A parceria, sem dúvida, é fundamental para garantir a ope-
racionalização de políticas públicas quando o corpo técnico é reduzido para o volume de
trabalho. Mas defendemos que o conhecimento e o controle de todo o processo devam ser
institucionalizados, dando a devida importância às gerenciadoras no auxílio na gerência dos
Programas, quando necessário, mas de modo a garantir ao poder público autonomia e ope-
racionalização das políticas da forma que for mais conveniente ao interesse público.
No PAT-PROSANEAR, embora a equipe de projeto não fosse contratada para as adequa-
ções de projeto nas obras, até mesmo porque nem havia verba prevista para as obras, o pa-
pel do arquiteto foi ampliado de outro modo: este assumiu, via contrato, a articulação direta
entre Trabalho Social e projeto. Esta metodologia participativa na elaboração do projeto
ajudou a ampliar as redes de comunicação entre a população local e o arquiteto, e transfor-
mou o projeto em instrumento de controle para os moradores nas obras. Infelizmente, este
papel é perdido no PAC-UAP, nos casos onde o projeto se transforma em mero documento
para captar recursos sob o selo de Projetos Básicos, independentemente de seu processo
de elaboração, da qualidade de seu conteúdo ou das relações entre conteúdo e atendimento
191e, em casos par-
às demandas locais. Ocorre, portanto, a desqualificação técnica do projeto
ticulares, comocomo
Defendemos no PAC-F avelas doaRio
fundamental de Janeiro,
retomada a subordinação
da modalidade do arquiteto às construto-
de contratações
ras ede
públicas nãoprojeto,
mais aoseja
poder
porpúblico. Os ou
concursos arquitetos passaram
por licitações, a ser
para contratados
recolocá-lo comodiretamente nas
obras, enfrentando
instrumento da política deinteresses controversos
urbanização de favelas. eApenas
o projeto virou
deste instrumento
modo, o arquitetodo capital e não
seriamais dos objetivos
colocado a serviçodada
política pública
população que geroupara
beneficiada o seu propósito.
produzir um projeto que
Defendemos
concatene como
as demandas fundamental
locais a retomada
com as premissas da modalidade
dos Programas, de seu
que, por contratações
turno, públicas de
projeto,
deveriam seja
estar por concursos
fundadas ou porpúblicos.
nos interesses licitações, para recolocá-lo como instrumento da política
de urbanização de favelas. Apenas deste modo, o arquiteto seria colocado a serviço da popula-
ção beneficiada para produzir um projeto que concatene as demandas locais com as premissas
As categorias elencadas no início deste Capítulo nos permitiram fazer uma
dos Programas, que, por seu turno, deveriam estar fundadas nos interesses públicos.
análise comparativa entre os diversos programas e como os procedimentos destes
As categorias elencadas no início deste Capítulo nos permitiram fazer uma análise compa-
Programas interferiram nas condições de produção do projeto em favelas. Do mesmo
rativa entre os diversos programas e como os procedimentos destes Programas interferiram
modo, a análise dos escopos de projetos também nos possibilitou construir uma grade
nas condições de produção do projeto em favelas. Do mesmo modo, a análise dos escopos de
de temas destacando o que é comum e que constitui o cerne do projeto em favelas
projetos também nos possibilitou construir uma grade de temas destacando o que é comum e
no âmbito dos programas de urbanização.
que constitui o cerne do projeto em favelas no âmbito dos programas de urbanização.

GRADE DE ANÁLISE
Sistema Viário Tabela 13
INFRAESTRUTURA URBANA
Espaços Coletivos Grade de Análise construída
a partir de Temas de Projeto
Saneamento Básico
dos escopos de programas
Mitigação de Riscos de urbanização de favelas, uti-
MEIO AMBIENTE
Recuperação Ambiental lizada por esta pesquisa para
Equipamentos Sociais organizar os casos de referên-
EDIFICAÇÕES cia das favelas urbanizadas.
Produção de UHs
Fonte elaboração própria.
154 Tabela 13: Grade de Análise construída a partir de Temas de Projeto dos escopos de
programas de urbanização de favelas, utilizada por esta pesquisa para organizar os
casos de referência das favelas urbanizadas.
As reflexões e sínteseFonte:
das condições de produção do projeto em
Elaboração própria. favelas aqui apresen-
tadas serão observadas nos casos de referência de favelas das cidades do Rio de Janeiro e
São Paulo, urbanizadas através dos programas destacados neste Capítulo – Favela Bairro,
As reflexões e síntese das condições de produção do projeto em favelas aqui
PAT-PROSANEAR e PAC-UAP – que serão apresentadas no Capítulo 3 a seguir.
apresentadas serão observadas nos casos de referência de favelas das cidades do
As categorias elencadas e a grade temática serão guia e estrutura da análise das situações
Rio de Janeiro e São Paulo, urbanizadas através dos programas destacados neste
construídas nos casos de referência. Esta metodologia não só ajudará a comparar situações e
Capítulo – Favela Bairro, PAT-PROSANEAR e PAC-UAP – que serão apresentadas
contextos diferentes, como também possibilitará ilustrar questões metodológicas de projeto
no Capítulo 3 a seguir.
que farão emergir o processo e as condições de produção do projeto nestas favelas: o que foi
sucesso e/ou falhou, os motivos, atores envolvidos e temporalidades, como foi a abordagem
do projeto, da construção e da gestão, o que poderia ter sido diferente. Todas estas questões
buscam identificar os limites e desafios do projeto no processo de urbanização de favelas.
3.
O PROCESSO E O
RESULTADO
3.
O PROCESSO E O
RESULTADO

Neste Capítulo, apresentaremos três casos de referência de favelas das cidades do Rio de
Janeiro e São Paulo. Foram selecionadas favelas que foram urbanizadas por três dos pro-
gramas analisados no Capítulo anterior – Favela Bairro, PAT-PROSANEAR e PAC-UAP – de
modo a estabelecer uma relação entre a análise de documentos que direcionam projeto
e processo (no Capítulo 2) e a efetiva aplicação dos procedimentos e metodologias pre-
conizados nestes documentos, observando os próprios processos em si e seus resultados
anos após a urbanização. Consideramos ser fundamental a análise de exemplos construí-
dos, mesmo sabendo que projetos urbanos nem sempre conseguem ser implantados em
sua completude em favelas. Nossa pesquisa vem neste sentido: analisar não só a ideia –
o projeto, mas observar a posterior apropriação pelos moradores e pelo próprio Estado, o
que seria, a nosso ver, o resultado de todo este processo. Acreditamos que o projeto não
seria o único responsável pela qualidade urbana resultante, mas também todo o seu pro-
cesso de elaboração e de implementação, e todos os atores que imprimem as diferentes
lógicas discutidas no Capítulo 1, nas favelas.
Optamos por não escolher apenas projetos considerados bem-sucedidos. Como Roy
(2005, p. 156, tradução nossa), acreditamos que há um pouco a aprender com o que dá
errado.

O planejamento internacional hoje é constituído por modelos e melhores


práticas. Estas utopias do modelo são vistas como a chave para a replica-
156 bilidade universal do “bom” planejamento. [...] Confrontar as falhas e li-
mitações dos modelos dá um sentido mais realista a políticas e conflitos, e
também obriga o planejamento a enfrentar as consequências de sua própria
boa ação. Esses resultados devem ser vistos como algo mais do que apenas
“consequências não desejadas”. Este vocabulário do planejamento não só
parece um encolher de ombros casual, mas também implica na incapacidade
de pensar sobre os sistemas sociais complexos através dos quais os planos
devem ser implementados.

Tomando as questões acima colocadas, selecionamos um caso considerado bem-sucedido,


outro considerado malsucedido e um terceiro que não tem recebido destaque no campo do
projeto urbano em favelas.
A primeira favela – Parque Royal – teve projeto elaborado pelo escritório de arquitetura
Archi5 Arquitetos Associados Ltda.258, e foi implementado nos anos 1990 dentro do Favela
Bairro 1, na cidade do Rio de Janeiro. Este é um caso de urbanização de favelas considerado
exemplar (CONDE; MAGALHÃES, 2004; MAGALHÃES; VILLAROSA, 2012) e que, por isso, foi ob-
jeto de muitas pesquisas, com vasto material bibliográfico e fontes secundárias disponíveis.
Destacamos a importância da dissertação de mestrado de Kroff (2017) para nossa pesquisa,
que ao conter na íntegra as entrevistas aplicadas pela pesquisadora com o arquiteto coorde-
nador do projeto, diversos técnicos e atores locais (KROFF, 2017), se transformou em impor-
tante fonte sobre o processo de urbanização de Parque Royal. Nos apoiamos em todo este
material e nas entrevistas feitas por Kroff para fazer nossa análise sobre projeto, processo e
resultados da urbanização nesta favela.
A segunda favela – Parque Fernanda I – na cidade de São Paulo, foi objeto de projeto de-
senvolvido pelo Consórcio GTA/GCA259 dentro das diretrizes do Programa PAT-PROSANEAR,
nos anos 2000, e com obras depois implementadas com recursos do PAC/PPI, finalizadas
nos anos 2010. Em busca de casos de referência para esta pesquisa na cidade de São Paulo,
em 2017, esta favela nos foi sugerida pela administração pública local por ter sido uma obra
com todos os eventos previstos executados. Após visitas a várias favelas, Parque Fernanda I
se destacou pelos episódios vividos lá, que relataremos mais adiante, os quais possibilita-
ram uma boa leitura sobre qualidades e conflitos do processo de urbanização de favelas.
Por isso, decidimos torná-la um dos casos de referência de nossa pesquisa. Esta favela
não foi foco de pesquisas acadêmicas sobre urbanização de favelas e tampouco havia fon-
tes secundárias disponíveis sobre o projeto e a urbanização da favela. Todo o material de
projeto foi gentilmente disponibilizado pelo GTA, e relatórios técnicos de pós-ocupação
e apresentações sobre projeto e obra fornecidos por técnicos da SEHAB/SP. Foram tam-
bém feitas algumas entrevistas qualitativas e visita de campo complementando as fontes
157 secundárias fornecidas.
Finalmente, o terceiro território foi o Complexo de Favelas do Alemão, no Rio de Janeiro,
mais especificamente focando nossa pesquisa no enquadramento no Morro do Alemão, que

258. A Archi5 Arquitetos Associados Ltda. é um escritório de arquitetura carioca fundado em 1987 pelos arquitetos Alder
Catunda, Bruno Fernandes, Octávio Henrique Reis, Pedro da Luz Moreira e Roberto de Almeida Nascimento. Premiados
em diversos concursos, os arquitetos da Archi 5, com outros profissionais, formaram a equipe 103, uma das premiadas
no Concurso Favela Bairro com o contrato para a elaboração do projeto de urbanização da favela Parque Royal. Depois,
estes profissionais desenvolveram vários projetos urbanos em favelas no Rio de Janeiro e em outras cidades brasileiras.
259. O Consórcio GTA/GCA é formado pelo Grupo Técnico de Apoio (GTA) e pela empresa de engenharia GCA Consul-
tores Associados, ambos sediados na cidade de São Paulo. O GTA, ao qual pertence a arquiteta “G.” entrevistada por esta
pesquisa, foi fundado em 1993, com diversidade de atividades que vão “desde o trabalho voluntário, estabelecimento
de parcerias e assessoria a organizações populares, até a prestação de serviços, consultorias e parcerias com os setores
público e privado – tendo sempre como foco desenvolver estudos, projetos e serviços voltados à melhoria do ambiente
habitado e à população de baixa renda”. A GCA Consultores Associados era sua parceira dos projetos de consultoria de
saneamento e infraestrutura. Fonte http:/www.comunidadegta.org Acesso em 19 de fevereiro de 2020.
158

Figura 20
Mapa de localização de Parque Royal e
Morro do Alemão. Em amarelo, as favelas
do município do Rio de Janeiro.
Fonte elaboração própria.

Figura 21
Mapa de localização de Parque Fernanda.
Em amarelo, as favelas do município de
São Paulo.
Fonte elaboração própria.
abrange a Avenida Central e seu entorno próximo, e a terceira estação do sistema de tele-
férico – obra emblemática do Estado, como vimos no Capítulo 2. Este enquadramento tam-
bém é representativo de uma subdivisão de atuações que Prefeitura e Estado resolveram
implementar nas favelas do Complexo. Projeto e obras foram implementados e financia-
dos pelo PAC-UAP nos anos 2010. O projeto para o Complexo do Alemão foi implementado
pelo PAC-Favelas, programa do GERJ, e foi desenvolvido pela empresa Metrópolis Projetos
Urbanos (MPU)260, sediada no Rio de Janeiro. A respeito do projeto no âmbito do programa
municipal Morar Carioca do trecho dentro do enquadramento de nossa pesquisa, nos do-
cumentos que tivemos acesso não há menção sobre os arquitetos autores. Pesquisas atuais
consideram o PAC-Favelas no Complexo do Alemão uma prática malsucedida (bad practice)
em termos da atuação do poder público em favelas (SILVA, 2015; FERREIRA, 2017; PATRÍCIO,
2017), por isso nossa escolha como caso de referência desta pesquisa.

Tabela 14
Quadro comparativo de
dados das favelas analisadas
Fonte elaboração própria.

Programa
Local Início da Característica da
Estudo de Caso Área Dom. Hab. (data projeto- Tipo de Intervenção
(bairro/cidade) Ocupação favela
obra)
Plana, com áreas
Favela Bairro 1 Programa de alagadiças, expansão
Parque Royal * 8,18ha 701 2.805 Portuguesa/RJ 1973
(1994-1997) urbanização integral sobre o mar através de
palafitas
PAT-
Grande parte plana,
PROSANEAR Programa de
sujeita a riscos
Campo Início dos (2006-2008) Saneamento e
Parque Fernanda ** 7,44 ha 807 2.545 ambientais com
Lindo/SP anos 1970 Recuperação
Obra: PAC/PPI margens de córrego
Ambiental
(2008-2013) ocupadas
Em encosta, composto
por 12 favelas de
Estado:
Macro infraestrutura e médio porte com
Complexo 179,6 ha 17.996 59.764 PAC-Favelas
intervenções pontuais histórico e
(2008-2015)
características sócio-
159 Alemão espaciais distintas
Alemão/ RJ 1951
*** 54,59 ha
Em encosta e
(Recorte Prefeitura: Morar
4.138 14.413 Programa de consolidada, uma das
Morro da Carioca
urbanização integral primeiras ocupações
pesquisa: (2008-2015)
do Complexo
8,66ha)
FONTES: Dados área, dom. e população da favela:
* Parque Royal: área: IPP/1999. Fonte: SABREN. Dados dom. e população: Fonte: ARCHI5, 1995.
** Parque Fernanda I: Projeto PAT PROSANEAR/2006, fornecido por GTA.
*** Complexo e Morro do Alemão: Dados área: IPP/2010. Dados dom. e população: Censo IBGE 2010. Fonte: SABREN.
NOTAS: Escolhemos apresentar os dados oficiais cuja data é a mais próxima do início de cada projeto.

260. A empresa MPU é especializada em Projetos de Urbanização, Trabalho Social e Estudos Fundiários. Os sócios da em-
presa, os engenheiros Hamilton Casé e Pedro Aleixo Lustosa de Andrade, e o ex-sócio Jorge Mário Jáuregui, arquiteto e
então coordenador do projeto do Complexo do Alemão, possuem grande experiência em urbanização de favelas e estão
neste campo de projeto praticamente desde os anos 1990, com o início do Programa Favela Bairro. Jorge Mário, após sair
da MPU, fundou o Atelier Metropolitano, também sediado no Rio de Janeiro. Estes mesmos profissionais estiveram envol-
vidos como o Plano de Desenvolvimento Urbanístico do Complexo Morro do Alemão (PDUCMA) e como o Projeto Básico,
apresentado pelo GERJ para o financiamento das obras do PAC-UAP no Complexo do Alemão, como veremos a seguir.
Os dados apresentados na Tabela 14 são os mais próximos à data de cada projeto, pois
nossa intenção foi a de mostrar o território na época em que cada projeto de urbanização foi
contratado. As três favelas estudadas possuem características e dimensões diferentes. Parque
Royal e Parque Fernanda são mais similares em termos de área, de população, de morfologia
e quanto aos problemas ambientais, muito embora a primeira seja uma favela isolada e com
possibilidades de expansão horizontal e a segunda tenha seu território todo ocupado e inse-
rido na malha urbana em continuidade com o entorno imediato. Já o Complexo do Alemão
é um conjunto de 12 favelas, com aproximadamente 60.000 moradores, muito diferente das
outras duas se analisado em toda a sua amplitude. Trataremos da proposta de intervenção de
urbanização do PAC-Favelas como um todo no Complexo, mas optamos pela escolha de uma
aproximação ao Morro do Alemão, através de um enquadramento com área similar às outras
duas favelas. Neste enquadramento, temos duas instâncias governamentais que subdividiram
o Morro do Alemão para efetivarem obras simultâneas visando a urbanização. É justamente
a partir deste recorte que analisaremos o processo de implementação do projeto e dos
resultados.
Todas as três favelas são consideradas, pelo próprio agente público que implementou
as obras de urbanização, como urbanizadas. É importante destacar que momentos de urba-
nização foram diferentes entre as três favelas analisadas, visto que são representativas de
programas que atuaram sequencialmente. Este fato gera consolidações diferenciadas que,
certamente, influenciam na análise dos resultados. No entanto, o foco de nossa pesquisa
não está apenas nos resultados, mas no processo de urbanização de favelas ao longo destes
30 anos, observando conflitos, limites e desafios que precisam ser enfrentados e ajustados.
Por isso, temporalidades e consolidações diferentes são utilizadas nesta pesquisa como ins-
trumento para uma análise mais completa dos processos, permitindo verificar o que foi aos
poucos sendo ajustado nos programas públicos mais atuais ou se ainda continuamos sem o
160 devido enfrentamento. Lembramos que temos como objetivo central trazer subsídios para
revisões destes e de futuros programas públicos e da própria prática do projeto em favelas
que se insere no processo.
Tentaremos mostrar, a partir deste espectro diverso de territórios, projetos e programas,
questões e conflitos do processo de urbanização de favelas que acontecem e que não estão
previstos, escritos ou institucionalizados nos procedimentos nem no escopo de projetos de
nenhum destes programas e projetos. Pretendemos compreender como as questões e con-
flitos elencados nestes três casos de referência influenciam nos resultados. Toda esta análise
visa oferecer bases para subsidiar ajustes nos programas futuros de urbanização de favelas.
Mais do que um aprofundamento sobre o projeto em si, esta pesquisa teve como base a
análise dos processos de elaboração dos projetos, de sua implementação e do que aconte-
ceu com estes territórios anos depois de sua urbanização. As apropriações descritas neste
Capítulo são evidenciadas dentro da dinâmica de uso do espaço público (GROSBAUM, 2012),
num método dedutivo de sinais, traços e pistas (GINZBURG, 1980), que podem ser percebidos
visualmente e que poderiam ser quantificados. No entanto, o que nos importa aqui não é o
fator numérico, mas as conotações de relações sociais que interferem no espaço físico e na
dinâmica real de transformação característica das favelas, que tanto apresentam aspectos
positivos (BERENSTEIN, 2001; SILVA, 2014; PIZARRO, 2014) quanto problemáticos em termos
de controle urbano e expansão contínua do território. Nos utilizamos da grade de temas de
projeto (INFRAESTRUTURA URBANA: Sistema Viário, Espaços Coletivos, Saneamento Básico;
MEIO AMBIENTE: Mitigação de Riscos, Recuperação Ambiental; EDIFICAÇÕES: Equipamen-
tos Sociais, Produção de UHs), que foi destacada no Capítulo anterior para organizar a aná-
lise das favelas estudadas (Tabela 13).
Nosso objetivo foi evidenciar o que, como e quem influenciou nos resultados das obras cons-
truídas, destacando a riqueza do processo em cada local. Os projetos analisados são instrumento
para relatar pequenas histórias e fazer emergir acertos e descompassos da política de urbaniza-
ção de favelas, visando enfrentar, reforçar e ajustar sua abordagem para atingir mais eficiência.
Ao final deste Capítulo, apresentamos nossas reflexões sobre os processos de urbanização
das três favelas estudadas nos utilizando das categorias Investimentos, Escopo, Contratações,
Desenvolvimento dos Projetos e Papel do Arquiteto, elencadas no Capítulo 2. Com isso, esta­
belecemos um quadro comparativo de intervenções públicas em favelas de 1994 a 2015,
discutindo como estas categorias impactaram no modo de fazer os projetos e em cada um
dos programas de urbanização no qual estes estavam inseridos.

3.1.
Parque Royal – Favela Bairro 1

A favela Parque Royal fica localizada na Ilha do Governador, no bairro da Portuguesa, Zona
161 Norte do Rio de Janeiro, no limite com o bairro do Galeão. Seu acesso se dá pela Estrada
Governador Chagas Freitas, trecho da antiga Estrada Tubiacanga, que mudou de nome em
1995. Esta via ganhou importância com a implantação nos anos 1990 da Avenida Braz Crispino,
que cruza o terreno do Aeroporto Internacional do Galeão para acesso ao norte da ilha,
construída como alternativa à Estrada do Galeão (Fig. 22).
Parque Royal surgiu da ocupação de terreno público à beira-mar vigiado pela Marinha261,
junto à segunda pista de pousos e decolagens do aeroporto. Seu processo de ocupação foi

261. Segundo Magalhães (2010, p. 275), “praticamente toda a área atual do Parque Royal se define, nos termos da legislação
relativa ao patrimônio imobiliário da União Federal, como terreno acrescido de marinha, isto é, terrenos formados, artificial-
mente, para dentro do mar, a partir da linha de preamar média, anteriormente existente, que, para efeitos legais, é aquela do
ano de 1831.[...] O senso comum normalmente credita a propriedade ou a administração de tais terrenos à Marinha de Guerra,
parte integrante das forças armadas nacionais, o que na verdade não procede, pertencendo tais bens à União, por disposição da
Constituição da República (art. 20, inciso VII), não estando tais imóveis nem sequer afetados ao uso de quaisquer das três armas,
sendo administrados pelo Ministério da Fazenda, por intermédio das Gerências Regionais do Patrimônio da União (GRPU).”
contemporâneo à expansão da ocupação da Ilha do Governador nos anos 1970, cujos veto-
res foram a ampliação do aeroporto internacional262 e a construção de loteamentos para as
classes mais abastadas, nos quais as populações de baixa renda não estavam incluídas.

262. O Terminal 1 foi inaugurado em 1977.

162

Figura 22
Localização de Parque Royal
na Ilha do Governador.
Fonte elaboração própria. Limite
da favela/SABREN, 2018.

Figura 23
Área de Parque Royal em
1975, ainda sem ocupação
aparente. Fonte intervenção
da autora sobre ortofoto de 1975/
KROFF, 2017, p.124.
Segundo moradores, a primeira ocupante foi Dona Maria dos Santos, cujo barraco foi
construído em 1973 no manguezal e encoberto pelo matagal. Sua cantina era frequentada
por operários das construções que estavam em curso na região. A área da futura Parque
Royal, em 1975, aparece sem ocupação na ortofoto da Prefeitura (Fig. 23), mas havia ali um
dos campos de futebol e o caminho que originou a Rua da Praia que marcaram a ocupação
da área. A Avenida Braz Crispino e a segunda pista do aeroporto ainda não existiam, apenas
o caminho onde depois foi formalizada a Estrada Governador Chagas Freitas.
A ocupação, que tinha consentimento verbal dos militares, focados mais na vigilância
da área do aeroporto do que nesta outra onde surgiria a favela, se deu através da venda de
barracos e da permissão para construir dada por filhos da pioneira (MAGALHÃES, 2010, p.
269). Ocorreram sucessivos aterros para criar solo sobre o manguezal, praia e sobre os dois
cursos d’água junto à favela. A ocupação de Parque Royal se intensificou entre os anos 1980
e 1990, provavelmente a partir de um importante aterro com terra proveniente da cons-
trução da segunda pista do aeroporto (Archi5, 1995). Nos anos 1990, com o solo já bastante
ocupado, a prática passou a ser a construção de palafitas sobre o mar.

163

Figura 24
Evolução da ocupação de
Parque Royal, de 1981 a 1994.
Fonte ARCHI5, 1995.
O antigo nome, Maruim, alusão ao mosquito que existia em profusão na área, foi subs-
tituído por Parque Royal, cujo nome tem origem no Royal Futebol Clube, que administrava
o grande campo de futebol frequentado por moradores da Ilha do Governador, localizado
nas margens da Estrada Governador Chagas Freitas e em área central à favela. A favela é
bem localizada, com oportunidade de atividades e trabalho na região e próxima a um impor-
tante eixo de transportes que a conecta ao restante da cidade, o que proporcionou a rápida
expansão do assentamento.

164

Figura 25
Foto aérea de Parque Royal, antes da urbanização.
Fonte MAGALHÃES (2010, p. 273). Imagem fornecida pela
Archi5 ao pesquisador.

Parque Royal apresentava várias oportunidades para o projeto de urbanização e regula-


rização, quando foi objeto do Favela Bairro. A qualidade paisagística do sítio, com vista sobre
a Baía de Guanabara e a Serra dos Órgãos, poderia ser potencializada pelo projeto urbano.
A favela ainda possuía duas áreas livres de edificação de grandes dimensões – dois cam-
pos de futebol. Estes fatos representavam oportunidades para a reestruturação do tecido
urbano e dos espaços coletivos do assentamento. Além disso, “Parque Royal tinha a pro-
priedade do solo definida, (federal), e assim era mais fácil regularizar.” (MAIA apud KROFF,
2017, p. 294)263. Como um dos objetivos da Prefeitura era a regularização fundiária após a
urbanização, este foi um dos motivos pelo qual, segundo o prefeito da época, Cesar Maia,
Parque Royal foi uma das 16 favelas selecionadas para receber os primeiros investimentos do
Favela Bairro. Ao mesmo tempo, parte da favela apresentava problemas devido à sua condi-
ção ambiental de área de mangue, sujeita a alagamentos e com cota muito próxima ao nível
do mar, e ao seu processo de ocupação em solo frágil, com sucessivos aterros com material
impróprio como despejos de lixo, resíduos e entulho. Em Parque Royal, havia áreas cuja cota
de nível das soleiras era mais baixa do que a cota de fundo do tronco da rede principal que
passava na Estrada Tubiacanga, o que colocava em xeque a urbanização destes trechos: ou
era a remoção ou partia-se para soluções mais custosas de esgotamento sanitário. Ademais,
ainda havia as palafitas, que já eram numerosas em 1994. Estes problemas e oportunidades
foram as bases de direcionamento para o projeto urbano.

3.1.1. projeto (ou a ideia)


A equipe responsável pelo projeto foi uma das vencedoras do Concurso Favela Bairro, con-
tratada em 1994 pela Prefeitura através do escritório Archi5 para a elaboração do projeto de
urbanização de Parque Royal, no Favela Bairro 1. Observamos que todos os Temas de Projeto
elencados no Capítulo 2 – Sistema Viário, Espaços Coletivos, Saneamento Básico, Mitigação
de Riscos, Recuperação Ambiental, Equipamentos Sociais, Produção de UHs – foram englo-
bados pelo projeto e serão abordados em nossa análise a seguir.
As principais premissas do projeto foram a valorização das preexistências, a rea-
propriação da paisagem e a recuperação ambiental. Para tal, foram propostas soluções
tendo o sistema viário como eixo articulador e integrador do território, novos equipa-
mentos e espaços coletivos, com áreas esportivas, comércio, a canalização dos canais
e a nova via beira-mar para resolver as questões ambientais e controlar a expansão da
165 favela sobre as águas264.
O sistema viário proposto aproveitava as vias existentes da favela (ver Fig. 26), que par-
tiam da antiga Estrada Tubiacanga em direção ao mar e eram interrompidas por construções
que faziam fundos com a orla. Com pequenas remoções, estas se conectariam com o novo
cinturão viário e ciclovia implantados às margens dos canais e na nova frente marítima, nos
setores mais recentes e mais pobres do assentamento.
O objetivo do projeto era que todo o assentamento estivesse interligado através de vias
carroçáveis e que o novo cinturão viário funcionasse como limite tratado urbanisticamente,
muito bem demarcado, para evitar nova expansão sobre as águas.

263. Entrevista concedida pelo ex-prefeito Cesar Maia à KROFF em 9 de fevereiro de 2017 (KROFF, 2017, p. 294).
264. A equipe de projeto da Archi5, além das pesquisas de campo e com a população, também levou em consideração
o que já havia sido proposto em um plano de urbanização desenvolvido por alunos da FAU/UFRJ com a participação de
moradores de Parque Royal, em 1992.
166

Figura 26
Sistema viário em Parque Royal, antes da urbaniza-
ção pelo Favela Bairro.
Fonte Archi5, 1995.
Figura 27
Vista aérea de Parque Royal antes da urbanização.
Em primeiro plano, as palafitas.
Fonte Divulgação SMH / Fábio Costa, 1994.

Figura 28
Vista aérea de Parque Royal, logo após a urbanização.
As palafitas foram removidas, dando lugar a via beira-
-mar e ciclovia.Fonte Divulgação SMH / Fábio Costa, 1997.

167
168

Figura 29
Imagem do plano de intervenção do projeto de urbanização de
Parque Royal da Archi5. Fonte intervenção da autora sobre imagem em
CONDE, MAGALHÃES, 2004, p.98. (A imagem original foi apenas rotaciona
para colocá-la na mesma orientação que as outras imagens de Parque Royal
apresentadas nesta pesquisa, sem qualquer alteração de seu conteúdo.)
Este cinturão viário ao mesmo tempo seria como limite urbano e nova frente marítima,
com a ressignificação da paisagem, antes tratada como fundos e como território com poten-
cial de ser ocupado. Além disso, o investimento nesta solução viária foi ainda mais potencializa-
do ao servir também como estratégia para resolver problemas de saneamento básico. Grande
parte do novo sistema de esgotamento sanitário implantado funcionaria por tombamento265,
mas era necessário ainda resolver o trecho de cota mais baixa. Por isso, o sistema deste trecho
foi direcionado para um tanque de armazenamento de esgoto, no ponto mais baixo junto ao
mar (no. 5 da figura 29, na página anterior), de onde seria bombeado através de elevatória para
viabilizar tombamento até o final da rede principal. Esta solução, tecnicamente mais cara por
exigir equipamento mecânico para bombeamento e manutenção constante, foi adotada em
decisão conjunta entre arquitetos e técnicos do poder público266 como alternativa à remoção
e, assim, viabilizar a urbanização do trecho que estaria “afogado” em relação ao tronco da rede
principal de esgotamento sanitário na antiga Estrada Tubiacanga.
Os espaços coletivos, elementos preconizados pelo Programa Favela Bairro para inte-
gração entre favela e bairro, foram propostos no projeto prevendo o aproveitamento dos
grandes vazios internos existentes em Parque Royal. Nestes novos espaços, foram proje-
tados equipamentos sociais que atendessem a demanda da área, de modo a potencializar
usos mais abrangentes para a coletividade; e os edifícios de UHs para reassentamento da
população que residia em palafitas, as quais foram eliminadas na urbanização da favela. Esta
associação de diversos Temas de Projeto em uma mesma solução urbana é um diferencial
do projeto urbano em favelas a partir do Favela Bairro, que tem em Parque Royal um bom
exemplo. O que é interessante nesta favela é que os vazios existentes eram os campos de fu-
tebol na franja da favela com o entorno, beirando a antiga Estada Tubiacanga (atual Estrada
Gov. Chagas Freitas), e na Rua Jornalista Alaíde Pires, uma das mais antigas de Parque Royal.
Coincidentemente, isto vinha exatamente fortalecer as premissas do Programa: a área de
169 toque entre a favela e o entorno habitado tem grande potencial de integração, sobretudo
quando tratados de modo a inserir atividades para a coletividade. Era também nesta franja
onde já havia a concentração de comércio da favela com atividades e serviços variados e
com funcionamento inclusive durante os fins de semana. Por si só, a área comercial da favela
já era uma centralidade para a região, que servia também aos moradores dos conjuntos ha-
bitacionais do entorno. O projeto se utilizou das grandes áreas vazias de edificação e desta
franja da favela, potencializando seu uso. Foram implantados: centro profissionalizante, o
CRAS Darcy Ribeiro, centro de saúde, creche, além dos edifícios UHs para abrigar os mo-
radores reassentados, com térreo comercial, fortalecendo o potencial comercial da área.

265. Sistema convencional e mais barato, por não exigir equipamentos mecânicos e maior manutenção.
266. Informação obtida com “P.”, arquiteto coordenador da equipe de projeto, em entrevista concedida a KROFF (2017,
p. 263-272), em 17 de fevereiro de 2016.
3.1.2. Como se deu o processo
O processo de projeto não seguiu exatamente conforme as orientações do escopo de projetos.
Entre a primeira etapa, Estudo Preliminar, e a segunda, o Plano de Intervenção, algumas
mudanças ocorreram ao longo da elaboração do projeto. Procedimentos foram adequados
às características da área e a demandas que iam surgindo. A metodologia foi mais livre, sem
etapismo, como se refere o arquiteto coordenador do projeto (informação verbal, p. 271)267,
não seguindo etapas de projeto rígidas que quase até chegaram a ser invertidas:

As coisas aconteceram de forma antimetodológicas, vamos dizer assim. O “Q.”


(fiscal da SMH de projeto) me pegou um dia e disse: “O prefeito vai lá na comuni-
dade na segunda-feira. Vocês têm de hoje até segunda-feira – e isso deveria ser
uma quinta-feira -, e vocês tem que bolar um projeto, que é um projeto para pro-
vocar a comunidade, você está me entendendo?”. (informação verbal, p. 270)268.

Este é um exemplo da interferência do tempo político acelerando o processo para viabilizar


ações objetivando ganhos políticos e eleitorais, que não existe só em obras, mas também
no processo de projeto. De fato, esta interferência acontece constantemente em projetos
públicos. Em Parque Royal, o Prefeito iria visitar a favela e precisava de material para mos-
trar que algo estava realmente acontecendo. Neste caso, a equipe do projeto tirou proveito,
considerando esta uma oportunidade para apresentar um desenho que provocasse reações
dos moradores. Esta interferência no tempo de projeto foi encarada positivamente pela
equipe de arquitetos. No entanto, uma medida de precaução precisava ser tomada para
evitar problemas de comunicação com beneficiários e com a contratante: era importante
deixar claro para os moradores e para o Prefeito que o que estava elencado no desenho
apresentado não era definitivo, como expressa o coordenador do projeto:
170
Então, essa subversão de metodologia eu achei muito interessante, e é o que deu
essa vitalidade na participação. Nós, volta e meia, estávamos mesmo sabendo que
aquele não era o projeto final, vamos dizer assim, aquilo era um projeto parcial,
nós estávamos apresentando aquilo como uma provocação, e não tínhamos tanto
compromisso com aquela forma que não tínhamos estudado em profundidade.
Mas, nós tínhamos feito um desenho que tinha sentido, e para provocar as pessoas.
(informação verbal, p. 271) 269

267. Informação obtida com “P.”, arquiteto coordenador da equipe de projeto, em entrevista concedida a KROFF (2017,
p. 263-272), em 17 de fevereiro de 2016.
268. Idem.
269. Idem
Esta subversão de etapas iniciais do projeto, em Parque Royal funcionou como oportu-
nidade para ampliar a participação dos moradores e da contratante no projeto. Observamos
que este poderia ser um procedimento a ser recomendado entre Diagnóstico e Plano de In-
tervenção nos escopos de projeto, estando claro que deveria ser aplicado apenas nos casos
onde fosse possível, e desde que esteja muito bem divulgado e transparente que o desenho
apresentado não é um projeto final, mas está aberto ao debate e a subsequentes modificações.
A ideia de integração física e social das favelas (ver item 1.2.2.4), preconizada pelo Pro-
grama e que deve ser materializada no projeto, pressupõe que os conflitos urbanísticos e
sociais existiriam apenas entre a favela e o restante da cidade. No entanto, durante a elabo-
ração do projeto, a ideia de promover a integração viária em toda a favela logo fez emergir
conflitos internos preexistentes em Parque Royal: os setores menos pobres não queriam
maior comunicação viária com os trechos mais pobres da favela – as palafitas e junto à Rua
da Praia, onde a presença do tráfico de drogas era mais atuante. Justamente no setor da
Rua da Praia foi solicitada a colocação de quebra-molas na via, o que não foi atendido pelo
projeto nem pela obra.

Houve um embate com o projeto que era muito claro na região do tráfico:
a rua da Praia precisa ter quebra-molas. Aí eu perguntei: “Mas porque precisa
ter quebra-molas? Não é uma rua de alta velocidade, ninguém vai entrar corren-
do aqui não”. E os traficantes: “a gente quer quebra-molas”. O tráfico pediu os
quebra-molas. Era claramente uma coisa para regular a entrada das patrulhas
da polícia. Só na rua da Praia, porque era perto da central da boca de fumo.
(informação verbal, p. 271)270

Como discutimos no Capítulo 1, a ideia de que numa favela há uma voz uníssona, um
171 grupo homogêneo e coeso, e com apenas objetivos comuns, é um dos equívocos das me-
todologias de participação. Em Parque Royal ficou evidente que os conflitos eram também
internos, não só por diferenças socioeconômicas, mas devido à presença de grupos que
controlam o território. Ao mesmo tempo que a metodologia de projeto em Parque Royal
permitiu participação dos moradores num projeto em andamento, observamos que gru-
pos que controlavam este território tentaram se aproveitar dos conflitos internos e de tal
metodologia para exigir do poder público intervenções para benefício próprio. É preciso
distinguir conflitos advindos de diferenças socioeconômicas da sagacidade das forças que
controlam a favela, cujas tentativas de burlar um processo democrático subvertem a lógica
da favela e deixam seus moradores vulneráveis. Destacamos que o enfrentamento em

270. Informação obtida com “P.”, arquiteto coordenador da equipe de projeto, em entrevista concedida a KROFF (2017,
p. 263-272), em 17 de fevereiro de 2016.
projeto das demandas de grupos que controlavam o território só pôde ser firmado com a
parceria do poder público.
A observação das diferenças socioeconômicas e do processo de ocupação da favela na
elaboração do projeto foi importante para reconhecer setores que tinham características,
demandas e interesses particulares, os quais não necessariamente eram comuns ao restante
da favela. Uma estratégia de atuação foi combinada entre a SMH e os arquitetos responsá-
veis pelo projeto, para viabilizar escuta e discussões sobre o projeto junto aos moradores
e minimizar conflitos internos antes da Assembleia geral, única prevista em contrato, cujo
objetivo era a aprovação do Plano de Intervenção. Relata o coordenador do projeto que
esta estratégia foi sugerida pelo fiscal da SMH, experiente no Programa Mutirão em favelas
antes do Favela Bairro 1:

Eu e o “Q.” 271
, nós combinamos uma estratégia, que foi muito interessante.
Ele disse assim: “ ‘P.’, a favela não é homogênea, aqui tem pobre, tem rico, tem
gente que tem grana, tem gente que tem preconceito, e tal. Então, ao invés da
gente mostrar o projeto em uma assembleia geral para todo mundo, nós vamos
fazer quatro assembleias rápidas. Eu vou fazer uma assembleia com o pessoal
da palafita, que era o pessoal mais pobre; eu vou fazer uma assembleia com o
pessoal aqui do campo central, que é o pessoal mais rico da comunidade; eu
vou fazer uma outra assembleia com o pessoal do outro campo menorzinho; e
vou fazer outra com o pessoal da rua que beirava o canal, que dá para a área
de reserva do aeroporto.” Então, nós fizemos essas quatro assembleias, e fomos
fazendo pequenas mudanças no projeto em função disso e daquilo, em função
daquelas demandas, e já anunciando que haveria uma assembleia geral, que
aprovaria o plano geral, lá no final, para todos. Então, isso serviu como um pro-
172 cesso de mobilização, e um pouco um processo para a gente entender que cada
uma dessas partes da comunidade. Elas tinham interesses particulares, enten-
deu, e que era muitas vezes, de interesses, vamos dizer assim, escondidos e tal.”
(informação verbal, p. 270)272.

Interessante observar que esta estratégia, adotada por razões técnicas para administrar
conflitos socioeconômicos existentes na favela, não era orientação do escopo de projetos
e foi pensada ao longo do processo, com bases na experiência prévia de “Q.” em obras em
favelas. Embora Magalhães (2010, p. 298) concorde que a subdivisão adotada pelo projeto

271. Foram alterados os nomes de “Q.” e “P.” nesta transcrição, mantendo o anonimato por se tratarem também de
entrevistados em nossa pesquisa.
272. Informação obtida na entrevista do arquiteto coordenador da equipe de projeto “P.”, cedida à KROFF em 17 de
fevereiro de 2016, cuja transcrição encontra-se publicada em KROFF (2017, p. 263-272)
“não [...] parece possuir grandes discrepâncias, em face das relações internas estabelecidas
entre os moradores e da regionalização”, o autor põe em questão esta metodologia, que
pode levar o projeto “a se afastar do quadro objetivo da sociabilidade desenvolvida na favela,
onde (este) será executado”. Em outras palavras, este é um instrumento que merece cuida-
do, pois pode induzir a um esvaziamento do debate político sobre o projeto forçando que as
decisões privilegiem apenas questões técnicas e operacionais.

173

Figura 30
Subdivisão de renda (esq.) e de setores
(dir.) para as assembleias locais.
Fonte ARCHI5, 1995 (esq.) e elaboração própria a
partir de relatos sobre a favela e o projeto (dir).

É fato que os processos de ocupação não são os mesmos em todas as áreas de uma favela.
Geralmente, o território é ocupado por partes e em tempos diferentes, gerando muitas
vezes conflitos e distinções internas entre os moradores mais antigos e os recém-chegados.
A metodologia de subdivisão da favela em setores, que geralmente é baseada em histórico
de ocupação construído a partir de relatos dos próprios moradores, é um modus operandi nos
projetos em favelas. Para tal, é fundamental o reconhecimento do território e das dinâmicas
sociais existentes na favela no início do projeto, para uma setorização correta que ajude a
trabalhar os problemas e demandas na construção do projeto com os moradores de cada
localidade. Esta metodologia, no entanto, não deve invalidar a discussão do todo nas assem-
bleias gerais, fórum ideal para o debate político sobre o projeto, e onde os conflitos internos
geralmente aparecem. O projeto não visa resolvê-los, mas construir um consenso. Conflitos
sociais existem na favela, e em toda a cidade, e devem ser levados em consideração na cons-
trução de um projeto. O equívoco está em pressupor que há uma homogeneidade na favela
e que o consenso entre os moradores estaria posto apenas porque melhorias seriam imple-
mentadas pelo poder público, ideias que pontuamos no Capítulo 1 não serem corretas (VALLA-
DARES, 2005; MACHADO DA SILVA, 2011; BLASI CUNHA, 2014) e confirmadas neste processo
de projeto em Parque Royal.
O esvaziamento político foi, na verdade, gerado de outro modo e pelo próprio Estado,
através de uma situação sui generis durante a urbanização da favela, que resultou na desarti-
culação da Associação de Moradores local, cuja

diretoria não possuía a figura do presidente, mas era exercida, de maneira


colegiada, por um conselho administrativo, composto de vários diretores, que
tomavam coletivamente as decisões, o que induzia à descentralização do poder
e à formação de diversas lideranças comunitárias. [...] Segundo os depoimentos
colhidos, tal experiência se desfez por força de exigências da própria prefeitura,
uma vez que o Prefeito César Maia teria, informalmente, exigido a individuali-
zação da representação comunitária, na figura de um presidente, no processo
de tratativas com vistas à implementação do Programa Favela-Bairro no local.
(MAGALHÃES, 2010, p. 287).

174 Magalhães (2010) sugere que, ao exigir um único interlocutor, o Estado objetiva, na verdade,
uma posição de controle sobre toda a favela ao esvaziar espaços de participação política em Parque
Royal, transformando a Associação em uma instituição menos democrática e centralizada.
O que aconteceu em Parque Royal foi o enfraquecimento das lideranças e “fez da figura do pre-
sidente uma continuidade do poder do Estado” (MAGALHÃES, 2010, p. 288-289), numa inversão
às ideias preconizadas pelo Favela Bairro. Entendemos que este caso, que se deu a nível político
entre Prefeito e Associação de Moradores, não ocorreu no âmbito do projeto, mas certamente
influenciou nos resultados ao afastar certas lideranças de decisões políticas que nem sempre
acontecem no campo e, sobretudo, desarticular uma instituição local de tradição participativa.
A delimitação da área do projeto sofreu mudanças também não previstas no escopo,
tendo sido ampliada além da favela durante o projeto, devido a uma demanda local. O campo
de futebol do Royal Futebol Clube, que não teria seu traçado alterado no primeiro desenho
do projeto, passou a ser encarado como área com potencial para reestruturar o território a
partir de demanda das mulheres de Parque Royal:
Nós começamos o projeto naquela praça central, a gente imaginava que ali ia
continuar o campo de futebol, e fizemos um desenho inicial com alambrado,
e com uma faixa de calçada no entorno do alambrado. Foi uma demanda das
mulheres da comunidade. [...] Que demandaram que aquilo não fosse mais um
campo de futebol, que aquilo fosse uma praça. E isso foi uma mudança durante
a fase de projeto superpositiva, né? Elas conseguiram forçar essa mudança e o
projeto andou para frente. (informação verbal, p. 271)273.

Mas antes de acatar a demanda das mulheres, era preciso negociar com o “dono” da
área antes. Curiosamente, em Parque Royal havia dois campos localizados na franja, na
área valorizada da favela. O campo do antigo Royal Futebol Clube se mantinha nas mesmas
dimensões, ao contrário do outro campo, que era paulatinamente reduzido por novas edifi-
cações. Como esta área estaria sendo preservada, se não fosse pelo uso intenso? O que se
escondia por trás da ideia de Brasil: país do futebol foi sendo percebido ao longo do projeto:
este campo de futebol na verdade tinha um novo ‘dono’ – o traficante do Morro do Dendê
(MAGALHÃES, 2010, p. 303). A dinâmica de privatização dos espaços coletivos ocorre nas fa-
velas, não só em Parque Royal, e geralmente é controlada por agentes poderosos e ocultos.
Por isso,

Tinha que negociar com o ‘dono do morro’ para poder liberar o campo de futebol.
A gente negociava junto com o bandido, a associação de moradores... era uma
situação complicada. Mas você negociava e tudo saía direitinho. Era palavra, né?
E se a Prefeitura não cumprisse com aquela palavra, quem estava ferrado era
o fiscal da obra, o responsável pelo projeto.... mas conseguimos fazer a obra lá.
(informação verbal) 274
175
Infelizmente, como apontamos no Capítulo 1, negociações ocultas são necessárias para
que as obras possam acontecer. Tais negociações são feitas por quem está à frente das
obras, como técnicos da Prefeitura, como no caso de Parque Royal, que ficam vulneráveis
e expostos a situações constrangedoras, pois precisam construir acordos desta ordem en-
quanto o poder público defende na esfera pública a lógica regulatória do Estado. Neste
caso, a pressão das moradoras fez com que a definição chegasse à instância superior: para
viabilizar a transformação do campo de futebol em praça, em contrapartida seria necessária
a construção de um outro na localidade. E assim surgiu o Centro Esportivo Parque Royal
(Fig. 31), em área vizinha à favela, que foi

273. Informação obtida com “P.”, arquiteto coordenador da equipe de projeto, em entrevista concedida a KROFF (2017,
p. 263-272), em 17 de fevereiro de 2016.
274. Entrevista fornecida por “Q”. a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
deixado sob a administração da Associação de Moradores, na qual a Diretoria
de Esportes dispõe de uma histórica importância, uma vez que executa diversos
projetos que recebem recursos do Estado, o que atribui visibilidade política ao
seu titular. Não se sabe, no entanto, se o citado traficante teria mantido o con-
trole, via associação, do equipamento construído pela prefeitura. (MAGALHÃES,
2010, p. 303).

Destacamos que esta solução só se tornou possível através da articulação e interfe-


rência do então Secretário Sérgio Magalhães junto a outros setores da Prefeitura, que
conseguiu mais investimentos para a área. Reconhecemos nesta atitude a presença do
Estado, ao definir a incorporação de uma demanda local, mesmo que a princípio esti-
vesse fora da capacidade do projeto contratado. O Estado poderia limitar sua atuação à
reforma do campo, o que o projeto e o Programa conseguiriam resolver facilmente, mas
esta solução não seria reconhecida pelos moradores, o que abriria, sem dúvida, espaço
para apropriações indevidas. Esta presença do Estado se deu no processo de projeto, e
seria fundamental ter continuidade e como atividade permanente no território, de modo
a assumir o Programa não apenas como obra física, mas como um novo compromisso de
atuação do Estado em favelas. O técnico “Q.”, com mais de 30 anos na Prefeitura, co-
menta como o conhecimento técnico de um secretário é importante para o bom desen-
volvimento dos trabalhos e a participação da equipe de técnicos nas discussões internas.
“Sergio Magalhães é técnico, é um profissional, é arquiteto, né? Uma pessoa que estava o
tempo todo pensando e botando em prática aquilo que ele estava pensando. Tudo tinha
participação nossa! Ele tinha as ideias e daí a gente discutia.” Com os outros Secretários
não se dava esse processo, pois, como diz “Q.”: “Também não tinha nem o que discutir,
não tinha conhecimento. O conhecimento era outro: político.” (informação verbal)275. A so-
176 lução adotada atendeu à demanda das moradoras por área de lazer para diferentes públicos
que não só o masculino, e caracterizou uma expansão da urbanização da favela para além
do território previsto, criando um centro com equipamentos esportivos para Parque Royal
integrado ao Corredor Esportivo do Moneró (Fig.31), que virou área de lazer para os mo-
radores de Parque Royal e da região (KROFF, 2017).
Entre o projeto e a obra, ocorreu um processo de expansão das moradias em Parque
Royal, conforme relata o arquiteto: “Se não me engano, saímos de 700 famílias para 1100
famílias, durante ainda o processo da obra. A gente sentiu que principalmente na parte
mais pobre da favela, que eram as palafitas, houve um aumento no número das famílias.”
(informação verbal)276 .

275. Entrevista fornecida por “Q.”, arquiteto e técnico da PCRJ, a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
276. Informação obtida na entrevista do arquiteto coordenador da equipe de projeto “P.”, cedida à KROFF em 17 de
fevereiro de 2016, cuja transcrição encontra-se publicada em KROFF (2017, p. 263-272)
Figura 31
Ao centro da imagem, o Corredor
Esportivo do Moneró. Fonte intervenção
da autora sobre ortofoto/IPP/SABREN, 2004.

A solução adotada para incluir a nova população foi a alteração do projeto, que estava
sendo adequado pelos autores durante a obra. A mudança foi no traçado do cinturão viário,
que avançou sobre o mar para viabilizar novos lotes para abrigar os novos moradores. Estes
não receberam nova UH, pois não havia mais verba para outras edificações não previstas no
projeto, mas foram fornecidos kits-construção para que os próprios moradores não cadas-
trados que chegaram entre o projeto e a obra construíssem suas casas nos lotes urbanizados.
177
Então, você vê o processo de urbanização de favelas, como ele lida muitas vezes com
uma dinâmica muito volátil, né? Muito assim dinâmica mesmo, de pressão de gente,
que eu não tenho a menor dúvida, que ganha dinheiro com isso. Tava especulando
com palafita. [...] Então, você precisa ter durante a fase de projeto um monitora-
mento muito forte porque se não esses processos podem degringolar (o projeto) e se
perder. (Informação verbal)277.

No caso de Parque Royal, esta solução foi possível de ser adotada na obra, visto que o
projeto tinha a possibilidade de gerar solo criado com a retificação do canal e sobre a Baía da

277. Informação obtida com “P.”, arquiteto coordenador da equipe de projeto, em entrevista concedida a KROFF (2017,
p. 263-272), em 17 de fevereiro de 2016.
Guanabara, e que a equipe autora do projeto original estava locada em campo adequan-
do os projetos. Mas é fato que investimentos públicos geram impacto no mercado imo-
biliário e a urbanização incentivou o mercado informal na favela (ABRAMO, 1998). Este
acréscimo de moradias certamente tem fundo na especulação imobiliária. É importante
destacar que este processo – visto o vulto da ocupação e o curto intervalo de menos
de um ano entre projeto e obra em que este ocorreu – não tem sua origem na lógica da
favela, com suas micro expansões individuais, mas em agentes poderosos que se bene-
ficiam explorando o território das favelas, valorizadas pela promessa de investimentos
públicos nestas áreas.
O cadastro dos moradores durante o projeto visa minimamente controlar esta especu-
lação e a chegada de novos moradores, quando o programa se inicia na favela. Em São Paulo,
este procedimento é denominado selagem, como se fechasse ou congelasse a favela para
permitir novas moradias. É claro que este é um instrumento imprescindível para o monitora-
mento e controle da especulação imobiliária que ocorre a partir dos investimentos públicos.
Mas ele, por si só, não é eficiente sem um pacto urbano com os agentes locais, sem uma
política de controle e monitoramento permanente nas favelas, a espelho do que acontece
no restante da cidade, e sem uma política de habitação que absorva a demanda por moradias
para as classes menos favorecidas em áreas bem localizadas na cidade. Como veremos no
item 3.2, o pacto com os moradores foi fundamental para garantir o controle da expansão
da favela entre projeto e obra.
Importante comentar que o cinturão viário foi implantado nas áreas de ocupação mais re-
centes e mais pobres, eliminando as palafitas, e onde o tráfico de drogas era mais visivelmen-
te presente. Antes fundos e de ocupação mais precária, estas novas frentes geralmente se
tornam rapidamente valorizadas após a urbanização, sobretudo quando há ganho ambiental
e paisagístico, e novamente de espaço coletivo com potencial comercial.
178 Comparando as figuras 32 e 33, fica muito perceptível o ganho derivado das melhorias
urbanas, que inevitavelmente acabam por alavancar um processo de especulação imobiliária,
que ocorre não só em favelas, mas em todas as áreas onde há investimentos públicos. O que
diferencia a favela é que este processo não é planejado nem controlado pelo poder público
responsável pelas obras, como é no restante da cidade. Nota-se na imagem (Fig. 33) que no-
vas construções em alvenaria no solo criado a partir da retificação do canal foram surgindo
após o final da urbanização, num processo típico de construção, mostrando que a lógica da
favela continua. Afinal, estão sendo construídas casas que completam o conjunto urbano
da nova rua, o que é bastante positivo visto a obra não ter tido verba suficiente para este
evento. No entanto, sem parâmetros limitantes deste crescimento pactuados entre favela e
Estado, o território, por sua vez, sofre com o adensamento descontrolado que sobrecarrega
o sistema de saneamento recém-implantado, que rapidamente fica obsoleto e ineficiente,
num ciclo interminável de favelização.
179

Figura 32
Vista do canal antes e depois da urbanização. As palafitas desapareceram, dando lugar
à canalização e nova via na margem urbanizada. Fonte Divulgação SMH/Fábio Costa, 1994.

Figura 33
Vista do canal urbanizado e, em primeiro plano, o edifício habitacional para relocar os
moradores das palafitas. Fonte Divulgação SMH/Fábio Costa, 1997.
Neste contexto, o programa POUSO foi criado pela SMH278 no fim de 1996, perto do tér-
mino das obras em Parque Royal, e uma das lojas do novo edifício de UHs foi utilizada como
sede para a equipe da Prefeitura no local em 1997. A ideia era a implantação temporária de
“POUSOs” nas favelas urbanizadas para orientar após o Favela Bairro nas construções, contro-
lar a expansão do assentamento e viabilizar o processo de regularização, até a sua total “ab-
sorção” na gestão urbana pelos órgãos públicos, cada qual dentro de suas responsabilidades:

À medida que os órgãos municipais assumirem suas atribuições específicas nas


áreas citadas no art. 1º deste Decreto, os respectivos “POUSOs” serão transferidos
para outras comunidades urbanizadas, tendo em vista sua integração aos bairros
a que pertencem. (RIO DE JANEIRO, 2000).

Em 1999, os logradouros de Parque Royal foram reconhecidos oficialmente como ruas


da cidade279 e em 2000 foi feita a regularização administrativa280, o que significa que as ruas
e equipamentos instalados pelo Favela Bairro devem ser “operados, mantidos e conservados
pelos [...] órgãos municipais281, integrando suas ações ordinárias e metas programáticas” (RIO
DE JANEIRO, 2000). Ou seja, 3 anos após o término das obras, as responsabilidades e obri-
gações de manutenção do espaço e dos bens públicos foram oficialmente transferidas aos
órgãos públicos que já o fazem na cidade em geral, apenas ampliando sua área de atuação para
englobar o que foi construído pelo Favela Bairro em seu escopo de serviços. Como se dá a
manutenção em Parque Royal? Teria sido o POUSO desativado após vinte anos da urbanização?

3.1.3. O que se vê 20 anos depois da urbanização


Parque Royal, 20 anos após a urbanização, virou ‘bairro’, como pretendia o Programa? O que
pensam os moradores? Vejamos o que comenta o vice-presidente da Associação de Moradores:
180
Eu não chamo aqui de favela. Eu chamo aqui de comunidade, porque a noção de
que eu tenho de favela é que é um lugar cheio de barraco282. Aqui não tem nenhum

278. Em 2003, passou para a SMU.


279. Através do Decreto Nº 18.198, de 8 de dezembro de 1999, mas revogado pelo Decreto 26.228/2006.
280. Através do Decreto Nº 18.712, de 27 de junho de 2000. Este decreto teve como objeto várias favelas urbanizadas,
inclusive Parque Royal.
281. A saber: “I - SMO/Coordenadoria Geral de Conservação - sistema viário e drenagem pluvial; II - SMO/GEO-RIO - con-
tenção e estabilização de encostas; III - RIOLUZ - iluminação pública; IV - SMAC/Fundação Parques e Jardins - refloresta-
mento, praças, áreas esportivas, parques e jardins; V - COMLURB - coleta de lixo e limpeza pública. Parágrafo único. Por
força das obras realizadas e do respectivo reconhecimento das vias das referidas comunidades como logradouros públicos,
deverão estas ser atendidas também pelas concessionárias dos serviços públicos de energia elétrica, água e esgoto, teleco-
municações, transporte e distribuição de gás canalizado.” (RIO DE JANEIRO, 2000)
282. Importante pontuar que os moradores de favela, dentro do conceito de favela adotado pelo poder público, nem sempre consideram o
lugar onde vivem uma favela. Como mostra a fala deste morador, vice-presidente da Associação de Moradores à época, os parâmetros podem
ser outros, como a precariedade das habitações. Se não existe barracos de madeira, o lugar não teria o status de favela, mas de comunidade.
barraco. Era palafita. Hoje, com a melhoria que houve, não é mais favela. Já é
considerado um bairro porque estão vendo a situação dos Habite-se das casas, e
alguns já tem o Habite-se aí, mas falta essa parte legal pra eu considerar Parque
Royal um bairro. Mas tudo que tem em um bairro tem aqui dentro. Tem super-
mercado, tem padaria, tem farmácia, posto de saúde, tem o CRAS. O pessoal dos
condomínios não tem preconceito de acessar aqui. O que eu mais vejo no final
de semana é o pessoal do DESIP vindo beber aqui dentro. Aqui mora bombeiro,
policial, e não tem problema com nada. (apud KROFF, 2017, p. 236).

Dentro da mesma favela, há diferentes padrões que coexistem: o trecho junto à Estrada
Governador Chagas Freitas e nas ruas carroçáveis na área central, de mais antiga ocupação,
depois de urbanizado não parece mais favela, segundo a moradora entrevistada por Kroff
(2017, p. 235). Já na região próxima dos becos e padrão construtivo mais baixo,

lá pra dentro, se tu anda (indo em direção à rua da praia), parece uma favela porque
é muito bagunçado, eles colocam lixo na rua, tem algumas casinhas ruinzinhas.
Mas aqui até onde tem a loja, a praça, o mercadinho não parece favela, não.
Se o pessoal de lá fica sabendo que falei isso, eles não vão gostar. Eu gosto muito
de morar aqui. Eu chamo de comunidade, aqui não parece favela não. (KROFF,
2017, p. 235, intervenção nossa).

Figura 34
Rua Jornalista Alaíde Pires (também conhecida como Rua Raimundo Malheiros)
próximo à praça Vanessa Ferreira Coutinho, em 2017. Fonte KROFF, 2017.

Figura 35
181 Trecho da Rua da Praia, em 2016, com baixo padrão construtivo
em relação à imagem ao lado. Fonte KROFF, 2017.
Em 2008, 65% dos moradores entrevistados por Pereira (2008, p. 67) consideravam
que Parque Royal já não era mais uma favela, e em grande parte pelas melhorias urbanas
através do Favela Bairro. Isto corrobora para nossa defesa de que as intervenções ad-
vindas de programas de urbanização de favelas são necessárias e fazem um diferencial
no território urbanizado. Mas o que nos importa em nossa pesquisa seria destacar os
motivos pelos quais os moradores não consideram que Parque Royal seja um bairro, pois
são estes os que apontam falhas que precisariam ser corrigidas no processo. A opinião
destes moradores é que as principais questões que interferem na mudança de status são:
a violência associada ao tráfico de drogas (53,85%), a ausência de regularização fundiária
(30,77%), falta muita coisa ainda (23,08%) e o bairro possui uma infraestrutura melhor que
a da favela (15,38%)283.
Vamos à questão que o bairro possui uma infraestrutura melhor que a favela. A falta de ma-
nutenção das redes de infraestrutura e dos espaços coletivos é apontada nas pesquisas sobre
Parque Royal como um problema frequente. Entupimentos do sistema de esgotamento sani-
tário já são antigos. Em pesquisa desenvolvida pela SMH284 em várias favelas após a urbaniza-
ção, verifica-se que em Parque Royal, em 1998, ou seja, um ano depois do término das obras,
apenas 51% dos moradores entrevistados estavam satisfeitos com o serviço de esgotamento
sanitário, apesar de praticamente todos os domicílios terem ligação direta na rede pública.
Isto foi considerado pela pesquisa uma exceção, visto que o nível de satisfação nas outras
favelas era muito superior. Da mesma forma, para a drenagem: apenas 40% dos moradores
pesquisados estavam satisfeitos com o escoamento das águas de chuvas285. Na realizada
por Pereira (2008, p. 70), 10 anos depois da SMH, o esgoto apareceria como o principal pro-
blema, apontado pelos moradores como precário e sempre entupido286. Na mesma época,
já havia sido identificado por Magalhães (2010) que o POUSO fazia notificações aos morado-
res por novas ligações irregulares e inadequadas nos sistemas construídos pela Prefeitura.
182 Depois de 20 anos, o esgoto continua sendo um problema em Parque Royal (KROFF, 2017),
pois a falta de manutenção só agravou a situação.

283. Pereira (2008, p. 70) destaca que os moradores que não reconhecem Parque Royal como bairro forneceram várias
justificativas e que, por isso, o total do resultado ultrapassa os 100%. As outras justificativas foram: “a população não
zela pelos benefícios; falta limpeza; falta instrução para os jovens; no bairro as casas são afastadas e possuem quintal;
o preconceito continua; falta manutenção (por exemplo, do esgoto); o bairro recebe mais atenção do poder público;
o bairro tem mais valor em todos os sentidos”. Todos estes itens levam, cada um, o percentual de 7,69% da opinião dos
entrevistados.
284. Síntese da avaliação do programa Favela-Bairro: primeira fase - 1995- 2000. N. 20060801, agosto – 2006. SMH/
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Coleção Estudos Cariocas. ISSN:1984-7203: http://portalgeo.rio.rj.gov.br/es-
tudoscariocas/download/2375S%C3%ADntese%20da%20Avaliação%20do%20Favela%20Bairro%20primeira%20fase.pdf
285. Segundo a pesquisa, não houve nível de satisfação elevado dos moradores de Parque Royal após a urbanização,
se comparado com outras favelas pesquisadas, sendo para o calçamento: 68% de satisfeitos; para Iluminação Pública,
apenas 54%; Convivência com a vizinhança: 63%; com bairros vizinhos melhorou: 59%.
286. O que teria provocado? Segundo os moradores, o problema está na “falta de manutenção por parte da prefeitura e
da associação de moradores (53%) e na destruição pelos próprios moradores (39%)” (PEREIRA, 2009, p. 9).
Parece haver outros problemas, além da manutenção, que interferem na qualidade do
sistema de esgotamento sanitário em Parque Royal, certo que a manutenção é falha nas
favelas, mas não necessariamente é a única causa do problema. Se, um ano após o término
das obras, o sistema já estava apresentando problemas, isto não seria um indício de que o
problema poderia ter sua origem na própria execução do sistema de esgotamento sanitário
implantado ou este não ser o mais adequado para as características do terreno de Parque
Royal, muito próximo à cota de nível do mar e alagadiço? Há interferências dos próprios
moradores, seja por expansão ou construção de novas moradias, que fazem ligações domi-
ciliares inadequadas no sistema construído pela Prefeitura? Estariam estas novas ligações
destruindo o sistema? Não pretendemos responder através desta pesquisa a estas questões,
mas abrir para outras possíveis avaliações sobre a infraestrutura implantada em Parque Royal:
a solução e execução foram adequadas? quais os procedimentos corretos de manutenção
para resolver os problemas recorrentes?
Algumas das soluções de projeto tentam prever e dar alternativas à deficiência de ma-
nutenção dos serviços, que é uma realidade em favelas. A solução adotada em Parque Royal
no sistema de esgotamento sanitário com elevatória pede uma manutenção constante, vis-
to ser necessário equipamento mecânico, como bombas. Quando estas queimam e não são
substituídas imediatamente, o sistema é colocado em risco. Por isso, é padrão a colocação
de ladrão para escoamento do esgoto, onde for possível, para evitar o transbordo do re-
servatório. Em Parque Royal, o ladrão previa escoamento emergencial no mar, em caso
de problema nas bombas. O sistema de bombeamento da elevatória funcionou por algum
tempo, mas passou a apresentar problemas constantes por falta de manutenção e a solução
alternativa do ladrão foi a que se tornou a usual. A respeito disso, comenta o arquiteto coor-
denador da equipe de projeto:

183 A meu ver, muito do problema era a manutenção do estigma de Parque Royal,
é que a Cedae não presta a manutenção correta para essas elevatórias, e como
as bombas não funcionam, e como também era previsto no projeto, no tanque
existia um ladrão que dava para a baía, e aí, esse ladrão é a solução que acaba
operando mais do que as outras.” (informação verbal, p. 276)287.

Kroff (2017) mostra em sua pesquisa que não só o esgoto está em vários locais entupido,
mas os espaços e equipamentos coletivos construídos pelo Favela Bairro não estão em bom
estado de conservação, sofrendo com apropriações e falta de manutenção.

287. Informação obtida com “P.”, arquiteto coordenador da equipe de projeto, em entrevista concedida a KROFF (2017,
p. 263-272), em 17 de fevereiro de 2016.
184

Figura 36
Praça e edifício-sede do CRAS logo após o término
das obras. Fonte Divulgação SMH/Fábio Costa, 1997.

Figura 37
Fotos da mesma praça e edifício, 20 anos após a
inauguração, em péssimo estado de conservação.
Fonte KROFF, 2017, p.222
Esta é uma questão que merece destaque. É fato que, mesmo sendo de responsabilida-
de dos órgãos públicos conforme decreto de 2000, a manutenção das redes e dos espaços
coletivos foi transferida à Associação de Moradores, que diz não ter recursos suficientes
para todo o trabalho demandado (PEREIRA, 2008, p. 80). Destacamos que é importante re-
pensar a gestão urbana que vem sendo feita em Parque Royal, que parece inadequada ao ser
repassada à Associação de Moradores. No caso da manutenção das redes de infraestrutura,
a gestão, a nosso ver, deveria ser tutelada pelos órgãos responsáveis por cada serviço, que
de certa forma parecem se isentar de responsabilidade ao repassarem a tarefa à Associação.
Para tal, é fundamental o estabelecimento de procedimentos e orientações técnicas para
que a manutenção e fiscalização das interferências em cada serviço sejam implementadas
com rigor técnico. A mão de obra local é uma excelente solução desde que capacitada e
sob a tutela dos órgãos responsáveis pelos serviços, para que estes técnicos locais – como
agentes comunitários – estejam sempre presentes no território e possam auxiliar no processo
ágil de novas construções e ligações domiciliares que efetivamente acontecem, mesmo
com o POUSO presente na área. Quanto aos equipamentos, há claros sinais de depredação.
Questionamos se a origem do problema não estaria na falta de estabelecimento de laços
com os moradores na construção programática do equipamento, num processo de copro-
dução (ZETLAOUI-LÉGER, 2017), como comentado no Capítulo 1, e na construção de um mo-
delo de cogestão efetiva, o que não aconteceu. Nestes moldes, poderia haver mais respei-
to aos equipamentos, que efetivamente seriam reconhecidos como coletivos, e não só do
Estado como prestador de um serviço que nem sempre está ligado à realidade local.
Moradores de Parque Royal opinam que falta muita coisa ainda, mesmo com a urbani-
zação da favela. A falta de continuidade dos programas sociais ligados ao esporte e às artes,
bem como de cursos foi algo destacado pelos moradores (PEREIRA, 2008, p. 61). Logo após
o término das obras, estas atividades foram implementadas em Parque Royal pelo poder pú-
185 blico, ou por ONGs, mas depois abandonadas. Vários equipamentos foram construídos pelo
Favela Bairro, mas são necessárias atividades contínuas para promover o desenvolvimento
social da população beneficiada pelas obras urbanas e para potencializar o uso dos equipa-
mentos construídos. Destacamos que este tipo de investimento público contínuo nestas
áreas é fundamental para reverter o quadro de vulnerabilidade social das populações fave-
ladas, que geralmente não têm acesso a serviços e atividades privadas nem podem usufruir
de regiões privilegiadas da cidade.
Pereira (2008, p. 138-139) conclui sua pesquisa com uma crítica ao Programa Favela Bairro,
o qual, segundo ele, “não atua nas causas do processo de favelização”, concentrando-se nos
aspectos materiais em detrimento dos sociais. Esta é uma crítica recorrente aos programas
de urbanização, que, inclusive, chegam a ser caracterizados como estetização da pobreza
(ROY, 2004), como vimos no Capítulo 1. Mas seriam estes programas os únicos responsáveis
para resolver todas as questões da favela? Seria isso possível? A proposta do Favela Bairro
era a articulação entre os diferentes órgãos complementando as ações físicas nos aspectos
sociais e na manutenção do que foi construído. No pós-obras, esta articulação funcionou
bem, mas sua continuidade não foi mantida, conforme constata Kroff (2017). Se há falhas,
é nesta articulação, que não perdurou anos depois do término das obras e não foi institu-
cionalizada como política de Estado, bem como no tratamento que é imposto pelos órgãos
públicos às favelas, que não as incluem no seu quadro de atuação com a mesma qualidade
e constância com que fazem ao restante da cidade. Também há falhas do poder público em
negar a lógica existente nas favelas e acreditar que, ao urbanizar uma favela, esta lógica se
reverte ou simplesmente acaba, e estes territórios automaticamente passariam a ser ge-
ridos pela lógica regulatória do Estado. Seria mais pertinente, conforme propomos nesta
pesquisa, compreender como ocorre o conflito entre a lógica da favela e a das políticas do
Estado. Enfrentar o problema pela raiz não é deixar de implementar melhorias urbanas, mas
ressignificar o modo de atuar nas favelas compreendendo os embates e limites entre estas
lógicas. É fundamental estabelecer uma nova lógica compartilhada, com instrumentos e
políticas que funcionem e que sejam respeitados por ambos, que se articule para a sustenta-
bilidade das melhorias e para a promoção de uma dinâmica social inclusiva.
Lembramos que os aspectos materiais são extremamente importantes, inclusive na
opinião dos próprios moradores de Parque Royal (PEREIRA, 2008; KROFF, 2017). Sem estes
aspectos implementados, nem poderíamos estar discutindo o que aconteceu depois das
obras e onde estão as falhas. O processo de favelização ao qual Pereira se refere está em
aspectos ligados à falta de regularização dos territórios, à especulação imobiliária de um
mercado informal lucrativo, à falta de gestão e manutenção do conjunto urbano e dos
equipamentos sociais com políticas públicas atuantes de forma contínua no território, e
ao controle destes territórios por poderes paralelos que ditam regras que interferem no
cotidiano e na dinâmica da favela.
Outra crítica recorrente ao Favela Bairro diz respeito à implantação de equipamentos
186 na favela em detrimento dos existentes no entorno, o que ocasiona perda de potencial in-
tegrador social. Magalhães (2010, p. 305) questiona o projeto de Parque Royal, que não
levou em consideração a grande oferta de equipamentos existentes na região, mas focou
em prover novos equipamentos na favela. Kroff (2017, p. 249) identifica que isto pode ser
um dos motivos pelo qual os equipamentos construídos pelo Favela Bairro 1 não promovem
a integração social preconizada pelo programa em Parque Royal. É verdade que estes espa-
ços e equipamentos coletivos são utilizados, basicamente, pelos moradores da favela, mas
existem outras questões por trás deste fato. A Ilha do Governador é uma região do Rio de
Janeiro com muitos equipamentos,

o que não condiciona principalmente as pessoas que moram no entorno, a


buscarem ou frequentarem esses equipamentos dentro do Parque Royal. Além
disso, há um fator que desestimula eventuais frequentadores desses espaços:
a precariedade da manutenção e conservação. (KROFF, 2017, p. 249).
A autora argumenta que os equipamentos de Parque Royal não estão focados exclusiva-
mente no público da favela. A creche municipal construída pelo Favela Bairro 1, por exem-
plo, atende à demanda de toda a Ilha do Governador, pois é através de um sistema único da
Prefeitura que os pais buscam vagas nas creches públicas, por região e sem distinção entre
ser morador de favela ou não. Já a Clínica da Família em Parque Royal só atende aos mora-
dores da favela por conta do porte do equipamento, que só comporta uma equipe capaz de
atender apenas aos moradores da localidade, o que revela características de uma estrutura
operacional de serviço fragmentada288. Esta não seria uma falha do programa de urbanização,
mas talvez do dimensionamento do equipamento, por exemplo, que não comporta mais equi-
pes e que, por isso, não tem capacidade para atender ao público do entorno e garantir a di-
versidade da clientela na mesma unidade, independente de ser favela ou não. Neste sentido,
o escopo de projeto precisa ser revisto para ampliar a capacidade dos equipamentos.
Pontuamos que a crítica sobre a localização dos novos equipamentos na favela não nos
parece ir ao ponto principal. O programa de urbanização de uma favela, sem dúvidas, é uma
oportunidade para construir equipamentos públicos. No Favela Bairro, estes equipamentos
eram construídos na favela, porque este era o território determinado de atuação, o que
pretendeu ser ajustado no Morar Carioca, ao ampliar o território do projeto incluindo seu
entorno. Consideramos que a crítica deve ser feita, mas em relação ao caráter, à escala e à
abrangência dos equipamentos, para que tenham capacidade de atendimento além do pú-
blico da favela, assim como em relação ao modelo de gestão e à presença do Estado, que é
intermitente e desigual nas favelas. No caso de Medellín, na Colômbia, os resultados foram
marcantes, pois os equipamentos de referência para a cidade foram implantados dentro das
favelas. O que houve foi uma inversão de paradigma: nas favelas, o melhor!289 Os equipa-
mentos de referência da cidade de Medellín foram construídos em favelas e para frequentá-
-los, como em qualquer outro bairro, é necessário entrar nestes territórios. Ou deveriam
187 ser sempre os favelados a terem que sair de seu território para conseguirem algum serviço
de qualidade? Esta é uma questão de planejamento urbano e institucional que merece ser
revista pelos programas públicos, visando a urbanização de favelas como oportunidade para
reestruturar parte da região onde esta se localiza na cidade.
É interessante também observar que, embora o nome do programa fosse Favela Bairro,
os bairros do entorno pouco participavam dos debates sobre o projeto, que ficavam pra-
ticamente no âmbito da favela, ou eram feitos em separado, quando ocorriam, como se o
debate coletivo tendo favela e entorno na mesma reunião não pudesse direcionar para um

288. Esta é uma característica de Parque Royal, e de outras favelas como a Rocinha. Porém, em outras clínicas de família do
Rio de Janeiro, como por exemplo as de Botafogo, Catete, Tijuca ou Alemão, a escala do equipamento é maior e comporta
mais equipes, o que faz com que seja possível ampliar o atendimento a uma área de abrangência maior do que somente a favela.
289. O slogan do então prefeito Sergio Fajardo era: “Para os humildes, o melhor” (DÁVILA; BRAND, 2013, p. 50, tradução
nossa). Nos territórios favelizados, foram utilizados os Projetos Urbanos Integrais (PUI) como ferramentas estratégicas para as
mudanças, aplicando-se o melhor conhecimento técnico e a melhor qualidade no desenho urbano (ECHEVERRI; ORSINI, 2010).
consenso. Isto também nunca fez parte do escopo de projetos. Nos documentos analisa-
dos sobre Parque Royal, não há qualquer menção sobre esse fórum mais amplo durante o
processo de elaboração do projeto de urbanização pelo Favela Bairro. Em outros projetos,
verifica-se o potencial da vizinhança – não só moradores, mas muitas vezes também de
instituições de peso – como importantes atores na construção de soluções para a região in-
cluindo a favela, como, por exemplo, o caso do Fórum Técnico de Urbanização da Rocinha290,
que exerceu pressão sobre o Estado apresentando demanda construída coletivamente por
melhorias urbanas para a Rocinha e entorno. Esta ação originou o Concurso Público Nacional
de Ideias para Urbanização da Rocinha (2006), cujo prêmio foi a contratação da equipe ven-
cedora para a elaboração do Plano Sócio Urbanístico do Bairro da Rocinha (2006-2008),
o que depois resultou em ações do PAC-Favelas. Segundo Toledo et al. (2014, p. 25),

seus participantes, embora defendendo interesses nem sempre comuns e por


vezes antagônicos, conseguiram chegar a um consenso: todos acreditavam no
futuro da Rocinha, desde que este incorporasse tanto a infraestrutura quanto os
serviços da cidade formal, respeitando as especificidades da Rocinha e a criati-
vidade de sua população.

Por outro lado, a franja na entrada de Parque Royal, com comércio e serviços variados,
é bastante utilizada pelos moradores da região. As normas de usos da legislação urbana, muitas
vezes restritas, geram bairros residenciais monótonos, como é o caso do entorno de Parque
Royal, com baixa oferta de comércio e serviços. A opção para o morador destes bairros ou é o
deslocamento para zonas comerciais distantes de sua residência ou passa a ser a zona comer-
cial da favela, nas proximidades, que se torna centralidade de comércio e de troca de serviços
para os bairros vizinhos. Neste sentido, a riqueza do cotidiano da favela é uma oportunidade
188 para a diversidade na cidade e como “base para novos encontros urbanos” (SILVA, 2014, p. 73).
Esta centralidade foi potencializada pelo projeto, que valorizou a franja através de tratamento
urbanístico e de térreo comercial nos edifícios UHs construídos pelo Favela Bairro. No caso de
Parque Royal, o comércio é o que tem um potencial integrador com o entorno.
Não podemos desconsiderar ainda as diferenças morfológicas entre a favela e o entorno
de Parque Royal, que influenciam nos usos e apropriações. Vejamos o caso da orla construí-
da pelo Favela Bairro e o Corredor Esportivo de Moneró: são áreas vizinhas, e, a nosso ver,
não é só a falta de manutenção e segurança que interferem na frequência destes espaços.
Há um descompasso entre a gestão urbana da favela e dos bairros do entorno. Mas tendemos

290. O Fórum Técnico de Urbanização da Rocinha tinha como participantes: “as três associações de moradores da Rocinha
(UPMMR, AMABB E LABORIAUX), a Associação de Moradores da Comunidade Parque da Cidade, a AMASCO – Associação
de Moradores de São Conrado, a AMALGA – Associação de Moradores da Gávea, a Câmara Comunitária da Barra, a AMA-
LEBLON, a PUC-RJ, a EARJ-Escola Americana do Rio de Janeiro, o IAB-RJ, a FIRJAN e a OAB-RJ.” (TOLEDO et al., 2014, p. 25).
a acreditar que também a escala e características dos dois espaços influenciam nos usos e
apropriações. Um espaço, definido como público em termos de propriedade, pode ter um ca-
ráter semiprivado, independente de estar aberto a todos. Segundo Hertzberger (1999), estas
relações são definidas por uma série de qualidades espaciais, como o acesso e a responsabili-
dade sobre estes espaços291. Nesta pesquisa, apontamos que a orla de Parque Royal tem um
caráter semiprivado, pois é densamente habitada, com escala da rua e ciclovia muito pró-
ximas às residências, e de acesso mais restrito que o Corredor Esportivo, o que pode gerar
um sentimento de invasão por parte do visitante. Este caráter ainda é reforçado pela falta
de serviços públicos de manutenção constante na orla de Parque Royal, fazendo com que os
moradores se apropriem da rua e que esta inclusive sirva de depósito. Mesmo se a ciclovia es-
tivesse bem mantida e com segurança, o que não acontece no momento, esta seria uma outra
opção de passeio, mas não substituiria o caráter e qualidade do Corredor Esportivo de Moneró,
que é, afinal, um parque bastante vegetado e com dimensões mais adequadas a atividades es-
portivas. O Corredor Esportivo é um espaço coletivo muito utilizado também pelos moradores
de Parque Royal, que o preferem à orla da favela para a prática esportiva. O que é gritante é o
desequilíbrio da manutenção dos dois espaços coletivos, como aponta Kroff (2017). Em 2012,
o muro de contenção da ciclovia de Parque Royal desmoronou e até hoje não foi resolvido.

291. Para informações pormenorizadas, ver o Capítulo 1 de HERTZBERGER (1999).

189

Figura 38
Corredor esportivo do Moneró, em bom estado de con-
servação. Fonte Jornal Ilha Notícias, 2019. (https://www.ilhanoticias.
com.br/noticia/Opovofala-1)

Figura 39
Orla de Parque Royal em 2016. A ciclovia que desmoronou
em 2012 foi noticiada de novo em 2016 pelo Jornal Ilha No-
tícias, que solicitava providências ao poder público. Fonte
Jornal Ilha Notícias, 2016. (ver https://ilhanoticias.com.br/noticia/noti-
cias-ed1567 e https://ilhanoticias.com.br/noticia/noticias-ed1788).
Vamos agora ao tema da violência associada ao tráfico de drogas, relatada pelos moradores
de Parque Royal. A rua da Praia é muito utilizada pelos moradores de outras áreas da favela e
de fora, sobretudo para acessar o comércio local. No entanto, há informações de que a polícia
penetra a favela atirando, geralmente através desta rua, e que, por isso, os frequentadores se
sentem inseguros. Em 2010, relatavam os moradores: “pra todo mundo aqui da comunidade, a
pior rua é Rua da Praia, tem tiro, tudo de ruim acontece na Rua da Praia.” (informação verbal)292.
O técnico do POUSO à época comentou que em Parque Royal:

você não tem esse problema (de tráfico armado), o que te dá uma certa faci-
lidade de andar. Infelizmente, o maior perigo que existe em você trabalhar em
comunidade é quando a polícia vem fazer uma operação dentro da comunidade,
porque você é pego de surpresa e você sabe que um tiro acontece. Essa é a hora
em que a comunidade se torna perigosa. (informação verbal) 293

Kroff (2017, p. 224) concluiu:

Pelos relatos dos moradores do Parque Royal e dos moradores do entorno que o
clima de insegurança na Rua da Praia e na Rua da Boa Esperança do Parque Royal
ainda perdura passados mais de vinte anos após a implantação do Programa
Favela Bairro no Parque Royal.

A penetração no território de Parque Royal por moradores de fora fica dificultada pela
insegurança advinda do Estado, num procedimento de combate ao tráfico violento e inade-
quado às características da área. Apesar da qualidade urbana e paisagística da nova frente
marítima e da reversão do padrão construtivo de palafitas em moradias de 3 pavimentos
190 (Fig. 40), o cinturão viário não teve a apropriação desejada pelo projeto.
Percebe-se em Parque Royal que a questão urbana não fica resolvida apenas através das
melhorias na estrutura urbana. O comércio tem papel importante integrador, gerando uma
dinâmica urbana na Rua da Praia. Mas este não é suficiente para trazer segurança à área,
mesmo com uma frequência diversificada de moradores da região. A guerra que se trava
nesta rua entre a polícia, com ações violentas a qualquer hora e sem atenção à população que
vive e frequenta a rua, e o tráfico de drogas, que ocupa e explora o território sob repressão
ocasional, gera insegurança e medo. Em Parque Royal, é imperativa a presença permanente
do poder público de modo a garantir circulação irrestrita aos espaços coletivos e reverter
o estigma de território violento e abandonado, que parece ser derivado da própria ação

292. Entrevista de morador concedida a Magalhães (2010, p. 299).


293. Informação obtida na entrevista do técnico do POUSO à época cedida à Magalhães (2010, p. 331).
inadequada do Estado na repressão ao tráfico de drogas, na ausência de manutenção e na
gestão descontinuada destes espaços.
O que aconteceu com a regularização de Parque Royal? O POUSO foi implantado em Parque
Royal logo após a urbanização da favela, para fins de orientação e regularização. O reconheci-
mento dos logradouros foi conseguido em 1999, o que viabilizaria a regularização urbanística,
edilícia e fundiária. A regularização urbanística, que confere as normas de uso e ocupação
do solo, e é a legislação da área contida na AEIS, teve decreto específico para Parque Royal
emitido em 2000294, mas revogado em 2011, quando o então prefeito Eduardo Paes proibiu
por decreto novas construções e ampliações das moradias em favelas, sendo apenas libe-
radas aquelas implementadas pelo poder público. Este decreto transformou o POUSO em
órgão repressivo, mas sem grande expressão, visto que não tinha poder de polícia. A pesquisa
amostral e comparativa entre dados de 2006 e 2017 realizada por Fonseca (2019) mostra que
está havendo uma elevação do gabarito do conjunto edificado em Parque Royal295.

294. Decreto nº 19.350 de 27 de dezembro de 2000.


295. Destaca-se nesta pesquisa que está havendo uma redução do número de edificações de 1 e de 2 pavimentos em
Parque Royal, e estão surgindo edificações de 5 pavimentos, não identificadas em 2006.

191

Figura 40
Rua da Boa Esperança, em 2016,
onde antes havia palafitas. Apesar
do bom padrão construtivo e
qualidade urbana, ainda há clima
de insegurança que interfere no
uso da área. Fonte KROFF, 2017.
Figura 41
Gráficos comparativos do número
de pavimentos das edificações em
Parque Royal em 2006 (à esquerda)
e 2017 (à direita), nas quadras da
pesquisa amostral de Fonseca.
Fonte FONSECA, 2019.

Em 2018, uma nova legislação urbanística foi decretada reproduzindo a de 2000, mas
ampliando a permissão do gabarito máximo de 3 pavimentos para toda Parque Royal296. Esta
foi uma tentativa de ajuste da legislação à realidade já construída, dezoito anos depois do
primeiro decreto, mas respeitando o gabarito máximo imposto a toda a região próxima ao
aeroporto internacional.

296. No decreto de 2000, o gabarito máximo de 3 pavimentos estava restrito às ruas principais, o restante ficaria em 2
pavimentos.

192

Figura 42
Vista de Parque Royal em 2017, na qual percebe-se um conjunto
edificado de, pelos menos, 3 pavimentos na orla. Fonte Fonseca/2019.
A expansão vertical e horizontal aconteceu em Parque Royal, mas de um modo um pouco
mais controlado que em outras favelas:

O processo de adensamento e verticalização encontrado é semelhante ao veri-


ficado em outras comunidades, objetos de projetos de urbanização na Cidade.
No caso específico do Parque Royal, as limitações regionais de gabarito, a pro-
ximidade com a área do aeroporto e a sua legislação restritiva em altura devido
ao Cone de Aproximação, bem como o trabalho realizado ao longo dos anos
pelo POUSO, contiveram, em parte, o acréscimo vertical e horizontal das cons-
truções. O crescimento da ocupação pela expansão horizontal foi controlado
também devido aos limites e obstáculos físicos encontrados e a via litorânea im-
plantada, excetuando a área de invasão das margens do canal existente, na Rua
Boa Esperança. O local inicialmente foi previsto como área de estacionamento e
garagens, e posteriormente ocupado progressivamente através das construções
realizadas ao longo do tempo, sendo atualmente local de edificações de uso misto
- residencial e comercial, com 2 a 4 pavimentos. (FONSECA, 2019, p. 20).

Indubitavelmente, não é só a existência de uma legislação que restringe o gabarito da


favela, e de toda a região do entorno do aeroporto, que controlou a expansão vertical, mas
o risco eminente percebido pelos moradores de Parque Royal por conta dos aviões que pas-
sam diariamente sobre a área e em baixa altitude, em pousos e decolagens. O início desta
nova expansão que Fonseca comenta já havia sido observado por Magalhães em 2010, quando
moradores já se mostravam preocupados, pois a área já estava sendo parcialmente utilizada
e sem qualquer controle por parte do proprietário – a Infraero. Relata um dos moradores:

193 [...] E a Aeronáutica não vem, não reivindicou nada. Porque existe o valão, né?
Que eu acredito que se a Aeronáutica não vier tomar conhecimento daquilo
e fazer outro muro do lado de lá... aí já surge, já é uma brecha pra invasão.
Que futuramente irá dar problema pro aeroporto, porque a pista, de subida
ou de descida, é desse lado de cá. Então, pode-se criar um grande problema
futuro aí. Que venha não pra gente um avião desgovernado, com problema pra
descer, com esse desrespeito de altura, né? Então eu acho que a Aeronáutica
tá dormindo no ponto aí. Do lado de lá já tem hoje criação de porcos...” (apud
MAGALHÃES, 2010, p. 528).

A localização de Parque Royal junto à segunda pista do aeroporto gera ainda outro risco
e dificultador para a regularização da favela. A curva de ruídos abrange praticamente todo
o território da favela, transformando-a em uma área de risco à saúde devido aos altos deci-
béis propagados pelos aviões. De acordo com o Plano Específico de Zoneamento de Ruído
(PEZR) do Aeroporto do Galeão de 2017297, grande parte de Parque Royal está sob influência
de ruídos entre 65 Db e 75 Db e atividades ligadas à saúde, educação, cultura e o uso residen-
cial só seriam permitidos mediante tratamento acústico. Este PERZ foi concluído vinte anos
após a urbanização da favela e poderia inviabilizar sua regularização, caso nenhuma medida
de tratamento acústico no conjunto já construído seja tomada. Como o ruído dos aviões é
sentido em Parque Royal? O presidente da Associação de Moradores diz que “o pessoal já
acostumou. Ninguém reclama mais. Mas tem barulho forte.” (apud KROFF, 2017, p. 285).

297. De acordo com PEZR para este aeroporto de 2017 registrado na ANAC. Disponível em https://www.anac.gov.br/assun-
tos/setor-regulado/aerodromos/planejamento-aeroportuario/PZRREGISTRADOS.pdf Acessado em 15 de janeiro de 2020

194

Figura 43
Nova expansão horizontal da
favela acontecendo sobre o
canal e em direção à área do
aeroporto, à esquerda de Parque
Royal. Em vermelho, a favela
com novo limite no SABREN.
Fonte SABREN, 2018.

Figura 44
A curva amarela corresponde
à de ruídos entre 65 Db e 75 Db,
que engloba grande parte de
Parque Royal. Fonte intervenção
da autora sobre imagem do PEZR/
GROM, 2017.
Em 2006, o processo de regularização fundiária foi iniciado pela SMH298, mas paralisado
e só retomado em 2017. A regularização fundiária, que era encarada pelo então prefeito
na época do lançamento do Programa Favela Bairro como uma oportunidade e, de certo
modo, fácil de ser implementada, ainda não foi concluída, vinte anos depois da urbanização.
O aumento do número de moradias, que já havia acontecido entre o final do projeto (cerca
de 700 domicílios) e o início das obras do Favela Bairro 1 (cerca de 1.100 domicílios), como
vimos, deu um salto nos anos 2000. Em 2006, já haviam sido identificados 2.267 domicílios
(AGRAR, 2006)299, com a expectativa que este número aumentasse, em 2017, para 2.700
domicílios (FONSECA, 2019).

10000

9000
8000

7000

6000 Tabela 15
5000 Crescimento demográfico e do
4000 número de domicílios em Parque
Royal desde a urbanização.
3000
Fonte elaboração própria a partir de
2000
Dados 2000 IBGE, 2000; Dados 2006
1000 AGRAR, 2006; Dados 2017 previsão de
FONSECA, 2018.
0
2000 2006 2017
População
Moradia

Em Parque Royal, o POUSO instalado após a urbanização através do Favela Bairro não
conseguiu evitar acréscimo populacional, do número de moradias e a verticalização do assen-
195 tamento, que trouxe problemas de habitabilidade e de infraestrutura, assim como a recente
ocupação das FNAs do canal da Infraero liberadas no Favela Bairro, conforme analisado por
Fonseca300 (2018).
A regularização edilícia segue lentamente, atropelada pelas transformações do ambiente
construído que vêm acontecendo desde a urbanização da favela. Em 2017, 463 moradias

298. Através de contratação da empresa de consultoria AGRAR, que “realizou, com o apoio do POUSO, um levanta-
mento de campo completo na área da favela, com vista a produzir as informações físico-territoriais e socioeconômicas
necessárias ao andamento do processo de regularização urbanística e fundiária, o que incluiu medição de todos os lotes
existentes.” (MAGALHÃES, 2010, p. 517).
299. Interessante observar que os dados do Censo IBGE de 2010 apontam 1.956 domicílios e uma população estimada de
6.345 moradores em Parque Royal, divergem dos dados da AGRAAR de 2006, quando os domicílios foram cadastrados para
fins de regularização fundiária e a favela já era mais populosa. Nenhuma ação de remoção ocorreu em Parque Royal entre
2006 e 2010 que justifique tal redução. Pelo contrário. O número de domicílios e população tende ao crescimento nesta
favela. No entanto, os dados de número de domicílios e população do IBGE são os que estão apresentados no SABREN.
300. Este autor é arquiteto e urbanista, funcionário da PCRJ, tendo trabalhado em POUSOs em favelas do Rio de Janeiro.
haviam recebido Habite-se da Prefeitura (KROFF, 2017, p. 292), ou seja, apenas 17% do total
dentro da previsão de moradias para 2017 (FONSECA, 2019). Na fala do presidente da Asso-
ciação de Moradores, esse processo de regularização parece não ter lógica nem fim:

O Ministério das Cidades passou o terreno para a prefeitura, e agora é que eles
estão dando a documentação definitiva, e estão dando o Habite-se. Já tem al-
guns aqui dentro que eu já entreguei e tem outros que estão em processo ainda.
Acredito que uns 20% dos moradores já tenham o título de posse. A maioria dos
documentos estão prontos, só que não foi entregue por causa dessas interven-
ções irregulares. Então, os que não receberam, é que estão com a construção
irregular. Em 2005 foi feito uma nova vistoria. Em 2012 a gente fez novamente.
Eles repassaram novamente, e eles disseram que tem muitos irregulares e não
deram o título, porque no padrão da prefeitura, em 2005, as construções eram
somente primeiro e segundo pavimento, e hoje tem gente com quatro pavimen-
tos. Então, eles não estão dando o título onde tem quatro pavimentos. Eles só
podem liberar dois. Essas pessoas, infelizmente, vão ficar sem o título. (apud
KROFF, 2017, p. 282).

Observamos que a legislação proposta pelo município em 2018, que pretendia a regulari-
zação edilícia de Parque Royal, ignora o princípio da autorregulação que Nisida (2017) chama
de Irreversibilidade ou Fato Consumado, cuja base é a aceitação de que é muito improvável
que algo, uma vez construído, seja refeito ou demolido tanto para se adequar às regras da
autorregulação como da lógica regulatória do Estado. A pesquisa amostral de Fonseca (Fig.
41, p. 236) mostra que 17% das edificações já possuía mais de 3 pavimentos um ano antes do
lançamento do decreto de 2018. De acordo com tal decreto, estas construções estariam ir-
196 regulares e assim continuariam classificadas e sem titulação, caso o morador não refaça sua
moradia demolindo os pavimentos excedentes para se enquadrar na legislação. Ou seja, o
que está irregular depende do interesse do morador para a regularização ser resolvida. Esta
briga de forças entre a lógica da favela e a lógica regulatória do Estado, que é travada ao
longo de pelo menos vinte anos em Parque Royal, não parece muito efetiva. Insistimos que
um novo pacto urbano compartilhado é necessário para pôr fim ao processo de favelização
que o Estado tenta evitar sem sucesso.
Em 2006, já havia sido identificado que o mercado imobiliário informal estava aquecido
desde as obras do Favela Bairro (MAGALHÃES, 2010, p. 312). Parque Royal apresenta vários
dados recentes de expansão e modificação das moradias, mostrando que o processo parece
contínuo, independente do processo de regularização que segue em paralelo e se arrasta por
mais de vinte anos. Uma modalidade de especulação imobiliária que vem acontecendo re-
centemente em Parque Royal é o fracionamento interno da moradia para virar quitinetes de
aluguel (FONSECA, 2018), um adensamento que muitas vezes nem é percebido externamente.
Parque Royal é uma favela bem localizada, urbanizada, com qualidade urbana e paisagística,
e diversos equipamentos nas proximidades. Além disso, o fato de que não pode haver imóveis
vazios em Parque Royal estimula ainda mais o mercado imobiliário local. Um ator controla o
território, liberando para a ocupação de imóveis vazios:

Em que pese a intensa especulação, observamos, na pesquisa de campo, a vigência


de uma peculiar Função Social da Propriedade, na favela estudada. Inferimos
das entrevistas que vigora uma espécie de regime de utilização compulsória dos
imóveis, cujo princípio geral seria “se ficar vazio, perde”. Assim, não existem
imóveis vazios no Parque Royal, uma vez que todos os titulares de imóveis se
encontram constrangidos à permanente e iminente possibilidade de perda de
imóvel, que esteja ocioso, hipótese em que se sujeita a ser invadido, eventual-
mente, com a proteção da boca de fumo local. Não há espaço para a chamada
“retenção especulativa”, conforme todas as respostas às nossas indagações sobre
a existência de imóveis fechados. Essa seria uma situação que indicaria que o dono
não teria necessidade do imóvel, o que justificaria a sua tomada por terceiros.
(MAGALHÃES, 2010, p.312, grifo do autor).

Será que a regularização é algo realmente desejado pelos moradores de Parque Royal?
O documento de título de propriedade, segundo morador entrevistado por Magalhães,
é importante, pois valoriza o imóvel e amplia o público na compra e venda do mesmo, além de
servir como garantia e abrir possibilidades ao crédito em bancos, dentre outros benefícios.
Todas estas vantagens estão ligadas ao mercado formal. Mas enquanto o mercado informal
existente na favela estiver aquecido, isso parece não fazer tanta diferença.
A urbanização trouxe muitas qualidades à Parque Royal, mudando a imagem da favela
197 para os moradores, e deu a sensação de estabilidade, embora a regularização ainda não
tenha sido concluída vinte anos após a urbanização. As melhorias urbanas potencializaram
a especulação imobiliária, tornando Parque Royal um local atrativo no mercado imobiliário
informal. A falta de gestão adequada dos espaços e equipamentos corrobora para a manu-
tenção do estigma de favela, sobretudo quando esta não é feita do mesmo modo que no
restante da cidade, não sendo, por assim dizer, território integrado. A regularização, dentro
da lógica do Estado, que parecia ser facilitada pelo fato de ser um terreno público, está
levando um longo tempo e não consegue concorrer com a lógica da favela e seu processo
rápido de expansão da favela. Sobretudo quando a presença frágil do Estado abre caminho
para agentes informais que ditam regras e controlam o território enquanto for possível.
Este é o quadro que encontramos em Parque Royal, o qual nos leva a observar a necessidade
de ajustes na política de urbanização de favelas. Sem a observância das questões aqui levan-
tadas, o processo de urbanização é rapidamente engolido pela lógica da favela.
3.2.
Parque Fernanda I – PAT-PROSANEAR

Parque Fernanda I é uma favela da Zona Sul da cidade de São Paulo que fez parte do mesmo
contrato de projetos dentro do programa PAT-PROSANEAR, o Lote E, que englobava outras
duas favelas vizinhas – Jardim Irene II e Jardim das Rosas301. As três estão situadas no Campo
Limpo, distrito que concentra o maior número de favelas302 da cidade e tem o maior percentual
do total de sua área ocupada por favelas.
A região do Campo Limpo teve ocupação habitacional mais intensa entre os anos 1970
e 1980, quando surgiram loteamentos e conjuntos habitacionais do Estado para as camadas
mais populares e, a partir dos anos 1990, com o deslocamento das grandes indústrias que
ali operavam para fora da cidade abrindo espaço para novos empreendimentos imobiliários
para as classes média e alta.
Os primeiros moradores de Parque Fernanda I chegaram no início dos anos 1970 (GTA/
GCA, 2006). Como a maioria das favelas de São Paulo, Parque Fernanda I se formou através
da ocupação de áreas dos loteamentos vizinhos que eram destinadas a espaços públicos
e áreas verdes para preservação de margens de rios e de mananciais. Este é o caso tam-
bém de Jardim Irene II e Jardim das Rosas, que formam o conjunto de favelas do mesmo
contrato: embora não sejam contíguas, é comum entre as três a ocupação das margens de
cursos d’água que desaguam no córrego Pirajussara303 (Fig. 50), afluente do rio Pinheiros e
divisa entre a capital e o município de Embu das Artes. O Pirajussara, com quase 20km de
extensão, poluído e com problemas de enchentes, como outros cursos d’água paulistanos,
estava em processo de canalização à época do projeto de urbanização das favelas. As obras
de canalização incluíam a construção de bacias de retenção, conhecidas como piscinões, e
de espaços lineares vegetados com múltiplos usos coletivos para a preservação das margens
198 do Pirajussara, denominados como corredores verdes. Estes termos também foram adotados
no projeto de urbanização das três favelas, fato que indica integração com o projeto de
canalização em andamento.

301. As três favelas estão demarcadas como ZEIS 1 (W097) no Plano Diretor Estratégico (Lei nº 13.430/02) e no Plano
Regional Estratégico do Campo Limpo (Lei nº 13.885/04).
302. A região do Campo Limpo possui 184 favelas, 10% do total das favelas da cidade, além de 44 loteamentos irregulares
e 41 núcleos urbanizados. A cidade de São Paulo tem 1.727 favelas cadastradas pela Secretaria de Habitação (Sehab), com
391.326 domicílios estimados em favelas (HABISP, 2014) Disponível em http://www.habitasampa.inf.br/habitacao/ Aces-
sado em 05 de fev. de 2020. No Habisp, Parque Fernanda I, Jardim Irene II e Jardim das Rosas já aparecem como núcleo
urbanizado: https://mapa.habitasampa.inf.br/
303. O corpo d’água que cruza Parque Fernanda I não possui nenhum nome específico, sendo identificado pelo projeto
como córrego. Para diferenciá-lo do córrego Pirajussara, chamaremos este último apenas como Pirajussara e o primeiro
de Córrego, ambos com letra maiúscula.
199

Figura 45
Imagem aérea de 1948, quando havia ainda muita
vegetação na região. Em laranja, os limites de
Campo Lindo, e os das três favelas do contrato.
Fonte intervenção da autora sobre imagem da GTA/GCA, 2006.

Figura 46
Região em 1960, quando estavam sendo construídos
os loteamentos. Fonte intervenção da autora sobre imagem
da GTA/GCA, 2006.
O conjunto edificado no Campo Limpo possui padrões construtivos contrastantes: os
conjuntos habitacionais populares e para a classe média, verticalizados, se destacam do
restante edificado de baixo gabarito, formado por loteamentos de classe alta, populares e
favelas, cuja casa é a tipologia predominante. Sua população também é heterogênea, mas
geograficamente separada: nas proximidades da Estrada de Itapecerica, importante eixo de
transportes da região e zona mais valorizada, estão localizados os loteamentos destinados
à classe alta, enquanto que, nas faixas lindeiras ao Pirajussara, alagadiças e no limite do mu-
nicípio, onde se localiza Parque Fernanda I e as outras duas favelas, a predominância é dos
loteamentos populares e dos conjuntos habitacionais construídos pelo Estado, cuja popula-
ção tem baixos rendimentos e níveis de escolaridade. As favelas permeiam todo o território
de Campo Limpo.

Figura 47
Paisagem de Campo Limpo. Loteamentos,
200 vazios especulativos e conjuntos habitacionais
verticais. Fonte GTA/GCA, 2006.

Embora esteja no limite dos municípios de São Paulo e Embu das Artes, e a mais de 15km
do centro da cidade, Parque Fernanda I é bem conectada, próxima à Estrada de Itapecerica
e a 15 minutos de caminhada até a estação de metrô Campo Limpo (Linha 5 - lilás). Há grande
variedade de comércio e serviços na região, no entanto, há “escassez de oferta de empregos
na região, configurando-se como dormitório” (GTA/GCA, 2006). O transporte é muito utilizado
pelos moradores da favela para atividades na região, mas, sobretudo, para deslocamento ao
trabalho em outra região da cidade.
Parque Fernanda I se distingue pouco do entorno imediato, que é formado por loteamen-
tos populares regulares. O conjunto edificado se assemelha a um conglomerado de casas, o
que é uma característica típica das periferias das cidades brasileiras, com a ausência de praças
ou áreas verdes para alterar a paisagem. Assim como outras favelas da Grande São Paulo,
esta começou a se formar seguindo uma estrutura semelhante aos loteamentos do entorno.
A falta de revestimentos nas edificações e o avanço sobre o alinhamento são sutis aspectos
que ajudam a ressaltar a diferença entre a favela e a vizinhança.

Figura 48
Rua Serafim Ponte Grande, fronteira entre loteamento regular, à esquerda, e
a favela Parque Fernanda I, à direita, com pequenos comércios e edificações
sem revestimentos. Fonte Google Street View/2011.

201 Em 2004, o Município iniciou o processo de regularização fundiária de Parque Fernanda I,


com a desafetação das terras públicas municipais que configuravam parte da ocupação da
favela304. Em 2006, 445 domicílios já haviam recebido o título de Concessão de Uso, 1 pos-
suía Termo de Permissão de Uso e 7 tinham escritura (SEHAB, 2014, p. 40). Isso ajudou a dar
segurança de posse do domicílio e impulsionou investimentos dos moradores na moradia.
No entanto, sem o controle do poder público sobre a expansão da favela, à época do início
do projeto, Parque Fernanda I já era densamente ocupada, sem espaços verdes ou coletivos a
não ser o sistema viário de becos e escadarias e algumas vias carroçáveis que se transformavam

304. A área pública municipal, foi desafetada pela Lei Municipal nº 13.514, de 16 de janeiro de 2003, com perímetro retificado
pela Lei Municipal nº 14.665, de 08 de janeiro 2008. De acordo com diagnóstico, “Em março de 2004, quando grande parte da
área passou a integrar o Programa de Regularização Urbanística e Fundiária, o cadastramento socioeconômico apontou a exis-
tência de 1.011 imóveis, sendo 969 de uso residencial ou misto e 42 de uso não residencial. Do total dos imóveis, 70 estavam si-
tuados em área de risco de inundação e/ ou solapamento, dada a sua proximidade com o córrego existente.” (SEHAB, 2011, p. 7)
em área de lazer das crianças. Basicamente, o conjunto edificado já era de casas de 1 a 2
pavimentos em alvenaria, restando poucos barracos de madeira.
O Córrego, afluente do Pirajussara, estava com suas margens totalmente ocupadas por
casas e barracos de madeira (Figs. 50 e 52) que lhe faziam fundos e que, em certos trechos,
já o encobriam (Fig. 51), fazendo o Córrego desaparecer na paisagem.

Figura 49
Parque Fernanda antes da urbanização, já totalmente
ocupada e quase sem vegetação. Fonte intervenção da
autora sobre imagem do GEarth/2002.

202
Os principais problemas de Parque Fernanda I estavam ligados ao saneamento e ao
meio ambiente, com presença de lixo por toda a área da favela – nas ruas e no Córrego –
e de esgoto a céu aberto, que causavam mau cheiro, perigo de contaminação e presença
de vetores. Além disso, a estrutura urbana da favela era bastante deficiente: faltavam áreas
de lazer e serviços essenciais na região, como agências bancárias, correios, casas lotéri-
cas e telefones públicos. Os serviços públicos existentes – creches, unidades de saúde,
escolas – eram considerados pela população local como deficientes, por não suprirem a
demanda e terem baixa qualidade de atendimento. O fato de já existirem era uma oportu-
nidade, mas eram deficitários em capacidade e na qualidade do atendimento e do ensino,
e precisavam de investimentos neste campo. Também era preciso resolver as condições
ambientais do Córrego, cuja desocupação das margens poderia ser uma oportunidade
para a criação de áreas de lazer e de um sistema viário complementar que garantisse per-
meabilidade à favela.
203

Figura 50 Figura 52
Parque Fernanda I Trechos do Córrego ainda descobertos,
encontro do Córrego com o Pirajussara. que foram canalizados pelos moradores.
Fonte GTA/GCA, 2006. Este era o destino do esgoto das moradias
construídas nas margens. Fonte GTA/GCA, 2006.
Figura 51
Trecho do Córrego obstruído por entulho Figura 53
e lixo e início do trecho encoberto. Fonte Vias e becos com esgoto a céu aberto,
GTA/GCA, 2006. e únicos espaços de lazer das crianças.
Fonte GTA/GCA, 2006.
3.2.1. O projeto (ou a ideia)
O projeto de urbanização de Parque Fernanda I foi desenvolvido entre 2006 e 2008 pelo
Consórcio GTA/GCA, vencedores da licitação pública na modalidade técnica e preço para
consultoria de projeto que incluía o Plano de Desenvolvimento Local Integrado (PDLI), o
Plano de Saneamento integrado (PSI) e Plano do Trabalho Social (PTS), dentro do Programa
de Assistência Técnica - PAT-PROSANEAR. O projeto resultante deste contrato foi depois
executado com recursos próprios da Prefeitura, somados a recursos de convênios com a
Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) e
recursos federais através do PAC/Projetos Prioritários de Investimentos – PPI/Intervenções
em Favelas – Saneamento Integrado, da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental.
Mais específico que o PAC-UAP, o PAC/PPI/Saneamento Integrado aplicava os recursos em
ações integradas para saneamento, eliminação de riscos ambientais e reassentamento das
populações em vulnerabilidade socioambiental. Além de Parque Fernanda I, a licitação de
projeto incluía também Jardim Irene II e Jardim das Rosas, e o contrato de obras para as três
favelas ficou conhecido na Secretaria de Habitação como o PAC-Três Irmãs. As obras foram
consideradas concluídas pela Prefeitura em 2013.
Como visto na metodologia do PAT-PROSANEAR descrita no Cap. 2, item 2.2.1, o PDLI é
o primeiro produto abrangendo uma área ampla além do território da favela, a qual é depois
objeto do PSI, que direciona para as obras no interior da favela. No caso do contrato de Parque
Fernanda I, o PDLI focava numa área ainda mais ampla, visto que englobava também as ou-
tras duas favelas. Dentre as propostas do PDLI, estavam a recuperação urbana e ambiental de
grande parte da área, através da melhoria da infraestrutura e do saneamento das áreas defici-
tárias (manchas cinza na Fig. 54) assim como a determinação de uma reserva de área através
de ZEIS para provisão de habitação de interesse social (manchas amarelas na Fig. 54) visando
reduzir o adensamento construtivo para prover novos espaços coletivos no distrito do Cam-
204 po Limpo. Também se propunha a melhoria dos serviços básicos (unidades básicas de saúde,
creches, escolas), a construção de novos equipamentos coletivos quando fosse o caso, e
a melhoria das conexões viárias transversais entre Estrada de Itapecerica e o Pirajussara,
que eram existentes, mas deficientes.
Estas vias, quando reestruturadas, permitiriam a penetração de transporte público nas
áreas menos favorecidas do Campo Limpo. No PDLI, foi lançada a proposta de continuidade
da canalização do Pirajussara com novo sistema viário marginal e um Caminho Verde, aos
moldes do que estava sendo executado em outro trecho do Pirajussara, nos limites da capital
com Taboão da Serra, através da Secretaria de Infraestrutura Urbana e Obras – SIURB, além
do fortalecimento dos centros de bairros nos importantes entroncamentos viários junto à
futura intervenção no Pirajussara, associando melhorias urbanas à recuperação ambiental.
Todas estas estratégias de ação visavam o desenvolvimento da região, apontando para a
necessidade de investimentos nas áreas urbanas degradadas do Campo Limpo, onde se con-
centravam as populações com menos recursos. É importante destacar que as ações do PDLI
eram apenas indicativas para o município e seus projetos deveriam ser custeados por outros
recursos, visto que o PAT-PROSANEAR financiava apenas os projetos básicos e/ou executivos
incluídos no PSI, segunda etapa do contrato de projeto.

205

Figura 54
Imagem original do PDLI para a região das favelas Parque Fernanda I,
Jardim Irene II e Jardim das Rosas (em laranja). Fonte intervenção da autora
sobre imagem do GTA/GCA, 2006. (A imagem original foi apenas rotaciona para coloca-la
na mesma orientação que as outras imagens de Parque Fernanda I apresentadas nesta
pesquisa, sem qualquer alteração de seu conteúdo.)
Cada uma das favelas do contrato teve posteriormente o PSI desenvolvido, que, em
linhas gerais, propunha como principais ações internas a estes territórios a desocupação das
margens dos cursos d’água que cortavam as três favelas, a implantação de corredores ver-
des nas margens desocupadas, que se integrariam com a futura intervenção no Pirajussara
e a implementação do saneamento básico em todo território das favelas. Para reassentar
as famílias que habitavam as margens e áreas de risco, era proposta a construção de novos
edifícios de UHs, tipologia que traria maior densidade habitacional visando o atendimento
de todas as famílias realocadas na favela. De acordo com as diretrizes do Programa, caso
não fosse possível o atendimento do total de famílias removidas na mesma favela, as não
atendidas poderiam ser reassentadas em outro local próximo à área de intervenção. A estra-
de risco, era proposta a construção de novos edifícios de UHs, tipologia que traria
tégia de projeto foi montar um quadro total das famílias removidas nas três favelas e propor
maior densidade habitacional visando o atendimento de todas as famílias realocadas
construir o equivalente de novas UHs para garantir reassentá-las em uma das três favelas.
na favela. De acordo com as diretrizes do Programa, caso não fosse possível o
A prioridade era relocar a todos na mesma favela, mas caso isso não fosse possível, algumas
atendimento do total de famílias removidas na mesma favela, as não atendidas
famílias seriam deslocadas para a outra favela vizinha, se assim aceitassem.
poderiam ser reassentadas em outro local próximo à área de intervenção. A estratégia
de projeto foi montar um quadro total das famílias removidas nas três favelas e propor
construir
Tabela 16 o equivalente de novas UHs para garantir reassentá-las em uma das três
favelas.
Quadro deA prioridade
problemas era relocarconstruído
e soluções a todos najunto
mesma
comfavela, mas caso isso não fosse
os moradores
possível, para direcionar
algumas ações do
famílias seriam deslocadas PSI em
projeto dopara a outra favela vizinha, se assim
Parque Fernanda I. Fonte GTA/GCA, 2006.
aceitassem.

PROBLEMAS SOLUÇÕES

esgoto – a céu aberto, mal cheiro, perigo de Implantação de rede de esgoto


contaminação, presença de ratos e baratas, Serviços de saneamento básico, canalização do
depósito de lixo. fator principal da depreciação Córrego.
do córrego.

lixo – jogado em todo lugar, na rua, nos Canalizar o Córrego, multas,


córregos. falta varrição e pontos de coleta. Orientação aos moradores.
dispostos fora do horário, cachorros rasgam o Educação.
saco.

206 iluminação – baixa tensão e fiação baixa e Implantação de serviço de luz em todas as
perigosa. posteamentos de madeira, sujeito a casas, troca dos postes de madeira por
incêndios. falta iluminação nas vielas e concreto, orientação aos entregadores da conta.
escadões. casas sem relógio individual, contas Melhoria da iluminação pública.
de luz que não chegam no domicilio correto.

serviço público – saúde - demora nas Melhoria no atendimento.


consultas, falta de qualidade das consultas, mau Maior número de consultas.
atendimento nos postos de saúde, ausência do Maior dedicação e boa vontade. Presença do
Programa Saúde da Família na favela. Programa Saúde da Família.

serviços essenciais – falta de agência Instalação de rede de serviços. Organização


bancária, correios, casa lotérica, telefones da comunidade para a cobrança do poder
públicos e manutenção. publico. Instalação de orelhões.

educação – ausência dos professores nas Criação de novas creches, melhoria na


escolas, alunos que não sabem ler, baixa qualidade do ensino, organização da
qualidade nas merendas e falta de creches, comunidade para reivindicar estas melhorias.
mediante as demandas de espera.

lazer – ausência de espaços de lazer e Aproveitamento de áreas para lazer, ruas e


convivência. escolas. Implantação de áreas verdes,
parquinhos, centros de convivência e atividades
dirigidas para as crianças.

pavimentação – vielas esburacadas, Melhorar as vielas e canalizar o córrego.


enxurradas, e em alguns lugares enchente.

Tabela 16: Quadro de problemas e soluções construído junto com os moradores para direcionar
ações do projeto do PSI em Parque Fernanda I.
Fonte: GTA/GCA, 2006.
As ações apontadas no PSI foram alinhavadas pela equipe de projeto a partir de levanta-
mentos físicos e sociais na área, demandas e informações dos moradores apresentadas em
reuniões e nas oficinas empreendidas pelo PTS (Tab. 16), e atendendo também às diretrizes
do Programa, que tinha o enfoque em saneamento e recuperação ambiental.
Em Parque Fernanda I, o foco de intervenção era o saneamento e o tratamento da área
de risco representada pelo Córrego e suas margens ocupadas. Para tal, usou-se de um PSI
que integraria soluções para o Córrego e para a remoção e reassentamento das famílias em
vulnerabilidade socioambiental, bem como aos espaços que se abriam a partir da remoção
das margens do Córrego, com a possibilidade de criação de áreas de lazer que não existiam
em Parque Fernanda I. Com remoções e com a meta de realocar as famílias removidas no
local, as novas moradias teriam um importante papel na reestruturação do tecido urbano
da favela. Ademais, a solução para o Córrego também teria papel crucial para conter a não
reocupação.
Identificamos na Tabela 16, na página anterior, que as soluções para os serviços de saúde
e educação foram empregadas no sentido da melhoria da gestão e do atendimento dos
equipamentos existentes e, se isso não fosse suficiente, para prover novos equipamentos
fora do PAT-PROSANEAR. No PSI de Parque Fernanda I, o único equipamento coletivo imple-
mentado foi um Centro Comunitário.
Parque Fernanda I possuía território praticamente ocupado pelos 807 domicílios que
foram selados305 no início do projeto (Fig. 55). Para resolver questões ambientais e de risco,
a urbanização demandaria remoções. Como se deu o processo de construção da proposta
para urbanizar Parque Fernanda I? A seguir, veremos a metodologia que auxiliou na defini-
ção da intervenção de urbanização que foi aprovada pelos moradores, mesmo implicando
um alto número de remoções de famílias que viviam às margens do Córrego.

207

305. Termo utilizado em São Paulo equivalente a cadastrados, que é o adotado no Rio de Janeiro.
Figura 55
Setorização adotada pela equipe de projeto em
Parque Fernanda I e identificação utilizada na Selagem.
Toda a documentação e informativos junto aos
moradores seguiam também esta padronização
de cores. Fonte GTA/GCA, 2006.

3.2.2. Como se deu o processo


A arquiteta “G.” nos relata que “a construção deste projeto foi em um ano e oito meses, mais
ou menos” (informação verbal)306, praticamente dobrando o prazo previsto pelo escopo de
208 projeto do PAT-PROSANEAR307. Ela considera que este é o tempo correto para o desenvolvi-
mento de projetos que pretendem ser efetivamente participativos. As reuniões tinham que
acontecer aos fins de semana, de acordo com a disponibilidade dos moradores, e não a dos
arquitetos ou gestores, que normalmente trabalham em horário comercial. “Era o processo
físico e social em paralelo”, correndo juntos, e tudo com transparência e muita discussão:

Inicialmente, fizemos o Cadastro e Selagem, sobre a topografia realizada. A sela­-


gem é como um congelamento das áreas: não entra nem sai mais ninguém por-
que a partir daí, já estão todos cadastrados. E foi setorizado para ficar mais
fácil de trabalhar. (Após os levantamentos,) voltamos com as informações para a

306. Entrevista fornecida pela arquiteta “G.”, da equipe do projeto, a esta pesquisa em abril de 2019.
307. Ver Cap. 2, item 2.2.1.
população, apresentando o que eles disseram e o que resultou, fazendo um com-
parativo (entre os) problemas e quais as soluções. Foram escolhidos os coorde-
nadores de setores, fazia-se reuniões por vielas, com discussões in loco sobre
meio ambiente, habitação, equipamento, infraestrutura, tudo o que envolvia o
programa. Porque em cima destes sistemas, inclusive, faz-se a construção tam-
bém do PTS. Então era a questão física e a questão social (discutindo) em cima
dos problemas que tinha (em Parque Fernanda). (informação verbal)308

Na metodologia do PSI do PAT-PROSANEAR, está prevista a etapa Estudos da Concepção,


que consiste na construção de três alternativas de intervenção com abordagens e custos
diferentes, para servir de base no processo decisório do projeto. Essas alternativas são dis-
cutidas entre técnicos, gestores e moradores, que finalmente definem qual delas se trans-
formará no projeto definitivo a ser executado.
Devido às características do território e à necessidade de remoções para implementar
melhorias, os três estudos discutidos com a população local e órgãos estavam balizados na
relação entre a quantidade de remoções e a qualidade urbana que cada proposta traria à
favela. É importante observar que nas três alternativas apresentadas, o sistema viário pro-
posto era sempre o mesmo, que foi construído “de acordo com o que eles apontavam de di-
ficuldade pra gente” (informação verbal)309. Isso indica que o viário proposto era o mínimo,
considerado pela equipe de projeto e pelos moradores como imprescindível para solucionar
os sistemas de saneamento da área.
A proposta 1 (Fig. 57) era a mais conservadora, se caracterizando por remoções pontuais
das áreas de risco e com oferta de nova moradia, mas fora de Parque Fernanda I. Nesta pro-
posta, não havia reassentamento nem produção de UHs dentro da favela. As melhorias ur-
banas estariam focadas na implementação e no alargamento do sistema viário (todas as vias
209 em cinza nas Figuras 57 a 59 a seguir) e na infraestrutura complementar que usaria o sistema
viário como leito, mas sem grandes modificações no tecido urbano do assentamento. Neste
caso, 159 famílias estariam sendo removidas da favela e seriam reassentadas em outra área.
O estudo intermediário, a proposta 2 (Fig. 57), já trazia alguns novos edifícios para reas-
sentamento no local, possibilitando que muitas famílias removidas permanecessem na fave-
la em novas UHs. De todo modo, 40 famílias ainda teriam que ser deslocadas para outra área.
Neste estudo, o sistema viário proposto é idêntico ao da proposta 1, ficando o diferencial
para o reassentamento de parte da população removida na mesma favela.
Finalmente, a proposta 3 (Fig. 58) era a mais ousada em termos de reestruturação do
tecido da favela, propondo mais áreas de lazer e espaços verdes ao custo de mais remoções,

308. Entrevista fornecida pela arquiteta “G.”, da equipe do projeto, a esta pesquisa em abril de 2019.
309. idem.
mas, ao mesmo tempo, garantindo que todos fossem reassentados na favela, restando um
saldo de 5 novas UHs para atender as famílias removidas de uma das outras duas favelas do
contrato. A opção habitacional que permitia maior densidade, nos relatou “G.”, tinha o se-
guinte partido: “verticaliza até 7 pavimentos sem elevador, dois pra baixo e cinco para cima
aproveitando a própria topografia do terreno.” (informação verbal)310

310. Entrevista fornecida pela arquiteta “G.”, da equipe do projeto, a esta pesquisa em abril de 2019.

Figura 56
Proposta 1
A mais conservadora das três.
Fonte GTA/GCA, 2006.

210
211

Figura 57
Proposta 2
Estudo intermediário com algumas novas UHs.
Fonte GTA/GCA, 2006.

Figura 58
Proposta 3
A mais ousada das três, com mais remoções e reas-
sentamento de todas as unidades na própria favela.
Fonte GTA/GCA, 2006.
Tabela 17
Material de apresentação ao Conselho Gestor para a discussão sobre as três alternativas urbanas para Parque
Fernanda I. Fonte: Consórcio GTA/GCA, 2006.
Este material fez parte da apresentação para a comunidade em reunião com o Conselho Gestor, criado durante o projeto. “A Pre-
feitura fazia a regência dessas reuniões, a (consultoria de projeto) ajudava com todos os dados técnicos... ela é oficial. (O Conselho
Gestor do bairro) tem um estatuto e é renovado a cada tantos anos... E eles, os representantes, entrariam nesse conselho.” (infor-
mação verbal obtida através de entrevista concedida em abril de 2019 a esta pesquisa pela arquiteta “G.”, consultora de projetos no
PAT-PROSANEAR). Este conselho gestor tem sua origem nos Conselhos Setoriais Municipais, da estrutura organizacional participa-
tiva da sociedade civil adotada na gestão Marta Suplicy para discutir questões do bairro, até chegar ao orçamento participativo. “Os
Conselhos Gestores visam promover a participação dos munícipes nas deliberações sobre urbanismo, moradia e infraestrutura de
diversas regiões da Capital.” (Fonte: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/habitacao/participacaosocial/conselhoseor-
gaoscolegiados/index.php?p=261910. Acessado em 25 de novembro de 2019)

212

Foi, ao final, escolhida a Proposta 3, a mais ousada das três (Fig. 58), mesmo esta signi-
ficando a demolição de 300 domicílios, 37% do total do assentamento, e a construção de,
no mínimo, o mesmo número de novas UHs para relocar todos estes moradores em Parque
Fernanda I. Esses procedimentos necessitavam de um investimento 30% mais alto do que
a alternativa mais conservadora311. ”G.” relata que a alternativa 3 foi a escolhida, pois “era a
que conseguia que todos fossem relocados internamente”, mas foi colocada uma condição
pelo poder público: “desde que eles não estendessem as suas moradias e não houvesse novas

311. O investimento previsto para a alternativa mais conservadora era de R$13.333,73 por domicílio. Na proposta escolhida,
passaria a ser de R$17.390,50 por domicílio (GTA/GCA, 2006). Após a conclusão das obras, este valor mais que dobrou,
ficando em R$40.820 por domicílio. Este cálculo foi feito a partir do valor do investimento total (AKAISHI et al., 2018,
p. 56) sobre o número de domicílios da favela que permaneceram em Parque Fernanda I após a urbanização (SEHAB, 2011).
ocupações.” (informação verbal, grifo original)312. Destacamos que este acordo, ao que
parece, foi cumprido, garantindo o controle da expansão da favela entre projeto e obra.
A população praticamente se manteve entre o início do projeto, quando 807 domicílios fo-
ram selados, até o início das obras, apenas com 16 domicílios a mais cadastrados.
O resultado da etapa Projeto Executivo foi bem próximo à Proposta 3 aprovada na etapa
Estudos da Concepção. Foram efetivados apenas pequenos ajustes técnicos, definindo-se
com mais precisão no Executivo quais terrenos seriam finalmente utilizados para as novas
UHs, abandonando-se o aproveitamento da área 1 (indicada na Fig. 59), e os novos edifícios
transferidos para a área 2 (indicada na Fig. 59). Uma área substancial da favela foi reestrutu-
rada recebendo novos edifícios de UHs para reassentar as famílias oriundas da desocupação
das margens do Córrego e o resultado, finalmente, envolveu grande número de remoções.
A faixa verde na figura 59 é o Caminho Verde, que foi implantado sobre o leito do Córrego,
totalmente tamponado no projeto final. Mas esta não foi a proposta da equipe de projeto,
uma vez que

houve uma proposta inicial do córrego aberto, buscando recuperar as nascentes


que foram todas cobertas.... No Trabalho Social, vieram a histórias das lavadeiras
que utilizavam as nascentes, como eles ocupavam essas áreas. A gente recuperou
essas histórias com os moradores mais antigos... Teve todo esse percurso de mos-
trar (para os moradores) do porque desse parque e desse Caminho Verde. A ideia
era fazer eles olharem o Córrego de um modo diferente. (informação verbal)313.

A definição dos espaços e do programa de atividades que existiriam no Caminho Verde


ao longo do Córrego aberto foi construída coletivamente entre arquitetos e moradores:

213 A gente construiu uma maquete com eles mostrando essa espacialização. Se
(o Córrego) fosse aberto, que tipo de parque linear a gente teria nestas três áreas?
[...] O que nós chamamos de construção coletiva foi o fato de trazer as ideias
dos moradores para a linguagem técnica. Eles não construíram o desenho, mas
apontavam o que era necessário para essa praça e esse Caminho Verde. Inclusive,
com as espécies (arbóreas) que lembravam culturalmente de onde eles vinham...
Enfim, teve toda essa discussão. O projeto foi pensado em lâminas d’água, cujos
canteiros fariam a retenção ao longo do caminho ajudando a velocidade até o
Pirajussara, funcionando como piscininhas, nas áreas de APP, ou seja, ao longo dos
15 metros de cada lado do córrego interno... (informação verbal)314.

312. Entrevista fornecida pela arquiteta “G.”, da equipe do projeto, a esta pesquisa em abril de 2019.
313. Idem.
314. Idem.
Figura 59
Proposta final do Projeto Executivo, desenvolvida a
partir da proposta 3 aprovada pelos gestores e mora-
dores na etapa Estudos da Concepção.
Fonte intervenção da autora sobre imagem da GTA/GCA, 2007.

Mas a conta entre projeto e remoções não fechava quando era pensada a canalização
aberta do Córrego: de acordo com “G.”, na legislação ambiental, a faixa de Área de Proteção
Permanente (APP) precisava ser de 15 metros, o que resultaria na retirada de praticamente
todas as casas que ficavam em frente à rua Nilton Machado de Barros e que tinham qualida-
de construtiva melhor. Além disso, o projeto teria que reassentar todas famílias na própria
favela. Várias propostas

214 foram discutidas, com pontos negativos e positivos, ao longo do processo junto aos
moradores, órgãos públicos e aprovações nos órgãos ambientais pertinentes. Mas
esta solução acarretaria num número maior de remoções e afastamento, segundo
as normas ambientais vigentes. A prefeitura e os moradores foram consultados onde
haveria a possibilidade de canalização efetiva adequada (aberta), uma vez que a
área já apresentava este tamponamento feito pelos moradores e consequentemente
já estava muito antropizada. O que conseguimos foi manter (nos espaços coletivos)
uma faixa com equipamentos e permeável, onde os quadrantes com equipamentos
funcionariam como uma lâmina de água para retardar o volume superficial até o
Córrego... e uma faixa verde que contribui interligação com outros caminhos verdes
propostos no plano estratégico do município.” (informação verbal)315.

315. Entrevista fornecida pela arquiteta “G.”, da equipe do projeto, a esta pesquisa em abril de 2019.
No fim, a proposta que prevaleceu foi o tamponamento do Córrego e o seu consequente
desaparecimento por completo da paisagem. Estes relatos demonstram que nem sempre o
ideal para o projeto urbano é possível de ser atingido devido a conflitos entre ocupação urbana
e legislação ambiental. No caso de Parque Fernanda I, se o Córrego permanecesse aberto
(e fosse destamponado onde havia sido coberto), o que poderia sensivelmente trazer qualidade
urbana e ambiental, as faixas de APP para preservação das margens seriam maiores do que na
situação de seu total tamponamento, inviabilizando requalificar o Córrego como elemento
da paisagem. Ao contrário, o fato de encobrir totalmente o Córrego, que foi um elemento
central na formação da favela, não só o suprimiu da paisagem de Parque Fernanda I como o
apagou da memória da população local, como veremos mais adiante. Cabe questionar se a
faixa de APP deveria ser única para todo o território, ou com critérios mais tolerantes em certos
trechos de modo a buscar uma maior preservação do conjunto já construído, ou ainda se a
desocupação total da faixa de APP não poderia ser um objetivo a ser atingido gradualmente.
Com grande experiência em projetos de urbanização de favelas em São Paulo desde
1993, inicialmente trabalhando dentro da Prefeitura com mutirões e depois como projetista
em diferentes programas públicos, “G.” considera

o PAT-PROSANEAR um dos programas mais incríveis por conta de se estudar as


três pontes: se resolve o entorno imediato, se resolve o interior e com o Trabalho
Social dinâmico em todas as fases e depois delas, para se implementar (a obra).
Ele é um bom modelo de programa.” (informação verbal)316

Mesmo com todo um processo decisório participativo e com metodologia que tentava
minimamente amarrar as definições em curso, o projeto foi depois alterado durante as
obras e por outros profissionais que não seus autores, à revelia do que havia sido discutido e
aprovado na elaboração do PSI. Só Escopo e Metodologia não são capazes de estruturar as
215
ações, mas podem de certo modo amarrá-las para reduzir interferências de outros atores
que entram depois no processo de implementação das obras. Mesmo “G.” não tendo sido
contratada posteriormente para adequar os projetos durante as obras, ela conseguiu acom-
panhar, com certa distância, o processo. Foi a metodologia participativa que, na sua opinião,
articulou esta rede de comunicação e criou laços de confiança:

Começamos a fazer as adequações que eles pediram, mesmo técnicas [..], mas foi
muita polêmica com a construtora, não tinha muito respaldo da Prefeitura, aí a
gente achou melhor sair do processo. Porque então você tinha que acatar o que a
empreiteira estava querendo fazer, é mais complexo, né?...” (informação verbal)317.

316. Entrevista fornecida pela arquiteta “G.”, da equipe do projeto, a esta pesquisa em abril de 2019.
317. Idem.
A troca de administrações, com divergências políticas, também influencia no processo.
No caso do contrato em questão, planejado e concebido dentro do PAT-PROSANEAR e que
depois recebeu recursos federais para as obras através do PAC,

ainda mais tendo a administração seguinte que não queria nem saber de urba-
nizações, foi uma ruptura.... então, é bem complicado. Digo, a nova gestão que
fez a obra, né? O que importava para eles era trazer o adensamento, o maior
número de pessoas ser colocado nessa área sem uma qualidade de uso, a ques-
tão intersecretarial que a gente tinha trabalhado... então quando rompe, tem
um trabalho que se perde. Mas, em termos de projeto, a discussão foi intensa,
super rica, das três áreas e do entorno também. Mas a execução é que realmente
– pode ter tido n motivos que a gente não pode supor, né? Eu soube de orelhada,
de morador, de amigos que trabalhavam dentro da Prefeitura, as dificuldades,
enfim... a empreiteira que sai, entra outra. Negociações. Com uma nova admi-
nistração, é bem mais complicado.” (informação verbal)318.

As mudanças de projeto começaram a ser feitas sem os autores do projeto e com pro-
cedimentos que desestruturavam soluções discutidas e aprovadas pelo conselho gestor e
moradores:

A gente foi retirada do processo, ficou só a construtora realmente com a Prefeitura.


Inclusive, é muito legal a questão forte do Trabalho Social que a gente faz, foi
muito relevante, porque as lideranças ligavam pra cá direto.... E pra não modificar
intensamente o projeto, eles pediam pra gente.... ‘Mas, e aquilo que vocês discu-
tiram com a gente? Não pode! Eles estão fazendo errado!’ (E ela aconselhava)
216 ‘Bom, vocês aprovaram! Vocês têm um conselho gestor.... Vai lá e reivindica o que
vocês aprovaram!’ (informação verbal)319.

Foi a metodologia participativa do PAT-PROSANEAR que, inclusive, deu papel protagonista


aos moradores para interferirem nas tentativas de mudanças não planejadas e que iam de
encontro aos seus interesses, e para garantirem que o projeto fosse minimamente respeitado.

O que eu sinto que foi interessante é esse processo de participação intenso.


Todos sabiam exatamente como era o projeto, o que ia acontecer. Tanto que pra
Prefeitura mudar o projeto – porque eles queriam mudar num certo momento,

318. Entrevista fornecida pela arquiteta “G.”, da equipe do projeto, a esta pesquisa em abril de 2019.
319. Idem.
radicalmente – não conseguiram! Não conseguiram mudar. [...] Então, o que se
deve muito à essa semelhança (com o projeto) ao que tem hoje lá, é por esses mora-
dores e da participação deles. Foi um ganho. (informação verbal, grifo original)320

Como observamos neste caso de Parque Fernanda I, mesmo com o projeto muito bem
amarrado e com todos os atores envolvidos, mudanças de projeto acontecem durante as
obras. A metodologia participativa, por fim, conseguiu minimamente garantir aliados capa-
zes de defender o que foi discutido e aprovado por eles, tornando-se importantes agentes
controladores do processo de implementação do projeto.
As principais alterações foram relativas à disposição dos edifícios de UHs. Isto parece ser
uma adequação que não teria tanto peso, visto que o importante, diriam alguns, seria garan-
tir que todos os moradores fossem relocados na mesma área. Pode até ter sido o argumento
de convencimento dos próprios moradores para aceitar as mudanças do projeto, visto que
eles sempre foram contrários a serem relocados em outra área. Na época das obras, “G.”
recebia telefonemas dos moradores preocupados com as mudanças do projeto e com o au-
mento das remoções: “Durante os primeiros dois anos de obras, eles ficaram muito aflitos,
porque estava dando problemas e na obra estavam falando que tinha que sair todo mundo e
que não ia poder construir, que os moradores iam para outro local...” (informação verbal)321.
Efetivamente, se considerarmos que os edifícios de UHS correspondiam em projeto a 37%
da população da favela, logo qualquer modificação neste âmbito é relativamente significativa.
O fato é que, entre projeto final e projeto executado, o número de famílias removidas passou
de 300 para 458 (SEHAB, 2011), o que correspondeu, ao final, a 56,7% do total do assentamento.
Como resultado bastante positivo, destacamos, mesmo com as alterações de projeto e maior
número de remoções, o fato de que praticamente todas as famílias foram reassentadas na
mesma favela322. A ideia original do projeto era reduzir o adensamento do conjunto edificado
217 e abrir espaços coletivos em Parque Fernanda I, mas o equilíbrio entre remoções e novas áreas
de lazer nem sempre atinge uma escala ideal. A arquiteta “G.” considera que,

urbanisticamente, o adensamento ficou muito alto, mas era necessário por falta
de oferta de outros terrenos nas proximidades. No Jardim Irene e no Jardim das
Rosas, ficou praticamente idêntico ao que o projeto mostrou [...], mas em Parque
Fernanda I, não. Eles quiseram colocar mais prédios e mudaram um pouco a
tipologia (das UHs) na execução de obra. O que se tinha de um parque bacana

320. Entrevista fornecida pela arquiteta “G.”, da equipe do projeto, a esta pesquisa em abril de 2019.
321. Idem.
322. Foi atendida a demanda por UHs em diferentes modalidades. Durante as obras, a demanda era para 473 UHs. Deste
número, 345 novas UHs foram construídas, e o restante foi atendido através de: verba para compra de moradia (55 fa-
mílias); verba de apoio habitacional (29 famílias); reconstrução de unidade (6 UHs); e reformas (16UHs). Segundo dados
da SEHAB, em 2011 ainda havia 22 famílias aguardando atendimento até o término da 4ª etapa da obra (SEHAB, 2011).
que vinha do Pirajussara, eles tomaram a borda ali por mais lâminas (de edifícios
de UHs).” (informação verbal)323.

Destacamos que caso a proposta do PDLI fosse implementada conjuntamente com o PSI,
a questão da densidade teria sido melhor resolvida, visto que foram identificados vazios es-
peculativos no Campo Limpo nos quais poderia ser aplicada a função social da propriedade, e
a equipe de projeto indicou reserva de área para ZEIS e produção de HIS, no PDLI. Ações fo-
cadas apenas no território da favela, sobretudo nas densas como Parque Fernanda I, não são
geralmente capazes de atingir o equilíbrio ideal entre densidade do edificado e espaços co-
letivos e este foi, ao menos em Parque Fernanda I, um limite do Programa PAT-PROSANEAR.

323. Entrevista fornecida pela arquiteta “G.”, da equipe do projeto, a esta pesquisa em abril de 2019.

Figura 60
Projeto executado em Parque Fernanda I.
Fonte intervenção da autora sobre imagem da SEHAB, 2011.

218
Na Figura 60, na página anterior, destacamos as mudanças de projeto que ocorreram
durante as obras. A margem esquerda do Córrego entre a rua Nilton Machado de Barros e
o Pirajussara (1 na Fig. 60) acabou se transformando em área de reassentamento com novos
edifícios de UHs em sequência, como comentou “G.” que antes não era previsto no projeto,
e o Caminho Verde virou fundos destes edifícios. Surgiram também dois espaços coletivos:
uma praça linear (2 na Fig. 60) e uma área resultante de remoções para implantação de edi-
fícios para reassentamento, que afinal não aconteceu neste local (3 na Fig. 60). Já no trecho
4 (indicado na Fig. 60), tanto a via carroçável como o edifício de UHs previstos no projeto
original (Fig. 59, p. 263), foram propostas abandonadas324 e só foi implementada via de pe-
destres sobre o leito do Córrego.
O projeto foi alterado ao longo das obras por técnicos da SEHAB apoiados por geren-
ciadora. Sem dúvida, há uma equipe de arquitetos da Prefeitura experiente em acompa-
nhamento de projetos de urbanização de favelas, que fiscaliza e que trabalha com projetos
que não são de sua autoria. Estes acabam por participar, ao longo do processo, de revisões
de parâmetros utilizados no projeto executivo que precisam acontecer durante as obras.
Revisões com a “mão mais leve”, buscando evitar ao máximo remoções, que têm impacto
direto na vida de famílias, na paisagem e no custo da intervenção pública, só são possíveis
no campo e na vivência contínua da obra. Tais revisões garantem um maior equilíbrio entre
o projeto e a realidade. Como vimos, mudanças de projeto são necessárias durante as obras,
mas insistimos em perguntar: por que não envolver os autores dos projetos, que são os que
mais tem propriedade para fazê-lo, pois conhecem todo o processo de elaboração do pro-
jeto junto aos moradores e ao poder público?
A solução em Parque Fernanda I para o Córrego foi a desocupação das margens e sua
total canalização coberta (tamponamento), criando um novo solo urbano, e transferindo as
famílias para novos edifícios de UHs. Na nova área desocupada, foi construído o Caminho
219 Verde, solução urbana que ao mesmo tempo integra espaços coletivos e vias de conexão
interna à favela e ao entorno, e que tem por objetivo garantir uma faixa livre de edificação e
de proteção – uma Faixa non ædificandi (FNA), que foi mantida pela legislação para preser-
var o uso público e a não ocupação dessa linha, agora, de infraestrutura. Podemos dizer que o
risco de enchentes foi eliminado, assim como o de contaminação, dando crédito aos dados
oficiais de que o sistema de esgotamento sanitário e de drenagem foram bem executados.
Mas será que não se criou outro desafio? Como manter essa nova área urbana que se abriu
sobre o Córrego livre de edificação? Como, se a justificativa – o Córrego – não é mais visível
na paisagem? Como o projeto, e as alterações por nós apresentadas, e se mantiveram ao
longo dos anos após o término das obras? É o que delinearemos a seguir.

324. Este edifício de UHs, embora esteja representado na Fig. 61 como executado, não o foi, conforme verificamos em
nossa visita de campo em 2017.
3.2.3. O que se vê 10 anos depois da urbanização
As ações do PAT-PROSANEAR se concentraram apenas no território da favela. “G.” observa
que a escala ampla do PDLI, que engloba tanto favela como entorno, é importante para que
as ações possam impactar na região e potencializar o desenvolvimento social da população
beneficiada pela urbanização da favela. Mas, como expressa “G.”, as ações do PDLI ficaram
apenas como plano não implementado em conjunto com as obras de melhorias nas favelas:

Tudo o que a gente propôs do entorno, não se fez. Essa interligação com o bairro....
só fizeram dentro (da favela), o que é ruim. No entorno, não trabalharam essa
questão da ampliação, uma proposta mais geral com o entorno do PDLI. Era bem
bacana porque ela ia justamente sanar esses problemas de interligação com a
área, de fluxos, de transporte, de mobilidade, tudo, né?” (informação verbal)325.

Destacamos que a implementação de sistema viário adequado e sua pavimentação pos-


sibilitaram a penetração de serviços de limpeza urbana, correios, ambulância e o transporte
público em Parque Fernanda I. Verificamos que, pelo menos, uma linha de ônibus cruza o
território da favela (Fig. 61), agora com status de Núcleo Urbanizado dado pelo poder público
(HABISP, 2014), o que, claro, é insuficiente diante das inúmeras ações propostas pelo PDLI que
não foram implementadas. Mas destacamos que este fato já é uma vantagem em relação a
várias outras favelas que geralmente não são atendidas por transporte público. Observamos
ainda que a região onde está inserido Parque Fernanda I tem grande oferta de linhas de trans-
porte nas proximidades, o que é considerado pelos moradores uma qualidade e influencia
no grau de satisfação de residir na favela (SEHAB, 2014, p. 30).
As obras de urbanização trouxeram melhorias visíveis à favela, com destaque para a
canalização do córrego, saneamento e pavimentação das vias como principais motivos de
satisfação dos moradores (SEHAB, 2014), que, segundo uma moradora, isto não expressa
220
uma conquista, senão uma afirmação de direitos: “Eu não sei dizer uma conquista certa
daqui, porque água, luz, esgoto, eu acho que é tudo um direito de todo mundo, não é bem
uma conquista, é um direito. Todo mundo tem direito de ter a sua casa, de ter onde ficar”
(informação verbal)326.
O novo sistema viário viabilizou a coleta de lixo periódica em toda a favela. Embora ainda
haja descarte indevido de lixo por parte de alguns moradores, o ambiente urbano agora tem outra
aparência. É como nos conta outra moradora: “eu olhava e achava tudo horrível, o caminhão do
lixo retirou o lixo acumulado na rua, antes, tinha muito lixo, e o caminhão não entrava nas vielas.
Agora o caminhão entra nas vielas, recolhe o lixo, deixa tudo limpo.” (informação verbal)327.

325. Entrevista fornecida pela arquiteta “G.”, da equipe do projeto, a esta pesquisa em abril de 2019.
326. Fala de moradora de Parque Fernanda I extraída de Pesquisa Qualitativa (SEHAB, 2014, p. 22).
327. Fala de moradora de Parque Fernanda I extraída de Pesquisa Qualitativa (SEHAB, 2014, p. 29).
Figura 61
Transporte que passa na Rua
Nilton Machado de Barros, em
frente aos novos edifícios UHs
(à dir. na imagem), e cruza trans-
versalmente Parque Fernanda I.
Fonte acervo pessoal, 2017.

Um dos motivos de insatisfação dos moradores está associado à falta de finalização do


processo de regularização fundiária, após a urbanização e cujo projeto urbano estava estrutu-
rado de modo a viabilizá-la328. Por outro lado, a regularização urbanística ocorreu, dando ende-
reço oficial aos domicílios de Parque Fernanda I e promovendo a entrega domiciliar de servi-
ços como Correios e mercadorias, entre outros, o que foi destaque na pesquisa de satisfação
(SEHAB, 2014, p. 87-88). Com, ao menos, a regularização urbanística e o tratamento da área
de risco às margens do Córrego, a sensação de estabilidade já é percebida pelos moradores.
A maior insatisfação dos moradores de Parque Fernanda I se apresenta quando o assunto
é a abertura de espaços de uso coletivo, que começaram a gerar conflitos de convivência.
“G.” critica a falta de investimentos do poder público nos espaços coletivos em

cultura, arte, dentro destas áreas e aí essas áreas livres acabam sendo ocupadas
por outros grupos, que era o grande medo dos moradores (durante o projeto).
221 Eles reclamam bastante dos “pancadões”329 nos espaços coletivos, mas é por-
que não tem uma programação cultural pra dentro dessas áreas, dessas praças,
enfim... fica mais complicado mesmo. (informação verbal)330.

328. O conjunto de documentos que compõe o Projeto de Urbanização contempla uma Planta de Individualização dos Lotes, que
serviria de base para o processo de regularização fundiária, que não foi concluído. “É diretriz da Superintendência de Habitação
Popular – HABI para os domicílios que permanecerão na área urbanizada da favela, a utilização do instrumento da Concessão de
Uso Especial para fins de Moradia – CUEM, conforme estabelecido na Medida Provisória nº 2.220/01, sendo outorgada, alterna-
tivamente, a Concessão de Direito Real de Uso – CDRU àqueles que não preenchem os requisitos para a obtenção da CUEM.
Aos ocupantes de imóveis não residenciais são outorgadas Autorizações de Uso Comercial, na forma estabelecida pela Medida
Provisória nº 2.220/01, Institucional e de Prestação de Serviços. Para as novas unidades, é diretriz a utilização de Termos de Per-
missão de Uso – TPU na forma onerosa até a conclusão da regularização da edificação nos órgãos competentes, e a posterior
transferência destas à Companhia de Habitação de São Paulo –COHAB/SP para serem comercializadas.” (SEHAB, 2011, p. 7)
329. “Pancadão” é o nome dado pelos moradores da favela ao evento gerado por frequentadores de bar e das áreas coletivas
que trazem carros equipados com aparelhagem de som, colocando música em alto volume durante a noite e a madrugada.
330. Entrevista fornecida pela arquiteta “G.”, da equipe do projeto, a esta pesquisa em abril de 2019.
Salientamos que esta é uma opinião exclusiva da entrevistada. Em sua fala, ao comentar
a falta de atividades culturais implementadas por parte do poder público, acaba anulando o
“pancadão” como forma de expressão cultural, o que discordamos. Ao que parece, o incô-
modo reside, essencialmente, pela falta de senso comunitário, pois, como observamos nas
falas dos moradores, os “pancadões” ocorrem muitas vezes na madrugada. Fato é que, após
a urbanização, “pancadões” passaram a ser frequentes em Parque Fernanda I nos espaços
de uso coletivo.  A polícia, quando acionada pela vizinhança para reprimir esses eventos, age
com violência contra qualquer morador, numa total inversão do papel do Estado de prote-
ção às regras de convivência da coletividade.
Em pesquisa desenvolvida pela SEHAB no pós-ocupação, moradores já alertavam para
problemas nas áreas de lazer, como as dos fundos dos edifícios de UHs (ver item 3.2.3.3):
“Por que não fizeram as garagens lá atrás? E foram colocar aqueles parquinhos só pra ser
do jeito que é hoje? Para ficar tudo quebrado lá. Tá tudo quebrado! Até casa eles fizeram
lá dentro.” (informação verbal)331. Em 2013, ou seja, logo após a inauguração das obras, havia
sido verificado pela SEHAB que o Caminho Verde, que seria do ponto de vista urbano um ga-
nho em espaços coletivos e de lazer, já apresentava uma série de problemas de manutenção,
degradação e limpeza, que, segundo a SEHAB, eram decorrentes do uso inadequado (SEHAB,
2014, p. 52).
Em 2017, quatro anos após a pesquisa implementada pela SEHAB, fizemos visita à Parque
Fernanda I para verificar os resultados do que foi implementado através da urbanização do
PAT-PROSANEAR. Nossa visita332 foi acompanhada pelo arquiteto “V.”, da SEHAB, que possui
grande experiência em urbanização de favelas dentro do poder público fiscalizando projetos
e obras na cidade de São Paulo. O Córrego contaminado, com ratos, baratas e depósito de
lixo, as margens totalmente ocupadas, o mau cheiro? Tudo isso desapareceu. Fazia tempo
que “V.” não ia na área, talvez desde a inauguração das obras. Nosso guia, ao mesmo tempo
222 que grande conhecedor do processo, compartilhou ali conosco as surpresas e frustrações
que teve ao longo da visita, e suas avaliações sobre o projeto e o que, a seu ver, foi positivo,
negativo e que deveria ser revisto em futuras obras.
Estruturamos nossa análise sobre o Caminho Verde, principal intervenção urbana que
ocorreu em Parque Fernanda I e que tangencia todos os Temas de Projeto elencados no
Capítulo 2 – Sistema Viário, Espaços Coletivos, Saneamento Básico, Mitigação de Riscos,
Recuperação Ambiental, Equipamentos Sociais, Produção de UHs.
Para efeitos de apresentação da área, dividimos o Caminho Verde em três trechos
(Fig. 62). O critério de divisão não foi a morfologia, mas os diferentes modos de apropriação
dos moradores após a finalização das obras.

331. Fala de moradora de Parque Fernanda I extraída de Pesquisa Qualitativa (SEHAB, 2014, p. 80).
332. A visita de campo feita em agosto de 2017.
Figura 62
Trechos do Caminho Verde, segundo apropriações
dos moradores. Fonte Intervenção da autora sobre imagem
do projeto executado/SEHAB, 2011.

Com a supressão do Córrego da paisagem, abriram-se novos espaços coletivos: alguns


sofreram pressão por reocupação e outros ganharam vitalidade e foram apropriados com
uso coletivo. Observamos as apropriações e conflitos que ocorrem nestes espaços que,
a nosso ver, tem relação com atitudes de projeto distintas que parecem ter influenciado
na vivência destes espaços e na ressignificação do risco, que foi praticamente apagado do
cotidiano dos moradores.

3.2.3.1. Primeiro trecho: uma rua degradada


O primeiro trecho do Caminho Verde não corresponde ao imaginado no projeto original,
cuja característica foi afetada por alterações que ocorreram durante as obras. Os edifícios
223 de UHs e a via carroçável planejados no projeto original não foram executados. As casas que
ficavam sobre o Córrego que ali já era tamponado foram removidas, mas sobre seu leito
foi apenas implantada uma via de pedestres, que termina numa escadaria conectando com
outro beco da favela. Muros ou fundos das casas são as fachadas confrontantes com esta via
de pedestres (Figuras 63 e 64). Este trecho, que seria o Caminho Verde, lembra agora uma
passagem sem os olhos para a rua (JACOBS, 2011) atentos ao que ali se passa. Alguns raros
acessos às casas confrontantes parecem ter sido criados após as obras.
Nem o Centro Comunitário, único equipamento coletivo construído pelo PAT-PROSANEAR,
fortalece o uso público desta via de pedestres. Esta nova arquitetura dá costas para a via,
pois seu acesso é do lado oposto, virado para a rua do bairro que já existia. A única relação
do Centro Comunitário com este primeiro trecho do Caminho Verde é uma grade ao lon-
go de toda extensão do seu terreno. Observando a planta do Projeto Executivo (Fig. 59),
percebe-se que este equipamento coletivo não estava previsto neste local. Logo, a solução
de implantação é fruto de modificação de projeto resolvida ao longo da obra. Esta, que
consideramos uma falha de implantação de arquitetura por não potencializar o uso público
da nova via de pedestres, se justificaria, a nosso ver, pelo fato de que tal modificação de pro-
jeto foi feita por outros profissionais que não os autores do projeto original, que não foram
contratados para adequação dos projetos durante as obras, como já pontuamos. Tendo em
vista a importância do Caminho Verde na concepção do projeto urbano original, tendemos
a acreditar que este é um caso similar ao que foi demonstrado por Carvalho (2010, p. 50),
tomando como base uma análise comparativa entre projeto original e resultado construído
modificado em obra por outros profissionais: “A falta de incorporação de premissas concei-
tuais do projeto original ao desenho urbano implantado determinou apropriações indevidas
dos espaços livres.” Caso o acesso desta nova arquitetura de uso coletivo estivesse virado
para a nova via sobre o Córrego, fosse ela de pedestres ou carroçável, o caráter público da
via teria sem dúvida sido fortalecido. No entanto, o que observamos na visita é uma via de
pedestres que passou a ser utilizada como estacionamento e abandono de sucata de carro.

224

Figura 63
Via de pedestres sobre o leito do
Córrego, entre muros e fundos
de casas que dão o caráter de
corredor. Fonte acervo pessoal, 2017.

Figura 64
À esquerda, este edifício azul é
o Centro Comunitário gradeado
e que não tem acesso por esta
via, reforçando seu caráter de
corredor. Duas placas indicam
que casas estão à venda ali
em vermelho). Fonte acervo pes-
soal, 2017.
A implantação desta via se justificaria para dar um caráter público ao espaço que seria a
FNA do Córrego e garantir a sua não reocupação, a qual, na legislação, resta preservada, mes-
mo que este curso d’água não exista mais na paisagem. No entanto, a falta de apropriação
coletiva que foi verificada, a pouca relação visual e de acessos das casas confrontantes são,
sem dúvida, um facilitador para a expansão sobre esta área dita “pública”.
Obras em andamento, placas de “vende-se” e materiais de construção ao longo de todo
este primeiro trecho mostram que as expansões vertical e horizontal estão presentes, tí-
picas da lógica da favela. Destacamos que isso não necessariamente é um traço negativo:
visto que este trecho não parece ter sido incorporado ao cotidiano da vizinhança, novos
acessos e moradias nesta área poderiam potencializar novas apropriações da rua, no sentido
amplo do termo, como ambiente público e vivo. Este é um aspecto da lógica da favela que,
pontuamos, poderia complementar positivamente o processo de urbanização de favelas.
No caso desta via de pedestres, novos acessos e frentes de casas poderiam ser construídos
de modo a fortalecer o caráter público da via. No entanto, caso os limites públicos sejam
completamente tomados, observamos que estas expansões poderiam também fragilizar sua
função original – de preservação da FNA do antigo Córrego. Arriscaríamos dizer que, sem
controle urbano permanente e sem a transformação da apropriação atual verificada, esta
via será em pouco tempo estreitada e a FNA reocupada, como acontece em outras favelas.

225

Figura 65
Escadaria ao final do Caminho Verde trecho com muito lixo e
entulho, o que dá indícios de ser uma via de pouca circulação.
Fonte acervo pessoal, 2017.
3.2.3.2. Segundo trecho: espaço coletivo sim, senhor!
(ou Caminho Verde, propriamente dito)
Com uma ambiência absolutamente distinta do trecho anterior, seis anos após a inauguração
das obras o que se vê é um caminho verde com árvores que cresceram com força e este é um
dos indicadores de cuidado com o lugar. Nas favelas, a manutenção das áreas verdes pelos
órgãos públicos é fraca ou inexistente e, em alguns casos, ocorre a adoção das espécies vege-
tais por parte de alguns moradores, o que minimamente garante o crescimento das árvores.333

Figura 66
Caminho Verde, pouco antes
da inauguração das obras. Fonte
Google Street View, 2011.

Figura 67
Mesmo trecho da foto 66, agora
verde e bastante arborizado,
mas com lixo acumulado. Fonte
acervo pessoal, 2017.

226
Os relatos de orgulho de “V.” se referem às diretrizes de implantação do projeto que
parecem ter sido determinantes para o movimento e a apropriação coletiva deste trecho.
Destacamos que o agrupamento dos seis blocos de edifícios habitacionais na lateral do
Caminho Verde é o único trecho que foi construído conforme a implantação proposta no
projeto original.
Mesmo que implantados de modo homogêneo e sequencial no padrão característico de
conjuntos habitacionais, este conjunto não configura um enclave. Isto se deu intencional-
mente no projeto, através do cercamento individualizado de cada edifício e da manutenção

333. É importante destacar que, em obras em favelas, as construtoras tentam baixar seus custos plantando mudas mais
baratas, que geralmente são as mais novas e mais frágeis, e que demandam mais cuidado inicialmente. Por isso, a adoção
das espécies pelos moradores é fundamental para garantir a fixação e o crescimento das mudas, visto que o poder público
não investe na manutenção intensa nas favelas.
de vielas entre blocos por onde se dá a leitura dos medidores dos serviços que abastecem
as UHs. Segundo “G.”:

[...] Porque tinha o parque linear e tinha (esta separação necessária entre) área
pública e privada. Então, onde tinha os edifícios, a gente fez o cercamento, in-
clusive discutindo com eles como deveria ser, se vazado ou não, que tinha que
(ser por bloco para) ter fluidez com bairro para não segregar, enfim... isso foi
tudo discutido com os moradores. (informação verbal)334.

É certo que alterações no cercamento podem vir a acontecer no futuro, colocando


em risco a manutenção do caráter público destas vielas. Porém, esta atitude projetual vem
dificultar uma apropriação futura, pois depende do acordo entre vizinhos e do investimento
dos próprios moradores, além de desafiar de modo visível a gestão urbana.

334. Entrevista fornecida pela arquiteta “G.”, da equipe do projeto, a esta pesquisa em abril de 2019.

Figura 68
Desenho esquemático destacando o cercamento individualizado
(em vermelho) dos edifícios para evitar a configuração de enclave e
com acessos tanto para a rua Sergipe como para o Caminho Verde.
Fonte Elaboração própria.

227
228

Figura 69
Vista a partir da Rua Sergipe para os
novos edifícios UHs: gradeamento indivi-
dualizado por bloco residencial para evitar
a configuração de enclave. Fonte acervo
pessoal, 2017.

Figura 70
Vista a partir do Caminho Verde para os
novos edifícios UHs: acesso dos edifícios
também virado para a via de pedestres.
No centro da foto, viela por onde se dá a
leitura dos medidores e que, por isso deve
permanecer de acesso público.
Fonte acervo pessoal, 2017.
Em vez de um único portão, optou-se por abrir acessos tanto para a rua Sergipe, car-
roçável, quanto para o Caminho Verde, o que ajuda a garantir permeabilidade e fortalece
o uso público deste segundo trecho. Caso fosse adotado um só acesso, como é padrão nos
edifícios residenciais, isto certamente mudaria a dinâmica de uso das duas vias.

Figura 71
Moradores começam a
abrir novos acessos nos
muros para o segundo
trecho do Caminho
Verde.
Fonte acervo pessoal, 2017.

Outra questão importante é a adoção pelo projeto de espaços coletivos exteriores ao


conjunto de edifícios de UHs, o que força minimamente os moradores dos edifícios a fre-
quentarem também as novas áreas coletivas construídas na favela quando o objetivo é o
229 lazer e o esporte. Neste sentido, a implantação das novas habitações tem papel fundamen-
tal na reestruturação do tecido urbano da favela. É percebido nos moradores dos novos
agrupamentos habitacionais resultantes de urbanização de favelas o desejo de se fecharem
em um condomínio, isolando-se do restante da favela: seja por conflitos que afetam a ma-
nutenção dos edifícios e das áreas de lazer geralmente pensadas como coletivas e públicas,
mas no entorno imediato dos edifícios quase como se pertencessem ao condomínio; seja
pelos moradores não se considerarem mais (ou não serem mais considerados) como parte
da favela, entre outros, como o que aconteceu, por exemplo, em Parque Santo Amaro V335,
na mesma cidade de São Paulo.

335. Para mais informações, ver o video “Housing for a favela: Parque Santo Amaro V”, que traz relatos dos moradores
sobre os vários conflitos entre a favela e os novos edifícios de UHs, projetados por Vigliecca & Associados para serem
todos abertos e permeáveis, mas que vêm sendo gradeados pelos moradores dos edifícios para não permitir o acesso
sem controle de pessoas de fora. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=gZj1V40qjGI
Junto à rua Nilton Machado de Barros, por onde circula o transporte coletivo, foi im-
plantada uma área de lazer (Fig. 73), grande para os padrões e escala da favela, que parece
ser bastante utilizada tanto pelos moradores da favela como pelos do entorno. Com equipa-
mentos de esporte e de lazer para todas as idades, a vibração do uso como espaço coletivo
é evidente: as quadras polivalentes ocupadas por meninos e meninas de diferentes idades,
os pais passeiam com seus filhos, brinquedos, que visivelmente estão com manutenção pre-
cária, mas que são utilizados. É a animação, densidade e multiplicidade urbanas existentes
na favela que estão compartilhadas neste espaço coletivo que remete a uma praça de uma
cidade pequena em fim de tarde pacato e cotidiano.
“Nossa, essa área está bem verde! Que bom!” (informação verbal)336. É a surpresa que
surge ao longo deste trajeto. O uso intenso coletivo, e o fato de que este espaço esteja pre-
servado e não tenha sido reocupado, parece ser, infelizmente, uma dissonante do pós-obra
em urbanização de favelas. É notório que a efetiva incorporação das favelas urbanizadas à
gestão urbana raramente acontece porque a fiscalização e manutenção públicas, que ocor-
rem no resto da cidade, nas favelas são geralmente intermitentes. Neste sentido, observar
as apropriações do uso social tornando a área projetada um espaço coletivo e vivo, nas
favelas se torna um indicador de resultado positivo, além de ser alento e um estímulo para
a continuidade do projeto, que é fragilizado pela problemática manutenção e gestão, pelas
dinâmicas de conflitos e disputas de uso, e pela sempre possível ocupação das áreas livres
por interesses privados. Isto pode ser posto “quando os limites e regras não estão claros
ou quando o projeto não é pactuado com a comunidade” (GROSBAUM, 2012, p. 92). Neste
sentido, a metodologia participativa do PAT-PROSANEAR parece ter rendido bons resultados
para este trecho do Caminho Verde.
A escala da praça, ampla e central à favela e em relação ao entorno, parece ter sido
acertada e adequada. Ali, o uso coletivo é visível, apesar dos equipamentos quebrados
230 e com problemas de manutenção. No trecho mais reservado do Caminho Verde, os
recantos entre muros, que foram tratados como pequenas áreas de estar, estão paulati-
namente sendo apropriados. O mobiliário urbano desapareceu e material de construção
está sendo estocado no lugar, com indicativos de expansão pós-obras. Neste sentido,
“V.” reflete que pequenas áreas entre poucas casas que são projetadas para o uso coleti-
vo geralmente acabam sendo apropriadas para uso privado para resolver conflitos que a
proximidade às casas gera na intimidade do lar, ou pelo fato de serem muitas vezes mais
escondidas e apropriadas pelos meninos337. Neste sentido, “V.” destaca que a escala mais
ampla é um dos elementos-chave do sucesso para garantir o uso coletivo e prevenir a
reocupação destes espaços:

336. Entrevista concedida por “V.” a esta pesquisa em agosto de 2017.


337. Como são chamados nas favelas os grupos de jovens ligados ao tráfico de drogas que ficam sentados em praças e
acessos estratégicos, guardando o território.
Figura 72
Ruas arborizadas e com
intenso uso coletivo. Fonte
acervo pessoal, 2017.

Figura 73
Praça na Rua Nilton
Machado de Barros com
equipamentos esportivos e
de lazer. Fonte acervo pessoal,
2017.

231

Figura 74
Muito material de constru-
ção estocado, denotando
um processo de expansão
pós-obras no Caminho
Verde. Fonte acervo pessoal,
2017.
Minha experiência tem me mostrado que é preferível fazer uma praça maior do
que vários pequenos recantos entre moradias e nos becos, que acabam sendo
ocupados pelos moradores do entorno imediato, ou sendo destruídos para não
serem utilizados pelo pessoal do tráfico. (informação verbal)338.

Assim como a gestão urbana parece desconhecer, ou ignorar, a lógica da favela sobre a
questão da expansão horizontal e a verticalização das moradias após a urbanização, o pro-
jeto também não consegue enfrentar esta dimensão característica das favelas, que mais dia
menos dia tende a acontecer.
A questão é: devemos mesmo enfrentar a lógica da favela ou incorporar seus aspectos
positivos na lógica do projeto e de regulação destes espaços? É natural e desejável que novas
frentes de casas se abram para uma rua criada, sobretudo quando ladeada por muros. Lugares
que ficarem ociosos serão ocupados, e muitas vezes por apropriações não desejadas e que
colocam em risco o espaço dito público, bem como os passantes. Então, por que não assumir
este processo da lógica da favela nos projetos e indicar novos lotes, semelhantes às manchas
receptoras339 sugeridas por Gouverneur (2015) e dar espaço para que uma nova lógica compar-
tilhada seja construída e oriente as novas construções que ocorrerão, fatalmente, no pós-o-
bras? Neste sentido, o projeto urbano em favelas poderia contribuir para o processo de nova
lógica compartilhada. Como comentamos no Capítulo 1, este seria um exemplo de pequena
escala de ocupação das manchas receptoras que precisa ser trabalhada após as obras com os
moradores da localidade em conjunto com assistência técnica e o poder público, cujas regras
e procedimentos deveriam ser compartilhados pois teriam maior potencial de respeito e con-
trole, tanto pelo poder público como pelos próprios moradores da localidade.
A experiência prática mostra que recantos tratados como pequenos largos, entre muros ou
poucas residências, nem sempre acabam resultando em área coletiva. Muitos becos e largos aca-
232 bam por serem fechados e se tornam privativos para minimizar os conflitos e para limitar o acesso
apenas aos moradores da localidade, como veremos no terceiro trecho do Caminho Verde.

3.2.3.3. Terceiro trecho: o flagrante


(ou uma rua-fundos, um quintal perfeito para privatizar)
Chegamos ao último trecho, que se configura como um corredor entre os fundos das ca-
sas da favela que ficaram após a remoção para desocupação das margens do Córrego e os
fundos de um contínuo de blocos de edifícios de UHs construídos, que receberam os mora-
dores da área de risco. Este trecho não existia no projeto original e foi projetado durante as
obras para resolver o reassentamento de todas as famílias relocadas.

338. Entrevista concedida por “V.” a esta pesquisa em agosto de 2017.


339. Ver discussão sobre Manchas Receptoras no subitem 1.2.1.4.
Percebo decepção no olhar do nosso guia, que parece não reconhecer quase nada dos
espaços coletivos que foram construídos. O mobiliário urbano das áreas destinadas ao lazer
infantil desapareceu por completo. O som de soldadora e cerra anunciam o cercamento do
espaço público que está em execução naquele exato momento. Nossa presença causa cons-
trangimento nos moradores que estão trabalhando no cercamento, que nos olham como
se tivessem sido pegos em flagrante. Alguns se aproximam para saber quem os observa.
Começam as explicações para aquele ato: este espaço? Ele não é utilizado, a não ser pelos
meninos340 que ficam por aqui. A ocupação como estacionamento? (Fig. 78) É necessário dar
um uso mais adequado ao espaço, para evitar que seja apropriado pela criminalidade.

233
Figura 75
Registro do “flagrante e negociação” entre moradores e técnicos da Prefeitura
no Caminho Verde. Vista entre blocos de edifícios de UHs, da Rua Nilton
Machado de Barros para o Corredor Verde. Fonte acervo pessoal, 2017.

Do lado oficial, começa a mediação. Aquela faixa não pode ser ocupada, tem que se
manter pública, visto que ali passa um córrego. Além do mais, essa área tinha uso, era uma
área infantil! Mas é quando a moradora “N.” lança imediatamente o argumento: “Ah, moço....
Aqui não tem mais rio341. Tinha, mas agora não tem mais, não....” (informação verbal)342

340. Em clara associação aos grupos ligados ao tráfico de drogas.


341. Fazendo alusão ao Córrego, antes aberto e que foi tamponado neste trecho.
342. Todo este debate entre moradores e os técnicos da Prefeitura foi travado no momento da visita de campo,
em agosto de 2017.
Figura 76
Imagem do Córrego
antes da urbanização, que
corresponde ao Terceiro
Trecho do Caminho Verde
da nossa análise.
Fonte SEHAB, 2011.

Figura 77
Terceiro Trecho da nossa
análise, entre edifícios e
muros com pequenas áreas
de lazer, após a inauguração.
Fonte SEHAB, 2011.

Figura 78
Imagem do mesmo trecho,
agora transformado em
estacionamento dos mora-
dores dos edifícios.
Fonte acervo pessoal, 2017.

234
235

Figura 79
Parque infantil no Caminho Verde,
após a inauguração, nos fundos do
conjunto de edifícios de UHs, na
Rua Nilton Machado de Barros.
Fonte SEHAB, 2011.

Figura 80
O menino “C.” lamenta por sua área
de lazer, que foi destruída pelos
moradores dos edifícios de UHs
para estacionar de seus carros.
Fonte acervo pessoal, 2017.
Este debate, que se trava entre os técnicos da Prefeitura de nosso grupo e os mora-
dores dos edifícios de UHs, é sobre os conflitos existentes entre a lógica regulatória do
Estado e a lógica da favela em um processo de urbanização. “V.” alerta os moradores que
existem procedimentos oficiais para cobrar o poder público, como por exemplo através de
solicitação de interveniência da administração local, pois ali é um espaço de uso público, e
há regras que o gerem. Observamos que tais regras foram determinadas por uma legislação
ambiental, que exige FNA e uso público do espaço sobre o Córrego tamponado, o que não
é reconhecido pela favela. Os moradores, por seu lado, comentam que já reclamaram e pe-
diram oficialmente, mas que nada foi feito. Mas, de repente, eles percebem que ali, diante
deles, está um técnico da Prefeitura. Então, por que não resolver o assunto de imediato?
É da prefeitura? Pode autorizar o cercamento? A complexidade da gestão institucional é
posta em questão diante da mediação praticada na lógica da favela, onde tudo acaba sendo
mais ágil que no campo oficial. Como fazer compreender a um cidadão comum que, apesar
de ser da Prefeitura, a gerência sobre aquela área é de outro setor? O menino “C.” (Fig. 80),
que circula por ali de bicicleta, bem devagar, escutando a conversa dos adultos, reclama
baixinho, quase que abafado pela voz dos adultos, que seu parque infantil foi destruído, que
agora virou vaga de carros dos moradores do edifício.
Enfim, o que se vê é um debate com interlocutores que, de alguma forma, parecem não se
compreender e que não se fazem escutar. Há certezas de todos os lados, nestas realidades e
lógicas distintas, sobre a complexidade do espaço dito público e a urbanização de uma favela.

3.2.3.4. Considerações sobre a análise


do Caminho Verde em Parque Fernanda I
Nesta análise sobre o Caminho Verde em Parque Fernanda I, mostramos diferentes soluções
de espaço coletivo como tentativa de garantir a não reocupação de uma área de risco e da FNA
236 do Córrego, que foi tamponado desaparecendo da paisagem. Como visto, a pressão para ocu-
pação de espaços considerados ociosos é forte. É uma dinâmica de ocupação característica da
lógica da favela, onde proibição não é a solução. A mediação para o equilíbrio entre regras, que
não dispensa a presença constante do poder público, parece ser um caminho mais adequado.
Seria a ocupação um erro ou um insucesso do projeto? Ou um modo de evitar apro-
priações indesejadas pelo poder paralelo armado? É preciso aprender através de inúmeros
exemplos o modo de apropriação das favelas e articular em projeto para evitar gerar, ou
deixar, espaços ociosos. E se estes tiverem esse potencial, então dar meios e orientar para
que sejam ocupados de modo a garantir as necessidades do bem comum, mas em equilíbrio
com a demanda real privada, que mais dia menos dia irá ocorrer.
O espaço coletivo em escala ampla, visível, acessível e integrado com o entorno é o exem-
plo de apropriação de diferentes grupos e é o que parece, até o momento, conseguir garantir
o uso público e prevenir a construção sobre a FNA. Não pela ideia de preservação da faixa sobre o
Córrego, mas porque a praça é agora reconhecida como espaço de uso coletivo e sua ocupação
certamente enfrentará resistência de seus usuários. Este pode ser um exemplo a ser seguido e a
ser parametrizado para projetos de urbanização de favelas – escala, relação com entorno, den-
sidade, proximidade à via pública com transporte coletivo etc. Mas não é só o desenho urbano
que influencia nesta apropriação. O uso social consolidado é um dos fatores que pode ajudar a
garantir a permanência do executado em favelas (BENETTI, 2017), e pode ser reforçado pela parti-
cipação efetiva dos usuários na elaboração dos espaços projetados. Não basta projetar e construir
determinadas soluções. É preciso construir, além do meio físico, alianças entre os moradores e
usuários potenciais de cada local que possam defender no futuro as áreas livres de uso coletivo
face a ocupações indesejadas. O projeto em Parque Fernanda I utilizou esta metodologia, e isso se
refletiu em resultados na pesquisa do pós-ocupação. O fato de identificar que o desenho da praça,
discutido em atividade participativa na construção do projeto, é muito similar ao que foi finalmen-
te implementado, foi apontado por moradores como motivo de satisfação (SEHAB, 2014, p. 87).
Apresentamos exemplos construídos em Parque Fernanda I pelo poder público que
mostram como é frágil a condição de gestão dos espaços coletivos, sejam em áreas de risco,
praças ou mesmo edifícios públicos. Ainda é um grande desafio para o projeto urbano no
processo de urbanização de favelas encontrar mecanismos eficientes para tratar o risco de
modo permanente e a custos viáveis, além de adotar soluções urbanas que ajudem a evitar
a privatização das áreas livres de uso coletivo. O projeto deve lidar com diferentes atores,
temporalidades, escalas (TSIOMIS, 2006). Nesse fluxo, cada ator tem sua própria lógica e a
primeira dificuldade está em articular com culturas diferentes de projeto, em vez de preten-
der trabalhar com uma única cultura. Seria então o projeto em favelas um elemento neces-
sário para dar visibilidade e evidenciar lógicas distintas e conflitos urbanos e sociais? Seria,
finalmente, um instrumento para a construção de novos pactos urbanos?
A análise de Parque Fernanda I demonstra que o projeto, mesmo com metodologia par-
ticipativa que parece ser adequada ao envolver os moradores na construção do projeto e co-
237 locando-os como agentes de controle do que seria construído, não é capaz de proporcionar,
sozinho, as transformações urbanas em favelas. O projeto – guiado pela lógica do Estado – não
consegue enfrentar dimensões características das favelas, que mais dia menos dia tendem a
acontecer. As transformações urbanas preconizadas pelo Estado – e indicadasem projeto –
dependem de manutenção e da presença do gestor público constante e permanente, e não de
forma intermitente e inadequada, como vem ocorrendo. Ademais, são necessários programas
sociais, esportivos e culturais que usem os espaços coletivos construídos como suporte para o
fortalecimento das relações sociais e para garantir apropriações efetivamente coletivas.
Mas, de fato, estas transformações urbanas dependem de um novo pacto urbano compartilhado
que não foi construído através da urbanização da favela. Percebemos em Parque Fernanda I que a lógica
regulatória do Estado não passou automaticamente a operar estes territórios após a urbanização.
O fato da gestão urbana, ao não reconhecer, ou ignorar, que a lógica da favela permanece,
pode estar colocando em risco a sustentabilidade das melhorias urbanas e ambientais investidas,
que não é garantida pela simples mudança de status de Parque Fernanda I de favela para núcleo.
3.3.
Alemão – PAC-Favelas

O Complexo do Alemão343 é um bairro formado por 12 favelas344 situadas na Zona Norte da


cidade do Rio de Janeiro, conformando a Região Administrativa XXIX – Complexo do Alemão,
criada em 1993345.
Esta unidade territorial dá a ideia de um conjunto homogêneo de favelas, mas, ressalta-
mos, as favelas que compõem o Complexo do Alemão possuem histórico e características
socioespaciais distintas (IPEA, 2013). O Complexo do Alemão foi objeto de ações de urba-
nização no final dos anos 2000, em parte pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro (GERJ)
através do PAC-Favelas, e também pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro (PCRJ) através
do Morar Carioca, ambos com verba federal do PAC-UAP.

343. Esta unidade territorial, como vimos no Capítulo 2, deu nova escala de planejamento às políticas públicas nas fave-
las, mas privilegia a questão geográfica em detrimento da heterogeneidade social e cultural existente em cada uma das
favelas do conjunto, criticada por Matiolli (2016, p. 92), que a considera como “uma lógica militarizada de produção do
espaço”. Para mais informações sobre o surgimento do Complexo do Alemão, ver Matiolli (2016).
344. Há divergências entre dados da Prefeitura, do IBGE e de moradores locais sobre o número e nome das favelas que
compõem o Complexo. Nesta pesquisa, adotamos o que é reconhecido pela Prefeitura, apenas para efeito de comparação
com os dados de projetos e planos oficiais contratados pelo poder público. Para mais informações, ver: IPEA (2013, p. 97-102).
345. A R.A. do Complexo do Alemão foi criada pelo Decreto Municipal no. 6.011, de 4 de agosto de 1986, mas só delimi-
tada sete anos depois através da Lei Municipal n o. 2.055, de 9 de dezembro de 1993.

Figura 81
Cartografia das favelas que compõem o Complexo
do Alemão, segundo a PCRJ. Fonte IPEA, 2013, p. 99.

238
3.3.1. O surgimento de um projeto para investimento
Para as grandes favelas, foco da ação do GERJ, não existiam projetos prontos, como vimos
no Capítulo 2. Apenas Planos de Desenvolvimento Urbanístico346 haviam sido contratados
nos anos 2000 para alguns complexos de favelas. O Plano de Desenvolvimento Urbanístico
do Complexo Morro do Alemão (PDUCMA), desenvolvido por equipe coordenada pelo ar-
quiteto Jorge Mário Jáuregui347 contratada pela SMH/PCRJ no âmbito do Programa Grandes
Favelas, foi finalizado em 2004, mas só se tornou legislação apenas dois anos mais tarde348,
coincidentemente um mês antes do PAC ser lançado. O PDUCMA consistia em um “instru-
mento básico da política de habitação do Município na área do Complexo” (RIO DE JANEIRO,
2006, p. 1). O PDUCMA presentava diretrizes para ações territoriais através da implantação
de Centros Setoriais, de Vizinhança e Zonais, inseridos em uma hierarquia urbana e que
receberiam respectivamente equipamentos públicos, serviços e habitação a serem imple-
mentados em etapas não descritas no documento. Para o PAC-Favelas, estas diretrizes se
transformaram em ações territoriais.
O território do PDUCMA não correspondia exatamente ao que hoje é o Complexo do
Alemão, pois as favelas Morro do Adeus e Morro do Piancó, localizadas do lado ímpar da
Estada do Itararé, não estavam incluídas (Figs. 81 e 82). Este plano indicava uma subdivisão
territorial em 8 Unidades de Planejamento Urbano, cujas dimensões equivaleriam cada uma
a uma favela de médio porte, reunindo de 1.000 a 2.500 domicílios aproximadamente.
A implementação do PDUCMA era orientada para o desenvolvimento de ações por Uni-
dade de Planejamento Urbano, “de forma seriada, uma após a outra e dentro de cada uma
delas de um Setor Urbano um após o outro” (RIO DE JANEIRO, 2006, p. 10). Nesta diretriz,
utilizavam-se Centros Setoriais como estratégia de desenvolvimento territorial. Ou seja,
havia uma proposta de estruturação macro de parte do Complexo, a qual não isentaria da
necessidade de desenvolvimento de propostas urbanas por Unidade de Planejamento Urbano,
239 numa escala de favela de médio porte e ao longo de um tempo estendido. Segundo “M.”, um
dos autores do PDUCMA,

era um projeto349 para vinte anos, que se dividia em cinco etapas de quatro anos e
então definia uma série de opções de estruturação urbana para que as diferentes

346. O Plano de Desenvolvimento Urbanístico do Complexo do Morro do Alemão (2004) e o inconcluso Plano de Desenvolvimen-
to Urbanístico do Complexo de Manguinhos no âmbito do Programa Grandes Favelas (1998-2004), contratados da SMH/Prefeitura,
e o Plano de Desenvolvimento Socioespacial da Rocinha (2006-2008), resultante de Concurso Público Nacional de Ideias para Ur-
banização da Rocinha promovido pelo IAB/RJ e Governo do Estado, e contratado posteriormente pela EMOP/Governo do Estado.
347. A equipe foi contratada através das empresas PAA e AGRAAR, cujos sócios depois fundaram em conjunto a Metró-
polis Projetos Urbanos (MPU), que mais tarde desenvolveria os Projetos Básico e Executivos do PAC-UAP no Alemão.
348. O PDUCMA foi publicado pela SMH (2004), mas só foi oficializado dois anos depois, através do decreto nº 27.471,
em 20 de dezembro de 2006.
349. Há uma confusão, no texto do decreto do PDUCMA, que não especifica as diferenças entre Plano e Projeto.
autoridades, no tempo, pudessem escolher diferentes programas, segundo suas
conveniências políticas, mas que tivessem uma ordem, que fossem para uma
direção. (informação oral)350.

Figura 82
240 Planta da estrutura urbana proposta pelo PDUCMA, com as 8 Unidades de
Planejamento Urbano (limites coloridos) e os Setores Urbanos (represen-
tados por letras). Fonte SMH, 2004. (http://www.jauregui.arq.br/favelasalemao.html)

Notamos que o tempo de implementação do PDUCMA não consta no decreto. Vários


Centros Setoriais eram indicados nos topos dos morros, em detrimento do reconheci-
mento e do fortalecimento das centralidades preexistentes. Uma crítica que fazemos ao
PDUCMA é justamente a criação de novas centralidades, sobretudo nos topos de morro, de
difícil acesso, dando a ideia de que é possível transformar o território por decreto, o que,
como já vimos, se mostra uma fragilidade do projeto, sobretudo em favelas (ver Fig. 83).
No Alemão, há críticas ao PDUCMA quanto à falta de participação local na sua construção.

350. Entrevista concedida pelo arquiteto “M.” a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
“A.”, morador do Morro do Alemão e ativista social, diz que “até hoje, não se sabe com quem “M.”351
conversou para construir esse plano. E de repente a gente encontra um convite de lançamento
do Plano de Desenvolvimento Urbanístico do Complexo do Alemão... E olha que a gente tinha
uma vida ativa aqui!...” (informação verbal)352. Esta fala se refere justamente à época em que o
Conselho Comunitário de Saúde do Complexo do Alemão (CONSA) havia sido criado e diversos
atores locais discutiam políticas públicas no Alemão. “A.” nos lembra que a interlocução com as
instituições locais sempre “pode ser feita por uma via mais institucionalizada, só com a Associação
de Moradores”, mas que pode não ter efetiva representação local, uma vez que a associação pode
estar representando o poder público, como vimos no Capítulo 1. Para “A.”, a leitura do plano:

sempre foi muito ampla, panorâmica do Complexo do Alemão, distante da rea-


lidade. Teoricamente, é interessantíssimo, mas não se vê concretizar as perspec-
tivas de uma arquitetura.... tem um termo que ‘M.’ usa.... arquitetura engajada!
O discurso fala de levar em consideração as dinâmicas locais. (...) [mas não vi]
isso na prática, nem no Plano, nem depois no PAC, apesar de se saber que não
depende só dele, né? (informação verbal, intervenção nossa)353.

“M.”, por seu turno, afirma que conversou com cada uma das favelas, porém sem especificar
as entidades, e “com os representantes da Federação das Favelas do Alemão354... havia uma
federação! Foi um processo bem rico que permitiu abordar a grande escala” (informação oral)355.
Ao que parece, as entidades consultadas para o PDUCMA não eram efetivamente represen-
tativas, ou o processo não foi transparente.
Fato é que o projeto do PAC-Favelas para o Alemão surgiu a partir da transformação do PDUCMA
em Projeto Básico para captar recursos federais do PAC-UAP. Para tal tarefa, em 2007 o GERJ
contratou a equipe que desenvolveu o PDUCMA, que recebeu a tarefa de moldar um Projeto
241 Básico às intenções do GERJ. Segundo “M.”, coordenador da equipe contratada, “o Estado deci-
diu o que queria fazer em cada lugar e apenas teve o norte do PDUCMA. Mas essa tradução de
um programa de longo prazo para uma intervenção no curto foi forçada” (informação oral)356.
Como vimos no Capítulo 2, a aliança entre o GERJ, que pretendia investir nas grandes favelas,
e as grandes empreiteiras, que tinham capacidade técnica para atender aos interesses polí­
ticos, deu poder e autonomia a estas empresas na elaboração do escopo dos investimentos.

351. Arquiteto e um dos autores do PDUCMA e do projeto do PAC-Favelas, cuja identidade preservamos, que também é
um dos entrevistados desta pesquisa.
352. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
353. Idem.
354. Esta entidade comentada pelo entrevistado não existe, o nome pode ser outro. Para detalhes pormenorizados,
pode-se consultar: SMH, 2004.
355. Entrevista concedida por “M.”, arquiteto que trabalhou no projeto, a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
356. Idem.
Um exemplo deste quadro é a imposição do teleférico, de interesse das construtoras e dos
políticos. A estratégia de adaptação do PDUCMA para um projeto exequível do PAC-Favelas
foi a adaptação de alguns Centros Setoriais para Estações do Teleférico nos topos dos morros
(Fig. 83), cujas dimensões seriam maiores do que as demandadas pelo sistema de teleférico
para abrigar também serviços e instituições, como ocorre nos Centros Setoriais. Alguns
edifícios de novas UHs também apareciam na proposta dentro do território do Alemão, fazendo
a articulação entre novo sistema viário e as novas estações do teleférico.
Uma diferença básica para o PDUCMA está no fato de que, no projeto do PAC-Favelas,
a implantação de um transporte como o teleférico, no nível aéreo e com toques pontuais
no solo, foi encarada como elemento principal de ligação entre as favelas do Complexo e os
serviços. Logo, a abertura de um sistema viário que conectaria e permearia todo o Complexo,
ao nível do solo, como preconizado no PDUCMA, não seria, assim, mais necessária. Por isso, o
sistema viário proposto pelo PDUCMA não foi construído no PAC-Favelas, apenas o que era im-
prescindível para a implementação do Teleférico, ficando a cargo deste sistema de transporte
a conexão entre favelas, equipamentos e serviços. Com esta alteração de proposta urbana, os
moradores passaram a ser totalmente dependentes do Teleférico para ter acesso aos serviços
e instituições públicas que foram implantados pelo projeto do PAC-Favelas nas Estações.
Do mesmo modo, novas UHs previstas dentro do território do Complexo do Alemão,
tanto no PDUCMA como no Projeto Básico do PAC-Favelas, foram sendo transferidas no
processo de implementação das obras para terrenos nas franjas das favelas (Fig. 84).
Em suma, “a articulação da habitação com a obra emblemática, o teleférico, resulta assim
praticamente nula.” (PATRÍCIO, 2017, p. 118).357
Apresentamos de modo simplificado como surgiu o projeto do PAC-Favelas para o Com-
plexo do Alemão, que captou cerca de 1 bilhão de reais358, um dos maiores investimentos em
favelas feito pelo PAC-UAP e de todos os tempos no Brasil. O teleférico, ao que parecia, era
242 o objeto central da intervenção e consumiu um terço do total dos investimentos do PAC-
-Favelas, considerando o sistema propriamente dito e a abertura de via para possibilitar sua
implantação (PATRÍCIO, 2017, p. 96).

357. Destacamos a importância da pesquisa de Patrício (2017), que nos serviu como banco de dados sobre o programa do
projeto do PAC-Favelas no Complexo do Alemão e suas modificações até o resultado final, visto que apresenta registros
importantes conseguidos diretamente de atores internos ao projeto e à obra, que hoje, devido à Operação Lava-Jato,
estariam indisponíveis a público se não fosse esta publicação. Ainda, o pesquisador conseguiu dados oficiais dos contra-
tos referentes a projeto e obra, além de outras informações oficiais cedidas pelo MCidades, GERJ e PCRJ. Sua pesquisa
discute a produção habitacional resultante do PAC-Alemão, mostrando que sua implementação sofreu pressões e modi-
ficações para atender interesses privados e políticos.
358. O valor total contratado para o investimento foi de R$972.080.536,29, sendo R$894.684.158,91 repassados pelo
Governo do Estado através do PAC-Favelas, e R$77.396.377,38 pela PCRJ através do Morar Carioca, segundo dados de
contratos oficiais coletados por Patrício (2017, p. 88). No entanto, estes valores podem não representar a totalidade
investida, pois “a participação do poder local no financiamento dessas intervenções é ainda maior se analisarmos a
composição dos investimentos isoladamente. No caso do Teleférico do Complexo do Alemão, o Governo do Estado foi
responsável por 66% do custo da obra.” (CARDOSO et. al., 2018, p. 129).
243

Figura 83
Planta que mostra a sobreposição dos Centros Setoriais do PDUCMA com o primeiro sistema de teleférico pro-
posto no Projeto Básico do PAC-Favelas. Em vermelho, na imagem, estão indicadas as estações do teleférico.
Fonte http://www.jauregui.arq.br/favelasalemao.html

Figura 84
Imagem comparativa entre o PDUCMA, Projeto Básico e o Projeto Executado no Complexo do Alemão.
As UHs projetadas dentro do território do Alemão, foram sendo paulatinamente deslocadas para as franjas das
favelas, junto às ruas do bairro, que foram afinal as UHs que foram efetivamente construídas pelo PAC-Favelas
no Alemão. Fonte Patrício, 2017, p.155.
3.3.2. Como se deu o processo

3.3.2.1. Subdivisão do Complexo do Alemão


entre Governo do Estado e Prefeitura
Enquanto o GERJ, que entra com o PAC-Favelas em 2007 no Alemão, tinha como escopo
de ação uma escala macro em todo o Complexo, embora pontualmente implementando o
sistema de teleférico o e sistema viário para viabilizá-lo, a PCRJ só entra em 2010 em dois
lugares estratégicos do Complexo – Nova Brasília e Joaquim de Queiróz (Fig. 85 a seguir).
Seu escopo de urbanização era a microescala, sob o selo do Morar Carioca que estava sendo
lançado, estando excluídas as áreas de interferência do projeto do PAC-Favelas para a im-
plantação do sistema de teleférico pelo GERJ.

De acordo com entrevista de técnico da prefeitura, essa divisão de responsabilidades


buscou enfatizar a autonomia na atuação de cada ente, ou seja, a Prefeitura atuava
sem depender das obras sob a responsabilidade do governo estadual o que signi-
ficou também a não articulação das intervenções. (CARDOSO et. al., 2018, p. 120).

No território, esta subdivisão entre Prefeitura e Estado nunca ficou clara para o
movimento social, mas são levantadas duas hipóteses:

Pode ser porque a subprefeitura tinha um certo peso e pegou as comunidades


mais representativas do Complexo do Alemão – no sentido de peso político e
econômico. Ou pode ser o inverso: aonde teria maior problema, o Governo do
Estado deixa isso para a Prefeitura, porque ali (na rua Joaquim de Queiróz359)
teria muita relocação de lojas. (informação verbal)360
244
O contrato denominado Joaquim de Queiróz (Complexo do Alemão), embora assim se
intitule, abrangia parte do Morro do Alemão (enquadramento de nossa pesquisa que expli-
caremos a seguir) e parte da favela Joaquim de Queiróz, também conhecida como Grota.
As intervenções com algum vulto se restringiram à entrada da Rua Joaquim de Queiróz, na
Estrada do Itararé: apenas dois equipamentos foram construídos – uma creche e uma clínica
de saúde da família – e a Vila Olímpica Carlos Castilho foi reformada.

359. A Rua Joaquim de Queiróz, que ocupa o vale entre as favelas Morro do Alemão e Joaquim de Queiróz, é uma im-
portante via do Complexo do Alemão, pois além de ser praticamente plana, tem caráter comercial e dá acesso a várias
favelas do Complexo.
360. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
Figura 85
Subdivisão entre Estado e PCRJ de suas áreas de atuação, no Complexo do
Alemão. Em verde na imagem, a Área de Proteção Ambiental e Recuperação
Urbana - APARU da Serra da Misericórdia. Fonte http://www.chs.ubc.ca/consortia/
events/E-20080916/GovernoRJ-Complexo_do_Alemao.pdf

As obras da dita urbanização dentro do território do contrato Joaquim de Queiróz se


concentraram em infraestrutura e saneamento básico nos becos e escadarias361, e o tecido
urbano deste trecho da favela se manteve praticamente o mesmo. Estava também no esco-
po dos serviços da PCRJ o alargamento da Rua Joaquim de Queiróz, com aproximadamen-
te 800 metros de extensão na área-projeto. Contudo, este evento começou a esbarrar em
grande número de remoções, sobretudo de edificações comerciais, cuja modalidade não era
245 financiada pelo PAC-UAP, mas através da contrapartida local. Além disso, as indenizações não
compreendiam a lógica que estava em curso na favela. O problema era que para “loja, só se
pagava benfeitoria. E (quem tinha a loja) nem era dono, era por luva...” (informação verbal,
intervenção nossa)362. Sistema de luva no Alemão? “Tem, claro que tem! (A Prefeitura) inde-
nizava o proprietário e quem tinha luva se ferrava.... E na Grota isso foi o maior problema.
A Prefeitura estava lá para remover e o pessoal dentro tentando resistir.” (informação verbal)363

361. Segundo dados oficiais da Prefeitura do Rio (2015), foram investidos R$ 143,3 milhões em dois contratos, que con-
templaram os seguintes serviços: Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI); Clínica da Saúde e da Família; dois Centros
Comerciais e estabelecimentos, totalizando 128 lojas; Reforma da Vila Olímpica Carlos Castilho; Espaço coberto para
abrigar ponto de Moto-táxi; Redes de água e ligações domiciliares; Rede de esgoto e ligações domiciliares: 494; Pavi-
mentação e abertura de novas ruas; Redes de drenagem; Contenção de encostas. (Disponível em https://medium.com/
morar-carioca/veja-onde-o-morar-carioca-ainda-vai-chegar-1159ae745804; Acessado em 4 de janeiro de 2019.)
362. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
363. Idem.
Segundo dados oficiais (RIO DE JANEIRO, 2015), foram construídas 128 lojas para relocar
parte do comércio que foi removido e só foram concluídos cerca de 300 metros, menos de
40% do previsto, do alargamento da via, iniciado a partir da Estrada do Itararé. Nos docu-
mentos que tivemos acesso sobre o projeto de urbanização deste contrato da PCRJ, não há
menção sobre os arquitetos autores, apenas engenheiros nos projetos de infraestrutura, nos
levando a deduzir que não houve efetivamente projeto urbano, apenas obras viárias e de in-
fraestrutura. Para uma área-projeto de 34,7ha, praticamente quatro vezes maior que Parque
Royal, consideramos que foi uma atuação extremamente tímida da PCRJ após seu histórico
notável em urbanização de favelas através do Programa Favela Bairro. Podemos destacar, ao
menos, a qualidade dos acabamentos de pavimentação dos becos e escadarias, que atingi-
ram bom padrão. Isto, sem dúvida, se tornou ainda mais marcante se comparado às obras do
GERJ, que praticamente não agiram na microescala da favela, como veremos a seguir.
Sem mais a comentar sobre a atuação da PCRJ no contrato Joaquim de Queiróz,
que abrange parte do enquadramento desta pesquisa, nos focaremos na atuação do GERJ, que
teve grande impacto no Complexo do Alemão.

Figura 86
Imagem do que foi executado pela PCRJ no contrato
Joaquim de Queiróz. Fonte (https://medium.com/morar-carioca/
veja-onde-o-morar-carioca-ainda-vai-chegar-1159ae745804 Acessado
em 18 de fevereiro de 2020.

246
3.3.2.2. Enquadramento adotado pela Pesquisa –
Av. Central, no Morro do Alemão
Para esta análise, foi preciso delimitar um território de estudo menor do que todo o Complexo
do Alemão. Isso, em parte, devido aos objetivos da pesquisa no que se refere à observação
da escala local e também às suas limitações de tempo e equipe para apreender dados pri-
mários de todo o território. Mesmo entendendo que o enquadramento de estudos se insere
em um projeto mais amplo e de larga abrangência, a área estudada também representa um
universo complexo e rico que teve obras implantadas, podendo ser tomado como represen-
tativo do processo. Idas e vindas em diferentes escalas permeiam a análise, sendo observados
os processos na escala local e mais ampla, a fim de identificarmos dinâmicas que fazem parte
do processo de transformações urbanas nas favelas.
O enquadramento adotado na pesquisa é a Avenida Central e seu entorno próximo,
no Morro do Alemão, que abrange becos de acesso, parte do bairro do entorno e uma das
estações do sistema de teleférico – obra emblemática do GERJ, como vimos no Capítulo 2.
A adoção deste enquadramento também se deu por englobar parte do território de ação
tanto do GERJ como da PCRJ. Além disso, o alargamento da Avenida Central foi a principal
intervenção urbana que ocorreu nesta favela, e também tangencia os Temas de Projeto elen-
cados no Capítulo 2 – Sistema Viário, Espaços Coletivos, Saneamento Básico, Equipamentos
Sociais. O tema Produção de UHs foi processualmente retirado do território do Alemão,
como veremos mais adiante. Já os temas Mitigação de Riscos e Recuperação Ambiental não
existiram no Morro do Alemão.
Buscamos, através deste enquadramento, compreender a atuação do poder público nas es-
feras estadual e municipal e dos agentes locais, os processos de urbanização e temporalidades
do território, do projeto e da obra, além das memórias das transformações urbanas relatadas
pelos atores locais e pela literatura da área. Nossa intenção foi a de compreender as transfor-
247 mações urbanas ao longo do tempo com o intuito de tentar identificar aquelas promovidas pelo
processo de urbanização que esta favela tem passado desde sua existência, e pelo projeto.
Após a definição do enquadramento da pesquisa local, partimos para: os levantamentos
de dados primários (com material a partir de 2015)364 e secundários de projeto e dentro da
literatura; o desenvolvimento de cartografia visando a compreensão do território e a repre-
sentação destas transformações; a identificação dos atores (moradores, instituições locais,
gestores, arquitetos e executores das obras), que seriam entrevistados para esta pesquisa365.

364. Desde 2015, frequentamos o Morro do Alemão, que foi área-projeto para nossos alunos na disciplina de gradua-
ção Projetos de Urbanização Alternativa - FAP 636, da FAU-UFRJ. Esta disciplina tem como metodologia trabalhar com
interlocutores locais para discussões participativas de projeto e com um cliente real, visto serem os moradores os pre-
tendidos futuros usuários. Nosso interlocutor no Morro do Alemão era o Instituto Raízes em Movimento, cuja sede é
na Avenida Central. Os projetos resultantes da disciplina depois foram construídos através de mutirões, como a Praça
Verde. Para informações pormenorizadas, ver BENETTI; CARVALHO, 2017.
365. As entrevistas qualitativas aconteceram de agosto de 2018 a fevereiro de 2019.
Vamos descrever o território do Morro do Alemão a partir do enfoque adotado nesta
pesquisa, abrindo, quando necessário, para o território mais amplo do Complexo com o
objetivo de explicar questões que abrangem a situação comentada, de modo a tentar re-
constituir o que seria o principal problema no momento inicial do projeto do PAC-Alemão, e
o processo de implementação das obras que, afinal, trouxe os resultados que encontramos
no território atualmente.

Figura 87
Enquadramento adotado pela pesquisa (em laranja na imagem), no
248 Morro do Alemão, abrangendo parte do território da PCRJ e parte do
GERJ. O tracejado em branco corresponde ao limite da favela Morro
do Alemão, segundo a PCRJ. Fonte elaboração própria.

Breve Histórico
A ocupação do Morro do Alemão começou nos anos 1920 através de aluguel de chão (IPEA,
2013) controlado pelo proprietário das terras, o polonês Leonard Kaczmarkiewisz, que ficou
conhecido como Alemão, dando nome ao assentamento e mais tarde ao Complexo como
um todo. As primeiras casas foram construídas através do prolongamento das ruas oficiais
do loteamento – Rua Armando Sodré, Rua Conselheiro Ribas e Travessa Laurinda – em di-
reção ao morro. Mas só entre os anos 1940 e 1950 apareceram as primeiras moradias do que
hoje é a favela do Morro do Alemão. Estas começaram a ser construídas próximo ao lotea-
mento do Alemão, na parte de cima do morro, protegidas pela mata, evitando assim uma
zona de exposição. Neste caso, a falta de acessibilidade foi uma estratégia para dificultar a
repressão da ocupação (IPEA, 2013). O trecho inicial da Avenida Central permaneceu vazio
por alguns anos, “metade do morro pra cima tinha barraco e da metade pra baixo não, pra
baixo era mato. Isso em 1959.” (Zé Mineiro apud IPEA, 2013, p. 46). Este trecho foi ocupado
por novos moradores que preferiram a parte baixa do morro por questão de facilidade de
acesso quando a repressão já não estava intensa. Em 1975, a Avenida Central já aparece toda
ocupada, conforme imagem da Prefeitura.

Figura 88
Planta cadastral de 1953. Estão assinaladas em vermelho as primeiras casas do
Morro do Alemão e da Rua Joaquim de Queiroz. Fonte IPEA, 2013, p. 47.

Figura 89
Ortofoto de 1975 que mostra quase todo o território do Morro do Alemão já
ocupado. Fonte Intervenção da autora sobre imagem de 1975 do IplanRio (apud IPEA, 2013, p. 63).

249
A vida não era fácil na favela sem os serviços básicos. “F.” lembra que, no Morro do Alemão
no início dos anos 1950, “era mato, era vala, bicho morto dentro das valas, não tinha água,
não tinha luz, não tinha nada. Eu ia lavar roupa sabe aonde? Lá na mina, lá do outro lado,
no Bicão. Aquela coisa de lata na cabeça.... Nós sofremos muito aqui.” (informação verbal)366.
Ao que parece, uma primeira bica d’água foi instalada em 1950 ao pé do Morro do Alemão (IPEA,
2013, p. 75), na entrada da Av. Central. “A.” lembra da sua infância, época em que “a molecada
era quem buscava a água. E tinham uns tonéis maiores, barris. A gente que enchia aquele barril...
Gente, eu chorava demais... E quando acabava a água aqui que tinha que ir buscar no bicão da
Grota?” (informação verbal)367. Já que a tarefa era buscar água, então iam todos ao mesmo
tempo – irmãos, tios e vizinhos – e acabava virando um momento de brincadeira. “E aí, a gente
voltava dando porrada, chutando.... chegava em casa metade do balde! Aí levava bronca e tinha
que voltar pra pegar água de novo! Era um inferno....” (informação verbal)368.
Mesmo com o sistema de adução e reservatórios implantado nos anos 1960 e com as re-
des construídas pelos moradores, a falta d’água sempre foi constante e a bica da Av. Central
funcionou até os anos 1990. É assim que, na lógica da favela, o poder passa para as mãos
de quem nem se poderia imaginar. O manobreiro do sistema de abastecimento de água do
Morro do Alemão, por exemplo, “é o cara mais importante.... até mais importante que o
Presidente!” (informação verbal)369. “Esse cara é fundamental! Se ele quiser acabar com a
vida do morro, ele acaba.... É ele que define!” (informação verbal)370. Até hoje não há água
suficiente para todos, todos os dias, e é ele – o manobreiro – quem determina que trecho
do Morro será abastecido no dia que a água está escassa nos reservatórios. Quem vai querer
se desentender com o manobreiro?
Com o aumento da população, a carga de energia das cabines de luz instaladas também
nos anos 1960 pelo poder público na base do Morro foi ficando insuficiente. Nos anos 1980,
“à noite, era aquela luz fraquiiiiinha, sabe?.... muito fraca. E na (Avenida) Central toda tinha fio.
250 E parecia que vinha tudo de um lugar só. Então, para ler, ver as coisas à noite, era muito difícil.
Era tão fraca que olhando pra lâmpada se via o filamento.”, nos conta “A.” (informação verbal,
grifo dele, intervenção nossa)371.
Registros de 1950 revelam que o início da pavimentação da Av. Central se deu através de
verba pública (IPEA, 2013), mas, na memória dos entrevistados, o calçamento da via era de en-
tulho e feito pelos moradores até início dos anos 1990, quando era melhorado com cimento
através de mutirão nos fins de semana. O calçamento precário da Av. Central não dava boa

366. Entrevista concedida por “F.” a esta pesquisa em fevereiro de 2019.


367. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
368. Idem.
369. Idem.
370. Entrevista concedida por “R.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
371. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
acessibilidade, mas ajudava no lazer da criançada. “A gente brincava de bola porque era só
entulho. A rua era a área de lazer que a gente tinha. [...] Não era asfaltada.... mas não tinha
tantos carros, tantas motos....” (informação verbal)372. Enquanto a Av. Central era pavimentada,
os becos permaneciam com terra batida. Em dias de “chuva, andar nos becos era um inferno!
Porque era lama. E com saneamento básico sempre com problemas, se misturava, né?”
(informação verbal)373.
O sistema de esgotamento sanitário foi feito inicialmente pelos moradores e Associações,
tendo sido complementado durante o governo Brizola nos anos 1980 com obras nos becos e
vielas, coletores principais, como o da Rua Joaquim de Queiroz (IPEA, 2013), mas as obras não
terminaram. Em 1991, 28% dos domicílios do Complexo não estavam ligados à rede coletora
de esgoto, sendo o Morro do Alemão uma das favelas que apresentava graves problemas de
esgotamento sanitário (IPEA, 2013). “D.”, nascido no Morro do Alemão onde mora até hoje,
nos conta da existência de “um grande valão que recebia o esgoto de todas as casas do alto”
perto de sua casa, na Rua Pará, que era uma canalização de esgoto a céu aberto em concreto374.
Para ele e os amigos, era uma área de lazer. “A gente brincava muito na vala. Literalmente,
onde juntavam pocinhas de água... na vala nascia girino. E a gente brincava ali....”. Esta foi
uma situação que “D.” considera absurda e que trouxe impactos na sua saúde: “pô, eu fiquei
várias vezes internado. Infecções... Ih!...”. (informação verbal)375. Com as obras do Programa
ProSanear376, implementado pela CEDAE no final dos anos 1990, o número de domicílios sem
atendimento de esgotamento sanitário reduziu para 12% no Complexo. Brincar no esgoto na
Rua Pará? “Isso é uma parada que não existe mais... Graças a Deus!...” (informação verbal)377.
Mas é fato que o sistema sempre apresentou problemas em diversos pontos do Complexo,
mesmo com os dados (a partir do Censo de 1991) apontando que a maioria do território é
servido por rede (IPEA, 2013).
A Associação de Moradores do Morro do Alemão, fundada em 1965, foi assumindo a
251 construção e manutenção da infraestrutura, como as redes de energia elétrica, esgoto, água
e pavimentação, mediante pagamento de taxa dos moradores. O histórico de urbanização
no Complexo do Alemão378 (IPEA, 2013) ajuda a desconstruir o mito de que moradores de
favelas nunca pagaram taxa pelos serviços. A forma de pagamento pode não ter sido a mes-
ma que para o restante da cidade, dentro de uma lógica particular à favela, mas que o pa-
gamento existia, isso é inegável. Primeiro veio a cobrança de energia por barraco, muitas

372. Entrevista concedida por “D.” a esta pesquisa em agosto de 2018.


373. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
374. Este tipo de canalização pode ter sido feito para drenagem, mas se não há sistema separador, geralmente é utilizado
para escoamento de esgoto. Por isso, dá a ideia de que seria uma canalização de esgoto a céu aberto, como descrito por “D.”.
375. Entrevista concedida por “D.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
376. Programa que antecedeu o PAT-PROSANEAR, que analisamos no item 2.2.1.
377. Entrevista concedida por “D.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
378. Ver mais informações em: (IPEA, 2013, p. 68-84).
vezes explorada por quem colocava a luz, depois veio a taxa para urbanização (construção
de redes, pavimentação) e, por fim, a taxa de água, já com a Associação de Moradores.
Os sistemas de distribuição elétrica e de água eram geridos pela Comissão de Luz, atrelada
também à Associação até os anos 1980, que pagava a conta de luz de toda favela para manter
o abastecimento de água379. “E aquele que não pagasse, a água seria cortada!” (ZÉ MINEIRO
apud IPEA, 2013, p. 80). No momento em que a água passou a ser gratuita380 e o sistema de
energia passou a ser de distribuição direta entre concessionária e domicílio, e com o aumento
dos ‘gatos’, foi que as contas das concessionárias deixaram de ser pagas.
A infraestrutura trouxe prestígio, poder e, ao mesmo tempo, disputas internas. Quem
fez tal coisa, quem conseguiu os benefícios, as relações com políticos, tudo isso emerge
quando o tema é o histórico da construção da favela. Neste jogo, o controle do território vai
ficando na mão de alguns. Seu Eurico, reconhecido pelos moradores como quem colocou a
luz381 no Morro do Alemão (IPEA, 2013), “foi o zangão! Era o dono da coisa! Naquele tempo,
era quem tinha mais poder. Era tempo de cangaceiro mesmo! Eu tomei aquele prédio dele na
marra!” (informação verbal)382, nos conta “O.”, atual presidente da Associação de Moradores,
que já permanece no cargo há 40 anos. O prédio ao qual se refere é onde hoje funciona a
Creche Comunitária João Ferreira, na Av. Central, que está sob sua influência e seu poder383.
Ele mesmo se diz ditador384. Mas, como se dão as eleições?

Eu mesmo já não estou nem mais fazendo eleições.... tem que atualizar a ata.
Quem não tiver prestando na diretoria, eu vou tirar, botar outros.... Agora só
estou aqui com meu filho. Foram todos embora. Antigamente, não! Se juntavam
os coroas, que morreram tudinho (sic), só tem eu vivo. Naquele tempo, era um
ajudando o outro.” (informação verbal) 385.

252

379. A água precisava ser bombeada para os reservatórios construídos no alto dos morros, o que consumia muita ener-
gia. Se a energia fosse cortada por falta de pagamento, faltaria água. Um sistema está atrelado ao outro.
380. Gratuita para os moradores, mas a conta é da Prefeitura, que assumiu perante a Concessionária a dívida não cum-
prida e que se acumula há muitos anos.
381. Relatos de moradores contam que Seu Eurico conseguiu junto à Light a instalação de cabine de luz, que alimentava
as moradias através de rede de distribuição implementada também por ele, que cobrava pelo serviço e pelo abasteci-
mento (IPEA, 2013).
382. Entrevista concedida por “O.” a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
383. Segundo “O.”, a Associação de Moradores do Morro do Alemão tem 80 funcionários, ligados a dois projetos – cre-
che, com 27 funcionários, e gari comunitário, com 50 funcionários, e como não há mais taxa da adesão na Associação, são
estes projetos que a mantêm. A Associação tem ainda três entregadores de cartas, que separam e entregam por lotes.
Alguns dos entrevistados do Morro do Alemão para esta pesquisa comentaram que parte dos funcionários da Creche
é da família de “O.”. O projeto de Reflorestamento? “O.” desistiu. Tinha 8 funcionários, mas no meio do mato “só tem
polícia e bandido dentro daquela peste lá dando tiro um no outro... Eu vou morrer? Não quero saber daquilo lá, não.”
(informação obtida em entrevista concedida por ele em fevereiro de 2019).
384. Opinião compartilhada pelos outros entrevistados desta pesquisa, moradores do Morro do Alemão.
385. Entrevista concedida por “O.” a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
Os moradores mais antigos, que participaram da construção inicial da favela e/ou que
lutaram contra a remoção e por sua consolidação, são os que podem relatar histórias de
melhorias coletivas. “B.” lembra dos tempos de solidariedade na favela, quando era preciso
fazer a infraestrutura mínima. Mas, para ele, esse tempo acabou, já que as condições estão
bem melhores do que no início da ocupação, pois

foram entrando pessoas que queriam fazer, tinham condições de melhorar o morro,
um pouquinho ali.... aí juntava um cabeça mais forte: ‘vou botar cem reais!’ ‘Vou
botar cimento, areia e pedra.’ Aí fazia o mutirão. Hoje em dia não se pode contar
mais com isso, mas antigamente... Eu venho dessa época, que era gostoso morar
no morro.... as pessoas mais antigas foram morrendo, chegam os mais novos, que
geralmente só estão preocupados com o que é deles. (informação verbal)386.

Os mutirões podem ter ficado mais raros, visto que a infraestrutura melhorou desde o
início da ocupação, mas ainda há solidariedade entre vizinhos: “Se gritar socorro na favela,
alguém acode!” (informação verbal)387.
O Favela Bairro nunca chegou ao Complexo do Alemão e as ações governamentais eram
pontuais e intermitentes. Os equipamentos públicos nas favelas do Complexo, mesmo que
implantados geralmente nas franjas e raramente em seu interior, estão ligados à história
de conquistas coletivas. A falta de ações públicas que trouxessem efetivas transformações
urbanas no Alemão, fez com que os próprios moradores e lideranças locais se organizassem
para lutar pelas melhorias. Em 2001, moradores388 e técnicos da Secretaria Municipal de
Saúde promoveram uma caminhada reivindicando a saída do Entreposto da Comlurb389 do
local e a implementação do Programa Saúde da Família nas favelas do Alemão e sua gestão
compartilhada. “Quinze dias depois, a Comlurb foi desativada!” (informação verbal)390 e os
253 Morros do Alemão e Baiana foram umas das primeiras favelas do Rio de Janeiro a receber
Programa Saúde da Família. No terreno da Comlurb foi construída a Vila Olímpica Carlos
Castilho, que embora tivesse a proposta de ter o caráter público, ao que parece acabou
passando para grupos de influência política local.

386. Entrevista concedida por “B.”, morador do Morro do Alemão, a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
387. Entrevista concedida por “W.” a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
388. Que depois viriam a se tornar novas lideranças do movimento social local, em contraposição às instituições ditas
representativas da favela junto ao Estado.
389. O terreno onde hoje se situa a Vila Olímpica Carlos Castilho, na entrada da Rua Joaquim de Queiroz e na esquina com
a Estrada do Itararé, até os anos 2000 era o entreposto da Comlurb do grande Meier, que recebia o lixo de toda a região,
sendo ali compactado e pesado para ser transferido para Jardim Gramacho. Este entreposto foi criado quando não havia
casas no entorno. Mas com a expansão das favelas na região, a grande concentração de lixo contaminava o ambiente,
tornando-se então incompatível com o uso habitacional. A desativação do entreposto do lixo, nos contou “A.”, aconteceu
através de mobilização local, que procurou a FioCruz para comprovar o impacto do lixo na vida dos moradores do Alemão.
390. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
Outra construção resultante da luta coletiva foi o Posto de Saúde da Família, construído
no início da Av. Central391. A proposta local era de operacionalizá-lo através de um novo
modelo de gestão coparticipativa. Para tal, o CONSA desenvolveu um projeto de gestão da
Saúde da Família, com vários mapeamentos, levantamentos de saúde, “inclusive com pro-
posta de custo, o que seria hoje o que as OSS fazem, só que, na nossa lógica, era o controle
social do processo.” (informação verbal)392. No entanto, o CONSA depois “descobriu que [...]
uma das kingONGs393, que era a que dominava e que ainda domina os equipamentos públicos
de saúde aqui no Complexo do Alemão e em outros lugares” (informação verbal)394 iria gerir
e administrar o serviço395. A proposta local de gestão coparticipativa “não era uma relação
estritamente administrativa, como é hoje, mas uma relação de atores locais construindo seu
próprio serviço público junto com o poder público.” (informação verbal)396. O caso do Morro
do Alemão é um exemplo de luta coletiva por saúde pública nas favelas, mas não basta acei-
tar propostas de construção do equipamento, é preciso discutir seu escopo e modelo de
gestão. Vitória na conquista do equipamento público de saúde, mas derrota na gestão, que
está nas mãos de organizações alheias ao território. Perde-se um ator importante na discus-
são da política de saúde pública que defenda, internamente na gestão, os interesses locais.
Com a ocupação progressiva do Morro, as áreas livres foram processualmente reduzidas
por ocupações privadas. Os becos e a Av. Central eram os lugares de brincadeira da garo-
tada. Na memória de infância de “A.”, árvores não faltavam no Morro do Alemão no início
dos anos 1970, quando as casas tinham quintais, como a casa de “F.” tinha até acontecerem
as obras do PAC-Favelas, no alto do morro, onde hoje é a Estação do Teleférico do Alemão.
“Era bastante interessante porque tinha sombra na própria Central!” (informação verbal)397,
fato que atualmente não existe mais, não apenas pelo adensamento da favela, mas também
como resultado das obras do PAC-Favelas, como veremos adiante. Os campos de futebol
eram, de acordo com “R.”,
254
espaços minimamente de convivência, de relação, (que) foram dando espaço
[...] para um monte de outras coisas [...]. Lembro que tinha o campo da Pepsi,

391. Na base da Av. Central havia uma quadra, ou “meia” quadra, como nos contou “A.”: “Um parente do Luisinho Drum-
mond se candidatou a vereador ou deputado, sei lá.... e começou a construir uma quadra. Fez só metade, veio a eleição,
ele não ganhou...... Aí a quadra ficou inacabada, ficou aquela quadra pela metade” (informação oral obtida em entrevista
concedida em agosto de 2018). Os moradores conviveram com essa situação por quase dez anos, quando em 2001 foi
construído o Posto de Saúde no local, que depois deu o lugar ao CRAS, como veremos adiante.
392. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
393. Em alusão à OSS Viva Rio, que dominava até fevereiro de 2020 toda a gestão de saúde municipal no Complexo do
Alemão e em outras áreas da cidade.
394. Entrevista concedida por “R.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
395. A partir de março de 2020, o prefeito Marcelo Crivella começou a transição do serviço que era gerido por OSS
privadas para a empresa pública de saúde Rio Saúde.
396. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
397. Idem.
ali embaixo. Não lembro bem se era da fábrica da Pepsi, tinha um (outdoor com)
emblema lá... era um campo onde soltava balões. O festival de balão era lá.
Esses lugares vão sendo ocupados, né? E ocupados não só por favela, por prédios
(como os construídos pelo PAC-Favelas para realocação dos moradores para im-
plantação das obras). Os espaços vão sendo reduzidos. No caso das favelas, as
casas crescem para cima.... antes você tinha muitos campos, agora tem poucos....
(informação verbal) 398.

Como vimos, o território do Alemão praticamente foi construído e urbanizado pelos


moradores, com ações públicas pontuais e ajudas de políticos, incompletas e passageiras,
desde os anos 1950. A prática clientelista de melhorias perdurou ao longo de todo o processo
de urbanização no Morro do Alemão. Será que o PAC-Favelas se propôs a romper com essa
prática? O que então esperar de mais uma promessa de intervenção pública no Complexo
do Alemão, agora através do PAC-Favelas?

3.3.2.3. Obras e modificações de projeto em paralelo


O PAC-Favelas surge no Complexo do Alemão em 2007399 atrelado à política de segu-
rança pública, iniciada com a ocupação militar do território, durante a qual ocorreu a
apelidada pela mídia megaoperação400 da Força Nacional401, que deixou 19 mortos e 13
feridos, e depois assumido pela polícia através da implantação de Unidades de Polícia
Pacificadora402 (UPP) em todo o Alemão, em pontos estratégicos no sentido militar de
controle do território. Salientamos que esta pesquisa não está focada na discussão so-
bre a política de pacificação do GERJ, já discutida em outras pesquisas (SILVA, 2015).
Sem dúvida, houve uma intenção de associação do Complexo do Alemão ao discurso
de território da violência que precisa ser ocupado e controlado para ajudar a explicar,
255 numa escala nacional, investimentos vultuosos difíceis de serem justificados para os
respectivos resultados, como veremos mais adiante. Mas nosso interesse é o de com-
preender como a violência, numa escala local, continua segregando e interferindo na
vida cotidiana dos espaços coletivos, no ir e vir, e na cidadania no território estudado.
Veremos a seguir como se deu o processo de modificações do Projeto Básico, objeto do
financiamento federal do PAC-UAP, para sua implementação nas obras do PAC-Favelas
no Morro do Alemão.

398. Entrevista concedida por “R.”, morador do entorno do Alemão, a esta pesquisa em agosto de 2018.
399. Data do contrato do PAC (PATRÍCIO, 2017, p. 88), que não necessariamente é a mesma do início das obras, mas o
projeto já estava em andamento e os contatos políticos sendo feitos no território.
400. Ver https://extra.globo.com/noticias/rio/megaoperacao-no-alemao-deixa-19-mortos-681274.html Acessado em 6
de março de 2020.
401. Reunindo 1.350 policiais, civis e militares, e soldados do exército.
402. As UPPs começaram a ser instaladas em favelas do Rio de Janeiro a partir de 2008.
Após vencer a licitação das obras do PAC-Favelas no Complexo do Alemão, o Consórcio
Rio Melhor403 contratou a mesma equipe404 que desenvolveu o Projeto Básico para o GERJ
(como vimos no item 3.3.1, também o PDUCMA) para os Projetos Executivos durante as obras.
A etapa Projetos Executivos, que estava dentro do contrato de obra, que deveria ser a ade-
quação do Projeto Básico ao campo para a execução das obras, mas esta mais assemelhou-se
à efetiva elaboração de projetos, pois o Projeto Básico que havia sido apresentado para captar
os recursos federais estava longe de estar sacramentado. Sem um contrato direto com o GERJ,
a equipe de projeto ficou diretamente subordinada ao Consórcio, que passou a ter o controle,
agora sim, sobre o projeto e os orçamentos, e começou a manipular o Projeto Básico licitado
visando adequá-lo aos seus interesses para a execução das obras. Em entrevista realizada por
Patrício (2017, p. 118) com um dos profissionais envolvidos, constatamos que:

a verificação desses custos começou a inviabilizar todos esses projetos. Então


um artifício levado ao Governo do Estado pelo executor era levar esses equipa-
mentos (públicos) para dentro das estações, então você hoje olha o resultado
final da intervenção do Alemão no território, nós temos o teleférico, é muito
marcante, a abertura das vias, não só ao teleférico, mas aos pilares, e os equi-
pamentos ficaram nem digo fragmentados, eles ficaram rarefeitos.

Deste modo, o Projeto Básico licitado foi sendo modificado enquanto o canteiro de obras
era montado. Os equipamentos públicos, que antes estavam mais distribuídos no território,
foram transferidos para os edifícios que abrigariam as Estações do Teleférico. Não por uma
questão conceitual urbana, mas pela necessidade dos executores das obras de fazer caber
estes eventos no orçamento licitado.
O projeto do PAC-Favelas para o Complexo do Alemão não foi devidamente discutido
256 e apresentado no território. Segundo “M.”, arquiteto principal da equipe de projetos, não
houve praticamente participação dos moradores na construção do projeto e não era a me-
todologia de projeto que gostaria de ter implementado, já que as obras estavam

atropelando o projeto e atropelando a comunidade. Não havia reuniões represen-


tativas: ou eram pequenas ou eram acessórias. Eu sempre pedi para fazer reuniões
por comunidade no Complexo e apresentar o projeto, discutir com a comunidade,
mas o Estado não queria isso, não queria nenhuma opinião da comunidade, queira
só fazer, realizar as obras. Isso foi ruim. (informação oral, grifo dele) 405

403. Formado pelas empresas Odebrecht (líder), OAS e Delta Construções.


404. Agora através da empresa Metrópolis Projetos Urbanos (MPU). Ver nota 263, na p. 196 desta tese.
405. Entrevista concedida por “M.”, arquiteto que trabalhou no projeto, a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
Nas apresentações gerais, os moradores eram consultados apenas para a formaliza-
ção e aprovação de ideias e concepções já prontas, sem nenhuma representatividade da-
quela comunidade. Por isso, para “M.” essas apresentações eram acessórias. “R.”, morador
do Complexo do Alemão e ativista social, relembra as reuniões coletivas em que esteve
presente:

O que acontecia? Os presidentes de associação tinham foro privilegiado,


reunião em outro lugar [...], eles não participavam da reunião da plebe da cons-
trução coletiva. Você tinha uma relação de participação de uma ONG, de alguns
outros atores e moradores, e as associações tinham um clubinho separado, iam
conversar diretamente com o Presidente, não faziam parte disso... Ora, isso não
é feito para dar certo. E nem tem representatividade. [...] E na hora que você ia
definir um tipo de política ou de relação, não adianta o coletivo, a participação
dizer o que quer, porque ela não tem poder de voto, não tem poder de deliberar.
A deliberação já está dita em outro lugar, em outra esfera. Pra que serviam
estas reuniões? Para que o Ministério das Cidades liberasse recurso, a Caixa
Econômica Federal enquanto administradora do recurso legitimava por presença!
Então, você tem lá a listinha de presença da reunião, eles sequer vinham aqui
e liberavam recurso para o PAC-Social. Então, pra que que servia (sic) aquelas
reuniões? Chegou um dado momento que a gente se absteve, a gente fez um
motim – no bom sentido, de ninguém assinar a lista de presença. Poxa, isso era
um absurdo! A gente estava ali para assinar a lista de presença para eles rece-
berem dinheiro e aplicarem... (informação verbal, grifo dele) 406

A participação, segundo moradores, foi utilizada como manobra política, aparentemen-


257 te camuflada e dificilmente poderia ser comprovada se não fosse denunciada pelos pró-
prios participantes407. Para os moradores, o projeto já chegou pronto ao território, mas,
acostumados a obras pontuais, entendiam que o PAC-Favelas trazia a promessa de altos
investimentos em todo o território do Complexo. Para “D.”, morador do Morro do Alemão e
ativista social, isso parecia um sonho:

406. Entrevista concedida por “R.” a esta pesquisa em agosto de 2018.


407. A manipulação de reuniões coletivas, não só pelo Estado, mas por políticos, para fins espúrios é uma prática em
favelas. SILVA (2015, p.5 3) discorre sobre uma situação que ele e sua equipe viveram no Complexo do Alemão: “em se-
tembro de 2012, quando, na qualidade de coordenador de extensão de uma universidade particular, fomos a uma reunião
na quadra da Vila Olímpica Carlos Castilho para divulgarmos os cursos que disponibilizamos no local. A reunião tinha
aproximadamente 2.000 pessoas (vimos a numeração na lista de presenças) que foram convocadas para receber infor-
mações sobre a ‘tarifa social’ da empresa distribuidora de energia elétrica. Mas, na verdade, era um evento da campanha
do candidato a vereador Bororó, que é funcionário dessa empresa e fazia um cadastro para que os moradores tivessem
acesso ao programa, vinculando assim o direito à tarifa social com sua atuação e, quem sabe até com possíveis ameaças
aos cadastrados, pois tinham na ficha a ser preenchida a seção eleitoral.”
Eu fui muito ingênuo... porque eu olhei aquilo ali e falei: agora vai! Agora o Alemão
vai receber um investimento para uma estrutura que vai atender às nossas ex-
pectativas, tanto na questão do saneamento básico, na questão da educação, da
questão da saúde. Por que? Porque no projeto dizia isso pra gente. O projeto não
dizia só do Teleférico, que desde ali já era uma crítica nossa. Desde ali! Porém,
tinham escolas sendo construídas, Clínica da Família, UPA etc. uma escola na
antiga fábrica da Coca Cola. Aí se via dentro da Nova Brasília uma área cultural
com a Nave do Conhecimento, com cinema. Aí eu falava: o Alemão vai ter vida,
vai estar mais vivo!” (informação verbal)408

Desconfiado com a série de investimentos do Estado no território, sem que houvesse


tido participação local na formulação do projeto, na discussão das propostas ou das priorida-
des, num processo sem transparência e que estava visivelmente sendo manipulado, o movi-
mento social local – que se formou mais intensamente desde os anos 2000 em contraposição
às Associações de Moradores, as quais ainda tinham o papel de interlocutor oficial com o
Estado – usou estratégias para tentar descobrir o que estava acontecendo. Ouvia-se que
as propostas do projeto estavam sendo modificadas e negociadas entre as ditas lideranças
oficiais e algo precisava ser feito.
Para quem vive no Alemão, a falta de representatividade das Associações de Moradores
é localmente notória. Além disso,

não podemos esquecer que há graduações no grau de controle que as quadrilhas


exercem sobre as associações de moradores. Em outras palavras, quanta auto-
nomia elas preservam. Havendo associações que preservam certa distância dos
traficantes limitando-se a uma ‘convivência forçada’ entre estes e as lideranças,
258 enquanto há outras associações que os diretores foram apoiados ou até impostos
pelo tráfico. De qualquer forma, o espaço de autonomia das associações é bas-
tante reduzido (BRUM, 2006, p. 176, apud GUIMARÃES, 2015, p. 38).

Esta foi a principal motivação da criação do Comitê de Desenvolvimento Local da Serra da


Misericórdia (CDLSM - Alemão e Penha), constituído em 2006 por instituições e atores locais
que não faziam parte das Associações de Moradores, com o intuito de construir um plano de
desenvolvimento coletivamente a partir do olhar da localidade. Esse movimento, que esfria
no início de 2007, é retomado apenas como Alemão (CDLSM-Alemão) em reação ao que se
estava vendo acontecer nos bastidores quando começaram as negociações das propostas
para a urbanização do Complexo do Alemão no PAC-Favelas, no segundo semestre de 2007,

408. Entrevista concedida por “D.” a esta pesquisa em agosto de 2018.


e essas negociações (se davam) só com a Associação de Moradores. [...] Daí a
gente (CDLSM-Alemão) começa a monitorar os movimentos, principalmente as
relações do Governo do Estado com a Associação de Moradores, através de al-
guém que esteja na Associação, no Governo, na máquina e que esteja do nosso
lado, quase um.... trabalho de inteligência, né? (risos) (informação verbal)409.

Foi assim que se descobria que estavam acontecendo reuniões entre vice-governa-
dor 410
e os presidentes das associações de moradores do Complexo do Alemão. “O quê?!?
Eu pegava minhas coisas, pegava moto-taxi e ia! Eu abria a porta do gabinete, entrava e
sentava. Todos os presidentes das Associações me olhavam....” (informação verbal) 411. Deste
modo “invasivo”412, no sentido de estar fora das regras por não ter sido convidado para a
reunião, mas por nós reconhecidamente autêntico por ser legítimo seu direito à participa-
ção, foi que se abriu o canal para se apresentar as propostas coletivas do CDLSM-Alemão,
pontuar o planejamento da intervenção do Estado de acordo com as demandas locais e
para reivindicar a participação ativa no processo, que já estava acontecendo. Prossegue
nosso entrevistado:

Eu entrei numas quatro ou cinco reuniões dessa forma! E não tinham como me
mandar embora, tinha um respaldo! A rede (do CDLSM-Alemão) era legítima inter-
namente. Nem o tráfico, eles conseguiam acionar para parar a gente. Tentaram,
mas não conseguiram. (informação verbal)413.

Após invadir algumas reuniões, “A.”, morador do Morro do Alemão e ativista social, foi
convidado pelo GERJ para fazer parte da equipe do Trabalho Social (TS) nas obras do PAC-
-Favelas no Complexo do Alemão, cujo discurso no convite dizia “para ter gente de dentro,
259 atender às reivindicações... integrar a equipe” (informação verbal)414, fazendo a articulação
entre os moradores e o Estado. O TS era um serviço que, no PAC-Favelas, estava a cargo do
Estado e não era atrelado ao projeto. Em algumas obras, foi o próprio Escritório de Geren-
ciamento de Projetos do GERJ (EGP-Rio) que desenvolveu o TS nas obras. Em outras obras, a
equipe do TS era diretamente contratada pelas construtoras, como foi o caso no Complexo
do Alemão. O coletivo local CDLSM-Alemão fez reunião para tratar do convite do GERJ e o
grupo aceitou, mas negociando uma contraproposta:

409. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.


410. Que, na época, acumulava o cargo de Secretário Estadual de Obras.
411. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
412. Expressão utilizada por nosso entrevistado.
413. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
414. Idem.
Integrar a equipe não interessava, porque a gente queria conduzir processo, em
parceria, até porque o Plano de Trabalho Técnico Social... o PTTS415, teoricamente,
atende às demandas locais de participação, de envolvimento, de respeito, do
impacto social das obras. Eu pedi carta branca para montar a equipe de 30
pessoas (reunindo parceiros do movimento social local) e fui o único morador
de favelas (a ser) Gerente Técnico do Trabalho Social nas obras do PAC-Favelas.
(informação verbal, intervenção nossa)416.

“A.” lembra que, a partir de abril de 2008, quando assumiu a gerência do eixo Gestão de
Impactos do TS, as frentes de obras lhe eram comunicadas com quinze dias de antecedência
para começar o planejamento da Gestão de Impacto, atividade que tinha o objetivo de dimi-
nuir os impactos sociais ao longo das obras. Reuniões eram marcadas no local “onde o buraco
ia abrir, com o engenheiro da obra e quem mais fosse importante da empreiteira de estar, a
Associação de Moradores, eu e a comunicação.” Eram analisadas as interferências com comér-
cio, “pessoas acamadas que deveriam ser transferidas para casa de parentes no período da obra”,
fluxos de entrada e saída, o que ia impactar. “Nesse primeiro momento, os moradores não par-
ticipavam, mas depois sim.” (Informação verbal)417. Fazia-se uma campanha de comunicação
sobre prazos, impactos na localidade com panfletos, faixas, mini outdoors etc.

Isso funcionou durante um ano, e bem! Trabalho bem feito! E depois de um ano,
esse prazo foi encurtando, encurtando, encurtando até que...... eu só sabia da
obra quando ela estava sendo aberta. É que durante o primeiro ano, era o tempo
de liberação dos recursos do Governo Federal. Quem exigia o PTTS era o Governo
Federal! Estado e Município não estavam nem aí....” (informação verbal)418.

260 O primeiro contato com os moradores era efetivado através da equipe do TS. Reuniões
eram feitas por grupo de cerca de 30 casas. Nelas, explicava-se os motivos das remoções,
as opções de negociações e até onde ia o trabalho da equipe do TS:

primeiro cadastro, primeira abordagem, primeira reunião, esclarecia as informações


para cada morador e, no momento que eles optavam por qual tipo de negociação,

415. O Plano de Trabalho Técnico Social (PTTS) é o documento que apresenta metodologia e escopo dos serviços, que é
aprovado pelo Ministério das Cidades. No Complexo do Alemão, o PTTS estava dividido em dois eixos: Gestão de Impacto
e Desenvolvimento do Território. O PTTS ficou conhecido também no PAC-Favelas como PAC-Social. Nesta pesquisa, ao
PTTS ou PAC-Social, denominaremos TS para efeitos de comparação com o PAT-PROSANEAR. Todos estes diferentes
nomes foram comentados pelos entrevistados, que preferimos não alterar quando citados.
416. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
417. Trechos da entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
418. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
então já passava para outra equipe de negociação econômica mesmo, né? (infor-
mação verbal)419.

Havia uma grande preocupação da equipe de “A.” no TS sobre as ações que adotariam
em relação à população, pois era

O movimento social que estava ali fazendo esse tipo de trabalho, de tirar as
pessoas das casas... Minimamente, a gente tem que dar todo o suporte para
essa família! Para sair, pelo menos, mais confortável. Então a gente alertava:
não feche enquanto você não estiver segura! Pede suporte, pede apoio! Estamos
aqui. A gente não dava sustentação pro Governo, a gente dava sustentação pra
pessoa! (informação verbal)420.

Esse processo resultou em obras empacando, cujas negociações para as remoções não
avançavam no ritmo desejado na obra e ficou evidente, assim, o conflito de interesses.

Esse suporte (que dávamos) passou a ser incômodo (para as obras) e eles come-
çaram a pressionar a minha equipe para não se meter! E nós mostramos: ‘Não,
é nosso trabalho. Está lá no PTTS!’, que funcionou com uma bíblia, nesse sentido,
sabe? Está lá no PTTS dar o suporte para o morador até o fim do processo de
negociações. Então, a gente vai fazer! (informação verbal)421.

Este fato mostra a importância da existência de documentos e escopos de trabalho oficiais


para legitimar as ações das equipes contratadas, sobretudo quando estas ficam subordinadas às
construtoras, que têm mais interesse na agilidade das obras do que no público. O TS no Alemão
261 estava, assim, sendo utilizado não para gerir impactos, mas para dar fluidez às obras indepen-
dentemente do impacto que estas causariam no território e nos moradores. Ressaltemos que o
TS do PAC-Favelas estava atrelado ao financiamento federal do PAC-UAP e era, portanto, uma exi-
gência do Ministério das Cidades422, e não necessariamente um serviço fundamental para o GERJ,
que estava focado nos prazos políticos; e tampouco para as construtoras, que embora detivessem
também os contratos do TS, tinham como interesse principal o bom andamento das obras.

419. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.


420. Idem.
421. Idem.
422. Como comentamos no Capítulo 2, o Trabalho Social do PAC-UAP seguiu escopo similar ao do PAT-PROSANEAR. No en-
tanto, no PAC-Favelas, do GERJ, o TS teve como principal ação a minimização dos impactos das obras, pois pouco contribuiu
em modificações de projetos. O TS do PAC-Favelas teve início ao longo das obras, quando os projetos já haviam sido apresen-
tados para obter o financiamento do PAC-UAP. Esta alteração do PAC-Favelas sobre a metodologia do TS, de certo modo, anu-
lou suas qualidades nos moldes do PAT-PROSANEAR, trazendo resultados negativos onde isso ocorreu (BLASI CUNHA, 2018).
Foi então que o TS também começou a ser atropelado pela obra. Segundo “A.”, os cadas-
tros das famílias cujas negociações não estava fluindo foram repassados pela construtora à
Associação de Moradores, que começou a fazer pressão para resolver o problema.

Com uma equipe de 5 a 6 pessoas, às 10, 11 horas da noite, (o presidente) batia na


casa da pessoa pra falar que era importante terminar logo essa negociação....
‘porque, em última instância, eles trazem a polícia e o tráfico não ia gostar disso....’
Aí foi a gota d’água! (informação verbal)423.

“A.” e sua equipe pediram demissão e saíram do TS em agosto de 2009. Ao longo dos 16
meses à frente da Gestão de Impactos do TS, vivenciaram conflitos políticos internos. Enquanto
a equipe do TS, que estava contratada pela empreiteira e indiretamente pelo Estado, dialogava
com o coletivo local e com os moradores, as Associações de Moradores, que os deveriam repre-
sentar, estavam na verdade mais próximas do Poder Público e mais interessadas na agilidade das
obras que trariam, quando prontas, prestígio político. Estas agiam num jogo duplo, servindo aos
objetivos do Estado em detrimento das consequências para os moradores da favela.

Os presidentes das Associações faziam movimento para me tirar, já que esse lugar
veio à revelia. O Governo fez a leitura de que era importante eu estar. Então o
próprio Governo peitava eles, via que era perigoso me tirar, então me mantinha....
Olha que coisa doida! O Governo me defendendo junto à Associação de Moradores.
Mas o Governo via uma forma de controle nesse processo porque se eu estou
fora, está fora o Comitê, e se o Comitê está fora, o Governo vai ter muito pro-
blema, vai levar muita porrada. (informação verbal)424.

262 O presidente da Associação, por outro lado, diz que defendia as melhorias na favela, mas
que ao final se viu traído pelo Estado ao lutar por obras que acabaram incompletas:

Botaram eu (sic) de bucha425 pra falar com os moradores, que tinha que desocupar
o barraco, que eles iam comprar. Compraram as casas, não derrubaram, não
abriram caminho, deixaram aí... e os que tiraram aí, caíram, nego (sic) invadiu aí,
quer dizer, né? Porque se tem espaço, fazem um barraco. E eu não posso implicar.
Eu convivo aqui, vou implicar com morador? Eu não! (informação verbal)426.

423. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.


424. Idem.
425. Segundo o Dicionário Informal, bucha significa “1) Tarefa difícil, complicada, cansativa ou desagradável, que alguém
preferiria não fazer; 2) problema, situação ruim, inescapável, insolúvel, em que não há como se dar bem.” Disponível em:
https://www.dicionarioinformal.com.br/bucha/ Acessado em 19 de fevereiro de 2020.
426. Entrevista concedida por “O.” a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
Com a saída da equipe local do eixo Gestão de Impactos do TS, “A.” retornou ao movi-
mento social reativando o CDLSM-Alemão para ampliar a participação no Plano de Desenvol-
vimento Sustentável do Complexo do Alemão (PDSCA), que estava sendo desenvolvido pelo
eixo Desenvolvimento do Território do TS, a cargo do EGP-Rio. “Dei sequência, agora como
militante. E aí continuavam os embates, que foram se acirrando... com os presidentes das
Associações, principalmente.” (informação verbal)427. Do PDSCA, que traria ações ao longo dos
anos, numa lógica de plano diretor, só foi publicado o Relatório428, “ou seja, só as linhas gerais,
tendências, mais texto, sem as ações. Não é um Plano.” (informação verbal)429. “A.” nos relata
que atividades de fácil implementação, como o fechamento de uma via principal nos fins de
semana para atividades de lazer, como a exemplo do que acontece na Zona Sul da cidade, era
uma das ações que foram elencadas nas reuniões locais com a participação dos moradores.

O mapeamento de equipamentos que estavam sendo construídos e os que já exis-


tiam e que precisavam ser reformados, quem já desenvolvia atividades afins da
sociedade civil.... O PDSCA era um Plano que foi muito bem trabalhado, só que
chega assim (publicado). O que está aí é mentira? Não. Mas não traz a concretude
e o detalhamento que foi o Plano que a gente discutiu. (informação verbal)430.

Mas qual o interesse do movimento social local num Plano construído em paralelo às
obras do PAC-Favelas que estavam já em andamento? Para que serviria, uma vez que aparen-
temente não influenciaria no que estava sendo executado? “A.” destaca a importância de se

pensar o funcionamento, a gestão e a necessidade de, por exemplo, novas quadras


(esportivas): mesmo que o PAC não desenvolvesse, mas que se tornasse uma política,
um comprometimento de médio e longo prazo de cumprimento do Plano pela
263 Secretaria de Esportes e Lazer, já seria um ganho. Chegamos a mapear tudo, tudo
foi feito! Dinâmicas, encontros e encontros! O exercício (de construção do PDSCA)
foi muito bom e o resultado também! O problema é que eles não publicaram o
resultado. Essa intersetorialidade e colocação no tempo do desenvolvimento
das ações foi uma coisa muito legal! E estruturalmente nada foi feito. Foi muito
pontuada a questão da gestão e dos espaços que estavam fora do PAC. A questão
das áreas de riscos foi tema de discussão, que o PAC, antes de terminar seu processo,

427. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.


428. Barros (2013, p.15-16) afirma que “o Relatório do PDSA é visto como sendo uma revista, estrategicamente elabora-
da, para atender as demandas da política do PAC/Social e demais ações do governo e seus parceiros.” Para informações
mais detalhadas, pode-se conferir o Relatório do Plano de Desenvolvimento Sustentável do Alemão (Caderno de resul-
tados – Edição do Governo do Estado do Rio de Janeiro, 2011).
429. Entrevista concedida por “A.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
430. Idem.
desse o parecer do que se iria fazer nas áreas de risco mapeadas pela GeoRio no
Complexo do Alemão. E não deram nem atenção... (informação verbal)431

O PAC-Favelas efetivamente não levou em consideração, em seu desenvolvimento, o con-


teúdo do Plano de Desenvolvimento Sustentável do Complexo do Alemão (PDSCA). Contudo,
mesmo com essa desarticulação, o processo de construção do PDSCA talvez seja um dos
melhores exemplos de bons resultados de Trabalho Social, pois, mesmo não sendo o objetivo
principal, acabou estimulando que o movimento social local repensasse a sua própria realidade.
Infelizmente, o PDSCA não foi publicado na íntegra, e, assim, os acordos que foram sa-
cramentados, especialmente no que diz respeito às responsabilidades assumidas pelo Estado
sobre a gestão do território, se perderão. Arriscamos dizer que a publicação do PDSCA tal-
vez não interessasse ao Governo do Estado naquele momento de desenvolvimento do PAC-
-Favelas, pois em seu conteúdo ficariam registrados prazos assumidos e não cumpridos por
entidades públicas que participaram de sua construção, ou seja, seria um documento com-
probatório para as cobranças do movimento social local. Salientamos nesta pesquisa a impor-
tância da luta por transparência e da publicação deste importante documento que traçava
o planejamento da gestão do Complexo do Alemão, não necessariamente com obras de
grande vulto, mas com políticas contínuas intersetoriais que garantiriam as transformações
urbanas e sociais destas favelas.

3.3.2.4. Efeitos do processo no território do Morro do Alemão


Observaremos o que aconteceu no Morro do Alemão, dentro do enquadramento adotado
nesta pesquisa, o qual compreende a Av. Central e seu entorno próximo (ver Figs 87 e 92).
Esta via foi a fronteira entre as duas áreas loteadas pelo poder público – Estado e Prefeitura
– para urbanização, dividindo o Morro do Alemão em dois territórios com atuações distintas.
264 A Av. Central, que era um acesso logístico para a construção da futura Estação do Teleférico,
no topo do morro, estava englobada no contrato de obras do PAC-Favelas. A área do Morro
do Alemão ao lado direito da Av. Central também ficou sob a tutela do PAC-Favelas. Já a
área do Morro do Alemão que ficava ao lado esquerdo da Av. Central até a Rua Joaquim de
Queiróz ficou a cargo do contrato da PCRJ.
O ato de seccionar o Morro do Alemão em dois territórios com tipos de atuação na urba-
nização, que não estavam integradas, gerou resultados questionáveis. Do lado da Av. Central
onde a PCRJ atuou, o saneamento básico e a pavimentação de escadarias e becos foram
executados. No outro lado, que estava sob responsabilidade do GERJ, nada foi feito na malha
viária interna à favela e não houve urbanização. O foco da atuação do GERJ centrou-se na
implantação do sistema de teleférico e dos eventos que lhe davam suporte.

431. Entrevista concedida por “A.”. a esta pesquisa em agosto de 2018.


Figura 90
Beco urbanizado pela PCRJ, através do contrato
Joaquim de Queiróz. Fonte PCRJ, 2015.

Figura 91
Beco Leste, não urbanizado no trecho de atuação
do GERJ. Fonte acervo pessoal de Isabela Couto, 2015.

Esta distinção na atuação do poder público numa mesma favela teve efeitos perversos
como a segregação dos moradores: apenas uma parte da favela teve direito a saneamento
básico e infraestrutura, e a outra se manteve com as redes incompletas. Além disso, a pavi-
mentação de becos e escadarias, com visíveis problemas de obsolescência, continuou a ser
realizada ao longo do tempo pelos moradores.

O trabalho de becos e vielas, o pessoal (do Consórcio das obras do PAC-Favelas)


265 estava patinando432... Por mais que detalhes a gente fizesse e explicasse... A gente
teve que ir um dia junto com eles na área da Prefeitura para eles poderem ver
como é que a Prefeitura faz. Teve projeto para os becos. Todos! Todos os becos!
Essa é outra coisa que não foi executada... A gente fala: (o trabalho em) becos
e vielas é o fundamental, atende a todos em 100%. Lembro que quando eu entrei
nesse projeto na obra, fui trabalhar em becos e vielas. Montamos uma equipe
especifica para becos e vielas pela importância que a gente sabia que tinha sido
passado para o Consórcio de fazer becos e vielas. (informação oral)433.

432. Expressão popular que significa “mostrar hesitação”, “titubear”.


Fonte Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020. Disponível em: https://dicionario.priberam.org/
patinar Acessado em 05 de março de 2020.
433. Entrevista concedida por “L.”, arquiteto que trabalhou no projeto dentro das obras do PAC-Favelas, a esta pesquisa
em fevereiro de 2019.
Pelo que levantamos em projetos e relatos, os becos e escadarias do Morro do Alemão
fariam parte do escopo das obras do PAC-Favelas. Porém, ao que parece, foram gradativa-
mente deixados de lado para que o evento mais importante em termos financeiros e políticos,
a implementação do sistema do Teleférico, avançasse rumo à inauguração.
O processo de desenvolvimento de projeto é caracterizado por experimentações, alimen-
tado por levantamentos e inspeções de solo do campo. É preciso tempo e informações téc-
nicas e sociais para dar suporte à escolha da solução mais adequada em termos técnicos e de
custo-benefício. Este é um processo de projeto que acontece em desenhos para formalizar a
solução ideal. Um problema grave é quando este processo vira a própria experimentação no
campo, durante as obras, enquanto a solução final ainda não foi decidida.
Foi deste modo, descoordenado e atropelado, que as obras e o projeto que seria execu-
tado por elas aconteceram na Av. Central. Ora era um lado da via que precisava ser removido,
ora era outro. Os projetos eram modificados e os moradores se viam envolvidos ativamente
no processo, pois recebiam o anúncio de que sua casa seria removida, até que outro problema
alterasse o projeto novamente.
“O projeto geométrico foi feito com o intuito de retirar o menor número de domicílios possível”
(informação oral)434, sendo que o critério utilizado para o alargamento desta via não era apenas urba-
no, mas fundamentalmente técnico para possibilitar a subida das peças de montagem do teleférico.
A rua do Pilar, no Morro do Alemão, por exemplo, é uma via que só foi alargada porque ali seria o
Pilar 13 do sistema do teleférico e o acesso carroçável era imprescindível para sua manutenção.
Mesmo o projeto buscando causar o menor impacto possível, o efeito foi de um arrasa-
-quarteirão com o lado esquerdo da Av. Central praticamente todo demolido. Para os mora-
dores, foi traumático. “R.” vê nesta questão uma grande diferença entre a lógica técnica e a
de quem é afetado pelas obras, pois “os arquitetos e engenheiros falavam: ‘vamos remover
3.000 casas.’ E eu respondia: ‘Não! Vocês vão remover 3.000 famílias! Casa e família têm
266 conotação diferente!” (informação verbal) 435. O impacto foi ainda maior pelo fato de que
o alargamento, nas dimensões inicialmente projetadas, depois se mostrou desnecessário.
Verifica-se no local que o dimensionamento da demolição foi, em vários trechos, além
do necessário, como no Terreno da Curva, como passou a ser chamada no Morro a área onde
funcionava a antiga sede do Instituto Raízes em Movimento (casa de portão azul, na Fig. 93),
que é atuante no Alemão.
Após várias mudanças em aluguel social pago pelo PAC-Favelas, o Raízes em Movimento
finalmente conseguiu nova sede na mesma Av. Central, mais acima do Terreno da Curva, que
ficou vazio após o término das obras, sem qualquer tipo de destinação de uso pelo projeto
ou tratamento urbano.

434. Entrevista concedida por “E.”, engenheiro que trabalhou no projeto das obras do PAC-Favelas, a esta pesquisa em
abril de 2019.
435. Entrevista concedida por “R.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
Figura 92
Planta que mostra todas as
casas (em vermelho) que foram
removidas pelas obras do PAC-
267 -Favelas no Morro do Alemão
para o alargamento da Av.
Central e da Rua do Pilar.
Em laranja, o enquadramento da
pesquisa. Fonte elaboração própria.

Figura 93
Conjunto edificado que foi
demolido para o alargamento
da Av. Central onde hoje é o
Terreno da Curva. Fonte Raízes
em Movimento, 2005.

Figura 94
Terreno da Curva após as
obras do PAC-Favelas. Carros
estacionados ocupam tempo­
rariamente este terreno.
Fonte acervo pessoal, 2015.
Alguns dos imóveis desapropriados não foram demolidos e ficaram abandonados, como
a casa de número 63 da Av. Central, a única que restou do conjunto desocupado. O edifício,
que agora pertence ao Estado devido à finalização do processo de desapropriação, depois
de um tempo abandonado, foi ocupado por policiais da UPP para justificar um uso e evitar
que este não fosse reocupado pela antiga moradora, que queria voltar à sua casa. Ao lado,
o espaço vazio resultante das demolições recebeu mobiliário urbano, mas que, claramente,
não parece ter tido um desenho urbano projetado (Fig. 95).
O morador do Morro do Alemão e agente comunitário de saúde “W.”, da Clínica da
Família que atende os moradores desta favela, conta que este processo afetou bastante a
saúde dos moradores.

Durante o processo de desapropriação (do PAC-Favelas), nós tivemos muitos pro-


blemas de saúde de moradores. Moradores com depressão, teve casos de suicídios,
separação de pessoas que viviam há anos juntas, brigas de família... pela questão
de indenização. Foram várias questões que a gente enfrentou junto aos moradores...
picos de pressão, de glicose. E perdas de laços, né? Muitos laços foram rompidos
abruptamente. E essa separação trouxe muitas doenças psíquicas, né? Psiquiátricas.
As pessoas passaram a tomar medicação controlada... então, trouxe um impacto
bem negativo nesse ponto. (informação verbal, intervenção nossa)436

436. Entrevista concedida por “W.” a esta pesquisa em fevereiro de 2019.

268

Figura 95
Casa na segunda curva da Av.
Central que foi desapropriada pelo
Estado, mas que não precisou ser
demolida para viabilizar a subida
dos equipamentos do teleférico.
As portas do térreo foram lacradas
pelo Estado com alvenaria para
evitar reocupação. Fonte acervo
pessoal, 2015.
Após a demolição das casas, a Av. Central não foi imediatamente concluída. O teleférico
foi inaugurado em 2011. Cada estação do sistema foi projetada para alocar diferentes instituições
e serviços que atenderiam a toda população do Complexo. Na Estação do Morro do Alemão
foram instalados o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), o Centro de Referência
da Juventude (CRJ), um posto do INSS e uma agência dos Correios. Ao lado da Estação do
Alemão, algum tempo depois, foi instalada a UPP do Morro do Alemão, que tem visibilidade
sobre grande parte o território do Complexo. A definição de sua localização e construção não
faziam parte do projeto do PAC-Favelas, mas da política de segurança
99 pública atrelada à SESP.

Tabela 17: Estações do teleférico e equipamentos em cada estação na inauguração


Estação Projetado
Bonsucesso Estação de integração com a ferrovia. Posto da Rio Card para
patrocinada pela cadastramento das gratuidades dos moradores do Complexo do
TIM Alemão para o sistema do Teleférico;
Adeus Possui um mirante, conta com uma agência do Banco do Brasil e um
caixa eletrônico da Caixa Econômica Federal.
Baiana É a estação motriz de todo o sistema e tem um caixa eletrônico da
Caixa Econômica Federal.
Alemão Abriga alguns equipamentos sociais: o Centro de Referência da
patrocinada pela Juventude (CRJ), um posto de atendimento do INSS, Centro de
KIBON Referência Social (CRAS) e uma agência dos Correios.

Itararé patrocinada Estação intermediária; tinha salas da FIRJAN com cursos gratuitos Tabela 18
pela NATURA para a população; em 2014 foi fechado. Serviços e instituições
Palmeiras Estação de retorno do teleférico. Tem um espaço cultural, com que ocuparam as estações
auditório e biblioteca, que sofria ameaças de fechamento em 2014 pela
prefeitura para a instalação no local de um posto de atendimento de do sistema de teleférico do
saúde para a mulher. Alemão. Fonte SILVA, 2015, p. 99.
Fontes: Sítio da University of British Columbia http://www.chs.ubc.ca/consortia/events/E-
20080916/GovernoRJ-Complexo_do_Alemao.pdf Acesso 01/04/2014 e trabalho de campo.

ApósUma
a inauguração do teleférico
externalidade positiva do teleféricoeé das
trazerinstituições dentro
um forte conteúdo das Estações, as obras con-
simbólico
tinuaram,
por conta mas emo ritmo
de tornar “passeioreduzido,
no teleférico”até
umaque, emturística
atividade 2013, orelevante,
GERJ as paralisou, mesmo com o lado
inclusive

queuma
foifeira de artesanato se viabilizou aos sábados na estação Palmeiras por conta disso e
demolido sem tratamento urbanístico resolvido (Fig. 96). As calçadas da via foram
pelo menos uma pessoa hoje, vive como guia turística no Complexo, a partir do
posteriormente concluídas pela Prefeitura em 2015. Contudo, ainda sobraram espaços resi-
teleférico. A importância desse marco simbólico pode ser vista na obra dos artesãos
duais e restos de casas a demolir ao longo de toda a via (Fig. 97).
locais (vide Figura 21)
269 Alguns espaços residuais receberam mobiliário urbano, mas sem nenhum tipo de tratamento
Figura 21: Artesanato vendido na feira de artesanato do Complexo do Alemão, que se realiza na Estação
quePalmeiras
dessedoalusão
teleféricoà existência de um projeto de desenho urbano específico para espaço coletivo
ou de lazer. Os arquitetos do projeto afirmam que outros eventos projetados também foram
cortados da execução e o que está construído não corresponde completamente ao projeto:

não necessariamente tudo o que está construído é o que foi pensado e projetado.
Todos os entornos dos pilares, por exemplo, foram tratados, mas nem todos
foram urbanizados. Praticamente, nenhum (entorno de) pilar foi executado.
Porque, à primeira vista, o que parece é que foi só trabalho de infra, abrir via
para botar o pilar, sem o desenho urbano. Mas teve! (informação oral)437.

437. Entrevista concedida por “L.”, arquiteto que trabalhou no projeto dentro das obras do PAC-Favelas, a esta pesquisa
em fevereiro de 2019.
270

Figura 96
Situação que foi deixada pela obra do
PAC-Favelas na Av. Central em 2013. Foto
integrante do acervo do Raízes em Movimento,
2013. Fonte Benetti; Carvalho, 2017, p. 35.

Figura 97
Mesmo trecho da Av. Central, em 2015,
após as obras da PCRJ para finalizar as
calçadas que o GERJ não concluiu. Fonte
Benetti; Carvalho, 2017, p. 35.
No entorno do Pilar 13, por exemplo, a via é utilizada como estacionamento e a praça
infantil que foi construída para dar uso ao vazio resultante das demolições está em área de
difícil acesso e sem visibilidade direta da rua.
“M.”, arquiteto coordenador da equipe dos projetos de urbanização do PAC-Favelas, avalia que
o processo foi equivocado, em grande parte, pela falta de estrutura institucional do órgão do
GERJ que era responsável pela fiscalização dos projetos e das obras do PAC-Favelas, uma vez que

a EMOP não tinha experiência em urbanização de favelas. A equipe técnica era


reduzida para poder encarar programas tão ambiciosos como o PAC. Valeu a ex-
periência, aprender do erro custou caro e hoje temos um know-how que precisa
ser avaliado. (informação oral)438

271

Figura 98
Entorno do Pilar 13 e praça infantil
fica abaixo do nível da rua. Fonte
acervo pessoal de Ana Carolina Moreno
de Almeida, 2015.

O processo de urbanização do Morro do Alemão que apresentamos está longe de lem-


brar a qualidade da experiência brasileira em urbanização de favelas desde os anos 1990.
Ao contrário, é um exemplo de processo a não ser seguido, pois o alto investimento que
aconteceu no Alemão é, a nosso ver, ato irresponsável e criminoso contra o bem público.
O fato é que o PAC-Favelas nunca se constituiu efetivamente como um programa, não tinha

438. Entrevista concedida por “M.” a esta pesquisa em fevereiro de 2019.


diretrizes conceituais, metodologia nem escopo de serviços que documentasse procedi-
mentos metodológicos de projeto a serem respeitados e cumpridos. Isto foi um facilitador
para que o projeto pudesse ficar à mercê dos interesses políticos e do contratante, no caso,
o Consórcio de empreiteiras responsável pela execução das obras. A forma de contratação
das equipes de projeto e do TS também deram controle central do processo ao Consórcio,
que deveria estar, na verdade, na mão do Estado, que deveria por princípio defender os in-
teresses da coletividade. O papel assumido pelo GERJ não foi o de defesa do bem público,
já que compartilhava interesses na agilidade das obras para cumprir prazos políticos, inde-
pendente dos prejuízos que afetavam a população. O processo, como vimos, foi também
atropelado pelo próprio Estado, que desde o início construiu um escopo das intervenções
no Projeto Básico com os interessados nas obras e as implementou através de um processo
sem participação dos moradores e sem transparência. Em resumo, o projeto do PAC-Favelas
no Complexo do Alemão perdeu a oportunidade de assumir um papel social, sendo manipu-
lado para atender a interesses espúrios.
O que foi construído não ficou resolvido enquanto urbanização de uma favela, nos parâme-
tros considerados por esta pesquisa. É importante destacar que consta nos dados do Sistema
de Assentamentos de Baixa Renda, cuja base é alimentada por informações da SMH, que o
Morro do Alemão é considerado como favela urbanizada (SABREN, 2020). Tendemos a acredi-
tar que isto só pode ser fruto de algum erro que precisa ser, urgentemente, retificado. Houve
investimentos que justificariam a urbanização completa do Morro do Alemão, se fossem bem
aplicados, mas vimos que o resultado ficou incompleto. Apesar dos equívocos do processo no
Morro do Alemão que causaram danos morais e sociais aos moradores afetados pelas obras e
com resultados de qualidade desproporcional aos valores investidos na área, algumas ações,
ao menos, constituem algum ganho no território, como o já mencionado PDSCA, que mobili-
zou o movimento social e teve importantes resultados que merecem ser publicados.
272 Como este processo influenciou nas transformações do território após a suspensão das
obras na área? Pretendemos apresentar a seguir, através de nosso enquadramento na Av.
Central, como o Poder Público e os moradores se apropriaram do que foi construído no
Morro do Alemão através das obras do PAC-Favelas.

3.3.3. O que se vê anos depois da urbanização439


O sistema do teleférico, inaugurado em 2011, funcionou até 2016, quando a empresa que o
operacionalizava anunciou sua paralisação por seis meses para manutenção, e o teleférico
nunca mais voltou a funcionar. A discussão que propomos nesta pesquisa não é a validade ou

439. Não se pode precisar quanto tempo se passou entre a saída das construtoras das obras do Morro do Alemão, visto
as várias tentativas intermitentes de conclusão do que havia sido aberto pelo GERJ. Se considerarmos a inauguração do
teleférico, seriam 9 anos; se for a saída do Consórcio do PAC-Favelas, seriam 7 anos; ou no caso de a conclusão do que
havia sido aberto na Av. Central pela PCRJ, seriam 5 anos.
não do sistema de teleférico no Alemão como equipamento de mobilidade, já amplamente
discutido por Reiss (2017). Nosso foco está em analisar o processo e as decisões de projeto
para que as questões levantadas aqui balizem outros projetos, seja em favelas ou outras
áreas da cidade, se isso ocorrer.
No Alemão, houve a priorização dos investimentos no sistema de teleféricos, que é aéreo
e, por isso, mais rápido de ser implantado e que demandaria menos demolições440, se compa-
rado a alargamentos viários em favelas. E isto é efetivamente uma vantagem, mas que não in-
valida a necessidade melhorias urbanas e complementares, como comentam Dávila e Brand
(2013), como o sistema viário no solo de modo a viabilizar a implementação de saneamento
básico e infraestrutura urbana em todo o território.
O projeto optou por ativar as Estações do teleférico no topo dos morros, e nelas depois
foram inseridas as novas instituições e serviços. Contudo, estes são lugares de pior acesso
por conta da declividade, ficando praticamente imposta à população local no Complexo do
Alemão a dependência do sistema de teleférico para se ter acesso às instituições e serviços.
Com o abandono do sistema de transportes, o sistema de conexão entre serviços e insti-
tuições que ficavam alocados nos edifícios das Estações se perdeu. Pouco tempo depois da
suspensão do serviço de transporte do teleférico, as instituições deixaram os edifícios das
Estações e passaram a funcionar em outros locais nas franjas das favelas com acesso mais
fácil à população local, ou simplesmente desapareceram do território. Este é um problema
que tem sua raiz estrutural nas implantações das Estações adotadas pelo projeto. Se as Estações
estivessem em centralidades já consolidadas das favelas, suas dinâmicas urbanas talvez fizes-
sem com que as instituições e serviços continuassem no mesmo local, independentemente
do funcionamento do teleférico.
No Complexo do Alemão, o processo de projeto e de obras, em paralelo e atropelado,
acabou por determinar padrões para o viário e para a Estação do Morro do Alemão que
273 não justificaram as demolições, como pudemos observar através do enquadramento desta
pesquisa. No caso das Estações, as dimensões parecem ter sido exageradas para as insti-
tuições que ocuparam os edifícios. O edifício da Estação do Morro do Alemão, com apro-
ximadamente 5.500m2, virou um elefante branco na favela. Para “D.”, morador do Morro
do Alemão,

as estações do Alemão (devem ser) reativadas com ações culturais, com ações
artísticas, porque isso, pra mim, tem muito a ver com essa estrutura do urbano,
do direito de ir e vir, circular entre os lugares públicos, entre os equipamentos
públicos com produção. Eu olho pra esses lugares e isso precisa ser reativado.

440. Não invalidamos a hipótese de visibilidade política e midiática que a implementação deste sistema trouxe, apenas
não a destacamos como o foco desta pesquisa.
Não é pelo teleférico, não. O teleférico pra mim não faz falta. Mas o espaço
está aí! O prédio tem que ter alguma coisa acontecendo. A primeira coisa que
eu faria seria isso, de verdade. Vou reativar essas estações e transformar esses
lugares. [...] (informação oral)441

Não basta construir o sistema de teleférico e acreditar que este é a solução. Tem que in-
vestir em gestão e em programas e projetos complementares a longo prazo para potencia-
lizar sua implementação e assim justificar os altos investimentos que demanda. O abandono
do sistema de teleférico já aconteceu, mas nem tudo está completamente perdido. Uma vez
que os edifícios das Estações já estão construídos, estes precisam ser urgentemente reo-
cupados com atividades coletivas, para evitar que todo o investimento seja definitivamente
perdido. Caso continuem abandonados, estarão ameaçados pela pressão de ocupação para
fins privados, que sabemos ser prática na lógica da favela.
Além desta problemática inerente ao sistema de teleféricos, a Av. Central ainda tem traços
do inacabado deixado pelas obras do PAC-Favelas, com algumas fachadas em estado de “semi-
demolição”: entulhos, vazios sem destinação de uso etc. Os espaços residuais, que ficaram sem
destinação de uso, começaram a ser ocupados ou estão sob pressão de ocupação para fins
privados. Aos poucos, o lado esquerdo da via que foi demolido pelas obras começa a ganhar
corpo e a via, que tinha largura generosa entre edificações, parece estar sendo estreitada.

441. Entrevista concedida por “D.” a esta pesquisa em agosto de 2018.

Figura 99
274
Vazio junto à calçada da Av.
Central deixado pelas obras.
Fonte acervo pessoal, 2015.

Figura 100
Mesmo local meses depois, com
o avanço das construções sobre
o limite da calçada. Fonte acervo
pessoal, 2015.
Construções começaram a avançar sobre os vazios até os limites das calçadas. Este proces-
so foi iniciado logo após o término das obras da via em 2015 e a verticalização está acelerada.
As vagas de estacionamento ao longo da via estão sendo privatizadas com correntes, como
reserva de vaga dos moradores das casas em frente. É um primeiro traço de privatização
do espaço público e caminho para o fechamento destas vagas com edificação no futuro.
A sensação é que a Av. Central em pouco tempo será de novo estreitada pelas construções
até os limites para a passagem de veículos.
Conhecendo a lógica de ocupação de vazios ociosos na favela para fins privados, o Insti-
tuto Raízes em Movimento passou a realizar atividades coletivas no vazio que fica em frente
à sua sede, o que depois deu origem à parceria com a FAU/UFRJ para a construção coletiva
da Praça Verde do Morro do Alemão (BENETTI; CARVALHO, 2017), atualmente o único lugar
verde e com sombra ao longo de toda a via.
Na Av. Central não foram plantadas árvores ao longo da via. “R.” critica a lógica do enge-
nheiro da obra, que não compreende a reação dos moradores ao que foi construído.

Figura 101
Praça Verde, na Av. Central.
Fonte acervo pessoal, 2017.

275
Ele me perguntou: ‘não sei porque os pedestres aqui gostam de andar pela rua.
Foi feita uma calçada aqui, e não sei como eles preferem ir pela rua do que ir pela
calçada.’ Aí eu respondi: ‘Porque a pessoa que planejou a calçada, planejou para
um sol de 40 graus! O morador prefere ir pela rua porque é onde está a sombra...’
Isso é a coisa mais elementar! Você chega aqui no verão, um monte de gente
andando pela rua. Onde? Pela sombra! Porque na calçada que eles construíram,
é um sol miserável! Tem que subir isso aqui pelo sol? (informação oral)442

No trecho inicial da Av. Central, com mais visibilidade, a ocupação é feita lentamente
e através de negociações entre os locais. Na lógica da favela, é preciso perguntar, testar,
esperar, validar. “B.” relata como conseguiu construir o bar que tanto sonhou no trecho vazio
na frente da casa dele, remanescente das demolições das obras do PAC-Favelas. O processo

demorou quase 3 anos! Eu fui na outra parte.... conversei com X. e com Z. Con-
versei com o presidente da Associação. Pra ficar tranquilo (na favela), tem que
conversar com todos.... Aí eu conversei com o pessoal (da casa) detrás, fui na
moça do lado. Eu perguntei: Eu posso usar o pedaço? Todos autorizaram! Aí
comecei com uma bananeira.... aí foi um pé de mamão. Depois comecei a botar
uns entulhos pra ver se alguém ia empombar, né? (Os fiscais) passaram com o
projeto olhando pra minha cara... a polícia ali olhando... ninguém falou nada!....
Agora já sei que (o que eu construí) só vai sair se o PAC realmente voltar pra tirar.
Mas se o PAC não voltar, esse pedaço é meu pra sempre! (informação verbal)443.

Seis meses depois da entrevista, o bar que “B.” construiu já havia se transformado em
uma fábrica de salgado do próprio “B.”, mas agora com dois pavimentos. Este é um aspecto
276 da lógica da favela, que respondeu positivamente, em termos urbanísticos, ao abandono das
obras do PAC-Favelas, visto trazer uma nova atividade voltada para a rua no vazio residual.
Este é um procedimento que não poderia ocorrer na lógica regulatória do Estado, como
comentou “B.” no seu processo de construção, mas que acaba por ser consentido, visto que
esta lógica do Estado não tem força na favela e não impede que a ocupação aconteça.
Quanto aos espaços coletivos de lazer, praticamente nada foi executado pelo PCA-
-Favelas. Pelo contrário, uma das principais áreas de lazer, segundo nossos entrevistados444,
foi destruída pelo Estado através do PAC-Favelas e este tema é considerado como traumático
no Morro do Alemão. O campo de futebol junto à mata, no alto do morro, foi construído

442. Entrevista concedida por “R.” a esta pesquisa em agosto de 2018.


443. Entrevista concedida por “B.”, morador do Morro do Alemão, a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
444. Por todos os entrevistados do sexo masculino, moradores do Morro do Alemão.
através de ação coletiva dos moradores, mas lá foi construído o barracão de obras para a im-
plementação do Parque na Serra da Misericórdia, que praticamente não saiu do papel. Este
fato “mexe com a memória do Complexo do Alemão... mexe com a história, com a cultura...”
(informação verbal)445. Era um espaço de sociabilidade, mas “queriam fazer ali em cima um
parque.... cada hora era uma coisa... e está lá, abandonado. Fizeram canteiro de obras no
campo e o campo acabou. E não virou nada....” (informação verbal)446. “B.” descreve como
“uma destruição”: “Quando acabou o campo, acabou com esse morro. Nós botávamos ali nos
domingos por volta de 300 pessoas.... todo mundo subia.” (informação verbal)447 Ele sabe da
importância das áreas esportivas como espaço de sociabilidade e atividades com adolescentes:

Eu era treinador de uns 50 baixinhos naquela meia-quadra ali embaixo, lá pelos


meus 20 anos.... Inclusive eu tirei uns quatro da malandragem! ‘Quer trabalhar
comigo? Então você tem que sair da malandragem. Tem que estudar, tem que
respeitar teu pai, tua mãe e quem estiver em volta de você’. No final do mês,
eu via os boletins! Mas eu não tive apoio.... O cara da Associação de Moradores
não me deu apoio.... (informação verbal)448.

No início deste ano de 2020, na esquina da Estrada do Itararé com a Av. Central, há uma
placa anunciando “Projeto Executivo e Obras para a Estruturação de Parque Urbano Municipal
na Serra da Misericórdia”, agora através do Instituto Estadual do Ambiente – INEA, com recursos
do FECAM449 e com previsão de término das obras em janeiro de 2020, mas sem qualquer trans-
parência. Até o final desta pesquisa, a placa continuava lá. Parece ser outro processo atropelado
que está em curso, pois importantes atores sociais locais desconhecem o escopo dos serviços.
Outro ponto que inspira preocupação é a Vila Olímpica Carlos Castilho, que foi conquis-
tada pelos moradores em 2001, passou por disputa política para o controle do equipamento
277 esportivo, e tem seu caráter público e coletivo ameaçado:

Ora, existem as relações de força, né? Qual é o grupo que vai dominar um equipamento
público? Você tinha determinados grupos aqui (no Alemão) que não abriam mão... ‘eu
quero ficar, eu me endono (sic) de uma vila olímpica!’ A critério de que? De negócio!
Então, tem figuras políticas – e aí eu não digo só política partidária, mas de modo geral –
que acham que é importante que fulano de tal tenha o domínio de um equipamento público,
em detrimento de uma discussão política de maior magnitude. (informação verbal)450.

445. Entrevista concedida por D. a esta pesquisa em agosto de 2018.


446. Entrevista concedida por “R.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
447. Entrevista concedida por “B.”, morador do Morro do Alemão, a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
448. Idem.
449. Fundo Estadual de Conservação Ambiental e Desenvolvimento Urbano.
450. Entrevista concedida por “R.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
278

Figura 102
Vazio residual na Av. Central,
em frente à casa de “B.”, logo após
a entrega das obras. Fonte acervo
pessoal, 2015.

Figura 103
O bar construído por “B.”. Ao lado,
já surgiu também uma escada de novo
acesso a moradias que antes davam
fundos à Av. Central. Fonte acervo
pessoal, 2019.
Como comentamos no início deste Capítulo, pesquisas atuais apontam que o PAC-Favelas –
Complexo do Alemão é o que se pode chamar de bad practice em termos da atuação do po-
der público em favelas (SILVA, 2015; FERREIRA, 2017; PATRÍCIO, 2017). Este foi um critério para
a escolha deste caso de referência. No entanto, avaliamos que dizer que o “PAC do Complexo
do Alemão é um amontoado de obras [...] pela falta de um projeto que justifique e dê sentido
ao conjunto das intervenções” (SILVA, 2015, p. 165) nos parece ser insuficiente451. Na prática do
projeto em favelas, sabe-se que o que está construído nem sempre corresponde ao que foi pro-
jetado, mas há um déficit de pesquisas que analisem o processo de projeto e de sua construção.
Através desta pesquisa no Morro do Alemão, mostramos que mesmo se existisse tal pro-
jeto como cita Silva, o processo de implementação, do modo como ocorreu, o teria também
transformado em um amontoado de obras. Não é só o projeto que precisa ser coerente, mas
também os procedimentos para sua discussão, construção e implementação, envolvendo
diversos atores urbanos que possam defender o interesse público no qual se originam os
Programas de urbanização de favelas.
O Morro do Alemão segue sua existência, vivendo o dia a dia às margens da gestão pública
que abandonou grande parte das ações do PAC-Favelas e dentro da lógica da favela. Apesar dos
resultados, os movimentos sociais saíram fortalecidos e lutam por protagonismo no processo de
urbanização de favelas, por visibilidade e por reconhecimento genuínos como sujeitos políticos
da vida urbana no Rio de Janeiro, acreditando que é através da luta que melhores dias virão.
Ademais, “como é que nosso governo esquece da gente? O que eu tenho mais bronca, é isso!
Ele é omisso!” (informação verbal)452. À omissão do Estado, medidas e ações são planejadas pelo
próprio movimento social: reativar o plano construído coletivamente pelo CDLSM - Alemão
e Penha, ou reconstruir o campo.... “Estamos tentando, né? Fazer mutirão, tirar entulho...”
(informação verbal)453. Mas, claro, se as forças locais deixarem... Afinal, “Tem umas questões
de poder na favela que às vezes você é obrigado a se calar, né?” (informação verbal)454.
279
3.4.
Reflexões sobre a ideia, o processo
e os resultados nas favelas estudadas

Apresentamos os processos de urbanização de três favelas através dos Programas públicos


Favela Bairro 1 (item 2.1.2), PAT-PROSANEAR, nos anos 2000 (item 2.2.1) e PAC, (item 2.2.2).
As três favelas estudadas são territórios com características e soluções adotadas distintas,

451. Esta pesquisa discute as relações entre as políticas públicas de pacificação e a de urbanização, sem trazer uma aná-
lise do projeto nem do processo de sua implantação.
452. Entrevista fornecida por B. a esta pesquisa em fevereiro de 2019.
453. Idem.
454. Entrevista concedida por “R.” a esta pesquisa em agosto de 2018.
mas que, através das categorias elencadas no Capítulo 2 (Tab. 12, item 2.4) – Investimentos,
Escopo de Projetos, Contratações, Desenvolvimento dos projetos, Papel do arquiteto –, busca-
mos trazer reflexões estabelecendo algumas possíveis comparações entre estas intervenções
públicas em favelas de 1994 a 2015 no quadro apresentado, cujos resultados têm relação direta
com os procedimentos destes Programas, que interferiram nas condições de produção do
projeto em favelas.

3.4.1. Investimentos
Os Investimentos dão a dimensão das intervenções e têm relação direta com a abrangência
delas. Nesta pesquisa, não foi nosso objetivo determinar o custo ideal para intervenções em
favelas. Esta é uma tarefa extremamente difícil diante de tantas variáveis. Já foi levantado
por outras pesquisas que há grande variabilidade de custos de urbanização (BUENO, 2000;
ROCHA et al., 2002; DENALDI, 2003), ainda que dentro de um mesmo tipo específico de
concepção de intervenção em favelas (ROCHA et. al., 2001). Por isso, tentamos, a partir dos
casos de referência estudados, propor algumas discussões através da comparação entre
os investimentos e o conjunto de ações que ocorreram nestas três intervenções públicas,
compreendendo que existem limites nesta proposição.
Não tivemos acesso a dados oficiais que permitissem uma comparação direta entre os
custos da urbanização de cada favela, como, por exemplo, o valor do investimento por do-
micílio. Por isso, através dos dados levantados dos três casos de referência, relativizamos
nossa análise compreendendo que os valores que apresentamos abaixo do custo da urbani-
zação por domicílio precisam ser mais aprofundados para atingir maior exatidão.
No lançamento do Programa FB1, o valor de referência previsto era de R$1.370
(~US$1,300) por domicílio, mas não foi, afinal, o que aconteceu. Isto se justifica pelo fato de
que no FB1 não havia uma noção precisa dos investimentos necessários para urbanizar uma
280 favela, dentro do conceito amplo e integral que definiu o caráter do Programa, como vimos
no Capítulo 2. Contudo, sabia-se que o valor era baixo para enfrentar remoções e reassen-
tamentos de muitas famílias. O Programa impunha limitações ao projeto quanto ao número
de relocações para implementação das propostas urbanísticas, buscando minimizar a pro-
dução de UHs por demandar valores mais elevados de investimento. Esta limitação definia
muito bem o tipo e a abrangência das intervenções como, por exemplo, o não atendimento
a questões como o desadensamento da favela, encaixando-se no “padrão intermediário de
urbanização” (DENALDI, 2003, p. 57). Em Parque Royal, a morfologia da favela permitiu a im-
plementação de vias carroçáveis em todo o assentamento com poucas relocações, resultan-
do num número baixo de novas UHs produzidas para reassentar as famílias. O sistema viário
existente antes da urbanização não era só de becos, mas de vias com largura suficiente para
uma certa penetração de veículos no assentamento. Por outro lado, o número de domicílios
em Parque Royal aumentou consideravelmente entre o projeto e o início das obras, pas-
sando de 700 para 1.100 famílias, e o escopo das obras foi ampliado para englobar os novos
moradores que chegaram na favela antes do início das obras. Outra vantagem de Parque
Royal era sua situação geográfica, que permitiu a expansão do território da favela sobre o
mar para eliminar as palafitas. Esta solução pode ter aumentado o custo da urbanização, mas
ao mesmo tempo eliminou a necessidade de aquisição de terreno para o reassentamento.
O custo final da urbanização de Parque Royal455 totalizou R$3.572 (~US$3,453) por domicílio
(PCRJ, 2000), mais de duas vezes e meia que o valor inicialmente previsto. Diante disso, o
FB2 já foi iniciado com valor por domicílio ajustado para US$3.500.
No PAT-PROSANEAR, o projeto para Parque Fernanda I encaixava-se no padrão alto de urba-­
nização (DENALDI, 2003, p. 57), com desadensamento edilício do assentamento e abertura de
novo sistema viário, originalmente de becos, permitindo acesso de veículos a grande parte do
território da favela. O projeto previa o investimento de R$17.390,50 (~US$7,989)456 por domi-
cílio (GTA/GCA, 2006) nas obras. Se comparado com o que foi empregado em Parque Royal,
este valor poderia parecer absurdo457, mas observamos que está próximo a investimentos já
praticados em São Paulo para projetos integrais de urbanização que incluíam reassentamento
de parte significativa da favela (DENALDI, 2003, p. 170). O curioso é que o valor inicial previs-
to mais do que dobrou entre o projeto e a obra, ficando no final da urbanização a R$40.820
(~US$21,520) por domicílio458 (SEHAB 2018)459. Por que isto terá acontecido? Trata-se de uma
questão fora da abrangência desta pesquisa, muito embora nos instigue, por isso indicamos
que este caso poderia ser aprofundado por outras pesquisas de modo a compreender que
fatores interferiram no custo final da urbanização. De acordo com dados da SEHAB (2018),
o QCI de Parque Fernanda I e o item Produção e Aquisição de UHs460 correspondeu a 57% do
valor total do investimento. Mesmo não havendo aquisição de terrenos, visto que todas as
UHs foram construídas na favela, o valor de cada nova UHs foi de R$55.225 (~US$29,115)461.

281 455. Neste custo final, estão incluídos os seguintes serviços: Projeto, Urbanização (obra propriamente dita), Regulari-
zação Urbanística e Fundiária.
456. Este cálculo se baseou no valor médio mensal do dólar americano em 2006, ano do documento do projeto (GTA/
GCA, 2006). (Fonte câmbio dólar: http://ipeadata.gov.br/exibeserie.aspx?serid=38389).
457. Este cálculo em R$ foi efetivado a partir do valor total do investimento (SEHAB, 2018) sobre os 823 domicílios da favela que perma-
neceram em Parque Fernanda I após a urbanização. Para sua conversão para US$, utilizamos o câmbio médio mensal do período da obra
(2008-2013) – em nosso cálculo a US$1,90 – apenas para possibilitar algum nível de comparação com os investimentos dos outros casos
de referência. Alertamos, no entanto, que este cálculo em US$ pode ter possíveis variantes, pois o cálculo preciso deve ser feito a partir da
planilha de desembolsos, a qual não tivemos acesso. (Fonte câmbio dólar: http://ipeadata.gov.br/exibeserie.aspx?serid=38389).
458. Este valor final do investimento foi baseado no QCI da obra (SEHAB, 2018), que inclui o processo de Urbanização (obra
propriamente dita). Vale ressaltar que os Projetos de Urbanização já existiam e foram financiados pelo PAT-PROSANEAR.
459. Não temos a data precisa do fechamento dos cálculos dos investimentos contidos neste documento. Como re-
ferência bibliográfica, adotamos a data de fornecimento do documento, mas para os cálculos de conversão pra US$,
utilizamos o período da obra, que foi de 2008 a 2013.
460. O custo com UHs ainda poderia ser complementado com outros necessários para a Produção de UHs, que estariam
diluídos em outros itens como Terraplanagem, Demolições, Recuperação e Melhoria Habitacional. Ou seja, é muito pro-
vável que o custo final da Produção de UHs tenha sido maior.
461. Para sua conversão para US$, utilizamos o câmbio médio mensal do período da obra (2008-2013) – em nosso cálculo
a US$1,90 – apenas para possibilitar algum nível de comparação com os investimentos dos outros casos de referência.
(Fonte câmbio dólar: http://ipeadata.gov.br/exibeserie.aspx?serid=38389).
Este, sem dúvida, foi um item que afetou o custo da intervenção, mas que gerou ganhos
urbanos e sociais em Parque Fernanda I. O valor total investido na urbanização por domicílio
abrangeu ações que reestruturaram significativamente o tecido urbano da favela, com a pro-
dução de novas UHs envolvendo o reassentamento de 458 famílias no mesmo local, o que cor-
respondia a cerca de 50% do total de moradias, e todas foram mantidas em Parque Fernanda I
após a urbanização.
Na experiência de urbanização do Alemão, chegamos a um valor praticado de investi-
mento por domicílio próximo ao de Parque Fernanda I. No entanto, observamos que em
relação ao Alemão é necessário relativizar ainda mais o custo das intervenções públicas
por domicílio, pois seu cálculo é um pouco mais complicado. O Complexo do Alemão foi
objeto de obras de urbanização tanto da PCRJ como do GERJ e os dados do PAC-Favelas não
são transparentes quanto ao que realmente foi investido e executado (SILVA, 2015, p. 168).
Inclusive por outros aportes, em paralelo, de recursos através de programas de produção
de UHs como o PCMV (PATRÍCIO, 2017), que complementariam o investimento da urbani-
zação. Por isso, decidimos utilizar os dados publicados por Patrício (2017, p. 88), que teve
acesso a documentos do Ministério das Cidades sobre os contratos e a respeito do que
foi executado na urbanização do PAC-Favelas. Foram investidos cerca de R$640 milhões
(PATRÍCIO, 2017, p. 88), que não foram distribuídos homogeneamente no território, mas
pontualmente e na macroescala, numa nova abordagem de projetos em favelas que surgiu
no final dos anos 2000 com “maior potencial de transformação na escala da cidade”462
(FIORI, 2014 p. 46, tradução nossa). Já a PCRJ atuou diferentemente, na microescala, numa
abordagem que poderia ser classificada como padrão mínimo de urbanização (DENALDI,
2003, p. 57). Por isso, é importante relativizar o valor investido por ambas atuações do
Poder Público no Complexo do Alemão. As obras do Morar Carioca no contrato Joaquim
de Queiróz463 tiveram um custo de R$243 milhões (PCRJ, 2015). Logo, o total dos investi-
282 mentos executados para urbanização do Complexo do Alemão entre PCRJ e GERJ foi de
R$ 883 milhões, e o custo por domicílio teria sido de R$49.086464 (~US$23,002)465, valor
mais próximo ao de Parque Fernanda I466, mas que em nada se assemelha em termos de
resultados, como vimos.

462. Segundo Fiori (2014, p. 46, tradução nossa) esta nova geração de macroprojetos em favelas “aborda explicitamente
grandes territórios abrangendo uma variedade de condições informais e formais. Acreditamos que esses projetos repre-
sentam desafios mais complexos, mas também possuem maior potencial de transformação na escala da cidade.”
463. Como este contrato tinha um território de atuação que abrangeu apenas parte das favelas Joaquim de Queiróz e do
Morro do Alemão, não foi possível determinar quantos domicílios o contrato atingiu nem chegar a um custo por domicílio.
464. Cálculo feito a partir do total dos investimentos GERJ e PCRJ no Complexo do Alemão e divididos pelo total de
domicílios do Complexo, que é de 17.996 (SABREN, 2020).
465. Para sua conversão para US$, utilizamos o câmbio médio mensal do período da obra (2008-2015) – em nosso cálculo
a US$2,13 – apenas para possibilitar algum nível de comparação com os investimentos dos outros casos de referência.
(Fonte câmbio dólar: http://ipeadata.gov.br/exibeserie.aspx?serid=38389).
466. Pode ser estabelecida, inclusive, a comparação em reais, pois foram obras contemporâneas.
Certamente, se for analisado o impacto de cada investimento nos três casos de refe-
rência estudados, parece que em Parque Royal (FB1) o investimento foi mais eficiente do
que em Parque Fernanda (PAT-PROSANEAR), e este, por sua vez, mais eficiente ainda do que
no Complexo (PAC-Favelas) e no Morro do Alemão (Morar Carioca). O curioso, ou nem
tanto, é que esse panorama contraria o senso comum, que imaginaria que os investimentos
se tornam mais eficientes com o tempo e com a incorporação das experiências anteriores.
Mostramos nesta pesquisa que os resultados dependem também do respeito a procedi-
mentos e escopos dos Programas, e não só ao vulto dos investimentos. Em Parque Royal se
gastou por domicílio mais do que o previsto em projeto, certamente devido à inexperiência
no processo de urbanização integral de uma favela. Em Parque Fernanda o custo foi maior
do que o previsto em projeto, por fatores que precisam de maior investigação. Da mesma
forma no Complexo do Alemão, os investimentos foram ainda mais elevados e com resulta-
dos piores. O aumento considerável de recursos disponibilizados através do PAC-UAP para
urbanização de favelas e o tempo político (PETRAROLLI, 2017, p. 45) que influencia na execu-
ção das obras, podem ter gerado aumento de gastos e um menor controle desse aspecto.
Mas para compreender a efetividade dos investimentos nas favelas estudadas na transfor-
mação radical destes locais, é fundamental que as outras variáveis que estudamos (o escopo
dos projetos, as formas de contratação, o desenvolvimento dos projetos e o papel do arquiteto)
sejam levados em consideração.

3.4.2. Escopo dos Projetos


Cada Escopo dos Projetos analisados definiu metodologias e as disciplinas a serem enfrenta-
das para atingir os objetivos do Programa. Estes escopos delimitaram o que foi possível ser
projetado e o que estava fora do Programa não foi atendido.
O escopo de investimento do Favela Bairro 1 foi o de urbanização integral. Foram imple-
283 mentados: novo Sistema Viário com alargamento e criação de novas vias como elemento
articulador do assentamento; Espaços Coletivos como praças e centro esportivo; Saneamento
Básico atendendo a todos os domicílios; Mitigação de Riscos e Recuperação Ambiental, elimi-
nando as palafitas e construindo via beira-mar para conter a expansão sobre a Baía de Guanabara;
Equipamentos Coletivos, como posto de saúde, creche, CEMASI etc.; Produção de UHs, para
reassentamento das famílias em área de risco e para implementação dos projetos; e criação
de lotes e kit-construção para os moradores que chegaram logo antes do início das obras.
Todos os itens de projeto foram executados e, podemos dizer, as ações foram completas dentro
do que o Programa propunha como urbanização de uma favela, mesmo com uma limitação
do número de relocações que definia muito bem o tipo e abrangência das intervenções.
O escopo do PAT-PROSANEAR tinha como foco o saneamento e recuperação ambiental,
e abrangia um conjunto de disciplinas assemelhando-se a um escopo de urbanização integral.
No entanto, não foi exatamente o que foi observado no estudo de caso. Em Parque Fernanda I,
os componentes sociais, como a melhoria dos serviços e dos equipamentos coletivos e a
integração com outros programas sociais, não foram implementados, pois estas ações esta-
vam sendo indicadas apenas no PDLI e ficariam a cargo da gestão local. Os projetos dos com-
ponentes sociais não faziam parte do escopo do Programa e dependiam da administração
local e de recursos de outros programas para sua implementação. Este foi um limitante do
projeto, que não foi abrangente em todos os componentes, priorizando os físicos e deixan-
do os sociais a nível de Plano sem formalizar documentos que servissem para a captação
de recursos para sua execução. Se estivessem formalizados como projetos básicos ou exe-
cutivos, provavelmente seriam viabilizados através de recurso do PAC-UAP, que incluía os
componentes sociais em sua cartela de financiamento. Caberia à administração local a ges-
tão destes. O que foi executado estava contido no conjunto de projetos do PSI, que era efe-
tivamente o objeto dos investimentos federais do PAT-PROSANEAR. Em todo o território do
assentamento foi implementado Saneamento Básico. As áreas de risco foram tratadas atra-
vés do tamponamento do Córrego, o que possibilitou a implementação de novos Espaços
Coletivos, novo Sistema Viário e áreas para a Produção de UHs, reorganizando o tecido
urbano de Parque Fernanda I. Mas a falta de gestão, a ausência de ações sociais que fortale-
çam o uso coletivo dos espaços construídos e uma legislação que exige faixa non aedificandi
sem justificativa para os moradores são fatores que estão corroborando para conflitos que
despertam o desejo de reocupação para fins privados.
O estudo que apresentamos sobre o Complexo do Alemão tem, em grande parte, origem
na ausência de escopo de Programas e de projeto, e de projetos prontos construídos através
de algum outro programa antes do PAC-UAP. Para captar recursos federais, o GERJ e a PCRJ
utilizaram projetos incompletos e sem conceito de urbanização claro. O PAC-Favelas, do
Governo do Estado do Rio de Janeiro, embora leve este selo, não é efetivamente um Programa
e o que aconteceu no Complexo do Alemão o demonstra. O escopo do projeto foi construído
para atender a interesses políticos e de grandes empreiteiras, resultando na introdução de um
284 sistema teleférico e no foco do sistema viário necessário para viabilizá-lo, eventos que abar-
caram 1/3 do total dos investimentos (PATRÍCIO, 2017, p. 96). As ações do GERJ foram pontuais,
de macroestrutura sobretudo para a implementação do teleférico, e não abrangeram todo o
território do Complexo. Os equipamentos coletivos ficaram restritos às Estações e nas franjas
em terrenos do entorno, como as novas UHs, perdendo assim a oportunidade para a rees-
truturação do tecido urbano do conjunto de favelas. A urbanização implementada pela PCRJ
também não reestruturou o tecido urbano e se focou praticamente em saneamento básico,
e pavimentação de becos e escadarias, e de modo incompleto se considerada a totalidade da
favela Morro do Alemão, como observamos no enquadramento da pesquisa.
Com muito menos investido por domicílio, em Parque Royal foi possível reestruturar o
tecido da favela e resolver problemas ambientais e de risco. Isso se deve em parte às caracte-
rísticas da favela que permitiam a expansão do território sem alto número de remoções. Em
Parque Fernanda I, o investimento por domicílio se assemelhou ao do total de intervenções
no Alemão, mas na favela paulista o tecido urbano foi reestruturado, os problemas ambientais
e de saneamento resolvidos e 50% da população foi reassentada dentro do mesmo território.
Por isso, destacamos a importância do escopo do Programa, que é um fator determinante das
ações executadas e dos efeitos da urbanização. A ausência de Programa e de escopo no PAC-
-Favelas permitiu a aplicação de investimentos públicos em projetos sem representatividade e
que atendiam a interesses espúrios, causando resultados questionáveis e sem sustentabilidade.

3.4.3. Contratações
Na análise apresentada sobre o processo de projeto nas três favelas, vimos como as Contratações
definiram o papel dos arquitetos em cada Programa e nas obras.
Em Parque Royal e Parque Fernanda I, as equipes de projeto foram contratadas através
de um concurso ou licitação públicos, estando diretamente vinculadas ao poder público, que
fez com que as equipes de projetos cumprissem procedimentos e disciplinas estabelecidos
nos escopos e metodologia do Programa.
Em Parque Royal, dentro do FB1, fazia parte do contrato de projeto sua adequação durante
as obras. Graças a este fato, o projeto conseguiu ser adaptado para resolver o crescimento
populacional antes do início das obras sem que perdesse suas premissas e diretrizes urbanís-
ticas. As soluções se mantiveram bastante similares ao projeto original, mas ampliando a área
a ser urbanizada sobre o mar, de modo a criar solo para os novos moradores das palafitas.
Já em Parque Fernanda I, a equipe de projeto era contratada também para desenvolver
o Trabalho Social junto à elaboração do projeto. Não só a metodologia participativa do PAT-
-PROSANEAR, mas a articulação entre projeto e TS solicitada pelo Programa, a nosso ver,
trouxeram diferencial para a construção do projeto. No entanto, a equipe responsável pelo
projeto através do PAT-PROSANEAR não foi depois contratada para fazer as adequações du-
rante as obras, então viabilizadas com recursos do PAC-UAP. Não que as adequações não
precisassem ser feitas, e foram, mas estas foram feitas por outros atores que não necessa-
285 riamente participaram das discussões coletivas que pautaram as soluções urbanas e habita-
cionais. Moradores de Parque Fernanda I, aflitos com as alterações que estavam ocorrendo
durante as obras, tentaram articular com os autores do projeto original alguma alternativa,
mas estes já estavam fora do processo e sem possibilidades de influenciar nas mudanças.
Em nossa análise, observamos que os pontos críticos que estão sob ameaça de reocupação em
Parque Fernanda I são exatamente os dois trechos do Caminho Verde que foram absoluta-
mente modificados e que em nada lembram o projeto original.
No caso do Complexo do Alemão, no PAC-Favelas, a equipe de projeto estava direta-
mente contratada pelas empreiteiras, o que subordinou o projeto aos interesses destas.
A ausência de escopo de Programa fragilizou o projeto, que ficou subserviente às demandas
das empreiteiras, que, por seu turno, visavam a fluidez das obras. Para o Morar Carioca,
como observamos, a abordagem das obras e a ausência de menção sobre os arquitetos au-
tores nos documentos de projeto que analisamos nos levou a deduzir que não houve efeti-
vamente contratação de projeto urbano, apenas obras viárias e de infraestrutura.
3.4.4. Desenvolvimento dos Projetos
As experiências de Parque Royal e de Parque Fernanda I nos mostram que os projetos de-
mandaram mais tempo do que o imaginado pelos Programas Públicos. Nos dois projetos,
os prazos foram além do previsto em contrato, e praticamente dobraram. No FB1, houve
pressão quanto aos prazos de projeto para demonstrar rapidamente resultados e capacidade
institucional, visando financiamento através do BID. É fato que este financiamento deu lon-
gevidade ao Programa, mas os prazos contratuais subestimaram o tempo necessário para o
desenvolvimento de projetos em favelas, como vimos no Capítulo 2. Os prazos de projeto
foram depois ajustados no FB2 e o PAT-PROSANEAR adotou prazos similares ao FB2 (ver Tab. 7,
Cap.2). No entanto, em Parque Fernanda I, o tempo de projeto também foi mais longo do
que o previsto em contrato. Nos parece que, mesmo propondo que o projeto envolva os
moradores na construção das propostas, os prazos contratuais não consideraram corre-
tamente os tempos das dinâmicas sociais que demandam as metodologias participativas.
Vendo pelo lado do contratado, a extensão dos prazos de projeto sem ajustes na remuneração
acarreta prejuízos, visto que uma equipe deve ser mantida pelo tempo necessário para o
desenvolvimento dos projetos e o valor global do contrato não é reajustado de modo equi-
valente ao prazo realizado. E isso pode fazer com que equipes de projeto se finquem no cum-
primento dos prazos contratuais, que, nestes dois casos, se mostraram insuficientes. Este
ponto indica, ao menos, a necessidade de reflexão sobre os contratos e prazos que estão
sendo impostos ao projeto em favelas. São os contratos que devem se adequar aos contextos
sociais, e não as dinâmicas sociais aos contratos.
Damos particular destaque à metodologia participativa de construção do projeto em
Parque Fernanda I, que envolveu moradores, gestores e diversas secretarias nas decisões.
Os prazos que foram efetivamente realizados e a metodologia associando Projeto e Trabalho
Social parecem ter sido adequados ao processo participativo e merecem ser observados
286 para ajustes de futuros contratos de projetos participativos em urbanização de favelas. Esta
metodologia fortaleceu os moradores, que se transformaram em atores-chave no controle
de mudanças não planejadas e que iam de encontro aos seus interesses e tentavam garantir
que o projeto fosse minimamente respeitado.
O processo de desenvolvimento de projeto no PAC-Favelas, como vimos, foi atropelado,
desde o início, pelo próprio Estado, que estabeleceu relação promíscua com os interessados
nas obras para a montagem do Projeto Básico, com o intuito de captar recursos federais do
PAC-UAP. Neste processo, o escopo das intervenções sofreu influência das empreiteiras e
o resultado foi a elaboração de um projeto sem participação dos moradores e sem trans-
parência. Este atropelo foi continuado no desenrolar das obras e percebido no Morro do
Alemão. O projeto foi contratado simultaneamente ao início das obras. O que deveria ser
uma adequação de projeto já formalizado às dificuldades do campo, na verdade foi o desen­
volvimento de ideias não sacramentadas que pudessem, minimamente, ser executadas.
Com isso, as etapas necessárias de maturação do projeto, de discussões com a população e
de levantamentos para balizar as definições técnicas aconteceram em simultâneo à obra e
sem ordem. Projeto e Trabalho Social trabalhavam em paralelo e descoordenados, mesmo
que ambas as equipes estivessem contratadas pelo Consórcio de empreiteiras. Trabalhavam,
inclusive, em paralelo às obras, cujas mudanças constantes envolveram diretamente os mo-
radores no processo. Ademais, o TS foi reduzido ao papel de “liberar” frentes de obra em vez
de organizar a participação efetiva da população no projeto. Os resultados deste processo
de desenvolvimento de projeto geraram efeitos negativos no território e, inclusive, na saúde
dos moradores. Eventos de obra eram reduzidos conforme as dificuldades iam acontecendo
(remoções etc.), frentes de obra que foram abertas ficaram abandonadas e por terminar.
Houve frustração dos arquitetos, que defendem que projetos foram desenvolvidos, mas não
executados e o resultado construído, garantem, não é efetivamente resultado de projeto.
Ao longo da Av. Central, restaram vazios residuais que pouco a pouco estão sendo reocu-
pados. Houve frustração dos moradores, que viram “sonhos” contidos no projeto se trans-
formarem em investimentos desperdiçados com obras sem justificativa, sem gestão nem
sustentabilidade, sobretudo após o abandono dos equipamentos sociais no território e a
suspensão do funcionamento do sistema de teleférico pelo GERJ.

3.4.5. Papel do Arquiteto


Em Parque Royal, o arquiteto era o coordenador da equipe de projeto e trabalhava quase
que em parceria com o fiscal da SMH, aprendendo juntos e com certa liberdade para expe-
rimentar procedimentos além dos estabelecidos no escopo de projetos. A participação em
obra também foi um fator que enriqueceu o projeto, dando ao arquiteto a possibilidade de
trabalhar com fiscalização da SMH e com equipe de obras, discutindo conjuntamente so-
luções com os moradores para trazer maior qualidade às decisões e possibilitar ajustes em
projeto que minimizassem os impactos da obra na população e no território.
287 Em Parque Fernanda I, o fato de a equipe de projeto ter sido responsável, simultanea-
mente, pelo Projeto e pelo Trabalho Social possibilitou maior proximidade e troca com a po-
pulação local ao longo do processo de projeto. Segundo a arquiteta, foi a metodologia que
concentrou os dois trabalhos em uma mesma equipe, que corroborou para a construção de
uma rede de comunicação com laços de confiança entre a equipe técnica e os moradores.
No entanto, a continuidade do trabalho com os moradores se rompeu, pois a equipe não foi
contratada para o acompanhamento das obras.
No PAC-Favelas, o que observamos foi o projeto e o arquiteto a serviço das empreiteiras
que estavam associadas ao poder público na definição das prioridades. As adaptações do
Plano (PDUCMA) para virar um Projeto Básico para captar recursos do PAC-UAP incluíram o
sistema de teleférico, evento não discutido com a população das favelas afetadas ou da região,
o que seria plausível tendo em vista o vulto de investimento público em equipamento
de transportes que a princípio deveria servir não só para os moradores do Alemão, mas a
toda uma região. Os ajustes no projeto que se sequenciaram continuaram atendendo aos in-
teresses da obra, como a retirada de novas edificações de UHs de dentro do território para ou-
tros terrenos nas franjas das favelas, pois isso traria mais rapidez na execução. Neste processo,
o Poder Público não parecia proteger minimamente o que estava contido no Projeto Básico,
ficando o arquiteto subordinado diretamente às empreiteiras. No Morar Carioca, o arquiteto
coordenador dos projetos urbanos simplesmente desaparece dos documentos, mostrando
que este não tem papel protagonista.
Sem dúvidas, a experiência no Complexo do Alemão, seja através do PAC-Favelas ou
do Morar Carioca, representa o declínio do papel do projeto e do arquiteto no processo
de urbanização de favelas e, consequentemente, dos resultados. Esta experiência deve ser
observada como retrocesso no processo de urbanização de favelas, que ganhou qualidade
a partir dos anos 1990, época em que o projeto urbano foi inserido (BUENO, 2000; DENALDI,
2003) como peça para o processo decisório de ações públicas em favelas.
As três experiências de urbanização de uma favela analisadas nos mostram um espectro
sobre os limites de atuação do projeto e do arquiteto, cujas reflexões organizamos a partir
das categorias elencadas por esta pesquisa. Estes limites, que são dados pelos Programas
públicos e por uma série de documentações e práticas, determinam as condições de pro-
dução do projeto e o processo de sua implementação. Mas, além do projeto, há outras in-
terferências que afetam os resultados do que foi construído e que estão fora do campo
de atuação do projeto. Tais intromissões precisam ser enfrentadas para o aumento da per-
formance dos Programas e dos investimentos públicos nestes territórios. Apresentaremos
estas questões em nossas considerações finais.

288
4.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
4.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS

Nesta pesquisa, tratamos do projeto urbano dentro do processo de urbanização467 de favelas


através de programas públicos que surgiram no Brasil a partir dos anos 1990, mais especi-
ficamente os que atuaram nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo. Estes programas
estão inseridos na nova geração de políticas públicas (DENALDI, 2003; FIORI et al., 2001), que
foram implementadas nos países da América Latina e no Sul Global nesta mesma década.
O diferencial dessas políticas é o enfoque nos diversos componentes para a redução da po-
breza urbana e da exclusão social que devem ser trabalhados de modo integrado e combinado.
Mesmo tendo consciência de que o universo de experiências brasileiras não estaria intei-
ramente representado nesta pesquisa, a partir dos programas analisados, apresentamos e
discutimos procedimentos e metodologias que influenciaram o modo de fazer projeto no
processo de urbanização de favelas.
Embora existam críticas à ênfase dada por estas políticas às melhorias físicas em de-
trimento do desenvolvimento econômico e social, concordamos que precisam de ajustes,
mas condená-las como estetização da pobreza (ROY, 2004) seria, a nosso ver, um certo redu-
cionismo. Mesmo um eventual desenvolvimento econômico e social não resolve a questão
do status legal e simbólico da favela perante a sociedade, o que definitivamente regula a
relação dos moradores de favelas com o Estado. Não há como desconhecer que problemas
sociais, de renda, de discriminação e de segregação têm uma dimensão espacial evidente.
Intervenções espaciais, como primeiro passo das políticas de inclusão, são esforços impor-
tantes para corrigir as marcas de desigualdade impressas no espaço urbano. A desvalorização
maniqueísta das intervenções espaciais, embora ancorada em uma suposta valorização dos
290 programas sociais, acaba servindo, mesmo que involuntariamente, como contraponto para
perpetuar o abandono destes territórios à sua própria lei. Esta tese, em linhas gerais, caminha
no sentido de reafirmação da importância destas políticas públicas, mesmo que com corre-
ções e sugestões de modificação possíveis para a melhoria da performance do projeto e dos
programas de urbanização de favelas.
Os programas de urbanização de favelas desta nova geração de políticas públicas inse-
riram o projeto urbano como peça central no processo decisório das ações públicas nestes
territórios, o que significou um grande salto na qualidade da intervenção pública em favelas

467. Embora consideremos o termo urbanização de favelas como inadequado, assim como defende Gonçalves (2013),
o utilizamos nesta pesquisa pelo fato de ser um termo oficial brasileiro e, deste modo, realçar uma dimensão política que
não pode ser ignorada. Levando em consideração a necessária revisão do termo, salientamos que nesta pesquisa urba-
nizar uma favela significa a requalificação do lugar que obrigatoriamente está atrelada à requalificação de suas múltiplas
articulações com o contexto e com a cidade (FIORI, 2014).
(BUENO, 2000; DENALDI, 2003). O projeto tem importante papel como articulador das po-
líticas públicas e entre os diferentes atores, além de ser um instrumento de controle do
processo. Mas as bases que o norteiam precisam ser revistas para que este também articule
com a lógica da favela, de modo a ressignificar seu papel social e sua potência no processo
de fabricação urbana.
O processo de construção da favela, marginal ao Estado e ao Mercado formal, gerou
especificidades físicas e em termos de organização social (ou sua “não organização social”,
diriam alguns), com atores e forças locais (Estado, traficantes, associações, polícia etc.) que
imprimiram uma lógica própria a este território, a qual denominamos lógica da favela.
Nas favelas, o que não está ocupado é passível de disputa, e para prevenir e resolver
conflitos internos foram criados “mecanismos jurídicos informais e não oficiais”, gerando
um pluralismo jurídico (SANTOS, 1981). Em outras palavras, há regras e mediadores próprios, e
com relativa autonomia territorial, além da ordem jurídica oficial, para responder à exclusão
do Direito que as favelas e suas populações sofrem. Este pluralismo jurídico produz outra
dinâmica nos territórios favelados, onde os acordos são fechados com muito mais agilidade
do que no sistema jurídico brasileiro. Esta característica também influenciou, em termos físicos,
o tempo das transformações urbanas nas favelas, que são mais ágeis que o processo de urba-
nização e a lógica da regulação do Estado. Demarcações de limites, permissão para construir
e conflitos entre vizinhos, por exemplo, eram – e em várias favelas ainda são – mediados
pelas Associações de Moradores. Nem o projeto nem a gestão pública conseguiram, até o
momento, modificar esta lógica dominante de construção e de transformação urbana nas
favelas. Mas esta dinâmica própria também gerou uma vida coletiva que se manifesta onde
é possível, seja num sistema de espaços livres privados (PIZARRO, 2016) ou com apropriações
criativas nos espaços dito públicos (GROSBAUM, 2012), que dificilmente existiriam na cidade
regulada por normas do Estado. Esses aspectos constituem uma riqueza urbana e uma opor-
291 tunidade para a diversidade na cidade, onde a favela é “base para novos encontros urbanos”
(SILVA, 2014, p. 73). Por que então não incluir esta variável no processo, encarando-a como
uma realidade e não como um problema a ser controlado?
Outros agentes também atuam em favelas, que não são apenas um lugar de subsistência,
pois a miséria não é mais uma característica geral (VALLADARES, 2005). As favelas são tam-
bém territórios para investimento, especulação imobiliária, para o comércio num sistema
capitalista reproduzido com uma grande vantagem: ausência de taxas e impostos – pelo
menos os cobrados pelo Estado. Este sistema também abriu caminhos para a entrada do poder
paralelo no controle da economia de grande parte das favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Não apenas o tráfico de drogas, mas outros grupos paraestatais também começaram recen-
temente a explorar o mercado lucrativo de dominação econômica. E esta dominação é um
agravante que precisa ser enfrentado pela próxima geração de políticas públicas em favelas.
Nesta pesquisa, discutimos o conflito entre diferentes lógicas no processo de urbanização
de favelas. Mostramos como a lógica da favela, que opera estes territórios, não é considerada
pelas políticas de urbanização, pois o Estado, que constrói e implementa os programas públi-
cos para urbanizá-las, visa incorporá-las à sua própria lógica regulatória. Após a urbanização,
o controle urbano e regularização pretendidos pelo Estado são construídos a partir de regras
e leis que não observam nem aceitam a lógica da favela, o que muitas vezes gera conflitos
entre os interesses do Estado e os da população local.
Por sua vez, o projeto, neste processo, é direcionado pelo Estado a resolver o ambiente
físico da favela, e sua abrangência e atuação são delimitadas por escopos dos programas e
dos financiamentos. A análise de diversos escopos no Capítulo 2 nos possibilitou confirmar
que o cerne do projeto em favelas no âmbito dos programas de urbanização, há 30 anos,
constitui trazer soluções para o ambiente físico das favelas. Nesse contexto, destacamos
que o Favela Bairro 2, um marco em relação ao escopo de projeto, foi seguido pelos progra-
mas subsequentes, tornando-se referência do que significa até hoje o arcabouço do projeto
em favelas. Na esfera do projeto, há fraca articulação com o desenvolvimento social que é
implementado geralmente pelos gestores em paralelo e de modo independente ao processo
do projeto. Por isso, consideramos que o escopo do PAT-PROSANEAR, um dos analisados
nesta pesquisa, trouxe um ganho no processo de projeto em favelas, pois integrou Projeto e
Trabalho Social na mesma equipe – a de Projeto, dentro de metodologia participativa imple-
mentando ações de desenvolvimento social associadas à construção do projeto, articulando
com os diferentes atores (técnicos, gestores, moradores) durante a elaboração do projeto e
formando agentes locais para o acompanhamento e controle das obras.
Destacamos que os tipos de contratações de projeto se tornaram muito distintas desde
o Favela Bairro até o PAC-UAP. O papel de coordenador de equipe multidisciplinar dado pelo
Favela Bairro, infelizmente, foi sendo perdido. Mostramos que, em algumas situações no
PAC-UAP, o projeto se transforma em mero documento para captar recursos sob o selo de
Projetos Básicos, independentemente de seu processo de elaboração, da qualidade de seu
292 conteúdo ou das relações entre conteúdo e atendimento às demandas locais. No PAC-Favela
no Complexo do Alemão - caso de referência desta pesquisa representando a experiência
malsucedida em urbanização de favelas - observamos que ocorre a desqualificação técnica
do projeto, e a subordinação do arquiteto não mais ao poder público, mas às construtoras.
Neste aspecto, o caso de Parque Royal nos mostra que não é a etapa Projeto Básico que
não permite bons resultados em obras em favelas, mas sim a metodologia do projeto, isto
é, como este foi desenvolvido e com que atores envolvidos, a qualidade de seu conteúdo,
e como se procedem adequações durante a obra. Essas adequações, como vimos, são ne-
cessárias, até para Projeto Executivo, como ocorreu em Parque Fernanda I para que o pro-
jeto fosse implementado.
Nos três casos de referência, há questões e conflitos que não estavam previstos nos
escopos de projetos e que influenciaram nos resultados.
Em Parque Royal, as melhorias urbanas trouxeram muitas qualidades, mas potenciali-
zaram a especulação imobiliária do mercado informal. O adensamento descontrolado que
ocorre desde a urbanização da favela está sobrecarregando o sistema de saneamento, geran-
do um ciclo interminável de favelização. Este processo, visto o vulto e agilidade da ocupação,
não tem sua origem na lógica da favela, com suas micro expansões individuais, mas em agentes
poderosos que se beneficiam explorando o território das favelas, valorizadas pela promessa
de investimentos públicos nestas áreas. Apontamos que esta responsabilidade é, em grande
parte, do Estado, que nem controla o mercado imobiliário informal nem conclui o processo de
regularização, que parecia ser facilitado pelo fato de ser um terreno público.
Em Parque Fernanda I, os problemas de saneamento e ambientais direcionaram a rees-
truturação significativa do sistema viário e de tecido urbano da favela, o que demandou reas-
sentamento de cerca de 50% do total de moradias. A solução adotada foi o tamponamento
do Córrego e a implantação de um Caminho Verde em seu lugar. Mas os novos espaços do
Caminho Verde, cujo uso público é ditado por lei, dentro da lógica regulatória do Estado e
que parece não se justificar com a supressão do Córrego da paisagem, estão ameaçados de
reocupação pela falta de apropriação coletiva e por conflitos de convivência e de interesses.
Em nossa análise, identificamos que os pontos críticos que estão sob ameaça de reocupação
são justamente os dois trechos do Caminho Verde que foram absolutamente modificados e
que em nada lembram o projeto original discutido e aprovado pelos moradores.
Outras pesquisas mostram que o PAC-Favelas no Complexo do Alemão transformou o
processo de implementação de melhorias urbanas em um amontoado de obras (SILVA, 2015),
cujos procedimentos foram manipulados para interesses espúrios (FERREIRA, 2017; PATRÍCIO,
2017). Nossa pesquisa optou pela observação da escala local, no Morro do Alemão, fazendo
emergir os efeitos perversos e de segregação dos moradores resultantes da subdivisão mal-
sucedida para urbanização da favela entre Prefeitura e Governo do Estado. Apenas uma
parte da favela recebeu saneamento básico e infraestrutura enquanto a outra se manteve
intocada, mesmo que visivelmente com problemas de obsolescência. Não que uma subdivi-
293 são de atuações não possa ocorrer numa mesma favela, mas os procedimentos e articulação
destas devem ser pactuados entre as diferentes instâncias, e coordenadas e controladas
pelo mesmo agente, para evitar o que ocorreu no Morro do Alemão.
As experiências práticas de Parque Royal, Parque Fernanda I e no Morro do Alemão
mostram que recantos tratados como pequenos largos, entre muros ou poucas residências,
e vazios residuais deixados pelas obras sofrem pressão de apropriação para uso privativo.
Novas fachadas e novos acessos que estão sendo construídos podem trazer vitalidade urbana.
Ao mesmo tempo, extensões de moradia sem critérios podem comprometer as melhorias
urbanas implantadas. Visto que a dinâmica de ocupação característica das favelas continua
a existir após a urbanização e que a gestão não é eficiente no tratamento da questão, por
que então não assumir que esta lógica da favela se mantém e trabalhar com ela como aliada?
A proibição não é a solução, mas a mediação para o equilíbrio entre regras, que não dis-
pensa a presença constante do poder público, parece ser num caminho mais adequado.
O desafio consiste em construir com os moradores pactos e regras que sejam respeitados
para que o processo de reconstrução não ameace a densidade e a acessibilidade tratadas
na urbanização da favela.
Afinal, é necessário entender que a favela foi construída através do esforço coletivo dos pró-
prios moradores, que proveram condições mínimas urbanas e gerenciaram os serviços básicos.
Neste processo, os moradores foram os verdadeiros protagonistas, impulsionados por investi-
mentos públicos em pequena escala com ações incompletas e intermitentes que mantiveram a
prática clientelista, o jogo das relações de poder e de influência política para futuras e necessá-
rias melhorias nas favelas. Este protagonismo dos moradores continua após a urbanização.
Nossa pesquisa nos levou a observarmos que a fragilidade do processo está em não
considerar a lógica da favela e que os atores locais continuam imprimindo esta lógica após
a urbanização. As políticas de urbanização estão estabelecidas visando a implementação da
lógica regulatória do Estado nas favelas. Subentende-se que a incorporação da favela ao
sistema de gestão pública se daria com os princípios e instrumentos semelhantes aos que
regem a cidade formal, como um novo paradigma urbano nas favelas. E isto definitivamente
não acontece, em parte porque a gestão e os serviços urbanos não assumem as favelas
como cidade, reforçando a estigmatização socioespacial que é atrelada a estes territórios
e aos seus moradores. Mas também porque as políticas de urbanização não se assentam em
nenhum novo pacto urbano.
Diante das questões levantadas por esta pesquisa, apontamos algumas considerações
que poderiam contribuir para a revisão do processo de urbanização de favelas, para a me-
lhoria da performance do projeto e dos programas.
Mostramos nesta pesquisa que os resultados não dependem só do vulto dos investimentos,
mas também do respeito a procedimentos e escopos dos Programas.
Como vimos, as temporalidades dos diferentes atores (tempo de transformação da
favela, político, técnico, administrativo, financeiro, de negociações), que são distintas e mui-
294 tas vezes conflituosas, precisam ser assumidas, enfrentadas e incorporadas nos processos e
metodologias dos programas de urbanização de favelas.
No campo da prática do projeto urbano, visto que o tempo político parece interferir
nos investimentos, nas condições de produção do projeto e em obras, não seria fundamental
pensar metodologias e práticas de projeto que pudessem também viabilizar eventos de obras
em favelas de modo a atender às urgências políticas, que são parte do modus operandi do
sistema político brasileiro?
Do mesmo modo, o projeto não deveria considerar a lógica da favela e que ela efetiva-
mente ocorre, mesmo após a urbanização? Enquanto um novo pacto urbano não acontece
no processo de urbanização de favelas, é esse o contexto e situação do projeto, e não a pro-
metida lógica regulatória do Estado, que guia os projetos e que efetivamente não funciona
nestes territórios. Acreditamos que, ao assumir os processos da lógica da favela, o projeto
poderia contribuir para que uma nova lógica compartilhada fosse construída de modo a
orientar as transformações urbanas e apropriações que ocorrerão, fatalmente, no pós-obras.
Sabemos que a questão é mais ampla, é comum a todos os programas analisados nesta
pesquisa, e não depende apenas de revisões nas metodologias de projeto: há uma ausência
de participação da população envolvida e diretamente beneficiada pelas ações públicas de
urbanização, na construção das diretrizes e das prioridades dos Programas. Ademais, a sus-
tentabilidade e efetivas transformações sociais se baseiam no reconhecimento de que as
soluções só virão conjuntamente. Esta revisão precisa ser mais abrangente, pois a parceria
de ambos – local e estatal – parece ser a saída para se garantir um novo pacto urbano: o
Estado fixando-se nestes territórios através da gestão urbana contínua, como em qualquer
outro bairro da cidade, mediando com os agentes locais as soluções para as transformações
sucessivas características destes territórios.
É fundamental a revisão do processo de urbanização de favelas, entendendo que a favela
é um espaço onde estão emergindo novas estratégias de governança (CHATTERJEE; APPA-
DURAI apud RAO, 2012). Esta revisão deve assumir os atores locais como protagonistas no
estabelecimento e construção das prioridades dos programas (ROY, 2005) e na governança
desta realidade junto com o Estado. Esta pesquisa de doutorado nos abre outras questões
que precisam ser aprofundadas sobre as governanças, autogovernanças e gestão dos espaços
públicos que já acontecem em favelas, não só brasileiras, mas de outros países, como a Índia.
Investigações sobre estes temas, acreditamos, poderão trazer suportes para a construção
de novos pactos urbanos no processo de urbanização de favelas, no qual o Estado seja o
provedor de políticas que invistam nestes territórios, e o projeto, por seu turno, seja um ins-
trumento para a materialização e articulação da coprodução e cogestão destes territórios
numa outra lógica de pacto social distinta à estabelecida atualmente pelo Estado.

295
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS

ÍNDICE DE
FIGURAS

ÍNDICE DE
TABELAS

LISTA DE ABREVIATURAS
E SIGLAS
REFERÊNCIAS
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ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1: Linha de Contato Visual entre Figura 11: Exemplos do mapeamento das
edifícios formais e favela da Babilônia, no Zonas de Trabalho feitos por agentes comu-
Leme/RJ. 19 nitários da Rocinha, em 2004. 107

Figura 2: Rua Saint Roman, em Copaca- Figura 12: Ortofotos da encosta do Morro
bana, com as calçadas “ocupadas” informal- da Babilônia, no Rio de Janeiro, em 1984 e em
mente nas proximidades com as favelas do 2013, com resultados visíveis do refloresta-
Cantagalo e Pavão-Pavãozinho. 20 mento feito pela parceria público-privada 108

Figura 3: Planta aerofotogramétrica sem Figura 13: Diferentes atividades de par-


as casas das favelas. 34 ticipação e planejamento do projeto nas
favelas Parque Fernanda, Jardim Irene e
Figura 4: Planta aerofotogramétrica já Jardim das Rosas, na cidade de São Paulo,
com as casas das favelas. 34 dentro do mesmo contrato de projetos do
PAT-PROSANEAR. A metodologia do PTS foi
Figura 5: Resultado do mapeamento dos desenvolvida pela equipe de projeto, aten-
logradouros em favelas no CagLog do Rio dendo ao escopo do Programa. 113
de Janeiro. 36
Figura 14: Conjunto Heliópolis Gleba G.
Figura 6: Chuveiro instalado pelos pró- Projeto: Biselli + Katchborian Arquitetos,
prios moradores, na Maré/RJ. 39 Heliópolis, SP. Fonte: acervo pessoal/
Daniela Engel, 2015. 120
Figura 7: Calçadas de rua da Baixa do
312 Sapateiro, Maré/RJ, ocupadas pelo co- Figura 15: Conjunto Habitacional Duar-
mércio. 40 te Murtinho, Silvina Audi, São Bernardo do
Campo, SP. Projeto: Boldarini Arquitetos
Figura 8: Linha do tempo dos programas Associados. 120
de urbanização de favelas que atuaram nas
cidades de RJ e SP a partir dos anos 1990 Figura 16: Em amarelo, as favelas que
analisados nesta pesquisa. 63 compõem, segundo a PCRJ, o complexo do
Morro dos Macacos. 129
Figura 9: Base inicial utilizada para o pro-
jeto. Fonte: Archi5, 1995. 78 Figura 17: Plano de Intervenção para as favelas
Barreira do Vasco e Vila do Mexicano, dentro
Figura 10: Mapa cadastral preliminar, do projeto de urbanização no Morar Carioca
elaborada à mão. 78 desenvolvido pela HDAA em 2014. 130
Figura 18: Projeto Básico para as mesmas fa- Figura 28: Vista aérea de Parque Royal,
velas Barreira do Vasco e Vila do Mexicano, já logo após a urbanização. As palafitas foram
sem intervenções no entorno da favela. 130 removidas, dando lugar a via beira-mar e
ciclovia. 167
Figura 19: Obras das retaguardas do pro-
grama Morar Carioca em Babilônia e Cha- Figura 29: Imagem do plano de interven-
péu Mangueira interditam parcialmente o ção do projeto de urbanização de Parque
tráfego de ruas do bairro do Leme, como na Royal da Archi5. 168
Rua General Ribeiro da Costa. 131
Figura 30: Subdivisão de renda (esq.) e de
Figura 20: Mapa de localização de Parque setores (dir.) para as assembleias locais. 173
Royal e Morro do Alemão. Em amarelo, as fa-
velas do município do Rio de Janeiro. 158 Figura 31: Ao centro da imagem, o Corredor
Esportivo do Moneró. 177
Figura 21: Mapa de localização de Parque
Fernanda. Em amarelo, as favelas do muni- Figura 32: Vista do canal antes e depois
cípio de São Paulo. 158 da urbanização. As palafitas desapareceram,
dando lugar à canalização e nova via na mar-
Figura 22: Localização de Parque Royal na gem urbanizada. 179
Ilha do Governador. 162
Figura 33: Vista do canal urbanizado e, em
Figura 23: Área de Parque Royal em 1975, primeiro plano, o edifício habitacional para
ainda sem ocupação aparente. 162 relocar os moradores das palafitas. 179
313
Figura 24: Evolução da ocupação de Par- Figura 34: Rua Jornalista Alaíde Pires
que Royal, de 1981 a 1994. 163 (também conhecida como Rua Raimundo
Malheiros) próximo à praça Vanessa Ferreira
Figura 25: Foto aérea de Parque Royal, Coutinho, em 2017. 181
antes da urbanização. 164
Figura 35: Trecho da Rua da Praia, em
Figura 26: Sistema viário em Parque Royal, 2016, com baixo padrão construtivo em re-
antes da urbanização pelo Favela Bairro. 166 lação à imagem ao lado. 181

Figura 27: Vista aérea de Parque Royal Figura 36: Praça e edifício-sede do CRAS
antes da urbanização. Em primeiro plano, logo após o término das obras. 184
as palafitas. 167
Figura 37: Fotos da mesma praça e edifí- Figura 45: Imagem aérea de 1948, quan-
cio, 20 anos após a inauguração, em péssimo do havia ainda muita vegetação na região.
estado de conservação. 184 Em laranja, os limites de Campo Lindo,
e os das três favelas do contrato. 199
Figura 38: Corredor esportivo do Moneró,
em bom estado de conservação. 189 Figura 46: Região em 1960, quando estavam
sendo construídos os loteamentos. 199
Figura 39: Orla de Parque Royal em 2016.
A ciclovia que desmoronou em 2012 foi Figura 47: Paisagem de Campo Limpo:
noticiada de novo em 2016 pelo Jornal Ilha Loteamentos, vazios especulativos e con-
Notícias, que solicitava providências ao juntos habitacionais verticais. 200
poder público. 189
Figura 48: Rua Serafim Ponte Grande,
Figura 40: Rua da Boa Esperança, em fronteira entre loteamento regular, à es-
2016, onde antes havia palafitas. Apesar do querda, e a favela Parque Fernanda I, à direi-
bom padrão construtivo e qualidade urbana, ta, com pequenos comércios e edificações
ainda há clima de insegurança que interfere sem revestimentos. 201
no uso da área. 191
Figura 49: Parque Fernanda antes da ur-
Figura 41: Gráficos comparativos do nú- banização, já totalmente ocupada e quase
mero de pavimentos das edificações em sem vegetação. 202
Parque Royal em 2006 e 2017, nas quadras
da pesquisa amostral de Fonseca. 192 Figura 50: Parque Fernanda I: encontro
314 do Córrego com o Pirajussara. 203
Figura 42: Vista de Parque Royal em 2017,
na qual percebe-se um conjunto edificado Figura 51: Trecho do Córrego obstruído
de, pelos menos, 3 pavimentos na orla. 192 por entulho e lixo e início do trecho enco-
berto. 203
Figura 43: Nova expansão horizontal da
favela acontecendo sobre o canal e em di- Figura 52: Trechos do Córrego ainda des-
reção à área do aeroporto, à esquerda de cobertos, que foram canalizados pelos mo-
Parque Royal. Em vermelho, a favela com radores. Este era o destino do esgoto das
novo limite no SABREN. 194 moradias construídas nas margens. 203

Figura 44: A curva amarela corresponde Figura 53: Vias e becos com esgoto a
à de ruídos entre 65Db e 75 Db, que engloba céu aberto, e únicos espaços de lazer das
grande parte de Parque Royal. 195 crianças. 203
Figura 54: Imagem original do PDLI para a Figura 64: À esquerda, este edifício azul é
região das favelas Parque Fernanda I, Jardim o Centro Comunitário gradeado e que não
Irene II e Jardim das Rosas (em laranja). 205 tem acesso por esta via, reforçando seu ca-
ráter de corredor. Duas placas indicam que
Figura 55: Setorização adotada pela equi- casas estão à venda ali (em vermelho). Fonte:
pe de projeto em Parque Fernanda I e iden- acervo pessoal, 2017. 224
tificação utilizada na Selagem. 208
Figura 65: Escadaria ao final do Caminho
Figura 56: Proposta 1: A mais conserva- Verde: trecho com muito lixo e entulho,
dora das três. 210 o que dá indícios de ser uma via de pouca
circulação. 225
Figura 57: Proposta 2: Estudo intermediá-
rio com algumas novas UHs. 211 Figura 66: Caminho Verde, pouco antes
da inauguração das obras. 226
Figura 58: Proposta 3: A mais ousada das
três, com mais remoções e reassentamento Figura 67: Mesmo trecho da foto 71, agora
de todas as unidades na própria favela. 211 verde e bastante arborizado, mas com lixo
acumulado. 226
Figura 59: Proposta final do Projeto Exe-
cutivo, desenvolvida a partir da proposta 3 Figura 68: Desenho esquemático desta-
aprovada pelos gestores e moradores na cando o cercamento individualizado (em
etapa Estudos da Concepção. 214 vermelho) dos edifícios para evitar a con-
figuração de enclave e com acessos tanto
315 Figura 60: Projeto executado em Parque para a rua Sergipe como para o Caminho
Fernanda I. 218 Verde. 227

Figura 61: Transporte que passa na Rua Nil- Figura 69: Vista a partir da Rua Sergipe
ton Machado de Barros, em frente aos no- para os novos edifícios UHs: Gradeamento
vos edifícios UHs (à dir. na imagem), e cruza individualizado por bloco residencial para
transversalmente Parque Fernanda I. 221 evitar a configuração de enclave. 228

Figura 62: Trechos do Caminho Verde, se- Figura 70: Vista a partir do Caminho Verde
gundo apropriações dos moradores. 223 para os novos edifícios UHs: acesso dos edi-
fícios também virado para a via de pedes-
Figura 63: Via de pedestres sobre o leito tres. No centro da foto, viela por onde se dá
do Córrego, entre muros e fundos de casas a leitura dos medidores e que, por isso deve
que dão o caráter de corredor. 224 permanecer de acesso público. 228
Figura 71: Moradores começam a abrir Figura 80: O menino “C.” lamenta por sua
novos acessos nos muros para o segundo área de lazer, que foi destruída pelos mora-
trecho do Caminho Verde. 229 dores dos edifícios de UHs para estacionar
de seus carros. 235
Figura 72: Ruas arborizadas e com intenso
uso coletivo. 231 Figura 81: Cartografia das favelas que
compõem o Complexo do Alemão, segundo
Figura 73: Praça na Rua Nilton Machado a PCRJ. 238
de Barros com equipamentos esportivos e
de lazer. 231 Figura 82: Planta da estrutura urbana
proposta pelo PDUCMA, com as 8 Unidades
Figura 74: Muito material de construção de Planejamento Urbano (limites coloridos)
estocado, denotando um processo de ex- e os Setores Urbanos (representados por
pansão pós-obras no Caminho Verde. 231 letras). 240

Figura 75: Registro do “flagrante e nego- Figura 83: Planta que mostra a sobreposi-
ciação” entre moradores e técnicos da Pre- ção dos Centros Setoriais do PDUCMA com
feitura no Caminho Verde. Vista entre blocos o primeiro sistema de teleférico proposto
de edifícios de UHs, da Rua Nilton Machado no Projeto Básico do PAC-Favelas. 243
de Barros para o Caminho Verde. 233
Figura 84: Imagem comparativa entre o
Figura 76: Imagem do Córrego antes da ur- PDUCMA, Projeto Básico e o Projeto Execu-
banização, que corresponde ao Terceiro Trecho tado no Complexo do Alemão. 243
316 do Caminho Verde da nossa análise. 234
Figura 85: Subdivisão entre Estado e PCRJ
Figura 77: Terceiro Trecho da nossa aná- de suas áreas de atuação, no Complexo do
lise, entre edifícios e muros com pequenas Alemão. Em verde na imagem, a Área de
áreas de lazer, após a inauguração. 234 Proteção Ambiental e Recuperação Urbana
- APARU da Serra da Misericórdia. 245
Figura 78: Imagem do mesmo trecho,
agora transformado em estacionamento Figura 86: Imagem do que foi executado pela
dos moradores dos edifícios. 234 PCRJ no contrato Joaquim de Queiróz. 246

Figura 79: Parque infantil no Caminho Figura 87: Enquadramento adotado pela
Verde, após a inauguração, nos fundos do pesquisa (em laranja na imagem), no Morro
conjunto de edifícios de UHs, na Rua Nilton do Alemão, abrangendo parte do território
Machado de Barros. 235 da PCRJ e parte do GERJ. 248
Figura 88: Planta cadastral de 1953. Estão Figura 96: Situação que foi deixada pela
assinaladas em vermelho as primeiras casas obra do PAC-Favelas na Av. Central em
do Morro do Alemão e da Rua Joaquim de 2013. 270
Queiroz. 249
Figura 97: Mesmo trecho da Av. Central,
Figura 89: Ortofoto de 1975 que mostra em 2015, após as obras da PCRJ para finalizar
quase todo o território do Morro do Alemão as calçadas que o GERJ não concluiu. 270
já ocupado. 249
Figura 98: Entorno do Pilar 13 e praça in-
Figura 90: Beco urbanizado pela PCRJ, atra- fantil fica abaixo do nível da rua. 271
vés do contrato Joaquim de Queiróz. 265
Figura 99: Vazio junto à calçada da Av.
Figura 91: Beco Leste, não urbanizado no Central deixado pelas obras. 274
trecho de atuação do GERJ. 265
Figura 100: Mesmo local meses depois,
Figura 92: Planta que mostra todas as com o avanço das construções sobre o limi-
casas (em vermelho) que foram removidas te da calçada. 274
pelas obras do PAC-Favelas no Morro do
Alemão para o alargamento da Av. Central Figura 101: Praça Verde, na Av. Central. 341
e da rua do Pilar. 267
Figura 102: Vazio residual na Av. Central,
Figura 93: Conjunto edificado que foi de- em frente à casa de “B.”, logo após a entrega
molido para o alargamento da Av. Central das obras. 278
317 onde hoje é o Terreno da Curva. 267
Figura 103: O bar construído por “B.”. Ao
Figura 94: Terreno da Curva após as obras lado, já surgiu também uma escada de novo
do PAC-Favelas. Carros estacionados ocu- acesso a moradias que antes davam fundos
pam temporariamente este terreno. 267 à Av. Central. 278

Figura 95: Casa na segunda curva da Av.


Central que foi desapropriada pelo Estado, mas
que não precisou ser demolida para viabilizar a
subida dos equipamentos do teleférico. 268
ÍNDICE DE TABELAS

Tabela 1: Listagem das 16 primeiras favelas a Tabela 11: Parâmetros para projetos
serem urbanizadas pelo Favela Bairro 1. 75 viários, dentro de diferentes escopos
de programas de urbanização de favelas
Tabela 2: Componentes de projeto dentro analisados. 135
do Favela Bairro 1. 83
Tabela 12: Comparativo entre os pro-
Tabela 3: Etapas de projeto no Favela gramas analisados nesta pesquisa, atra-
Bairro 1 e 2. 95 vés das categorias que direcionam e de-
limitam o projeto e o papel do arquiteto
Tabela 4: Temas de projeto levantados no processo. 146
do escopo de projetos do Programa Favela
Bairro. 97 Tabela 13: Grade de Análise construída a
partir de Temas de Projeto dos escopos de
Tabela 5: Edificações a serem projetadas programas de urbanização de favelas, utiliza-
pela Contratada, de acordo com o escopo da por esta pesquisa para organizar os casos
de projetos do Favela Bairro 2. 101 de referência das favelas urbanizadas. 154

Tabela 6: Diferenças entre as fases do Favela Tabela 14: Quadro comparativo de dados
Bairro que influenciaram no processo de proje- das favelas analisadas. 159
to e no papel do arquiteto no Programa. 104
Tabela 15: Crescimento demográfico e do
Tabela 7: Comparação entre as etapas de número de domicílios em Parque Royal des-
projeto do Favela Bairro 2 (4ª. fase) e do de a urbanização. 195
318 PAT-PROSANEAR. 115
Tabela 16: Quadro de problemas e solu-
Tabela 8: Temas de projeto extraídos do ções construído junto com os moradores
escopo de contratação dos serviços de pro- para direcionar ações do projeto do PSI em
jeto do Programa PAT-PROSANEAR. 115 Parque Fernanda I. 206

Tabela 9: Resumo comparativo entre os Tabela 17: Material de apresentação ao


escopos do PAC 1 e do PAC-UAP, de itens Conselho Gestor para a discussão sobre
que direcionavam os projetos objeto do as três alternativas urbanas para Parque
financiamento. 122 Fernanda I. 212

Tabela 10: Temas de Projeto a serem aborda- Tabela 18: Serviços e instituições que ocu-
dos, de acordo com orientações dos escopos dos param as estações do sistema de teleférico
programas de urbanização analisados. 133 do Alemão. Fonte: SILVA, 2015, p. 99. 269
LISTA DE ABREVIATURAS CDLSM Alemão e Penha Comitê de
E SIGLAS Desenvolvimento Local da Serra da
Misericórdia - Complexo do Alemão e
Complexo da Penha
ABC Região do Grande ABC Paulista CDRU Concessão de Direito Real de Uso
AEIS Áreas Especiais de Interesse Social CEF Caixa Econômica Federal
AGRAAR - AGRAAR Consultoria e Estudos CEMASI Centro Municipal de Atendimento
Técnicos S/C Ltda. Social
AMABB Associação de Moradores e COBRAPE Companhia Brasileira de
Amigos do Bairro Barcelos Projetos e Empreendimentos
AMALEBLON Associação de Moradores CODESCO Companhia de Desenvolvimento
do Leblon das Comunidades
AMALGA Associação de Moradores COHAB/SP Companhia Metropolitana
da Gávea de Habitação de São Paulo
AMASCO Associação de Moradores COMLURB Companhia Municipal de
de São Conrado Limpeza Urbana do Rio de Janeiro
AMBIENTAL/LOAR Consórcio AMBIENTAL/ Concremat Concremat Engenharia e
LOAR Tecnologia
AMOR Associação de Moradores do Recreio CONSA Conselho Comunitário de Saúde
AMVPC Associação de Moradores da Vila do Complexo do Alemão
Parque da Cidade CoopBabilônia Coop Babilônia
ANAC Agência Nacional de Aviação Civil CRAS Centro de Referência de Assistência
APP Área de Proteção Permanente Social
Archi5 Archi5 Arquitetos Associados CRAS Darcy Ribeiro Centro de Referência
BID Banco Interamericano de de Assistência Social Darcy Ribeiro
319 Desenvolvimento CRJ Centro de Referência da Juventude
BM Grupo Banco Mundial CUEM Concessão de Uso Especial para
BNH Banco Nacional de Habitação fins de Moradia
CADE Conselho Administrativo de Defesa DAP Disposição a Pagar
Econômica EARJ Escola Americana do Rio de Janeiro
CadLog Cadastro de Logradouros EDI Espaço de Desenvolvimento Infantil
CEDAE Companhia Estadual de Águas EGP-Rio Escritório de Gerenciamento
e Esgotos do Rio de Janeiro de Projetos do Governo do Estado do Rio
CDHU Companhia de Desenvolvimento de Janeiro
Habitacional e Urbano do Estado de EMOP Empresa de Obras Públicas do
São Paulo Estado do Rio de Janeiro
CDLSM-Alemão Comitê de ETEs Estações de Tratamento de Esgotos
Desenvolvimento Local da Serra da FAFERJ Federação das Associações de
Misericórdia -Complexo do Alemão Favelas do Estado do Rio de Janeiro
FAU/UFRJ Faculdade de Arquitetura e IBGE Instituto Brasileiro de Geografia
Urbanismo da Universidade Federal do e Estatística
Rio de Janeiro IDH Índice de Desenvolvimento Humano
FAU/USP Faculdade de Arquitetura e IHS Institute for Housing and Urban
Urbanismo da Universidade de São Paulo Development Studies [Instituto de Estudos
FB Programa Favela Bairro sobre Habitação e Desenvolvimento Urbano]
FB1 Programa Favela Bairro 1 IMJA Instituto Maria e João Aleixo
FB2 Programa Favela Bairro 2 INEA Instituto Estadual do Ambiente
FECAM Fundo Estadual de Conservação INSS Instituto Nacional do Seguro Social
Ambiental e Desenvolvimento Urbano IPLANRIO Empresa Municipal de Informática
Fig. Figura IPP Instituto Pereira Passos
Fiocruz Fundação Oswaldo Cruz IPT Instituto de Pesquisas Tecnológicas
FIRJAN Federação das Indústrias do Estado LAA Laboratoire Architecture
do Rio de Janeiro Anthropologie da Escola Nacional Superior
FNA Faixa non ædificandi de Arquitetura de Paris La Villette
FUPAM Fundação para a Pesquisa LABHAB-FAUUSP Laboratório de
Ambiental da Universidade de São Paulo Habitação e Assentamentos Humanos da
GEAP Grupo Especial de Assentamentos Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Populares Universidade de São Paulo
GEarth Google Earth LABORIAUX Associação de Moradores
GEO-RIO Fundação Instituto de Geotécnica do Laboriaux
GERJ Governo do Estado do Rio de Janeiro LOGOS/PLANAVE Gerenciadora Logos/
GIDUR Gerência de Apoio ao Planave
Desenvolvimento Urbano MCIDADES Ministério das Cidades
GROM GROM Acústica e Vibração NORONHA/BUREAU Gerenciadora e
GRPU Gerências Regionais do Patrimônio Consórcio Noronha/Bureau
320 da União OABRJ Ordem dos Advogados do Brasil
GTA/GCA Grupo Técnico de Apoio do Rio de Janeiro
Consórcio GTA/GCA OAS Grupo OAS
GT Grupo Técnico ONGs Organizações não Governamentais
HABI Superintendência de Habitação Popular ONU Organização das Nações Unidas
HABISP Superintendência de Habitação OSS Organizações Sociais da Saúde
Popular da Cidade de São Paulo PAC Programa de Aceleração do
HBB/BID Programa Habitar Brasil Crescimento
HDAA Heitor Derbli e Arquitetos Associados PAC-UAP PAC Urbanização de
HIS Habitação de Interesse Social Assentamentos Precários
IAB-RJ Instituto de Arquitetos do Brasil PACS Programa de Agentes Comunitários
do Rio de Janeiro de Saúde
IBAM Instituto Brasileiro de Administração PAT-PROSANEAR Programa de Assistência
Municipal Técnica ao Prosanear
PCRJ Prefeitura da Cidade do Rio SIURB Secretaria Municipal de
de Janeiro Infraestrutura Urbana e Obras de São Paulo
PDLI Plano de Desenvolvimento Local SMAC-RJ Secretaria Municipal de Meio
Integrado Ambiente do Rio de Janeiro
PDSCA Plano de Desenvolvimento SMDS Secretaria Municipal de Assistência
Sustentável do Complexo do Alemão e Desenvolvimento Social de São Paulo
PDUCMA Plano de Desenvolvimento SME Secretaria Municipal de Educação
Urbanístico do Complexo Morro do Alemão de São Paulo
PEZR Plano Específico de Zoneamento SMEL Secretaria Municipal de Esportes
de Ruído e Lazer de São Paulo
PMCMV Programa Minha Casa Minha Vida SMF Secretaria Municipal da Fazenda
PNE Plano Nacional de Educação do Rio de Janeiro
POUSO Posto de Orientação Urbanística SMH Secretaria Municipal de Habitação
e Social do Rio de Janeiro
PPI Projetos Prioritários de Investimentos SMIH Secretaria Municipal de
PROAP Programa de Urbanização de Infraestrutura e Habitação
Assentamentos Populares do Rio de Janeiro SMS Secretaria Municipal de Saúde
PSL/RJ Partido Social Liberal do do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro SMTB Secretaria Municipal de Trabalho
PTB Partido Trabalhista Brasileiro e Renda do Rio de Janeiro
PTS Plano do Trabalho Social SMU Secretaria Municipal de Urbanismo
PTTS Plano de Trabalho Técnico Social do Rio de Janeiro
PSI Plano de Saneamento integrado SMO Secretaria Municipal de Obras e
PUI Projetos Urbanos Integrais Serviços Públicos do Rio de Janeiro
QCI Quadro de Composição de Investimentos TECNOSOLO Tecnosolo Engenharia S.A.
RENOVA/SP Concurso Público Nacional TPU Termos de Permissão de Uso
321 de Arquitetura e Urbanismo Renova SP TS Trabalho Social
RIO-ÁGUAS Fundação Instituto das Águas UHs Unidades Habitacionais
do Município do Rio de Janeiro UFABC Universidade Federal do ABC
RIOLUZ Companhia Municipal de Energia UPMMR União Pró-Melhoramentos dos
e Iluminação Moradores da Rocinha
RIOURBE Empresa Municipal de Urbanização UN-HABITAT Programa das Nações Unidas
RMSP Região Metropolitana de São Paulo para os Assentamentos Humanos
SABREN Sistema de Assentamentos UPU Unidades de Planejamento Urbano
de Baixa Renda UPP Unidade de Polícia Pacificadora
SEHAB Secretaria de Habitação e UTF União dos Trabalhadores Favelados
Desenvolvimento Urbano do Rio de Janeiro ZEIS Zonas Especiais de Interesse Social
SEHAB Secretaria Municipal de Habitação II URBfavelas II Seminário Nacional
SESP Secretaria da Segurança Pública e sobre Urbanização de Favelas
Defesa Social 5º FUM V Fórum Urbano Mundial
SOLANGE ARAUJO DE CARVALHO

RIO DE JANEIRO ABRIL 2020

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