estudos da fundação k 2021
Fernando Diogo, coord.
Ana Cristina Palos Gabriela Trevisan
Carlos F. Rodrigues Lídia Fernandes
Elvira Pereira Osvaldo Silva
Fernando Bessa Ribeiro Pedro Perista
Francisco Branco Inês Amaro, colab.
De acordo com a taxa de pobreza,
aferida pelo Instituto Nacional
de Estatística, 17,2 % da população
A pobreza em Portugal é Una porque
inclui um conjunto de indivíduos que
tem em comum essa condição A pobreza
em Portugal
em Portugal encontrava-se em risco socioeconómica, considerando
de pobreza em 2018. Este valor, diversos critérios de medida, e Diversa
composto por três algarismos, porque cada situação é única, vivida
um separador decimal e um símbolo no singular e no seio de um contexto
matemático, condensa as vidas social e de uma família concreta.
de mais de 1,7 milhões de pessoas. Compreender a diversidade da
Sem sabermos quem é e como vive pobreza, conhecer as trajetórias Trajetos e quoditianos
esta parte da população, partindo da população pobre e perceber
das suas próprias perspetivas, de forma aprofundada como vivem
dificilmente compreenderemos foi o que norteou a realização deste
o país no seu todo. estudo que agora se apresenta.
estudos da fundação k 2021
A pobreza
em Portugal
Trajetos e quotidianos
Fernando Diogo, coordenação
Ana Cristina Palos
Carlos Farinha Rodrigues
Elvira Pereira
Fernando Bessa Ribeiro
Francisco Branco
Gabriela Trevisan
Lídia Fernandes
Osvaldo Silva
Pedro Perista
Inês Amaro, colaboração
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Director da colecção Estudos da Fundação: Gonçalo Saraiva Matias
Título: A pobreza em Portugal: trajetos e quotidianos
Autores: Fernando Diogo (coordenação), Ana Cristina Palos,
Carlos Farinha Rodrigues, Elvira Pereira, Fernando Bessa
Ribeiro, Francisco Branco, Gabriela Trevisan, Lídia Fernandes,
Osvaldo Silva, Pedro Perista e Inês Amaro (colaboração)
Revisão de texto: Rita Cabral
Design: Inês Sena
Paginação: Guidesign
© Fundação Francisco Manuel dos Santos
Abril de 2021
ISBN: 978‑989‑9064‑22‑5
As opiniões expressas nesta edição são da exclusiva responsabilidade
dos autores e não vinculam a Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Os autores desta publicação adotam o novo Acordo Ortográfico.
A autorização para reprodução total ou parcial dos conteúdos desta obra
deve ser solicitada aos autores e ao editor.
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Índice
Introdução geral 7 Capítulo 4
Das estatísticas aos perfis de pobreza Perfis de indivíduos adultos
em situação de pobreza 49
4.1. Análise das Correspondências Múltiplas 49
Capítulo 1
4.2. Aprofundamento de resultados da ACM 57
Crítica das fontes sobre
Conclusão 61
a pobreza em Portugal 13
Introdução 13
Capítulo 5
1.1. O conceito oficial de pobreza e
Procedimentos de recolha e análise
a sua operacionalização 14
de dados qualitativos 63
1.2. Fontes de dados utilizadas neste
5.1. Definição da estrutura da amostra 64
estudo – ICOR e IDEF 20
5.2. Caracterização do grupo de entrevistados 72
1.3. Principais técnicas estatísticas usadas 23
5.3. Algumas notas sobre as estratégias
de recolha e análise de dados 74
Capítulo 2
Conclusão do capítulo 75
Evolução dos principais
indicadores de pobreza 27
Capítulo 6
2.1. Evolução dos principais indicadores (2003‑2016) 27
Reformados 77
2.2. As diferentes dimensões da pobreza (2016‑2017) 35
Introdução 77
2.3. Caracterização da população pobre em 2017 38
6.1. Enquadramento familiar na infância 79
6.2. Relação com o sistema educativo 82
Capítulo 3
6.3. Transição para a vida adulta 85
Probabilidades de pobreza nas famílias
6.4. Relação com o mundo do trabalho 88
portuguesas: análise Probit 43
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6.5. Autoperceção do percurso, comparação 7.8. Perceção de si como pobre e do
da vida presente com a passada 91 combate à pobreza 135
6.6. Sistemas de proteção social e redes 7.9. Perspetivas face ao futuro 138
de solidariedade informal 95 Conclusão do capítulo 141
6.7. Redes de apoio não institucional e território 98
Capítulo 8
6.8. Perceção de si como pobre e do
Desempregados 145
combate à pobreza 101
Introdução 145
6.9. Perspetivas face ao futuro 105
8.1. Enquadramento familiar na infância 147
Conclusão do capítulo 108
8.2. Relação com o sistema educativo 150
Capítulo 7 8.3. Transição para a vida adulta 152
Precários 111 8.4. Relação com o mundo do trabalho 156
Introdução 111 8.5. Autoperceção do percurso, comparação
7.1. Enquadramento familiar na infância 113 da vida presente com a passada 159
7.2. Relação com o sistema educativo 116 8.6. Sistemas de proteção social e redes
7.3. Transição para a vida adulta 118 de solidariedade informal 163
7.4. Relação com o mundo do trabalho 121 8.7. Redes de apoio não institucional e território 166
7.5. Autoperceção do percurso, comparação 8.8. Perceção de si como pobre e do
da vida presente com a passada 125 combate à pobreza 169
7.6. Sistemas de proteção social e redes 8.9. Perspetivas face ao futuro 172
de solidariedade informal 129 Conclusão do capítulo 175
7.7. Redes de apoio não institucional e território 132
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Capítulo 9 Conclusão geral 215
Trabalhadores 179
Posfácio 231
Introdução 179
9.1. Enquadramento familiar na infância 180
Bibliografia 239
9.2. Relação com o sistema educativo 184
9.3. Transição para a vida adulta 186 Agradecimentos 253
9.4. Relação com o mundo do trabalho 189
Anexos 255
9.5. Autoperceção do percurso, comparação
A. Tabela dos perfis dos clusters 255
da vida presente com a passada 192
B. Distribuição dos perfis por quotas 257
9.6. Sistemas de proteção social e redes
C. Guião de entrevista 259
de solidariedade informal 196
9.7. Redes de apoio não institucional e território 199
Notas 265
9.8. Perceção de si como pobre e do
combate à pobreza 203
9.9. Perspetivas face ao futuro 207
Conclusão do capítulo 210
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Introdução geral
Este livro é uma síntese dos resultados obtidos no projeto «Trajetos contextualização. Por outro lado, temos um aprofundado trabalho
e quotidianos de pobreza em Portugal». Foi desenvolvido por uma realizado na definição de perfis de pobreza, bem como na sua opera‑
equipa multidisciplinar e multi‑institucional para a Fundação Francisco cionalização, considerando a necessidade de se dar conta da unicidade
Manuel dos Santos1. e da diversidade da pobreza em Portugal.
O trabalho teve como objetivo responder à seguinte pergunta: quem O presente livro inicia‑se com a componente de natureza mais quanti‑
são e como vivem os pobres a sua situação de pobreza em Portugal? tativa, que vai das estatísticas aos perfis da pobreza em Portugal. Nesta
A resposta à questão exige a mobilização de diversos recursos meto‑ é apresentada, em primeiro lugar, uma crítica dos conceitos e das
dológicos, nomeadamente de tipo qualitativo. Assim, optou‑se pela fontes usadas. Em relação aos dados propriamente ditos, começamos
realização de um estudo em duas fases: 1. uma fase extensiva, contri‑ por apresentar a evolução dos principais indicadores de pobreza nos
buindo para se conhecer melhor, do ponto de vista sociodemográfico, últimos anos para, de seguida, caracterizar a população em causa.
a população pobre e, sobretudo, para definir perfis de indivíduos
Esta caracterização é feita, num primeiro momento, com base nos
em situação de pobreza e 2. uma fase intensiva, permitindo abordar
dados oficiais (do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento –
as diferentes trajetórias e formas de viver e enfrentar a situação de
ICOR) para, num segundo momento, se apresentarem resultados
pobreza, a partir de um conjunto de temáticas definidas pela equipa
obtidos através dos microdados que nos foram fornecidos pelo
de investigação. O elemento aglutinador destas temáticas é a história
INE ao abrigo de protocolo específico, referentes ao ICOR 2017 e
de vida, enquanto instrumento de recolha de informação fundamental,
centrados nos indivíduos com 18 e mais anos2. Estes microdados foram
aplicado através de entrevistas semiestruturadas.
tratados usando, essencialmente, duas técnicas de análise estatística.
Neste livro salientam‑se duas questões importantes. Por um lado, Em primeiro lugar, a análise Probit, recorrendo a um software, comple‑
a perspetiva diacrónica da história de vida. Esta foi privilegiada consi‑ mentarmente ao SPSS, o NLOGIT – LIMDEP, cujo modelo Probit nos
derando que a vida das pessoas, mais do que uma fotografia da permitiu obter os efeitos marginais, avaliados com base numa cate‑
situação atual, é um filme que implica revisitar episódios e trechos goria de referência para cada uma das variáveis. Em segundo lugar, foi
do passado para se compreender o momento presente. Quer isto realizada uma Análise das Correspondências Múltiplas (ACM), com
dizer que há limites para a segmentação a que se pode submeter todos os indivíduos em situação de pobreza existentes na amostra do
a análise da realidade. Tentar evitar a sobreposição temática é um ICOR, complementada por uma análise de k‑means. Foi, ainda, realizado
exercício de elegância estilística que faz perigar a compreensão e a um aprofundamento desta análise através do confronto dos resultados
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obtidos ao nível dos perfis individuais identificados com a condição Nos quatro capítulos relativos aos perfis tentou identificar‑se a
perante o trabalho (na perspetiva da ocupação). diversidade de situações envolvidas nos quotidianos e trajetos
de pobreza em Portugal incluídos em cada perfil, mas também as
Com a primeira das análises referenciadas foi possível identificar as questões de maior regularidade, quer as que contribuem para dar
variáveis mais pertinentes para a definição de perfis de indivíduos em coerência e unidade a cada um dos perfis, quer as que são trans‑
situação de pobreza. E com a segunda, a ACM, foi possível identificar versais aos quatro perfis em análise. Neste livro apresenta‑se uma
quatro perfis de pobreza em Portugal: 1. Reformados; 2. Precários; síntese deste processo. Uma versão mais extensiva dos resultados
3. Desempregados e 4. Trabalhadores. pode ser encontrada em quatro publicações eletrónicas que o
A segunda parte deste livro inicia‑se com uma incursão metodoló‑ complementam (uma para cada um dos perfis de pobreza encon‑
gica, incluindo a análise dos procedimentos na seleção das pessoas trados). A apresentação dos procedimentos relativos à validação do
entrevistadas. Nesse capítulo dá‑se particular relevância ao processo Guião e ao tratamento dos dados foram remetidos para os capítulos
de validação dos perfis obtidos na análise quantitativa, em confronto metodológicos destas publicações.
com a literatura e, sobretudo, ao procedimento de operacionalização, Os perfis são alvo de interrogação e análise a partir de uma perspetiva
isto é de passagem dos perfis teóricos às características concretas das que conjuga dois eixos. Por um lado, um eixo temporal, mais objetivo,
pessoas a entrevistar. no âmbito do qual se conduz o entrevistado/a ao longo dos diversos
A análise qualitativa dos perfis foi concretizada através da realização períodos que constituem a sua trajetória de vida. Neste eixo podemos
de 87 entrevistas semiestruturadas (antecedida da realização de quatro encontrar as seguintes temáticas: 1. Enquadramento familiar na
entrevistas exploratórias para a aferição do Guião e da grelha de infância; 2. Relação com o sistema educativo; 3. Transições para a vida
análise, uma por perfil). adulta; 4. Relação com o mundo do trabalho; bem como a mobilização
de dois temas a que damos destaque, dada a sua importância para
De seguida, apresentam‑se os quatro perfis de pobreza identificados. quem está em situação de pobreza: 6. Redes de apoio social não insti‑
Cada um corresponde a um capítulo, seguindo estes um esquema tucional; e 7. Relação com os sistemas e subsistemas de proteção social.
semelhante, construído com base no Guião de Entrevista e na grelha
de análise de conteúdo. Estes capítulos são, essencialmente, as conclu‑ Num segundo eixo podemos encontrar as questões mais subjetivas,
sões dos diferentes pontos dos livros eletrónicos desenvolvidos para que nos permitem compreender a forma como os indivíduos se posi‑
cada um dos quatro perfis. A informação foi, sempre que necessário, cionam no mundo social e os esquemas de inteligibilidade a partir
condensada e adaptada e foram acrescentadas citações das entrevistas. dos quais constroem a sua agência: 5. Autoperceção do percurso
e comparação da vida presente com a passada; 8. Perceção de si
como pobre e do combate à pobreza; 9. Perspetivas face ao futuro.
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Na realidade, a divisão entre trajetória de vida e dimensão subje‑
tiva não é tão linear, que com regularidade elementos de um eixo
aparecem nos temas do outro.
Na conclusão final procede‑se a uma sistematização das questões
transversais e das especificidades de cada perfil. O livro termina com
um posfácio onde se discute a relação dos resultados com o problema
da pandemia, partindo dos perfis mas sem esquecer outros aspetos
relevantes.
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Das estatísticas
aos perfis de pobreza
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Capítulo 1
Crítica das fontes sobre a pobreza
em Portugal
Introdução
Os próximos capítulos incidem, essencialmente, sobre a exploração dos em estudos qualitativos implica que esses resultados não são repre‑
dados quantitativos recolhidos pelo Instituto Nacional de Estatística sentativos relativamente à situação portuguesa, mau grado o seu
(INE) em relação à pobreza. Pretendemos atingir dois objetivos que pioneirismo e relevância para a compreensão deste problema social.
se encontram entrelaçados. Em primeiro lugar, construímos perfis
Ora, para se combater a pobreza há que ter em conta as diferentes
típicos de indivíduos em situação de pobreza em Portugal. Este resul‑
formas em que esta se traduz, para que se possam encontrar remédios
tado permite, por si só, fazer avançar a investigação sobre a pobreza e
(medidas) adequados aos diversos perfis específicos, por contraponto
completar outros estudos, de natureza sobretudo qualitativa, que têm
a medidas genéricas, de baixo impacto nos diversos subgrupos em
vindo a trabalhar a diversidade dos indivíduos em situação de pobreza
que é divisível. Este é um trabalho que necessita claramente de ser
(Garcia et al., 2000; Castro et al., 2002a e 2010; Capucha, 2005; Diogo,
reforçado, apesar da pesquisa já desenvolvida nesta área ao longo dos
2007; Amaro e Branco, 2010). Com efeito, os relatórios oficiais do INE
últimos 30 anos3. Acresce que o impacto da crise de 2008 ainda está
e boa parte dos estudos realizados no país com base nas estatísticas
em boa parte por aferir no que à pobreza respeita, mau grado alguns
oficiais permitem perceber que existem diversas variáveis associadas
contributos importantes entretanto realizados (como os desenvolvidos
à pobreza em Portugal, mas incidem normalmente sobre o conjunto
por Rodrigues, Figueiras e Junqueira, 2012 e 2016; Wall et al., 2015).
dos indivíduos em situação de pobreza (Capucha, 2005; Rodrigues,
E, claro, o mesmo se verifica no que respeita aos efeitos da pandemia.
2007 e 2012; Diogo, 2007; Costa et al., 2008; Alves, 2009; Pereira, 2010a;
Com a agravante de que estes ainda estão, até, por acontecer.
Perista e Baptista, 2010). Mesmo os trabalhos mais recentes são sobre‑
tudo genéricos (por exemplo em Diogo et al., 2016), não contribuindo Os perfis de indivíduos em situação de pobreza são, em particular,
de forma decisiva para desbravar as diferentes formas de ser pobre que cruciais para a fundamentação da análise qualitativa que se produz
se podem intuir das conclusões alcançadas. nos capítulos seguintes deste livro. Com efeito, para que a seleção dos
entrevistados não fosse arbitrária e para se poder cumprir a exigência
O facto de a maioria dos resultados disponíveis sobre a existência
da variabilidade em análise qualitativa, foi necessário encontrar os
de diferentes perfis de indivíduos em situação de pobreza ter origem
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melhores critérios de seleção dos entrevistados. Só assim é viável variáveis mais relevantes para a análise da pobreza na ACM, comple‑
garantir a representatividade possível neste tipo de abordagem. mentando o trabalho realizado com a análise Probit.
A mobilização dos dados do Inquérito às Condições de Vida e
1.1. O conceito oficial de pobreza
Rendimento (ICOR) para a construção de perfis de pobreza foi,
e a sua operacionalização
portanto, fundamental para garantir que a seleção dos entrevistados
refletiu a realidade portuguesa, na sua variedade. A literatura evidencia diversas abordagens à operacionalização do
conceito de pobreza. De uma forma lata, a pobreza pode ser identi‑
O segundo grande objetivo está associado à mobilização de técnicas ficada «como uma situação em que não são satisfeitas determinadas
específicas para se realizar a análise. Referimo‑nos à utilização da necessidades, ou em que não é realizado um nível de vida mínimo
análise Probit e da Análise das Correspondências Múltiplas (ACM, aceitável, por carência de recursos» (Pereira, 2010a, p. 23). Contudo,
seguida de k‑means). Ambas são pouco ou nada utilizadas na análise os estudos realizados refletem opções muito diversificadas na opera‑
da pobreza em Portugal; nesse sentido, a sua mobilização pode ser cionalização do conceito de pobreza, sendo possível distinguir três
classificada como inovadora. A informação obtida com estas ferra‑ linhas principais de diferenciação: a) a dimensão de observação
mentas constituiu, assim, um importante auxílio para se aprofundar (recursos versus necessidades ou padrão de vida), b) o padrão de
a compreensão da pobreza na atualidade. referência (absoluto versus relativo), e c) o grau de integração das
perceções sociais e individuais (Pereira, 2010b).
A análise Probit forneceu‑nos a probabilidade de pobreza mediante
a construção de modelos de regressão. Neste último caso, os resul‑ Neste estudo, esta discussão teórico‑conceptual não é aprofundada,
tados mostraram quais as variáveis que mais influenciam a situação dado que, tendo em conta os seus objetivos, a opção recaiu sobre a
de pobreza, contribuindo assim para a seleção das variáveis a utilizar adoção do conceito e do procedimento de operacionalização subja‑
na ACM, com o objetivo de identificar os (principais) perfis de indiví‑ centes à definição de pobreza oficialmente adotada na União Europeia.
duos em situação de pobreza. Importa, contudo, explicitar o conceito e detalhar a respetiva operacio‑
nalização, tornando claros os procedimentos metodológicos inerentes
Por fim, é‑nos ainda possível revisitar as estatísticas oficiais sobre a
à identificação dos indivíduos em situação de pobreza e os seus limites.
pobreza em Portugal atualizando trabalhos anteriores, quer do INE,
quer de investigadores (incluindo dos membros da equipa), e relevando O primeiro registo de adoção oficial de uma definição de pobreza no
as principais características da pobreza em Portugal, bem como as suas contexto da União Europeia remonta a 1975: pessoas em situação
tendências. Este exercício também contribui para a identificação das de pobreza são indivíduos ou famílias cujos recursos são de tal
forma baixos, que os excluem do modo de vida mínimo aceitável no
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Estado‑membro em que vivem, acrescentando que os recursos a consi‑ No caso do principal indicador utilizado, e adotado neste estudo para
derar incluíam bens, rendimento monetário e serviços de fontes públicas identificar os indivíduos em situação de pobreza, o valor de referência
e privadas (75/458/EEC, Decisão do Conselho de 22 de julho de 1975). do limiar de pobreza corresponde a 60 % do rendimento mediano, valor
de referência adotado pelo Eurostat em 2000 (Atkinson et al., 2002)
Mais recentemente, em 2004, esta definição de pobreza foi ligeira‑ e consagrado com a adoção oficial dos designados indicadores de
mente modificada e mais especificada: Laeken, em 2001. Este critério traduz, ainda que de forma algo imper‑
As pessoas encontram‑se em situação de pobreza se o seu rendimento feita, a ideia subjacente ao conceito de privação relativa proposto
e os seus recursos forem tão inadequados que as impedem de ter o por Townsend (1979). Assim, se os recursos obtidos pelo indivíduo
padrão de vida considerado aceite na sociedade em que vivem. Por estiverem «tão seriamente abaixo dos controlados pelo indivíduo ou
causa da sua situação de pobreza podem sofrer de múltiplas desvan‑ família médios, […] eles são de facto excluídos dos padrões de vida,
tagens através do desemprego, rendimento baixo, habitação pobre, costumes e atividades correntes» (Townsend, 1979, p. 31).
cuidados de saúde inadequados e barreiras à aprendizagem ao longo A observação da realidade, numa perspetiva agregada e para fins
da vida, cultura, desporto e lazer. Elas são muitas vezes excluídas e estatísticos, implica a utilização de critérios de observação, nomea‑
marginalizadas da participação em atividades (económicas, sociais e damente selecionando os aspetos mais facilmente observáveis, e de
culturais) que são a norma para outras pessoas e o seu acesso a direitos classificação, em particular estabelecendo fronteiras definidas, que
fundamentais pode ser limitado. (Eurostat, 2010, p. 6) traduzem simplificações importantes quando lidamos com fenó‑
Embora esta definição remeta para uma situação de inadequação do menos complexos e difusos cuja quantificação é particularmente
rendimento e dos recursos para alcançar o padrão de vida considerado difícil. Neste contexto, torna‑se relevante explicitar os princípios que
aceitável na sociedade em que vivem, o indicador eleito desde 1981, muitas vezes guiam a seleção dos indicadores. Atkinson et al. (2002,
adotado no «Relatório Final da Comissão para o Conselho sobre o pp. 20‑24) identificam seis, que são aplicáveis de forma individual aos
Primeiro Programa de Projetos‑Piloto e Estudos‑Piloto para Combater indicadores: identificar a essência do problema que se pretende medir
a Pobreza», baseia‑se no rendimento monetário líquido dos indivíduos e ter uma interpretação normativa clara e aceite de forma generali‑
e identifica a inadequação deste rendimento através de um critério zada; ser robusto e passível de validação estatística por referência a
puramente relativo, considerando que os indivíduos com um nível outras evidências; ser sensível a intervenções políticas eficazes mas
de rendimento equivalente inferior a uma percentagem do valor do não ser passível de manipulação; ser medido de forma suficientemente
rendimento equivalente mediano observado no país se encontram em comparável nos países da União Europeia; passível de ser calculado em
situação de «risco de pobreza». tempo útil e de revisão; a medição do indicador não deve constituir
uma sobrecarga para os Estados‑membros ou para os seus cidadãos
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(respondentes). Os últimos três princípios têm um carácter essencial‑ Em primeiro lugar, a escolha da variável rendimento a observar; esta
mente pragmático e implicam compromissos importantes entre aquilo corresponde ao rendimento monetário líquido, que tem em conta
que gostaríamos de saber e aquilo que se pode observar de forma o rendimento monetário proveniente de diversas fontes, incluindo
comparável, rápida e eficiente. transferências sociais depois de deduzidos os impostos que sobre
eles incidem e as contribuições para a segurança social (INE, março
Os procedimentos metodológicos associados à observação indireta de 2016). Sendo uma variável fluxo, torna‑se necessário delimitar um
da pobreza, baseada nos recursos que os indivíduos detêm e mais período de observação, que é, neste caso, um ano. Ora, esta variável
concretamente no rendimento que obtêm, estão relativamente conso‑ exclui, desde logo, o rendimento não monetário, nomeadamente o
lidados em orientações de modo geral aceites para a observação do autoconsumo e a autolocação, que em Portugal têm um peso relevante
rendimento com o objetivo de comparação interpessoal e medição da no conjunto do rendimento observado. Acresce que não tem em conta
pobreza (ver por exemplo Expert Group on Household Income Statistics, outros recursos, nomeadamente eventuais poupanças que possam ser
2001; Expert Group on Poverty Statistics, 2006). Além disso, as opções mobilizadas pelos indivíduos e que dependem em grande medida das
metodológicas que lhes são inerentes, bem como a seleção das alter‑ trajetórias de vida e do nível de rendimento obtido em anos anteriores
nativas disponíveis e respetivas limitações, têm sido detalhadas e (veremos, contudo, na parte qualitativa, que o impacto deste tipo
discutidas de forma aprofundada quer internacionalmente (ver, entre de rendimentos é pequeno entre os nossos entrevistados). De facto,
outros, Citro e Michael, 1995; Atkinson et al. 2002; Eurostat, 2007), o rendimento anual obtido pode flutuar e em cada ano existem indi‑
quer em estudos realizados em Portugal (ver entre outros Costa et al., víduos que obtêm um nível de rendimento que pode não refletir a sua
1985; Ferreira, 2000; Rodrigues, 2007; Pereira, 2010a). situação mais típica. Neste sentido, o rendimento monetário líquido
Embora não caiba neste trabalho uma discussão aprofundada do obtido num ano pode afastar‑se substancialmente dos recursos que
critério utilizado, importa detalhar as principais opções metodológicas os indivíduos detêm para obter um determinado padrão de vida.
prosseguidas na identificação dos indivíduos em situação de pobreza, Um dos principais argumentos avançados para a não inclusão de
de acordo com o procedimento Eurostat, identificando também outras componentes do rendimento, quando o indicador foi adotado
algumas das limitações que reconhecidamente lhes estão associadas. e o instrumento para recolher os dados necessários para o calcular
Nomeadamente, porque estas opções metodológicas, em especial as foi concebido, centrou‑se nas dificuldades inerentes à observação das
relativas à escolha da variável e do período de observação, da unidade componentes não monetárias do rendimento, em particular numa pers‑
de observação, das escalas de equivalência e do limiar de pobreza, petiva comparada (Atkinson et al., 2002; Eurostat, 2007). A trajetória
influenciam de forma determinante os resultados obtidos em termos de vida dos indivíduos é um filme, mas a análise estatística fornece‑nos
de identificação dos indivíduos em situação de pobreza. apenas um retrato. A análise dos percursos de vida feita nos capítulos
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seguintes deste livro ajuda‑nos a minimizar este problema, dado que Em terceiro lugar, uma vez que o rendimento é observado ao nível do
tem como esteio uma abordagem biográfica. ADP, é necessário tornar comparável o rendimento obtido por ADP com
diferentes dimensões e composições. O procedimento normalmente
Em segundo lugar, a unidade de observação do rendimento é o Agregado utilizado é o de recorrer a uma escala de equivalência que tem em conta
Doméstico Privado (ADP), tendo em conta que existe, por definição, quer a existência de economias de escala no consumo, quer a compo‑
partilha de recursos no seio deste. De facto, o ADP corresponde ao sição demográfica do agregado. O rendimento equivalente atribuído a
conjunto de pessoas que residem no mesmo alojamento e cujas cada membro do agregado resulta assim da divisão do rendimento mone‑
despesas fundamentais ou básicas (alimentação, alojamento) são tário líquido obtido por parte do ADP e respetivos membros ao longo de
suportadas conjuntamente, independentemente da existência ou um ano pelo número de adultos equivalentes, utilizando uma escala de
não de laços de parentesco; ou a pessoa que ocupa integralmente um equivalência, assumindo‑se assim, como já foi referido, que existe uma
alojamento ou que, partilhando‑o com outros, não satisfaz a condição distribuição equitativa dos recursos dentro do ADP.
anterior. (INE, 2016, p. 90) Existem múltiplas escalas de equivalência, que são calculadas tendo
Neste sentido, o rendimento a atribuir a cada indivíduo no ADP em conta diferentes objetivos e métodos, e os estudos sugerem que as
depende do rendimento obtido por todos os membros do ADP. necessidades relativas de diferentes ADP variam com o rendimento e,
Este pressuposto de partilha de recursos é normalmente aceite em particular, com o peso das despesas com a habitação. A opção por
como válido, tendo em conta que existem despesas que beneficiam uma única escala de equivalência aplicada independentemente do nível
todos os membros do agregado, por exemplo na habitação, e que os de rendimento é uma simplificação aceite como razoável pela dificul‑
bens e serviços consumidos por alguns indivíduos, por exemplo as dade de implementar pressupostos mais sofisticados (Expert Group on
crianças, são financiados pelo rendimento obtido pelos seus cuida‑ Household Income Statistics, 2001, p. 40).
dores. Contudo, esta partilha não é necessariamente equitativa. A escala de equivalência atualmente utilizada pelo Eurostat é a modi‑
As particulares dificuldades associadas à obtenção de informação ficada da OCDE, sendo atribuída uma ponderação de um valor ao
sobre a distribuição intrafamiliar dos recursos/rendimento traduz‑se primeiro adulto no agregado, uma ponderação de 0,5 aos restantes indi‑
na assunção de uma hipótese simplificadora de distribuição equita‑ víduos com 14 ou mais anos e uma ponderação de 0,3 aos indivíduos
tiva do rendimento pelos membros do ADP, que é em grande medida com menos de 14 anos. É importante notar que a opção por esta última
inescapável, mas tem consequências relevantes para a observação escala é normalmente justificada por questões práticas de harmonização
da pobreza (ver por exemplo Daly, 1992, sobre a incapacidade deste e comparabilidade, o que não significa, como refere Rodrigues, que
tipo de abordagem para revelar o quadro real da pobreza feminina esta seja «a escala ideal ou a que melhor traduz a realidade portuguesa»
nas sociedades europeias). (2007, p. 43). Esta escala não é, assim, de todo consensual na literatura e
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os resultados de um estudo recente realizado em Portugal sugerem por essencialmente uma situação de rendimentos relativamente baixos
exemplo que, para níveis de rendimento abaixo da mediana, ela sobres‑ (Pereira, 2010a). Aliás, alguns autores preferem utilizar a designação
tima as economias de escala no consumo e, sobretudo, subestima as de indicador de baixos rendimentos (Atkinson et al., 2002). De facto,
necessidades relativas das crianças (Pereirinha et al., 2017). tal como qualquer outro limiar relativo, que é estabelecido de forma
arbitrária, o rendimento implícito neste limiar pode ou não ser o
Em quarto lugar, a identificação dos indivíduos em situação de rendimento necessário/adequado para obter um padrão de vida
pobreza, ou seja, a tradução da pobreza numa variável dicotómica mínimo aceitável. Os resultados de um estudo realizado em Portugal
que separe os indivíduos que estão em situação de pobreza, daqueles sugerem que o limiar de pobreza assim identificado está bastante
que não estão nessa situação requer a identificação de um valor de abaixo do rendimento necessário para alcançar um padrão de vida
rendimento equivalente utilizado como limiar – o designado limiar de digno em Portugal. De facto, o valor de rendimento implícito no limiar
pobreza – que, no caso, corresponde a 60 % da mediana do rendimento (422 euros) em 2014, no caso de um indivíduo a viver só, a residir numa
equivalente observado. freguesia não atípica em Portugal, não seria suficiente para cobrir as
Esta dicotomização na observação da pobreza, apesar de em grande despesas estimadas como necessárias para alimentação, habitação e
medida ser artificial, é necessária para o exercício de identificação das transportes (Pereirinha et al., 2017).
pessoas em situação de pobreza para fins estatísticos. Em particular, Tendo em conta a arbitrariedade da escolha do limiar relativo, a nível
esta dicotomização leva a que um euro (ou mesmo um cêntimo) a europeu acordou‑se a disponibilização dos resultados obtidos com
menos ou a mais no rendimento monetário se traduza numa classifi‑ a utilização de outros limiares – 40 %, 50 % e 70 % do rendimento
cação do indivíduo como estando ou não numa situação de pobreza. mediano (limiares também adotados em Laeken como base de indica‑
Embora se reconheça que a medição de um fenómeno implica sempre dores secundários). Estes indicadores continuam, contudo, associados
uma redução da informação sobre o mesmo (Pereirinha, 1995), a eleição à identificação de situações de rendimentos relativamente baixos.
do critério referido para determinar o limiar de pobreza tem sido alvo Neste sentido, ignoram o «irreducible absolutist element» (Sen, 1983)
de diversas críticas no seio da comunidade científica (ver entre outros na noção de pobreza. Este «elemento» absoluto na noção de pobreza
Atkinson et al., 2002; Costa et al., 2008; Pereira, 2010a) que suscitam implica que a identificação de um indivíduo como estando numa
cautelas na interpretação dos resultados obtidos com a sua utilização, situação de pobreza não pode depender exclusivamente do quadro
sobretudo numa perspetiva comparada no tempo e no espaço. relativo da distribuição de rendimento.
Um dos problemas suscitados é que o indicador utilizado se encontra A desconexão entre um limiar estabelecido de forma puramente rela‑
em grande medida divorciado do conceito oficial adotado, refletindo tiva e o rendimento necessário para obter um determinado padrão de
vida mínimo aceite como tal e a implicação da adoção deste critério
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para a observação da pobreza tornou‑se evidente durante a crise econó‑ consideração dessas diferenças pode enviesar as medidas e o perfil de
mica em Portugal (2008‑2014), como veremos de seguida. De facto, pobreza. Neste contexto, será importante ter em conta, por exemplo,
a utilização de um limiar relativo implica que o limiar de pobreza flutue as situações de saúde/doença, as despesas com a habitação e a locali‑
anualmente em consonância com as flutuações do rendimento mediano. zação geográfica na observação da pobreza.
Em Portugal, entre 2010 e 2012 o limiar de pobreza reduziu por efeito
da redução do rendimento equivalente mediano. Assim, nestes anos, Ao nível da UE, o reconhecimento das limitações, já apresentadas,
embora recorrendo a outros indicadores parecesse claro que a pobreza do principal indicador adotado para observar a pobreza – a designada
estava a aumentar significativamente, a percentagem de indivíduos iden‑ taxa de risco de pobreza que corresponde à percentagem de indi‑
tificados em situação de pobreza praticamente não se alterou em 2010 víduos com rendimento equivalente inferior a 60 % do rendimento
e 2011 e registou apenas um pequeno aumento em 2012. A disponibi‑ mediano observado no país de residência –, originou desde logo a
lização pelo Eurostat e pelo INE dos resultados obtidos para um limiar seleção de outros indicadores primários complementares de obser‑
ancorado (indicador secundário adotado em Laeken), em 2009, evidencia vação da pobreza com base no rendimento: a taxa de risco persistente
claramente esta situação. da pobreza e a taxa de intensidade da pobreza. A taxa de risco persis‑
tente da pobreza corresponde à percentagem de indivíduos com
Finalmente, importa salientar que a grande heterogeneidade dos rendimento inferior ao limiar de pobreza no ano corrente e em dois
seres humanos, expressa em características individuais e em circuns‑ dos três anos precedentes e acomoda, de certa forma, o problema rela‑
tâncias externas, implica a existência de diferenças substanciais na tivo ao período de observação e à existência de flutuações anuais no
conversão do rendimento e recursos pessoais em realizações valori‑ rendimento obtido pelos indivíduos. A taxa de intensidade da pobreza
zadas, como, por exemplo, estar adequadamente nutrido e participar corresponde à diferença entre o valor mediano do rendimento dos
na vida da comunidade (Sen, 1992). Algumas destas características indi‑ indivíduos com rendimento inferior ao limiar e o valor dessa linha,
viduais diferenciadoras perduram no tempo, nomeadamente alguns expressa numa percentagem do valor desse limiar, acomodando,
problemas de saúde e, ao implicar despesas adicionais, levam a neces‑ de certa forma, o problema relativo à dicotomização da observação da
sidades superiores de rendimento para obter um determinado padrão pobreza ao ter em conta o quão distantes estão os rendimentos dos
de vida. As circunstâncias externas, nomeadamente as que se traduzem indivíduos em situação de pobreza da linha de pobreza assim calculada.
em diferenças no custo de vida entre diferentes localizações – por
exemplo o facto de os agregados enfrentarem preços diferentes e/ou O esforço de aperfeiçoamento da observação da pobreza associado ao
terem necessidades diferenciadas de acordo com a localização geográ‑ reconhecimento das insuficiências dos indicadores referidos, nomea‑
fica –, podem originar igualmente diferenças no rendimento necessário damente tendo em conta situações muito diferenciadas de rendimento
para obter um determinado padrão de vida. Nesse sentido, a não e condições de vida nos diferentes países, tem levado igualmente ao
desenvolvimento e à adoção de novos indicadores (pós‑Laeken), entre
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os quais se destacam o de privação material, adotado em 2009, o de do Protocolo entre o Instituto Nacional de Estatística, a Fundação
população em risco de pobreza ou exclusão social, taxa de privação para a Ciência e Tecnologia e a Direção‑Geral das Estatísticas da
material severa e intensidade laboral per capita muito reduzida, Educação e Ciência (DGEEC).
adotados em 2010, no contexto da Estratégia Europa 2020 e, mais
recentemente, o de privação material e social, adotado em 2017. O ICOR, realizado anualmente desde 2004 (com dados do ano anterior,
pelo que os primeiros são de 2003), é um inquérito desenhado para
É também no contexto das limitações do indicador selecionado para a obter a informação necessária com vista à elaboração de estatísticas
observação da pobreza, já referidas, que a designação adotada na União sobre o rendimento, as condições de vida e exclusão social na União
Europeia de «risco de pobreza» para a situação observada de rendimento Europeia, consubstanciadas numa base de dados estatística euro‑
inferior a 60 % do rendimento mediano pode ser justificada. Contudo, peia designada por «European Union Statistics on Income and Living
tendo em conta a distribuição dos rendimentos em Portugal e o valor do Conditions» (EU‑SILC). Este inquérito substitui o anterior Painel
limiar obtido com o critério utilizado, sobretudo quando confrontado Europeu de Agregados Domésticos Privados (PEADP, parte integrante
com os resultados do estudo sobre o rendimento adequado em Portugal do ECHP desenvolvido em todos os países comunitários), realizado
(Pereirinha et al., 2017), parece evidente que, pesem embora as eventuais anualmente entre 1994 e 2001.
distorções no perfil de pobreza, os indivíduos com rendimento inferior
ao limiar definido, salvaguardadas algumas situações mais excecionais, Trata‑se de um inquérito harmonizado ao nível europeu e conce‑
se encontram numa situação de pobreza. Ou seja, os procedimentos bido especificamente para possibilitar o cálculo dos indicadores
metodológicos, as opções prosseguidas e os critérios utilizados tenderão adotados para a monitorização do desempenho da União Europeia e
a pecar mais por defeito, não identificando indivíduos cujos recursos são dos respetivos Estados‑membros na promoção da inclusão social, com
efetivamente insuficientes para obter o padrão de vida aceite, e menos base em dados comparáveis entre os diferentes Estados‑membros.
por excesso. Nesse sentido, e no resto deste livro, deixaremos cair a Especificamente, esta operação estatística permite a realização de
expressão «risco de». análises transversais e longitudinais:
da composição e distribuição do rendimento das famílias e dos indi‑
1.2. Fontes de dados utilizadas neste víduos; das condições de vida (condições de habitação e conforto,
estudo – ICOR e IDEF capacidade financeira, etc.); do impacto das transferências sociais
Neste trabalho recorreremos aos microdados anonimizados de ao nível da pobreza e exclusão social; da ligação entre a pobreza e
um inquérito realizado pelo Instituto Nacional de Estatística – o exclusão social e a atividade económica, emprego, tipologia socio
Inquérito às Condições de Vida e Rendimento das Famílias de 2017 familiar, educação, saúde e habitação. (INE, março de 2016, p. 9)
(ICOR 2017), cedido para a realização do presente estudo ao abrigo
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O universo do ICOR 2017 corresponde ao conjunto dos agregados fami‑ INE desde 1967/1968 (tem assumido diferentes designações ao longo
liares e indivíduos residentes no período de referência em alojamentos do tempo, nomeadamente Inquérito às Receitas e Despesas Familiares,
familiares (não coletivos) no território nacional – Continente, Região Inquérito às Despesas Familiares e Inquérito aos Orçamentos Familiares).
Autónoma dos Açores e Região Autónoma da Madeira. Desde 2016, Nesta operação são recolhidos dados sobre consumo, despesas e
a base de amostragem deste inquérito é constituída por um ficheiro rendimento das famílias em Portugal, bem como as características demo‑
de alojamentos familiares de residência principal, designado Ficheiro gráficas, económicas, sociais e territoriais das unidades de observação
Nacional de Alojamentos. A seleção da amostra segue um esquema de (o agregado doméstico privado e os indivíduos).
amostragem estratificada e multietápica (para mais informações ver INE,
março de 2016). A partir de 2015, a amostra foi redimensionada para Especificamente, os objetivos estabelecidos para esta operação foram:
garantir representatividade regional ao nível de NUTS II4. 1. Determinar o volume e a estrutura da despesa das famílias, nomea‑
Para permitir a obtenção de informação longitudinal, além de trans‑ damente: a. Determinar a estrutura de consumo para cálculo dos
versal e, ao mesmo tempo, não sobrecarregar os respondentes, o modelo ponderadores do Índice de Preços no Consumidor, b. Fornecer
amostral assenta num esquema de rotação de quatro subamostras inde‑ informação sobre consumo final das famílias às Contas Nacionais
pendentes, com rotação de ¼ da amostra em cada ano, o que significa Portuguesas, c. Fornecer informação sobre quantidades consumidas
que cada agregado/indivíduo permanece na amostra durante um máximo de bens alimentares para a construção da Balança Alimentar e para o
de quatro anos consecutivos (INE, março de 2016). apuramento das quantidades alimentares desenvolvida pela Direção
Geral de Saúde e Consumidores (SANCO) da Comissão Europeia;
A recolha da informação do ICOR 2017 foi realizada no segundo 2. Avaliar as fontes e o valor do rendimento dos indivíduos, permi‑
trimestre de 2017 e o período de referência dos dados é, para a maioria tindo uma avaliação integrada dos rendimentos e despesas familiares
das variáveis, o do momento da entrevista/ano do inquérito; já para as com outros inquéritos realizados às famílias na vertente rendimentos,
variáveis relacionadas com o rendimento o período de referência corres‑ e a realização de estudos sobre as determinantes das decisões de
ponde ao do ano anterior ao da realização da entrevista. Em 2017, foram despesa assentes no binómio rendimento‑despesa; 3. Conhecer
inquiridos 12 091 ADP (entrevistas conseguidas e válidas). algumas das condições de habitabilidade, conforto e bens disponíveis
das famílias residentes em Portugal. (INE, janeiro de 2015, p. 7)
Existe uma outra fonte possível para a análise da pobreza em Portugal,
o Inquérito às Despesas das Famílias de 2015/2016 (IDEF 2015/2016), O universo do IDEF 2015/2016 corresponde ao conjunto dos agre‑
brevemente usado neste livro e uma possível alternativa ao ICOR. gados familiares e indivíduos residentes no período de referência
O IDEF corresponde a uma operação de recolha de dados sobre os orça‑ em alojamentos familiares (não coletivos) no território nacional –
mentos familiares com periodicidade quinquenal que é realizada pelo Continente, Região Autónoma dos Açores e Região Autónoma da
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Madeira. A base de amostragem deste inquérito é constituída por para a observação das condições de vida e da exclusão social, não reco‑
um ficheiro de alojamentos familiares de residência principal, desig‑ lher informação relevante para uma observação e caracterização mais
nado Ficheiro Nacional de Alojamentos (FNA), que foi construído em detalhada dos indivíduos em situação de pobreza.
2013 a partir dos dados do Recenseamento da População e Habitação
de 2011 (INE, 2015). A seleção da amostra segue um esquema de Os dados do ICOR, e também do IDEF, que agora se trabalham apre‑
amostragem estratificado por NUTS II e multietápico (para mais infor‑ sentam determinadas características que limitam e condicionam
mações ver INE, janeiro de 2015). decisivamente os resultados obtidos. Uma parte dessas limitações está
associada a questões concretas da definição dos conceitos realizada
A recolha da informação foi realizada no período compreendido entre pelo Eurostat, e adotadas pelos organismos nacionais de estatística
16 de março de 2015 e 13 de março de 2016, com as unidades de aloja‑ da União Europeia, como o INE. Estas limitações foram já abordadas.
mento a inquirir distribuídas de um modo uniforme pelas 26 quinzenas Contudo, existem outras que apresentam uma maior amplitude e que
(INE, 2017). O período de estudo do inquérito é o ano e o período não podem ser ignoradas. Referimo‑nos, em primeiro lugar, à ilusão de
de observação direta corresponde a uma quinzena. O período de conhecimento da realidade que nos é dada por apropriações erradas
referência dos dados varia com a variável observada: para as variá‑ das estatísticas oficiais. Estas são, em primeiro lugar, produzidas pelos
veis de caracterização do alojamento, do agregado e do indivíduo é o aparelhos estatísticos para fins políticos (e estatísticos) de gestão da
momento da entrevista, para as receitas monetárias líquidas do indi‑ Res Publica. Como tal, têm um alcance muito específico, dando‑nos
víduo é o ano fiscal de 2014, para as variáveis relativas à despesa/ ao uma imagem rápida e diacrónica de um conjunto de variáveis‑chave.
consumo varia entre a quinzena em curso, os 30 dias anteriores, os 90 De uma forma geral cumprem a função para que foram criadas; o
dias anteriores e os 365 dias anteriores, contabilizados tendo em conta problema, no que à pobreza respeita, reside na apropriação dos resul‑
o primeiro dia da quinzena da entrevista. Foram inquiridos, pelo INE, tados estatísticos de forma a que estes são tomados como sendo
11 398 ADP (entrevistas conseguidas e válidas), a que correspondem suficientes para a compreensão da realidade social, criando‑se assim a
15 665 alojamentos elegíveis e contactados, tendo atingido uma taxa ilusão de que, conhecendo‑se a taxa de pobreza (e um conjunto limi‑
de respostas específica de 73 % (INE, 2017). tado de indicadores associados), se conhece também o que é a pobreza
em Portugal. O uso errado da taxa de pobreza implica a redução de
Para a análise transversal que se pretende realizar neste trabalho, um processo social a um único número, condensando massivamente as
as duas principais vantagens do IDEF 2015/2016 na observação e no vidas e características de milhões de indivíduos.
estudo da pobreza, comparativamente ao ICOR, são a disponibilização
detalhada de informação sobre a despesa das famílias e, até 2016, a de Os investigadores usam os microdados do INE precisamente para ir
recorrer a uma amostra representativa a nível regional. A principal mais longe na análise, encontrar outros modelos estatísticos, conhecer
desvantagem reside no facto de, não sendo um instrumento concebido melhor a realidade e, dessa forma, produzir um manancial precioso
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de informação adicional sobre a pobreza. É isso que se faz neste livro, inovadores, como o segundo objetivo do projeto que subjaz a este
aliás, como em boa parte das pesquisas sobre pobreza em Portugal5. livro, e enunciamos brevemente as suas potencialidades. Consideramos
importante caracterizar, de seguida e de forma relativamente breve,
Contudo, mesmo este trabalho adicional não desfaz o perigo, muito as principais características e potencialidades destas técnicas.
concreto, da ilusão do conhecimento. Os dados estatísticos conti‑
nuam a ser obtidos para fins estatísticos, e mesmo que interrogados A Análise de Correspondências Múltiplas (ACM) é adequada à abor‑
com todo o arsenal de teorias, métodos e técnicas ao dispor dos inves‑ dagem simultânea de múltiplos indicadores e ao tratamento de
tigadores não podem fornecer mais informações do que aquelas que variáveis qualitativas (como é o caso de boa parte das variáveis do
contêm, como já afirmámos. Para conseguirmos ir mais além, temos ICOR) e visa o estudo das associações entre as categorias dessas variá‑
que desafiar as limitações inscritas na própria forma como os dados veis que caracterizam um conjunto de indivíduos (Benzécri, 1992;
são construídos e se revelam inultrapassáveis, independentemente Greenacre e Blasius, 2006).
da sofisticação e da profundidade como são interrogados pelos cien‑
tistas sociais. A única resposta é produzir outros dados, de natureza A Análise de Correspondências teve a sua origem teórica na primeira
qualitativa. Só assim conseguimos uma compreensão aprofundada das metade do século xx, com o trabalho de Hirschfeld (1935); mas foi
populações, das suas características, dos problemas e potencialidades, o matemático e linguista francês Jean‑Paul Benzécri que deu um
bem como das suas perceções subjetivas acerca dos fenómenos sociais impulso realmente significativo às aplicações modernas da Análise
que se condensam nas estatísticas. de Correspondências, a partir da década de 60 do século passado,
com estudos realizados na Universidade de Rennes e, posterior‑
Isto sem se cair na armadilha do particularismo; esta faz com que nos mente, na Universidade de Paris. Anos mais tarde, o holandês Jan
centremos nas especificidades dos indivíduos e dessa forma percamos de Leeuw e o japonês Chikio Hayashi também fizeram importantes
de vista as regularidades sociais que pesam e presidem sobre as suas contribuições para o desenvolvimento teórico e prático da Análise
vidas, em particular entre os pobres, dado que a escassez de recursos de Correspondências. Em 1984, Greenacre publica uma importante
de todo o tipo que os afeta e os torna especialmente vulneráveis aos obra (Theory and Applications of Correspondence Analysis), que acaba por
constrangimentos sociais, reduzindo a sua margem de manobra para contribuir para uma ampla difusão das técnicas de análise de corres‑
pensar e agir de forma autónoma. pondência em diversas partes do mundo.
A Análise das Correspondências Múltiplas (ACM) é uma técnica multi‑
1.3. Principais técnicas estatísticas usadas
variada que possibilita a investigação da existência de associação entre
Já identificamos a utilização de técnicas estatísticas pouco usadas na mais de duas variáveis categóricas. Envolve uma quantificação (entre
análise da pobreza em Portugal, esperando assim obter resultados zero e um) para cada uma das variáveis em cada dimensão, designada
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por medida de discriminação. Quanto mais próximos de um forem De entre os métodos não hierárquicos, o procedimento k‑means é o
os valores das medidas de discriminação, mais as variáveis correspon‑ mais utilizado por investigadores nas mais diversas áreas do conheci‑
dentes discriminam os objetos numa determinada dimensão (e.g., mento. Dado que o número de clusters é definido preliminarmente pelo
Benzécri, 1992; Carvalho, 2004). A importância de cada uma das dimen‑ investigador, esse procedimento pode ser elaborado após a aplicação
sões para explicar a variância dos dados originais pode ser analisada de uma Análise Classificatória Hierárquica com recurso a métodos
através dos valores próprios e da inércia. O valor próprio (contribuição aglomerativos quando não se tem ideia do número de clusters que
absoluta) de uma dimensão quantifica a variância explicada por essa se podem formar. Em alternativa, podem utilizar‑se as componentes
dimensão. É usual utilizar‑se a escolha das dimensões cujos valores resultantes de uma Análise de Correspondências Múltiplas, fazendo‑se
próprios sejam superiores a um, sendo de salientar que as dimensões a respetiva articulação com a Análise Classificatória Não Hierárquica.
mais relevantes são aquelas que apresentam os valores próprios mais
elevados (Carvalho, 2004). A inércia (contribuição relativa) de uma Os métodos não hierárquicos produzem uma partição de n elementos
dimensão é obtida dividindo a contribuição absoluta pelo número de a classificar em k clusters, geralmente otimizando uma função‑objetivo
variáveis ativas e varia entre zero e um, sendo de referir que quanto e com as restrições de que cada cluster contenha pelo menos um
mais próximo de um for o seu valor, maior será a quantidade de objeto e cada objeto pertença a um só cluster. O método das k‑médias
variância explicada por dimensão (e.g., Greenacre e Blasius, 2006). (k‑means) divide o conjunto de dados em k clusters, sendo k um parâ‑
metro de entrada do algoritmo, mediante uma técnica de realocação
A ACM pode ser representada num gráfico, designado por mapa perce‑ iterativa que procura um ótimo local (MacQueen, 1967). As principais
tual, a partir do qual se podem interpretar as similaridades e diferenças vantagens dos métodos não hierárquicos em relação aos hierárquicos
de comportamento entre variáveis e entre categorias. Os gráficos são a possibilidade de um elemento poder mudar de cluster no decurso
produzidos são interpretáveis com base nas contribuições de cada da aplicação do algoritmo (Aldenderfer e Blashfield, 1984) e a possibi‑
categoria para os eixos (dimensões) e nas proximidades e oposi‑ lidade de operarem com bases de dados de maiores dimensões e serem
ções entre as projeções das categorias nos eixos, permitindo avaliar mais rápidos, por não requererem a atualização e o armazenamento
visualmente se as variáveis de interesse se afastam do pressuposto de da matriz de proximidades. Por outro lado, as suas principais desvan‑
independência e sugerindo possíveis associações (e.g., Benzécri, 1992; tagens são a necessidade da escolha a priori do número de clusters e
Greenacre e Blasius, 2006). a sensibilidade às condições iniciais, podendo ser obtidos resultados
diferentes a cada iteração.
Articular a ACM com uma Análise Classificatória não hierárquica ajudará
a conhecer de forma mais pormenorizada os grupos (perfis) que poderão O segundo método por nós aplicado respeita aos modelos de
ser encontrados com base nas dimensões consideradas na ACM. regressão Probit. Estes podem ser utilizados como alternativa aos
modelos de regressão logística binária, para os casos em que a curva
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de probabilidades de ocorrência de determinado evento se ajusta mais logaritmo da função de verossimilhança; modelo com maior pseudo R²
adequadamente à função densidade de probabilidade acumulada da de McFadden; modelo com mais alto nível de significância no teste de
distribuição normal padrão. Hosmer‑Lemeshow (menor estatística χ2 deste teste); e modelo com
maior área abaixo da curva ROC.
A ideia da regressão Probit foi inicialmente concebida por Bliss (1934a;
1934b), mas só duas décadas depois Finney (1952), apoiando‑se nas No presente trabalho, para a avaliação global do modelo com recurso
ideias e nos experimentos de Bliss, apresentou novos desenvolvi‑ à regressão Probit foi utilizado o teste da razão de verossimilhanças
mentos da técnica, num livro intitulado Probit Analysis. Nos modelos (LR, Likelihood Ratio), com o intuito de avaliar a significância dos coefi‑
de regressão Probit, a variável dependente segue uma distribuição cientes estimados simultaneamente, de modo a avaliar se o modelo é
de Bernoulli e, portanto, a expressão da função‑objetivo (logaritmo globalmente significativo. Para avaliar a significância de cada uma das
da função de verossimilhança) que tem por intuito estimar os parâ‑ variáveis independentes separadamente no modelo foi usado o teste de
metros α, β1, β2, …, βk de determinado modelo de regressão Probit Wald, o qual nos permite verificar se cada uma das variáveis indepen‑
é exatamente a mesma que para um modelo de regressão logística dentes está ou não significativamente associada à variável dependente.
binária. O que varia entre os modelos de regressão logística binária e os
modelos de regressão Probit é a expressão das probabilidades de ocor‑
rência do evento de interesse pi.
Já que na regressão Probit a expressão das probabilidades de ocor‑
rência do evento de interesse, que apresenta distribuição normal
padrão acumulada, pode expressar‑se por
pi = Ф(Zi) = Ф(α + β1 . X1i + β2 . X2i + … + βk . Xki ,
em que F representa a própria função densidade de probabilidade
acumulada da distribuição normal padrão.
A opção pela escolha do modelo Probit, em detrimento do modelo
Logit dá‑se, como refere Finney (1952), pela aderência da curva de
probabilidades de ocorrência do evento de interesse à distribuição
normal padrão acumulada. Na prática, a decisão pode ser tomada
com base em quatro critérios: modelo com o mais alto valor do
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Capítulo 2
Evolução dos principais
indicadores de pobreza
2.1. Evolução dos principais indicadores (2003‑2016)
2.1.1. Evolução da taxa de pobreza e da intensidade da pobreza
Na janela temporal de análise, a taxa de pobreza e a taxa de intensi‑ A trajetória destes indicadores não é, contudo, linear ao longo destes
dade da pobreza alteraram‑se em sentidos diferentes, se atentarmos 14 anos de observação (Quadro 1). No caso da taxa de pobreza,
no primeiro e último anos (Quadro 1). A taxa de pobreza observada verifica‑se uma tendência de diminuição entre 2003 e 2008, uma esta‑
em 2016 era inferior em 2,1 pontos percentuais à observada em 2003. bilização entre 2008 e 2011, um aumento entre 2011 e 20137 e uma
Já a taxa de intensidade da pobreza observada em 2016 era superior em diminuição posterior entre 2014 e 2016, com regresso aos níveis
2,3 pontos percentuais à observada em 2003. Nesse sentido, regista‑se pré‑crise. Já no caso da taxa de intensidade da pobreza, a interpretação
uma diminuição da percentagem de indivíduos em situação de pobreza é dificultada pelas frequentes oscilações anuais e os erros padrão rela‑
e, ao mesmo tempo, os dados sugerem um aumento da distância, tivos dos valores observados8. Ainda assim, vistos globalmente, os dados
em termos medianos, do rendimento dos indivíduos em situação de sugerem uma diminuição desta taxa entre 2003 e 2009, uma tendência
pobreza em relação ao valor do limiar de pobreza6. de aumento entre 2009 e 2013, com especial incidência entre 2011 e
2013, e uma diminuição posterior, com especial incidência em 2015.
Quadro 1 Taxa de pobreza e da intensidade da pobreza (%)
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Taxa de pobreza 20,4 19,4 18,5 18,1 18,5 17,9 17,9 18 17,9 18,7 19,5 19,5 19 18,3
Taxa de intensidade da pobreza 24,7 26,0 23,5 24,3 23,2 23,6 22,7 23,2 24,1 27,4 30,3 29,0 26,7 27,0
Limiar de Pobreza (em euros) 4149 4317 4386 4544 4886 4969 5207 5046 4994 4906 4937 5061 5269 5443
Fonte: Eurostat, novembro 2018 [ilc_li02; Ilc_li11; ilc_li01].
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2.1.2. Evolução da taxa de pobreza por escalões etários e sexo Os dados apresentados no Quadro 2 ilustram igualmente uma impor‑
tante alteração entre 2003 e 2016 nos subgrupos etários com maior
A decomposição da evolução da taxa de pobreza por escalões etários
risco de pobreza. De facto, se em 2003 as taxas de pobreza mais
e sexo (Quadro 2) revela algumas regularidades. Em primeiro lugar,
elevadas estavam associadas aos indivíduos com 65 anos ou mais,
quando se considera o total da população e os grupos etários com 18
em 2016 eram os indivíduos com menos de 18 anos que registavam
anos ou mais, a taxa de pobreza observada nas mulheres é, com duas
taxas de pobreza superiores. A alteração observada traduz aliás uma
exceções localizadas, sempre superior à taxa de pobreza observada nos
inversão no posicionamento dos indivíduos com idade equivalente
homens. Não obstante, existem razões para se pensar que a pobreza no
ou superior a 65 anos, que passaram de grupo etário com taxa mais
feminino se encontra subestimada, como já se referiu e mais à frente se
elevada de pobreza associada, entre 2003 e 2006, a grupo etário com
detalhará. É, contudo, no grupo dos 65 anos ou mais e a partir de 2006
taxa inferior de pobreza associada, entre 2012 e 2014 e em 2016.
que encontramos maiores diferenças (eventualmente significativas).
O grupo etário com taxas de pobreza mais elevadas passa a ser,
a partir de 2007 e até 2016, o dos indivíduos com menos de 18 anos.
Quadro 2 Taxa de pobreza por escalões etários e por sexo (%)
Olhando para a evolução da taxa de pobreza por escalões etários e
Idade Sexo 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 utilizando um número índice (Quadro 3), verifica‑se, se considerarmos
Total Masc. 19,2 18,7 17,7 17,2 17,9 17,3 17,3 17,6 17,5 18,8 18,9 18,8 18,2 17,8 o primeiro e último anos da janela temporal, uma diminuição de magni‑
Fem. 21,6 20,1 19,1 19,0 19,1 18,4 18,4 18,4 18,2 18,7 20,0 20,1 19,6 18,7 tude elevada na taxa de pobreza dos indivíduos com 65 ou anos mais,
Menos Total 24,6 23,7 20,8 20,9 22,8 22,9 22,4 22,4 21,8 24,4 25,6 24,8 22,4 20,7 uma diminuição de magnitude mais reduzida na taxa de pobreza dos
de 18 anos
Masc. 22,7 23,1 21,4 21,6 25,4 23,6 24,9 23,8 22,4 24,6 25,2 23,9 21,2 20,6 indivíduos com menos de 18 anos e um aumento de pequena magni‑
Fem. 26,6 24,4 20,1 20,3 20,0 22,2 19,8 20,9 21,1 24,3 26,1 25,8 23,7 20,7 tude na taxa de pobreza dos indivíduos entre os 18 e os 64 anos.
Dos 18 Total 17,0 15,9 15,7 15,2 16,3 15,8 15,7 16,2 16,9 18,4 19,1 18,8 18,2 18,1
aos 64 anos
Masc. 16,0 15,3 14,8 14,4 15,4 15,2 15,0 15,7 16,4 18,5 18,7 18,6 18,0 17,8
Fem. 17,9 16,5 16,6 16,1 17,1 16,3 16,4 16,7 17,4 18,3 19,5 18,9 18,4 18,4
65 ou Total 28,9 27,6 26,1 25,5 22,3 20,1 21,0 20,0 17,4 14,6 15,1 17,0 18,3 17,0
mais anos
Masc. 28,7 27,5 25,8 23,6 19,2 17,7 17,5 18,0 16,1 13,7 12,6 14,2 16,0 15,2
Fem. 29,1 27,8 26,4 26,9 24,5 21,8 23,5 21,4 18,4 15,2 16,9 19,0 19,9 18,3
Fonte: Eurostat, novembro 2018 [ilc_li02].
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Quadro 3 Evolução da taxa de pobreza por escalões etários (número índice) 2.1.3. Evolução da taxa de pobreza ancorada em 2005
Idade 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 Para observar a evolução da taxa de pobreza (Quadro 1), o limiar utili‑
Total 100,0 95,1 90,7 88,7 90,7 87,7 87,7 88,2 87,7 91,7 95,6 95,6 93,1 89,7 zado com o objetivo de identificar os indivíduos em situação de pobreza
Menos de 18 anos 100,0 96,3 84,6 85,0 92,7 93,1 91,1 91,1 88,6 99,2 104,1 100,8 91,1 84,1 varia anualmente, com o valor do rendimento equivalente mediano. Isto
Dos 18 aos 64 anos 100,0 93,5 92,4 89,4 95,9 92,9 92,4 95,3 99,4 108,2 112,4 110,6 107,1 106,5 significa que, mesmo sem alterações no rendimento real auferido, os indi‑
65 ou mais anos 100,0 95,5 90,3 88,2 77,2 69,6 72,7 69,2 60,2 50,5 52,2 58,8 63,3 58,8 víduos podem passar a ser ou deixar de ser classificados como estando
Fonte: Eurostat, novembro 2018 [ilc_li02]. Cálculos dos autores.
em situação de pobreza por efeito da alteração no valor do limiar.
A trajetória desta taxa por grupo etário não é, também, linear ao longo Nesse sentido, importa observar a evolução da taxa de pobreza para
destes 14 anos de observação (Quadro 3). No caso dos indivíduos com um limiar ancorado, neste caso utilizando o limiar observado no ICOR
65 anos ou mais, regista‑se uma tendência de diminuição da taxa de de 2005, apenas ajustado para o valor da inflação (Quadro 4).
pobreza entre 2003 e 2012, quando atinge o valor mais baixo da janela
temporal (50,5 % do valor observado em 2003), e um aumento entre
Quadro 4 Taxa de pobreza usando um limiar ancorado – ICOR 2005 (%)
2012 e 2015, quando atinge um valor de 63,3 % do seu valor inicial.
Nos indivíduos entre os 18 e os 64 anos, depois de uma oscilação no 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
período inicial até 2009, e tendo‑se registado em 2006 o seu valor mais Taxa de pobreza 19,2 18,2 17,0 15,0 14,1 15,8 18,0 19,5 20,4 19,3 17,4 16,5
baixo, verifica‑se uma trajetória ascendente da taxa de pobreza entre
Fonte: Eurostat, novembro 2018 [ilc_li22].
2009 e 2013, seguida de uma diminuição entre 2013 e 2016, que coloca
ainda assim a taxa neste grupo acima dos valores pré‑crise. Nos indi‑ A trajetória deste indicador é bastante clara: entre 2005 e 2009
víduos com menos de 18 anos, a trajetória até 2009 é relativamente verifica‑se uma diminuição desta taxa, traduzindo uma melhoria
semelhante à dos indivíduos entre os 18 e os 64 anos; contudo, a traje‑ no rendimento real da população com rendimentos relativamente
tória ascendente inicia‑se apenas em 2011, com um aumento na taxa baixos (os pobres). Entre 2009 e 2013 verifica‑se que a taxa aumenta,
de pobreza até 2013, e uma redução substancial entre 2013 e 2016, o que traduz uma redução no rendimento real da população com
ano em que atinge o valor mais baixo na janela temporal, próximo dos rendimentos relativamente baixos. Finalmente, entre 2013 e 2016
valores observados em 2005/2006. observa‑se uma diminuição da taxa, associado a uma recuperação do
rendimento real desta parte da população portuguesa. Em 2016 a taxa
assume, ainda assim, um valor superior aos níveis pré‑crise (compare‑se
com o ano de 2008).
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2.1.4. Sensibilidade da taxa de pobreza face Regista‑se também que, para os limiares mais baixos, em particular no
a diferentes limiares de pobreza caso do limiar de 40 % do rendimento equivalente mediano, as taxas
observadas em 2016 estão muito próximas das observadas em 2003.
Tendo em conta a arbitrariedade da escolha de um determinado limiar
relativo para observar a pobreza, importa conhecer os valores da taxa Importa também perceber as implicações da utilização de um limiar de
de pobreza perante limiares relativos alternativos, nomeadamente a pobreza diferente para o perfil da pobreza e a sua evolução na janela
40 %, 50 % e 70 % do rendimento mediano (Quadro 5), para posterior temporal de observação, nomeadamente por grupos etários (Quadro 6).
comparação com o limiar oficial de 60 %.
Quadro 6 Taxas de pobreza para diferentes limiares de pobreza
Quadro 5 Taxas de pobreza para diferentes limiares do rendimento equivalente mediano por grupo etário (%)
de pobreza do rendimento equivalente mediano (%)
Limiar
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
Limiar 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 Idade
40% 7,3 6,9 6,5 6,3 5,7 6,4 6,3 5,5 6,5 8,1 8,6 8,5 7,3 7,5 Menos 40% 9,4 8,8 7,9 7,6 8,4 9,6 9,1 7,7 9,1 12,1 12,3 11,6 9,1 9,4
50% 13,2 12,5 11,2 11,5 11,9 10,8 11,3 11,1 11,4 12,6 13,8 13,8 13,0 12,3 de 18
70% 32,0 30,9 27,5 28,0 32,2 31,1 30,3 30,2 29,5 31,6 31,9 30,8 29,5 26,5
anos
60% 20,4 19,4 18,5 18,1 18,5 17,9 17,9 18,0 17,9 18,7 19,5 19,5 19,0 18,3
Dos 18 40% 6,9 6,4 6,1 5,9 5,2 5,9 6,1 5,7 7,0 8,7 9,2 9,2 7,8 8,3
70% 28,2 27,1 25,8 25,6 27,2 25,6 26,0 25,6 24,9 25,5 27,1 27,0 26,4 25,4 aos 64
70% 23,3 22,4 21,8 21,6 23,2 21,7 22,3 22,8 23,3 24,3 25,6 25,7 24,6 24,0
anos
Fonte: Eurostat, novembro 2018 [ilc_li02].
65 ou 40% 6,5 6,6 6,2 6,3 4,6 4,6 4,3 2,8 2,7 2,4 3,3 3,9 4,2 3,7
mais
70% 42,6 40,4 39,0 38,0 36,5 33,7 34,8 30,4 26,0 23,8 27,7 27,7 29,0 28,6
Apesar de as trajetórias das diferentes taxas revelarem um pano‑ anos
rama semelhante em termos de períodos de diminuição e aumento da
Fonte: Eurostat, novembro 2018 [ilc_li02].
pobreza entre 2003 e 2016, a utilização de limiares inferiores (de 40 %
e 50 % do rendimento mediano, em particular o primeiro) denotaria Efetivamente, como se pode observar, a utilização dos limiares
um agravamento relativo superior na pobreza entre 2010 e 2013. Este extremos de 40 % e 70 % revelam panoramas diferentes no que se
resultado revela uma deterioração do rendimento dos indivíduos em refere à taxa de pobreza por grupos etários, ao longo dos 14 anos de
situação de pobreza, já assinalada pelo aumento da taxa de intensidade observação. Desde logo, o grupo etário com maior incidência de rendi‑
da pobreza nestes anos. mento inferior a 40 % do rendimento mediano é sempre, ao longo de
toda a janela temporal de observação, o dos menores de 18 anos, assu‑
mindo em 2016 o mesmo valor que assumia em 2003. Por outro lado,
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entre 2003 e 2006, a incidência de indivíduos com rendimento infe‑ relativas a pensões, quer pelo facto de o valor de referência do
rior a 40 % do rendimento mediano era muito semelhante nos grupos Complemento Solidário para Idosos se situar próximo do limiar de 60 %
etários com 18 ou mais anos e, logo a partir de 2007, o grupo etário do rendimento equivalente mediano.
com menor incidência de rendimento inferior a 40 % do rendimento
mediano passou a ser o dos indivíduos com 65 anos ou mais. Já o limiar 2.1.5. Evolução da taxa de pobreza
de 70 % revela um panorama mais semelhante ao do limiar de 60 %, antes de transferências sociais
assinalando‑se, contudo, duas diferenças. Por um lado, verifica‑se uma
É importante ainda observar o efeito que as transferências sociais têm
inversão mais tardia (em 2011) de posicionamento entre os indivíduos
sobre o rendimento disponível dos indivíduos e, por essa via, na taxa
com 65 anos ou mais e os indivíduos com idade inferior a 18 anos. Por
de pobreza (após transferências sociais). Os dados apresentados no
outro lado verifica‑se, ao longo de toda a janela temporal, incluindo os
Quadro 7 ilustram a importância quer das pensões de velhice e de
anos mais recentes – com uma única exceção – uma menor incidência
sobrevivência, quer das outras transferências sociais no rendimento
de indivíduos com rendimento inferior a 70 % do rendimento mediano
disponível dos indivíduos com rendimentos relativamente mais baixos,
no escalão etário dos 18 aos 64 anos.
embora as primeiras tenham uma importância maior, traduzida numa
Assinala‑se, igualmente, que o grupo etário onde se regista maior redução muito substancial na taxa de pobreza observada.
dispersão na incidência para os limiares relativos extremos, quer do
ponto de vista absoluto quer do ponto de vista relativo, é o dos indiví‑
Quadro 7 Taxas de pobreza antes de e após transferências sociais (%)9
duos com 65 anos ou mais. Ou seja, existe uma maior concentração de
indivíduos nesta faixa etária com rendimento entre os limiares de 40 % e
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
70 %. Nesse sentido, este grupo etário está mais protegido de situações
de rendimentos muito baixos (abaixo de 40 % do rendimento equi‑ Antes de qualquer 41,3 40,8 40,2 40,0 41,5 41,5 43,4 42,5 45,4 46,9 47,8 47,5 46,1 45,2
transferência
valente mediano), o que poderá explicar‑se pela existência de apoios social (1)
sociais específicos para os indivíduos desta faixa etária com rendimentos Após 26,5 25,7 25,1 24,2 24,9 24,3 26,4 25,4 25,3 25,5 26,7 26,4 25,0 23,6
transferências
baixos ou sem outros rendimentos, como é o caso das pensões sociais relativas a pensões
e do Complemento Solidário para Idosos (CSI), e pelos valores de refe‑ (2)
rência dos mesmos. Por outro lado, existe uma maior concentração de Após 20,4 19,4 18,5 18,1 18,5 17,9 17,9 18,0 17,9 18,7 19,5 19,5 19,0 18,3
transferências
indivíduos nesta faixa etária com rendimento entre os limiares de 50 % e sociais (3)
70 %, que pode explicar‑se quer por valores de rendimento auferido rela‑
Fonte: Eurostat, novembro 2018 [ilc_li02; ilc_li09; ilc_li10].
tivamente baixos, cuja origem é predominantemente a de transferências
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É no período entre 2011 e 2014 que se observa uma maior diferença Já a diferença entre a taxa de pobreza após transferências sociais e a
(igual ou superior a 27,5 pontos percentuais) entre a taxa de pobreza taxa de pobreza após transferências relativas a pensões atingiu um
antes de qualquer transferência social e a taxa de pobreza após trans‑ máximo em 2009, correspondendo a 8,5 pontos percentuais.
ferências sociais (Quadro 8). Esta maior diferença traduz um efeito
relativamente protetor e estabilizador das pensões de velhice e de 2.1.6. Evolução da taxa de pobreza persistente
sobrevivência face à redução observada do rendimento do trabalho e
A taxa de pobreza persistente permite conhecer a incidência de indiví‑
de outros rendimentos privados dos indivíduos com rendimentos rela‑
duos em situação de pobreza num determinado ano que se encontravam
tivamente baixos, que se manifesta num aumento da taxa de pobreza
igualmente nessa situação em pelo menos dois dos três anos anteriores,
antes de qualquer transferência social nesse período. A diferença
o que traduz uma persistência na situação de pobreza (Quadro 9).
entre a taxa de pobreza após transferências relativas a pensões e a
taxa de pobreza antes de qualquer transferência social manteve‑se,
aliás, relativamente estável entre 2012 e 2016 (entre 21,1 e 21,6 pontos Quadro 9 Taxa de pobreza persistente (%)
percentuais de redução).
2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Total 14,1 13,1 9,8 13,2 13,6 11,4 11,7 12,0 13,6 11,5 14,2
Quadro 8 Diferença (em pontos percentuais) entre as taxas
Fonte: Eurostat, novembro 2018 [ilc_li21].
de pobreza antes de e após transferências sociais10
Ao longo da janela de observação, verificam‑se taxas relativamente
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
elevadas de pobreza persistente. O valor mínimo observou‑se em 2008
Diferença ‑14,8 ‑15,1 ‑15,1 ‑15,8 ‑16,6 ‑17,2 ‑17,0 ‑17,1 ‑20,1 ‑21,4 ‑21,1 ‑21,1 ‑21,1 ‑21,6 e o valor máximo em 2016, equivalente ao valor observado em 2006.
entre (2)
e (1) Em 2006 e em 2016, a proporção de indivíduos em situação de pobreza
Diferença ‑6,1 ‑6,3 ‑6,6 ‑6,1 ‑6,4 ‑6,4 ‑8,5 ‑7,4 ‑7,4 ‑6,8 ‑7,2 ‑6,9 ‑6,0 ‑5,3 persistente no total de indivíduos em situação de pobreza corres‑
entre (3)
pondia a 78 %; em 2008 essa proporção era de 55 %11.
e (2)
Diferença ‑20,9 ‑21,4 ‑21,7 ‑21,9 ‑23,0 ‑23,6 ‑25,5 ‑24,5 ‑27,5 ‑28,2 ‑28,3 ‑28,0 ‑27,1 ‑26,9
entre (3) 2.1.7. Evolução da taxa de pobreza do rendimento
e (1)
monetário e não monetário (2005‑2009‑2014)
Fonte: Eurostat, novembro 2018 [ilc_li02; ilc_li09; ilc_li10]. Cálculo dos autores.
Como anteriormente referido, o cálculo do indicador oficial taxa de
pobreza, realizado com base nos dados do ICOR, baseia‑se na variável
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rendimento monetário líquido, excluindo assim o rendimento não social. A análise da pobreza pode e deve ser então aprofundada
monetário, que em Portugal tem um peso relevante no conjunto investigando‑se a sua dimensão material, ou seja, o modo como os indi‑
do rendimento observado. Importa por isso recorrer aos dados dos víduos são afetados pela sua incapacidade de atingir certos padrões
Inquéritos às Despesas das Famílias (IDEF, 2005‑2006; 2010‑2011 básicos de vida e consumo.
e 2015‑1016), para conhecer a taxa de pobreza que seria observada se
a variável utilizada fosse o rendimento total. Nesse sentido, no quadro da UE considera‑se um conjunto de nove
itens (nove dificuldades) para medir o nível de privação material:
Como se pode verificar no Quadro 10, a taxa de pobreza observada
para o rendimento total é sempre inferior à taxa de pobreza observada 1. sem capacidade para assegurar o pagamento imediato de uma
para o rendimento monetário (entre 2,5 e 3,2 pontos percentuais mais despesa inesperada próxima do valor mensal da linha de pobreza
baixa). Nesse sentido, as componentes de rendimento não monetário (sem recorrer a empréstimo);
têm um efeito atenuador da taxa de pobreza. 2. sem capacidade para pagar uma semana de férias, por ano, fora de
casa, suportando a despesa de alojamento e viagem para todos os
membros do agregado;
Quadro 10 Taxa de pobreza do rendimento monetário 3. atraso, motivado por dificuldades económicas, em algum dos paga‑
e não monetário, com base nos dados do IDEF (%) mentos regulares relativos a rendas, prestações de crédito ou
despesas correntes da residência principal, ou outras despesas não
2005 2009 2014
relacionadas com a residência principal;
Taxa de pobreza (rendimento monetário) 19* 17,3 19,1
4. sem capacidade financeira para ter uma refeição de carne ou de peixe
Taxa de pobreza (rendimento total) 16,4 14,8 15,9
(ou equivalente vegetariano), pelo menos de dois em dois dias;
* Em 2005, nas fontes consultadas, o valor disponibiliza‑se arredondado à unidade. 5. sem capacidade financeira para manter a casa adequadamente aquecida;
Fonte: INE, 2008; INE, 2012; INE, 2017.
6. sem disponibilidade de máquina de lavar a roupa por dificuldades
económicas;
2.1.8. Evolução da privação material severa
7. sem disponibilidade de televisão a cores por dificuldades económicas;
Analisada a evolução dos principais indicadores de pobreza monetária, 8. sem disponibilidade de telefone fixo ou telemóvel, por dificuldades
podemos alargar o campo de análise das condições de vida das famí‑ económicas;
lias através da adoção de uma análise multidimensional que tenha em 9. sem disponibilidade de automóvel (ligeiro de passageiros ou misto)
conta não somente a escassez de recursos monetários, mas também em por dificuldades económicas.
que medida as famílias e os indivíduos têm acesso aos recursos neces‑
sários para desfrutar de um padrão mínimo de vida e de participação
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Um indivíduo ou agregado familiar encontra‑se em situação de 2.1.9. Evolução da intensidade laboral muito reduzida
privação material se tiver carência de pelo menos (quaisquer) três dos
Uma terceira dimensão da exclusão social considerada pelo sistema
nove itens referidos e em situação de privação material severa se esse
estatístico europeu tem a ver com a não participação no mercado de
número for de quatro ou mais. A taxa de privação material é então
trabalho dos indivíduos em idade ativa. Considera‑se que um agregado
definida como a proporção da população que carece de, pelo menos,
familiar se encontra numa situação de intensidade laboral per capita
três dos itens e a taxa de privação material severa como a proporção
muito reduzida quando os indivíduos adultos (entre os 18 e os 59
dos que carecem de, pelo menos, quatro dos nove itens.
anos, mas excluindo os estudantes) que constituem o agregado fami‑
A privação material pode assim ser considerada como uma segunda liar trabalham em média menos de 20 % do tempo total de trabalho
dimensão dos níveis de precariedade e de exclusão social, que deve possível. Mais do que um indicador do desemprego, este índice mede
ser analisada conjuntamente com os indicadores de pobreza mone‑ o alheamento, ou não inserção, do agregado no mercado laboral.
tária (primeira dimensão), de forma a termos uma imagem mais fina das
Como se pode observar no Quadro 12, este índice evidenciou clara‑
condições de vida das famílias.
mente um agravamento da proporção de indivíduos que vivem em
O Quadro 11 ilustra a evolução destes dois indicadores ao longo do famílias com baixa intensidade laboral no período 2008‑2013, acompa‑
período 2004‑2017. Ambos os indicadores revelam um comporta‑ nhando o acréscimo da taxa de desemprego ocorrida nesse período.
mento semelhante. Um ligeiro desagravamento até ao ano de 2012,
mais relevante relativamente ao indicador de privação material severa,
Quadro 12 Indivíduos com menos de 60 anos vivendo
uma reversão dessa tendência decrescente no período de maior agrava‑
em famílias com baixa intensidade laboral (%)
mento socioeconómico resultante da crise em 2012/2013 e o retomar
da diminuição desses indicadores após 2014.
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
6,9 6,0 6,6 7,2 6,3 7,0 8,6 8,3 10,1 12,2 12,2 10,9 9,1 8,0
Quadro 11 Indicadores de Privação Material (%)
Fonte: Eurostat, EU‑SILC 2004‑2017.
2004
2005
2006
2007
2008
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2013
2014
2015
2016
2017
2.1.10. Evolução da exclusão social
Privação Material 21,7 21,2 19,9 22,4 23,0 21,5 22,5 20,9 21,8 25,5 25,7 21,6 19,5 18,3
Privação Material Severa 9,9 9,3 9,1 9,6 9,7 9,1 9,0 8,3 8,6 10,9 10,6 9,6 8,4 6,9 O último indicador cuja evolução aqui analisaremos é o da taxa de
Fonte: Eurostat, EU‑SILC 2004‑2017.
pobreza ou de exclusão social definida como a proporção da população
que se encontra em pelo menos uma das três situações: pobreza, vivendo
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em agregados com intensidade laboral per capita muito reduzida, ou em O comportamento deste indicador ao longo do período 2004‑2017
privação material severa. Este é um indicador síntese que reúne a encontra‑se representado no Quadro 13. A sua evolução é muito seme‑
pobreza monetária, a privação material e a fraca ligação ao mercado de lhante à registada para os diferentes indicadores que o compõem,
trabalho e que reforça o carácter multidimensional da exclusão social. em particular à evolução da taxa de pobreza. Após um período de
redução sustentada entre 2004 e 2009 (diminuição de 2,5 pontos percen‑
Este indicador adquiriu uma importância acrescida após a aprovação tuais), verificou‑se um agravamento no período 2010‑2014 que anulou
da «Estratégia Europa 2020» pelo Conselho Europeu de junho de 2010, todos os ganhos obtidos no período anterior, voltando esta taxa a
onde é inscrita como o indicador chave para medir o principal objetivo fixar‑se nos 27,5 %, valor idêntico ao ocorrido em 2004. Após 2015, este
social desta estratégia: a redução, em 20 milhões, do número de cida‑ indicador voltou a registar um decréscimo, alcançando em 2017 o valor
dãos europeus em situação de risco de pobreza e de exclusão social. mais baixo desde o início da presente série estatística (23,3 %).
Apesar da evolução conceptual implícita na passagem de um indicador
baseado exclusivamente na distribuição dos rendimentos, como a taxa 2.2. As diferentes dimensões da pobreza (2016‑2017)
de pobreza, para um indicador multidimensional, a taxa de risco de 2.2.1. As diferentes dimensões da pobreza – Interseção
pobreza ou exclusão social não está isenta de críticas, particularmente das várias dimensões da exclusão social
por resultar da interseção das três dimensões consideradas. Por exemplo,
pode questionar-se o facto de um indivíduo que esteja afastado do Ao longo desta secção iremos analisar com mais detalhe os principais
mercado de trabalho, isto é, que esteja inserido numa família com baixa indicadores cuja evolução atrás descrevemos, tomando como refe‑
intensidade de trabalho, mas simultaneamente disponha de rendimentos rência os últimos dados disponíveis, aquando da elaboração deste livro,
acima da linha de pobreza e não enfrente problemas de privação mate‑ referentes a 2017.
rial, seja ainda assim considerado em situação de exclusão social.
O Quadro 14 possibilita uma análise mais detalhada da taxa de pobreza
ou exclusão social em 2017, ao identificar as diferentes interseções dos
Quadro 13 Taxa de pobreza ou exclusão social (%) três indicadores que a constituem.
Em 2017, 2,4 milhões de pessoas encontravam‑se em situação de
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
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2012
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2014
2015
2016
2017
pobreza e de exclusão social em Portugal (23,3 % da população
27,5 26,1 25,0 25,0 26,0 24,9 25,3 24,4 25,3 27,5 27,5 26,6 25,1 23,3
total). Dos 18,3 % da população pobre, uma parte significativa (66 %)
Fonte: Eurostat, EU‑SILC 2004‑2017.
encontrava‑se em situação de pobreza ou exclusão social exclusiva‑
mente devido à carência de recursos económicos, isto é, não estavam
em privação nem tinham participação reduzida no mercado de
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trabalho. Dos indivíduos em privação severa ou com intensidade de 2.2.2. Caracterização do indicador de privação material
trabalho reduzida, menos de metade (37,0 %, e 43,9 %, respetivamente)
Em 2017, 1,9 milhões de indivíduos (18,0 % da população)
são somente afetados por essa mesma componente.
encontrava‑se em situação de privação material, não conseguindo
satisfazer as suas necessidades em pelo menos três dos nove itens
Quadro 14 Interseção das várias dimensões da exclusão social (2017) considerados no índice acima referenciado. Se observarmos o indicador
de privação material severa (não satisfação de quatro ou mais itens),
Indivíduos %
existem 708 mil residentes em Portugal (6,9 %) nessa situação.
Famílias não pobres, não em privação material severa e com baixa intensidade laboral 224109 2,2
Famílias não pobres, em privação material severa e sem baixa intensidade laboral 262343 2,5 Analisando com mais detalhe no Quadro 15 os nove itens de privação
Famílias não pobres, em privação material severa e com baixa intensidade laboral 24204 0,2 material em Portugal em 2017, destaca‑se o facto de 36,9 % da popu‑
Famílias pobres, não em privação material severa e sem baixa intensidade laboral 1251034 12,1 lação indicar que não tem capacidade de assegurar o pagamento de
Famílias pobres, não em privação material severa e com baixa intensidade laboral 213895 2,1 «uma despesa inesperada de cerca de 420 euros sem recorrer a emprés‑
Famílias pobres, em privação material severa e sem baixa intensidade laboral 286380 2,8 timo», 20,4 % não dispor dos recursos necessários para «manter a casa
Famílias pobres, em privação material severa e com baixa intensidade laboral 135406 1,3
adequadamente aquecida» e 7,6 % destacar que tem «atrasos no paga‑
Famílias em situação de pobreza ou exclusão social 2397371 23,3
mento de despesas básicas regulares, como a renda de casa», devido
Fonte: ICOR 2017. Cálculos efetuados pelos autores a partir dos microdados. Amostra ponderada.
a dificuldades económicas. O item que apresenta um maior nível de
privação material (44,3 % da população) é, porém, a incapacidade
Os diferentes indicadores constantes do Quadro 14 permitem um para «pagar uma semana de férias por ano fora de casa». O facto de a
retrato mais preciso da realidade portuguesa para o ano de 2017. privação deste item ser tão elevada, poderá significar que a maioria dos
portugueses abdica das férias fora de casa em favor da satisfação de
• 2,4 milhões de indivíduos (23,3 % da população) em situação
outras carências materiais consideradas mais prioritárias.
de pobreza ou exclusão social;
• 1,9 milhões (18,3 %) em situação de pobreza;
• 0,7 milhões (6,8 %) em privação material severa;
• cerca de 1,7 milhões de indivíduos afetados por uma dimensão
da pobreza, 524 mil por duas e 135 mil pelas três, simultaneamente.
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Quadro 15 Itens de privação material (2017) (%) 2.2.3. Pobreza e privação habitacional
Sem capacidade para assegurar o pagamento imediato e uma despesa sem recorrer a empréstimo 36,9 As condições da habitação são um dos aspetos importantes da análise
Sem capacidade para pagar uma semana de férias por ano fora de casa 44,3 das condições de vida das famílias e dos indivíduos que as compõem.
Com atraso em pagamentos de rendas, encargos ou despesas correntes 7,6 De acordo com os dados do ICOR 2017, 17,7 % dos indivíduos com
Sem capacidade para ter uma refeição de carne, peixe (ou equivalente vegetariano) pelo menos de 2 em 2 dias 3,0 rendimento equivalente inferior ao limiar de pobreza viviam em aloja‑
Sem capacidade para manter a casa adequadamente aquecida 20,4 mentos cujo número de divisões habitáveis era insuficiente, tendo
Sem disponibilidade de máquina de lavar roupa 1,1
em conta o número e o perfil demográfico dos indivíduos do ADP
Sem disponibilidade de televisão a cores 0,4
(Quadro 17). A taxa de privação severa das condições da habitação,
Sem disponibilidade de telefone 0,5
que corresponde à proporção da população que vive em alojamentos
Sem disponibilidade de automóvel 6,5
sobrelotados e com, pelo menos, um problema adicional nas condições
Fonte: ICOR 2017. Cálculos efetuados pelos autores a partir dos microdados. Amostra ponderada. da habitação era de 9,3 % para os indivíduos em situação de pobreza.
O Quadro 16 mostra a distribuição da população de acordo com o número
de itens de privação em 2017. Cerca de 43 % da população não se encontra Quadro 17 Indicadores de privação habitacional
privada de qualquer dos itens, enquanto 18,3 % se encontra privada de três por grupo de rendimento (2017) (%)
ou mais, 6,9 % está em privação material severa (quatro ou mais) e 2,5 % em Abaixo do limiar Acima do limiar
situação de privação material extrema (privação em cinco ou mais itens). de pobreza de pobreza
Taxa de sobrelotação da habitação 17,7 7,4
Taxa de privação severa das condições da habitação 9,3 2,8
Quadro 16 Número de itens de privação material (2017) Carga mediana das despesas em habitação 24,1 10,7
Taxa de sobrecarga das despesas em habitação 26,0 2,4
Número de itens Número de itens de
de Privação Material (%) Privação Material (%)
Fonte: INE, maio de 2018 [destaque Rendimento e Condições de Vida 2017].
0 itens 43,2 5 itens 1,9
1 item 21,1 6 itens 0,4
Por outro lado, as despesas na habitação e, muito em particular, a parte
2 itens 17,6 7 itens 0,2
do rendimento disponível que é alocado a estas despesas, ou seja,
3 itens 11,2 8 itens 0,0
a carga das despesas em habitação, é um indicador importante das
4 itens 4,3 9 itens 0,0
condições de vida dos indivíduos, nomeadamente porque um peso
Fonte: ICOR 2017. Cálculos efetuados pelos autores a partir dos microdados. Amostra ponderada. mais elevado destas despesas traduz uma proporção menor do rendi‑
mento disponível para fazer face a outras responsabilidades.
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Os dados apresentados no Quadro 17 revelam uma carga mediana das Quadro 18 Indicadores de pobreza segundo o sexo e grupo etário (2016) (%)
despesas em habitação de 24,1 % para os indivíduos em situação de
Distribuição
pobreza, sendo que 26 % dos indivíduos em situação de pobreza vivia Taxa de Pobreza da população pobre
em agregados cujo peso das despesas anuais com a habitação no rendi‑ Homens 0‑17 anos 20,6 10,0
mento disponível era superior a 40 %. 18‑64 anos 17,8 28,8
65 + anos 15,2 7,3
2.3. Caracterização da população pobre em 2017 Total 17,8 46,1
Mulheres 0‑17 anos 20,7 9,6
2.3.1. Indicadores de pobreza por escalão etário e sexo 18‑64 anos 18,4 32,0
65 + anos 18,3 12,3
A análise da evolução global dos principais indicadores de pobreza
Total 18,7 53,9
não é só por si suficiente para uma verdadeira compreensão do fenó‑
Total 0‑17 anos 20,7 19,5
meno da pobreza e para a definição de políticas que possibilitem a sua
18‑64 anos 18,1 60,9
redução de forma sustentada. Torna‑se necessário identificar quais os
65 + anos 17,0 19,6
setores da população mais vulneráveis à pobreza, isto é, identificar que
Total 18,3 100,0
setores da população se encontram em situação de maior vulnerabili‑
dade social. Fonte: ICOR 2017. Cálculos efetuados pelos autores a partir dos microdados. Amostra ponderada.
O Quadro 18 apresenta a taxa de pobreza e a distribuição da popu‑ O Quadro 18 possibilita igualmente avaliar a situação de grande
lação pobre de acordo com o sexo e o escalão etário dos indivíduos em precariedade de uma parte significativa das crianças no nosso país.
2017. A primeira constatação é que a diferença não é muito expressiva Considerando os três grupos etários representados, o dos 0‑17 anos
mas, ainda assim, a taxa de pobreza feminina é 0,9 pontos percentuais apresenta os valores mais elevados para a pobreza monetária (20,7 %),
superior à da masculina. significando que mais de 350 mil crianças e jovens se encontravam em
2016 em situação de pobreza. Cerca de 20 % da população pobre era
Estes resultados não são surpreendentes, dada a hipótese de partilha
constituída, nesse ano, por crianças e jovens.
igualitária de recursos no seio de cada família, utilizada para estimar o
rendimento de cada indivíduo nos inquéritos às famílias. Esta hipótese Consequência da profunda descida da sua taxa de pobreza nas últimas
acaba por esbater uma parte significativa das diferenças de género no décadas, a população idosa apresenta indicadores de pobreza inferiores
acesso e no controlo dos recursos económicos, pelo que os indicadores ao do conjunto da população, no Quadro 18. A existência de apoios
refletem apenas de forma parcelar as diferenças de género no que sociais específicos para a população idosa em situação de carência de
concerne à efetiva situação de pobreza. recursos, como a pensão social e o Complemento Solidário para Idosos
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(CSI), explica certamente uma parte significativa da muito menor Apesar da limitação da informação disponível, os dados são particular‑
intensidade da pobreza neste grupo. mente elucidativos. A taxa de pobreza dos cidadãos com origem em
outros países da UE é claramente inferior à dos indivíduos portugueses.
2.3.2. Indicadores de pobreza por nacionalidade/cidadania No caso das famílias cujo representante é proveniente de outros países,
a taxa de pobreza é duas vezes superior à dos cidadãos nacionais.
A base de dados anonimizada do ICOR disponibilizada pelo INE
somente de forma muito agregada permite analisar a incidência da
2.3.3. Indicadores de pobreza por tipo de ADP
pobreza por nacionalidade de origem dos indivíduos. Qualquer análise
mais aprofundada da pobreza das famílias imigrantes em Portugal está, O Quadro 20 identifica a influência da composição do agregado
assim, sujeita a severas restrições impostas pela informação estatística familiar na incidência da pobreza e confirma a situação de grande
disponível. precariedade em que se encontra uma proporção significativa das
crianças no nosso país. Identificam‑se neste quadro os dois tipos de
No Quadro 19 calculou‑se a taxa de pobreza e a distribuição da popu‑ famílias mais vulneráveis: as famílias monoparentais, com uma taxa
lação pobre tomando como referência a origem do indivíduo de de pobreza de 33,3 % e as famílias alargadas (com três e mais crianças
referência do agregado, isto é, do indivíduo que em cada ADP aufere dependentes), com uma incidência de pobreza de taxas de 41,4 %.
um maior volume dos rendimentos individuais. Três categorias foram
consideradas: cidadãos nacionais, cidadãos originários de outro país da
União Europeia e cidadãos provenientes de outros países.
Quadro 19 Indicadores de pobreza segundo a nacionalidade
do indivíduo de referência (2016) (%)
Distribuição
Taxa de Pobreza população pobre
Outro país da UE 4,1 0,1
Nacionais 18,2 97,8
Outros países 37,7 2,1
Total 18,3 100,0
Fonte: ICOR 2017. Cálculos efetuados pelos autores a partir dos microdados. Amostra ponderada.
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Quadro 20 Indicadores de pobreza segundo o tipo de família (2016) (%) de pobreza, confirmando‑se assim a importância apontada por diversos
estudos quanto ao papel das qualificações na redução da pobreza
Distribuição
Taxa de Pobreza população pobre monetária. Note‑se, no entanto, que contrariamente ao que acontecia
1 adulto sem crianças 25,4 12,4 há alguns anos atrás, ter um curso de nível superior não é suficiente
2 adultos ambos c/ menos de 65 anos, sem crianças 18,2 10,1 para assegurar a imunidade face a situações de pobreza. Quase 5 % dos
2 adultos, pelo menos 1 c/ 65 + anos, sem crianças 15,5 11,6 indivíduos com curso superior encontravam‑se, em 2016, em situação
Outros agregados, sem crianças 12,5 11,1 de pobreza. O forte aumento do desemprego jovem, e em particular
1 adulto c/ pelo menos 1 criança 33,1 7,1 do desemprego jovem qualificado, constitui certamente uma parte da
2 adultos com 1 criança 12,4 10,8 explicação para este fenómeno.
2 adultos com 2 crianças 16,9 15,0
2 adultos com 3 + crianças 41,4 7,1
Outros agregados, com crianças 23,1 14,6 Quadro 21 Indicadores de pobreza segundo
Famílias sem crianças 16,9 45,2 o nível de escolaridade (2016) (%)
Famílias com crianças 19,7 54,8
Distribuição
Total 18,3 100,0 Taxa de Pobreza população pobre
Inferior ao 1.º ciclo do Ensino Básico 46,5 5,5
Fonte: ICOR 2017. Cálculos efetuados pelos autores a partir dos microdados. Amostra ponderada.
1.º e 2.º ciclo do Ensino Básico 28,7 44,4
A parte inferior do quadro anterior confronta a posição relativa das 3.º ciclo do Ensino Básico 19,6 23,6
famílias com e sem crianças dependentes. A incidência da pobreza dos Secundário 14,2 20,2
agregados familiares com crianças é 2,8 pontos percentuais superior Pós‑Secundário 10,1 0,4
Ensino Superior 4,9 5,8
à das famílias sem crianças. A população pobre residindo em famílias
com crianças representava, em 2016, 55 % do conjunto da população Fonte: ICOR 2017. Cálculos efetuados pelos autores a partir dos microdados. Amostra ponderada.
em situação de pobreza monetária. Nota: Nos cálculos deste quadro consideram‑se exclusivamente as pessoas entre os 18 e 64 anos.
2.3.4. Indicadores de pobreza por nível de escolaridade 2.3.5. Indicadores de pobreza por condição perante o trabalho
O Quadro 21 apresenta os indicadores de pobreza segundo o nível A análise dos indicadores de pobreza de acordo com a condição
de escolaridade dos indivíduos com mais de 18 anos. O aspeto mais perante o trabalho dos indivíduos em idade ativa (18‑64 anos) apre‑
evidente que resulta da leitura deste quadro é a relação inversa entre o sentados no Quadro 22 evidencia dois traços marcantes da pobreza
nível de instrução mais elevado obtido e a fragilidade face a situações económica em Portugal. Em primeiro lugar, as elevadas taxas de
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pobreza (44,8 %) da população desempregada demonstram a forte Quadro 23 Indicadores de pobreza segundo o regime
associação entre o desemprego e as condições mais severas de fragi‑ de ocupação do alojamento (2017) (%)
lidade social. Em segundo lugar, a constatação de que a inserção no
Distribuição
mercado de trabalho não é só por si suficiente para evitar as situações Taxa de população
Pobreza pobre
de pobreza: 10,8 % dos indivíduos empregados são pobres, correspon‑
Proprietário sem encargos 19,5 39,9
dendo a 31,0 % dos indivíduos em situação de pobreza.
Proprietário com encargos 10,2 20,8
Arrendatário ou subarrendatário, pagando renda a preços 22,7 15,9
de mercado
Quadro 22 Indicadores de pobreza segundo
Arrendatário, com renda inferior ao preço de mercado 49,1 11,3
a condição perante o trabalho (2016) (%)12 (renda apoiada, condicionada, …)
Alojamento cedido gratuitamente ou a título de salário 26,9 12,1
Distribuição
Taxa de Pobreza população pobre
Fonte: ICOR 2017. Cálculos efetuados pelos autores a partir dos microdados. Amostra ponderada.
Empregado 10,8 31,0
Desempregado 44,8 20,5
Estes dados podem igualmente revelar uma situação bastante diferen‑
Reformado 15,1 22,5
ciada dos indivíduos em situação de pobreza no que toca às condições
Outros Inativos 32,3 26,0
de vida que conseguem alcançar, em particular entre os indivíduos
Fonte: ICOR 2017. Cálculos efetuados pelos autores a partir dos microdados. Amostra ponderada. proprietários sem encargos ou com alojamento cedido gratuitamente
ou a título de salário e os indivíduos arrendatários ou subarrendatários,
2.3.6. Indicadores de pobreza segundo pagando renda a preços de mercado. De facto, a despesa necessária
o regime de ocupação do alojamento para satisfazer as necessidades relacionadas com a habitação será,
à partida, superior no caso dos últimos, reduzindo substancialmente
O Quadro 23 apresenta a taxa de pobreza e a distribuição da popu‑ o rendimento disponível para satisfazer outras necessidades e origi‑
lação pobre de acordo com o regime de ocupação do alojamento. nando, assim, situações de maior privação.
Da análise dos dados, verifica‑se que as maiores taxas de pobreza
estão associadas à situação de arrendatário da habitação, em particular 2.3.7. Indicadores de pobreza por grau
à situação de arrendatário com renda inferior ao preço de mercado. de urbanização do local de residência
Por outro lado, a maioria da população em situação de pobreza (60,7 %)
vive em alojamentos de que é proprietária. Por último, o Quadro 24 apresenta as taxas de pobreza de acordo com
o grau de urbanização do local de residência. A consideração desta
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variável permite uma aproximação à análise das diferenças entre a
pobreza rural e a urbana, que é muitas vezes associada à discussão
entre as formas mais tradicionais e mais recentes dessa mesma
pobreza. A análise dos diferentes indicadores sugere maiores níveis de
pobreza nas áreas pouco povoadas/rurais, com uma taxa de pobreza
de 22,9 %, 5,1 pontos percentuais superior à das zonas densamente
povoadas/urbanas, em que se verifica uma incidência da pobreza de
17,8 %. Note‑se, igualmente, que as profundas alterações demográficas
que conduziram nas últimas décadas à maior concentração da popu‑
lação nas grandes cidades alteraram o perfil do conjunto da população
pobre e, em 2016, somente cerca de um terço (32,9 %) da população
pobre vivia em zonas rurais. A pobreza mais tradicional poderá repre‑
sentar uma menor parcela da pobreza total, mas continua a existir e a
afetar de forma severa uma parte significativa da população.
Quadro 24 Indicadores de pobreza segundo o grau
de urbanização do alojamento (2016) (%)
Distribuição
Taxa de população
Pobreza pobre
Área densamente povoada 17,8 42,3
Área intermédia 15,1 24,9
Área pouco povoada 22,9 32,9
Total 18,3 100,0
Fonte: ICOR 2017. Cálculos efetuados pelos autores a partir dos microdados. Amostra ponderada.
Os dados da área intermédia, relativamente próximos das áreas mais
densamente povoadas, permitem‑nos, nos resultados abaixo apresen‑
tados, fundir as duas.
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Capítulo 3
Probabilidades de pobreza
nas famílias portuguesas:
análise Probit
Neste capítulo são analisados os dados do ICOR 2017, tendo como Isto significa que, no Quadro 25, sempre que estivermos perante uma
unidade de análise o Agregado Doméstico Privado (ADP). Nesse variável individual esta respeita ao indivíduo de referência do ADP.
contexto, as variáveis consideradas são de dois tipos: ou variáveis
O nosso objetivo é tentar identificar os principais determinantes da
de caracterização do conjunto do ADP, ou variáveis que refletem a
pobreza em Portugal através da identificação da influência de certas
posição do indivíduo de referência do ADP e que consideramos que,
variáveis que caracterizam os ADP na probabilidade de pobreza deste.
de forma indireta, caracterizam o conjunto do agregado (por exemplo,
Para cada variável é também importante conhecer a magnitude do
o nível de instrução do indivíduo de referência).
efeito de pertencer a uma determinada categoria em relação a uma
Apesar de o INE não utilizar o conceito de indivíduo de referência categoria de referência previamente definida pelos investigadores para
no ICOR, esta é uma prática comum em outros inquéritos às famílias cada variável, conforme é apresentado no Quadro 25.
efetuados pelo sistema estatístico como, por exemplo, no Inquérito às
As categorias selecionadas são as que, na opinião dos investigadores
Despesas Familiares (IDEF). A metodologia aqui seguida replica a utili‑
e de acordo com os resultados dos capítulos anteriores, bem como da
zada pelo INE nesses inquéritos: o indivíduo de referência é aquele que
análise da literatura, foram identificadas como as que mais protegem
aufere uma maior proporção dos rendimentos familiares de natureza
de uma situação de pobreza.
individual.
Assim, construiu‑se um modelo explicativo da incidência da pobreza,
Esta opção explica‑se pelas razões aduzidas no capítulo um e aqui
assente na definição dos seus principais determinantes socioeco‑
sintetizadas: a unidade de observação do rendimento que permite
nómicos. Pretendeu‑se aferir, com base num conjunto de variáveis
determinar a situação de pobreza dos indivíduos é o ADP. Assim, todos
explicativas elencadas no Quadro 25, a probabilidade da variável expli‑
os resultados para indivíduos apresentados nas estatísticas oficiais
cada (ou seja, a probabilidade do ADP ou do indivíduo de referência
resultam de um procedimento estatístico que apresenta algumas
ser pobre).
fragilidades (subestimando a pobreza das mulheres e das crianças,
por exemplo, como também é referido nos capítulos anteriores).
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O objetivo é observar como os coeficientes estimados medem o somente testado o efeito de cada uma das variáveis na probabilidade
efeito marginal de cada variável sobre a probabilidade do ADP ou de o ADP ser pobre.
do indivíduo de referência se encontrar numa situação de pobreza,
controlando o impacto das restantes variáveis13. No presente trabalho, com base no valor obtido da estatística da razão
das verossimilhanças (LR=2480.243, p=0.000), rejeitou‑se ao nível de
A variável dependente (incidência de pobreza) é uma variável binária significância de 1 % a hipótese de que as variáveis explicativas em
que toma o valor um quando um ADP ou indivíduo de referência é conjunto não têm influência sobre Y (indicador de pobreza). Esta esta‑
pobre e zero nos restantes casos. O modelo da análise Probit pode tística da razão de verossimilhanças é um indicador da qualidade do
ser formalizado da seguinte forma: P(yi=1|xi )=Ф (xi β). Com base nesta modelo, indiciando que pelo menos um dos coeficientes estimados é
fórmula, podemos afirmar que a probabilidade da variável explicada significativo (diferente de zero). Pode‑se adicionalmente usar outros
ser igual a um (ser pobre), dado um conjunto de variáveis explicativas indicadores para avaliar a qualidade do ajustamento do modelo, como
xi , ou seja, como uma função não linear das variáveis explicativas xi. β seja o teste de Hosmer‑Lemeshow. O modelo em análise é adequado,
representa o vetor de coeficientes a estimar e Ф é a função de distri‑ dado que a hipótese nula não é rejeitada ( χ2=9.574, p=0.296), o que
buição normal acumulada. A estimação deste modelo é realizada pelo indicia que o modelo se ajusta aos dados.
método de máxima verossimilhança.
No Quadro 25 são apresentados, respetivamente, os valores estimados
do efeito marginal, dos valores dos erros padrão e do p‑value asso‑
ciado a cada uma das categorias das variáveis independentes, tendo em
consideração a categoria de referência de cada uma dessas variáveis.
É de realçar que estes efeitos marginais são avaliados com referência a
uma categoria base, para a qual todas as variáveis explicativas assumem
o valor zero. O efeito marginal para uma variável explicativa X é, deste
modo, calculado como sendo P(Y=1|X=1) – (Y=1|X=0). Os efeitos
marginais são calculados a partir de derivadas parciais em relação a
cada uma das categorias de cada variável independente tendo em
consideração a categoria de referência dessa variável. Neste modelo
não se teve em consideração as interações entre as variáveis, foi
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Quadro 25 Resultados utilizando um modelo com função de ligação
Probit para a variável dependente Indicador de Pobreza
Efeito Erro Efeito Erro
Variáveis independentes Categorias marginal padrão p‑value Variáveis independentes Categorias marginal padrão p‑value
Sexo (face ao sexo masculino) Feminino 0,057 0,008 0 Fonte principal de rendimento Pensões 0,128 0,022 0
Idade 18‑24 anos 0,143 0,033 0 (face ao do trabalho) 14 0,386 0,033 0
Out. transf. sociais
(face ao escalão etário 25‑64) 65 anos ou mais ‑0,032 0,013 0,015 Out. tipos 0,077 0,03 0,007
Educação Básico ou menos 0,104 0,017 0 rendimentos
(face ao Ensino Superior) Secundário 0,044 0,023 0,042 Existência de doença crónica Sim ‑0,007 0,008 0,411
Nacionalidade União Europeia ‑0,048 0,041 0,299 (face ao não)
(face ao nacional) Outros 0,057 0,045 0,17 Grau de urbanização Área rural 0,015 0,007 0,04
Condição de trabalho Desempregado 0,199 0,027 0 (face aos da área urbana)
(face ao empregado) Reformado ‑0,043 0,02 0,034
Fonte: ICOR 2017. Cálculos efetuados pelos autores a partir dos microdados,
Outros inativos 0,189 0,036 0 utilizando o ponderador do ADP reescalonado.
Profissão Forças‑Armadas ‑0,077 0,038 0,105
(face às das atividades intelectuais Dirig_Direct ‑0,133 0,014 0
Constatou‑se que todas as variáveis independentes consideradas
e científicas) afetam significativamente a variável dependente, com exceção das rela‑
Tec_p_n_inter ‑0,055 0,017 0,003 tivas à nacionalidade e à existência de doença crónica. É de realçar que
Pessoal administ. ‑0,046 0,019 0,026 o sinal e significância dos coeficientes estimados são maioritariamente
Trab. Serv. pessoal 0,068 0,021 0,001 robustos para as categorias em análise, tendo em atenção a categoria
Agric_Trab_APF 0,235 0,03 0 de referência de cada uma das variáveis em estudo.
Trab_Qual_ICA 0,114 0,023 0
Oper_Inst_MTM 0,034 0,022 0,101 Faremos de seguida uma leitura das diversas variáveis, estando estas
Trab_N_Qualif 0,154 0,025 0 organizadas, no quadro, em dois grandes grupos: as primeiras respeitam
Trab_outros 0.076 0,04 0,036 a características dos indivíduos de referência do ADP e as seguintes a
Número de crianças 1 0,064 0,012 0 características dos agregados familiares.
(face aos com nenhuma) 2 0,125 0,017 0
3 ou mais 0,313 0,04 0
No que concerne à variável Sexo, o efeito marginal revela que a
Número de adultos 1 0,024 0,01 0,013 probabilidade de se estar entre os pobres é menor, entre os indiví‑
(face aos com dois) 3 ou mais 0,017 0,01 0,066 duos de referência, para os homens do que para as mulheres. Ou seja,
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as mulheres têm um aumento de 5,7 pontos percentuais na probabili‑ No que respeita aos grandes grupos profissionais, apresentamos os
dade de serem pobres, quando comparadas com os homens. resultados agrupados em três grandes grupos: os que não apresentam
resultados significativos; os que têm menor probabilidade de serem
O facto de o indivíduo de referência do ADP ter mais de 65 anos pobres em relação à categoria de referência (especialistas das ativi‑
implica uma redução de 3,2 pontos percentuais na probabilidade de ser dades intelectuais e científicas); e os que se posicionam com uma maior
pobre, comparativamente aos que se encontram na faixa etária dos 25 probabilidade de pobreza.
aos 64 anos. Já os indivíduos de referência mais jovens, na faixa etária
entre os 18 e os 24 anos, têm uma probabilidade mais elevada de serem No primeiro grupo, encontram‑se os Membros das Forças Armadas e os
pobres quando comparados com os indivíduos que se encontram entre Operadores de instalações e máquinas e trabalhadores da montagem.
os 25 e os 64 anos (14,3 pontos percentuais a mais).
No segundo, entre os que têm uma menor probabilidade de serem
No que diz respeito às habilitações literárias (medidas através do nível pobres, estão os Dirigentes e diretores (menos 13,3 pontos percen‑
ISCED [International Standard Classification of Education]), os resul‑ tuais); Técnicos e profissões de nível intermédio (menos 5,5 pontos
tados evidenciam que quanto menores as habilitações literárias dos percentuais); e, finalmente, o Pessoal administrativo (menos 4,6 pontos
indivíduos de referência, maior a probabilidade de pobreza do ADP. percentuais).
A probabilidade de o indivíduo de referência do ADP ser pobre aumenta
em 10,4 pontos percentuais no caso de ter o Ensino Básico, ou menos Em sentido contrário, no terceiro grupo, encontramos: Agricultores
em comparação com aqueles que têm habilitações ao nível do Ensino e trabalhadores qualificados da agricultura, da pesca e da floresta
Superior. Os indivíduos de referência do ADP com habilitações ao nível (23,5 pontos percentuais); Trabalhadores não qualificados (15,4 pontos
do Ensino Secundário evidenciam uma probabilidade de serem pobres percentuais); Trabalhadores qualificados da indústria, construção e
de mais 4,4 pontos percentuais, quando comparados com aqueles que artífices (11,4 pontos percentuais); outros trabalhadores (7,6 pontos
têm habilitações ao nível do Ensino Superior. percentuais); e, também, os Trabalhadores dos serviços pessoais,
de proteção e segurança e vendedores (6,8 pontos percentuais).
Quanto à condição de trabalho, os resultados evidenciam que a proba‑
bilidade de um indivíduo de referência ser pobre é mais elevada nos No que respeita às variáveis referentes ao agregado familiar, podemos
desempregados (em 19,9 pontos percentuais) e em outros inativos observar que quanto maior for o número de crianças, maior é a proba‑
(18,9 pontos percentuais), em comparação com os que estão numa bilidade de o agregado ser pobre. A categoria que mais se destaca
situação de emprego. Os indivíduos que se encontram numa situação refere‑se aos agregados com três ou mais crianças, com uma probabi‑
de reforma tendem a ter uma menor probabilidade de serem pobres lidade acrescida de pobreza, em relação aos agregados sem crianças,
(menos 4,3 pontos percentuais), comparativamente aos empregados. de 31,3 pontos percentuais (o segundo maior valor em todas as
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categorias consideradas no Quadro 25). Relativamente ao número de De entre todas estas categorias destacamos as que apresentam maiores
adultos, a probabilidade de os agregados serem pobres aumenta no probabilidades de estar em situação de pobreza em relação à categoria
caso de o mesmo ser constituído somente por um adulto (2,4 pontos de referência: os que têm como principal fonte de rendimento do ADP
percentuais), mas de forma pouco significativa, em relação à existente Outras transferências sociais15 e a existência de três ou mais crianças
nos agregados de dois adultos. no agregado, seguindo‑se os que trabalham na agricultura, pescas e
florestas e, com valores um pouco mais reduzidos, os Desempregados,
No que respeita à principal fonte do rendimento do ADP, as pensões Outros inativos e os Trabalhadores não qualificados. Em sentido
aumentam em 12,8 pontos percentuais a probabilidade de pobreza. inverso, ter uma profissão enquadrada nos Dirigentes e diretores reduz
Contudo, isso verifica‑se sobretudo quando o que está em causa são substancialmente a probabilidade de se ser pobre (sempre em relação à
as outras transferências sociais (38,6 pontos percentuais, o maior valor categoria de referência).
de todas as categorias das diversas variáveis) e também aumenta em
outros tipos de rendimentos (7,7 pontos percentuais), comparativa‑
mente aos que têm como principal fonte de rendimento o trabalho.
Os resultados evidenciam que, no ADP, aumenta a probabilidade de
pobreza quando se passa do rendimento obtido no trabalho para
outras formas de rendimento.
Finalmente, no que respeita ao grau de urbanização, a vivência numa
zona rural aumenta a probabilidade de se residir num agregado familiar
pobre em 1,6 pontos percentuais, um valor muito pouco significativo.
Tal implica que a maior pobreza associada às zonas rurais está, sobre‑
tudo, relacionada com o efeito de composição (maior incidência de
ADP com características de vulnerabilidade à pobreza) ou com fatores
distintos do território.
Em súmula, os agregados familiares mais vulneráveis à pobreza são
aqueles onde os indivíduos de referência são as mulheres, os mais
novos, os que têm o Ensino Básico ou habilitações inferiores, os mais
desqualificados, os desempregados e os que habitam em agregados
com crianças.
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Capítulo 4
Perfis de indivíduos adultos
em situação de pobreza
4.1. Análise das Correspondências Múltiplas Assim, na ACM selecionámos duas dimensões enquanto eixos
estruturantes do espaço das representações. Esta foi efetuada
A amostra selecionada foi obtida a partir do inquérito desenvol‑
considerando‑se apenas que as variáveis ativas são aquelas que apre‑
vido pelo ICOR 2017, referente a indivíduos com 18 anos ou mais
sentaram elevado poder discriminativo na sua definição. As variáveis
classificados em situação de pobreza, utilizando‑se um ponderador
consideradas ativas apresentam‑se no Quadro 26.
reescalonado, o qual resulta do reescalonamento dos ponderadores
disponibilizados para que a sua soma seja igual ao tamanho da amostra. A informação obtida, referente à associação entre as variáveis utili‑
Com o intuito de se percecionar se a pobreza pode apresentar tipolo‑ zadas na ACM, com base nos indivíduos com 18 anos ou mais em
gias diferenciadas tendo em atenção as características dos indivíduos situação de pobreza, foi sintetizada em duas componentes ortogo‑
(sexo, idade, educação, nacionalidade, estado civil, profissão, condição nais que explicam 87,4 % da variância total das variáveis originais.
perante o trabalho) e das variáveis definidas para o ADP (existência de No Quadro 26 apresentam‑se os pesos e as contribuições das variáveis
doença crónica ou problema de saúde prolongado, número de adultos, de cada dimensão, a percentagem da variância explicada e a consis‑
número de crianças, principal fonte de rendimento, grau de urbani‑ tência interna com base no coeficiente alfa de Cronbach. Através da
zação, grau de intensidade laboral e composição do agregado familiar), Figura 1 podemos analisar as associações entre as variáveis e a respe‑
foram averiguadas as associações entre estas variáveis com o recurso a tiva importância para a definição das duas primeiras dimensões.
uma Análise de Correspondências Múltiplas (ACM). A ACM permite a
descrição de um espaço multidimensional, caracterizado pela interde‑
pendência de variáveis qualitativas, sendo a mesma suportada com o
apoio de representações gráficas, desta forma permitindo identificar as
associações que se estabelecem entre as categorias das diversas variá‑
veis em análise, aferindo‑se a existência (ou não) de perfis distintos,
cada um deles com características similares e específicas16.
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Figura 1 Medidas de discriminação (disposição das variáveis ativas) Quadro 26 Contribuições das variáveis em cada uma das dimensões
Medidas de discriminação
Dimensão 1 Dimensão 2
0.6
Intensidade laboral
Variáveis Discriminação Contribuição Discriminação Contribuição
0.5 Principal Fonte de R Idade (em categorias) 0,932 23,0% 0,049 2,4%
Educação 0,213 5,3% 0,002 0,1%
0.4
Dimensão 2
Condição perante t
Condição perante 0,805 19,8% 0,362 17,6%
o trabalho
0.3
Composição familiar Intensidade laboral 0,244 6,0% 0,563 27,4%
0.2 Principal fonte de 0,782 19,3% 0,509 24,7%
rendimento do ADP
0.1 Composição 0,720 17,7% 0,269 13,1%
Educação
do agregado familiar
Idade 4 categ
0.0 Estado civil 0,362 8,9% 0,303 14,7%
0.1 0.2 0.4 0.6 0.8 1.0
Variância explicada 0,580 0,294
Dimensão 1
Alfa de Cronbach 0,876 0,600
As variáveis relacionadas com a idade, a condição perante o trabalho, A primeira dimensão é estruturada principalmente pelas variá‑
a principal fonte de rendimento, a composição do agregado familiar e veis relacionadas com as características do indivíduo, como sejam
a educação do indivíduo são as que mais discriminam na dimensão 1, as suas habilitações literárias e a sua idade, as quais têm reflexo na
com contribuições para a dimensão a variar entre os 5,3 % e os 23 %. sua condição perante o trabalho e na principal fonte de rendimento
No caso da dimensão 2, as variáveis que mais contribuem são a intensi‑ e implicações na composição do agregado familiar. Já na segunda
dade laboral (27,4 %), seguida da principal fonte de rendimento (24,7 %) e dimensão encontramos, principalmente, variáveis referentes ao
do estado civil do indivíduo (14,7 %), conforme é ilustrado no Quadro 26. trabalho: a intensidade laboral, a principal fonte de rendimento e
também a condição perante o trabalho.
As quantificações das categorias das variáveis utilizadas, como apre‑
sentado no Quadro 27, permitem projetar as categorias num gráfico
bidimensional (Figura 2). A representação das categorias tem como
objetivo facilitar a análise e a visualização das associações entre as
categorias das variáveis.
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Quadro 27 Quantificação das categorias das variáveis nas dimensões 1 e 2 A segunda dimensão (29,4 %) opõe principalmente os indivíduos que
se encontram com uma intensidade laboral muita reduzida e que têm
Dimensão
como principal fonte de rendimento outras transferências sociais e
outros tipos de rendimento e que não têm cônjuge (divorciado, viúvo
Variáveis Quantificações negativas Quantificações positivas
ou solteiro), aos que não estão em intensidade laboral muito reduzida
1 Idade 18‑24 anos 65 anos e mais
25‑44 anos e que têm como principal fonte de rendimento o trabalho, e se encon‑
Condição perante Empregado Reformado tram no estado civil de casado.
o trabalho Desempregado
Composição do 2 adultos com 1 criança ou mais 2 adultos com 0 crianças e 1 Tendo por base as coordenadas dos indivíduos nas duas componentes
agregado familiar 1 adulto com 1 criança ou mais ou mais adultos com 65 anos
ou mais principais retidas na ACM, aplicou‑se o método não hierárquico das
Educação Secundário Básico k‑médias (k‑means), de forma a maximizar as diferenças entre os indi‑
Superior víduos incluídos em classes diferentes e com o intuito de agrupar os
2 Intensidade laboral Sim Não indivíduos nessas classes e confirmar os perfis identificados na ACM.
Fonte principal Out. transferências sociais Rendimento do trabalho Assim, as principais características dos 5155 indivíduos que foram
de rendimento Out. tipos rendimentos
avaliadas para cada um dos quatros clusters encontrados definem‑se
Estado civil Divorciado Casado
Viúvo da seguinte forma: o primeiro cluster inclui 1417 indivíduos (27,5 % do
Solteiro total), o segundo 1372 (26,6 % do total), o terceiro 672 (13 % do total)
e, finalmente, o quarto cluster compreende 1694 indivíduos (32,9 %
do total).
A Figura 2 representa o plano que cruza as duas primeiras dimen‑
sões, as quais explicam 87,4 % da variação dos dados, como já referido. Com base no mapa percetual, apresentado na Figura 2, podemos
A primeira dimensão (58 %) opõe, em geral, os indivíduos nas faixas destacar essencialmente quatro grupos de indivíduos em situação
etárias dos 18 aos 44 anos, com as habilitações mais elevadas (Ensino de pobreza.
Secundário e Superior), numa condição perante o trabalho de empre‑
gado ou de desemprego, a viver principalmente em agregados
familiares com pelo menos um adulto e com uma ou mais crianças,
aos indivíduos mais idosos (com 65 anos e mais) e com as mais baixas
qualificações académicas (Ensino Básico ou menos), numa situação
de reformados, a viver em agregados familiares sem crianças e em que
pelo menos um dos adultos tem 65 anos ou mais.
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Figura 2 – Mapa percetual: perfis dos indivíduos em situação de pobreza (ver no anexo A o cruzamento das variáveis versus os quatro clusters).
Seguidamente, caracterizamos cada um dos quatro perfis de pobreza
1 que foi possível encontrar em Portugal.
Empreg Casado(a) O primeiro perfil (correspondendo ao primeiro cluster, retângulo
2_ad_0_cr_1+ad_65+
Não
Rend_Trab
2_ad_1cr
isolado no quadrante direito) é o dos Reformados, correspondendo a
2_ad_2_cr Reform 27,5 % do total da amostra. Este é constituído maioritariamente por
2_ad_3+cr Out_agr_0_cr
Dimensão 2: Trabalho e rendimento (29,4%)
Out_agr_1+cr 65+
25-44 Básico
indivíduos do sexo feminino (63,0 %), algo que o destaca como o perfil
0 45-64 Pensões
Secund 2_ad_65-_0_cr mais feminizado dos quatro e, ao mesmo tempo, o único que está
Super Out_inat claramente associado a um dos sexos. Os seus membros têm, sobre‑
18-24 Solteiro(a) Viúvo(a)
tudo, 65 ou mais anos (85,2 %) e uma escolaridade ao nível do Básico
ou inferior (98,6 %), definindo‑se como o perfil menos escolarizado do
Divorciado(a)
Out_Tip_Rend
1_ad conjunto. Praticamente todos têm nacionalidade portuguesa (99,6 %)17.
-1 Desemp
Em consonância com estas características, o estado civil da grande
1_ad_1+cr maioria é casado18 (52,6 %) ou viúvo (29.8 %). Aliás, é basicamente aqui
que se encontram os viúvos da amostra global, nos restantes perfis o
número de viúvos é residual (em dois dos perfis) ou muito modesto (no
Out_Tr_Sociais
Sim terceiro caso).
-2
-1.0 -0.5 0.0 0.5 1.0 1.5 2.0 Os adultos que habitam no ADP (agregado doméstico privado) são em
Dimensão 1: Geracional (58%) geral dois (50,1 %), existindo também um elevado número que inclui
apenas um adulto (34,5 %). Isso significa que, em termos de composição
Composição familiar do agregado Condição perante trabalho Educação Estado civil
do agregado familiar (uma variável consonante com a anterior), em cerca
Idade 4 categ Intendidade laboral Principal Fonte de Rendimento do ADP
de 46,2 % dos casos este é constituído por dois adultos sem crianças,
pelo menos um com 65 anos ou mais e, para 34,3 %, apenas por um
adulto. Dada a sua posição no ciclo vital, não têm crianças19 no agregado
Para ajudar a detalhar a análise de forma mais minuciosa, foi efetuado
(95,8 %) e 84,3 % dos indivíduos referiram ter pelo menos um indivíduo
o cruzamento de todas as variáveis em estudo, para a caracterização
com doença crónica no ADP. Este último valor é o mais elevado dos
do indivíduo e do ADP, mesmo tendo em consideração as variá‑
quatro perfis, destacando‑se claramente dos restantes, mas isso não
veis que não tiveram um poder discriminatório relevante na ACM
impede que nos quatro perfis encontrados a maioria dos indivíduos
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(70,9 % para o total da amostra) declare a existência de alguém com uma O segundo perfil (cluster 2, retângulo do meio, entre os três do lado
doença crónica ou incapacitante no agregado. Contudo, se este valor esquerdo) respeita a 26,6 % da amostra e é constituído por indivíduos
é elevado no contexto dos indivíduos em situação de pobreza, para o de ambos os sexos em proporções similares ao conjunto da amostra
conjunto dos portugueses com mais de 18 anos (pobres e não pobres) é (cf. Anexo A), o que implica uma pequena sobrerrepresentação do sexo
igualmente elevado, correspondendo a 66 %20. feminino (53,1 %). Maioritariamente situam‑se na faixa etária dos 18
aos 64 anos (99,1 %). Neste cluster, e em relação à amostra global, estão
Em relação ao trabalho, 97,2 % dos entrevistados enquadram‑se em sobrerrepresentados os mais novos (16‑44 anos), em especial os que
agregados onde a questão da intensidade laboral per capita21 muito têm 18 a 24 anos (com 29,6 %, em contraste com um valor de 12,0 %
reduzida não se aplica, pois a grande maioria encontra‑se na situação na globalidade). É, pois, neste perfil que se concentram os mais novos.
de reformado (78,5 %) e, por isso, tem as pensões (97,5 %) como prin‑
cipal fonte de rendimento do agregado. De relevar, também, a presença Em relação ao estado civil, a grande maioria é constituída por solteiros
de um contingente significativo de doméstico(a)s (15,0 %)22. (61,0 %, um valor que é sensivelmente o dobro do da amostra global).
Em relação à escolaridade, predomina claramente o Básico ou escola‑
São mais os que vivem em ambiente urbano (onde incluímos as áreas ridade de nível inferior (66,4 %). Contudo, é o perfil mais escolarizado
intermédias), com 57,4 %, do que rural (42.6 %). Entendemos este dado do conjunto e o que se destaca pelo facto de o peso dos menos esco‑
sobretudo como um efeito da distribuição dos efetivos demográficos larizados ser inferior ao da amostra global (79,5 %). É, também, onde
no território nacional (mais gente a habitar em cidades), sem relação existe uma maior proporção dos que atingiram o Secundário (26,9 %)
com o facto de a pobreza rural ser maior do que a urbana, como vimos e o Superior (6,6 %).
no capítulo dois. De qualquer forma, é de destacar que este é, de entre
todos os perfis, o que apresenta uma maior proporção de indivíduos que Em relação à condição perante o trabalho, a maioria não trabalha.
residem em ambiente rural (para a totalidade da amostra, a residência em São desempregados (33,2 %) e estudantes (19,4 %), sendo ainda de
ambiente rural é de 34,7 %). Todos os restantes perfis têm uma incidência relevar o(a)s doméstico(a)s (10,4 %) e os outros inativos (7,4 %) e
de população rural menor e abaixo da média global. contrastam com a existência de poucos empregados (29,0 %). De entre
os que trabalham, a maioria fá‑lo em profissões enquadradas em duas
Este grupo destaca‑se, em resumo, como sendo o menos escolarizado, categorias: trabalhadores dos serviços pessoais, de proteção e segu‑
o mais idoso e feminizado, com mais reformados. Estes têm como prin‑ rança e vendedores (21,8 %) e trabalhadores não qualificados (26,5 %).
cipal fonte de rendimento familiar as pensões. É, finalmente, o perfil
mais rural (ou menos urbano) do conjunto. Este perfil foi designado como o dos precários tendo em conta, por
um lado, o forte enfoque na inatividade (por via do desemprego,
da condição de doméstico(a) e da de estudante) e, por outro, o facto
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de a maioria (62,9 %) não pertencer a agregados com intensidade inatividade e alguma atipicidade na composição dos agregados fami‑
laboral per capita muito reduzida, e de os restantes 30,5 % se encon‑ liares. A relação com o emprego é, como aliás no perfil seguinte,
trarem em agregados em que essa condição não se aplica, ou seja, marcada por alguma distância. O que os individualiza é, sobretudo,
em que os agregados são constituídos por indivíduos com 60 e mais o seu enquadramento em agregados familiares sem baixa intensidade
anos e, eventualmente, estudantes23. Isto está associado ao facto de de trabalho. Lendo conjugadamente este último dado com o seu afas‑
as principais fontes de rendimento dos agregados onde se enquadram tamento do mundo do trabalho, a sua (relativa) juventude e os dados
serem os Rendimentos do trabalho (54,5 %) e as Pensões (com 27,7 %). sobre a composição do agregado familiar, parece‑nos que uma boa
parte dos indivíduos incluídos neste perfil são filhos que habitam a
No que respeita aos dados sobre os agregados familiares, este perfil casa dos pais24. Não obstante, como é possível verificar no mapa perce‑
destaca‑se como aquele onde existe um maior número de casos com tual (Figura 2), estamos em presença de um grupo intermédio entre
três adultos ou mais, correspondendo mesmo à maioria (52,8 %). os Perfis 3 e 4, partilhando algumas das características destes dois
Em contrapartida, o número de crianças no agregado é baixo: em perfis e sendo, por isso, o mais heterogéneo. A característica que mais
56,9 % dos casos não existem crianças. Não obstante, este último valor o individualiza, em particular em relação ao Perfil 3, relaciona‑se com
não é muito diferente do da globalidade da amostra, situando‑se até a inserção dos indivíduos aqui representados em agregados familiares
abaixo desta (63,1 %). sem baixa intensidade de trabalho. Veremos, na análise qualitativa, que
Em termos de composição do agregado familiar, destaca‑se em emergem outras características que o singularizam.
primeiro lugar a categoria dos Outros agregados familiares com uma O terceiro perfil respeita aos Desempregados (cluster 3, retângulo
ou mais crianças dependentes (16,8 %, contra 13,4 % para a totali‑ inferior, entre os três do lado esquerdo, correspondendo a um total
dade da amostra), mas também os Outros agregados sem crianças de 13,0 % da amostra e constituindo o perfil menos numeroso). Neste
dependentes (18,9 % e 13,8 %, respetivamente). O que se salienta é a grupo, os sexos apresentam valores relativamente semelhantes ao
atipicidade de alguns agregados por contraponto à amostra global e conjunto da amostra, embora com valores mais próximos entre si
não tanto a distribuição de crianças nos agregados, já que esta é relati‑ do que no perfil anterior. Assim, os homens representam 49,0 % e as
vamente equilibrada (sem crianças dependentes 46,4 % e com crianças mulheres os restantes 51,0 %.
dependentes 53,6 %), embora com menos agregados onde se regista
a presença da criança dependente do que na totalidade da amostra A maioria dos seus membros são indivíduos em idade ativa e mais
(56,2 % e 43,8 %, respetivamente). velhos, pois metade (50,3 %) tem entre 45 e 64 anos. Neste perfil
destaca‑se claramente a condição de divorciado, com 22,7 % (um valor
Neste perfil salienta‑se, pois, a presença de bastantes jovens, uma que mais do que duplica o valor global de 10,2 %). De resto, a maioria
escolaridade um pouco superior à dos restantes, um elevado grau de é solteiro (49,3 %), algo que contrasta com as idades que apresentam
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(apenas 17,7 % tem entre 18 e 24 anos). Em termos educativos, a gene‑ que o destaque vai para os adultos isolados (26,8 %) e os dois adultos
ralidade tem o Ensino Básico ou escolaridade inferior (79,5 %, o mesmo com menos de 65 anos, sem crianças (17,4 %). Mas também para os casos
valor da amostra). de um adulto com uma ou mais crianças dependentes (15,5 %), o triplo
da amostra global (4,8 %), e o maior valor do conjunto dos perfis.
Em relação ao mundo do trabalho, quase dois terços dos indivíduos
encontram‑se desempregados (61,1 %). Entre os restantes, 13,7 % são É, pois, um perfil caracterizado por uma relação particularmente difícil
outros inativos. Apenas 4,2 % se declara trabalhador. Este valor é muito com o mundo do trabalho, quer por parte dos próprios, quer dos agre‑
baixo, apenas comparável ao do perfil dos reformados e mais idosos gados onde se enquadram, bem como por percursos familiares algo
(C1, onde é de 3,2 %). Por si só, estas características marcam o perfil de distantes da norma, considerando o elevado número de solteiros (em
forma vincada. contraste com as idades) e de divorciados, algo que se compagina com
o elevado número de casos de indivíduos a viver isolados ou em famí‑
Para os que trabalham, a sua atividade profissional respeita aos lias monoparentais.
Trabalhadores não qualificados (31,4 %) e aos Trabalhadores qualificados
da indústria, construção e artífices (20,1 %). Não será, pois, de estranhar O último grupo é o dos Trabalhadores (cluster 4, retângulo superior,
que quase todos estejam inseridos em agregados familiares onde a inten‑ entre os três do lado esquerdo, corresponde a cerca de um terço do
sidade laboral é reduzida (83,6 %), sendo que este é, de longe, o valor total, 32,9 % e é o mais numeroso). Em relação ao sexo, as propor‑
mais alto dos quatro perfis e bastante superior ao conjunto da amostra ções são basicamente as da totalidade da amostra, isto é, apresenta
(13,0 %). Este resultado contrasta com o perfil anterior onde, apesar uma ligeira sobrerrepresentação das mulheres (51,8 %). Neste grupo
de algumas características similares no que respeita à inserção laboral, podemos encontrar maioritariamente indivíduos com idades entre os
os agregados em que os seus membros se inserem não apresentam baixa 25 e os 64 anos (93,0 %), distribuídos de uma forma muito semelhante
intensidade laboral. Outra característica que distingue este perfil do entre os que têm 25‑44 e 45‑64 (40,7 % e 50,3 %, respetivamente), quase
anterior respeita às idades: são claramente mais velhos. nenhum é mais jovem (18‑24 anos, 5,5 %) ou mais velho (65+, 1,5 %).
Em relação ao estado civil, quase todos (70,8 %) são casados e os
Em relação à vida familiar, o número de adultos no agregado não se restantes são solteiros (23,4 %). A sua escolaridade está em linha com
distingue muito da amostra e distribui‑se pelas três categorias consi‑ a totalidade da amostra e dos restantes perfis, o mesmo é dizer que
deradas (33,5 % um adulto, 40,8 % dois e 25,6 % três e mais). Já no que quase todos têm o Ensino Básico ou escolaridade inferior (74,2 %).
respeita ao número de crianças, na maioria dos agregados em que se
inserem estas não existem (57,7 %). Mesmo assim, este é o perfil onde No que respeita à sua inserção laboral, este perfil distingue‑se fran‑
existe um maior número de agregados com três e mais crianças (9,8 %) camente dos restantes (e até da amostra global), por concentrar um
em relação à amostra (5,2 %). Isto reflete‑se em agregados familiares em grande número de empregados (76,8 % para um valor global de 34,4 %).
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Em relação aos grupos profissionais, destaca‑se o dos Trabalhadores O quadro abaixo resume as principais características dos quatro
dos serviços pessoais, de proteção e segurança e vendedores (22,3 %) perfis encontrados.
mas também, em menor grau, o dos Trabalhadores não qualificados
(20,8 %) e de Trabalhadores qualificados da indústria, construção e
artífices (17,4 %). De notar que os Trabalhadores não qualificados Quadro 28 Resumo dos perfis
aparecem em destaque em todos os perfis, dado que correspondem ao
do perfil
grupo profissional mais numeroso na globalidade da amostra. De facto, C1 27,5 % C2 26,6 % C3 13,0 % C4 32,9 %
Nome
é aqui que o seu peso é menor (e ainda assim representa um quinto do Reformados Precários Desempregados Trabalhadores
total dos trabalhadores deste perfil). Os membros deste cluster estão Feminino 18‑64 anos 45‑64 anos 25‑64 anos
V. Individuais
65+ anos 18‑24 anos Divorciados Casados e alguns
enquadrados em agregados familiares sem baixa intensidade laboral solteiros
Casados e viúvos Solteiros Solteiros
(92,8 %), algo que sublinha a forte relação com o trabalho que os carac‑ Perfil menos Perfil mais
teriza. Em consonância, a principal fonte de rendimento dos seus escolarizado escolarizado
agregados é constituída por Rendimentos do trabalho (94,3 %). 2 adultos e 1 3 e mais adultos Maioria dos 2 e 3 adultos
adulto Outros agregados agregados sem Com crianças
crianças
V. Família
2 adultos com +65 com crianças
No que respeita às variáveis de caracterização familiar, o número anos sem crianças Agregados com 3+
Outros agregados
de adultos no agregado concentra‑se à volta das categorias de dois e isolados sem crianças crianças
adultos (49,2 %) e de três e mais adultos (49,8 %). Em relação ao número 0 crianças Famílias
Rural monoparentais
de crianças, a maioria dos agregados que os enquadram inclui crianças
Não se aplica a Desempregados, Desempregados e Empregados
(57,2 %), algo que contrasta com os restantes perfis. Assim, assinale‑se baixa intensidade estudantes e outros inativos A baixa
que os agregados mais numerosos neste perfil são os de dois adultos de trabalho doméstico(a)s Quase sem intensidade laboral
V. Trabalho
Reformados e Alguns empregados trabalhadores não se verifica
com uma criança (18,7 %, acima dos 10,3 % da amostra global); dois doméstico(a)s Agregados sem Baixa intensidade Principal fonte:
adultos com duas crianças (20,7 % e 11,4 %, respetivamente), bem como Principal fonte: baixa intensidade laboral trabalho
outros agregados, com crianças (19,8 % e 13,4 %, respetivamente). Estes Pensões laboral Principal
Principal fonte: fonte: Outras
dados mostram claramente que nos encontramos na presença de famí‑ trabalho e pensões transferências
lias que em regra incluem dependentes (66,5 %). sociais
Nota: A negrito as modalidades de variável que apresentam valores iguais ou superiores a 80 %.
Estamos, pois, perante um perfil que se caracteriza por ser numeroso,
por ter uma relação forte com o mercado de trabalho e ser aquele onde
podemos encontrar um maior número de agregados com crianças.
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4.2. Aprofundamento de resultados da ACM No que respeita ao Perfil 2, o peso dos empregados no perfil é muito
mais reduzido (22,5 %). Neste caso, a diferenciação é essencialmente
Considerando a centralidade da relação dos indivíduos com o mundo
constatada através do estado civil dos indivíduos, maioritariamente
do trabalho (algo que ganha ainda mais expressão entre os pobres),
divorciado(a)s ou solteiro(a)s (76,8 %), com predomínio dos agregados
entendemos cruzar cada perfil com a condição perante o trabalho:
familiares com um único adulto ou com uma estrutura monoparental
empregado, desempregado, reformado e outros inativos. Optámos por
que inclui uma ou mais crianças dependentes, totalizando 48,4 %.
desdobrar esta última categoria em dois componentes com algum peso
Características que contrastam fortemente com as do Perfil 4.
percentual25, designadamente invalidez permanente e doméstico(a)s,
na tentativa de compreender melhor os perfis. Embora estas duas cate‑ A escolaridade é outra variável a ter em conta na caracterização dos
gorias tenham um pequeno peso estatístico, como veremos de seguida, empregados. Quer no Perfil 2, quer no Perfil 4, a maioria dos indivíduos
são importantes para se compreender a configuração dos perfis. tem um nível educacional (aferido pela Classificação Internacional
Normalizada da Educação) situado entre o primeiro e o terceiro ciclo,
Este exercício mobilizou boa parte das variáveis usadas na ACM e,
com um peso muito aproximado em relação ao total dos indivíduos
no geral, permite‑nos compreender melhor a forma como cada perfil se
considerados: 65,2 % no primeiro caso e 68,1 % no segundo, com espe‑
relaciona com o mundo do trabalho.
cial predominância do primeiro e segundo ciclo, com 37,9 % e 43,3 %,
respetivamente. De salientar que a distribuição pelos restantes níveis
4.2.1. Empregados de escolaridade também apresenta valores relativamente próximos nos
Assumindo‑se como o grupo mais representativo no respeitante dois perfis considerados.
à condição face ao trabalho, os empregados representam 34 % da
Se tivermos unicamente em consideração a variável idade na
amostra em análise. Situam‑se quase na totalidade (95,8 %) em dois
caracterização dos empregados, é possível verificar que, como expec‑
perfis: Precários (Perfil 2) e Trabalhadores (Perfil 4). Acrescente‑se que
tável, os mesmos se situam sobretudo na faixa dos 25 aos 64 anos.
cerca de 73,3 % desta população está enquadrada neste último perfil
Comparando os dois perfis, constata‑se que os mais novos estão mais
(o mais numeroso dos quatro em análise).
representados no Perfil 2 e os mais velhos no 4. Concretizando, os indi‑
Os empregados presentes no Perfil 4 são, na sua maioria, casados ou víduos com idades compreendidas entre os 25 e os 44 anos encontram
encontram‑se em união de facto (63,2 %) e fazem parte de um agre‑ maior representatividade no Perfil 2, com 49,8 % dos casos, e os com
gado doméstico privado sem particular predominância em termos de idades entre os 45 e 64 anos no perfil dos trabalhadores (49,4 %). No que
composição, embora se destaque a ausência dos isolados e de famílias respeita à principal fonte de rendimento do agregado doméstico privado,
monoparentais. os resultados obtidos indicam que, ao contrário do que sucede com os
empregados do Perfil 4 – neste 93,3 % dos trabalhadores obtêm os seus
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rendimentos a partir do trabalho –, só cerca de metade dos empregados O estado civil predominante em cada um dos perfis mencionados é
do Perfil 2 retiram daí os principais proveitos do seu agregado (46,8 %), o de solteiro(a), com maior prevalência no Perfil 2 (60,9 % e 43,9 %,
uma vez que os restantes estão distribuídos pelas diferentes fontes de respetivamente). É, também, de realçar o peso dos divorciados no caso
rendimento de agregado: 26,9 % em outras transferências sociais; 15 % daqueles que fazem parte do perfil dos desempregados e inativos, com
nas pensões; e 11,3 % em outros tipos de rendimento. cerca de 25 % do total.
Em suma, podemos concluir que estamos face a uma condição perante Como vimos, o Perfil 4 não apresenta um grande peso de desempre‑
o trabalho, a de empregado, que está claramente associada aos perfis gados (pelo contrário, define‑se pela relação com o emprego) – apenas
2 e 4. Estes distinguem‑se essencialmente ao nível do estado civil 14,9 % em relação ao total de desempregados da amostra em estudo.
(solteiro e divorciados versus casados), e da configuração do agre‑ Contudo, assinale‑se o facto de 100 % dos desempregados deste perfil
gado familiar no qual os indivíduos estão incluídos (monoparentais e se encontrarem em situação de casado(a), algo que contrasta com os
isolados versus diversidade de composição familiar com dois adultos). outros dois perfis.
Contudo, não podemos esquecer as idades (mais novos versus mais
velhos), a principal fonte de rendimento do agregado (diversidade de Se tivermos em conta o posicionamento dos indivíduos desempregados
fontes versus rendimentos do trabalho). Quanto aos níveis de esco‑ segundo a Educação (a partir da Classificação Internacional Normalizada
laridade, os valores são muito semelhantes, destacando‑se o facto da Educação), verificamos que os mesmos têm uma grande prevalência
de a maioria dos empregados dos dois perfis possuírem um nível entre os níveis do primeiro e terceiro ciclo. Sendo esta uma constatação
educacional situado entre o primeiro e o terceiro ciclo. Mau grado as transversal a todos os perfis considerados, tem especial expressão nos
escolaridades muito semelhantes, as idades distintas fariam supor que Perfis 2 e 3, com 62,4 % e 73,1 %, respetivamente.
os mais novos teriam um nível escolar mais alto, o que não acontece. Contudo, o dado de caracterização que melhor diferencia os desem‑
pregados no âmbito dos Perfis 2 e 3 reside na identificação da principal
4.2.2. Desempregados fonte de rendimento do agregado doméstico privado: no dos Precários,
Os indivíduos desempregados estão concentrados sobretudo 62,1 % dos desempregados obtém os rendimentos do agregado do
no Perfil 2, o dos Precários (44,1 % dos casos) e no Perfil 3, o dos trabalho, seguido de uma boa parte das pensões (28,6 %); os do perfil
Desempregados (39,8 %). Os desempregados constituem o terceiro dos Desempregados retiram principalmente os seus proveitos fami‑
grupo de indivíduos com mais peso na situação perante o trabalho, liares a partir de outras transferências sociais (74,1 %). De salientar
totalizando cerca de 20 % da amostra global. novamente o caso dos indivíduos desempregados enquadrados no
Perfil 4: todos eles se incluem em agregados onde a principal fonte
de rendimento é o trabalho.
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Os dados acima são particularmente pertinentes, na medida em que É no âmbito do Perfil 1 que podemos efetivamente traçar um muito
quase todos os indivíduos desempregados com o Perfil 2 (96,2 %) estão claro quadro caracterizador dos indivíduos reformados: como seria
enquadrados num agregado familiar com dois ou mais adultos, com ou expectável, 88,9 % tem mais de 65 anos, encontrando‑se predomi‑
sem crianças dependentes. Esta situação remete‑os, enquanto maiori‑ nantemente numa situação de casado(a) (54,5 %) ou, numa escala
tariamente solteiro(a)s, para uma muito provável residência na casa dos mais contida, de viúvo(a) (27,3 %). Trata‑se de um grupo de indiví‑
pais ou, mesmo não sendo este o caso, aponta para que os pais/outros duos com um nível educacional reduzido, mesmo no contexto desta
adultos estejam empregados ou reformados, daí que a principal fonte amostra, em que 94,3 % dos casos tem apenas até ao segundo ciclo de
de rendimento seja através do trabalho ou das pensões. No caso dos escolaridade.
desempregados do Perfil 3, embora os dados sejam relativamente simi‑
lares, é possível constatar um peso já razoável dos isolados (29 %). No respeitante à configuração familiar e à principal fonte de rendi‑
mento, os dados também são esclarecedores: 81,5 % dos indivíduos
Concluindo, com base nos dados de caracterização examinados, estão integrados num agregado composto apenas por um ou dois
devemos, quer na distribuição pelos quatro clusters, quer no peso em adultos, ambas as situações sem crianças a seu cargo, e 98,7 % retira os
cada um deles, considerar o posicionamento dos indivíduos desem‑ seus principais rendimentos a partir de pensões.
pregados especialmente nos Perfis 2 e 3. A análise aponta para que a
maioria desta população esteja solteira, tenha um nível de escolari‑ Portanto, estamos perante uma condição que apresenta caracterís‑
dade situado entre o primeiro e o terceiro ciclo e viva numa estrutura ticas muito particulares. Uma população essencialmente com mais de
familiar com dois ou mais adultos, sem crianças a cargo. Contudo, 65 anos de idade, maioritariamente casada, com um nível de escolari‑
podemos verificar também algumas discrepâncias entre os dois perfis dade reduzido, pertencente a agregados familiares compostos por um
considerados, sobretudo ao nível da fonte principal de obtenção dos ou dois adultos, sem crianças dependentes e que subsiste através das
rendimentos do agregado familiar (rendimentos do trabalho versus pensões, essencialmente concentrada no Perfil 1.
outras transferências sociais) e na constatação de um número já consi‑
derável de divorciados e de isolados no Perfil 3. 4.2.4. Invalidez permanente
A invalidez permanente é uma condição perante o trabalho que assume
4.2.3. Reformados uma expressão muito reduzida na amostra global (4 %), relevando‑se,
Representando cerca de um quarto do total da amostra (23 %), verifi‑ contudo, a sua concentração, quanto à distribuição, nos Perfis 2 e 3,
camos que a distribuição da população que se encontra em situação de com um total de 78 % dos casos identificados. Se atentarmos no peso
reformado, conjugada com o seu peso em cada um dos perfis, remete dos indivíduos com invalidez permanente em cada um destes perfis,
para uma alocação apenas no Perfil 1 (Reformados), com 94,6 % dos casos. embora com pouca manifestação, encontramos um maior peso no
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perfil dos Desempregados (13,7 %), com cerca do dobro do valor em vimos, pela principal fonte de rendimento do agregado doméstico
relação ao Perfil 2 (7,4 %). privado (pensões versus pensões e outras transferências sociais) e pela
composição familiar (estrutura sem crianças dependentes versus agre‑
Ao contrário das outras condições perante o trabalho já analisadas, gados compostos apenas por um adulto). Em comum, ambos os perfis
verifica‑se que a variável sexo tem uma particular relevância nos indiví‑ possuem dois terços dos indivíduos inválidos homens e um terço
duos dos Perfis 2 e 3 na presente situação. O peso dos homens (64,2 % mulheres, em contraste com outras categorias da condição perante
e 65,7 %) representa cerca do dobro do peso das mulheres (35,8 % o trabalho.
e 34,3 %), no total dos casos observados.
Os indivíduos em situação de invalidez permanente vivem essen‑ 4.2.5. Doméstico(a)s
cialmente das pensões, enquanto principal fonte de rendimento do A situação de doméstico(a) é a condição perante o trabalho que se
agregado, embora os perfis mencionados apresentem algumas dispa‑ encontra mais diluída pelos perfis considerados, sendo, por isso,
ridades (85,5 % no Perfil 2 e 58,3 % no Perfil 3). Por outro lado, se no a menos óbvia ou mais difícil de associar a um determinado perfil.
Perfil 2 os valores são quase residuais relativamente a outras fontes Embora esteja menos representada no perfil dos Desempregados
de rendimento além das pensões (14,5 %), no caso dos do Perfil 3 (9,6 %), verificamos que nos restantes perfis a sua distribuição oscila
(Desempregados), em relação ao peso das pensões (58,3 %), já encon‑ num intervalo de representatividade relativamente estreito: 35,7 % no
tramos alguma representatividade da obtenção de rendimentos na Perfil 1, 31 % no Perfil 4 e 23,7 % no Perfil 2. Em relação ao seu peso
categoria Outras transferências sociais (39,6 %). dentro de cada perfil, é possível também confirmar alguma seme‑
lhança, uma vez que os valores variam entre os 15 % no caso do perfil
Ao reportarmo‑nos à composição familiar dos indivíduos com inva‑
dos Reformados e os 8,5 % no do perfil dos Desempregados (Perfil 3).
lidez permanente, ainda no âmbito dos perfis elencados, verificamos
que, em ambos os casos, a maior parte enquadra‑se numa estrutura Ainda que o seu peso seja diminuto no total da amostra em estudo, com
sem crianças dependentes, com especial predominância no caso do cerca de 12 %, não deixa de ser necessário uma análise mais fina desta
Perfil 2 (73,7 %), sendo que no do Perfil 3 destacam‑se largamente dos condição perante o trabalho, através dos dados de caracterização dispo‑
restantes os agregados compostos apenas por um adulto, com 36,4 %. níveis para todos os perfis considerados. Neste contexto, ao tomarmos
em consideração a idade dos indivíduos, podemos verificar que a faixa
Em síntese, apesar de os indivíduos com invalidez permanente assu‑
etária dos 45‑64 anos é a que apresenta maior predominância, se exce‑
mirem um valor relativamente baixo no total da amostra, estão
tuarmos o caso do Perfil 1, onde encontramos um peso mais elevado nas
especialmente representados no Perfil 3. Porém, não é de descurar
idades equivalentes a 65 anos ou mais (78,4 %).
a sua inclusão no Perfil 2. A distinção entre perfis é realizada, como
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Como seria expectável, a esmagadora maioria desta população é femi‑ familiar e da principal fonte de rendimento. Esta última variável é a
nina26, com baixo nível escolar (a maioria dos casos até ao segundo que mais distingue o(a)s doméstico(a)s contidos nos diferentes perfis.
ano de escolaridade), e está sobretudo casada ou viúva, sendo que Assim, no primeiro prevalecem as pensões, no quarto os rendimentos
esta última situação encontra especial relevância nos Perfis 1 e 3, de trabalho, no terceiro as outras transferências sociais e no segundo
com 40,8 % e 31,3 %, respetivamente. De salientar aqui o peso dos um misto entre rendimentos do trabalho e pensões.
casados no Perfil 4, o dos Trabalhadores, com 95,3 %.
Conclusão
É também no Perfil 4 que observamos uma grande integração em agre‑
gados familiares com dois ou mais adultos (75 %), principalmente com Em conclusão, considerando o total dos casos da amostra em estudo
crianças dependentes, o que vem em linha com os valores dos Perfis 1 e a sua condição perante o trabalho, constatamos que a situação de
e 2, embora nestes a maioria das famílias de enquadramento não tenha empregado é a mais representada (34 %), seguida da dos reformados
crianças a seu cargo: 67,5 % no Perfil 1, 58,4 % no Perfil 2. Relevamos, (23 %) e da dos desempregados (20 %). As restantes situações conside‑
contudo, no Perfil 1, a importância das famílias com apenas um adulto radas por esta análise, a de doméstico(a) e a de invalidez permanente,
na sua composição, com 32,2 %. apresentam um peso menor.
Quanto à principal fonte de rendimento dos agregados, há a destacar No cômputo geral, verificamos que os reformados e o(a)s doméstico(a)s
a vincada discrepância entre os Perfis 1 e 4. No primeiro, temos uma se destacam claramente das restantes situações perante o trabalho em
elevada incidência das pensões (95 %) e, no segundo, dos rendimentos termos de associação aos quatro perfis definidos. No primeiro caso,
obtidos através do trabalho, com 99,7 %. A realidade constatada no nota‑se um vincado enquadramento num único perfil, precisamente no
Perfil 2 é mais equitativa, na medida em que 47,9 % dos rendimentos dos Reformados, cuja população tem sobretudo mais de 65 anos e não
dos agregados do(a)s doméstico(a)s são principalmente obtidos por inclui crianças no ADP (Perfil 1); no segundo caso, verifica‑se uma grande
intermédio das pensões e 34,3 % por via do trabalho. As outras trans‑ dispersão pelos diversos perfis, embora com características associadas
ferências sociais têm primazia no âmbito do Perfil 3, com 78,7 % dos que as vão distinguindo (por exemplo, as que se encontram no perfil dos
casos identificados. Reformados são maioritariamente mais velhas).
Resumidamente, a situação de doméstico(a) é transversal a todos os Podemos verificar que os desempregados e os indivíduos em situação
perfis definidos. É uma população esmagadoramente feminina, casada de invalidez permanente encontram uma nítida inclusão nos Perfis 2 e 3:
ou viúva, com idades que se situam entre os 45 aos 64 anos (excluindo o dos Precários, sobretudo coabitando com outros adultos e em agre‑
a do Perfil 1, onde são mais velhas), com baixo nível de escolaridade gados sem baixa intensidade de trabalho, maioritariamente inativos e
e com alguma diversidade em termos da composição da estrutura solteiros (Perfil 2) e o dos Desempregados, incluindo os isolados, com
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idades entre os 25 e os 64 anos, cuja principal fonte de rendimento dos
ADP são as outras transferências sociais ou as pensões (Perfil 3).
Por último, e embora encontrem enquadramento no Perfil 2 – à seme‑
lhança dos desempregados e dos indivíduos em situação de invalidez
permanente –, os empregados estão principalmente associados ao
Perfil 4, o dos Trabalhadores. Em geral, são casados ou vivem em regime
de união de facto, têm 25 a 64 anos e crianças no agregado.
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Capítulo 5
Procedimentos de recolha
e análise de dados qualitativos
Apresentada a análise extensiva, resta focar a atenção na inten‑ Adicionalmente, e como objetivo igualmente importante dentro da
siva. Começamos por avançar com a pergunta de partida Quem são fase extensiva, mobilizaram‑se os dados referentes à pobreza em
e como vivem os pobres a sua situação de pobreza em Portugal e revisitar Portugal para produzir novo conhecimento. Em concreto, procedeu‑se
o desenho da investigação. Assim, tendo em vista responder a esta à sistematização de estatísticas anteriormente estudadas pelos autores
questão, adotou‑se um desenho de pesquisa misto sequencial, em que (e por outros investigadores), atualizando‑as e relevando caracterís‑
a componente qualitativa visa recolher informação adicional à compo‑ ticas recentes e tendências.
nente quantitativa (Morse e Niehaus, 2009).
A segunda fase, de natureza qualitativa, fase intensiva, passou pela reali‑
Na primeira fase, de natureza quantitativa (aqui retomada muito zação de entrevistas semiestruturadas com o objetivo de conhecer
brevemente), foi feita a análise da evolução dos principais indica‑ as diferentes trajetórias e formas de viver e enfrentar a situação de
dores de pobreza e exclusão social em Portugal no período 2003‑2016 pobreza. Para além de contribuir para aprofundar a análise dos resul‑
e, de seguida, estabeleceu‑se uma fundamentação para a definição tados e melhorar a descrição dos perfis definidos na parte quantitativa
da estrutura do grupo de inquiridos, segundo um critério de tipici‑ (Morse e Niehaus, 2009: 122), o objetivo foi compreender como vivem as
dade e representatividade do objeto de estudo (Flick, 2002: 64). Neste pessoas em situação de pobreza em Portugal considerando as suas autor‑
sentido, a revisitação e atualização da análise sistemática dos princi‑ representações. Nesta fase pretendeu‑se, em certa medida, compensar
pais indicadores de pobreza em Portugal e a análise Probit permitiram as limitações de uma análise baseada em categorias estatísticas, densi‑
perceber a probabilidade de pobreza associada às principais variáveis ficando‑as em termos de significado e detalhe, de forma a permitir um
pertinentes para se compreender o fenómeno. Por outro lado, a Análise esclarecimento mais rico da vivência da pobreza em Portugal que tivesse
das Correspondências Múltiplas (ACM) possibilitou a definição dos em conta os seus elementos comuns e a sua diversidade.
critérios sociodemográficos para a definição dos perfis de indivíduos
Centrou‑se boa parte da nossa atenção na operacionalização dos perfis
a entrevistar. Em ambos os casos mobilizou‑se o ICOR, tendo por
definidos. O procedimento implicou um grande investimento em
referência o ano de 2018 (dados de 2017). Uma pequena descrição
tempo e esforço. A produção de perfis estatisticamente significativos
metodológica destas duas técnicas de análise de dados é apresentada
não é garantia suficiente para a realização de entrevistas que tenham
no final do primeiro capítulo, pelo que não é aqui repetida.
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em atenção a variabilidade das situações de pobreza. Com efeito, de operacionalização (distribuição das entrevistas por grandes dico‑
a análise estatística tende a relevar as grandes tendências e a reduzir tomias territoriais e por concelhos; as estratégias de acesso aos
a variabilidade dos dados. Não se trata de um defeito deste tipo de entrevistados, suas dificuldades e superação; os tipos de acesso utili‑
análise, pelo contrário, a redução da informação é fundamental para zados; os procedimentos de seleção e formação dos entrevistadores;
que os dados se tornem inteligíveis e se identifiquem as regularidades informações adicionais de caracterização dos entrevistados); 2. algumas
estatísticas (e sociais). Contudo, fica em causa uma compreensão mais reflexões teóricas de enquadramento das opções metodológicas reali‑
aprofundada da variabilidade contida nos dados – da riqueza das vidas zadas (observações relativamente à operacionalização do limiar de
concretas dos indivíduos. Com regularidade, fenómenos pouco signifi‑ pobreza na seleção dos entrevistados); e, finalmente, 3. as questões refe‑
cativos do ponto de vista estatístico são, na verdade, muito relevantes rentes aos instrumentos e procedimentos de recolha e análise dos dados,
do ponto de vista social e político e são sempre significativos para os de uma forma mais aprofundada (o reporte sobre os procedimentos de
indivíduos que os vivem. A compreensão do funcionamento da socie‑ aferição do guião de entrevista e a reflexão que proporcionou, a partir
dade, e das vivências dos indivíduos dentro dela, não se pode reduzir de quatro entrevistas exploratórias); a apresentação e aferição da grelha
àquilo que nos é dado pelas estatísticas27. de análise dos resultados, confrontada com as entrevistas exploratórias.
As virtudes do trabalho de definição dos perfis a entrevistar poderiam A nossa opção é passível de discussão, mas estamos confiantes que
facilmente perder‑se através de um processo de operacionalização permite mostrar aos leitores um conjunto de procedimentos cruciais
menos cuidado. Nesse sentido, desenvolvemos uma importante para a solidez empírica dos trabalhos de cariz qualitativo que, com
reflexão e diversas etapas, num procedimento moroso e trabalhoso, regularidade, são menosprezados.
em ordem a garantir a qualidade dos dados recolhidos.
5.1. Definição da estrutura da amostra
Perante a impossibilidade de apresentar todos os detalhes metodoló‑
gicos relevantes no espaço disponível neste livro, optamos por incluir A seleção dos entrevistados realizou‑se com base em três fontes.
nos livros desenvolvidos sobre cada um dos perfis analisados (e que Em primeiro lugar, a ACM aplicada aos dados do Inquérito às
podem ser encontrados em formato eletrónico) um extenso capítulo Condições de Vida e Rendimento (ICOR, edição de 2017); em segundo
metodológico. Neste, o mesmo nos quatro livros, retoma‑se o que aqui lugar, a distribuição dos clusters resultantes da análise das corres‑
se escreveu e aprofunda‑se os detalhes referentes à operacionalização pondências múltiplas por áreas geográficas e, em terceiro lugar,
da recolha de dados e ao seu tratamento. a confrontação com a bibliografia.
Assim, ficaram de fora deste capítulo três grandes áreas, presentes Analisámos, no ICOR, os dados referentes aos indivíduos com 18
nas publicações referidas: 1. detalhes adicionais sobre o processo anos ou mais, deixando de lado crianças e jovens. Esta opção resulta,
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em primeiro lugar, do facto de as crianças e jovens não serem pobres 1. Reformados: reformados, sobretudo com 65 anos ou mais,
em si, mas viverem no seio de agregados familiares pobres. Desde sem crianças no ADP;
logo porque não são titulares de rendimentos. Selecionamos os 18 2. Precários: indivíduos em idade ativa, dependentes ou trabalhadores,
anos como idade de corte por vários motivos. Desde motivos espe‑ em agregados sem baixa intensidade de trabalho e indivíduos que
cificamente nacionais, como os que respeitam à maioridade, ou à vivem com os pais, inativos e solteiros, com menos de 65 anos;
obrigatoriedade escolar; até aos internacionais: a ONU, na Declaração 3. Desempregados: desempregados e inaptos para o trabalho, entre os
Universal dos Direitos da Criança, declara crianças os indivíduos até 25 e os 64 anos, sendo que a principal fonte de rendimento dos ADP
aos 17 anos. Por sua vez, o Eurostat e a OCDE usam esta definição para são as outras transferências sociais;
a construção dos grupos de idade na análise da pobreza. O próprio INE 4. Trabalhadores: trabalhadores, casados/em união de facto com 25 a
segue este procedimento, embora com uma ou outra pequena e subtil 64 anos, com crianças no ADP, cuja principal fonte de rendimento no
exceção que temos assinalada no texto. ADP é o trabalho.
Contudo, as crianças não estão ausentes deste livro. Pelo contrário. Estão, pois, identificadas as principais variáveis a partir das quais foi
Na análise extensiva, pudemos observar a relevância da pobreza das feita a escolha dos entrevistados: idade, condição perante o trabalho,
crianças (para alguns pobreza infantil), refletida numa taxa de pobreza estado civil, principal fonte de rendimento do ADP, (in)existência de
dos 0‑17 anos acima da taxa geral; bem como nas elevadas taxas de crianças e composição do agregado familiar. Foi por nós adicionado
pobreza das diversas tipologias de famílias com filhos. A tipologia o género que, embora só tenha algum poder discriminador para o
familiar foi, em consequência, um critério importante para a seleção primeiro perfil, é relevante enquanto critério de diversidade da globa‑
dos entrevistados, como veremos de seguida. Por sua vez, na análise lidade da amostra e dentro de cada um dos perfis. Como apontam
qualitativa as crianças aparecem nas entrevistas: a infância dos próprios Pereirinha et al. (2008), a pobreza não é uma condição neutra em
é longamente abordada e os filhos são bastas vezes referidos, quer termos de género, visto que homens e mulheres podem viver essa
nas perguntas relativas à parentalidade, quer referenciados de forma condição de forma distinta29. A estas variáveis entende a equipa que é
espontânea pelos entrevistados. A infância acaba por ser, portanto, necessário acrescentar as variáveis espaciais30, de maneira a refletir a
uma questão central na análise que realizámos à pobreza em Portugal. base territorial das desigualdades na pobreza em Portugal.
Vimos, na primeira parte deste livro, que o resultado da ACM e da Foi também equacionada a forma como os perfis encontrados se
análise de clusters permitiu encontrar quatro perfis distintos28, que comportam no confronto com os apurados noutros estudos. Dessa
foram burilados de forma a destacar as características que mais os forma, procedemos a uma revisão da literatura, identificando três
singularizam. O conjunto deste esforço teve como resultado a seguinte estudos sobre a pobreza em Portugal que apresentam perfis, coli‑
síntese dos perfis encontrados: gidos em tipologias. Os textos identificados partilham algumas
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características que limitam a sua pertinência para aferir os perfis por
nós encontrados. Desde logo as questões territoriais, em que os dois
primeiros apresentam como território de referência o conjunto do
país, mas o terceiro está confinado à cidade de Lisboa. Por outro lado,
quando temos em conta os públicos, se o segundo ambiciona abranger
todos os indivíduos em situação de pobreza, o primeiro está confinado
aos utentes do Rendimento Mínimo Garantido (RMG) (entretanto
renomeado Rendimento Social de Inserção) e o terceiro aos utentes
do Atendimento da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML)31.
Em terceiro lugar, estas pesquisas apresentam métodos de construção
dos perfis bastante distintos dos que utilizámos. No primeiro caso,
um misto de análise de percentagens de uma amostra representativa
dos beneficiários do RMG e de entrevistas exploratórias a profissionais
de terreno. No segundo, uma construção teórica do autor, aprofundada
com estatísticas dispersas, de amplitude variável e com estudos ante‑
riores, de amplitude muito diversa. No terceiro caso, os perfis foram
desenvolvidos a partir de uma construção teórica própria aperfeiçoada
através do seu confronto com atores institucionais da cidade de Lisboa
e com um inquérito anterior a uma amostra representativa dos utentes
do serviço de atendimento da SCML.
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Quadro 29 Revisão das tipologias de pobreza na literatura portuguesa
Autor Obra Território, público e metodologia Tipologia Pontos de contacto
IDS Estudo de Impactes . Portugal A. F
amílias com problemas de saúde no 1. Reformados
do RMG, resumido por: . Beneficiários do RMG agregado D. Pessoas a viverem sós com mais de 55 anos
Maria José Queiroz B. F
amílias com jovens em situação de
(2003), «Beneficiários . Dados do estudo Avaliação de Impactes 2. Precários
do RMG marginalidade
e avaliação de impactes B. Famílias com jovens em situação de marginalidade
do RMG», Intervenção . Entrevistas biográficas C. Famílias monoparentais
C. Famílias monoparentais
Social, n.º 27, 201‑231.32 . 138 entrevistas D. P essoas a viverem sós com mais de 55 anos
3. Desempregados
. Seleção dos perfis a partir dos dados E. Minorias étnicas
A. Famílias com problemas de saúde no agregado
estatísticos do RMG e dos resultados F. Desempregados de longa duração
de entrevistas exploratórias feitas a F. Desempregados de longa duração
coordenadores das Comissões Locais 4. Trabalhadores
de Acompanhamento
Exclui:
E. Minorias étnicas
Capucha, Luís (2004) «Desafios . Portugal A. Pessoas com deficiência 1. Reformados
da Pobreza», Tese . Grupos vulneráveis identificados B. Imigrantes E. Idosos
de doutoramento, pelo autor
ISCTE. C. Desempregados de longa duração 2. Precários
. Construção do autor, sustentada em D. Trabalhadores com qualificações baixas ou I. Jovens em risco
estatísticas dispersas de amplitude qualificações obsoletas
variável, estudos anteriores de amplitude F. Famílias monoparentais
diversa e construção teórica do autor33 E. Idosos 3. Desempregados
F. Famílias monoparentais C. Desempregados de longa duração
G. Pessoas sem‑abrigo 4. Trabalhadores
H. Toxicodependentes e ex D. Trabalhadores com qualificações baixas
‑toxicodependentes ou qualificações obsoletas
I. Jovens em risco
J. Detidos e ex‑reclusos Exclui:
A. Pessoas com deficiência
B. Imigrantes
G. Pessoas sem‑abrigo
H. Toxicodependentes e ex‑toxicodependentes
J. Detidos e ex‑reclusos
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Autor Obra Território, público e metodologia Tipologia Pontos de contacto
Alexandra (2010) Os caminhos . Cidade de Lisboa A. Trabalhadores 1. Reformados
Castro e Isabel da pobreza: perfis e . Utentes do atendimento da SCML B. A
permanência na condição D. Idosos em situação de vulnerabilidade
Guerra (coord.), políticas sociais na de desempregados
Inês Amaro, cidade de Lisboa. . Estudo seguido de painel longitudinal F. Mulheres domésticas em situação de pobreza
Francisco Branco, Lisboa: Santa Casa (fases em 2011 e 2014)34 C. Jovens fora do mercado de trabalho 2. Precários
Ana Oliveira e da Misericórdia . 59 entrevistas biográficas (2010) D. Idosos em situação de vulnerabilidade C. Jovens fora do mercado de trabalho
Marta Santos de Lisboa. . Seleção dos perfis com base em E. P
essoas com problemas de saúde que F. Mulheres domésticas em situação de pobreza
três eixos (i. condições objetivas de impedem o exercício de uma atividade
existência; ii. confronto com dinâmicas profissional 3. Desempregados
subjetivas dos sujeitos; iii. relação dos F. M
ulheres domésticas em situação B. A permanência na condição de desempregados
sujeitos com os serviços de proteção de pobreza E. Pessoas com problemas de saúde que impedem
social); e em articulação com atores o exercício de uma atividade profissional
institucionais da cidade de Lisboa G. D esafiliação e perda no caminho
descendente da integração à exclusão G. Desfiliação e perda no caminho descendente
e académicos, inquérito prévio
da integração à exclusão
a 600 utentes da SCML
4. Trabalhadores
A. Trabalhadores
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São, pois, necessárias cautelas na mobilização dos estudos anterior‑ quota abrangendo pessoas inaptas para o trabalho ou em situação de
mente realizados e acima apesentados para aferir os perfis por nós invalidez permanente. Além disso, considerou‑se que as problemá‑
encontrados. Acresce que podemos observar que, nestes estudos, ticas da deficiência e da doença crónica se iriam destacar nas histórias
o número de perfis encontrados é superior ao que obtivemos na ACM de vida dos diferentes entrevistados, quer na primeira pessoa, quer no
(quatro) – entre seis a dez e em todas as três tipologias. contexto dos seus agregados38, como veio realmente a acontecer.
O cerne deste exercício comparativo é, contudo, a deteção de regula‑ Definidas as variáveis a considerar, estas foram equacionadas de forma
ridades nos perfis desenvolvidos nos estudos revistos e que não estão a refletir o seu peso relativo em cada um dos perfis e, num segundo
abrangidas pela tipologia por nós construída com base nos dados do momento, com vista a identificar os subperfis relevantes para sele‑
ICOR. Nesse sentido, identificámos, como mais pertinentes, duas cate‑ cionar os entrevistados, com base nos microdados da amostra ICOR
gorias: minorias étnicas e imigrantes, por um lado, e doentes crónicos de indivíduos com 18 ou mais anos em situação de pobreza, através
e deficientes, por outro. Em relação ao primeiro caso, os dados do da construção de quadros aninhados das principais variáveis categó‑
ICOR trabalhados no capítulo 2 permitiram perceber que, do ponto ricas definidoras do perfil. Nesta análise foram mobilizadas variáveis
de vista quantitativo, a proporção de estrangeiros entre os indivíduos adicionais que se revelaram importantes na caracterização dos mesmos
em situação de pobreza é muito baixa (97,8 % dos indivíduos de refe‑ (por exemplo indivíduo a residir com o pai/ a mãe39). Isto foi possível
rência dos agregados onde os entrevistados habitam têm nacionalidade com a construção de tabelas das principais categóricas definidoras
portuguesa35). Contudo, a taxa de pobreza dos indivíduos de referência do perfil e da sua incidência nos potenciais subperfis, resultantes do
com nacionalidade não europeia (e o ICOR não dispõe de melhor aninhamento, no perfil principal, mas também nalguns casos da distri‑
indicador) é de 37,7 % Por outro lado, os dados deste inquérito não buição de determinadas categorias pelos quatro perfis (e.g., categorias
têm qualquer informação sobre as questões étnicas. Assim, a equipa relacionadas com a condição perante o trabalho). Neste sentido, estes
do projeto entendeu que a melhor solução seria considerar a origem subperfis não esgotam toda a diversidade de casos, mas garantem a
étnico‑racial das pessoas entrevistadas enquanto critério indicativo, sua pertinência no perfil principal, uma relativa homogeneidade e a
o que, como veremos, se refletiu na diversidade interna de cada perfil exclusão mútua entre os quatro perfis. É deste exercício que resulta o
considerado36. aprofundamento da ACM que se encontra no capítulo 4.
No segundo caso, os nossos resultados, plasmados no capítulo 4, Importa também referir os critérios considerados na definição do
mostram que em todos os perfis existe uma maioria de agregados fami‑ número de entrevistas a realizar e a sua distribuição por perfil e
liares com indivíduos com uma doença crónica (aliás, uma situação subperfil/quota. É reconhecido que existe, entre os especialistas neste
que não é muito distinta da dos restantes portugueses)37. Por outro tipo de metodologia, uma grande diversidade de posições sobre o
lado, a questão da doença acaba por se refletir pela inclusão de uma número de entrevistas considerado satisfatório para garantir critérios
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de cientificidade e qualidade da pesquisa, em larga medida condicio‑ sejam considerados critérios da amostragem estatística, o reduzido
nadas pelos pressupostos metodológicos e o objetivo da pesquisa número de casos considerado, característico dos estudos qualitativos,
ou, ainda, por questões práticas que poderão afetar a sua execução afasta ambições de representatividade de toda a população. O objetivo
(Baker e Edwards, 2012). Este estudo segue a lógica da amostragem é o de acrescentar fidedignidade (trustworthiness) aos resultados, e não
estatística, segundo critérios abstratos e definidos, como vimos, realizar a generalização dos mesmos.
a priori (Flick, 2002). O facto de definir quotas permite a seleção de
um pequeno número de casos a serem estudados intensamente em
cada um dos estratos, de forma a permitir descobrir e descrever carac‑ Quadro 30 Distribuição das entrevistas pelas
terísticas que são similares ou diferentes ao longo dos estratos ou modalidades de variável, primeira aproximação
subgrupos (Teddy e Yu, (2007). C1 C2 C3 C4
Masculino 9 12 12 14
Assim sendo, pretendia‑se realizar 20 a 30 entrevistas por perfil, distri‑ Sexo
Feminino 16 13 13 16
buídas por cinco quotas em cada perfil, por sua vez organizadas em
18‑24 0 8 4 2
função das características individuais das pessoas a entrevistar (sexo,
Idade 4 25‑44 0 8 8 12
idade, estado civil, condição perante o trabalho) e das caracterís‑
categorias 45‑64 4 9 13 16
ticas do agregado doméstico em que se inserem (número de pessoas;
65+ 21 0 0 0
presença ou não de crianças; fonte de rendimento do agregado fami‑
Solteiro(a) 3 15 12 7
liar)40. A elaboração das quotas respeitou, assim, a variação interna dos
Casado(a) 13 6 5 21
perfis encontrados na ACM. Este procedimento respeita o princípio Estado civil
Viúvo(a) 7 0 2 0
da variabilidade na análise qualitativa, mesmo que isso tenha tornado
Divorciado(a) 2 4 6 2
mais desafiante o processo de se assegurar a exclusividade mútua de
Rend_Trab 0 14 1 29
todas as quotas. Uma outra opção teria sido construir as quotas tendo
Principal Fonte Pensões 25 7 5 1
em conta apenas as características centrais de cada perfil. Este procedi‑ de Rendimento
do ADP Out_Tr_Sociais 0 3 17 0
mento asseguraria uma maior coerência dos resultados, mas implicaria
Out_Tip_Rend 0 1 2 0
deixar de lado a variabilidade interna dos perfis encontrada na ACM.
No Quadro 30 e no Anexo B, apresenta‑se o resultado do trabalho
descrito anteriormente: uma primeira aproximação da distribuição das
entrevistas pelas modalidades de variáveis (Quadro 30); e a distribuição
dos perfis por quotas (no Anexo B). Importa aqui salientar que embora
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C1 C2 C3 C4 Em Portugal, os dados do ICOR (Quadro 31) permitem conhecer a
Empregados 1 7 1 23 distribuição regional (NUTS II) da taxa de risco de pobreza em 2017 e,
Desempregados 0 8 15 3 ao mesmo tempo, reconhecer a diversidade territorial do problema da
Condição Estudantes 0 5 2 0 pobreza. De facto, a região com mais incidência de pobreza (os Açores)
perante apresenta uma taxa cerca de três vezes maior do que a região com
trabalho Reformados 20 0 1 1
Domésticos 4 3 2 3 menor incidência (Área Metropolitana de Lisboa).
Out_inativos 0 2 3 0
sem crianças 24 14 14 13
n_crianças Quadro 31 Taxa de risco de pobreza (60 % da mediana)
com crianças 1 11 11 17
Portugal e NUTS II, 2017 (%)
Legenda: C1: Reformados; C2: Precários; C3: Desempregados e C4: Trabalhadores
Ano de referência 2017 (Po)
Portugal 17,3
Um dos critérios adotados para assegurar a diversidade (ou varia‑
Norte 18,6
bilidade) das situações de pobreza em Portugal no conjunto dos
Centro 18,6
entrevistados foi o do território e habitat. As principais diversidades
A. M. Lisboa 12,3
territoriais que perpassam o território nacional estão bem identifi‑
Alentejo 17,0
cadas e tendem a ser expressas nas dicotomias tradicionais: rural/
Algarve 18,6
urbano, litoral/interior, Norte/Sul, Continente/Ilhas. O nosso objetivo
R.A. Açores 31,5
foi diversificar as entrevistas pelo conjunto do território nacional em
R.A. Madeira 27,4
ordem a que a variabilidade e as diferenças existentes, com expressão EU‑SILC 2018 (Po)
territorial, tivessem tradução nos nossos resultados41.
Po – Valor provisório
Existe uma vasta literatura científica que permite compreender do ponto Fonte: INE, EU‑SILC, Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, 2018
de vista teórico e conhecer do ponto de vista empírico a importância dos
Além dos indicadores de pobreza diretamente disponibilizados pelo
contextos, nomeadamente territoriais, sobre a incidência da situação de
INE, vários estudos realizados com base nos microdados dos inquéritos
pobreza, mas também sobre a forma como a situação de pobreza é vivida
levados a cabo por este Instituto (nomeadamente, IDEF e ICOR) têm
(e.g. Blank, 2005; Cotter, 2002; Milbourne, 2014; Pereira, 2010a; Ravallion,
identificado diferenças territoriais na pobreza, quer em termos regio‑
1998; Weber et al., 2005; Weziak‑Bialowolska, 2016).
nais (NUTSII), quer em termos de grau de urbanização (Alves, 2009;
Pereira, 2010a; Rodrigues, 2016). Esta diferenciação territorial pode ser
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explicada, em parte, pela distribuição desigual, no território, das carac‑ 5.2. Caracterização do grupo de entrevistados
terísticas individuais de vulnerabilidade à pobreza (nível micro),
Realizaram‑se 87 das 105 entrevistas inicialmente previstas e ainda
o designado efeito de composição (Pereira, 2010a; Weber et al., 2005).
quatro entrevistas exploratórias (que serviram para aferir o Guião
Alguns estudos (nomeadamente Pereira, 2010a) identificaram, para
e a grelha de análise de conteúdo, nos termos descritos nas publi‑
além deste, um efeito estrutural, onde as diferenças territoriais obser‑
cações online e abaixo referenciados)43. As metas foram redefinidas
vadas não se explicam apenas pelo efeito de composição, sugerindo‑se
ponderando‑se as possibilidades de acesso e cumprindo os critérios
assim que os lugares não diferem apenas entre si, mas fazem a dife‑
definidos, o prazo estipulado para a finalização da recolha de dados
rença (Subramanian e Duncan, 2000, p. 5).
(31 de dezembro de 2019) e a coerência estrutural da amostra prevista,
Além das variáveis típicas de observação das diferenças territoriais na nomeadamente: o peso da variável sexo, dentro do perfil e na globa‑
pobreza em Portugal, nomeadamente a região e o grau de urbanização, lidade da amostra; o peso de cada um dos perfis. Assim, as entrevistas
vários estudos em Portugal têm desenvolvido tipologias que procuram realizadas respeitaram, grosso modo, a estrutura já definida antes do
caracterizar, com base em diferentes variáveis, a heterogeneidade do início da recolha de dados (detalhes no capítulo metodológico dos
território nacional com uma preocupação explícita da sua ligação à livros eletrónicos referentes aos quatro perfis).
pobreza e à exclusão social (entre outros, destacam‑se Almeida et al.,
No que concerne às características individuais das pessoas entrevistadas,
1992; Instituto da Segurança Social, 2005; Pereira, 2010a; IESE, 2014).
é de destacar que a maior parte são do sexo feminino (59 %). Saliente‑se
Os resultados do conjunto destes estudos e, em particular, o mais também a importância dos segmentos etários intermédios (25‑64 anos),
recentemente realizado, Referencial de Coesão Social 2014, desenvolvido em particular 45‑64 anos (39 %) e 25‑44 anos (31 %). De resto, 21 %
pelo Instituto de Estudos Sociais e Económicos para o Instituto da das pessoas entrevistadas tinham mais de 65 anos de idade e apenas
Segurança Social (IESE), permitem‑nos assim realizar uma distribuição 9 % tinham entre 18 e 24 anos. No que concerne à condição perante
das entrevistas pelo conjunto do território nacional de forma a que a o trabalho, destaque‑se a importância das categorias empregados
diversidade e as diferenças existentes com expressão territorial tenham (33 %); desempregados (29 %) e reformados (23 %). Apenas 9 % estão
expressão na diversidade de situações de pobreza que se pretende que em situação de inatividade, embora em idade ativa – 9 % são «domésti‑
estas expressem42. co(a)s» e 5 % estudantes. É ao nível do estado civil que se verificam mais
discrepâncias relativamente à estrutura do grupo pré‑definido: mais de
Após a definição dos concelhos onde se iriam realizar as entre‑ metade está casada ou em união de facto (56 %), o que representa mais
vistas (disponível no capítulo metodológico nas publicações online), 13 % do que o previsto; 22 % estão solteiras (‑14 %); 17 % estão separadas
procedeu‑se à distribuição dos perfis procurando atender, tanto ou divorciadas (+13 %); e apenas seis são viúvas.
quanto possível, às especificidades socio‑territoriais de cada concelho.
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Quanto às características do agregado doméstico, assinale‑se que mais expressa um critério de diversidade que vai ao encontro da sua impor‑
de metade das pessoas entrevistadas (53 %) está integrada em agre‑ tância na população em situação de pobreza.
gados com rendimentos provenientes do trabalho – mais 11 % do que o
predefinido. Das restantes, 26 % (‑10 %) estão integradas em agregados No que concerne à distribuição territorial, a maior parte das entre‑
cuja principal fonte de rendimento são as pensões e 21 % em agregados vistas foram realizadas no litoral urbano – 32 % no Sul e 29 % no Norte.
que têm como principal fonte de rendimento as outras transferências Deste modo, foi possível realizar as entrevistas na linha da distribuição
sociais. Em relação à presença de crianças no agregado familiar, mais de territorial prevista. Apenas no Sul interior rural foi realizada uma
metade das pessoas entrevistadas (52 %) está integrada em agregados proporção inferior à antecipada. Destaque‑se a importância dos perfis
com uma ou mais crianças, o que também está sobrestimado relativa‑ 3 e 4 entre as entrevistas realizadas no Norte litoral urbano; dos perfis
mente ao previsto (+14 %). 1 e 2 no caso das relativas ao Norte interior rural; dos perfis 2 e 4 no
caso do Sul litoral urbano; do Perfil 1 no Sul interior rural; e dos perfis
Considerando que os dados se referem ao ICOR 2017, os resultados 3 e 4 no que concerne às entrevistas realizadas nas Ilhas (Açores).
do ICOR relativo a 2018 (entretanto apresentados pelo INE) e que as
entrevistas foram realizadas em 2019, é de salientar que as discrepân‑
cias relativas às categorias «empregados», «desempregados» e o maior Quadro 32 Distribuição das entrevistas realizadas,
peso de agregados cuja principal fonte de rendimento é o trabalho, por perfil e dicotomia territorial
assim como agregados integrando crianças, vão ao encontro das trans‑ Perfil
Total por
formações verificadas nestes indicadores, isto é, dos dados de 2018. P1 P2 P3 P4 Dicotomia
N % N % N % N % N %
Refira‑se, por fim, dois critérios que não foram considerados na defi‑
NLU 4 16% 5 20% 9 36% 7 28% 25 29%
nição dos perfis mas que, pela sua relevância para a compreensão
NIR 6 38% 5 31% 2 12% 4 25% 16 18%
Dicotomia
dos processos de exclusão social, foram considerados na análise dos
SLU 4 14% 9 32% 6 21% 7 25% 28 32%
dados: escolaridade e pertença a uma minoria de origem étnico‑racial
SIR 5 62% 1 13% 1 12% 2 25% 8 9%
(incluindo imigrantes). No que concerne à escolaridade, é de destacar
Ilhas 1 10% 1 10% 4 40% 4 40% 10 12%
o forte peso de pessoas com o Ensino Básico (63 %). De resto, apenas
24 % dos entrevistados detinham o Ensino Secundário. Quanto às
minorias étnicas, estas estão presentes em todos os perfis: um caso no
Perfil 1; cinco no 2; três no 3; e sete no 4. Embora não existam esta‑
tísticas que nos permitam aferi‑lo, cremos que o resultado obtido
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5.3. Algumas notas sobre as estratégias separadas, ou são separáveis, considerando que ambas permeiam cada
de recolha e análise de dados momento da vida dos indivíduos.
Neste ponto apresentamos brevemente as questões principais da Assim, o Guião ficou dividido nos seguintes blocos: 1. Enquadramento
recolha e tratamento das entrevistas. familiar na infância; 2. Relação com o sistema educativo; 3. Transições
para a vida adulta; 4. Relação com o mundo do trabalho; 5. Auto
O primeiro aspeto a ter em consideração respeita à construção do
‑perceção do percurso, comparação da vida presente com a passada;
Guião de entrevista. Optámos por um modelo de entrevista semidi‑
6. Redes de apoio social não institucional e território; 7. Relação com
retiva. Este implicou a construção de um Guião de base e, ao mesmo
os sistemas e subsistemas de proteção social; 8. Perceção de si como
tempo, a possibilidade de os entrevistadores realizarem perguntas de
pobre e do combate à pobreza; 9. Perspetivas face ao futuro e, final‑
realce. Estas perguntas, não contidas no guião, foram muito impor‑
mente, aplicação de uma pequena grelha; 10. Caracterização da pessoa
tantes para aprofundar as respostas e desocultar sentidos implícitos e
entrevistada e do seu agregado familiar.
atribuídos pelos entrevistados nos seus discursos. Por vezes, o fluir da
conversa justificou alguma subversão da ordem em que as perguntas De entre a literatura consultada para a elaboração do Guião, sobretudo
foram colocadas. Sempre tendo em vista a maximização da informação envolvendo análise qualitativa sobre a pobreza e temáticas conexas,
recolhida e a clara identificação do sentido atribuído pelos entre‑ destacamos as seguintes referências importantes: Amaro e Branco,
vistados, num contexto de definição da entrevista como um diálogo 2010; Capucha, 2005; Carmo et al., 2010; Castro e Guerra et al., 2010;
dinâmico. Costa et al., 2008; Diogo, 2007; Diogo, Castro e Perista, 2015). Também
foram consultados guiões usados noutros trabalhos de investigação
No início, a equipa definiu, com base na questão de partida, na lite‑
qualitativa sobre a pobreza realizados em Portugal, nomeadamente os
ratura e na sua experiência prévia, um conjunto de grandes temáticas
constantes nas seguintes referências: Garcia et al., 2000; Branco, 2001;
com base nos quais se organizou o Guião, considerando a orientação
Castro et al., 2002; Diogo, 2007; Castro e Guerra et al., 2010; Bruto da
biográfica que se pretendeu atribuir. Esta orientação condicionou a
Costa et al., 2008.
forma como este foi concebido, tendo este sido dividido de acordo
com duas lógicas: uma focalizada na ordem sequencial biográfica em Com base numa primeira versão do Guião realizaram‑se quatro entre‑
sentido estrito, desde a infância ao momento atual e outra centrada vistas de aferição, cujos resultados foram discutidos entre os membros
numa dimensão mais subjetiva, com uma forte carga identitária, cons‑ da equipa de investigação e com os entrevistadores, de modo a modi‑
truída à volta da representação de si, no balanço de vida e na projeção ficá‑lo e adequá‑lo às necessidades do projeto e aos diversos tipos de
no futuro. Como seria de esperar, as duas lógicas nem sempre estão entrevistados.
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Estas entrevistas também nos auxiliaram no processo de construção e da investigação. No entanto, o seu cerne radica no processo de opera‑
aferição da grelha de análise de conteúdo que utilizámos, a partir dos cionalização dos perfis encontrados na fase quantitativa do estudo.
princípios da análise categorial simples, tendo como unidade de análise Num primeiro momento releva‑se o confronto destes resultados com
a ideia situada num determinado lugar da entrevista (tópos), indepen‑ estudos anteriormente realizados sobre a pobreza em Portugal e, num
dentemente da sua extensão em número de palavras. segundo momento, apresentam‑se com detalhe a passagem destes
perfis a quotas com as características das pessoas a entrevistar. Aqui
Em concreto, num primeiro momento, a grelha de análise de conteúdo destaca‑se a opção de considerar a variabilidade interna aos perfis,
foi construída com base nos blocos temáticos do Guião acima identifi‑ por oposição a uma outra opção possível, a de conservar apenas as
cados. Estes foram desdobrados em sub‑blocos que, por sua vez, foram características centrais de cada um. Finalmente, termina‑se com uma
divididos num terceiro nível, mobilizando‑se as próprias perguntas. apresentação resumida do processo de construção do Guião (que se
As entrevistas de aferição permitiram‑nos identificar e afinar o terceiro encontra em anexo).
nível de categorias. Como é usual nas análises de conteúdo, durante
o processo de análise dos dados foram identificadas categorias de Um conjunto importante de procedimentos metodológicos é, comple‑
conteúdo pertinentes que não se encontravam na grelha definida mentarmente, sumariado na introdução deste capítulo e detalhado
a priori, levando à sua modificação. Destacamos, pela sua relevância no capítulo metodológico que faz parte das publicações em formato
nas entrevistas e pelo seu impacto na vida dos indivíduos, a doença, eletrónico sobre cada um dos perfis (neste caso, é o mesmo capítulo
a morte e a emigração. nas quatro publicações).
Destes processos, aqui brevemente apresentados, é dada nota deta‑
lhada no capítulo metodológico comum aos quatro livros eletrónicos
que acompanham e complementam este livro.
Conclusão do capítulo
Em síntese, o processo de construção e análise dos dados apresentados
neste livro é particularmente complexo, considerando que envolve
uma fase quantitativa articulada com uma fase qualitativa. Os deta‑
lhes metodológicos da fase quantitativa são analisados no primeiro
capítulo e associados à crítica das fontes utilizadas, suas potenciali‑
dades e limites. Neste capítulo, apresenta‑se brevemente o desenho
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Capítulo 6
Reformados
Introdução políticas públicas, a economia e a distribuição da riqueza, nomeada‑
mente nos países com maior percentagem de população idosa. Como
Reformados e pobreza constituem um binómio da maior relevância
veremos no caso destes reformados pobres, a sua situação económica
social e política. Não cabendo neste capítulo analisá‑lo demorada‑
decorre do seu trajeto de vida, em especial da remuneração aufe‑
mente, é necessário convocar tópicos que permitirão enquadrá‑lo
rida e da sua vinculação ao sistema de segurança social, devendo os
teoricamente. Falar de reformados remete‑nos para a questão do enve‑
problemas que envolvem estas dimensões ser enfrentados com polí‑
lhecimento. O debate está sobretudo dominado pelos argumentos em
ticas públicas robustas, incluindo a urgente discussão sobre o modo
torno do «inverno demográfico», expressando uma visão preocupada
como os sistemas de aposentação são financiados. Não se trata aqui
sobre o futuro das sociedades do capitalismo avançado, nomeada‑
de colocar em confronto repartição e capitalização, público e privado,
mente na Europa, marcada por uma fecundidade bem abaixo do valor
mas sim de refletir sobre os impactos da indústria 4.0 no futuro do
necessário à renovação geracional da população. Ora, tal entendimento
trabalho, incorporando no debate o papel que pode ser desempenhado
não só está tingido de um enviesamento analítico marcadamente euro‑
por outras formas de financiamento45.
cêntrico, ao não considerar as dinâmicas migratórias que condicionam
fortemente, mesmo de modo determinante, a evolução demográfica Da infância às perspetivas sobre o futuro, passando pela escola,
de um dado país44, como tende a descartar o envelhecimento como pela transição para a vida adulta, pelo trabalho, pela relação com os
uma das maiores conquistas sociais das sociedades contemporâneas, sistemas de proteção sociais e redes de solidariedade informais, bem
ainda que sobretudo circunscrita aos países centrais e suas perife‑ como pela avaliação subjetiva da condição de pobreza, este capí‑
rias próximas. Como escrevem Ribeiro, Sacramento e Maia (2018), tulo escrutina diversas dimensões do trajeto de vida dos reformados
o conceito de «inverno demográfico» exige alguma precaução na sua entrevistados mobilizando um olhar sociológico que recusa a velha
utilização, sobretudo pelo risco de ser interpretado negativamente. dicotomia entre livre arbítrio e determinismo, para explicar a pobreza
Fazendo o necessário contraponto, o envelhecimento exprime o que atinge este grupo de indivíduos por nós inquirido. Como foi demo‑
sucesso da nossa sociedade na luta contra a morte prematura, sendo radamente explicado por Silva e Ribeiro (2015), a propósito de uma
consequência dos progressos no campo da alimentação, saúde e habi‑ outra questão social, a do trabalho sexual, mas absolutamente válido
tação. Assim, as possíveis dificuldades decorrentes deste «inverno» para o fenómeno em causa, a compreensão da pobreza exige a supe‑
terão de ser analisadas, considerando o modo como se organizam as ração do conhecido confronto entre estrutura e ação. Quer isto dizer
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que o fenómeno da pobreza não tem suficiente explicação se mobili‑ no ano de nascimento expõem os indivíduos a diferentes mundos
zarmos apenas como recurso explicativo as estruturas que organizam históricos, colocando constrangimentos e abrindo possibilidades de
as sociedades contemporâneas nem, em contraponto e menos ainda, ação, condicionando expectativas e crenças relacionadas com a idade
é suficiente procurar as explicações da pobreza nos indivíduos, como (Elder, 1994). De igual modo, é necessário considerar a dimensão
fazem os adeptos da ação social, da meritocracia e da responsabilidade temporal na projeção do futuro, nas suas aceções biográfica e histó‑
de cada um pelo seu destino pessoal. Ou seja, a existência da pobreza, rica. O futuro é recorrentemente equacionado na sua relação com
enquanto problema social, não está na natureza imutável das coisas o presente e o passado, tendo como referência as biografias indivi‑
nem atributos, mas sim em processos históricos de natureza econó‑ duais e familiares estudadas. Face a um problema tão forte, que marca
mica, social e política (Capucha, 2015). Por isso, a escassez de recursos os corpos e as almas de todos os atingidos pela pobreza, é atinente
deverá apresentar‑se não como um estado, mas como um processo que convocar as palavras de Wacquant, quando nos lembra que
acompanha a vida dos indivíduos, havendo flutuações nas suas biogra‑
fias, individuais e familiares (Guerra e Pinto, 2015). Por outro lado, sair o agente social é, antes de mais nada, um ser de carne, de nervos e
da esfera moralizante e culpabilizante, equacionando os níveis macro de sentidos (no duplo sentido de sensual e de significante), um «ser
e micro da realidade, implica também reconhecer a natureza relacional que sofre» (leidenschaftlisch Wesen, dizia o jovem Marx em seus
da pobreza, inscrita no jogo de relações que o indivíduo estabe‑ Manuscritos de 1844) e que participa do universo que o faz e que,
lece com as estruturas sociais, com as instituições e com os outros em contrapartida, ele contribui para fazer, com todas as fibras de seu
(Amaro, 2015). Ou seja, a abordagem do fenómeno da pobreza exige corpo e de seu coração [reclamando que] a sociologia deve se esforçar
que se tenha em conta as condicionantes estruturais, sejam técnico para capturar e restituir essa dimensão carnal da existência. (2002: 11)
‑económicas na ótica marxista, sejam normativo-valorativas na ótica Como certamente se poderá apreciar, fez‑se um esforço muito
durkheimiana, integrando as dimensões organizacionais e políticas de intenso para capturar e dar ao leitor a dimensão carnal da existência,
base weberiana que procuram compreender e explicar as ações dos de que nos fala de forma magistral Wacquant, através de uma análise
atores sociais individuais ou coletivos considerando o seu poder de sociológica que coloca no seu centro vidas concretas, seres humanos
disposição (Verfügunsgewalt) sobre recursos, sem descurar a abordagem vivos, de carne e osso, que lutam e sofrem enredados em contextos
interacionista‑simbólica que valoriza os processos de negociação e e trajetos marcados pela privação material e constrangimentos
representação dos atores sociais nos mais diversos contextos da vida que interpelam a sociedade que somos, o modo como ela se orga‑
quotidiana (Silva e Ribeiro, 2015). Mais, a compreensão da pobreza niza e produz as mais diversas exclusões, incluindo as fundadas na
exige a articulação entre presente e passado. Da mesma forma que os falta de recursos económicos para levar uma vida digna que mereça,
últimos anos de vida não podem ser compreendidos sem o conheci‑ a bem dizer, ser vivida. Dito de outro modo, os excertos mobili‑
mento do curso de vida anterior, há que considerar que as diferenças zados são carne viva que sofre, permitindo ver nestes indivíduos
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como a história política, económica e social das últimas seis a sete da interação», mas também as «estruturas invisíveis» que organizam e
décadas, recuando até à ditadura do Estado Novo, operou os seus constrangem os entrevistados.
efeitos excludentes num país periférico com pobreza persistente
que nem a imaginação do centro, como designa Sousa Santos (1993) 6.1. Enquadramento familiar na infância
o processo de integração europeia, conseguiu atenuar significativa‑
A infância constitui, por diversas razões, uma categoria central de
mente. Como nos mostram os dados estatísticos conhecidos, apesar
análise nos estudos sobre pobreza, numa dupla condição: na da
de o país ser notoriamente mais rico do que quando nasceram muitos
pobreza infantil propriamente dita, isto é, das crianças objetivamente
dos nossos entrevistados, nem por isso tal impactou decisivamente
afetadas pelas condições materiais de existência das suas famílias de
as suas vidas. Nasceram pobres, pobres são e certamente pobres
origem, mas também pela reprodução de situações de pobreza ao
morrerão. Assim, quando tratamos a pobreza na velhice estamos a
longo da vida e em gerações futuras. Como afirma a Unicef,
falar de uma condição que decorre de trajetórias de vida de acumu‑
lação de desvantagens (Lopes, 2015). As suas narrativas reclamam que De todas as desigualdades do mundo – e injustiças –, isso é talvez
sejamos capazes de encontrar outras soluções para cuidar dos mais o mais fundamental: as crianças que crescem em pobreza têm quase
velhos, aproximando-nos do que Reis (2020) designa por economia duas vezes mais probabilidade de morrer antes de completar cinco
do cuidado. Mais, cuidar dos mais velhos implica também cuidar dos anos do que as crianças que crescem em melhores circunstâncias.
mais novos, proporcionando‑lhes melhores salários, enfim, uma vida (2017, p. 6)
decente para que mais à frente possam ser velhos decentes.
A probabilidade de uma situação de pobreza na infância se traduzir
Este capítulo foi organizado de acordo com o modelo estabelecido numa situação de pobreza na idade adulta é grande, sendo que os
pela equipa, repetindo‑se em todos os outros capítulos, ainda que resultados que apresentamos apontam também nesse sentido.
com pequenas alterações, justificadas nomeadamente pela necessi‑
dade de adequar o texto a cada perfil, atendendo aos dados existentes. A reconstrução dos percursos de infância pelos entrevistados pretende
A partir da análise das entrevistas biográficas realizadas, destacaram‑se também recuperar uma parte significativa da sua narrativa, tendo por
os aspetos mais relevantes da vida destes entrevistados, considerando base os seguintes objetivos: explorar a visão que a pessoa entrevis‑
as diversas dimensões que compunham o guião de entrevista. Dando tada tem sobre os seus primeiros anos de vida, a sua família de origem
voz aos entrevistados, procurou‑se colocar em prática um exercício de e aquilo que era o seu contexto de vida. Estruturaram‑se em torno de
análise respeitando o fixado por Bourdieu (2008 [1993]: 705), a saber: dois temas centrais: a) Recordações e contextos da infância; b) Eventos e
uma análise da conversação estabelecida entre entrevistador e entre‑ situações potenciadoras da pobreza na infância. Este perfil permite ainda
vistado que procura capturar e compreender «a estrutura conjuntural enquadrar as narrativas dos entrevistados num tempo socio‑histórico
específico particularmente importante para a análise da pobreza,
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nomeadamente pela vivência de um período político de ditadura em que muito, era lavadeira e lavava roupa no rio, não havia máquinas de lavar,
a pobreza atingia largos segmentos da população e o enquadramento não havia nada, e a minha mãe lavava roupa para aquelas pessoas ricas
do Estado‑Providência era negligenciável (como veremos mais à frente que tinham cursos, que eram pessoas de bens e pagavam com dinheiro,
neste capítulo). Como fomos observando, este perfil de entrevistados mas também davam muitas coisas pra nós, roupas, alimentos, davam
reveste‑se de um conjunto de características específicas, influenciadas muita coisa. (P1.1. Montalegre, sexo feminino, 72 anos)
pelo contexto sócio‑histórico das narrativas em análise.
É possível encontrarmos discursos que reforçam aspetos positivos ou
Muitos dos relatos revelam‑nos infâncias sofridas e privadas de dife‑ negativos. Encontram‑se, apesar das dificuldades relatadas, memórias
rentes direitos, nomeadamente à educação, essencial a uma vida digna. e recordações positivas vividas em ambientes familiares mais estáveis,
Como afirmam Ben‑Arieh et al. (2014), a avaliação da distribuição do contrariamente aos relatos onde a violência é mais frequente.
bem‑estar em relação às crianças é especialmente complexa porque
elas ainda se estão a desenvolver e porque dependem de cuidadores Entrevistadora: A sua mãe batia‑lhe? Mas porquê?
no nível micro, bem como de políticas de nível macro que as enqua‑ Entrevistada: Porque eu não queria ir para o monte, não queria ir para
drem. Em contraste com o que ocorre no presente, as realidades o monte.
reveladas por estas narrativas estão ainda longe de um conjunto de Entrevistadora: Não queria ir trabalhar?
preocupações do ponto de vista das políticas públicas para a infância, Entrevistada: Não, porque eu era aleijada dessa mão e não queria
do trabalho infantil e da pobreza infantil. trabalhar!
Entrevistadora: A senhora tinha um problema na mão?
As recordações da infância são heterogéneas. Uma maioria alargada Entrevistada: Tinha.
revela fenómenos de instabilidade familiar, uma presença significa‑ Entrevistadora: E que idade a senhora tinha quando ela batia na senhora?
tiva da perda de um dos progenitores, bem como uma relação estreita Entrevistada: Tinha para aí 14 anos. (P1.4Montalegre#1, sexo femi‑
com o trabalho infantil, sobretudo rural. Em algumas narrativas é nino, 63 anos)
possível perceber‑se uma certa resignação face à situação vivida, sendo
frequente um discurso diferenciador entre «não ter nada» e «passar Mesmo para os que frequentaram a escola, a saída precoce para apoio
fome», ainda que para alguns estas questões sejam relativizadas. familiar foi o destino. Relativamente aos diferentes eventos poten‑
ciadores de pobreza é possível identificar em algumas narrativas a
Entrevistadora: A mais velha dos oito, como são as recordações posi‑ instabilidade familiar por questões de saúde ou de violência familiar.
tivas dessa época? A perda de pais e mães em idades ainda muito precoces é apontada
Entrevistada: Os meus pais… são recordações que não passávamos como elemento central das recordações da infância e, sempre que
fome, mas havia muita dificuldade, muita! E a minha mãe trabalhava assim sucedia, o progenitor que sobrevivia tornava‑se mais ausente,
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o que decorria da necessidade de trabalhar, por se tornar o único Entrevistadora: Já estava no campo?
elemento a auferir rendimentos do trabalho daquele agregado. Entrevistada: Ai bom! Tinha que ser…
Em alguns casos, esta perda de fonte de rendimento foi o motivo Entrevistadora: Cuidava das irmãs, dos irmãos…
evocado para que as crianças começassem a trabalhar precocemente, Entrevistada: Pois…
por exemplo, em atividades agrícolas. As perdas de um dos pais (ou Entrevistadora: Os seus pais eram agricultores?
de um avô) representaram para os entrevistados a quebra de uma Entrevistada: Pois. Pois… Pois é. (P1.2. Boticas, sexo feminino, 92 anos)
harmonia familiar que antes existia. Em diferentes situações é ainda
possível encontrar associações particularmente felizes da infância, Para os que frequentaram a escola existem memórias positivas desse
em que a figura dos avós como principais educadores das crianças está tempo, sobretudo associadas aos amigos e à brincadeira, sendo esta um
presente, mesmo existindo progenitores. Na verdade, de acordo com dos elementos centrais da infância. Para lá da escola, a vida de trabalho
o que foi possível verificar nas entrevistas e tal como observado num desde cedo no campo retirou possibilidades de convívio com pares.
estudo sobre pobreza infantil na Escócia, As recordações de limitações financeiras que não possibilitavam uma
infância tão feliz como desejada, nomeadamente para a compra de
Não existe uma família típica na pobreza. Todas elas têm uma história diferentes produtos como roupa, material escolar, comida, entre outros
única de como chegaram a ter baixo rendimento e como é a vida para bens, são também frequentes no discurso dos entrevistados. Como
eles. Mas existem semelhanças e padrões nessas histórias, e utilizamo observa Attree (2006), a desvantagem tem efeitos negativos na saúde
‑los para agrupar famílias de baixo rendimento com filhos em quatro física e socio‑emocional das crianças que persistem por toda a sua vida.
grupos principais ou «tipos». «Lutar para sobreviver» é o maior tipo de Além disso, quanto mais tempo as crianças vivem em pobreza, maiores
pobreza infantil, com cerca de um terço das famílias de baixo rendi‑ os impactos na sua saúde e desenvolvimento (Duncan et al., 1994; Aber
mento com crianças nesse grupo (Scottish Government, 2017, p. 11). et al., 1997; McLoyd, 1998; Harper et al., 2003).
Nas narrativas é bastante visível o impacto direto das situações de vida Neste perfil, a ausência de políticas sociais de apoio às famílias e
das famílias. A pobreza, bem como a ausência de apoios formais às crianças é mais visível, alinhando‑se com a inexistência de um Estado
famílias, justifica um ingresso bastante precoce das crianças no mundo social ou com a existência de políticas sociais de combate à pobreza
de trabalho, sobretudo no trabalho agrícola ou na aprendizagem de um características do período sócio‑histórico a que se referem as narra‑
ofício, como vimos. tivas (Estado Novo). Nos perfis seguintes, de que que falaremos
adiante, é já possível observar diferenças significativas a este nível.
Entrevistadora: Sim. A senhora com quantos anos começou a traba‑ Aqui, o apoio da família alargada é identificado como um elemento
lhar no campo? que permitiu mitigar várias dificuldades das famílias identificadas ante‑
Entrevistada: Ai Jesus… sei lá! Se… se calhar com dez ou doze anos. riormente. A perda de progenitores, assim como situações de grande
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fragilidade da saúde de adultos, constituíram‑se como os elementos 6.2. Relação com o sistema educativo
principais que agravaram essas dificuldades. As solidariedades intra‑
A escola é também um veículo altamente eficaz na produção e/ou
familiares são também uma realidade nos restantes perfis permitindo,
reprodução de desigualdades socioculturais muito difíceis de contra‑
em muitos dos casos, uma mitigação dos efeitos da privação sentida
riar, pese embora a estruturação de diferentes políticas de combate ao
por muitas famílias. Por outro lado, como observa Attree (2006) e
abandono e insucesso escolar (DGEC, 2016, p. 2). Assim, a observação
como foi possível vermos em algumas das nossas narrativas, diferentes
dos percursos escolares e do sucesso ou insucesso dos entrevis‑
estudos sugerem que a desvantagem na infância pode levar à perceção
tados assumiu uma componente central na análise das trajetórias de
de que as limitações económicas e sociais são «naturais» e normais,
pobreza. A maioria dos entrevistados teve percursos muito curtos,
impactando assim as expectativas de vida das crianças (Middleton
que se refletiram mais tarde nas possibilidades de acesso ao mercado
et al., 1994; Roker, 1998; Ridge, 2002). Alguns estudos sugerem que,
de trabalho. Em duas dessas situações também foi possível identi‑
ainda que este não seja um processo inevitável, as crianças podem
ficar a aprendizagem de uma profissão, como a costura, no sistema
resignar‑se a viver na pobreza. Dito de outro modo, aprendem a
mestre‑aprendiz. As representações sobre a escola e sobre o trabalho
«contentar‑se» com recursos limitados (Attree, 2006). Da mesma
infantil eram bastante diferentes no período histórico onde se desen‑
forma, estes diferentes estudos sugerem que a pobreza não é apenas
volveu a infância dos entrevistados (em regra no Estado Novo). Era
prejudicial para as crianças quando apresentam as suas expectativas de
comum, como vimos nas entrevistas, que as crianças iniciassem relati‑
vida, pois pode também influenciar as suas aspirações relativamente
vamente cedo a aprendizagem de um ofício ou trabalhassem no campo
ao futuro. A título de exemplo, vários entrevistados eram pessimistas
e em tarefas domésticas em casas de outras pessoas (mulheres). Esses
sobre a educação enquanto caminho para o sucesso pessoal. Também
mesmos percursos na infância têm impacto, mais tarde, nas escolhas
nestes relatos se torna possível observar a importância da família
profissionais e no acesso ao mercado de trabalho, enquanto adultos.
alargada e a presença de elementos positivos de vizinhança como miti‑
A maioria dos entrevistados deste perfil tem, portanto, habilitações
gadores destas situações de pobreza, nomeadamente no fornecimento
literárias baixas e experiências escolares curtas e diversas: muitos
de alguns bens alimentares às famílias. Ao mesmo tempo, situações de
aceitam com alguma resignação o facto de não terem podido estudar e
baixas qualificações e analfabetismo são identificadas como elementos
de terem abraçado tarefas agrícolas, na aprendizagem de uma profissão
potenciadores de uma vida mais difícil e de acessos menos qualifi‑
(ainda que de modo informal) e de terem sido um suporte para a
cados ao mercado de trabalho. Na verdade, muitas das situações menos
família em geral (nomeadamente enquanto cuidadores dos irmãos
positivas que os entrevistados recordam da infância são coincidentes
mais novos). Também as limitações financeiras motivaram a saída de
com eventos perturbadores e potenciadores de pobreza, podendo
alguns da escola, quer dizer, saíram para se tornarem contribuintes
identificar‑se dois principais: doenças de crianças e adultos e o faleci‑
para o orçamento familiar. Neste perfil salientamos que as recordações
mento de pai ou mãe e, em algumas situações, de avós.
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da infância e da relação com os pares e professores são diversas. Se os percursos escolares dos entrevistados, bem como os modos como
para alguns a escola era um local de que gostavam, para outros a expe‑ projetam as suas representações da escola e do futuro, são diversos.
riência é negativa, nomeadamente pelas recordações de violência dos Maioritariamente com baixas habilitações e percursos escolares muito
professores face aos alunos. Novamente, importa aqui situar muitas curtos, a representação da escola como fator possibilitador de um
destas narrativas num período histórico (o Estado Novo) em que a melhor futuro e de maior qualidade de vida está presente na maioria
escolarização das crianças não era ainda um direito central e onde a dos discursos, em particular no acesso a profissões mais interessantes e
escolaridade obrigatória não assumia a importância que hoje tem. com melhor remuneração.
Entrevistado: Eu tenho que… os professores davam cabo das orelhas Entrevistada: Se pudesse gostaria de ter continuado, mas infeliz‑
a alguns, mas a mim nunca me deram cabo delas. Mas palmadas ainda mente não pude continuar.
apanhei umas poucas. Entrevistadora: Porquê?
Entrevistadora 2: Davam cabo de quê? Entrevistada: Ora, para ter uma vida melhor, não é? Para aprender
Mulher do entrevistado: Das orelhas [risos]. mais. (P1.2. Serpa, Sexo feminino, 74 anos.)
Entrevistado: Ai, a mim nunca mas puxou, mas a alguns… levei foi
palmadas nas mãos, ai, isso apanhei [risos]. (P1.3., Vila Pouca de No entanto, é também possível encontrar quem não associasse a
Aguiar, sexo masculino, 82 anos) escola a nada positivo na infância e que mantenha a mesma opinião
enquanto adulto. São casos de passagem sofrida pela escola, onde o
Entrevistadora: Então e gostava da escola? gosto por esta está ausente, mesmo quando é valorizado o convívio
Entrevistada: Gostava, gostava. Olhe, só levei com a cana na cabeça uma com os colegas. Existem entrevistados que não associam a escola,
vez, hum, eu fui para a escola do XXXX46 e só levei com a cana uma vez o «ter estudos», a um futuro melhor, referindo que há muito desem‑
porque estava a conversar. (P1.5, Porto, sexo feminino, 67 anos) prego e dependência de ajudas sociais, mesmo para quem estudou.
Estes processos de racionalização desta experiência também podem
Na maioria dos relatos é possível perceber que os constrangimentos de ser encontrados no Perfil 3, como veremos mais adiante.
viver em famílias pobres, dependentes do trabalho (muitas vezes agrí‑
cola) limitou as possibilidades de as crianças completarem percursos Entrevistadora: Acha que teria estudado mais?
escolares para lá da escola primária, verificando‑se que essa vontade Entrevistada: Chegava ao sexto ano, pronto, ficava em casa.
está condicionada também à pobreza das famílias. A «desvalorização» Entrevistadora: Ficava em casa.
implícita da escola e a necessidade de assegurar as necessidades Entrevistada: Claro.
familiares, sejam financeiras, sejam de cuidados a adultos e crianças, Entrevistadora: Porquê?
limitaram estas possibilidades aos entrevistados. Ainda assim, Entrevistada: Porque já não, não há onde se empreguem.
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Entrevistadora: Sim. casos, sendo que os restantes são abandonos por desgosto da escola
Entrevistada: Tantos serviços que estão para aí, está tudo no rendimento e por um ou outro caso de entrada na conjugalidade, no que se refere
mínimo, essa gente, para aí. (P1.1_VFCampo, sexo feminino, 79 anos) às mulheres. Novamente, importa aqui situar muitas destas narra‑
tivas num período histórico em que a escolarização das crianças não
Por contraste, em várias entrevistas foi possível encontrar o gosto por era ainda um direito central e em que a escolaridade obrigatória não
aprender, por saber mais coisas, em particular no domínio da leitura e assumia a importância que hoje tem. A «desvalorização» implícita da
da escrita. Enfim, como referimos anteriormente, para alguns entrevis‑ escola e a necessidade de assegurar as necessidades familiares (seja
tados deste perfil a escola era um lugar que gostavam de frequentar, financeiras, seja de cuidados a adultos e crianças) limitaram estas possi‑
ainda que tivessem de a abandonar por diferentes motivos. bilidades aos entrevistados.
Entrevistadora: Alguma vez reprovou? O estudo da OCDE conduzido por Machin (2006) observa que inves‑
Entrevistada: Não, passei todos os anos. tigadores de várias disciplinas argumentam que a educação pode
Entrevistadora: De que é que gostava mais na escola? melhorar o bem‑estar social, impactar o crescimento económico
Entrevistada: Da brincadeira no recreio, estar com os amigos. e ser um fator‑chave no desenho e na implementação de políticas
Entrevistadora: E de que é que gostava menos na escola? económicas e sociais. Em resumo, existem benefícios sociais da apren‑
Entrevistada: Não tenho assim… nada, gostava mais ou menos de tudo. dizagem, além dos económicos, que se acumulam em cada indivíduo.
Entrevistadora: Como era a sua relação com os professores? Em primeiro lugar refira‑se a atenção recentemente dada à noção de
Entrevistada: Gostava muito da professora, foi sempre a mesma da «políticas sociais ativas» e que enfatiza a importância da mudança
primeira à quarta classe. (P1.2., Serpa, sexo feminino, 74 anos) de uma abordagem corretiva na política social para uma que privi‑
No entanto, esse gosto e vontade nem sempre se concretizaram num legie os objetivos de «tornar o trabalho remunerado» e de facilitar
regresso à escola (por exemplo, no ensino de adultos) ou na frequência a integração das pessoas no mercado de trabalho. Essa mudança de
de formação profissional que habilitasse a diferentes profissões. Aliás, ênfase exige maior atenção às diferentes experiências de aprendi‑
na maioria das entrevistas não houve experiências de formação profis‑ zagem que podem melhorar ou dificultar as perspetivas de emprego e
sional posteriores por parte dos entrevistados ou de ensino de adultos, carreira de indivíduos em maior risco de exclusão social. Em segundo
como veremos mais detalhadamente no ponto seguinte deste capítulo. lugar, a análise dos resultados sociais da aprendizagem está relacio‑
nada com o objetivo tradicional de justiça, embutido na maioria dos
Enfim, o abandono escolar na infância deveu‑se, sobretudo, às condi‑ programas sociais. Embora, tradicionalmente, esses programas se
ções materiais de vida da família e à necessidade de as crianças tenham concentrado em medidas de pobreza e desigualdade de rendi‑
ajudarem no trabalho agrícola da família, para a grande maioria dos mento, a atenção atual dirige‑se à transmissão intergeracional das
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desigualdades (Machin, 2006). Neste perfil salienta‑se, precisamente, apenas aos rapazes, sedimenta uma sociedade de «contornos patriar‑
a questão da transmissão intergeracional das desigualdades referida cais» (Candeias e Simões, 1999) e justifica a existência de uma maior
por Machin (2006), enquanto desvantagens sociais persistentes na vida incidência de analfabetismo entre as mulheres, algo que os dados
dos indivíduos e associadas a fatores estruturais relacionados com o censitários continuam a evidenciar. Também não podemos negligen‑
funcionamento da sociedade como um todo. ciar a existência de uma distância entre o enquadramento legislativo e
as práticas sociais, impondo‑se com regularidade uma inserção laboral
6.3. Transição para a vida adulta ainda mais precoce do que a legalmente sancionada.
De uma forma geral, as trajetórias dos inquiridos neste perfil são relati‑ O fraco investimento no processo de escolarização por parte das famí‑
vamente lineares em termos da passagem pelos marcadores sociais que lias mais desfavorecidas tem sido enfatizado pela investigação, quer
definem a idade adulta: saída da escola, entrada no mundo do trabalho, porque estão muito distanciadas da cultura escolar, quer porque valo‑
autonomia residencial, transição para a conjugalidade e parentalidade. rizam, no imediato, uma ética do trabalho precocemente incutida nas
crianças (Wall, 1998), ou ainda porque formulam a representação de
Foi possível constatar que, para a generalidade dos inquiridos, a tran‑
que a frequência da escolaridade, bem como o prolongamento dos
sição da escola para o trabalho se realiza em idades muito precoces e
estudos, poderia promover uma «hemorragia dos campos» (Sarmento,
após trajetórias escolares muito curtas, como vimos. Os depoimentos
2015, p. 55) e assim colocar em causa a sustentabilidade das explora‑
ilustram, exemplarmente, as dificuldades e a dureza do trabalho
ções agrícolas e as atividades económicas rurais.
exercido, precocemente, quer em contexto rural, quer urbano, e a
importância do trabalho infantil na sobrevivência do grupo doméstico. Os retratos que nos são facultados pelas biografias individuais
reportam‑se a um Portugal rural do Norte, interior e litoral e do
À luz dos padrões normativos atuais o trabalho infantil constitui
Alentejo, e a inserções laborais realizadas no contexto de uma agricul‑
uma das mais elementares limitações aos direitos das crianças, mas
tura de tipo familiar ou integrando a enorme massa de trabalhadores
durante a fase da infância dos nossos entrevistados – nos anos 30,
sazonais que trabalhavam nos latifúndios alentejanos, muitos dos quais
40 e 50 do século xx – era socialmente consentido e até enqua‑
migrando de zonas de agricultura familiar. Mas as biografias também
drado nos normativos legais vigentes, o que demonstra a importância
dão conta de situações de êxodo rural de trabalhadores agrícolas que,
das regulamentações institucionais na configuração das transições
a partir dos anos 50, se veem compelidos a abandonar os campos para
para a idade adulta. Durante o período de vigência do Estado Novo
escapar aos baixos rendimentos agrícolas, procurando melhores condi‑
havia uma sincronização entre a idade em que se podia ingressar no
ções de vida nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto.
mundo do trabalho e a escolaridade obrigatória que, até 1956, era
de três anos e após essa data foi alargada para quatro anos. Aplicada
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Revelam‑se nestes relatos profundas assimetrias e desigualdades de pelo desejo de transformação pessoal, na linha de uma conceção
género, não tanto evidenciadas pelo facto de as mulheres desempe‑ iluminista sobre a formação que inspirou os movimentos da educação
nharem atividades laborais com ligações contratuais mais precárias do permanente no século xx.
que os homens, dado que esta precariedade é apanágio da generali‑
dade dos entrevistados deste perfil, mas antes pelo tipo de atividade Do ponto de vista das transições familiares também se evidencia um
desempenhada, sendo as mulheres mais relegadas para atividades que padrão biográfico normalizado, onde a conjugalidade foi concomitante
implicam o cuidar ou o seu confinamento ao espaço doméstico: com a autonomia residencial e precedeu, quase sempre, a parentali‑
dade, verificando‑se que as mulheres fazem este percurso em idades
Entrevistada: Quando saí da escola eu fui tomar conta de dois meninos mais precoces que os homens.
para uma senhora que era rica e tinha um comércio e pediu à minha
mãe se me deixava pra lá ir tomar conta dos meninos, tinha dois! A valorização da componente institucional da união conjugal é comum
Entrevistadora: E que idade tinha nessa época? aos entrevistados e o casamento em idades jovens é um fenómeno que
Entrevistada: Tinha 13 anos. (P1.1, Montalegre, feminino, 74 anos) se evidencia, sendo mais frequente entre as mulheres entrevistadas.
As relações conjugais são duradouras, sendo muito reduzido o número
O depoimento anterior ressalta também a importância que, durante de separações/divórcios. O casamento conduziu muitas destas mulheres
o Estado Novo, assumiu o trabalho doméstico prestado por raparigas, à condição de domésticas, em unidades familiares pautadas por uma
ainda adolescentes, que eram trazidas pelas famílias mais abastadas diferenciação clara dos papéis sexuais, onde os homens asseguravam as
para a cidade, na casa de quem, habitualmente, ficavam a residir. Estas funções instrumentais e trabalhavam fora de casa, contribuindo para o
famílias garantiam, para além do alojamento, as condições de subsis‑ sustento da família, ficando reservadas para as mulheres as funções de
tência e, por vezes, um salário variável e definido no âmbito de uma cuidado do lar. Esta repartição das funções tem implicações na estrutu‑
relação privada sem enquadramento legal e, consequentemente, ração das relações de poder no núcleo familiar, sendo que aqui o poder
completamente desprotegido em termos de direitos. masculino também se estrutura em função das expectativas que as
próprias mulheres formulam acerca do papel dos homens na provisão de
Para alguns entrevistados a precocidade da saída da escola e as baixas recursos que garantam a sobrevivência da família:
qualificações obtidas, em idades ideais de frequência, conduziu à
necessidade de retorno à escola, possível agora no pós‑25 de Abril e Entrevistada: Um marido é a trave da casa. Costuma ser… (P1.5_
no contexto de um sistema educativo menos elitista e mais promotor Ferreira do Alentejo, feminino, 73 anos)
da igualdade de oportunidades. Este retorno é justificado quer pelo
desenvolvimento de competências relacionadas com uma requalifi‑ Atendendo aos depoimentos, percebe‑se que, por vezes, a subordi‑
cação profissional, no contexto das políticas ativas de emprego, quer nação das mulheres a uma dominação masculina é construída por
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processos de socialização já estruturados numa lógica patriarcal, O reconhecimento social do que se considera serem as funções
em núcleos familiares organizados segundo uma lógica tradicional consentidas a cada género é, durante o Estado Novo, reforçado por
de repartição das tarefas e do exercício do poder. Mas, para além da uma «discriminação legalizada» que vigorou nos normativos legais
dependência económica em relação ao marido e do reconhecimento do criados durante este período (Monteiro, 2010, p. 40).
papel imprescindível deste na estruturação familiar, os depoimentos
também evidenciam como a situação de extrema fragilidade econó‑ As funções relacionadas com a parentalidade também assentam
mica destas famílias pode ter ajudado a eternizar situações conjugais numa forte diferenciação de género, sendo protagonizadas pelas
conflituais. De facto, a investigação tem salientado a associação entre mulheres. Para algumas, é a maternidade que justifica o afastamento
um conjunto de eventos de vida e a entrada em situações de pobreza de atividades laborais remuneradas e uma concentração nas tarefas
(Vandecasteele, 2010), designadamente o divórcio, a doença, a saída domésticas e nos cuidados prestados aos filhos:
de casa dos pais e a monoparentalidade, em países integrados em dife‑ Entrevistadora: Quando veio para Ferreira também vendia fruta?
rentes regimes de Estado‑Providência. Entrevistada: Não, estava em casa, tinha de cuidar dos filhos e do
O guião ideológico dominante durante o Estado Novo reservou para as marido, lavar loiça, fazer comida.
mulheres o papel de «esteio doméstico de uma família sã, reprodutora Entrevistadora: Até ao resto da sua vida foi essa a sua principal ocupação.
ideológica natural no seio do lar familiar e, sobretudo, na educação Entrevistada: Pois… pois.
dos filhos» (Rosas, 2001, p. 1044), limitando os seus destinos sociais e Entrevistadora: Portanto trabalho com contrato foi só aquele
condicionando os valores e representações sociais sobre as mulheres, da cerâmica?
a expressão das suas capacidades, em suma, o que hoje reconhecemos Entrevistada: Pois… pois. (P1.2_Ferreira Alentejo, feminino, 80 anos)
ser a afirmação dos seus direitos: O sentido de alguns depoimentos permite perceber que trajetórias
Entrevistadora: Sim. Acha que a sua vida teria sido melhor se tivesse de pobreza destas mulheres saem reforçadas pelo facto de, ao assu‑
continuado a estudar? mirem o trabalho doméstico, se terem afastado do mundo do trabalho
Entrevistada: Sei lá… mas talvez, não sei. Naquele tempo não e da possibilidade de, com o seu salário, partilharem os encargos
havia estes empregos para mulheres. Mulheres não tinha… não… as familiares. Salientam igualmente uma realidade muito presente na
mulheres não valiam nada. Naquele tempo as mulheres não valiam sociedade portuguesa, nas décadas em que a transição para a paren‑
nada. Não, não tinha empregos como agora. Por isso é que diziam: talidade ocorre, e que remete para a inexistência ou insuficiências
«Para que uma mulher quer saber ler?» Não é preciso saber ler. (P1.2_ de estruturas educativas que permitam acolher as crianças enquanto
Boticas, feminino, 92 anos) os pais trabalham. Por outro lado, não se denota na sua trajetória a
existência de redes informais de entreajuda com as quais pudessem
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partilhar o cuidado às crianças o que, eventualmente, as libertaria para Entrevistado: Trabalhava para eles. Pois claro, até uma certa idade.
o trabalho remunerado. Neste sentido, a necessidade de autoexclusão Até que depois, me apartei deles e meus pais morreram e eu [mímica
das mulheres do mercado de trabalho, a debilidade da rede de apoio de trabalho no campo]. (P1.3_Montalegre, sexo masculino, 89 anos)
familiar e a ausência de políticas sociais de proteção à infância consti‑
tuem fatores estruturais de agravamento da situação de pobreza destes Quase todos os entrevistados neste perfil entraram no mundo do
agregados domésticos. trabalho em pleno Estado Novo e, grosso modo, trabalharam em média
20 anos durante este regime47. Há aqui, portanto, um efeito gera‑
cional que nos remete para um Portugal que já não existe mas que, não
6.4. Relação com o mundo do trabalho
obstante, deixou marcas evidentes e duradouras, diríamos estruturais,
A análise da relação com o mundo do trabalho dos reformados parte da na vida dos entrevistados. Se nos pontos anteriores vimos esse efeito
trajetória laboral por si desenvolvida enquanto trabalhadores. Assim, na relação com a Escola e na vida familiar, neste ponto ele é visível
um primeiro aspeto que se destaca é que praticamente todos tiveram na relação com o mundo do trabalho. É nesse contexto que se pode
momentos de atividade laboral ao longo da sua trajetória de vida. compreender a ausência de um tipo importante de estratégias para
Contudo, algumas das atividades relatadas são tão específicas e atípicas acesso a trabalho: a mobilização institucional de entidades como as
que desafiam a sua definição como trabalho (Karlsson, 2004). Portanto, escolas, as escolas profissionais, os centros de emprego ou os serviços
em muitos casos, pode‑se falar em atividade laboral mas não em de ação social. Esta ausência é claramente geracional, contrastando
emprego e, noutros, mesmo a definição de atividade laboral é dúbia. com os outros perfis, marcando um período da história recente onde a
maior parte dessas instituições não existia.
Assim, uma primeira questão respeita às diferentes estratégias de
acesso à atividade laboral utilizadas pelos indivíduos. Nestas verifica‑se Os resultados que estamos a discutir, incluindo no resto do capítulo,
que são mais os casos de mobilização de redes de conhecimento inter‑ permitem perceber que a pobreza da grande maioria dos entrevistados
pessoal do que de estratégias individuais (estas últimas correspondem no perfil Reformados não é algo que decorre de um qualquer incidente
a apenas quatro casos de procura de trabalho através do jornal). Entre na vida; antes corresponde a uma herança familiar marcada pela pobreza
as formas mais utilizadas para se conseguir um emprego (ou atividade) que se reproduz nos mais diversos contextos, com destaque para o
destaca‑se o papel dos familiares, em especial dos progenitores: ingresso no mercado de trabalho através de atividades pouco qualifi‑
cadas e de baixos salários que concorrem para os marcar como pobres.
Entrevistado: Conhecia meu pai, conhecia a minha mãe e, portanto,
A bem dizer, a inserção precoce no trabalho não os livra da pobreza,
me criaram. E trabalhei para eles.
antes a reforça. Ao longo da sua vida profissional, as atividades desen‑
Entrevistador: Trabalhou para eles?
volvidas são, sobretudo, rurais, havendo uma ou outra mais urbana como
serviços domésticos, ajudante de eletricista ou costureira. Isso resulta
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sobretudo do facto de a maioria dos entrevistados ser proveniente de Depois lá puseram a eletricidade, mais tarde, mas trabalhei muito à luz
concelhos rurais. Contudo, mesmo em casos de reformados de concelhos da candeia. (P1.2_Boticas, sexo feminino, 92 anos)
urbanos, os entrevistadores desenvolveram parte das suas atividades
laborais em áreas e atividades rurais, considerando os processos de Todas as vantagens materiais e simbólicas da passagem do tempo
migração rural‑urbano que viveram. Sendo mais um indicador do peso consubstanciadas na ideia de carreira (numa organização ou numa
do contexto histórico do Estado Novo nas vidas destes indivíduos, este profissão) estão ausentes desta forma de viver a trajetória laboral
tipo de atividades está habitualmente associado, ainda hoje, a condi‑ (Diogo, 2010). Existe, é certo, alguma diversidade das atividades desen‑
ções de trabalho que, por sua vez, relacionamos com a pobreza: baixas volvidas ao longo da trajetória de vida dos entrevistados. Quer dentro
qualificações exigidas, precariedade, baixas remunerações, penosidade e das trajetórias de cada um, quer entre entrevistados. Mas isso não
perigosidade48 (as atividades ligadas à agricultura e aos serviços domés‑ impede que estas atividades partilhem a desqualificação, os baixos
ticos estão entre as que mais registam acidentes de trabalho). salários, a precariedade e, muito frequentemente, a informalidade.
Se juntarmos a esta lista os períodos de desemprego e a inexistência de
Verificamos também que boa parte dos entrevistados teve uma traje‑ carreira, temos reunidas as características das trajetórias de emprego
tória de emprego em carrossel. Ou seja, os indivíduos envolvidos em carrossel. Quer dizer, por muito diversas que sejam as atividades
neste tipo de trajetória de emprego movem‑se frequentemente entre laborais desenvolvidas pelos entrevistados, a trajetória de emprego em
empregos e atividades sem sair do mesmo lugar social. Não se trata carrossel é um elemento comum a quase todas.
de uma situação precária associada à juventude que, com o passar do
tempo, é superada. Tende a persistir, afetando boa parte ou mesmo a A precariedade no emprego, em particular a trajetória de emprego
totalidade da trajetória profissional dos entrevistados. em carrossel, está também associada à realização de uma grande
diversidade de tarefas em períodos temporais relativamente curtos,
[além do trabalho na agricultura:] Costurava… costurava, tecia, fazia em particular biscates, e à sua informalidade, isto é, à ausência de
camisolas, fazia meias, fazia malhas, fazia renda, fazia aquilo que me contrato, direitos e contribuições para a segurança social. Muitas vezes
aparecia à frente para fazer. Certos dias, não ia à cama! De noite tinha desafiando a própria definição de trabalho. Neste caso, a entrevistada
que trabalhar no… na lavoura e no que calhava, e moer pão, e cozer, identifica tarefas nos serviços pessoais e domésticos e na produção
secar, e… e a lida da casa, e lavar, e arremendar!… a roupa aos filhos que de pão (mas também já tinha identificado a agricultura em momento
se suja… se rompiam todos. E eram muitos… E de noite é que traba‑ anterior da entrevista). A sua situação de trajetória de emprego em
lhava, toda a noite, sabes? Embalava os filhos com o pé, e trabalhava carrossel pode ser condensada numa das suas afirmações, «Eu trabalhei
com as mãos, à luz da candeia! Que então ainda não havia eletricidade. muito, trabalhei em muitas coisas.»:
Aqui não havia. Depois é que começaram para aí a pôr a eletricidade.
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Sempre tive muitas pessoas que me chamavam porque gostavam do Jorge Vala (2000), baseado no trabalho de Herzberg, aponta para o
meu trabalho e do meu serviço e chamavam‑me, «olha amanhã pode facto de a valorização de trabalho envolver dois grandes grupos de
vir‑me limpar a casa» e eu ia; se tinha outros já não ia não é? Adorava valores, os que se associam com a ideia de instrumentalidade, isto é,
peneirar a farinha também com duas peneiras de farinhas de centeios o trabalho é feito para responder às necessidades relativas à sobrevi‑
também para fazer o pão e fazia duas horinhas ou três a fazer isso. Eu vência material dos indivíduos (valores extrínsecos), por contraponto
trabalhei muito, trabalhei em muitas coisas. (P1.1Montalegre, sexo aos que associam o trabalho a valores que estão relacionados com
feminino, 72 anos) «necessidades de interação social, de realização e de desenvolvimento
pessoal» (p. 71) (valores intrínsecos). No presente estudo adap‑
Por contraste, uma pequena parte dos entrevistados apresentou tamos esta tipologia, considerando como valores extrínsecos os que
alguma estabilidade ao longo da sua vida profissional, mas isso não se relacionam com a instrumentalidade do trabalho, incluindo aqui a
se traduziu em proteção para a situação de pobreza dado que essa interação pessoal para além das questões relativas à sobrevivência dos
estabilidade esteve associada a baixos salários, a atividades desqualifi‑ indivíduos (salário), mas também os fatores referentes à penosidade
cadas e, em alguns casos, à informalidade na sua dimensão contratual. do trabalho, à sua perigosidade ou precariedade. Por oposição, é nos
Assim, fica claro que não basta a existência de estabilidade, na ativi‑ valores intrínsecos que se podem encontrar a realização e o desenvol‑
dade ou no emprego, para proteger o indivíduo da precariedade e da vimento pessoal apresentados pelo autor, como também o sentimento
pobreza, sendo necessário considerar o valor do salário e a qualidade de autonomia e a classificação do trabalho como uma atividade
do contrato laboral, incluindo a sua relação com os mecanismos de interessante.
proteção social.
Aplicando este quadro conceptual ao contexto de investigação, uma
Para além das questões mais objetivas, relacionadas com a sua traje‑ parte significativa dos entrevistados releva descontentamento para
tória laboral, podemos encontrar nos discursos dos entrevistados com o trabalho que desenvolveu, no que respeita à satisfação com o
elementos que nos remetem para uma componente mais estrita‑ trabalho (gosto). No discurso de alguns pode‑se observar uma situação
mente identitária e subjetiva, quer dizer, expressões do modo como intermédia. Declaram o gosto pelo trabalho mas associam‑no a ques‑
se apresentam a si e aos outros (Dubar, 1991) no mundo do trabalho. tões que remetem para a conformidade com o trabalho ou para a sua
Em primeiro lugar, verifica‑se que existe uma grande dificuldade associação à penosidade e não para algo que possamos classificar como
em condensar a atividade desenvolvida numa palavra ou pequena gosto. Verdadeiramente não encontramos nos entrevistados deste
expressão, isto é, no nome de uma profissão. Esta dificuldade é espe‑ perfil discursos que expressem um qualquer apreço pelo trabalho,
cialmente forte nos entrevistados residentes em meio rural, desafiando excetuando os valores extrínsecos como o salário ou o convívio com
a definição de si como trabalhador. Além disso, está, por sua vez, asso‑ os outros. Como já amiúde referido, para este olhar marcadamente
ciada à satisfação com o trabalho.
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amargo sobre o trabalho como experiência de vida sobressai a peno‑ governando», permitirá às pessoas idosas, de alguma forma, sentir que
sidade das tarefas desenvolvidas, tornando patente que, para muitos continuam a deter algum controlo da situação (Finch e Elam, 1995;
homens e mulheres, o quotidiano laboral é um tempo de sofrimento Dominy e Kempson, 2006). Nalguns casos, aliás, estas expressões
repetido dia após dia, ao qual só se submetem porque têm de obter um parecem surgir quase como um imperativo; como uma necessidade de
salário sem o qual a sobrevivência material ficaria em sério risco. controlar uma situação que é, por si só, implicitamente descontrolada.
A não adesão ao gosto do trabalho através de valores intrínsecos está Noutros casos, a reflexão exprime algum desencanto: o reconhe‑
muito associada à doença. Esta encontra‑se muito presente nas entre‑ cimento do rendimento disponível como sendo objetivamente
vistas, e não apenas em relação ao presente e à degradação do estado insuficiente é, quase em simultâneo, confrontado com a apreciação
de saúde associada à elevada idade dos entrevistados (em média 74,4 de que ele acaba por ser tornado suficiente, ainda que com reper‑
anos). Com efeito, encontramos ao longo da trajetória de vida profis‑ cussões óbvias na vida quotidiana, sobretudo ao nível da privação
sional destes indivíduos menção frequente a doenças que dificultam experienciada.
a atividade profissional. Algumas resultam mesmo da realização de
atividades laborais penosas ou perigosas que degradam o estado de Menina, com 333 euros e qualquer coisa, acha que eu me posso
saúde dos indivíduos. Doença, (des)gosto e penosidade contribuíram, governar? Poder, posso… não tenho uma dívida… se tiver dinheiro
portanto, para afastar os indivíduos de uma identidade para si como compro, se não tiver não compro. (P1.5_ Ferreira do Alentejo, sexo
trabalhadores num número significativo de casos. De resto, aquando feminino, 73 anos)
da menção da atividade profissional e a ela associada, verifica‑se que Neste contexto, é preciso não esquecer que, em muitos casos, a neces‑
boa parte dos indivíduos se definia mais como doente do que como sidade de poupar e de fazer esticar o dinheiro foi uma constante ao
trabalhador, refletindo tal resposta simultaneamente um deslaçamento longo da vida destas pessoas, tornando‑se, de certa forma, quase
identitário com o trabalho e as consequências deste no bem‑estar inconsciente (Dominy e Kempson, 2006). Como argumentado na lite‑
físico e psíquico do indivíduo. ratura, a pobreza na velhice é sobretudo uma condição que decorre de
trajetórias de vida de acumulação de desvantagens, pelo que deve ser
6.5. Autoperceção do percurso, comparação realçada a necessidade de se passar de uma visão estática da pobreza
da vida presente com a passada entre a população idosa para a sua análise no contexto de processos
Na quase totalidade dos casos, as pessoas entrevistadas afirmaram a dinâmicos e socialmente determinados de construção de desigualdades
insuficiência dos seus rendimentos relativamente às suas necessidades, ao longo da vida (Lopes, 2015).
salientando a necessidade de fazer o dinheiro disponível «esticar».
A utilização daquela expressão, tal como a de outras como «vamos
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A pobreza entre a população idosa entrevistada tende a ocorrer como desempenha papel relevante no que se refere à necessidade de «fazer o
uma função de um conjunto de condições e acontecimentos que ocor‑ dinheiro esticar». As idas à farmácia, por exemplo, parecem ser vividas
reram em fases anteriores do curso da vida. Tal inclui, por exemplo, de forma tão stressante quanto necessária, sendo que, em alguns casos,
a relação dos indivíduos com o mercado de trabalho e a sua relação com parece não restar outra alternativa que não recorrer à privação também
as modalidades de proteção social, que moldam não só a sensibilidade na componente da medicação:
dos indivíduos aos efeitos das determinantes etárias, como também a sua
capacidade de resistência a essas mesmas determinantes (Lopes, 2015). Ela [a filha] não compra tudo [medicamentos] de uma vez, à maneira
que a gente precisa, porque o dinheiro não chega. É uma vida muito
Os discursos das pessoas entrevistadas remetem, de forma mais ou apertada. (P1.1_VFCampo, sexo feminino, 79 anos)
menos imediata, para uma dimensão de privação que é consentânea
com o retrato estatístico do país (ver capítulo 2) e que tem sido Algumas pessoas entrevistadas consideraram que suprir as dificuldades
amplamente analisada cientificamente (cf., Lopes, 2008). Como refere é, apesar de tudo, mais fácil em meios mais rurais, ficando patente a
Alexandra Lopes, a partir da sua análise do ICOR: importância que o autoabastecimento ainda parece desempenhar no
mitigar da severidade da pobreza e da privação alimentar.
particularmente marcadas são as diferenças observadas […] no índice
das necessidades primárias, facto tanto mais relevante quanto remete Um elemento frisado de forma veemente por várias das pessoas entre‑
para um conjunto de necessidades que, a não serem satisfeitas, colocam vistadas é a ausência e mesmo a rejeição de dívidas. Esta situação,
em risco grave a própria integridade física do indivíduo. (2008, p. 8) sendo potencialmente positiva a médio‑longo prazo, tem amiúde
consequências concretas, logo no curto‑prazo, ao nível da privação.
Duas estratégias, por vezes simultâneas, são as mais utilizadas pelas Noutros casos, porém, há lugar à contração de dívidas, que terão de
pessoas entrevistadas para fazer face à falta de rendimento. Desde ser pagas mais tarde. Tal pagamento vem condicionar o futuro, mas
logo, a privação, principalmente a nível alimentar. Sendo mais difícil é, para a maioria dessas pessoas entrevistadas, um ponto de honra
deixar de fazer face a despesas como as referentes à habitação e à e motivo de orgulho. Simultaneamente, a manutenção de um nome
saúde, resta a alimentação como a componente de despesa a cortar. «limpo» permite acalentar a esperança de continuar a recorrer a este
Evitar a compra de alguns alimentos ou de alimentos caros torna‑se, expediente. É de realçar que tal estratégia de gestão da dívida assenta,
desta forma, uma opção (Aggarwal et al., 2011; Fernandes, 2017). em grande medida, na pressuposição da utilização de rendimentos
É acionada, relativamente à alimentação, uma procura constante pelas «extraordinários» (Halpern‑Meekin et al., 2015) entendidos como asse‑
promoções, pelos produtos mais baratos e que, como referem algumas gurados, dadas as garantias que o sistema de pensões, do qual estes
pessoas, «deem mais rendimento», eliminando‑se, em muitos casos, respondentes dependem, vai ainda dando a esse nível.
produtos como fruta ou legumes frescos. Também a dimensão da saúde
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A grande maioria das pessoas entrevistadas considerou que a existência seus ou de familiares. Este facto é tanto mais relevante quanto o de não
de momentos em que existiu uma perceção de que os rendimentos existir nenhuma bateria de questões sobre este assunto. Apenas se ques‑
disponíveis eram insuficientes foi relativamente constante ao longo da tionava, logo no início da entrevista, relativamente a alguma dificuldade
vida. Algumas exemplificaram com momentos presentes, retratos do especial da sua infância, incluindo‑se, entre outros exemplos, alguma
quotidiano com que têm de se confrontar. Mas outras referiram‑se a situação de doença. Este facto, por si só, permite afirmar a centralidade
momentos passados, principalmente quando tinham filhos pequenos da doença na vida destes indivíduos. Pode alegar‑se que isso seria de
em cujas memórias provavelmente ficaram gravados de forma indelével, esperar, considerando a sua média de idades de 74,4 anos. Contudo, boa
pelo que implicaram e também por perceberem, ainda que de modo parte das doenças referenciadas respeitam a períodos de vida em que se
implícito, a extensão da pobreza e da privação à geração seguinte. esperaria uma situação mais saudável.
Faltava muito dinheiro, às vezes para lhes comprar [aos filhos] uma Em concreto, dividimos a análise das doenças em três períodos de
roupinha, ou um calçado… e andava pior porque não podia para vida: infância e juventude, idade ativa e situação atual. De notar,
muito. Era isso… E precisavam… Às vezes, via‑os acanhadinhos e, e… porém, que em diversos casos se verificaram doenças que afetaram os
e fracos. E precisavam de um alimento melhor e eu não tinha para indivíduos durante múltiplos períodos das suas vidas ou das de fami‑
lhes dar. […] Bem via que eles precisavam, mas não tinha para lhes liares próximos. Cerca de metade das pessoas entrevistadas referiram
dar… (P1.2_Boticas, sexo feminino, 92 anos) uma doença no momento presente da entrevista, sua ou do cônjuge.
Daquelas, metade referiu doenças apenas no momento da entrevista.
Quando instadas a fazer uma avaliação subjetiva do seu percurso de Algo que, com certeza, tem efeitos na sua situação de pobreza e na
vida até ao momento da entrevista, a doença e morte ressaltaram como sua qualidade de vida nesse momento. Uma em cada três pessoas
os momentos negativos mais marcantes de vidas, muitas vezes, sem mencionou a existência de doença (recordemos, grave ou incapa‑
quaisquer momentos positivos. A doença e a morte são, obviamente,
citante) em idade ativa, da qual resultaram algumas reformas por
consequências lógicas da vida. Neste caso, não se trata naturalmente
invalidez, isto é, reformas ainda em idade ativa. Em vários casos,
da morte das próprias pessoas entrevistadas, mas de quem as rodeia e
ainda, foram referidas doenças na infância. Se olharmos para o perfil
dos seus efeitos potenciais nas situações de pobreza experienciadas.
como um todo fica, portanto, claro que a doença é uma constante
Em relação à doença, a situação é um pouco diferente, dado que aqui na vida dos indivíduos entrevistados. Contudo, não sendo este um
está em causa, em primeiro lugar, a questão de doenças com impacto na trabalho extensivo (estatístico), a análise não permite verificar a
atividade dos próprios, quer sejam doenças dos respondentes, quer de existência de regularidades sociais fortes, além desta primeira. Não
familiares, sobretudo doenças crónicas ou prolongadas. Muito poucas obstante, existem diversos impactos da doença na relação com o
pessoas entrevistadas não referiram a existência de problemas de saúde, mundo do trabalho.
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Para além da doença, também a morte se revelou uma constante no cônjuge pelo menos uma vez por semana e a ter uma conversa a seu
na vida destes indivíduos. Mesmo não havendo nenhuma questão respeito uma vez por mês, em média.
ou bateria de questões que colocassem o problema da morte (nem
mesmo como exemplo), relativamente poucas foram as pessoas que Fora da preponderância da doença e da morte, há que realçar a pers‑
não a mencionaram. Também se poderia alegar que, sendo mais velhas, petiva de um subgrupo específico, o das mulheres separadas ou
a probabilidade de os seus pares e ascendentes terem falecido é grande. divorciadas a viverem sós, as quais associaram momentos particular‑
Contudo, a morte transcende o momento atual, sendo a sua menção mente difíceis ao tempo em que estavam com os maridos. Regista‑se,
ao longo das suas vidas, e desde cedo, uma constante. Analisámos a a este nível, uma oposição flagrante entre as perspetivas destas
questão da morte, em relação ao tempo, dividindo a vida dos indivíduos entrevistadas e as das entrevistadas viúvas a viverem sós, mas cuja
nos mesmos três períodos que usámos para a doença: a infância e juven‑ lembrança dos maridos é eminentemente positiva, deixando antever a
tude, a idade ativa e a atualidade. No que respeita a este último período, preponderância da (in)felicidade conjugal na definição de momentos
apenas numa entrevista foi mencionado um falecimento. A maior parte de (in)felicidade (Aboim, 2006) mesmo em percursos de vida marcados
das referências respeita à infância, mas a idade ativa não escapa a esta pela pobreza e privação (Kellerhals, 1982; Juras e Costa, 2016).
lógica, com cerca de metade das pessoas entrevistadas a referir uma Tendo em atenção as experiências de vida de muitas destas pessoas
perda nessa fase. Releva‑se, a este respeito, a morte de um/a filho/a, entrevistadas não surpreende que algumas não tenham identificado,
em regra muito novo, referida por uma em cada quatro pessoas e resul‑ à partida, qualquer aspeto positivo ou sucesso particular no seu percurso
tando em relatos que enfatizam a perspetiva de que, embora o luto se de vida até ao momento da entrevista. A maior parte das pessoas que,
modifique ao longo do tempo, a perda de um/a filho/a jamais é superada apesar das dificuldades, identificaram momentos positivos no seu
(Freitas e Michel, 2014). Outra dimensão importante refere‑se à perda percurso de vida, acentuaram a dimensão das sociabilidades familiares
do cônjuge, elemento disruptivo e desencadeador de solidão e de perda e, nomeadamente, a importância dos filhos. Perante aquilo que foi uma
de apoio e de rendimento. Inúmeros estudos têm demonstrado que a vida caracterizada por dificuldades, algumas das pessoas entrevistadas
viuvez é um dos eventos mais stressantes e disruptivos que podem ser consideraram que, apesar de tudo, a sua situação no momento da entre‑
vividos pelas pessoas idosas, amiúde levando a sentimentos depressivos vista era melhor do que no passado. Em tais casos, tal parece derivar de
(por exemplo Bennett et al., 2005; Lourenço, 2018). Por vezes, a perda uma perspetiva comparada que é feita face a momentos (ainda mais)
associada à morte de um familiar perdura no tempo e continua, mesmo difíceis. A maioria, porém, considera que a sua vida piorou ao longo do
após muitos anos, a ser apontada como o momento mais difícil de uma percurso, constituindo a falta de saúde, sua e/ou do cônjuge, bem como
vida. Carnelley et al. (2006), por exemplo, constataram que, para muitas a morte ou separação do cônjuge, um elemento preponderante; por
pessoas, o luto pelo cônjuge se prolonga, por vezes durante décadas; e vezes tornada ainda mais relevante pelo que isso representou em termos
que vinte anos depois da perda, os/as viúvos/as continuavam a pensar de perda ou redução de rendimentos.
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6.6. Sistemas de proteção social e redes da agricultura (Parecer 39/VII, de 6 de Abril de 1961). Deste modo,
de solidariedade informal o carácter tardio, as lacunas e insuficiências quanto aos riscos cobertos,
por parte do sistema de proteção social português na sua compo‑
A exploração e análise das entrevistas de orientação biográfica reali‑
nente previdencial no que respeita às atividades agrícolas, têm relação
zadas com os cidadãos reformados e mais idosos em situação de
direta com a construção de carreiras contributivas tardias, limitadas ou
pobreza permitem‑nos, com recurso à perspetiva teórica do curso
inexistentes, como se observa na maior parte destes entrevistados e é
de vida (life course) (Hackstaff et al., 2012; Mortimor e Shanahan,
ilustrado nos seus depoimentos. A mesma dinâmica se observa quando
2003), analisar os efeitos de coorte (cohort effect) enquanto impacto
analisamos a situação das pessoas que exerceram atividade tanto no
do tempo histórico nos processos individuais (cf. Figura 4, Trajetos
âmbito do trabalho doméstico, como, apesar das devidas diferenças,
e quotidianos da pobreza em Portugal – Reformados). Na verdade,
em atividades similares na esfera doméstica, como é o caso da costura,
a quase totalidade dos entrevistados integrados neste cluster nasceu
quer enquanto aprendizes, quer enquanto trabalhadoras.
e iniciou‑se precocemente no mundo do trabalho num tempo histó‑
rico caracterizado pela rutura com os valores do republicanismo e Num outro subconjunto encontramos os entrevistados com uma ativi‑
o seu modelo de proteção social, e pelo processo de instauração da dade no âmbito do comércio, indústria e serviços especializados. Nestes
previdência social corporativa, adverso à intervenção pública na esfera ramos, apesar de, como é comummente assinalado (Carreira, 1996; Costa
social e ao modelo de Estado‑Providência. Esse processo tem o seu e Maia, 1985; Lucena, 1999; Maia, 1985; Rodrigues, 1999), a reforma
início com a publicação do Estatuto do Trabalho Nacional, em 1933, da Previdência Social de 1962 ter ocorrido tardiamente, foi possível
e a Lei n.º 1884, em 1935, e haverá de concorrer, de forma indelével, aos entrevistados abrangidos por estas atividades construir carreiras
para o limitado padrão de proteção face ao risco de velhice, invalidez contributivas que, não obstante a irregularidade em alguns casos, lhes
e/ou doença que hoje apresentam. permitiu o acesso a uma pensão estatutária da segurança social. Nestes
casos, como nos demais em geral, a insuficiência de recursos que lhes
Relativamente às atividades agrícolas, competiria às Caixas de
permita superar a condição de pobreza e privação, decorre quer da falta
Previdência das Casas do Povo a proteção dos trabalhadores agrícolas.
de maturidade dos sistemas de proteção social, quer do baixo limiar das
No entanto, as Casas do Povo no seu início não se ocupavam direta‑
prestações sociais garantidas (Maia, 1985, p. 87).
mente da previdência, o que viria a ocorrer apenas a partir de 1940
(Amaro, 2008, p. 70). Cerca de 20 anos depois, o parecer da Câmara Em 2003, Gouveia e Farinha Rodrigues, sustentavam, num estudo
Corporativa sobre a proposta de reforma da Previdência Social assina‑ baseado no Inquérito aos Orçamentos Familiares de 2000, que «[só]
lava, de forma inequívoca, os limites do processo de desenvolvimento 31,25 % das pessoas que vivem em agregados familiares recebendo
da previdência social corporativa e criticava a ausência de propostas pensões mínimas são pobres» (Gouveia e Rodrigues, 2003, p. 14), apre‑
de alargamento direto do âmbito da previdência aos trabalhadores sentando dois argumentos principais como explicativos para esta
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constatação. Por um lado, um princípio de racionalidade económica Mulher do entrevistado: Nós agora temos o subsídio do gado e…
teria levado um contingente significativo de cidadãos beneficiários de Entrevistado: É, o subsídio que vem. E a reforma.
pensões mínimas a antecipar a insuficiência do padrão de vida propor‑ Entrevistadora: Tem uma reforma?
cionado por uma pensão mínima da segurança social e, deste modo, Entrevistado: Sim. Com 500€. Pouco mais ganhamos. Com 500€ hum,
a adotar outras estratégias de sustentabilidade do seu padrão de vida que é alguma coisa, ela vai a algum lado, e traz logo 100€ de compras
na velhice. De acordo com os autores, neste grupo estarão trabalha‑ e depois pouco fica para todo o mês também.
dores independentes (comerciantes, profissionais liberais e outros) Entrevistadora: Então vocês os dois recebem a reforma?
que, declarando remunerações mínimas, dispõem de «outras fontes de Mulher do entrevistado: Recebemos a reformazita.
rendimento durante a reforma, por exemplo continuam a ser proprietá‑ Entrevistado: São para aí 250€ cada um. E isso é alguma coisa… [risos]
rios de estabelecimentos comerciais, retêm participações em empresas, (P1.3._VPAguiar, 82 anos, sexo masculino, casado)
dispõem de património suficiente para garantir um nível de vida
adequado, etc.» (p. 5). Por outro lado, alguns pensionistas que recebem A mitigação da pobreza é, dependendo dos casos, resultante quer do
uma pensão mínima do sistema de segurança social «poderão ter de alívio que os encargos com a habitação produzem, quer da pequena
facto rendimentos explícitos muito reduzidos, mas têm um nível de agricultura doméstica ou criação de animais, quer ainda de apoios assis‑
vida superior aos rendimentos e patrimónios explícitos dado viverem tenciais pontuais. Outro recurso essencial de mitigação da privação
integrados em agregados familiares situados claramente acima da é, no caso de vários entrevistados, a família enquanto mecanismo de
linha de pobreza» (p. 6). A evidência recolhida (cf. Quadro 42, Trajetos proteção social compensador da escassez dos rendimentos provenientes
e Quotidianos da Pobreza em Portugal – Reformados) permite concluir da proteção social na velhice do Estado‑Providência. A família provi‑
que os reformados e as pessoas mais idosas abrangidas no presente dência, cuja frequência e papel vêm confirmar a persistência de uma das
estudo e a informação colhida nas entrevistas realizadas integram o dimensões estruturais dos regimes de bem‑estar dos países da Europa
contingente dos pensionistas e pessoas idosas que não apresentam do Sul, a sua natureza familialista (Esping‑Andersen, 1999; Martin, 1997;
«um nível de vida superior aos rendimentos e patrimónios explícitos». Pereirinha, 1997a; Rhodes, 1997; Silva, 2002; Sposati e Rodrigues, 1995).
Assim, apesar de em alguns casos os entrevistados serem detentores De modo quase generalizado, as pessoas idosas em situação de pobreza
de um pequeno património (residência familiar, em diversas situações abrangidas pelo presente estudo consideram o montante das suas
com problemas de habitabilidade, pequenos terrenos agrícolas como pensões e complementos sociais como insuficiente para prover um
base de agricultura de subsistência) e vivendo na sua quase totalidade padrão de vida adequado e de não privação, designadamente quanto às
isolados ou em casal, as suas narrativas confirmam níveis expressos de condições de habitação, alimentação e acesso a bens e serviços básicos
privação e pobreza, para que contribuem de forma inequívoca a não de saúde.
suficiência das suas pensões ou complementos sociais.
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Entrevistada: Eu não lhe sei responder a isso. Não serve para nada. de integração da privação material como modo de vida, uma resi‑
Isso para mim não tem resposta. Desculpe lá ter falado assim. Diga liência passiva ou absorptive agency (Dagdeviren e Donoghue, 2019),
‑me o que é que se faz hoje… com ± 300€… tenho que pagar a água, designadamente no que respeita a cortes nos consumos essenciais
tenho que pagar a luz. Praticamente não dá para nada. (alimentação, saúde, aquecimento), autoconsumo, trocas diretas e
Entrevistadora: Então, atualmente, a sua principal fonte de rendi‑ comunitárias. Encontramos, no entanto, alguns discursos sobre as
mento é a reforma. Acha que os rendimentos são suficientes para as «reformas» que, sem necessariamente corporizarem um modo de
suas necessidades? vida distinto de privação material na velhice, expõem o sofrimento
Entrevistada: Menina, com 333 e qualquer coisa, parece‑me que é social que marca a sua existência e um sentido mais crítico e até «um
assim. Acha que eu me posso governar? Posso, não tenho uma dívida. bocadinho de revolta», para usar a expressão de uma entrevistada
Se tiver dinheiro compro, se não tiver não compro. (54 anos, sexo feminino, casada, marido titular pensão velhice RGSS,
Entrevistadora: De que é que tem que prescindir, o que é que não Montalegre) quando se confronta com a dificuldade de perspetivar o
consegue fazer? futuro face à não constituição do direito à proteção social na velhice e
Entrevistada: Por exemplo, na comida. à limitação da capacidade para o trabalho.
Entrevistadora: Lembra‑se duma situação, daquelas em que tenha
pensado mesmo «a minha vida está mesmo complicada»? Outra dimensão relevante na situação das pessoas idosas em situação
Entrevistada: Sempre, sempre. Eu querer comprar uma garrafa de de pobreza respeita à sua experiência na relação com os serviços sociais.
leite e não ter o dinheiro. Mas isto não é mentira. [Emociona‑se] Excetuando a pequena parcela dos entrevistados que não apresentam
(Ferreira do Alentejo, 73 anos, sexo feminino, separada, pensão um histórico de relação com os serviços sociais, registam‑se quer relatos
velhice RGSS49) de um relacionamento avaliado como positivo, quer juízos críticos de
maior ou menor intensidade. No primeiro caso, a relação com os serviços
No entanto, a regularidade observada da experiência da privação de segurança social merece uma avaliação positiva pois cumpriu, sem
material não impede, ainda que de modo não consensual entre os problemas de maior, a sua função de mediar o acesso a direitos sociais,
entrevistados, a valoração das pensões e complementos auferidos. designadamente o acesso à reforma, a ajudas técnicas ou ao subsídio
Assim, vários entrevistados valorizam de forma clara a sua reforma, de desemprego (78 anos, sexo feminino, casada, pensão RGSS, Serpa).
apesar de esta ter um valor baixo, pois constitui a sua única ou quase A apreciação positiva da relação com os serviços sociais verifica‑se
exclusiva fonte de rendimento. No conjunto de entrevistados que também na situação de alguns entrevistados que beneficiam de equipa‑
expressam, de forma implícita, a função de segurança económica que mentos e serviços de apoio a pessoas idosas. As posições mais críticas
as pensões e complementos desempenham enquanto fonte previ‑ reportam‑se ao Serviço de Verificação de Incapacidades no contexto
sível e regular de rendimentos, observa‑se, em regra, um processo do reconhecimento das condições de elegibilidade para a pensão de
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invalidez. Mas igualmente nas situações de gestão das prestações sociais. económicas e outras que, interagindo entre si, concorrem para tornar
As queixas estendem‑se também aos serviços de habitação e aos serviços a existência quotidiana muito severa e sofrida. As redes informais de
de saúde. No caso da habitação, as tentativas frustradas de ter acesso apoio, nomeadamente de tipo familiar, vicinal e amigável, assumem
a uma habitação social compõem o quadro da insatisfação de algumas em muitas circunstâncias, principalmente quando as instituições do
entrevistadas. Em algumas situações, a avaliação da relação dos serviços Estado‑Providência se revelam escassas, frágeis e insuficientes, uma
de saúde é muito crítica, particularmente pelos entrevistados afetados função social fundamental para a própria reprodução social dos indi‑
por problemas de saúde graves ou incapacitantes. víduos e suas famílias. Cabendo reconhecer que em muitos casos
possuem capacidade para fazer a diferença e melhorando, ainda que
O evitamento do efeito de estigma do recurso à assistência social, com transitória e parcialmente, a vida de quem delas beneficia, é impor‑
impacto na limitação do acesso a possíveis apoios e direitos sociais, tante sublinhar que estas redes fazem parte do que se designa na
ocorre igualmente entre os entrevistados, apesar da insuficiência de literatura sociológica por sociedade-providência mas não são substi‑
recursos, de necessidade e experiência de privação face ao constran‑ tutas, em caso algum, do Estado‑Providência.
gimento na abordagem dos serviços de apoio social, por «timidez e
vergonha», para citar as palavras de uma entrevistada (sexo feminino, As entrevistas efetuadas cobrem distintos lugares do território
72 anos, Montalegre). Ainda que esta não seja uma dimensão expressa nacional e mostram que as redes informais de apoio, bem como
com frequência no decurso das entrevistas, esta perceção não deixa as formas de entreajuda, estão disseminadas pelo país, não sendo
de estar presente enquanto um dos mecanismos de filtragem (Garcia e possível, no caso deste estudo, estabelecer uma diferença nítida
Kazepov, 2002) que intervém no processo de decisão de recurso à assis‑ em termos geográficos. A existir algum contraste, ele estará, como
tência social por parte dos cidadãos, quando se regista uma situação de veremos, mais negativamente marcado em Lisboa e no Porto, face
desequilíbrio entre as suas necessidades e os seus recursos, neste caso ao resto do território. As formas de entreajuda devem também ser
provenientes do Estado social, através das pensões e complementos escrutinadas considerando as suas articulações com os apoios institu‑
sociais e da reciprocidade, por via da solidariedade familiar. cionais, sobretudo de âmbito local, com destaque para as autarquias.
Estas, à medida que foram recebendo competências do Estado central,
6.7. Redes de apoio não institucional e território têm vindo a assumir um papel relevante nos apoios sociais, funcio‑
nando como um pilar cada vez mais importante no domínio social e
Neste debate sobre proteção é necessário considerar também as redes
complementando quer a ação da segurança social, enquanto braço do
informais de apoio e vizinhança. Estas remetem‑nos para um campo
Estado central no domínio da proteção social, quer, como se procurará
social da maior relevância, sobretudo quando falamos de indivíduos
demonstrar, o apoio da família e da vizinhança.
e famílias em situação de privação material, muitas vezes sujeitos a
múltiplas expressões de exclusão social, acumulando dificuldades
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Como as entrevistas do Perfil 1 permitem constatar, sem que daqui que ajudam, das mais diversas formas, os seus pais idosos. Ela envolve
se possa extrair qualquer extrapolação de ordem estatística, a exis‑ membros por afinidade, como é o caso das noras, abaixo referido:
tência quotidiana dos mais pobres nas maiores cidades do país é
mais penosa do que em outros lugares do território, em boa medida Entrevistadora: Quando a senhora precisa de alguma ajuda ou tem
mercê do desenraizamento familiar produzido pelas dinâmicas da vida algum problema a quem a senhora recorre?
urbana, nomeadamente as decorrentes das mobilidades internas, que Entrevistada: Eu vou à família.
concorrem para o debilitamento dos laços fundados no parentesco. Entrevistadora: Aos familiares, que familiares? Os irmãos?
Este tipo de laços sociais permanece como elemento fundamental na Entrevistada: Os irmãos, aos filhos se puderem, a minha nora
construção e preservação das redes de apoio e nas formas de entrea‑ levou‑me ontem. Nós fomos a Chaves, o médico pediu para ela levar a
juda. Mas não só, também o regime de propriedade da habitação Chaves, porque nós não temos carro. (P1.1._Montalegre#1, sexo femi‑
assume um papel‑chave na situação, e mesmo destino, dos aposen‑ nino, 72 anos)
tados mais pobres. Ao contrário do que acontece nos territórios do O mais recorrente é, na verdade, o apoio nas deslocações, mormente
interior, em especial nos seus concelhos mais rurais, em que as famílias para consultas médicas, ora porque não possuem viatura própria, ora
vivem sobretudo em habitação própria, muitos dos indivíduos entre‑ porque os transportes públicos coletivos são raros ou inexistentes,
vistados que residem nas áreas metropolitanas habitam em regime de ora porque a idade avançada e a doença limitam a autonomia, mesmo
arrendamento. Quer isto dizer que a habitação própria, mesmo que quando a relação com os vizinhos é apreciada. Esta ajuda é, em muitos
muitas vezes com condições deficientes, funciona como um abrigo casos, marcadamente genderizada, sendo mais frequente que ela seja
seguro, afastando o risco de despejo, especialmente cruel quando a levada a cabo pelas filhas:
ele estão sujeitas pessoas pobres e com a vulnerabilidade acentuada
pelo peso da idade e suas consequências, nomeadamente no que toca Entrevistadora: E tem aqui amigos ou amigas, as relações são boas?
a limitações físicas e até mentais. Mesmo quando nos confrontámos Entrevistada: Tenho aqui os vizinhos. Sim, são boas, são muito boas
com afirmações perentórias de total autonomia em relação aos outros, [pessoas], principalmente aqui com os vizinhos, ajudamo‑nos uns aos
o desenrolar da entrevista torna evidente que acabam sempre por outros. E principalmente aqui a D. XXXX é muito minha amiga. Até
existir na vida quotidiana formas de ajuda vicinal. A família continua damos os números de telefone para quando precisarmos.
a desempenhar um papel central na vida da maior parte dos entrevis‑ Entrevistadora: Quando necessita de alguma ajuda a quem é que
tados. Para estes indivíduos idosos, aposentados, alguns já de idade recorre?
bem avançada (acima dos oitenta anos), trata‑se de uma ajuda familiar Entrevistada: Aos meus filhos, a minha filha mais vezes, para ir às
fundada na geração imediatamente a seguir: são sobretudo os filhos compras e o meu filho que está cá, trabalha na Câmara. O outro está
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longe, não pode. Mas principalmente a minha filha, só quando ela não Estamos perante um constrangimento que a ajuda vicinal, mesmo
pode é que vai o meu filho. (P1.2_Serpa, sexo feminino, 74 anos) quando existe, como é o caso seguinte, é incapaz de colmatar:
Se este tipo de ajudas é dominante, também existem entrevistados Entrevistada: É assim… hoje estou melhor… melhor. Se não fosse esta
reformados que recebem apoio financeiro dos filhos com regularidade, situação da casa.
normalmente numa base mensal. A ajuda dos filhos é sempre reco‑ Entrevistador: Porque a senhora vai ser despejada?
nhecida pelos entrevistados, revelando sentimentos de gratidão pelas Entrevistada: Exatamente. Exatamente.
dádivas recebidas. Estas práticas mostram que mesmo nas sociedades Entrevistador: E agora que a senhora vai ser despejada… a senhora vai
modernas dominadas pela troca mercantil, a troca baseada na recipro‑ sair deste local e vai para um para um outro sítio?
cidade está também presente. Não deixando de as identificar e mesmo Entrevistada: Não sei para onde é que… onde é que meu filho vai
de as quantificar, não raro sublinham o esforço dos seus filhos para as arranjar casa… ainda não sei. (P1.2_Lisboa, sexo feminino, 83 anos)
fazer, lembrando que não podem ser maiores pois também têm as suas
dificuldades, os encargos financeiros a que têm de fazer frente, muitas Já em relação à apreciação que os entrevistados fazem das condições
vezes com o recurso a pequenos salários. de habitação, os comentários críticos são mais numerosos, revelando
o modo como a escassez de recursos económicos se repercute nas
As formas de apoio informal e de entreajuda inserem‑se em territórios casas que habitam. Por exemplo, para uma residente em Montalegre,
muito distintos. É neles que se inscreve a habitação, essencial à vida a preocupação está fundamentalmente relacionada com o frio – aliás
dos seres humanos, estando no mesmo plano de relevância de outros partilhada por outros que vivem em concelhos mais interiores no
bens sociais, como a alimentação e a saúde. Por isso não surpreende Norte do país. De igual modo, em zonas urbanas encontramos dificul‑
que este direito humano vital seja protegido em muitas leis funda‑ dades, já não relacionadas com o frio e as deficiências no isolamento
mentais, como é o caso da constituição portuguesa. A situação dos térmico, mas com a degradação das casas habitadas. No caso abaixo,
reformados pobres é especialmente cruel quando entre os fatores é consequência de escolhas constrangidas, a bem dizer, impostas pelo
que produzem a sua vulnerabilidade também se encontra a habitação. aumento significativo das rendas que obrigaram a mudar de casa, para
Não apenas a má habitação – seja ela provocada pela incapacidade uma com menores condições:
financeira de a aquecer no inverno, seja o escasso conforto devido ao
isolamento térmico deficiente ou a infiltrações de água ou a falta de Entrevistadora: E quais as dificuldades que sente aqui na casa?
algum equipamento necessário ao bem‑estar pessoal, como o esquen‑ Disse‑me que…
tador de água, sejam os obstáculos à mobilidade, como a inexistência Entrevistada: Oh filha, então aqui chove‑me em casa. Aqui na cozinha
de elevador – mas o próprio risco de perder a casa na sequência do chove. Aqui quando arrebentam os canos lá deles, tanto se vê aqui o
desalojamento decorrente da aplicação da atual lei do arrendamento50.
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remendo que aqui tem [aponta para o teto do quarto com rachaduras os entrevistados que vivem nas cidades de Lisboa e Porto, emergem
emendadas com fita adesiva]. outras preocupações, nomeadamente as relacionadas com a escassez
Entrevistadora: Sim. de jardins e outros espaços públicos de fruição da paisagem. Quanto às
Entrevistada: Cai‑me água cá pra baixo. Lá têm eles que arranjar condições de habitação, se é certo que existem preocupações comuns
os canos, não é? E é na casa de banho que me cai lá água. Tá tudo aos entrevistados – infiltração de água, humidade e deficiências no
manchado e tudo. Cai‑me a água na casa de banho e aqui é onde isolamento térmico –, já o problema do aquecimento é mais sentido
eu tenho o esquentador lixado ali na rua. Tenho que ter tudo cheio no interior, sobretudo na sua metade norte, em contraponto à falta de
de panos, ali em cima do frigorífico, tem que pôr para parar a água. ascensores em prédios com muitos pisos, sentido sobretudo em Lisboa
É triste ou não é? Pois… e concelhos limítrofes. Já quanto aos aspetos positivos, os entre‑
Entrevistadora: Porque é que teve que sair da outra casa? vistados mencionaram a tranquilidade, a segurança, a vizinhança,
Entrevistada: Porque as rendas aumentaram e tinha que pagar quase a gastronomia e o apoio vicinal.
duzentos euros de renda.
Entrevistadora: Não conseguia? 6.8. Perceção de si como pobre e do combate à pobreza
Entrevistada: Nessa altura era a minha reforma. (P1.5_Lisboa, sexo
Apesar dos relatos de uma vida difícil, uma em cada três pessoas entre‑
feminino, 75 anos)
vistadas afirmou não viver em situação de pobreza, alicerçando tal
Fechando a análise das entrevistas, neste perfil ressalta sobretudo convicção sobretudo na comparação estabelecida com situações piores
um certo conformismo, mesmo fatalismo, que a idade relativamente do que era naquele momento a sua, sejam elas de outras pessoas ou
avançada dos indivíduos entrevistados e a situação económica da do seu próprio passado. Raciocínio semelhante foi utilizado por outras
qual não têm, é bem evidente, alternativa, acabam por agir como pessoas entrevistadas que, embora assumindo‑se como pobres, relativi‑
uma forma inelutável do destino que condiciona e se impõe mesmo zaram a sua situação face a outras que consideravam piores.
às vontades individuais e à capacidade de agência de cada homem
No entanto, ponto comum nesta perceção parece ser a confusão
e mulher. Procedendo a uma síntese dos aspetos positivos e nega‑
estabelecida relativamente a uma situação de miséria (Bellaing, 2000;
tivos do lugar e das condições de habitação, há que fazer a distinção
AA.VV., 2010), sendo referenciadas, nomeadamente, as situações de
entre as grandes cidades em contraponto com o interior e os Açores.
quem passa fome ou de quem vive numa situação de sem‑abrigo.
Nestes últimos, as principais queixas estão relacionadas com a falta
A confusão com a miséria fica bem expressa nas palavras de uma entre‑
de serviços públicos, nomeadamente na área da saúde, do saneamento
vistada em Montalegre, para a qual a privação que fica bem evidente
básico, da oferta cultural e de animação, dos transportes coletivos,
nas suas palavras não é, ainda assim, suficiente para que qualifique a
do despovoamento, da solidão e limpeza dos espaços públicos. Já para
sua situação como sendo de pobreza.
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Pobreza, pobreza não, mas com dificuldades. […] Porque o que quaisquer eventos, de família ou outros; uma vida constrangida e carac‑
ganhamos não dá para certas coisas que nós queríamos fazer, temos terizada por tomadas de decisão a um nível muito estrito. O sacrifício e
que poupar muito para chegar! Ganhamos o dia a dia para comer e o compromisso são práticas comuns. Orçamentar e gerir o dinheiro são
para sobreviver, para pagar a luz, a água e poupar muito. Olhe, passo motivos de grande preocupação e tornam‑se quase competências de
aqui muito frio no inverno porque eu tenho que ligar o aquecedor à sobrevivência. (Daly e Kelly, 2015: 9)
luz e gasta muito. (P1.1_Montalegre, sexo feminino, 72 anos)
Entre quem se considerou pobre, a maioria afirmou que a pobreza
Merece estabelecer‑se aqui, ainda que de forma necessariamente sempre persistiu ao longo da sua vida, o que é consistente com
breve, a distinção entre estes dois conceitos, socorrendo‑nos, por o já expresso neste texto e que vai ao encontro do que estudos
exemplo, da reflexão de Singer, quando refere que a vários têm apontado (cf. Bruto da Costa et al., 2008; Lopes, 2015).
Independentemente da forma como adjetivaram a sua situação,
pobreza pode ser conceituada como falta de recursos monetários a pobreza era vivida, por quase todas as pessoas entrevistadas, com
para a aquisição de bens e serviços essenciais a uma vida «normal». resignação, o que é consistente com o que nos apresenta a literatura
Miséria seria uma pobreza tão extrema que as suas vítimas não científica, quer a nível nacional, quer internacional (por exemplo AI/
dispõem de dinheiro sequer para adquirir uma quantidade mínima REAPN/SOCIUS/ISEG–UTL, s.d.; Lötter, 2011). Como refere Lötter,
de alimentos e outras coisas essenciais à mera sobrevivência.
(Singer, 2010, p. 1) atitudes de fatalismo e resignação podem levar as pessoas pobres a
aceitar a sua situação como inevitável e resistir à mobilização para
Ainda que inconscientemente, as pessoas entrevistadas acabam protestar e para mudar as suas condições de vida, tornando‑se cidadãs
também por refletir a clássica discussão em torno de conceitos relativo sem poder. (2011, p. 116)
e absoluto de pobreza (cf., entre outros, Sen, 1983; Bruto da Costa,
2008), parecendo «optar» por estabelecer uma espécie de linha de Amiúde, associados à resignação surgem relatos de privação, bem como
pobreza imaginária, quiçá à escala mundial, a partir da qual definem a comportamentos depressivos.
sua situação como sendo de não‑pobreza. Por outro lado, porém, quase
metade das pessoas entrevistadas não hesitou em assumir, sem rodeios, Na maior parte dos casos, os respondentes afirmaram nunca ter expe‑
uma condição de pobreza e os seus discursos ilustram bem a descrição rienciado uma situação de discriminação e/ou exclusão. Quando isso
de Daly e Kelly quando referem que aconteceu, porém, os indivíduos em causa sentiram ser‑lhes associado
um «rótulo» de pobreza, indutor de embaraço que surge associado,
a vida quotidiana é descrita como viver constantemente com o dinheiro sobretudo, ao facto de as outras pessoas tomarem ou virem a tomar
contado – de privação, adiando até pequenas despesas, não celebrando consciência da sua situação de pobreza e, por isso, os julgarem
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(Daly e Kelly, 2015). Do ponto de vista institucional, a situação criada mulheres idosas separadas/divorciadas a viverem sós e por mulheres
parece contribuir para a «outrificação» da pessoa em situação de idosas casadas ou em união de facto residindo com outra pessoa idosa.
pobreza. Como referem, por exemplo, Lister (2004) e Daly e Kelly Estes resultados parecem também indicar a preponderância da viuvez
(2015), ao afirmar as identidades e o poder de quem criou o rótulo, como um dos eventos mais stressantes e disruptivos que podem ser
o processo «nega aos rotulados a oportunidade de criar ou manter vividos pelas pessoas idosas.
uma identidade merecedora de respeito – como pensarão acerca de si
mesmos senão como falhados?» (Daly e Kelly, 2015, p. 152). Uma das questões colocadas às pessoas entrevistadas foi acerca
das medidas que tomariam para combater a pobreza em Portugal,
Instadas a refletir acerca daquilo que, se pudessem, mudariam na sua se desempenhassem o cargo de primeiro‑ministro. O nosso objetivo
vida, algumas pessoas afirmaram a vontade de, nas suas próprias pala‑ foi permitir às pessoas fazerem ouvir a sua voz neste estudo, através
vras, fazer por um «melhor aproveitamento da vida», assente, por de propostas concretas. É um exercício que apresenta algumas limi‑
exemplo, na possibilidade de conhecer outros lugares. No entanto, tações, designadamente devido às baixas qualificações escolares da
a área que concentra respostas em maior número é a que diz respeito à maioria, algo que faz com que a possibilidade de vermos devolvidas no
habitação. Na maior parte desses casos, a opção passaria por dispor de seu discurso o discurso dos media seja grande (cf. Champagne, 1993).
uma casa com melhores condições. Não obstante, tratou‑se da única forma encontrada para perceber um
pouco melhor o que as pessoas entrevistadas entendiam como prio‑
O que é que eu mudava na minha vida? Gostava de ter os últimos ritário. Ao contrário do que aconteceu ao nível individual próprio,
anos de vida com mais conforto e não tenho. O meu maior desgosto a habitação não constituiu a preocupação mais veiculada pelos entre‑
é por causa dos banhos. Eu, no verão, tomo banhos com fartura, mas vistados caso fossem primeiro‑ministro. Uma das opções mais referidas
no inverno, ou tenho que ir ao balneário pra tomar um banho todo consistiu no aumento dos rendimentos, na maioria dos casos englo‑
completo ou tenho de carregar água quente para a casa de banho para bando salários e pensões em simultâneo, amiúde identificados como
levar banho de caneca. Tá a perceber, querida? É só por isso, porque insuficientes para fazer face às despesas. Outra das opções mais refe‑
eu, infelizmente, não consigo ter esquentador aqui. (P1.5_Lisboa, ridas consistiu no apoio à população mais desfavorecida, sendo de
sexo feminino, 75 anos) notar a preponderância atribuída pelos respondentes à componente
Devem, ainda, ser notados os casos de respondentes que, como alimentar. Atendendo às situações de privação alimentar experien‑
primeira reação, afirmaram já não querer mudar nada na sua vida, situa‑ ciadas por muitas destas pessoas em algum momento da sua vida, não
ções essas todas elas referentes ao subperfil de mulheres idosas viúvas espanta que, para muitas delas, e nas suas próprias palavras, o essencial
a viverem sós. Este contrasta, de forma evidente, com as respostas, seja «dar de comer a quem não tem de comer».
mais ricas em conteúdo e no sentido de mudanças desejadas, dadas por
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De notar que outra opção bastante referida remete para conceitos e não querem trabalhar porque é preguiça! […] O rendimento mínimo é
mais amplos de redistribuição da riqueza, sendo relativamente comuns o que está fazendo mal a estes rapazes novos. Se eles passassem o que
discursos que defendem o «tirar aos ricos para dar aos mais pobres» eu passei em nova! (P1.1_VFCampo, sexo feminino. 79 anos)
sem que, no entanto, qualquer pessoa tenha claramente identificado se
tal «estratégia» deveria ser prosseguida através da repartição primária, Tratando‑se de uma população idosa, cujo relacionamento com o
da redistribuição do rendimento, ou de uma combinação destas duas sistema de proteção social se revestiu, como vimos acima, de caracte‑
opções. De salientar, ainda, a distinção, já clássica, feita por algumas rísticas específicas, é muitas vezes estabelecida uma comparação com
pessoas entre pobres merecedores e não merecedores de apoio (cf. por as experiências pessoais, difíceis e que não puderam ser auxiliadas
exemplo, Diogo, 2007). A sua argumentação parece claramente colocar, pela proteção social. À população beneficiária atual são reconhe‑
em discurso direto, aquilo a que Lister se refere quando afirma que cidas facilidades de que os entrevistados não dispuseram e que, como
tal, fazem com que a primeira seja acusada de falta de empenho. Tal
o rótulo de pobre «não merecedor» tem sido conotado negativa‑ origina também, em alguns respondentes, um desejo mais ou menos
mente pelo processo de estigmatização, o qual, historicamente e na inconsciente de que os beneficiários atuais passassem por experiências
atualidade, tem tido implicações na forma como a sociedade vê os similares às suas, o que, na sua opinião, poderia levar a uma mudança
«pobres». (Lister, 2004, 102) de atitude considerada desejável.
Foram particularmente mencionadas como não merecedoras de apoio Em consonância com a visão predominantemente negativa que
as pessoas que não trabalham, apesar de reunirem condições para isso, perpassa das suas respostas, a maioria dos respondentes afirma não se
beneficiárias do Rendimento Social de Inserção (RSI). Para várias das sentir uma pessoa feliz. Tal sentimento é justificado principalmente
pessoas entrevistadas, a componente da ativação profissional associada com as agruras de uma vida, sendo muito relevantes as perdas a nível
ao RSI deveria ser obrigatória – nas suas próprias palavras, «se não familiar, nomeadamente no que diz respeito a filhos, seja por situações
trabalha, não deve ter direito a nada», ainda que, não surpreendente‑ de morte ou pelo afastamento existente e que conduz, em conjunto
mente, nenhum destes respondentes tenha apresentado argumentação com outras circunstâncias, a sentimentos de solidão. Também os
de suporte que ilustrasse a forma como tal estratégia de ocupação problemas de saúde são um elemento amiúde referido como contri‑
profissional plena poderia ser operacionalizada na prática. Em alguns buindo para um sentimento de infelicidade. Em alguns casos, porém,
casos, o RSI chegou mesmo a ser apontado como causa para a exis‑ as pessoas entrevistadas referiram alguns momentos de felicidade que
tência de tais situações de pobres não merecedores. vão, apesar de tudo, pontilhando uma existência predominantemente
infeliz. Quando referidas, essas situações dizem respeito nomeada‑
Os drogados tinham de ir trabalhar, que têm muita droga, muita droga… mente ao dispor de saúde e ao contacto e bom relacionamento com a
e estão no rendimento mínimo. Rapazes novos que podem ir trabalhar família, sobretudo com filhos e netos.
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Fica, portanto, claro que, ainda que algumas pessoas apontem motivos essencial à sobrevivência, pouco espaço foi dado à imaginação de
individuais, com a saúde a desempenhar papel relevante, a felicidade futuros alternativos e grande parte dos esforços nesse sentido parecem
própria parece ser condicionada sobretudo por aspetos familiares, pela ter saído gorados. Em algumas trajetórias, sobretudo de homens,
proximidade ou distância face à família e também pelo papel que o a saída da escola terá sido motivada sobretudo por falta de interesse
bem‑estar de familiares, nomeadamente filhos e netos desempenha na na escola e a sua substituição pelo trabalho, que passou a fazer parte
sensação própria de felicidade. fundamental da sua vida. Em certa medida estes relatos contrastam
com grande parte das entrevistas das mulheres, cujo desinvestimento
6.9. Perspetivas face ao futuro na escolarização não está relacionado com a falta de interesse pessoal
na escola, mas sobretudo por fatores estruturais, de natureza econó‑
A avaliação prospetiva relativamente ao futuro neste perfil é marcada
mica, ou vinculados ao papel desempenhado na instituição familiar.
pela resignação, a falta de esperança ou, pelo menos, a indeterminação.
A ideia de que o futuro «melhor já não será» está presente em muitos Um segundo traço do perfil, comum a ambos os géneros, tem a ver
dos relatos que sublinham o cansaço de uma vida sofrida, afetando com o facto de, com a saída precoce da escola, ter‑se consolidado uma
o estado anímico e apontando sinais de depressão. Em alguns casos identidade associada ao trabalho e à ideia do trabalho‑necessidade
o desânimo é tal, que ficou a convicção de que já não há nada para (Karlsson, 2004), reforçada pela assunção da responsabilidade de
viver. São poucos os registos de esperança, embora sejam muitos que provisão de sustento dos filhos. Também nesta linha de ideias, salien‑
entendem a fé em Deus como uma forma de lidar com as adversidades. támos como a transição para a idade adulta se deu de forma linear e
As poucas expectativas positivas identificadas e os desejos expressos padronizada – trabalho, autonomia residencial, casamento e paren‑
estão sobretudo relacionados com o futuro dos filhos e descendentes. talidade –, moldando as expectativas de uma geração marcada pela
restrição e austeridade e em função de uma ética do trabalho. Assim,
Estas disposições poderão ser mais facilmente compreendidas quando
à precocidade do início da atividade laboral acresce a penosidade,
as contextualizamos nas biografias individuais e familiares estu‑
a pluriatividade e a precariedade, deixando os percursos laborais
dadas, assim como os tempos históricos em que ocorreram. Assim,
marcas neste perfil.
uma análise mais detalha do processo de formação de expectativas
aponta para a cristalização de privação enquanto modo de vida. O desinvestimento na escolarização e a cristalização da privação
É importante ter em conta que a maior parte das pessoas são idosas, enquanto modo de vida acontecem associados a uma rigidez dos
estão reformadas, tiveram vidas duras e marcadas pela acumulação papéis de género, ao confinamento no espaço doméstico e à escassez
de desvantagens – pessoas em situação de pobreza que foram enve‑ de oportunidades para as mulheres, nomeadamente em termos de
lhecendo, parafraseando Lopes (2015). Com o abandono precoce emprego. Para muitas foi reservado o trabalho doméstico, não pago,
da escola e uma vida marcada pelo trabalho enquanto necessidade baseado num modelo de provedor masculino; para a maioria das
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restantes o acesso ao mercado de trabalho foi realizado através do bem‑estar torna‑se particularmente relevante para compreender o
desempenho de tarefas que representam, de uma forma ou de outra, processo de cristalização da resignação e interiorização da privação
a continuidade das atividades domésticas no mundo do trabalho. enquanto modo de vida.
Embora essencial à economia do Estado Novo (e do período que
se lhe seguiu), estas atividades constituíam um trabalho desvalori‑ Entrevistadora: Acha que a sua vida vai ser melhor no futuro?
zado, sustentado e legitimado graças à perpetuação de uma cultura Entrevistado: Se eu melhorar. Tenho esperanças nisso, veja bem.
patriarcal. Em qualquer dos casos, uma carreira contributiva dimi‑ Entrevistadora: Se melhorar a sua saúde?
nuta ou inexistente limitou o acesso a uma reforma digna. Também as Entrevistado: A saúde, a minha saúde.
exceções nos papéis de género são indicadoras da norma dominante. Entrevistadora: Quais os seus maiores sonhos que gostaria de ver
Para uma das entrevistadas, o casamento não parece ter constituído realizados?
elemento de restrição marcada das possibilidades e oportunidades de Entrevistado: O meu sonho é ter saúde, trabalhar, trabalhar ainda, até
vida. Noutros casos, poucos, verificaram-se episódios de separação ou aos 80 anos e ajudar os meus netos. Ajudar.
divórcio que tiveram origem em situações de infidelidade, maus‑tratos Entrevistadora: E acha que vai conseguir?
e violência doméstica. E num outro caso, a morte precoce do marido Entrevistado: Não sei, não vejo, acho que não. Não tenho esperanças
terá representando o fim de uma situação de violência doméstica – nisso. […] Não temos serviço nacional de saúde capaz de resolver isso.
assinale‑se que a entrevistada demonstra uma grande capacidade de Outro dia fui a uma consulta, um doutor deu‑me uns remédios para
adaptação, acabando por educar os filhos sozinha. isto das pernas, deram‑me sete convulsões. (P1.3_Serpa, sexo mascu‑
lino, 72 anos)
Grande parte dos relatos assinala a importância da capacidade de auto
‑provisão e de gestão do orçamento familiar. Poucas são as situações A família terá assumido um papel crucial nas trajetórias de vida
em que esses esforços representaram uma melhoria, a médio ou longo estudadas: não apenas porque estas são moldadas pelos papéis (gende‑
prazo, do bem‑estar e das condições de vida. Na maior parte dos casos, rizados) associados à conjugalidade e à parentalidade, mas também
à medida que a vida foi decorrendo foi‑se acumulando a perceção de por ser fonte de satisfação e realização pessoal e pelo papel crucial
que a privação foi persistindo – os parcos rendimentos e, em muitos que assume para fazer face às adversidades, à privação, às dificuldades
casos, os esforços de auto‑provisão e as ajudas familiares permi‑ associadas à idade avançada e aos problemas de saúde. Como vimos
tiram que não se passasse fome, mas assinalavam uma vida penosa, anteriormente, baseados numa lógica de reciprocidade generalizada,
considerando as tarefas de provisão e educação dos filhos. Por outro numa lógica não mercantil, este tipo de apoio tem uma carga afetiva
lado, especialmente quando surgiram problemas de saúde na família, forte, de gratidão, prologando‑se no tempo e sem regras específicas
mais incapacitantes ou não superados, esta faceta fundamental do quanto ao tipo e qualidade de bens e serviços trocados, assumindo
muitas vezes o sentido inverso, no apoio a descendentes, a filhos e
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netos. Embora os dados disponíveis não permitam uma resposta apro‑ Entrevistada: Se pudesse sim.
fundada a esta questão, apresentamos algumas reflexões sobre até Entrevistadora: Claro.
que ponto a esperança em relação ao futuro acaba por ser transfe‑ Entrevistada: Uma casa para quando os meus filhos viessem… temos
rida para a descendência51. Neste sentido, é importante destacar que, que ir lá para fora. Porque aqui não tenho espaço na mesa para
quando questionadas sobre os seus sonhos, várias das pessoas entrevis‑ comermos aqui todos, quando eles vêm todos. Temos que ir lá para
tadas que anteriormente tinham demonstrando ceticismo em relação fora. Então fazia um salão grande e punha isso maior. Tá bem. Não
à melhoria da sua própria vida, e mesmo quando equacionam outros vale a pena sonhar. (P1.4_Celorico de Basto, sexo feminino, 73 anos)
desejos, manifestam sonhar com um futuro melhor para filhos e netos,
que «estejam bem na vida», e/ou desejando fazer parte da construção Algumas destas pessoas expressam esperança num futuro melhor para
dessa melhoria de vida – por exemplo, garantindo habitação. a descendência, outras nem tanto, mas também aqui a maior parte
dos relatos refletem trajetórias de incorporação da privação enquanto
Entrevistadora: E se pudesse, o que é que mudaria na sua vida? modo de vida. Uma leitura das narrativas sobre as representações que
Entrevistada: Tanta coisa que mudava. fazem dos seus trajetos de vida, comparando‑os com o seu futuro e
Entrevistadora: Então diga, diga‑me lá. Algumas dessas tantas coisas… dos descendentes, dão pistas relevantes de como história e biografia
Entrevistada: Mudava pra melhor, não é? Tinha que pensar… […] se cruzam na forma de viver as privações, as adversidades e a forma
É difícil porque… eu havia de mudar de tanta coisa que havia para de perspetivar o futuro. Isto acontece por exemplo, no contraste
mudar. […] Para já, mudava, se eu pudesse, eu trazia os meus filhos entre o antes e o agora das condições de vida, nomeadamente pela
todos para a minha beira. perceção de que os tempos são outros, menos duros, com mais facili‑
Entrevistadora: Pronto. Então uma das coisas é: trazia os filhos. E mais? dades – ou muito simplesmente ancorando‑se na esperança ou na fé.
Entrevistada: Fazia a casa maior. É muito frequente a menção a um passado mais difícil, por comparação
Entrevistadora: Aqui? Em XXXX? com um presente mais fácil, nomeadamente nas condições de esco‑
Entrevistada: Sim, ficava. Agora já não me importava de ir assim pra larização ou nos meios técnicos que suavizam a dureza do trabalho.
outros lados. Os meus pais já cá não estão. Eu só tenho um irmão lá. No entanto, os sinais dos tempos parecem ser contraditórios, com
E o resto agora já vivi mais tempo aqui do que vivi lá. Agora já não a precariedade do emprego e a falta de perspetivas laborais a insi‑
saía daqui. Mesmo agora os meus filhos já gostam mais daqui. Eu para nuarem‑se no futuro dos filhos e descendentes. Nas perspetivas menos
ir para lá então… deixava‑os aqui, não? otimistas, ou possivelmente mais pragmáticas, o país continua a ser
Entrevistadora: Portanto, fazia uma casa maior aqui em XXXX mesmo. incapaz de proporcionar aos mais jovens um outro horizonte de vida,
Entrevistada: Sim, sim. Alugava esta e fazia uma grande para lá viver. empurrando‑os para a emigração, ela também produtora de sofrimento
Entrevistadora: E punha essa para alugar. devido à distância que separa pais e filhos.
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Conclusão do capítulo muito marcada uma certa resignação face à situação vivida, assumindo
como inevitáveis situações como «não ter nada» ou «passar fome».
Encerrando este capítulo sobre os reformados, destaca‑se a persistência
de situações de pobreza ao longo da vida. Os reformados são pobres Face a este cenário de privações múltiplas, a entreajuda e a solidarie‑
porque nasceram e cresceram em agregados familiares com recursos dade fundadas na família e no parentesco não são capazes de superar
escassos. Não raro abandonando precocemente a escola, o seu fracasso as dificuldades impostas pela privação económica, embora possam,
escolar acabou por determinar o seu destino de vida. Não muito dife‑ em alguns casos, desempenhar um papel mitigador nas privações
rente daquele que tiveram os seus progenitores, a sua incorporação vividas pelas famílias. A pobreza condiciona também as perspetivas
precoce no mundo do trabalho fez‑se através de trabalhos pouco quali‑ de vida. Apesar das expectativas marcadamente reduzidas, a maior
ficados, quer dizer, trabalhos muitas vezes precários e, mesmo quando parte dos nossos entrevistados exprime‑se positivamente em relação
assim não acontecia, mal pagos, com salários que não os deixaram às possibilidades da escola como alavanca para um outro futuro, uma
escapar de uma vida constrangida, marcada pela privação material e a outra vida menos marcada pela privação, que poderiam ter tido se
certeza de que o futuro próximo ou distante dificilmente seria diferente tivessem continuado a estudar. Mas isso não implicou um qualquer
do seu presente. Em poucas palavras, os reformados entrevistados são regresso à escola como adultos, para a grande maioria. De certo modo,
pobres porque sempre foram pobres ao longo da vida, colocando‑se muitos dos nossos entrevistados não se sentiam como legítimos desti‑
assim no centro do debate sobre a pobreza dos mais idosos a questão natários da escola, considerando que a sua presença nela não poderia
dos salários na longa duração. Estando o sistema de pensões estrutu‑ ir para lá da escolaridade obrigatória a que estavam sujeitos. Não
ralmente condicionado pelos rendimentos provenientes do trabalho ao menos importante, a reduzida escolarização na infância, marcada pelo
longo da vida contributiva, qualquer solução para quebrar a pobreza que abandono precoce, fazendo com que muitos ficassem aquém da esco‑
atinge a larga maioria dos reformados depende da melhoria significativa laridade obrigatória, não foi compensada com o retorno à escola ou à
dos salários, sobretudo dos mais baixos. formação profissional na idade adulta.
Sendo as recordações da infância heterogéneas, muitas revelam Vidas de infância e adolescência precárias e marcadas pela privação,
situações de instabilidade e crises familiares, destacando‑se a morte a passagem à idade adulta foi feita sem que os entrevistados sintam,
prematura de um dos progenitores. Ou de problemas de saúde destes hoje, saudades do período que deixaram para trás. Um dos elementos
com impacto no rendimento, a que se juntaram por vezes situações marcantes é o da precocidade na entrada no mundo do trabalho.
de violência familiar. A escola foi uma experiência muito transitória, A bem dizer, a larga maioria começou a trabalhar ainda criança, com
de curta duração, pois a escassez de recursos ditava com urgência o doze e até menos anos, na sequência do trajeto escolar muito curto.
ingresso no trabalho. Enfim, nos discursos dos nossos entrevistados está No dizer de alguns dos entrevistados, o abandono escolar era permi‑
tido e mesmo incentivado, de modo a que as crianças pudessem
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contribuir ativamente para a economia doméstica, minimizando assim ao emprego fez‑se por via da mobilização, sobretudo, de redes de
a privação material, desde logo alimentar, a que a família estava sujeita. conhecimento pessoal, em lugar das práticas hoje mais correntes, rela‑
cionadas com a pesquisa e candidatura a ofertas de trabalho. Ausente
Relativamente à conjugalidade e à autonomia residencial, baseadas no está também a procura de emprego por vias institucionais, mobili‑
princípio da neolocalidade, estas duas surgem fortemente associadas, zando entidades como a escola, incluindo as profissionais, os centros
uma implicando a outra, sendo condições necessárias, em regra, para de emprego ou os serviços de ação social. A vida dos nossos entrevis‑
a parentalidade. Esta é mais precoce nas mulheres do que nos homens tados demonstra a força das origens familiares na estruturação do seu
entrevistados. Os casamentos são de longa duração, sendo raras as sepa‑ percurso e na pobreza na qual sempre viveram. Fatalmente, tiveram
rações e os divórcios. Se tal é decorrente, primeiro de um contexto vidas marcadas por trajetórias de emprego em carrossel, tingidas pela
político e legal onde o próprio divórcio estava interdito aos casamentos precariedade, na qual aquele se vê cortado regularmente por períodos
católicos – regra entre os nossos entrevistados –, é necessário aduzir de desemprego. Muito variados, os trabalhos desempenhados tiveram
o quadro moral onde estes homens e mulheres viveram, marcado pela sempre como cimento de ligação entre eles salário escasso, baixa quali‑
força do princípio religioso (e moral) católico «do casamento até que ficação e, com frequência, informalidade. Mesmo quando se percebe
a morte os separe», reforçado pela subordinação das mulheres à domi‑ algum apreço pelo trabalho, nele se releva sempre a sua penosidade e
nação masculina, ancorada em velhas e muitas vezes inconscientes sofrimento, sendo que a satisfação está associada ao salário auferido
lógicas patriarcais, na qual a mulher não só deve obedecer ao marido, – condição fundamental para a sobrevivência – e ao convívio com os
como é impensável dele se separar, rompendo o casamento. Mas esta companheiros de profissão. Esta penosidade é ora produzida, ora agra‑
resiliência do casamento explica‑se também pelos constrangimentos vada, pelas doenças, algumas de origem profissional. Assim, doença e
materiais que decorreriam do seu rompimento. De facto, como viver fora penosidade contribuíram, portanto, para produzir uma relação muito
do casamento, se dentro dele já mal se conseguia sobreviver? Romper negativa com o trabalho, permitindo aplicar aqui com a mais completa
significava, assim, perder «economia de escala», obrigando a encontrar pertinência o conhecido conceito de alienação. Este constitui, pois,
uma nova habitação e a suportar despesas acrescidas. As responsabili‑ uma experiência pessoal de sofrimento que o trabalhador só aceita
dades da parentalidade estão muito marcadas pela divisão imposta pelos viver por falta real de alternativa, conformando‑se.
valores de género dominantes: o cuidado das crianças está a cargo das
mulheres, cabendo aos homens a tarefa principal de prover com o rendi‑ Apesar de alguns entrevistados possuírem um património modesto –
mento necessário ao sustento da família. residência familiar, pequenas propriedades agrícolas onde desenvolvem
agricultura para consumo doméstico –, que pretendem deixar aos filhos,
Ao contrário do que recorrentemente é dito, as entrevistas revelam as suas narrativas exprimem situações de privação e pobreza, mostrando
que estes pobres sempre trabalharam, aliás com intensidade e peno‑ a insuficiência dos rendimentos resultantes das pensões e outros
sidade, ainda que daí não tenham tirado grandes proventos. O acesso
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complementos sociais. Muitos dos entrevistados têm longas décadas da família, dos vizinhos ou de alguma instituição de caridade. Sendo
de trabalho, mas carreiras contributivas tardias e curtas, nalguns casos situações desqualificadoras, tal permite distingui‑los dos que vivem em
mesmo inexistentes. As despesas com medicamentos e outros encargos situação de miséria extrema, como é o caso dos sem‑abrigo.
provocados pelas doenças crónicas que os atingem, muitas vezes causa
de abandono precoce do trabalho, concorrem para agravar as dificul‑ A fechar a conclusão, a resignação emerge nos relatos dos entrevis‑
dades decorrentes de uma pensão de pequeno valor, sobretudo quando tados, sendo esta alimentada pela ausência de um futuro melhor.
ela é de invalidez. De qualquer modo, há que sublinhar que, reconhe‑ Não projetando qualquer tipo de mudança positiva na sua vida,
cendo o valor monetário reduzido das suas pensões, são muitos os que em muitas das narrativas destacam‑se também expressões que nos
reconhecem a sua importância, de certo modo assumindo o velho e remetem para situações de depressão, falta de esperança e mesmo
pragmático princípio de «é melhor do que nada». Assim, a mitigação desejo de que a sua vida termine. Deste modo fica claro que a pobreza
da privação, como já foi acima enunciado, depende da existência de se traduz muitas vezes em formas de cristalização da privação como
produção alimentar para o consumo doméstico, a que se soma, nalguns modo de vida, na qual a imaginação de outros futuros está ausente.
casos, o apoio familiar dos seus filhos, mostrando, apesar da sua mani‑ Esta resignação é especialmente viva quando se confrontam com a
festa erosão, a importância da família no apoio aos mais idosos. doença crónica. No entanto, apesar de tudo o que nos disseram e
sentem, muitos dos entrevistados desejam um futuro melhor para os
Não obstante os avanços produzidos pelas políticas sociais e o enrai‑ seus filhos (e netos), quando comparado com o seu, ainda que outros,
zamento do direito aos apoios sociais, não é unânime a apreciação com um forte realismo, considerem que o país continua a ser incapaz
em relação os serviços sociais. O acesso a estes direitos sociais pode de proporcionar aos mais jovens um outro horizonte de vida, empur‑
também, nalguns casos, ser condicionado pela condição social, na qual rando‑os para a emigração, ela também produtora de sofrimento.
emerge o estigma do assistido. Não raro, a vergonha condiciona a
ação dos indivíduos, sobretudo quando confundem a justa reivindi‑
cação de direitos com o favor prestado por uma qualquer forma de
assistencialismo.
Embora possa parecer surpreendente, uma parte relevante dos entre‑
vistados afirmou que não se reconhece como pobre. Justificando tal
posição a partir da comparação com outros em pior situação, tal mostra
que os entrevistados, sobretudo, evitam perder a face, no sentido
goffmaniano, recusando ser catalogados como pobres, logo passíveis
de cair na categoria dos que necessitam de apoio, seja do Estado, seja
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Capítulo 7 trabalho regulado por um conjunto de direitos, designadamente a insti‑
tucionalização do direito ao trabalho e o controlo dos despedimentos,
Precários a possibilidade de progressão profissional de acordo com a experiência
adquirida, as competências e as qualificações profissionais, entre
outros aspetos. Por seu turno, este crescimento económico conduziu a
Introdução
aumentos de investimento na educação, com consequentes acréscimos
A configuração deste perfil é definida, essencialmente, pela condição de ofertas formativas, construídos no pressuposto de que a educação
perante o trabalho: uns estão empregados e outros estão numa é um bem de investimento que promove, ela própria, o crescimento
situação de dependência do seu agregado familiar pelo facto de serem económico. Esta ambiência propicia uma procura social de educação
estudantes, se encontrarem desempregados, exercerem trabalhos norteada por um otimismo em relação à escola e às oportunidades que
temporários, informais e sazonais, e trabalharem a tempo parcial de daí decorrem, configurando‑se como um período que nos dá «uma
forma não voluntária. O grupo apresenta uma ligeira sobrerrepre‑ versão muito satisfatória» da relação entre o económico e o social
sentação das mulheres e é o perfil que integra, em maior número, (Castel, 1998, p. 22), ainda que tal não tenha corrigido as desigualdades
os entrevistados mais jovens e mais escolarizados. Mas também se sociais, quer porque o acesso a mais educação não só não neutralizou
evidencia a insegurança e instabilidade das inserções laborais de uma a hierarquização entre diferentes profissões (Boudon, 1974), como
larga maioria destes entrevistados, independentemente das qualifica‑ ainda transmutou as desigualdades sociais em desigualdades escolares
ções escolares que detêm, situação a que não é alheia a evolução da (Bourdieu e Passeron, 1970).
economia nas últimas décadas. Em suma, a heterogeneidade do perfil
Os anos 70, na sequência da crise petrolífera, vêm questionar os prin‑
opõe‑se, para os entrevistados que apresentam experiências profis‑
cípios em que assenta este crescimento económico, o que produz
sionais (quase todos), à relativa similaridade dos percursos laborais
importantes implicações nas formas de perspetivar o trabalho,
nele retratados, marcados pela precariedade, condição que pela sua
o emprego e o papel da educação neste binómio. Em nome da moder‑
intensificação tem vindo a caracterizar as sociedades atuais enquanto
nização da economia, tendencialmente subordinada à lógica da
sociedades do assalariamento precário, por oposição à sociedade sala‑
rentabilidade do capital, e num contexto de internacionalização
rial que caracterizou o capitalismo fordista.
crescente, as empresas desenvolvem estratégias de adaptação à inten‑
O período que medeia a Segunda Guerra Mundial e o início dos anos sificação da concorrência que não passam apenas pela diversificação
70 é caracterizado por um crescimento económico acelerado, susten‑ de produtos, mercados ou consumidores, mas ainda pela flexibili‑
tado numa indústria de produtos estandardizados e num consumo de zação interna e externa do trabalho. Em rigor, é possível identificar
massas, que favorece a existência de um modelo de organização do dois tipos de mercados de trabalho, os mercados internos de trabalho
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– espaço onde a afetação do assalariado às suas funções obedece a trabalhadores desqualificados, oriundos de meios sociais desfavorecidos,
normas de tipo administrativo que definem os modos de afetação, desempregados e trabalhadores migrantes, juntam‑se agora os mais
as remunerações e a mobilidade interna nas organizações. Estes são escolarizados – geralmente jovens – que deambulam entre empregos
complementados pelo segundo tipo, os mercados externos – mais precários e mal remunerados, desemprego, inatividade, formação, como
libertos de regras e procedimentos administrativos e onde a definição o percurso de alguns dos entrevistados neste perfil o denuncia.
da adequação do «perfil do trabalhador» – incluindo aqui as qualifi‑
cações escolares e profissionais – ao posto de trabalho se torna mais Estas transformações na relação com o trabalho impactam as experiên‑
«arbitrária» (Saglio, 1998), uma vez que ela fica largamente depen‑ cias pessoais, originando processos que oscilam entre a inclusão desigual
dente dos critérios que as organizações definem para legitimar e e a exclusão do mercado de trabalho (Burawoy, 2015) – a primeira na
configurar as «qualidades» requeridas para a função a desempenhar. forma de precariedade laboral, a segunda na forma de desemprego ou
Neste mercado de trabalho externo, ou secundário, a instabilidade é o até inatividade. Nesta mesma linha, Paugam (2012) argumenta que
denominador comum: trabalho precário, salários baixos e com escassas precariedade e desemprego constituem formas de desqualificação social
oportunidades de progressão na carreira. É neste contexto que as resultantes da conjugação entre níveis elevados de desenvolvimento
regras que regulavam a relação salarial fordista têm vindo a ser subs‑ económico, uma forte degradação do mercado de trabalho, a fragili‑
tituídas pela institucionalização de formas precárias de relação com o zação das redes de solidariedades familiares e de ajuda privadas, bem
trabalho, cujas consequências na vida dos indivíduos estas biografias como de políticas sociais de luta contra a pobreza, que têm recuado para
ilustram exemplarmente. centrar‑se em medidas mais próximas da lógica assistencial52.
Acresce que o modelo de organização económica em Portugal sempre O que as duas últimas décadas têm demonstrado, um pouco por todo o
permitiu a reprodução, ao longo de diferentes épocas, de formas atípicas mundo, é que a precariedade se instala como um «modo de vida» (Alves,
de relações laborais, à margem da regulação estatal, marcadas por Cantante, Baptista e Carmo, 2011), na medida em que não se restringe
modelos de contratação muito precários, informais, e mal remunerados, ao regime de emprego ou ao rendimento associado, mas afeta todas as
que foram configurando as atividades laborais em setores como o têxtil dimensões da vida. As organizações internacionais (OIT, OCDE, Banco
e o calçado, a restauração e similares ou a construção civil, setores de Mundial) têm alertado para a fragilidade global na inserção profissional
onde uma parte dos entrevistados retiram os parcos rendimentos de e a extrema vulnerabilidade das gerações mais jovens à precariedade
que dispõem. Na linha do que tem sido evidenciado pelas estatísticas laboral (MacDonald, 2011), em particular após a Grande Recessão
disponíveis, também o perfil sociográfico dos entrevistados neste perfil decorrente da crise de 2008, que intensificou e generalizou a precarie‑
demonstra que a população em situação de precariedade se tem reno‑ dade laboral, transformando‑a num fenómeno global duradouro, numa
vado, na medida em que ao contingente tradicionalmente formado por experiência coletiva (Standing, 2011), sedimentada pelas políticas neoli‑
berais dominantes na atualidade53. Ora, esta condição afeta não apenas
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as condições objetivas da sobrevivência económica, mas também uma precariedade que, refletindo as contrariedades e o sofrimento viven‑
dimensão mais subjetiva que remete para a impossibilidade de forma‑ ciado, se direcionam para a formalização de projetos de futuro e
lização de projetos de vida e de futuro, designadamente processos de para a delimitação de estratégias que permitam contornar algumas
autonomização familiar, situação particularmente problemática em das dificuldades antecipadas nos processos idealizados de inserção
países do Sul da Europa (Moreno Minguez, 2012; Serracant, 2015), profissional.
incluindo Portugal (Carmo e Matias, 2019).
A reversibilidade das trajetórias de emprego, alicerçada na insegu‑
Para compreender os impactos da precariedade laboral na vida de quem rança e na individualização das relações de trabalho, e na exclusão de
a experiencia, torna‑se incontornável recordar Sennet (2001) e a sua formas de proteção garantidas pelo Estado Social, torna indispensável
análise das consequências pessoais do trabalho neste capitalismo flexível o apoio das famílias a «cada novo recomeço», configurando‑se a soli‑
em que vivemos. O autor evidencia, também com base em depoimentos, dariedade familiar como a estratégia básica de sobrevivência de muitos
como a fragilização do estatuto do emprego dificulta a construção de entrevistados neste perfil, particularmente nos casos que se encontram
narrativas lineares e coerentes na articulação entre o passado, o presente desempregados ou a trabalhar a tempo reduzido, de forma involun‑
e o futuro, a dificuldade em fixar objetivos de longo prazo, a instabi‑ tária, ou em atividades económicas exercidas informalmente.
lidade resultante dos recomeços a cada mudança de emprego. Como
refere Fortuna, no prefácio à edição portuguesa da obra de Sennet, «o Este capítulo está organizado de forma similar aos restantes e segue
carácter corroído é aquele que se vê incapaz de oferecer uma narra‑ a lógica da cronologia subjacente a uma biografia de vida, procu‑
tiva coerente da vida pessoal e de lhe dar uma sólida linha de rumo», rando entender a trajetória de cada entrevistado e acompanhar, como
constituindo a flexibilidade laboral um «código moral e ético novo que refere Marcus (1998), os seus movimentos, as suas metáforas e as suas
desliga entre si o mundo do trabalho e as sociabilidades, na família, entre histórias, dando particular destaque à forma como os entrevistados
amigos, ou na comunidade e na vida pública» (p. 17). refletem as circunstâncias da sua vida, as opções assumidas, a forma
como avaliam os seus percursos, as expectativas e aspirações face ao
Em algumas das trajetórias de vida que seguimos neste capítulo futuro, bem como as propostas que formulam para debelar a situação
percebe‑se a dificuldade em assumir a construção de narrativas de vulnerabilidade social em que se encontram.
coerentes sobre a vida profissional, pois esta depende em larga medida
de circunstâncias que podem estar «desconectadas» (Cook, 2015) entre 7.1. Enquadramento familiar na infância
si e daquilo que poderá ser plausível fazer no futuro, percebendo‑se
A reconstrução dos percursos de infância pelos entrevistados pretende
que são as oportunidades momentâneas pressentidas nas estruturas
recuperar uma parte significativa da sua narrativa, tendo por base os
sociais que orientam a gestão do percurso laboral. Outras narrativas,
objetivos já enunciados no perfil anterior. Este grupo, constituído
de forma inversa, sugerem formas de racionalização da situação de
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por indivíduos em idade ativa, com idades entre os 18 e os 62 anos, situações de estigmatização das crianças pobres, aparece aqui referen‑
é bastante heterogéneo, reunindo narrativas de sujeitos de diferentes ciado pela primeira vez enquanto tal, bem como episódios de racismo
faixas etárias e gerações. decorrentes da experiência de emigração enquanto crianças.
As recordações da infância são altamente variáveis neste perfil. O fenómeno da perda de progenitores e de problemas de saúde é
É possível encontrar memórias positivas associadas, sobretudo, a uma bastante menos significativo neste perfil, comparativamente com o
infância marcada por relações familiares estáveis, ou por elementos anterior. Como foi possível observar transversalmente, para lá dos
da família alargada que exerceram um papel afetivo muito significa‑ impactos emocionais, estes eventos representam muitas vezes alte‑
tivo, como os avós; o espaço escolar e as brincadeiras com os amigos rações profundas nas dinâmicas familiares e, em alguns casos mesmo,
também constituem lembranças muito positivas, sustentadas em no prosseguimento do percurso escolar das crianças. Ainda que não
formas de sociabilidade libertas do controlo normativo dos adultos e preconizemos uma visão «fatalista» ou de «inevitabilidade» face à
da dominação das tecnologias digitais. condição da pobreza na infância, a verdade é que diferentes autores
(Attree, 2006; Ridge, 2002; Main, 2017, entre outros) têm estudado
Entrevistadora: Pronto, não faz assim tanto tempo [risos] mas aquilo os seus efeitos, nomeadamente a partir de lógicas multifatoriais e de
que são as suas recordações, se acha que teve uma infância boa, má… análises a partir da complexidade do fenómeno.
quais são as suas recordações?
Entrevistada: Sim, acho que posso considerar que tive uma infância É possível observar‑se, em relação ao perfil anterior, uma menor resig‑
boa. Foi sempre um misto de estar com os meus pais e estar com os nação perante as adversidades da vida. Registam‑se, ainda, dinâmicas
meus avós. de violência familiar que produzem recordações negativas da infância.
[…] Depois, também foi sempre uma infância muito livre de andar cá
fora e ir pro campo com os meus avós… as brincadeiras eram muito à Entrevistadora: Porrada de quem?
base de fazermos coisas sem ter tecnologias, o máximo que usávamos Entrevistada: Do meu pai e da minha mãe, às vezes metia‑me debaixo
era ver a televisão e era no zig zag [risos]. E então era o máximo que da cama, debaixo da cama mesmo, não era em cima da cama em baixo
fazíamos em termos ligados à questão das comunicações. De resto era da roupa, era debaixo mesmo, escondida. Tive uma fase um boca‑
muito uma infância de saltarmos à corda, brincarmos (P2.1_Castelo dinho complicada.
de Paiva, sexo feminino, 20 anos) Entrevistadora: Os seus pais eram agressivos consigo e com os seus
outros irmãos?
Já nas memórias negativas, permanecem fatores ligados à privação Entrevistada: Não, é assim: o meu pai queria que eu fosse homem,
económica e à violência em contexto familiar, seja entre adultos ou a minha mãe achava que eu era homem. E o meu pai punha a
de adultos em relação às crianças. Também o bullying, associado a
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agressividade que tinha pela minha mãe, em cima de mim, porque era pobreza na infância, ou seja, os diferentes fatores que poderão ter
mulher. Percebe o dilema? (P2.5_Guimarães, sexo feminino, 57 anos) contribuído para uma maior vulnerabilidade dos agregados familiares.
De entre esses fatores, a instabilidade de emprego dos progenitores
O trabalho infantil aparece novamente referenciado pelos entre‑ é referida como um acontecimento com impacto negativo nas vivên‑
vistados mais velhos deste perfil. Este tipo de atividade laboral, cias familiares, a que acrescem a morte ou os problemas de saúde de
frequentemente ligada ao contexto familiar, foi o que mais contribuiu alguns familiares. Para além dos impactos emocionais que estas situa‑
para que as crianças não vivenciassem a sua infância e interrompessem ções provocaram nos entrevistados, enquanto crianças, a interrupção
percursos escolares, mesmo que fosse essa a sua vontade. das trajetórias escolares decorre, para alguns, da combinatória destas
Entrevistador: Desde criança? múltiplas vulnerabilidades.
Entrevistado: Criança sempre. Entrevistadora: Para trabalhar?
Entrevistador: Lembra‑se com que idade começou a trabalhar? Entrevistado: Não… Para trabalhar e, depois, também, eu não tinha
Entrevistado: Ui, comecei aos sete. condição para continuar a estudar. A minha mãe já tinha falecido,
Entrevistador: Aos sete. na altura.
Entrevistado: Ia para aí uma hora, levava uma hora no caminho com Entrevistadora: Que idade é que tu tinhas quando a tua mãe faleceu?
as vacas pra lá para o monte. Tinha para aí sete anitos, era todos os Entrevistado: 14. Aguentei mais uns dois anos [na escola]. (P2.4_
dias. (P2.4_Boticas, sexo masculino, 52 anos) Almada, sexo masculino, 40 anos)
As dificuldades económicas frequentemente sentidas pelas famílias Em face das vulnerabilidades salientadas, interessou‑nos perceber até
eram colmatadas, sobretudo, recorrendo a estratégias de solidarie‑ que ponto as famílias dos entrevistados receberam apoios, quer formais
dade intrafamiliar, que evitavam um aprofundamento da situação de quer informais. Ainda que em alguns discursos não surjam identificados
pobreza. Uma ideia interessante que se evidencia em algumas das quaisquer tipos de apoios, percebemos que são os apoios informais que
narrativas é a distinção entre diferentes níveis de pobreza, sendo que ganham maior relevância comparativamente aos oficiais; entre estes,
uma «pobreza sem fome» surge avaliada como situação menos gravosa. destacam‑se a ação social escolar e as bolsas de estudo, o apoio de
Esta distinção entre pobreza e miséria é, aliás, algo que se volta a instituições oficiais, particularmente as ligadas ao poder local, como as
evidenciar na análise apresentada no ponto cinco deste capítulo, câmaras municipais e juntas de freguesia. Estas duas últimas instituições
em relação à avaliação da sua situação presente. têm um papel importante nos apoios habitacionais e nas ajudas alimen‑
Tal como observamos no perfil anterior, a análise das narrativas passou tares às famílias dos entrevistados, representando grande relevância na
também pela identificação de eventos potenciadores de situações de mitigação de situações de enorme fragilidade social.
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Em síntese, os eventos potenciadores de situações de pobreza na infância As histórias de retenção escolar são frequentes e ocorrem em dife‑
são bastante variáveis e implicam, frequentemente, alterações nas estru‑ rentes anos de escolaridade.
turas familiares das crianças, na decorrência de situações de doença,
morte, precariedade laboral e desemprego. Como temos vindo a afirmar, Entrevistadora: Quantas vezes?
estes eventos assumem particular relevância na trajetória dos indivíduos, Entrevistada: Duas vezes.
quer na vivência da infância quer nos projetos de vida, incluindo aqui os Entrevistadora: Porque é que acha que isso aconteceu?
percursos escolares que, para muitos, foram precocemente interrompidos Entrevistada: No primeiro ano, reprovei no 4.º ano porque mudei de
dadas as dificuldades económicas das famílias. No entanto, neste perfil escola a meio, de uma pública para uma privada, foi totalmente dife‑
as experiências escolares são mais longas e as qualificações escolares rente o ensino… Apesar que eu preferia a pública. E no 7.º ano foi por
obtidas mais elevadas, comparativamente com os restantes. desleixo meu, faltas disciplinares, tive mau comportamento. (P2.1_
Porto, sexo feminino, 19 anos)
7.2. Relação com o sistema educativo No entanto, boa parte das situações de insucesso escolar referem‑se
A relativa desvalorização da escola e a existência de percursos esco‑ aos entrevistados mais velhos. Entre os entrevistados mais novos
lares pouco consistentes constituem regularidades que aproximam percebe‑se a existência de maior sucesso escolar associado a percursos
este perfil do anterior, ainda que, em particular nos entrevistados escolares mais longos, como temos vindo a sublinhar. Os percursos
mais jovens, as habilitações literárias sejam significativamente mais escolares mais curtos ocorrem pela necessidade de ingresso precoce
elevadas, sendo as mais elevadas dos quatro perfis, o que decorre no mundo do trabalho, com frequência ainda enquanto crianças, reali‑
também do progressivo alargamento da escolaridade obrigatória ao dade que está presente em todos os perfis, ainda que com diferentes
longo das últimas décadas. intensidades. O abandono escolar, mais visível entre os elementos
mais velhos, é justificado por múltiplos fatores: as dificuldades econó‑
As experiências de pobreza que ocorreram na infância parecem ter micas das famílias, a vontade de ingressar rapidamente no mercado de
produzido impacto nas expectativas e representações de futuro dos trabalho, as dificuldades em prosseguir escolarização, a aprendizagem,
entrevistados, bem como na valorização da escola e no papel instru‑ enquanto adolescentes, de um ofício, ou o assumir a dificuldade de
mental da escolaridade e do diploma escolar nos percursos de vida. integração na cultura escolar. Noutras narrativas, o abandono precoce
Este perfil integra os únicos entrevistados que frequentaram ou da escolaridade é justificado pela necessidade de emigração e a procura
completaram o Ensino Superior. Na generalidade, e apesar também de de melhores condições de vida, ou a necessidade de assumirem o papel
encontrarmos diferentes situações de abandono escolar, verificamos de cuidadores informais de familiares em situação de dependência,
que, enquanto adultos, alguns regressam à escola, algo de que fala‑ o que denuncia a debilidade do Estado Social no apoio à infância e
remos aprofundadamente no próximo ponto deste capítulo. juventude.
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Algumas das narrativas revelam recordações muito negativas da escola, suporte e apoio de alguns adultos no contexto escolar. Como observa
nomeadamente pela existência de bullying por parte dos colegas, Ridge (2010), a escola é uma das áreas principais de prestação de
ou mesmo o castigo físico por parte dos professores. serviços públicos para a infância com o potencial de contribuir signi‑
ficativamente para o bem‑estar das crianças que se encontram em
Entrevistada: não tenho recordações nenhumas, porque as profes‑ situações de desvantagem ou de maior vulnerabilidade.
soras eram más, não deixaram saudade nenhuma.
Entrevistadora: Disse que as professoras eram más… Em muitas destas histórias de vida percebe‑se que a interrupção das
Entrevistada: Ah, não tenho recordação nenhuma, eram todas más. trajetórias escolares decorre da ausência de suporte familiar, ainda que
Entrevistadora: Elas castigavam? os protagonistas perspetivassem a escolaridade como algo de instru‑
Entrevistada: Não castigavam, batiam. (P2.3_VPAguiar#1, sexo femi‑ mental para a realização de projetos profissionais e de vida futura;
nino, 46 anos) outros cederam ao abandono escolar, evidenciando posturas menos
positivas acerca da relação funcional entre o diploma e o acesso a
Ainda que bastante variáveis nas experiências escolares, os entrevis‑ melhores empregos. Em pesquisas realizadas sobre o valor do diploma
tados assumem, na sua maioria, o papel instrumental da escolaridade escolar para as crianças, foi possível verificar que vários entrevistados
na criação de melhores oportunidades sociais, nomeadamente no eram pessimistas sobre a educação enquanto caminho para o sucesso
mercado de trabalho, ainda que a experiência social de familiares pessoal, embora muitas crianças continuassem comprometidas com
próximos contradiga esta relação linear entre escolaridade e acesso a seu valor (Daly e Leonard, 2002).
melhores empregos, alegadamente por falta de «sorte».
Por outro lado, como observou Attree (2006), diferentes estudos
Entrevistada: Depende, eu vejo muito pelas pessoas que conheço, sugerem que a desvantagem na infância pode levar à perceção de que
a minha irmã foi para a faculdade tirou o mestrado e não está a traba‑ as limitações económicas e sociais são «naturais» e normais, impac‑
lhar na área dela. Tem uma loja própria dela e ganha o dela aí na loja… tando assim as expectativas de vida das crianças (Middleton et al.,
só…. Já acabou o mestrado há um ano… 1994; Roker, 1998; Ridge, 2002). Esta limitação das expectativas tem
Entrevistadora: Acha que não tem nada a ver? também influência nas próprias projeções dos sujeitos em relação ao
Entrevistada: Não. Não tem nada a ver! É uma sorte! (P2.1_Porto, que o futuro possa permitir e ao próprio papel da escola nessa cons‑
sexo feminino, 19 anos) trução. Daí que em algumas narrativas, em particular dos sujeitos mais
Noutras narrativas, a escola associa‑se a um lugar de felicidade e segu‑ velhos, a escola não pareça ser valorizada, nem quando se trata de
rança, um espaço marcado por boas recordações, sendo aqui exaltadas apoiar os projetos de escolarização dos seus descendentes, como nos
as redes de sociabilidade tecidas em torno do grupo de pares ou o relata uma entrevistada, cujos progenitores desincentivaram o prolon‑
gamento da sua trajetória escolar.
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Entrevistada: E no final basicamente eu apercebi‑me que não queria 7.3. Transição para a vida adulta
apenas achar um emprego, e que todo o percurso que eu tinha tido
A heterogeneidade etária dos entrevistados neste perfil coloca‑os
académico, tirar boas notas e tudo mais afinal era o que eu queria, eu
em diferentes momentos da sua trajetória de vida, ainda que, para
queria era mesmo continuar com aquilo. Foi aí que me apliquei, tive
alguns, a situação de privação de emprego os relegue para uma depen‑
uma discussão muito grande com os meus pais sobre querer ir para
dência em relação à família de origem. Consideramos que a transição
à faculdade, lembro‑me perfeitamente de estar no jantar de família,
para a vida adulta pressupõe que já tenham ocorrido na vida dos indi‑
Natal, e eu ter ido embora porque o meu pai disse que eu não iria para
víduos episódios, mais ou menos bem‑sucedidos, de passagem de
a Universidade com o dinheiro dele, para não andar a gastar à toa.
uma situação de dependência para uma situação de autonomia55 que
Entrevistadora: Eles não incentivaram a sua ida para Universidade?
sucede, segundo múltiplas combinatórias, no espaço público – saída da
Entrevistada: Não. (P2.1_Guimarães, sexo masculino, 20 anos)
escola e ingresso no mercado de trabalho – e no espaço privado – saída
Para outros entrevistados, o ingresso no Ensino Superior parecia cons‑ de casa dos pais e constituição de uma nova família.
tituir um projeto relativamente formalizado, mas a ausência de apoios
Em termos genéricos podemos afirmar que, enquanto as transições dos
financeiros acabou por ter um efeito dissuasor na sua concretização,
reformados se dão em contextos culturais caracterizados por um tradi‑
o que denuncia que o acesso ao Ensino Superior é um processo social‑
cionalismo de valores, os casos agora em análise ocorrem no quadro
mente seletivo, dada a não gratuitidade da frequência deste nível de
social da segunda modernidade e da mudança de valores e de compor‑
ensino e a escassez dos apoios atribuídos pelo Estado, através dos
tamentos que a caracterizam e que, no contexto português, se começa
serviços de ação social. Os inquéritos54 realizados às condições socioe‑
a desenhar nos anos 70 e se sedimenta com a democratização da socie‑
conómicas dos estudantes do Ensino Superior em Portugal continuam
dade portuguesa.
a evidenciar a sub‑representação, na frequência deste nível de ensino,
das categorias sociais com menores recursos económicos e culturais, As transições profissionais e familiares destes inquiridos ocorrem,
bem como o acesso menos frequente destes alunos a cursos tradi‑ justamente, a partir dos anos 70 e evidenciam os sinais das mudanças
cionalmente mais «elitistas» como as ciências médicas, engenharias que sucedem no sistema escolar – incremento das qualificações esco‑
ou Direito (Mauritti, 2002). Uma das biografias relata a trajetória no lares, estando aqui inseridos os inquiridos mais escolarizados – e nas
Ensino Superior de uma entrevistada que concluiu uma licenciatura estruturas familiares, percebendo‑se que o modelo clássico de família
em educação, que é a área científica que se evidencia como a mais – nuclear e unida pelo casamento – se confronta, neste grupo, com a
permeável à diversificação da origem social e aquela onde figuram afirmação de novas formas de organização e de legitimação das rela‑
mais jovens oriundos de famílias com menores recursos culturais e ções afetivas. As mudanças laborais e o impacto dos processos da
económicos. flexibilização do mercado de trabalho e da redução do fator trabalho
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(Rebelo, 2006) também se fazem sentir, na medida em que as formas os trabalhadores nesta situação estão excluídos, por lei, das normas
atípicas de relações laborais caracterizam não apenas os trabalhadores e regras que regulam a relação salarial, auferem remunerações mais
desqualificados, oriundos de meios sociais desfavorecidos, e traba‑ baixas e estão expostos à arbitrariedade dos empregadores, como bem
lhadores migrantes, mas também os jovens mais escolarizados que o denunciam alguns dos depoimentos. As gerações mais novas aban‑
deambulam entre empregos precários e mal remunerados, desemprego, donam os estudos após carreiras escolares mais prolongadas, mas as
inatividade, formação. dificuldades económicas familiares e a ausência de apoios financeiros
estatais acabam frequentemente por exigir uma inserção profissional
Relativamente à transição escola‑trabalho são reportadas várias e ter um efeito dissuasor na concretização de projetos de prossegui‑
situações de abandono precoce da escolaridade, justificadas pela reali‑ mento de estudos a nível do Ensino Superior.
zação de pequenos trabalhos, enquanto crianças, no contexto de
uma economia familiar de subsistência. Desta forma continua aqui a Mas se, para muitos, os contextos desfavorecidos em que viveram
desnudar‑se uma sociedade rural do interior, onde as dificuldades de obstaculizaram a realização de estudos em idade ideal de frequência,
sobrevivência exigiam o contributo de todos56: posteriormente enquanto adultos regressaram ao sistema de educação
e formação, quer no contexto do sistema formal de ensino para inten‑
Entrevistador: Você se lembra com que idade começou a trabalhar? sificar as qualificações escolares, quer no contexto de uma formação
Entrevistado: Ui, comecei aos sete. profissional conducente à melhoria das qualificações profissionais e,
Entrevistador: Aos sete. nalguns casos, frequentada no âmbito de programas enquadrados nas
Entrevistado: Ia para aí uma hora, levava uma hora no caminho com as políticas ativas de emprego que visam aumentar a empregabilidade
vacas pra lá para o monte. Tinha para aí sete anitos, era todos os dias. dos indivíduos, ainda que tal ação não tenha tido impacto na saída da
Entrevistador: E esses animais eram da sua família? condição de pobreza. Sem escamotearmos a importância da formação
Entrevistado: Eram, do meu pai e da minha mãe. Só que eu era o e da requalificação profissional como medidas de combate à exclusão
mais novo, os outros mandavam [para] a escola, a mim mandavam social, aquilo que se verifica, e não apenas neste perfil, é uma tendência
ao monte. Então tinha que ir, senão a gente levava porrada. (P2.4_ para a acumulação de cursos profissionais sem que essa formação se
Boticas, masculino, 52 anos) traduza numa integração qualificada e permanente no mercado de
Mas também os que procuravam melhores condições de vida nos trabalho (Furlong e Cartmel, 1997). Tem‑se verificado que os sistemas
centros metropolitanos do país, ou mesmo no estrangeiro, acabaram de formação tendem a criar condições e modalidades de afetação dos
por integrar, ainda enquanto crianças, o mercado informal de emprego. indivíduos a certas categorias jurídicas internas que podem não ter
Como faz notar Baganha (1996), a emigração ilegal e o trabalho correspondência em categorias socioprofissionais e, não sendo reco‑
infantil acrescem a vulnerabilidade à exploração, na medida em que nhecidas no mercado de trabalho, não poderão ser transmutadas em
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condições laborais efetivas – em termos salariais e de progressão de edificadas na partilha de afetos ou, como refere Torres (2002 , p. 579),
carreira – por forma a que os indivíduos ocupem uma posição laboral na «partilha romântica e do amor» e em posturas mais igualitárias face
conforme às qualificações adquiridas. Por outro lado, a flexibilização à divisão conjugal do trabalho.
nos mercados secundários de trabalho tem conduzido à proliferação
de formas precárias de emprego e ao aumento do desemprego, à revelia da O alongamento da escolaridade e a instabilidade do mercado laboral
formação profissional adquirida. estão na base de novas formas de conjugalidade mais informais,
e também no que se tem apelidado de «experimentalismo amoroso»
A análise das transições familiares neste perfil permite perceber uma (Guerreiro e Abrantes, 2007) para designar a existência de experiên‑
pluralidade de configurações das relações afetivas: relações conju‑ cias afetivas prévias à conjugalidade. Pelos discursos dos entrevistados
gais não formalizadas, o celibato como opção de vida, separações e percebe‑se que este experimentalismo pode estar associado a um
processos de recomposição familiar, uma parentalidade não enqua‑ tendencial alongamento do período da conjugalidade sem procriação,
drada num casamento formal ou numa relação conjugal, uniões mas que este alongamento também decorre da dificuldade de estabili‑
conjugais que recusam a parentalidade, ou famílias compostas apenas zação profissional e de autonomização residencial.
por um progenitor com filhos. Esta diversificação de configurações
familiares está fortemente imbrincada no processo de desinstitucio‑ Os projetos de parentalidade também assentam em conceções diversi‑
nalização do casamento, de individualização dos processos de vida e ficadas, sendo que se percebe uma maior disponibilidade dos homens
de sentimentalização das relações, denunciando a primazia das esco‑ para a partilha dos cuidados aos filhos, diminuindo a diferenciação dos
lhas individuais sobre as normas sociais que organizam e regulam papéis entre os géneros que é muito acentuada nas formas de conju‑
as relações familiares. Estas mudanças familiares, «ao contrário de galidade mais próximas do modelo institucional, com uma divisão
produzirem estilhaçamentos produzem recomposições, tornando as genderificada das tarefas (Torres, 2002). Nos agregados onde predo‑
modalidades de viver em família mais plurais e diversas» (Guerreiro, mina a relação conjugal construída com base no modelo institucional,
Torres e Lobo, 2007, p. 31). a parentalidade foi assumida como um projeto e uma opção dese‑
jada, mas com implicações na concretização das aspirações de vida das
Os discursos permitem identificar uma diversidade de valores e de mulheres. São estas que protagonizam o cuidado às crianças, o que em
práticas associados à união conjugal, designadamente formas mais alguns casos conduziu à interrupção de processos formativos, à impos‑
contrastantes de significar a relação entre os géneros e as funções sibilidade de aceitar uma atividade profissional após um processo de
associadas a cada papel familiar. A par de uma conjugalidade de tipo formação, ou ao abandono da atividade profissional regulada por um
«institucional», assente em valores tradicionalistas e estruturada contrato de trabalho permanente:
segundo uma diferenciação «naturalizada» das funções desempe‑
nhadas por cada um dos elementos do casal, surgem relações conjugais
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Entrevistadora: Então parou de trabalhar assim com essa relação com os outros agregados e com os reformados (Peña‑Casas, Ghailani,
de contrato… Spasova e Vanhercke, 2019), o que também denuncia a debilidade do
Entrevistada: De contrato… Estado Social no apoio à infância e juventude, comparativamente com
Entrevistadora: Depois de ser mãe? o facultado aos idosos. Ora, esta debilidade estrutural do modelo de
Entrevistada: Hum providência português não consegue, nestes casos, ser compensada
Entrevistadora: Porque é que decidiu ficar em casa a tomar conta por uma solidariedade familiar que é bastante limitada pela situação
do seu filho? de vulnerabilidade económica em que toda a estrutura familiar se
Entrevistada: E conforme ando agora, limpeza aqui, limpeza a lá… encontra. Apesar disso, os entrevistados mais jovens assumem a impor‑
Entrevistadora: E porque é que tomou essa decisão? tância do apoio prestado pela família nos seus processos de transição
Entrevistada: Porque os colégios eram muito caros e eu não dava para para a vida adulta, quer porque a família disponibiliza o alojamento para
pagar uma ama, não é? Tar a trabalhar e pagar uma ama também não que os jovens possam enfrentar as dificuldades temporárias resultantes
dava para isso. do desemprego, quer porque vai prestando um pequeno apoio quoti‑
Entrevistadora: Então ficou com ele até ele ter a idade de ir para diano na disponibilização de bens alimentares e valores pecuniários,
a escola. estratégias que não evitam a situação de pobreza em que se encontram.
Entrevistada: Até ter a idade da escola. (P2.4_Lisboa#2, feminino,
61 anos) 7.4. Relação com o mundo do trabalho
Este depoimento coloca em cena uma questão que é recorrente nos Como temos vindo a afirmar, este perfil caracteriza‑se por ser o mais
perfis analisados e que remete para as dificuldades resultantes de heterogéneo dos quatro. Essa heterogeneidade reflete‑se, também,
uma fraca cobertura de equipamentos de cuidados às crianças mais na relação com o trabalho. No entanto, para além da diversidade
pequenas. Aqui reporta‑se explicitamente a dificuldade económica podemos encontrar, ao mesmo tempo, alguns aspetos comuns.
para suportar o custo da frequência deste tipo de equipamentos, o que O primeiro grande fator agregador, no que ao trabalho respeita, é o
constitui um dos obstáculos estruturais às políticas e práticas de conci‑ facto de o agregado doméstico não estar em situação de baixa intensi‑
liação trabalho‑família no nosso país e, nesta população específica, dade no trabalho. Na maior parte dos casos, a subsistência das pessoas
fator de agravamento da situação de pobreza. Mas também a mono‑ entrevistadas só é possível graças à solidariedade familiar: é esse o
parentalidade, na sequência de processos de dissolução das uniões caso dos estudantes, dos desempregados e das domésticas que foram
conjugais, surge como um fator intensificador da situação de pobreza. enquadradas neste perfil.
Em Portugal, os estudos mais recentes demonstram que é nos agre‑
Contudo, e em contraste, a inexperiência declarada no mercado de
gados monoparentais que a pobreza mais cresce, comparativamente
trabalho ou a situação de desemprego nem sempre correspondem
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à realidade passível de se observar através do aprofundamento é dela. Mas tenho que gastar a algum lado, porque não posso… e
das respostas. Em alguns casos o que está em causa é a zona inter‑ vou‑me orientando assim. (P2.5_VPAguiar, sexo feminino, 49 anos)
média, difusa, entre trabalho e não trabalho que encontrámos para o
perfil dos reformados, bem como a forma como os indivíduos veem Os esquemas teóricos e mesmo as análises empíricas tendem a dividir o
o trabalho e se identificam com ele. Isso parece ser especialmente mundo de uma forma racional, sistemática e clara. Este é um exercício
verdade para o sexo feminino e para os mais velhos. Desafia‑se aqui, imprescindível para tornar inteligível uma realidade demasiado complexa
portanto, os limites da definição de trabalho (Karlsson, 2004), tal como para a capacidade de compreensão humana. Contudo, o mundo social
verificado no perfil anterior. não possui estes atributos sendo, pelo contrário, complexo, desorga‑
nizado e confuso. Justamente, a divisão dos nossos entrevistados nas
Grande parte dos entrevistados estão numa situação de desem‑ três categorias de condição perante o trabalho em que eles se encaixam
prego ou na zona intermédia entre emprego e desemprego, mas o neste perfil (estudantes, desempregados e domésticas, para além dos
trabalho não deixa de ser particularmente relevante na sua trajetória trabalhadores), e que a pesquisa aceita, é desafiada pela análise das suas
de vida. Estamos, pois, perante um segundo grande fator agregador trajetórias laborais. O cerne do problema é a definição de si, em especial
deste perfil, no que à relação com o mundo do trabalho respeita. como estudante ou como desempregado, na relação com a precariedade
Em concreto, a maior parte dos entrevistados que não estava empre‑ e a trajetória profissional. Esta definição, muito associada à identidade
gado, no momento da entrevista, exercia algum tipo de atividade no mundo do trabalho, tende a simplificar e a desconsiderar a atividade
laboral. Além disso, dos que trabalham de forma relativamente laboral, o trabalho desenvolvido.
frequente apenas três apresentam algum tipo de estabilidade, mesmo
que mínima. Quase todos os entrevistados, de uma forma ou de outra, Muitos não se consideram trabalhadores, devido à natureza das ativi‑
exercem ou exerceram recentemente uma atividade laboral, em regra dades que realizam. Em regra, estas são informais, precárias (mesmo
de forma precária ou muito precária. irregulares ou até erráticas) e mal remuneradas. Comparam‑se com o
padrão do emprego sem termo, com a estabilidade de trabalho e de
Entrevistadora: Como, o que são esses biscates? rendimento que lhe está associada, e declaram‑se não trabalhadores.
Entrevistada: É, eu faço condomínios, limpo a casa e trabalho Quase todos fazem biscates com alguma frequência, em especial os
domingo e sábado à tarde num café, que é para ganhar horas desempregados. A dimensão subjetiva da relação com o trabalho
extras, pra ganhar dinheiro extra. Que é a maneira que eu consigo intromete‑se, portanto, nas dimensões mais objetivas, matizando‑as
orientar‑me. Só com 250 euros eu não consigo, não é? E faço essas e complexificando‑as.
coisas por fora, que é para me orientar, tiro meu dinheiro pra gastar,
que é para pagar água, luz. O dinheiro da renda é… [incompreensível] Entrevistadora: Está bem. Então, tu estás desempregado há quanto
o dinheiro da miúda que nem sequer devia de o gastar não é, porque tempo, não é?
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Entrevistado: É a mesma pergunta que a tua colega está a fazer. Eu estes indivíduos mudem vertiginosamente entre diversas atividades,
nunca estive empregado [risos]. Se eu nunca trabalhei… não saem do mesmo lugar social, como acontece nos carrosséis.
Entrevistadora: Não. Tu já trabalhaste [no momento desta afirmação
a entrevista já ia longa e a entrevistadora espanta‑se]. No que respeita aos aspetos mais estritamente relacionados com a
Entrevistado: Nunca trabalhei! Como é que eu trabalhei?! Fazia dimensão mais subjetiva da relação com o mundo do trabalho, esta
biscates! Nunca trabalhei com contrato ou com algo do género. aparece‑nos associada à definição de si em relação ao trabalho ou,
Nunca, nunca, nunca, nunca. (P2.4_Almada, sexo masculino, 40 anos) dito de outra forma, remete para o lugar que o trabalho ocupa na
identidade social dos indivíduos (Dubar, 1991). Salienta‑se o papel
Refira‑se, também, que, de entre os fatores objetivos que carac‑ da precariedade laboral na obstaculização da definição de si a partir
terizam a relação com o mundo do trabalho, podemos encontrar, de uma profissão e, também, a própria desqualificação das atividades
em primeiro lugar, as estratégias utilizadas para se procurar emprego. desenvolvidas, sendo difícil aos entrevistados categorizar, por refe‑
Nestas, salientam‑se as que envolvem a mobilização das redes inter‑ rência a uma atividade profissional, as tarefas desempenhadas. Este
pessoais, os pais, os amigos… Contudo, as estratégias individuais, que tipo de dificuldade é particularmente claro nas tarefas agrícolas, mas
passam pela procura nas fábricas das redondezas ou pela resposta a está longe de se limitar a esse universo.
anúncios, não estão ausentes, embora envolvam um menor número de
indivíduos. Uma questão importante: praticamente não existem casos Entre os entrevistados uma coisa é trabalhar, ou seja, exercer uma ativi‑
de envolvimento dos serviços sociais, das autarquias ou dos centros dade, e outra é estar empregado, o que implica uma ligação contratual
de emprego neste perfil. São estratégias constrangidas que limitam, a uma organização.
no espaço e nas redes de sociabilidade, os recursos para se encontrar Entrevistado: A gente aqui, a trabalhar na agricultura, andar atrás
uma atividade laboral, com evidentes consequências na qualidade das de animais e assim… não é vida. Eu sou obrigada porque… porque
atividades efetivamente conseguidas. não tenho mais outros recursos. Eu se tivesse aqui um empregozito,
Tudo isto se traduz na existência de uma trajetória de emprego em um empregozinho qualquer, eu não andava tanto na agricultura como
carrossel para a grande maioria dos entrevistados, como se definiu no ando, não é? Mas tem que ser. (P2.3_Boticas, sexo feminino, 38 anos)
perfil anterior (Diogo, 2010). Esta é marcada pela entrada e saída das Por contraste, em alguns casos é possível verificar uma forte vontade
mais variadas atividades, uma situação de precariedade que se estende de alguns indivíduos em designar‑se como trabalhadores, mesmo que
no tempo, associada à informalidade e a períodos de desemprego. Com isso não esteja associado a uma atividade profissional específica e
regularidade, os indivíduos encontram‑se na situação intermédia entre mesmo que esse trabalho esteja associado à penosidade. Abnegação,
emprego e não trabalho (desemprego, condição de doméstica ou de espírito de sacrífico, estoicismo, conformismo são termos que se
formando ou participante em programa ocupacional). Por muito que
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podem associar aos discursos de alguns entrevistados em relação Entrevistada: É assim, não gostei de nenhuma em concreto, lá está,
à forma como se definem como trabalhadores e como entendem o são experiências que levo para a vida em questão de maturidade,
mundo do trabalho. É disso exemplo o excerto acima. saber o que custava trabalhar para ganhar o nosso próprio dinheiro,
saber lidar com as outras pessoas é porque a pessoa sai do mundo
No que diz respeito à satisfação com o trabalho, os que declaram escolar em que a gente não tem que trabalhar, a gente quer um par
gostar do trabalho que têm (e/ou tiveram) associam‑no com regulari‑ de calças, quer lanchar fora pede dinheiro aos pais, mas temos que
dade aos atributos acima identificados. Se se pode analisar a satisfação começar a trabalhar a arranjar responsabilidade, os meus pais desde
em relação ao trabalho através da dicotomização expressa no par que a gente começou a trabalhar incutiram-nos todos os meses dar
disjunto gosto/desgosto, a análise das entrevistas vem mostrar que uma ajuda, essa ajuda era para a gente saber o que é, todos os meses
estamos em presença de uma relação bem mais complexa. Desde logo, ter que ter a responsabilidade de ter que pagar alguma coisa. Eu
porque se associa o gosto ao sacrifício, como temos vindo a referir, passei por fases em que eu, desde dos meus 16 anos até aos meus 19,
mas também porque este é associado, em alguns casos, a fatores eu fui viver para o XXXX sozinha e estudar. Vim para o XXXX, tive a
que expressam desgosto de uma forma mais vincada do que a ideia viver em casa dos meus pais mais dois anos que seja, saí de casa dos
de sacrifício, assumindo aqui particular relevância a penosidade. meus pais e fui viver para um quarto alugado. […]
Concretizando, alguns entrevistados declaram gostar da sua atividade Entrevistadora: Então o trabalho é uma coisa que fez, esses traba‑
laboral, mas associam imediatamente esse gosto a atributos que habi‑ lhos que foi fazendo não é, foram trabalhos que foi fazendo por
tualmente são classificados como fatores de insatisfação profissional. sobrevivência.
Nos casos em que se verifica inequivocamente satisfação pelo Entrevistada: Sim, não por gosto.
trabalho, o que podemos verificar é que esta está associada a valores Entrevistadora: E não desenvolveu nenhum gosto em particular em
extrínsecos (Cabral, Vala e Freire, 2000; Vala, Cabral e Ramos, 2003), nenhum deles?
relacionados com questões exteriores ao trabalho em si, como o orde‑ Entrevistada: Não, nenhum. (P2.2_Porto, sexo feminino, 26 anos)
nado ou a relação com os outros (colegas, clientes, patrões…). Noutros depoimentos também são identificados outros fatores
Alguns entrevistados, quando questionados acerca da sua relação com justificativos da não satisfação com o trabalho, tais como os fracos
o trabalho que desenvolvem (ou desenvolveram), expressam inequivo‑ rendimentos auferidos, as poucas perspetivas em relação ao futuro e as
camente o seu desgosto, em especial pela penosidade que este envolve, relações conflituais que os contextos de trabalho potenciam.
e apontam como fator de valorização, e motivação para o exercer, Em conclusão, para lá da diversidade de trajetórias laborais dos entre‑
a necessidade de sobrevivência. vistados salienta‑se o facto de todas assumirem a configuração de
trajetórias de emprego em carrocel. Este conceito condensa a ideia
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de uma temporalidade relativamente longa, em que as atividades são Algumas pessoas entrevistadas, com idades próximas dos 30 anos,
exercidas sob uma precariedade laboral, caracterizada pelos baixos juntaram um elemento importante a este raciocínio, coincidente com
salários, penosidade sentida (dimensão subjetiva) e sofrida (dimensão a fase da vida em que se encontravam: a consciência de estarem face
objetiva) e pela informalidade da relação contratual57. Isso traduz‑se a um ciclo vicioso comprometedor da exequibilidade (simultânea) dos
na dificuldade dos indivíduos em se identificarem como trabalha‑ seus desejos de não privação e de autonomização. O caso concreto de
dores e em manifestarem satisfação pelo trabalho, num contexto em uma entrevistada é exemplificativo deste dilema. À decisão de deixar
que o seu enquadramento em instituições de apoio ao emprego é a escola após terminar o 12º ano, de forma a ter o seu próprio rendi‑
praticamente nulo. mento, sucederam‑se várias tentativas de autonomização sempre
goradas por situações de desemprego e pela necessidade de regressar
7.5. Autoperceção do percurso, comparação ao agregado de origem.
da vida presente com a passada
Entrevistada: É complicado, eu estou numa fase em que tenho 26
Poucas foram as pessoas deste perfil que afirmaram a suficiência anos. Eu gostava de, por vezes, por exemplo, ir passear, comprar uma
dos seus rendimentos. Na maioria dos casos, foi transmitida uma roupa, querer ir viver sozinha, comprar um carro que eu não tenho
perceção de que os rendimentos não eram (ou nem sempre eram) – ando com o do meu irmão – pequenas coisas que precisamos para
suficientes, o que gerava situações de maior constrangimento finan‑ nos fazermos à vida. Coisas que eu não consigo ter porque não tenho
ceiro. Deve ser registado, a este nível, como entre pessoas mais novas emprego. E, mesmo assim, eu tendo um emprego, poderei ter dinheiro
parece existir uma perspetiva consideravelmente ampla relativamente para esses pequenos luxos, mas não tenho dinheiro para ter uma inde‑
ao que é a (in)suficiência de rendimentos e, concomitante, privação. pendência. (P2.2_Porto, sexo feminino, 26 anos)
Em muitos casos, estes respondentes mais jovens estabeleceram uma Nos casos de respondentes mais velhos residentes em agregados com
clara distinção entre níveis de privação, parecendo também estar clara, crianças dependentes, que afirmaram a insuficiência dos rendimentos,
nas suas mentes, a distinção entre pobreza e miséria. Se, para pessoas o bem‑estar dessas crianças apareceu como preocupação claramente
mais velhas (no perfil anterior), o dispor de um teto e de comida na mesa vincada parecendo também, de alguma forma, servir como justificação
parece, por vezes, suficiente para hesitar no assumir de uma situação de (adicional) à sua consideração de que os rendimentos de que dispu‑
privação, os respondentes mais jovens estenderam a possibilidade de nham eram insuficientes.
privação a outros aspetos considerados como essenciais em sociedades
contemporâneas, como o acesso à internet, reiterando que era, por vezes, Em alguns casos, registou‑se uma lógica invertida e a tónica foi
necessário privarem‑se do acesso a alguns bens de consumo essenciais, colocada na adequação das vivências e, consequentemente, das neces‑
qualificados como «luxos», tais como a compra de roupa e calçado. sidades aos rendimentos disponíveis e não destes àquelas. São
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casos em que o próprio discurso das pessoas entrevistadas asso‑ oposição aos que estão socialmente distantes) e no «aqui» (em
ciou, de forma próxima, duas dimensões inconciliáveis na prática: a oposição a sítios distantes). (Sheehy‑Skeffington e Rea, 2017, p. 1)
suficiência dos rendimentos, ainda que associada à necessidade de
adaptação, e a existência de situações de privação. Ficam também evidentes algumas das estratégias utilizadas pela popu‑
lação pobre para fazer o dinheiro e outros recursos esticar tanto
Entrevistada: Eu adapto‑me sempre, nós conseguimos adaptar quanto possível (Daly e Kelly, 2015; Halpern‑Meekin et al., 2015), bem
‑nos conforme as nossas necessidades, mas privamo‑nos de muitas como a «gestão» que Tach e Greene designaram de «roubar a Pedro
coisas que nós poderíamos fazer e podíamos fazer antes. […] Vamos para pagar a Paulo». Tal como as autoras referem, as estratégias de
juntando, lá está, aquela flexibilidade de nós podermos não pagar a gestão da dívida por parte de agregados pobres
renda. OK, não pagamos este mês, pagamos no próximo mês, comple‑
tamos no próximo mês. Sei lá, estamos a uma semana do final do são influenciadas por um desejo de promoção de uma identidade
mês e não temos dinheiro para comer, então vamos tirar a renda, social autossuficiente e financeiramente responsável. As famí‑
que nós ainda não pagámos e é isto que nos facilita no final. Porque lias, quando confrontadas com dificuldades económicas, denotam
se nós tivéssemos pago, aí teríamos que ir pedir ajuda. […] Não é relutância em pedir auxílio porque isso mina a sua identidade. […]
que eu queira, que esteja a adorar viver nesta realidade, mas pronto, As famílias tipicamente optam pelo malabarismo na gestão das suas
[…] Claro que uma pessoa sofre, claro que sofre, mas… mas pronto… dívidas em privado mais do que virarem‑se para redes sociais de
(P2.4_Lisboa#1, sexo feminino, 32 anos) apoio. (Tach e Greene, 2014, p. 1)
Fica aqui, pois, patente a necessidade de, apesar de tudo, e tal como foi Por outro lado, é preciso não esquecer que, em muitos casos, a neces‑
já referido noutros estudos incidindo sobre a população em situação sidade de poupar e de fazer esticar o dinheiro foi uma constante ao
de pobreza, os indivíduos sentirem que detêm algum controlo sobre longo da vida destas pessoas, tornando‑se, de certa forma, quase
a sua situação (Dominy e Kempson, 2006; Sheehy‑Skeffington e Rea, inconsciente (Dominy e Kempson, 2006). Como tal, muito poucas
2017). Como refere um estudo recente sobre a forma como a pobreza pessoas entrevistadas – e destas, apenas jovens – referiram não conse‑
afeta os processos individuais de tomada de decisão, guir identificar um momento de vida particularmente difícil em que
tenham sentido que os seus rendimentos não eram suficientes salien‑
muitas das decisões e comportamentos menos adequados asso‑ tando, sobretudo, o facto de nunca ter faltado nada.
ciados a grupos de baixos rendimentos são caracterizados por um
enfoque preferencial no presente (em oposição ao futuro), ao factual Na maioria dos casos, porém, foram identificados momentos parti‑
(em oposição ao hipotético), nos que estão socialmente perto (em cularmente difíceis, que incluem situações concretas de privação a
diferentes níveis, inclusive ao nível da alimentação. Neste contexto,
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o bem‑estar das crianças do agregado realça‑se, pois, novamente idade, quer relativamente a ascendentes – mãe, avó58 – quer relativa‑
como preocupação claramente vincada. É entendido que os elementos mente a descendentes – netos.
adultos do agregado podem «passar com qualquer coisa» para que nada
falte às crianças. Para além de uma dimensão mais objetiva, é notória, A escolaridade apareceu, em alguns casos, como um dínamo positivo.
a partir de alguns discursos, também a vontade de proteger as crianças Por vezes tratou‑se de um regresso à escolaridade (ao nível do Ensino
da constatação de situações de privação. Básico) numa fase mais tardia da vida. Noutras, e no caso das pessoas
mais jovens, diz respeito ao nível secundário ou a um nível de habili‑
Entrevistada: Foi na altura em que tive que criar os dois [filhos] mais tação superior. O «alargar de horizontes» referido por estas pessoas
velhos. Foi muito complicado. Porque muitas vezes tinha que lhes também o foi por outros respondentes, mais velhos, surgindo também
dar de comer e não sabia como. Pedia dinheiro, às vezes pedia de associado, por exemplo, ao trabalho e a determinadas conquistas
comer às pessoas que são minhas amigas, que me ajudavam. E por que foram possíveis graças ao esforço pessoal. No caso de respon‑
exemplo, ao meio‑dia, eles comiam na escola, não é, porque durante dentes mais jovens, o terem pago, eles próprios, por exemplo a carta
o dia estavam na escola, e à noite fazia uma sopinha e era o que nós de condução ou um computador proporcionou‑lhes, de alguma forma,
comíamos. Era assim que eu me orientava. Eles comiam melhor na uma sensação de vitória.
escola ao meio‑dia e à noite comiam uma sopinha, comiam sopinha
e pouco mais. […] Muitas vezes eu não comia. (P2.5_VPAguiar, sexo Quanto aos aspetos negativos, eles surgiram associados, em muitos
feminino, 49 anos) casos, a situações de doença, seja das próprias pessoas entrevistadas
seja de familiares, com destaque para depressões, situações de cancro
No entanto, poderá inferir‑se, a partir do discurso de respondentes e também de alzheimer. Muito prevalentes foram também situações de
jovens sobre a sua infância, que a pobreza e a privação não terão, morte de familiares.
provavelmente, deixado de ser notadas pelas crianças. Isto apesar do
esforço, assinalável, realçado por várias pessoas entrevistadas. As questões de saúde merecem uma atenção especial no que ao
trabalho respeita. Isto porque problemas graves de saúde, da própria
Compreensivelmente, a avaliação subjetiva do percurso de vida feito pessoa ou de um familiar podem estar associados à pobreza, quer pelas
pela maioria das pessoas entrevistadas não é a mais positiva. Ainda despesas acrescidas que significam para o agregado familiar, quer pelo
assim, quando instadas a identificar momentos mais positivos, uma impacto no trabalho. Este impacto está associado à incapacidade do
parte significativa identificou situações relacionadas com o contexto doente para trabalhar e por isso não contribuir para o orçamento fami‑
familiar. Quando tal acontece, as pessoas referidas compõem um leque liar, mas também à necessidade de existir um cuidador que fique a
amplo que inclui filhos mas que contempla, inclusivamente em muito tomar conta da pessoa doente (reduzindo o tempo disponível para o
maior número de casos, outras relações em muito dependentes da trabalho, ou mesmo impedindo‑o).
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Os problemas crónicos e graves de saúde podem, aliás, ser identificados instabilidade familiar. Algumas pessoas referiram episódios associados
como um fator espoletador da pobreza, ou como algo que resulta da ao desemprego e a situações difíceis decorrentes de salários incons‑
própria situação de pobreza. Em relação a este último aspeto, veja‑se a tantes ou em atraso. Associados a estes casos, mas não só, surgiram
questão das penosidades associadas a algumas das atividades desenvol‑ também contextos em que o emprego existia e/ou o seu rendimento
vidas. Uma atividade penosa pode, na diacronia, criar um problema de era regular, mas em que a privação era muito evidente. Por vezes
saúde grave e incapacitante. Quase metade das pessoas entrevistadas surgiram referências a bens materiais, mas foi a dimensão da alimen‑
não fez menção a problemas de saúde. Isto não significa que não tenham tação que surgiu, novamente, de forma mais preponderante.
existido, dado que a questão da saúde não era alvo de uma secção
específica no guião de entrevista, resultando sobretudo da introdução Para algumas das pessoas entrevistadas pareceu tornar‑se crucial
espontânea dos/as respondentes no seu discurso59. realçar os seus esforços na proteção de outras pessoas, nomeadamente
filhos, das situações mais difíceis experienciadas, mesmo que tal tenha
Para além da questão da doença, uma outra regularidade na vida dos implicado estratégias de privação para si, alimentar e outras.
indivíduos é o contacto com a morte. A morte está menos ligada às ques‑
tões do trabalho do que a doença, mas não deixa de ter um impacto É curioso verificar como, para algumas pessoas, momentos mais positivos
importante. Apesar de a questão não ser colocada de forma expressa, e mais difíceis surgiram, de alguma forma, associados. Exemplo disso
poucas foram as pessoas que não a referiram ao longo da entrevista. é o caso de um entrevistado para o qual a obtenção de uma habitação
O principal efeito que se pode observar dos relatos sobre as mortes deu lugar a um período muito difícil em que trabalhava na recuperação
tem a ver com o impacto emocional na vida dos indivíduos. Na maior da mesma após um dia de trabalho. Ou o caso de uma entrevistada que
parte dos casos eram pessoas com quem os entrevistados tinham laços referia como situação positiva o facto de, na sequência da perda do
emocionais (mãe, pai, irmãos, tio, avós) mais ou menos próximos, é isso emprego pelo marido, ele ter recebido um valor relativo à compensação e
que os faz falarem deles nas entrevistas, mas os efeitos não são apenas a direitos adquiridos que lhes permitiu maior folga financeira.
emocionais. Com frequência, essas mortes significam menos recursos Apesar de tudo, poucos foram os casos de pessoas que consideraram
em casa ou menor apoio numa qualquer atividade. Se, por si só, não que a sua vida tinha piorado, da mesma forma que poucas referiram
explicam a situação de pobreza, ajudam a explicar a sua reprodução percursos «de altos e baixos». De facto, a maioria das pessoas entre‑
ao longo da vida dos indivíduos. O tipo de mortes em causa também vistadas considerou que a sua vida tinha vindo a melhorar, alicerçando,
contrasta com os do perfil anterior, em que o falecimento precoce ou porém, tal convicção sobretudo em aspetos intangíveis. Ganha realce
muito precoce de crianças e de jovens adultos era mais presente. em termos de discurso uma componente de «aprendizagem» que,
Entre os aspetos mais negativos da vida são, ainda, referidas situa‑ muitas vezes, mais não é do que uma habituação, uma acomodação ao
ções de violência física e/ou psicológica num quadro mais amplo de modo de viver e estar em situação de pobreza.
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7.6. Sistemas de proteção social e redes o que corresponde a 348,60€ (valores de 2019). São considerados para
de solidariedade informal apuramento do rendimento familiar a quase totalidade dos rendi‑
mentos passíveis de serem auferidos pelo agregado familiar, incluindo
No que respeita à condição perante o trabalho, na sua maioria, os entre‑
outras prestações sociais, com exceção das prestações por encargos
vistados integrados neste perfil partilham uma condição social que se
familiares por deficiência ou dependência. Esta condição de recursos
caracteriza, como referimos anteriormente, pela ocupação instável de
tem como consequência que o acesso ao subsídio social de emprego
zonas de interseção entre emprego, desemprego e inatividade, cujas
seja apenas possível para agregados familiares com uma condição de
fronteiras, como assinala Demazière (2014, p. 22), são difíceis de esta‑
recursos claramente abaixo do limiar de pobreza (cf. livro eletrónico
belecer. Tratando‑se de indivíduos em idade ativa, a proteção social é
sobre os Precários) questionando a adequação desta, como de outras
assegurada através de três redes de proteção com níveis diferentes de
prestações sociais, na prevenção e combate à pobreza revelando que
abrangência e carácter inclusivo. Uma primeira de proteção de natu‑
reza ocupacional baseada na carreira contributiva, uma segunda rede o sistema continua muito longe de se reconfigurar de modo a acom‑
de proteção de natureza universal baseada no princípio de cidadania e panhar as transformações rápidas do mercado de trabalho português
sujeita a condição de recursos, complementadas por uma rede última, – quer do ponto de vista do aumento do stock e do fluxo de desem‑
não conferente de direito, de assistência social clássica. pregados, quer considerando a crescente precariedade e predomínio
de relações contratuais atípicas. (Silva e Pereira, 2012, p. 142)
A análise da trajetória laboral e situação atual perante o trabalho dos
entrevistados deste perfil e dos seus familiares permite apurar que Na ausência ou limitação da proteção social face ao risco de
só uma pequena parte beneficiou de proteção social em períodos de desemprego através dos mecanismos próprios do regime geral
desemprego não existindo, à data das entrevistas, qualquer indivíduo a de segurança social (modalidade de seguro social) existe para os
beneficiar do subsídio de desemprego. entrevistados a possibilidade de recurso ao Rendimento Social de
Inserção (RSI, proteção social universal) enquanto última rede de
Note‑se que o subsídio social de desemprego foi criado para ampliar
segurança. Verifica‑se, no entanto, para o conjunto dos entrevis‑
a cobertura dos trabalhadores com trajetórias menos estáveis, e que
tados, um usufruto limitado deste direito social o que será explicável
podem experimentar dificuldade em retornar rapidamente ao mercado
quer pelo facto de esta rede última de proteção social de cidadania
de trabalho, na modalidade de subsídio subsequente. Este subsídio tem
se revelar sobretudo eficaz na redução da intensidade da pobreza
como condições de acesso, para além da permanência na situação de
(Rodrigues et al., 2016, p. 134), quer pelas alterações profundas intro‑
desemprego, o cumprimento da condição de recursos em que os rendi‑
duzidas em 2010 e 2012 nas regras de elegibilidade que limitaram
mentos mensais por pessoa do agregado familiar do requerente não
de forma muito acentuada o acesso dos indivíduos em situação de
podem ser superiores a 80 % do Indexante dos Apoios Sociais (IAS),
pobreza a esta prestação social de garantia mínima de rendimentos e a
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sua eficácia na redução da intensidade da pobreza (cf. livro eletrónico pelos serviços de segurança social ou outros serviços públicos,
sobre os Precários). da situação de necessidade e condição de recursos, sujeitos a decisão
discricionária dos serviços da segurança social e não juridicamente
Em 2016, foi reposta a escala de equivalência da OCDE, que havia reclamável. Entre os indivíduos ativos dependentes que se integram
sido adotada com a alteração de 2010, registando‑se por esta via uma neste perfil de pobreza os apoios assistenciais recebidos ocorrem num
melhoria do limiar de referência. No entanto, a relação com a linha de número limitado de situações.
pobreza não registou nenhuma alteração, uma vez que não teve lugar
a atualização do IAS, que se manteve congelado entre 2009 e 2017. Quanto ao trabalho informal, como assinalámos, encontra‑se num
Deste modo, apesar da reintrodução de ponderadores mais favoráveis, conjunto de entrevistadas, trabalhos informais em serviços pessoais
a possibilidade de o Rendimento Social de Inserção funcionar como e domésticos e trabalhos sazonais na agricultura. Estes últimos,
uma rede de proteção última para os indivíduos pobres e/ou seus fami‑ em alguns casos, são partilhados com o trabalho doméstico e com
liares é limitada, verificando‑se uma depreciação do valor do RSI face à a situação de cuidadora de ascendentes necessitados de cuidados.
linha de pobreza, devido ao aumento do rendimento mediano. A aprovação, em setembro de 2019, do Estatuto do Cuidador
Informal (Lei n.º 100/2019), com a alteração do Código dos Regimes
As limitações assinaladas não obstam, no entanto, que em alguns casos Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social abre novas
e períodos o RSI possa mitigar situações de pobreza extrema que perspetivas ao reconhecimento desta atividade socialmente relevante e
afetam a vida pessoal e familiar pois, como se assinalou, esta prestação ao estatuto destas cuidadoras.
social foi desenhada como medida de
A análise das entrevistas confirma, à semelhança do observado para
combate à pobreza através de mecanismos que assegurem às pessoas outros perfis, mas de uma forma muito mais vincada, a importância
e seus agregados familiares recursos que contribuam para a satisfação da solidariedade da rede familiar na mitigação da pobreza que afeta
das suas necessidades mínimas e para o favorecimento de uma progres‑ os indivíduos e as suas famílias nucleares, mas evidencia, igualmente,
siva inserção social, laboral e comunitária, respeitando os princípios a ausência da solidariedade familiar (em alguns casos), não só pela sua
da igualdade, solidariedade, equidade e justiça social. (Lei n.º 45/2005) eventual falta de condições para prestar o auxílio, mas pelo distancia‑
Face à não proteção social pela rede ocupacional e pela rede universal mento e desaprovação face às opções de vida tomadas pelos filhos,
de garantia mínima de rendimento, resta aos entrevistados e/ou outros como é expresso nas narrativas de algumas das entrevistadas.
membros da sua família, no que respeita às políticas públicas, o recurso Entrevistadora: Neste percurso, quais foram os momentos mais
a apoio assistenciais, Estes traduzem‑se em apoios pontuais, monetá‑ difíceis?
rios ou em espécie, incertos e temporários, dependentes da avaliação,
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Entrevistada: Foi na altura em que tive que criar os dois mais velhos. serviços sociais municipais e de instituições privadas de solidariedade
Foi muito complicado. Porque muitas vezes tinha que lhes dar de social, e ainda os serviços de emprego e formação profissional. O apoio
comer e não sabia como. […] material e a qualidade do acompanhamento e suporte prestado são os
Entrevistadora: Sente que em alguns desses momentos que viveu, elementos com maior influência no juízo formulado pelos entrevis‑
esses momentos difíceis, teve alguma volta, em que a vida mudou tados quanto ao desempenho dos serviços sociais. Maioritariamente
completamente? são expressas apreciações críticas, mas registam‑se igualmente teste‑
Entrevistada: Não, não existiu volta na minha vida. A minha vida munhos positivos, verificando‑se que em alguns casos, se registam
praticamente é quase igual. Tenho que lutar, não posso cruzar os avaliações distintas em função dos serviços envolvidos.
braços, para ganhar o dia a dia, porque com 250 é complicado viver,
mas nunca fui mulher de abaixar os braços. É isso que me dá a adrena‑ Assim, o depoimento seguinte revela diferentes facetas duma relação
lina, a força para eu viver e dizer assim: eu vou, levanto‑me e eu caio, complexa, tensional, que se estabelece entre indivíduos em situação
mas torno a levantar. Eu caio, mas torno a levantar e assim fiz toda de pobreza e diferentes tipos de serviços sociais:
a vida. Porque eu nunca tive a ajuda dos pais, a minha mãe às vezes Entrevistadora: E os serviços sociais, de que falou quando viveu um
me via, e meu pai, que passava extrema necessidade e com fome e período de desemprego…
não queriam saber. [chora e falha a voz] (P2.5_Vila Pouca de Aguiar, Entrevistada: É assim, vou dizer sinceramente, esses serviços existem,
49 anos, sexo feminino, atividade informal) mas não é para pessoas como eu.
Quando analisamos as trajetórias dos entrevistados deste perfil veri‑ Entrevistadora: Porquê?
ficamos que a maior parte não apresenta carreiras contributivas para Entrevistada: Porque exigem demasiado, controlam demasiado e eu
o sistema de segurança social, excetuando os indivíduos empregados não gosto de ser controlada. Tem que mostrar os papéis disso, eu
e outras, poucas, situações. Numa dimensão prospetiva, são particu‑ não tenho nada a esconder. Parece que estamos a mendigar algo, se a
larmente críticas determinadas questões respeitantes ao trabalho sem gente não precisasse não precisava de ir pedir. Só que há pessoas que
enquadramento no sistema de segurança social. Esta situação limita não precisam e até vão pedir e é muito mais facilitado. […]
o acesso à proteção social no desemprego, na doença e face a outros Entrevistadora: Então acha que esses serviços controlam mais do que
riscos sociais, implicando também a não construção de uma carreira ajudam?
contributiva e a proteção face à pobreza na velhice, ao limitarem de Entrevistada: Sim, sim. Eu estava a falar com uma assistente social
forma significativa o direito a pensões estatutárias. que se virou para mim e perguntou: «e o seu companheiro não a
ajuda?» E eu disse: «eu não tenho companheiro!» É que partem
Outra dimensão relevante respeita à sua experiência de relação com os do princípio que toda mulher que está sozinha tem que ter um
serviços sociais incluindo quer os serviços de segurança social, quer os companheiro. Fazem um pré‑juízo. Faz‑me lembrar assim: não
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cometi nenhum crime, não matei ninguém. Gosto de trabalhar, sou que coordenou nos primeiros anos da década de 1990, estas entre‑
bem‑disposta, não sou obrigada a ter que mendigar para ter alguma vistas confrontam‑nos com a persistência da privação imposta por
coisa qualquer e ainda ser julgada pelo aquilo que não tenho, tenho uma ordem social que tem, sem dúvida, feito recuar a grande miséria
que me justificar daquilo que não sou. (57 anos, sexo feminino, (menos, todavia, do que se diz com frequência), mas que, dife‑
empregada, Guimarães). renciando‑se, tem também multiplicado os espaços sociais (campos
e subcampos especializados), que têm oferecido as condições favo‑
Uma das dimensões que perpassa, assim, nas narrativas críticas sobre ráveis a um desenvolvimento sem precedentes de todas as formas da
a relação com os serviços sociais, para além da dificuldade e escassez pequena miséria (Bourdieu, 2008 [1993], p. 13).
dos apoios recebidos, é a do julgamento sobre quem pede ajuda,
os pré‑juízos que enformam o olhar dos profissionais, o controlo exer‑ Estas formas de «pequena miséria» são particularmente impactantes
cido sobre a suas vidas, a exposição a que os requerentes têm que se no grupo de indivíduos que constituem este perfil, incluindo aqueles
submeter, com frequência a troco de muito pouco. que ainda estudam, nomeadamente no Ensino Superior. Trata‑se de
estudantes universitários pobres, confrontados a todo o tempo com
7.7. Redes de apoio não institucional e território situações de privação, constrangidos a escolher permanentemente
entre distintos bens e serviços que são fundamentais a uma existência
À semelhança do que ocorre nos outros perfis, neste as narrativas
confortável e até mesmo entre básicos, como a alimentação ou o trans‑
são atravessadas pela privação, ainda que a forma como esta é perce‑
porte. Sendo, cada vez mais, o diploma universitário, em especial nas
bida pelos sujeitos não seja exatamente coincidente. Com trajetos de
áreas das ciências sociais, escolha constrangida de parte significativa
vida já marcados pela precariedade laboral, apesar de alguns terem
dos estudantes pobres, o debate em torno do salário estudantil, inse‑
poucos anos de trabalho, os indivíduos entrevistados, em especial
parável de um outro debate, o da desigualdade social, mais mediático
os mais jovens e escolarizados, têm uma sensível compreensão da
hoje por força nomeadamente dos impactos da crise sanitária que
situação social em que se encontram e do modo como a privação
vivemos, adquire uma renovada atualidade. Pode até ser entendido
material condiciona as suas vidas quotidianas, tornando assim ainda
como surpreendente que as ajudas informais, ao mesmo tempo que
mais relevante o papel das redes de apoio informal. As narrativas dos
colmatam necessidades fundamentais, como o vestuário, concorrem
entrevistados mais novos revelam os efeitos das estruturas sociais
para produzir a diferença social que estigmatiza:
nas desigualdades sociais, mostrando como a pobreza se reproduz
socialmente, não obstante muitos lembrarem, como assinala M. C. Entrevistadora: O bullying maior era pela falta…
Silva (2018, p. 692), «repetidamente estarmos perante uma sociedade Entrevistado: De jeito para jogar futebol e de roupa também.
democrática e de igualdade de oportunidades, solidária e de bem Entrevistadora: E de quem recebia as roupas, lembra‑se?
‑estar». Objeto de atenção de Bourdieu no extraordinário trabalho
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Entrevistado: Familiares, às vezes os colegas de trabalho da minha Quem recebe não deixa de encarar as dádivas com constrangimento,
mãe também, a própria patroa da minha mãe de vez em quando ainda desejando que fosse ao contrário, pois tal significaria que se estaria
envia roupa. noutra condição socioeconómica. Receber é, assim, entendido, como
Entrevistadora: Hoje mantém‑se só com a sua bolsa ou ainda tem a expressão material do fracasso pessoal, da incapacidade de prover
auxílio dos seus pais? a si e aos seus dependentes com os recursos materiais necessários à
Entrevistado: Sim, tenho o auxílio dos meus pais porque só a bolsa sobrevivência e às despesas quotidianas que ela exige. Nestes recursos
não chegava. destaca‑se o acesso a um salário proporcionado por um trabalho,
Entrevistadora: Não é suficiente? mesmo que seja desqualificado – um «empregozinho» – nas palavras
Entrevistado: Não, os meus pais têm que dar por volta, tirando alimen‑ de uma das entrevistadas. Ora, esta importância do trabalho não só se
tação, porque essa parte eu nunca fiz contas, mas também deve ser coloca em contraponto a algumas leituras que sugerem a sua desvalo‑
muito alta, cem euros por vezes precisam dar‑me por fora da bolsa. rização e perda de centralidade na sociedade contemporânea, como
[…] oblitera a relevância das estruturas em relação aos indivíduos e sua
Entrevistadora: E quando precisa de alguma ajuda, quando tem algum agência, apesar de tal ser assumido por estes, pois a «a pobreza não
problema, a quem pede ajuda? é fruto do acaso nem uma mera consequência de falhas e/ou omis‑
Entrevistado: Basicamente para minha família, que são as primeiras que sões de origem individual. Não se trata de algo natural ou irrevogável.
eu peço opinião e também para minha namorada porque estuda Ela é e está inscrita na estrutura social» (Portela, 2008, p. 111). Como
também lá em XXXX. (P2.1_Guimarães, sexo masculino, 20 anos) refere um dos entrevistados:
Se a regra neste perfil é a ajuda ancorada na linha familiar direta (pais e Entrevistada: Eu gosto de ajudar, eu gosto mais de dar do que pedir.
avós), não é raro que se encontrem situações em que o apoio, nomea‑ Eu gosto mais de dar às pessoas do que estar a pedir, dizer assim:
damente sob a forma de dinheiro ou pagamento de bens e serviços, olha, eu não tenho, vou pedir àquela pessoa. Não, eu gosto de ter
é fornecido por outros familiares – por exemplo, irmãos, tios e e de ajudar e que me ajudem a mim também. Mas se tivesse um
primos –, ou indivíduos com quem os beneficiários têm laços pessoais empregozinho, por exemplo a trabalhar, um empregozinho qualquer,
fortes, como é o de padrinho e afilhado, não sendo provável que o eu gostava, mas pronto, não há essas possibilidades, tem que se ir
local de residência produza algum efeito na existência destes vínculos conforme a gente pode, não é? (P2.3. Boticas, sexo feminino, 38 anos)
familiares. Quer isto dizer que o parentesco continua a funcionar como
um mecanismo forte de apoio social, mostrando‑se relativamente Em linha com o observado no Perfil 1, a vulnerabilidade dos entre‑
insensível aos efeitos produzidos pelas dinâmicas de urbanização. vistados do atual perfil também se exprime através da habitação,
sendo patente a existência de condições muito deficientes e com
escasso conforto, seja devido à falta de saneamento básico e quarto
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de banho – ainda presente nas casas de alguns indivíduos que habitam Entrevistada: São bastantes, e depois os pais não têm a consciência
nas aldeias –, seja devido aos problemas de isolamento térmico, agra‑ que os filhos é que são malcriados.
vados pela pobreza também energética dos entrevistados, humidades, Entrevistadora: E quem está mal é que são os outros?
falta de ascensores no caso de quem reside em prédios, seja simples‑ Entrevistada: É.
mente espaço insuficiente no interior da habitação, considerando a Entrevistadora: E isso cria instabilidade no sítio onde vivem? Não é
relação entre esta e o número de pessoas nela residentes. Como acon‑ um lugar seguro?
tece com o Perfil 1, são constrangimentos que nenhum tipo de apoio Entrevistada: Não, no sentido em que a gente não pode andar à
informal pode minimizar. Também com o território, muitas das avalia‑ vontade e viver sem chatice. (P2.2_Porto, sexo feminino, 26 anos)
ções dos entrevistados remetem as responsabilidades pelas deficiências
que encontram para a esfera autárquica e mesmo nacional, sendo Estas situações de conflitualidade e de insegurança contrastam com
expressão de políticas públicas deficientes e da incapacidade dos a que se vive em cidades de média dimensão ou em concelhos mais
diversos níveis do Estado em prover bens públicos tão simples, mas rurais. Aqui os problemas são outros, nomeadamente os provocados
cruciais, como segurança, transportes coletivos ou saneamento básico. pela gentrificação associada ao turismo ou a falta de trabalho. Já em
Adicionalmente, no discurso de alguns dos entrevistados, sobretudo relação à habitação, os problemas relevados pelos entrevistados do
residentes em grandes cidades, como no Porto e em Lisboa, sobressai a Perfil 1 estão, em boa medida, presentes nas casas dos entrevistados
existência de conflitos interétnicos, relevando também aqui que o país neste perfil. Como refere uma das entrevistadas:
é atravessado por disputas que envolvem, nomeadamente, minorias Entrevistadora:. E a nível da casa em si? Isolamento, privacidade…
étnicas como a cigana e a de origem africana: Entrevistada: Sim, sim. Nós temos… isolamento é assim… nós não
Entrevistada: Os negativos… lá está… correr o risco de nos roubar o temos isolamento térmico, não é? É uma casa que se está frio cá fora
carro, sermos assaltados… também está frio dentro de casa, se tá calor cá fora, também tá calor…
Entrevistadora: Ter uma confusão com o vizinho, como aconteceu há Claro que não é assim tão igual, não é? Mas em termos de aqueci‑
dias com a sua mãe… mento, no inverno temos o fogão a lenha ou a lareira e de verão, pronto
Entrevistada: Ou porque o cão fez isto, ou porque vai o outro, passa [risos], não temos nada. (P2.1_Castelo de Paiva, sexo feminino, 20 anos)
com a bicicleta e risca o carro. Procedendo a uma síntese e sublinhando as diferenças entre as grandes
Entrevistadora: Há muita intolerância? cidades face ao interior e aos Açores, nestes últimos territórios as
Entrevistada: Sim, muita, e já não é tanto com os da nossa raça, mas principais queixas estão relacionadas com a falta de serviços públicos,
sim com a raça cigana. nomeadamente na área da saúde, saneamento básico, oferta cultural e
Entrevistadora: São conflituosos? de animação, transportes coletivos, despovoamento, solidão e limpeza
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dos espaços públicos. Já para os entrevistados que vivem nas cidades 7.8. Perceção de si como pobre e do combate à pobreza
de Lisboa e Porto emergem outras preocupações, nomeadamente as
Cerca de metade das pessoas entrevistadas afirmou não viver em
relacionadas com a escassez de jardins e outros espaços públicos de
situação de pobreza, alicerçando tal convicção sobretudo na comparação
fruição da paisagem. Quanto às condições de habitação, se é certo que
que estabelecem com situações piores do que era naquele momento
existem preocupações comuns aos entrevistados – infiltração de água
a sua, sejam elas de outras pessoas ou do seu próprio passado. No
e humidade e deficiências no isolamento térmico –, já o problema do
entanto, também pessoas entrevistadas que assumiram estar numa
aquecimento é mais sentido no interior, sobretudo norte, em contra‑
situação de pobreza relativizaram, ainda assim, a sua situação face a
ponto à falta de ascensores em prédios com muitos pisos. Nestes
outras que consideram piores. Ponto comum nesta perceção parece ser
aspetos, este perfil não difere do anterior.
a confusão que é estabelecida relativamente a uma situação de miséria
Relativamente ao território, as dificuldades são múltiplas. Ao mesmo (Bellaing, 2000; AA.VV., 2010), sendo referidas, nomeadamente, as situa‑
tempo que se mantêm algumas das apreciações negativas enunciadas ções de quem passa fome e/ou se encontra em situação de sem‑abrigo.
pelos entrevistados do Perfil 1, outras se juntam, em especial as rela‑ Tratando‑se de contextos em que a carência alimentar não representa
cionadas com o lugar, sobretudo quando este está particularmente uma realidade abstrata, mas antes uma característica experienciada no
tocado pelo turismo e pelos processos relacionados com a gentrifi‑ passado e, por vezes, também no presente, a disponibilidade de comida é
cação. Como mostram alguns dos excertos fixados, a pobreza não referida, de forma evidente, como importante.
deixa de se confrontar e exprimir através da «sinergia de pragas», como
Entrevistado: Atualmente vivemos numa situação normal, porque
bem caracterizaram Parker e Camargo (2000) na sua análise da ligação
para mim, lá está, normal é dois salários mínimos. Porque pobreza
da privação material com a infeção por VIH/sida. As narrativas dos
para mim, depois do que eu vivenciei e vi em outros locais, hoje eu
nossos entrevistados tornam evidente como determinadas dinâmicas
não considero que seja pobre. Porque lá está, neste momento temos
económicas e sociais com repercussões positivas, pelo menos no cres‑
comida na mesa e eu consigo estudar, óbvio que com ajudas, mas
cimento económico, impactam de forma violenta sobre os mais pobres,
consigo estudar. Os meus irmãos conseguem todos andar na escola
incluindo no domínio habitacional, colocando assim em causa o
e para mim pobreza é não ter acesso a escola, não ter acesso sequer
cumprimento de um direito social. A situação só não é mais grave pois,
muitas vezes à saúde, isso para mim é que é realmente pobreza. Óbvio
como vimos, alguns beneficiam do apoio da autarquia na provisão de
que não tenho uma vida nem de perto de folgada, mas consigo viver,
habitação. Sem este apoio o destino seria o alojamento em habitações
lá está. (P2.1_Guimarães, sexo masculino, 20 anos)
já sobrelotadas ou, mais grave ainda, a rua na condição de sem‑abrigo.
Dos poucos casos que assumem uma condição de pobreza sem relati‑
vizar a sua situação, realça‑se a menção que algumas pessoas, sobretudo
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de contextos mais rurais, fazem às solidariedades informais, que ajudam De uma maneira geral, quem considerou estar em situação de pobreza
a minorar situações de privação. Adicionalmente, nestes contextos, considerou, igualmente, que essa foi uma situação que persistiu ao longo
a possibilidade de desenvolver uma agricultura de subsistência continua da vida, ainda que podendo recobrir‑se de características diferenciadas.
a revelar‑se crucial para o mitigar de situações de privação alimentar. Para outras pessoas, porém, a situação de pobreza é recente, sendo
sobretudo associada à diminuição ou perda de rendimento decorrente
Salienta‑se, pois, aquela que é uma distinção clássica entre uma do desemprego. Noutros casos ainda, é estabelecido um paralelismo com
pobreza urbana e uma pobreza rural e que argumenta no sentido de tempos passados cuja dificuldade relativiza o tempo presente, tornando
que, tal como referem alguns autores, «a pobreza rural continua a mais difícil a sua caracterização enquanto pobreza.
contar com formas de solidariedade informais, que atenuam a dureza
das condições de vida» (Perista e Baptista, 2012)60. Na quase totalidade dos casos, a situação de pobreza é vivida com
resignação, o que é consistente com o que nos apresenta a literatura
Talvez também por isso, a maioria dos/as respondentes afirmou nunca científica, quer a nível nacional, quer internacional (por exemplo, AI/
ter sentido qualquer situação de discriminação pelo facto de ser pobre. REAPN/SOCIUS/ISEG–UTL, s.d.; Lötter, 2011). Aliás, as reflexões por
No entanto, várias pessoas entrevistadas referiram no seu discurso vezes feitas sobre a própria situação são bem exemplificativas da argu‑
a influência da pobreza na consolidação de uma ideia de ausência de mentação de Lötter, quando refere que
liberdade completa. A necessidade de contar o dinheiro e olhar muito
aos gastos leva a que não possa ser vivida uma «vida dita livre», salien‑ atitudes de fatalismo e resignação podem levar as pessoas pobres a
tando estes indivíduos que, apesar de formalmente serem livres de aceitar a sua situação como inevitável e resistir à mobilização para
fazer o que quiserem, isso acaba por não ser inteiramente verdade. protestar e para mudar as suas condições de vida, tornando‑se cidadãs
sem poder. (Lötter, 2011, p. 116)
Fica, assim, refletida de forma evidente a associação da pobreza, feita
por Sen, à noção de (falta de) liberdade. O conceito de liberdade é Entrevistada: Olha, eu lá lido… Que remédio! (P2.3_VPAguiar#2, sexo
aprofundado e, na prática, só tem sentido quando a liberdade existe feminino, 43 anos)
associada às condições efetivas do seu exercício (Sen, 1999; Bruto da
Costa et al., 2008). Na grande maioria dos casos, os respondentes afirmaram nunca ter
sentido qualquer situação de discriminação, o que é largamente consis‑
Note‑se, porém, que esta é uma característica mais prevalente entre tente com alguma da investigação que tem vindo a ser conduzida em
respondentes jovens, o que contrasta com a perspetiva de respon‑ Portugal ao longo dos anos (Pereira et al., 2011).
dentes mais velhos, entre os quais parece prevalecer uma componente
de acomodação já referida, aliás, noutros pontos deste texto. Quando instadas a identificar o que mudariam na sua vida,
se pudessem, algumas pessoas referiram mudanças ao nível da
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habitação; outras ao nível do local de residência, fosse para outro Inerente à resposta desta entrevistada está a existente segmentação
local no país ou para o estrangeiro; outras ainda mudanças ao nível do do mercado de trabalho. Um relatório recente sobre a problemática da
emprego ou de regresso à escola. pobreza entre quem trabalha em Portugal enfatiza que
A diversidade de respostas dadas pelas pessoas entrevistadas parece claro que os fatores‑chave por detrás da prevalência da
mantém‑se, quando instadas a partilhar que medidas tomariam para pobreza entre quem trabalha, em Portugal, são os baixos salários e o
combater a pobreza em Portugal caso desempenhassem o cargo de alto grau de segmentação do mercado de trabalho, em combinação
primeiro‑ministro. com a falta de medidas dirigidas especificamente ao combate a este
fenómeno. (Perista, 2019, p. 10)
A resposta mais prevalente, porém, diz genericamente respeito à opção
de «ajudar os pobres», opção que deverá, porém, ser antes lida como Um outro relatório, do Gabinete de Estratégia e Planeamento do
«ajudando aqueles em situações mais miseráveis», dado que é sobre‑ Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, deu conta
tudo essa a aceção utilizada pelos respondentes. Na grande maioria da marcada subida do número de trabalhadores a receber a remune‑
destes casos, é feita menção a situações concretas, nomeadamente à ração mínima mensal garantida (RMMG) de 12,8 % em abril de 2014
população sem‑abrigo, à qual muitos respondentes consideraram que para 22,4 % cinco anos depois, refletindo o processo de aumento
deveriam ser providenciadas soluções de alojamento. faseado da RMMG (GEP‑MTSSS, 2019). Adicionalmente, como nota
a Comissão Europeia, regista‑se a existência em Portugal de um
Outras opções referidas passam por aumentar os rendimentos das «contexto de persistência do trabalho temporário (20,4 % dos traba‑
pessoas, sendo mencionadas de forma particular as pensões de reforma e lhadores com contratos temporários no 2.º trimestre de 2019, muito
o salário mínimo nacional. E também a necessidade de garantir o acesso acima da média de 12,6 % na UE» (Comissão Europeia, 2020, p. 47).
a trabalho digno, que permita a quem trabalha evitar uma situação de
pobreza, tal como realçado por uma das nossas entrevistadas. Aliás, nos últimos anos, quer os programas nacionais de reforma, quer
os relatórios anuais da Comissão Europeia relativos a Portugal identi‑
Entrevistada: Trabalho, dignidade nos trabalhos. É assim, há trabalho! ficaram o fenómeno como um desafio a ultrapassar (ver, por exemplo,
Há dias vi na televisão que há mil postos de trabalho no turismo! República Portuguesa, 2019; Comissão Europeia, 2019a), sendo de
As pessoas estão lá meio ano, dois meses, um mês, sem receber salientar que, em 2019, uma das recomendações específicas feitas pela
direito. Assim não, não! Assim é gozar com quem não tem dinheiro! Conselho Europeu instava Portugal a adotar medidas destinadas a reduzir
Essa falta de dignidade para com o trabalhador é o que mata tudo, a segmentação do mercado de trabalho (Comissão Europeia, 2019b).
porque a pessoa vai trabalhar, vai de boa vontade, investiu dinheiro.
(P2.5_Guimarães, sexo feminino, 57 anos)
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Neste contexto, importa ter em consideração a aprovação do Programa e um grupo mais jovem e mais otimista, ou pelo menos mais magnâ‑
de ação para combater a precariedade e promover a negociação cole‑ nimo na forma como investe a sua imaginação na elaboração de planos
tiva em 2018, o que levou, nomeadamente, a alterações ao Código do no sentido da melhoria das condições de vida. Em qualquer dos casos,
Trabalho em outubro de 2019, incluindo desincentivos ao emprego as necessidades básicas para garantir algum bem‑estar – como ter casa,
temporário e a promoção da contratação com duração indeterminada. trabalho ou saúde – são as preocupações mais comuns.
Talvez por isso, em 2020 a recomendação específica mais similar Uma parte importante das narrativas denota uma marca de resig‑
emitida pelo Conselho Europeu não remete para a segmentação, incen‑ nação, desânimo e, sobretudo, uma desesperança relativamente à
tivando Portugal a apoiar o emprego e a atribuir prioridade às medidas possibilidade de um futuro melhor. Este tipo de relatos refere‑se
que visem preservar os postos de trabalho (Comissão Europeia, 2020). sobretudo, como referimos, à coorte de entrevistados com mais de 40
anos e aponta para um processo de acomodação ou adaptação a uma
Tratando‑se de entrevistas a pessoas em situação (estatisticamente condição de privação, traduzida pelo esforço despendido na gestão
objetiva) de pobreza mas, mais do que isso, com percursos e senti‑ diária e na dificuldade de encontrar um emprego de qualidade61.
mentos como os que têm vindo a ser explanados neste texto, não Nestas biografias está também presente a ideia da reprodução da
deixa de ser surpreendente que a quase totalidade dos respondentes se pobreza, como foi impressivamente expresso por uma entrevistada do
tenha considerado uma pessoa feliz. Norte interior rural, para quem, à falta de perspetivas de emprego de
Os motivos, quando apresentados, não são extensos, ganhando realce qualidade, se somaram problemas de saúde do marido.
o enquadramento familiar favorável. No entanto, num conjunto não Entrevistadora: Em geral, sente‑se uma pessoa feliz?
negligenciável de casos, é possível aperceber que a felicidade parece Entrevistada: Eu sinto, às vezes. [qual a razão?] Sei lá, sinto mas sem
ser «conseguida», em muitos casos, em consequência da resignação razão. Lá está, não sei se me sinto feliz nesse momento, uma pessoa
com a situação. Ainda assim, como de seguida veremos, verificam‑se se sente um bocadinho abatida, mas… temos que suportar, [incom‑
diferenças geracionais na forma de encarar o futuro. preensível] viver a vida conforme se pode.
Entrevistadora: Acha que sua vida vai ser melhor no futuro?
7.9. Perspetivas face ao futuro Entrevistada: Espero bem que sim.
A análise das entrevistas deste perfil sugere a existência de diferenças Entrevistadora: Porque razão acha que vai melhorar?
geracionais na forma de encarar o futuro. É possível distinguir um Entrevistada: Eu gostava, creio que sim. Mas agora vamos ver, não sei. […]
primeiro grupo, composto sobretudo pelos inquiridos da coorte mais Entrevistadora: Quais são seus maiores sonhos que gostaria de ver
velha, em que parece predominar a cristalização da privação enquanto realizados?
modo de vida, já mencionada a propósito do perfil dos Reformados;
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Entrevistada: Ui Jesus… é eu ter uma casa, ter saúde, eu e meu considerando o seu contexto sociofamiliar, algumas especificidades em
homem, meus filhos, e ter os filhos bem. termos de trajetos de mobilidade descendente65. Oriunda de uma família
Entrevistadora: Acha que isso é possível? de classe média, expressa um sentimento de perda relativamente a uma
Entrevistada: Não, meu caminho não vai por aí. Não vai por esse infância feliz, de maior conforto e qualidade de vida. Mesmo antes de
caminho… Quem nasce pobre, pobre morre. (P2.3_Vila Pouca de entrar na universidade enfrentou dificuldades decorrentes da materni‑
Aguiar#1, sexo feminino, 46 anos) dade, acentuadas pela precariedade do companheiro. Relata esforços
de adaptação para fazer face às necessidades quotidianas e, embora no
A dimensão de género surge como fator de discriminação pois, após início o seu percurso laboral, entre as suas preocupações de natureza
o nascimento dos filhos fica muito mais dificultado o acesso (ou instrumental está o acesso a uma reforma digna.
regresso) ao mercado de trabalho. É particularmente vincada em
algumas das domésticas, cuja trajetória laboral foi interrompida, ora Entrevistadora: E achas que a tua vida será melhor no futuro?
após a maternidade, ora para cuidar de familiares, ou ainda como Entrevistada: É sempre com essa esperança. Já foi bem melhor…
recurso face a tentativas fracassadas de lograr autonomia financeira ou isto é só uma fase, não é péssima, mas é má… É melhor que desta de
inserção profissional62. certeza… Pior que isto não quero, não desejo. […]
Entrevistadora: E quais são os teus maiores sonhos, que gostarias de
Assinalem‑se três exceções de registo no leque de entrevistas desta ver concretizados?
coorte (com mais de 40 anos), indicando a vontade de investir em Entrevistada: Não sei, não sei. Eu adoraria que no meu final de
ações no sentido da transformação nas suas condições de vulnerabili‑ vida… não ter de trabalhar, isso era uma coisa, uma reforma de…
dade ou, pelo menos, o questionamento da privação como referencial Toda a gente devia ter reforma, uma reforma assim que não fosse de
para a sua vida63. Apesar do subemprego e da precariedade expe‑ pobreza, que é o que mais há agora, essas reformas. A maior parte
rienciada, há uma tentativa de contrariar o registo da interiorização das pessoas que vivem de reforma e vivem em extrema pobreza. Eu
da privação pela ambição de acesso a direitos fundamentais como a gostaria de ter um final de vida, sem ter de ter de ir à procura de
habitação, o descanso e a férias fora da sua residência, ou a bens de coisas para sobreviver.
consumo não essenciais – que remetem, por exemplo, para questões Entrevistadora: Digamos que uma reforma sem trabalho, ou melhor
como jantar fora ou à concretização de projetos de vida, designada‑ uma velhice com uma reforma razoável…
mente a conclusão de um curso de formação64. Entrevistada: Sim, sim, gostaria, se tivesse de trabalhar, trabalhar em
A narrativa da única licenciada entre as 87 pessoas entrevistas no algo que gostasse.
âmbito deste projeto – uma mulher, de 32 anos, residente no litoral Sul Entrevistadora: Achas que vais concretizar esse sonho?
urbano – foi relevante para ajudar a demarcar diferenças geracionais e,
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Entrevistadora: Não sei, não faço a mínima, não sei mesmo, não como vimos anteriormente, o acesso ao mercado de trabalho constitui
tenho o meu fundo de poupanças para isso por enquanto. Tenho de no imediato uma moratória nos projetos de vida ou é assumido como
poupar para a reforma e para o meu filho, não sei, não sei se isso é estratégia para reunir as condições necessárias ao prolongamento dos
realizável. (P2.4_Lisboa#1, sexo feminino, 32 anos) estudos. Em segundo lugar, porque as próprias decisões de natureza
educativa são em muito condicionadas pelas expectativas de inserção
A segunda coorte geracional é composta por pessoas mais jovens, com laboral. Em terceiro lugar, porque na decisão sobre o rumo a tomar é
idades entre os 18 e os 26 anos, a estudar ou em situação de desem‑ também equacionada a rede de suporte familiar, incluindo nas dimen‑
prego e a viver em casa dos pais. Mais qualificadas, muitas delas têm sões mais subjetivas e relacionais. Por fim, é de destacar que, excetuando
empreendido e/ou pretendem empreender esforços no sentido de o caso que se apresenta mais adiante – em que os apoios sociais são
aumentar as suas qualificações, de forma a alargar as oportunidades vistos como instrumentais para a conclusão dos estudos –, a generali‑
de vida, com objetivos de aprendizagem ou de realização pessoal. dade das respostas rejeita a perspetiva de vir a precisar de apoios sociais
A maioria destes jovens já trabalhou, uma ação que foi assumida como no futuro. A autonomia, não depender dos pais nem de apoios sociais,
sendo instrumental para a aquisição de qualificações66. constitui um desejo expresso nestas entrevistas.
Apenas alguns conseguiram, de forma bem‑sucedida, dar continui‑ É referido que as dificuldades são grandes, mesmo para quem tem
dade aos estudos e pretendem concluir pelo menos o primeiro ciclo qualificações ao nível do Ensino Superior, mas ainda são maiores para
do Ensino Superior, mas a generalidade das narrativas parece ter subja‑ quem não as tem. Isto vai ao encontro do sublinhado por Dagdevirin
cente um trade‑off entre a aposta nas qualificações e as possibilidades e Donoghe (2019), ao referirem que este tipo de agência acontece
de saídas profissionais. E, se olharmos com atenção o caminho que apesar de forças estruturais não facilitadoras da obtenção de uma
está a ser trilhado na sua resolução, observamos que o ponto comum condição mais estável. E, mesmo ainda sem trajeto laboral, a estudar e
das respostas, que se inserem neste tipo de agência transformadora investindo nas suas qualificações, algumas das pessoas entrevistadas
(Dagdevirin e Donoghe, 2019), está no facto de refletirem um desejo assinalam uma impressionante consciência de viverem circunstâncias
de autonomia individual, mesmo quando cautelosas relativamente ao pouco favoráveis. Neste sentido, combinam uma avaliação cuidadosa
futuro, e de passarem pelo investimento em ações que visam procurar das contingências da vida com uma confiança na capacidade pessoal
uma situação de menor vulnerabilidade a longo prazo. em lidarem com essas circunstâncias, seja ajustando as suas expecta‑
Deve também sublinhar‑se que, embora a aposta em atividades de tivas em função dessas contingências, seja procurando abrir o leque de
educação e formação seja central, esta não significa uma clara relação possibilidades, equacionando, por exemplo, a possibilidade de emigrar.
entre ambições educativas e ambições laborais ou, ainda, entre a depen‑ Entrevistadora: E quando olha para o seu futuro, acha que vai ser
dência da família e a autonomia pessoal. Em primeiro lugar porque, melhor?
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Entrevistado: [Pausa] muito sinceramente, aqui em Portugal na área no segundo ano e eu estou até à espera. Em princípio devo conse‑
em que eu quero trabalhar não vai ser nada fácil, vou ter a prin‑ guir entrar, espero eu. Estou também ligado à clínica da universidade
cípio que sair de Portugal, até mesmo para o Brasil se for necessário, que serve basicamente como empreendedorismo então eu estou a
porque no Brasil a minha área é muito valorizada e na Inglaterra tentar reforçar‑me em todas as áreas possíveis para no futuro ter um
também, por isso o meu futuro só será melhor se for um bocado fora currículo extenso para conseguir basicamente uma ajuda, porque
de Portugal, isso chateia‑me porque gostava muito de ficar cá. é óbvio que meus pais não conseguem me ajudar, investigação é
Entrevistadora: E acha que vai ser possível viver sem os subsídios? muito cara, mas tentar demonstrar que tenho um currículo bom,
Entrevistado: Eu espero que sim, no futuro claro, agora eu sei que é mostrar que tenho qualidades para Portugal para por exemplo usar
impossível, mas no futuro quando eu arranjar um emprego espero que de algum fundo ou algo desse género para me ajudar a fazer essa
sim, porque espero no futuro construir família e tudo mais. Primeiro investigação, é isso que tenho em mente e espero conseguir fazer.
espero que toda a minha família e meus irmãos e tudo mais estejam (P2.1_Guimarães, sexo feminino, 20 anos)
bem porque vai ser a minha prioridade e só depois é que eu vou cons‑
tituir a minha família, porque eu acho que não devo ser, não é ser É importante salientar, no entanto, que, por implicar esforços
egoísta, mas como é óbvio eu quero muito constituir família também, adicionais para fazer face às adversidades e na medida em que as
mas não posso esquecer das pessoas que estão a me ajudar para circunstâncias parecem contribuir para reforçar ou aprofundar as inse‑
chegar aonde cheguei. guranças existentes do mercado de trabalho, que são estruturais na
Entrevistadora: E qual é o seu maior sonho hoje? sua natureza, há um sério risco de se incorrer num tipo de agência
Entrevistado: O meu maior sonho sem dúvida alguma é trabalhar transformativa regressiva (Dagdevirin e Donoghe, 2019). Como vimos
na investigação e tentar encontrar a cura por exemplo para uma anteriormente, são poucas as oportunidades de emprego estável e de
doença que afeta a nível muscular e que ainda não existe cura. Eu qualidade, mesmo para as coortes dos mais jovens e qualificados.
quero muito estudar isso a nível fisiológico e ver como é que são as
contrações musculares, as trocas entre células se vai ser através de Conclusão do capítulo
suplementação ou não, quero muito ajudar essas pessoas porque é Os resultados relativos ao perfil dos Precários indicam, claramente, que
uma doença que tem bastante impacto e ainda ninguém conseguiu a condição social que estes entrevistados partilham não autoriza a que
encontrar uma forma de solucionar isso. avancemos com interpretações determinísticas sobre modos de ser pobre
Entrevistadora: E acha que é possível realizar esse sonho? e de vivenciar a pobreza, ainda que nos trajetos de vida aqui refletidos
Entrevistado: Acho, espero que seja, por isso que lá está, na facul‑ se perceba que a escassez de recursos económicos, sociais e até cultu‑
dade estou a tentar a mexer muito bem, já vou para o segundo ano rais – pelo menos para os inquiridos que apresentam baixas qualificações
e lá está, nunca aconteceu integrar uma equipa de investigação logo
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– constitua um fator muito limitador das possibilidades de gerir a vida marcadas pela persistência da precariedade laboral ao longo do tempo,
quotidiana e das oportunidades de concretização de projetos de vida. entrecortada com períodos de desemprego, inatividade e formação.
Quase todos, de uma forma ou de outra, exercem ou exerceram uma
Como temos vindo a referir, neste perfil uma parte dos entrevistados é atividade laboral. Em muitos casos, o trabalho é exercido à margem
mais escolarizada e transita mais tarde para o mundo do trabalho, mas das normas e regras que regulam a relação salarial, frequentemente em
entre os mais velhos continua a evidenciar‑se o abandono escolar em condições de grande penosidade e com salários muito baixos, o que
idades precoces motivado, essencialmente, pela necessidade de contri‑ justifica a situação de pobreza em que se encontram.
buição do trabalho dos menores para a sobrevivência da economia
familiar e do grupo doméstico. Mas também as inserções profissionais A precariedade laboral é uma tónica comum às trajetórias profissio‑
em idades mais tardias são realizadas sob o signo destas adversidades, nais retratadas, mesmo as que são construídas com base em percursos
na medida em que alguns assumem terem tido necessidade de começar escolares mais prolongados. A situação aqui relatada pelos jovens mais
a trabalhar depois de concluída a escolaridade obrigatória para qualificados contraria a retórica que associa, de forma linear, qualifica‑
contribuir para o orçamento familiar e custear projetos pessoais de ções escolares e acesso a empregos mais qualificados, mais seguros e
prolongamento da escolaridade. Os discursos dos estudantes universi‑ melhor remunerados. Independentemente das qualificações escolares,
tários, por exemplo, acentuam a enorme privação material em que se a reduzida oferta de empregos, os baixos salários praticados, o trabalho
encontram, constrangidos a escolher permanentemente entre distintos informal e mal remunerado e o baixo nível de rendimento disponível
bens e serviços que são fundamentais a uma existência confortável e dos agregados familiares, constituem fatores que limitam as oportuni‑
até mesmo entre bens básicos, como a alimentação ou o transporte. dades e geram processos cumulativos de desvantagens sociais.
As mudanças societais que nas últimas décadas têm ocorrido no Estas são agravadas pela desproteção social em que a larga maioria
mundo do trabalho, sinalizadas pelo crescimento da precariedade, pela destes entrevistados se encontra, na medida em que os rendimentos
utilização massiva de formas atípicas de contratação e pelo desem‑ do agregado doméstico, ainda que reduzidos e em muitos casos inter‑
prego, estão muito presentes nas narrativas produzidas. Deste ponto mitentes, os excluem, à partida, dos apoios concedidos pelo Estado,
de vista, a condição social da generalidade dos inquiridos pode ser aparecendo como exceção o abono de família auferido por alguns.
caracterizada pela ocupação instável de zonas de interseção entre Esta situação de desproteção social decorre do facto de a maioria dos
emprego, desemprego e inatividade, ou seja, pela indefinição entre o inquiridos não apresentar carreiras contributivas para o sistema de
estatuto de empregado e o de desempregado, o que também justifica segurança social, o que se justifica pela natureza informal da atividade
que uma boa parte dos entrevistados sinta dificuldade em se identificar e pela existência de relações de trabalho precárias sem formalização
enquanto trabalhadores, mesmo quando trabalham. Tal não será alheio contratual e sem contribuições sociais, por parte dos próprios e dos
ao facto de as trajetórias laborais dos entrevistados neste perfil serem empregadores, condição que os impede de acederem a subsídios
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quando se encontram em períodos mais prolongados de desemprego. marcadas pelo trabalho infantil e pela interrupção precoce das trajetó‑
Alguns salientam a importância do apoio que algumas autarquias rias escolares, em virtude do desemprego, mais ou menos prolongado,
locais facultam, quer na provisão de bens, quer no apoio à habitação e dos progenitores e da precariedade com que estes exerceram as
que, nalgumas situações, tem obstado à condição de sem‑abrigo. Esta suas atividades laborais. Juntam‑se a esta equação alguns episódios
desproteção de facto levanta os limites daquela que tem sido defi‑ complexos de ruturas familiares provocadas pela dissolução de laços
nida como a rede universal de garantia mínima de rendimento. A este conjugais entre os progenitores, ou as situações de doença e de morte
propósito é particularmente desconcertante o facto de, apesar das de familiares muito próximos, alguns ainda durante a infância dos
dificuldades enfrentadas, muitos dos entrevistados rejeitarem a possi‑ entrevistados, e que implicaram mudanças profundas nas estruturas
bilidade de virem a precisar de apoios sociais. domésticas.
Perante este contexto, resta o apoio da rede de solidariedade fami‑ Tendo em conta a sua situação atual, a dissolução das famílias de
liar na mitigação da pobreza. Neste perfil, a forma dominante de ajuda procriação, na sequência de processos de divórcio, surge também nos
familiar é a monetária, ou a cedência provisória de habitação em caso discursos das entrevistadas como um fator intensificador da situação
de dificuldade de autonomização residencial após a conjugalidade e de pobreza em que se encontram. A incidência da pobreza nos agre‑
a parentalidade; neste caso, são os progenitores dos inquiridos que a gados monoparentais não é um fenómeno recente nem específico
protagonizam, apesar das dificuldades financeiras que também expe‑ deste perfil, como veremos, mas, no caso destes entrevistados, é apro‑
rienciam. Daí que, quando estes entrevistados refletem sobre o seu fundada pela debilidade dos apoios estatais – sinalizada, por exemplo,
percurso de vida salientem, como aspetos mais positivos, situações pelos parcos valores que assumem os abonos de família – pela debi‑
relacionadas com o contexto familiar, estando as ligações afetivas com lidade das solidariedades familiares, pela precariedade laboral e pelo
os familiares, designadamente os avós, muito associadas às memó‑ desemprego, que impossibilita a comparticipação das despesas dos
rias positivas da infância. Entre os aspetos mais negativos presentes descendentes. Ou seja, as limitações da engenharia da solidariedade
no percurso de vida estão os constrangimentos financeiros, decor‑ familiar e a debilidade dos sistemas de proteção social aprofundam as
rentes da insuficiência de rendimentos, que são uma realidade presente situações de vulnerabilidade e de pobreza deixando uma parte destes
desde a infância; os entrevistados evidenciam situações concretas inquiridos numa situação de completa desproteção social.
de provação que passaram e passam, inclusivamente, pelas dificul‑
dades de provimento de bens alimentares. Em muitas narrativas é Outro fator de aprofundamento das situações de pobreza entre estes
possível depreender a existência de uma reprodução intergeracional entrevistados releva da existência de um modelo de provisão fami‑
da pobreza, salientando‑se que as vulnerabilidades sociais presentes liar protagonizado apenas pelo homem – modelo do «ganha‑pão
nas estruturas familiares produziram, como referimos, infâncias masculino» – dada a predominância de um modelo mais tradicional e
institucionalizado de divisão das tarefas domésticas e dos cuidados
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prestados às crianças. A necessidade de assumirem as responsabili‑ constatação na diferenciação entre pobreza e miséria e conotando esta
dades parentais faz com que algumas mulheres se afastem da atividade com a mendicidade e a condição de sem‑abrigo.
profissional ou manifestem dificuldade em assumir a conciliação das
responsabilidades familiares com as profissionais, após a conclusão Ainda que a forma como perspetivam o futuro aponte também
de um processo formativo. Este facto desnuda um dos grandes obstá‑ para um processo de acomodação ou adaptação a uma condição
culos às políticas e práticas de conciliação trabalho‑família no nosso de privação, numa lógica de reprodução da pobreza (com a relativa
país, presente em todos os perfis, e que remete para a fraca cober‑ exceção dos mais novos), quando refletem sobre as mudanças que
tura da rede de infraestruturas de apoio aos cuidados na infância ou, gostariam de introduzir no seu quotidiano, salientam as alterações
ainda, o seu elevado custo dificilmente suportável por famílias mais das condições de habitabilidade das residências e dos espaços residen‑
desfavorecidas. ciais e mudanças ao nível do emprego, seja no país, seja no estrangeiro.
Aliás, a emigração surge entre estes entrevistados como uma estratégia
Não nos parece surpreendente que, quando instados a pronunciar‑se bem definida para lidar com a precariedade laboral e a situação de
sobre as soluções que propõem para o problema da pobreza em vulnerabilidade em que se encontram, aparecendo claramente referen‑
Portugal, os entrevistados refiram a necessidade de aumentar os rendi‑ ciada em algumas entrevistas em resultado de menções espontâneas
mentos disponíveis – sendo mencionadas, de forma particular, pensões dos entrevistados e sendo motivada pela procura de melhores oportu‑
de reforma e o salário mínimo nacional – e a garantia de acesso a nidades de vida para si e para os familiares.
um trabalho digno. Esta dimensão é fulcral, se nos lembrarmos que
os valores que os entrevistados associam ao trabalho que exercem
remetem para o espírito de sacrífico, o estoicismo e o conformismo,
tendo por base as débeis condições laborais, as baixas expectativas em
relação ao futuro profissional e os baixos rendimentos que auferem.
Quando convidados a refletir sobre o percurso das suas vidas, alguns
entrevistados mantêm a convicção de que a sua vida tem vindo a
melhorar, baseando esta avaliação em aspetos intangíveis que conotam
com uma «aprendizagem» decorrente das circunstâncias em que
vivem, o que, em nosso entender, remete para um processo de acomo‑
dação enquanto estratégia para lidar com as adversidades presentes
nos seus processos de vida. Cerca de metade das pessoas entrevis‑
tadas considera que não vive em situação de pobreza, alicerçando esta
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Capítulo 8
Desempregados
Introdução salários em função do equilíbrio entre a procura e a oferta (Teles,
2017). O consenso em torno do pleno emprego, estabelecido no
O desemprego constitui um tema de referência no estudo de pobreza,
rescaldo da Segunda Guerra Mundial, foi abandonado em favor de
colocando debates importantes sobre os mecanismos que a geram e
um princípio de plena empregabilidade, resultando numa responsabi‑
reproduzem nas sociedades contemporâneas, nomeadamente sobre o
lização do indivíduo, e não do coletivo, pelos resultados da economia
papel da economia, das políticas públicas, assim como das alterações
(Mitchell e Muysken, 2008). No caso português, há que juntar a este
dos valores sociais. Como diferentes autores têm sublinhado, a crise
pano de fundo internacional as especificidades nacionais, designa‑
e a precarização do emprego, o desemprego estrutural e a tendencial
damente a sua posição semiperiférica (Santos, 1985; Santos, 2004),
desregulação da relação salarial têm contribuído para desestruturar a
o facto de o país ter entrado em contraciclo no movimento de insti‑
definição que as sociedades modernas construíram do trabalho, cono‑
tucionalização do pleno emprego do Pós‑Guerra (Fernandes, 2011;
tado com o «emprego assalariado, exercido a tempo integral e com
Fernandes, 2019)67, assim como a perda, com a adesão à União
estabilidade» (Bandt et al., 1995, p. 7). A acentuação de lógicas neolibe‑
Económica e Monetária (UEM), de instrumentos políticos e de desen‑
rais evidenciou alguns dos paradoxos do modelo económico que tem
volvimento que permitissem lidar com crises assimétricas (Reis et al.,
vindo a prevalecer, na sequência da crise petrolífera da década de 70
2013). Dessa forma, em particular a partir da década de 2000, foi‑se
do século xx, marcado por uma crescente integração produtiva e do
tornando visível a incapacidade de gerar emprego, o que se refletiu
processo de trabalho à escala mundial, com a inovação tecnológica e
de forma particularmente marcada na crise de 2008‑2014, quando
os ganhos de produtividade associados à redução do número de postos
o desemprego atingiu um máximo histórico de 17,5 % no primeiro
disponibilizados ou à extinção de empregos, encaradas como condi‑
trimestre de 2013. Em contexto de redução dos níveis de proteção
ções necessárias à própria competitividade económica (Castells, 2005).
social, não é de surpreender que o desemprego se tenha tornado
Além disso, especialmente a partir da década de 90 assistiu‑se a uma um fator de acrescida relevância a equacionar, na sua relação com a
viragem de cariz microeconómico da economia do trabalho na qual pobreza e as desigualdades sociais (Carmo e Cantante, 2015).
os problemas do desemprego, da discriminação ou da desigualdade
Importa lembrar algumas das principais características distintivas
salarial passaram a ser tratados como imperfeições e distorções do
deste perfil, que representa 13 % dos cidadãos em situação de risco
mercado de trabalho, cuja solução passaria pelo ajustamento dos
de pobreza em Portugal: por um lado, uma intensidade laboral muito
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reduzida e, por outro, a ancoragem em agregados cuja principal 2002). Tem‑se vindo justamente a verificar uma reorientação das polí‑
fonte de rendimentos são as «outras transferências sociais». Apesar ticas sociais segundo os princípios da empregabilidade e da ativação,
de estarem em idade ativa, a maior parte das pessoas estava desem‑ em detrimento de políticas de redistribuição de rendimentos, o que
pregada no momento da realização da entrevista e apenas quatro levanta debates importantes sobre a sua eficácia no combate à pobreza
em situação de inaptidão para o trabalho ou invalidez permanente. e às desigualdades sociais, em particular aquelas associadas ao desem‑
Um outro elemento distintivo dos casos aqui enquadrados tem a ver prego. Análises recentes têm sugerido que os mecanismos causais da
com o facto de pertencerem a agregados familiares cuja principal fonte pobreza e da desigualdade de rendimentos poderão ser diferentes e
de rendimento se baseia em alguma forma de transferência social, que, embora as políticas de ativação possam ter eficácia na redução
excetuando aquelas relativas a pensões de velhice ou de sobrevivência, das desigualdades de rendimentos, terão eficácia reduzida na redução
e abrangendo formas de proteção ou assistência social, incluindo da pobreza, pelo facto de não garantirem que quem participa neste
subsídio de desemprego, subsídio social de desemprego, medidas tipo de programas tenha acesso a emprego (Marques et al., 2015).
ativas de emprego (estágios profissionais e programas ocupacionais), Neste sentido importa considerar outros fatores, nomeadamente os
Rendimento Social de Inserção e ainda pensões de invalidez68. relacionados com a quantidade e qualidade dos empregos disponíveis
e as características institucionais do mercado de trabalho69.
A relevância das transferências sociais neste perfil aponta para a neces‑
sidade de refletir sobre o papel das políticas sociais no combate à Saliente‑se também que da maior parte das situações aqui analisadas
pobreza, havendo a considerar, por um lado, as medidas de proteção ressalta o desemprego de (muito) longa duração, por vezes precoce
social no desemprego e, por outro, as de ativação de desempregados. e reincidente e, em muitos casos, remontando à crise de 2008‑2014.
Apesar de não estarem empregados, quase todos os entrevistados
A retórica, muito atual, da «empregabilidade» que, apesar de ser um tiveram amplas experiências de trabalho ao longo da sua vida e viveram
conceito polissémico, e na sua formulação mais simples ser entendido várias experiências de desemprego. Ora o desemprego repetitivo apro‑
como a probabilidade de o desempregado sair da situação de desem‑ funda a situação de privação, na medida em que «cada passagem
prego e inserir‑se profissionalmente (Freyssinet, 2004), também pode pelo desemprego pode constituir‑se num risco de deterioração da
ser compreendido no sentido da empregabilidade‑iniciativa que, como condição profissional» (Caleiras, 2011, p. 79), acentuando igualmente
refere Gazier (2001), acentua a capacidade individual para mobilizar o risco de processos de desqualificação e/ou de desafiliação social
as suas qualificações no mercado de trabalho. Este pressuposto, muito (Gallie e Paugam, 2000; Castel, 1995; Fernandes, 2011; Amaro, 2015).
caro à ideologia neoliberal, deixa subentender a responsabilidade Neste sentido, é importante considerar as relações subjetivas e sociais
individual na obtenção de um emprego e assume, nas suas versões associadas à experiência do desemprego, reconhecendo‑se que o
mais vincadas, a forma de um princípio de workfare em que a assis‑ trabalho é não apenas uma necessidade objetiva, mas um valor central
tência é condicionada à disponibilidade para aceitar trabalho (Gallie,
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nas sociedades produtivistas (Schnapper, 1994), constituindo uma com recordações positivas da família e das comunidades de origem.
matriz orientadora da construção das identidades pessoais e sociais. Em contraponto, para outros, as memórias são particularmente violentas
Considerando que o afastamento do indivíduo do mercado de trabalho e duras, não apenas pela privação material que a maioria sofreu, mas
pode privá‑lo não apenas dos recursos materiais, mas igualmente dos também pela existência de situações de pobreza extrema, de institu‑
recursos «afetivos e psicológicos necessários à manutenção da sua cionalização e maus‑tratos às crianças e alcoolismo de adultos e de um
integridade pessoal e social» (Amaro, 2015, 186), a pobreza é enten‑ dos entrevistados ainda em criança. A realidade do trabalho infantil, que
dida, neste caso, como um processo de «corrosão e desligamento do impacta adiante no percurso de vida das crianças, em particular pelo
laço social» (p. 187) ou de desafiliação, no sentido de Castel (1995). abandono escolar, continua também aqui presente ainda que de modo
menos expressivo, do que no perfil dos Reformados.
As narrativas em que nos baseámos para a elaboração deste capí‑
tulo contam diferentes modos de vivenciar o desemprego, quer pela As estruturas familiares apresentam‑se também de modo diverso, ainda
forma de o significar, quer pelas consequências pessoais da privação que em geral seja possível perceber que foram pouco apoiantes de
de emprego. Embora as pessoas entrevistadas estejam em situação de percursos mais estruturados das crianças.
pobreza, possuem recursos culturais e idades diversas. Neste sentido,
uma melhor compreensão das suas trajetórias e experiências quoti‑ Entrevistada: Eu nasci em XXXX, a minha infância não foi muito boa,
dianas exige equacionar o desemprego enquanto forma de exclusão meus pais eram pobres, vieram de uma família pobre. Minha mãe e o
laboral e social e, simultaneamente, o papel das políticas sociais para meu pai tiveram cinco filhos. Meus dois irmãos mais velhos, um fez
endereçar os problemas a ela associados. Procuramos assim neste capí‑ a quarta classe e foi logo trabalhar, o outro logo a seguir também
tulo explorar a forma como a experiência de desemprego se reflete deixou a escola para ir trabalhar. E nós, olha, eu e uma irmã, fomos
não apenas na vivência social quotidiana, mas também nas definições para um colégio, um colégio interno, em XXXX, onde fomos estudar.
subjetivas pessoais na relação com o trabalho e considerando a traje‑ A infância não foi muito… [pausa].
tória de vida pessoal, equacionando‑se também a possibilidade de o Entrevistadora: Considera que a sua infância foi boa ou foi má?
processo de desligamento do laço social ser anterior à própria expe‑ Entrevistada: Foi má.
riência de desemprego. Entrevistadora: Consegue dizer‑me o que é que lhe deixa essa
lembrança de ter sido uma infância má?
Entrevistada: A infância e depois… Eu tinha onze anos ela tinha seis
8.1. Enquadramento familiar na infância
e fomos para lá. Com o meu pai pouca convivência tive.
De um modo geral, este perfil contempla memórias bastante polari‑ Entrevistadora: Porque foi muito nova?
zadas da infância, entre as muito positivas e as muito traumáticas. Para Entrevistada: Muito nova e minha irmã também. Depois nós esti‑
uma parte dos entrevistados, a infância corresponde a um período feliz, vermos lá, depois meu pai faleceu mesmo naquela altura que
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estivemos lá, quase nem tivemos assim aquele amor de pai mesmo ser o «preço» relativo ao uso dos serviços que uma instituição de
e nem de mãe. O amor que minha mãe está a me dar, é agora. (P3.3_ acolhimento providencia (Colton et al., 1997; Faria et al., 2008, p. 3).
Montalegre, sexo feminino, 43 anos)
Em diversos casos, a infância é vista como algo que poderia ter sido
Muitas memórias são, pois, carregadas de imagens violentas e marcadas melhor, mas, nos seus discursos, contrasta com o que alguns entre‑
pela privação material, que a maioria sofreu, mas também pela exis‑ vistados acreditam, de algum modo, acontecer hoje: as crianças têm
tência de situações de pobreza extrema, de institucionalização e demasiados privilégios. Assumindo uma visão relativamente resignada
maus‑tratos às crianças, e alcoolismo de adultos e de um dos entrevis‑ das dificuldades que tiveram, as narrativas tendem, então, a revelar
tados, ainda em criança, como referido. alguma «pacificação» com situações de maior dificuldade que tenham
vivenciado.
Entrevistada: Hum, são coisas que eu não gosto muito de falar,
porque sou filha de pais separados e tenho um irmão direito e tenho Entrevistadora: E lembrando sobre a sua infância, consegue avaliá‑la
duas irmãs. Uma da parte do pai e outra da parte da mãe. Portanto do como boa ou má?
segundo casamento. E tive uma infância muito má. Tortura psicoló‑ Entrevistado: Poderia ser melhor. Mas, pronto. Foi o que foi.
gica e maus‑tratos físicos e etc. De maneira que eu não gosto muito Entrevistadora: Melhor em qual sentido? O que é que acha que
de falar da minha infância. Posso dizer que nasci ao pé do mar, hum… poderia ser melhor?
numa família que vivia a minha avó na mesma casa, a minha avó, uma Entrevistado: Os tempos de agora são diferentes de antigamente,
tia que estava separada e tinha um filho hum… isto que me lembro. não é? Nós antigamente era… Era mais… Como é que hei‑de explicar o
Quando nasci ela ainda era casada. Hum… o meu pai e o meu irmão termo… Agora… Acho eu que o tempo de agora, as crianças têm mais
e de resto havia os empregados. Não havia mais ninguém. Havia uma privilégios do que antigamente. (P3.4_Guimarães, sexo masculino,
irmã que, entretanto, faleceu. (P3.1, Porto#2, sexo feminino, 34 anos) 42 anos)
Os percursos de institucionalização têm sido considerados problemá‑ Relativamente aos eventos potenciadores de situações de pobreza
ticos na literatura, desde logo pelo estigma social associado, mesmo na infância, os entrevistados apontam distintos fatores. Nos casos
quando a própria pessoa reconhece aspetos positivos nesse processo, identificados de institucionalização das crianças, os entrevistados iden‑
como foi o caso de uma das nossas entrevistadas. tificam a pobreza como o fator principal para essa tomada de decisão.
Estes eventos são variáveis, podendo encontrar‑se situações de desem‑
O estigma representa, na maior parte dos casos, uma dupla exclusão prego dos progenitores, de falecimento de progenitores e/ou de
e vitimização – por um lado porque são vítimas de maus‑tratos e, por saúde que implicaram mudanças nas estruturas familiares das crianças
outro, são vítimas da marginalização social – assim, o estigma parece (e salientámos os três D da pobreza, podendo aqui encontrar dois
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– Desemprego e Doença – e o terceiro – o Divórcio – em menor grau). videiras, consegui arranjar dinheiro, meti‑me num comboio e vim até
Tal como pudemos observar nos restantes perfis, é possível encontrar Lisboa. E depois cá fiquei eu e cá fiquei criado. Tinha uma avó que
diferentes situações e acontecimentos que agravaram as situações de estava ali no XXXX, ainda fui até a casa dela. Depois tinha o meu
vida das famílias. Entre as questões de saúde, de perdas no seio fami‑ irmão na XXXX, andei na casa dele até vir aqui até à XXXX. (P3.5_
liar (mortes), e o agravamento de situações financeiras, muitas famílias Amadora, sexo masculino, 58 anos)
não usufruíram de nenhum apoio social para fazer face às dificuldades
vividas. A solidariedade intrafamiliar é um importante mecanismo para Assim, por exemplo, os níveis de qualificação dos diferentes membros
fazer face às dificuldades económicas e ao cuidado das crianças como dos agregados familiares poderão impactar, por um lado, a capacidade
se havia observado, também, no perfil anterior. de mitigar eventos no mercado de trabalho que induzam transições
para situações de pobreza e, por outro, no aumento ou na diminuição
Como verificado consistentemente nos diferentes perfis, em particular da capacidade de resposta das famílias a choques económicos adversos
nos dois anteriores, a perda de membros do agregado familiar tem (Alves, 2015).
impacto na dinâmica da pobreza, sobretudo nas de entrada na situação
de pobreza, em particular quando a participação de membros do agre‑ Na maioria dos casos, os apoios sociais formais tiveram pouca
gado no mercado de trabalho é diminuta. expressão na melhoria das condições de vida das crianças e suas famí‑
lias. As famílias, que viviam fundamentalmente do trabalho, não
Entrevistadora: Como é que a morte da sua mãe afetou… estava a contavam com apoios sociais formais, mesmo que esses rendimentos
dizer que tinha essa irmã com dois anos na altura, como é que houve não permitissem uma vida desafogada ou sem dificuldades e, pelo
essa organização familiar a seguir. contrário, obrigassem a amplos sacrifícios. No entanto, e comparati‑
Entrevistado: Não me recordo como é que os meus pais fizeram, vamente aos perfis anteriores, em particular ao Perfil 2, dos Precários,
não… como é que ele fez, não sei. Nem sei se foi o meu cunhado é possível identificar uma presença maior de apoios sociais, nomea‑
que estava na Alemanha, que tratou do funeral, não sei como é que damente o RSI, e apoios alimentares ou à habitação, bem como uma
trataram disso… menor dependência das relações de vizinhança para colmatar essas
Entrevistadora: Mas a sua irmã ficou depois com quem e o Sr. XXXX mesmas dificuldades. Nas diferentes ajudas formais auferidas pelas
ficou com quem… famílias neste perfil, encontram‑se também a ação social escolar e
Entrevistado: Fiquei lá com o meu pai e mais a minha irmã mais nova. bolsas de estudo, por exemplo.
Entrevistadora: E foi ele que passou a tratar de vocês?
Entrevistado: Até eu arranjar depois dinheiro para vir para Lisboa, Ao mesmo tempo, em alguns casos, estes eventos podem explicar‑se
depois arranjei dinheiro que anda depois a fazer a 4.ª classe, consegui a partir de situações de violência, alcoolismo e de instabilidades
arranjar numa quinta, ia lá prás cestas, vindima, apanhar vides das diversas no seio familiar, para lá de fatores relacionados diretamente
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com situações de privação, ainda que estes persistam amplamente, na trajetória dos indivíduos. Como argumenta A. Diogo (2013), apesar
também neste perfil. Tal como definem Costa, Santos e Guerra (2017), de uma associação mais ou menos linear entre escolarização de massas
a pobreza de natureza persistente corresponde a trajetórias pessoais e ideais de democratização, a condição social de origem dos alunos
em que os indivíduos são incapazes de romper com os padrões de fraca continua a ser fonte de desigualdades na escola. Por essa razão, a análise
qualificação escolar e profissional, privação económica e/ou desa‑ dos percursos escolares dos entrevistados constitui um fator bastante
gregação familiar, sempre condicionados pela inequívoca dimensão relevante nas narrativas, sendo os mesmos bastante distintos, e reve‑
estrutural da pobreza (Baptista e Perista, 2010). Como vimos, persistem lando um grupo com níveis relativamente baixos de habilitações, mesmo
aqui recordações de infância bastante diversas: as de uma infância entre aqueles que terminaram algum grau já em adultos (nomeadamente
dura, com pobreza extrema e com violência familiar, as de uma infância em processos RVCC70 ). Estes revelam ainda narrativas em que, apesar do
feliz, apesar de dificuldades sentidas, e outras onde a institucionali‑ gosto pela escola, se abandona cedo por diferentes motivos: gravidezes
zação é uma marca definidora do percurso das crianças. Uma narrativa precoces, a procura de independência financeira, muitas vezes associada
concreta é particularmente violenta, relatando histórias de abusos e a modelos de conjugalidade também precoces, a ausência de apoio fami‑
maus‑tratos dentro da instituição, onde a entrevistada se inseriu, que liar ou o alto grau de dificuldade e desmotivação ao longo do percurso.
nunca foram resolvidos, e que tiveram um forte impacto na sua traje‑ Finalmente, há narrativas que evidenciam percursos com várias reten‑
tória de vida. ções, que potenciaram sentimentos de desmotivação face à escola. Foi
possível observar, também, que o regresso a percursos escolares e/ou
Em qualquer dos casos, é possível observar diferentes impactos das formativos não é fácil para muitos, devido à necessidade de conciliar
diferentes experiências aqui mencionadas, por exemplo, na continui‑ trabalho e estudo e trabalho e vida familiar.
dade dos percursos escolares. O percurso escolar da maior parte dos
entrevistados acaba por ficar interrompido precocemente por dife‑ Alguns entrevistados abandonaram a escola por não gostarem de
rentes razões, mas importa destacar a relevância do trabalho infantil a frequentar e por esta não ser, também, obrigatória para o grau e
nos discursos dos entrevistados, em particular por ser fator de preci‑ momento em que o fizeram. Novamente, o papel da escola e da pertença
pitação do abandono escolar e de afastamento das crianças dos seus social das crianças assume um lugar importante na análise, sendo rela‑
modos próprios de cultura. tivamente comum um distanciamento entre as culturas familiares e
as escolares, e a existência de percursos com insucessos repetidos das
8.2. Relação com o sistema educativo crianças, relativamente ao que é exigido pela instituição escolar.
Como temos vindo a observar, a escolarização assume um lugar central Entrevistadora: Porque fugia à escola… E até que ano é que andou na
nos processos de vivência e saída de situações de pobreza, pelo que é escola?
relevante compreender as especificidades e impactos destes processos Entrevistada: Até à 4.ª classe.
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Entrevistadora: E reprovou? indiretamente por outros fatores, como por exemplo um número
Entrevistada: Reprovei um ano, foi na primeira classe. Passamos todos muito elevado de bebés nascer prematuro e o facto de, muito frequen‑
para a 2.ª classe sem sabermos nada e então recuámos outra vez. temente, a mãe ter níveis muito baixos de escolaridade (Apfel e Seitz,
Entrevistadora: Reprovou. E o que é que gostava mais na escola? 1997). Noutros relatos é possível identificar experiências escolares
Entrevistada: Sei lá! O que é que gostava mais? Não gostava de nada! menos positivas como motivo de abandono e o objetivo de indepen‑
Entrevistadora: Não gostava de nada? De brincar gostava? dência financeira (em dois dos casos, essa opção surge também para
Entrevistada: Sim, gostava de brincar. auxiliar na situação precária da família e em quatro outros, para inde‑
[…] pendência financeira). Noutros casos, a escola, além de não ser uma
Entrevistadora: Com que idade é que abandonou a escola? recordação positiva, associa‑se a problemas de saúde enquanto criança,
Entrevistada: Com 11 anos saí da 4.ª classe. (P3.1_Porto#1, sexo femi‑ e ao ingresso precoce no mundo do trabalho. Um caso em particular
nino, 50 anos) revelou também estas dificuldades de adaptação ao mundo escolar
associadas a um atraso na aprendizagem, que motivou a frequência de
A centralidade do lugar da escola como elemento que pode ser miti‑ uma escola específica.
gador e potenciador das desigualdades trazidas da origem social das
crianças é, portanto, um fator que importa aprofundar nestas trajetó‑ Apesar disso, e de os percursos terem sido interrompidos pelas razões
rias de pobreza. Quando questionados sobre os percursos de abandono acima descritas, para os entrevistados deste perfil parece ser maio‑
escolar, os entrevistados identificam diferentes motivos: o ingresso no ritária a ideia de que se tivessem continuado a estudar poderiam ter
mundo de trabalho e obter independência financeira, as dificuldades tido acesso a profissões mais compensadoras, quer do ponto de vista
sentidas no percurso escolar e o facto de terem trabalhado para ajudar monetário, quer da realização pessoal. No estudo realizado por Faria,
as famílias, ainda em criança. Como diferentes autores sugeriram Salgueiro, Trigo e Alberto (2008) com adolescentes institucionalizadas,
(Ridge, 2010), as crianças, particularmente as mais velhas, tendem a estas falaram na importância dada à educação. No entanto, e como
evidenciar a vontade de integrar o mercado de trabalho para poderem observamos numa das nossas narrativas, a interrupção do percurso de
obter alguma independência financeira que lhes permita o acesso a institucionalização poderá ter o efeito inverso, ou seja, contribuir para
bens e atividades que, de outro modo, não conseguiriam. Noutras o abandono dessa escolarização e, desse modo, para uma procura de
narrativas, a gravidez precoce acaba, frequentemente, por precipitar independência mais rápida que não inclui, necessariamente, o prosse‑
a saída da escola, muitas vezes marcada por dificuldades prévias e por guimento dos estudos.
histórias de insucesso escolar. Para Figueiredo (2000), as dificuldades
observadas na maternidade na adolescência decorrem não apenas, Entrevistadora: Porque deixaste a escola?
de modo direto, pelo facto de a mãe ser adolescente, mas também Entrevistada: Porque não tinha como estudar.
Entrevistadora: O colégio não te ajudava nessa altura?
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Entrevistada: Não, porque eu depois naquela altura saí da escola e do A educação e o trabalho assumem relevância nos estudos sobre a
colégio. pobreza (Diogo, 2015), quer por causa da definição do lugar do indi‑
Entrevistadora: Então deixa‑me ver se eu compreendi. No sexto ano víduo na estrutura social, quer pelos recursos económicos que são
saíste da escola porquê, lembras‑te? capazes de proporcionar aos sujeitos. Assim, e como temos vindo a
Entrevistada: Porque o colégio não queria que eu estudasse mais. argumentar, ainda que a escolaridade não implique, automaticamente,
(P.3.5_ Porto, sexo feminino, 31 anos) o acesso a melhores posições na estrutura social, diferentes autores
têm salientado, como afirma Diogo (2015), que Portugal é um dos
A análise do percurso escolar dos entrevistados revela também o países onde esta relação entre maior escolaridade e melhor posiciona‑
impacto que associam à escola e a níveis mais elevados de autoestima mento social parece ser mais evidente (Benavente et al., 1996, citadas
e de valorização pessoal. Nestes casos, então, a escola permitiria não por Diogo, 2015, p. 122). Para lá destas questões, e como observamos
apenas um futuro com mais oportunidades no mercado de trabalho, nos diferentes perfis, ainda que com menor incidência neste, a saída
mas também uma maior valorização dos próprios sujeitos. Numa narra‑ precoce da escola e o ingresso no mundo de trabalho, muitas vezes
tiva, em particular, esta ideia está bastante vincada, sobretudo para um de modo informal, e numa aprendizagem de uma profissão fora dos
entrevistado que gostaria de ter aprendido a ler e escrever bem. sistemas formais de formação, é visível, representando
De resto, o reconhecimento da importância da escola no futuro é […] uma forma clara de reprodução intergeracional de pobreza na
bastante mais expressivo, associado não só à possibilidade de um medida em que os filhos herdam dos pais profissões socialmente
melhor emprego e com maior satisfação pessoal, mas, também, a uma desqualificadas e associadas a elevada probabilidade de precariedade
maior autoestima e ao gosto pelo conhecimento. no emprego e a baixos salários. (Diogo, 2015, p. 124)
Finalmente, estas vivências de situações de pobreza na infância
impactam as dimensões de bem‑estar infantil. Como afirmam 8.3. Transição para a vida adulta
Sarmento, Fernandes e Trevisan: As trajetórias de vida dos entrevistados neste perfil têm em comum o
facto de nelas terem ocorrido episódios, mais ou menos prolongados,
Apesar de as condições materiais não serem o único determinante de
de desemprego – algo que, nas sociedades atuais, se tem transformado
bem‑estar são responsáveis por uma grande parte do mesmo, parti‑
num fenómeno estrutural, produzindo enormes consequências na vida
cularmente ao providenciarem as condições de acesso a diferentes
de quem o experiencia. São muito claros, nos discursos dos inquiridos,
recursos, nomeadamente os que ajudam ao exercício de direitos
os impactos materiais e simbólicos, pessoais e familiares da quebra de
fundamentais e à promoção da inclusão social. (2015, p. 86)
laços com o mundo do trabalho, no contexto de uma sociedade orga‑
nizada «em torno da produção, da repartição e circulação de bens e
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serviços» e em que há uma relação estreita entre o emprego e o esta‑ experiencia o desemprego precocemente, aquando do início da sua
tuto social (Schnapper, 1994, p. 127). trajetória profissional – primeira ou segunda experiência de trabalho.
Esta precocidade do desemprego dá conta da generalização neste perfil
A transição da escola para o mundo do trabalho ocorre em idades do recurso a modalidades contratuais frágeis, como sejam a contra‑
precoces – até aos 16 anos – e após trajetórias escolares muito curtas. tação a prazo, a subcontratação ou o trabalho temporário.
As razões invocadas para o abandono escolar e para a inserção precoce
no mercado de trabalho relevam, à semelhança do que acontece com A situação de desemprego conduziu uma parte significativa dos entre‑
os outros perfis, da necessidade de contribuir para a sobrevivência do vistados a regressarem, enquanto adultos, ao sistema de ensino e
grupo familiar, dadas as enormes fragilidades económicas das famí‑ formação. A lógica de funcionamento dos sistemas produtivos tem
lias de origem, como já se salientou. Alguns confirmam que, ainda que contribuído para transformar o desemprego numa realidade estru‑
estas dificuldades tenham apressado a decisão, ela também se baseou tural dos sistemas de trabalho, o que tem exigido o desenvolvimento
nas dificuldades de integração na cultura escolar e no insucesso recor‑ de políticas sociais de mitigação dos impactos sociais e pessoais da
rente que experienciavam, bem como na ausência de aspirações e privação de trabalho, até aos anos 90, sob a forma de políticas de
expectativas associadas à escolaridade, desenvolvendo, alguns, estraté‑ subsidiação. Posteriormente, tal ocorreu mediante o desenvolvimento
gias defensivas de desinvestimento na escola. Para outros, a integração de políticas ativas que apostam na promoção de qualificações que
precoce no mundo do trabalho decorre de um apoio e incentivo das permitam criar oportunidades profissionais, sem escamotear os apoios
próprias famílias, não só porque estas valorizam uma ética do trabalho, financeiros que atuam na redução dos efeitos produzidos pelas vulne‑
mas ainda porque se percebe que os custos acrescidos do prolon‑ rabilidades face ao sistema de emprego. O impacto destas políticas
gamento da escolaridade são dificilmente suportáveis por famílias ativas é bem evidente neste perfil e justifica que uma larga maioria
economicamente fragilizadas e, por vezes, muito numerosas: ingresse, enquanto adultos, em diferentes modalidades formativas.
Quando se pronunciam acerca desta experiência, desenha‑se uma
Entrevistadora: Nove irmãos! Era uma casa grande. diversidade de conceções: 1. alguns colocam nestes processos forma‑
Entrevistado: Bastante. Por isso eu fui trabalhar bastante cedo. tivos elevadas aspirações e expectativas face ao impacto que poderão
Tive que largar a escola da mão, para ajudar o meu pai, porque o meu ter no desenvolvimento de competências e na criação de oportuni‑
pai sozinho era uma casa de gente para sustentar, rendas da casa, dades de inserção profissional futura; 2. outros salientam o carácter
e tudo, não era fácil. (P3.2_VFCampo, masculino, 49 anos) compulsivo destas formações e a forma como foram coagidos, através
As transições profissionais da generalidade dos entrevistados são das estruturas oficiais, a enveredar por formações nem sempre signi‑
marcadas pela precocidade das experiências de desemprego nas traje‑ ficativas, tendo em conta a sua experiência de vida; 3. salientam‑se,
tórias profissionais, sendo que mais de metade destes inquiridos ainda, os que desenvolvem uma perspetiva crítica em relação ao
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impacto que os cursos frequentados produzem na qualificação e recon‑ implementação das próprias políticas de ativação que são direcionadas
versão profissional e na criação de oportunidades de emprego; 4. são aos desempregados e não às causas que produzem o desemprego,
ainda aventadas, por alguns entrevistados, as dificuldades sentidas razão pela qual, nos casos analisados, a formação não tem tido qual‑
no acompanhamento das formações disponibilizadas, salientando‑se quer impacto no acesso a um emprego seguro.
aqui as dificuldades de descodificação e processamento da informação
escrita, particularmente entre os entrevistados com muito baixas quali‑ As transições familiares destes entrevistados refletem as situações
ficações escolares; 5. outros valorizam o lado convivial que a formação de vulnerabilidade presentes nas suas trajetórias de vida, decorrentes
permite e a oportunidade de criação de redes de sociabilidade que da fragilidade da relação laboral e da recorrência das situações de
obstam ao isolamento social que a situação de desemprego produz. desemprego. Para um número significativo de inquiridos, a autonomi‑
zação residencial é posterior à transição para a conjugalidade e para
Mas as experiências narradas permitem perceber o limitado alcance a parentalidade, o que denuncia a ausência de recursos económicos
destes processos formativos na mitigação do desemprego, situação que permitam à família de procriação aceder a uma habitação própria.
para a qual contribuem quer a escassez de empregos disponíveis, quer A instabilidade profissional, associada a salários muito baixos, obriga
as políticas de recrutamento e estabilização da mão de obra assu‑ ao recurso de soluções temporárias que passam por estadias, mais ou
midas por entidades públicas e privadas que optam, em contextos de menos prolongadas e, por vezes, recorrentes, em casa dos progenitores,
crise e de incerteza, pela contratação temporária de trabalhadores de outros familiares, ou mesmo de amigos.
que engrossam o mercado de trabalho secundário, caracterizado pela
instabilidade contratual. A situação de desemprego, em especial do Os discursos produzidos em torno da conjugalidade refletem e apro‑
desemprego de longa duração, tende a ser perspetivada como uma fundam o impacto da situação de desemprego na produção de uma
responsabilidade individual, negligenciando: instabilidade emocional. As formas de conjugalidade assumidas por
estes inquiridos são variadas e a par de arranjos familiares edifi‑
as vulnerabilidades extrínsecas, isto é, as razões que transcendem cados numa formalização baseada no casamento, surgem estruturas
os próprios desempregados, como sejam as responsabilidades do familiares edificadas em formas de coabitação informal ou numa conju‑
capital e das empresas, as opções de política económica e orçamental, galidade não associada à parentalidade.
as «turbulências» dos mercados de trabalho ou as distorções territo‑
riais dos padrões de emprego, sobre as quais os desempregados não A conflitualidade conjugal é muito expressiva resultando, em dife‑
têm, nem podem ter, qualquer controlo. (Caleiras, 2011, p. 143) rentes momentos do ciclo de vida, em separações e divórcios.
Os discursos salientam os impactos emocionais e o sofrimento asso‑
Esta conceção estigmatizadora da situação de desemprego está, como ciado a esta dissolução e dão a entender que aprofundou a situação
refere o autor acima citado, presente no desenho e nas lógicas de
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de fragilidade económica em que se encontravam, designadamente na O impacto das dissoluções conjugais é muito expressivo neste perfil e
possibilidade de acesso a uma habitação para a família: a monoparentalidade surge, uma vez mais, como fator de aprofunda‑
mento das situações de pobreza:
Entrevistadora: Há quanto tempo se separaram?
Entrevistada: Há um ano. Entrevistadora: Depois de ter nascido o seu filho, vocês continuaram
Entrevistadora: Recente. Até então vivia com ele? a viver os dois juntos e depois separaram‑se?
Entrevistada: Sim, sim. Entrevistado: Não, ela abandonou o filho!
Entrevistadora: Então disse que passou a recorrer aos serviços de Entrevistadora: E, o seu filho, como é que o Sr. fez?
apoio depois da sua separação. A separação foi um momento de Entrevistado: O meu filho estava comigo, pronto eu depois pagava
degradação na situação financeira da sua vida? uma ama para o tratar estava a pagar 20 e tal contos todos os meses,
Entrevistada: Com certeza. Enquanto partilhávamos as despesas da para lhe dar alimento, até ele ir para a escola. E paguei numa creche,
casa, agora não partilhamos, estão só ao meu cargo, ainda com o agra‑ que estava ali na XXXX, também pagava na creche, pagava à ama,
vante de ter de sair para pagar um valor muito superior [renda de pronto. (P3.5_Amadora, masculino, 58 anos)
casa]. (P3.5_Guimarães#2, feminino, 60 anos)
A ausência de infraestruturas gratuitas que garantam o apoio nos
A transição para a parentalidade é objeto de diferentes apreciações por cuidados à infância surge, também neste perfil, como um fator de agra‑
parte dos entrevistados. Trata‑se de um evento que nem sempre ocorreu vamento das situações de fragilidade social dos agregados familiares
segundo um calendário sequencial, pois nalguns casos este episódio e fundamenta a decisão de algumas mulheres deste perfil de abando‑
surgiu na vida dos indivíduos e precipitou processos de conjugalidade e narem o exercício de um trabalho remunerado.
de autonomização residencial. Alguns entrevistados alegam ter interrom‑
pido trajetos escolares e profissionais para assumir as responsabilidades A fragilidade da vinculação ao mercado de trabalho gerou trajetórias
parentais, sendo esta ação fortemente genderizada, denunciando valores profissionais marcadas pela mudança frequente de emprego, períodos
e atitudes mais tradicionais que imputam à mulher a responsabilidade da recorrentes de desemprego, vinculação precária, períodos de formação
maternidade e da gestão da vida doméstica: para aumentar as qualificações escolares e profissionais, em suma,
contribuiu para a criação de trajetórias desqualificadas, no sentido de
Entrevistadora: Estava a contar‑me que essa relação…. Paugam (2000). A situação de desemprego não gera apenas a privação
Entrevistada: Ele achava… Uma altura ele me dizia que se tivesse mais de bens materiais, mas cria um estatuto que marca profundamente a
filhos não se importava, que o trabalho das mulheres é estar em casa vida e a identidade de quem o vivencia, e que, para além dos custos
com os filhos. (P 3.1. Lisboa, feminino, 48 anos) emocionais relatados, tem custos simbólicos e sociais que derivam do
processo de estigmatização social a que os desempregados são sujeitos
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em sociedades edificadas em torno do sistema produtivo e que fazem a interseção das questões mais societais com as particularidades dos
depender o estatuto social do acesso a um emprego (Gallie, Paugam seus percursos, destacando o pesado papel que a sociedade tem nos
e Jacobs, 2003). destinos individuais. A margem de manobra de definição de si e do
seu destino é particularmente diminuta entre os indivíduos mais desti‑
8.4. Relação com o mundo do trabalho tuídos de recursos (Gaulejac e Leonetti, 1994; Diogo, 2007).
Embora a grande maioria dos entrevistados estivesse desempregada ou A primeira explicação para o desemprego é a doença, em alguns casos
em situação de inatividade, quase todos tiveram amplas experiências associada à penosidade das tarefas desempenhadas. Damos destaque
de trabalho ao longo da sua vida. É com base nessas experiências, ante‑ ao problema concreto da depressão, considerando o impacto bastante
riores à experiência de desemprego atual, que a análise da sua relação disruptivo que esta tem em contextos de escassez de recursos para
com o mundo do trabalho é feita. atenuar os seus efeitos. A depressão foi aparecendo nos diversos perfis
como algo com efeitos nas várias dimensões da vida dos entrevistados,
No que respeita à dimensão mais objetiva, verifica‑se que uma parte das
incluindo a relação com o trabalho. Destaca‑se mais neste perfil:
estratégias usadas para conseguir uma atividade laboral está associada à
sua iniciativa individual, designadamente com a resposta a anúncios de Entrevistadora: Pronto, mas se lhe perguntasse por que é que está
jornal. Contudo, a maior parte das estratégias assentam na rede de rela‑ desempregada? Qual é que acha que foi o motivo? Coincidiu com o
ções sociais que os entrevistados mobilizam para o efeito. Nesses casos nascimento dela… [filha mais nova, no colo da entrevistada]
ganham protagonismo os familiares, em particular o pai, mas também Entrevistada: Sim. Não, agora neste momento, claro, tenho que fazer
outras pessoas conhecidas, vizinhos e amigos – situação relativamente um passo de cada vez. Que é o que a psicóloga também quer. Hum… Foi
semelhante aos restantes perfis. Também encontrámos três casos de assim um bocado tudo ao mesmo tempo, mas graças a Deus… A autoes‑
estratégia institucional de acesso ao emprego (envolvem instituições e tima, a força de vontade, a autoconfiança em mim mesma mudou
situações institucionalizadas). Aliás, neste perfil estão incluídos os indi‑ muito. E agora claro, tem que ser, como ela diz, um passo de cada vez.
víduos que apresentam uma relação mais próxima e mais intensa com os Entrevistadora: Mas acha que desanimou, que foi abaixo nessa altura?
serviços de apoio social, no que ao emprego respeita. Entrevistada: Sim. E depois quando tive que pôr o meu filho no
colégio com 16 anos, nessa altura fiquei com uma depressão. Tanto
No que concerne à experiência atual de desemprego, as explicações
que neste momento ainda estou a fazer antidepressivos […]. (P3.3_
avançadas para os entrevistados se encontrarem nesta situação são
Porto, sexo feminino, 37 anos)
diversas, refletindo a diversidade das trajetórias sociais e a singu‑
laridade das histórias de vida de cada um. Não obstante, é possível O segundo motivo referenciado nas entrevistas é a idade. Esta aparece
encontrar algumas regularidades significativas e, sobretudo, especialmente associada às razões para não se conseguir um novo
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emprego. Os entrevistados não estão em idade de reforma, alguns não entrevista, entre os casos que apresentaram amplos períodos de esta‑
estão sequer lá perto (em média têm cerca de 47 anos), mas referem bilidade no emprego, três estão desempregados e três reformados (por
que a idade lhes limita as possibilidades de emprego. invalidez), com pensões baixas.
Na sua maioria, as pessoas inquiridas caracterizam‑se por terem uma É neste perfil, em flagrante contraste com o primeiro, que vemos o
trajetória de emprego em carrossel, tal como temos vindo a definir nos papel do Estado: é através dos diversos organismos e programas que
capítulos e perfis anteriores (Diogo, 2010). As trajetórias de emprego alguns entrevistados vão encontrar alternativas à sua fraca inserção
em carrossel definem‑se por um elevado número de atividades laborais no mercado de trabalho, ou mesmo alternativas ao rendimento de
na trajetória profissional e, em consequência, por uma duração relati‑ trabalho. É o caso do seu enquadramento em atividades de câmaras
vamente curta para cada uma delas. municipais ou juntas de freguesia; sendo ainda enquadrados pela admi‑
nistração central em programas ocupacionais, reformas por invalidez,
Entrevistador: Quantos empregos o senhor já teve. […] ao longo da vida. por incapacidade ou ainda o RSI. Em alguns casos é até de sublinhar
Entrevistado: Ah! Muitos. Trabalhei na construção. […] Foi depois que um breve contrato de um ano com o Estado (em programa ocupa‑
da padaria […]. [e o entrevistado continua, no resto da entrevista, cional ou não) é a experiência laboral com mais direitos e estabilidade
a referir um elevado número de empregos, todos de curta duração] na sua trajetória profissional.
(P3.2_Montalegre, sexo masculino, 56 anos)
Estas experiências sublinham, por um lado, o importante papel que
A informalidade aparece a par com a precariedade, ambas caracte‑ o Estado joga ao mitigar as situações de pobreza mais intensa pelas
rísticas das trajetórias de emprego em carrossel, e amplifica os seus transferências sociais. Por outro, na medida em que estão condi‑
efeitos na reprodução da situação de pobreza. cionadas à prestação de algum tipo de trabalho, mas sem que seja
Acresce que os períodos de trabalho são intercalados por períodos reconhecido como um emprego nem dê garantias de acesso a um
de não emprego. Estes são sobretudo períodos de desemprego mas emprego, relevam a exposição destes indivíduos a situações laborais
também identificamos, para o caso de uma mulher, a assunção da de grande precariedade.
condição de doméstica, por via da maternidade ou, noutros casos, Os recursos que o Estado usa para enquadrar indivíduos em situação
a condição de formanda ou ainda a de reformada (intercalando com de desemprego e de pobreza constituem, em larga medida, uma zona
trabalho). intermédia entre emprego e desemprego, com destaque para os
Em contraste, alguns casos apresentam largos períodos de estabili‑ programas ocupacionais. Nestes casos, os indivíduos trabalham mas
dade no emprego, embora isso não tenha impedido que ficassem numa não estão exatamente num emprego. Acresce que bolsas de formação
situação de pobreza quando ficaram no desemprego. No momento da e biscates, por muito distintos dos programas ocupacionais que
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aparentem ser, partilham com eles o papel de construção desta zona condensamos na ideia de qualidade do trabalho)71. Esta pode potenciar
intermédia entre emprego e desemprego na sociedade e na vida dos uma situação frágil, agravando‑a ou contribuindo para a sua reprodução
indivíduos. ao longo da vida dos indivíduos, contribuindo para a estruturalidade
da pobreza (Capucha, 2005; Perista e Batista, 2010). Em alguns casos,
Em relação à questão da identidade social (Dubar, 1991) em concreto,
portanto, o trabalho cria, mantém ou agrava a pobreza.
uma parte importante dos entrevistados (cerca de um terço) define‑se
como doente e não como trabalhador. É em apenas três casos que Por sua vez, estas condições objetivas em que a atividade laboral se
a declaração de si como trabalhador é central na imagem que nos é desenrola podem ter efeitos na identificação de si como trabalhador:
passada. Já no que respeita à questão dos efeitos tangíveis da doença num contexto em que existe um estigma associado ao desemprego,
registe‑se que a menção de uma doença crónica, grave e/ou com existe uma pressão societal forte para se trabalhar e, ao mesmo tempo,
impacto na redução das capacidades dos indivíduos está presente na as atividades ao alcance dos indivíduos são de má qualidade. No caso
maioria das entrevistas do perfil. deste perfil, estas condições contribuem para a cristalização de uma
identidade de «doente», enquanto forma de legitimação social do
Entrevistadora: Mas acha que foi esse problema de saúde que fez
desemprego, desenvolvida por alguns entrevistados.
com que ficasse desempregado?
Entrevistado: Também, ajudou muito. Foi. Ficar desempregado foi Ainda no que se refere à dimensão mais subjetiva, em relação à satis‑
de certeza. Porque foi por causa disso. fação com o trabalho (gosto), este está associado ao convívio, sobretudo
[…] no caso das mulheres, sendo que este convívio pode ter como interlocu‑
Entrevistadora: Sim, estou a perceber. Hum, pronto, então já está tores os colegas, os clientes e até os patrões. Portanto, relacionado com
desempregado desde que foi internado… os valores extrínsecos, tal como definidos no capítulo 6.
Entrevistado: Desde que fiquei doente.
Entrevistadora: Isso já foi há quanto tempo? Alguns, poucos, entrevistados marcam uma forma de se gostar do
Entrevistado: Ui! Vai fazer dez anos. (P3.2._Porto, sexo masculino, trabalho assente na valorização da atividade profissional em si (valores
45 anos) intrínsecos) e não de questões que lhe são exteriores (embora com
ela relacionadas) como o convívio ou o ordenado (valores extrínsecos,
Em algumas situações verifica‑se que o efeito do trabalho é o de cf. Vala, 2000; Cabral, Vala e Freire, 2000; Vala, Cabral e Ramos, 2003).
produzir ou ampliar um problema de saúde, tendo em atenção as
condições em que se realiza. Trabalhar ou não trabalhar não é uma Em relação ao desgosto pela atividade laboral, destaca‑se a sua asso‑
dicotomia simples. No caso dos indivíduos em situação de pobreza, ciação à penosidade, mas também ao convívio, isto é, à relação com
emergem as condições em que a atividade laboral se desenrola (algo que os outros. Neste último caso, os protagonistas que interagem com os
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nossos entrevistados são os colegas de trabalho e os patrões. Em dois nível da saúde, ficando evidente o ciclo vicioso que se estabelece entre
ou três casos a situação relatada foi tão tensa que levou à rescisão, por vulnerabilidade económica e condição de saúde.
iniciativa do trabalhador, mesmo sem garantias de um novo emprego.
No que respeita à penosidade esta pode ser tão intensa que, num caso, Duas em cada três pessoas entrevistadas relataram situações de
levou, segundo o relato da entrevistada, a sequelas duradouras na sua doença, das próprias e/ou de familiares, na infância e/ou no momento
saúde, ao nível da mobilidade. da entrevista, muitas vezes com efeito (des)estruturador na vida destes
indivíduos72.
Caracterizada a relação com o trabalho neste perfil, onde predomina
o desligamento face ao mercado de trabalho, importa olhar com mais Amiúde, os problemas de saúde, a que se associa o preço dos medi‑
atenção a forma como estes entrevistados avaliam o seu percurso de camentos e a necessidade de recorrer ao setor privado como forma
vida e a sua situação de privação material. de obviar as longas listas de espera para uma consulta hospitalar de
especialidade no setor público, foram mencionados como causadores
de despesas avultadas que muito contribuíam para que o rendimento
8.5. Autoperceção do percurso, comparação
fosse considerado insuficiente para fazer face às despesas do agregado.
da vida presente com a passada
Quase todos os entrevistados foram unânimes em afirmar que o seu Tais resultados estão longe de surpreender. No seu último relatório
rendimento era insuficiente para fazer face às despesas do agregado. que se debruçou explicitamente sobre as questões de equidade na
Uma frase relativamente comum, mesmo por parte de pessoas que, saúde, o Observatório Português dos Sistemas de Saúde assinalava que:
num primeiro momento, hesitaram em assumir a insuficiência dos
em comparação com o resto da Europa, Portugal não sofre de maiores
seus recursos, foi a de que, quando o mês chega a meio, já acabou
barreiras de acesso, mas estas barreiras estão mais marcadas do ponto
o dinheiro. Algumas pessoas expressaram, aliás, de forma muito
de vista socioeconómico, em particular no que diz respeito às restri‑
veemente tal insuficiência, ilustrando a sua argumentação com valores
ções financeiras […]. [destacando‑se] o risco elevado de despesas
monetários.
catastróficas para categorias da população isentas, tais como os
Não! Não dá nem para comer! Dá para pagar as despesas da casa e desempregados […]. A principal explicação para este resultado,
comer mal. […] Não há quem viva com 170 euros por mês! Agora, tudo aparentemente paradoxal, é a de que as principais despesas em saúde
é caro! A luz é cara, a água é cara. (P3.2_Montalegre, sexo masculino, estão relacionadas com medicamentos (65 %), para os quais a isenção
56 anos) não se aplica. (OPSS, 2017, pp. 84‑85).
Neste perfil em concreto, as situações parecem tornar‑se tanto mais De igual modo, quer a Comissão Europeia, quer a OCDE têm notado,
complicadas quanto maiores são as dificuldades experienciadas ao nos seus relatórios, que Portugal é um dos países onde a proporção de
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gastos próprios com cuidados de saúde (por oposição aos gastos que pode esticar é a luz, água. Isso há coisas que temos de pagar tudo […]
são assumidos pelo sistema de saúde) é mais elevada. A OCDE nota, senão eles cortam logo. (P3.2_VFCampo, sexo masculino, 49 anos)
por exemplo, que Portugal foi um dos países aonde os pagamentos
feitos pelos agregados subiram de forma mais substancial entre 2009 Destes discursos fica, também, uma vez mais, clara a «gestão» que Tach
e 2017 (OCDE, 2019). Da mesma forma, o Eurostat dá conta de que e Greene (2014) designaram de «roubar a Pedro para pagar a Paulo»,
os pagamentos out‑of‑pocket cifraram‑se em 27,5 % em 2017, quase o já mencionada neste texto. Num ou noutro caso, porém, as pessoas
dobro da média europeia de 15 % (Perista, 2018). A Comissão Europeia, entrevistadas assumiram que o malabarismo das dívidas deixou,
no seu último relatório relativo a Portugal, realça que «subsistem em dado momento, de ser possível e, quando isso acontece, advêm
desigualdades, em matéria de saúde, […] em função da situação socioe‑ situações evidentes de privação.
conómica». (Comissão Europeia, 2020, p. 52). Registaram‑se, ainda, casos em que as pessoas entrevistadas referiram
A insuficiência percebida de recursos leva a que diferentes estratégias que, sem ajuda, institucional ou de outras pessoas, não seria possível
(verdadeiros malabarismos, em muitos casos) tenham de ser mobi‑ gerir a situação. Destaca‑se, também, a importância atribuída por
lizadas para lidar com a situação. Muitas das pessoas entrevistadas alguns indivíduos à possibilidade de produzir alguns bens alimentares,
mencionaram a dificuldade de gerir recursos parcos, que têm de ser na ausência da qual a privação seria provavelmente uma realidade
esticados continuamente e tornados suficientes, «tapando buracos» (ainda mais) evidente. Noutros casos, ainda, foi assumido que o que
à medida que estes surgem. Fica, assim, evidente o uso de estratégias vale são os pequenos biscates.
pela população pobre para fazer o dinheiro e outros recursos esticar Como refere Machado Pais, a propósito da população jovem mas
tanto quanto possível (Daly e Kelly, 2015; Halpern‑Meekin et al., que pode facilmente ser adaptado a uma parte da população
2015). Isso fica também patente nos discursos em que é referida a pobre e nomeadamente à população que compõe este perfil de
constituição de dívidas, situação que acaba por complicar, ainda mais, Desempregados,
situações já muito difíceis.
a vivência precária do emprego e do trabalho envolve modalidades
Eu estou a dever a um e a outro. Temos de pedir fiado, durante um mês, múltiplas de «luta pela vida» que compreendem trabalho doméstico,
mas quando eu chego ao fim do mês é preciso pagar. A gente é assim: eventual, temporário, parcial, oculto ou ilegal, pluriemprego, formas
eu recebo ao fim do mês, pago às pessoas todas. Naquele mês corrente, múltiplas de desenrascanço a que a linguagem comum se refere com
eu fico comendo outra vez fiado. Chega‑se ao fim do mês, não me as sugestivas expressões de ganchos, tachos e biscates. (Pais, 2003: 7).
cresce nem um cêntimo. […] Por exemplo, eu estou devendo uma
compra de 400€ ou 500€, eh pá, eu no fim do mês só posso dar 30€ ou Em alguns casos, esses biscates são acumulados com o Rendimento
40€. Não posso dar mais para poder esticar para eles todos. O que não Social de Inserção, exemplificando uma estratégia não permitida pelas
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regras da proteção social mas realçada por estes respondentes como [O rendimento de que dispõe] chega para eu fazer uma vida muito,
crucial para o escapar a situações mais severas de privação. Saliente‑se, muito limitada. Eu não vou ao cabeleireiro. Às vezes, eu quero tirar
a este respeito, mencionado por diferentes autores (Castro et al., 2012, o passe para andar no centro da cidade porque eu não posso andar
Baptista e Perista, 2015; Rodrigues et al., 2016): que o RSI não pretende muito a pé, mas não consigo porque são 21 euros. Às vezes, quero
eliminar a situação de pobreza entre os seus beneficiários, mas tão só tomar banho, mas a cozinha fica um bocadinho retirada da casa de
mitigar a intensidade e a severidade da mesma. banho. Por isso, encho um baldinho de água na cozinha para não estar
à espera que a água quente chegue à casa de banho. Pego o baldinho
De facto, os valores médios do RSI situam‑se em níveis muito baixos. e um copinho só para dar uma duchazinha. […] Para evitar gastar
De acordo com as estatísticas do Instituto de Segurança Social, no ano muito gás. Tento poupar tudo o que eu posso. (P3.5_Guimarães#1,
de 2019 os valores médios mensais fixaram‑se em €117,12 por pessoa sexo feminino, 64 anos)
e em €259,43 por agregado. Estes são valores claramente abaixo do
limiar de risco de pobreza. Relembre‑se que, de acordo com os últimos Neste contexto é ainda referida a dificuldade adicional que algumas
dados disponibilizados pelo INE, este se situou, em 2018, em €6014 das pessoas entrevistadas, todas elas mulheres, consideraram advir
anuais, ou seja, cerca de €501 por mês. daquilo que identificam como uma má gestão do dinheiro por parte
dos seus (ex‑)companheiros, sendo possível identificar exemplos
Também a própria Comissão Europeia tem reconhecido essa situação potenciais de situações em que o rendimento é desigualmente distri‑
nos seus relatórios relativos a Portugal produzidos no âmbito do buído no seio do agregado (ver, por exemplo, Cantillon e Nolan, 2001).
Semestre Europeu, referindo que, em Portugal, «a adequação do rendi‑
mento mínimo continua a ser reduzida […] e bastante inferior à média A grande maioria das pessoas entrevistadas não teve qualquer dificul‑
da UE» (Comissão Europeia, 2020, p. 51), depois de, anteriormente, dade em identificar momentos da sua vida em que se apercebeu que
notar que a adequação do RSI «é uma das mais baixas da UE: em o seu rendimento não era suficiente para fazer face às necessidades.
média, o rendimento líquido dos beneficiários do rendimento mínimo Algumas deixaram mesmo transparecer que, mais do que um momento
corresponde a cerca de 40 % do limiar de pobreza nacional» (Comissão ou momentos, esse foi um sentimento que atravessou boa parte da
Europeia, 2019, p. 52). sua vida. Noutros casos, esse momento foi claramente identificado,
surgindo muito associado à rutura conjugal e à perda do emprego –
Independentemente do tipo de gestão efetuada, a privação a que têm dois dos três D da pobreza.
de se sujeitar fica explícita ou implícita na resposta da maioria das
pessoas. A não realização de despesa torna‑se, em muitos momentos Os discursos de algumas pessoas parecem levantar o véu sobre um
prioritária, seja na componente da alimentação, da saúde ou outras. aspeto que continua a caracterizar parte do mercado de trabalho
nacional: as diferenças entre os valores de remuneração base e ganho
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médio mensal. De facto, esta é uma conclusão passível de ser retirada tratava‑se de situações cuja fase aguda tinha já passado sendo, porém,
quando os/as respondentes identificaram o valor recebido enquanto muito evidente que os impactos dessas situações tinham perdurado
trabalhavam e o valor do subsídio de desemprego recebido e merece no tempo, fazendo‑se sentir ainda, de forma evidente, no momento
realce adicional quando, a par ou mesmo mais do que a própria da entrevista. Para algumas pessoas, além, obviamente, da gravidade
situação de desemprego, os indivíduos identificaram esta descida da mesma, o momento em que surge a doença afigura‑se como um
muito abrupta de rendimento como o elemento crucial espoletador elemento essencial para que ela tenha um potencial mais ou menos
de uma situação de pobreza. disruptivo. Assim, ela acaba por ser encarada de forma mais negativa
quando afeta uma criança, no caso de filhos ou netos e quando surge
Uma parte significativa dos/as respondentes associou os aspetos mais num momento mais avançado da vida dos próprios. Outros momentos
positivos das suas vidas a filhos e netos e ao sucesso obtido na sua identificados como claramente negativos foram, também, situações
estruturação enquanto pessoas, bem como ao seu sucesso escolar e de morte de familiares, sobretudo de progenitores e com situações de
à proximidade existente entre gerações. Algumas pessoas referiram rutura/instabilidade familiar.
o contexto profissional como promotor dos aspetos mais positivos.
Trata‑se sempre, em consonância com as características deste perfil, Uma em cada três pessoas entrevistadas afirmou que o seu percurso de
de situações passadas que são recordadas de forma positiva. Outras vida vinha a piorar até ao momento da entrevista. Alguns dos relatos
pessoas afirmaram não identificar qualquer aspeto positivo na sua vida. foram bem ilustrativos das dificuldades evidenciadas incluindo, por
Apesar de poucas, deve ser notado que se tratam, na sua totalidade, exemplo, e em paralelo com outras problemáticas, a angústia associada
de pessoas abaixo dos 50 anos que afirmaram, triste mas convicta‑ ao risco evidente de deixar a habitação.
mente, não vislumbrar quaisquer sucessos, expressando um percurso
de vida assente apenas em passar um dia de cada vez. No entanto, apesar das dificuldades expressas relativamente a esse
momento, quase outras tantas consideraram que a sua vida tinha vindo
Quanto aos momentos mais difíceis eles prendem‑se, sobretudo, a melhorar, apontando melhorias em dimensões importantes já refe‑
com situações de doença – um terceiro D da pobreza – das próprias ridas neste texto: saúde, habitação, emprego (e também biscates) e
pessoas entrevistadas ou de familiares próximos. Foram referidas, resolução de dívidas.
nomeadamente, situações de cancro, de acidentes vasculares cere‑
brais e complicações respiratórias, bem como depressões. Note‑se que Noutros casos, ainda, foi referida a ausência de mudanças signifi‑
algumas pessoas não identificaram qual a doença, em concreto. cativas, sendo de notar, porém, a interpretação dada pelas pessoas
entrevistadas, no sentido de que toda a sua vida foi pautada por difi‑
Em alguns casos as situações de doença colocavam‑se no momento da culdades sem grandes oscilações.
entrevista, sendo que algumas perduravam no tempo. Noutros casos,
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8.6. Sistemas de proteção social e redes próprios e/ou das redes primárias dos indivíduos, por eventos críticos
de solidariedade informal ocorridos na relação com o mercado de trabalho, na esfera da família e
no domínio da saúde.
A análise das trajetórias pessoais e laborais dos entrevistados deste
perfil revela, com frequência, o cumprimento de um «destino» de No que respeita à rede de proteção baseada no regime geral de segu‑
pobreza pela exposição precoce e de longa duração a contextos de rança social, a existência de um número tão reduzido de indivíduos
privação e exclusão, a ocorrência de eventos críticos que desorgani‑ explica‑se pela natureza instável das trajetórias laborais dos entrevis‑
zaram o equilíbrio entre necessidades e recursos dos indivíduos, devido tados, com alta rotatividade emprego/desemprego, mas também pela
a uma situação de rutura e/ou instabilidade nas relações de trabalho, informalidade das relações de trabalho que contornam a exigência de
a ruturas familiares, ou a fragilização decorrente da situação de saúde contribuições obrigatórias para a segurança social. Estas circunstân‑
e/ou uma acumulação de eventos críticos geradores de uma traje‑ cias impossibilitam a construção de carreiras contributivas regulares
tória descendente em termos de posição social (Branco, 2015; Garcia e, em muitos casos, o cumprimento dos critérios de elegibilidade do
e Kazepov, 2002). De facto, a reconstituição das biografias de «primeira subsídio de desemprego, nomeadamente o prazo de garantia exigido
mão» permite‑nos identificar não só a experiência da privação e da para aceder a esta prestação social.
pobreza, a desvalorização por diferentes razões do capital educativo
na infância, ruturas disruptivas a nível familiar, maus‑tratos, institu‑ No que se refere ao subsídio social de desemprego, tratando‑se de uma
cionalização, discriminação étnica e de género, acontecimentos que prestação social de cidadania, sujeita a condição de recursos, os limiares
condicionaram as trajetórias dos nossos entrevistados, enquanto de rendimento estabelecidos são um vetor de seletividade excluindo
adultos, nos seus capitais social e cultural, mas também no seu corpo, muitos indivíduos desempregados. Estes, por via do carácter precário
onde se inscrevem sequelas significativas na saúde física e mental e que dos seus vínculos de trabalho, não satisfazem o prazo de garantia do
perpassam os eventos críticos que desencadearam, em várias circuns‑ subsídio de desemprego, mas acabam por ser igualmente inibidos
tâncias, o desemprego e outras vulnerabilidades vitais, existenciais e do acesso ao subsídio social de desemprego. Esta exclusão radica na
de recursos (Therborn, 2013) que hoje os colocam entre as pessoas em condição de recursos, que estabelece como referência do rendimento
condição de pobreza. mensal por pessoa equivalente 80 % do IAS. Este montante corresponde
a 70 % do limiar de pobreza por adulto equivalente em 2018.
Na análise da pobreza, além da posição dos indivíduos no mundo do
trabalho e das estruturas familiares, importa levar em linha de conta as A reduzida taxa de cobertura observada no que respeita à proteção
políticas públicas de bem‑estar social e a forma como estas, nomeada‑ social no desemprego leva a que a resposta mais frequente das polí‑
mente nas áreas da proteção social e do emprego, procuram compensar ticas públicas a este problema social e aos seus impactos na vida dos
os desequilíbrios provocados, entre as necessidades e os recursos entrevistados e suas famílias seja a assistência social no desemprego
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através do Rendimento Social de Inserção, enquanto última rede de Estes programas podem evitar a permanência dos desempregados
proteção, de natureza universal. A ausência de rendimentos do nos dispositivos de assistência por períodos longos, mas importa
trabalho e o elevado número de isolados e famílias monoparentais que levar em linha de conta quer a sua adequação em termos de padrão
caracteriza este perfil explica o número significativo de beneficiários de satisfação de necessidades, quer a qualidade do enquadramento e
do RSI por comparação, por exemplo, com o perfil dos trabalhadores acompanhamento proporcionados aos indivíduos participantes (Bonny
pobres, apesar do baixo limiar da condição de recursos por adulto equi‑ e Bosco, 2002; Gustafsson et al., 2002). Doutra forma, as políticas de
valente desta prestação social: 186,68 € em 2018 (Portaria n.º 52/2018) inserção convertem‑se, para muitos dos seus beneficiários, no trabalho
e 189,66 € em 2019 (Portaria n.º 22/2019). de Sísifo (Castel, 1995), marcando a consagração do provisório como modo
de existência, como se sugere, a título exemplificativo, na narrativa
O baixo padrão de satisfação de necessidades proporcionado por esta deste entrevistado.
prestação social é particularmente crítico, constituindo apenas uma
forma de mitigação da pobreza extrema sem obstar à privação material Entrevistado: Era o das limpezas de caminhos e das estradas, é isso.
e conduzindo, como igualmente se verifica noutros perfis, ao recurso Eu adorei.
aos apoios assistenciais complementares, públicos ou privados, ou da rede Entrevistadora: E porque é que gostou?
familiar, em termos de ajuda alimentar, de apoio à medicação e ajuda Entrevistado: Eu gostei, porque aquilo é um tipo de serviço que, para
monetária, como é comprovado pelos depoimentos dos entrevistados mim, não me dá para eu me esforçar muito. É um serviço que eu gosto
quer isolados, quer em famílias com filhos73. de fazer. Eu gosto de mexer com as plantas, eu gosto de ter contacto
com a natureza […]. Eu adoro fazer aquilo. Até, no outro dia, essa
Num número limitado de casos regista‑se uma articulação entre as Secretaria [Regional] mandou chamar pessoas para fazer uma entre‑
políticas públicas de proteção social e de emprego, as designadas polí‑ vista, porque vai entrar agora dez vagas para essa Secretaria. E eu fui
ticas ativas de emprego tendo como destinatários os desempregados chamado para fazer essa entrevista. Eu fui fazer a entrevista, e tudo e
inscritos nos serviços de emprego, beneficiários do Rendimento Social não tive a sorte de entrar. E isso deixou‑me com bastante pena.
de Inserção. O enquadramento neste tipo de medidas de ativação da Entrevistadora: Eles estavam a contratar gente para o PROSA ou era
assistência no desemprego apresenta, em tese, um conjunto de vanta‑ para…
gens por comparação com as designadas medidas passivas de proteção Entrevistado: Quando eu estive lá, foi por conta do RECUPERAR. Foi
social, proporcionando oportunidades de integração social, de valori‑ quando houve esses novos programas que houve para aí. Estive dois
zação do capital humano, de melhoria da condição material devido a anos no RECUPERAR e depois, no terceiro ano, estive nos CTTS. Esse
uma prestação social mais valorizada para um conjunto de agregados é um programa bom, porque dá um dinheiro bom. Só depois, então,
familiares‑tipo e a potencial ampliação das oportunidades de emprego. é que vim para aqui. Chamaram‑me para o Fundo de Desemprego,
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e depois o Fundo de Desemprego, falou‑me se eu queria ir traba‑ área muito sensível é a dos serviços de habitação, não só porque se
lhar. Eu disse que «claro já se sabe que queria ir trabalhar». Mas é trata de um mecanismo fundamental para a satisfação das necessi‑
a tal coisa: trabalhando ou não trabalhando, eu estive a trabalhar dades humanas, mas porque a possibilidade de se obter uma redução
como seja de graça para aqui para a Junta de Freguesia. Porque, eles nos encargos com o alojamento através do acesso a uma habitação de
davam‑me por mês mais 71 €, que era alimentação, não sei o que era renda social é um fator importante na mitigação da privação associada
mais. Que os 429 € eu recebia sempre era do Fundo de Desemprego à pobreza monetária. Alguns dos entrevistados lograram aceder a uma
e já era meu, era o que eu tinha direito. Vim para aqui, pensando que habitação e exprimem em geral uma apreciação positiva por essa reali‑
ia receber mais uns 200 € em cima para ajudar a vida e vai‑se a ver, zação, no entanto, outros expressam um juízo muito crítico à falta
recebo só 71 €. Praticamente, aquilo foi a trabalhar de graça, para ali. de resposta dos serviços municipais de habitação às suas solicitações,
Estive um ano aqui nisso assim. (P3.2_Vila Franca do Campo, 49 anos, nalguns casos com vários anos.
sexo masculino, pedreiro)74
Entrevistadora: A sua perceção em relação a esses serviços sociais.
Outra dimensão relevante respeita à experiência de relação dos entre‑ Qual é a sua satisfação ao modo que tem sido atendido ou acompa‑
vistados com os serviços sociais incluindo quer os serviços de segurança nhado nos serviços de apoio social?
social, quer os serviços sociais municipais e de instituições privadas de Entrevistada: Péssimo, péssimo. […]
solidariedade social, os serviços de emprego e formação profissional, Entrevistadora: Acabou de citar um exemplo, mas existe algum
de saúde e de habitação. O apoio material, o acesso a direitos e a quali‑ episódio que tenha sido especialmente marcante a esse serviço pres‑
dade do acompanhamento e suporte prestado são os elementos com tado? Pode ser positivo ou negativo.
maior influência no juízo formulado pelos entrevistados quanto ao Entrevistada: Infelizmente é negativo. A mim, o que me choca muito
desempenho dos serviços. No que respeita aos serviços de apoio social é o que a lei diz, que a partir dos 326 euros, a pensão de invalidez ou
da Segurança Social e de instituições de solidariedade social registam‑se de velhice, ou o que queira chamar, a pessoa não tem direito absolu‑
quer apreciações positivas, quer juízos fortemente críticos, sublinhando tamente nenhum, no apoio à renda, por exemplo, que era um apoio
quer a importância dos apoios, ainda que limitados, quer as dificul‑ fundamental. No meu caso, que sou sozinha, que tenho que arcar
dades e obstáculos registados no acesso aos direitos sociais e ao apoio com as despesas todas e com um vencimento de 410,56 euros, não há
em situações de comprovada necessidade. Relativamente aos serviços uma exceção. Não se tem em conta a condição de saúde da pessoa,
de emprego e formação profissional os juízos críticos predominam em muito menos a sua sanidade mental. E a pessoa fica completamente
absoluto, ainda que em parte sejam dirigidos ao desenho e eficácia das entregue a si própria, desprotegida de tudo, de tudo. Daí, cada vez
políticas públicas de emprego e não só ao desempenho dos serviços haver mais pessoas mentalmente doentes, mais guerra no mundo,
de emprego, o mesmo ocorrendo com os serviços de saúde. Uma outra mais mortes, mais assaltos, mais tudo que há do pior, porque quem
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legisla essa lei não tem capacidade, não tem no mínimo capacidade nomeadamente monetária, também está presente na vida de alguns
de saber viver com esse valor e pagar seu espaço e sua alimentação e dos entrevistados. A ajuda em dinheiro por parte de vizinhos funciona
todas as suas despesas consequentes que um ser humano pode ter. como solução de último recurso, envolvendo valores relativamente
Que o sistema de saúde não presta… (P3.5_Guimarães#2, 60 anos, reduzidos.
sexo feminino, empregada de comércio, reformada por invalidez)75
Entrevistadora: Quando necessita de alguma ajuda ou quando tem
Outra questão importante remete para a forma como os inquiridos algum problema a quem é que recorre?
percecionam e avaliam a sua situação atual e a trajetória de vida trilhada, Entrevistada: A pessoas de fora, a vizinhos. Como eu já disse aqui
quais os sentimentos que formulam em relação a isso, bem como as se eu não tenho dinheiro eu chego a casa de uma vizinha e pergunto
propostas de ação que consideram que os poderes públicos devem «eh vizinha tens dois euros que me emprestes?» E é sempre assim.
assumir para debelar a situação de fragilidade social em que se encon‑ (P3.1. Ponta Delgada, sexo feminino, 48 anos)
tram. Importa ainda perceber se a sua situação de pobreza tem sido fator
de discriminação e de estigmatização nas interações sociais quotidianas. Considerando o valor em causa, estes empréstimos pressupõem a
devolução, podendo também cair no domínio da reciprocidade equi‑
librada, implicando que quem recebe terá, num futuro mais ou menos
8.7. Redes de apoio não institucional e território
próximo, de devolver o valor recebido numa quantia aproximada. Já nos
Se nos outros perfis a importância das redes de apoio não institucio‑ casos que envolvem o apoio da família, temos situações de apoio conti‑
nais são relevantes, desempenhando um papel social que, não raro, nuado no tempo, implicando nomeadamente a tomada de refeições e
colmata parcialmente as insuficiências e ausências das instituições assumindo‑se estas como fundamentais à sobrevivência de quem está
do Estado‑Providência no campo dos apoios institucionais, no caso em situação de extrema vulnerabilidade, incluindo psicológica:
dos indivíduos desempregados é ainda mais relevante. Implicando o
desemprego ou a inatividade situações de deslaçamento social e assim Entrevistadora: Porque é que se isola?
produzindo anomia no sentido dado por Durkheim (1991 [1893], 1999 Entrevistada: Por causa da minha vida, prefiro estar quieta no meu canto.
[1897]), as redes de apoio de tipo informal, bem como uma inserção Entrevistadora: Sim. E quando precisa de ajuda a quem recorre?
social forte no território, podem fazer a diferença entre a rutura Entrevistada: Olhe, peço à minha irmã, peço à minha irmã e a um dos
completa e uma situação que, embora precária, permita aos indivíduos meus irmãos também.
em situação de pobreza prosseguir com as suas vidas. As ajudas, como Entrevistadora: Portanto, é à família, aos irmãos mais próximos?
acontece nos outros perfis, são muito diversas, podendo incluir apoio Entrevistada: Sim, sim.
em dinheiro e envolvendo atores ligados pelo parentesco, a vizinhança Entrevistadora: Como é que faz em relação à comida?
e a amizade. De igual modo, a ajuda proporcionada por vizinhos, Entrevistada: A comida vou lá em casa, porque é na rua de trás, vou lá.
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Entrevistadora: À casa da sua irmã? dito, do modo como esta é entendida e socialmente tratada na socie‑
Entrevistada: Sim. E eu para não dar muito trabalho… dade contemporânea, sobretudo nos meios mais urbanos, que conduz
Entrevistadora: Que era a casa dos seus pais? a modos extremos de isolamento e solidão:
Entrevistada: Sim. O meu filho às vezes vai lá jantar, mas almoçar, ele
almoça na escola. (P3.1_Lisboa, sexo feminino, 48 anos) Entrevistadora: Agora a gente vai para a questão de redes de apoio.
O que pensa sobre a relação com os seus familiares, amigos e vizinhos?
Este perfil confronta‑nos, uma vez mais, com as limitações da Entrevistada: Familiar, amigos e vizinhos, muito sinceramente, desde
sociedade‑providência, aliás já objeto de escrutínio crítico no capítulo que minha mãe faleceu, a minha família ficou desunida. A nível de vizi‑
anterior, mostrando como ela é especialmente fraca, mesmo inexis‑ nhos, vivo num prédio que passa‑se meio ano sem ver um vizinho,
tente, quando se observam contextos sociais marcados por formas ninguém acode a ninguém, ninguém sabe nada de ninguém e é assim
múltiplas de exclusão. Em muitas das pessoas entrevistadas o princípio que eu vivo. A nível de amigos… a nível de amigos, todos têm as suas
do do ut des (dou para que tu dês), bem conhecido do pensamento dificuldades e então eu criar novos amigos nesta idade é bem complexo,
weberiano, não tem aplicação prática. A situação é tão frágil que porque a verbalização da vida de cada um é tudo no negativo, às vezes
muitos, como no caso do excerto acima fixado, apenas podem esperar tudo nas dificuldades, chega a ser um pesadelo, chega a ser um pesadelo.
receber. Ora, devendo a sociedade‑providência ser composta por redes Entrevistadora: Então, neste sentido de rede de apoio mesmo, nesses
de conhecimento e de ajuda de tipo não mercantil – podendo ser anali‑ três âmbitos, sente que eles são enfraquecidos?
sada segundo os quadros de reciprocidade que convocam as relações Entrevistada: Completamente, completamente, completamente.
do dom discutidas por Mauss (1998 [1925]) – é necessário sublinhar, Entrevistadora: Quando necessita de alguma ajuda ou tem algum
na esteira de Silva (2001), que perante o cálculo presente nas trocas problema, a quem recorre?
recíprocas entre iguais, ela está ainda mais presente entre indivíduos Entrevistada: Eu quando tenho algum problema mais difícil e preciso
com estatutos sociais muito diferentes, configurando‑se estas dádivas realmente de ajuda eu recorro à Junta de Freguesia, a União de Juntas,
em formas subtis de controlo social dos mais frágeis e marginalizados. e eles dentro do que é permitido ajudar, ajudam, mas é sempre uma
O deslaçamento social é particularmente evidente e sobretudo severo ajuda digamos que irrisória, pode ser eventualmente em alguma receita,
na cidade, onde o distanciamento geográfico em relação aos familiares pode ser eventualmente em alguns géneros alimentares, se tiverem.
mais próximos, fruto das dinâmicas laborais e outras que incentivam Ou através da Junta, a Junta referencia‑nos como pessoa de baixo
a mobilidade, mesmo quando não desejada, se conjuga com a inexis‑ rendimento, a nível financeiro, para outra instituição que nos possa
tência de relações sociais significativas com os vizinhos nos prédios dar ajuda. Mas, voltando atrás, o meu maior problema é a prestação
onde se habita. A este contexto nitidamente desvantajoso há que da renda de casa. A prestação de renda de casa limita‑me a vida por
acrescentar os determinantes sociais decorrentes da velhice, melhor completo. E eu sinto que não tenho o direito de ser livre, de estar no
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meu espaço porque esses direitos que são tão básicos e tão sagrados determinante para a marginalização do indivíduo, ela pode ser agravada
estão a ser completamente retirados, estão a ser completamente reti‑ (ou minimizada) considerando a sua inserção no contexto social em que
rados. O nosso governo quer mais sem‑abrigos, mais sem‑abrigos, mais vive. Como acima se constatou, o deslaçamento é particularmente cruel
sem‑abrigos, mais pessoas com doenças terríveis, terríveis, terríveis. na grande cidade, em que a aglomeração e a decorrente proximidade
A nível de foro psíquico então, nem se fala, porque as dificuldades da física entre os indivíduos, no sentido geográfico estrito, nada vale, pois
vida levam as pessoas a psicologicamente a deteriorarem‑se, serem más o anonimato, o isolamento e o desinteresse pela sorte dos que vivem na
pessoas, a provocar, digamos que na sociedade, muita coisa má, muita porta ao lado assumem‑se mesmo como determinantes sociais.
coisa má, aliás é o que se vê diariamente. E é preciso ser muito, muito
forte psicologicamente para se conseguir ultrapassar a vida da forma Como fica evidente no longo e tocante excerto que a seguir se
que ela evoluiu, da forma que evoluiu para o lado mal, para o lado mal reproduz, a insegurança da existência quotidiana é também produ‑
em todos os aspetos. Então, na saúde e na educação é um descalabro. zida pelas escolhas políticas do Estado, no caso, as da habitação. Elas
Eu peço imensa desculpa mas eu costumo sempre dizer: é obsceno. impactam de forma especialmente implacável nos pobres que vivem
Quem não for muito forte psiquicamente não consegue ultrapassar, em casa arrendada, hoje debaixo da ameaça permanente de despejo.
não consegue ultrapassar. Como acontece com indivíduos de outros perfis, os desempregados e
Entrevistadora: A questão dos seus filhos, não chega a recorrer a eles outros inativos confrontam‑se com as atuais dinâmicas habitacionais e
em caso de necessidade, num momento… seus efeitos. Como foi assinalado por Silva et al. (2017), as cidades são
Entrevistada: Assim, eu quando comecei aos 13 anos, e também tive territórios para onde afluem grandes investimentos, sendo a habitação
uma educação muito baseada nisso, na independência. E, para mim, um setor socialmente muito delicado. Deixado ao livre funcionamento
pessoalmente, o ser independente é um bem muito, muito precioso. do mercado, o preço da habitação empurrará os cidadãos mais despro‑
Os meus filhos, felizmente, trabalham, têm as suas casas, as suas rendas vidos de recursos para as periferias das grandes cidades, por ação dos
para pagar, os filhos na creche. Os meus filhos têm, digamos, os tostõe‑ conhecidos processos de inflação imobiliária, gentrificação e regene‑
zinhos contados. No dia em que eu recorrer aos meus filhos para algo, ração urbana. Mesmo nas cidades de média dimensão, como é o caso
para me emprestarem uns cêntimos, ou sei lá, isso vai ser muito, muito de Guimarães, a pressão sobre os inquilinos faz‑se sentir de uma forma
mau para mim, muito, muito, muito mau para mim. Depois de eu ter particularmente intensa, conduzindo a denúncias de contratos de
trabalhado tanto, tantos anos, lutado tanto, eu vou sentir‑me muito, arrendamento e consequente mudança de residência:
muito mal. (P3.5_Guimarães, sexo feminino, 64 anos)
Entrevistada: Neste momento, o meu senhorio lembrou‑se que quer
As exclusões exprimem‑se sempre num dado território, nomeada‑ a casa para um filho e tenho que sair de lá urgentemente. Ele queria
mente no lugar e na casa em que se habita. Se a dimensão económica é que eu tivesse saído em abril, não foi possível eu sair em abril, não
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arranjei nenhum espaço para sair e agora finalmente arranjei, mas 8.8. Perceção de si como pobre e do combate à pobreza
aquilo está com umas pequenas obras, só posso sair no fim do mês de
Cerca de metade das pessoas entrevistadas não teve dúvidas em
junho. Ele quer que saia no fim do mês de maio, muito sinceramente
afirmar viver numa situação de pobreza, algumas das quais justifi‑
não sei como é que vai ser. No mês de junho vou para um espaço que
cando a perceção de si mesmo como pobre com considerações que
ainda não tem as obras acabadas, está tudo muito porco, muito sujo,
remetem, afinal, para uma dimensão de miséria. Esta conceção acaba
muito… não tem luz nem tem água. O senhor vai ser condescendente,
por tornar‑se mais vincada entre os casos que hesitaram em consi‑
o meu senhorio, deixar‑me estar ali no mês de junho.
derar‑se pobres, relativizando a sua situação no momento da entrevista
Entrevistadora: Então mora agora no centro, só que tem que sair
perante situações piores do que era naquele momento a sua, sejam
desse lugar?
elas de outras pessoas ou do seu próprio passado. Tal como aconteceu
Entrevistada: Exatamente.
relativamente a outros perfis, também aqui fica patente a confusão
Entrevistadora: E para onde vai é no centro também?
que é estabelecida relativamente a estas duas situações (Bellaing, 2000;
Entrevistada: Eu arranjei um espaço. Eu fui ver muitos espaços aqui
AA.VV., 2010), sendo referenciadas, também como aconteceu noutros
no centro, porque eu nasci aqui e quase sempre vivi aqui. E havia
perfis, situações de fome e de carência habitacional grave.
espaços, peço desculpa pela expressão, obscenos. E o espaço melhor
que eu vi é aqui na cidade, é muito pequenino, mas foi o espaço Eu considero pobre aquele que tem muito pouco para se alimentar e
melhor que eu vi dentro dos preços que se estão a praticar. Pedem que, para outras coisas como para higiene e para se vestir, qualquer coisa
300 euros, tenho que pagar água, luz e gás, e eu ganho 410,56 euros. desse género, tem que ir pedir. (P3.1_Porto#2, sexo feminino, 64 anos)
(P3.5_Guimarães, sexo feminino, 64 anos)
Em alguns casos, a reticência de algumas pessoas em assumir uma
Em linha com o que ocorre nos perfis anteriores, constatam‑se algumas situação de pobreza parece prender‑se com o facto de receberem
regularidades. Embora os atores tenham trajetos de vida singulares, apoio social. Do seu discurso parece perpassar a ideia de que esse
vivendo em territórios bem diferenciados entre si, de um modo geral apoio, ainda que considerado insuficiente, representará a barreira que,
sobressaem situações de privação, pobreza e, menos frequente, insegu‑ na sua opinião, os separa daquilo que consideram como sendo uma
rança habitacional que atuam como expressões de exclusão social, por pobreza «extrema» que, realce‑se uma vez mais, poderá também ser
vezes muito severa. Sempre presente um certo fatalismo e resignação, lida como uma situação de miséria. Nos restantes casos, as pessoas
sobretudo entre os mais velhos, já no outono da vida, tal interpela entrevistadas recusaram o rótulo de pobre, voltando a ser predomi‑
‑nos não só sobre a dimensão e impactos das desigualdades sociais nante a comparação com outras situações.
persistentes, mas também sobre as causas fundas que produzem o
consentimento dos cidadãos. Ao contrário do que se registou noutros perfis, a maioria das pessoas
deste perfil hesitou em considerar que a pobreza caracterizou toda
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ou a maior parte da sua existência. Do discurso destes respondentes s.d.; Lötter, 2011). Aliás, a reflexão acerca da sua situação por parte de
ressaltam, de forma muito evidente, os três D da pobreza, já explo‑ algumas pessoas é bem exemplificativa da argumentação de Lötter, já
rados noutras partes deste texto (e sistematizados na conclusão): referida a propósito de outros perfis, de que atitudes de fatalismo e
divórcio, desemprego e doença. resignação podem levar as pessoas pobres a serem destituídas de poder
(Lötter, 2011).
O divórcio surge como particularmente relevante em alguns discursos,
marcando o momento charneira para algumas situações de pobreza, À semelhança do relatado relativamente a outros perfis, muitas das
não experienciadas enquanto as pessoas entrevistadas residiam no pessoas entrevistadas expressaram a necessidade de optar por uma
agregado parental ou quando em situação de conjugalidade. estratégia de privação. E tal como noutros perfis, o discurso destas
pessoas ilustra as situações de vida constrangida e de sacrifício, onde o
Da mesma forma, noutros discursos, é o desemprego que surge de orçamentar e gerir do dinheiro se tornam centrais e quase competên‑
forma vincada. É de realçar, porém, que este D, englobando o desem‑ cias de sobrevivência (Daly e Kelly, 2015).
prego propriamente dito, assumido de forma explícita, parece também
englobar, de forma implícita, o emprego sem qualidade, tal como definido É cortar! Cortar nos alimentos, cortar na roupa… Cortar em tudo,
neste livro. A situação de emprego, ainda que melhorando objetivamente tudo, tudo! Tenho telefone, mas não tenho dinheiro. Não tenho tele‑
a situação, não é assumida por alguns destes indivíduos como absoluta‑ visão por cabo. Não tenho roupa nova. Esta roupa é dada. […] O que
mente marcante para a proteção face a uma situação de pobreza76. eu tenho vestido, foi tudo dado. […] É cortar em tudo para conseguir
pagar as contas que são precisas: a renda, água, luz e gás. (P3.4_Caldas
Já vivi em situações melhores, quando eu estou trabalhando. Quando da Rainha, sexo masculino, 36 anos)
estou desempregado, já se sabe que a gente vive um bocadinho mais
apertada. Mas isso é quase sempre na mesma. […] Há muitos anos que Instadas a identificar o que mudariam na sua vida, se pudessem,
já ando nisso. Quem é pobre, é sempre pobre. Nunca chega a ser rico. as respostas das pessoas entrevistadas dividiram‑se por um conjunto
Trabalhe ou que não trabalhe, é sempre pobre. Já se sabe que traba‑ alargado de áreas, sendo as mais frequentes as que realçaram mudanças
lhando a gente vive melhor um bocadinho, mas não é por aí a fora. ao nível do local de residência, da situação no mercado de trabalho,
É quase sempre igual. (P3.2_VFCampo, sexo masculino, 49 anos) na conjugalidade e no percurso educativo.
Confrontadas com uma situação de pobreza, uma parte significativa Algumas referiram mudanças ao nível do local de residência, ganhando
das pessoas exprime sentimentos de resignação, o que é consistente destaque a perspetiva assumida por pessoas residentes em áreas urbanas
com o que nos apresenta a literatura científica, quer a nível nacional, de querer mudar para uma área rural. Para outras tantas, na sua maioria
quer internacional (por exemplo, AI/REAPN/SOCIUS/ISEG–UTL, homens, a mudança a operar passaria pela dimensão do emprego,
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ficando bem realçada, nesses casos, a importância central atribuída à que algumas pessoas pretendem promover face aos que consideram
componente do trabalho. De registar algumas pessoas, poucas, que alte‑ como pobres não merecedores de apoio (Lister, 2004; Diogo, 2007),
rariam situações relacionadas com a conjugalidade, não casando com as conceito também já abordado anteriormente neste texto.
pessoas com que o fizeram ou, pelo menos, não o tendo feito tão cedo,
e outras para as quais o ter estudado mais seria mudança crucial a operar. Tratando‑se de entrevistas a pessoas em situação (estatisticamente
objetiva) de pobreza mas, mais do que isso, com percursos e senti‑
A diversidade de respostas dadas pelas pessoas entrevistadas mentos como os que têm vindo a ser explanados neste texto, não
manteve‑se, quando instadas a partilhar quais as medidas que toma‑ deixa de ser surpreendente que a quase totalidade dos respondentes se
riam para combater a pobreza em Portugal, caso desempenhassem tenha considerado uma pessoa feliz.
o cargo de primeiro‑ministro. Evidenciou‑se, a este nível, a opção de
«ajudar os pobres», opção que deverá ser antes lida como «ajudando Em alguns casos, poucos, esse sentimento não aparece fundamentado
aqueles em situações mais miseráveis», assente numa perspetiva assis‑ em concreto, mas antes assente numa perspetiva otimista perante a
tencialista baseada na provisão de alimentação e alojamento. vida. Noutros casos, porém, são apresentados motivos, entre os quais
as relações familiares, que parecem ecoar as considerações efetuadas,
Evidenciou‑se também a defesa do aumento dos rendimentos, nomea‑ por exemplo, por Balancho de que:
damente através do aumento das pensões de reforma e do salário
mínimo nacional. Note‑se também a relação que algumas destas a felicidade se encontra sobretudo dependente das relações sociais,
pessoas, ainda que poucas, estabeleceram relativamente à problemática de onde se destacam as familiares positivas, mais do que das condi‑
da pobreza entre quem trabalha, já abordada a respeito do perfil ante‑ ções materiais, [sobressaindo] como uma força reconhecida e
rior, e que salientaram o facto de haver pessoas que trabalham a tempo investida pelos participantes, que apesar das condições difíceis de
inteiro e que, ainda assim, ganham apenas o que classificaram como vida parecem sobrecompensar intencionalmente essas vulnerabili‑
«salários de miséria». dades, lutando pela sua felicidade com estratégias afetivas, cognitivas,
relacionais e espirituais, considerando‑se mesmo, globalmente, felizes
A dimensão do emprego é igualmente referida, sendo apontada como e gratos pelo que já possuem. (Balancho, 2010: iii)
o meio através do qual pode ser atingido o fim de obtenção de rendi‑
mento desde que caracterizado por condições adequadas. No entanto, é preciso ter em linha de conta que, como refere a lite‑
ratura, os indivíduos podem manifestar a sua felicidade ainda que
Provavelmente por se tratar de um perfil em que as pessoas entrevis‑ estando em situação (muito) vulnerável, na medida em que tendem
tadas estavam, na sua maioria, a ser alvo de apoio do sistema de proteção a ajustar os seus desejos ao que lhes parece alcançável. Tal leva a que
social, é possível perceber, mais do que noutros perfis, o distanciamento o nível de satisfação que expressam ofereça, amiúde, um panorama
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mais cor‑de‑rosa do que aquele em que efetivamente se encontram Também neste perfil é possível identificar a presença de trajetórias
(Sen, 1999, Kimhur, 2020). de emprego em carrossel, envolvendo a inserção em atividades pouco
qualificadas e intercalando períodos de trabalho (formal e informal)
Nomeadamente os filhos, mas também netos ou o cônjuge são explici‑ com períodos de desemprego, sem que se perspetive a consolidação
tamente apresentados, em alguns casos, como «responsáveis» diretos de uma carreira profissional. Mesmo em narrativas em que a quebra
pela sensação de felicidade experienciada. Outras pessoas, embora de sociabilidades é menos vincada e onde a inserção laboral ainda
oscilando nos termos utilizados, realçaram a importância de ir dando constitui um horizonte de vida, parece dominar o ceticismo quanto
passos – assentes, em primeira instância, na obtenção de um emprego à obtenção de um emprego que permita garantir condições de vida
– no sentido de garantir que a situação de pobreza não cerceia toda dignas e à possibilidade de não depender de apoios sociais77. Além
a sua existência. Independentemente do termo utilizado fica, assim, disso, em vários casos a precariedade laboral dá‑se em paralelo com
refletida, de forma evidente, a associação da pobreza, feita por Sen, alguma instabilidade afetiva constituindo, ela própria, parte impor‑
à liberdade, que só tem sentido quando associada às condições efetivas tante do balanço do percurso de vida e da avaliação prospetiva
do seu exercício (Sen, 1999; Bruto da Costa et al., 2008). relativamente ao futuro – dos seus ou da descendência. No caso de
Um pouco mais de uma em cada cinco pessoas manifestou não ser várias mulheres, os papéis de género entroncaram‑se com o percurso
feliz, algumas não apontando motivos concretos para tal e outras de exclusão laboral, que se confunde com uma condição de inativi‑
apontando as perdas associadas à morte de familiares ou questões dade, à semelhança do assinalado no capítulo anterior. No caso dos
ligadas à esfera do emprego. homens, são sobretudo as características do mercado de trabalho na
generalidade dos setores e empregos de referência que cada vez são
mais adversas à inclusão laboral e social.
8.9. Perspetivas face ao futuro
Na maior parte das situações aqui analisadas ressalta o desemprego de Os períodos de desemprego terão contribuído para acentuar processos
(muita) longa duração, em muitos casos remontando à crise de 2008‑2014 de privação e acumulação de desvantagens e, de certa forma, de margina‑
e colocando em evidência processos de exclusão laboral e desqualificação lização social. Em situações de maior vulnerabilidade social e psicológica,
social em que a idade, as qualificações e a degradação das condições de as medidas ocupacionais e de inserção profissional podem contri‑
saúde constituem fatores de vulnerabilidade e de discriminação acrescida. buir para quebrar dinâmicas de isolamento, mas não parecem resolver
O desemprego veio aumentar o processo de acumulação de vulnerabi‑ o problema de fundo – ou seja, a conjuntura adversa em termos de
lidades precipitando processos de exclusão laboral que condicionam mercado de trabalho – e, por isso, não permitem oferecer como hori‑
a forma de olhar os horizontes de vida e envolvem, nos casos mais zonte de vida o acesso a um emprego estável e de qualidade. Muitas
extremos, uma profunda rutura dos laços sociais. vezes, e apesar da motivação em lutar pela melhoria das condições, são
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poucas as expectativas de melhoria e é na indeterminação e na sorte que servem. E não servem porque é?! Porque já não damos o rendimento
parecem estar depositadas as expectativas e os sonhos. já, aqueles que eles tanto precisam. […]
Entrevistadora: [Pausa] O que é que seria necessário para viver sem
Por outro lado, estando as medidas de proteção social não contribu‑
esse subsídio? Às tantas já respondeu isso mas…
tivas associadas a uma condição de recursos do agregado, essa falta de Entrevistado: Eh senhora, seria necessário é emprego. Um emprego.
perspetivas coloca um trade off entre a manutenção de apoios sociais E que fosse um emprego para mim ficar efetivo o resto da minha vida.
– que, apesar de baixos, são relativamente estáveis – e a obtenção de Não ter derramado por aqui e por lá, que isso não vai com nada. […]
rendimentos de trabalho78. Mesmo que estes rendimentos possam Entrevistadora: […] E sonhos? Tem algum sonho que gostasse de ver
compensar a baixa cobertura da proteção, não garantem qualquer esta‑ realizado?
bilidade. Este é o elemento da equação com maior peso nas situações Entrevistado: Eu tenho tantos sonhos. Os meus sonhos… A primeira
de maior vulnerabilidade associadas à doença, às baixas qualifica‑ coisa era fugir daqui para fora, como eu disse à senhora. A segunda
ções e/ou à idade da pessoa e que está, por isso, mais desvalorizada coisa era ter um emprego como deve de ser, para sustentar a minha
enquanto força de trabalho nos setores onde desenvolveram grande família como deve de ser e querer nada do Governo. E para mim não
parte do seu percurso laboral. ‘tar com gente sempre à perna. Porque a gente recebem isso, mas eles
Entrevistadora: Acha que a sua vida pode vir a ser melhor no futuro? estão sempre a cobrar aquilo que a gente recebe. […] Por exemplo, eu
Entrevistado: Na idade que eu já tenho, desconfio muito, minha estou recebendo esse dinheiro, mas se me aparecesse um dia ou dois
senhora. Eu desconfio muito de ter uma vida melhor do que esta que para trabalhar, não era bom, não ajudava mais a minha vida?! Mas não
eu tenho. Não… posso trabalhar. Porque se for apanhado, sou cortado. E eu não vou
Entrevistadora: E acha que vai poder vir a viver sem apoios sociais? perder essa minha prestação do fundo de desemprego por causa de um
Entrevistado: [Suspiro] Não sei. Francamente eu não sei. Da maneira dia ou dois. Uma pessoa tem medo… tem medo de dar um dia ou dois.
que isso vai andando aí, eu não sei. […] É porque não se vê ninguém a Entrevistadora: Por isso é que diz que precisava de um emprego estável?
dar empregos a essas pessoas de 50 anos, dessas pessoas que já têm Entrevistado: Exatamente! Se for esses trabalhos dos programas não
mais uma idadezinha. Eles veem essas pessoas sempre para o lado. dá para nada. Eu estou um ano e meio a trabalhar e depois Fundo
Vão buscar pessoas mais novas. […] de Desemprego. Estou mais um ano e meio a trabalhar, Fundo de
Entrevistadora: Falou há bocado que se sente discriminado por Desemprego. Isso não dá nada. Por isso, eu digo que o Governo tinha
receber do banco alimentar. E acha que é discriminado pela sua idade? […] de abrir vagas para pôr o pessoal efetivo nessas empresas. […]
Entrevistado: Também é outra situação em que gente somos discri‑ Entrevistadora: Acredita que isso venha a acontecer?
minados. Porque a gente chega a uma certa idade e a gente já não Entrevistado: Da maneira que isso vai andando?! Vai lá nada! (P3.2_
VFCampo, sexo masculino, 49 anos)
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Nos casos mais extremos, ter‑se‑á assistido a um «encadeamento de Estou com uma doença mental qualquer e estou cada vez estou mais
negatividades» envolvendo um dinamismo recíproco que implica, por pele e osso. A ganhar 142 euros a pagar luz, não pago renda porque é a
um lado, o enfraquecimento do sentido de pertença dos laços e do minha tia que paga, mas pago luz, água, gás e tenho que comer, não é?
bem comum, por parte do indivíduo e, por outro, a exclusão do indi‑ (P3.1_Porto#2, sexo feminino, 55 anos).
víduo por parte da sociedade, tendo em conta as suas circunstâncias
específicas de vida (Amaro, 2015). Essa cadeia de negatividades pode Verifica‑se aqui uma profunda rutura dos laços sociais, cuja recupe‑
também estar associada a uma condição física ou mental, que faz parte ração passaria por abordar dimensões de natureza afetiva e material,
da sua autoperceção enquanto pobre, e as circunstâncias pessoais, começando por garantir condições básicas de subsistência.
relacionais e institucionais que se entroncam num emaranhado difícil Em algumas, poucas, entrevistas é possível identificar uma avaliação
de desatar. Nas suas dimensões materiais esse encadeamento poderá prospetiva mais assertiva e otimista sobre o futuro. Mais qualificados,
englobar fome, precariedade habitacional, exaustão física, despro‑ ou pelo menos com mais recursos sociais e culturais (por exemplo
teção social e a exclusão do mercado de trabalho; nas suas dimensões atividade sindical), terão trilhado um longo caminho de privação, mas
subjetivas, poderá incluir sentimentos de desconfiança, desamparo e que envolveu um conjunto de esforços visando uma situação de maior
exaustão mental. vulnerabilidade e mais próximos do que anteriormente tem sido refe‑
Entrevistadora: E o que mudaria na sua vida? rido como uma agência transformadora. Assinale‑se que são situações
Entrevistada: Ui. Dava corda aos patins e desaparecia, ia para longe em que os laços afetivos, de natureza familiar (com descendentes, nos
para o meio do monte. casos de divórcio), constituíram elemento de proteção face às vulnera‑
Entrevistadora: E no geral sente‑se uma pessoa feliz? bilidades e são parte importante das expectativas relativas ao futuro.
Entrevistada: Não, não. Como é que eu posso ser feliz com isto tudo? Assinale‑se, por fim, que a maior parte das histórias de vida a que nos
Não sei se vou ter amanhã uma casa para dormir nem sei sequer se referimos anteriormente referem‑se a situações de desemprego, muitas
vou ter o que comer. delas superiores a períodos de cinco anos, e que o acesso a emprego
Entrevistadora: E sente que a sua vida vai melhorar no futuro? continua a estar, mesmo que vagamente, nas expectativas de futuro
Entrevistada: Não, vai é piorar. das pessoas entrevistadas. Há, no entanto, um conjunto de casos neste
Entrevistadora: Acha que pode vir a viver sem nenhum tipo de apoio? perfil em que as condições de saúde e/ou a idade fazem com que o
Entrevistada: Não, não. Como é que eu posso, se o médico diz que acesso à reforma seja a forma mais almejada (e até adequada) para
daqui a dois ou três anos se não me resolvem a situação da casa… […] garantir o acesso a condições de vida um pouco mais dignas. Como
Enfim. Se eu não arranjo a minha situação. Ele dizia dois‑três [anos], as situações de inaptidão para o trabalho e de invalidez, sobretudo
isto já devia ter passado um, portanto tenho que esperar mais dois. quando próximas à velhice, indicam um afastamento mais ou menos
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definitivo do mercado de trabalho, seria expetável que isso se refle‑ As explicações avançadas pelos entrevistados para ingressar ou
tisse, também, nas disposições sobre o futuro. Deste ponto de vista os permanecer desempregados são diversas, refletindo a diversidade
resultados não deixam de ser curiosos: o reconhecimento da condição das trajetórias sociais e a singularidade das histórias de vida de cada
de inatividade apenas faz parte fundamental das expectativas de um. Um dos motivos que a análise discursiva permite evidenciar é
futuro daqueles entrevistados que estão a aguardar deferimento do a situação de doença, física e mental, que referimos anteriormente.
pedido de acesso a reforma79. Outro motivo referenciado remete para a idade, tendo os entre‑
vistados consciência de que os empregadores são refratários ao
Conclusão do capítulo recrutamento de trabalhadores mais velhos. A sorte e a discriminação
também aparecem como motivos que justificam o afastamento do
Este grupo integra indivíduos desempregados e inativos que, não
mercado de trabalho, sendo que no caso da discriminação ela deriva
obstante a situação atual, tiveram amplas experiências de trabalho
sobretudo da aparência física ou da pertença étnica.
ao longo da vida. Quando analisamos estas trajetórias profissionais
destacam‑se a instabilidade contratual, a alta rotatividade de emprego Mas não é só a instabilidade profissional que assola a vida destas
‑desemprego, a informalidade das relações de trabalho, a ausência de pessoas. Os discursos produzidos em torno da conjugalidade
uma carreira contributiva que assegure a reforma, algo que tem impacto refletem e aprofundam o impacto da situação de desemprego na
na ausência de direitos de proteção na doença e no desemprego. produção de uma instabilidade pessoal e conjugal, pois na vida de
uma parte muito significativa deles, e em diferentes momentos do
A maior parte das situações de desemprego aqui analisadas parecem
ciclo de vida, surgiram episódios de separação/divórcio. Salientam
remontar à crise de 2008‑2014, o que sugere que não chegaram a
os impactos emocionais e o sofrimento associado a esta dissolução e
recuperar do ambiente económico e social adverso que nessa altura
dão a entender que aprofundou a situação de fragilidade económica
se instalou, em especial para os trabalhadores não qualificados da
em que se encontravam. Por seu turno, a transição para a parentali‑
construção civil, pelo menos entre os nossos entrevistados. Quando
dade, apesar de ser objeto de diferentes apreciações por parte dos
analisamos o lugar do desemprego nas trajetórias de vida destas
entrevistados, surgiu, para alguns, de uma forma tão inesperada que
pessoas salientam‑se três factos muito evidentes: 1. na maior parte
precipitou processos de autonomização residencial e de conjugali‑
dos casos o desemprego surge muito precocemente, imediatamente
dade. A dissolução das relações conjugais teve como consequência
após a primeira ou segunda experiência de trabalho que, à seme‑
que as obrigações e as responsabilidades parentais se concentrassem
lhança dos perfis anteriores, ocorre entre os seis e os dezasseis anos;
apenas num progenitor e a monoparentalidade – masculina e feminina
2. na trajetória de alguns inquiridos há um desemprego reincidente;
– produziu um enorme impacto na situação de vulnerabilidade social.
3. um número muito significativo de pessoas vivencia um desemprego
de longa duração, ou mesmo de muito longa duração.
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Ainda assim, consideram que o foco atual de felicidade das suas vidas continua também aqui presente, ainda que de modo menos expres‑
está nas relações familiares, nomeadamente na relação com os filhos. sivo do que noutros perfis; as dificuldades económicas dos agregados,
as dificuldades de integração na cultura escolar e a desvalorização do
Uma questão que se coloca com particular pertinência remete para a papel da escola na construção do futuro surgem como fatores desenca‑
forma como os entrevistados compensam os desequilíbrios provocados deadores de um abandono precoce e desqualificado do sistema escolar.
pelos eventos críticos que ocorreram nas suas vidas. A maior parte
das trajetórias de vida destes entrevistados revela o cumprimento de Tendo em conta as circunstâncias de vida que os discursos produ‑
um «destino» de pobreza pela exposição precoce e de longa duração a zidos deixam entrever, podemos dizer que a situação de desemprego
contextos de privação e exclusão. À instabilidade e rutura nas relações veio avolumar o processo de acumulação de vulnerabilidades – que
laborais adicionam‑se vários casos de ruturas familiares e formas mani‑ se desenham desde a infância –, precipitando processos de exclusão
festas e latentes de violência a que foram sujeitos na infância, pobreza e desafiliação social. As dimensões materiais deste processo são
extrema que, nalgumas situações, questionava o próprio processo sinalizadas pela privação material, incapacidade de garantir a subsis‑
de sobrevivência. Em muitos casos estas provações extremas inscre‑ tência, exaustão física; nas dimensões subjetivas, alguns entrevistados
veram marcas indeléveis no corpo dos entrevistados, onde se verificam refletem como a trajetória de vida os tem conduzido a sentimentos
sequelas muito significativas e irreversíveis na saúde física e mental, de desamparo e desconfiança em relação aos outros, a processos
amplificadas depois, enquanto adultos, por trabalhos realizados em complexos de exaustão mental.
condições muito duras e penosas. Noutras situações são justamente as
questões de saúde que impedem o exercício de uma atividade profis‑ Alguns evidenciam estratégias de natureza individual, referindo que as
sional para providenciar algum rendimento para o agregado familiar, dificuldades de gestão dos parcos recursos os têm conduzido a pres‑
ficando muito explícito, neste perfil, o ciclo vicioso que se estabelece cindir de uns bens em detrimento de outros. Em alguns casos é preciso
entre vulnerabilidade económica e condição de saúde. também gerir situações de dívida e, quando tal acontece, advêm situa‑
ções evidentes de privação, pois alguns assumem que a não realização de
A par da doença, também a morte de membros significativos das despesa é, em muitos momentos, a única solução, seja na componente
famílias se revela um aspeto importante nas trajetórias de vida, com da alimentação, da saúde ou outras. Frequentemente, para enfrentarem
impacto na harmonia familiar e nos montantes de rendimentos dispo‑ estas dificuldades procuram realizar pequenos trabalhos («biscates»).
níveis, pois alguns depoimentos enfatizam como a morte de um A grande maioria das pessoas entrevistadas não teve qualquer dificul‑
provedor teve impacto nas dinâmicas de entrada na pobreza, em parti‑ dade em identificar momentos precisos da sua vida em que se tornou
cular quando a intensidade laboral do agregado familiar é muito evidente que o rendimento disponível não cobria as necessidades, tendo
diminuta. A realidade do trabalho infantil, que impacta no percurso algumas exprimido sentimentos de resignação com esta situação.
de vida das crianças, em particular porque motiva o abandono escolar,
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Para muitos entrevistados, a gestão quotidiana seria insustentável sem pobres. O baixo padrão de satisfação de necessidades proporcionado
a ajuda dos familiares ou das suas redes de amizade, quer para fazer por esta prestação social é particularmente crítico, constituindo apenas
face às despesas do quotidiano – ajuda alimentar –, quer para apoio à uma forma de mitigação da pobreza mais extrema sem obstar à privação
medicação e mesmo ajuda monetária, como é comprovado pelos depoi‑ material, como se verifica noutros perfis.
mentos dos entrevistados, quer ainda em agregados isolados ou em
famílias nucleares com filhos. Estas redes revelaram‑se cruciais ainda A situação de desemprego levou a que uma parte significativa destes
para suportar processos de autonomização residencial requeridos pela entrevistados regressassem ao sistema de ensino e formação, por
transição para a conjugalidade e parentalidade. Diríamos que nalgumas instigação das instituições. Quando se pronunciam acerca desta expe‑
situações foi a provisão de recursos por parte das redes de familiares riência desenha‑se uma diversidade de conceções, umas mais benignas
e amigos – solidariedade para a subsistência – que evitou o apro‑ e outras particularmente críticas, mas uma questão que se salienta
fundamento das situações de pobreza que as políticas públicas não remete para o fraco impacto destas formações no acesso e estabili‑
conseguem debelar. zação dos beneficiários no mercado de trabalho, o que releva de vários
fatores, designadamente pelo facto de as modalidades de recruta‑
Os dados explanados permitiram perceber os limites da providência mento em que se baseiam conduzirem a empregos precários, instáveis
estatal na proteção ao desemprego. No que se refere ao subsídio social e mal remunerados. Se, por um lado, estes programas em que os
de desemprego, tratando‑se de uma prestação social de cidadania, sujeita contratos de emprego‑inserção se inserem podem evitar a permanência
a condição de recursos, os limiares de rendimento estabelecidos são um por períodos longos de tempo dos desempregados nos dispositivos
vetor de seletividade excluindo muitos indivíduos desempregados que, de assistência, por outro contribuem decisivamente para fomentar
por via do carácter precário dos seus vínculos de trabalho, não satis‑ processos de inserção profissional que progressivamente se conso‑
fazem o prazo de garantia do subsídio de desemprego. A reduzida taxa lidam como «a instalação no provisório como regime de existência»
de cobertura observada no que respeita à proteção social no desem‑ (Castel, 1995, p. 422).
prego leva a que a resposta mais frequente das políticas públicas a este
problema social, e aos seus impactos na vida dos entrevistados e suas Considerando todos estes condicionalismos, não será de admirar que
famílias, seja a assistência social no desemprego através do Rendimento metade das pessoas entrevistadas tenha assumido, sem hesitação, viver
Social de Inserção, enquanto dispositivo da rede universal com uma numa situação de pobreza, algumas das quais justificando a perceção
função de última rede de proteção. A ausência de rendimentos do de si mesmo como pobre com considerações que remetem, afinal, para
trabalho e o elevado número de isolados e famílias monoparentais que uma dimensão de miséria, nomeadamente ao nível de situações de
caracteriza este perfil explica o número significativo de beneficiários fome e de carência habitacional grave. Em alguns casos, a reticência
do RSI por comparação, por exemplo, com o perfil dos trabalhadores em assumir uma situação de pobreza parece prender‑se com o facto
de receberem apoio social. Do seu discurso parece perpassar a ideia
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de que esse apoio, ainda que considerado insuficiente, representará a
barreira que, na sua opinião, os separa daquilo que consideram como
sendo um cenário de pobreza «extrema» ou de miséria.
Na generalidade, afirmam que não se sentem discriminados pela sua
situação de pobreza, mas encaram o futuro com ansiedade e preo‑
cupação, salientando‑se aqui os receios com a falta de estabilidade
profissional, com os impactos da privação económica nas possibili‑
dades de sobrevivência do agregado familiar, evidenciando‑se ainda,
nalguns discursos, um cansaço psicológico permanente resultante
da dificuldade em gerir «uma mão cheia de nada e outra de coisa
nenhuma»80. De facto, mesmo nos trajetos onde a quebra dos laços
sociais é menos profunda, parece predominar o ceticismo relativa‑
mente às perspetivas de acesso a emprego seguro e de qualidade, que
permita a melhoria das condições de vida, sem recurso a apoios sociais.
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Capítulo 9
Trabalhadores
Introdução Por outro lado, uma definição de pobreza no trabalho referenciada
às características dos agregados familiares, sendo os trabalhadores
Os trabalhadores pobres81 constituem um cluster de pobreza com
pobres indivíduos que vivem em agregados familiares com um rendi‑
clara expressão no nosso país, representando 32,9 % dos cidadãos em
mento total abaixo de um dado limiar da mediana de rendimento do
situação de risco de pobreza em Portugal. Não se trata, no entanto,
país, enfatizando deste modo a importância da estrutura do agregado
de uma dimensão do fenómeno social da pobreza observável apenas em
familiar (o número de crianças dependentes, o número de membros
Portugal, mas igualmente noutros países da Europa do Sul e da União
angariadores de rendimento, etc.) (cf. p. 131).
Europeia, ainda que com contornos e extensão distintas. Tal circuns‑
tância tem concitado a atenção quer da comunidade académica, quer das No presente estudo privilegia‑se, por referência à metodologia utili‑
autoridades políticas e organizações independentes envolvidas na luta zada no ICOR, uma abordagem da pobreza no trabalho associada às
contra a pobreza, na procura de uma compreensão mais aprofundada características dos agregados familiares, no entanto sem se desva‑
das causalidades desta face do fenómeno da pobreza, inclusive levando a lorizar as dimensões individuais que caracterizam os trabalhadores
União Europeia, em 2003, a incluir no portefólio dos indicadores sociais pobres. Neste plano, a abordagem de Lohmann e Marx (2008) é rele‑
o indicador in‑work poverty risk (Ponthieux, 2010). vante para a nossa análise, sustentando que a noção de pobreza no
trabalho não pode ser explicada somente na perspetiva que se foca em
Não cabendo neste âmbito uma revisão sistemática da literatura que
baixos salários e desigualdade de rendimentos, mas deve, igualmente,
tem vindo a ser produzida neste domínio importa, no entanto, levar em
dar relevo a diferentes causas, como as políticas públicas de bem
consideração algumas contribuições relevantes. Um primeiro aspeto
‑estar social e o papel da família (p. 17). Neste sentido, estes autores
que deve ser assinalado prende‑se com o facto de a literatura, como
destacam a importância das transferências sociais na constituição dos
Filandri e Struffolino (2019) sublinham, fazer uso de duas definições
rendimentos das famílias, reportando‑se quer a benefícios sociais asso‑
ou abordagens distintas da pobreza no trabalho, que sendo analitica‑
ciados ao trabalho, de que é exemplo típico o crédito em impostos82,
mente distintas estão estreitamente relacionadas em termos empíricos.
quer às prestações sociais em situações de não trabalho, como é o
Por um lado, uma dimensão individual, que identifica a pobreza no
caso do subsídio de desemprego, quer ainda às prestações sociais
trabalho como os trabalhadores com baixos salários, trabalhadores que
não contributivas, nomeadamente as prestações familiares (Lohmann
se situam abaixo de um dado limiar da mediana de rendimento do país.
e Marx, 2008, p. 19). Em articulação com esta perspetiva analítica,
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Lohmann (2008, p. 51) referencia um conjunto de fatores associados de vida, relação com o sistema de proteção social e os serviços sociais,
aos indivíduos e famílias identificados pela investigação como tendo bem como as perceções de si enquanto pobres e as suas perspetivas face
influência no risco de pobreza. Em termos genéricos, fatores rela‑ ao futuro, sem que no entanto a consideração das esferas mais objetivas
tivos às necessidades, nomeadamente impostas pela estrutura familiar, e de cariz mais subjetivo possam ser objeto de uma distinção absoluta,
fatores relativos aos recursos, os quais influenciam a participação no uma vez que acabam por estar presentes em várias das dimensões em
mercado de trabalho (nomeadamente educação, experiência profis‑ análise. O encadeamento das dimensões consideradas na reconstituição
sional e ocupação) e as restrições ou constrangimentos à participação das trajetórias dos indivíduos entrevistados conduz, quase que inevita‑
no mercado de trabalho, como a obrigação da prestação de cuidados a velmente, a algumas zonas de sobreposição atendendo, nomeadamente,
crianças pequenas, pessoas idosas ou outras pessoas dependentes no aos processos de transição escola‑trabalho e às relações entre mundo do
agregado familiar. trabalho e proteção social.
Numa investigação mais recente, Halleröd et al. (2015), privilegiando
9.1. Enquadramento familiar na infância
uma abordagem dinâmica da pobreza na população trabalhadora,
analisam a relação entre as trajetórias laborais típicas e o risco Tal como temos vindo a explorar nos diferentes perfis, o enquadra‑
de pobreza entre indivíduos trabalhadores, distinguindo entre mento familiar na infância estrutura‑se em torno de duas dimensões
diversas trajetórias de modo a captar a participação dos indiví‑ centrais: as recordações e os contextos da infância e os eventos e situa‑
duos nos diferentes segmentos do mercado de trabalho e a relação ções potenciadoras da pobreza na infância.
emprego‑desemprego‑inatividade nos últimos três anos da trajetória
Entre as recordações positivas encontram‑se boas lembranças fami‑
profissional. A articulação entre estas diferentes dimensões referen‑
liares, da escola e dos amigos e brincadeiras com amigos; noutras,
ciadas constitui uma lente analítica relevante, particularmente na
que poderão ser definidas como ambivalentes, é possível encontrar
exploração das relações entre risco de pobreza no trabalho, padrão de
elementos positivos mas, também, negativos, em particular associados
emprego, estruturas familiares e políticas públicas de proteção social.
a instabilidade familiar, a perdas de membros significativos da família,
Nas secções seguintes procede‑se a uma análise do corpus de entrevistas ou ainda a violência; noutras, particularmente negativas, salientam‑se
deste perfil segundo as dimensões estruturantes das narrativas reco‑ sobretudo a existência de violência familiar, alcoolismo, maus‑tratos,
lhidas. São assim analisadas quer as dimensões de natureza mais objetiva e ainda um suicídio ou abandono infantil, quando eram crianças, como
que retratam as trajetórias de vida dos entrevistados na infância, sucedeu com duas das entrevistadas.
na escolaridade, na transição para a vida adulta, no mundo do trabalho,
Entrevistadora: Gostaria que falasse de como era a sua infância em
nas redes sociais em que se inscrevem e na relação com a proteção social,
geral, tem memórias boas ou menos boas?
quer as perceções subjetivas destes trabalhadores sobre o seu percurso
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Entrevistada: Eu tive uma infância horrível [ficou emocionada] fui Em várias das narrativas, é possível observar que diferentes trajetórias
abandonada pelos meus pais quando tinha seis anos. Fui para casa das no mercado de trabalho provocaram situações distintas ao nível dos
pessoas, fui escravizada… [Chorando] fui violada… Minha mãe estava rendimentos de que as famílias dispõem. Num dos casos, a conjugação
em Cabo Verde, havia muita situação de pobreza e ela deixou‑me nas entre a emigração de um dos progenitores (associada ao abandono da
casas das pessoas aos seis anos, ela foi para Luanda, foi trabalhar. Meu família) com um evento de saúde incapacitante da mãe, que cuidava
pai, sabe que o homem da África tem filho com uma e depois tem das crianças, precipitou a insuficiência de rendimentos e, neste caso
filho com outra… O meu pai também tinha a vida dele e deixou‑me. específico, o processo de institucionalização de dois dos filhos.
Entretanto a pessoa que a minha mãe confiava e que deixou‑me,
faleceu, que era uma tia. Ela faleceu e eu fiquei com outras pessoas. Entrevistadora: O que é que ela fazia?
[Pausa] A partir dos seis anos… Nunca tive boa vida, até os dias de Entrevistado: Ela era empregada de limpeza também. Trabalhou em
hoje, não é? (P4.1_Amadora#2, sexo feminino, 61 anos) restaurantes, trabalhou em fábricas, trabalhou um bocadinho em
tudo. Trabalhou assim um bocadinho em várias áreas.
Tal como verificamos nos restantes perfis, as recordações dos entre‑ Entrevistadora: Hum hum. E depois ficou de baixa. Não se sabe com
vistados em relação à infância são distintas e variáveis, sendo possível que idade?
encontrar uma, relativa à institucionalização, de carácter positivo. Entrevistado: Por volta dos 50. Incapacidade, não é baixa. Ficou
Como já referido, apesar de os processos de estigmatização nas incapacitada.
crianças institucionalizadas serem possíveis, também se observa em Entrevistadora: Ah, sim.
alguns discursos a ideia de que na instituição as rotinas e o cuidado Entrevistado: Teve um problema renal.
são elementos valorizados pelos adolescentes (Faria; Salgueiro; Entrevistadora: Sim. E depois o seu pai nunca mais se encontraram?
Trigo e Alberto, 2008). Entrevistado: O meu pai nunca mais tive contacto. (P4.4._Porto, sexo
masculino, 41 anos)
Entrevistadora: Sim. Mas então tem recordações boas do colégio?
Entrevistado: Tenho. Tenho boas recordações. Havia muita disciplina, Para alguns entrevistados, as recordações da infância são mais ambiva‑
mas por exemplo fazíamos bastantes amizades, que éramos bastantes, lentes, compostas por memórias positivas e negativas, sobretudo pelas
por isso… Tenho bastantes boas recordações. privações a que estiveram sujeitos enquanto crianças. Novamente,
Entrevistadora: Hum hum. o impacto da privação material dos agregados familiares é lembrado
Entrevistado: Mas ficou tudo para trás. Depois de sair do colégio, pelos entrevistados, assumindo consequências nefastas ao seu desen‑
uma pessoa segue a sua vida e perde os contactos. (P4.4._Porto, sexo volvimento. Tal como tínhamos também observado nos restantes
masculino, 41 anos) perfis, a presença de elementos da família como cuidadores das
crianças volta aqui a estar presente, lembrando a importância destes
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no cuidado das crianças, em particular os avós. Nas recordações de particularmente importantes na análise dos processos de entrada e
carácter mais negativo, encontram‑se também fenómenos de violência saída de situações de pobreza. Como observa Alves (2015), a persis‑
familiar e de instabilidade, nomeadamente de alcoolismo de um dos tência da pobreza é relativamente mais elevada nos indivíduos mais
progenitores. Um dado interessante revelado em duas das narrativas novos e mais velhos, quer em Portugal, quer na zona euro. Por outro
identifica famílias numerosas, em que os rendimentos dos agregados, lado, o mesmo autor, refletindo sobre os percursos de entrada e saída
apesar de os pais trabalharem, não eram suficientes para fazer face às da pobreza, identifica um conjunto de elementos nos agregados fami‑
necessidades familiares. A ideia do trabalho como fator protetor face liares que ajudam a compreender esta problemática (Alves, 2015): os
à pobreza é, aqui, relativizada face às realidades específicas dos agre‑ designados eventos no mercado de trabalho, isto é, o impacto que o
gados familiares, como temos vindo a assinalar ao longo deste texto. facto de se estar empregado tem na distribuição de rendimento e nas
Tal como referido, a presença do trabalho infantil é uma marca para situações de pobreza dos agregados.
a maior parte das entrevistas, algo que também se verifica no Perfil 1.
Em muitas delas, um dos motivos importantes, referenciados para Em alguns relatos, as perdas significativas, como é o caso da mãe,
o abandono precoce da escola, retirando desse modo possibilidades são referenciadas pelas entrevistadas. De resto, este aspeto merece
futuras de uma maior prosperidade, como os próprios reconhecem. uma análise aprofundada em todos os perfis, não apenas pelas conse‑
quências emocionais expectáveis nas crianças, mas pelos impactos
Tal como argumenta a EAPN (s.d.), a forma de inserção dos pais no múltiplos que têm nas trajetórias das mesmas. Este evento particular,
mercado de trabalho é essencial para perceber as condições de vida neste relato, precipitou a saída da escola e o ingresso no mercado de
das crianças, sendo o desemprego um dos grandes fatores de risco de trabalho, para obter alguma independência em relação ao pai.
pobreza nas famílias com filhos. A existência de baixos salários, tal
como relatado em algumas das narrativas, gera rendimentos desade‑ Entrevistado: Sim, uma coisa… Que foi quando morreu a minha fale‑
quados às necessidades de adultos e crianças. cida mãe.
Entrevistadora: Quando morreu a sua mãe quantos anos tinha?
Neste perfil, continua a ser possível identificar como fatores poten‑ Entrevistadora: Tinha treze anos.
ciadores de pobreza problemas de saúde dos adultos ou crianças, Entrevistadora: Treze anos, então ficou só com o seu pai?
a instabilidade no mundo de trabalho e a perda de um dos membros Entrevistado: Só com o meu pai.
significativos do agregado familiar, com consequências negativas para Entrevistadora: E acha que a partir daí ficou mais difícil a vida dentro
as crianças. de casa…
Entrevistado: Sim, porque, pronto… O que ela fazia… Arrumava a casa,
Os diferentes eventos, associados à instabilidade do mercado de fazia o que comer… O meu pai também ajudava e eu também, mas daí
trabalho e à incerteza de rendimentos dos adultos, são também
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comecei a amadurecer mais, comecei a trabalhar, comecei a ter a minha Neste perfil, o abandono precoce da escola, o ingresso enquanto
vidinha… Não ia estar sempre a depender do dinheiro do meu pai. criança no mundo de trabalho, em particular no agrícola em contexto
[…] Dele, pois. Foi quando eu comecei a trabalhar. Comecei a traba‑ familiar, a gravidez precoce, e ambientes familiares instáveis, são traços
lhar em carpinteiro. (P4.4_Guimarães#2, sexo masculino, 40 anos) caracterizadores, presentes nos restantes perfis, aparecendo pela
primeira vez o suicídio de um dos progenitores. É também observável
Uma das consequências mais visíveis traduz‑se no abandono do uma situação de institucionalização por ausência de rendimentos da
percurso escolar, como explicamos já nos perfis anteriores, para progenitora para cuidar dos seus filhos, reforçando a ideia das implica‑
poderem auxiliar a família implicando, em várias situações, o ingresso ções diretas da pobreza no presente e futuro das crianças.
no mundo de trabalho.
Como argumenta a EAPN (s.d.), as crianças são um grupo particular‑
Entrevistadora: Disse que passou bastantes dificuldades quando era mente vulnerável à pobreza e a grande preocupação não incide apenas
miúda. Lembra‑se de alguma situação grave que tenha afetado alguém sobre o número de crianças pobres, mas também sobre as consequên‑
da sua família? cias de viver na pobreza. De facto, os baixos rendimentos dos pais têm
Entrevistada: Lembro‑me de uma das minhas irmãs ficar muito um impacto negativo a curto prazo – através das condições de vida –
doente com uma pneumonia. E o meu pai não ter dinheiro nenhum assim como a longo prazo – pelas consequências no desenvolvimento
para o táxi para a levar para o hospital. Nem ter dinheiro para medi‑ integral das crianças.
cação. Meu avô – trabalhava nas terras, nas estufas – é que emprestou
dinheiro ao meu pai, para ir comprar. Porque a gente nem isso tinha. A emigração volta a ser, neste perfil, um fenómeno bastante presente,
E a minha avó… ajudava‑me muito mais o meu avô. produzindo diferentes consequências nas experiências de vida das
Entrevistadora: Falou que os problemas de saúde das suas irmãs crianças. Num dos casos, a conjugação entre a emigração do pai com
afetaram… Acha que afetaram a sua família? um evento de saúde incapacitante da mãe que cuidava das crianças,
Entrevistada: Elas não têm culpa, elas são doentes. Mas claro que precipitou a insuficiência de rendimentos e, neste caso específico,
sempre afeta. o processo de institucionalização de dois dos filhos. Estes factos são
Entrevistadora: Em que medida é que afetaram? relevantes, sobretudo quando pensamos nas consequências que apre‑
Entrevistada: Porque é assim, são miúdas que não são capaz de… sentam no futuro, especialmente na interrupção da escolarização e
Uma delas usa fralda. Não são capazes nem de tomar banho sozinhas. num acesso menos qualificado ao mercado de trabalho.
Tem que ter sempre alguém perto delas. (P4.3_PDelgada#1, sexo
feminino, 40 anos)
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9.2. Relação com o sistema educativo Noutras narrativas, e como havíamos já observado em perfis ante‑
riores, o desinteresse pela escola é frequentemente associado a pouco
Como temos vindo a afirmar ao longo dos diferentes perfis, a escola
sucesso durante o percurso escolar. Esta ideia de insucesso é também
assume um papel central na análise das trajetórias de pobreza, quer
referida por alguns dos entrevistados como sendo uma responsabili‑
nas experiências e nos percursos realizados, quer nas representações
dade individual por «não se ter cabeça» para a escola. A convivialidade
que os sujeitos lhe atribuem relativamente ao presente e ao futuro.
era vista de forma muito positiva mesmo que isso implicasse a fuga da
No atual perfil, os níveis de habilitações identificados são relativa‑
escola, à cultura escolar e a todas as obrigações que esta implica.
mente baixos, encontrando‑se em diferentes narrativas reprovações
ao longo do percurso, histórias de insucesso escolar, abandonos para Entrevistadora: Agora fale‑me um bocadinho do período em que
ajudar as famílias em situações de carência e necessidade (por exemplo, andou na escola. Até que ano é que andou na escola?
para cuidar de irmãos novos ou para ajudar no trabalho agrícola), entre Entrevistada: É assim, eu andei na escola só que a maior parte eu
outros fatores. Neste aspeto não se distingue dos perfis anteriores, fugia à escola. Eu gostava de andar atrás dos elétricos, de jogar à bola,
com a relativa exceção do Perfil 2, o dos Precários. de ir para o Bessa ver o Boavista a jogar!
Entrevistadora: E não ia à escola?
Tal como havíamos referido no ponto anterior, diferentes situações de
Entrevistada: Não ia à escola. (P4.5_Porto, sexo feminino, 48 anos)
vulnerabilidade dos agregados, como as referentes à instabilidade no
mercado de trabalho, têm efeito nas condições de vida das famílias e Em alguns casos, a interrupção dos percursos escolares aconteceu por
impactam, em medidas diferentes, na vida dos entrevistados. viverem entre Portugal e outros países, ou para auxiliarem o agregado
familiar, ingressando precocemente no mercado de trabalho, tal como
Apesar destas vivências, uma parte dos entrevistados recorda a escola
havíamos identificado já nos restantes perfis analisados. É também
como uma experiência positiva, sobretudo pela presença dos amigos e
possível encontrar neste perfil sujeitos que gostavam da escola e que
das brincadeiras.
tinham sucesso no percurso escolar, mas que o interromperam por
Entrevistadora: Hum. De que é que gostava mais na escola? motivos diversos – por exemplo, tornarem‑se cuidadores de membros da
Entrevistado: De brincar [risos]. família ou por necessidade de auxiliarem financeiramente as famílias.
Entrevistadora: Só de brincar é?! [risos] E dos colegas?
Entrevistadora: Agora relativamente ao período escolar, podia‑me
Entrevistado: Sim, sim.
falar um bocadinho da sua relação com a escola?
Entrevistadora: Tem boas recordações? Dos colegas, dos intervalos,
Entrevistada: Sim. Andei até ao sexto ano, sétimo incompleto, sempre
das brincadeiras?
tive boas notas, então a matemática sempre fui boa, ainda hoje faço
Entrevistado: Ai tenho, nos intervalos jogar futebol e essas coisas
contas de cabeça. Sempre foi boa por acaso.
todas. (P4.4._Porto, sexo masculino, 41 anos)
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Entrevistadora: Então andou até ao 6.º ano? Em três das narrativas, o abandono escolar associou‑se à gravidez
Entrevistada: Sexto, porque não acabei o sétimo. precoce que, como vimos no perfil anterior, frequentemente precipita
Entrevistadora: E que idade é que tinha? a saída da escola. No excerto abaixo, a entrevista associa o abandono
Entrevistada: Sinceramente, comecei a trabalhar com 14 anos, logo escolar à vergonha de ir grávida para a escola.
por isso devia ter 12/13 «aninhos» [quando terminou a escola].
Não, nunca reprovei. (P.4.3_Porto, sexo feminino, 39 anos) Entrevistadora: Claro. E porque é que abandonou a escola, depois aos
16 anos? Porque é que isso aconteceu?
Em alguns casos, como relatamos, essa vontade/necessidade surge Entrevistada: Porque depois eu conheci o pai dos meus filhos, engravidei
depois da perda de um dos adultos do agregado familiar, agudizando da minha filha e tive vergonha de ir para a escola, e nunca mais fui…
a necessidade de auxiliar a família. A morte de elementos das famílias Entrevistadora: Portanto, engravidou muito novinha?
apresenta‑se, assim, como um fator transversal a todos os perfis, assu‑ Entrevistada: Tinha 17 anos, ainda ia fazê‑los. (P4.5_Porto, sexo femi‑
mindo um papel central nas opções de vários entrevistados. nino, 48 anos)
Em muitos casos, a interrupção do percurso deveu‑se à vontade de se No entanto, e apesar destas circunstâncias, a maioria dos entrevis‑
tornarem mais independentes das suas famílias. Assim, em algumas tados reflete sobre o percurso de escolarização, assumindo que se
narrativas, a saída da escola não se deveu a histórias de insucesso ou de pudessem teriam continuado a estudar, e que o seu futuro poderia ter
pretensa falta de capacidade das crianças. sido melhor, ao nível do emprego e também da valorização pessoal.
Aqui, valorizam em particular um acesso mais qualificado ao mercado
Para outros entrevistados, a saída da escola acontece pelo facto de se de trabalho, e à possibilidade de ler e escrever melhor, algo que possi‑
terem tornado crianças cuidadoras de irmãos e de avós, de um modo bilitaria uma maior compreensão do mundo. Mesmo nos relatos de
mais expressivo que nos restantes perfis. No entanto, para outros maiores privações financeiras, que impossibilitaram a continuidade do
entrevistados, essa escolha foi forçada por condições familiares que percurso, alguns entrevistados sublinham a ideia de que gostavam de
exigiram a sua ajuda. Estas circunstâncias levam‑nos a pensar na neces‑ estudar e de aprender e do espaço de convívio e socialização da escola.
sidade de refletir de modo aprofundado nesta relação entre políticas
sociais de apoio às famílias, mas, também, no reforço das situações de Entrevistadora: Gostaria de ter continuado a estudar?
proteção às crianças, garantindo que possam permanecer na escola Entrevistado: Acho que se calhar se fosse hoje sim continuava, agora.
pelo maior período de tempo possível, garantindo o seu direito à Entrevistadora: Porquê?
educação e a melhores possibilidades de futuro. Entrevistado: Porque a pessoa agora a nível de emprego quem não
tiver um bocadinho de escolaridade não há quase nada, não é?
Na altura a pessoa não pensava, pensava que não.
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Entrevistadora: Nunca voltou a estudar depois disso? fatores que mais contribuem para esta situação são as baixas qualifi‑
Entrevistado: Não, não. (P4.2_VPAguiar_#2, sexo masculino, 49 anos) cações, o trabalho por conta própria, a baixa intensidade de trabalho
– mesmo que nesses agregados não existam crianças, mas a existência
É também possível encontrar algumas narrativas em que a associação de crianças agrava a situação –, a monoparentalidade ou a existência
entre mais escolaridade e melhores condições de vida não é feita pelos de famílias complexas, ou seja, agregados compostos por famílias
entrevistados, nomeadamente por terem tido diferentes experiên‑ alargadas ou mesmo famílias múltiplas com vários núcleos familiares
cias de insucesso na escola, associadas a desinteresse por um percurso (Delgado e Wall, 2014). Os dados do ICOR (INE, 2019) confirmam
escolar mais longo. Estes casos são frequentemente acompanhados da que os baixos salários praticados aumentam o risco de pobreza para
referência a situações de pessoas que, apesar de estudarem, não conse‑ empregados, na linha dos resultados encontrados por Costa et al.
guiram uma melhor profissão e vida. No entanto, e como verificamos (2008), em que mais de metade dos agregados pobres identificados
já em narrativas de perfis anteriores, esta associação entre mais esco‑ tinha como principal fonte de rendimento o trabalho e um número
laridade e uma vida melhor não implica que os entrevistados tenham muito significativo enquadravam trabalhadores por conta de outrem,
optado por ingressar novamente num percurso formativo. com contrato de trabalho. No perfil‑tipo destes trabalhadores figura o
Apesar de existirem oportunidades de emprego para pessoas com abandono precoce do sistema de ensino para ingressar precocemente
qualificações mais baixas, as suas perspetivas de integração no no trabalho, baixos salários e uma reprodução intergeracional dos
mercado de trabalho são relativamente desafiadoras, como se dá baixos níveis de qualificação escolar.
notícia neste livro. Acresce que as pessoas com níveis de qualificação Como temos vindo a referir, em relação aos outros perfis, a transição
mais baixos têm, tendencialmente, rendimentos inferiores e trabalhos para a adultez implica independência económica em relação à família
mais rotineiros (OCDE, 2019). Por outro lado, as desvantagens sociais de orientação, acontecimento que se pode associar à constituição
experimentadas no início da vida – em especial as ligadas a uma fraca de uma família procriativa. Neste perfil, as temporalidades e ampli‑
escolarização – também têm forte impacto nas oportunidades na vida tude das transições públicas – saída da escola e entrada no mercado
adulta (Feinstein e Bynner, 2004), quer para os sujeitos, quer para a de trabalho – e das transições privadas – autonomia residencial, união
própria prosperidade nacional (Machin, 2006). conjugal e parentalidade – não diferem substancialmente do que
observámos para o perfil dos Desempregados, mas há especificidades
9.3. Transição para a vida adulta que derivam das estruturas familiares encontradas e do número de
Portugal é um dos países sinalizados pela União Europeia onde o membros que as integram. Os agregados familiares neste perfil são
risco de pobreza dos trabalhadores é maior do que a média euro‑ muito numerosos e os entrevistados reportam‑se, frequentemente,
peia (Peña‑Casas, Ghailani, Spasova e Vanhercke, 2019), sendo que os a famílias de origem igualmente muito numerosas.
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Em termos genéricos, podemos referir que muitos dos inquiridos de que alguns eram vítimas. Para diversos entrevistados, o afastamento
transitaram precocemente para o mundo do trabalho para desempe‑ da escola decorre da necessidade de assumir funções de cuidadores
nhar atividades profissionais variadas, destacando‑se aqui ocupações informais de familiares, na sequência de separações e divórcios dos
profissionais na área da construção civil, agricultura, pesca e serviços. progenitores e porque nas áreas onde residem se denota a escassez
As razões invocadas para o abandono escolar e a inserção precoce no de infraestruturas de apoio aos cuidados a crianças e idosos, a custos
mercado de trabalho – como vimos no ponto antecedente – relevam, comportáveis para as famílias mais fragilizadas. Há ainda entrevistadas
à semelhança do que acontece com os outros perfis, da necessidade que abandonam a escola e se sentem compelidas a uma integração
de contribuir para a sobrevivência do grupo familiar, dadas as enormes profissional precoce, na decorrência de transições precoces para a mater‑
fragilidades económicas das famílias de origem e a importância que, nidade e conjugalidade, realizadas ainda enquanto adolescentes.
face à exiguidade dos rendimentos disponíveis, o contributo do
trabalho do menor assume para o orçamento doméstico: O abandono precoce e desqualificado do sistema de ensino justi‑
fica que, enquanto adultos, e após algumas experiências laborais,
Entrevistado: eu deixei a escola tinha 11 anos. reingressem em processos de educação e formação; acresce que
Entrevistadora: porque é que deixou a escola? na trajetória profissional destes inquiridos muitos experienciaram
Entrevistado: Eu deixei a escola, portanto, acabou e como outros, episódios mais ou menos prolongados, e alguns reincidentes,
naquele tempo eu tinha de trabalhar… de desemprego, o que também justifica as trajetórias de formação
Entrevistadora: Alguma vez reprovou de ano, naquela altura? Perdeu posteriores.
algum ano?
Entrevistado: Perdi duas vezes. Num contexto de crescimento do desemprego, bem como de maiores
Entrevistadora: Porque é que acha que isso aconteceu? dificuldades de financiamento das políticas sociais, as políticas passivas
Entrevistado: É como eu disse. Aconteceu porque eu tinha de ajudar de subsidiação do desemprego passam a ser substituídas, a partir dos
o meu pai e depois não tinha tempo para estar em casa a fazer as anos 90, por propostas que valorizam a reintegração dos desempregados
coisas da escola e estudar. no mercado de trabalho, entendendo‑se que o trabalho é um aspeto
(P4.2_PDelgada#2, masculino, 49 anos) crucial da integração social dos indivíduos e de realização pessoal. Estas
políticas pressupõem que o desemprego resulta de deficits de formação,
A par das situações de enorme fragilidade económica no contexto pelo que se procura aumentar a «empregabilidade» através da inserção
familiar, a transição precoce para o mundo do trabalho também surge em programas de formação, pressupondo‑se que o desemprego é um
justificada pelas enormes dificuldades de integração na comunidade problema de ausência de qualificação suficiente para o exercer e não um
escolar, quer por via dos insucessos precoces e cumulativos, quer por via fenómeno gerado pela forma como os sistemas económicos e políticos
das dificuldades de relacionamento com os pares e da violência escolar têm conduzido o processo de modernização das economias.
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As perspetivas enunciadas acerca destes processos de formação são problema que as solidariedades familiares permitem minorar, através
muito similares às observadas no perfil dos Desempregados: 1. para da cedência de espaço para habitação por parte dos progenitores. Aliás,
alguns, o reingresso em processos formativos deriva do analfabetismo são estas solidariedades familiares, presentes em diferentes momentos
funcional que evidenciam na sequência de um abandono precoce das trajetórias dos indivíduos, e que se estendem a vários membros
e desqualificado da escola, sem terem desenvolvido competências da família alargada, que permitem perceber, por um lado, a elevada
básicas que permitem a funcionalidade social, situação que torna densidade ocupacional das habitações e, por outro, que muitos destes
complexa e difícil, na perspetiva dos inquiridos, a inserção na própria indivíduos escapem a processos complexos de privação material severa
formação; 2. outros salientam o carácter compulsivo destas forma‑ e de exclusão social:
ções e a forma como foram coagidos, através das estruturas oficiais,
a enveredar por formações nem sempre significativas tendo em conta Entrevistadora: Ok. E aí foi aí que saiu de casa então? Saiu de casa
a sua experiência de vida; 3. outros destacam a irrelevância dos cursos para ter uma família?
frequentados na reconversão profissional e na criação de oportuni‑ Entrevistado: Não. Nunca saí de casa.
dades de emprego, apesar das elevadas expectativas que lhes foram Entrevistadora: A sua mulher foi viver consigo na sua casa?
criadas aquando da seleção para a frequência da formação; 4. outros, Entrevistado: Foi viver comigo.
ainda, relevam o lado convivial que a formação permitiu e a oportuni‑ Entrevistadora: Com os seus pais?
dade de criação de redes de sociabilidade que obstam ao isolamento Entrevistado: Com os meus pais, sim. Depois, mais tarde, reunimos
social que a situação de desemprego produz. Em regra, estas formações e decidimos comprar uma coisinha aqui nas Caldas. (P4.2_Caldas da
não têm impacto na sua trajetória profissional. Rainha, masculino, 51 anos)
As transições familiares destes entrevistados originam uma diversi‑ As dificuldades de acesso a bens essenciais à sobrevivência, como
dade de formas de estruturação das relações afetivas e de corresidência, uma habitação, decorrente da instabilidade contratual das atividades
salientando‑se a existência de agregados familiares muito numerosos, profissionais, é recorrente numa parte muito expressiva de discursos,
com um número muito significativo de crianças, jovens e adultos depen‑ salientando‑se como esta questão pode gerar situações de endivida‑
dentes de um número muito limitado de provedores, o que constitui um mento que dificultam a gestão do quotidiano e produzem instabilidade
fator de aprofundamento da vulnerabilidade social destes agregados. emocional. Dito de outra forma, as dificuldades financeiras que
perpassam a vida destas pessoas afetam os processos de transição
Também se denota que, por vezes, a autonomização residencial é familiar. Alguns enfatizam a conflitualidade relacional presente na
posterior à transição para a conjugalidade e para a parentalidade, relação conjugal, as dificuldades inerentes à educação dos filhos
situação decorrente do facto de as restrições económicas sentidas pela concentração das responsabilidades parentais apenas num dos
pelo jovem casal o impedirem de ter acesso a uma habitação própria,
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progenitores, ou o impacto económico profundo que a interrupção da 9.4. Relação com o mundo do trabalho
relação conjugal provoca nos agregados familiares:
Neste ponto analisamos a relação com o mundo do trabalho num
Entrevistadora: Antes de passarmos a outro assunto, como é que a contexto em que esta é central na definição do perfil, como a sua
separação afetou a sua vida? própria designação indica. Todos os entrevistados desenvolvem uma
Entrevistada: A minha separação afeta a minha vida de todas as atividade laboral e todos se integram em agregados familiares onde o
maneiras e feitios. Para já, é já não ter um membro da família, mas trabalho é a principal fonte de rendimento familiar.
querer inseri‑lo e querer educar ainda melhor do que tivesse uma
A forma como ingressaram no mercado laboral foi, em regra, precoce e
família normal. Os meus filhos nunca deixaram de ter pai, mas eu fui
com baixa escolaridade, não se distinguindo, neste aspeto, dos entrevis‑
pai e mãe, eu é que eduquei, à mesa é que se dá educação. (P 4.5_
tados dos restantes perfis, como vimos nos pontos anteriores (e com a
Serpa, feminino, 51 anos)
relativa exceção de uma parte dos casos do Perfil 2, Precários). No que
Nalguns casos a parentalidade surge como um projeto cuja concre‑ respeita às trajetórias de emprego, releve‑se, em primeiro lugar, que as
tização se planeia e constitui um fator de realização pessoal, sendo suas estratégias de acesso ao emprego, em especial ao primeiro emprego,
particularmente enfatizada a ligação emocional com a descendência. tiveram por base, essencialmente, a mobilização de redes de relaciona‑
Mas na maioria dos depoimentos salienta‑se a forma como o nasci‑ mento, também aqui como nos restantes perfis, fica claro o importante
mento dos filhos aprofunda a situação de vulnerabilidade económica, papel que os familiares desempenharam nessa instância. Existem alguns
interfere e interrompe projetos de vida, obstaculiza processos forma‑ casos de iniciativa própria que sublinham a escassez de recursos dos
tivos. À semelhança do que se observou nos outros perfis, algumas indivíduos nessa busca, dado que se limitam às possibilidades existentes
pessoas referem ter abandonado o mercado de trabalho, ou passado na vizinhança. Aqui está em causa um efeito de contexto, dado que se o
a recorrer ao trabalho exercido a tempo parcial, para se ocuparem de território circunvizinho não apresentar ofertas de emprego, as possibili‑
crianças, sendo esta uma ação assumida tanto por homens quanto dades dos entrevistados ficam substancialmente limitadas. Esta situação
por mulheres. Ora esta questão coloca em cena, uma vez mais, as limi‑ é mais provável em meio rural. Por outro lado, existem três casos de
tações das políticas de conciliação trabalho‑família em Portugal, concurso público, algo que, pela sua raridade e em contraste, sublinha a
na medida em que a inexistência de infraestruturas de apoio aos grande informalidade das contratações.
cuidados à infância, a custos acessíveis para estas famílias, obriga a que
É em relação aos vínculos laborais que este perfil se distingue forte‑
o cuidador se sinta coagido a abandonar o mercado de trabalho ou
mente dos restantes. Mais de metade dos entrevistados encontrava‑se
trajetos de educação e formação.
em situação de contrato sem termo no momento da entrevista. Este
primeiro facto, por si só, é muito relevante para se compreender que
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a situação de pobreza não deriva exclusivamente de uma trajetória de Entrevistadora: E faz quanto tempo que está nessa?
emprego em carrossel onde a precariedade, a informalidade, o desem‑ Entrevistado: Entrei em 2000, tamos em 2019… 19 anos. (P4.4_
prego e as atividades intermédias entre emprego e desemprego Guimarães#2, sexo masculino, 40 anos)
campeiam. Encontramos, pois, uma parte das razões da pobreza nos
baixos salários dos próprios, dos seus cônjuges (quando é caso disso) e Alguns dos entrevistados em apreço passaram de uma situação de
nas estruturas familiares. trajetória de emprego em carrossel para uma situação de estabilidade
laboral sem que deixassem de ser pobres. Dois casos são também
Entrevistado: Saí e fui trabalhar para XXXX [Nome de Aldeia], para uma significativos, dado que apesar de estarem formalmente em situação
fábrica de calçado, Fábrica de Calçado do XXXX. Trabalhei lá onze anos. de estabilidade laboral as suas situações concretas desafiam essa
Entrevistadora: Onze anos? perceção. Quer dizer, é possível estar juridicamente em contrato sem
Entrevistado: Aí já tinha descontos, já tinha tudo. termo e, ao mesmo tempo, encontrar‑se, na prática, em situação de
Entrevistadora: Então quando entrou para lá já era um emprego com instabilidade, no limite, de precariedade.
os descontos, com direito a tudo?
Entrevistado: Sim. Depois, fui para a tropa. Fui para Braga. Outros ainda passaram de uma situação de estabilidade laboral e
[…] de não pobreza para uma situação de trajetória de emprego em
Entrevistadora: Daí foi para a tropa e depois? carrossel, onde se releva a precariedade e os baixos rendimentos do
Entrevistado: Depois vim e pedi aumentos e ele: «ai, vou falar com trabalho. Estes casos, conjugados com casos vistos em perfis ante‑
o engenheiro, vou falar com o engenheiro.» E nunca se chegaram riores, permitem um vislumbre para um público não abrangido neste
à frente. Muito bem, não se chegaram à frente. O meu falecido pai estudo: os vulneráveis. Isto é, estamos a falar dos indivíduos que não
soube que [inaudível] dava‑me muito bem com ele que já fez obras. são pobres, mas aos quais basta um acidente de percurso (relembremos
Como ele é trolha fez obras lá no falecido pai dele e foi falar com ele os três D da pobreza: Divórcio, Desemprego e Doença) para os atirar,
e ele pronto: «ele que amanhã que apareça aqui». Mas nem meti carta e às suas famílias, para esta situação. Trata‑se de uma categoria social
de despedimento na outra fábrica nem nada. Isto foi uma quinta que aqui se sublinha e que urge analisar. Retomaremos este assunto na
‑feira e na segunda‑feira arranquei logo para a outra fábrica. Perdi conclusão geral do livro.
os direitos da outra fábrica, que eram onze anos. Mas uma parte significativa dos entrevistados deste perfil está em
[…] trajetória de emprego em carrossel, verificando‑se aqui todas as
Entrevistadora: Saindo dessa empresa de calçado o senhor já foi para características definidas nos perfis anteriores: informalidade, precarie‑
essa empresa onde está hoje? dade, baixos salários, desemprego, zona intermédia entre emprego e
Entrevistador: Até hoje.
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desemprego, multiplicação do tipo de atividades desenvolvidas e cons‑ conseguem definir‑se a partir do nome de uma profissão, se bem que
tância na sua desqualificação. continuem a verificar‑se casos em que isso é manifestamente difícil
para os indivíduos, preferindo definir‑se a partir da descrição das ativi‑
Se é verdade que todos os entrevistados estavam a trabalhar aquando da dades realizadas. Em dois casos estas atividades não configuram uma
realização da entrevista, muitos passaram por períodos de desemprego. profissão, dada a sua desqualificação. Interpretamos esta dificuldade
A análise das suas declarações sobre estes períodos permite concluir que como um indicador, precisamente, da desqualificação social das ativi‑
uma parte importante indica não ter qualquer dificuldade em encontrar dades que desenvolvem, algo que dificulta a sua identificação como
trabalho. Esta constatação, embora referente a um número reduzido de trabalhadores (recordemos, num número reduzido de casos).
entrevistas, difere do que se passa nos perfis anteriores. Não é surpreen‑
dente, os entrevistados têm emprego, em contraste com a maioria dos Os valores que os indivíduos associam ao trabalho configuram uma
casos dos perfis relativos aos Precários e aos Desempregos. determinada identidade social como trabalhador, baseada em valores
extrínsecos, ligados ao trabalho conformado, em esforço, penoso.
Entrevistadora: Depois está tudo bem. E já me explicou que não Gosta‑se do trabalho porque é o que se tem, porque tem de se gostar.
sentiu dificuldades em arranjar emprego… Só em três casos se identificam discursos que associam o trabalho
Entrevistada: Não, eu não. a valores intrínsecos, isto é, à valorização de si, à realização pessoal
Entrevistadora: Em nenhum momento da sua vida… através do trabalho83. Salientamos a ideia de que o trabalho é algo que
Entrevistada: Não, não. (P4.1_Almada, sexo feminino, 45 anos) serve para se ganhar um salário, para se sustentar os filhos, presente
Para além de questões mais objetivas relacionadas com a vinculação, em boa parte das entrevistas.
a trajetória e o desemprego, encontramos nas entrevistas questões […] Pelo menos para arranjar um emprego melhor, porque o meu
mais subjetivas, associadas à identidade social dos indivíduos, isto é, emprego é um trabalho cansativo, é um trabalho honesto. Porque
à identidade que pretendem construir para si e para os outros, tran‑ estou, porque estou a viver do meu suor, trabalhar para ganhar o que
sação identitária na linguagem de Dubar (1991). eu ganho, mas se eu tinha escola, não estava neste trabalho, não é um
Neste perfil, e em contraste com os anteriores, os indivíduos quase trabalho, é um trabalho para sobreviver, não é para viver. É um venci‑
não se definem em relação ao trabalho como doentes e, quando o mento tão baixo, que pronto, que se a senhora não tem outro ramo
fazem, é mais no sentido de sublinhar o esforço de trabalhar em para pegar, tem que conformar, mas não é porque é um vencimento
situação de penosidade provocada pela doença do que de justi‑ que dá para viver, a pessoa sobrevive porque leva vida de maneira do
ficar uma relação mais lassa com o mundo do trabalho. É também vencimento. Se eu tinha escola hoje não estava neste trabalho.
neste perfil que podemos encontrar mais casos de entrevistados que […]
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Trabalho umas horas, metade parte de manhã e outra metade da parte noutros estão em causa processos migratórios de indivíduos da sua
da tarde, vai duas vezes trabalhar. Muda de sítio, parte de manhã família – como cônjuges, filhos, irmãos ou mesmo um progenitor – e da
trabalha ao pé, e parte de tarde trabalha mais longe. sua rede de amizades próximas.
Trabalho porque eu preciso, é tudo sacrificado, a senhora tem que
sacrificar para fazer. É tudo cansativo, é tudo a correr, a despachar, Enfim, em regra os entrevistados deste perfil têm uma relação próxima
é tanto trabalho, na pouca hora de serviço. Depois a senhora fazer com o mercado de trabalho, na maior parte dos casos mesmo muito
assim devagar, para fazer coisas devagar, a senhora não consegue próxima, vivida por muitos em situação de longos períodos em
fazer as coisas como deve ser, a senhora tem que correr, para cima contratos sem termo. Mas isso não os impede de serem pobres e de se
para baixo, fazer tudo à pressa. Pode ficar serviço mais ou menos, verem a si próprios como trabalhadores a partir de uma conceção do
senão fosse assim, fica a sujeira nos cantos. trabalho como sacrifício.
À tarde faço quatro horas e meia e de manhã faço três horas e às vezes 9.5. Autoperceção do percurso, comparação
quatro horas. Tudo para a mesma empresa. (P4.1_Amadora#1, sexo da vida presente com a passada
feminino, 58 anos)
Na grande maioria dos casos, as pessoas entrevistadas não manifes‑
taram qualquer hesitação na consideração de que os rendimentos de
Finalmente, releve‑se que a emigração é um assunto abordado nos que dispunham não eram suficientes para as suas necessidades. No
discursos. Isso verifica‑se mesmo tendo em consideração que não há seu discurso a privação fica, sobretudo, implícita (ao contrário do
qualquer pergunta que a sugira no Guião de Entrevista. A emigração é que acontece noutros perfis em que aparece de forma mais explícita)
um escape à pobreza que resultou para uns, mantêm‑se emigrados, mas e perpassam estratégias de gestão dos rendimentos disponíveis que
não para os nossos entrevistados. É também de relevar a imigração. entram em conta com essa dimensão. O rendimento, subjetivamente
É neste perfil que podemos encontrar o maior número de imigrantes e designado como insuficiente, é objetivamente tornado suficiente,
seus descendentes. Nestes casos, a pobreza também não foi superada afirmando muitas pessoas adaptar o seu consumo ao rendimento efeti‑
pelo processo migratório. vamente disponível.
De notar que a emigração é um tema que, de uma forma geral, Com orçamentos geridos permanentemente «no fio da navalha»,
vai perpassando os discursos dos entrevistados nos vários perfis, é óbvio que qualquer despesa extraordinária, ainda que para bens
no entanto, e considerando que não há questões específicas, essenciais, pode representar um desequilíbrio difícil ou mesmo impos‑
as menções não são muito aprofundadas. Pouco mais permitem do que sível de corrigir. Tal como referem (Halpern‑Meekin et al., 2015)
perceber que, em alguns casos, existem experiências migratórias e que «algumas pessoas conseguem demonstrar uma disciplina financeira
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assinalável […] apenas para se depararem com uma descida imprevista com o abono de família) representavam complemento importante do
de rendimento ou uma despesa inesperada que corrói os seus fundos». rendimento do agregado. Deve notar‑se também, porém, que estes
(Halpern‑Meekin et al., 2015, p. 150). Este input da literatura fica acabavam por funcionar como substitutos (parciais) do rendimento
perfeitamente ilustrado no discurso de uma entrevistada em Serpa. perdido por parte do companheiro (pai da criança), que se desem‑
pregou para ficar a cuidar do filho (deficiente). Nesse contexto, não
Nunca! Eu, este mês, fui ao mercado comprar alguma roupa para mim, só o rendimento do agregado diminuiu como a despesa aumentou,
30 euros gastos a mais, que me ficaram a fazer tanta falta! Eu estava associada à situação de deficiência, atirando esse agregado para uma
a dizer isso mesmo à minha amiga. É impressionante como é que situação de inequívoca maior vulnerabilidade à pobreza.
30 euros me ficaram a fazer falta desta maneira! (P4.5_ Serpa, sexo
feminino, 51 anos) Noutros casos, apenas se consegue um maior equilíbrio financeiro
devido ao autoabastecimento, à realização de biscates, conceito agre‑
Relembre‑se, a este respeito que, de acordo com os mais recentes gador de «modalidades múltiplas de luta pela vida» (Machado Pais,
dados divulgados pelo Eurostat (relativos a 2018), duas em cada três 2003) ou ao recurso a receitas «extraordinárias» (Halpern‑Meekin et al.,
pessoas em situação de pobreza manifestaram a sua incapacidade em 2015), entendidas pelos indivíduos como asseguradas, em concreto os
fazer face a despesas inesperadas, o que se compara com cerca de subsídios de férias e de Natal.
duas em cada sete pessoas fora de uma situação de pobreza. Realce‑se,
ainda, que este valor representa uma ligeira descida face ao pico regis‑ Do discurso de inúmeras pessoas entrevistadas ressalta a estratégia, já
tado durante os anos da anterior crise (70,9 % em 2013 e 2015), mas mencionada a propósito de outros perfis, de fazer o dinheiro «esticar»
também uma subida assinalável face ao registado em 2007, antes dessa tanto quanto possível (Daly e Kelly, 2015; Halpern‑Meekin et al.,
situação de crise se ter declarado: 43,1 %. 2015). Esta expressão, a par de outras, como por exemplo a necessi‑
dade de efetuar «manobras muito grandes», ou mesmo a utilização
Os relatos de algumas pessoas evidenciam a importância da ajuda por de uma expressão como «não como bife todos os dias», permitir
parte de outrem no evitar que as situações se tornem (mais) insusten‑ ‑lhes‑á, de alguma forma, sentir que detêm algum controlo da situação
táveis. Da mesma forma, outras pessoas salientaram a importância do (Dominy e Kempson, 2006; Finch e Elam, 1995), ao contrário do que
abono de família e de outras prestações sociais para o equilíbrio do acontece com expressões mais consentâneas com desesperança.
orçamento familiar. Noutros casos ainda, e tal como noutros perfis, a estratégia para fazer
Note‑se, a este respeito, a situação particular de uma entrevistada, face à insuficiência de recursos passa pela gestão (possível) de dívida
para quem os montantes recebidos com uma bonificação por depen‑ contraída, muitas vezes «roubando a Pedro para pagar a Paulo» (Tach
dência e um subsídio por assistência de terceira pessoa (em conjunto e Greene, 2014).
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Na maioria dos casos, as pessoas entrevistadas não manifestaram qual‑ todos os dias. Mas envergonho‑me, é humilhante! […] A minha vida
quer dificuldade em identificar momentos da vida em que sentiram, teve altos e baixos e já esteve melhor do que agora. Quando me separei
de forma mais evidente, que os seus rendimentos não eram suficientes. – e eu estou há 17 anos sozinha – eu conseguia pagar uma casa e agora
Num conjunto alargado de casos foram relatadas situações em que foi não consigo. […] Tenho trabalhado tanto e eu não consigo sequer ter
experienciada privação sendo, amiúde, feita menção à forma como essa um teto, portanto pior do que isto… Isto é trabalhar para aquecer! Não
privação afetou as crianças do agregado, e ficando igualmente evidente tem outro nome! (P4.5_ Serpa, sexo feminino, 51 anos)
que, em muitos casos, apesar dos esforços do progenitor, o(s) filho(s)
vão tomando consciência das dificuldades vividas. Aliás, os discursos Parece importante, neste ponto, evidenciar um outro caso concreto.
de algumas pessoas acabam mesmo por ser ilustrativos da transmissão Não se trata aqui de identificar elementos desencadeadores da pobreza
da pobreza ao longo das gerações. em sentido restrito, na medida em que a situação de vulnerabilidade
ao longo da vida parece evidente, mas antes identificar momentos que
Quando era criança, desde cedo percebi que vivíamos com dificul‑ representaram o desequilibrar das situações e a entrada, de forma mais
dades. É como os meus filhos, eles vão‑se aperceber das dificuldades! notória, na pobreza.
(P4.4_Serpa, sexo masculino, 28 anos)
Trata‑se de um entrevistado que, até quatro meses antes da entrevista,
Merece, ainda, destaque o discurso de uma outra entrevistada que recebia cerca de 1000 euros mensais pelo trabalho desempenhado.
«coloca o dedo na ferida», quando diz que a sua situação de pobreza, No entanto, esse valor era composto por um salário‑base equivalente
estando a trabalhar, não a envergonha a si mas antes ao país refletindo, à retribuição mínima mensal garantida – 600 euros mensais em 2019 –,
em simultâneo, e ainda que inadvertidamente, acerca da sua situação ao que acrescia o pagamento de horas extraordinárias. A paragem da
enquanto trabalhadora pobre. obra de construção em que se encontrava envolvido levou a que sua
empresa entrasse em regime de lay‑off, ficando a receber apenas dois
Residindo numa habitação emprestada por uma amiga, revela cons‑ terços do seu salário‑base, ou seja, cerca de 400 euros mensais, o que
ciência de que a sua situação habitacional, embora vantajosa no curto conduziu a alterações significativas na vida deste agregado.
prazo, se reveste de grande precariedade podendo, ainda, representar, Ficam aqui, pois, patentes, uma vez mais, as implicações de algo que
em caso de alteração no médio‑longo prazo, um claro elemento de continua a caracterizar parte do mercado de trabalho nacional: as dife‑
risco acrescido. renças entre valores de remuneração‑base e ganho médio mensal.
Lembro‑me todos os dias, todos os meses. É raro o mês em que eu não Os momentos mais marcantes em termos de perceção da insuficiência
tenha de recorrer à reforma dos meus pais. Isto é vergonhoso! É uma dos rendimentos fundem‑se, em muitos casos, com a recordação
vergonha para o país! Eu não tenho de ter vergonha porque eu trabalho
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dos momentos mais difíceis experienciados ao longo da vida. Assim, ainda, que algumas pessoas, poucas porém, associaram os aspetos posi‑
os momentos mais difíceis na vida identificados pelos respondentes tivos sobretudo ao facto de terem saúde.
disseram respeito, sobretudo, à doença, muitas vezes associando‑se a
ou desencadeando outras vulnerabilidades. Apesar de todas as dificuldades evidenciadas, a maioria das pessoas
entrevistadas afirmaram que a sua vida, no momento da entrevista,
Duas situações específicas ajudam a ilustrar a importância disruptiva era melhor do que no passado. O trabalho foi referido, por algumas,
do surgimento de problemas de saúde e das implicações que tiveram como elemento preponderante. Outras mencionaram aspetos relacio‑
na situação face ao emprego e também face à pobreza. Em ambos os nados com a componente familiar, com a habitação, com a saúde e com
casos, foram os maridos das entrevistadas a confrontarem‑se, de forma melhorias percecionadas ao nível da forma de estar.
mais direta, com a situação, em contexto de emigração e ainda muito
cedo na vida. No primeiro caso, um acidente de trabalho aos 30 anos Outras pessoas, ainda, apontaram um maior equilíbrio entre rendi‑
de idade, que o deixou em situação de dependência face a terceira mento e despesas, sendo de salientar que foram mais os casos
pessoa; no segundo caso, um enfarte aos 37 anos de idade, que o levou expressos de diminuição de despesa do que de aumento de rendi‑
a solicitar reforma por invalidez. mento. Foi essa a situação concreta de um entrevistado que viu
alguns dos sobrinhos, por quem foi responsável desde pequenos,
O desemprego, o processo de autonomização em relação ao agregado autonomizarem‑se e também a de uma entrevistada para a qual o
parental, a instabilidade e/ou rutura familiar e mesmo a vivência de maior equilíbrio advinha do facto de a filha mais nova ter, entretanto,
uma situação de sem‑abrigo foram outros momentos assinalados. deixado de ser bebé, deixando de ser necessário comprar produtos
específicos como fraldas ou determinado tipo de leite.
Já os aspetos mais positivos da vida foram associados sobretudo à
componente familiar. Em alguns casos, poucos, as pessoas referiram‑se Poucas foram as pessoas que referiram um percurso mais marcado por
ao relacionamento afetivo em que se encontravam. Foram, no entanto, altos e baixos e poucas também as que consideraram ter a sua vida
os filhos que ocuparam o lugar de maior destaque originando, por ficado na mesma ou piorado. Na génese desta última opinião radica
vezes, discursos repletos de emoção. a comparação que é estabelecida entre a vida no momento da entre‑
vista e momentos de vida de não autonomização. Porém, mesmo
A dimensão do trabalho foi também referida, mas apenas por algumas nesses casos, parece sobrevir uma tomada de consciência de que tal
pessoas, havendo ainda quem referisse uma experiência migratória, «melhoria» era, de alguma forma ilusória e apenas explicada pelo facto
considerada como tendo trazido responsabilidade e autonomia, a luta de não terem, nessa altura, ainda sido dados os passos em direção à
travada e vencida contra a dependência de estupefacientes e, de uma autonomização agora existente.
forma mais geral, o conseguir ir lutando e levando a vida. De realçar,
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9.6. Sistemas de proteção social e redes determinantes da pobreza no plano individual parecem residir no
de solidariedade informal efeito conjugado dos fatores institucionais de regulação dos salários,
como o salário mínimo, e das baixas qualificações escolares associadas
No estudo de Halleröd et al. (2015), desenvolvido a partir da base
ao tipo de empregos socialmente desvalorizados que exercem. Mas
de dados EU‑SILC, os autores argumentam que a evidência empí‑
residem igualmente nas estruturas familiares em que se integram, nas
rica revela, à semelhança de estudos anteriores, que a relação entre
quais a existência de crianças, de filhos adultos ou outros membros
baixos salários e pobreza no trabalho é fraca, enquanto a relação
adultos desempregados ou inativos, por regra sem proteção social
entre falta de emprego e pobreza é forte, sustentando que a atenção
no desemprego, tornando os rendimentos do trabalho baseados num
deve focar‑se no desemprego, no emprego precário de curto prazo e
único ganhador (ou provedor) insuficientes para retirar estas famílias
no padrão de proteção, duração e condicionalidade dos regimes de
do limiar da pobreza. No que respeita ao subgrupo dos TLI acrescem,
proteção social, com relevo para as prestações sociais no desemprego
além do impacto da alternância emprego/desemprego ou programas
(p. 484).
ocupacionais ou ainda inatividade na condição pobreza e privação,
De acordo com os dados recolhidos no nosso estudo, verifica‑se a o trabalho temporário e a variabilidade do salário auferido por via da
existência de dois subgrupos com dimensão e características distintas natureza sazonal ou não regular em atividades na agricultura e pescas.
e contrastantes. Na grande maioria dos trabalhadores pobres entre‑
A análise dos resultados apurados permite‑nos compreender com maior
vistados a situação no emprego, e particularmente a sua trajetória
profundidade o modo como o equilíbrio/desequilíbrio entre necessi‑
laboral, caracteriza‑se por uma relação de trabalho estável com vínculo
dades, recursos e restrições na família determina a situação de pobreza
de longa duração (Trabalhadores Pobres com Trajetórias Laborais
no trabalho. As famílias de pertença dos entrevistados apresentam uma
Estáveis – TLE). Um outro subgrupo, com menor expressão, apre‑
dimensão superior ou muito superior à dimensão média dos agregados
senta trajetórias caracterizadas pela instabilidade e rotação entre
domésticos em Portugal, que era, em 2018, de 2,5 indivíduos (Pordata,
empregos precários, desemprego e programas ocupacionais ou inativi‑
2020), e um número maioritário de famílias numerosas (com três ou mais
dade (Trabalhadores Pobres com Trajetórias Laborais Instáveis – TLI)
filhos), se tivermos em consideração quer o número de crianças, quer o
na linha do que Diogo e Freitas (2014) designam de Trajetórias de
de filhos maiores, estudantes ou ativos que as integram. Filhos com defi‑
Emprego em Carrocel.
ciência ou crianças pequenas, requerem, em algumas situações, cuidados
A consideração das trajetórias laborais, sendo relevante numa análise familiares específicos e o exercício do papel de cuidadores principais
dinâmica da pobreza no trabalho, não se revela suficiente para dar informais por membros da família, acompanhado de desemprego volun‑
conta da multidimensionalidade dos fatores que produzem e repro‑ tário ou inatividade, quer por impossibilidade de conciliação do trabalho
duzem a condição de pobreza entre os trabalhadores. Assim, os fatores com este papel familiar, quer por decisão de natureza económica no
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balanço custo‑benefício face a outras alternativas de cuidados, ou face à quer pelos critérios de elegibilidade observados no acesso a estes
limitação da oferta de serviços de apoio à família nos contextos territo‑ direitos sociais, revelando que as políticas de proteção no desemprego
riais em que estas famílias vivem. em Portugal não acompanham a crescente precariedade e o aumento
de relações de trabalho atípicas. Estes indivíduos estão, portanto,
O estudo evidencia que os membros desempregados nestas famílias ao abrigo do apoio das redes informais de solidariedade familiar cons‑
não são beneficiários do subsídio de desemprego, o que revela que as tituídas pelos seus pais (aqui entrevistados), podendo colocar‑se a
trajetórias laborais estáveis que se observam para a maioria dos seus hipótese de que constituem boa parte dos estudantes e desempre‑
pais, ou outros familiares no caso das famílias alargadas, estas em gados entrevistados no Perfil 2, como temos vindo a referir.
número residual, coexistem com trajetórias laborais instáveis intrafa‑
miliares, que condicionam o acesso à proteção social no desemprego, Constata‑se igualmente que o Rendimento Social de Inserção enquanto
e reforçam a importância das oportunidades de emprego como meio última rede de segurança na ausência de proteção no desemprego por
de ampliar o número dos membros angariadores de rendimento dos parte da rede ocupacional não é adequado para exercer este papel
agregados familiares, sublinhando a relevância da situação do emprego protetor, revelando‑se sobretudo eficaz na redução da intensidade da
no seio do agregado familiar, considerando o que se poderá designar pobreza. Contudo, o acesso dos trabalhadores pobres a esta prestação
de desemprego familiar. A posição combinada no mercado de trabalho social de garantia mínima de rendimentos está limitado de forma muito
dos membros do agregado familiar assume assim uma particular rele‑ acentuada, considerando que os seus rendimentos familiares, em regra,
vância. No entanto, como o presente estudo revela, a existência de um colocam‑nos acima do limiar do direito a esta prestação.
duplo ou múltiplo provedor de rendimento não é condição suficiente
para a superação da pobreza, dependendo esta quer da dimensão do O regime de proteção social dos trabalhadores afetados por doenças
agregado e das suas necessidades, quer igualmente dos níveis salariais profissionais e o regime de reparação de acidentes de trabalho apre‑
auferidos, do regime de trabalho a tempo integral, parcial ou sazonal, sentam‑se como vetores importantes no âmbito das políticas públicas,
e dos mecanismos fiscais e de proteção social. verificando‑se situações com impacto muito significativo na vida
destes trabalhadores e das suas famílias, que podem estar na base da
No caso dos entrevistados abrangidos pelo presente estudo, o nível desestruturação das condições de vida e empobrecimento. No que
de proteção proporcionado pelas redes de proteção ocupacional e se refere às doenças profissionais, uma das dificuldades prende‑se
universal na compensação da perda ou ausência dos rendimentos do com o reconhecimento da doença que afeta o trabalhador, como
trabalho por motivo de desemprego é muito pouco significativo, quase doença profissional, ou como tendo sido provocada pelas condições
ausente, entre os trabalhadores pobres entrevistados e seus familiares, de trabalho. No que respeita ao regime de acidentes de trabalho,
explicável quer pela existência de uma parcela significativa de jovens a responsabilidade recai nos empregadores, dando lugar a frequentes
sem experiência de trabalho e, portanto, excluídos desta proteção, situações de desproteção por negligência ou irresponsabilidade
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patronal, ou a litígios entre os trabalhadores e as entidades patro‑ Maioritariamente são expressas apreciações críticas, mas registam‑se
nais e/ou companhias de seguros para obter a devida reparação em igualmente avaliações positivas dando testemunho do apoio quer de
processos em regra de longa duração. serviços públicos, quer de estruturas comunitárias (uma apreciação
geral semelhante à dos restantes perfis). Algumas das perceções mais
Entre os trabalhadores pobres e suas famílias é diversa a experiência críticas refletem aspetos muito relevantes quando se equaciona a
quanto ao apoio assistencial recebido. Nalguns casos esse apoio cumpriu relação entre serviços de apoio social e as pessoas em situação de
uma função de suporte importante em situações de crise, como eviden‑ vulnerabilidade, mormente a questão do respeito pelo princípio da
ciam os depoimentos dos entrevistados. Na perspetiva de análise dignidade dos cidadãos apoiados.
adotada importa igualmente ter em consideração as prestações sociais
de apoio à família, designadamente o abono de família, que tem como Entrevistada: Olhe, eu vou ser sincera: o meu marido tinha uma
objetivo compensar os encargos familiares respeitantes ao sustento ajuda aqui, estava a ser acompanhado por uma técnica que não fazia
e educação das crianças e jovens. A grande maioria dos trabalhadores nada pelo meu marido. Nós somos quatro, não é, então davam a ele
em situação de pobreza com filhos (aqui entrevistados) beneficia desta um apoio, um apoio alimentar. O apoio era o quê? […] Quando ele
prestação social, a qual é atribuída em função do escalão de rendimento chegava com aquilo eu dizia assim: «oh, XXXX [nome do marido] isso
familiar e do número e idade dos filhos, dependendo da sua eficácia na é uma grande humilhação, tu te pores na fila lá em baixo, com tanta
resposta às necessidades acrescidas das famílias com filhos menores o gente, para ir buscar uma latinha de salsicha, uma latinha de atum…
facto de se constituir ou não como fator de mitigação da pobreza no um saco de esparguete, quando era isso.».
seio das famílias e da pobreza infantil em particular. Era uma lata de salsicha, um de atum, um saco de esparguete, um saco
de arroz, um pacote de leite. Às vezes, era só cenoura, massa e coiso…
Outra dimensão relevante na situação dos trabalhadores em situação eh pá, era uma coisa que não… que é assim se calhar era o que tinham,
de pobreza e suas famílias respeita à sua experiência na relação com era o que davam e a gente, mas… é muito bonito falar em termos de
os serviços sociais, aqui tomados em sentido genérico, incluindo quer apoios sociais, mas eu acho que esse apoio social não chega a todos.
os serviços de segurança social desconcentrados, os serviços de ação E se chegar é uma gota de água no oceano. […]
social municipal e de instituições privadas de solidariedade social, É humilhação. Está a ver o que é estar na fila para ir buscar um pedido
e ainda os serviços de emprego e formação profissional. de apoio para a família, para quando chegares a casa, tu entregas o
A perceção dos entrevistados quanto à relação com os serviços sociais saco… agora, pronto, entregas o saco eles te devolvem o saco assinas
é, naturalmente, influenciada pela avaliação que fazem quer do apoio o papel, nem sabes, só assinas o papel em branco não diz o que vais
material prestado à sua situação, quer da qualidade do acompanha‑ levar, assinas, quando chegas a casa tu levas o saco e «É isso que eu
mento e suporte experimentado pelos trabalhadores e suas famílias. venho buscar para dar à minha…»
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[…] Entrevistado: Não… pela positiva, que eles estão sempre presentes,
Entrevistadora: Então, em termos gerais, qual é que é o seu grau de sempre que a gente precisa eles dão sempre um feedback, dão sempre
satisfação? um feedback. Isso é que é o mais importante. Isso é que é o mais
Entrevistada: […] Sou sincera: medíocre, era medíocre. Chamar uma importante, às vezes nem sequer é a resolução do problema, porque
pessoa para… ir levantar apoios que é dado para ajudar as pessoas o problema… se não tiver aquele vamos ter outro, portanto quando a
carenciadas, uma pessoa quando vai ver o que é, para mim é medíocre. gente tem um feedback constantemente é que a gente sabe que não
Nem num país de terceiro mundo eles fazem isso, nem em Cabo está sozinho. O mais triste nesta história é quando a gente se sente
Verde que é mais pobre que Portugal fazem isso. (P4.1_Almada, sexo sozinho. (P4.4_Almada, sexo masculino, 41 anos, Almada)
feminino, 45 anos, Almada)
Em síntese, a posição combinada no mercado de trabalho dos membros
A situação descrita, não sendo generalizável, não deixa de sublinhar a do agregado familiar apresenta‑se como determinante do risco de
necessidade de uma análise crítica sobre o recurso crescente a formas pobreza nos entrevistados deste perfil, revelando‑se a sua condição de
de apoio social a pessoas em situação de pobreza e privação material trabalhadores como insuficiente para obstar à condição de pobreza.
com base na distribuição de bens alimentares e outros bens essenciais Na equação da pobreza, a proteção social, enquanto mecanismo de
em detrimento do reconhecimento do direito a modalidades de assis‑ compensação do desequilíbrio entre necessidades e recursos das famí‑
tência social que preservem a dignidade e autonomia dos assistidos. lias, revela‑se ineficaz face ao desemprego que afeta de modo muito
significativo os membros dos seus agregados, quer devido à desade‑
Num plano contrastante, outro entrevistado expressa uma apreciação quação da proteção do desemprego relativamente à segmentação
muito positiva do apoio recebido dos serviços sociais, sublinhando do mercado de trabalho, quer pelo baixo padrão de elegibilidade do
a importância do compromisso dos serviços em termos de acompa‑ esquema mínimo de garantia de recursos, quer ainda devido à baixa
nhamento social e procura de soluções em situações de dificuldade adequação das prestações familiares na prevenção da pobreza entre as
enfrentadas pelos cidadãos em situação de pobreza. crianças que integram este agregados.
Entrevistadora: Qual é o seu grau de satisfação com os serviços?
E a forma como tem sido atendido e o acompanhamento que tem? 9.7. Redes de apoio não institucional e território
Entrevistado: Ali, não, são espetaculares, são impecáveis, muito, Em linha com o que já foi acima discutido, este perfil apresenta‑se,
muito, muito atenciosa mesmo. aparentemente, como o mais paradoxal e sobretudo inquietante.
Entrevistadora: E existe algum episódio para si que tenha sido De facto, como explicar que entre os pobres existam trabalhadores?
marcante na relação com os serviços de apoio social pela positiva ou Pessoas que trabalham, muitas vezes de modo intenso e com horários
pela negativa? prolongados, mas, mesmo assim, não escapam às teias da pobreza. Esta
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situação é também grave pelas repercussões que tem no trajeto de vida Entrevistadora: Já vou voltar à questão dos apoios, mas só para
dos indivíduos. Como foi assinalado para os reformados, são pessoas terminar esta parte, em relação à sua família, tem alguém, digamos
pobres porque foram toda a vida trabalhadores pobres. Mutatis que fora de sua casa (e marido), que recorra se precisar de ajuda?
mutandis, os trabalhadores pobres serão, no outono da vida, os refor‑ Entrevistada: A minha filha mais velha.
mados pobres. Também neste perfil a entreajuda de base informal está Entrevistadora: A sua filha mais velha? E à sua filha recorre para que
presente na vida de muitos entrevistados, não sendo particularmente tipo de ajuda?
diferente do que ocorre nos outros perfis. Por exemplo, pode combinar Entrevistada: Eu peço a ela, às vezes preciso de alguma coisa também.
ajuda com base na amizade com a ajuda fundada no parentesco. No Às vezes, por exemplo: o gás acaba, não é, não tenho dinheiro e ligo.
caso abaixo mencionado trata‑se de ajuda monetária que implica a Então: «Filha o gás acabou, não tenho dinheiro». Ela lá transfere‑me
devolução da respetiva importância num prazo curto, quase sempre trinta euros. E eu pago depois.
depois de o próximo salário ser recebido: Entrevistadora: Então, são dois…
Entrevistada: A minha filha e o amigo, é verdade.
Entrevistadora: E em termos de amigos fora da vizinhança, conta com Entrevistadora: E o apoio é o mesmo? É para questões económicas,
o apoio de amigos? quando é necessário?
Entrevistada: Olha, amigos, eu tenho os colegas de trabalho, nem… eu Entrevistada: É, eu não sou uma pessoa… se eu não tenho uma calça,
só tenho um senhor em Almada que é um senhor velhote, é moçam‑ eu visto a velha que eu tenho, quando puder eu compro outra. Não
bicano, mas é filho de português e vive em Almada. E às vezes quando sou muito chegada à vaidade… (P4.1_Almada, sexo feminino, 45 anos)
eu estou aflita, eu vou a ele recorrer, para pedir alguma coisa empres‑
tada e depois eu vou devolver. Ou uns vinte euros ou trinta e depois É pertinente sublinhar que o papel dos vizinhos é manifestamente
eu dou. Mas não tenho problema de… é o único, é ele. secundário, quando comparado com o desempenhado pelos familiares
Entrevistadora: Então, tem uma pessoa amiga que… ou pelos amigos. Aliás, para uma parte dos entrevistados o recurso à
Entrevistada: Sim, quando eu estou aflita recorro a ele. Às vezes rede de vizinhança deve ser evitado, pois entendem que tal revela as
preciso comprar algum medicamento porque às vezes os meus filhos suas carências, constituindo‑se em motivo de conversa que concorre
estão doentes e eu não tenho dinheiro, eu prefiro pedir a ele do que para a desqualificação social e, logo, a perda da face, no sentido
ir pedir noutro lado. É um senhor de 70 e tal anos, muito meu amigo. goffmaniano, de quem pede ajuda:
Entrevistadora: Então, recorre a esse senhor quando precisa para um
valor… Entrevistadora: O que é que pensa da relação que tem com os seus
Entrevistada: Sim, simbólico, que quando eu receber, eu vou lá familiares, amigos e vizinhos?
devolver. Entrevistado: Depende o que se refere por ajudar. A minha família,
sim, pode ajudar, o meu pai sobretudo porque a minha mãe está
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desempregada. Hoje em dia ninguém vai pedir ajuda aos vizinhos. Entrevistada: Ui! Quando o meu marido teve o acidente. Nem é bom
O meio é pequeno, tudo aqui é pequeno, menos a língua! Nós não pensar.
dependemos dos vizinhos nem dos amigos. Vou ao peixe e ofereço, mas Entrevistadora: Oito anos atrás?
a mim ninguém me oferece. Mas doume bem com toda a gente. Já tive Entrevistada: Sim. Foi muito difícil. Os primeiros anos não, que a gente
de ir ao hospital com o meu pai e levo sempre as minhas crianças. ainda tinha dinheiro de lado, porque ele ganhava bem. Ele tirava quase
Entrevistadora: Quando necessita de alguma ajuda ou tem algum os cinco mil euros, tinha mês de tirar, ele andava lá fora no estrangeiro,
problema a quem recorre? foi lá que ele teve o acidente, só que o patrão era de cá.
Entrevistado: Se desse pagava a uma ama para ficar com as crianças, Entrevistadora: Qual era a profissão dele?
mas não posso. Quando preciso recorro ao meu pai. E quando estou Entrevistada: Trolha.
aflito e me faltam dois ou três dias para receber vou ali à mercearia Entrevistadora: Trolha. Ele estava emigrado onde?
e eles aviam‑me alguma coisa que faça falta, depois vou logo pagar. Entrevistada: Estava na Espanha.
E por isso nestes casos não vou pedir ao meu pai. (P4.4_Serpa, sexo Entrevistadora: Espanha?
masculino, 28 anos) Entrevistada: E depois esteve em Luxemburgo.
Entrevistadora: Certo…
Trata‑se, como é bem evidente, de uma das expressões não desejadas Entrevistada: E então é assim, a gente tinha dinheiro, não é? A gente
da sociedade‑providência. Mesmo quando a ajuda ocorre, ela não deixa tinha dinheiro de lado. No entanto houve e foi dando, foi dando…
de ser percebida como um gesto de caridade e não como expressão de até que foi esgotando e depois foi uma situação terrível, né? A filha
um direito social a que o indivíduo tem acesso legítimo, como ocorre a chegar, as contas para pagar, o dinheiro não chegava para nada. Até
com as prestações concedidas no âmbito do Estado‑Providência. Por que ele se desesperou. Eu não gosto de pedir nada a ninguém, porque
outras palavras, pedir implica o reconhecimento de uma situação eu não sou daquela gente de pedir, nunca fui. E então ele resolveu
de privação que desqualifica quem o solicita. Neste sentido, como ir, foi à câmara amiga pedir. E foi aí que… é esse o apoio que nos
também vimos nos perfis anteriores, entre pedir e dar, a escolha, caso estão a dar. Mas até aí foi muito difícil mesmo. É que nem ele nem
fosse possível, seria sempre por dar. A sociedade‑providência tem eu queríamos pedir, porque tínhamos vergonha, não é? A gente estar
também os seus limites, parecendo funcionar sobretudo num nível tão bem na vida e de repente ter uma situação dessas é muito difícil.
relativamente restrito do campo das pequenas ajudas, sejam elas E então ele foi pedir e lá começou, tivemos que nos animar, não é?
monetários ou em géneros. Como veremos no excerto seguinte, nas Não havia outra solução.
situações mais graves a ajuda informal acaba por ser substituída pelas Entrevistadora: Há quanto tempo é que estão a receber esse apoio da
contribuições públicas, nomeadamente fornecidas pelas autarquias: câmara?
Entrevistadora: E quais foram os momentos mais difíceis na sua vida?
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Entrevistada: Dois ou três anos. Porque até aí não foi… ainda tivemos Entrevistadora: Precisávamos de mais polícias, se calhar se tivesse
com dívidas, começou a pedir à irmã e a irmã ajudava, emprestava mais polícia estava melhor. Autocarro nós só temos o XXXX [número
o dinheiro, até que depois, resolveu ir ali que já não dava mais para de autocarro], estou a falar da Carris, claro que da Vimeca temos
estar sempre a pedir e então tudo se começou a resolver. mais, mas nós aqui precisávamos mais da Carris e mais cedo. O XXXX
Entrevistadora: Tinham vergonha de pedir ajuda? [número de autocarro] por exemplo, começa quase às sete horas,
Entrevistada: Exatamente. (P4.3_Celorico de Basto, sexo feminino, no meu caso tenho que sair de casa às 5h15 não me adianta nada.
38 anos) Entrevistadora: Como faz?
Entrevistadora: Eu vou a pé daqui do bairro ao bairro da XXXX lá
Por fim, ser pobre implica, principalmente nas grandes cidades, viver em cima para pegar o autocarro, para pegar o autocarro às 5h30,
em lugares periféricos, desqualificados e perigosos, enfrentando riscos tenho que sair de casa às 5h15, porque eu entro às seis da manhã. Já
físicos e medos que ficam cravados na memória de quem os sofre. fui ameaçada várias vezes de assalto, está a perceber? Vinham com
De certo modo, convocando ao texto o título de um livro de (Wacquant, a cabeça tapada e com a navalha, o outro de trás gritou assim: «não
2001) sobre violência urbana nos Estados Unidos da América e em mexe com ela, porque ela é a mãe do XXXX». Salvou‑me de uma
França, são os «condenados da cidade», no caso homens e mulheres navalhada, porque é um bairro que vem grupos de outro bairro roubar
pobres que, sem poder escolher lugares diferentes para residir por força aqui e os daqui vão para lá. (P4.1_Amadora#2, sexo feminino, 61 anos)
dos constrangimentos impostos pelos escassos rendimentos, convivem
com a escassez de transporte e de policiamento e com a violência, Sublinhe‑se que entre os pobres que trabalham existem muitos pontos
nomeadamente nas suas deslocações laborais a horas que parte significa‑ de contacto com a situação dos indivíduos dos perfis anteriores. No
tiva da cidade, sobretudo a mais afluente, ainda está a dormir: que respeita às redes de apoio não institucional e ao território são
muitas as regularidades encontradas. A bem‑dizer, não poderia ser dife‑
Entrevistadora: Na sua opinião o que faz falta no sítio onde mora? rente. A pobreza que os caracteriza, constrangendo as suas vidas e o
[Pausa] seu futuro é também a responsável por os juntar. Longe de viverem
Entrevistadora: O que mudaria? de costas voltadas, estes pobres, independentemente da condição
Entrevistada: Eu civilizava essa gente toda para fazer limpeza na rua, perante o trabalho e a posição que ocupam no percurso pessoal, parti‑
para não deitar o lixo na rua, para pôr os lixos dentro do caixote do lham a vida nos mesmos bairros pobres das cidades, são vizinhos nas
lixo. Essas coisas, para não estragar as coisas que estão bem‑feitas, aldeias e vilas do interior do país. Uns mais, outros menos, desen‑
que a Câmara faz. Por exemplo, a Câmara pôs árvores e tudo e eles volvem laços sociais entre vizinhos, sem deixarem de manter, também
estragam tudo, pelo amor de Deus. em grau variável, as relações com base no parentesco e na amizade.
Entrevistadora: Em termos de transporte e segurança? Como vimos, para este perfil e para todos os outros, são estes laços
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que acabam por valer nos momentos inesperados e sobretudo no possível detetar alguns discursos de relativização, ainda que a maior
quotidiano marcado pela privação, sob a forma de pequenas ajudas, parte ilustre de forma evidente a dificuldade que sentem presente na
os «pequenos favores» que muitas vezes permitem minimizar situações sua vida quotidiana.
de aflição sem que os livrem da pobreza e mesmo da estigmatização
que sobre eles ela projeta. Considero que vivo numa situação de pobreza porque o ordenado
não dá. Se vem uma fatura da luz mais elevada e se acaba o gás,
pronto está tudo estragado! Ou se os filhos precisam de medica‑
9.8. Perceção de si como pobre e do combate à pobreza
mentos porque se constiparam já é um grande problema! Se for tudo
Quase uma em cada três pessoas entrevistadas considerou não estar, no mesmo mês, não dá! (P4.4_Serpa, sexo masculino, 28 anos)
no momento da entrevista, em situação de pobreza. Tal como se
registou em outros perfis, também aqui tal convicção se alicerça Para uma parte das pessoas entrevistadas, a situação de pobreza terá
sobretudo na comparação estabelecida com situações piores do que caracterizado grande parte da sua vida. Outras realçaram que, apesar
a sua naquele momento, sejam elas do seu próprio passado (nomea‑ desse facto, a situação vivida na infância era pior e outras ainda salien‑
damente por comparação com situações de desemprego), sejam de taram o facto de, ainda que num panorama de dificuldade, se tenham
outras pessoas (referência a quem passa fome e/ou em situação de sucedido momentos mais e menos difíceis. Noutros casos, apesar do
sem‑abrigo). É também notória, à semelhança do que aconteceu relati‑ reconhecimento de uma situação estruturalmente difícil, foram apon‑
vamente a outros perfis, a confusão estabelecida relativamente a uma tadas conjunturas mais favoráveis, nomeadamente experiências de
situação de miséria (AA.VV, 2010; Bellaing, 2000). emigração, que permitiram algum alívio.
Duas em cada cinco pessoas relativizaram a sua situação, hesitando Tal como aconteceu relativamente aos outros perfis, a resignação
em classificá‑la como pobreza. É de notar, porém, que algumas delas é o sentimento dominante que perpassa do discurso das pessoas
expressaram raciocínios similares aos acima referidos para justificar a entrevistadas.
sua resposta. Outras, adotando um discurso com algumas semelhanças
Temos que enfrentar, não é? Não dá de outra maneira. Eu, às vezes,
e hesitando também em caracterizar‑se como pobres, pareceram mais
bem fico triste, mas não quero ficar triste na frente do meu marido
capazes de fazer a distinção relativamente à miséria, assumindo que,
porque eu não o posso botar abaixo também. Tenho que o subir
muito embora as suas necessidades básicas pudessem estar garan‑
sempre p’ra cima. E então, olha, muitas vezes chorava por detrás dele,
tidas, a privação a que tinham de se sujeitar configurava, também
cá fora. Ia ao campo chorar e não sei quê, e depois voltava pra casa.
ela, uma situação de pobreza, ainda que não extrema. Note‑se, ainda,
(P4.3_Celorico de Basto, sexo feminino, 38 anos)
que mesmo no caso de pessoas entrevistadas (cerca de uma em cada
três) que não hesitaram em classificar‑se em situação de pobreza foi
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Regista‑se, porém, a menção que algumas pessoas, ainda que poucas, ecoar, de alguma forma, a reflexão empreendida por Rodrigues et al.,
fizeram a uma dimensão proativa, seja através do trabalho, seja através quando afirmam que
da escolaridade. Registam‑se, ainda, situações em que os respondentes
evidenciaram alguma vergonha, optando por não dar (totalmente) a a inserção social poderá passar pelo recurso regular ou esporádico
entender as dificuldades experienciadas. aos serviços de ação social, estabelecendo‑se uma situação de depen‑
dência, ou seja, de inferioridade social e de uma reduzida autoestima.
Tal como realçado por Walker, As populações ajudadas ou assistidas negoceiam a inferioridade do
seu estatuto social. Isto significa que os assistidos não são meras
habitualmente, as pessoas em situação de pobreza sentem‑se enver‑ vítimas manipuladas por um «sistema», são antes atores sociais que
gonhadas de terem falhado em viver de acordo com as expectativas dispõem de um espaço de manobra e de negociação. (Rodrigues et al.,
da sociedade, as quais, pelos menos na sua maior parte, internalizaram 1999, 79)
também como sendo as suas. (2014, p. 65)
Se, nos outros três perfis analisados, poucas foram as pessoas que iden‑
Saliente‑se, a este respeito, que a literatura em torno da abordagem tificaram situações de discriminação/exclusão social associadas à sua
das capacidades realça que viver em situação de pobreza sem vergonha condição socioeconómica, o mesmo não se registou entre as pessoas
representa uma capacidade importante (Alkire, 2002; Sen, 1983). Tal é‑o, trabalhadoras pobres. Cerca de uma em cada três mencionou situações
sobretudo, na medida em que, apesar de os recursos materiais neces‑ associadas à aparência física, a serem alvo de (determinado tipo de)
sários para evitar o sentimento de vergonha dependerem do contexto apoio social, ou em consequência de pedidos de apoio que efetuaram.
cultural e de desenvolvimento socioeconómico (Sen, 1983), o senti‑
mento de vergonha associado à pobreza e os seus impactos revestem‑se Sim, muito! É o olhar das pessoas, a gente nota quando está a falar
de um carácter universal (Chase e Bantebya‑Kyomuhendo, 2015; com uma pessoa […]. Às vezes, uma pessoa entra num sítio e nota
Gaisbauer et al., 2019). Mais, como notam os autores, que as pessoas são assim… Ou é porque a gente vai mais mal‑vestida,
ou porque não temos roupa de marca, ou seja pelo que for às vezes.
é possível que a vergonha associada à pobreza se esteja crescente‑ […] As pessoas ficam com um pé atrás e aí vê‑se logo a discriminação.
mente a intensificar à medida que as culturas, em redor do globo, E a gente sente e dói tanto! Não é a pessoa dizer‑nos, é a ação delas,
se tornam mais individualistas e o consumismo conspícuo se torna a o reagir delas. (P.4.3_Porto, sexo feminino, 39 anos)
expressão dominante de status social. (Gaisbauer et al., 2019)
Deve, ainda, ser realçado como alguns relatos acabaram por naturalizar
Poucas das pessoas entrevistadas revelaram a capacidade de viver em a discriminação de que os respondentes haviam sido alvo, hesitando
pobreza sem vergonha, sendo raras as que, por exemplo, afirmaram não em classificá‑la desta forma e designando‑a até como «perfeitamente
ter vergonha de pedir para não passar fome, discursos que parecem
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normal» e aceitável. Em um ou outro caso foi mesmo possível identi‑ Sociais estabelece uma relação entre a remuneração mínima e a
ficar sentimentos de autoexclusão (Rodrigues et al., 1999). pobreza entre quem trabalha, enfatizando que
Apesar das dificuldades experienciadas, algumas pessoas entrevis‑ deve ser garantido um salário mínimo adequado, de forma a permitir
tadas, embora poucas, afirmaram não querer mudar nada na sua vida. a satisfação das necessidades do trabalhador e da sua família, à luz das
As restantes apresentaram um leque alargado de áreas relativamente condições económicas e sociais nacionais, assegurando, ao mesmo
às quais optariam por efetuar mudanças, referindo as esferas do tempo, o acesso ao emprego e incentivos à procura de trabalho.
trabalho, educação, saúde e habitação. De realçar que, em alguns casos, A pobreza no trabalho deve ser evitada. (Comissão Europeia, 2017, p. 15)
a mudança de emprego é mencionada como consequência do que seria
um investimento maior que se gostaria de ter efetuado na educação. A pesquisa científica, por seu turno, destacou a natureza complexa
da ligação entre retribuição mínima e pobreza entre quem trabalha
Noutros casos, foi referida a vontade de evitar a privação. No entanto, sugerindo, nomeadamente, que a primeira não é suficiente, por si só,
há que realçar a menorização de outras dimensões face à componente para reduzir a segunda (Marx and Nolan, 2012; Matsaganis et al., 2015;
alimentar. Volta, pois, a estar‑se em presença do estreitar de fronteiras Marchal et al., 2017; Eurofound, 2017) e convocando para o debate
entre pobreza e miséria, já anteriormente aludido neste texto, ficando em torno do conceito de salário condigno que torne possível um
patente a (inconsciente?) aceitação da primeira por parte dos respon‑ padrão de vida e de participação na sociedade minimamente aceitável
dentes «na condição» de que a segunda seja, a todo o custo, evitada. (Eurofound, 2017). É, por isso, também crucial recordar a análise levada
a cabo por Pereirinha et al. (2017) acerca do nível de rendimento neces‑
Também no que se refere às medidas a tomar para combater a pobreza sário para uma vida com dignidade em Portugal, retomando a discussão
em Portugal, caso se tornassem chefes de governo, as pessoas entre‑ encetada no capítulo um. Da análise empreendida, que tomou em
vistadas dividiram‑se por um leque alargado de opções. Para algumas consideração diferentes cenários, atingiu‑se um consenso relativa‑
pessoas, as medidas deveriam seguir uma lógica de redução das desi‑ mente ao que poderia ser considerado como um rendimento adequado.
gualdades, principalmente salariais, mas também no sentido da redução De acordo com os resultados, o rendimento adequado para uma pessoa
de assimetrias regionais. Outras pessoas mencionaram o aumento de entre os 18 e os 64 anos, residindo sozinha, seria de 783 euros por mês.
rendimentos como medida a tomar, concretizado, nomeadamente, Um casal com uma criança precisaria de cerca de 1800 euros por mês
através do aumento de salários. (Pereirinha et al., 2017). Estes são valores que, apesar dos aumentos na
Algumas pessoas expressaram a sua indignação contra aquilo que retribuição mínima ocorridos nos últimos anos, continuam a situar‑se
consideram o valor extremamente reduzido do salário mínimo. claramente acima desta e acima do limiar oficial de pobreza definido
Merecerá, a este respeito, realçar que o Pilar Europeu dos Direitos anualmente.
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Como realçado pelo estudo, Sabendo‑se da situação difícil vivida por estas pessoas – e que levaram,
nomeadamente, a que fossem elegíveis para a realização da entrevista
estes resultados sugerem que o uso deste limiar de pobreza subestima – tornar‑se‑á, eventualmente, mais relevante analisar, de forma mais
a medição da incidência da pobreza em Portugal, se considerarmos, particular, as situações concretas vividas. Uma das nossas entrevis‑
como referência para este cálculo, o valor de rendimento necessário tadas, por exemplo, perguntava «o que é que eu posso pedir mais?»,
para obter um nível de vida digno. […] Globalmente, do ponto de vista já que tinha uma família, filhas e trabalho. Mas qual era a sua situação
das políticas públicas, considera‑se que estes resultados poderão ser concreta?
utilizados para equacionar alterações nos valores mínimos garantidos
por diferentes medidas de política e para diferentes configurações Antes de se iniciar essa análise deve, porém, ser realçado que não se
familiares, de acordo com as prioridades políticas legítimas estabele‑ pretendeu aqui pôr em causa as opiniões veiculadas pelas pessoas ou
cidas. (Pereirinha et al., 2017, p. 15) a forma como as fundamentaram. As perceções são eminentemente
subjetivas, pelo que duas pessoas em situação semelhante podem
De realçar, igualmente, que se, para algumas pessoas, a prioridade manifestar perceções radicalmente opostas. Como tal, pretendeu‑se
deveria passar pela ajuda à população mais desfavorecida, para outras apenas, como acima referido, analisar de forma mais específica uma
deveria haver maior fiscalização ao nível das medidas de proteção situação concreta de forma, sobretudo, a equacionar possíveis implica‑
social, de forma a excluir mais facilmente os indivíduos que consideram ções que possam advir futuramente.
como não merecedores de apoio (Lister, 2004; Diogo, 2007), conceito
também já abordado anteriormente neste texto. Comecemos pelo que não foi referido, a dimensão da saúde. Trata‑se
de uma entrevistada jovem, de apenas 34 anos, mas que enumerou
Na quase totalidade dos casos, as pessoas entrevistadas afirmaram diversos problemas de saúde. Quanto à esfera do trabalho, esta entre‑
sentir‑se felizes. Algumas pessoas não apresentaram razões concretas vistada, cuja primeira atividade profissional ocorreu aos 17 anos,
para tal e outras ainda apontaram um «otimismo por natureza» ou a registava menos de três anos de descontos para o sistema de segu‑
«crença em Deus». No entanto, ao analisar‑se as razões apontadas para rança social o que leva a que, mantendo‑se as condições atuais, venha a
o sentimento expresso de felicidade torna‑se claro que, tal como os atingir a idade de reforma sem ter cumprido o período necessário para
três D – divórcio, doença, desemprego – se revelam como fatores expli‑ a obtenção de uma pensão de reforma sem penalizações. A isso acresce
cativos para a pobreza, também os seus «espelhos» família, saúde e o facto de o seu salário de referência ser o salário mínimo nacional.
trabalho se revelam elementos cruciais para o sentimento de felicidade
expresso pelos/as respondentes. Qual a importância deste exercício? Mais do que a – e independente‑
mente da – situação concreta desta entrevistada, parece importante
salientar que este é um perfil que, a curto, médio ou longo prazo,
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poderá transformar‑se facilmente em qualquer um dos outros perfis de crianças ou pessoas em situação de dependência agrava a privação
analisados em capítulos anteriores. Em termos hipotéticos, e tendo em relatada. Deste modo, equacionar o futuro requer considerar as necessi‑
atenção o acima referido, esta entrevistada poderá vir a engrossar o dades, os recursos e as restrições associadas ao agregado familiar.
conjunto de pessoas reformadas em situação de pobreza, como salien‑
támos acima. Da mesma forma, a não renovação do contrato a termo Predomina a ideia da reprodução da pobreza – «Já nascemos pobres e
que tinha no momento da entrevista levá‑la‑ia a passar a fazer parte do assim continuamos até sempre», isto para aqueles que se consideram
que designámos de Perfil 3, Desempregados. pobres – e o trabalho é encarado como algo que não se recusa e até
se gosta, mas que «foi sempre duro», «ruim». Muitas pessoas desis‑
tiram de melhorar as suas qualificações, ficando apenas a satisfação
9.9. Perspetivas face ao futuro
de necessidades básicas, nomeadamente a saúde e a habitação, como
Como se pode perceber do descrito anteriormente, na maior parte referenciais das expectativas relativas ao futuro. Entre as mulheres
das narrativas a privação não é uma condição momentânea, é um existem várias situações de conjugalidade e parentalidade precoce,
traço que se foi inscrevendo nas trajetórias de vida, condicionando as assim como experiências de violência conjugal, que contribuíram para
expectativas em relação ao futuro. Algumas pessoas optam por viver agravar vulnerabilidades e colocaram a autonomia económica como
o presente, não formulando prognósticos relativamente ao futuro. uma questão central das suas trajetórias.
Outras estão expectantes, mas não se sentem capazes de formulá
‑los. Há ainda outras que dizem que o seu futuro não vai ser melhor Em contexto rurais, de maior isolamento geográfico, onde parece ter
e que até poderá ser pior. Assinale‑se ainda que, de forma distinta do maior relevância uma organização familiar assente na divisão sexual
que acontece com a avaliação prospetiva pessoal, a tónica parece ser do trabalho segundo um modelo do provedor masculino, as opor‑
mais positiva, ou pelo menos indeterminada, quanto ao futuro dos tunidades têm sido poucas, mesmo para os homens. Nos casos aqui
descendentes. analisados a emigração não constituiu saída bem‑sucedida na melhoria
das condições de vida e, perante um cenário de perda demográfica e
Embora mais de metade das pessoas deste perfil tenha uma situação de depressão económica, ficou o desencanto e a resignação. Em meios
profissional estável, muitas começaram a trabalhar muito cedo, urbanos, a aposta na melhoria das qualificações até poderá ter consti‑
em muitos casos configurando situações de trabalho infantil, e em ativi‑ tuído ambição, e feito caminho, mas é notória a renúncia em investir
dades penosas e mal pagas. Mesmo pessoas com trajetórias laborais na realização pessoal. A imigração está presente em alguns destes
mais estáveis têm no seu agregado familiar situações de desemprego percursos de vida e, também nestes casos, predomina a ideia da repro‑
e/ou de instabilidade laboral; de doença, incapacidade ou mesmo de dução da pobreza e o desencanto – «Nunca tive boa vida». No caso
invalidez, como vimos. Os agregados de pertença são relativamente das mulheres imigrantes, a trabalhar nos serviços domésticos e nas
grandes, na sua maior parte com crianças (21 em 24 casos), e a presença
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limpezas, há situações de acumulação de dois trabalhos, aos quais Entrevistadora: Então pensa mais no dia a dia?
ainda acrescem as tarefas domésticas. Entrevistado: É no dia a dia. […]
Entrevistadora: Qual é que é o seu maior sonho hoje?
Especialmente entre os segmentos mais velhos, um elemento de desâ‑ Entrevistado: Hoje?
nimo tem a ver com a necessidade de se continuar a trabalhar, mesmo Entrevistadora: É.
enfrentando condições de saúde cada vez mais debilitadas. Quando, Entrevistado: Não sei…
além do cansaço, também a doença começa a limitar a capacidade Filha do entrevistado: Ser feliz.
de trabalhar, o adiamento da reforma e as dificuldades de acesso à Entrevistado: Feliz já sou todos os dias, filha.
proteção acabam por constituir fatores de privação. No entanto, Filha do entrevistado: Nem todos os dias.
o mais marcante é a presença de um registo particularmente caute‑ Entrevistado: Feliz sou todos os dias. Eu ponho‑me a pé já sou feliz.
loso, mesmo entre pessoas com cerca de quarenta anos de idade De resto não tenho coisa… Feliz… Que eu todos os dias pôr‑me a pé e
(virtualmente a meio do seu percurso laboral), especialmente quando ver o Sol do dia, já sou feliz… (P4.4_Guimarães#2, sexo masculino, 40
enfrentaram períodos prolongados de desemprego ou quando este (ou anos)
a doença) afeta um membro do agregado familiar. Essa acumulação de
privações e vulnerabilidades acaba por contribuir para limitar a espe‑ Há quem duvide que algum dia terá uma reforma digna, ou por insu‑
rança de melhoria das condições de vida. ficiência da carreira contributiva, ou pelas crescentes restrições de
acesso a reformas. Há quem expresse ressentimento de não poder
Face à adversidade, a opção é a de viver um dia de cada vez, sem pensar aceder a apoios sociais a partir do momento em que um dos cônjuges
muito no futuro. No excerto que se apresenta, o entrevistado é reni‑ tem salário certo. Na prática, tal como já se tinha sugerido anterior‑
tente em expressar sonhos mas, mesmo sendo contrariado pela filha, mente, os seus critérios de atribuição parecem pressionar um trade‑off
parece agarrar‑se à convicção de que é feliz. entre trabalho e apoio social, particularmente delicado em situações de
Entrevistadora: […] E o que é que acha que vai ser da sua vida para o doença ou de retração do mercado de trabalho e quando a resolução
futuro? desse trade‑off pode implicar maiores custos pessoais e familiares.
Entrevistado: Não sei, para o futuro logo se vê. Um gajo não pode dizer… É também de registar, de forma inversa, o estigma associado à pobreza
Um gajo tem que trabalhar no dia a dia e depois é que se vê o futuro. e ao recurso a apoios sociais, como é o caso do RSI. Em alguns trajetos
Entrevistadora: Não pensa muito no que vai ser? de maior exclusão social e recurso à assistência social, a impor‑
Entrevistado: Não penso. Um gajo está a pensar no que vou fazer para tância dada ao trabalho vem associada à vontade de não depender de
o ano e eu nem sei se vou chegar ao ano. Não é? Eu nem sei se vou subsídios mesmo enfrentando dificuldades de acesso a emprego de
chegar para o ano… Até posso hoje deitar‑me e amanhã não acordar. qualidade – este será, quiçá, um desejo de aproximação à norma como
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forma de lidar com o sofrimento e a desintegração social associado à Entrevistadora: E o que é que acha que é necessário para que isso
desafiliação (Amaro, 2015). aconteça?
Entrevistado: Bem, a gente vai resolvendo os problemas. E quanto
São muito poucas as avaliações prospetivas mais otimistas quanto às mais problemas a gente resolver, menos a gente vai precisar, porque
possibilidades de melhoria de condições de vida no futuro e referem‑se hoje precisa‑se por exemplo: cinco quilos de arroz, porque nós somos
a alguns dos entrevistados mais jovens neste perfil, todos do sexo X pessoas, oito pessoas por exemplo. Se das oito pessoas saírem
masculino84. Essas avaliações não implicam necessariamente a negação três, já não vamos precisar de cinco quilos, vamos precisar de menos
ou falta de consciência sobre a situação de pobreza, antes incorporam quilos. E assim o problema vai‑se resolvendo. Por exemplo: quando
a ideia de que é necessário «fazer caminho». Desenvolvendo uma série a minha sobrinha veio tinha 15 anos, hoje tem 20, amanhã ela vai
de esforços para ficar numa situação de menor vulnerabilidade, quem para casa dela, ela não vai viver comigo para sempre. Isso vai dimi‑
adota esse tipo de perspetiva parece ter necessidade em olhar a vida nuir sempre algum peso até ficarem só os que realmente, também,
pelo lado positivo e acreditar que as coisas poderão mudar. Os esforços fazem falta. O que acontece que as nossas ajudas, pedir à Santa Casa
de melhoria são acompanhados por uma necessidade em acreditar e não sei quantas, também acontece lá dentro. Lá dentro também tem
que as coisas poderão mudar e, alguns casos, recorrendo à fé em Deus. de haver evolução, nós não podemos ficar estagnados para sempre,
Noutros casos, mesmo reconhecendo que a vida poderia ter seguido à espera de que a Santa Casa nos ajude. Não, nós vamos pedir ajuda
outros rumos – por exemplo, apostando nas qualificações – é valori‑ para a Santa Casa nos dar uma direção, não é para estarmos a viver da
zada a aprendizagem proporcionada pela experiência e as mudanças Santa Casa o resto da vida. Isso não, não é esse o meu objetivo.
pessoais e profissionais são encaradas como desafios, oportunidades Entrevistadora: Então, acaba por ser à medida também que o próprio
para trilhar novos caminhos. Os laços familiares são valorizados, por agregado for…
vezes na consciência de que a evolução futura não depende apenas das Entrevistado: Diminuindo, a gente menos ajuda vai precisar. Assim,
decisões pessoais, mas também das realizadas por outros membros do conforme, sucessivamente. […] (P4.4_Almada, sexo masculino, 41 anos)
agregado familiar.
Com trajetos de vida de trabalho, por necessidade e com sacrifício,
Entrevistadora: Acha que a sua vida vai ser melhor no futuro? em que a realização pessoal cedo foi colocada de lado, e sem muitas
Entrevistado: Vai. perspetivas de melhoria das suas condições de vida, muitas das pessoas
Entrevistadora: E acredita que poderá viver, dessa forma que estava a entrevistadas parecem investir a esperança de melhoria futura na
dizer, um dia de não precisar da ajuda do apoio social ou de…? descendência. Em algumas narrativas, especialmente de mulheres, esta
Entrevistado: Sim, acredito. Acredito que isso não pode ser assim toma a forma de renúncia, à custa do desinvestimento em si própria,
sempre, não é. olhando a descendência com o principal motivo da sua felicidade,
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desejando que estes tenham uma vida melhor do que a sua e inves‑ que dou a eles. Vocês que ganhem hoje, poupem amanhã para usar
tindo as suas forças nesse sentido. O «desejo de fazê‑los felizes» ou depois de amanhã. (P4.3_Ponta Delgada#2, sexo feminino, 40 anos)
que tenham saúde, o aconselhamento para evitarem os próprios erros,
mobilizando a sua experiência de vida – por exemplo quanto à forma Garantir que os filhos não passem fome constitui uma espécie de
de gestão de dinheiro ou na aposta nas qualificações – são algumas das baliza para avaliar o nível de privação passada, presente e futura.
formas de manifestar esse investimento. Há quem gostasse de poder deixar património habitacional e quem
adiante que o essencial é que os filhos tenham saúde visto que, sendo
Entrevistada: O meu futuro? Eu já estou a ficar velhinha, achas que jovens, de uma forma ou de outra terão oportunidades, mesmo que
vou ter futuro ainda? tenham de emigrar. Surge ainda a ideia da aposta na sua autonomi‑
Entrevistadora: És capaz de ter mais uns aninhos… zação, também como forma de garantir algum bem‑estar, alguma
Entrevistada: [riso] Quer dizer eu não fui muito feliz… tranquilidade na velhice dos próprios entrevistados. O incentivo para
Entrevistadora: A tua mãe que idade é que tem? que os filhos apostem nas qualificações é o tipo de investimento mais
Entrevistada: A minha mãe tem 65. referido, o que é particularmente relevante considerando o predomínio
Entrevistadora: Então, à partida… de baixos níveis de escolaridade entre as pessoas entrevistadas. Ora
Entrevistada: Não. Eu vou ser feliz, fazendo os meus filhos felizes, apoiando materialmente, ora incentivando ao estudo ou, até, ao desen‑
os meus filhos. Mas… volvimento vocacional, o aumento da escolaridade das próximas
Entrevistadora: Não esperas muito mais do futuro… gerações parece ser uma preocupação presente em muitas das entre‑
Entrevistada: Não, não, acho que não. vistas analisadas. Em alguns casos, em que a aquisição de qualificações
Entrevistadora: E a vida dos teus filhos, achas que vai ser melhor? foi garantida sem que isso se traduzisse numa valorização profissional,
Entrevistada: Eh pá!, eu tento fazer e dou muitos conselhos a eles é o desencanto que se insinua. Assinale‑se por fim que em algumas
para que façam também parte deles. Porque é assim, a minha filha narrativas predomina o sentimento de que a vida dos filhos não será
está a trabalhar, tem dois trabalhos até. O meu filho está na tropa. melhor, ora pelas dificuldades económicas do agregado, ora por fatores
Mas ainda não dão valor ao dinheiro. Porque é assim, estão a ganhar que são imputados aos descendentes, ou ainda pelas condições socioe‑
hoje, estão a gastar amanhã depois de amanhã já estão a pedir, «mamã conómicas do país ou da região em que vivem.
dá‑me um euro, mama dá‑me dois euros». E eu com a lição de vida
que eu já tive, eu estou sempre a dar o conselho, vocês poupem hoje, Conclusão do capítulo
porque amanhã vai fazer falta, estás a perceber? Foi o que aconteceu
Os resultados apurados mostram que a pobreza entre os trabalhadores
comigo, eu como não soube poupar, quando queria poupar não tinha
se tece numa malha complexa de fatores associados aos indivíduos, às
para poupar, por isso passei muitas dificuldades. E é isto, o conselho
suas famílias e ao papel das políticas públicas. Na primeira dimensão
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estão em causa fatores relativos às necessidades impostas pela estru‑ pobreza, dependendo esta da dimensão do agregado e das suas neces‑
tura familiar, aos recursos que influenciam a participação no mercado de sidades, mas igualmente dos níveis salariais auferidos, do regime de
trabalho, como a educação, a experiência profissional e a ocupação; bem trabalho a tempo integral, parcial ou sazonal, e dos mecanismos fiscais
como as restrições ou os constrangimentos à participação no mercado e de proteção social.
de trabalho, como a obrigação da prestação de cuidados a crianças
pequenas, pessoas idosas ou outras pessoas dependentes no agregado Os baixos salários auferidos pelos entrevistados refletem, por um lado,
familiar. A segunda dimensão reporta‑se ao papel das políticas públicas as características estruturais do mercado de trabalho em Portugal e,
na compensação dos desequilíbrios ocorridos nas estruturas familiares por outro lado, os efeitos de trajetória biográfica associados à pobreza
no balanço entre necessidades, recursos e restrições. na infância e na transição para a vida adulta. Problemas de saúde dos
pais ou dos próprios enquanto crianças, a instabilidade laboral e a
A singularidade deste perfil reside, por um lado, na condição dos perda de membros significativos do agregado familiar traduziram‑se no
entrevistados perante o trabalho, uma vez que todos desenvolvem abandono do percurso escolar como forma de auxílio à família impli‑
uma atividade laboral e todos se integram em agregados familiares cando, em várias situações, o ingresso no mundo de trabalho. Ainda
onde o trabalho é a principal fonte de rendimento familiar. Mas, igual‑ que com menor expressão neste perfil, observam‑se aqui, igualmente,
mente, na natureza dos vínculos laborais, registando‑se que mais de repercussões projetadas no futuro e, especialmente, o acesso menos
metade dos entrevistados se encontrava em situação de contrato qualificado ao mercado de trabalho. De facto, a análise dos processos
sem termo no momento da entrevista e com trajetórias laborais está‑ de transição para a vida adulta permite concluir que, em termos
veis, em contraste com o que se verifica nos Perfis 2 (Precários) e 3 genéricos, muitos dos inquiridos deste perfil transitaram precoce‑
(Desempregados). Revela‑se, assim, que a situação de pobreza não está mente para o mundo do trabalho (em média, aos 15 anos, depois de
exclusivamente associada a uma trajetória de relações laborais instá‑ terem frequentado a escola durante seis anos) para desempenharem
veis, em carrossel, onde a precariedade, a informalidade, o desemprego atividades profissionais variadas, destacando‑se aqui ocupações profis‑
e as atividades intermédias entre emprego e desemprego constituem sionais na área da construção civil, agricultura, pesca e serviços que,
o padrão dominante. Aqui, a razão da pobreza reside na coexistência em regra, proporcionam baixas remunerações.
do trabalho com baixos salários e do que temos vindo a designar de
desemprego familiar, enquanto forma de caracterizar a posição combi‑ As transições familiares dos entrevistados deste perfil originam uma
nada no mercado de trabalho dos membros do agregado familiar diversidade de formas de estruturação das relações afetivas e de corre‑
(cônjuges, descendentes e outos familiares), tendo como conse‑ sidência, salientando‑se a existência de agregados familiares muito
quência que a existência de um provedor singular, ou mesmo múltiplo, numerosos, com um número muito significativo de crianças, jovens
de rendimento não constitui condição suficiente para a superação da e adultos dependentes de um número muito limitado de provedores,
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fator relevante no desequilíbrio entre necessidades e recursos no seio da carácter mais implícito do que acontece noutros perfis, e perpassem
família e na produção da condição de pobreza e experiência de privação. estratégias de gestão da privação e mitigação da pobreza, nas quais se
incluem o recurso à solidariedade próxima, ao autoabastecimento ou
A análise do papel das políticas públicas face à condição de pobreza à realização de atividades informais. De facto, também neste perfil,
dos entrevistados e suas famílias revela, à semelhança do que se a entreajuda de base informal está presente na vida de muitos entrevis‑
observou nos outros perfis, as limitações das políticas de conci‑ tados, com algumas diferenças em relação ao que ocorre nos demais85,
liação trabalho‑família em Portugal, na medida em que a inexistência combinando a ajuda com base na amizade com a ajuda fundada no
de infraestruturas de apoio aos cuidados à infância, a custos acessí‑ parentesco, sendo estes laços que, procurando compensar a ausência
veis para estas famílias, implica que o cuidador familiar/informal seja ou insuficiência das políticas públicas, acabam, a par de alguns apoios
coagido a abandonar o mercado de trabalho, ou trajetos de educação assistenciais não públicos, por valer nos momentos inesperados e
e formação, ou ainda a recorrer ao trabalho a tempo parcial, para se sobretudo no quotidiano marcado pela privação, sob a forma de
ocupar de crianças pequenas e/ou portadoras de deficiência, bem como pequenas ajudas, os «pequenos favores» que muitas vezes permitem
de adultos com deficiência ou incapacidade. Quanto ao papel das minimizar situações de aflição, sem que os afastem da condição de
políticas públicas de proteção social, o estudo revela a sua ineficácia, pobreza e mesmo da estigmatização que sobre eles ela projeta.
quer na proteção face ao desemprego dos filhos adultos ativos, quer
na garantia mínima de rendimentos, quer ainda na baixa adequação Reportando‑nos às perceções dos trabalhadores pobres deste perfil
das prestações familiares na prevenção da pobreza entre as crianças sobre as suas trajetórias e quotidiano, os momentos mais difíceis na
que, em número superior à média nacional, integram estes agregados vida disseram respeito, sobretudo, à doença, muitas vezes associando‑se
familiares. Revela‑se, deste modo, que as políticas de proteção no a ou desencadeando outras vulnerabilidades. O desemprego, a insta‑
desemprego em Portugal não vêm acompanhando a crescente preca‑ bilidade e/ou rutura familiar foram outros dos momentos assinalados.
riedade, associada ao aumento das relações de trabalho atípicas. Já os aspetos mais positivos da vida foram associados sobretudo à vida
Constata‑se, igualmente, que o Rendimento Social de Inserção, familiar, nomeadamente aos filhos. A experiência de momentos difíceis
enquanto última rede de proteção, na ausência de proteção no desem‑ e privação material não dá no entanto lugar, de forma direta, à autorre‑
prego, não está adequado a exercer este papel protetor. presentação de si como pobre, verificando‑se nas suas perceções lugar
para a hesitação, para a negação. Mas isso não impede, em alguns casos,
Face ao resultado negativo da equação da pobreza, não constitui efeito a explícita autoclassificação como pessoa em situação de pobreza.
inesperado que, na grande maioria dos casos, as pessoas entrevistadas
não tenham manifestado qualquer hesitação na consideração de que Como já se assinalou relativamente aos outros perfis, a resignação é o
os rendimentos de que dispunham não eram suficientes para as suas sentimento dominante que perpassa do discurso das pessoas entrevis‑
necessidades, ainda que, nas suas narrativas, a privação assuma um tadas, registando‑se, no entanto, em alguns poucos entrevistados uma
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predisposição mais proativa projetada no âmbito do trabalho ou da
escolaridade. Menção deve também fazer‑se a situações reveladoras do
sentimento de vergonha na exposição das dificuldades experienciadas
e a referência mais numerosa (em relação aos outros perfis) à expe‑
riência de situações de discriminação/exclusão social associadas à sua
condição socioeconómica envolvendo a aparência física, a condição de
beneficiárias de determinado tipo de apoio social ou em consequência
de pedidos de apoio que efetuaram. Vivência que não se limita,
no entanto, somente à esfera das relações sociais em geral, mas é igual‑
mente testemunhada em avaliações mais críticas relativas à relação
entre os serviços de apoio social e as pessoas em situação de vulnerabi‑
lidade, mormente quando está em questão o respeito pelo princípio da
dignidade dos cidadãos apoiados.
Concluindo, na maior parte das narrativas das expectativas dos entre‑
vistados em relação ao futuro, a privação não é encarada como uma
condição momentânea, mas antes um traço que se foi inscrevendo nas
suas trajetórias de vida, condicionando as expectativas em relação ao
futuro e, sem muitas perspetivas de melhoria das suas condições de
vida, projetando‑se a esperança de melhoria futura na descendência.
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Conclusão geral
De acordo com os últimos dados disponíveis do Inquérito às Condições família concreta. O valor da taxa oficial de pobreza dá‑nos boa conta
de Vida e Rendimento, 17,2 % dos portugueses estavam em risco de da unidade da pobreza, sendo um bom ponto de partida para a gestão
pobreza em 2018 (ICOR de 2019). Se olharmos bem para este número política da res publica. É uma ferramenta construída para fins estatís‑
podemos observar que é composto por três algarismos e por dois sinais ticos e políticos e cumpre a sua função. A taxa de risco de pobreza,
matemáticos. No entanto, condensa as vidas de mais de 1,7 milhões de e todas as estatísticas que à volta dela gravitam, permite uma primeira
portugueses. Aliás, neste livro, com os dados do ICOR 2017 referentes e importante aproximação à pobreza em Portugal, de uma forma
aos rendimentos de 2016, identificámos 1,9 milhões (18,3 %) de indiví‑ rápida, comparável no tempo e no espaço – com os restantes países da
duos em situação de pobreza em Portugal (cf. O capítulo 2). UE, bem como entre regiões. Permite ainda uma primeira aproximação
à caracterização dos indivíduos em situação de pobreza: podemos
Algumas destas pessoas são homens, outros são mulheres; alguns
saber, por exemplo, além de quantos são, em que tipo de habitat vivem,
são velhos, outros são novos. Alguns são crianças e jovens, outros
como se posicionam em relação à ocupação (são ativos, reformados,
estão em idade ativa e outros, ainda, reformados. Alguns têm doenças
etc.), bem como o seu sexo e a sua idade e algumas das características
graves ou menos graves, outros são saudáveis. Alguns trabalham a
das suas estruturas familiares, ou como se distribuem por regiões.
tempo inteiro com estabilidade, outros têm atividades laborais ao dia,
à tarefa ou à semana. Alguns estão claramente empregados, outros Ao mesmo tempo, esta taxa é o resultado de escolhas técnicas e,
estão numa zona intermédia (difusa) entre emprego e não emprego. como todas as escolhas, envolve limitações. Neste livro identificamos
Alguns têm contratos aos quais estão associados direitos e deveres e algumas importantes, em especial no primeiro capítulo. Por exemplo,
outros desenvolvem trabalho informal. Alguns definem‑se em função a taxa: 1. subestima a pobreza das mulheres e das crianças,
da sua condição perante o trabalho, outros em função da sua condição 2. restringe‑se aos rendimentos monetários, 3. não englobando o
de saúde. Alguns vivem em situações de grande violência física e património mas, sobretudo, 4. tem alcance limitado na captação da
emocional, outros consideram‑se felizes. Alguns estão resignados, variabilidade espacial, temporal e social das situações de pobreza que
outros estão otimistas. Alguns têm planos, outros vivem o dia a dia. se verificam em Portugal. Esses limites, aliás, ecoam no nosso próprio
Alguns consideram‑se pobres, outros não. trabalho: a base de construção dos perfis de pobreza que utilizámos
é o próprio ICOR e este não nos permite ir além do que existe nos
A pobreza em Portugal é una, porque reúne um conjunto de indiví‑
dados. Por mais que os investigadores tenham por base os microdados,
duos que tem em comum essa condição social e diversa, porque cada disponibilizados pelo INE, nas suas investigações; por mais que usem
situação é única, vivida no singular e no seio de um contexto e de uma
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técnicas estatísticas para os «fazer falar», os dados estatísticos não nos Não é humanamente possível ter em conta toda a diversidade de situa‑
podem dizer mais do que aquilo que em si encerram. ções corporizadas pelos indivíduos em situação de pobreza, mas é
possível identificar, dentro delas, regularidades sociais e efeitos estru‑
As estatísticas oficiais, tão bem representadas por esse número‑síntese turais – económicos, sociais e culturais – que permitam guiar políticas,
que é a taxa de risco de pobreza, cumprem a função de nos mostrar a implementando novas e avaliando as que estão em execução.
unicidade da pobreza, mas ficam aquém da necessidade de compreen‑
dermos a sua diversidade. E a compreensão da pluralidade de situações Quer dizer, para que haja desenvolvimento é condição necessária,
de pobreza é uma exigência para compreendermos a sociedade portu‑ ainda que não suficiente, a implementação de políticas sociais e econó‑
guesa no seu todo. Afinal, estamos a falar de, sensivelmente, um quinto micas que tenham em atenção a diversidade de públicos que abrangem,
da população residente em Portugal. Sem termos uma noção de quem por contraponto com a produção e implementação de políticas gene‑
é e de como vive esta parte da população, a partir da perspetiva da ralistas de baixo impacto. Estas últimas têm o seu lugar e é um lugar
pobreza, dificilmente compreenderemos o país no seu todo. Neste importante: proporcionam a universalidade de acesso a direitos,
caso, a quantidade é uma qualidade em si própria. um esteio fundamental da democracia – a igualdade. Mas são, também,
necessárias políticas que se orientem por princípios de redistribuição
Mas a compreensão da diversidade das situações de pobreza é também e de solidariedade, atentas às situações de maior vulnerabilidade social
importante para a gestão da res publica, isto é, para a condução dos e económica e à diversidade de públicos. Afinal, tentar tratar por igual
destinos políticos do país com vista à promoção do desenvolvimento. o que é diferente é algo que produzirá resultados diferentes para
Este, por sua vez, pode ser entendido como a busca, realizada por uma públicos diferentes. Só tratando públicos distintos de forma distinta é
sociedade, para proporcionar a todos os seus membros condições que possível conseguir resultados semelhantes. A ideia pode ser contrain‑
lhes permitam desenvolver as suas capacidades e alcançar a felicidade, tuitiva, mas um pouco de atenção permite verificar a sua solidez.
tendo como pano de fundo um padrão de vida com dignidade.
O projeto de investigação de que este livro é resultado constitui‑se
Mas a variabilidade das situações de pobreza também está na forma como um observatório para conhecer com maior profundidade a varia‑
como os indivíduos se veem e vivem a sua situação. E esta dimensão bilidade da pobreza em Portugal e, nesse sentido, um importante
subjetiva tem um papel importante na agência dos indivíduos. Não foi contributo para a gestão da res publica. As decisões políticas (sociais
por acaso que este projeto se designou «Quotidianos e trajetos de ou económicas), numa sociedade ao mesmo tempo complexa e em
pobreza em Portugal». Sem uma janela para a compreensão destas ques‑ crescendo de complexificação não podem ser feitas por intuição ou
tões, a gestão da res publica não terá informações suficientes para a convicção. Precisam, inequivocamente, de ser fundamentadas no conhe‑
promoção de políticas eficazes e eficientes, quer para promover o desen‑ cimento da realidade social, e este tem como única fonte o trabalho das
volvimento (sentido lato), quer para combater a pobreza (sentido estrito). ciências sociais. Aliás, a própria avaliação das políticas implementadas,
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outro requisito da complexidade e da complexificação social, também perceber quais os principais perfis de pobreza em Portugal. Em parti‑
deverá ser baseado nos trabalhos realizados nesta área disciplinar. cular, esta última bateria de resultados é um passo muito importante
em direção à maior compreensão da diversidade da pobreza no país,
Esperamos, com os nossos resultados, contribuir para um melhor dado ser baseado numa amostra estatística representativa da popu‑
conhecimento da pobreza, nos seus cambiantes, em ordem a lação portuguesa da maior robustez, o ICOR. Por si só, a definição das
proporcionar à sociedade portuguesa, e aos seus governantes, mais probabilidades de pobreza e dos perfis de indivíduos em situação de
informação para se poderem implementar melhores políticas, gene‑ pobreza, em especial a segunda, são produtos da maior relevância, pelo
ralistas e on target. Cremos, também, contribuir para o avanço do que trazem de novo ao estudo deste fenómeno social. Em especial,
conhecimento sobre o problema da pobreza em Portugal. e pela primeira vez, é apresentada uma proposta de perfis de pobreza
No que se refere, mais concretamente, à pesquisa, a primeira opção que em Portugal com uma sólida base estatística.
condicionou o desenho do projeto de investigação que desenvolvemos Mas o maior objetivo da realização desta parte quantitativa foi cons‑
e, por consequência, os resultados que apresentamos, foi a de realizar tituir um quadro de referência inicial para a análise qualitativa, através
uma abordagem mista, com uma fase intensiva e uma fase extensiva. da construção de perfis de indivíduos em situação de pobreza. Foi
Na fase extensiva foi‑nos possível, em primeiro lugar, desenvolver uma nosso objetivo usar estes perfis para fundamentar a nossa seleção de
reflexão sobre as limitações dos conceitos e dos dados que serviram entrevistados por ordem a, por um lado, compreender de forma mais
de base ao nosso trabalho. De seguida, revisitámos os principais indi‑ aprofundada a diversidade de características e de trajetórias de vida dos
cadores da pobreza e da exclusão social em Portugal, atualizando indivíduos em situação de pobreza e, por outro, a partir da dimensão
e complementando de forma aprofundada trabalho anteriormente subjetiva, recolher narrativas quanto à forma como as pessoas em
feito. Este exercício serviu também para identificar as principais situação de pobreza se veem e como veem (e vivem) a sua situação.
variáveis que, dentro das limitações do Inquérito às Condições de Assim, a maneira como escolhemos as pessoas a entrevistar foi alvo
Vida e Rendimento (ICOR), caracterizam a pobreza em Portugal. de aturada consideração e foi desenvolvida minuciosamente e com
De seguida usámos duas técnicas de análise estatística raramente grande cuidado, em ordem a conseguirmos encontrar a maior variabili‑
mobilizadas para analisar a pobreza, a nível nacional e mesmo inter‑ dade possível de situações de pobreza, quer entre os perfis, quer tendo
nacional – Probit e Análise das Correspondências Múltiplas (ACM). em conta a diversidade interna de cada perfil. Foi, pois, dada grande
Em si, os resultados obtidos com estas técnicas são inovadores e atenção ao procedimento de operacionalização dos perfis encontrados,
trazem novo conhecimento ao estudo sobre a pobreza em Portugal. isto é, à passagem dos perfis de pobreza para as quotas dos indivíduos
Por um lado, permitem‑nos perceber que categorias estatísticas apre‑ a entrevistar, bem como aos procedimentos de seleção dos entrevis‑
sentam uma maior probabilidade de pobreza; por outro, ajudam‑nos a tados no terreno. Entrevistámos pessoas por todo o país, fomos a
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aldeias com 30 habitantes no interior, e a freguesias da insularidade de crianças (três ou mais), bem como variáveis referentes aos indi‑
periférica, estivemos no centro da cidade de Lisboa, nas sedes dos víduos de referência dos agregados87, em particular duas condições
maiores concelhos e nas mais pequenas freguesias rurais do país, tendo socioprofissionais (trabalhadores da agricultura, pescas e florestas e
concretizado 87 entrevistas e ainda quatro entrevistas exploratórias. trabalhadores não qualificados) e a condição de desempregado.
Mobilizámos um elevado número de entidades e pessoas (a quem Estas probabilidades de pobreza estão claramente associadas à
muito agradecemos!) para conseguirmos contactar os nossos entrevis‑ evolução da taxa de pobreza (taxa de risco de pobreza no léxico do
tados e tivemos muito cuidado para evitar que a seleção final incluísse Eurostat e do INE88), algo que, por sua vez, está associado aos ciclos
apenas indivíduos alvo de apoio social, aqueles cuja identificação económicos: são identificáveis três períodos desde que existe a série
inicial e posterior contacto se revela mais fácil. A ultrapassagem deste estatística em Portugal (2003 até 2016). Um primeiro que vai pratica‑
desafio foi crucial, quer porque as características dos perfis assim o mente desde o início da série em 2003 até ao início da crise económica
exigiam, quer porque permitiu trazer à análise categorias de pessoas e corresponde à diminuição gradual, ainda que não contínua, da taxa
em situação de pobreza, em regra mais afastados dos estudos reali‑ de pobreza. Um segundo, com incidência nos anos de maior impacto
zados anteriormente, dado o seu afastamento dos principais motores dos efeitos sociais da crise, entre 2012 e 2014. Neste período veri‑
de recrutamento para pesquisas sobre a pobreza (para além das estatís‑ ficou‑se um agravamento da incidência da pobreza, anulando‑se uma
ticas): as instituições de apoio social. parte muito significativa dos ganhos na sua redução ocorridos no
período anterior. Finalmente, após 2014, o ciclo descendente da inci‑
Não obstante todos estes cuidados, reafirmamos uma questão meto‑ dência da pobreza é retomado ainda que, até 2016, a descida observada
dológica central neste estudo: os nossos resultados qualitativos dão não tenha sido suficiente para repor os valores pré‑crise89. Não será
conta da diversidade de situações de pobreza vividas em Portugal mas difícil perceber qual a tendência dos próximos tempos, considerando o
não são, obviamente, estatisticamente representativos dessa realidade, impacto da crise pandémica.
como é decorrente da natureza dos estudos intensivos.
Concomitantemente ao uso da análise Probit, para se encontrar as proba‑
Na análise quantitativa destacamos, em concreto e em primeiro bilidades de pobreza por categoria estatística foi possível identificar
lugar, a probabilidade de pobreza associada às variáveis selecio‑ alguns conjuntos como sendo particularmente vulneráveis à pobreza,
nadas. Entre estas, destacamos as categorias de variável que estão mobilizando as estatísticas fornecidas pelo INE: em primeiro lugar,
associadas a uma maior probabilidade de pobreza na população portu‑ as crianças e jovens, mas também as famílias monoparentais, as famílias
guesa, em particular as referentes a características dos agregados em alargadas com crianças, os indivíduos com baixíssimos níveis de instrução
situação de pobreza: os que têm como principal fonte de rendimento (inferior ao primeiro ciclo do Ensino Básico), os indivíduos em situação
«Outras transferências sociais»86 e agregados com um maior número de desemprego e a população inativa. Claramente estes grupos cruzam‑se
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em grande medida e, por isso, fez todo o sentido recorrer à análise multi‑ diferenças, têm pontos em comum. Está em causa, aqui, a unicidade da
variada para encontrar perfis de pobreza em Portugal. pobreza de que acima se falava.
Foi o que fizemos de seguida: assim, foi possível identificar quatro Organizámos a apresentação dos resultados empíricos de natu‑
perfis da pobreza no país, definidos a partir de duas dimensões: reza qualitativa em quatro capítulos, em que cada um corresponde a
uma mais associada à idade e questões geracionais e outra ao rendi‑ um dos perfis identificados. Cada um destes capítulos, por sua vez,
mento e às variáveis associadas ao mundo do trabalho, envolvendo desdobra‑se em nove secções. Nestas, está expressa a diversidade dos
características dos ADP e dos indivíduos de referência. Os perfis olhares dos investigadores que analisaram o material. Há limites para a
encontrados são: 1. Reformados, correspondendo a 27,5 % do total dos segmentação da informação e cada um dos pontos identificados, com
pobres em Portugal; 2. Precários, com um peso de 26,6 % da amostra; regularidade, retoma questões já tratadas num ponto anterior, a partir
3. Desempregados, correspondendo a um total de 13,0 %; e, finalmente, de uma outra perspetiva e como ponto de partida para novas análises.
4. Trabalhadores que, com 32,9 %, corresponde a cerca de um terço do
total dos pobres em idade adulta (18 e mais anos) em Portugal e cons‑ Note‑se que os resultados apresentados neste livro são condensações
tituem a categoria mais numerosa. Estes perfis foram confrontados dos resultados do projeto. No que respeitam aos perfis, as evidências
com a literatura sobre o assunto, tendo sido verificada a sua robustez empíricas que os sustentam podem ser encontradas, de forma muito
teórica (cf. o capítulo metodológico). mais aprofundada, nos quatro livros eletrónicos que o complementam,
sendo que cada livro corresponde a um perfil trabalhado.
A análise apresenta diferenças entre os diversos perfis, e delas damos
conta nos capítulos 3 a 4 e nesta própria conclusão. Essas diferenças Uma primeira questão que desafia a apresentação dos resultados para
estão associadas às variáveis que os enformam, em particular a relação os diferentes perfis é o elemento comum da pobreza, de que temos
com o mundo do trabalho e a idade, bem como as variáveis de compo‑ vindo a falar. Afinal, todos os entrevistados partilham essa condição
sição familiar. Contudo, as semelhanças entre perfis são, ao mesmo social. Deste modo, um primeiro ponto da apresentação dos resultados
tempo, assinaláveis. A existência destas semelhanças é, em si, algo que da análise qualitativa reporta‑se à apresentação geral dos resultados,
se podia antecipar, considerando que todos os entrevistados partilham só depois sendo possível passar às principais diferenças.
de uma importante característica comum: a situação de pobreza. Com Assim, em todos os perfis é possível identificar, para a grande maioria
efeito, a condição da pobreza constrange as possibilidades de escolha dos entrevistados, um processo de reprodução intergeracional da
dos indivíduos, o seu quotidiano, afetando os seus trajetos de vida. pobreza. Estamos, pois, em presença do que podemos designar por
A inexistência de recursos de todo o tipo, ou a sua relativa escassez, pobreza tradicional. Estes indivíduos cresceram num contexto mais
reduz a margem de manobra dos indivíduos, fazendo com que estes ou menos continuado de privação, o que condiciona, à partida, as suas
acabem por experienciar, agir e trilhar caminhos que, mau grado as
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oportunidades de vida, nomeadamente contribuindo para antecipar nem concebiam ter tido uma vida melhor com mais escolaridade, mas
a saída da escola e a entrada no mercado de trabalho e consequente‑ outros «adoraram» a frequência do sistema de ensino, tinham sucesso
mente ingressando em empregos pouco qualificados. Em muitos casos, escolar e encaram a escolaridade como elemento importante.
o que está em causa é simplesmente a própria escassez de rendimentos.
Na maior parte dos casos, essa é já a condição dos progenitores aquando Os entrevistados, na maior parte dos casos, deixaram a escola para
do seu nascimento, noutros verifica‑se a existência de elementos deses‑ ajudar a sua família de enquadramento, monetariamente ou com o seu
truturadores das condições de vida familiar, abaixo identificados. trabalho. Aqui, as situações concretas variam: a necessidade de tomar
conta de uma avó, de substituir a mãe ausente na lida da casa, de tomar
Para alguns, a infância é recordada como um tempo feliz, onde puderam conta dos irmãos, ou ainda, simplesmente, de complementar o orça‑
brincar e interagir com os familiares e as outras crianças, mesmo reco‑ mento familiar. Os trabalhos agrícolas são importantes, mesmo para
nhecendo‑se os fortes constrangimentos financeiros. Para outros, os entrevistados em ambiente urbano, algo que se fundamenta nos
a privação cedo se entrecruza com o sofrimento pessoal, em alguns processos de migração rural‑urbana. As ideias de sair da escola para
casos marcando as suas memórias e trajetórias. Nas nossas entre‑ se conseguir uma independência económica para si ou para entrar em
vistas, registam‑se alguns momentos de grande intensidade emocional, conjugalidade não estão ausentes, mas são francamente minoritárias.
ao evocarem‑se recordações. Ora o que está em causa é a doença ou a
morte de um progenitor, ora é o alcoolismo do pai, ora está em causa a Neste momento cremos ser já possível salientar três ideias: 1. o forte
violência doméstica, ou ainda o abandono por parte da mãe ou do pai. papel dos constrangimentos monetários (pobreza familiar) na defi‑
Os motivos são diversos, mas a sua natureza é semelhante – a desestru‑ nição precoce do destino escolar e laboral dos entrevistados, dado
turação familiar – e, por vezes, são cumulativos. Em alguns casos, não tão que o abandono precoce não permitiu o acesso a atividades laborais
poucos quanto isso, são relatadas situações de grande violência física e qualificadas; 2. a existência de percursos de sucesso escolar associados
psicológica. ao gosto pela escola, interrompidos para se prestar apoio à família de
origem em alguns casos; 3. e o efeito desafiliante da vida familiar em
Para a grande maioria, independentemente do perfil, o acesso ao mundo muitos casos, para retomar o conceito de Castel.
do trabalho aconteceu de forma precoce, frequentemente em situação
de trabalho infantil. Este acesso precoce esteve associado a um percurso A grande exceção a este estado das coisas refere‑se aos mais novos,
escolar curto, por vezes de sucesso, mas frequentemente com algum concentrados no Perfil 2, dos Precários. Estes abandonaram a escola com
insucesso escolar, relevando a dificuldade do sistema escolar em chegar escolaridades mais altas, em comparação, mas sem que isso tenha impe‑
a indivíduos que dele estão culturalmente afastados. O que aqui é mais dido a sua situação de pobreza, considerando as suas estruturas familiares
relevante, contudo, é a associação do sucesso escolar a alguns destes e os rendimentos do trabalho que obtêm (quando os obtêm). Por sua vez,
percursos curtos. É verdade que muitos declararam não gostar da escola os motivos do seu abandono não diferem dos já referenciados.
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De qualquer forma, observa‑se uma importante inflexão no discurso dos abundante, dado que a pobreza é definida a partir da conjugação dos
indivíduos em relação à escola: muitos mostram‑se arrependidos de a rendimentos (neste caso do trabalho) com as características dos agre‑
terem deixado (os que o fizeram por sua iniciativa e não por imposição gados (neste caso de maior dimensão) e de insuficiência de apoios
parental) e a grande maioria assume que, se tivesse continuado a estudar, – de todo o género – proporcionados pelas políticas públicas. Mas, se no
poderia ter tido uma vida melhor. Trata‑se de uma importante rutura com Perfil 4 todos os entrevistados estão a trabalhar, há que dar relevância
a posição habitual de desvalorização da escola que era comum nos meios à situação de instabilidade no emprego no seio do agregado familiar,
menos escolarizados, sobretudo rurais, fazendo antever que a resistência considerando o que se poderá designar por desemprego familiar, dado
à escola esteja a desvanecer‑se, mesmo no seu reduto mais irredutível. que, em regra, diversos membros destes agregados dependem do entre‑
Mesmo assim, alguns, como referimos, não se arrependem de terem vistado(a) como provedor único ou deste e de um cônjuge.
deixado precocemente a escola e não visualizam que a sua vida teria sido
melhor com mais escolaridade. Nestes casos, não parece haver nenhuma Há aqui uma importante conclusão a recordar: em muitos casos,
boa recordação da passagem pelo sistema de ensino, registando‑se uma a pobreza está associada à conjugação dos baixos rendimentos de
descrença nas suas próprias capacidades ou na capacidade do mercado de trabalho com a estrutura familiar, e mesmo a existência de dois prove‑
trabalho em absorver uma mão de obra mais qualificada. dores não é suficiente para impedir a pobreza dos membros do agregado.
Isto em contextos em que a fraqueza dos apoios sociais se evidencia.
Um dos pontos onde se verifica uma maior diversidade de situações é
na transição para a vida adulta, acompanhando‑se as profundas trans‑ Algumas pessoas tiveram a possibilidade de voltar à escola (ou de
formações da família e da conjugalidade que perpassaram a sociedade fazer formação) na idade adulta. Essas atividades foram quase sempre
portuguesa nas últimas décadas. É possível, aliás, verificar entre os de iniciativa institucional, dos serviços de emprego ou de ação social.
entrevistados uma clara marcação geracional. Alguns apresentam uma Os resultados não foram bons, na generalidade dos casos. Alguns
situação conjugal clássica, sobretudo os mais velhos, concentrados no sentiram‑se obrigados, ou sentiram que a formação a que tiveram
Perfil 1 (Reformados). No polo oposto podemos verificar a existência acesso não teve qualquer utilidade. Outros retiraram deste regresso
de todo o tipo de situações, desde a mulher ou o homem solteiros na algum orgulho, ou gostaram de conviver com os colegas na formação,
casa dos 50 anos, até diversas situações de monoparentalidade, feminina ou até a acharam interessante. Mas não se verificam impactos posi‑
mas também masculina, ou à sucessão de experiências conjugais, com tivos duradouros destas novas passagens pelo sistema de formação.
filhos de progenitores distintos, e ainda diversas outras situações. A esta O cenário de melhoria das condições de emprego por via do regresso à
diversidade de conjugalidades pode associar‑se a existência de bastantes escola (ou formação) não se verifica, para os indivíduos em situação de
famílias alargadas e extensas, sobretudo no Perfil 4, dos Trabalhadores. pobreza que entrevistámos90.
Não espanta que, nesse perfil, este tipo de famílias seja particularmente
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Entre as diferentes estratégias de acesso ao emprego, verifica‑se que são mas não se está exatamente a desenvolver um trabalho: uma bolsa
mais os casos de mobilização de redes de conhecimento interpessoal do de estágio ou de formação profissional, um programa ocupacional,
que de estratégias individuais (procura através do jornal ou da internet, um biscate, a acumulação de um biscate com uma reforma, um part‑time
ida a empresas, etc.) do que as institucionais (concursos, por iniciativa involuntário, um lay‑off (mesmo antes da atual crise encontrámos um
dos centros de emprego ou das instituições de ação social). De facto, caso), ou ainda diversos casos de pessoas que se dizem domésticas,
as estratégias institucionais estão completamente ausentes do Perfil 1, mas que vão exercendo as mais variadas atividades laborais infor‑
os Reformados. As redes sociais mobilizadas para o emprego têm como mais, algumas não remuneradas, mas todas envolvendo trabalho. Aliás,
protagonistas os familiares mais próximos (sobretudo para as primeiras os nossos entrevistados sabem muito bem fazer a distinção entre o
experiências de trabalho), mas também amigos e conhecidos. estar a trabalhar e o ter um trabalho. Um «empregozito», como foi refe‑
rido e almejado por uma entrevistada. A existência desta zona difusa
Como seria de esperar, muitos têm uma relação complexa com o mundo entre trabalho e não trabalho é um marcador importante da difícil
do trabalho. Desde logo, a análise do seu percurso laboral permite ver relação de muitos dos entrevistados com o mundo do trabalho e desafia
o que se tem vindo a designar, noutros estudos, como trajetória de mesmo a definição do que é trabalho e do que é emprego.
emprego em carrossel. Nestas entrevistas, foi possível identificar as prin‑
cipais características deste tipo de trajetória: por muito que os nossos Quer dizer, há um peso importante da trajetória laboral em carrossel,
entrevistados tenham mudado de emprego ou de atividade, por muitas entre os casos estudados. Contudo, existe um importante e flagrante
atividades que tenham desenvolvido ao longo da sua vida, não saem da contraste. Referimo‑nos a um grupo relativamente numeroso de indi‑
mesma posição social. Isto é, movem‑se, por vezes vertiginosamente, víduos que se encontram em contrato sem termo, muitos há mais de
entre atividades laborais mas não saem do mesmo sítio, em termos dez anos, alguns há mais de 20. Este grupo está muito concentrado no
sociais. Uma trajetória de emprego em carrossel é caracterizada pela Perfil 4, dos Trabalhadores pobres, constituindo, aliás, a maioria dos
precariedade das atividades desenvolvidas ao longo do tempo, pela entrevistados deste perfil. Há também um ou outro caso no Perfil 2.
sua informalidade (sem direitos ou deveres laborais) e por períodos de Aqui, o que se salienta é a constatação de que não basta ter um emprego
desemprego, mas também pela existência de atividades que se situam seguro para não se ser pobre. A conjugação entre os baixos rendimentos
numa zona difusa entre emprego e desemprego. do trabalho e a estrutura familiar (famílias com alguma dimensão e tipo‑
logia diversa bem como com desemprego familiar), num contexto de
Sobre esta zona difusa, nas entrevistas foi possível identificar um fraqueza dos apoios sociais, explica que se possa ser um trabalhador
conjunto de atividades que partilham uma característica: não são contratualmente estável e, ao mesmo tempo, ser‑se pobre.
bem emprego, nem são bem inatividade. Há trabalho, há rendimento
(embora nem sempre), mas não há claramente uma relação laboral. Aqui levanta‑se uma outra questão importante, a da intensidade da
Existe, portanto, uma zona intermédia em que se está a trabalhar precariedade laboral. Entre os nossos entrevistados a precariedade
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não é a mesma para todos, alguns encontram‑se no polo da precarie‑ nesse perfil é mais para sublinhar a definição de si como trabalhador
dade extrema, com atividades ao dia, à semana ou à tarefa (ou na zona (apesar da penosidade acrescida causada pela doença, crónica ou limi‑
difusa entre trabalho e não trabalho) e outros encontram‑se no outro tativa da atividade física do indivíduo, é‑se trabalhador).
polo, com contratos a termo certo (com todos os direitos e deveres
que implicam). Pelo meio, existem diferentes cambiantes e formas Independentemente dos aspetos mais subjetivos, objetivamente a
de viver em precariedade laboral. Cremos que esta diversidade justi‑ doença constrange e limita os entrevistados na sua atividade profis‑
fica a criação de uma escala da intensidade da precariedade laboral, sional (ou constrangia no passado, no caso dos reformados), quer
por forma a que exista um indicador capaz de ajudar o combate a este para si quer para outro membro do seu agregado familiar. Um resul‑
problema social, caracterizando‑o com algum rigor. Os indicadores tado relevante deste estudo passa, precisamente, por esta questão
existentes, em Portugal e na Europa, estão longe de satisfazer a neces‑ da doença. Assim, a menção à doença, sua ou de alguém do seu agre‑
sidade de compreensão deste fenómeno social. gado (e falamos de doenças crónicas ou incapacitantes), surge de
forma consistente nos diferentes perfis. No Perfil 1, dos Reformados,
Na dimensão mais subjetiva da análise, do ponto de vista da maneira a sua presença é ainda mais sentida. E não apenas nas referências ao
como o emprego contribui para a formação das identidades sociais presente, mas ao longo de todo o seu percurso de vida…
dos entrevistados, verifica‑se que existe uma grande dificuldade
em condensar a atividade desenvolvida numa palavra ou pequena Em geral, a presença da doença no discurso dos nossos entrevistados
expressão, isto é, no nome de uma profissão. Esta dificuldade é espe‑ é tanto mais significativa quanto apenas era referida numa pergunta
cialmente forte nos entrevistados com atividades ligadas ao mundo do guião e a título de exemplo, um entre vários, quando se falava em
rural. Em alguns casos, a desqualificação das atividades desenvolvidas acontecimentos disruptivos na infância, logo no início da entrevista.
é muito grande, algo que dificulta sobremaneira a sua condensação no É um caso claro de concretização prática de uma das maiores virtudes
nome de uma profissão. Noutros casos, as dificuldades manifestadas das análises qualitativas em entrevista semiestruturada: a capacidade
não têm essa origem. Em todos os casos, o efeito é o mesmo: indicia de encontrar na realidade questões importantes que não são anteci‑
a dificuldade de os indivíduos se definirem como trabalhadores e, padas pelos investigadores.
ao mesmo tempo, a desqualificação das atividades desempenhadas. O que está em causa são os impactos da doença, quer limitando a
De resto, aquando da menção da atividade profissional, e a ela asso‑ possibilidade de os entrevistados trabalharem (ou outro doente no
ciada, verifica‑se que boa parte dos indivíduos se definia mais como agregado familiar), quer desviando os parcos recursos destes agregados
doente do que como trabalhador, no que ao trabalho respeita. Esta para os procedimentos da sua minimização (ou cura, quando possível),
definição de si como doente está praticamente ausente do Perfil 4, incluindo a ocupação de alguém como cuidador (na maioria dos casos
dos Trabalhadores, e nos poucos casos em que essa menção aparece como cuidadora). A relevância da doença nas narrativas dos nossos
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entrevistados, cremos, mostra bem que este é um aspeto que tem sido do agregado familiar); e ainda diversas situações de membros da
subestimado na análise da pobreza em Portugal. família emigrados (pais, irmãos/ãs, filhos e outros) e mesmo amigos.
A emigração é um processo que tem permitido aos indivíduos fugir
No que respeita à satisfação (ou gosto) pelo trabalho desenvol‑ à pobreza (nos relatos dos nossos entrevistados, mas não nos seus
vido, pudemos observar que parte dos entrevistados releva desgosto casos particulares, embora alguns afirmem que estiveram melhor como
para com diversas atividades laborais desenvolvidas ao longo da sua emigrados). O mesmo não pode ser dito em relação aos processos
trajetória de emprego. Entre os motivos evocados destacam‑se a imigratórios. Se a intenção tem sido essa, no caso dos imigrantes por
penosidade das tarefas desempenhadas, os baixos salários e a relação nós entrevistados os resultados estão longe de corresponder.
com os outros (colegas ou patrões). No discurso de alguns, pode
observar‑se uma situação intermédia; declaram gosto pelo trabalho, Na dimensão mais subjetiva de análise das entrevistas, é ainda possível
mas associam‑no a questões que remetem para o conformismo com encontrar a avaliação dos entrevistados sobre a adequação dos seus
o trabalho ou para a sua associação à penosidade e não para o que níveis de rendimento. Neste sentido, quase todos consideram que
se pode classificar como gosto. Muitos dos nossos entrevistados, estes são desadequados às suas necessidades e conseguem identificar
portanto, são conformados em relação ao trabalho que desenvolvem e com facilidade momentos concretos em que o seu rendimento não
executam‑no em situações que, com regularidade, apresentam algum foi suficiente, com alguma exceção dos mais novos. Em alguns casos,
grau de penosidade. Excetuando alguns entrevistados mais jovens há referência ao autoabastecimento (ou autoprovisão) enquanto forma
(concentrados no Perfil 2, dos Precários), a relação com o trabalho é de minimizar as dificuldades sentidas, algo possível nos meios rurais.
orientada pela necessidade e não tanto pela realização pessoal e profis‑ Fica muito claro nos discursos dos entrevistados que pequenas quan‑
sional. Existem muito poucos casos de entrevistados que expressem tias, como 20 ou 30 euros por mês, têm um impacto muito grande na
um qualquer gosto pelo trabalho assente na realização pessoal e na sua gestão do orçamento doméstico.
satisfação proporcionada pelas tarefas desenvolvidas.
A resignação é o sentimento predominante no que se refere à avaliação
Uma outra questão que sobressai da análise das entrevistas, no que que fazem da sua vida até ao momento da entrevista. Os aspetos
ao trabalho respeita, é a menção à emigração (e em diversos casos positivos identificados giram, no seu essencial, à volta da família,
a processos imigratórios; afinal entrevistámos imigrantes, dispersos em particular dos filhos. Acresce que quase todos consideraram que,
pelos 4 perfis). Estas menções são de grande relevo, na medida em apesar de tudo, vivem agora melhor que no passado, em especial entre
que não existe no guião qualquer questão, exemplo ou sugestão. São, os reformados do Perfil 1. Entre os aspetos negativos avulta a doença,
pois, menções espontâneas dos entrevistados. Quanto à emigração, a sua ou a de alguém próximo, a morte e situações de instabilidade
é possível perceber: a existência de períodos de emigração, para familiar, bem como desemprego e instabilidade laboral.
diversos países; planos para emigração (próprias e de outros membros
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No que respeita à sua relação com os serviços de segurança social e associados a um lugar no fundo da escala social. Outros consideram que
outros sistemas de proteção do Estado, a maioria é crítica, outros são a pobreza sempre persistiu ao longo da sua vida.
elogiosos e alguns nunca tiveram qualquer relação. As críticas estão
associadas, por um lado, à exiguidade dos apoios oferecidos e, por Independentemente da forma como adjetivavam a sua situação, quase
outro, ao escrutínio que é exigido em troca, invadindo a dignidade, todas as pessoas entrevistadas viviam‑na com resignação. Contudo,
a privacidade e a autonomia dos entrevistados. Alguns entrevistados e surpreendentemente, a maioria considera‑se feliz. A exceção é o
recusam recorrer a este tipo de apoios por vergonha, algo que se veri‑ Perfil 1. Contudo, essa felicidade está associada à resignação com a sua
fica mesmo em diversos casos em que se recorre. A família‑providência situação e ao seu enquadramento familiar. As esperanças estão, para
é um recurso importante para a maioria dos entrevistados, quer estes a maioria, depositadas numa vida melhor para os seus filhos (e netos).
estejam no papel de recetor, quer no de provedor, em boa parte através Mas o trabalho (Perfil 4) e a saúde também são motores desse senti‑
de apoios à subsistência, por contraponto aos apoios à promoção mento de felicidade.
social existentes noutras categorias e grupos sociais. Isto num Por fim, uma referência às expectativas relativamente ao futuro.
contexto em que a maioria, aquando de algum período de desemprego, Na maioria das entrevistas, a resignação, a falta de esperança ou,
atual ou passado, não beneficiou dos apoios aos desempregados. Uma pelo menos, indeterminação em relação ao futuro, são as tónicas que
alternativa tem sido o RSI, mas alguns não lograram aceder a essa predominam nas narrativas relacionadas com a avaliação prospetiva.
medida de apoio social, por rendimentos acima do limiar da elegibi‑ Em muitos casos, há pouca esperança na melhoria das condições de
lidade. De qualquer forma, fica claro nos discursos a exiguidade dos vida e os sonhos estão direcionadas para a realização de necessidades
apoios, quer dos informais quer dos públicos. básicas essenciais como ter saúde, habitação ou emprego. É também
Ainda assim, uma boa parte dos entrevistados considera que não se frequente que os esforços de imaginação estejam concentrados no
encontra em situação de pobreza, comparando‑se com outros mais futuro dos descendentes – pelo desejo de que venham a ter garan‑
pobres do que eles e referenciando, amiúde, as situações de quem passa tidas essas necessidades básicas, que sejam felizes ou que constituam
fome ou de quem vive numa situação de sem‑abrigo, confundindo, pois, família. Estas disposições estão particularmente presentes no Perfil 1 e,
pobreza com miséria. Outros, ainda, assumem‑se como pobres mas rela‑ de certo modo, também no Perfil 4, ganhando contornos mais diversos
tivizam essa condição por relação ao seu passado. Quer dizer, temos aqui nos Perfis 2 e 3.
presente o mecanismo de racionalização discursiva que permite impedir A análise das entrevistas do Perfil 2 sugere a existência de diferenças
que uma identidade para os outros negativa se transforme numa identi‑ geracionais na forma de encarar o futuro, sendo possível distinguir
dade para si negativa (Diogo, 2007). Este mecanismo é importante para aqui um grupo mais otimista. Nestes casos, constata‑se uma maior
permitir aos indivíduos minimizar os impactos emocionais negativos ênfase nas qualificações, como forma de alargar as oportunidades de
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vida ou com objetivos de aprendizagem ou de realização; e as pers‑ A Doença corresponde, desde logo, a doenças crónicas ou prolongadas
petivas de trabalho são definidas não apenas segundo critérios de com impactos: na capacidade de os indivíduos desenvolverem uma
necessidade, mas também de realização profissional e pessoal. atividade laboral; no seu bem‑estar; na necessidade de, eventualmente,
existir um cuidador assim impedido de exercer outras atividades ou,
Um outro aspeto que foi alvo de atenção tem a ver com os motivos de no mínimo, ficando em sobrecarga; e em despesas adicionais (medica‑
entrada em situação de pobreza. Sendo certo que está em causa um mentos e outros bens de saúde). A doença de um indivíduo não é um
número pequeno de entrevistados que, apenas recentemente, entrou em problema meramente individual, tendo em atenção o impacto alargado
situação de pobreza, há duas questões muito relevantes que se podem no seu círculo familiar. À doença propriamente dita há que juntar a
concluir. A primeira tem a ver com aquilo que temos vindo a designar morte. Esta última tem, também, um importante impacto disruptivo e,
como os três D da pobreza. Quer dizer, os fatores que vão justificando quando nos referimos ao D da doença estamos a incluir aqui também os
a entrada numa situação de pobreza entre os entrevistados respeitam a impactos disruptivos da morte de um familiar. A par da doença, também
eventos associados: ao Desemprego; à Doença; e ao Divórcio. a morte de membros significativos das famílias se revela um aspeto
De facto, por alturas do 25 de Abril de 1974, o Movimento das importante nas trajetórias de vida, com impacto na harmonia familiar
Forças Armadas traçou três objetivos: Democratizar, Descolonizar e e nos montantes de rendimentos disponíveis, pois alguns depoimentos
Desenvolver. A pobreza é algo cujo processo de entrada está associado, enfatizam como a morte de um provedor teve impacto nas dinâmicas
quase 50 anos depois, a outros três D. de entrada na pobreza, em particular quando a intensidade laboral do
agregado familiar é muito diminuta. Note‑se que, como a doença e a
Todos envolvem ruturas com impacto na vida dos indivíduos e das suas emigração, a morte não foi alvo de nenhuma questão específica. Apenas
famílias. O Desemprego parece ser um termo óbvio, contudo existem aparece como exemplo numa questão sobre a infância, mas é bastante
alguns cambiantes que é preciso ter em atenção, nomeadamente o relevada pelos entrevistados. Neste sentido, a identificação do impacto
referente à zona difusa entre emprego e desemprego. Além disso, este significativo da morte na situação de pobreza dos entrevistados é um
desemprego não é apenas referente ao próprio, mas envolve também resultado de grande relevo neste trabalho.
os membros em idade ativa do seu agregado familiar. Como vimos,
há uma inequívoca dimensão familiar na pobreza e no desemprego. Finalmente, o Divórcio. No contexto da modernidade tardia, este é
Portanto, este D representa mais do que sugere o sentido imediato frequente e deve ser conjugado com a coabitação. Mesmo nos casos em
do termo desemprego; estão aqui contidas todas as dificuldades no que o casamento não foi formalizado, a separação definitiva dos casais
mercado de trabalho que impelem indivíduos e famílias para a pobreza em união de facto é, para todos os efeitos, divórcio. O divórcio próprio
e se manifestam como ruturas. ou dos pais, com a exceção do Perfil 1, é algo que, em situações que já
de si são de grande fragilidade, leva facilmente os indivíduos à pobreza,
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considerando o corte de rendimentos e os seus efeitos em cascata, de entre as quais se destaca o papel estruturador, da economia,
incluindo na atividade laboral. Além disso, o D de Divórcio também inclui do mercado de trabalho e das políticas públicas.
outro tipo de ruturas familiares com impacto na produção ou reprodução
das situações de pobreza, como as que acima se referenciaram. Contudo, os três D não existem apenas nos processos de produção
da pobreza, de entrada em pobreza, mas também estão presentes nos
No entanto, mau grado a sua inegável capacidade heurística, a abor‑ seus processos de reprodução e, até, da sua intensificação. Com efeito,
dagem a partir dos três D da pobreza tem evidentes limitações. É que é claro que estes elementos estão presentes na trajetória de vida dos
analisar as desigualdades sociais a partir da perspetiva da pobreza entrevistados, agravando situações já de si difíceis ou condicionando
é uma opção com uma forte componente política. Ao centrar‑se a fortemente a vida dos indivíduos, reduzindo a sua margem de manobra
atenção na pobreza em termos individuais, minimiza‑se a análise dos e tornando mais remotas as suas possibilidades de sair da situação de
fatores políticos, sociais e estruturais que contribuem para produzir e pobreza. Mas, tal como nos processos de produção de pobreza, não
reproduzir a pobreza numa dada sociedade. Neste sentido, ao usarmos é possível centrarmo‑nos apenas nos três D e ignorarmos os efeitos
a perspetiva dos três D – uma abordagem microssocial – não podemos contextuais, quer sejam estruturais, mais associados ao funcionamento
perder de vista o contexto social em que eles impactam a vida dos da sociedade (incluindo economia e Estado), quer os mais conjuntu‑
indivíduos: a questão da desregulação do mercado de trabalho; as rais, em particular os associados aos momentos de crise (como vivemos
características do tecido económico que levam a determinadas ofertas recentemente e estamos a viver no momento em que se escreve esta
de emprego, segmentadas e desqualificadas mas exercendo um papel conclusão) ou de prosperidade.
importante para a sobrevivência do sistema como um todo91; a inca‑
pacidade do sistema de ensino em cumprir as suas promessas de Ainda sobre a entrada em situação de pobreza existe um segundo
universalidade; a fragilidade da rede de segurança que o Estado propor‑ aspeto muito relevante. Referimo‑nos à questão da vulnerabilidade.
ciona, precisamente, em caso de eventos disruptivos da vida dos Com efeito, as nossas entrevistas permitem abrir uma janela para
indivíduos e das famílias associados a perdas de rendimento; as insufi‑ uma categoria social que não é analisada neste estudo, os vulneráveis,
ciências do apoio público à conciliação trabalho‑família, entre outros. entendidos como indivíduos que estão acima do limiar da pobreza,
E não são apenas as questões mais estruturais que impactam a pobreza; mas para os quais qualquer acidente, como os condensados nos três D,
nos testemunhos recolhidos ficou claro o impacto da conjuntura, os atira, e às suas famílias, para essa situação. O vislumbre que temos
em concreto a crise político‑económica de 2008‑201492. deles é, precisamente, nos (poucos) casos que identificámos entre
os nossos entrevistados, de indivíduos que entraram mais ou menos
Os três D são uma janela para os processos de produção da pobreza, recentemente em situação de pobreza.
mas fazem‑no parcialmente, na perspetiva microssociológica. A estes
há que acrescentar o contexto social, as dimensões societárias,
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Quer dizer, o que está em causa não são as características principais da o que se verifica é que a marca do Estado Novo é muito forte na sua
sua relação com o trabalho, trajetória de emprego e enquadramento vida, nomeadamente pelo contraste com o período democrático. Estão
familiar, mas o facto de terem rendimentos um pouco mais elevados em causa a educação, a saúde, a proteção social e o emprego, nas suas
(que o limiar da pobreza) e de não apresentarem fatores disruptivos. condições e salário e até na transição para o emprego na situação de
Contudo, uma situação de crise como a que vivemos em 2008‑2014 ou trabalho infantil (na conceção atualmente em vigor), quase sem exce‑
a que atravessamos, ou um evento crítico de um dos três D, leva‑os, ções. Se as trajetórias de emprego remetem essencialmente para o
com facilidade, para uma situação de pobreza. Com efeito, os nossos período democrático, isso não impediu que as formas de organização
dados complementam trabalhos anteriores (Capucha, 2005; Costa et al., económica e social do Estado Novo continuassem a manifestar‑se com
2008; Alves, 2015, entre outros) onde já se tinha compreendido que força nas suas vidas. Como bem lembra Santos (1993), o dia 25 de abril
existe um importante grupo de vulneráveis à pobreza que, rapida‑ de 1974 não revolucionou magicamente as estruturas sociais. Iniciou‑se
mente, pode aí cair ou voltar a cair. Em concreto, Costa et al. (2008, um novo processo democrático que, com vicissitudes e em camadas,
p. 106 e ss.) mostram que, entre 1995 e 2000, 46 % dos portugueses veio coexistir com o que já existia, modificando a realidade, mas não
passaram pela pobreza pelo menos durante um desses anos. A análise de forma revolucionária. O Estado Novo é, portanto, a grande marca
sistemática dos vulneráveis é uma necessidade que emerge dos resul‑ que caracteriza a pobreza deste primeiro perfil e o distingue de todos
tados deste estudo. Para mais no atual contexto de crise grave. os outros. Do ponto de vista da sua vida familiar, este perfil também
contrasta com os outros, quer pela linearidade da transição para a
Não obstante, a existência de amplas questões comuns à pobreza idade adulta, quer pelo facto de a maioria viver no contexto do que
entre os nossos entrevistados, existem especificidades em cada perfil. se designa como família tradicional (casamento duradouro, diferen‑
Já fomos avançando com algumas; existem muitas mais. De seguida ciação de papéis de género…). É também o grupo mais descrente no seu
apresentamos aquelas que nos parecem mais relevantes para marcar a futuro.
sua diversidade e a identidade de cada um.
No polo oposto está o Perfil 2, referente aos Precários. Desde logo
Assim, no que ao Perfil 1, dos Reformados, respeita, o que se salienta é porque, se o Perfil 1 é o mais marcado e coerente, o Perfil 2 é o
o efeito geracional. E este efeito é sentido de uma dupla maneira: por mais heterogéneo e menos coerente. A indefinição deste perfil está
um lado, na sua posição no ciclo de vida, por outro, a sua posição no associada à posição que ocupa no mapa percetual da Análise de
tempo histórico. Em relação ao primeiro, isso traduz‑se pela sua idade Correspondências Múltiplas, dado que apresentam um lugar inter‑
e condição de reformados, mas também pelo facto de em regra serem médio entre os Perfis 3, dos Desempregados e 4, dos Trabalhadores.
os mais descrentes no seu futuro e os que mais referem a doença e
a morte. Por si só, estas características dão a este perfil uma grande Não obstante, é aqui que se concentram os mais novos e mais esco‑
coerência e solidez. No que respeita à sua posição no tempo histórico, larizados. O que marca bastante este perfil é, por um lado, o facto
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de os agregados onde se inserem não terem baixa intensidade de Já o Perfil 4, dos Trabalhadores, contrasta com os restantes por uma
trabalho e, por outro, ser o grupo onde a família‑providência é mais ligação forte com o mundo do trabalho. Esta força é construída de
importante e onde os indivíduos (mais jovens) são mais otimistas em várias maneiras. Desde logo, é aqui que a doença se manifesta menos.
relação ao futuro. De facto, é possível perceber, sem que seja possível Quando aparece, é para sublinhar a ética do trabalho – trabalha‑se
ter a certeza absoluta, que estamos aqui em presença, em boa parte, em sacrifício, pela penosidade imposta pela doença, mas trabalha‑se.
dos filhos adultos (e outros dependentes) dos indivíduos do Perfil 4. Outra força desta ligação, que contrasta com todos os três perfis ante‑
Dependendo, portanto, do trabalho que estes desenvolvem para a riores, tem a ver com o facto de a maior parte destes entrevistados ter
sua sobrevivência. Não obstante, há uma relação em nome próprio uma situação estável no mercado de trabalho. E é também aqui que as
com o mundo do trabalho: quase todos, de uma forma ou de outra, famílias onde se enquadram têm o trabalho como principal fonte de
exercem, ou exerceram recentemente, uma atividade laboral. A ativi‑ rendimento do agregado familiar. Mas isso não impede que existam
dade em causa é exercida à margem das normas e regras que regulam a outras situações de grande fragilidade em relação ao trabalho, no seio
relação salarial, frequentemente em condições de grande penosidade, do seu agregado familiar. De facto, pelo que pudemos observar, deste
em precariedade, e com salários muito baixos, o que justifica a situação fazem parte indivíduos classificáveis no Perfil 2, como já tínhamos
de pobreza em que se encontram e a sua dependência de outros referido. Além disso, existem neste perfil alguns casos de dois prove‑
(apenas há uma ou duas exceções, de pessoas em melhor condição). dores de rendimentos que, mesmo assim, não são suficientes para
obviar uma situação de pobreza. Mas mesmo neste perfil uma parte,
O Perfil 3, Desempregados, em contraste com o anterior, é constituído minoritária, mas importante, encontra‑se em situação de emprego
por indivíduos um pouco mais velhos, menos escolarizados e, na sua frágil, no contexto de uma trajetória de emprego em carrossel, indi‑
maioria, com situações de desemprego prolongadas ou muito prolon‑ ciando que um qualquer evento disruptivo, caracterizado nos três D,
gadas, sendo mais dependentes do que os do Perfil 2 dos apoios sociais pode tornar a sua situação, com facilidade, na identificada no Perfil 3.
do Estado e de outras instituições. Este tipo de apoios está presente nos Isto tendo como contexto o facto de este perfil partilhar com o Perfil 2
diferentes perfis, mas é especialmente marcado neste. O Perfil 3 é, justa‑ a característica de não ter uma relação forte com os apoios sociais
mente, em conjunto com o Perfil 1, aquele onde as questões da doença, providenciados pelo sistema de segurança social.
e do obstáculo que esta constitui para o emprego, mais se salientam.
A doença está presente com algum peso no Perfil 2, mas francamente Durante a fase de redação deste livro as consequências sanitárias,
menos do que naquele. Muitos estão desempregados desde a crise de sociais, económicas e políticas da pandemia desabrocharam em força,
2008‑2014 (ou 2010‑2013). Portanto, a ligação complexa com a atividade pelo que achámos por bem incluir um posfácio, no qual realizámos um
laboral presente no Perfil 2 é aqui muito mais ténue. exercício, naturalmente limitado, de projeção dos efeitos da pandemia
nos resultados que encontramos.
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Posfácio
Durante o período em que se analisavam os dados e redigia este livro, Não obstante o elevado grau de incerteza que se move no centro
fomos confrontados com a crise sanitária, económica e social provo‑ desta crise, há já uma questão relevante que parece certa: não está a
cada pela doença Covid‑19, surgida dos interstícios da globalização. atingir todos por igual e os mais pobres estão a ser mais afetados do
que outras categoriais sociais. Não há nada de surpreendente nesta
Os últimos dados para este estudo foram recolhidos em dezembro de
questão, estes já tinham sido os mais atingidos pela crise anterior.
2019 e a pandemia começou a fazer sentir os seus efeitos em Portugal
Essencialmente, devido à escassez de todo o tipo de recursos que apre‑
em março de 2020. Não podemos, contudo, ignorar as consequências
sentam, nesta instância destaca‑se a falta de capacidade de mobilização
desta crise nos indivíduos em situação de pobreza e, por isso, escre‑
política e as fragilidades da sua inserção no mundo do trabalho.
vemos este texto. Sendo este um exercício fortemente limitado é,
também, uma reflexão inevitável. Uma primeira questão que se levanta, em relação ao impacto da crise,
tem a ver com a relação com a saúde. Designadamente, está em causa
Esta crise traduz‑se numa situação excecional, com um impacto
o acesso a serviços de saúde. Num contexto condicionado pela priori‑
intenso e rápido, com consequências profundas no bem‑estar e nos
dade ao despiste e tratamento de doentes com Covid, os indivíduos com
modos de vida dos indivíduos, bem como ao nível da organização da
menores recursos não têm possibilidade de procurar uma alternativa
sociedade (tanto na economia como na organização social e política).
privada. Esta questão é tanto mais relevante quanto se verifica nos dife‑
Compomos esta reflexão apresentando os impactos nos quatro rentes perfis a existência de doenças, crónicas e/ou incapacitantes, com
perfis por nós encontrados, cruzando a dimensão mais individual, um importante impacto na capacidade de trabalhar e na qualidade de
dos percursos de vida dos indivíduos, com a referente aos aspetos mais vida em geral. Isto é especialmente verdade no Perfil 1, dos Reformados,
estruturais. Para isso, mobilizamos os resultados das entrevistas mas mas é uma questão que está presente de forma regular nos restantes.
também os da análise quantitativa.
Uma importante constatação impõe‑se: é que o impacto da crise
Antes de iniciarmos a reflexão propriamente dita é importante é potencialmente desigual para os diversos perfis em análise. Uma
começar por sublinhar dois aspetos da maior importância: é que a crise primeira e relevante diferença organiza‑se em função da condição
– no momento em que escrevemos – está longe de estar terminada; e perante o trabalho. Mais concretamente, e em primeiro lugar, é nossa
que as suas dimensões, quantitativa e qualitativa, são de tal maneira opinião que os impactos desta crise serão distintos para os indivíduos
grandes, que nos impedem de ver com clareza como se desenvolverá. do Perfil 1, os Reformados.
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É certo que este grupo é particularmente vulnerável aos efeitos da em especial aos montantes atribuídos ao Complemento Solidário para
doença, apresentando uma maior probabilidade de esta lhes causar Idosos, nomeadamente se vierem a ser implementadas medidas de
sequelas permanentes ou mesmo a morte, mau grado a atenuação austeridade. O mesmo verificando‑se nos apoios dos municípios ou de
desta possibilidade pelo processo de vacinação em curso. Porém, entidades privadas que alguns, como vimos, vão recebendo. Há aqui
no que respeita à dimensão social propriamente dita, o impacto da potencial para uma degradação das condições de vida das pessoas mais
crise (económica, política, social e financeira) deverá ser menor do que idosas pelo facto de estes apoios, em especial os privados e os autár‑
entre os restantes perfis. quicos, terem de ser redistribuídos por mais indivíduos.
Por baixas que sejam as suas pensões, a sua regularidade coloca‑os Uma outra forma de pressão sobre os recursos das pessoas idosas tem
ao abrigo de uma perda súbita da sua principal fonte de rendimento. a ver com a solidariedade intergeracional. Estamos já a falar de uma
Pelo menos se não se verificarem cortes nas pensões, em especial nas questão de natureza mais microssocial. Fomos observando nos nossos
mais baixas. Estes cortes podem acontecer por via direta, pela redução resultados que os idosos são, muitas vezes, um elemento importante
nominal das pensões – menos provável – mas também por via indireta, das redes de solidariedade familiar que se tecem entre as pessoas
através da não atualização e consequente redução por via da inflação. pobres, por limitadas que essas redes sejam e por limitados que sejam
os recursos que nelas circulam. A atual crise tem todo o potencial
Se a inflação é baixa e a erosão anual que provoca é pequena (não se para pressionar os recursos dos idosos no sentido de aumentarem (ou
prevendo que aumente), os seus efeitos são, porém, amplificados entre iniciarem) o apoio aos seus filhos e netos, nuns casos, e para deixarem
os indivíduos em situação de pobreza. Como vimos nas nossas análises, de receber o apoio dos seus filhos, noutras situações. No primeiro
o valor relativo de um dado montante pode ser considerado pequeno cenário, os recursos à disposição dos idosos diminuirão por via da
para indivíduos não pobres, mas muito grande para os indivíduos em maior necessidade de os transferir para outros, e no segundo dimi‑
situação de pobreza (40, 30 ou mesmo dez ou cinco euros por mês, nuirão por deixarem de receber um complemento financeiro, informal
fazem toda a diferença). mas importante para o seu bem‑estar. É o próprio funcionamento da
Não obstante, existem diversas formas que poderão tornar a vida da sociedade‑providência, na sua variante família‑providência que poderá
população pensionista mais difícil por via da pressão sobre os seus ter um efeito no aumento da privação entre os mais idosos.
recursos. Uma primeira forma de pressão tem a ver com os apoios Uma segunda questão que perpassa os nossos perfis tem a ver com o
complementares à pensão que alguns recebem. Portugal é um país em desemprego e a desocupação. Estes atributos caracterizam o Perfil 3,
que a maior parte dos apoios sociais são dirigidos à população idosa e, Desempregados, mas também existem entre os entrevistados do
neste momento, o agravamento das situações sociais pode aumentar a Perfil 2, Precários.
concorrência, pelo menos do ponto de vista teórico, para estes apoios,
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Aqui, há dois principais impactos possíveis a reportar em relação ao Quer dizer, estes indivíduos têm todo o potencial para passar nos
desemprego. Um deles está centrado no Perfil 2. Referimo‑nos à possi‑ interstícios da malha social, considerando a pluralidade de formas
bilidade de se ficar desempregado. Acreditamos que esta possibilidade atípicas, precárias e informais como se vinculam ao mundo do trabalho.
é especialmente grande entre os indivíduos em situação de pobreza, Os travões que o governo criou para o desemprego não se lhes aplicam
pelo que acima foi dito: o que, em regra (e neste perfil), caracteriza a e a proteção social primária aos desempregados também não. Cremos
sua relação com o trabalho é a precariedade, à qual a informalidade que este tipo de cenário é mais plausível para a pobreza urbana, nos
está amiúde associada. grandes centros do litoral, onde se situa a maior parte da população
e onde são mais notórias as atividades ligadas ao turismo, e deverá
Formalmente, à luz da regulação laboral, muitos destes indivíduos não ser menos evidente nos espaços rurais, onde as atividades desenvol‑
serão, sequer, despedidos, dado que a relação que têm com a vincu‑ vidas na agricultura terão menos tendência a serem afetadas. Não
lação não é típica e não se configura dessa forma. Isso implica que obstante, tudo dependerá da intensidade e da duração da crise. Se esta
muitos não terão, sequer, direito ao subsídio de desemprego ou ao for intensa e prolongada, torna‑se mais provável que estas distinções
subsídio social de desemprego. percam pertinência.
No contexto das empresas, são os mais precários e os informais que O segundo impacto no desemprego e na desocupação tem a ver com
mais facilmente podem ser dispensados e é isso que tem vindo a uma questão simples de se enunciar, mas com um grande efeito na
acontecer. Evitamos aqui o termo «despedidos», dado que essa cate‑ vida dos indivíduos: com mais desemprego e menos emprego, a proba‑
gorização não se lhes pode aplicar, apesar de as consequências para os bilidade de os indivíduos aumentarem os seus rendimentos por via
indivíduos serem as mesmas. do acesso ao emprego é, desde já, bastante menor. Quer dizer, quem
Acresce que muitas das atividades desenvolvidas pelos indivíduos em está desempregado (ou desocupado) terá menos possibilidades de
situação de pobreza, por exemplo no setor dos serviços, são especialmente conseguir uma atividade remunerada, por precária e informal que
vulneráveis aos efeitos da crise e, como tal, apresentam maior proba‑ seja. A probabilidade de os indivíduos do Perfil 3, Desempregados,
bilidade de falência, daí resultando a perda do posto de trabalho. Isso conseguirem um emprego tornou‑se bem menor. O mesmo pode
verificou‑se especialmente com o setor da construção na crise anterior. ser dito para os novos desempregados, classificados nos outros dois
Nesta crise, há que dar destaque à restauração e aos serviços associados ao perfis em que faz sentido colocar o cenário (excluindo, portanto,
turismo. De notar que um número indeterminado de desempregados da os Reformados). Acresce que uma maior taxa de desemprego pode
construção na crise anterior tinha vindo a ser absorvido pelas atividades pressionar uma menor qualidade das ofertas, designadamente em
que gravitam à volta do turismo estando, estes indivíduos, novamente, termos contratuais e salariais.
em (elevado) risco de desemprego ou mesmo já nessa situação.
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Também em relação ao desemprego se verifica um aumento da concor‑ deste perfil é especialmente dependente destes apoios familiares,
rência, com consequências na vida dos indivíduos. Por um lado, e como por comparação com os restantes perfis.
vimos, mais desempregados concorrerão por menos postos de trabalho.
Por outro, os apoios ao desemprego terão que ser distribuídos por No caso do Perfil 2, o potencial desemprego (ou potencial deso‑
mais indivíduos durante mais tempo e também estarão em concor‑ cupação) tem ainda um outro efeito, o do Provedor Único. Isto é,
rência direta com outro tipo de apoios que serão solicitados ao Estado, em alguns casos estamos na presença de famílias monoparentais ou
como os apoios às empresas. No Perfil 3, Desempregados, encon‑ unipessoais (em especial femininas) e ainda outras tipologias de famí‑
trámos alguns indivíduos em programas ocupacionais. Consideramos lias com diversos membros em que existe um único provedor de
que, neste momento, e num futuro próximo, será muito mais difícil aos recursos por via do trabalho. O potencial despedimento (ou dispensa
pobres conseguir atenuar a intensidade da pobreza através da adesão de atividade laboral) deste provedor é um cenário de amplas conse‑
a um destes instrumentos de política social, dada a maior concor‑ quências para os próprios e para as famílias que deles dependem.
rência para um lugar (isto na perspetiva de que os recursos alocados Dado que esta pandemia afeta a economia a nível global, o escape da
pelo Estado se mantenham constantes ou de que o aumento venha a emigração para o desenvolvimento de atividades de carácter sazonal
ser menor do que o necessário). Por outro lado, um elevado número ou temporário noutros países europeus, para os indivíduos perten‑
de pessoas nestes programas terá como consequência disfarçar o centes a este perfil, deverá ser diminuto (verificando‑se o mesmo para
desemprego e a ocupação de postos de trabalho de forma «barata», os indivíduos pertencentes aos Perfis 3 e 4). Nestas situações, a possi‑
prejudicando o emprego desses trabalhadores (mas esta é uma preocu‑ bilidade de agravamento da pobreza, e da sua intensidade, é enorme.
pação que apenas ganha peso num contexto de retoma do emprego). Dito isto, há que chamar a atenção para dois fatores que matizam e
As questões relativas à mobilização das redes de solidariedade fami‑ complexificam a análise que estamos a realizar. Desde logo, a diver‑
liar, constitutivas da sociedade e família‑providência são, também sidade que caracteriza cada perfil, resultado das distintas trajetórias
para estes dois perfis, desafiadas pela pressão generalizada sobre os de vida, em especial no mundo do trabalho. A esta diversidade há que
recursos dos indivíduos pobres, nos mesmos moldes em que foram juntar a aleatoriedade provocada pela complexidade da sociedade e da
definidas para o Perfil 1, dos Reformados. Em especial no caso do situação. Se os cenários que estamos a tecer são, em nosso entender,
Perfil 2, os indivíduos empregados que aí se inscrevem deverão receber os mais prováveis, nada impede que existam casos em que, como vimos
solicitações de apoio de familiares que pressionarão os recursos em várias situações, os rendimentos dos indivíduos estabilizem (em
que terão disponíveis para si próprios, quer no seio do seu agregado situação de pobreza), ou mesmo que os retirem dessa condição. Por
familiar, quer da sua família mais próxima (pais, irmãos, filhos autono‑ exemplo, conseguir um emprego com alguma qualidade pode ter um
mizados, etc.). Vimos, aliás, que uma parte importante dos elementos desses efeitos. Não obstante, se isto pode acontecer é, neste momento
e no futuro próximo, algo de mais difícil concretização.
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O segundo fator tem a ver com o facto de, no Perfil 2, existirem alguns No caso deste perfil, coloca‑se com acuidade a questão do Provedor
indivíduos, poucos, que apresentam uma trajetória laboral estável por Único, fazendo com que as suas famílias sejam especialmente vulnerá‑
oposição à trajetória laboral em carrossel apresentada pela maioria. veis ao desemprego do seu único elemento com atividade remunerada.
Indivíduos que tenham a possibilidade de manter os seus empregos Também nos casos em que existem dois provedores, o desemprego
(e neste caso pode falar‑se de empregos) terão a possibilidade de ver, de um deles terá consequências, com grande potencial para agravar a
para si e para os seus, a sua situação de pobreza não se agravar. Não intensidade da pobreza em que vivem.
obstante, mesmo estes casos poderão ver os seus rendimentos pressio‑
nados por poderem vir ser chamados a prestar solidariedade familiar, E mesmo que não fiquem desempregados, é possível que vejam os
no contexto da família‑providência. seus recursos pressionados pela necessidade de prestar solidarie‑
dade a outros familiares. Neste caso, os filhos adultos, ainda que não
Resta‑nos falar do quarto e último perfil, o dos Trabalhadores (pobres). tão numerosos como no Perfil 1, dos Reformados, existem. Aliás,
Boa parte das questões relevantes foram já referenciadas. Considerando possivelmente ligados a pessoas como as que representam uma
que o que define a pertença a este perfil é, em primeiro lugar, a exis‑ parte importante dos identificados no Perfil 2, Precários, como refe‑
tência de uma situação de emprego, as questões que os desafiam renciamos neste trabalho. Designadamente os estudantes e outros
respeitam à precariedade, à informalidade, ao desemprego e à pressão inativos que aí se concentram.
para o apoio a outros no âmbito da família‑providência. Tudo isto sob o
pano de fundo constituído pelos baixos rendimentos familiares. Se estamos a focar esta análise nos diversos perfis por nós encon‑
trados não podemos, no entanto, perder de vista que, na realidade
A forma como se apresentam no mercado de trabalho, onde se salienta social, todos estes perfis estão interligados pelos mais variados laços,
a escassez dos rendimentos auferidos, bem como a presença em desde logo familiares (como acabamos de sublinhar), mas também de
setores de atividade particularmente vulneráveis à crise, potencia, vizinhança, de trabalho e outros. Isso significa que um efeito num dos
amplifica, a possibilidade de por ela serem afetados. Mesmo nos casos, pontos desta rede terá repercussões em toda a rede que, através dos
maioritários neste perfil, em que existe estabilidade laboral, a falência laços sociais, liga os indivíduos.
das empresas onde trabalham é uma ameaça importante.
Por outro lado, existe aqui a possibilidade do efeito acumulado
Se ficarem em situação de desemprego, alguns passarão entre as no tempo. Sendo certo que, em regra, e pelo que vimos nas entre‑
malhas da rede de proteção social, dada a informalidade dos seus vistas, estes indivíduos não dispõem de grandes recursos em reserva
vínculos contratuais. Apenas o rendimento social de inserção estará ao (poupanças) para fazer face a um agravamento da situação (desem‑
seu alcance e os montantes que proporciona estão bastante abaixo do prego, solicitações no âmbito da família providência, etc.), se a situação
limiar de pobreza. se prolongar no tempo cremos que a solidariedade tenderá a erodir‑se,
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em alguns casos, e as escassas reservas a desaparecer. Afinal, ninguém Por sua vez, o insucesso escolar, independentemente da crise, é um
consegue fazer um sprint que dure toda a corrida quando esta tem uma dos principais problemas que desafia o desenvolvimento do país,
maior duração… O tempo, portanto, tem a capacidade de amplificar os a nível macro, e a intergeracionalidade da pobreza, a nível micro. Não é
efeitos negativos da atual crise, intensificando a pobreza e tornando a uma inevitabilidade, os estudos mostram que há um efeito de escola
vida destes indivíduos bastante mais difícil. que pode atenuar os efeitos de classe e de agregado familiar. Isto é,
há escolas que conseguem ter melhores resultados do que se espe‑
Referenciamos, também, duas categorias sociais que, em boa parte, não raria pela origem social dos seus estudantes. Contudo, o insucesso
estão dentro dos nossos perfis, mas que estão já a ser afetadas pela escolar caracteriza‑se, precisamente, por ser massivo em Portugal e
crise pandémica. Referimo‑nos, em primeiro lugar, aos estudantes93 centrado nas categorias sociais mais baixas. O ensino à distância (por
em situação de pobreza (e complementarmente às crianças). inevitável que seja) parece‑nos especialmente desadequado para as
Chamamos a atenção para o facto de que as crianças, mas também os crianças e jovens em situação de pobreza e esta desadequação não se
estudantes, não são pobres em si mesmos, dado que não dispõem de esgota, longe disso, na inexistência de recursos materiais (computador,
rendimento individual. São pobres porque integram agregados familiares tablet e internet), antes vai beber à fonte das dificuldades escolares
pobres, os que estão referenciados nos perfis por nós identificados. previamente existentes, amplificando‑as. De resto, o aumento das
desigualdades poderá dar‑se não apenas pela dificuldade de acesso
Os indivíduos dos perfis que analisámos estão, com regularidade, inse‑ a equipamentos e à rede digital mas, também, pelas dificuldades de
ridos em agregados familiares onde existem crianças. Aliás, como já acompanhamento por parte de várias famílias às crianças nas tarefas
salientámos noutros estudos e como vimos na primeira parte deste, escolares, bem como pela dificuldade de gerir o esforço escolar próprio
a pobreza na infância (0‑17 anos, segundo a ONU e o Eurostat), bem em contextos de maior exigência de autonomia.
como a dos agregados com filhos (na sua diversidade), é mais elevada
do que a média geral. Se estamos a falar dos estudantes, não podemos esquecer as crianças
(0‑17 anos), categoria que se interseciona fortemente com ela, mas
A conjugação destes fatores faz‑nos salientar que a crise atual, com as com a qual não se confunde. Como referimos, os apoios sociais em
medidas restritivas que impôs no ensino, estará a ter um impacto desigual, Portugal são bastante focados nos mais idosos, pelo que a vulnerabi‑
designadamente no sucesso escolar e até no absentismo. Cremos que, lidade dos mais novos tenderá a acentuar‑se, mais uma vez seguindo
também aqui, se está a verificar um exacerbar das diferenças, um agravar e amplificando as linhas de fratura, de vulnerabilidade, e de desigual‑
dos problemas, seguindo as mesmas linhas de fratura que existiam previa‑ dades, previamente existentes.
mente à crise. No caso dos alunos em situação de pobreza (crianças e
jovens) podemos, pois, projetar um aumento do insucesso escolar. A segunda categoria social são os, assim designados, novos pobres.
Sendo esta uma categoria importada de contextos externos, a sua
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aplicabilidade a Portugal tem sido limitada pelas especificidades da especialmente provável em duas situações. A primeira, quando está em
pobreza portuguesa. As subcategorias sociais a ela associadas têm causa o único provedor de rendimentos de uma dada família; a segunda
um peso demográfico reduzido no contexto da pobreza portuguesa, quando o rendimento de trabalho é, já de si, baixo, fazendo com que a
mais adequadamente caracterizada pela pobreza tradicional. Aliás este súbita inexistência de um segundo salário arraste os indivíduos para a
estudo, na sua parte qualitativa, mostra bem a intergeracionalidade da pobreza (indivíduos e agregados vulneráveis à pobreza). Faz, portanto,
pobreza portuguesa, aspeto que já foi abordado por outros autores a mais sentido falar de vulneráveis empobrecidos (e regressados à
partir dos dados do ICOR. pobreza) do que de novos pobres.
A crise que se iniciou em 2008 veio alterar esta situação, designa‑ Acrescente‑se que, no contexto atual, nem todos os indivíduos terão a
damente naquilo que é a subcategoria central da nova pobreza, mesma probabilidade de ficar desempregados. Notoriamente, os que se
os desempregados e suas famílias. Não obstante, o crescimento econó‑ encontram nos setores do turismo e da restauração deverão ser particu‑
mico que se verificou nos últimos anos, assim como a consequente larmente vulneráveis, sem esquecer os serviços em geral. Mesmo dentro
redução do desemprego, deverão ter tido o efeito de voltar e erodir a destes setores, a probabilidade não é igual para todos. Os que estão em
categoria dos novos pobres. O aumento exponencial do desemprego situação de precariedade e (eventualmente) de informalidade, em regra
associado à atual crise, quer o que já se verifica quer o que poten‑ com rendimentos mais baixos, são mais vulneráveis ao ingresso numa
cialmente se verificará nos próximos tempos, deverá, contudo, dar situação de pobreza. Contudo, a falência das empresas trará, potencial‑
novamente força numérica a esta categoria. Contudo, alguns estudos mente, para a pobreza mesmo os indivíduos com vínculos mais sólidos.
realizados em Portugal desafiam a pertinência da utilização deste
conceito para caracterizar a pobreza em Portugal. Estes mostram que Se, para os quatro perfis que identificámos neste estudo, a questão que
parte importante dos pobres em Portugal são indivíduos que alternam se coloca, no que a esta crise respeita, se refere a um possível aumento
entre a pobreza e a vulnerabilidade. Qualquer incidente de percurso, da intensidade da pobreza, para o caso dos vulneráveis o que está em
como o desemprego numa situação de crise, os faz voltar à situação de causa é um (re)ingresso nessa situação.
pobreza, não sendo por isso exatamente novos pobres, mas indivíduos De notar que esta categoria acaba por se intersecionar com os quatro
com retorno à condição de pobreza. O que está em causa, portanto, perfis definidos. Dependendo da configuração do agregado familiar,
mais do que novos pobres, são os vulneráveis empobrecidos, muitos estes vulneráveis poderão encaixar‑se em qualquer um deles. Se um
regressados à situação de pobreza. trabalhador ficar desempregado, pode levar todo o seu agregado para
Em particular, o que está em causa é o facto do desemprego de um a pobreza; isto num dos contextos acima referidos, colocando‑se e
dos membros de um dado agregado familiar poder provocar a queda colocando os restantes membros do seu agregado nos quatro perfis
na pobreza, ou o retorno à pobreza, de todos os seus membros. Isto é identificados nesta pesquisa.
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Note‑se que o tempo pode ter um efeito cumulativo no desenvol‑ o INE produzir uma taxa ancorada a 2019 (à semelhança do que fez
vimento desta situação: à medida que os subsídios de desemprego em 2014, quando apresentou dados ancorados a 2009 para os anos
terminarem, os rendimentos das famílias diminuirão em consonância. seguintes) de forma a minimizar o impacto deste problema estatís‑
Refira‑se que os novos desempregados que, enquanto empregados não tico na produção de políticas sociais adequadas ao combate à pobreza
eram pobres, têm uma maior probabilidade de beneficiar de subsídio nesta situação de crise.
de desemprego, associado a uma maior probabilidade de vinculação
dentro da norma antes de terem perdido o emprego. Em conclusão, parece claro que a pandemia e suas consequências estão
já a ter um efeito na pobreza em Portugal, intensificando‑a e aumen‑
Releve‑se que a situação de lay‑off pode implicar que um indivíduo e/ou tando o número de pessoas nessa situação. A inexistência de uma
uma família caia/m abaixo do limiar de pobreza, por temporária que seja solução rápida levará, necessariamente, ao agravamento do problema.
a situação, e o número de trabalhadores nesta situação foi muito grande. Cabe ao Estado (cooperando com outros atores institucionais) gerir
A questão não é apenas a da redução do salário, mas o efeito no Ganho as inúmeras solicitações que lhe são feitas, vindas de todos os lados,
(conjunto dos rendimentos de trabalho que inclui outros ganhos para mobilizando recursos para os indivíduos mais vulneráveis, de forma
além do salário‑base), dado que muitos indivíduos só não são pobres a tentar reduzir a intensidade da pobreza; minimizar a probabilidade
porque complementam o salário com horas extraordinárias que, nesta de os indivíduos nela caírem; e criar condições para que os pobres
circunstância, não se concretizaram. Vimos, precisamente, um caso de possam deixar de o ser o mais depressa possível. Tal só será possível
lay‑off com este efeito entre os nossos entrevistados (anterior à crise). se os políticos responsáveis, no governo e na oposição, resistirem à
pressão de alocar todos os recursos a interesses capazes de se mobi‑
De notar que a quebra de rendimento que já se está a verificar terá, lizar politicamente.
aquando da apresentação dos próximos dados do ICOR, um efeito
estatístico potencialmente desestabilizador das medidas de combate
à pobreza: é que, com a queda do rendimento mediano, cairá a linha
de pobreza (ou limiar de pobreza) fazendo que, com o mesmo rendi‑
mento, indivíduos que eram pobres em 2019 deixem de o ser em 2020
ou 2021. O efeito agregado deste problema estatístico será o de subes‑
timação do impacto desta crise no aumento da pobreza em Portugal,
como damos nota no capítulo 2 deste livro. Trata‑se de um problema
que aconteceu na crise anterior, uma vez que durante vários anos se
verificou um aumento da pobreza sem grande correspondência no
aumento na taxa de risco de pobreza. Neste sentido, será importante
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Agradecimentos
Os autores desejam agradecer, em primeiro lugar, a todos aqueles que instituições abaixo listadas (por ordem alfabética), na identificação dos
responderam às questões, contribuindo dessa forma para nos permitir nossos entrevistados (e esperemos não ter deixado nenhum agradeci‑
uma melhor compreensão dos quotidianos e das perceções de quem mento por fazer!):
vive em situação de pobreza.
Associação Cristã de Reinserção e Apoio Social (ACRAS)
Agradecemos, também, ao INE a cedência dos microdados do ICOR Associação Moradores Bairro São Gonçalo (Guimarães)
2017. O serviço público também é o serviço dos investigadores, Associação Qualificar para Incluir (Porto)
levando assim mais longe os dados recolhidos. Câmara Municipal das Caldas da Rainha
Câmara Municipal de Alvito
Uma palavra de apreço para o Dr. Filipe Machado do CICS.NOVA.
Câmara Municipal de Castelo do Paiva
UAçores pela sua preciosa ajuda na redação do aprofundamento
Câmara Municipal de Celorico de Basto
da ACM e na paginação dos relatórios intermédios, bem como ao
Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo
Professor Doutor Cabral Vieira da Faculdade de Economia e Gestão
Câmara Municipal de Montalegre
da Universidade dos Açores, pelo seu apoio na análise Probit, quer na
Câmara Municipal de Sernancelhe
sua execução quer ainda na análise crítica desse capítulo. Agradecemos
Câmara Municipal de Vila Franca do Campo
também à Dra. Heraldina Belchior o seu trabalho de paginação do
Câmara Municipal de Vila Nova de Paiva
relatório final. Ao ISCTE‑IUL e à Universidade Católica agradecemos
Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar
a cedência de instalações para a realização de algumas atividades do
Cáritas Diocesana de Lisboa
projeto, bem como aos tarefeiros que, com espírito de missão, reali‑
Centro Comunitário do Exército de Salvação (Porto)
zaram as entrevistas nos mais variados locais do país.
Centro Social do Barredo (Porto)
Finalmente, agradecemos a todas as instituições e pessoas que nos Centro Social Paroquial de Arroios (Lisboa)
têm ajudado ao longo de todo o processo de identificação das pessoas Centro Social Paroquial de Mafra
a entrevistar. Concretamente, manifestamos o nosso apreço à Rede Centro Social Paroquial de São José (Ponta Delgada)
Europeia Anti‑Pobreza, quer a sede quer as filiais espalhadas pelo CooperActiva – Cooperativa de Desenvolvimento Social (Amadora)
território nacional; ao Professor Doutor Marcos Olímpio Santos, Escola Profissional e Tecnológica Psicossocial do Porto
da Universidade de Évora, e a todos os técnicos e responsáveis das Exército da Salvação
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Fundação Mundos de Vida (Famalicão) Pessoas (para além das referidas acima)
Habita – Associação pelo Direito à Habitação e à Cidade
IEFP (Évora) Acksana Silva (Amadora)
Junta de Freguesia de Bornes de Aguiar (Vila Pouca de Aguiar) Alfredo Brigas (Vila Pouca de Aguiar)
Junta de Freguesia de Fornos (Castelo de Paiva) Ana Luísa Monteiro (Boticas)
Junta de Freguesia de Ponta Garça (Vila Franca do Campo) Francisca Branco (Aljustrel)
Junta de Freguesia de São Martinho de Sardora (Castelo de Paiva) Manuel Chaves (Vila Pouca de Aguiar)
Junta de Freguesia de Valoura (Vila Pouca de Aguiar) Marcelino de Sousa Lopes (UTAD)
Kairós – Cooperativa Incubação Iniciativas Economia Solidária Maria de Assis (SCMAlmada)
(Ponta Delgada) Padre António Fonte (Montalegre)
Movimento de Defesa da Vida (Porto) Rogério Ramos
Projeto A Rodada (Amadora)
Projeto Mira Jovem (Amadora)
Santa Casa da Misericórdia de Almada
Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Santa Casa da Misericórdia de Serpa
Sindicato dos Trabalhadores de Serviços de Portaria, Vigilância,
Limpeza, Domésticas e Atividades Diversas (STAD)
UMAR – Açores (Ponta Delgada)
União de Freguesias de Oliveira, Sampaio e São Sebastião (Guimarães)
União de Freguesias de Raiva, Pedorido e Paraíso (Castelo de Paiva)
União de Sindicatos de São Miguel e Santa Maria (Açores)
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Anexos
A. Tabela dos perfis dos clusters
N.º Cluster N.º Cluster
C1 C2 C3 C4 C1 C2 C3 C4
(27,5%) (26,6%) (13,0%) (32,9%) Total (27,5%) (26,6%) (13,0%) (32,9%) Total
Masculino 37,0% 46,9% 49,0% 48,2% 44,9% 1_ad 34,3% 8,6% 26,8% 0,6% 15,4%
Sexo
Feminino 63,0% 53,1% 51,0% 51,8% 55,1% 2_ad_s_crian_dep_ 3,2% 15,2% 17,4% 16,5% 12,6%
amb_ 65‑
18‑24 0,00% 29,6% 17,7% 5,5% 12,0%
2_ad_s_crian_ 46,2% 3,6% 0,9% 1,9% 14,4%
Idade 4 25‑44 0,2% 33,0% 30,4% 40,7% 26,2% dep_1+ad_65+
categorias 45‑64 14,6% 36,5% 50,3% 52,3% 37,5% Out_agr_s_crian_dep 11,4% 18,9% 6,5% 14,4% 13,8%
65+ 85,2% 0,9% 1,6% 1,5% 24,4% Um adulto com uma 0,1% 9,5% 15,5% 0,6% 4,8%
ou mais crianças
Solteiro(a) 11,0% 61,0% 49,3% 23,4% 33,4%
Composição dependentes
Casado(a) 52,6% 23,4% 21,0% 70,8% 46,7% familiar do
Estado civil agregado Dois adultos com uma 1,5% 10,4% 7,4% 18,7% 10,3%
Viúvo(a) 29,8% 1,2% 7,0% 0,8% 9,7% criança dependente
Divorciado(a) 6,6% 14,4% 22,7% 5,0% 10,2% Dois adultos com duas 12,7% 9,2% 20,7% 11,4%
crianças dependentes
Básico 98,6% 66,4% 79,5% 74,2% 79,5%
Dois adultos com 0,1% 4,3% 4,5% 6,7% 4,0%
Educação Secundário 1,1% 26,9% 14,4% 20,0% 15,9% três ou mais crianças
dependentes
Superior 0,3% 6,6% 6,1% 5,8% 4,5%
Outros agregados com 3,2% 16,8% 11,8% 19,8% 13,4%
1_ad 34,5% 13,9% 33,5% 0,9% 17,9% uma ou mais crianças
n_adultos 2_ad 50,1% 33,2% 40,8% 49,2% 44,1% dependentes
Indivíduo Não 15,7% 34,6% 32,4% 34,4% 29,1%
3+_ad 15,4% 52,8% 25,6% 49,8% 38,0%
com doença
crónica do Sim 84,3% 65,4% 67,6% 65,6% 70,9%
0_cr 95,8% 56,9% 57,7% 42,8% 63,1%
ADP
1_cr 2,1% 25,4% 18,2% 29,8% 19,5%
n_crianças Grau de Urbano 57,4% 68,3% 71,4% 67,1% 65,3%
2_cr 1,8% 13,2% 14,3% 19,4% 12,2%
urbanização Rural 42,6% 31,7% 28,6% 32,9% 34,7%
3+_cr 0,2% 4,5% 9,8% 8,0% 5,2%
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N.º Cluster N.º Cluster
C1 C2 C3 C4 C1 C2 C3 C4
(27,5%) (26,6%) (13,0%) (32,9%) Total (27,5%) (26,6%) (13,0%) (32,9%) Total
Rend_Trab 1,5% 54,5% 4,8% 94,3% 46,6% Não está em 1,6% 62,9% 3,3% 92,8% 48,1%
Principal intensidade laboral per
Fonte de Pensões 97,5% 27,7% 18,8% 4,2% 38,0% Intensidade capita muito reduzida
Rendimento laboral per
Out_Tr_Sociais 0,6% 13,3% 67,8% 12,5% capita muito Está em intensidade 1,2% 6,6% 83,6% 13,0%
do ADP
Out_Tip_Rend 0,4% 4,5% 8,6% 1,5% 2,9% reduzida laboral per capita muito
(LWI) reduzida
F_Armadas 0,6% 0,1% 0,2%
Não se aplica 97,2% 30,5% 13,1% 7,2% 38,9%
Dirig_Direct 4,0% 3,7% 2,3% 6,6% 4,7%
Espec_at_int_cientif 0,4% 3,6% 4,0% 3,4% 2,6%
Tec_p_n_inter 3,1% 3,2% 3,4% 5,0% 3,9%
Pess_adm 1,6% 5,5% 4,5% 6,1% 4,4%
Profissão
Trab_ser_pess 11,4% 21,8% 15,9% 22,3% 18,2%
Agr_trab_qual_APF 13,8% 6,7% 4,2% 6,0% 8,2%
Trab_qual_ICA 13,7% 14,8% 20,1% 17,4% 16,0%
Oper_Inst_MTM 16,5% 13,6% 14,2% 12,3% 14,1%
Trab_n_qual 35,4% 26,5% 31,4% 20,8% 27,7%
União Europeia 0,1% 0,2% 0,1%
Nacionalidade
do indivíduo Local / PT 99,6% 97,7% 98,1% 96,5% 97,8%
de referência
Outra 0,4% 2,2% 1,9% 3,3% 2,0%
Empregados 3,2% 29,0% 4,2% 76,8% 34,4%
Desempregados 0,9% 33,2% 61,1% 9,0% 20,0%
Condição Estudantes 0% 19,4% 8,8% 0% 6,3%
perante
trabalho Reformados 78,5% 0,6% 3,7% 1,8% 22,8%
Domésticos 15,0% 10,4% 8,5% 11,0% 11,6%
Out. inativos 2,3% 7,4% 13,7% 1,4% 4,8%
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B. Distribuição dos perfis por quotas e assim sucessivamente (as combinações podem ser muitas
e dependem dos casos concretos).
Lista de Quotas
Perfil Características
(Combinação das variáveis caracterizadoras nos perfis)
Subperfil
Cluster
Notas relativas ao cálculo do limiar de pobreza:
Individuais Agregado Observações
O limiar de pobreza definido para 2017 era de 5 610 euros por ano, por 1 Mulheres com 65 ou 2 adultos com 65 ou
mais anos, casadas ou mais anos e sem crianças
indivíduo. em união de facto, dependentes; pensões
reformadas como a principal fonte
de rendimento
Em agregados familiares de apenas 1 pessoa, considera‑se o peso de 1.
2 Mulheres com 65 ou Isolados; Pensões como
Nos restantes casos terá de ser calculado o limiar usando a escala mais anos, viúvas, principal fonte de
modificada da OCDE: reformadas rendimento
3 Homens com 65 ou 2 adultos com 65 anos
• Peso de 1 ao primeiro adulto; mais anos, casados ou ou mais e sem crianças
1 – Reformados
em união de facto, dependentes; pensões
• Peso de 0,5 aos restantes adultos; reformados como a principal fonte
• Peso de 0,3 às crianças. de rendimento
4 Homens ou mulheres Sem crianças Em agregados com a)
com idades entre os 45 dependentes; Pensões um único adulto sem
De notar que para as nossas análises criança é todo o indivíduo até aos e os 64 anos, casado(a) como a principal fonte crianças dependentes
17 anos de idade (de acordo com a definição da Convenção dos Direitos s, em união de facto ou de rendimento ou b) com dois
viúvos, reformados ou adultos sem crianças
das Crianças da ONU, também usada pelo INE), sendo que na escala doméstico(a)s94 dependentes e com
modificada da OCDE as crianças são os indivíduos até aos 14 anos. pelo menos um adulto
com 65 ou mais anos
Exemplo: 5 Homens ou mulheres, Isolados;
solteiros ou divorciados, Pensões como a
com 65 ou mais anos, principal fonte de
• Agregado de 1 adulto (1) – 5 610 euros reformados rendimento
• Agregado de 2 adultos (1,5) – 8 415 euros
• Agregado de 3 adultos (2) – 11 220 euros
• Agregado de 1 adulto e uma criança (1,3) – 7 293 euros
• Agregado de 1 adulto e duas crianças (1,6) – 8 976 euros
• Agregado de 2 adultos e uma criança (1,8) – 10 098 euros
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Perfil Características Perfil Características
Subperfil
Subperfil
Cluster
Cluster
Individuais Agregado Observações Individuais Agregado Observações
1 Estudantes com idades Com ou sem crianças 1 Mulheres com idades Agregado cuja principal Predominam os
entre 18 e 24 anos, dependentes; Trabalho entre 45 e 64 anos, fonte de rendimento são agregados sem
solteiros, a viverem em como a principal fonte casadas ou em união outras transferências crianças dependentes
casa dos pais de rendimento de facto, divorciadas, sociais (3/4 deste subperfil).
desempregadas
2 Homens ou mulheres, Com ou sem crianças
desempregados, com dependentes; Trabalho 2 Homens com idades Agregado cuja principal Predominam os
3 – Desempregados e outros inativos mais velhos
idades entre 18 e 44 como a principal fonte entre 45 e 64 anos, fonte de rendimento são agregados sem
anos, solteiros de rendimento; a viver casados ou em união outras transferências crianças dependentes
2 – Indivíduo em idade ativa, dependentes ou trabalhadores, em casa dos pais de facto, divorciados sociais (3/4 deste subperfil).
ou solteiros,
em agregados sem baixa intensidade de trabalho
3 Mulheres com idades Com ou sem crianças Inclui agregados
desempregados
entre 25 e 64 anos, dependentes; Trabalho sem crianças (59,3%)
solteiras, casadas ou ou as Pensões como e agregados com 3 Mulheres, entre 18 Com uma ou mais Predominam os
em união de facto, fonte principal de crianças (40,7%). e 44 anos, solteiras, crianças dependentes; agregados com
ou divorciadas; rendimento; No primeiro caso, casadas, em união de Outras transferências crianças dependentes
domésticas No caso dos agregados distinguem‑se do 1.4 facto ou divorciadas, sociais como principal (mais de 3/4 deste
sem crianças, integram por predominarem desempregadas fonte de rendimento subperfil).
predominantemente os casos de dois
adultos, sem crianças 4 Homens, entre os 18 e Com e sem crianças Cerca de metade
agregados com dois
dependentes, ambos os 44 anos, solteiros, dependentes; dos agregados com
adultos, ambos com
com menos de 65 anos. casados, ou em união de Outras transferências crianças dependentes
menos de 65 anos; no
facto, desempregados sociais como principal
caso dos agregados com
crianças dependentes fonte de rendimento
integram dois ou mais 5 Homens ou mulheres, Sem crianças
adultos solteiros, com idades dependentes com um
4 Homens ou mulheres Sem crianças entre os 18 e os 64 ou dois adultos; outras
com idades entre 25 e 64 dependentes; trabalho anos, com invalidez transferências sociais
anos, casados, em união como a principal fonte permanente ou inaptos como principal fonte de
de facto (com mais de rendimento; não para o trabalho rendimento
frequência), solteiros ou vivem com os pais,
divorciados (apenas um vivem com cônjuge ou
caso); desempregados outro
5 Homens ou mulheres Agregados de um adulto
com idades entre os 18 e com ou sem crianças;
os 64 anos, solteiros ou Trabalho como principal
divorciados, empregados fonte de rendimento
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Perfil Características C. Guião de entrevista
Subperfil
Cluster
Nota para os entrevistadores
Individuais Agregado Observações
1 Mulheres, com idades Com ou sem crianças Trajectos e quotidianos
entre os 45 e os 64 anos,
casadas ou em união de
dependentes;
Trabalho como principal
de pobreza em Portugal
facto, empregadas fonte de rendimento Guião de Entrevista
2 Homens, com idades Com ou sem crianças
entre os 45 e os 64 anos, dependentes;
casados ou em união de Trabalho como principal Procurando responder à pergunta de partida da pesquisa – «Quem
facto, empregados fonte de rendimento
4 – Trabalhadores são e como vivem os pobres em Portugal» –, esta entrevista é pensada
3 Mulheres, com idade Com crianças
entre os 25 e os 44 anos, dependentes;
como uma ENTREVISTA DE ORIENTAÇÃO BIOGRÁFICA pelo que se
casadas ou em união de Trabalho como principal organiza em termos cronológicos, a partir do qual se procurará iden‑
facto, empregadas fonte de rendimento tificar um evento estruturador da situação de pobreza (por exemplo,
4 Homens, com idades Com crianças
requerimento do RSI/RMG desemprego, doença grave, acidente de
entre os 25 e os 44 anos, dependentes;
casados ou em união de Trabalho como principal trabalho…).
facto, empregados fonte de rendimento
5 Homens ou mulheres, Com ou sem crianças Pressupõe‑se que esse evento estruturador pode ajudar a orientar a
com idades entre 18 e dependentes; entrevista para um registo narrativo, não apenas nas suas dimensões
64 anos, solteiros ou Trabalho como principal
divorciados, empregados fonte de rendimento biográficas (as trajetórias e os quotidianos), mas também nas suas
dimensões mais subjetivas (perceções e reflexões).
Entende‑se também que a SITUAÇÃO ATUAL NO MUNDO
DO TRABALHO é o eixo estruturador que melhor pode ajudar a
explorar o(s) acontecimento(s) decisivos para entender a questão da
escassez de recursos.
Sublinha‑se que, tratando‑se de uma entrevista de orientação biográ‑
fica e natureza semiestruturada, esta pode fluir de uma forma que
não siga obrigatoriamente a ordem dos blocos temáticos, sendo,
no entanto, desejável que uma vez que seja oportuno abordar um
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desses tópicos, pelo desenrolar da entrevista, ele deve ser preferen‑ 2. Relação com o sistema educativo
cialmente explorado nas suas diferentes dimensões, evitando saltar 2.1. Relação com a escola
excessivamente entre assuntos. Nesta secção, procura‑se explorar como foi – ou é, no caso de estudantes – construída a
relação com a escola, enquanto espaço de sociabilidade, de aprendizagem e de «embate
com a sociedade». Será fundamental explorar se a escola foi/é vivenciada como um
Parte importante do trabalho de preparação da entrevista implica, local de oportunidade e desenvolvimento (mesmo que não ligada às aprendizagens
assim, adaptar a entrevista ao perfil da pessoa a entrevistar, procu‑ formais) ou se foi/é, sobretudo, um lugar de estigma e confrontação ou ainda se foi/é,
em alternativa, um lugar de convívio com os pares. Explorar as razões dessas imagens da
rando ter em mente todos os tópicos considerados no guião mas, que vivência escolar.
este seja usado para que aquela decorra não tanto na forma de coleção Explorar, também, os fatores de permanência ou de recusa da escola, se isso mudou
com a idade e porquê.
de dados biográficos, mas antes de narrativa em torno do trajetória e
Podíamos agora falar um pouco sobre a sua relação com a Escola. Fale‑me um pouco
experiência de pobreza. acerca do período em que andou na escola em criança/jovem. (adaptar perguntas para o
caso dos estudantes)
1. Até que ano andou na escola? E até que idade? Alguma vez reprovou de ano?
1. Enquadramento familiar na infância Quantas vezes? Porque acha que isso aconteceu?
Esta secção pretende explorar a visão que a pessoa entrevistada tem sobre os seus 2. Do que é que gostava mais e gostava menos na escola? Como era a sua relação com
primeiros anos de vida, a sua família de origem e aquilo que era o seu contexto de vida. os professores?
Será importante perceber que visão constroem dessa fase: passaram por dificuldades? 3. Porque deixou/abandonou a escola? (está a pensar abandonar a escola? porquê?)
Havia problemas? Eram felizes? A família era um suporte?
O importante é deixar falar e perceber que imagem subjetiva têm desses tempos e 2.2. A escola e o futuro
identificar os principais episódios e os respetivos protagonistas, mesmo que estes não Interessa aqui explorar de que forma e até que ponto a escola é encarada como
sejam da família. uma plataforma de distribuição e democratização de oportunidades. Por outro lado,
perceber se a pessoa entrevistada sente que foi condicionada no seu projeto de vida por
1. Pedia‑lhe que me falasse um pouco das suas recordações de infância. No geral, um eventual drop‑out e o que é que o motivou.
considera que teve uma infância boa ou má?
2. Que recordações positivas e negativas guarda desse período? (Exemplos de 1. Gostaria de (continuar) ter continuado a estudar? Porquê?
contextos: em casa, na escola, no grupo de amigos, na comunidade…) 2. Acha que a sua vida (será) seria melhor se (continuar) tivesse continuado a estudar?
3. Lembra‑se de a sua família receber algum tipo de apoio, de alguma instituição social, Porque tem essa opinião? (termos laborais, sociais, etc.)
religiosa ou comunitária? Que tipo de apoios eram esses? Ajudavam a resolver 3. Mais tarde voltou a estudar ou fez formação profissional? Fale‑me desse período.
algumas situações difíceis que possam ter existido?
4. Recorda‑se de existirem situações graves que tenham afetado membros da sua
família durante a sua infância (perdas significativas, problemas de saúde, problemas
com a justiça…)? De que forma afetaram a sua família?
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3. Transições para a vida adulta 4. Relação com o mundo do trabalho
Transição Escola‑Trabalho (se aplicável). Trajetória Profissional/Laboral
Esta secção cruza‑se com a anterior e será expectável que muitas das perguntas sejam Nesta secção pretende‑se explorar qual tem sido o caminho da pessoa entrevistada no
respondidas numa sequência narrativa despoletada pelas perguntas sobre a saída da mercado de trabalho, mas também como se tem sentido nas suas experiências laborais,
escola. Aqui interessa perceber se houve um trajeto direto entre a saída da escola e se se sente recompensada, realizada, se consegue permanecer no mercado de forma
a entrada no mercado de trabalho (e até se houve uma relação de efeito‑causa entre estável e prolongada, etc.
estas variáveis) ou se a transição foi mais sinuosa, intermitente, permeada por períodos É importante começar por referir a condição em relação ao mundo laboral em que se
de inatividade. Neste último caso, explorar também que inatividade foi esta: tratou encontra atualmente quem está a ser entrevistado, convidando‑o a falar dela, tendo
‑se de não participar no mercado de trabalho formal, mas exercendo outras atividades em mente o(s) acontecimento(s) decisivos para entender a questão da escassez de
informais? recursos (evento estruturador). Procurar desenvolver a entrevista a partir desse evento.
Fale‑me um pouco da fase da sua vida depois de sair da escola. (se aplicável). Comecemos, então, a entrevista pela sua situação atual em relação ao trabalho.
1. Começou logo a trabalhar? Que idade tinha? Tinha algum contrato? Como é que Pelo que percebi neste momento está empregado/desempregado/reformado/a
conseguiu esse primeiro emprego? O que é que fazia? Durante quanto tempo esteve estudar/ não está a trabalhar. É assim? (explorar situação laboral; explorar restantes
nesse primeiro emprego? eixos a partir de evento estruturador).
3.2. Saída de casa dos pais (se aplicável) 1) O que faz e como conseguiu o emprego atual (ou o último que teve), pode contar
Explorar as condições de construção da autonomia e de ameaças a essa autonomia. ‑nos a história? E que tipo de contrato tem (teve)? [se nunca teve um emprego
passar para a questão 6]
E sobre a fase da sua vida em que deixou de morar com os seus pais… (no caso de já ter
2) O que é que gosta mais no trabalho que faz (ou no último que teve)? E o que gosta
saído da casa dos pais.)
(gostava) menos? Se pudesse mudar o que é que mudava? Em geral está satisfeito
1. Que idade tinha? Com quem foi viver? Como se sustentava? com o seu trabalho (esteve satisfeito com o último que teve)?
2. Depois de ter saído da casa dos seus pais teve de regressar alguma vez? Porquê? Já 3) Mais ou menos quantos trabalhos/empregos diferentes já teve na sua vida? E que
tinha companheiro (a) nessa altura? tipos de contrato teve?
3.3. Primeira experiência conjugal e parental (se aplicável) 4) Está ou esteve alguma vez desempregado/a? Por que motivo está/esteve
desempregado/a? Por quanto tempo é que está/esteve desempregado/a? Lembra‑se
Fale‑me agora da época da sua vida em que casou/se juntou com um/a companheiro (a)
especialmente de alguma vez em que esteve desempregado/a? E como lidou com
(pela primeira vez)?
essa situação?
1. Já tinha saído da escola? Já estava a trabalhar? Que idade tinha?
5) Qual é que foi o emprego que mais gostou? Porquê?
1. Teve filhos? O seu primeiro filho ou filha nasceu em que momento da sua vida?
6) Acha que tem dificuldades em arranjar emprego? Porque motivos?
2. Continua a viver com o seu/sua companheiro(a)?
7) Se nunca trabalhou porque é que isso aconteceu?
3. Em que é que essa separação alterou a sua vida? (se aplicável)
8) Se está reformado, quando se reformou e porque motivo (atingiu a idade de
reforma, por questões de saúde / incapacidade para o trabalho, outra situação…)?
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5. Autoperceção do percurso, comparação da vida presente com a passada 7. Relação com os sistemas e subsistemas de proteção social
Explorar a visão geral sobre a sua vida e a avaliação que faz sobre o percurso, os pontos Nesta secção explora‑se a forma como no passado e no presente a pessoa entrevistada
de destaque e os momentos‑crítico. se relaciona com os apoios públicos de proteção social e de que forma estes são
recursos ou se constituem como formas rituais de humilhação.
1. Qual é a sua principal fonte de rendimento (trabalho, reforma, outra, qual)? Acha
que os rendimentos que tem são suficientes para responder as suas necessidades? 7.1. Histórico
2. Lembra‑se duma situação/momento da sua vida em que tenha sentido/percebido Nesta secção, há que explorar toda a relação comos apoios do Estado, desde a
que os seus rendimentos não são suficientes? (se resposta negativa) Segurança Social (RSI, subsídio de desemprego, baixas médicas, etc.) até à ação
3. Como vê o seu percurso de vida até agora? Quais foram os aspetos positivos, social (banco alimentar, ajudas pontuais, …). Explorar também momentos em que se
os sucessos, as vitórias? beneficiou de apoios pontuais ou mais focalizados (ação social escolar, etc.).
4. Nesse percurso quais foram os momentos mais difíceis? Em algum desses momentos 1. Ao longo da sua vida fez descontos para a Segurança Social e sistemas semelhantes?
a sua vida mudou muito? (saída de casa dos pais, saída da escola, entrada no mercado Sempre ou apenas em alguns períodos? Se não porquê?
de trabalho, conjugalidade, parentalidade, doenças, institucionalização, relação com 2. Ao longo da sua vida recorreu a apoios ou serviços de apoio, públicos ou privados?
sistema de justiça…) De que tipo?
5. Quando olha para trás, para o seu percurso, acha que teve altos e baixos, que tem
7.2. Situação Atual
vindo a melhorar ou que já esteve melhor do que agora? Em que aspetos? Porquê?
1. Atualmente é beneficiário de algumas prestações/subsídios da Segurança Social?
6. Redes de apoio não institucional e território
Quais? (Subsídio de desemprego/ Subsídio de Doença/Pensão de Reforma/ RMG
6.1. Redes de apoio não institucional ‑RSI/CSI/Prestação Social para a Inclusão)…? E do abono de família e da Ação Social
Explorar qual é a rede de suporte informal que a pessoa entrevistada considera que Escolar (para os/as filhos/as)?
tem e em que medida lhe dá a ajuda e segurança que considera que necessita. Quais 2. É apoiado(a) por alguma outra Instituição de Apoio Social? Qual/Quais?
os atores chave que suportam a sua sobrevivência (mãe, outro/a familiar, amigo/a, 3. Em que medida essas prestações e apoios são importantes na fase atual da sua vida?
técnica…) e que recursos se utiliza na relação com esses atores.
7.3. Perceção da relação com os Serviços Sociais
1. O que é que pensa da relação que tem com os seus familiares, amigos e vizinhos?
(explorar os três tipos de atores) 1. Qual o seu grau de satisfação quanto ao modo como tem sido atendido/a e
acompanhado/a nos diferentes serviços de apoio social?
2. Quando necessita de alguma ajuda ou tem algum problema, a quem recorre?
2. Existe algum episódio que tenha sido para si especialmente marcante (positivo
6.2. Avaliação dos territórios de habitação ou negativo) na sua relação com os serviços de apoio social, saúde ou outros…?
Exploração da relação entre o território habitacional e a condição de vida. A forma (discriminação, ajuda…)
como, eventualmente, o território produz exclusão e segregação, mas também redes
informais de suporte. A vizinhança (o local onde vive) constitui‑se como um recurso ou
uma ameaça?
1. O que pensa do lugar onde vive? Quais os aspetos mais positivos e os mais
negativos. Quando e como veio/foi viver para este/esse lugar?
1. Na sua opinião o que faz falta no lugar onde mora? O que mudaria se pudesse?
(serviços, transportes, segurança…)
2. Em relação à sua casa: Que dificuldades é que sente?
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8. Perceção de si como pobre e do combate à pobreza
Nesta secção vai ser explorada a Autoperceção da pessoa entrevistada enquanto pobre,
procurando ainda perceber como é que considera que o problema da pobreza poderia
ser resolvido.
É preciso ter em conta tudo o que foi dito e interessa perceber como é que a pessoa
entrevistada se sente consigo e com a sua vida.
1. Quando pensa na sua vida atual considera‑se uma pessoa/família que vive em
situação de pobreza? Porquê? É uma perceção da sua situação no presente ou acha
que sempre esteve nessa condição?
2. Como tem lidado com essa condição? (idem) (resignação, isolamento, manter as
aparências) [se aplicável]
3. Alguma vez se sentiu discriminado ou excluído? O que o/a fez sentir‑se assim?
4. Se pudesse, o que mudaria na sua vida?
5. E se fosse primeiro/a‑ministro/a que medida(s) tomaria para combater a pobreza no
nosso país?
6. Em geral, sente‑se uma pessoa feliz? Qual a principal razão de se sentir como refere?
9. Perspetivas face ao futuro
Explorar como a entrevistado/a se projeta no futuro, que esperança deposita no futuro.
1. Acha que a sua vida vai ser melhor no futuro? Acha que poderá vir a viver sem
subsídios e apoios do estado e de instituições de apoio social? [se aplicável] Se sim,
o que é necessário para que isso aconteça? Se não, porquê?
2. E a vida dos seus filhos e/ou filhas?
3. Quais os seus maiores sonhos que gostaria de ver realizados? Acha que vai conseguir
concretizá‑los?
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Notas
1. A equipa contou com 11 pessoas, de diversas áreas, desde 8. De acordo com o relatório de qualidade do SILC 2005 (Eurostat, 17. Aliás, essa é uma constante dos vários perfis, pelo que não se
a sociologia ao serviço social, passando pela economia e pela 2008), o intervalo de confiança a 95% para o valor deste indicador apresentará a informação para os restantes. Apenas o último perfil
estatística, sem esquecer competências formais dos membros situava‑se entre 23,7% e 28% (valores para o ano de 2004). No caso da apresenta um peso dos não nacionais ligeiramente diferente dos
da equipa em psicologia e antropologia. Estes investigadores taxa de pobreza, o intervalo de confiança a 95% situava‑se entre 18% outros, em que 96,5 % tem nacionalidade portuguesa. Mesmo neste,
representam neste projeto oito universidades e instituições e 20,8%. o peso dos estrangeiros é bastante modesto.
de pesquisa distintas.
9. (1) Inclui rendimentos do trabalho e outros rendimentos 18. Inclui união de facto.
2. Os resultados estão centrados em indivíduos em idade adulta. privados; (2) Inclui rendimentos do trabalho e outros rendimentos
19. No caso da composição dos ADP, um estudante é considerado
A infância é considerada na abordagem aos Agregados Domésticos privados, pensões de velhice e sobrevivência; (3) Inclui rendimentos
criança dependente até aos 24 anos. Quando considerado
Privados (ADP) na componente quantitativa e em dois pontos do trabalho e outros rendimentos privados, pensões de velhice e
individualmente, são crianças todos os indivíduos com menos de
nas entrevistas. Num primeiro, quando é referenciada a infância sobrevivência e outras transferências sociais.
18 anos.
dos próprios respondentes; num segundo, quando se aborda a sua
10. (1) Antes de qualquer transferência social; (2) Após
parentalidade. Os nossos entrevistados vão, também, falando sobre 20. A forma como a questão é colocada limita a pertinência da
transferências relativas a pensões; (3) Após transferências sociais.
os seus filhos nos mais diversos momentos, por exemplo, quando resposta: Tem alguma doença crónica ou algum problema de saúde
abordam o futuro. 11. Importa notar que as estimativas para a taxa de pobreza prolongado? Com a seguinte nota: «Doença ou problema de saúde
persistente têm uma precisão mais baixa do que as estimativas para prolongado que dura ou que possa vir a durar seis ou mais meses.
3. Em 2015 comemoraram‑se 30 anos sobre a realização do
a taxa de pobreza. Em 2010, por exemplo, o intervalo de confiança Inclui problemas de saúde controlados com medicação, problemas
primeiro estudo de grande fôlego sobre a pobreza em Portugal
a 95 % para este indicador situava‑se entre 10,1 % e 16,3 % (Osier, sazonais (por exemplo, alergias) ou problemas de saúde causados por
(Costa, Silva, Pereirinha e Matos, 1985) no colóquio «Políticas de
Berger e Goedemé, 2013). lesões, patologias congénitas ou malformações à nascença. EXCLUI
combate à pobreza em Portugal: debates e (re)configurações», uma
problemas temporários.».
coorganização da Secção de Pobreza, Exclusão Social e Política 12. Nos cálculos deste quadro consideram‑se exclusivamente as
Sociais da Associação Portuguesa de Sociologia e do CISCS.NOVA. pessoas com 18 anos ou mais. 21. Segundo o INE, (metainformação) a baixa entidade laboral
reporta‑se a «agregados familiares cujos adultos entre os 18 e os 59
4. Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos, 13. Foi utilizado o software NLOGIT – LIMDEP.
anos (excluindo estudantes) trabalharam em média menos de 20 % do
cada vez mais uma forma de organização política do território
14. De notar que a categoria «outras transferências sociais» está tempo de trabalho potencial». Portanto, a intensidade laboral já não
nacional.
incluída numa variável explicativa mas, ela própria, resulta em boa é medida nos agregados que integram apenas indivíduos com 60 anos
5. Para uma referência recente aos trabalhos sobre a pobreza em parte de rendimentos que advêm aos indivíduos e às famílias por ou mais, como parece ser o caso típico deste perfil.
Portugal veja‑se Diogo, Castro e Perista (2015). estarem em situação de pobreza. Com efeito, 72,1 % dos ADP cuja
22. O termo usado no ICOR é doméstico.
principal fonte de rendimento são as outras transferências sociais
6. Note‑se que o erro padrão associado à taxa de intensidade da
estão em situação de pobreza. 23. Como veremos na análise das entrevistas, os indivíduos com
pobreza é relativamente mais elevado do que o associado à taxa de
as características que os enquadram neste perfil tendem a ter uma
pobreza. 15. Relembramos que, em boa parte, esta categoria não é apenas
relação precária com o mundo do trabalho mas, ao mesmo tempo,
explicativa da situação de pobreza, mas uma consequência. Ficam
7. Importa notar que em 2010, 2011 e 2012 se observou uma relativamente próxima e distinta da que o perfil seguinte apresenta
aqui consignados, por exemplo, o Rendimento Social de Inserção,
redução no valor do limiar de pobreza, o que significa que baixou (os desempregados).
ou o Complemento Solidário para Idosos.
nestes três anos o valor de rendimento que origina a classificação dos
indivíduos em situação de pobreza. 16. Para mais pormenores sobre a ACM, veja‑se o capítulo 1.
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24. Esta perceção foi confirmada por análises posteriores à incidência 31. As edições seguintes deste estudo, da responsabilidade do 38. Estes aspetos constituíram, aliás, um resultado da maior
de indivíduos adultos a residir com o pai e/ou a mãe em cada um dos Observatório da Luta Contra a Pobreza da Cidade de Lisboa, viram o relevância, alvo de análise aprofundada nos capítulos seguintes.
perfis. Neste perfil, esta situação corresponde a 45 % dos indivíduos (o seu público ampliado, abrangendo todos os indivíduos em situação
39. A incidência de indivíduos adultos a residir com o pai e/ou a
que compara com 2 % no Perfil 1, 22 % no Perfil 3 e 13 % no Perfil 4). de pobreza dessa cidade.
mãe corresponde a: 2 % no Perfil 1, 45 % no Perfil 2, 22 % no Perfil 3 e
25. Na ACM foram agregados sob a designação de «outros 32. O estudo original é composto por dez publicações das quais 13 % no Perfil 4, como já se tinha referido.
inativos», juntamente com outras categorias que não têm peso destacamos: Castro, et al., 2002a e 2002b.
40. Esta forma de sistematização permitiu abarcar de maneira
estatístico significativo no total da amostra, como por exemplo:
33. Existem diversos estudos anteriores do autor onde este vai mais clara a complexidade dos perfis que, embora elaborados em
«outra pessoa inativa», 1 %, ou «a cumprir o serviço militar», 0 %.
desenvolvendo a tipologia, por exemplo Almeida et al., 1992. função de indivíduos, dependem das características associadas ao
26. A questão do sexo apenas é relevante nesta condição perante o seu enquadramento em agregados domésticos (as características dos
34. A este estudo seguiu‑se um painel que usou os perfis aqui
trabalho e na anterior. Nas restantes categorias da condição perante agregados onde se inserem os indivíduos em situação de pobreza têm
definidos para compreender a pobreza na cidade de Lisboa no
o trabalho as diferenças são, em regra, relativamente pequenas. peso importante na diferenciação dos vários perfis).
contexto do Observatório da Luta Contra a Pobreza da Cidade de
27. Não se pretende menorizar a importância dos resultados Lisboa. Uma primeira fase desse painel foi publicada em Castro 41. O mesmo princípio foi seguido, por exemplo, procurando
estatísticos. Sobre o seu papel já falámos no primeiro capítulo, et al. (2012), A cidade incerta. Barómetro do Observatório de Luta ‑se o contacto com entrevistados que representassem essa
nomeadamente acerca das potencialidades e limitações na análise Contra a Pobreza na cidade de Lisboa. A fase de 2014 foi alvo de nova heterogeneidade também dentro de um território já limitado (com
da pobreza. publicação, mas sem mudanças substanciais nos perfis: Costa (org.), o objetivo de garantir a proveniência de diferentes freguesias/
Santos e Guerra (2015), Evolução na continuidade. Barómetro do localidades, dentro de um dado concelho e não apenas a sede de
28. Lembremos o peso relativo de cada um dos perfis: Reformados,
Observatório de Luta contra a Pobreza na cidade de Lisboa – Fase II. concelho, algo que foi conseguido). Esta questão é especialmente
correspondendo a 27,5 % da amostra; Precários (26,6 %);
importante nos concelhos mais populosos, como Lisboa ou Porto,
Desempregados, correspondendo a um total de 13,0 % da amostra e 35. De recordar que o indivíduo de referência é a pessoa que mais
mas é relevante mesmo nos mais rurais, considerando as diferenças
constituindo o perfil menos numeroso; e, finalmente, os Trabalhadores, contribui para o rendimento do agregado familiar.
entre as sedes de concelho e as freguesias com um maior grau de
cerca de um terço do total, 32,9 %, sendo o mais numeroso.
36. A folha de registo incluiu uma questão relativa à origem ruralidade e de distância à sede de concelho.
29. Vimos, nos primeiros capítulos, que existem razões estatísticas étnico‑racial. Estes dados foram tratados considerando as reflexões
42. Este estudo apresenta como limitação importante o facto de ter
para suspeitar que a pobreza feminina se encontra subestimada no e recomendações apresentadas pelo Grupo de Trabalho Censos
sido desenvolvido apenas para o continente.
ICOR, tendo em conta a forma como se pressupõe que o rendimento 2021 sobre Questões «Étnico‑Raciais» (GT), criado pelo Despacho
está distribuído no agregado. n.º 7363/2018, de 3 de agosto. 43. Estas foram as entrevistas consideradas para efeitos de análise
dos dados. Foram realizadas mais entrevistas, incluindo as que
30. Como vimos anteriormente, o habitat não tem um grande peso 37. Chamamos a atenção, na sequência do que se escreveu no
tiveram por fim a aferição do guião e as que não foram validadas
diferenciador dos grupos encontrados; todos são maioritariamente capítulo 4, para o facto de a pergunta em apreço «Tem alguma
pelas seguintes razões: não corresponderem às características de
urbanos. Apenas o primeiro, referente aos reformados, apresenta um doença crónica ou algum problema de saúde prolongado?», incluindo
perfil pretendidas; não cumprirem o critério de estar abaixo limiar de
maior número de indivíduos vivendo em ambiente rural. Contudo, a nota «Doença ou problema de saúde prolongado que dura ou
pobreza; ou por má qualidade, em especial das respostas.
como também vimos no capítulo 2, a pobreza apresenta maior que possa vir a durar 6 ou mais meses.», estar formulada de uma
incidência em ambiente rural. Por outro lado, existem algumas forma muito aberta, o que não permite a discriminação de situações 44. É o caso de Portugal. Tendo uma das mais baixas taxas de
diferenças regionais importantes na incidência da pobreza, das quais potencialmente muito distintas e potencia as respostas positivas. fecundidade do mundo, tal não impediu o aumento da população em
daremos conta mais adiante. 2019, quando comparado com o ano anterior.
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45. Como foi já abordado por Ribeiro (2017, p. 153), a expressão 50. Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, retificada pela Declaração de 55. Neste sentido, serão excluídos desta análise quatro jovens
«indústria 4.0» tem origem numa iniciativa realizada em 2011 Retificação n.º 59‑A/2012, de 12 de outubro. Sendo um fator crucial que, pertencendo a este perfil, ainda se encontram em processo de
mobilizando empresários, gestores, políticos e académicos. na pobreza de muitos cidadãos em Portugal, a habitação é uma escolarização e dois que abandonaram os estudos, mas ainda não
O governo alemão concordou em apoiá‑la, incorporandoa na questão velha (cf., entre outros, M. C. Silva et al., 2017) que se coloca estão inseridos no mundo do trabalho.
designada «High‑Tech Strategy 2020 for Germany» (Herman, como problema social da maior grandeza, sobretudo nas grandes
56. Dada a sua relevância, repetimos aqui um trecho apresentado no
Pentk e Otto, 2015, p. 5). Ancorada na «internet das coisas», nos metrópoles que procuram afirmar‑se como cidades globais, algumas
ponto anterior, aprofundando‑o, algo que faremos com regularidade
sistemas ciberfísicos e nas fábricas ditas inteligentes, a indústria ensaiando mesmo formas subtis de secessão em relação aos Estados a
neste livro.
4.0 conceptualiza uma nova revolução tecnocientífica e industrial que pertencem (cf. Bréville 2020).
que se traduz numa automatização radical da produção, alargando 57. Colocando a questão das quatro dimensões da qualidade do
51. Considerando que esta pergunta foi feita a seguir à das
as possibilidades de redução da utilização do trabalho humano. emprego já referidas no capítulo anterior: precariedade, penosidade,
expectativas quanto à vida dos filhos(as), estes resultados foram
Tal coloca um novo e imenso desafio ao modo como os sistemas perigosidade e salário (Diogo, 2007).
analisados com cautela, considerando as representações sobre
de proteção social se organizam. Capaz de produzir cada vez mais
o percurso de vida e as respostas anteriores sobre as próprias 58. É, a este respeito, muito marcada a linhagem feminina,
riqueza recorrendo cada vez menos à força de trabalho, tal implica
expectativas face ao futuro. ao contrário do que acontece em relação a outras relações de
um debate sobre a definição de soluções, nomeadamente tributárias,
parentesco.
que possam dar sustentação aos sistemas de proteção social, 52. Paugam (2012) critica o surgimento de um regime de
assegurando deste modo um futuro decente aos cidadãos. «precariedade assistida» abrangendo pessoas em situação laboral 59. Com uma exceção: a propósito da infância perguntava‑se
precária, enquanto não acedem a um emprego não assistido, por problemas graves que a tenham marcado, sendo que um dos
46. Ao longo de todo o livro, sempre que se justificar substituímos
na medida em que tal contribui para a institucionalização da exemplos que se dava dizia respeito a um problema de saúde.
nomes de pessoas, organizações e lugares por «XXXX», em ordem a
precariedade, para o aprofundamento da dualização dos mercados
conservar o anonimato dos entrevistados. 60. Note‑se, porém, que este tipo de afirmações tem sido
de trabalho e para a «banalização dos empregos degradantes e pouco
contestado com o argumento de que a solidariedade informal que
47. Contudo, chama‑se a atenção para que a amplitude da qualificados» (p. 10). Ironicamente, e como veremos na secção 6,
existia no país já se não verifica. Ver, por exemplo, Wall et al., 2001.
distribuição do tempo de trabalho sob o Estado Novo é muito os entrevistados enquadrados neste perfil nem chegam a estar
grande, variando, aproximadamente, de um mínimo de quatro anos a habilitados a aceder a esse tipo de proteção. 61. Sublinhe‑se que é em contexto rural que encontramos a maior
um máximo de 30 anos ou mais. parte das narrativas marcadas pela resignação enquadradas neste
53. Um relatório da OIT sobre a evolução da situação do mercado
perfil. Tal como verificado no Perfil 1, trata‑se de biografias marcadas
48. Temos vindo a definir a qualidade do emprego com base em de trabalho entre 2008 e 2018 assinalou que, apesar do aumento do
pela vivência de situações de pobreza na infância, abandono precoce
quatro indicadores: a precariedade; a penosidade; a perigosidade e o emprego, o mercado de trabalho tornou‑se mais segmentado, com
da escola e a sua substituição pelo trabalho, em muitos casos ainda
salário (Diogo, 2007). um grande peso do trabalho temporário, sendo o emprego mais
durante a adolescência. São também percursos bastante marcados
estável muito reduzido entre as coortes mais jovens (OIT, 2018).
49. Regime Geral da Segurança Social. pela precariedade laboral e o desemprego e, na medida em que
54. Trata‑se de estudos desenvolvidos pelo CIES/ISCTE para corresponderam também à ausência de uma carreira profissional,
a Direção‑Geral do Ensino Superior. O relatório de 2005 está tomam a forma de trajetórias de emprego em carrossel (Diogo, 2010).
disponível aqui.
62. E também aqui parece ser notório que as oportunidades são
particularmente reduzidas em meio rural.
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63. Alguns destes casos referem‑se à quota P2.5 – empregados(as) 71. Recordemos que definimos a qualidade do emprego a partir de 79. Em dois destes casos, os entrevistados já apresentaram
em agregados de um adulto com ou sem crianças – e todos no litoral quatro indicadores: salário, penosidade, perigosidade e precariedade. pedido para acesso a reforma (num casos por velhice, noutro por
urbano. invalidez), estando a aguardar o seu deferimento mas que, se do
72. Relembre‑se que a questão da saúde não foi alvo de uma
ponto de vista das instituições de proteção social é considerado
64. É também de destacar que duas destas narrativas se aproximam secção específica no guião de entrevista, resultando sobretudo da
como desempregado, do ponto de vista conceptual, e dada a sua
do ideal‑tipo da dupla referência descrito por Capucha (2005), introdução espontânea pelos entrevistados do tema no discurso.
indisponibilidade para o trabalho, estará mais próximo de uma
sinalizando um trajeto marcado por circunstâncias de vida de grande
73. Esta rede última de proteção social de cidadania revela‑se categoria de inatividade. Nos restantes três, a sua condição de
penúria – e num dos casos por uma guerra civil – mas valorizado
sobretudo eficaz na redução da intensidade da pobreza (Rodrigues inatividade é atestada pela situação de reforma por invalidez.
no plano afetivo, definindo um modo de vida marcado pelo
et al., 2016, p. 134), agravada pelas alterações profundas introduzidas
inconformismo, e orientado para o futuro. 80. Na medida em que o desencorajamento está presente em
em 2010 e 2012 nas regras de elegibilidade. As características
muitas das entrevistas, é impressionante como o afastamento que
65. Este caso também é interessante por cruzar a mobilidade apontadas e as alterações introduzidas limitaram de forma muito
aqui se verifica relativamente às definições estatísticas oficiais
descendente da entrevistada com a situação administrativa ainda não acentuada o acesso dos indivíduos em situação de pobreza a esta
de desemprego coincide com uma aproximação às de inativo
regularizada do cônjuge, que é imigrante, e com quem vive em união prestação social de garantia mínima de rendimentos e a sua eficácia
‑desencorajado.
de facto e tem um filho. na redução da intensidade da pobreza.
81. Dimensão designada na literatura como working‑poor ou in‑work
66. Quer em relações laborais de natureza informal, biscates, quer 74. PROSA, CTTS, Recuperar são programas ocupacionais da Região
poverty.
envolvendo relação contratual de assalariamento. Autónoma dos Açores.
82. Isto é, o pagamento de uma compensação aos indivíduos em
67. Este princípio foi acolhido na Constituição da República 75. Relembremos que, como vimos anteriormente, os reformados
sede de acerto de impostos, caso os seus rendimentos de trabalho
Portuguesa de 1975, numa altura em que o modelo social do Pós por invalidez com menos de 65 anos surgem neste perfil (classificados
fiquem abaixo de um determinado limiar previamente definido.
‑Guerra estava já a entrar em crise. como outros inativos) e não no Perfil 1, dos Reformados, não se
registando sobreposição entre os dois perfis. 83. Lembremos que classificamos a relação com os outros nos
68. Ou seja, contrasta com o Perfil 1, dos reformados, por se referir
valores extrínsecos.
sobretudo a pessoas em idade ativa; e com o dos precários (Perfil 2, 76. Situação que remete, de forma evidente, para a problemática
onde também pode se encontram categorias relacionadas com o da população trabalhadora pobre, objeto de análise específica no 84. É importante salientar, no entanto, que grande parte das
desemprego e inatividade) pelo facto de, ao contrário destes, não próximo capítulo. entrevistas das quotas relativas aos segmentos etários mais baixos
fazerem parte de agregados domésticos em que a principal fonte de (quotas 4.3 e P4.4) são de casos de idades próximas dos 40 anos.
77. O acesso à habitação e o futuro da descendência são outras
rendimento é o trabalho. Neste sentido, neste perfil há poucos dados que nos permitam
preocupações identificadas. Aqui focamos este tema por estar em
avançar conclusões sobre dimensões geracionais baseadas
69. Refere‑se a aspetos normativos do mercado de trabalho, causa uma forma de exclusão do mercado de trabalho.
no contraste de coortes etárias, mesmo dentro do grupo de
na linha da abordagem institucionalista adotada por Marques et al.
78. Este trade‑off ganha forma diversa conforme as medidas e entrevistados.
(2015). Há três tipos de instituições consideradas chave: salário
a composição do agregado familiar. Por exemplo, num dos casos,
mínimo, proteção social no desemprego e legislação relativa à 85. Este perfil diferencia‑se, sobretudo, do Perfil 3, Desempregados.
o CEI+ acabava por ser vantajoso relativamente ao RSI, pois não está
proteção no emprego. Neste último recorre‑se mais aos apoios públicos. Em contraste,
dependente da composição do agregado familiar.
aproxima‑se mais do 2, Precários.
70. Processo de Reconhecimento, Validação e Certificação de
Competências, adquiridas ao longo da vida.
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86. Inclui «transferências sociais relativas a família, educação,
habitação, doença/invalidez, desemprego, combate à exclusão
social» (como o Rendimento Social de Inserção, o abono de família
ou o subsídio de desemprego), mas exclui as pensões, cf. INE (link).
De notar que esta categoria de variável é tanto descritiva da situação
de pobreza como uma consequência dessa situação, tal como
indicado no capítulo 3.
87. Recordemos que estes são os indivíduos que mais contribuem
para a formação do rendimento de cada agregado.
88. No capítulo 1 da parte quantitativa explicamos os limites da
designação oficial e o porquê da opção, neste livro, pela designação,
simplesmente, de taxa de pobreza.
89. Somente em 2017 os valores da taxa de pobreza alcançaram
níveis inferiores aos existentes antes do início da crise.
90. Contudo, chamamos a atenção sobre o facto de que poderão
existir casos com impactos positivos no combate à pobreza – por
exemplo pelo acesso a melhores empregos – mas que não estão aqui
tratados, visto que nos concentramos em casos de pessoas que estão
abaixo do limiar da pobreza.
91. Quem limpa os escritórios? Quem cuida dos jardins? Quem
recolhe o lixo? Quem constrói edifícios e estradas? Quem realiza
os trabalhos agrícolas mais pesados? Entre outras questões. Aliás,
algumas das profissões subjacentes às tarefas elencadas poderiam
com facilidade ser alvo de processos de qualificação, com evidentes
impactos na produtividade de indivíduos e empresas, como na
construção ou na agricultura.
92. Veja‑se o posfácio, para uma análise dos possíveis impactos da
atual crise pandémica nos perfis definidos e na pobreza em geral.
93. Existem alguns estudantes adultos no Perfil 2.
94. A cumprir tarefas domésticas e responsabilidades de assistência.
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Índice de Tabelas
27 Quadro 1 Taxa de pobreza e da 34 Quadro 11 Indicadores de Privação Material (%) 41 Quadro 23 Indicadores de pobreza segundo o
intensidade da pobreza (%) 34 Quadro 12 Indivíduos com menos regime de ocupação do alojamento (2017) (%)
28 Quadro 2 Taxa de pobreza por de 60 anos vivendo em famílias com 42 Quadro 24 Indicadores de pobreza segundo o
escalões etários e por sexo (%) baixa intensidade laboral (%) grau de urbanização do alojamento (2016) (%)
29 Quadro 3 Evolução da taxa de pobreza 35 Quadro 13 Taxa de pobreza ou exclusão social (%) 45 Quadro 25 Resultados utilizando um
por escalões etários (número índice) 36 Quadro 14 Interseção das várias modelo com função de ligação Probit para a
29 Quadro 4 Taxa de pobreza usando um dimensões da exclusão social (2017) variável dependente Indicador de Pobreza
limiar ancorado – ICOR 2005 (%) 37 Quadro 15 Itens de privação material (2017) (%) 50 Quadro 26 Contribuições das variáveis
30 Quadro 5 Taxas de pobreza para 37 Quadro 16 Número de itens de em cada uma das dimensões
diferentes limiares de pobreza do privação material (2017) 51 Quadro 27 Quantificação das categorias
rendimento equivalente mediano (%) 37 Quadro 17 Indicadores de privação habitacional das variáveis nas dimensões 1 e 2
30 Quadro 6 Taxas de pobreza para diferentes por grupo de rendimento (2017) (%) 56 Quadro 28 Resumo dos perfis
limiares de pobreza do rendimento 38 Quadro 18 Indicadores de pobreza 67 Quadro 29 Revisão das tipologias de
equivalente mediano por grupo etário (%) segundo o sexo e grupo etário (2016) (%) pobreza na literatura portuguesa
31 Quadro 7 Taxas de pobreza antes de 39 Quadro 19 Indicadores de pobreza 70 Quadro 30 Distribuição das entrevistas pelas
9
e após transferências sociais (%) segundo a nacionalidade do indivíduo modalidades de variável, primeira aproximação
32 Quadro 8 Diferença (em pontos de referência (2016) (%) 71 Quadro 31 Taxa de risco de pobreza
percentuais) entre as taxas de pobreza 40 Quadro 20 Indicadores de pobreza (60 % da mediana) Portugal e NUTS II, 2017 (%)
antes de e após transferências sociais10 segundo o tipo de família (2016) (%) 73 Quadro 32 Distribuição das entrevistas
32 Quadro 9 Taxa de pobreza persistente (%) 40 Quadro 21 Indicadores de pobreza segundo realizadas, por perfil e dicotomia territorial
33 Quadro 10 Taxa de pobreza do o nível de escolaridade (2016) (%)
rendimento monetário e não monetário, 41 Quadro 22 Indicadores de pobreza segundo
com base nos dados do IDEF (%) a condição perante o trabalho (2016) (%)12
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Índice de Figuras
50 Figura 1 Medidas de discriminação
(disposição das variáveis ativas)
52 Figura 2 – Mapa percetual: perfis dos
indivíduos em situação de pobreza
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Autores
Diogo, Fernando Farinha RODRIGUES, Carlos Bessa RIBEIRO, Fernando
Sociólogo, doutorado em Ciências Sociais, especialidade de Economista, professor associado do ISEG – Universidade de Lisboa. Doutorado em Ciências Sociais, é professor associado com
Sociologia do Desenvolvimento. É professor associado com Investigador do CEMAPRE (Centro de Matemática Aplicada à agregação do Departamento de Sociologia do Instituto de
agregação da Universidade dos Açores e investigador do Centro Previsão e Decisão Económica). É coordenador do Mestrado em Ciências Sociais da Universidade do Minho e investigador
Interdisciplinar de Ciências Sociais (CICS.NOVA.UAçores e CICS. Economia e Políticas Públicas do ISEG. É assessor do Instituto integrado do CICS.NOVA, sendo o atual coordenador do polo
UAc). A sua investigação centra‑se em torno das temáticas da Nacional de Estatística nas áreas de distribuição do rendimento e da Universidade do Minho. É também cocoordenador da área
pobreza, do RSI e da pobreza infantil, entre outras. É diretor das estatísticas das famílias. Membro da comissão de coordenação temática «Globalização, Política e Cidadania» da Associação
do Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais e de preparação de uma proposta de Estratégia Nacional de Combate Portuguesa de Sociologia. Capitalismo e desenvolvimento,
cocoordenador da secção de Pobreza, Exclusão Social e Políticas à Pobreza em Portugal. É consultor científico do Programa género, sexualidade e questões urbanas constituem os seus
Sociais da Associação Portuguesa de Sociologia. Colabora com a Proinfância promovido pela Fundação La Caixa. É coordenador principais temas de investigação, sobre os quais publicou diversos
Rede Europeia Anti‑Pobreza (EAPN) e foi coautor da Estratégia científico em Portugal do projeto europeu «EUROMOD – Tax livros e artigos em revistas nacionais e estrangeiras.
Regional de Luta Contra a Pobreza dos Açores. É membro do ‑benefit Microsimulation Model for the European Union».
Conselho Económico e Social desta Região. Branco, Francisco
Pereira, Elvira Doutorado em Serviço Social, com especialização em Política
Palos, Ana Cristina Cientista social, professora auxiliar no Instituto Superior de Social e Movimentos Sociais, pela Pontifícia Universidade
Socióloga, doutorada em Sociologia da Educação, é professora Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) da Universidade de Lisboa e Católica de São Paulo. É professor associado da Faculdade
auxiliar no Departamento de Sociologia da Universidade dos investigadora no Centro de Administração e Políticas Públicas de Ciências Sociais da Universidade Católica Portuguesa e
Açores e membro integrado do Centro Interdisciplinar de (CAPP), onde coordena o grupo de investigação Sociedade, investigador do Católica Research Center for Individual, Family and
Ciências Sociais (CICS.NOVA.UAçores e CICS.UAc). Os seus Comunicação e Cultura. Ensina na Licenciatura em Serviço Social e Social Wellbeing. É membro dos grupos de pesquisa Social Work,
principais interesses de investigação centram‑se na sociologia da no Mestrado e Doutoramento em Política Social no ISCSP, tendo History and Research e Social Work and Policy Practice da European
infância e na sociologia da educação. Tem desenvolvido várias sido coordenadora executiva do Mestrado em Política Social. Social Work Research Association. A sua investigação centra‑se
investigações e publicado acerca da relação dos jovens com Os seus interesses de investigação situam‑se nas áreas do bem nos estudos da pobreza e nas políticas públicas, especialmente
a educação e com o mundo do trabalho. ‑estar e da política social, incidindo em especial sobre a pobreza, as políticas de proteção social de cidadania e mínimos sociais.
a adequação do rendimento e as políticas de rendimento mínimo. Participou como investigador no projeto Rendimento Adequado
em Portugal.
Acesso rápido k Capa | Índice | Parte 1 | Siglas | Cap. 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | Anexo A | B | C | D | Parte 2 | Siglas | Resumo | Cap. 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | Anexo A | B | C | D
Pina TREVISAN, Gabriela de Silva, Osvaldo Amaro, Maria Inês
Doutorada em estudos da criança, especialidade de Sociologia da Doutorado em Matemática, especialidade de Probabilidade e Assistente social, doutorada em Serviço Social. É Professora
Infância. Investigadora do Prochild CoLAB Against Poverty and Social Estatística, é Professor Auxiliar na Universidade dos Açores Auxiliar no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa e
Exclusion. Membro colaborador externo do CIEC, Universidade e membro integrado do Centro Interdisciplinar de Ciências investigadora do CIES‑IUL. A sua investigação centra‑se em
do Minho. A sua investigação centra‑se nos domínios dos direitos Sociais (CICS.NOVA.UAçores e CICS.UAc). Os seus principais torno das temáticas da pobreza e exclusão social, das políticas
das crianças, da participação, das políticas públicas com ênfase na interesses de investigação incluem a análise de dados, em especial de rendimento mínimo, entre outras. É vice‑presidente da
pobreza infantil e na relação das crianças com o espaço urbano, a análise de dados multivariados, aplicada às Ciências Sociais, Associação de Profissionais de Serviço Social e vice‑presidente
entre outros. É cocoordenadora da secção temática de Sociologia abrangendo múltiplas temáticas associadas ao desenvolvimento da European Association of Schools of Social Work. Atualmente,
da Infância da Associação Portuguesa de Sociologia e colabora local e regional. Participa em diversos projetos de investigação e é exerce funções em regime de comissão de serviço como diretora
com o grupo de trabalho sobre pobreza infantil da Rede Anti co(autor) de diversos livros e artigos, nacionais e internacionais. do Departamento de Desenvolvimento Social do Instituto da
‑Pobreza (EAPN). Segurança Social, IP.
Perista, Pedro
Canha FERNANDES, Lídia Sociólogo, Investigador sénior no CESIS – Centro de Estudos
Doutorada em Sociologia: Relações de trabalho, desigualdades para a Intervenção Social. Participou, ao longo dos anos,
sociais e sindicalismo (FEUC, 2019), mestre em Sociologia em inúmeros projetos de investigação, ao nível nacional e
(ISCTE, 2011) e licenciada em Psicologia (Universidade do Minho, internacional, nas áreas da pobreza e exclusão social, proteção
1998). É investigadora Integrada do DINÂMIA’CET‑ISCTE desde social e políticas sociais, entre outras. Atualmente, representa
2013 e colabora com o Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais Portugal na Rede Europeia sobre Política Social e na equipa
(CICS.NOVA.UAçores e CICS.UAc) desde 2019. Tem abordado responsável pelo Estudo de Exequibilidade para a Criação
temas como: (des)emprego, conflito e ação coletiva; trabalho de uma Garantia Europeia para as Crianças Vulneráveis e é
temporário e negociação coletiva; reflexão participativa com cocoordenador da secção de Pobreza, Exclusão Social e Políticas
grupos marginalizados; (des)valorização do trabalho; pobreza e Sociais da Associação Portuguesa de Sociologia. É (co)autor de
desigualdades; género e imigração. cerca de cinquenta publicações.
Acesso rápido k Capa | Índice | Parte 1 | Siglas | Cap. 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | Anexo A | B | C | D | Parte 2 | Siglas | Resumo | Cap. 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | Anexo A | B | C | D
Francisco Manuel dos Santos Foundation
Published studies
Economics Institutions
O Cadastro e a Propriedade Investimento em Infra‑Estruturas Droga e Propinas: Avaliações Justiça Económica em Portugal: Juízes na Europa: Formação, selecção,
Rústica em Portugal em Portugal de impacto legislativo Produção de prova promoção e avaliação
Coordenado por Rodrigo Coordenado por Alfredo Coordenado por Ricardo Coordenado por Mariana Coordenado por Carlos
Sarmento de Beires; 2013. Marvão Pereira; 2016. Gonçalves; 2012. França Gouveia, Nuno Garoupa, Gómez Ligüerre; 2015.
Custos e Preços na Saúde: Benefícios do Ensino Superior Pedro Magalhães; 2012. Limitação de Mandatos: O impacto
Justiça Económica em Portugal:
Passado, presente e futuro Coordenado por Hugo Figueiredo A citação do réu no processo civil Justiça Económica em Portugal: nas finanças locais e na participação
Coordenado por Carlos Costa; 2013. e Miguel Portela; 2017. Coordenado por Mariana Recuperação do IVA eleitoral
25 anos de Portugal Europeu: Diversificação e Crescimento França Gouveia, Nuno Garoupa, Coordenado por Mariana Coordenado por Francisco
A economia, a sociedade e os fundos da Economia Portuguesa Pedro Magalhães; 2012. França Gouveia, Nuno Garoupa, Veiga e Linda Veiga; 2017.
estruturais Coordenado por Leonor Sopas; 2018. Pedro Magalhães; 2012. O Estado por Dentro: Uma etnografia
Justiça Económica em Portugal:
Coordenado por Augusto Dinâmica Empresarial e Desigualdade Factos e números Justiça Económica em Portugal: do poder e da administração pública
Mateus; 2013. Coordenado por Rui Baptista; 2018. Coordenado por Mariana Síntese e propostas em Portugal
Que economia queremos? França Gouveia, Nuno Garoupa, Coordenado por Mariana Coordenado por Daniel
Encerramento de Multinacionais: Pedro Magalhães; 2012. França Gouveia, Nuno Garoupa, Seabra Lopes; 2017.
Coordenado por João Ferrão; 2014. O capital que fica Pedro Magalhães; 2012. O Impacto Económico dos Fundos
A Economia do Futuro: A visão Coordenado por Pedro de Faria; 2018. Justiça Económica em Portugal:
de cidadãos, empresários e autarcas Gestão processual e oralidade Segredo de Justiça Europeus: A experiência
GDP‑linked bonds in the Coordenado por Mariana Coordenado por Fernando dos municípios portugueses
Coordenado por João Ferrão; 2014. Portuguese Economy França Gouveia, Nuno Garoupa, Gascón Inchausti; 2013. Coordenado por José Tavares; 2017.
Três Décadas de Portugal Europeu: Coordenado por Gonçalo Pina Pedro Magalhães; 2012.
Balanço e perspectivas Feitura das Leis: Portugal e a Europa Orçamento, Economia e Democracia:
Features of Portuguese International Justiça Económica em Portugal: Coordenado por João Caupers, Uma proposta de arquitetura
Coordenado por Augusto
Trade: a Firm‑level Perspective Meios de resolução alternativa Marta Tavares de Almeida e institucional
Mateus; 2015.
Coordenado por João Amador; 2020 de litígios Pierre Guibentif; 2014. Coordenado por Abel M. Mateus; 2018.
Empresas Privadas e Municípios: Coordenado por Mariana
Financial Constraints and Business Portugal nas Decisões Europeias Instituições e Qualidade
Dinâmicas e desempenhos França Gouveia, Nuno Garoupa,
Dynamics: Lessons from the 2008 Coordenado por Alexander da Democracia: Cultura política
Coordenado por José Tavares; 2016. Pedro Magalhães; 2012.
‑2013 Recession Trechsel, Richard Rose; 2014. na Europa do Sul
Coordenado por Carlos Carreira, Justiça Económica em Portugal: Coordenado por Tiago Fernandes; 2019.
Valores, Qualidade Institucional
Paulino Teixeira, Ernesto Nieto Novo modelo processual e Desenvolvimento em Portugal Os Tribunais e a Crise Económica
‑Carrillo e João Eira; 2021. Coordenado por Mariana Coordenado por Alejandro Portes e Financeira: Uma análise ao processo
França Gouveia, Nuno Garoupa, e M. Margarida Marques; 2015. decisório em contexto de crise
Pedro Magalhães; 2012. económico‑financeira
O Ministério Público na Europa
Justiça Económica em Portugal: Coordenado por José Martín Patrícia André, Teresa Violante
O sistema judiciário Pastor, Pedro Garcia Marques e Maria Inês Gameiro; 2019.
Coordenado por Mariana e Luís Eloy Azevedo; 2015.
França Gouveia, Nuno Garoupa,
Pedro Magalhães; 2012.
Society
Como se aprende a ler? Inquérito à Fecundidade 2013 O Multimédia no Ensino das Ciências Porque melhoraram os resultados
Coordenado por Isabel Leite; 2010. INE e FFMS; 2014. Coordenado por João Paiva; 2015. do PISA em Portugal?
A Ciência na Educação Pré‑Escolar O Quinto Compromisso: Estudo longitudinal e comparado
Fazer contas ensina a pensar?
Coordenado por Maria Lúcia Desenvolvimento de um sistema (2000–2015)
Coordenado por António Bivar; 2010.
Santos, Maria Filomena Gaspar, de garantia de desempenho Coordenado por Anália Torres; 2018.
Desigualdade Económica em Portugal
Sofia Saraiva Santos; 2014. educativo em Portugal Igualdade de Género ao Longo da Vida:
Coordenado por Carlos Farinha
Dinâmicas Demográficas Coordenado por Margaret Portugal no contexto europeu
Rodrigues; 2012.
e Envelhecimento da População E. Raymond; 2015. Coordenado por Anália Torres; 2018.
Projecções 2030 e o Futuro
Portuguesa (1950–2011): Desigualdade do Rendimento As mulheres em Portugal, Hoje:
Coordenado por Maria
Evolução e perspectivas e Pobreza em Portugal: Quem são, o que pensam e como
Filomena Mendes e Maria
Coordenado por Mário As consequências sociais do programa se sentem
João Valente Rosa; 2012.
Leston Bandeira; 2014. de ajustamento Coordenado por Laura Sagnier
Envelhecimento Activo em Portugal: Coordenado por Carlos e Alex Morell; 2019.
Ensino da Leitura no 1.º Ciclo
Trabalho, reforma, lazer e redes sociais Farinha Rodrigues; 2016.
do Ensino Básico: Crenças, Financial and Social Sustainability
Coordenado por Manuel
conhecimentos e formação Determinantes da Fecundidade of the Portuguese Pension System
Villaverde Cabral; 2013.
dos professores em Portugal Coordenado por Amílcar
Escolas para o Século xxi: Liberdade Coordenado por João A. Lopes; 2014. Coordenado por Maria Moreira; 2019
e autonomia na educação Filomena Mendes; 2016.
Ciência e Tecnologia em Portugal: Identidades Religiosas e Dinâmica
Coordenado por Alexandre
Métricas e impacto (1995–2012) Será a repetição de ano benéfica Social na Área Metropolitana
Homem Cristo; 2013.
Coordenado por Armando para os alunos? de Lisboa
Informação e Saúde Vieira e Carlos Fiolhais; 2014. Coordenado por Luís Coordenado por Alfredo Teixeira; 2019
Coordenado por Rita Espanha; 2013. Catela Nunes; 2016.
Mortalidade Infantil em Portugal: A evolução da ciência em Portugal
Literatura e Ensino do Português Evolução dos indicadores e factores Justiça entre Gerações: Perspectivas (1987‑2016)
Coordenado por José Cardoso associados de 1988 a 2008 interdisciplinares Elizabeth Vieira, João Mesquita, Jorge
Bernardes e Rui Afonso Mateus; 2013. Coordenado por Xavier Barreto Coordenado por Jorge Pereira da Silva Silva, Raquel Vasconcelos, Joana Torres,
Processos de Envelhecimento e José Pedro Correia; 2014. e Gonçalo Almeida Ribeiro; 2017. Sylwia Bugla, Fernando Silva, Ester
em Portugal: Usos do tempo, Os Tempos na Escola: Migrações e Sustentabilidade Serrão e Nuno Ferrand; 2019
redes sociais e condições de vida Estudo comparativo da carga horária Demográfica: Perspectivas
Coordenado por Manuel em Portugal e noutros países de evolução da sociedade e economia
Villaverde Cabral; 2013 Coordenado por Maria Isabel Festas; portuguesas
Que ciência se aprende na escola? 2014. Coordenado por João Peixoto; 2017.
Coordenado por Margarida Cultura Científica em Portugal Mobilidade Social em Portugal
Afonso; 2013. Coordenado por António Granado Coordenado por Teresa
e José Vítor Malheiros; 2015. Bago d’Uva; 2017.